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O que é a Participação Pública

1. Nas últimas três décadas, no mundo da pesquisa assim como nos debates políticos,
temos ouvido falar de forma crescente de um “imperativo participativo” ou “deliberativo”,
que marcaria a transformação dos modos de fazer política e de conceber e realizar as
políticas públicas.
Não se trata de um tema novo, mas de algo que tem vindo a crescer de intensidade e a
mudar de características, em relação com novas conjunturas políticas, sociais e de
transformação tecnológica, e com uma “crise civilizacional” (marcada pelo aumento do
individualismo e de novas formas de “fascismo social”) que também atinge Portugal.

2. Desde o final da segunda guerra mundial e com maior intensidade a partir dos anos
60, emergiram em diversos países alguns pensadores que, a partir de diferentes pontos de
vista, começaram a elaborar reflexões sobre a importância da “participação cívica”.
Esses foram marcados pelas grandes lutas pelos direitos humanos, políticos, sociais e
culturais. Entre eles, podemos citar os que vincularam este tema ao do desenvolvimento
social comunitário e da pedagogia dos oprimidos, como o norte-americano Saul David
Alinsky (conhecido como o pai dos métodos modernos de organização comunitária), o
pedagogo Paulo Freire e o ativista e dramaturgo Augusto Boal, ambos brasileiros, mas
também o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre (conceptualizador do “Direito à
cidade”), os ativistas italianos Aldo Capitini (filosofo e poeta da desobediência não-violenta)
e Danilo Dolci (pai do desenvolvimento comunitário), bem como o empresário Adriano
Olivetti (mecenas e filantropo, financiador de experiências habitacionais e industriais
planeadas coletivamente).
Uma grande contribuição para a experimentação de fórmulas avançadas de envolvimento
cívico no planeamento territorial e habitacional veio de arquitetos, geógrafos e urbanistas
como o anarquista italiano Giancarlo De Carlo, o egípcio Hassan Fathy (autor do manual
“Construindo Com o Povo”), o brasileiro Milton Santos e o britânico John F. C. Turner, que
muito trabalharam a partir da observação do chamado “self-help”, ou seja da
autoconstrução habitacional por parte de camadas pobres da população de diferentes
países.

3. O conceito de participação cívica foi-se alterando gradualmente nas últimas seis


décadas, dialogando com mudanças tecnológicas, políticas e de organização social,
institucional e legal.
Por exemplo, Mauro Giusti evidencia uma mudança paradigmática que se deu entre muitas
das práticas participativas que prevaleciam nos anos 60 e 70 (especialmente no mundo
anglo-saxónico) e aquelas dos anos 80 e 90. Para o autor, nas décadas de 60 e 70, o centro
da cena foi ocupado por formas participativas baseadas na prática do “advocacy”, nas quais
alguns profissionais iluminados (como sociólogos, psicólogos, urbanistas, geógrafos e
economistas, etc.) faziam questão de representar e defender os interesses de grupos
sociais vulneráveis ou marginalizados pelas práticas políticas representativas e pelos jogos
de poder.
Sucessivamente, o foco das atenções mudou para a criação e consolidação de uma série
de ferramentas e instrumentos (técnicas, metodologias, jogos e mais tarde softwares,
aplicativos e plataformas) que pudessem gerar espaços de debate e negociação pública,
onde todos – incluindo os atores e grupos sociais tradicionalmente mais marginalizados –
pudessem sentir-se à vontade em participar, como protagonistas nas diferentes fases dos
processos participativos, da ideação à implementação, gestão e avaliação de políticas e
projetos de interesse público.
Esta mudança de foco trouxe novos termos para descrever a participação cívica, assim
como novas competências e novas figuras profissionais como os “facilitadores”, peritos em
organização de processos participativos capazes de mobilizar diferente tipologias de
cidadãs e cidadãos na construção de projetos e políticas da competência da administração
pública, mas com impacto direto na qualidade de vida quotidiana e no bem-estar das
populações.

4. Naturalmente, a entrada destas novas técnicas de facilitação e das figuras


profissionais a elas ligadas determinou divergências entre formas radicais e de híper-
politização da participação, e outras mais “tecnicizadas”, consideradas indispensáveis para
reduzir os conflitos e trabalhar óticas centradas na busca de soluções e compromissos,
mais do que na análise e discussão dos problemas sociais e políticos subjacentes.
Nesta perspetiva, entendem-se algumas críticas à “descafeinação” e “despolitização” dos
processos participativos, dada a emergência de instituições anteriormente pouco
interessadas em promover o envolvimento das comunidades no planeamento, na gestão
do território e na definição das políticas públicas, muitas vezes por razões instrumentais.

5. A multiplicação de processos institucionalizados, “por convite” e “por irrupção”,


promovidos por entidades da Administração Pública também contribuiu para esta tendência
de reduzir muitas iniciativas participativas à componente instrumental, para melhorar as
decisões sobre políticas, planos e projetos – sem necessariamente enfrentar as dimensões
relativas à justiça social e ambiental, que eram mais centrais em algumas das experiências
“por advocacy”, dos anos 60 e 70.
A formulação de processos participativos, como requisito legal para que algumas políticas
pudessem ser aprovadas, também contribuiu para que várias experimentações fossem
esvaziadas de sentido político e se justificassem apenas pelo cumprimento de imperativos
normativos/procedimentais.

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6. O prevalecer de perspetivas utilitaristas da participação, como fator que pode tornar
melhores ou mais eficazes as políticas, os planos e os projetos públicos, não deve ser visto
como um fator “estrutural” da participação nos tempos presentes, mas como um dos olhares
e das opções possíveis.
De facto, a participação pública também tem potenciais diferentes, como os de natureza
epistemológica (contribuir para conhecer melhor o território e a sociedade, juntar visões
diferentes sobre o futuro, valorizar os bens comuns, etc.) e os ligados à capacidade de
reforçar laços comunitários. Estas perspetivas podem ser declinadas em diferentes escalas
territoriais administrativas.
Dentro desta complexidade, não se deve estranhar a existência de práticas exitosas de
participação em realidades políticas marcadas por comportamentos autoritários ou por um
reduzido pluralismo das forças que governam, como acontece em China, Federação Russa
e Zimbabwe, entre outros. Isto decorre do facto que, por exemplo, as práticas participativas
podem ser declinadas de forma pluralista e aberta no âmbito de escolhas ligadas à
proximidade, sem se debruçarem necessariamente sobre questões mais estratégicas e
estruturantes.
Portanto, frente a cada experiência concreta de participação, devemos perguntar-nos sobre
as razões e os objetivos que a motivam, sobre os níveis de inclusão e pluralismo que a
marcam, bem como sobre as potencialidades que é capaz de ativar, para que ela
represente uma forma completa e articulada de valorizar o envolvimento de diferentes
atores na construção do bem comum.

7. No cenário exposto, quais podem ser as razões que motivam o investimento de


instituições públicas na construção e gestão de processos participativos?
As principais poderiam ser assim resumidas:
• A sociedade ficou cada vez mais complexa, plural e individualizada. Construir
programas e políticas com base na “tipificação” dos públicos-alvo, usada até o início
do novo milénio, pode trazer desperdiço e baixos níveis de eficácia, enquanto o
diálogo direto com as populações pode acarretar maior efetividade e eficiência no
uso de recursos públicos. Neste sentido, a participação é vista como parte de
modelos de “governação” mais amplos e plurais;
• A participação pode ser um espaço muito valioso para mapear valores, desejos e
bens comuns, que unem diferentes indivíduos e grupos sociais, para além de criar
um terreno fértil para o empenho cívico na cogestão de soluções que ponham lado-
a-lado cidadãos, organizações sociais, o mercado e instituições públicas. Para
algumas matérias, como as políticas que visam favorecer a transição ecológica, a
plena colaboração das cidadãs e dos cidadãos na implementação das medidas é um
elemento indispensável. Nestes casos, a participação tem um alto potencial para
aumentar a prontidão das pessoas para a mudança, que é uma componente central
da efetividade e do sucesso de tais políticas.

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• Os processos participativos, na sua ampla diversidade de métodos, são um valioso
recurso simbólico para a democracia. Isso é especialmente verdadeiro em tempos
de profunda crise das instituições representativas; e ainda mais porque a “construção
social da realidade” supervaloriza as perceções dos cidadãos, forjando e
rearticulando de maneira permanente as suas expectativas. Muitas administrações
públicas investem recursos humanos e financeiros na promoção de processos
participativos, com o objetivo de que contribuam para reconstruir a confiança das
populações na atuação das instituições representativas. Sendo que a crise da
“representatividade” não abrange apenas partidos e sindicatos, mas afeta também
organizações e movimentos sociais, muitas vezes vistos como lobbies à procura de
recursos e de lugares no mundo da política e menos como defensores dos direitos e
das opiniões dos grupos que pretendem representar. Diante deste contexto, resulta
fundamental garantir a participação direta das cidadãs e dos cidadãos, enquanto
indivíduos capazes de identificar problemas e propor soluções.
• A realidade é cada vez mais complexa também no que respeita às mudanças que
resultam da evolução científica e tecnológica. Cada solução encontrada para
resolver os problemas de um território ou de uma sociedade implica vantagens e
efeitos colaterais, que carecem de uma análise cuidada. Portanto, não existem mais
escolhas percebidas como “técnicas”. Os cidadãos que se têm tornado mais
exigentes devido ao maior pluralismo da informação, impulsionado pelo
desenvolvimento tecnológico das redes digitais e das transformações do sistema da
comunicação de massa, reclamam o direito de ser parte das escolhas políticas, de
ser informados sobre as suas motivações e de poder monitorizar e avaliar resultados
e impactos. Hoje, a confiança dos cidadãos na ciência está também fortemente
afetada, algo ainda mais evidente no que concerne à tecno-burocracia dos
organismos públicos;
• Há um crescente reconhecimento de que a aprendizagem e a inteligência coletivas,
geradas pelos processos participativos, podem criar soluções mais criativas e
inovadoras, e gerar dinâmicas de “ressonância” que fazem crescer os participantes
e a administração, abrindo novos “círculos virtuosos” de interação entre ambos.
• Finalmente, o fomento da cidadania é visto, cada vez mais, como uma área de
atuação fundamental para o Estado, sendo um espaço de conquista de direitos
formais e substanciais, e de enfrentamento de conflitos. Assim, a participação torna-
se quase uma expectativa natural, num sistema político que muitas vezes premeia a
governabilidade (soluções técnicas para poder governar com mais facilidade) em
detrimento da representatividade (a capacidade dos eleitos de trazer dentro das
instituições uma ampla gama de posições da sociedade, incluindo ideias e interesses
das minorias). Neste sentido, a participação deve ser vista como um campo sujeito
a conflitos. Isto significa que essa pode ter a missão de pacificar tensões e
divergências, visando construir novas soluções partilhadas.

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8. Nas últimas três décadas, uma grande diversidade de atores tem vindo a reconhecer
os benefícios acima mencionados, como efeitos possíveis e desejáveis de um aumento da
participação cívica na construção de políticas e projetos de interesse público.
Não admira, portanto, que muitos Acordos, Manifestos e Agendas internacionais e
nacionais tenham vindo a incorporar recomendações dirigidas a governos de diferentes
níveis (principalmente os regionais e locais), no sentido de aumentarem o investimento na
organização de processos participativos e prestarem mais atenção aos impactos
resultantes da transformação das políticas da sua competência.
Entre estes documentos, destaca-se a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, aprovados pelas Nações Unidas, a Carta de Aalborg, a Carta Europeia da
Autonomia Local, o manifesto central da Open Government Partnership, entre muitos
outros.

9. Em Portugal, depois de décadas de regime autoritário, é com a Revolução do 25 de


Abril de 1974 que se inicia um processo de valorização da participação cívica, que tem
marcos importantes em algumas políticas, como aconteceu na área da habitação com o
SAAL – o Serviço Ambulatório de Apoio Local.
A mudança em apreço foi essencial para incluir marcas distintivas na Constituição da
República Portuguesa (CRP). Por exemplo, o combinado dos artigos 9º e 2º identifica o
aprofundamento da democracia participava como tarefa importante do Estado de Direito,
visualizando, portanto, a participação como um dos fins da intervenção do Estado e não
apenas como um meio para defender outros valores e direitos da Carta Fundamental.
Por sua vez, o artigo 267º da CRP preconiza que a Administração Pública seja estruturada
de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar
a participação dos interessados na sua gestão efetiva, designadamente, por intermédio de
associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação
democrática. Outros artigos da CRP identificam a importância do envolvimento cívico para
uma boa estruturação de políticas públicas temáticas de importância vital, como as da
saúde ou da habitação.

10. Com base na valorização da participação pública, contemplada na CRP, tem vindo
a crescer, na última década, o número de medidas inseridas no quadro regulamentar que
vinculam algumas políticas públicas ao envolvimento das cidadãs e dos cidadãos.
No campo das políticas da juventude, os marcos são representados pela Lei n.º 1/2006
(que criou o Conselho Nacional de Juventude) e pela Lei n.º 8/2009 e as suas modificações
(Lei n.º 6/2012).
No âmbito das políticas de bem-estar, a Carta para a Participação Pública em Saúde
originou por um processo participativo promovido pelos tecidos sociais, que foi reconhecido
pela Lei nº 108/2019.

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No âmbito das políticas educativas, um marco regulatório importante foi estabelecido com
o Despacho n.º 436-A/2017, que estabeleceu o Orçamento Participativo das Escolas.

11. Recentemente, a Estratégia para a Inovação e Modernização do Estado e da


Administração Pública 2020-2023 (aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
55/2020) previu um Eixo Estratégico (o nº 4 - Reforçar a Proximidade), que preconiza a
operacionalização de “novas formas e instrumentos de participação das cidadãs e dos
cidadãos, que possam garantir a auscultação, o envolvimento, a cocriação, a prestação de
contas e a avaliação de medidas, programas e políticas públicas, em estreita articulação
com os trabalhadores e dirigentes da Administração Pública”, com o objetivo de reforçar os
mecanismos de democracia participativa e consequentemente aumentar a confiança dos
cidadãos nas instituições públicas.

Por sua vez, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 130/2021 – que também instituiu o
Dia Nacional da Participação – determinou a disponibilização de oferta formativa para
capacitar a Administração Pública para a participação, prevendo uma nova geometria
organizacional para o Orçamento Participativo Nacional (OPP), e a construção de uma
forma de orçamentação participativa dedicada especificamente aos funcionários da
Administração Pública.

Na última década, várias autarquias e as duas regiões autónomas criaram medidas para
institucionalizar processos participativos, como o orçamento participativo, providenciando
algum grau de cobertura regulamentar.

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