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No mundo atual, boa parte da batalha das idéias que se trava entre as
diferentes forças sociais centra-se na tentativa de definir o que é democracia,
já que essa forma de regime político é hoje reivindicada por praticamente
todas as correntes ideólogicas, da direita à esquerda. Ora, nem sempre foi
assim. Há algumas décadas atrás, o pensamento explicitamente de direita —
desde o catolicismo ultramontano até os diferentes fascismos — combatia
abertamente a democracia; até mesmo o liberalismo, em boa parte de sua
história, apresentou-se explicitamente como alternativa à democracia. Esta
situação se alterou na segunda metade do século XX. Por um lado, o fascismo
praticamente desapareceu como força atuante no cenário político mundial; e,
por outro, sobretudo a partir dos anos 1930, o liberalismo assumiu a
democracia e passou a defendê-la, ainda que não sem antes minimizá-la,
empobrecendo suas determinações, concebendo-a de modo claramente
redutivo. Assim, pelo menos nominalmente, hoje todos são democratas. É
curioso observar que até mesmo a ditadura militar brasileira, que durante 21
anos nos infelicitou, violando sistematicamente a democracia, jamais se
apresentou como antidemocrática; ao contrário, apresentou-se sempre como
uma “revolução” que defendia a “democracia” contra o “comunismo
totalitário”, o que era evidentemente pura mistificação ideológica.
Nesse sentido, devemos ter muita cautela, hoje, quando usamos a
palavra “democracia”. Um brilhante pensador francês do século XVII, La
Rochefoucauld, tem uma bela definição de hipocrisia: “Hipocrisia é
homenagem que o vício presta à virtude”. Ou seja, o fato de que todos hoje se
digam “democratas” não significa que acreditem efetivamente na democracia,
mas sim que se generalizou o reconhecimento de que a democracia é uma
virtude. A hipocrisia consiste em que, com extrema freqüência, essa palavra —
ainda que dita com ênfase — não significa absolutamente o que a história da
humanidade e o pensamento político entenderam e entendem por democracia.
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como um processo. Por isso, ele julga ser sempre mais adequado falar em
“democratização”. Publiquei em 1979 um ensaio, muito discutido na época,
chamado A democracia como valor universal. Este título reproduz uma
expressão de Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista
Italiano, expressão que usei — naquele momento de simultâneo combate
contra a ditadura e contra o dogmatismo “marxista-leninista” — como bandeira
de luta. Não teria nada a modificar hoje no que está dito naquele velho
ensaio, escrito há vinte e cinco anos atrás: mas certamente poria um outro
título, ou seja, A democratização como valor universal, já que o que tem valor
universal não são as formas concretas que a democracia adquire em
determinados contextos históricos — formas essas sempre modificáveis,
sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento —, mas o que tem
valor universal é esse processo de democratização, que se expressa
essencialmente numa crescente socialização da participação política.
A partir do final do século XIX e, sobretudo, ao longo do século XX,
pode-se notar que um número crescente de pessoas passa a participar da vida
política. Nos regimes liberais de sufrágio restrito, com sindicatos e partidos de
oposição ao sistema postos fora da lei, ocorre uma baixa participação política.
Temos, de um lado, a classe dominante organizada no Estado — o qual, na
época, Marx e Engels chamaram de “comitê que administra os negócios
comuns da classe burguesa” —, e, de outro, pequenos grupos clandestinos ou
semiclandestinos, clubes revolucionários de inspiração jacobina, que
expressavam a posição das classes trabalhadoras em oposição frontal ao
Estado. Enquanto isso, a grande massa da população não tinha nenhuma
participação política, nem mesmo eleitoral. É por isso que surge entre os
socialistas deste período — como, por exemplo, no revolucionário francês
Auguste Blanqui — a idéia de que a revolução proletária deve ser feita por uma
minoria revolucionária que age em nome do povo. Pode-se assim dizer que,
em comparação com esta situação claramente oligárquica, o processo de
democratização a que me referi se caracteriza por uma ampliação crescente da
participação popular, ou, como os marxistas italianos a chamam, pela
crescente socialização da política.
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E por que Rousseau diz isso? Porque ele tinha uma concepção de
democracia radicalmente diversa daquela predominante no pensamento liberal
contemporâneo. Para o autor de O contrato social, democracia significa
participação de todos na formação do poder. Só é legítima uma lei quando
aprovada pela assembléia popular; o povo soberano não delega sua soberania
a representantes, mas apenas comissiona, ou seja, nomeia funcionários que
executam sua vontade. O governo, segundo o pensador genebrino, não tem
nenhuma soberania, mas é formado precisamente por comissários do povo,
sendo este o verdadeiro e único soberano. Jean-Jacques, portanto, não aceita
o instituto da representação (caracteristicamente liberal), mas defende uma
democracia direta, com plena participação popular. A definição schumpeteriana
da democracia como escolha periódica de elites por meio do voto seria tratada
por Rousseau com a mesma ironia com que tratou o regime liberal inglês do
seu tempo.
Além disso, essa nova versão minimalista ou “procedimental” da
democracia despoja-a completamente de qualquer dimensão econômica e
social. Estaríamos diante de um regime democrático sempre que certos
procedimentos fossem observados: eleições periódicas disputadas por mais de
uma elite, um parlamento funcionando (ainda que com escassos poderes
diante da ditadura cesarista do Executivo), etc. É evidente que Rousseau
também não aceitaria essa definição puramente formal. Para ele, a igualdade
não se limita ao direito formal de participar do tal “mercado político”; a
igualdade tem uma base material, sem a qual o cidadão não poderá participar
igualitariamente da construção do que ele chama de “vontade geral”, motor da
soberania popular 1. Rousseau dizia que, numa sociedade legítima, ninguém
pode ser tão pobre que seja obrigado a se vender: ele estava assim
claramente condenando o trabalho assalariado, ou seja, dizendo que a
democracia que ele pregava era incompatível com o principal instituto do modo
de produção capitalista. No pensador genebrino, portanto, democracia é
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Recentemente, num programa de televisão, um importante cientista político brasileiro —
politicamente progressista, mas vinculado teoricamente às concepções “procedimentais” de democracia —
afirmou que nosso país vive hoje num regime plenamente democrático. E, diante da observação da
entrevistadora de que continuavam a existir entre nós fortes desigualdades econômicas e sociais, o cientista
não vacilou em sua resposta: “Mas o problema da igualdade real nada tem a ver com a democracia”!
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