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DEMOCRACIA | REFLEXÕES POLÍTICAS

Democracia para Bobbio


#2: as promessas não
cumpridas da
democracia
Esse é o segundo de uma série de 5 textos do Instituto Norberto Bobbio, em
parceria com o Politize!, para tratar de alguns conceitos fundamentais na
democracia para o filósofo político italiano Norberto Bobbio. Confira o primeiro
texto: Democracia para Bobbio#1: As regras do jogo

A percepção de que a democracia não goza de boa saúde não é nova. Ainda
assim, é notável a quantidade de análises com títulos chamativos sobre o
assunto nos últimos anos. Como as democracias morrem (de Steven Levitsky e
Daniel Ziblatt, 2018), Como a democracia chega ao fim (de David Runciman,
2018), O crepúsculo da democracia (de Anne Applebaum, 2020), Crises da
democracia (de Adam Przeworski, 2019), O povo contra a democracia (de Yascha
Mounk, 2018) e Nacional-populismo: a revolta contra a democracia liberal (de
Roger Eatwell e Matthew Goodwin, 2018) são apenas alguns exemplos daquilo
que foi recentemente chamado de “a grande regressão” da civilidade.

Na literatura nacional, o mesmo fenômeno pode ser observado. Coletâneas


como Democracia em risco. 22 ensaios sobre o Brasil hoje (2019) e Governo
Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação da política (2021) dividem
espaço com publicações nada animadoras: Impasses da democracia (Leonardo
Avritzer, 2016), O pêndulo da democracia (Leonardo Avritzer, 2019) e A
democracia impedida (Wanderley Guilherme dos Santos, 2017). Como se o futuro
da democracia – para retomarmos uma expressão cara à Norberto Bobbio –
expressasse um direcionamento previsível, um trajeto delimitável e, por isso
mesmo, calculável, seu fim se apresenta à consciência cotidiana como um
evento quase certo.

Apesar do tom alarmista, é interessante notar que esse mesmo diagnóstico já


estava presente no início da década de 1990. Na introdução à segunda edição
(1991) de O futuro da democracia (1984), Bobbio considerava que, apesar das
profecias que insistiam no fim da democracia no final daquele século, “as
democracias existentes não apenas sobreviveram como novas democracias
apareceram ou reapareceram ali onde jamais havia existido ou haviam sido
eliminadas por ditaduras políticas ou militares”. Daí a oportuna questão: se o
futuro da democracia, hoje, repõe o tom sombrio com o qual a democracia de
ontem foi avaliada, quais os motivos que alimentam esse espectro que volta a
nos assombrar?

As promessas não cumpridas da democracia


Como destacado no texto anterior (Democracia para Bobbio), é possível chegar
a um denominador comum sobre o que é democracia a partir de sua definição
mínima. Ainda assim, a ampla disseminação das regras do jogo democrático
não tem sido capaz de proteger a democracia. Pelo contrário. A democracia
blindada – em que medidas de exceção e violações de direitos fundamentais
são cada vez mais corriqueiras – é antes a negação de todo e qualquer potencial
democrático.

Se na literatura nacional e internacional emergem inúmeras dúvidas quando se


tenta compreender a atual situação política dos Estados ocidentais, os próximos
parágrafos pretendem contribuir para essa reflexão a partir da seguinte hipótese:
elencadas já em 1984, as promessas não cumpridas da democracia continuam
em nosso horizonte. Mas não só. Como uma ruptura, elas se aprofundaram,
dilacerando internamente a epiderme democrática. As atuais ameaças à
democracia podem ser compreendidas como um sintoma da infecção
generalizada desse processo.

A primeira promessa não cumprida é a supressão dos corpos intermediários, tal


como imaginado pela doutrina democrática que previa apenas a relação entre
indivíduos igualmente soberanos. Ora, o que efetivamente ocorreu foi
exatamente o oposto, de tal modo que os grupos, como partidos, corporações e
sindicatos, e não os indivíduos, se tornaram protagonistas da vida política.

E é exatamente esse aspecto referente à distribuição do poder que alimentou


a segunda promessa não cumprida, qual seja, a revanche da representação dos
interesses. Se a democracia moderna deveria ser caracterizada pela
representação política, o fortalecimento dos grupos em detrimentos dos
indivíduos fez a política refém dos interesses particulares. Longe da busca pelo
interesse geral da nação, a representação se reduz à manutenção do
neocorporativismo.

Daí não ser mera coincidência que a terceira promessa não cumprida seja aquela
da persistência das oligarquias. Intimamente relacionada à captura da política
pelo particularismo dos interesses, o poder oligárquico não só sobreviveu como
tem se fortalecido. Sua persistência e robustez são diametralmente opostas à
liberdade entendida como autonomia, força motora do pensamento
democrático.

A quarta promessa não cumprida dá sequência às considerações anteriores.


Pois se a democracia sequer conseguiu controlar – muito menos derrotar – o
poder oligárquico, então torna-se particularmente difícil expandir a participação
democrática. Em outras palavras: frente à pergunta “onde se vota?”, são cada
vez menores os espaços em que vigora o direito do indivíduo participar das
decisões que lhes dizem respeito.

Todas essas defraudações de expectativas políticas culminam


na quinta promessa não cumprida – a eliminação do poder invisível. Quando
existem grupos que praticam o revanchismo de interesses, compondo
oligarquias que tornam escassa a participação democrática, então se constitui
uma espécie de “duplo Estado”, no sentido de que ao lado do Estado visível
esconde-se um Estado invisível. Negação tanto da publicidade como da
transparência, a manutenção e o fortalecimento do poder invisível são vistos por
Bobbio como a principal ameaça às premissas do governo democrático.

Por fim, a sexta promessa não cumprida remete à educação para a cidadania.
Esperava-se que a prática democrática decorrente da soberania dos indivíduos
autônomos fosse ela mesma um ensinamento das virtudes e necessidades da
cidadania. Longe disso. Ao invés da esperada cultura política, reina a apatia
política.

Adaptação ou degeneração da democracia?


Mesmo diante de todos esses problemas, Bobbio insistia no argumento de que
algumas dessas promessas simplesmente não poderiam ser cumpridas, seja
pela presença de obstáculos que não estavam previstos – por exemplo: (i) a
crescente necessidade de técnicos (especialistas) para decidir questões
centrais de toda e qualquer sociedade, notadamente no campo científico e
econômico; (ii) o aumento do aparato estatal e a consequente burocratização
característica de sociedade cada vez mais complexas; (iii) a crescente
ingovernabilidade da democracia –, seja pelas transformações da sociedade
civil.

Esta é a razão pela qual Bobbio afastava – na década de 1990, lembremos – a


tese da degeneração da democracia. Para o filósofo italiano, “todas [as
promessas não cumpridas] são situações a partir das quais não se pode falar
precisamente de ‘degeneração’ da democracia, mas sim de adaptação natural
dos princípios abstratos à realidade ou de inevitável contaminação da teoria
quando forçada a submeter-se às exigências da prática”. Mas nem tudo se
resume a erros de diagnóstico.

Logo após essa última frase, Bobbio faz uma ressalva particularmente
importante para os propósitos do presente texto. Alguns parágrafos atrás
perguntamos: se o futuro da democracia, hoje, repõe o tom sombrio com o qual
a democracia de ontem foi avaliada, quais os motivos que alimentam esse
espectro que volta a nos assombrar? Pois Bobbio dizia: “Todas, menos uma: a
sobrevivência (e a robusta consistência) de um poder invisível ao lado ou sob
(ou mesmo sobre) o poder visível”.

Ora, diante da pergunta “quem controla os controladores?”, Bobbio profetizava:


“se não conseguir encontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a
democracia, como advento do poder visível, está perdida. Mais que de uma
promessa não cumprida, estaríamos aqui diretamente diante de uma tendência
contrária às premissas: a tendência não ao máximo controle do poder por parte
dos cidadãos, mas ao máximo controle dos súditos por parte do poder”.

É sintomático que essas palavras, escritas em meados da década de 1980, ainda


fossem acompanhadas da clara percepção de que os instrumentos técnicos
(daquela época) de que dispunham os detentores do poder permitiam que estes
pudessem “conhecer capilarmente tudo o que fazem os cidadãos”. Mas seria
isso sintoma do quê, mais especificamente? Note-se: segundo o próprio Bobbio,
a democracia “está obrigada a se adaptar continuamente à invenção de novos
meios de comunicação”.

Diante das atuais teses, tão difundidas quanto aceitas, acerca do “capitalismo
de vigilância”, da estrita vinculação entre novas tecnologias e ascensão de
líderes populistas, é tentador compreender a retomada do “fim” da democracia
como algo vinculado à digitalização da organização política, um processo que
faz da exacerbação do poder invisível o ponto de inversão da adaptação em
degeneração.

Retomemos as promessas da democracia, apenas como um exercício de


imaginação acerca do modo como a reprodução política dos dias de hoje –
repleta de discussões sobre teorias da conspiração e fake-news – as afetariam:
autonomia do indivíduo? Interesses comuns? Poder igualitário? Ampla
participação democrática? Visibilidade e transparência do poder? Educação
para a cidadania?

Próximos passos
As promessas da democracia são importantes não apenas para a descrição da
realidade política de todo e qualquer Estado nacional. Diante da retomada do
“fim” da democracia, a compreensão do nexo que sistematicamente as nega
também pode servir como critério em tempos em que as dúvidas acerca da
vitalidade da democracia alimentam os mais variados anseios. Mais democracia
e mais participação são, inegavelmente, expectativas desejáveis. Por isso elas
costumam ser apresentadas como uma solução – tecnicamente possível diante
dos avanços tecnológicos, ouvimos dizer – para os desafios atuais. No entanto,
até aqui já foi possível perceber que a compreensão dessas questões está longe
de ser tão simples assim. Não por acaso, nosso próximo texto abordará o tema
da democracia representativa e democracia direta.

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