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DEMOCRACIA COMO PLURALIDADE: TRÊS

INTERPRETAÇÕES CONCEITUAIS

Mariah Casséte, UFMG – CAPES


mariahlqc@yahoo.com.br

ISSN: 2317-6334 para a publicação online - Anais III Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência
Política – UFPR - Curitiba 31 de julho de 2013 a 02 de agosto de 2013.
DEMOCRACIA COMO PLURALIDADE: TRÊS INTERPRETAÇÕES
CONCEITUAIS

Mariah Casséte1

RESUMO: O presente trabalho apresenta como premissa a ideia de que na


contemporaneidade o sentido da democracia precisa ser reinterpretado a partir da ideia
de pluralidade. No entanto, tal conceito não indica simplesmente o fato da diversidade e
competição social, tal como concebido pelo pluralismo liberal. Pensar a democracia
pela perspectiva da pluralidade é partir do ponto de vista daqueles que estão de fora da
lógica política, bem como dos processos de lutas por emancipação e justiça, que só
adquirem sentido e eficácia no contexto do espaço público. Apresentamos, assim, três
interpretações conceituais distintas a respeito da relação entre a ideia de pluralidade e o
sentido do democrático: os pensamentos de Hannah Arendt, Claude Lefort e Jacques
Rancière.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia ; Pluralidade; Hannah Arendt; Claude Lefort; Jacques


Rancière

INTRODUÇÃO

O autor Pierre de Rosanvallon afirma em seu livro Democratic Legitimacy que o


vocabulário político utilizado para compreender e conceituar a democracia permaneceu
inalterado ao longo do século XX (até a década de 1980) em algumas questões
fundamentais como a representação, as eleições, as instituições, a burocracia. Poucas
inovações teóricas foram produzidas no sentido de aprofundamento na compreensão dos
princípios que sustentam o sentido do democrático em nossas sociedades atuais.
De maneira geral, o que encontramos com mais frequência são estudos e
análises a respeito de como a democracia funciona, quem são seus principais atores e
instituições, e como ela pode ser aprimorada institucionalmente. Porém, mais raras são
aquelas discussões sobre os valores e princípios que fundamentam a democracia no
contexto político e social contemporâneo, ou em outras palavras, análises que se

1
Universidade Federal de Minas Gerais, mariahlqc@yahoo.com.br, doutoranda em Ciência
Política.

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aprofundem na forma como a democracia - enquanto um paradigma amplo e complexo -
se institui na interação entre conceitos e acontecimentos, teoria e história.
Claude Leffort (1991), seguindo essa perspectiva, ressalta que pensar a
democracia é buscar compreendê-la como uma forma de sociedade: buscando entender
no que consiste sua singularidade e o que existe (valores, práticas, regras) que permite o
seu contrário, ou a sua ausência. De fato, entender o modo que a ideia de democracia é
vivenciada em nossas comunidades e sistemas políticos auxilia-nos primeiramente, na
compreensão dos problemas e insuficiências desse sistema e, posteriormente na
avaliação de sua legitimidade e nas possibilidades de seu aprofundamento na atualidade.
Tornar a democracia um objeto de investigação teórica é, nesse sentido, relevante em
um contexto de mudanças econômicas, políticas e sociais, tais como se apresenta a
realidade em vários países ocidentais.
Nesse sentido, o problema da estabilidade no campo da teoria democrática, tal
como aponta Rosanvallon, é o do distanciamento que acaba sendo produzido entre o
que compreendemos como democracia e as transformações que esse paradigma político
vem experimentando na prática social. A democracia não é um modelo fixo ou
inalterável ao longo do tempo. Ao contrário, ela se mostra como um tipo de regime que
incessantemente resiste a demarcações definitivas. Assim, analisá-la apropriadamente
demanda um trabalho de investigação tanto teórica como prática, ou seja, a democracia
é indissociável de um trabalho de exploração e de experimentação, de compreensão e de
elaboração de si própria.
O que gostaríamos de desenvolver nesse trabalho, é que as sociedades
contemporâneas passam por transformações significativas que desafiam o sentido da
democracia tal como instituído. Dessa forma, o papel de uma teoria democrática capaz
de dizer algo efetivo a respeito da vida política precisa ser capaz de repensar os
princípios que estruturam a realidade social, incluindo os novos processos, desafios e
demandas que possivelmente delineiam novos sentidos para o campo democrático. Ao
nos voltarmos para nossas experiências políticas é impossível não destacarmos a
questão da diversidade como aspecto que vem se tornando central para a análise e
compreensão do democrático na contemporaneidade. Um grande desafio que se
apresenta diante dessa realidade é o de como efetivamente incluir essa diversidade de
grupos, ideias e perspectivas na dinâmica política de nossas sociedades, ou em outras

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palavras, como fazer aparecer e agir os sujeitos sociais que se encontram em condições
de invisibilidade ou sujeição no espaço coletivo. Pensar a pluralidade é, portanto,
compreender a democracia a partir do ponto de vista daqueles que estão de fora da
lógica pública – que estão sujeitos a uma dinâmica de exclusão e opressão - mas
também dos processos de lutas por emancipação e justiça, que compõem o tecido da
vida social contemporânea (NORVAL, 2009).
Assim, se partimos da premissa de que uma vida pública pautada na ideia da
pluralidade é fundamento essencial para delimitarmos o próprio sentido do paradigma
democrático, torna-se relevante investigarmos qual é o sentido de pluralidade capaz de
efetivamente traduzir o desafio da inclusão política. Torna-se importante, portanto,
desenvolvermos uma análise cuidadosa sobre como a categoria de pluralidade pode ser
pensada e introduzida na teoria democrática contemporânea. Para tanto, propomos a
análise dos pensamentos políticos de três importantes autores: Claude Lefort, Hannah
Arendt e Jacques Rancière. Cada um deles propõe uma forma de se interpretar os
fundamentos políticos contemporâneos sob a perspectiva da pluralidade, porém, tal
interpretação é realizada a partir de marcos distintos que devem, portanto, ser mais
profundamente analisados.
Apesar das diferenças notórias nas análises conceituais dos autores, todos eles
partem da ideia de que a proposta pluralista liberal já não é mais suficiente para
concebermos as transformações do sentido do democrático. A concepção que perpassa o
pensamento de todos eles é a de que ainda que muitos dos aspectos defendidos e
reivindicados pelos diversos grupos no embate político contemporâneo sejam de
natureza estritamente econômica ou social2, haveria um elemento essencialmente
político em suas demandas e atuação. De fato, é possível identificarmos no interior de
nossas sociedades contemporâneas a proliferação de questionamentos que transcendem
a questão do bem-estar econômico, traduzindo-se na busca por direitos, por inclusão,
reconhecimento e participação política. Esse quadro acaba por gerar uma nova
necessidade de repensarmos os próprios parâmetros políticos da coletividade.

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Dominique Schnapper (1998) destaca a evolução das sociedades atuais como sociedades de trabalho e
consumo, nas quais os indivíduos têm se reconhecido mais como produtores ou consumidores do que
como cidadãos. Essa transformação impacta profundamente os laços que unem os indivíduos em
coletividade: mais do que laços políticos, a autora afirma que as sociedades contemporâneas baseiam-se
nos laços econômicos e materiais.

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Para Arendt, Lefort e Ranciére, cabe estabelecermos uma análise capaz de
explorar esses novos fundamentos da experiência conjunta em um contexto de
aprofundamento da pluralidade e da exigência por inclusão. Se a democracia
contemporânea demonstra uma notória impaciência com relação a seus limites políticos,
é importante questionarmos de que maneira tais demandas democráticas vêm
impactando a natureza e as delimitações tradicionais da comunidade política, isto é, os
laços que unem os indivíduos e que produzem, assim, a experiência coletiva.

A DEMOCRACIA LIBERAL: DIVERSIDADE COMO PLURALISMO


O contexto político contemporâneo das mais diversas nações ocidentais tem sido
marcado por alguns processos comuns, mas nenhum deles é mais aceito ou
compartilhado que a ideia de que a democracia é a melhor forma de governo. A
ausência da mesma é algo reconhecido por todos como um grave problema, o que em
consequências mais extremas já foi, inclusive, justificativa para conflitos entre países. É
preciso salientar, no entanto, que essa democracia tão aceita como a melhor opção para
se organizar a vida pública de nossas sociedades apresenta princípios, características e
expressão institucional que se conforma a uma identidade bem definida: o liberalismo.
Sendo assim, as práticas, as leis e as instituições democráticas são configuradas por
meio dos ideais básicos liberais, como a prevalência do indivíduo perante o Estado, a
existência de direitos humanos naturais e inalienáveis, o constitucionalismo, a
existência de eleições livres e periódicas, o sufrágio universal e a representação política.
Esse conjunto de premissas é responsável por delinear a forma como os sistemas
políticos democráticos se substanciam na realidade institucional. Sendo assim, é
possível dizer que a política sob o paradigma liberal é concebida como um meio para
que os indivíduos tenham as garantias e liberdades necessárias para organizar e
gerenciar suas vidas privadas da forma que melhor lhes convêm. Na vida em sociedade,
portanto, a democracia liberal caracteriza-se por sua função marcante: a de proteção do
bem-estar individual por meio da garantia de uma dinâmica coletiva adequada para a
manutenção dos direitos e interesses dos indivíduos.
Nesse sentido, não seria correto afirmarmos que a democracia liberal não apresenta
uma concepção clara em relação ao fato da diversidade social. O liberalismo nasce
exatamente a partir da premissa de que a política e o Estado precisam acomodar e

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garantir a livre atuação e competição dos mais diversos grupos que compõem o tecido
da vida em sociedade. Em oposição a uma ideia de soberania popular unificada,
totalizante e transcendente – como acabou se caracterizando o republicanismo da
revolução francesa (BIGNOTTO, 2010) - a democracia liberal propõe a instituição de
um poder do povo, que efetivamente tenha seus fundamentos na soberania popular, mas
que não se traduza na busca por uma identidade fixa ou única.
Importantes autores liberais como Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill são
bastante claros na importância de compreender a democracia moderna a partir da ideia
do pluralismo. Para Tocqueville, por exemplo, a expressão máxima de uma sociedade
democrática se dá na organização associativa. O argumento clássico em Democracia na
América se traduz na ideia de que o pluralismo social norte-americano - concretizado
nos grupos e associações civis - gerava vigor democrático entre os cidadãos daquela
nação, exatamente por criar atitudes e uma forma de comportamento individual capaz
de incentivar a busca política por interesses e demandas, através da organização
conjunta e da pressão sobre o poder governamental. Em perspectiva parecida a de
Tocqueville, Stuart Mill em Sobre a liberdade, defende de maneira veemente as noções
da individualidade, e da liberdade como forma dos cidadãos modernos expressarem sua
própria singularidade, pressupondo, assim, um intenso pluralismo social. De acordo
com o autor, a política que é governada apenas por uma única opinião pública tende a
abafar a expressão das minorias, o que resultaria em um nocivo constrangimento à
liberdade e ao aprimoramento moral dos indivíduos. Para ele, é na noção de diversidade
de interesses, opiniões e ideias que se torna possível o desenvolvimento social, político
e humano de uma comunidade.
No contexto da teoria política contemporânea, Robert Dahl também aponta a
importância de um cenário plural no interior das democracias liberais. De acordo com
ele, se uma grande república exige que os representantes sejam eleitos, no período entre
as eleições a única maneira de se contestar as ações desses representantes e,
principalmente, de incluir os interesses e as demandas dos cidadãos no processo
decisório, se dá através da associação em grupos de interesses, organizações de lobby e
partidos. As democracias, portanto, precisam estar fundamentadas na ideia da
diversidade social, que permita aos indivíduos plena liberdade para buscarem a
realização de seus direitos e a expressão de suas opiniões e interesses.

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Dessa forma seria possível afirmarmos que as democracias liberais consolidam um
cenário político e social propício para a diversidade dos cidadãos, permitindo que os
indivíduos sejam representados no espaço público e, ao mesmo tempo, tenham
preservada sua liberdade privada. Porém, não é possível dizer que essa perspectiva seja
isenta de problemas. De fato, se, por um lado, o liberalismo atua sobre o perigo da
“tirania da maioria” - tal como expresso por Tocqueville -, por outro, os valores e
práticas do liberalismo, ao promoverem de forma prioritária e hegemônica a ação e
interesses individuais, acabam por intensificar um processo intenso de valorização do
mundo privado, obscurecendo os processos constitutivos do espaço público
(HABERMAS, 2003). Isso significa que muito mais importante que um projeto político
que imprime identidade e sentido à cidadania, são os processos de natureza individual -
como o consumo, o trabalho, a sobrevivência – que parecem mais e mais substituírem a
lógica da unidade política:
Cada vez mais os direitos sociais se equiparam aos direitos políticos, e
uma cidadania “econômica e social” passa a ser, para muitos pensadores,
a autêntica cidadania moderna. Valores estritamente políticos são
raramente lembrados em defesa das democracias ocidentais. Mais
frequentemente, o sucesso das mesmas é concebido pela sua capacidade
em criar e difundir riquezas. (Schnapper, 1998, p.160).

O grande problema nesse contexto de contínuo obscurecimento da ação e das


relações no espaço público é o de que as relações econômicas e o bem estar material não
são elementos capazes de garantir o vínculo entre os cidadãos, tornando cada vez mais
complicado o estabelecimento da unidade política. A questão é que nessa lógica
econômica não há um sentido de ação conjunta: o que é dado para alguns é sempre
tirado de outros e o contexto ampliado de competição enfraquece progressivamente a
própria possibilidade da constituição de um espaço público plural. Perde-se assim, o
sentido do político e o exercício da autonomia e autodeterminação por ele propiciado.
Outro problema importante é que esse cenário favorece uma fragilização do próprio
sistema democrático, já que por estar ligado aos processos econômicos de produção e
bem estar, torna-se sujeito às ondas de desenvolvimento e estagnação das economias
nacionais. Assim, o que pode ocorrer, é a dificuldade em sustentar uma unidade política
baseada nos valores democráticos quando há uma crise econômica prolongada - fato
esse notório na Europa atual, na qual paralelamente à grave crise econômica, há um

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processo de fortalecimento de partidos de extrema direita que povoam cada vez mais os
parlamentos de vários países em crise.
Porém, para além desses aspectos, há uma consequência ainda mais complicada, que
diz respeito à própria natureza do espaço público a partir do qual a sociedade liberal é
concebida. É importante nos determos nesse ponto. O modelo liberal parte do
pressuposto de que o pluralismo social é atributo do espaço privado e diz respeito a
escolhas individuais. No âmbito político, tais diferenças precisam, portanto, serem
neutralizadas, para que haja tratamento igualitário por parte do Estado para todos os
cidadãos, independentes de suas características, escolhas e formas de vida. O grande
argumento, nesse sentido, é o de que o possível conflito entre essa infinidade de
diferenças sociais pode ser evitado na medida em que seja constituída uma esfera
política “cega” às diferenças, capaz de garantir a todos os indivíduos seus direitos
fundamentais, e com isso, permitir a competição, a associação, enfim, todo o universo
de múltiplas práticas e vivências sociais em um contexto de equidade e justiça. A
perspectiva liberal quanto à pluralidade é a de que as diferenças precisam ser
respeitadas como parte das práticas e experiências individuais, mas não podem fazer
parte da constituição da esfera pública, uma vez que abririam margem para o conflito
entre posições constantemente irredutíveis. Em suma, a pressuposição individualista do
modelo liberal concebe a diversidade como fato aceito e mesmo desejável no interior do
mundo privado, mas ignorado na constituição das ações e normas políticas
(GALEOTTI, 2002).
O grande problema dessa perspectiva é a tentativa de se evitar o conflito através da
exclusão das diferenças como constitutivas da esfera política. A presunção de um
espaço público equitativo através das leis, do direito e das normas desconhece o fato de
que ainda que ignoradas, as diferenças não desaparecem das relações e práticas
empreendidas no âmbito político. A insistência na neutralidade mascara as hierarquias,
desigualdades e opressões que se reproduzem no espaço público. A teoria feminista ao
longo do século XX, nesse sentido, buscou romper com a neutralidade liberal,
apontando exatamente o fato de que a naturalização das práticas de opressão privada de
homens sobre mulheres foram constantemente reproduzidas nas relações políticas e de
poder, o que durante muito tempo excluiu completamente a própria consideração da
mulher como digna do status de efetiva igualdade e cidadania, além de impossibilitar a

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própria contestação e condenação dessas práticas de violência e dominação na esfera
privada (PATEMAN, 1989). A neutralidade liberal, nesse sentido, não ignora o fato da
pluralidade no interior social, mas a exclui como parte integrante da possibilidade de
constituição da esfera pública. A dinâmica entre pluralidade e unidade, nesse sentido
torna-se compartimentalizada, ignorada, em detrimento de uma ficção de harmonia e de
coexistência pacífica e igualitária dos indivíduos no contexto político.
Diante desses impasses ao modelo democrático liberal é importante notar que o
pensamento político de Hannah Arendt, Claude Lefort e Jacques Rancière apresentam
um aspecto fundamental: o desafio democrático é exatamente ser capaz de reconstituir a
unidade política em contextos sociais cada vez mais plurais. Uma linguagem
democrática pautada na ideia de pluralidade, portanto, não permanece limitada à lógica
privada, mas torna-se capaz de atualizar o político, reconstituindo a unidade e
permitindo que a própria coletividade construa novas formas múltiplas e provisórias de
pensar a si própria. Nesse sentido, é importante entender de que maneira cada um desses
autores interpretam a dinâmica desse processo.

HANNAH ARENDT: PLURALIDADE COMO O MUNDO COMUM


Hannah Arendt desenvolve uma severa crítica ao liberalismo partindo
exatamente da constatação do caráter despolitizante do pluralismo presente nesse
paradigma. No livro A condição humana, a autora afirma que as condições de
possibilidade do exercício da política no presente haviam atingido seu máximo grau de
obscurecimento. Para ela, a lógica liberal representativa, tal como instituída, transforma
a política em um processo técnico minimalista, baseado na competição de interesses
privados entre as elites partidárias, além de conceber o indivíduo como mero
consumidor de benefícios - ao invés de cidadão capaz de ação e autonomia.
O fundamento normativo por trás dessa realidade é o de que a esfera da política
existe em função da liberdade individual. Porém, tal liberdade é compreendida em
termos da liberação do indivíduo de entraves para o desenvolvimento de suas atividades
privadas. Logo, o espaço público é totalmente esvaziado da ação de cidadãos e
substituído permanentemente por processos técnicos, burocráticos, administrativos e
econômicos – que apesar de importantes na organização da vida social, não trazem
consigo o potencial de transformação presente apenas no exercício da ação conjunta. O

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que decorre disso é que os indivíduos se resguardam cada vez mais no isolamento da
intimidade, indiferentes ao mundo em comum que os rodeia e preocupados com o que
Arendt denomina de processos naturais de sobrevivência, que na contemporaneidade se
traduz na lógica consumista imediata. Essa alienação do mundo representa, portanto, a
vitória do animal laborans, da lógica de que nada é mais importante do que os processos
que garantem a manutenção da vida, gerando consequentemente, o fim de um espaço
público que se constitui para além das necessidades individuais e que permite a
existência de uma liberdade coletiva, capaz de instituir mudanças e novos começos.
Seria possível, a partir desse contexto, uma reinterpretação do espaço público e
dos princípios democráticos a partir de termos distintos daqueles propostos no modelo
liberal? Como conceber a ideia de pluralidade fundada em uma perspectiva pública e
não privada? O que significa para Arendt, portanto, incluir a diversidade em um espaço
efetivamente político?
Para Hannah Arendt a política e a esfera pública são nada menos que uma
atualização do fato da pluralidade. De acordo com a autora, a condição especificamente
humana é o fato de que “ninguém é exatamente igual a qualquer pessoa que tenha
existido, exista ou venha a existir” (ARENDT, 2007, p.16). Nesse sentido, a política é a
possibilidade de que essa pluralidade seja explorada em toda sua potencialidade, ou
seja, é o modo pelo qual os indivíduos se manifestam uns aos outros e podem
plenamente compreender, serem compreendidos e enxergarem o mundo que os rodeia
de forma mais ampla - pautado não apenas em uma única visão individualizada, mas por
múltiplas perspectivas.
Nesse sentido, o mundo público só pode ser constituído a partir da
multiplicidade de opiniões e de pontos de vistas. Isso porque é na diferença entre os
indivíduos que se torna possível encontrar o que existe em comum entre eles. Com
efeito, se analisarmos o contexto político moderno, é possível visualizar uma emergente
falta de legitimidade e enfraquecimento dos sistemas políticos e do espaço público
(LEYDET, 2004), de modo que o argumento arendtiano entenderia tal processo como
fruto do fraco envolvimento da diversidade dos cidadãos nos assuntos públicos. Com
efeito, o entendimento da política como uma esfera profissional especializada (WEBER,
1970) e da democracia como um procedimento minimalista (SCHUMPETER, 1984),
torna esse sistema de governo privilégio de uma pequena minoria de pessoas, liderada

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por interesses de grupos específicos. No entanto, é inegável que um dos principais
aspectos que distingue a democracia dos outros tipos de regime é justamente o fato de
que ela requer um nível significativo de publicidade e inclusão da pluralidade na vida
pública, princípio esse defendido por Arendt como fundamental para a prática política.
A autora explicita esse fato de maneira bastante clara ainda no livro A condição
humana, mostrando como o espaço político nasce entre as pessoas quando estas se
reúnem em liberdade trazendo consigo suas singularidades e sua própria maneira de ver
e de se portar no mundo. De acordo com ela, a visibilidade é o que constitui a realidade
das coisas. Tudo aquilo que aparece e é compartilhado em público entre os cidadãos,
pode ser visto e ouvido por todos, e toda essa exposição acaba por revelar aspectos que
nunca poderiam ser revelados se não fosse tal aparição pública. É a variedade de
perspectivas e de pontos de vistas que permitem que um mesmo objeto, ou que uma
mesma situação se torne mais completa e verossímil do que se permanecesse escondida
da luminosidade pública. Essa metáfora, utilizada constantemente por Arendt, da
intensa “luz” da esfera pública decorre justamente do fato de que o mundo se abre de
maneira diferente a cada pessoa e é na reunião e discussão dessas diferentes
experiências, que o mundo pode ser mais plenamente conhecido, ou mais
completamente abarcado. Ou seja, apenas na pluralidade humana e na plena
manifestação de tal pluralidade que é possível enxergar mais claramente a realidade em
toda sua profundidade e complexidade:
Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, de sorte
que os que estão à sua volta sabem que veem o mesmo na mais completa
diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se de maneira mais real e
fidedigna (...). A destruição do mundo comum é geralmente precedida pela
destruição dos muitos aspectos nos quais ele se apresenta à pluralidade humana.
(ARENDT, 2007, p.67)

Essa abertura para o mundo nada mais é do que a própria experiência política. A
política permite aos indivíduos se moverem no “terreno sólido da realidade” e,
consequentemente, a viverem na liberdade de conhecer e construir o mundo em suas
mais diversas facetas. O espaço público da política permite que os indivíduos se
aproximem – ao construírem um mundo em comum entre eles – sem, no entanto, se
colidirem, ou seja, mantendo uma distância mútua que permite a manifestação de suas
próprias singularidades e a manutenção da diversidade entre eles.

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A política, nesse sentido, não se encontra de forma alguma nos próprios
indivíduos envolvidos nessa dinâmica dialógica de desvelamento da realidade, ou seja,
não é um dom interno de cada pessoa, mas sim se estabelece nesse espaço público que é
formado quando essas pessoas agem conjuntamente (ARENDT, 2005). Onde quer que
as pessoas se reúnam em liberdade, um mundo comum surge entre elas e é nesse espaço
que todos os assuntos humanos são conduzidos. Entende-se aqui, a razão pela qual
Arendt aponta a política como atividade puramente humana por excelência, aquilo que
nos distingue de todas as outras espécies, se configurando como livre das leis da
natureza, rompendo com a existência meramente cíclica da vivência física e biológica e
dotada de potencialidade, de permanência e durabilidade que nenhuma outra esfera da
vida possui: “É o caráter público da esfera política que é capaz de absorver e dar brilho
através dos séculos a tudo que os homens venham a preservar da ruína natural do
tempo”. (ARENDT, 2007, p.65)
Pluralidade nessa perspectiva, não se limita à livre competição e manifestação de
interesses diversos na esfera privada. Para Hannah Arendt a pluralidade é a própria
origem da política. O espaço coletivo, o vínculo entre os cidadãos, ou seja, os
fundamentos que conferem unidade a uma comunidade só podem existir quando nascem
da expressão da diversidade. A política, portanto, é o mundo em comum que se constitui
a medida que os indivíduos, em toda sua pluralidade, agem conjuntamente.

CLAUDE LEFORT: PLURALIDADE COMO O PODER DE NINGUÉM

Assim como ocorre no pensamento de Arendt, para Claude Lefort, o espaço coletivo
antes de ser um espaço simplesmente institucional, é um espaço de inteligibilidade e de
representações. Por essa razão, o exercício de análise do político parte da investigação a
respeito do sistema de crenças, narrativas e princípios capazes de fundamentar e dar
forma ao corpo social, com o intuito de identificação dos aspectos que estruturam a
experiência conjunta. De fato, o autor explica que a compreensão do político é diferente
e é mais ampla que uma análise restrita à política em suas estruturas concretas e
institucionais: a reflexão sobre o político e a política são distintas e ao mesmo tempo se
entrecruzam. No prefácio do livro Pensando o Político, Lefort aponta que a política
constitui-se como um objeto de estudos da ciência moderna, que através de um olhar

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mais neutro e objetivo procura dar ênfase à função e às atribuições do domínio político
em relação aos outros campos da vida coletiva. De fato, se o método científico é aquele
que se esforça na produção de um tipo de saber mais seguro a respeito da realidade,
nada mais adequado para o pesquisador que tomar a política em sua realização empírica.
Por outro lado, compreender as articulações do político remete a fundamentos de
análise um pouco diferentes. De acordo com Lefort, esse termo refere-se aos “princípios
geradores da sociedade, ou melhor, das diversas formas de sociedade” (LEFORT, 1991,
p.253). Isso significa dizer que o político diz respeito aos elementos de caráter material,
simbólico e imaginário capazes de constituir ou de representar uma unidade coletiva.
Pensar o político, portanto, relaciona-se com o exercício de compreensão do modo de
instituição da vida social e os princípios geradores do vínculo que une os indivíduos uns
com os outros e com seu tempo. O político lida com o sentido da experiência conjunta,
com aquilo que gera identidade e configura a unidade coletiva. Desse modo, enquanto a
política se preocupa com o funcionamento das práticas e das relações no espaço público,
o político diz respeito ao valor e ao significado das mesmas. O político indica quais são
os princípios que geram e fundamentam a sociedade e o que eles representam para a
própria comunidade. Assim, não é tanto a atividade política o elemento relevante nessa
perspectiva, mas sim os princípios capazes de criar e atualizar a vida conjunta.
A partir dessa compreensão, é possível introduzirmos a maneira através da qual
Claude Lefort aborda o tema da democracia e pluralidade, abordagem essa que, para ele,
precisa ter como ponto de partida exatamente a busca pelo sentido político desse
sistema, ou seja, pelos princípios que caracterizam a instituição desse modo de
sociedade. Pensar o democrático não pode se pautar em uma premissa individualista e
privatizante. Para o autor, a experiência política democrática é, antes de tudo, fundada
em um grande esforço capaz de dar forma a “um modo de coexistência” e não para
promover interesses particulares múltiplos no plano social.
Lefort busca explicitar a trajetória da democracia moderna para compreender de que
maneira é possível instituir um poder do povo, um poder que efetivamente funde-se na
soberania popular, sem que esse povo seja eventualmente envolvido na busca por uma
identidade fixa e totalizante, nem que se perca em um contexto atomizado, pautado na
lógica do mercado e da sobrevivência. Desse modo, embora os indivíduos apareçam
politicamente na modernidade como “unidades contábeis” e a lógica agregativa de

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formação da vontade, esteja presente na ideia da soberania popular fragmentada, ainda
assim, do ponto de vista do político isso não pode significar um corpo social desprovido
de vínculo, de sentido. Como, portanto, é possível para Lefort pensar a lógica
democrática, se essa não apresenta nem uma definição fixa e unificadora, mas ao
mesmo tempo não pode ser concebida fora da dinâmica coletiva do político3?
Para ele, a resposta para tal questão passa pela compreensão do “lugar do poder”. De
acordo com Lefort, a democracia baseia-se no fato de que o poder não é apenas um
espaço ou função institucional, mas antes de tudo é uma categoria simbólica. Esse seria
o lugar da soberania popular e sua ocupação só poderia ser provisória e instável.
Reconhecemos a revolução democrática moderna, no melhor dos
casos, por esta mutação: não há poder ligado a um corpo. O poder aparece
como um lugar vazio e aqueles que o exercem como simples mortais que só
o ocupam temporariamente ou que não poderiam nele se instalar a não ser
pela força ou pela astúcia; [...] A democracia inaugura a experiência da
sociedade inapreensível, indomesticável, na qual o povo será dito
soberano, certamente, mas onde não cessará de questionar sua identidade,
onde esta permanecerá latente.” (LEFORT, 1987, p. 118)

A pluralidade a partir da perspectiva lefortiana pode ser interpretada menos como


um fundamento que sustenta o político e mais como a constante e ativa vigilância para
que esse espaço não seja simbolicamente ocupado de forma permanente por nenhum
indivíduo, grupo ou ideologia específica. Para o autor, mais relevante do que buscar a
representação ampliada dos diversos grupos e setores sociais no interior da vida pública
é a garantia de que a vida coletiva terá preservada constantemente a dinâmica do
embate, do choque de opiniões e de perspectivas diversas. Isso significa que a
multiplicidade pulsante da vida social não pode ser limitada pela instituição de um
modo de governo ou de um espaço permanente de poder. Nas palavras do autor, a
dinâmica social em contextos democráticos dependeria da “irrupção de um poder que,
por mais dividido que esteja o povo, não se petrifique à distância, figure um além da
divisão de classe, deixe-a jogar, explore seus efeitos” (LEFORT, 1979, p.153). Longe

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O autor, inclusive, aponta que a perspectiva do político presente em Hannah Arendt, na qual a
pluralidade é o fundamento na constituição de um ‘mundo em comum’ entre os indivíduos, ignoraria uma
compreensão mais profunda a respeito dos perigos da busca pela unidade coletiva. Embora o mundo em
comum seja pensado pela autora como espaço político de liberdade e novos começos, Lefort aponta que é
importante não perdermos de vista os riscos que esse espaço de poder poderia apresentar no processo de
sua consolidação como espaço institucional. A ideia a ser evitada para o autor é do ‘Povo-Uno’, que de
acordo com ele, representa o germe da própria possibilidade totalitária.

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de significar um desalento em relação à democracia, o que essa concepção parece
propor é uma espécie de advertência contra os perigos de tentar “realizá-la” num regime
sem fissuras que superaria as divisões e os conflitos sociais, que o autor vê como
constitutivos da própria democracia (OLIVEIRA, 2010).
De fato, a pluralidade na perspectiva de Lefort se realizaria na indeterminação da
política e da história, isso porque o povo seria uma figura indecisa, mas pronta a se
atualizar, avalista sempre latente da soberania, mas portando a ameaça de uma louca
afirmação de sua identidade. A permanência do sentido da pluralidade democrática nas
sociedades modernas dependeria, portanto, do cuidado coletivo quanto à preservação de
um vazio simbólico do lugar do poder. A liberdade da cidade, da qual o povo é o melhor
guardião, somente é possível enquanto nenhuma instância transcendente e nem mesmo
o próprio povo como unidade indivisível imperarem de forma absoluta (AMES, 2009).
Isso significa que o princípio de soberania popular não seria suficiente para a
garantia de permanência da democracia e seu horizonte de inclusão e liberdade.
Juntamente com a compreensão da democracia como poder de todos torna-se necessário
concebê-la como o poder de ninguém. O que está em jogo nessa concepção é o fato de
que a tênue linha que separa o poder de todos de tornar-se um poder despótico só pode
ser equilibrada quando o lugar do poder se mantém vazio:
A democracia alia estes dois princípios aparentemente contraditórios: um de
que o poder emana do povo; outro de que esse poder é de ninguém. Ora, ela vive
dessa contradição. Por pouco que esta se arrisque a ser resolvida ou o seja, eis a
democracia prestes a se desfazer ou já destruída. (LEFORT, 1987, p.76)

É necessário, então, que a própria soberania popular não seja interpretada como uma
fonte de poder unívoca. O poder do povo só é efetivado porque o lugar simbólico do
poder coletivo nunca é definitivamente ocupado. Isso significa que se em uma
democracia a fonte de legitimidade é “o povo”, a definição de quem é esse povo se
torna uma questão que nunca deve ser resolvida (FLYNN, 2005). Um corpo político
democrático é uma comunidade em constante construção, nunca finalizada e sempre em
movimento. A partir do momento em que define sua identidade, em que fixa sua
unidade, perde seu caráter aberto, plural e inclusivo, ou seja, perde sua identidade
democrática pautada na pluralidade. Se pensar o político é partir do dado concreto para
a atribuição de sentido ao mesmo, segundo Lefort, não há nada mais real do que a

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diversidade presente na vida social moderna. Negar o conflito, extinguir essa
possibilidade da pluralidade representa para o autor o fim da própria experiência
conjunta como liberdade e autonomia.
Desse modo, para lembrar o título de uma das obras de Lefort, a democracia,
permanece como sendo invenção humana, que carrega em si paradoxos e desafios dados
à criatividade do agente, sempre confrontado com as questões de seu próprio tempo.

JACQUES RANCIÈRE: PLURALIDADE COMO VISIBILIDADE E CONFLITO

A categoria de pluralidade tal como pensada por Jacques Rancière dialoga


ativamente com as perspectivas tanto de Hannah Arendt como também com a de Claude
Lefort. Nesse sentido, o ponto de partida desse autor é o de que os fundamentos do
político encontram-se no choque das interpretações possíveis a respeito dos princípios a
partir dos quais a comunidade é delimitada. Cada indivíduo apresenta uma perspectiva
singular, interpretações específicas, bem como uma vivência única dessa realidade
conjunta. A política, portanto, é marcada por uma “partilha do sensível”, isto é, a
distribuição e disputa a respeito do posicionamento único de cada sujeito perante essa
realidade. A delimitação do sensível encontra-se no nível da compreensão da
experiência - daquilo que é comum a uma comunidade, suas formas de visibilidade e de
organização. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum
partilhado e as suas partes exclusivas (RANCIÈRE, 2004).
Note que para Arendt, assim como para Rancière o mundo comum se desvela
perante os indivíduos a partir de um contexto de pluralidade: por meio dessas múltiplas
vivências e perspectivas que são vocalizadas a respeito de uma realidade que pode,
assim, ser compartilhada. A dialogicidade – a ação por meio das palavras - é aspecto
essencial no pensamento de ambos os autores para promover a constituição desse
espaço político conjunto. Contudo, é preciso entender que enquanto para Hannah
Arendt o desvelamento do mundo em comum promove um contexto de igualdade e
liberdade que perpassa e unifica a pluralidade, na perspectiva de Rancière, as clivagens
e desigualdades da esfera social e econômica não são passíveis de serem apaziguadas,
de modo que ainda que possamos delimitar uma realidade que seja comum a todos, tal
realidade é sempre marcada por um conflito profundo e existencial intransponível.

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Como se vê, a “partilha do sensível” na perspectiva do autor implica tanto um “comum”
quanto um “lugar de disputas” profundas por esse comum (FREITAS, 2005).
Segundo Rancière, a política institucional no contexto do liberalismo moderno,
constantemente procura instituir esse apaziguamento do conflito e das clivagens sociais.
De acordo com o autor, a maneira pela qual tal apaziguamento é estabelecido passa por
algumas estratégias básicas como a delimitação de funções sociais específicas, a
ampliação das diferenças entre classes, a aplicação de mecanismos de controle e mesmo
a própria concessão de certos direitos (RANCIÈRE, 2007). A política moderna é aquela
que subtrai a si mesma quando busca o esvaziamento do conflito e promove um
contexto no qual a “multiplicidade é pacificada”. A política institucional tende a reduzir
a partilha do sensível à busca pelo consenso social, que mascara as desigualdades e
ignora as contradições que permeiam os fundamentos da experiência conjunta e ao fazer
isso permitem a consolidação profunda das mesmas.
Tais contextos de desigualdade institucionalizada são denominados por Rancière
de “polícia”, categoria que expressa um tipo de partilha do sensível cujo princípio é
ignorar completamente a tensão e o conflito que se aprofundam no âmbito social. Para
que isso ocorra, é instaurado um cenário absolutamente controlado e regulado, que não
vocaliza as demandas dos grupos oprimidos e que impossibilita os movimentos de
transformação dessa lógica social. A polícia, nesse sentido, seria uma constituição
simbólica do social que parte de uma premissa forjada de harmonia e pacificação da
vida em comunidade. O liberalismo moderno, segundo o autor, partiria da lógica da
polícia, uma vez que se fundamenta na distribuição de papéis e funções bem definidas,
com atores exclusivos responsáveis por colaborarem para a manutenção da ordem
social. A polícia não deixa espaço para a tensão, para o conflito, já que nem mesmo
reconhece as dinâmicas e processos cuja origem encontra-se fora dessa ordem
reconhecida. Assim, no contexto marcado pela lógica da polícia a sociedade é
constituída por grupos dedicados a modos específicos de ação, em lugares específicos,
onde essas funções são exercidas de modo delimitado. Nessa adequação de funções,
lugares e modos de ser, não há espaço para a contradição, para o paradoxo. É na
exclusão daquilo que ‘não aparece’ que se encontra o princípio fundamental da lógica
da polícia e que marca as práticas estatais (RANCIÈRE, 2001).

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Em contraposição à lógica da polícia, Rancière introduz a ideia da política
democrática, que representa exatamente o processo de reconhecimento e acolhimento
do conflito e das contradições. A democracia, nesse sentido, seria a realização de um
movimento contínuo e ininterrupto, com o intuito de trazer a pluralidade dos que estão
de fora para a lógica da distribuição democrática do sensível, a qual o fim é a igualdade.
É necessário concebermos a democracia como um tipo possível de partilha do sensível
capaz de desafiar critérios pré-estabelecidos em termos de papéis e espaços sociais. De
acordo com o autor, o povo é o sujeito na democracia, porém esse povo não pode ser
uma categoria delimitada a posteriori, por grupos específicos, que detêm o monopólio
da palavra e da ação. O povo é o conjunto daqueles que são constantemente
invisibilizados e que geralmente são desconsiderados. Para Rancière, ‘povo’ refere-se
ao suplemento que desconecta a população de si mesma, que busca tornar visíveis
aqueles que estão invisíveis, que toma como partes ativas da vida conjunta aqueles que
não têm parte alguma.
O que o autor aponta é que a democracia é a lógica política que traz à tona as
contradições e o conflito. O democrático aparece na medida em que esse vazio - que
desconecta parte do povo de si próprio, que torna invisível as opressões e que cala os
grupos marginalizados - é tornado visível, fazendo com que aqueles que antes estavam
excluídos, possam tornar-se sujeitos ativos na dinâmica coletiva. Se para Claude Lefort,
como analisamos anteriormente, o lugar do poder na democracia é um lugar
simbolicamente esvaziado, na concepção de Rancière, é necessário compreendermos
que o sentido deste ‘vazio’ só apresenta eficácia se é constantemente trazido à tona. Isso
significa que um cenário democrático é aquele que concede voz aos que são
constantemente privados da mesma; que traz à visibilidade pública aqueles que estão
excluídos dessa esfera; que reconhece e aceita o confronto e as clivagens como a própria
matéria prima que permite o desenvolvimento de uma experiência conjunta justa e
emancipada.
The art of politics is the art of putting the democratic
contradiction to positive use: the demos is the union of a centripetal force
and a centrifugal force, the living paradox of a political collectivity formed
from apolitical individuals. (RANCIÈRE, 2007, p.15)

Percebe-se, portanto, que as categorias de igualdade e de emancipação surgem


na obra de Rancière como elementos centrais da política e da democracia. A

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emancipação deve ser entendida aqui como uma prática processual de afirmação da
igualdade e ruptura com o funcionamento da desigualdade. O autor revela que a
institucionalização da desigualdade em nossas sociedades cria contextos nos quais
grupos são silenciados e excluídos permanentemente da própria possibilidade de
‘dizerem’ e ‘aparecerem’, enquanto, por outro lado, consolida-se a permanência de
critérios exclusivos sobre quem são aqueles que podem povoar o espaço público e ter
papel ativo na partilha do sensível.
A democracia, portanto, pode ser concebida no pensamento do autor, como o
processo de desvelamento daquilo que estava invisível; é o processo de alargamento
constante e inacabado da esfera pública. Alargar a esfera pública significa lutar contra
uma repartição desigual do público e privado, que garante a dupla dominação da
oligarquia no Estado e na sociedade. Enfim, a contribuição de Rancière ao conceito
democrático de pluralidade é a de que os limites da comunidade democrática, suas
características, lutas e configurações têm como ponto de partida exatamente a
multiplicidade daqueles que ainda estão estruturalmente excluídos dela.

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