Você está na página 1de 3

A percepção de que a democracia não goza de boa saúde não é nova.

Ainda assim, é notável a


quantidade de análises com títulos chamativos sobre o assunto nos últimos anos. Como as
democracias morrem (de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, 2018), Como a democracia chega ao fim (de
David Runciman, 2018), O crepúsculo da democracia (de Anne Applebaum, 2020), Crises da
democracia (de Adam Przeworski, 2019), O povo contra a democracia (de Yascha Mounk, 2018) e
Nacional-populismo: a revolta contra a democracia liberal (de Roger Eatwell e Matthew Goodwin,
2018) são apenas alguns exemplos daquilo que foi recentemente chamado de “a grande regressão”
da civilidade.

Na literatura nacional, o mesmo fenômeno pode ser observado. Coletâneas como Democracia em
risco. 22 ensaios sobre o Brasil hoje (2019) e Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e
degradação da política (2021) dividem espaço com publicações nada animadoras: Impasses da
democracia (Leonardo Avritzer, 2016), O pêndulo da democracia (Leonardo Avritzer, 2019) e A
democracia impedida (Wanderley Guilherme dos Santos, 2017). Como se o futuro da democracia –
para retomarmos uma expressão cara à Norberto Bobbio – expressasse um direcionamento previsível,
um trajeto delimitável e, por isso mesmo, calculável, seu fim se apresenta à consciência cotidiana
como um evento quase certo.

Apesar do tom alarmista, é interessante notar que esse mesmo diagnóstico já estava presente no
início da década de 1990. Na introdução à segunda edição (1991) de O futuro da democracia (1984),
Bobbio considerava que, apesar das profecias que insistiam no fim da democracia no final daquele
século, “as democracias existentes não apenas sobreviveram como novas democracias apareceram
ou reapareceram ali onde jamais havia existido ou haviam sido eliminadas por ditaduras políticas ou
militares”. Daí a oportuna questão: se o futuro da democracia, hoje, repõe o tom sombrio com o qual
a democracia de ontem foi avaliada, quais os motivos que alimentam esse espectro que volta a nos
assombrar?

As promessas não cumpridas da democracia


Como destacado no texto anterior (Democracia para Bobbio), é possível chegar a um denominador
comum sobre o que é democracia a partir de sua definição mínima. Ainda assim, a ampla
disseminação das regras do jogo democrático não tem sido capaz de proteger a democracia. Pelo
contrário. A democracia blindada – em que medidas de exceção e violações de direitos fundamentais
são cada vez mais corriqueiras – é antes a negação de todo e qualquer potencial democrático.

Se na literatura nacional e internacional emergem inúmeras dúvidas quando se tenta compreender a


atual situação política dos Estados ocidentais, os próximos parágrafos pretendem contribuir para essa
reflexão a partir da seguinte hipótese: elencadas já em 1984, as promessas não cumpridas da
democracia continuam em nosso horizonte. Mas não só. Como uma ruptura, elas se aprofundaram,
dilacerando internamente a epiderme democrática. As atuais ameaças à democracia podem ser
compreendidas como um sintoma da infecção generalizada desse processo.

A primeira promessa não cumprida é a supressão dos corpos intermediários, tal como imaginado pela
doutrina democrática que previa apenas a relação entre indivíduos igualmente soberanos. Ora, o que
efetivamente ocorreu foi exatamente o oposto, de tal modo que os grupos, como partidos,
corporações e sindicatos, e não os indivíduos, se tornaram protagonistas da vida política.

E é exatamente esse aspecto referente à distribuição do poder que alimentou a segunda promessa
não cumprida, qual seja, a revanche da representação dos interesses. Se a democracia moderna
deveria ser caracterizada pela representação política, o fortalecimento dos grupos em detrimentos
dos indivíduos fez a política refém dos interesses particulares. Longe da busca pelo interesse geral da
nação, a representação se reduz à manutenção do neocorporativismo.

Daí não ser mera coincidência que a terceira promessa não cumprida seja aquela da persistência das
oligarquias. Intimamente relacionada à captura da política pelo particularismo dos interesses, o poder
oligárquico não só sobreviveu como tem se fortalecido. Sua persistência e robustez são
diametralmente opostas à liberdade entendida como autonomia, força motora do pensamento
democrático.
A quarta promessa não cumprida dá sequência às considerações anteriores. Pois se a democracia
sequer conseguiu controlar – muito menos derrotar – o poder oligárquico, então torna-se
particularmente difícil expandir a participação democrática. Em outras palavras: frente à pergunta
“onde se vota?”, são cada vez menores os espaços em que vigora o direito do indivíduo participar das
decisões que lhes dizem respeito.

Todas essas defraudações de expectativas políticas culminam na quinta promessa não cumprida – a
eliminação do poder invisível. Quando existem grupos que praticam o revanchismo de interesses,
compondo oligarquias que tornam escassa a participação democrática, então se constitui uma
espécie de “duplo Estado”, no sentido de que ao lado do Estado visível esconde-se um Estado invisível.
Negação tanto da publicidade como da transparência, a manutenção e o fortalecimento do poder
invisível são vistos por Bobbio como a principal ameaça às premissas do governo democrático.

Por fim, a sexta promessa não cumprida remete à educação para a cidadania. Esperava-se que a
prática democrática decorrente da soberania dos indivíduos autônomos fosse ela mesma um
ensinamento das virtudes e necessidades da cidadania. Longe disso. Ao invés da esperada cultura
política, reina a apatia política.

Adaptação ou degeneração da democracia?


Mesmo diante de todos esses problemas, Bobbio insistia no argumento de que algumas dessas
promessas simplesmente não poderiam ser cumpridas, seja pela presença de obstáculos que não
estavam previstos – por exemplo: (i) a crescente necessidade de técnicos (especialistas) para decidir
questões centrais de toda e qualquer sociedade, notadamente no campo científico e econômico; (ii) o
aumento do aparato estatal e a consequente burocratização característica de sociedade cada vez
mais complexas; (iii) a crescente ingovernabilidade da democracia –, seja pelas transformações da
sociedade civil.

Esta é a razão pela qual Bobbio afastava – na década de 1990, lembremos – a tese da degeneração da
democracia. Para o filósofo italiano, “todas [as promessas não cumpridas] são situações a partir das
quais não se pode falar precisamente de ‘degeneração’ da democracia, mas sim de adaptação natural
dos princípios abstratos à realidade ou de inevitável contaminação da teoria quando forçada a
submeter-se às exigências da prática”. Mas nem tudo se resume a erros de diagnóstico.

Logo após essa última frase, Bobbio faz uma ressalva particularmente importante para os propósitos
do presente texto. Alguns parágrafos atrás perguntamos: se o futuro da democracia, hoje, repõe o
tom sombrio com o qual a democracia de ontem foi avaliada, quais os motivos que alimentam esse
espectro que volta a nos assombrar? Pois Bobbio dizia: “Todas, menos uma: a sobrevivência (e a
robusta consistência) de um poder invisível ao lado ou sob (ou mesmo sobre) o poder visível”.

Ora, diante da pergunta “quem controla os controladores?”, Bobbio profetizava: “se não conseguir
encontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento do poder visível,
está perdida. Mais que de uma promessa não cumprida, estaríamos aqui diretamente diante de uma
tendência contrária às premissas: a tendência não ao máximo controle do poder por parte dos
cidadãos, mas ao máximo controle dos súditos por parte do poder”.

É sintomático que essas palavras, escritas em meados da década de 1980, ainda fossem
acompanhadas da clara percepção de que os instrumentos técnicos (daquela época) de que
dispunham os detentores do poder permitiam que estes pudessem “conhecer capilarmente tudo o
que fazem os cidadãos”. Mas seria isso sintoma do quê, mais especificamente? Note-se: segundo o
próprio Bobbio, a democracia “está obrigada a se adaptar continuamente à invenção de novos meios
de comunicação”.

Diante das atuais teses, tão difundidas quanto aceitas, acerca do “capitalismo de vigilância”, da estrita
vinculação entre novas tecnologias e ascensão de líderes populistas, é tentador compreender a
retomada do “fim” da democracia como algo vinculado à digitalização da organização política, um
processo que faz da exacerbação do poder invisível o ponto de inversão da adaptação em
degeneração.

Retomemos as promessas da democracia, apenas como um exercício de imaginação acerca do modo


como a reprodução política dos dias de hoje – repleta de discussões sobre teorias da conspiração e
fake-news – as afetariam: autonomia do indivíduo? Interesses comuns? Poder igualitário? Ampla
participação democrática? Visibilidade e transparência do poder? Educação para a cidadania?

Próximos passos
As promessas da democracia são importantes não apenas para a descrição da realidade política de
todo e qualquer Estado nacional. Diante da retomada do “fim” da democracia, a compreensão do
nexo que sistematicamente as nega também pode servir como critério em tempos em que as dúvidas
acerca da vitalidade da democracia alimentam os mais variados anseios. Mais democracia e mais
participação são, inegavelmente, expectativas desejáveis. Por isso elas costumam ser apresentadas
como uma solução – tecnicamente possível diante dos avanços tecnológicos, ouvimos dizer – para os
desafios atuais. No entanto, até aqui já foi possível perceber que a compreensão dessas questões está
longe de ser tão simples assim. Não por acaso, nosso próximo texto abordará o tema da democracia
representativa e democracia direta.

A GoCache ajuda a servir este conteúdo com mais velocidade e segurança

Você também pode gostar