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Carlos Eduardo Marques

Bandeira Branca em Pau Forte:

A Senzala de Pai Benedito e o Quilomblé Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango.

Campinas

2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CARLOS EDUARDO MARQUES

Bandeira Branca em Pau Forte:


A Senzala de Pai Benedito e o Quilomblé Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango.

Orientadora: Prof.a Dr.a Emília Pietrafesa de Godoi

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto


de Filosofia e Ciências Humanas para
obtenção do Título de Doutor em
Antropologia Social.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO DA TESE


DEFENDIDA PELO ALUNO CARLOS EDUARDO MARQUES E
ORIENTADA PELA PROF.a DR.a EMÍLIA PIETRAFESA DE
GODOI

CAMPINAS

2015

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Resumo

A presente tese trata do processo de des-re-territorialização da comunidade de


Manzo. A partir da análise de aspectos da vida vivida e vivenciada pelos moradores de
Manzo, constato que a experiência religiosa do Candomblé emerge como central na
criação do quilombo urbano Manzo Ngunzo Kaiango. Analiso como as práticas, as ações e
as represent(ações) perfazem o lugar e o habitar dos quilomblecistas. Para tanto,
privilegio a análise sociocosmológica das trocas e dos caminhos cruzados através da
expressão êmica tomada da palavra política entendido como uma cosmopolítica.

Palavras Chave: Candomblé, Quilombo, Tomada da Palavra Política, Território.

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Abstract

This thesis treats with the process of de-re-territorialization of Manzo


Community. From aspects of the life lived and experienced by quilomblecistas of Manzo,
I’ll present as religious experience of Candomblé emerges as central for the awakening of
the sense of Community, as well creates a urban Quilombo in the city, Manzo Ngunzo
Kaiango. As well as analyze the process in which practices, actions and representa(c)tions
make up the place and dwell of quilomblecistas. Insomuch, this thesis will present a
sociocosmological analysis of exchanges, crossed paths and crossroads through the emic
expression of political speech taking understood as cosmopolitics.

Keywords: Candomblé, Quilombo, Political Speech Taking, Territory

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SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................................ VII

ABSTRACT ............................................................................................................................... IX

AGRADECIMENTOS ................................................................................................................ XV

LISTAS DE SIGLAS .................................................................................................................. XXI

LISTAS DE FIGURAS E IMAGENS .......................................................................................... XXIII

INTRODUÇÃO: Senzala de Pai Benedito ....................................................................................................... 1


A etnografia como percurso de pesquisa .................................................................................................... 10

PARTE 1 O CANDOMBLÉ: A SENZALA DE MANZO NGUNZO KAIANGO ................................... 27

CAPÍTULO 1 - Mãe Efigênia: a cidade e o Ngunzo de Manzo ...................................................................... 29


1.1 De perto e de dentro, memórias cartográficas de Mãe Efigênia sobre a cidade de Belo Horizonte..... 29
1.2 Belo Horizonte pela janela ..................................................................................................................... 37
1.3 Regional leste da cidade de Belo Horizonte: alguns apontamentos sócio-históricos ........................... 42
1.4 Santa Efigênia ........................................................................................................................................ 43
1.5 As regiões morais da capital mineira ..................................................................................................... 48
1.6 Belo Horizonte: uma cidade fora do lugar ............................................................................................. 55

CAPÍTULO 2 - Senzala de Pai Benedito ....................................................................................................... 63


2.1 - Manzo é a Senzala de Pai Benedito ..................................................................................................... 67
2.2 A Senzala é Angoleira............................................................................................................................. 79

Capítulo 3 - Manzo N’gunzo Kaiango.......................................................................................................... 93


3.1 - Manzo é Angoleiro............................................................................................................................... 95

Capítulo 4 - A Senzala, o Abassá e o Abantu do Quilomblé....................................................................... 115


4.1 A Comunidade da Senzala ................................................................................................................... 118

xi
4.2 A estrutura física do Abassá................................................................................................................. 121
4.3 A estrutura cosmológica do Abassá .................................................................................................... 126
4.4 - O Abantu ............................................................................................................................................ 133

PARTE 2 A SENZALA É UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA ................................................... 153

Capítulo 5 - A Comunidade da Senzala ..................................................................................................... 155

Capítulo - 6 O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra-política .......................................................... 171


6.1 Caminhos cruzados, palavras trocadas, caminhos trocados, palavras cruzadas: Manzo incorpora o
Quilombo ................................................................................................................................................... 173
6.2 A palavra-política como cosmopolítica ................................................................................................ 189
6.3 A Kizomba é uma palavra política ........................................................................................................ 198
6.4 Tornar-se quilombola como palavra política ou como falar de categorias reificantes como raça, etnia e
religião ....................................................................................................................................................... 209
6.5 O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra política e o território quilombola como patrimônio ritual
................................................................................................................................................................... 220

Capítulo 7 Toque para Pai Benedito ......................................................................................................... 228

Capítulo 8 A Senzala e as políticas públicas .............................................................................................. 252


8.1 A desocupação de Manzo: repercussões, mediações e desdobramentos .......................................... 254

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 292

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 302

CADERNO DE IMAGENS ....................................................................................................... 318

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Dedico a minha mãe, Natalina:
mulher, negra, migrante, mãe, pai...

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Agradecimentos

Aluvaiá, Bombojira, Pambu Njila são variações nominais, para se referir ao Inquisse
responsável pela proteção e comunicação entre as divindades e os homens. Pambu Njila faz a
comunicação com os outros Inquisses, sem as quais as trocas não se realizariam e os caminhos não
se cruzariam. Pambu na língua Kimbundu significa a encruzilhada, e Njila o caminho, portanto
Pambu Njila é Nganga – senhor – das encruzilhadas e dos caminhos. Dono dos cruzamentos,
atalhos, caminhos, fronteiras, subidas, decidas, é o movimento, a transversalização das ligações e
rupturas, idas e vindas, mudanças e permanências, linha de fuga e chegada, transversalização de
tempos e cosmos, o princípio e o fim ao mesmo tempo.
Pambu Njila é o Ngunzo – força vital – que ele participa e representa em um só ato.
Permitindo assim transversalizar a vida vivida e vivenciada. Pambu Njila é a ancestralidade, a vida
vivenciada e o devir. Sem Pambu Njila nada pode existir, e muito menos as páginas que se
seguem. KIUÁ NGANGA PAMBU NJILA!!! KIUÁ NJILA. AUETO !!!
KIUÁ NGANGA PAMBU NJILA! Salve o Senhor dos Caminhos
Cantigas em homenagem a Pambu Njila. Ritual de abertura dos trabalhos no Candomblé de Manzo
Pambu Nijila Vem Tomar Xoxô Tenda Tenda Bombogira Nzila Apavenam Nzila
Tendaió Apavenam
Mavilutango Mi Kota Ilê, Mavilê
Tenda Tenda Bombogira Nzila Apavenam Nzila
Mavilutango Mikota Ilê, Mavilê
Tendaió Apavenam
Kijanjá Kijanja ê Na Sua Aldeia ainda ê Nzila
De Kakauere Sinzamunzilê Mavile, Mavile, Mavambo Apavenam
Ê Compenso ê, á, á, á
Anda Sissa Sissa Lukaia Aê, Aê Pambu Njila Aê, Aê
Ê Compenso á
Anda Sissa Sissa Lukaia Pambu Njila, Aê, Aê Pambu
Mavile, Mavile, Mavile,
Sisseua ganguê Njila vamos trabalhar
Mavilutango
Sisseuá Ganguê
Ê Compenso ê, á, á, á Leva as quizilas dessa Casa
para o lado de lá. Laroiê!!!
Biolê Biolê Biolata
Oiá, Oiá Zé, Zé, toma lá
É Um Bikakakô
deixa cá
Deixa cá, toma lá

A minha mãe por seu incentivo e muitas vezes abdicação em prol da minha caminhada.
Por sua luta e carinho essa caminhada e esse sonho também são seus.
Aos amigos quilomblecistas de Manzo faltam-me palavras de agradecimentos pela
amizade e sobram emoções, que como apreendi lá, chama-se ser da família. Aos parentes de
Manzo principalmente Makota Cássia e Mãe Efigênia pelos Ngunzos, ensinamentos, carinhos,
paciência e confiança, peço Agô (licença, permissão, perdão e proteção).

xv
A Professora Dra. Emília P. de Godoi por sua orientação sensível e pelo apoio ao longo da
realização desse trabalho.
Ao estímulo e carinho às vezes intelectual, às vezes afetivo, às vezes militante de diversos
amigxs, colegxs e professorxs que fizeram parte dessa caminhada desde a graduação. De forma
especial àqueles que ajudaram a consolidar a ideia de que o fazer cientifico não pode se distanciar
do comprometimento social.
Aos amigxs que nos momentos em que me faltaram fé, seja nas coisas da tese e do
doutorado, seja nas coisas da “vida fora do doutorado”, foram as pedreiras1 que me sustentaram.
A gratidão quase impossível de se dizer em palavras a Pedro Moutinho, amigo, irmão,
companheiro de debates diuturnos, pela paciência com minhas viagens, empolgações ou
depressões; pelo convívio em campo duante visitas à Manzo, e acima de tudo pelo conforto da
amizade e pela irmandade de esteira. Daniel Martins amigo de uma vida toda e de todas as horas,
“dentro e fora” da tese. Patita e Rê (Renata Nobrega) housemates que me aguentaram dividindo o
mesmo teto. Alex amigo de caráter e bondade impar. A Lilian Gomes amiga com a qual se pode
contar nas horas difíceis da vida pessoal e com quem pôde discutir alguns dos temas expostos
nesse trabalho. Amanda pelo carinho, apoios, sorrisos, constâncias e também pelas leituras,
comentários, correções. Ao Gustavo, Ric, Sarita pela amizade, trocas, alegrias, brains storms. A
Sarita gratidão pela formatação final da tese e ajudas na organização final do material. A Fernanda
Oliveira, Bia Acioly, Helena Dolabella companheiras nas lutas em Manzo. Igão, Dieguito, Lu, Carol,
Patita, Rê e Julian por tornar Campinas um bom lugar para se viver. A Marcela Mendes pelo
companheirismo e bons momentos em terras Campineiras e do Mucuri. Elias pela amizade, pelas
conversas político-ideológicas, pelos refúgios em Sampa. A Patita (Patricia Carvalho) e ao Rafa
Barbi pelos debates teóricos principalmente no começo do doutorado. Dani Rezende pela leitura
atenta de um dos debates com a ciência política. Ana Estrela parodiando-a: “pelas discussões
inspiradoras até e pelas madrugadas”. A Angeka Murakami pela amizade e por me aguentar pelos
longos devaneios poéticos. A Aninha (Ana Lúcia Mercês) querida amiga sempre atenta e a
disposição para uma boa conversa e para resolução de problemas burocráticos acadêmicos.
Aos colegas que percorreram comigo esse percurso desde a graduação. E em especial aos
que se tornaram amigos durante a travessia, tais como Daniel, Daniela Rezende (Dani), Evelin
Malaquias, Lidiane Nunes (Lid), Vanessa Costa, Juliana Batista (Jú), Cassiana Torres (Cass), Rodrigo
Ednilson, Denis, aos amigos do Balu Mágico (“clube futebolístico, etílico, grêmio recreativo,
político...”): Bruno Malaco, Túlio Fortes, Alexandre Coubain, Lilão, Alisson, Daniel, Alvino, Leoncio

1
Existe um ponto de exaltação e de agradecimento, que os filhos de Zazi agradecem as trocas e Ngunzos,
com ela agradeço a esses queridíssimos participantes desse processo: “Meu Pai São João Batista é Xangô/
Dono do meu destino até o fim/ Se um dia me faltar, a fé no meu senhor/Derrube essa pedreira sobre mim
(...) Xangô Meu Pai/É tão bonito olhar suas pedreiras /E lá no alto das pedreiras de Meu Pai/ Ele nos dá suas
forças”

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entre outros. Aos amigos e companheiros do Observatório da Juventude e Ações Afirmativas pelo
aprendizado e por mostrar que é possível fazer uma ciência compreensiva e comprometida, de
forma especial a Fernanda Dias (Fezinha), a Fernandinha e Elias. Aos demais companheiros tenazes
de lutas por serem tantos, sintam-se todos agradecidos.
Aos amigos do Núcleo de Estudos Quilombolas - NuQ, que bom ver que o nosso grupo de
estudos e leituras (GAIE), em aproximadamente nove anos se tornou um grupo de pesquisa e
extensão referência com as comunidades quilombolas, ciganas e povos tradicionais. Agradeço
principalmente aos que semearam conosco o GAIE e colhem hoje essa realidade que é o NUQ:
Evélin, Vanessa, Rafael Barbi, Ana Tereza (Tête), Fernanda Oliveira, ao estímulo inicial do professor
Carlos Magno e a coordenação da professora Deborah Lima. Especialmente ao Alex Sampaio,
colega, amigo, companheiro e comparsa no dia-a-dia do núcleo. A querida amiga e agora colega
nas antropologias Helena Dolabella. Aos demais colegas que passaram ou passam pelo NuQ meus
agradecimentos pelas trocas constantes: Mariana Frizeiro, Flora, Marilene, Dudu, Pedro Moutinho,
Juliana Campos, Maurício, Amanda Horta, Bia Accyoli dentre outros.
Aos amigos formados, no longínquo ano de 2004, na então Gerência de Valorização do
Patrimônio e das Identidades Culturais da Secretaria Municipal de Cultura (GEVPI/SMC). A
realização do Inventário sobre as Tradições de origem Afro-brasileira na cidade de Belo Horizonte,
por um lado me permitiu perceber o quanto à cidade desconhece e é devedora a essa sua matriz
formativa e, por outro foi uma das origens das inquietações que animaram várias das minhas
pesquisas. Sou grato ao Marcelo Vilarino pelos ensinamentos do sensível e do respeito pelo outro.
A Denisia Martins que inclusive no âmbito dessa tese me apresentou duas dissertações sobre o
Candomblé em Belo Horizonte.
Aos colegas formados no mestrado, especialmente Lucas, Sandra, Marisa, de forma
especial ao Ricardo, não somente amigo, mas companheiro nas primeiras horas de militância nas
questões referentes aos quilombolas e grande fonte inicial de informação, leituras, debates e
contatos dentro da temática. Marcos Rezende amigo feito a partir da amizade com o Ricardo,
companheiro de lutas quilombolas, literaturas, cinema, futebol. Ana Tereza e Fernanda pelas
parcerias na CAMPO.
Aos queridos de turma de doutorado Patita (Patricia Carvalho), Igão (Igor Scaramuzi),
Desirée Azevedo e Inácio Franco e aos colegas da corte 2011 do mestrado: Carol (Ana Carolina
Campos Almeida), Julian, Dieguito, Camila Midori, a comunidade ampliada de antropólogos de
Barão: Carmem Andriolli, Lucybeth, Ana Francesco, Bob, Eva, Mari Shinorrara e Antônio, Patrik
Thames, Lu Cadernas, Mateus Zani pela amizade, convívio, camaradagem, festas, trocas,
hospedagens solidárias, assistências mútuas - materiais e imateriais - naquela que se tornou nossa
comunidade ainda que às vezes à distância.
Aos colegas de disciplinas da pós e de conversas pelas mesinhas do IFCH: Bruna, Hugo,
Stella, Aline, Luísa, Lari, Fabi, Mariana Petroni, Enerneck, Nat Corazza. Aos colegas de CERES, do
Lata-Ceres e da Revista Ruris, que ao longo desses anos foram espaços de acolhimento e debates,
especialmente Bob, Márcia Nóbrega, Dieguito,Nash Loera, Mariana Chaguri, Rê.

xvii
Aos professores, que desde a graduação passando pelo mestrado foram constantes fontes
de incentivos, em especial Eduardo Vargas, Leonardo Fígoli, Ruben Caixeta, e principalmente a
Deborah Lima. Um agradecimento especialíssimo de gratidão a Ana Lúcia Modesto, professora,
amiga e orientadora da monografia e da dissertação que antecederam esse momento. Marlise
Mattos, Bruno Reis, Andréa Zhouri, Lurdinha (Maria de Lourdes Dolabella) in memorian, Nilma
Lino Gomes e Juarez Dayrell (os dois últimos da Faculdade de Educação) pela convivência, debates,
excelentes aulas e acima de tudo compromisso com um fazer transformador e libertador. Ao
professsor Leo Avritzer pelo oferecimento de estrutura e apoio para a realização da tese, através
do Observatório da Justiça –PRODEP/DCP. Da “nova geração” ao Aderval pelas constantes trocas,
a Ana Flávia amiga desde a época de outras lutas antropolíticas, Bia Mendes e Rogério do Pateo
pelas boas conversas e convivências, a Érica pelas palavras sempre carinhosas e de incetivo, a
Karenina Andrade além de tudo pelos refúgios em sua casa, ao Ruben Silva pelas palavras sempre
de incetivo.
Aos professores do PPGAS-UNICAMP pelas sugestões e incentivos. Meus agradecimentos a
Ronaldo Almeida pelas vivências e pelas sugestões e leituras. Chris (Christiano Tambascia) que
gentilmente debateu parte de um dos capítulos desse trabalho. Mauro Almeida sempre uma
referência ética e teórica. A John Monteiro (in memorian) de convivência fugaz, mas marcante e
especialmente a Nádia Farage, excelente professora, exemplo de decência e ponto de apoio
afetivo, intelectual e político (relato aqui uma história exemplar da relação da professora Nádia
com seus alunos): Era o primeiro dia letivo de aula, uma sexta-feira pós carnaval. Após o fim da
aula, a professora Nádia me procura e afirma: você é o Carlos né, que foi orientando da querida
professora Ana Modesto? Eu: - sim sou eu. A professora Nádia: - que bom te conhecer. Olha só, é
assim: você já tem lugar para morar. Se quiser pode ir para minha casa. Pode ficar lá, imagino que
talvez não tenha lugar ainda aqui em Barão Geraldo!
Por fim, mas não menos importante agradeço aos Profa.Dra. Ilka Leite (UFSC), Renata
Paoliello (UNESP), Wilson Penteado (UFRBa), Daniel Simião (UnB), Mauro Almeida (UNICAMP),
José Maurício Arruti (UNICAMP), Ronaldo Almida (UNICAMP) E A Deborah Stucchi (MPF) -
participação na banca de qualificação - por aceitarem participar das bancas avaliativas desse
processo.
Agradeço aos cocidadãos anônimos principalmente àqueles das camadas sociais menos
privilegiadas – e que tem via de regras seu acesso negado às universidades públicas - pela
concessão, através da CAPES, de uma bolsa que foi essencial para o desenvolvimento da tese aqui
apresentada.

Saravá Meu Pai Benedito!!!


Adorei as Almas!!!
A ku menekene usoba Nzazi!!! Nzaze ê!!!

xviii
Yá Yá Massemba Do giro do mundo
Roberto Mendes e Capinam Que noite mais funda calunga
Que noite mais funda calunga No porão de um navio negreiro
No porão de um navio negreiro Que viagem mais longa candonga
Que viagem mais longa candonga Ouvindo o batuque das ondas
Ouvindo o batuque das ondas Compasso de um coração de pássaro
Compasso de um coração de pássaro No fundo do cativeiro
No fundo do cativeiro É o semba do mundo calunga
É o semba do mundo calunga Batendo samba em meu peito
Batendo samba em meu peito Kawo Kabiecile Kawo
Kawo Kabiecile Kawo Okê arô oke
Okê arô oke Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me pariu foi o ventre de um navio Quem me ouviu foi o vento no vazio
Quem me ouviu foi o vento no vazio Do ventre escuro de um porão
Do ventre escuro de um porão Vou baixar no seu terreiro
Vou baixar no seu terreiro Epa raio, machado, trovão
Epa raio, machado e trovão Epa justiça de guerreiro
Epa justiça de guerreiro Ê semba ê ê samba á
Ê semba ê é o céu que cobriu nas noites de frio
Samba á minha solidão
o Balanço das ondas Ê semba ê ê samba á
Nas noites mais longas é oceano sem, fim sem amor, sem irmão
Me ensinou a cantar ê kaô quero ser seu tambor
Ê semba ê Ê semba ê ê samba á
Samba á eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão
Dor é o lugar mais fundo luar de Luanda em meu coração
É o umbigo do mundo umbigo da cor
É o fundo do mar abrigo da dor
Ê semba ê a primeira umbigada massemba yáyá
Samba á massemba é o samba que dá
No balanço das ondas Vou aprender a ler
Okê aro Pra ensinar os meus camaradas!
Me ensinou a bater seu tambor Vou aprender a ler
Ê semba ê Pra ensinar os meus camaradas!
Samba á
No escuro porão eu vi o clarão

xix
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Listas de siglas
ALMG – Assembléia Legislativa de Minas Gerais
CEABRA – Coletivo de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros em Minas Gerais
CENARAB – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira
CEPIR – Coordenadoria Estadual de Promoção da Igualdade Racial
CONEPIR – Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial
CPIR/PBH – Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura de Belo Horizonte
DPE-MG– Defensoria Publica Estadual
DPU– Defensoria Publica Federal
EDH – Escritório de Direitos Humanos
EDUCAFRO – Pré-vestibular comunitário Educação e Cidadania de Negros(as) e pessoas da camada
popular.
FAFICH/UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais
FCP – Fundação Cultural Palmares
ICP – Inquérito Civil Público
IEPHA – Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artíistico de Minas Gerais
IFCH/UNICAMP – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN – Instituto Patrimônio Histórico e Artíistico Nacional
MPF – Ministério Público Federal
NuQ-UFMG – Núcleo de Estudos em Populações Tradicionais e Quilombolas da Universidade
Federal de Minas Gerais
PBH – Prefeitura de Belo Horizonte
PUC – Pontificia Universidade Católica
SEDESE – Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social
SEPLAG – Secretaria de Estado do Planejamento
SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República
UNEGRO – União de Negros pela Igualdade
URBEL – Companhia de Urbanização da cidade de Belo Horizonte

xxi
xxii
Listas de figuras e imagens

Figura 1: Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte em sua inauguração, a regiao rasurada é 51
a zona urbana

Figura 2: Planta Geral da futura Cidade de Belo Horizonte, ainda chamada de Cidade de 52
Minas.

Figura 3: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo 59


Horizonte, a área tracejada de preto é a cidade planejada.

Figura 4: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo 61


Horizonte, a área tracejada de preto é a cidade planejada.

Figura 5: A partir do mapa das unidades de planejamento da PBH, podemos ver alguns dos 62
bairros e lugares conformados pelo encontro das regionais Centro- Sul e Leste, trajetos,
percursos e manchas urbanas citados no trabalho.

Cadernos de Imagem 319

xxiii
xxiv
INTRODUÇÃO: Senzala de Pai Benedito
Fundanga ao ê Pembe
Fundanga ao ê Pembe
Okê Pembê Okê Pemba Auíza
Kassange Auíza De Angola Okê Pembê Sambangola
Segurazilê Mona Oia o Pembê
Segurazilê Mona Oia o Pembá
Moku iu que Pemba Oiô
Tata Mona que Pembê
Moku iu que Pemba Oiô
Tata Mona Que Pembá
Pembentá que Pembentá é Monakalê
Pembentaá que Pembentá é Monakalê
Saidi é um Pembekô
Saidi é um Pembalê
Pemba não anda, Pemba voa
Segura a Pemba que a Pemba é boa
Cantigas de purificação com a Pemba e Incenso na abertura dos trabalhos no Candomblé de Manzo. Feita após a
saudação a Pambu Njila.

“Eu não me identifico com os escravos e sim com os quilombolas. Não estou
acostumada a obedecer e servir, eu sou do lado livre. Eu acho que é por isto, a
sensação de liberdade o tempo todo. Eu acho que ser quilombola é diferente de
ser escravo. Escravo para mim é sempre a imagem de alguém servindo,
apanhando. Já o quilombola eu vejo pronto para a luta exigindo os direitos. Esta
é a diferença, por isto nós somos quilombolas, vejo isto em mim e nos meus
irmãos.”
Makota Cássia2 - Quilombo Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango.

2
Makotas são as Mães que cuidam do santo. O radical Ma, designa mãe e Kota designa aquela que cuida do
Inquisse. Ver-se-á mais a frente o processo de iniciação e a importância desse título e cargo no
funcionamento de um Candomblé Angola. Makota Kidoialê Cássia Cristina é uma das principais lideranças
do que ela mesma define como “vida civil” da comunidade. É filha biológica de Mãe Efigênia, a fundadora e
matriarca da Comunidade de Manzo: “(...)Eu oriento os filhos de santo nas atividades da casa. Pois sou
Makota. Eu confirmei o santo quando eu tinha quinze anos. Makota é um cargo, é como se eu fosse a
governanta da casa. Tomo conta tanto da criadagem quanto das visitas. É também uma relação pública,
mais ou menos isso. (...) Faço parte da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango. Nos
autorreconhecemos e fomos certificados pela Fundação Cultural Palmares em 2007. Estamos localizados no
bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, há mais de 32 anos. Possuímos um terreiro de candomblé e um
trabalho social com a cultura afro-brasileira, onde atuamos com as crianças e adolescentes do morro daqui
de Santa Efigênia. Somos uma comunidade onde a família é envolvida em atividades, não só religiosas como
também culturais.”

1
Mukuiu! Licença aos mais velhos e aos mais novos3.

A Comunidade Manzo4 Ngunzo Kaiango localiza-se na zona leste de Belo


Horizonte, em um terreno urbano que abriga um número variável de pessoas, em torno
de onze famílias - e cerca de 40 pessoas - antes da retirada compulsória do grupo de seu
Manzo..Cabe o registro inicial: mediante medidas administrativas - no caso interdição por
motivo de riscos múltiplos à segurança dos moradores e de terceiros - a Prefeitura de Belo
Horizonte-PBH retirou a comunidade de seu território por um período de
aproximadamente 11 meses, durante os anos de 2011-2012, até que se efetuassem obras
emergenciais de reparações construtivas. Obras estas, que foram realizadas pelo poder
público municipal sem a devida participação da comunidade e que restou por violar suas
sociocosmologias e descaracterizou o Terreiro, centro vital da comunidade. Ver-se-á este
processo ao longo deste trabalho.

3
Este é o modo como muitos do Candomblé Angola pedem licença para usar a palavra - ela mesma, como
se verá, um Ngunzo, também pedem e oferecem – fazem a troca e o caminho cruzado - bênçãos. Mukuiu e
suas variações Maku iu, Mokoiou é a saudação em Angola, que pode ser traduzida como um pedido de
Benção ao que se responde geralmente Mukuiu N’Zambi, ou Zambi na Aueto algo como que Deus lhe
abençoe. Seguido sempre de um pedido de licença aos mais velhos, aqueles a quem se deve honrar com
palavras de respeito à sabedoria. Da mesma forma, que se pede licença da palavra aos mais novos a quem
se deve honrar com o exemplo.
4
Os termos do Candomblé Angola, no corpo principal do texto, serão grafados sempre que possível de
acordo com as regras do português e por aproximação linguística, porque já faz parte da prática de trocas e
caminhos cruzados linguísticos, dos praticantes do Angola no Brasil uma mescla linguística. Faz-se necessário
reconhecer que esse processo de aproximação é bastante complexo; um exemplo: o termo Quibundo
N’kisse, que se refere as deidades Angolas poderia ser aproximado na língua portuguesa, como Inquisse ou
Inquice. No caso optei por Inquisse. Além disto, grafarei a inicial com letra maiúscula quando se dirigir a
religiosidade como um todo e de minúscula em casos específicos. Faz-se mister esclarecer que a fonte para
as traduções dos vocábulos, quando necessário, foram os próprios moradores do Quilomblé de Manzo,
razão pela qual não recorri à etimologia dos vocábulos. Nesse sentido, Manzo é traduzido no contexto da
nossa pesquisa como Casa.

2
Manzo Ngunzo Kaiango é a Casa da Força de Matamba. Manzo significa Casa.
Ngunzo é a energia, o elemento constitutivo e construtivo do Candomblé, o principio
dinâmico que participa e representa ao mesmo tempo, a força que circula e permanece
em um movimento simétrico centrípeto e centrífugo, ou seja, contém e veicula o princípio
genérico e ao mesmo tempo diferenciado da vida. A força dinâmica que permite a
ancestralidade, o ser e o devir. Sem Ngunzo não existiria energia vital. É transmissível,
acumulável, perdível, transformacional. Conduzido e transmitido – trocado nos termos de
Manzo - através de objetos, de coisas, pessoas, animais, elementos da natureza, é ao
mesmo tempo material e simbólico, trata-se, portanto, de um fe(i)tiche na precisa
definição de Latour (2002;1994), que assegura a existência presente, o porvir e as
necessárias relações com a ancestralidade. Não existe candomblé sem Ngunzo.
O Ngunzo é assentado no terreiro, tornando este um local sagrado. É
transmitido a todos os elementos conformadores do Abantu – comunidade do Ngunzo.
Como energia sua taxa é variável, e é necessário o constante girar em torno do Intoto, nos
precisos termos que ouvi em Manzo, e que apresentarei no decorrer deste trabalho.
Ngunzo é poder. Ngunzo é benção, cumprimento, votos, aquilo que se troca. Ngunzo é
carisma, senioridade. Ngunzo são as salivas, o suor, a palavra, o toque, aquilo que os
Santos passam a seus filhos e aos presentes nos momentos em que estão manifestados. É
aquilo que se troca entre os membros da família – entendida não apenas como a
construção feita a partir de um laço consanguíneo - e da comunidade do Santo. É o que se
oferece a outro. É o que se come. É o que sai da boca, nos termos que ouvi em Manzo,
para a importância da palavra que se diz. Ngunzo é conhecimento. Ngunzo é a Casa do
Candomblé. O Ngunzo con(forma) aquilo que Goldman denomina de Ontologia do
Candomblé “um sistema que privilegia fluxos contínuos e cortes (e não puras
descontinuidades), multiplicidades (e não qualquer dialética entre o um e o múltiplo) e
agenciamentos eficazes (e não formas de ordenamento e sua implementação prática)”
(Goldman, 2005:05). Se Goldman aqui privilegia o candomblé como sistema religioso é o
Ngunzo que permite esse sistema em e na rel(ação).

3
Kaiango é uma das qualidades ou enredo da Inquisse Matamba. Matamba é a
“dona” do terreiro de Mãe Efigênia/Mametu Muiandê e o santo de frente ou do Ori -
cabeça - de Mãe Efigênia. Matamba é a divindade dos ventos, tempestades e raios,
correspondente à Iansã no candomblé de nação Ketu. É saudada com os cumprimentos de
Oya, Oya, Oya ê! Nenguá Mavanju - Kiuá Matamba: Senhora dos Ventos - Viva Matamba.
Mãe dos Mvumbi - mortos -, é a guia dos espíritos desencarnados.

A matriarca da Comunidade, Mametu5 Muiandê (Efigênia Maria da Conceição),


está ligada a todos os moradores por laços de parentesco, seja consanguíneo ou religioso.
A comunidade se organizou e habita6 o Quilombo desde a década de 1970, quando foi
fundada uma Casa de Umbanda, denominada Terreiro de Umbanda Senzala de Pai
Benedito posteriormente transformada em Terreiro de Candomblé da Nação Angola
Manzo Ngunzo Kaiango, que se autorreconheceu, e foi certificada em 13/03/2007 pela
Fundação Cultural Palmares, como remanescente de quilombo (Registrada no Livro de
Cadastro Geral nº10, Registro nº 942, fl.07 e publicação no DOU do dia 16/04/2007).
Possui também processo aberto junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária-INCRA, para a realização de Identificação e Desintrusão de seu Território (Processo
INCRA/MG 54170.006166/2007-91, aberto em 01/11/2007).

5
Mametu é o título dado na Nação Angola do Candomblé, àquele iniciado que atingiu o grau de Mãe de
Santo, chamada também de Zeladora do Santo. Este título equivale ao de Ialorixá no Candomblé da Nação
Ketu. No caso masculino, o zelador de Santo recebe o título é de Tatetu, equivalente ao de Babalorixá no
Candomblé da Nação Ketu. A Mametu pode ser denominada por seus títulos completos, como Mam’etu Ria
Mukixi – Sacerdotisa no Angola. Mam’etu Nkise ou Inquissiane – Minha ou nossa Mãe de Santo. E o Tatetu
tem como títulos, Tat’etu Ria Mukixi – Sacerdote no Angola. Tata Mukixi/ Tata Nkisi, ouTat’etu Nkisi – Meu
ou nosso Pai de Santo. Tata se traduz por Pai, e Ma por Mãe.
6
Sigo aqui para a ideia de habitar, as pegadas de Heidegger para quem a existência possui como estrutura
fundamental o ser-no-mundo. Em 1951 na Conferência Construir, habitar e pensar, o filosofo aponta que o
habitar não se refere apenas ao fato de se possuir uma residência e sim no modo como o homem é um ser-
no-mundo, ou seja, como ele se encontra no mundo e ajuda a construir o mundo que o circunda. Deste
modo, me parece que é em Heidegger descontando seu antropocentrismo, que se tem um dos princípios
para, o que mais tarde veio a ser denominado de virada ontológica. A virada ontológica aqui é uma tradução
aproximada da sociocosmológica de Manzo, em nossos termos. Como se verá mais a frente neste trabalho.

4
A Comunidade se organiza civilmente através da Associação de Resistência
Religiosa e Cultural da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango. A Associação se
apresenta como um espaço de referência para a comunidade do entorno, foi declarada
como de utilidade Pública Municipal, em 24 de fevereiro de 2011, pela lei 10.112/2011, e
de utilidade Pública Estadual através do Projeto de Lei n° 2.527/2011, aprovado pela
Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Denominado por Mametu Muiandê como “uma
Casa de portas abertas”, o Quilomblé7 possui um projeto social e cultural que,
dependendo da oferta de voluntários, oferece cursos de musicalização e dança afro,
penteado afro, dentre outros, e de maneira permanente o curso de capoeira e maculelê.
O projeto, denominado Kizomba,8 atua principalmente com crianças e jovens do entorno.
Mantido principalmente por dois filhos consanguíneos de Mametu Muiandê, o Projeto
tem como finalidade, conforme um documento escrito por seus a(u)tores, “atividades
socioculturais como forma de educá-los para o exercício pleno da cidadania” e visa formar
“jovens e adultos conscientes de seu papel social e que se sintam sujeitos de sua própria
história.”

A partir da apresentação dos dados etnográficos9 da Comunidade de Terreiro


e Quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango, localizada na região leste de Belo Horizonte,
Minas Gerais, e sua luta pelo reconhecimento de seu lugar, intentarei através da
expressão local “tomada da palavra política” apresentar a sociocosmológica de Manzo. A

7
Quilomblé é um neologismo criado por alguns de nós pesquisadores participantes do Núcleo de Estudos
em Populações Tradicionais e Quilombolas - NuQ-UFMG que estudamos e/ou apoiamos as lutas da
Comunidade pela titulação de seu território, e é resultante da junção das palavras Quilombo e Candomblé.
8
Nas palavras de Mametu Muiandê: a festa do povo que resistiu a escravidão. Ver-se-á mais a frente uma
análise do projeto.
9
Buscar-se-á uma apresentação que privilegie os dados etnográficos, pois deste modo, o confronto entre a
teoria acumulada e a realidade vivenciada privilegiará a perspectiva do particular sobre o geral - do corpóreo
sobre o abstrato. Como diria Peirano (1992) uma interlocução teórica inspirada nos dados etnográficos e
não mera ilustração etnográfica. Ou seja, aquilo que é dito e é feito (Peirano 2001,2006). “(...) a pesquisa
etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve e se sofistica, quando desafia os
conceitos estabelecidos pelo confronto que se dá entre i) a teoria e o senso comum que o pesquisador leva
para o campo e ii) a observação entre os nativos que estuda.” (PEIRANO, 1992:08)

5
sociocosmológica pode ser lida nesse trabalho, como um modo de ordenar e pensar o
mundo a partir da cosmovisão do Candomblé. Pode ser lida como uma transversalização
dos processos de trocas e caminhos cruzados. Trata-se de uma transversalização que
conjuga o mesmo e a diferença. Para valer-me de uma afirmação de Dos Anjos (2008) de
uma “filosofia política afro-brasileira”, que dispõe das suas próprias maneiras de articular
as relações entre o “interior” e o “exterior”. Em um modelo criativo, no qual aquilo que se
faz – o santo, por exemplo – é aquilo que já existe como potência, eis o Ngunzo, isto é, um
modelo de criação no qual o ‘dado’ e o ‘feito’ se encontram em uma relação de
‘pressuposição recíproca’ (Goldman, 2009).

Pode ser lido também nesse trabalho como um caminho cruzado e vivamente
vivido nas trocas: o movimento transversal, tal qual o Ngunzo, de se fazer política em um
processo de disputa com o Estado e sua forma-Estado10 e suas ordenações, convenções,
prescrições e normatizações. Pode ainda ser lido como um território cruzado, ou como um
processo de desterritorialização – reterritorialização. Pode ser lida também como uma
vivência que é anima para a tomada da palavra-política, dentre outras leituras possíveis
que serão apresentadas ao longo do trabalho. Visto tratar de um conceito chave para essa
pesquisa, seus múltiplos sentidos se explicitarão ao longo dos capítulos. E para que não

10
Por forma-Estado refiro-me ao modelo, legal e legalista, que busca resumir a vida vivida e vivenciada a
teoremas e axiomas que subtraem as operações de vivência das condições do sensível. A teoria social,
mesmo as de matrizes progressistas tendem a resumir a política à sua forma Estado-Nação e essa a um
“organismo funcional” do sistema capitalista. A leitura nesses termos não é distante da realidade aqui
estudada, entretanto, para que seja uma leitura radical seria mais interessante arguirmos esse modelo
descritivo a partir das rotinas e rituais – da vida vivida e vivenciada– - que organizam e não necessariamente
fundam os modelos de regulação moral. Nesse sentido forma-Estado aqui é demonstrativa dos limites
teóricos desse modelo de organização burocrático-política e seus vícios fáticos de origem, classe, status,
pertencimento ideológico, religioso, dentre outros. A Diferença como política ultrapassa o modelo liberal-
burguês em reconhecer o outro, vai mais além, trata-se de assumir as consequências de sermos
permanentemente atravessados pelo outro. Nesse processo torna-se possível analisar o Estado, não apenas
como forma, mas também como prática e realidade, que se vale da violência legítima ou não, como se verá
ao longo desse trabalho. A poética da cosmopolítica de Manzo é o caminho cruzado e a troca com os
múltiplos outros, como se verá ao longo desse trabalho.

6
reste dúvida, trata-se de uma construção conceitual do pesquisador, que espero tornar-
se-á a partir da explicitação dos dados etnográficos, uma escolha teórica coerente.

Este trabalho busca apresentar como o pertencimento religioso funda uma


comunidade e a luta pelo candomblé cria um quilombo na cidade11, bem como um
processo em que as práticas, ações sociais e as represent(ações) perfazem o lugar e o
habitar, as práticas, os pertencimentos, as moralidades e as convenções dos
quilomblecistas. Para tanto privilegiará o processo de troca e de caminhos cruzados
através da tomada da palavra política como a forma sociocosmológica e cosmopolítica
deste processo. Dito de outro modo interessa o que em Manzo é designado como
“política”, ou melhor, “tomada da palavra política”, ao mesmo tempo em que se busca
nesta descrição escapar de um novo tipo de substancialização, agora nativa da política
(Goldman 2006; 2001; 2003). No caso aqui em particular o movimento transversal, tal
qual o Ngunzo, de se fazer política em um processo de disputa com o Estado e suas
ordenações, convenções, prescrições e normatizações.

Dito de outro modo, em Manzo ver-se-á que a ontologia do social e a reflexão


sobre o político estão associadas. Não existe, como se verá nessa sociocosmológica e em
sua cosmopolítica, uma teleologia da história. A política, nos termos da sociocosmológica
de Manzo, é troca e caminhos cruzados, que são os princípios e as energias da existência
do grupo12. A política, portanto, subsiste e – nos termos de Manzo – gira em momentos

11
O que caracteriza o fazer etnográfico no contexto da cidade é o duplo movimento de mergulhar no
particular, para depois emergir e estabelecer comparações com outras experiências que, no âmbito urbano,
podem transcender os níveis locais e nacionais.
12
A troca de mensagens abaixo ilumina a afirmativa. Para que se entenda, resumamos: No dia 02 de
setembro de 2014 postei no facebook, uma notícia a respeito de uma longa reunião ocorrida em Manzo, na
noite anterior, dia 01 de setembro, quando comunidade e eu – na função de apoiador da mesma –
expusemos para, entre outros presentes, um advogado da Defensoria Pública Federal, uma advogada da
Defensoria Pública Estadual, um procurador da República do Ministério Público Federal, um membro da
coordenação do Comitê de Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, para funcionários do
Incra - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, dentre outros, as violações que a Comunidade

7
específicos, porque ela já existe como potência de troca e caminhos cruzados. Diria então
que em Manzo temos uma comunidade em relação com o Estado e que demanda,
inclusive, políticas a este Estado. Entretanto, propõe cosmopolíticas que podem ser lidas
como contra o Estado, no sentido de demonstrar os limites desta forma-Estado e seus
vícios de origem, classe, estatus, pertencimento ideológico, religioso, dentre outros.
Manzo é contra a forma-Estado, enquanto potência de uma forma outra de fazer política.

Interessa-me neste exercício de antropologia, a política. Mas não a política


como problemática da manutenção da ordem, da norma e da coesão. Se a cosmopolítica
como se verá em Manzo é tentativa de emancipação deste grupo das insuficiências da
forma-estado ainda que sem romper por completo com esta forma burocrático-
organizativa, a sua sociocosmológica cumpre, com denodo para o antropólogo, a correta
afirmação de Lima e Goldman (2013:24) “(...) qualquer antropologia é política (...)”13.

sofrera e sofre e de como a comunidade através de suas palavras políticas imaginava ver soluções possíveis
para o ocorrido. Postei então:
"’Ogum foi menino, mas deu a Palavra, e Palavra de Ogum não é caçoada’. Mãe Efigênia lembrando aos
presentes na reunião no Quilombo de Manzo, que a palavra empenhada é Ngunzo. A palavra proferida é a
palavra que se troca e, portanto, carregada de potência. Só não é possível afirmar infelizmente que os
atores do poder público tenham entendido. Aueto!!!! ARUÊ INKOSI MUKUMBI, N´INKICE NGANGA KEUALA”
Ao que Makota Cássia, liderança política do Quilombo e do terreiro comentou:
Cassia Cristina: “Incrível né Carlos, como aquele pedacinho de chão mesmo nos tirando toda nossa
simbologia ainda sobrevive nosso gunzo, nosso sagrado. É por isso que resisto, e é nesse sentido que
temos a certeza do que somos. AUETO MANZO KOZANDIO MINHA MÃE !!!”
13
Dito de outro modo, a ciência política fundou seu império na ciência de, do e para o Estado. A
antropologia por colocar seu primado na troca com os conhecimentos outros permite que Manzo nos
mostre que sistemas políticos devem ser entendidos, como sistemas de relações – categorias (onto)lógicas -
ao invés de apenas as categorias institucionais em contextos práticos. Estou aqui no caminho sugerido por
Clastres e seu magnânimo projeto de pesquisa, que buscava recusar o encapsulamento da política a um
modelo jurídico e de Estado:
“É uma concepção instrumental do Estado, ou seja, o Estado é o instrumento da dominação da classe
dominante sobre as outras; tanto na lógica, como na cronológica, o Estado vem depois, tão logo a sociedade
é dividida em classes (...) parece-me o contrário que acontece; não é a divisão em grupos sociais opostos,
não é a divisão em ricos e pobres, explorados e exploradores, a primeira divisão, aquela que funda afinal
todas as outras, é a divisão entre os que comandam e entre os que obedecem. Ou seja, o Estado. Porque
fundamentalmente é assim, é a divisão da sociedade entre os que tem poder e os que se submetem ao
poder. No momento em que isso existe, isto é, a relação de comando/obediência (...) tudo é possível (...) ao

8
A sociocosmosociológica de Manzo devolve a categorias transversais como
tornar-se quilombola sua potência como se verá, e à antropologia nesta mesma operação,
seu devido lugar como campo dinâmico que se coloca para além de uma ciência positiva e
de uma teoria funcionalista, repondo-lhe todo um campo de agência que permiti-lhe-á
afirmar-se como uma disciplina política nas ciências. E mais do que isto, como se verá no
capítulo em que analiso a tomada da palavra política, a antropologia – ou pelo menos
este antropólogo –, afectada14 pelos conceitos nativos, reforça a ideia de que outros
mundos são possíveis para além da forma-Estado e de suas sociocosmológicas 15.

contrario de ser o Estado o instrumento de dominação de uma classe, portanto o que vem depois de uma
divisão anterior da sociedade, é o Estado, que engendra as classes. (...) é a partir do poder, da detenção do
poder que se engendra o trabalho alienado (...)” Clastres (2013: 234-235-237)
A genialidade de Clastres nestas afirmativas, para além de libertar o pensamento de esquerda do vulgarismo
economicista, consiste em repor - paradoxalmente para aqueles aferroados a uma ciência normativa,
jurídica e já de Estado - a Política a seu estado de potência e maquina produtiva. Dito de maneira clara,
como fez Clastres em outro trecho desta longa e seminal entrevista, a questão de uma reflexão da política e
política não é o Estado já como instituição e sim o que permite, ou o que leva, ou, ao contrário, o que
impede o surgimento do Estado. Como belíssimamente conclui o filosofo Bento Prado Junior (2014:15)
sobre a obra de Clastres: “se não há pensamento pré-lógico, não há paraíso pré-político”. Eis aí a
antropologia como uma sociocosmológica da política.
14 Afecto não se confunde com afeto. O afeto pode-se entendido como uma empatia, e foi o ponto de

partida dessa pesquisa, seu alimento e seu Ngunzo; como se verá será ao longo do trabalho. Nesse sentido,
cabe assumir as alegrias e as dores dessa opção. Entretanto, trata-se também de um trabalho afectado, ou
seja, por um lado, propõe uma coextensividade conceitual entre as sociocosmológicas estudadas e os
mundos projetados pela etnografia; não se trata de uma represent(ação) e sim da rel(ação) campo e texto.
Aqui me valho, parcialmente, do sentido proposto por Fraveet-Saada (1995) para a ideia de afecto,
entretanto, faz necessário reconhecer que a proposta da autora é mais radical que o uso que faço do
conceito. E, por ouro lado, Afectar... é atividade de se colocar em constante questionamento. A diferença Eu
- Outro, não impede, ao contrário, incita a revelação sobre nós. Assim na medida em que analiso a
sociocosmológica de Manzo e seus processos cosmopolíticos, revelam-se pelo espelho um bocado da
sociocosmológica nossa. Agradeço a Ana Estrela por boas conversas, sobre esta questão.
15
Vacinado por 08 anos de pesquisa, militância e atuação com a questão quilombola, e de acordo com os
dados etnográficos dessa pesquisa, sigo aqui Deleuze (S/D:37-38) e ao invés dos encantos do estudo da
forma-Estado e da existência de um padrão, algo mais usual nesse campo de pesquisa, me parece mais
promissor, o conjunto dos processos de devires minoritários. Na nossa tradição, como demonstra Deleuze
“o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. (...) O padrão é esse.(...)” Entretanto
como lembra o filosofo e demonstra Manzo existem também “todos os devires que são minoria.”

9
A etnografia como percurso de pesquisa

Este trabalho está centrado em relatos, principalmente de Mãe Efigênia e


Makota Cássia. Busca-se entender como os quilombolas vivem e pensam sua tradição. No
sentido aqui adotado, tradição é devir, como sugere Emília P. Godoi (1999: 29) “por sua
força d’avenir”, perspectivas que colocam em movimento passado, presente e futuro. Em
termos de Manzo, pensaria em troca de Ngunzo em que o passado faz troca com o
presente e as perspectivas futuras, do mesmo modo que perspectivas futuras fazem
trocas com o passado e o presente, e o presente faz troca tanto com passado como com o
futuro. E assim sucessivamente em uma troca constante. Para que não restem dúvidas,
valho-me da precisa definição de Emília P. Godoi (1999: 87) “Quando emprega-se aqui o
termo tradição, não se quer dizer, absolutamente que estas práticas são sobrevivências de
costumes antigos, anteriores (...) devem ser entendidas como portadoras de uma
racionalidade própria(...)”. Sugeriria nos termos dessa pesquisa, na citação anterior de
Emília Pietrafesa de Godoi, apenas a substituição do termo racionalidade própria por
sociocosmológica, pois contém também aspectos do sensível.

A descrição e a possibilidade de transversalização dos mesmos, que sugerirei


ao longo do trabalho, se valem principalmente do encontro etnográfico – em seus
transversais sentidos –, portanto, pode ser em encontro de, e de encontro a entre
pesquisador e pesquisados.

Buscar-se-á categorias, regras, práticas, representações mediante as quais os


membros de Manzo pensam e vivem sua existência. Deste modo o que se pretende aqui é
uma abordagem de dupla dimensão: em que não se privilegie nem tão somente a teoria
da prática e da ação que enfatiza um comportamento concreto e não somente uma teoria
da represent(ação) que enfatiza o universo simbólico. Parece-me que a junção de ambas é
a forma com que os “Quilomblecistas de Manzo” se deixaram apreender pelo
pesquisador. De modo que se busca então entender a vida vivida e vivenciada deste
grupo.

10
Por vivido e vivenciado busco traduzir a sociocosmológica do “Povo de Santo”,
ou seja, um processo social complexo, que foge das definições dogmáticas e formalistas.
Vivido e vivenciado é o que se apresenta como múltiplicidade, potência, diferença, fluxos,
agenciamentos metamórficos, nômade; em oposição às categorias dogmáticas e
formalistas - demasiado ocidentais e colonialistas - como os conceitos de norma e seus
correlatos: unidades, uniformidades, sistemas fechados, sedentarizados. Por outro lado,
vivido e vivenciado é a celebração da agência, feito e fato da e na prática, feito e fato da e
na ação e (rel)ação social. Ao longo do trabalho retomarei este conceito de forma a
melhor explicitar a construção do mesmo que emprego nesta pesquisa.

Bourdieu (1996), em seu texto “A ilusão biográfica”, chama a atenção para os


perigos do uso – diria eu abuso - dos relatos e histórias de vida, já que estes carregariam
uma noção teleológica da história, nas palavras do autor “uma filosofia da história, no
sentido histórico” (pp.184). Tal concepção, como se sabe, parte da premissa de que a
história tem um sentido, na qual o indivíduo nasce, cresce, se desenvolve e morre. Um
sentido, portanto, linear e organizado em torno da própria finitude do relato histórico. O
risco, neste caso, de se apresentar os dados como sendo “inseparavelmente o conjunto
dos acontecimentos de uma existência individual concebida como uma história e o relato
dessa história” (BOURDIEU, 1996, p.183) é bastante grande.

Os usos da biografia, para Bourdieu – ao que acresço os relatos etnográficos –


podem carregar consigo estes vícios de origem e representarem uma narrativa fechada,
estável e organizada em razão de seu final, ao qual o indivíduo ou o grupo de indivíduos é
apresentado como estando predestinado. A biografia – e em certo sentido, os relatos
etnográficos –, tornar-se-iam uma dupla ilusão, primeiro quando apresenta as vidas como
sendo um todo coerente, linear, em que os acontecimentos se organizam em termos de
causas e fins. E depois quando tenta estender e narrativa linear, coerente e teleológica da
vida de uma pessoa para um dado período, apresentando-o também de forma um tanto
quanto teleológica. De fato, a vida vivida e vivenciada em Manzo é descontínua,
justaposta, aleatória, imprevista.

11
A vida vivida e vivenciada em Manzo compõe-se de contextos e relações
múltiplas e transversais em que os elementos sociais agem sobre o indivíduo, mas este
detém múltiplas possibilidades de atuação em diferentes campos, ainda que essas
possibilidades sofram tentativas de tolhimento e sejam dificultadas para que se
submetam ao modelo esperado da forma-Estado.

Valer-me-ei, portanto, dos relatos e da observação destes contextos, relações


e ações, que obtive em visitas múltiplas e em diversas situações, mas não intenciono
reconstruir uma totalidade histórica de Manzo e sua luta, pois tratar-se-ia de uma ilusão
etnográfica.

A etnografia, mais do que uma ilusão do fazer antropológico, – ainda que


possa sê-la, é sempre um risco, do qual não posso afirmar ter escapado – é mais que um
método é uma forma de se estar no mundo (Peirano, 2008) que neste estudo me permitiu
estudar tanto os princípios prescritivos – uma conjunção simétrica entre metafísica e
filosofia social e natural (Goldman,2005) – da sociocosmologia do Povo de Santo de
Manzo que formam a ordem sociocultural, quanto a ordem performativa experimentada
na vida vivida e vivenciada. Firth exemplifica esse processo em uma das obras primas da
antropologia, a bela etnografia Nós, os Tikopias (1998) e explica em O significado da
Antropologia Social (1974:48) estes princípios dizendo que etnografia é a descrição do
“que ela diz e o que ela faz - distinção entre as normas da ação e as das expectativas” em
uma análise de “circunstâncias sociais” em que o “processo social significa a operação da
vida social” (pp.21).

Em antropologia, parafraseando Geertz, fazem-se etnografias, ou como diria


Peirano (1992) esse é o nosso ritual dramático. Até mesmo Rivers – antropólogo de
gabinete, como costumeiramente nos é apresentado –, em seu Notes and queries (1912)
reconhecia - ainda que sem objetivá-lo - que o fazer antropológico requer trabalho de
campo; relação de simpatia no contato da pesquisa; e busca do abstrato a partir do
concreto.

12
O percurso etnográfico visa à descrição de uma sócio-lógica resultante do
encontro entre pesquisador e pesquisado e dos modos, saberes e fazeres de cada um
destes. Neste sentido, menos do que elaborar tipologia, o que se propõe é entender
aquilo que torna possível a sociocosmológica do santo e da relação desta com o Estado
em um tipo de relação cosmopolítica. Interessa mais os meios – em termos êmicos de
Manzo, os caminhos – do que as extremidades. Nos termos do mestre Otávio Velho (1998:
12): “Deixar-se afetar pelo nativo pressupõe que ‘ele/ela’ tenha algo a nos ensinar. Não
apenas sobre ele mesmo, mas sobre nós”.

O antropólogo é sempre o autor de seu texto etnográfico, mas não no sentido


de um romancista. A presença do autor e o modo de feitura do trabalho não se tratam
apenas de um recurso para a apresentação da alteridade do contato ou um modo de
afirmar a veracidade de sua estadia em campo ou mesmo da complacência de seu saber
humanista. Trata-se de um relato do processo transformador a que é submetido o
pesquisador no contato com o outro. Pelo qual, ao fim, ambos não serão mais os mesmos.

Vicent Crapanzano (2004), em uma metáfora com a figura do Deus Grego


Hermes, aponta que o antropólogo, tal como Hermes, é um mensageiro. Não um simples
mensageiro, pois este decodifica a mensagem, interpreta-a, clareia o opaco, torna familiar
o estranho; O antropólogo, além de ser mensageiro, aquele que deveria interpretar, deve
ser também, como Hermes, um símbolo de fertilidade, e seu texto etnográfico devem ser
potentes em significações. Dito nos modos como aprendi em Manzo, não se trata de um
texto como veracidade e como absoluto, mas sim de transversalização de contextos e
processos. A descrição da vida vivida e vivenciada como sugere a sociocosmológica Angola
sabe que Pambu Njila é caminho, e que o caminho se faz caminhando e, portanto, é
múltiplo, diverso, dinâmico, contraditório, marginal, inespecífico... tudo aquilo que
apavoraria uma descrição de uma ciência da ordem.

Para Wagner (2010), a relação pesquisador e pesquisado está contida em uma


paralelidade epistemológica, pois somos todos inventores de cultura. A antropologia, para

13
este autor, deve ser uma relação entre equáveis – a não confusão entre igualdade e
equidade é uma contribuição que faz toda diferença neste contexto – pois media seres
culturais através da “objetividade relativa” e da “relatividade cultural”. Tanto
antropólogos como nativos são inventores culturais. Para Wagner (2010:37), ao invés do
“somos todos nativos” de Geertz (1997) que pode ser ingênuo, deve-se buscar o “somos
todos de algum modo antropólogos”.

Tal operação não é apenas de inversão dos termos: nativos por antropólogos,
mas é principalmente epistêmica. Wagner propõe uma relação em que os nativos,
também são antropólogos, mas de modo diverso do que supõe nossa epistême
antropológica. O que ele propõe - é que os outros revelam bastante sobre nó s- e que me
parece ter ocorrido no trajeto etnográfico da pesquisa em Manzo. O convite é pelo
abandono à ideia de que os antropólogos descrevem cultura enquanto os nativos fazem
cultura. Os processos são simultâneos e cruzados. Antropólogos e nativos inventam e
descrevem culturas ainda que de modos diferentes. Operação que não é simples. Não se
trata de humanismo e afeição pelo outro, trata-se de afecção, o outro é autônomo a nós e
dotado de um mundo que nada deve ao nosso. Afecção permite através do contato com a
Diferença engendrar um caminho cruzado que poderá levar a superação dicotômica do
grande divisor para valer-me de Goldman e Lima (1998). Não se trata – necessariamente -
de se transformar no outro, ou transformar o outro em nós e sim da relação de potências
em transformação, criadora de relações e do social.

Este processo, por justaposição, permite experienciar-me através dos


significados que trouxe do campo; a operação nos leva a relativizar a nossa própria cultura
e não somente a cultura outra, tão bem definida na famosa passagem do antropólogo
como xamã16. O fazer etnográfico nasce de uma base relacional, produzida através de uma

16
Entendo que da maneira como adotada pelo autor, não pode ser tomado como sinônimo de extirpar. O
xamã na obra de Wagner é um administrador de potências em transformação; e não um extirpador que

14
mediação de pontos de vista. O fazer etnográfico é um processo ritual de invenção através
da relação na qual o antropólogo não pode simplesmente apreender a cultura do outro
como se estivesse lá pronta para ser registrada (Wagner, 2010:37); ele deve em uma
espécie de jogo entre nossos conceitos e as ações do outro, abstrair das noções ai surgidas
os constrangimentos e implicações.

A antropologia proposta por Wagner, tal como a ideia de cultura, não é


produzida, mas ativamente inventada e experienciada. A experiência se dá através da
relação, o antropólogo experimenta a diferença no campo, de modo que a busca por
entender os sujeitos da pesquisa produz um nós e eles que “inventa”, não sem
constrangimentos e implicações, a “cultura”.

O percurso e a escrita etnográfica que me proponho aqui é então cultural, no


sentido pleno e político do termo, ou seja, experienciada, afetiva e afectada. Manzo
ritualiza um território e territorializa um ritual. Neste processo tornam-se quilombolas.
O antropólogo em seu processo etnográfico ritualiza uma descrição da relação social e
representação social.

Em outro diapasão, mas, de certo modo, complementar, Roberto Cardoso de


Oliveira discorre sobre a especificidade do ponto de vista do antropólogo nascido nas
nações latino-americanas17:

Não mais um estrangeiro. Alguém que observe de um ponto de vista - ou


horizonte – constituído no exterior, porém, agora, um membro de uma
sociedade colonizada em sua origem – depois transformada em nova nação -,
um observador eticamente contrafeito de um processo de colonização dos
povos aborígenes situados no interior dessa mesma nação. Portanto, do ponto
de vista desse observador interno de uma sociedade que reproduz mecanismos
de dominação e de exploração herdados historicamente, o que subsiste não

dissolve as diferenças, o que acabaria com a positividade da alteridade como criadora de relações e do
social. A este debate agradeço as conversas sempre produtivas com a então housemate Patrícia Carvalho
Rosa. E com as trocas de mensagem com Rafael Barbi.
17
Como afirma Mariza Peirano (1992 a: 148), “o escrever antropológico implica, assim, questões morais,
políticas e epistemológicas”.

15
poderá ser apenas o deslocamento de um conceito metropolitano – e colonial -,
sem repercussões na própria constituição desse ponto de vista. Tratar-se-ia,
antes, de um ponto de vista diferente, significativamente reformulado, no qual a
inserção do observador - isto é, do antropólogo como cidadão de um país
fracionado em diferentes etnias – acaba por ocupar um lugar como profissional
da disciplina na etnia dominante, cujo desconforto ético só é diluído se passar a
atuar – seja na academia, seja fora dela – como intérprete e defensor daquelas
minorias étnicas. (Cardoso de Oliveira, 2000:42)

O trabalho antropológico em Cardoso de Oliveira, com o qual concordo, deve


ser pautado pelo envolvimento:

Neste sentido, o antropólogo deve se comprometer com a luta dos grupos que
reivindicam direitos a terra e à cidadania, como tem sido o caso das
comunidades indígenas e quilombolas no Brasil. Ele deve disponibilizar os
conhecimentos sobre esses grupos e sobre a sociedade que os oprime. Seu
trabalho se caracteriza por uma leitura crítica e independente, centrada na
convivência com o grupo estudado. Neste sentido, os antropólogos têm
contribuído para a redução de preconceitos e estereótipos de ordem racial e
étnica, de gênero, de classe e cultura. (Ibdem)

Ser antropólogo em Manzo é ser percebido para além de um pesquisador,


como um membro da família18 e um “assessor” da Comunidade, alguém que pode atuar
com o grupo em seus caminhos cruzados. Optar por uma pesquisa por um lado afectada e
por outro lado afetivo-posicionado não significa desconhecer certa esquize19, apresentada
muitas das vezes em conflitos entre o pesquisador militante e comprometido com nossos
parceiros do processo etnográfico e nossos compromissos institucionais pautados por
regras, regulamentos e normas que quase nunca condizem com o primeiro compromisso.
Esse descompasso – a qual essa tese exemplifica – é exposto pela própria sociocosmologia
estudada, que acaba por denunciar o seu limite enquanto fazer da e para a ordem.

Por fim, o encontro etnográfico entre pesquisador e pesquisado e a escrita daí


decorrente tratam-se de um diálogo, entretanto, por suas características uma tese tende:

18
Ver-se-á mais a frente à sociocosmologia de ser da “família do Santo”.
19
Refiro-me, por um lado: ao desconforto com a pouca efetividade na prática da atuação de um
antropólogo para além de uma relação de afeição e carinho. E por outro: a inescapabilidade – ainda bem -
de se ser quem se é e suas influências na pesquisa: no caso, um pesquisador preto, pobre, de família
migrante e humilde do sertão do nordeste, filho de mãe “solteira”, da classe trabalhadora subalterna.

16
1- a ser uma atividade um tanto quanto solitária e 2- não esgota o tema apresentado;
longe de exauri-lo tenho plena convicção de seu oposto, o que será apresentado é um
ensaio com incomodas hipérboles, muitas imprecisões e enormes hesitações.

Assim em fins de outubro de 2011, uma série de dúvidas me atormentava,


segundo depreendo de notas tomadas aquela época:

(...) qual deve ser o local da etnografia? Quais questões de fato animarão a
etnografia? Quais são os pressupostos teóricos e metodológicos aprioristicos?
Porque perseguir, a questão proposta no projeto de seleção: “Como os modos
performativos (formas de sociabilidade) de ser, fazer e viver (p. ex o samba, o
soul, a capoeira, o candomblé) se transmuta em novos direitos e suas
titularidades para as comunidades quilombolas.” (anotações de bordo). (...) O
estudo das formas de sociabilidades é o mais adequado, para entender os
demarcadores dos territórios urbanos, principalmente os ocupados por
afrobrasileiros e, apropriados como símbolos por diferentes segmentos sociais,
como proponho no projeto de seleção? São estes temas pertinentes? Pertinentes
para quem? Somente para mim como pesquisador ou para os grupos que irei
pesquisar? Continuarei a estudar este fenômeno novo e pouco debatido, os
quilombos urbanos? Se sim, seguirei as sugestões recebidas e me concentrarei
em um único quilombo e uma única cidade? [o projeto inicial era um estudo
comparativo 02 quilombos urbanos em Belo Horizonte e 02 quilombos urbanos
no RJ] Seguirei a sugestão de dar preferência a Belo Horizonte, minha cidade
pelas facilidades até mesmo econômicas da pesquisa? Mas e a vontade de
pesquisar melhor o Rio, projeto já acalentado há tempos. Enfim uma série de
perguntas e dúvidas. (Anotações de campo)

Manzo era um grupo com que já mantinha contatos, e com o qual já havia
comunicado a intenção de realizar, caso eles permitissem, pesquisas visando à tese de
doutorado. Manzo fazia parte, portanto, da lista inicial de 04 comunidades quilombolas
urbanas apresentadas no projeto de seleção.

(...) me parece ser Manzo um ótimo caso para militância, e, como tenho me
dedicado bastante às questões políticas e às lutas quilombolas, tanto do ponto
de vista “teórico” quanto de atuação para fora da academia. Anseio por uma
pesquisa em um contexto em que a situação pericial ou de ameaças tão radicais
a existência dos grupos quilombolas não seja o centro20. Uma pesquisa que me

20
Refiria-me sem citar no caderno de campo, aos trabalhos realizados nas Comunidades Quilombolas de
Mumbuca no vale do Jequitinhonha mineiro, como membro da equipe responsável pela elaboração do
Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sociocultural, principal peça técnica do
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação RTID da Comunidade de Mumbuca (Vale do Jequitinhonha -

17
permita certo pedantismo acadêmico, e este não parece ser o caso de Manzo, no
qual a posição, comprometida com a luta política, como apoiador, militante e
porque não, um intermediador entre a comunidade e os poderes públicos e
outras instâncias da sociedade civil acaba por ocupar posição central.
(Anotações de campo)

O distanciamento político era algo que não tinha presenciado em pesquisas


anteriores e talvez por isto mesmo, neste momento era o que mais desejava e ao mesmo
tempo hesitava. Após estas reflexões e hesitações pensei em realizar a etnografia em uma
comunidade quilombola rural da Serra do Cipó, em Minas Gerais.

A escolha por este outro grupo se apresenta como a oportunidade inédita de


estudar um grupo em situação não conflituada. Após trabalhar em uma
comunidade atingida por uma REBIO, e em outra comunidade atingida por uma
Pequena Central Hidrelétrica e acompanhar via núcleo de pesquisa, duas outras
comunidades urbanas com ameaças e perdas constantes ao seu território, e via
militância dezenas de outros casos de violência cotidiana, tal opção me parece
ser a maneira de produzir uma pesquisa menos atribulada e com maiores
possibilidades de descobertas na linha do projeto apresentado na seleção para o
doutorado. (Anotações de campo)

Todas estas dúvidas submetia a etnografia ao processo teórico, e não o


contrário como deveria ser, mas àquela altura isso não me parecia tão visível no turbilhão
das dúvidas, ainda bem que fui alertado de modo sempre afetuoso pela professora Emília
(Pietrafesa de Godoi) a este respeito. Em algum texto entregue a Professora Emília neste

MG). Maiores informações NUQ - Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais/UFMG.


2006-2007. Membro da equipe responsável pela elaboração do Relatório Antropológico de Caracterização
Histórica, Econômica e Sociocultural, principal peça técnica do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação RTID da Comunidade de Marques (Vale do Mucuri – MG). Maiores informações: Núcleo de
Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais (NUQ)/UFMG, 2007-2008. Junto a comunidade de
Marques retornei ainda nos períodos de 2009 e entre 2010 e 2012 para vários pequenos campos, na
condição de pesquisador indicado pelo grupo com anuência do Ministério Público Federal/Procuradoria da
República em Minas Gerais para assessorar junto a comunidade a proposta de mitigação e compensação dos
impactos sociais, culturais e étnico-ecológicos que a comunidade sofreu em vista de um empreendimento
energético, no ano de 2010. E posteriormente como assessor da comunidade junto ao Programa de
Educação Sociocultural a que fez jus a comunidade, como resultante do acordo acima mencionado, no ano
de 2011-2012. Maiores informações ver ‘Os Marques do Boqueirão’. MARQUES, C. E.. Ed. Fino Traço. 200 pp,
2012 a; e ‘Saudade do Nosso Lugar: ensaio fotográfico sobre a Comunidade Quilombola de Marques’.
MARQUES, C. E. e SALES, M. M (Organizadores). Ed. Biografa 100 pp, 2012 b; e ainda o Filme: Saudades do
Nosso Lugar (DVD, 60 MIN). Para o debate sobre neutralidade e objetividade no trabalho antropológico em
situação de pericia, Ver Marques 2008, 2009 a.

18
momento, encontra-se: “Carlos cadê a etnografia? Estas dúvidas serão sanadas na
etnografia. Pense, pesquise, faça visitas aos campos então antes de decidir”.

Foi nesse momento, que resolvi então, sondar a possibilidade de ao menos


realizar uma pequena estadia de campo, em uma comunidade quilombola na Serra do
Cipó, para definir-me com alguma precisão de campo. E me deparei, com:

(...) uma comunidade que, por causa de seu famoso Batuque, atrai a atenção
não somente de um número considerável de pesquisadores das áreas das
ciências sociais, mas também de pesquisadores não acadêmicos, imprensa e
Ongs. Por fim, e mais importante ao conversar com colegas e amigos, descobri
que uma amiga, havia decidido realizar a etnografia de sua dissertação com este
mesmo grupo. (Anotações de campo)

Nos entremeios dessas informações, quando a ideia da Serra do Cipó não me


parecia a mais adequada, recebi um e-mail da Makota Cassia, em fins de outubro de 2011,
relatando que o grupo passava por graves dificuldades, pois estavam em vias de serem
despejados. Abaixo, trecho da mensagem que Makota me enviou:

(...) a defesa civil condenou nossas casas e querem que a gente saia o mais
rápido daqui. Só que não querem nos ceder nem o abrigo. Não temos nenhuma
condição de sair por causa das famílias e do terreiro. Vc sabe onde posso
procurar ajuda? Estava lendo sobre o estatuto de igualdade racial e lá tem um
artigo bem claro que diz que toda comunidade tem direito a apoio social e a
moradia de qualidade. (mensagem de e-mail de Cássia para Carlos).

No mesmo dia, um domingo, 30 de outubro de 2011, encaminhei uma


mensagem de e-mail aos colegas do NuQ/UFMG na qual relatava as informações passadas
por Cássia, e a resposta que havia enviado a ela:

“Procurar o Ministério Público Federal, Defensoria Publica Federal e Estadual, a


Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, INCRA-MG, ou seja, a
nossa rede de sempre” [e como estava residindo em Campinas, havia informado
a Cássia que iria] “pedir ao pessoal de BH para entrar em contato”.(mensagem
de e-mail para uma lista de colegas pesquisadores da temática em Minas
Gerais).

Após as trocas de informações entre os vários pesquisadores do NuQ criamos


uma “força tarefa” que elaborou uma carta denúncia sobre a situação e fez uma visita ao
quilombo para repassar as informações que já havíamos obtido por nossas redes de
contatos, bem como para obter novos dados da situação.

19
Após esta movimentação e, diante da gravidade das notícias, que culminaram
com a efetiva retirada compulsória da comunidade de seu território, convenci-me de que
se “o rio corria para o mar”, Manzo que havia sido o principal inspirador do projeto de
seleção ao doutorado, deveria ser lugar não apenas de militância, mas também da
pesquisa etnográfica. As dúvidas anteriores foram substituídas por novas dúvidas:

(...) como realizar um estudo etnográfico de um evento critico, a retirada de uma


comunidade de sua territorialidade? Como etnografar o processo de luta e
resistência da comunidade que já se fazia visível, sem se tornar apenas um
relatório técnico antropológico? Como realizar metodologicamente a etnografia
– entendida aqui no sentido clássico de coabitação – que havia realizado em
estudos anteriores com outras comunidades quilombolas, no caso de uma
comunidade que sofrera deslocamento compulsório? (Anotações de campo)

Dentre outras dúvidas, que ainda hoje me acompanham. Diria a professora


Emília (P. de Godoi), em outro momento, algo como: dúvidas são boas desde que não te
paralisem. Mas a decisão havia sido tomada mesmo que instintivamente, afetiva e
eticamente.

Segui a diante e na pesquisa, que anima essa tese, utilizei-me de diversas


técnicas como: registros etnográficos das práticas cotidianas e extracotidianas; registros
de reuniões, festas e eventos públicos e alguns privados; registro, organização e
participação em reuniões para se debater as diferentes formas de tomada da palavra
política pelos quilomblecistas na luta pela manutenção de seus modos, fazeres, viveres,
saberes e lugares e pelo reconhecimento e delimitação territorial; registro fotográfico e
audiovisual de eventos, cenas cotidianas e das reuniões políticas; registro de áudio de
conversas e/ou reuniões; registro em áudio de entrevistas semidirecionadas contendo
fragmentos de história de vida, da sociocosmológica do grupo, da fundação do grupo e
outras histórias.

Nos casos das conversas ou mesmo das entrevistas, com ou sem o uso de
gravador de áudio, o método consistia em partir de um tema inicial e deixar o interlocutor
fazer o relato livre. Em alguns casos como se verá nas transcrições, colocamos inclusive as
reações corporais, os silêncios e outros modos de se falar com o corpo, quando estes

20
foram percebidos pelo pesquisador. A transcrição das gravações foram feitas de diversas
maneiras, sendo algumas gravações transcritas na sua integralidade, entretanto, via de
regra, optei pela transcrição de partes das gravações de acordo com um índice de temas.

O tempo de aproximadamente 03 anos descontínuos de pesquisa de campo e


as relações com a comunidade que abarcam esses 03 anos, mas o ultrapassa me permitiu
manter com o grupo uma relação cada vez maior de camaradagem. A generosidade com
que a maioria dos Quilomblecistas e principalmente suas lideranças me acolheram na
família de Manzo, se expressa na dadivosa afirmativa de Makota Cássia, que acima de
tudo reconhece o próprio fazer etnográfico “Carlos assim que conseguirmos a titulação e a
recuperação dos danos causados pelos poderes públicos e a reforma, construiremos um
quartinho para você!!!” Simbólica de um afeto que vai além das Palavras, mas que se
consubstância nelas e que me foi demonstrada inúmeras vezes nas situações concretas.

O convívio nesse período de pesquisa ainda que descontínuo e sem


cohabitação21 e com períodos de maiores contatos físicos e outros, em que apesar da
distância física do terreiro, mantive contato via e-mail, facebook, whatsapp, telefone
permitiu-me conviver com Makota Cássia e seus familiares, mas também com Mãe
Efigênia, diversos momentos de suas vidas, incluindo ai momentos de maiores intimidades
familiares. Tudo isso me confirmou que a pesquisa de campo é um processo que só se
realiza na e pela dádiva de nossos amigos e parceiros de pesquisa.

****

21
Nesta pesquisa não houve cohabitação entre pesquisador e parceiros de pesquisa. Em um primeiro
momento, tal opção, ainda que ideal fora impossível na medida, em que os mesmos também estavam
desabitados, como se verá ao longo deste trabalho, e posteriormente, após o retorno “apenas das pessoas”
para valer-me da definição de Makota Cássia, as alterações realizadas pelo poder público no território da
comunidade, tornou tal opção inviável; não obstante, algo que precisaria refletir melhor, o fato de residir
boa parte do tempo de pesquisa de campo, na mesma cidade que o grupo e a utilização de diversos meios
de comunicação e redes sociais minoraram algumas das ausências, ainda que considere a cohabitação um
modo privilegiado de partilha de experiência.

21
Passo a apresentar a estrutura de tese, que encontra-se composta por uma
Introdução, duas partes, oito capítulos e considerações finais, além do registro
fotográfico. A tese busca apresentar aspectos da vida vivida e vivenciada dos
quilomblecistas de Manzo. Para tanto, nessa Introdução busquei apresentar o percurso
etnográfico, teórico e político que norteou não somente a pesquisa e sua escrita, mas o
ethos de se ter afecção e afeição pela pesquisa de campo; o meio pelo qual a pesquisa
etnográfica coloca desafios à teoria da antropologia; e o lugar de um pesquisador
posicionado, e que, portanto, constrói e pertence e é construído e está pertencido tais
quais os sujeitos da pesquisa, a classificações internas e externas de gênero, classe social,
status, origem, raça, modo de ver e estar no mundo, dentre outras possíveis.

Na parte 1, denominada “O Candomblé: A Senzala de Manzo Ngunzo Kaiango”


apresento uma etnografia da comunidade e da territorialidade de Manzo.

O primeiro capítulo, a partir do que chamo de memórias cartográficas de Mãe


Efigênia, faço um mergulho na cidade “nua e densa” e nos espaços urbanos. Desse
mergulho emergirá um grafitti “de dentro e de perto” afetivo e afectado da vivência da
cidade e de suas autoras, atrizes, autores e atores, mas também um debate sobre o
direito de pertencimento e construção da cidade e da cidadania, do caráter elitista e
segregacionista que é marca de fundação da cidade de Belo Horizonte e que se preserva
nos dias atuais. Menos do que um debate no campo da antropologia da e na cidade, e ao
invés de filiar-me a um dos lados dessa contenda, o que a luz dos dados etnográficos seria
algo improdutivo, proponho uma antropologia cruzada que transverse a vida vivida e
vivenciada da e na cidade.

O segundo capítulo busca descrever com base nos dados etnográficos e


principalmente a partir das palavras de Mãe Efigênia e Makota Cássia, o surgimento da
Senzala de Pai Benedito, seus primeiros passos, primeiras estórias, sua fundação que,
como se verá, repercute ainda hoje na luta do grupo pelo seu habitar. Apresenta-se
também nesse capítulo a relação entre os membros de Manzo e a entidade Preto Velho

22
Pai Benedito, que juntamente com a cosmovisão candomblecista têm importância central
na sociocosmológica do grupo. A partir da compreensão dos saberes, viveres, fazeres,
modos de ser; bem como os tabus, preceitos, interdições, quizilas, obrigações que
conformam a vida vivida e vivenciada do povo de santo apresento o processo de formação
e consolidação do Terreiro Manzo Ngunzo Kaiango.

Ainda nesse capítulo, animado pela sociocosmológica Angola de Manzo,


recupero o debate, no campo da antropologia das religiões de matriz afro-brasileiras,
referente ao processo de formação e transformações e pertencimentos a Umbanda e ao
Candomblé. Para tanto, valho-me principalmente de uma leitura de dentro – ou seja,
privilegio mais os dados etnográficos, do que de uma teoria sobre o candomblé – e
proponho a partir daí uma crítica, comum a todo um novo campo de estudos sobre as
religiões de matriz afro-brasileira aos de estudos clássicos do candomblé, que por se
afiançar em um modo - colonializado e colonialista de pensamento – não desenvolveu “a
sério” as potencialidades de uma ontologia do santo que conjuga simetricamente
metafísica e filosofia social e natural, para valer-me de consagrada afirmação de Goldman
(2005).

O terceiro capítulo (en) caminha as sugestões feitas no capítulo anterior e a


partir de uma etnografia do “despertamento do santo” busco compreender a
multiplicidade do Ngunzo como pertencimento ao “santo”. A partir dos dados
etnográficos proponho que pertencer a uma Nação e, principalmente, a uma casa de
candomblé é despertar também outro modo de pertencer e estar pertencido no mundo,
outro modo de habitar, ou seja, viver e vivenciar a vida. Aqui sugiro a possibilidade de uma
ontologia Manzo, a saber: “o Ngunzo como força – energia e poder – necessita sempre
estar em movimento. O Ngunzo é também Pambu Njila: caminho e a encruzilhada,
portanto, multiplicidades em trocas constantes.”

O quarto capítulo apresenta a etnografia do surgimento da Comunidade de


Manzo, que só é possível a partir da apresentação da ontologia do Ngunzo, que: 1-

23
conforma o Abantu, ou seja, o conjunto de pessoas, cosmo-lógicas e espaço físico que
forma a comunidade do Santo. A partir da teoria nativa de comunidade apresento os
conceitos êmicos de pertencimentos ao Quilombo de Manzo. Um pertencimento que se
baseia na vida vivida e vivenciada e; 2- organiza a partir de suas categorias as formas de
pertencimento e incorporação na comunidade. Nesse processo apresento a definição
êmica de comunidade e as formas des-re-territorializadas de Manzo. Em um processo que
denomino de transversalidade da desterritorialização – reterritorialização em oposição a
um modelo de território-estrutura presentes no modelo canônico da forma-Estado e da
ordem burocrática do modelo Estado-Nação.

A partir dos termos êmicos sugiro que o território, no caso de Manzo, conjuga
um caráter de imanência e não apenas transcendência, como se tenderia a considerar na
literatura a respeito dos debates sobre território, territorialidades e territorializações, e,
por fim, a partir da sociocosmológica de Manzo, a propositura da tomada da palavra
política como uma expressão cosmopolítica.

Na parte 2 da tese denominada “A Senzala é uma comunidade quilombola”,


apresento o contexto e os processos das cosmopolíticas da Comunidade para manter seu
Manzo, seu Abantu e seu Abassá, que eles denominam tomada da palavra política.

No quinto capítulo, a partir da sociocosmológica de Manzo e de suas


construções em termos de cosmopolíticas, sugiro que o processo de tornar-se quilombola
é a tomada da palavra-política que nega, ao mesmo tempo, tanto a substancialização
anti-histórica que eliminaria as forças humanas desta categoria, quanto à
substancialização da história em seu sentido teleológico e positivista que aprisiona a
riqueza processual da vida em uma categoria congelada e essencializada. Diferentemente
da teoria mais usualmente usada na questão quilombola, trata-se no caso de Manzo,
menos de um processo identitário nos termos de um grupo étnico – ainda que eles sejam
um grupo étnico – e, mais de um processo de pertencimentos-devires, territórios-devires.
Tornar-se quilombola é imanência e contingência. Tornar-se quilombola incorpora uma

24
multiplicidade de conotações: suas insígnias são mistificadas em categorias
segmentarizantes, como a de raça, pertencimento étnico, classe social, status, dentre
outras, mas são acima de tudo transversalizações de Ngunzo.

O sexto capítulo traz uma etnografia do processo de tomada da palavra


política no contexto de lutas de Manzo com a forma-Estado. Essa etnografia – retomada
no capítulo 8 de forma ampliada, e nesse caso dirigida a compreensão da relação com o
Estado (e não com sua forma-estado) - da relação entre a comunidade e o poder público,
principalmente o poder público municipal e suas constantes violações dos modos, viveres
e saberes de Manzo, em nome de um processo normatizador externo e violento, nos
termos locais: preconceituosos e racistas que não reconhece a cosmopolítica de Manzo.
Situo o processo nos termos nativos, ou seja, do ponto de vista da sociocosmológica local,
e do embate entre essa e a sociocosmológica do Estado. Para exemplificar a tomada da
palavra política e de sua incompreensão pelo Estado faço uma análise do projeto
Kizomba, realizado pela Comunidade de Manzo.

O sétimo capítulo, privilegia a descrição de um drama ritual: duas festas em


homenagem a Pai Benedito em sua Senzala. O Toque, como se denominam as festas para
os santos, por suas características de performative act é um momento importante, para a
compreensão da tomada da palavra política na prática.

O oitavo capítulo apresenta a descrição de um cenário denso e de jogos sérios


(Ortner, 2007a; 2007b), em que busco compreender o campo de agência política e suas
variadas reações à desocupação de Manzo. Diferentes opiniões sobre esse episódio e as
versões de eventos relacionados são descritos com a intenção de apresentar o quadro de
posicionamentos a eles associados.

A interferência do poder público, transversaliza a tese, no entanto, será


apresentada de maneira mais pormenorizada somente no último capítulo. Essa opção
ainda que possa levar desconforto ao leitor em termos narrativos, pareceu-me necessária,
para melhor compreensão da tese apresentada: como se configurou o quilombo urbano

25
de Manzo a partir de sua sociocosmológica religiosa. É a partir da sociocosmológica de
Manzo, do seu processo cosmopolítico de tomada da palavra, é que se torna possível
compreender a relação quilombo-religião e a relação entre Manzo e os poderes públicos.
Essa escolha coaduna, por fim, com a proposta de levar a sério, as palavras que me foram
ditas22. As sociocosmologias atualizam-se em experiências e expressões que são
conformadoras do território de Manzo.

22
Privilegiei as palavras proferidas por Mãe Efigênia e Makota Cássia, que possuem enquanto lideranças
religiosas da Comunidade, a palavra autorizada e carregada de Ngunzo!!!

26
Parte 1
O Candomblé: A Senzala de Manzo Ngunzo Kaiango

27
28
CAPÍTULO 1 - Mãe Efigênia: a cidade e o Ngunzo de Manzo
Abaçá é de Angolá
O Kibuque lê lê
Abaçá é de Angolá

O Kibuque lá lá!
A Minha Bandeira foi Deus quem me deu
Quem não me conhece
Kitembo Diabanganga sou eu

Tata Kitembo me deu uma bandeira que é tão Branca quanto de Lembá.
Quando alguém olhar para elaááá, vai ver que a Casa é de Angolaááá.
Ai, ai minha Angola!!!
Ai, ai o meu Angolaááá!!!
Cantigas em homenagem a Nação Angola. Em geral feita após os rituais de “saudação a Pambu Njila” e de “se despachar
o Exu”23.

Eu tenho muito orgulho de ter sido escolhida, eu não escolhi, fui escolhida por
esta religião. Tenho mais orgulho ainda de saber que sou filho de minha Mãe
Matamba com meu Pai Obaluaê e de ter uma mente voltada para a caridade.
(...) ter um cantinho para esconder as coisas, meus filhos, minha família de
santo, e as pessoas que me procuram. Isto é que é ser do Santo. Ser do Santo
não é vestir uma roupa maravilhosa, de renda, ter fazenda toda equipada, ter
fortunas e não poder doar da sua riqueza. A riqueza, com que você nasceu,
chama-se Ngunzo, o Axé, esta é a riqueza e eu tenho certeza que sou rica. (Mãe
Efigênia, julho de2012).

1.1 De perto e de dentro, memórias cartográficas de Mãe Efigênia sobre a cidade


de Belo Horizonte

Efigênia Maria da Conceição, mais conhecida como Mametu Muiandê, Mãe


Efigênia, ou simplesmente Mãe24, nasceu em 02 de janeiro de 1946, na cidade mineira de

23
Os capítulos serão iniciados por cantigas ou pontos referentes aos Inquisses do Candomblé de Nação
Angola. Segui-se aqui a sequência do Xirê. Xirê é o termo utilizado para denominar a sequência na qual os
Inquisses são reverenciados ou invocados durante os cultos a eles destinados.
24
É comum ouvirmos em Manzo a locução “Mãe” para se dirigir a Efigênia ou ainda quando se referindo a
Mametu em sua ausência: “A Mãe não está” Ou então: “somente a Mãe pode lhe dizer”. Ela própria em

29
Ouro Preto e é uma sacerdotisa do Candomblé e da Umbanda, com aproximadamente
cinquenta (50) anos de santo, e cerca de trinta (30) anos de iniciação no candomblé. Mãe
Efigênia é a matriarca e liderança máxima da Comunidade fundada por ela há cerca de
quarenta (40) anos.

Segundo Mãe Efigênia, “vim de uma família humilde, meu pai, meus avós, sou
bisneta de escravo: minha bisavó chamava Babil, era escrava, não tinha registro nem
nada.” Sua infância foi vivida, em grande parte, no Morro da Queimada25, em Ouro Preto:

eu morava para lá da Escola de Música, no Morro da Queimada, em um lugar


chamado Engenho. Minha bisavó e minha avó moravam no Engenho. Casinha de
pau-a-pique, uma casinha de barro mesmo. Minha mãe que fez, porque a gente
era muito pobre. Casinha, fogãozinho de lenha, água apanhada na bica, os
potinho de água nos canto. (Mãe Efigênia, julho de 2012).

Entretanto, com o desmoronamento desta casa, a família passou a residir em


vários lugares: “passamos a morar aqui, ali, mora aqui, mora ali e ai viemos para Belo

várias ocasiões refere-se a si mesma como “a Mãe”. Por exemplo, no diálogo: “Carlos: - olá Mãe Efigênia,
tudo bem com a senhora? Mãe Efigênia: - Oi Carlos, a Mãe esta bem”.
25
Segundo Oliveira “O Morro da Queimada abriga hoje um sítio arqueológico de inestimável valor, sendo um
testemunho material das primeiras tipologias arquitetônicas da cidade, por guardar preciosos registros da
exploração de ouro no início do século XVIII e vestígios remanescentes de um dos mais dramáticos momentos
da história do Brasil-Colônia.” Segundo o mesmo autor, a origem da toponímia atual do morro se deve à
insurreição liderada por Felipe dos Santos, morador daquela localidade. Para Oliveira, “a sedição de Vila Rica
teve início em 25 de junho de 1720, em oposição aos aumentos dos impostos pela Coroa Portuguesa, por
meio da proibição da circulação de ouro em pó e a implantação das casas de fundição na então capitania de
São Paulo e de Minas Gerais. O levante durou em torno de dezoito dias. Em 16 de julho, o Conde de Assumar
entrou em Vila Rica por volta das onze horas da manhã, à frente de mil e quinhentos homens. O morro do
Ouro Podre, onde residiam quase todos os conjurados, foi incendiado e ficou sendo chamado de Morro da
Queimada. A população local transferiu-se para os outros arraiais próximos.”
(http://morrodaqueimada.fiocruz.br/pdf/6_O%20Parque%20Arqueologico%20do%20Morro%20da%20Quei
mada.pdf) Após este epsódio o morro foi ocupado principalmente por negros. A este respeito, Lima, Vieira e
Lopes, em seu texto MORRO DA QUEIMADA: SÉCULO XIII
(http://morrodaqueimada.fiocruz.br/pdf/Morro%20da%20Queimada%20seculo%20XVIII.pdf ). Registram
uma ata da câmara municipal de Ouro Preto, pela qual se sabe que:
“Segundo as atas da Câmara produzidas entre 1716 e 1721, os maiores conflitos nessa zona eram: 1) a
instalação de vendas sem licença; 2) o comércio ambulante de negros e negras de tabuleiros nas lavras; 3) o
acolhimento de escravos fugitivos pelos moradores; 4) a comercialização de comida, bebida e prostitutas
para os escravos nas vendas, onde gastavam os rendimentos dos jornais devidos aos seus proprietários.”
(pp.16)

30
Horizonte”. Apesar de ser de uma família humilde financeiramente, Mãe Efigênia faz
questão de dizer com orgulho “sou neta do Sr. José Pereira que fundou o bloco Zé Pereira
dos Lacaios26 de Ouro Preto.”

Segundo Mãe Efigênia, ela nasceu e cresceu em um ambiente familiar


bastante agradável, apesar dos apertos financeiros serem uma constante. Sua mãe, figura
importante em sua formação, era bastante católica e trabalhava em atividades domésticas
em sua própria casa e na casa de terceiros. Segundo Mãe Efigênia, seus familiares
prestavam serviços domésticos.

Em suas recordações a mãe sempre foi uma figura bastante religiosa: “minha
mãe carnal era muito católica”. Efigênia lembra que, em sua infância, apesar de gozar da
liberdade de brincar na rua “fui criada em um colégio de freiras em Ouro Preto, Asilo Santo
Antônio (...) eu vivia muito na Igreja”. Nesta época, a principal atividade de Efigênia era
acompanhar a catequista, pois pertencia ao Apostolado do Sagrado Coração de Maria.

26
Segundo o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA a diversão
carnavalesca conhecida como Zé Pereira tem origem portuguesa. Os Zés-Pereiras são característicos das
festas e romarias do norte de Portugal, onde desfilam pelas ruas acompanhados por instrumentos musicais
como caixas, pífaros e bumbos. O bloco Zé Pereira dos Lacaios, de Ouro Preto, foi fundado por um
português chamado José Nogueira Paredes e tem sua origem no Rio de Janeiro, quando, em 1846, este
português resolveu desfilar pelas ruas do centro da cidade do Rio, no primeiro dia de Carnaval. Com o passar
do tempo, o bloco atraiu uma turma de foliões e músicos, responsáveis pela abertura da festa. Em 1867,
José Nogueira Paredes mudou-se para a cidade de Ouro Preto, então capital do Estado de Minas Gerais,
para trabalhar no Palácio do Governo, criando na cidade, o Bloco Zé Pereira Clube dos Lacaios, organizado
por funcionários do Palácio. O nome lacaios referia-se aos puxas-sacos e seus fraques e cartolas. O uso de
fraques, cartolas e lanternas, torna-se marca registrada do bloco, bem como os bonecos gigantes, Zé
Pereira, Catitão e Baiana. Os “catitões” representam personagens como Tiradentes, Jair Boêmio e Sinhá
Olímpia. Outra tradição do bloco é, dos “carias”, pequenos diabos que vão tirando faíscas do calçamento.
Apesar desta versão, o IEPHA reconhece que existe uma divergência na literatura, pois vários estudiosos
sustentam que o termo Zé Pereira era utilizado para qualquer agitação carnavalesca, e o uso do termo teria
sido originário da apresentação da peça francesa Les Pompiers de Nanterre que, em sua versão nacional teve
como música título, “Viva o Zé Pereira”: “E viva o Zé Pereira/ Pois a ninguém faz mal/ E viva a bebedeira/
Nos dias de carnaval”. O Zé Pereira dos Lacaios de Ouro Preto tem cerca de 140 anos de existência.
(http://www.iepha.mg.gov.br/banco-de-noticias/1039-iephamg-apresenta-ze-pereira-tradicao-antiga-no-
carnaval) consultado em 25 de janeiro de 2013.

31
Aos nove anos de idade, Mãe Efigênia, acompanhando a sua mãe, muda-se
para Belo Horizonte. A mudança se deveu à busca por um tratamento mais adequado para
a avó que havia se queimado gravemente. E a escolha por Belo Horizonte se deveu ao
padrasto de Mãe Efigênia ter um filho que era “encarregado da entrega do Jornal Estado
de Minas”, residindo na cidade. Ao chegar a Belo Horizonte, a família passou a residir na
mesma região, mas em local diferente, onde se localiza hoje a Comunidade de Manzo. O
fato de prestar serviços a militares na antiga capital do estado pode ser um indício da
escolha por residir, ao se chegar à cidade de Belo Horizonte, na região do antigo Bairro do
Quartel, hoje Bairro Santa Efigênia. Outro indício poderia ser o fato da sede do referido
jornal ficar também nesta mesma região da cidade.

O começo na cidade foi bastante difícil:

(...) nós não tínhamos colchão, dormíamos em cima do jornal, todo mundo.
Levantava de manhã, todo mundo, com as roupinhas marcadas de letra. Minha
avó paralítica numa cama, meu padrasto na outra e minha mãe trabalhando e
eu com nove anos de idade, fui trabalhar em casa de família, na Rua Cláudio
Manuel, no Bairro dos Funcionários, numa pensão. Estudava no núcleo Afonso
Penna27, na Avenida João Pinheiro, mas estudava à noite, porque de dia eu tinha
que trabalhar pra ajudar a família. (Mãe Efigênia, julho de 2012).

27
O Grupo Afonso Pena, somado a outras escolas públicas da zona central e sul da cidade, como os Grupos
Bueno Brandão, Barão do Rio Branco, Instituto de Educação, Colégio Estadual Central, dentre outros,
guardam ainda hoje, no imaginário dos moradores de Belo Horizonte, a memória de terem sido centros de
excelência educacional, rivalizando em qualidade até os anos 70 do século passado, com o sistema privado
de ensino, notadamente os de origem religiosa. Ainda em meados dos anos 90, consistia em certo estatus
estudar nestes espaços, principalmente para as classes economicamente subalternas, e motivo de conquista
e possibilidade de ascensão educacional e social. Eu mesmo, sou ex-aluno dos “vestutos” E.E.Bueno Brandão
e Colégio Estadual Central, colégio legendário na cidade, por ter formado, até os anos 70 do século passado
parte da intelectualidade mineira e principalmente parte de seus lideres políticos, sou testemunha do que
significava, apesar da decadência, estudar nestes espaços.
Segundo o Centro de Referência Virtual do Professor da Secretária Estadual de Educação de Minas Gerais, a
“Escola Estadual Afonso Pena é uma das escolas pioneiras de Belo Horizonte. Foi criada no governo do Dr.
João Pinheiro, recebendo o nome de Grupo Escolar “Afonso Pena”, no ano de 1907 e legitimada pelo Decreto
nº 2006 de 13/07/1907. Foi escolhido para Patrono do estabelecimento o Conselheiro Dr. Afonso Pena,
proprietário de uma das casas onde até hoje funciona a escola.” Em seu principio a escola, foi escolhida
para ser um referencial para a classe rica de Belo Horizonte. Segundo o Centro de Referencia “devido à
qualidade de ensino e a sua localização central. Recebeu assim filhos de famílias tradicionais que se
tornaram ilustres como: Dr. Aluisio Clemente Lima e Dr. Gilberto Clemente Faria, diretores do Banco da

32
Devido às constantes dificuldades financeiras, Mãe Efigênia acaba se
empregando na casa de outra família, na Rua Estevão Pinto28. Tratava-se de uma família
baiana que, em seguida, retornou ao seu estado natal, levando consigo Mãe Efigênia, que
passa então residir no interior baiano. Ainda como empregada doméstica, ela retorna a
Belo Horizonte, acompanhando outra família que residia em Jequié-BA.

Esta família, em Belo Horizonte, passa a residir em Santa Efigênia, em um local


relativamente perto de onde se localiza o Quilombo de Manzo, na hoje Avenida Mem de
Sá, “mas naquela época era um mangueiral, muita mangueira, era um córrego que a
gente lavava roupa o dia inteiro, era a fazenda dos Barone.” Segundo Mãe Efigênia, esta
família era aparentada com os Barone, por isto escolheu esta região para residir.

Em suas lembranças, a hoje Av. Mem de Sá “era tudo córrego, da Niquelina [se
refere à hoje Rua Niquelina, importante via interna de tráfego do bairro Santa Efigênia]

Lavoura(hoje ABN-AMRO BANK), Dr. José Sete Câmara, Dr. Elos Melo Viana, Dr. Aureliano Pires de
Albuquerque, Dr. Abgard Renaut, Pedro de Castro Silvio Barbosa, Dr. Luis Adelmo Lodi, Oto Barcelos Corrêa,
Dr. Abílio Machado, Fernando Sabino, Guimarães Rosa, dentre outros.” De fato, para os Belohorizontinos,
tratam-se de figuras de destaque no “mundo empresarial, político, do direito e da literatura”, alguns
inclusive homenageados em equipamentos urbanos. O prédio onde funciona a escola foi tombado pelo
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico de Minas Gerais (IEPHA), em 02/12/1983, e é constituído de duas
casas residenciais que sofreram algumas adaptações. Àlguns metros do Grupo Afonso Pena, em outra
quadra, funciona a famosa Faculdade de Direito, que teve como fundador e primeiro diretor o futuro
Presidente da República Afonso Penna. Em razão disto, a Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais, localizada na hoje Praça Afonso Arinos, antiga Praça da República, na região central da cidade,
é denominada de “a vestuta Casa de Afonso Penna”.
Por fim não deixa de ser notável que uma jovem negra, empregada doméstica, em fins dos anos 50 e
começo dos 60 tenha frequentado, ainda que no período noturno – portanto já em um programa especial,
este grupo escolar. E mais significante, é o fato desta menina não ter podido continuar seus estudos, pois
sua mãe “entendia que meninas negras não precisavam estudar e sim trabalhar”.
Para informações em itálicos consultar
(http://crv.educacao.mg.gov.br/sistema_crv/index.aspx?id_projeto=27&ID_OBJETO=119315&tipo=ob&cp=0
00000&cb=0) consultado em fevereiro de 2013.
28
Percebe-se, nas falas de Mãe Efigênia, a remissão ao que denominarei aqui de uma cartografia moral da
cidade. Uma cartografia que é significativa não somente de suas lembranças e memórias, mas das divisões
socioeconômicas de estatus, origem e geográficas da cidade. Através de suas memórias, é possível,
principalmente para um nativo da cidade de Belo Horizonte, criado na região centro-sul reconhecer boa
parte dos percursos, trajetos, manchas e lugares citados por Mãe Efigênia.

33
até o final da Mem de Sá, não tinha casa, não tinha nada.” Sua mãe biológica possuía uma
moradia precária nesta mesma região: “a mãe tinha um barraquinho, ficamos um tempo”.
No entanto uma enchente levou a família a ter que se mudar novamente: “ai teve uma
enchente. O Cafezal [se refere à conhecida favela, hoje Vila do Cafezal29 em Belo
Horizonte] ali não tinha nada, não tinha casa, ali a gente tirava lenha para cozinhar.
Chama Cafezal porque tinha a Fazenda do Cafezal e já alguns barracos. Aí fomos morar na
Vila Paraíso, eu cresci ali na Vila Paraíso.”

Os relatos de Mãe Efigênia, compreendendo sua infância em Ouro Preto e


adolescência e juventude na cidade de Belo Horizonte, antiga e a nova capital do estado,
os processos de lutas da comunidade de Manzo que ainda se verá, e a minha própria
vivência, sensações e experiências permitem perceber, que as trajetórias na cidade, antes
de serem relatos de histórias em sentido teleológico e individual trata-se de um caminho
cruzado, de todo um segmento populacional e sua luta por habitar a cidade.

A singularidade de Manzo permite perceber como o princípio do direito à


cidadania, aqui de modo particular o direito ao pertencimento e à construção da cidade,
vão além das normatizações predefinidas por um poder estatal, via de regra, portador de

29
A hoje Vila Santana do Cafezal, mais conhecida como Favela do Cafezal, localiza-se na regional centro-sul
da cidade, entre os bairros São Lucas e Serra, e se avizinha dos Bairros Paraíso e Santa Efigênia na regional
leste da cidade. Ocupa uma área montanhosa. E como explicitado por Efigênia era uma antiga Fazenda. É
comum a estas regionais - termo administrativo-legal de organização urbana em Belo Horizonte - da cidade,
compreendida pelas margens sul e leste do município, a característica montanhosa por fazerem parte da
Serra do Curral. A Serra do Curral, em 1997, por ocasião das comemorações do centenário da cidade de Belo
Horizonte, foi eleita por seus cidadãos como símbolo da cidade, e Tombada pela Lei Orgânica do Município e
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Além de sua importância paisagística e
como área de lazer, na parte compreendida pelo Parque Municipal das Mangabeiras, os órgãos técnicos
consideram-na marco geográfico mais representativo da região metropolitana de Belo Horizonte. E de
importância histórica, pois sua imponência serviu no período de colonização como referência de localização
para os viajantes.
A área de vizinhança das regionais centro-sul e leste é marcada pela presença de áreas verdes, nascentes e
elevações, muitas delas, ocupadas pelas hoje denominadas vilas, mas ainda popularmente chamadas
Favelas. O território de Manzo, segundo uma pesquisa cartorial, feita no ano de 2013 pela Secretária de
Planejamento do Governo Estadual, como desdobramento da luta política da comunidade, pertence a um
lote colonial ainda não desmembrado da antia Fazenda das Olarias, de propriedade do executivo estadual.

34
um discurso violador da diversidade, da vida vivida e vivenciada e normatizador de
práticas que violam os modos, saberes, fazeres e viveres dos cidadãos.

Este comportamento ultrapassa o caso, aqui descrito de Manzo, e transborda


para toda a cidade. No caso, especifico de Belo Horizonte uma série de medidas tomadas
pelo poder público em nome de um discurso que se vale da tecnicidade, da ordem e de
um modelo de bem estar tem funcionado na prática como um processo de negação a
diferença. Em nome de uma política dita participativa, democrática e cidadã o que se vê
na prática da cidade nua e densa (Agier, 2011) é um modelo de (re)ordenação do espaço
público e privado que, aprofundando a forma-dominação do poder financeiro e das elites
fundiárias urbanas e seus entrepostos no poder público, reforçam o discurso normativo do
Estado.
A cidade regida como empresa, passa da metáfora e da publicidade, para a
tragédia cotidiana da cidade violadora dos direitos de mais de 200 mil de seus cocidadãos,
segundo dados dos movimentos sociais organizados. Segundo, o IPEA
(http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20656,
consultado em 28 de agosto de 2014), a RMBH é a segunda com maior crescimento de
déficit habitacional, entre 2007-2012, o déficit habitacional na RMBH cresceu 10%.
Segundo este Instituto, a RMBH vai à contramão dos dados nacionais onde houve redução
do déficit habitacional. A Fundação João Pinheiro, do governo estadual, em 2007 a Região
Metropolitana de Belo Horizonte - RMBH detinha um déficit de 171 mil moradias.
Em novembro de 2013, o Jornal Correio da Cidadania publicou um artigo
assinado pelo professor e frei Gilvander Moreira, assessor da Comissão Pastoral da Terra
de Minas Gerais e da Pastoral dos Sem Casa. Segundo o frei que além de militante da
causa dos sem teto e sem terra é doutorando em sociologia pela UFMG:

A especulação imobiliária está crescendo, com ela, o déficit habitacional e,


consequentemente, as ocupações urbanas. (...) Somente na região
metropolitana de Belo Horizonte, MG, já são mais de 25 mil famílias em
ocupações urbanas, umas planejadas e outras “espontâneas”. Direitos
fundamentais, como o de morar com dignidade, estão sendo violados. Somente
em quatro ocupações estão cerca de 12 mil famílias: 4 mil famílias na Ocupação

35
William Rosa, em Contagem, MG; 4.500 famílias na Ocupação Vitória; 2 mil
famílias na Ocupação Esperança; e 1.500 famílias na Ocupação Rosa Leão. Essas
três na Região do Isidoro/Granja Werneck, em Belo Horizonte, com 8 mil
famílias. (...)Até o presente momento, somente foram construídas em Belo
Horizonte 1.427 unidades habitacionais pelo Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV) para famílias de 0 a 3 salários mínimos, em que pese mais de 4 anos
de existência de referido programa. No 1º dia de cadastro para o PMCMV, há
quatro anos, 199 mil famílias se inscreveram. A Fundação João Pinheiro atestava
um déficit habitacional de 63 mil casas, em 2005. Oito anos após, estima-se um
déficit habitacional na capital mineira acima de 150 mil casas. Não há programa
de construção de moradias para população carente em Belo Horizonte diversa
do PMCMV. (...) O Ministério Público Federal informou que, de 7.957 remoções
realizadas pelo programa Vila Viva em Belo Horizonte, somente 3.950 remoções
importaram em reassentamento – sem titulação – em unidade habitacional
construída por esse programa.”
(http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=ar
ticle&id=9055:social111113&catid=71:social&Itemid=180 consultado em 28 de
agosto de 2014).

Exemplos desta violência, para a qual os atingidos sentem inclusive


dificuldades de verbalizar, são programas governamentais, como o Vila Viva –
supostamente de urbanização de vilas e favelas, que em nome de um bem estar definido
a priori por técnicos e burocratas em seus gabinetes, acabam por violar os modos,
saberes, viveres, fazeres e as vontades e desejos das populações alvo do programa. Manzo
se coaduna a este processo maior de negação da diferença em nome de um discurso
ordenador que se transveste de técnico e que acaba por criar um processo de
gentrificação da cidade que se vê como a cidade-negócio e não a cidade para os
cidadãos30.

A cidade para Agier (2011) são os acontecimentos e situações. Ela é formada


pelos “citadinos que ai habitam, trabalham, passeiam, gostam de certos cantos, praças,

30
Para maiores detalhes sugiro a leitura dos relatórios temáticos do Projeto Cidade e Alteridade.
Principalmente o Relatório 04: “REASSENTAMENTOS-URBANOS”
http://cimos.blog.br/wpcontent/uploads/2013/08/RELAT%C3%93RIO4_REASSENTAMENTOS-URBANOS_13-
3_cf.pdf

36
cruzamentos” (2011:173), a cidade se faz e é refeita constantemente pela atividade
humana, ela é assim ao mesmo tempo nua e densa.

A cidade nua e densa é o que se busca apresentar a seguir. Não tenho a


intenção de fazer qualquer inventário sobre a cidade, tal pressuposto não é apenas
irrealizável é, em si mesmo, irrelevante do ponto de vista da etnografia que me propus a
fazer. Ao invés de um realismo ingênuo prefiro descrever a cidade como a vejo, a partir de
Manzo. A cidade dos lugares, das lembranças, das presenças, das ausências, das alegrias e
das dores, dos pedaços, dos trajetos. De dentro e de perto, a minha cidade - que me
encanta nos seus desencantos e re-encanta em seus diversos cantos - que cria e (des)-
recria as relações sociais com suas continuidades e descontinuidades. A cidade, como o
lugar por excelência, da política.

1.2 Belo Horizonte pela janela

Vista da janela do Terreiro de Manzo, no alto da Rua São Tiago, a cidade


descortina-se como um emaranhado de ruas e praças, casas e puxados incrustados nos
morros. Com suas casas, becos, ruelas, times de futebol, antenas e mais antenas de TV,
suas moças e rapazes pelo passeio conversando, flertando, de vez em quando apertando
um fino31, os transeutes, a rapaziada da conversa fiada, o bêbado, o comerciante, as
senhoras em papos animados nos portões ou pelas ruelas, o carro da pamonha, as
intermináveis motos, dentre tantas paisagens. Deste lado, o morro, a favela, a Vila, a
cidade chamada de informal pelos burocratas municipais, as futuras pretensas zonas
especiais de interesse social - ZEIS - solução urbana para os burocratas democratas e bem
intencionados - e do outro, lá embaixo aos seus pés, a cidade que estes mesmos

31
Apertar um fino é uma gíria que designa um cigarro de cannabis preparado (ou bolado), em papel que
pode ser de seda, folhas orgânicas de algumas plantas ou outro invólucro comburente.

37
burocratas chamam de formal, a cidade que é, em si mesma, a maior de todas as ZEIS para
os defensores dos (re) ordenamentos com suas praças, parques, bulevares, ruas calçadas,
prédios altos e luxuosos, com suas câmeras, porteiros negros e patrões brancos e suas
muitas proibições... A cidade formal em suas diversas gentes, que não comporta vazios em
sua cartografia oficial, mas que esvazia-invisibiliza e destrói a outra cidade informal, seus
modos, suas diver(sas)-gentes, organizações, saberes, viveres e sociabilidades.

Dualidade formal-informal é mais um dos modos como o discurso da ordem e


da tecnicidade achata a realidade urbana. Tal conceito opositivo toma o regular(izado)
como sinônimo de formalidade e a forma vivida e vivenciada pelos outros da citanidade
como o desordenado e o informal. A dicotomia entre os termos formal e informal não
indica como quer este discurso ordenador uma visão simétrica bipartite, dispostas de
maneira cartesiana – o que, em si mesmo, já seria um tipo de violência – mas ao contrário
como ilustra o caso de Manzo, constituem os termos e as ações de um regime
segregacionista de cidade. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: informal,
adj. de dois gêneros, significa: “o que não aparece ou se recusa a aparecer sob uma forma
definida”. Assim a cidade informal o é, na exata medida de seu devir-minoria, ou seja, a
potência de não ser totalmente codificável, desregulamentando o que se pretendia impor
a força, que transversaliza e cruza desmistificando o senso comum do que é ser e ter
carências, dentre outras operações desestabilizadoras da ordem. A realidade da cidade
vivida e vivenciada são as múltiplas potências organizativas das des-re-territorializações e
das formalidades-informalidades-desformalidades-reformalidades...

A cidade formal insiste em separar, de um lado, a cidade, outrora chamada de


Cidade Jardim, a cidade planejada, a cidade-capital, a cidade símbolo da República
nascente nos fins do século XIX. E, de outro a cornubação de favelas da zona centro-sul e
leste. Da janela de Manzo, o que se vê é a cidade cruzada com suas poucas áreas ainda
verdes, as grandes copas de árvores que se destacam aqui e acolá, os pedaços formais e
os informais que se transversalizam e se entrecortam, fazem caminhos cruzados. Ao fundo
a região central e para além desta, na linha poluída do Horizonte nem tão Belo, uma

38
mancha de cidade, que vista da janela é uma massa imponente e bela em sua feiura
cinzenta. Ao mesmo tempo aconchegante e assustadora. My homeland...

A cidade da infância ensolarada no entorno do bairro do Carmo e dos rôles


adolescentes pela Savassi. A cidade do grupo escolar Bueno Brandão e do Colégio Estadual
Central, com suas galeras, tipos, cores, estilos, músicas, apredizagens e rôles pelo coração
dos bairros da cidade formal. A cidade das tardes de adolescência na Biblioteca Pública, na
Praça da Liberdade. Da juventude na Federal32. A cidade do Edifício Maleta, e suas
estórias, dos bares e botecos da juventude, a cidade de beleza singular em suas
madrugadas com suas luzes amareladas e seus ratos a passear entre os pés daqueles que
esperam pelo transporte coletivo - que porventura passará em algum momento.

A cidade dos movimentos da Praia da Estação, do Samba da Meia-Noite e do


Duelo de MC’s no viaduto Santa Tereza e na Praça da Estação33. A cidade do quarteirão do

32
Modo em geral como os Belohorizontinos se referem à Universidade Federal de Minas Gerais. Se referir a
Federal, nestes termos de intimidade possui uma poética paradoxal em que a Universidade apesar de seus
isolamentos, seus muros, elitismos, impedimentos e pouca participação da minoria-majoritária dos
moradores da cidade, torna-se ainda assim próxima e motivo de orgulho para estes seus mantenedores
anônimos. A Federal foi onde graduei e, cursei mestrado, ajudei a fundar um grupo de pesquisa, e até
tornei-me por um período seu professor substituto.
33
Trata-se de um conjunto urbano, constituído pela Praça Rui Barbosa, mais conhecida como Praça da
Estação. Formada por duas grandes áreas, e um prédio imponente, o da Estação, a praça possui uma grande
esplanada com fontes e monumentos. O segundo conjunto da praça do outro lado da Avenida dos Andradas
é formado por jardins e esculturas. Além do conjunto monumental da praça e a estação, em seu entorno
encontra-se outros prédios, como o Centro Cultural da UFMG, Centro Cultural 104, Edifício Central com suas
galerias, a baixa Gaicurus, rua da prostituição que liga a Estação do Trem a Estação Rodoviária da cidade,
chamada pelos belohorizontinos de a zona. Nesta praça tem-se início da Rua da Bahia - a mais celebre e
celebrada da cidade-, e avenidas importantes como Amazonas e Andradas. Avizinha-se a Praça, em uma de
suas margens o Viaduto de Santa Tereza desde sempre afamado por suas formas arrojadas e também por
ser fonte de sociabilidade nas memórias e cancioneiros da cidade, como comprovam poemas e textos
escritos por autores como Murilo Mendes, Carlos Drumond de Andrade – que na juventude, tal qual a turma
do pixo nos dias de hoje, escalava seus famosos arcos -, Roberto Drumond, Fernando Sabino. O viaduto foi
também ponte da passagem da cidade planejada para seus subúrbios não planejados. Por fim a direita do
viaduto localiza-se o Parque Municipal, área verde e de lazer no coração da cidade, defronte ao Edifício da
Prefeitura Municipal. Trata-se, portanto, de uma paisagem importante do centro da cidade e que “após ser
abandonada e ser considerada como uma área suja e de risco” segundo o dicurso da ordem e da técnica,
sofreu um processo de “recuperação” feito pelo poder público, através de uma série de medidas

39
Soul34 e da Praça Sete, morada de Exu, Laroiê !!! com seus hippies no coração dos yuppies,
dos dançarinos de música Black, dos indígenas com seus artesanatos, dos artistas de rua,
dos pregadores evangélicos, das galerias de rock, dos movimentos pela diversidade sexual,
dos punks, lugar de fala e protesto dos movimentos sociais, com suas bandeiras e
manifestações.

A cidade de alguns amores e muitíssimas paixões, dos desencontros, da


violência cotidiana contra os diferentes35, da escandalosa e absurda desigualdade social

gentrificadoras e segregacionistas, como cercamentos, a proibição do uso da Praça pelos seus habitués
considerados pelo poder público, como desviantes. Em reação a estas atitudes, grupos principalmente de
jovens, parte deles ligados aos cursos de ciências humanas e sociais, começaram a realizar uma série de
eventos de ocupação desta região, que deu origem ao chamado Movimento Praia da Estação, que por sua
vez originou o Movimento Fora Lacerda e reforçou o movimento iniciado anteriormente, por vários destes
mesmos atores, de revitalização do carnaval de rua da cidade, feito de modo independente, sem patrocínios
e formado por blocos de foliões. Este movimento veio a se somar e fortalecer movimentos realizados pelos
jovens da periferia no Viaduto Santa Tereza, como o Duelo de MC’S: forma de ocupação daquele espaço
com as artes do rap, break, grafite. E o Samba da Meia-Noite realizado por sambistas ligados as religiões de
matriz afro-brasileira. Todos estes movimentos, somado as ocupações de terrenos por sem casas e de alguns
edifícios abandonados tem propiciado novas ágoras para o debate sobre a cidade e suas formas de
ocupação, bem como um espaço para o combate as violências de gênero, raça, orientação sexual, de
valorização dos direitos humanos, e de uma nova cidadania a favor da diferença. Parte deste ideário estava
contida – ainda que seu oposto também - no protesto dos 100 mil que marcharam da Praça Sete no centro
da cidade até o Estádio do Mineirão no famoso confronto em que se transformou a cidade, em junho de
2013.
Para ver uma análise principalmente do ponto de vista do conjunto urbano e arquitetônico, mas sem perder
de vista o fator político, ver: Trevisan, Eveline Prado. Transformação, ritmo e pulsação: o baixo centro de
Belo Horizonte. Belo Horizonte, 2012. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
34
O movimento Soul explodiu na Belo Horizonte dos anos 70 e foi um movimento étnico-político de
resistência negra e de orgulho Afro. Sua existência ensejou uma série de pedaços e trajetos (Magnani, 2006;
2012) pela cidade. Suas roupas, cabelos, modos de dançar, cantar, cumprimentar e fruir a cidade no período
da ditadura militar ensejou uma série de perseguições e proibições, ainda assim o movimento tinha suas
casas de dança no centro da cidade e pela periferia. O quarteirão do Soul, que funciona na Rua Goitacazes, e
na Praça Sete, no centro da cidade, surge nos anos 2000 quando DJ Geraldinho lavador de carros nesta rua
do centro encontrou seu parceiro das antigas Ronaldo Black, e ambos resolveram dançar ao som do soul
que tocava no carro de Ronaldo. Daí surgiu à ideia de chamar outros velhos amigos e companheiros para
ocupar e dançar nas tardes de sábado nesta rua do centro. Ver: Ribeiro, Rita Aparecida da Conceição.
IDENTIDADE E RESISTÊNCIA NO URBANO: O QUARTEIRÃO DO SOUL EM BELO HORIZONTE. Tese apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
35
Neste sabado 26 de outubro de 2013, em que esboçava estas memórias, surigiu bravamente mais uma
ocupação na cidade de Belo Horizonte, no movimento que se intensificou desde fins do ano de 2011 de

40
com seus bairros de mansões e seus condomínios fechados avizinhados de vilas e favelas,
a cidade do preconceito e do racismo aqui e acolá.

reocupação da polis e de suas ágoras. Desta feita, a ocupação não fora a Praça da Estação tornada Praia da
Estação, ou o Viaduto Santa Tereza com o Samba da Meia Noite – em homenagem aos Exus das Ruas, nem
mesmo o Duelo de Mcs, ou o carnaval de rua independente e feito contra as proibições de se usar as ruas
centrais da cidade. Desta feita a ocupação denominada Luís Estrela ocorreu no bairro de Santa Efigênia,
onde se localiza Manzo, em um antigo e abandonado sobrado transformado agora em espaço cultural para
artistas de e da rua.
“Dia 26 de junho [refere-se a o ano de 2013] foi um dia enigmático em BH, último jogo da Copa Das
Confederações e a cidade de pé em uma grande manifestação. O desfecho foi uma batalha que se espalhou
do mineirão até as ruas do centro da capital. Verdadeiro cenário de guerra onde a PM perdeu totalmente o
controle de suas ações e o caos predominou. Vários relatos sobre grupos que se dispersaram pela cidade em
arrastões surgiram no dia seguinte, entre estes, uma notícia triste: um morador de rua foi espancado até a
morte. Pessoas que participam de grupos que acompanham os moradores de rua ficaram estarrecidos ao
saber quem foi a vítima: Luis Estrela, um jovem que teimava em ser artista, que fazia da rua o seu palco, dos
curiosos platéia, de roupas usadas figurino de gala. Bailarino de sonhos, cheio de caras e bocas, herói e
marginal, que podia perder tudo, menos o senso de humor ácido e a coragem. Assim como outros dois mil
moradores de rua sua morte segue sem nenhuma pista. Ninguém sabe, ninguém viu quem agrediu Luis
Estrela. Alguns relatos dão notícias de um grupo de espancamento que estava batendo nos moradores de
rua indiscriminadamente. Dizem que Luis apanhou até morrer, outros dizem que durante o espancamento
ele teve uma crise de convulsão e em todos os relatos uma pista em comum: o medo. Os que viram e sabem
quem comandava este grupo tem medo de falar e sabe muito bem porque. As ruas de BH não são seguras e
os boatos de grupos de espancamento e intimidação parecem mais reais. As vésperas da Copa das
Confederações, nos meses de maio e junho, a fiscalização municipal intensificou suas ações na tentativa de
recolher os pertences dos moradores de rua – cobertores, papelão, mochilas com objetos pessoais, utensílios
de cozinha, entre outros – para inviabilizar a permanência nos lugares públicos. Mesmo com a
recomendação do Ministério Público que proíbe tal prática, ela permanece e conseguimos registrar um
Boletim de Ocorrência flagrando fiscais em atuação no dia 28 de junho. Relatos das ruas nos informam que
em regiões nobres da cidade um carro branco circula nas madrugadas e seus ocupantes agridem os
moradores que dormem na região. Entre as ações de fato, praticadas pelo poder público e as ações isoladas
aqui comentadas, nos preocupamos com o momento em que elas se unem, a realização de um mega-evento,
no caso a Copa Fifa 2014. As exigências da Fifa, mais o desejo do poder público de apresentar uma cidade
limpa e organizada pode render a perseguição e morte de vários outros moradores de rua, numa onda
crescente que já estamos vivenciando este ano. Luis Estrela se foi como um cometa, não voltará e deixou por
aqui marcas incríveis de humanidade. Definitivamente não podemos aceitar que um crime como este entre
apenas para as estatísticas de “crimes sem solução” e seja acobertado com o movimento para os jogos da
Copa. Não podemos deixar que a impunidade seja a cortina que esconde pessoas organizadas para limpar a
cidade dos moradores em situação de rua e que aproveitam o momento para aterrorizar a todos. Por tudo
isso não podemos nos calar e perguntamos: O que aconteceu com Estrela? (...)Uma política de higienização e
gentrificação está em prática no nosso país (justamente no período em que nos será imposta a Copa da
Fifa…), em especial nas cidades-sede do grande evento. Belo Horizonte que o diga! Somente nos últimos dois
anos foram mortos mais de 100 (isso mesmo, cem) pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social na
capital mineira, uma média aproximada de um a cada semana. Nos últimos dias porém, a coisa engrossou.
Somente de 24 a 27 de agosto QUATRO foram mortos em BH. Um absurdo, crueldade, verdadeiro
extermínio!” (http://atingidoscopa2014.wordpress.com/)

41
1.3 Regional leste da cidade de Belo Horizonte: alguns apontamentos sócio-
históricos

A regional leste36 da cidade de Belo Horizonte é composta por alguns bairros


que estão ligados à fundação da cidade em 1897. O Bairro da Floresta, por exemplo, pode
ser considerado com um dos mais antigos da cidade, localizado às margens externas da
Avenida do Contorno serviu como residência para parte dos operários que vieram
construir a nova capital. A região abriga também outros bairros tradicionais como o Santa
Tereza, Sagrada Família, Santa Efigênia onde localiza o Quilombo de Manzo.

Constitui-se, em primeiro subúrbio da cidade planejada de Belo Horizonte.


Apesar de sua grande proximidade com o centro da cidade de Belo Horizonte, sendo
alguns de seus bairros vizinhos ao Bairro do Centro. Ao contrário da cidade planejada para
as elites econômicas e políticas e para o alto funcionalismo público - homogênea em seu
desenho urbano e social como indica a própria toponímia dos bairros, como por exemplo,
Bairro dos Funcionários, localizado no coração da cidade planejada - a regional leste
abrigou e abriga uma grande diversidade populacional, sendo habitada primeiramente
pelos operários remanescentes da construção da nova capital, muitos deles negros recém-
libertados da escravidão e imigrantes do interior de Minas Gerais e na sequência pelos
ferroviários e pelos imigrantes estrangeiros - principalmente italianos, mas também por
alguns moradores mais abastados, que residiam em casarões, chácaras e palacetes.

Um passeio pela regional permite perceber as diversas clivagens internas,


como a presença da classe média e média alta, nos bairros mais antigos e vizinhos ao
centro, principalmente na região Santa Tereza/Floresta com seus blocos carnavalescos,

36
A cidade de Belo Horizonte, foi subdividida administrativamente em nove Regionais: Centro-Sul, Leste,
Norte, Oeste, Nordeste, Noroeste, Pampulha, Venda Nova, Barreiro.

42
movimentos artísticos como o Clube da Esquina, seus grupos de teatro e rock, seus bares
e cafés. Ou então o bairro de classe médio-alta na região de Santa Inês e do Instituto
Agronômico com seus casarios muitos de dois ou mais pavimentos. Bairros mistos, como a
Pompeia e suas vilas vizinhas aos apartamentos para classe média. Mas também a
regional da classe operária, localizada nas franjas como o Boa Vista, na fronteira com o
município vizinho de Sabará, ou o conjunto de Vilas e Favelas que formam a região do
Taquaril.

A região de Santa Efigênia, onde se localiza Manzo, mimetiza a regional, ao


possuir em sua formação vilas, favelas, cidade formal e informal, classe média, média alta,
classe baixa e mesmo bolsões de miséria. Possui parques arborizados, reservas
ambientais, e algumas manchas (Magnani 2006; 2012) do bairro possuem casas com
quintais, espaços de socialização entre vizinhos, praças - para orgulho de seus moradores,
que consideram tais características mais interioranas - ainda que em suas bordas vizinhas
ao centro estes espaços estejam cada vez mais ausentes, tendo sido substituído por
grandes empreendimentos residenciais e comerciais.

1.4 Santa Efigênia

O Bairro de Santa Efigênia possui quase a mesma idade da cidade de Belo


Horizonte. Coube a então região limítrofe leste da Avenida do Contorno abrigar o Quartel
da corporação militar37. Se tomarmos o desenho original da cidade planejada, o Quartel se
localiza na margem do perímetro chamado de urbano e planejado pelos construtores da
cidade. Penso que como uma das metáforas do positivismo, que animou a construção da

37
A cidade de Belo Horizonte, teve seu projeto urbanístico planejado e inspirado na reforma urbana de
Paris, de modo que a nova cidade e capital administrativa foi setorizada. Em sua formação o Santa Efigênia
foi dirigido as famílias de militares da força pública estadual, mas foi ocupado também por imigrantes
europeus -principalmente os italianos- e por operários principalmente negros e mestiços em suas vilas.

43
cidade, o Quartel foi planejado como uma fortaleza e se localiza em um dos vértices da
Avenida do Contorno - avenida que circundava como um muro medieval a cidade
planejada.

Além do quartel, dentro dos marcos de uma cidade planejada, foi reservada
para esta região a construção de residências para os militares de baixa patente egressos
da antiga capital, Ouro Preto, sendo então denominada esta região de Bairro do Quartel
em homenagem ao imponente e grandioso Quartel Central da Guarnição Militar38.

Os militares, que residiam no entorno do Quartel, inauguraram uma


Irmandade e uma Capela dedicada a Santa Efigênia: Paroquia de Santa Efigênia dos
Militares39, esta Capela mais tarde deu lugar a Matriz de Santa Efigênia40, localizada na Av.
Brasil entre à área hospitalar e a Praça Floriano Peixoto, conhecida como Praça do
Quartel. A Praça Floriano Peixoto, de relativa extensão, constitui uma área de lazer para os
moradores principalmente do entorno do Quartel, servindo como área para exercícios
físicos, é ladeada em quase toda a sua extensão pela Avenida do Contorno.

Além dos militares, o bairro abrigou também muitos profissionais da saúde, e


sua parte imediatamente vizinha ao centro e ao Parque Municipal é denominada de

38
Hoje 1º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais.
39
Mais tarde a toponímia do bairro foi modificada de Quartel para Santa Efigênia. É interessante notar que
Mãe Efigênia em várias de suas narrativas se refere a região como o Quartel. Como curiosidade, o novo
topônimo do Bairro é o mesmo nome de Efigênia, mas as coincidências não param por ai; Efigênia, a que se
tornaria santa, nasceu na região da Núbia, atualmente Etiópia, trata-se de uma santa africana, o que a torna
especialmente cultuada por muitas irmandades negras católicas; além disto, Santa Efigênia é iconicamente
representada segurando uma casa nas mãos, esta casa representa o triunfo de sua fé. Dizem seus fiéis, que
por pertencer a uma prática religiosa minoritária, Efigênia fora condenada ao martírio e sua morte, seria
realizada em uma fogueira em sua residência. Mas ambas, Efigênia e a casa sobreviveram as Labaredas. No
Jornal Estado de Minas, edição de 21 de setembro de 2013, em matéria especial sobre a Igreja de Santa
Efigênia, uma devota, moradora do Bairro Taquaril na mesma regional disse ao repórter: “venho todos os
dias a Igreja, na hora do meu almoço. Santa Efigênia me ajudou muito a comprar minha casa”.
40
A Matriz foi tombada pelo Patrimônio Cultural Municipal em 1985, e faz parte do complexo formado pela
Praça Floriano Peixoto –Praça do Quartel -, o Hospital Militar e o 1 º Batalhão da Policia Militar.

44
região hospitalar41. Se a parte urbana do bairro, aquela dentro do perímetro da cidade
planejada e da avenida do contorno, foi ocupada por equipamentos urbanos do campo
militar e da saúde, suas franjas, a região depois da Avenida do Contorno, portanto
suburbana, a cidade planejada, região então dos vales dos córregos, foi ocupada por
trabalhadores e operários remanescentes da construção da cidade.

A história de Mãe Efigênia, e a ocupação da regional leste em suas franjas


próximas a avenida do contorno, exemplifica um processo social maior, a migração de
trabalhadores braçais e domésticos – muitos deles negros –da antiga capital para a nova
capital, onde passaram a prestar serviços para os funcionários públicos e para as elites
econômicas que residiam, prioritariamente, nos bairros da zona urbana da cidade
planejada, hoje regional centro-sul que se avizinha a regional leste. O Quilomblé de Manzo
fica nessa região de confluência de dois grandes complexos de Vilas e Favelas, o complexo
da Serra/São Lucas42 e o Complexo do Taquaril/Alto Vera Cruz43.

41
Área Hospitalar de Belo Horizonte, é o perímetro onde se encontram os maiores e mais importantes
hospitais públicos de Minas Gerais como o Hospital do Ipsemg; o Complexo da Santa Casa, formada por
vários hospitais; o complexo do Hospital das Clínicas da UFMG, com mais de uma dezena de hospitais;
clinicas; centros de internação; ambulatórios; Faculdade de Medicina; Escola de Enfermagem e outros
equipamentos; o Hospital São Lucas; o Pronto Socorro João XXIII, considerado unidade referência na
América Latina para alguns procedimentos, além de inúmeras outras clínicas; consultórios médicos e
hospitais de menor porte. Recentemente instalou-se na região, o Hospital da Unimed, instalação de grande
porte localizado defronte ao Quartel na outra margem da Praça Floriano Peixoto.
42
O Aglomerado da Serra está situada na zona centro-sul de Belo Horizonte, e se divide em oito vilas - vila
Nossa Senhora da Conceição, vila Marcola, vila Santana do Cafezal, vila Novo São Lucas, vila Nossa Senhora
de Fátima, vila Fazendinha, vila Nossa Senhora do Rosário e vila Nossa Senhora Aparecida. É sede da hoje
reconhecida nacional e internacionalmente Rádio Favela, uma iniciativa de moradores do Morro, e que se
tornou mais do que uma rádio, um movimento a favor dos direitos dos moradores das favelas, de sua
“cultura”, de sua musicalidade e de sua blacktude. Esta história foi contada no filme: Uma onda no Ar.
43
Nos anos 90 do século passado o Alto Vera Cruz, junto com a Pedreira Prado Lopes e o Morro das Pedras,
povoou o imaginário de lugares violentos na cidade de Belo Horizonte. Cidade que gostava de se apresentar
como sendo aprazível e tranquila, sem os males da violência que assolavam outras grandes metrópoles
brasileiras. O Vera Cruz e seu Alto, já avizinhando ao Conjunto da Castanheira e sua visão impressionante, da
cidade com seu mar de casarios cercados pela imponência da Serra do Curral era famoso também por sua
juventude - negra e favelada - que canta(va), faz(ia) break, participa(va) das lutas sociais, que se reúnia na
Praça Che Guevara, ou então no Palco Circular Zumbi dos Palmares.

45
No sítio eletrônico da prefeitura é possível ler a seguinte descrição do bairro:

Com acesso privilegiado pelas avenidas do Contorno, Brasil, Francisco Sales e


dos Andradas, o bairro Santa Efigênia fica a poucos minutos do Centro, mas
ainda conserva aspectos típicos de cidade do interior. Praças como Hugo
Werneck e Marechal Floriano Peixoto compõem as áreas de lazer e servem de
ponto de encontro dos moradores. Com ampla rede de comércio e serviços, o
bairro Santa Efigênia é predominantemente residencial e, a despeito de ser um
dos bairros mais antigos de Belo Horizonte, está cercado por toda infraestrutura
e facilidades exigidas pela vida moderna. (...) É um bairro com tradição
educacional, possuindo escolas como o Grupo Escolar D. Pedro II, cujo prédio é
tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais, além de contar com a proximidade de outros renomados centros
educativos, dentre os quais os colégios Arnaldo e Logosófico, na divisa com o
bairro Funcionários. Quatorze linhas de ônibus e uma estação do metrô
atendem a importantes corredores de tráfego, como a Rua Niquelina e a
Avenida Mem de Sá, além de toda a estrutura viária disponível nas avenidas
Brasil e Contorno. O bairro abriga também imponentes exemplares da
arquitetura mineira e vários complexos tombados pelos Patrimônios Históricos
Municipal e Estadual, entre eles, o complexo arquitetônico da Praça Hugo
Werneck, com seus jardins e monumentos, a Maternidade Hilda Brandão, o 1º
Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais e a Faculdade de Medicina da
UFMG.44

A regional leste é cortada pela bacia hidrográfica do Ribeirão Arrudas45, e por


suas respectivas sub-bacias: Santa Terezinha, Mem de Sá, Belém, Jequitinhonha, Silviano

Ver mais: Coura, Claudinéia. 2009. Juventude e desagregacão urbana em Belo Horizonte: um estudo de
trajetoria e representacões sociais no Conjunto Taquaril. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Pinheiro, Ana Laura Lobato. 2011. Trajetórias afetivas e sexuais entre jovens de periferia, Belo Horizonte.
Dissertação (mestrado) – apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH da Universidade
Estadual de Campinas na área de Antropologia Social.

44
Acessado em janeiro de 2013.
45
Ribeirão Arrudas, atravessa (va) a cidade de oeste para leste. Suas águas no começo limpas eram ponto de
pescaria, como registram as crônicas e as memórias dos primeiros moradores. Na região central, o antigo
perímetro do Parque Municipal o abarcava, sendo a pesca mais uma das atividades recreativas deste
equipamento. Entretanto a pesca e outras atividades lúdicas foram prejudicadas pelo lançamento de esgoto
sem tratamento e também pelas diversas canalizações e barramentos feito em seu leito, o que diminuiu a
vazão de suas águas. Com o passar dos anos, na região central suas margens foram sendo comprimidas pela
construção de novos equipamentos de tráfego como linhas de bondes e depois avenidas e ferrovias. Em
1984, inauguraram-se as obras, do que a época foi chamada de retificação do curso do Ribeirão, a
retificação do curso consistiu no aprisionamento, entre muretas de concreto, do agora esgoto do Arrudas
como muitos se referiam ao Ribeirão na área central. Tais obras permitiram o alargamento da Avenida
Andradas e Contorno e a construção de outros elementos urbanos como viadutos e passagens. Mais

46
Brandão, Petrolina e Conceição do Pará, praticamente todas as bacias ou foram drenadas
ou canalizadas, dando origem a arruamentos e avenidas, que em geral recebem como
nome, a denominação do antigo Córrego.

Sua topografia é diversificada, apresentado regiões de vales e regiões mais


inclinadas, bem como diversas áreas verdes e parques como a Mata do Museu de História
Natural da UFMG, Parque Marcus Pereira de Melo, Parque do Centenário e o Parque da
Baleia - parte do Parque fica na regional Centro-Sul – este parque conhecido como Mata
da Baleia,como se verá nas narrativas de Mãe Efigênia, era o local em que vários
moradores de baixa renda buscavam madeiramentos para suas residências, em geral
barracos de compensado.

Partes da região de Santa Efigênia e da região vizinha da Baleia apesar de


bastante antropicizada compõem a Área de Preservação Ambiental46, denominada APA

recentemente, já em meados da década de 2000, para desânimo deste e de muitos outros citadinos, em
mais uma das obras com características de re-ordenação e gentrificação do centro, houve o tamponamento
do Ribeirão na região central, que deu origem a mais um alargamento da Avenida Andradas e do Contorno,
esta ampliação foi chamada propiciamente, por parte da elite política e econômica colonizada e colonialista
da cidade, de Boulevard Arrudas. O Ribeirão que virara esgoto, agora fora tamponado, para dar origem a um
Boulevard que consistiu no alargamento da cobertura asfáltica. Tal obra inaugurada, com pompas no 110º
aniversário de fundação da cidade, confirma que os ideais sanitaristas, positivistas, elitistas,
antidemocráticos, de parte das elites políticas e econômicas construtoras da antiga capital – como se verá a
frente - permanecem mais de 100 anos após a fundação em parte de suas atuais elites. O Boulervard e as
demais obras urbanísticas, no centro e a sua posterior tentativa de normatização via privatização dos usos
destes equipamentos exemplificam, a máxima dita pelo Velho Barbudo, K. Marx no ensaio 18 de Brumário
(1968) a história só se repete duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. O projeto do
Boulevard Arrudas, proposta do Governo do Estado, faz parte de um projeto maior de ligação entre o
Hipercentro de Belo Horizonte e a região norte da cidade, chegando ao Aeroporto Internacional, no
município de Confins, através da chamada Linha Verde. Que apesar do nome não tem verde e sim muito
cinza dos cimento nos viadutos e alargamento da cobertura asfáltica das vias perimetrais que atendem este
trajeto. Ressalte-se que o projeto foi criticado por citadinos, ambientalistas e mesmo pelo Conselho
Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte, que acusava a obra de ser a supressão
de um referencial simbólico para a população da cidade.
46
A lei No 9.985, de 18 de julho de 2000 institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza – SNUC e estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de
conservação (IEF, 2010). Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com certo grau
de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente

47
Sul- RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte). A referida APA foi criada pelo
Decreto Estadual nº 35.624 de 8 de junho de 199447 e faz parte das bacias do Rio São
Francisco e do Rio Doce, rios de grande extensão, sendo o primeiro inclusive conhecido
como o Rio da Integração Nacional. Ainda faz parte da APA, as bacias dos rios regionais do
Paraopebas e do Rio das Velhas. Na APA-Sul está localizado várias nascentes que
abastecem a cidade de Belo Horizonte e região metropolitana, suas mata ciliares,
constituem uma área de transição florestal com remanescentes de Mata Atlântica bem
como de vegetação de Cerrado e Matas de Galerias.

1.5 As regiões morais da capital mineira

O Estado das Minas Gerais dos fins do século XIX reunia a maior população do
Brasil, com cerca de três milhões e duzentos mil indivíduos. O contingente populacional,
bem como a extensão do estado e a descentralização do poder, que era vista como “um
problema” levaram a mudança da capital do Estado e a fundação de uma cidade-símbolo a
ser erguida de modo monumental a partir de um modelo técnico-científico de organização
do meio urbano, que servisse como um espetacular(izado) surgimento de uma nova época
política, social, econômica dentre outras.

É digno de nota que a tentativa de mudança da capital mineira, segundo Junia


Caldeira (1998) já havia se manifestado antes em 1789 - Inconfidência Mineira - e
posteriormente em 1821, 1833, 1843, 1851, 1867, mas o projeto só se realizou com a
proclamação da República, deste modo, em 1891 a nova constituição republicana do

importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos
proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso
dos recursos naturais.
47
Em seu artigo primeiro a lei define a área de abrangência da APA Art. 1º - Sob a denominação de APA Sul
RMBH, fica declarada Área de Proteção Ambiental a região situada nos Municípios de Belo Horizonte,
Brumadinho, Caeté, Ibirité, Itabirito, Nova Lima, Raposos, Rio Acima e Santa Bárbara (Figura 01), com a
delimitação geográfica constante do Anexo deste Decreto.

48
estado de Minas Gerais trazia em seu artigo 13 a seguinte determinação: “Art.13 é
decretada a mudança da capital do Estado para um local que, oferecendo as precisas
condições higiênicas, se preste à construção de uma grande cidade”.

A nova capital mineira, deveria ser como consta na declaração de mudança da


capital, “um novo espaço higiênico e grandioso, o que significa não colonial, limpo, varrido
pela luz, visível para o controle, em suma, moderno”. Para Veiga (1994) a nova capital era
um laboratório de experiências que tinha como finalidade fabricar uma urbanidade
entendida como modernidade. Este processo de uma nova época, para Paula e Monte-
Mór (2000), fez partes dos esforços republicanos de “mudar para não transformar”. Belo
Horizonte seria metáfora da nova ordem, aquela que mudou para manter tudo como
antes. Nas paragens mineiras o projeto ordenador, apesar de modernizador no sentido
urbano, deveria coadunar e reforçar as tradições mineiras e os valores da mineiridade. A
nova capital deveria ser, portanto moderna na forma e tradicional no conteúdo. Pimentel
(1989:27) corretamente afirma que “o moderno, na verdade, refaz e aprofunda a
dominação. (...) hoje burguesia, urbana e industrial. Ontem, senhorial e agrária”.

Em 1895, tendo como norte o cientificismo positivista da época48, é aprovado


o projeto do engenheiro carioca Aarão Reis, inspirado no higienismo de Haussman e nos
traços simétricos de L’Enfant. O projeto refletia o temor pela desordem urbana gerada
pela imprevisibilidade, bem como o pavor pelos conflitos entre atores de diferentes
segmentos sociais. E deste modo, além de celebrar a nova época respondia aos
incômodos que parte das elites mineiras sentia em relação a Ouro Preto e sua divisão
frouxa do espaço urbano entre os diferentes grupos sociais. Segundo o regulamento da
comissão construtora da nova capital, a mesma se organizaria do seguinte modo:

48
Para maior entendimento das questões políticas envolvidas na mudança da capital ver Junia Caldeira
(1998) Pimentel (1989), Veiga (1994) Gomes (2004), Guimarães (1991).

49
(...) a planta da futura cidade dispondo-se na parte central, no local do atual
arraial, a área urbana de 8.815.382 m², dividida em quarteirões de 120x120 m,
pelas ruas largas e bem orientadas, que se cruzam em ângulos retos e por
algumas avenidas que as cortam em ângulos de 45º. Às ruas fiz dar a largura de
20 m, necessária para a conveniente arborização, a livre circulação de veículos, o
trafego dos carris e os trabalhos de colocação e reparações das canalizações
subterrâneas. Às avenidas fixei a largura de 35 m, suficiente para dar lhes beleza
e o conforto que deverão, de futuro proporcionar a população. Apenas a uma
das avenidas, que corta a zona urbana de norte a sul, e que é destinada a ligação
dos bairros opostos, dei a largura de 50 m, para constituí-la em centro obrigado
da cidade, e assim forçar a população, quanto possível a ir se desenvolvendo do
centro para a periferia como convém a economia municipal, à manutenção da
higiene sanitária, ao prosseguimento regular dos trabalhos técnicos. Essa zona
urbana é delimitada e separada da suburbana por uma avenida do contorno,
que facilitará a conveniente distribuição dos impostos locais, e que, de futuro
será uma das mais apreciadas belezas da nova cidade. A zona suburbana, de
24.930.803 m², em que os quarteirões irregulares, os lotes de áreas diversas e as
ruas traçadas de conformidade com a topografia e tendo apenas 14 m de largura
– circunda inteiramente a urbana, formando vários bairros, e é, por sua vez
envolvida por uma terceira zona de 17.747.619 m², reservada aos sítios
destinados à pequena lavoura. 49

A carta acima do engenheiro responsável pelo projeto e pela construção da


nova capital não deixa dúvidas, a mesma nasceu sobre o signo do novo, da ordem, do
planejamento, do progresso, da organização, da técnica e da razão. Um modelo que
pretendia abolir as diferenças vistas como desarmônicas, mas não as desigualdades. Neste
projeto, como se vê acima, a diversidade deve ser combatida em nome de uma
normatização que busca a homogeneização e a imposição de uma ordem classificatória
pelos detentores da palavra política, ou seja, as elites econômicas e políticas.

Belo horizonte, foi definida pelo projeto de Aarão Reis, como uma cidade
concêntrica, dividida em três zonas: urbana, suburbana e rural. A zona urbana planejada
tem um traçado, que segue parâmetros geométricos em que se privilegiam os ângulos
retos para as vias principais e as diagonais para as vias secundarias conformando um
quadro de rigidez interna e uma clara delimitação das zonas (ver croqui abaixo). Apesar de
moderna, Belo Horizonte, possuía uma Avenida do Contorno, que delimitava não apenas

49
REIS, Aarão. Ofício n.26 Belo Horizonte, 23 de março de 1895. In: Magalhães e Andrade (1989).

50
de modo simbólico, mas geograficamente a zona urbana e planejada das demais zonas:
suburbanas e rural de planejamento precário ou inexistente (Figura 1).

51
Figura 1: Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte em sua inauguração, a regiao rasurada é a zona urbana.

Figura 2: Planta Geral da futura Cidade de Belo Horizonte, ainda chamada de Cidade de Minas.

52
Fonte: http://goo.gl/kFxgBy

Uma cidade que deveria se ver como centro, portanto sem espaços para os
entredois (Agier, 2011) e para a vida vivida e vivenciada, ou seja, a vida experienciada que
funda a cidadania. Nas palavras de Aarão Reis “para constituí-la em centro obrigado da
cidade, e assim forçar a população, quanto possível a ir se desenvolvendo do centro para a
periferia como convém a economia municipal, à manutenção da higiene sanitária, ao
prosseguimento regular dos trabalhos técnicos” ou então “um novo espaço higiênico e
grandioso, o que significa não colonial, limpo, varrido pela luz, visível para o controle, em
suma, moderno”, uma cidade sem margens para os hors-lieux (Agier, 2011) e para novos
espaços-tempos, que não se conformam nem demasiado dentro e nem demasiado fora do
centro obrigado e forçado da cidade e da população.

Os entredois, os lugares de fora que o projeto ordenador da nova capital quis


eliminar são as trocas e caminhos cruzados que tornam possível, a transformação do
espaço em um fluxo de des-re-territorialização e por consequência buscou-se eliminar as
diferenças, a política em sua dimensão potencial de palavra na polis. Manzo é a
exemplificação da continuidade deste projeto, mas é ao mesmo tempo uma de suas
principais denúncias.

Manzo se apresenta a esse modelo, como o dificilmente controlável, o que as


elites construtoras da nova capital e as elites atuais ainda temem. Belo Horizonte, nasce
como cidade, na mesma medida em que se tentou negar seu caráter citadino. Berenice
Guimarães (1991), em “Cafuas, barracos e barracões”, reconstrói a tentativa de negar à
cidade aquilo que chamo aqui de sua citadinidade (inspirado em Agier 2011). Trata-se da
imposição de um ordenamento violento, de negação da diferença através da expulsão
fisica daqueles que carregavam no corpo e nas atitudes a diferença indesejada. Ao mesmo
tempo, Guimarães mostra como, e esta é sua principal contribuição ao debate, desde
sempre este modelo foi questionado e violado pelos sujeitos, que mesmo subalternizados
foram participantes da construção da verdadeira citadinidade, a partir de suas

53
resistências. Pimentel ao analisar o surgimento da nova capital chama a atenção para o
fato de que:

Belo Horizonte é a imposição de uma urbis planejada claramente para delimitar


os espaços das classes sociais. Não que Ouro Preto ou as demais cidades
coloniais não fossem segregadoras. Claro que eram, mas o “plano da cidade” era
fortuito, aleatório. Nelas não nos deparamos com a intervenção do Estado para
marcar os lugares como se verá depois na Paris de Haussmann, na Viena de Sitte
e Wagner, no Rio de Janeiro de Pereira Passos e na Belo Horizonte de Aarão
Reis. (Pimentel, 1989:28)

Belo Horizonte nasce, portanto com um caráter elitista e segregacionista.


Gomes (2004:37) chama a atenção para o fato de a planta da cidade “não ter previsto
lugar para os antigos moradores do Arraial do Curral Del Rei nem, tampouco, para os
trabalhadores que vieram construir a nova capital”.

Restou aos antigos habitantes do Curral Del Rey e aos trabalhadores e


operários migrantes trazidos para erguimento da nova capital a resistência com as
ocupações das áreas suburbanas. São estes fora de lugar – notadamente os de cor para
usar termos da época - que ocuparão e darão origem as vilas, aglomerações e primeiras
favelas da cidade.

Na zona urbana, o plano estatal segregador se impôs, para além da expulsão


dos antigos moradores, através de uma série de medidas complementares, tais quais: a
demolição de toda e quaisquer construções anteriores, restando apenas a então Matriz de
Nossa Senhora da Boa Viagem – que seria demolida décadas depois para dar origem à
nova Matriz; a definição da toponímia das ruas, avenidas, praças e logradouros públicos
que deveriam remeter aos fatos, personagens e cidadãos com relevantes serviços
prestadoss à Pátria, bem como aos rios, montanhas e cidades que eram marcos
significativo para o novo Estado-Nação, ou seja, a sagração de uma história unilinear e dos
vencedores, a história das elites agrárias e mineradoras mineiras, na qual caberia no plano
inicial apenas uma genérica e esteriotipada homenagem em algumas ruas do centro, aos
silvícolas originários da terra vistos como em desaparecimento.

54
Segundo Caldeira (1998:81) a ocupação segregada da zona planejada se
constitui também com a doação de mais de 1000 lotes circunvizinhos ao então Palácio
Presidencial, que com a inauguração da cidade foi batizado de Palácio da Liberdade. Ou
seja, lotes localizados na área mais nobre da cidade planejada, denominada Bairro dos
Funcionários, que hoje comportam os bairros de alta classe Funcionários, Savassi, Lourdes,
Santo Antônio foram doados às antigas elites. Constituindo um primeiro processo de
privatização e concentração de terras, que foram originalmente compradas e urbanizadas
com verbas públicas, nas mãos de uma pequena elite econômica e política.

A nova capital, é fruto de um projeto que buscou edificar, a partir da


destruição de um antigo lugar, um novo estilo de vida. Este novo estilo de vida, era a
celebração do poder da nova velha elite e das suas crenças, fazeres, seus modos de vida. A
resultante acabou por consolidar e aprofundar as desigualdades estruturais, sociais,
raciais, étnicas presentes na formação da cidade. Belo Horizonte foi pensada na ideologia
de seus fundadores, construtores e arregimentadores e se confirma na prática como uma
cidade-símbolo e monumento, da segregação da diferença e do conservacionismo que
“muda para não transformar”, atencipando assim em meio século, as estratégias que
seriam adotadas na nova capital do país, Brasília.

1.6 Belo Horizonte: uma cidade fora do lugar

Apesar de ter sido planejada, como visto nas palavras de seu construtor para
crescer do centro para as margens, o que se viu desde os primeiros anos de ocupação da
nova capital foi seu oposto, uma cidade que cresceu nas e para as margens.

Segundo o Anuário de Belo Horizonte (2000), já na década de 1910 do século


passado, portanto, quando a cidade tinha pouco mais do que uma década de existência,
70% da população viviam nas zonas suburbana e rural. Conformando o que Paula e
Monte-Mor (2000) denominaram de duas categorias de cidade, uma no interior da
Avenida do Contorno, ou seja, a cidade planejada que chamo de cidade no lugar e a

55
cidade não planejada, as margens da Avenida do Contorno, que chamo aqui de cidade
fora de lugar (Agier,2011).

Nos primeiros anos, o crescimento da cidade se deu em seu sentido leste-


oeste, na zona não planejada, suburbana vizinha ao centro, contrariando os planos de seu
construtor, que como visto, planejara uma pequena área urbana, em que a avenida mais
larga da cidade ligaria a cidade no eixo sul - norte, sendo este o eixo de desenvolvimento
ordenado da malha urbana “Apenas a uma das avenidas, que corta a zona urbana de
norte a sul e que é destinada a ligação dos bairros opostos, dei a largura de 50 m, para
constituí-la em centro obrigado da cidade”. Tal desenvolvimento pode ser explicado pela
privatização da cidade planejada pelas elites, restando aos demais moradores a ocupação
da zona suburbana e rural, que também foram alvos de privataria, sendo seu comércio
formador de uma clientela em termos políticos e econômicos.

A ocupação destes lugares fora de lugar se inicia a leste nos hoje bairros da
Floresta, Santa Efigênia e Santa Tereza e a oeste com a ocupação do Carlos Prates e
Calafate. A ocupação precoce destas regiões e sua localização vizinha à área urbana levou
a incorporação destes bairros, em termos de algumas políticas pública, ao lugar de zona
urbana, ou seja, ao lugar planejado ainda nas primeiras décadas da cidade. Tal
incorporação, em um processo que se retroalimentou da especulação dos preços da terra
e de um processo cartorial de registros de imóveis sujeitos às fraudes, significou muitas
das vezes a expulsão de antigos moradores para áreas ainda mais suburbanas. Processo
este ainda vigente, como pode ser visto nas atuais remoções de vilas e favelas, ou de
ocupações com décadas de existência, para dar lugar a projetos urbanos gentrificadores
ou grandes condomínios, como no caso da Granja Werneck na vizinhança do Quilombo
Urbano de Mangueiras, na cidade de Belo Horizonte.

Os anos 1930 e 1940 deu início um período de grande crescimento


populacional da cidade, que contrariando o planejado, continuava a crescer pelas
margens. Ao fim dos anos de 1930 a população da cidade chegou à casa dos 200 mil

56
habitantes, número máximo para o qual havia sido planejada. Dez anos mais tarde, a
cidade comportava cerca de 350 mil habitantes. Nos anos 1940, o crescimento das
margens acaba por se estender para quase toda a zona definida como suburbana no
projeto inicial da capital. A especulação imobiliária combinada com um processo de
ocupação negociada – em termos de uma clientela e arranjos econômicos, jurídicos e
políticos – e as ocupações forçadas expandem a mancha urbana, os trajetos e os projetos
dos fora de lugar pelo tecido da cidade.

Por outro lado, os anos 1940 são também marcados por dois processos de
ocupação induzidos pelo poder público. O primeiro deles é a criação do Distrito Industrial,
denominado de Cidade Industrial que, localizada na cidade vizinha de Contagem significou
um atrativo de ocupação do vetor oeste e norte da cidade. A criação deste distrito levou a
abertura de uma via rodoviária do centro da capital a este Distrito Industrial. Além da
cidade industrial, os anos 1940 são marcados por um novo lugar planejado e ordenado
pelo poder público, a Pampulha, região escolhida para ser área de lazer e veraneio das
elites Belo Horizontinas50.

50
A importância da Pampulha para a arquitetura brasileira é medido pelo fato de seu conjunto arquitetônico
e urbanístico ser considerado patrimônio cultural da cidade, do estado e do país. E atualmente candidata a
Patrimônio Cultural da Humanidade. A hoje regional Pampulha nasceu em torno da lagoa artificial que foi
construída no inicio da década de 1940, com o barramento de alguns córregos e ribeirões como o Pampulha,
formadores da bacia do Ribeirão Onça e Ribeirão Arrudas ambos afluentes do Rio das Velhas que por sua vez
desagua no São Francisco. Para compor o entorno da Lagoa, Oscar Niemayer, projetou um conjunto
arquitetônico que serviu de influência para a arquitetura moderna brasileira, sendo segundo o próprio
arquiteto um embrião da futura cidade-capital da Nação e de outras obras relevantes de sua autoria mundo
a fora. Destacam-se a Igreja São Francisco de Assis, o Museu de Arte da Pampulha, a Casa do Baile e o Iate
Tênis Clube. Além disso, os jardins de Burle Marx, a pintura de Cândido Portinari, os azulejos de Paulo
Werneck e as esculturas de Ceschiatti, Zamoiski e José Pedrosa completam o conjunto da orla da lagoa. A
orla da Lagoa da Pampulha concentra várias opções de lazer, como o Estádio Governador Magalhães Pinto,
mais conhecido como "Mineirão", o ginásio do Mineirinho, o Jardim Botânico, o Jardim Zoológico, o Parque
Ecológico, o Centro de Preparação Equestre da Lagoa e pistas para ciclismo e caminhada. Entretanto, sua
região se expandiu muito além da orla da barragem e suas mansões, condomínios e chácaras, de modo que
nas franjas dos córregos surgiram várias ocupações irregulares de moradias precárias. Algumas delas com o
passar do tempo e a organização de seus moradores tornaram-se bairros com serviços urbanos e

57
Os anos 1950 são um período de transformações no perímetro urbano da
cidade planejada, com o surgimento de várias novas edificações e dos primeiros arranha-
céus, bem como de reformas viárias para acomodar os aproximadamente 500 mil
habitantes da agora metrópole belohorizontina. Este momento marca também um
deslocamento interno na cidade planejada, as classes médias e altas iniciam um processo
de migração interna para as margens sul da cidade planejada.

Os fora de lugar por sua vez continuam – a fazer a cidade – ocupando cada vez
mais as zonas suburbanas e atingindo a chamada zona rural, do projeto da cidade-capital.
Parte destes fora de lugar intensificam as ocupações das regiões montanhosas da cidade,
principalmente aquelas localizadas na zona sul e leste, vizinhas à região onde se
localizavam boa parte da demanda por seus serviços e trabalhos, em geral no setor
primário, braçal e doméstico.

Os anos 1960 assistem à explosão demográfica da cidade que, acompanhando


as demais capitais do sudeste, torna-se atrativa para os migrantes principalmente do
interior do estado e da região nordeste, em busca de oportunidades na nova região
industrial51. A população da cidade atinge na década de 1970 a marca de 1.255.415
habitantes, o que significou um impressionante crescimento de quase 100% no período de
uma década e meia. Ao fim desta década a mancha urbana, os trajetos e projetos dos fora
de lugar alcançara todo o tecido urbano, suburbano e praticamente todo o tecido rural da
cidade-capital, que passou a avançar sobre as urbes vizinhas, tornadas cidades
dormitórios.

Desde meados dos anos 1960, a cidade planejada, hoje apenas uma parte da
região centro-sul, passa a abrigar uma cornubação de favelas ligando as franjas sul e leste

arruamentos, outras ainda se encontram classificadas pelos ordenadores do espaço urbano como informais
e com possibilidades de atuação violenta do planejamento ordenador.
51
Como é o caso da família deste pesquisador, migrante do nordeste em busca de um Belo Horizonte.

58
da cidade, com destaque para as aglomerações dos bairros São Lucas, Santa Efigênia e
Paraíso na zona leste e do Morro do Papagaio/Barragem Santa Lúcia52 encravados nos
bairros de classe média e alta da cidade. (Figura 3)

Figura 3: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo Horizonte, a área tracejada de preto é
a cidade planejada.Fonte: Anuário Estatístico de Belo Horizonte, 2003.

Os fins dos anos 1970 e os anos 1980 levam a cidade ao transbordo de seus
limites. A região norte e o distrito de Venda Nova – anterior à própria cidade-capital – são
totalmente ocupados, o mesmo ocorre com o distrito do Barreiro. Os anos 90 marcam
reacomodações das classes sociais ao longo da zona urbana e dos bairros agora mais

52
O Aglomerado Santa Lúcia, era o mar de luzes cintilantes que vi por detrás do computador enquanto
escrevia parte deste trabalho, formada por quatro vilas: Vila Estrela, Vila Santa Rita de Cássia (Morro do
Papagaio), Barragem Santa Lúcia, e Vila São Bento (Vila Esperança, Carrapato ou Bicão). Partes dos
moradores de duas das Vilas são vítimas da política higienista da prefeitura que em nome de um discurso da
ordem, da tecnicidade e do bem estar definido por este mesmo complexo científico-ideológico busca
submeter os moradores a um novo ordenamento espacial, visto pelos que foram obrigados a ser
beneficiários do projeto como restritivos. Na Barragem como em outras partes da cidade, o Estado por ser
apresentar como detentor de um conhecimento técnico, arroga-se em melhores condições do que o próprio
sujeito do direito em definir o que é bem estar e moradia digna que, neste caso, significa a imposição da
residência em conjuntos de apartamentos com áreas úteis de cerca de 44 metros quadrados que são em
geral inferiores às antigas residências autoconstruídas pelos moradores, para citar apenas elementos
materiais. Do ponto de vista imaterial, a violência leva à própria eliminação dos modos de vida, saberes,
fazeres destes grupos, como no caso de praticantes de religiões não cristãs, carroceiros e outros saberes que
se confundem com a própria forma de organização do espaço sociocosmológico.

59
centrais da antiga zona suburbana. Esta reacomodação não impediu a continuidade do
crescimento pelas margens, cada vez mais distantes da cidade planejada, feita
principalmente por aqueles com menor rendimento econômico. O rearranjo do espaço
urbano representa a redistribuição de antigos e novos moradores pela cidade, em um
processo de aprofundamento da segregação econômica e étnico-racial.

As classes médias altas e altas readequam seu discurso segregacionista e do


medo em termos de uma busca idealizada de vida urbana em meio a natureza, e se
refugiam cada vez mais nas bordas sul da cidade, em bairros como Mangabeiras,
Belvedere e outros limítrofes com o município vizinho de Nova Lima e em um processo de
formação de bairros privados, ou de condomínios fechados.

Por sua vez, a combinação da diminuição de áreas livres, especulação


imobiliária, concentração fundiária, desenvolvimento econômico, “facilitação” no acesso
ao crédito, incentivos governamentais, restrição ao processo de autoconstrução e por fim
a realização de grandes eventos esportivos, levou a uma hipervalorização do preço dos
imóveis, de modo que a classe trabalhadora por razões diversas às das classes média e
alta, também busca cada vez mais as margens da cidade nos bairros dormitórios das
cidades vizinhas do cornubamento de Belo Horizonte.

Vê-se por esta rápida descrição que a cidade é construção de seus citadinos,
são estes os arquitetos e alicerces dos des-re-territoriamentos da cidade. A cidade e suas
regiões morais não se trata de uma ideação, mas de lugares que territorializam a vida
vivida (Figura 4).

60
Figura 4: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo Horizonte, a área tracejada de preto é
a cidade planejada. Fonte: Anuário Estatístico de Belo Horizonte, 2003.

Manzo demonstra a importância de uma Antropologia da e na cidade


produzida a partir das relações, práticas e representações dos sujeitos detentores das
palavras políticas e dos saberes, fazeres, viveres em um processo que contextualiza a
comunidade e a cidade como um movimento constante e contínuo de transversalização
de trocas e caminhos cruzados. Neste sentido, estudar Manzo não é recortá-lo do espaço
urbano da cidade de Belo Horizonte, recortá-lo deste espaço urbano, seria negar-lhes a
vida vivida e vivenciada na participação da cidade. (Figura 5)

61
Figura 5: A partir do mapa das unidades de planejamento da PBH, podemos ver alguns dos bairros e lugares
conformados pelo encontro das regionais Centro- Sul e Leste (tracejo meu) trajetos, percursos e manchas urbanas
citados no trabalho. Fonte: Anuário Estatístico de Belo Horizonte, 2003.

62
CAPÍTULO 2 - Senzala de Pai Benedito

NKOSIÊ
Ah! Nkosi Ê
Aruê Inkosi Mukumbi, Nganga Keuala - Salve É Um Tata Keumalembê
Inkoso, Senhor da Guerra Ah! Inkosi Ê
É Um Tata Keumalembê
Nkosiê!!!
Tata Keumaleumbê
Luna Kubanga Kuta Kuetu – Nkossi ê – Aquele Inkosi Ê
que briga por nós, Nkossi Tata Keu Malembê
Nkosiê!!!
Mavambo Mavambo Di Amburé
Aê Aê Mukumbi Ê,
Nkosi Roxi Mukumbi tara messa Nanguê Mavambo Mavambo Di Amburé
Cóia ê ae ae ae, Cóia ê ae ae ae Aê Aê Mukumbi Ê

Komo Senzala Senza Rossi Inkosi Aê


Kamunjirê é pormô É de Amoracinda
Como Senzala Senza Rossi Katulá Vira Gongá Aê Ê
Kamunjirê aê Rossi É Um Getruá Ê

O Yayá Fala Mukumbi Naruê Ê Rossi Dilê Tata Tata Kuna Zambi
O Yayá Fala Mukumbi Naruê Á Mukumbi Aê
Fala Mukumbi Naruê Aê Aê É De Menê
Fala Mukumbi Naruê Á Inkosi Aê É De Menê
Tata Kunzambi
Banda Minikongo Aê Aê Aê Aê É De Menê
Banda Minikongo É Minikongo
Aê Aê Aê Aê Tabalasimbe é no Tabalandê
É Subukeuala Tabalasimbe é no Tabalandê
Banda Minikongo Aê Aê Aê Aê Ê Aê Aê
Banda Minikongo
É Minikongo É Monakaleê Banda Minikongo É Kabila Menê
Ô Luandê Nkosi Ô Sitalangê Navisala Caboclo
Ô Luandê Nkosi Ô Sitalangá Minikongo Kabila Menê
Navisala Caboclo
Rossibiolê Sibiolá Minikongo Kabila Menê
Rossibiolê Sibiolá
Meu Kajamungongo Ah! Rossi Inkosi Euandê
Rossi Inkosi Euandê
Rossi Inkosi Euadala

Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Nkose, o primeiro a ser saudado no Xirê, após Pambu Njila e os
Rituais de abertura dos trabalhos no Candomblé de Manzo

63
Segundo Mãe Efigênia, por volta dos seus 11 anos de vida começaram a
aparecer os primeiros sinais de sua espiritualidade. Naquela época, era comum ela ter
visões e vários desmaios.

Eu tinha muitas visões dentro de casa, via sempre uma mulher, essa mulher
parecia demais comigo, uma mulher suspensa do chão, mas eu não conseguia
ver o rosto dela, de tão claro que era o foco de luz no rosto. Aí eu saía correndo,
gritando e desmaiava, mas eu não desmaiava, eu bolava. Era minha Mãe Iansã.
Mas eu não sabia que era ela. Com 11 anos, caí na rua. Minha mãe me levou
para a Igreja e me levou para o Pronto Socorro. Eu não falava, imobilizada,
incorporada. Não comia. Minha mãe achava que eu estava epilética, que era
epilepsia, pois não conhecíamos o espiritismo. Levaram-me para o pronto
socorro duas vezes, na terceira vez a enfermeira disse assim: ‘esta menina não
tem doença nenhuma, leva no Centro Espírita que esta menina esta é
incorporada’. Minha mãe quase morreu, fez promessa para Nossa Senhora
Aparecida. Mas ai ela obedeceu. Nós não conhecíamos o espiritismo e ela me
levou com 11 anos para o espiritismo, ai chegando lá eu incorporei um preto
velho. Meu Paredão [Exu catiço53], depois veio preto velho, depois veio à
cabocla Jurema. Voltei ao normal. (Mãe Efigênia, março de 2012)

Apesar de ter incorporado com 11 anos, a vida no santo54 ainda não seria
desenvolvida nesta época. Pois ela retornaria à Bahia, novamente como empregada
doméstica. Nesta nova passagem, ela acredita ter ficado cerca de quatro anos. E apesar de

53
Em Manzo, catiço é o nome dado aos eguns, espíritos desencarnados, ou de encantados que se
incorporam nos médiuns e podem ser identificados dentro de categorias, como: Exus, Preto-velhos,
Caboclos, Baianos, Marujos, dentre outros. Entretanto, estes não se confundem com as incorporações de
divindades do Candomblé, os Inquisses. Existe uma separação entre essas duas categorias realizadas pelos
próprios filhos de santo. Segundo Mãe Efigênia: “Os orixás nunca tiveram forma. Orixá é um elemento da
natureza, é uma energia.” (...) “Os catiços são pretos velhos, baianos, exus, pomba-giras, marinheiros... São
espíritos que já tiveram forma, carne (...)”. Makota Cássia, assim se refere: “Exus que dão consulta são os
catiços, ou seja, os Exus que tiveram vida na terra e vem como entidade, a mesma coisa que o Preto Velho. A
Angola tem um espaço para eles.”Portanto, no Candomblé da Nação Angola, diferentemente de alguns
terreiros de candomblé da Nação Ketu, os caboclos, pretos velhos e exus catiços, são cultuados
transversalmente ao culto dos Inquisses.
54
Usarei ao longo do trabalho as expressões Santo e Candomblé, bem como Quilomblé para referir-me a
Manzo e sua comunidade. A opção pelos dois primeiros termos advém do uso êmico destes termos pelos
membros de Manzo. Seus significados específicos e múltiplos serão apresentados ao longo do trabalho em
consonância com os usos que os membros de Manzo dão a estes vocábulos. Por sua vez, conforme já
explicitado, o uso do termo Quilomblé é um neologismo criado por alguns de nós pesquisadores do NuQ-
UFMG, e é resultante da junção das palavras Quilombo e Candomblé.

64
estar na Bahia, com grande presença das religiões de matriz africana55, não desenvolveu
sua mediunidade:

(...) quando eu cheguei lá na Bahia eu conheci um pessoal que era de santo. Eles
disseram pra mim: “Tu é mineira?”. Eu disse “Eu sou mineira”. “Olha a
mineirinha, a mineirinha de santo”. Eu falei: “Sou...eu sou de santo” mas eu
achava que era porque eu fui criada num colégio de freira e por isso eu estava
junto do santo. Mas não podia existir um culto religioso que meu patrão não
deixava. (Mãe Efigênia, março de 2012)

Após retornar a Belo Horizonte - “minha mãe não queria que eu fosse embora
e se obedecia muito os pais, né? Hoje, não tem muito isso, é assim, eu vou, vou mesmo e
pronto” -, continuou a trabalhar como doméstica, agora na Rua Grão Pará, no Bairro dos
Funcionários. Foi nesta época, com 15 para 16 anos, que ela começou a trabalhar sua
espiritualidade e a “se desenvolver no Santo”, através da Umbanda.

Àquela época, ela passou a tocar sua Umbanda56, que não possuía uma
dogmática muito clara. Era “a macumba comendo para ajudar os que precisavam (...) não
tinha nem existência formal de um Terreiro.”:

Eu mexia com minha Umbanda, meu Pai Benedito, meu Exu Paredão, meu
Caboclo Ubirajara, minha Pombagira Cigana, eu achava que o Candomblé era
muito certinho, o povo não incorporava ali. Eu via todo mundo muito bem
vestido, arrumado, paramentado e eu acostumada com a Umbanda, uma sainha
branca de escrava e uma camisinha de criola - uma camisinha simples de
manguinha japonesa-, às vezes até mesmo uma sainha feita de saco e pé no
chão. O mojá e as guias no pescoço, nem falava ponto, e o pau quebrava, o

55
A utilização deste vocábulo busca descrever, o processo do pertencimento sociocosmológico em Manzo às
“Religiões de matriz africana no Brasil”. Goldman (2011:427) em seu texto “Cavalo dos Deuses: Roger
Bastide...”, na nota de pé de pagina 02 nos oferece uma explicação bastante coerente com esta opção:
“Religiões de matriz africana no Brasil” me parece uma fórmula sintética preferível às tradicionais
expressões “religiões africanas no Brasil”, “religiões afro-brasileiras” ou, pior, “cultos afro-brasileiros”. Isso
porque o termo “matriz” tem a vantagem de poder ser entendido, simultaneamente, em seu sentido de algo
que “dá origem a alguma coisa” – o que respeita, além de utilizar, o uso nativo, sempre preocupado em
relacionar essas religiões com uma África que não acredito ser nem real, nem imaginária, nem simbólica,
mas dotada de um sentido existencial – e, ainda, em seu sentido matemático ou topológico (“matriz de
transformações”), que aponta para o tipo de relação que acredito existir entre as diferentes atualizações
dessas religiões e, ao mesmo tempo, para o método transformacional que penso necessário para seu
tratamento analítico.”
56
Ver mais a frente a especificidade da Umbanda no Candomblé de Manzo.

65
espírito pegava mesmo e curava muito gente. Curei muita gente mesmo, e a
macumba comendo ali, os tambores, palmas, casa cheia, benze aqui e benze ali,
e minha mãe carnal desesperada por ser muito católica, do Apostolado de
Maria. (...) Só que a umbanda é totalmente diferente do candomblé. Chegava,
tomava um banho, a casa cheia. Já incorporava e virava a noite ali. Todo dia
chegava um quebrado, um para benzer, um queimado. Aí minha mãe começou a
achar ruim. Ficou com medo, porque eu era de menor e naquele tempo era
muita perseguição com a polícia. Aí, mãe começou a proibir. Então eu comecei ir
à casa das pessoas, a benzer as pessoas. Eu sentia que era necessidade, fazer
aquilo. (Mãe Efigênia, março de 2012).

Ainda nos serviços domésticos, passa a trabalhar junto com sua mãe na casa
da família Alípio de Melo: “Onde hoje é o bairro Alípio de Melo57, era a fazenda deles.”
Certo dia, durante o trabalho doméstico, Efigênia é abordada por um parente de seus
patrões vindo do interior: “se a senhora resolve mesmo, me tire desta situação, que eu lhe
dou o que a senhora quiser”. Esta lhe respondeu: “se eu resolver pedirei uma coisa que
para o senhor é muito fácil, me dá um pedacinho da sua terra. Para eu construir um
barraquinho, pois eu moro na favela, em um barraco de compensado que eu mesma fiz.”

Este por sua vez prometeu-lhe que, se seu problema fosse resolvido,
compraria uma casa em Belo Horizonte, já que “lá onde eu tenho terra é muito longe e
você não pode morar lá, porque lá é um ermo”. Como logrou sucesso na demanda, através
de seu Preto Velho Pai Benedito, o consulente cumpriu a promessa, mas apenas pela
metade.

Ai ele pegou e comprou um Terreno no [bairro] Paraíso. Ele comprou e me deu,


mas não pagou o valor todo. Já tinha resolvido o problema dele! Ai o dono do
terreno, o Seu Joaquim, me chamou: “- oh Nega, deixa eu te falar uma coisa,
você trabalha muito, é uma mulher muito esforçada, tem filho e tudo e não vou
esconder de você. Seria sacanagem se eu fizesse isto com você. Olha só, deixa eu
te falar: - esta casa que vocês moram é um barraco que era do meu pai e seu

57
Segundo a Prefeitura municipal de Belo Horizonte - PBH, o bairro Alípio de Melo, na regional noroeste foi
“criado a partir do loteamento da antiga Fazenda São José, de propriedade do coronel Alípio de Melo, o
nome do bairro homenageia a homônima família e também à tradição operária de seis cooperativas que, em
1976, em convênio firmado com o Banco Nacional da Habitação (BNH), construíram o Conjunto Habitacional
Alípio de Melo. As ruas com nomes de profissões relembram a origem operária do Alípio de
Melo(...).”(http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMen
uPortal&app=historia&tax=14406&lang=pt_BR&pg=5780&taxp=0&)

66
patrão não pagou tudo e eu vou ter que tomar o terreno. Mas eu não tenho
coragem de lhe por na rua com seus filhos assim, então eu te devolvo os dois (2)
mil cruzeiros que ele me deu. E você compra em outro lugar, este dinheiro deve
dá para um barraquinho na favela.” (Mãe Efigênia, julho de 2012).

Este episódio, reproduzido em versões com variações por vários membros do


Quilomblé de Manzo, é um dos marcadores do surgimento de um novo lugar: A Senzala de
Pai Benedito, centro vital da comunidade.

Quando eu vi aquele dinheiro na minha mão, eu nunca tinha visto dinheiro, ai eu


fiquei louca e sem experiência paguei 1500 de entrada nesse terreno, e comprei
um caminhão de painel compensado, um pé de cabra, um serrote, dois pacotes
de prego, uma enxada e uma picareta e finquei o barraco ali. Fui à mata da
baleia e cortei os paus, chegou o caminhão de compensado e fiz dois quartos e
uma porta. Eu mesma que fiz o barraco. (...) buscava os paus e trazia na cabeça.
E fincava o barraco de noite. Quando chovia e depois vinha o sol, o compensado
estragava tudo. Eu tinha que correr e buscar mais compensado, para jogar o
outro fora, queimava aquele e punha outro no lugar. (...) Não tinha luz, não
tinha água, podia ter comprado tijolo né... Ai tentei furar uma cisterna, mas
chegou numa altura eu fiquei com medo. (...) Aqui não tinha muita casa,
enchíamos os baldes e tambores de água da mina, o córrego passava lá
embaixo, usávamos o córrego para lavar roupa para fora. (Mãe Efigênia, julho de
2012).

Mãe Efigênia, após sair da antiga casa, movimento que teve de ser feito sem
muito planejamento, e antes de comprar a atual área do Quilomblé, chegou a dormir na
rua com seus filhos. A este respeito, Mãe Efigênia comenta sempre muito emocionada:
“eu já morei na rua e sei como é ruim, amanhecer e anoitecer na rua”. Quando encontrou
a atual área em que se localiza Manzo, exclamou: “parece que é coisa do santo”.

2.1 - Manzo é a Senzala de Pai Benedito

Salve Pai Benedito.


Adorei as Almas!!!!

Quem é aquele velhinho


que vem no caminho cantando devagar
com seu cachimbo na boca
fazendo fumaça pro ar
ele é do cativeiro
meu pai Benedito
ele é mirongueiro.

Pai Benedito é preto

67
Ele mora no roseiral
Ele é preto e tem coroa Sá Dona
Ele é chefe de congar

Arriou na linha de Congo, é de Congo, Congo aruê


Arriou na linha de Congo agora que eu quero vê
Salve Congo, salve os Reis Congos,
Salve os Povos de Iansã, Salve São Jorge Guerreiro e Salve São Sebastião

Ao adquirir o terreno onde hoje se localiza o Quilomblé de Manzo e construir


seu barracão, feito de compensado e pedaços de madeira coletados na mata do Hospital
da Baleia, Mãe Efigênia começou a tocar para umbanda. Seu Centro foi nominado Senzala
de Pai Benedito a pedido e em homenagem ao Preto Velho Pai Benedito, entidade
incorporada por Mãe Efigênia. Makota Cássia afirma: “quando ela veio para cá, o Pai
Benedito falou que ele não importava quem morasse no terreno desde que respeitassem
sempre o espaço dele. E foi aí que a gente começou com um terreiro de umbanda.”

Estou morando lá, no barraco de compensado e um dia o Pai Benedito chegou


se incorporou e disse; “- eu quero um centro aqui.” Eu não sabia nem onde
começava mexer com centro e nem onde acabava. Falei: “- bem esta coisa de
centro deve ser um quartinho.” Comprei mais painel compensado e construí
mais um quartinho, até o teto era de compensado. Peguei um tabaquinho
pequenininho [atabaque pequeno], só nós três, eu e meus dois filhos, o Jorge e o
Emerson. Ai depois disto, surgiu que tinha que registrar. Quando eu fui registrar,
meu compadre, que era padrinho do meu filho, me disse: “- mas você não pode
registrar um centro de compensado”. Não existe isto não. Vamos fazer o
seguinte, vamos arranjar uma ata e eu vou ver se consigo lá no Palácio [se refere
ao Palácio da Liberdade, então sede do governo de Minas Gerais] uma doação
para você. (...) Ai eu ganhei tijolo, ganhei areia, ganhei brita, e fiz um quartinho,
onde hoje o Italogi [digina social58 de seu filho Emerson] mora, ali eu toquei

58
Segundo Lucas, companheiro de Mãe Efigênia:
“A digina é o nome que o Santo traz. O Santo já traz com ele o nome. Isto é complicado, pois o nome dele é
único, o nome é específico e ele só fala para o acompanhante de confiança daí a importância do pai e mãe
de santo, dos pais e mães pequenas, as madrinhas, aqueles que participam da feitura, pois somente eles
sabem os fundamentos do Santo. Se o pai de santo falta, quem sabe das coisas especificas, das folhas e dos
fundamentos do meu santo é minha madrinha e minha mãe pequena. Eu tenho além do pai de santo, uma
mãe pequena e uma mãe de reza que participaram da minha feitura. Estas pessoas sabem das coisas do meu
Santo. Eu mesmo, não sei todas as folhas do meu Inquisse, meu Santo. Mas estas pessoas sabem quais as
folhas podem me levantar ou me derrubar, ou se eu tiver um problema de saúde, estas pessoas vão tomar a

68
durante muitos anos, naquele lugar onde eu também morei durante muitos
anos, onde você me conheceu. Acho que foi 1973. 24 de setembro de 1973. Dia
de Nossa Senhora das Mercês - protetora dos escravos. Eu estava entrando
naquele terreno com a imagem de Pai Benedito, e uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida e um São Jorge Guerreiro. Eu entrei capinando, coloquei-os
em cima do tijolo e falei assim - chego a arrepiar - olha minha N. Sra. Aparecida
eu morei na rua com meus filhos. É muito triste morar na rua. Porque o dia
amanhece, e não sei para onde ir, anoitece e não sei onde repousar com meus
filhos. Minha mãe eu consegui isto aqui e a Senhora não vai me deixar perder
isto nunca. E o senhor meu Pai Benedito e São Jorge é muita batalha. É muita
luta, é muita guerra, este Terreno está entregue à Senhora. Em suas mãos -
lembrei-me disto agora, nesta conversa -, da Senhora, Pai Benedito e São Jorge é
vocês três que estão entrando junto comigo para a gente não perder nunca isso
aqui. Porque lavadeira, empregada doméstica e mãe solteira, tinha que ter

providencia com o meu Santo. Meu pai sabe o nome do meu Inquisse pessoal, e existe o roncó, digina social,
um nome público, que não é o mesmo. Na linguagem de hoje, seria digamos assim, [rs] um fake [rs]. Pensa
bem!!! se alguém souber o nome mesmo de seu Inquisse pode até te matar.”
Segundo Wilson Ferreira de Jesus, zelador de santo, em seu seminal “Angola culto Afro: verdades, conceitos
e criticas” (1976:58-59) os nomes dos santos, eram definidos do seguinte modo: “ três dias antes da festa do
nome, os zeladores mandavam os erês dos iaôs recolhidos buscarem o nome, tanto o dele próprio como o do
pai e mãe e em seguida despacham os erês e ficam ali esperando, decorrido uns dez minutos, eles os
chamam de volta e perguntavam qual seria o nome dado ao erê, então, eles diziam assim: “DANDARÊ –
ACAMBÊ-MAVAMBI”, aí é que está o trabalho do zelador, pois terá o mesmo que dividir somar e multiplicar
as sílabas destes nomes para depois então do dividendo, o resto forma o nome que o iaô terá dentro da seita
denominada Angola. (...) esta é uma das fases mais trabalhosa do zelador, porque ele tem que ter certeza da
autenticidade do nome e se o mesmo diz alguma coisa que combine com a vida do santo e também com a
vida do iaô (...) esta fase de eliminação de sílabas, contém mais segredos do que muitos que se dizem
zeladores de santo possa imaginar. Nela está gravado a vida e a morte do iaô, as glórias e as misérias dos
mesmos, bem como para o próprio zelador, porque se ele não sabe traduzir o que o santo diz, então como
poderá dirigir o santo e o filho. Suponhamos que o santo diga que o filho vai ser atropelado dali um mês,
como ira ele fazer para evitar se não sabe o que ele mesmo escreve. Obviamente daquele nome estará o
nome do Exu do Santo e do Egum que futuramente será cuidado.”
As explicações de Lucas e de Wilson de Jesus nos mostram a importância e a centralidade no ato de
nominação no Candomblé Angola, visto que tal ato carrega em si mesmo parte do Ngunzo – ou seja, da
força vital que assegura a existência dinâmica, permitindo o acontecer e o devir. Não por outro motivo, o
nome que se carrega diz respeito não somente ao Inquisse, mas também ao Exu pessoal e ao nome de
Egum, ou seja, ao nome a ser cultuado depois da morte. Por fim, tais explicações nos esclarecem que por
digina, podemos nomear dois atos complementares, aquele de se nomear nos termos de Lucas com o nome
verdadeiro e secreto do santo – aquele nome que contém a vida e a morte do filho. E o outro ato, de
nomear socialmente o noviço, ato público, com finalidade de demarcar a morte do não iniciado - Ndumbe e
seu renascimento como Muzenza – aquele que foi iniciado. Portanto, no caso acima, a digina trata-se do
nome público de membro da Comunidade do Candomblé Angola, e não o nome pessoal do santo de
Emerson. Este nome público também é definido com base no jogo de búzios e nas operações acima
descritas levando em conta os enredos, costumes e qualidades dos Inquisses que conformam aquele filho de
santo.

69
alguém para proteger, lembro como se fosse hoje: tá na mão da senhora. Eles
não vão me deixar perder aquilo ali mesmo não. E assim surgiu. Eu peguei um
pedaço de tábua da A.D.Moreira [antiga loja de móveis no centro da cidade que
possuía depósito no Bairro Santa Efigênia] e escrevi com tinta: Centro Espírita
Umbandista A Senzala de Pai Benedito - chego a arrepiar quando lembro disto.
Não posso mudar este nome não! A Senzala de Pai Benedito!!! E ali Pai Benedito
fazia cura, Pai Benedito benzia. (Mãe Efigênia, Julho de 2012)

Foi nos intervalos, entre o trabalho como doméstica na casa do “patrão” e em


sua própria casa “passando e lavando para fora”, e como mãe de filhos pequenos, como
ela faz questão de ressaltar, que a Senzala cresceu: “ai dava um tempinho para incorporar.
Ai eu atendia o pessoal, assim foi feito a Comunidade de Manzo, da Senzala. Eu chegava lá
tinha 05 e 06 pessoas. Um levava outro. Ai eu fazia comida, íamos todos comer.”

Eu ficava a noite inteira, passando roupa para os outros com ferro de brasa,
lamparina acessa. Roupa de linho, cambraia, punho duplo, engomada. Ai eu
entregava roupa na Lagoinha59. Tinha bonde na época, íamos de bonde que era
mais barato. Já existia ônibus elétrico, mas só entrava rico, pois era mais caro. O
Terreiro depois era de alvenaria, pelas doações, mas minha casa era de
compensado. Dormíamos lá dentro [Centro] de colchão no chão, pois a casa era
de compensado e caia com as chuvas. Eu não tinha nada, a gente andava era
descalça mesmo. Hoje mulher não faz mais isto não, meu filho. (ibdem)

Para Mãe Efigênia esta jornada é motivo de orgulho, para qual ela foi
escolhida60.

(...) Eu fui ganhando cimento, areia. Eu benzia. Ai perguntavam: quanto é? Pai


Benedito nunca deixou cobrar de ninguém, uma moeda que fosse. Mas se você
quisesse ajudar, me doava alguma coisa. Mas dinheiro ele jamais permitiu, você
podia ser milionário, que ele não deixava cobrar. E ai eu ganhei material. Um
dia, ganhei um fogão de gás, eu até passei a língua para ver se era de verdade.

59
Bairro suburbano histórico da cidade, vizinho a região central da cidade, às margens do Rio Arrudas e
Avenida do Contorno, na regional Noroeste. Foi um dos primeiros de origem operária, e suas casas foram
construídas em torno de uma pequena lagoa, onde hoje está erguido o Complexo Viário da Lagoinha.
Segundo os estudos realizados a respeito do bairro, na Lagoinha, ainda existem algumas famílias
remanescentes dos operários ligados à Comissão Construtora. Durante muito tempo o local ficou conhecido
como cantinho da velha Itália em Minas Gerais. Foi uma importante zona boemia da cidade, a menos de um
quilômetro do Centro, com seu comércio agitado, os botequins, suas pensões, o samba na Vila Senhor dos
Passos. Dessa época vem à designação do popular copo lagoinha, atribuído a um modelo de copo de vidro
muito utilizado nos botequins e rodas de samba na região.
60
Como diz um dos pontos cantados nas sessões de Umbanda, em homenagem a Preta Velha Vovó Catarina
de Angola: “Eu quero ver Vovó, eu quero ver, eu quero ver se filho de umbanda tem querer!!!”

70
Tinha fogão, mas não tinha o botijão, ai quando ganhei o botijão ficava com
medo de ligar o fogão e tomar choque [risos]. Então surgiu a Senzala de Pai
Benedito assim e a Comunidade de Manzo Ngunzo Kaiango surgiu quando teve
que mudar o nome por ser um Candomblé. (ibdem).

Makota Cássia se recorda do surgimento da Senzala da seguinte forma:


Para Makota Cássia, Pai Benedito A mãe me contou que ela trabalhava em casa
de família, no caso a família Alípio de Melo. E um parente deles teria pedido
ajuda a ela e teria oferecido o que ela quisesse para resolver um problema para
ele. E ela então teria pedido um pedacinho de terra, pois não tinha onde morar.
E ele então, teria oferecido uma área em BH. Na narrativa dela, ele comprou
uma casa aqui no [bairro] Paraíso [vizinho ao bairro de Santa Efigênia, onde fica
o Quilomblé], mas só pagou metade e o dono do terreno, a chamou dizendo do
ocorrido e devolveu a ela o que ele havia recebido mas pediu para ela sair do
imóvel. Em resumo esta é a história da origem daqui. [rs] Carlos seus
questionamentos me faz lembrar das coisas [rs] bom é por ai, o que ela me
contava, e Pai Benedito também. Ele sempre falou que ganhou este cantinho
aqui. Era o que ele contava para gente. Pai Benedito contava assim: “- que isto
aqui ele ganhou, porque ele fez uma cura para uma pessoa. E esta pessoa quis
dar a ele dinheiro– ele não usava a palavra dinheiro - e sim pataca ou um termo
assim. Mas ele não aceitou, ele sempre falou isto como sermão a favor da
caridade. Ele falava assim: - não se vive só de pataca. Ele nos contou que pediu
um lugarzinho para ele atender e receber as pessoas. Mas mesmo aqui, a coisa
foi mais complicada, não me lembro tão bem, mas até aqui chegamos ser
ameaçados de desocupação por falta de pagamentos. Tenho lembranças de que
aqui também foi comprado a prestações, pois até algum tempo atrás me lembro
de ter visto as promissórias. (...) Ai minha avó, foi na Sociedade São Vicente de
Paulo, que era aqui embaixo e explicou a situação: disse que minha mãe iria
perder o lote e tinha seis filhos, nesta época meu pai havia abandonado minha
mãe. Ai um moço da São Vicente ajudou, acho que doou um dinheiro. Eles então
deram dinheiro para minha avó ir pagando as prestações. Mas acho que minha
avó não falou para minha mãe esta história. Tanto é que o lote depois foi
dividido entre elas. Mas Pai Benedito sempre dizia: nego nunca foi consultado,
se queria ou não dividir as terras de nego. As terras são de nego. Pai Benedito
sempre disse isto. Tanto é que minha avó respeitava Pai Benedito, a palavra dele
era lei. Até hoje não consideramos isto aqui nosso. Isto aqui é do Pai Benedito,
nós moramos de favor. Todo mundo mora aqui de favor. A mãe sempre falou
isto: - aqui não é de vocês não. É de Pai Benedito, então vocês não tem direito a
nada. (Makota Cássia, julho de 2013)

É a liderança constante do grupo e referência para decisões e fazeres da e na


comunidade de Manzo. Em uma conversa com Cássia, no ano de 2012 quando o grupo
estava fisicamente desalojado de Manzo, ela me disse:

71
Quando nos perguntam: vocês vão deixar o Intoto61 lá [no Quilomblé]?
Respondemos: - não recebemos nenhuma ordem do próprio Pai Benedito para
retirar o Intoto. Só vamos retirar quando ele falar: - tem que retirar. Mas nós
não vamos perguntar de forma alguma, porque temos medo da resposta. Mas o
que ele vem nos orientado até agora é para termos calma e paciência que tudo
vai se ajeitar. Em momento algum ele disse vão se preparando e começa todo
mundo a comprar terreno em Santa Luzia62. A orientação que temos: - vamos
continuar que tudo vai se ajeitar. (Makota Cássia, abril de 2012)

Para Cássia, a presença de Pai Benedito é a de um amigo, pai, educador,


conselheiro, presença sempre respeitada, ainda que às vezes desobedecida:

(...) acho que toda a situação que estamos passando hoje, em um olhar religioso,
é para mim, um “acorda” para dar valor. Porque estávamos deixando de lado. E
acho que tudo isto que aconteceu é como se fosse um castigo. Por isto que eu
sempre penso que vamos voltar. Quando minha mãe não estava dando conta,
razão pela qual fomos iniciados tão cedo. Coisa que minha mãe não gosta de
fazer e não faz hoje em dia: veja minha filha tem 17 anos e ainda não foi
iniciada. Mesmo outros adolescentes, com 20 anos, a mãe não inicia, pois ela
pensa que tem que se ter vivido toda a infância e adolescência, porque o
Candomblé é uma coisa que tem que ser levado a sério. (...) Então nós fomos
iniciados muito cedo, meu irmão foi iniciado com 09 anos de idade, e um dia,
nós chegamos e meu irmão não queria tocar de jeito nenhum e me lembro da
minha mãe chorando. Ai o Preto Velho veio na minha mãe e falou com ele que
tudo que nós éramos até aquele momento se devia ao Terreiro. Então, durante
toda nossa vida, e enquanto vida nós tivéssemos, nós tínhamos esta dívida com
o Terreiro.
Mas ai nós resolvemos viver nossas vidas, pois não tínhamos vivido
adolescência, tínhamos vivido apenas no Terreiro. Queríamos trabalhar,

61
Assentamento para o Inquice dono do chão da Angola. No Caso do Candomblé de Angola, assentamento
para Kavungo. Ver-se-á mais a frente, à importância sociocosmológica e cosmopolítica desse assentamento
para a segurança e a manutenção do Terreiro.
62
Cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, onde Mãe Efigênia possui uma residência, que passou
a abrigar parte dos Santos do Quilomblé, devido à desocupação da comunidade no ano de 2012. Devido às
impossibilidades de se manter o Santo no Terreiro de Santa Efigênia, a comunidade decidiu pela realização
de obras emergenciais nesta residência de Mãe Efigênia, tendo sido construído algumas casas de santos,
assentamentos e outros elementos sociocosmológicos, como uma cozinha para a preparação dos
codimentos usados no dia-a-dia e nos rituais do Candomblé de modo que, sem se realizar as cerimônias
principais - o que tem causado enormes dissabores à comunidade- é possível realizar pequenas obrigações
principalmente para os clientes. Para os iniciados, os rituais de maior complexidade ritualística e
cosmológica estão suspensos – o que coloca em risco a própria existência destas pessoas e sua comunidade
- e só poderão ser retomados após o retorno ao Terreiro de Santa Efigênia, onde se encontra os Axés
principais do Abassá: Intoto e Comunheira. Razão pela qual se chega a cogitar – diante da inércia dos
poderes públicos - na transferência em definitivo das atividades do Candomblé para este local, mantendo-se
em Santa Efigênia apenas algumas atividades da Umbanda.

72
estudar... Porque no Candomblé é assim: se você vai viver do Candomblé, você
tem que escolher. Ou é o Candomblé ou a sua vida profissional, porque você
passa a viver para as pessoas que vão ali, em busca de alguma coisa, então não
dá para ter as duas vidas juntas. E começamos a constituir nossas famílias e
queríamos dar exemplo para eles, mostrar que o caminho era trabalhar e
estudar para ser alguém na vida. Nós largamos o Candomblé com a minha mãe
sozinha e tinha dia que a mãe tocava e a gente dentro de casa assistindo
televisão e não descíamos para ajudá-la. Então, pode ser uma forma de acordar
e dizer: ou vocês voltam e assume cada um, aquilo que vocês vieram para fazer,
ou então eu vou tomar tudo.
E durante este período que estamos no abrigo, percebemos: nós nunca
sentimos tanta falta de uma sessão e do som do atabaque, de um defumador
então. Eu to aguada com cheiro de defumador. (Makota Cássia, abril de 2012).

Como gosta de afirmar Mãe Efigênia: “não deixo Pai Benedito de lado não.
Devemos muito a ele.” Makota Cássia, lembra que:

(...) os toques de Umbanda trazem mais pessoas para a casa. Mas na verdade,
todos que estão aqui sabem que o Candomblé é o próximo passo. Mas eles
chegam pela Umbanda. Fazer o Santo é uma questão de confirmação na Casa.
(...) Pai Benedito vem primeiro né. Eu vejo assim, o Candomblé é mais público e
a Umbanda para se desenvolver, o candomblé é mais roupas, teatral nesse
sentido para o público e a Umbanda é mais pura, nesse sentido. Candomblé tem
mais vaidade, nesse sentido de roupas, artefatos... Umbanda é mais
simplicidade. Candomblé têm muitas regras, obediência, hierarquias. Na
Umbanda você obedece, mas não por que são ordens. (...) A Umbanda se
transformou em Candomblé. Mas para nós ao mesmo tempo aqui se mantém
como Senzala. Eu acho que Pai Benedito é que nos liga aqui, se fosse só
Candomblé não sei se resistiríamos tanto. Eu já vi a Mãe dormindo incorporar
Exu [catiço] Paredão sair pela rua e ir ali: na rua aqui ao lado, e chegar lá meu
primo sendo preso pela polícia e ai Paredão determinou que o policial o soltasse,
e ele soltou, [risos] isto eu vi. (Makota Cássia, julho de 2013)

Portanto, em Manzo, a coexistência entre Umbanda e Candomblé não se trata


apenas de categoria litúrgica, mas de um modelo .Por modelo, tomo aqui a definição de
Ordep Serra (1995: 40):

Neste contexto, modelo designa uma abstração que se reporta a


correspondências inferidas comparativamente entre formas institucionais,
procedimentos e esquemas simbólicos. Ao falar de modelo, não se postula a
invariância dos processos ou das formas, aponta-se a existência de um sentido
que interliga as variações encontradas, um padrão que as correlaciona e que
permite referí-las a uma matriz comum. Dita matriz não se acha localizada entre
os objetos que lhe correspondem, nem constitui seu arquétipo, mas realiza-se
neles, na continuidade de sua transação histórica (...).

73
Portanto, a noção de modelo, de Serra se aproxima do que vi em Manzo, no qual
Umbanda e Candomblé são coetâneos, subsistem e entrecruzam-se nas práticas rituais da
Casa.

“(...) o Pai Benedito falou que ele não importava quem morasse no terreno
desde que respeitassem sempre o espaço dele. E foi aí que a gente começou
com um terreiro de umbanda. E foi em 1986 que a gente virou terreiro de
candomblé e aí vem até hoje. Toca-se um terreiro de candomblé, mas
respeitando sempre os toques de Umbanda e sempre a Festa de Pai Benedito,
em respeito até mesmo ao terreno, ao espaço dele que foi o primeiro que
chegou aqui com a gente. Audiência e o Xirê modifica dependendo das Festas.
(...) O Candomblé tem um monte de filhos, foi a Umbanda que transformou
todos em filhos e membros do Candomblé. A Mãe levou os filhos da Umbanda
para o Candomblé.” (Makota Cássia, abril de 2012)

A descrição acima, de Makota Cássia, nos indica aquilo que José Carlos dos
Anjos (2008) descreveu como “território da linha cruzada”, por conter referências
fusionais e unitárias entre si. A coexistência de vários lados em uma mesma casa, mas com
ritualidades separadas por momentos e/ou lugares diferentes. Dito de maneira direta, a
presença de ambos os cultos não retira a validade do outro. Eles não são excludentes, ao
contrário, eles podem e devem fazer trocas entre si, uma vez que se reconhece em Angola
que o Ngunzo é possuidor de potência e eficácia, e esta não se transfere apenas nos cultos
exclusivos – aliás, a troca com outras formas religiosas, foi aquilo que a literatura chamou
de sincretismo e classificou em seus próprios termos como um viés negativo. Advogo aqui,
a partir da sociocosmológica Angola um sincretismo positivo.

A multiplicidade da troca, e a permeabilidade das fronteiras estão dadas na


própria cosmológica da troca como reciprocidade. Como já apresentado, Mãe Efigênia é
precisa ao informar-me várias vezes: “fui escolhida”. Ou seja, esta-se diante uma vez mais
da reciprocidade: se escolhe mais também se é escolhido. Esta reciprocidade assenta-se
como visto e como ainda se verá em uma troca que se valoriza a transitividade e a
permeabilidade. A forma religiosa como se verá mais a frente em detalhes é a resultante
da multiplicidade de linhas ou nações de Santo. O relato de Makota Cássia, a esse
respeito, é preciso: você é escolhido pelo Santo, mas quem o desperta é você. Retomarei

74
este ponto no próximo capítulo ao analisar a fala de Mãe Efigênia a respeito de seu
processo de despertamento do Santo.

Eu me lembro de que quando a mãe chegou da Camarinha 63, tivemos que


preparar a casa. Tivemos que criar quarto de santo, aqui não tinha quartos de
santos, tinha altar. Mas nem conhecíamos os quartos. A casa toda enfeitada.
Mas até a Mãe se assustou. Durante o primeiro ano, a Mãe não podia virar no
Santo, só no Erê. Com isto Pai Benedito, começou a perder espaço. Isto foi um
choque porque a família estava acostumada com Pai Benedito, ele vivia aqui de
costume. Esta foi uma época de muita dificuldade, lembro que passamos até
fome. Quando a Mãe fez 03 anos de santo, a Mãe achou que a vida estava
péssima, sem luz, sem comida direito, enfim as coisas estavam ruins.(...) Ai nesse
momento o que a Mãe fez foi montar o altar de novo. Ela chegou a cogitar a sair
do Candomblé e ficar só com a Umbanda, mas ao mesmo tempo sabemos que a
feitura do santo é algo bem sério, pois somos nós que despertamos o santo né.
Então a ligação com o Santo é grande, é como se ele estivesse dentro da veia
correndo no sangue. Então a Mãe ao mesmo tempo tinha esse compromisso,
mas queria continuar com a Umbanda. (...) Ai minha mãe foi em um Pai de Santo
e ele disse, que ela poderia continuar com os dois, me lembro, que na época
chamavam de Nagô-Voducê, Nagô porque era a Senzala, e Voduce por que era
os Orixás, os Santos, e ai ficou uma Casa com sessão de Umbanda e Candomblé.
Então voltou o altar, passamos a tocar de 15 em 15 dias para Pai Benedito:
segunda tocava para Pai Benedito e Marujo e na quarta: Paredão [Exu Catiço] e
Caboclo. Ou seja, tocávamos para marujos, para as almas, pretos-velhos e no
caso do Candomblé tocávamos para o Santo. Às vezes, fazíamos no mesmo dia a
sessão de ambos, apesar de serem momentos com gírias, cantigas, toques
específicos, mas às vezes em um mesmo dia de sessão. (Makota Cássia, janeiro
de 2014).

Birman (1985) nos fala em “Umbanda traçada” para descrever no


contexto do Rio de Janeiro, um fenômeno que se assemelha, ao de Manzo, onde se pode
encontrar a coexistência do candomblé e da umbanda.
Para uma literatura, sobre o processo formativo da Umbanda e suas
características e seus debates ver Montero (1985), Prandi (1991,1990). Aqui interessa
afirmar que a partir dos dados de Manzo, discordo da visão clássica oferecida por Bastide
para a relação Candomblé/Umbanda segundo a qual o Candomblé corresponderia a um
plano de transcendência e a Umbanda a um plano de imanência. E com base, nesta

63
Local em que ficam recolhidos os noviços durante os rituais de despertar do santo. Localiza-se em uma
parte interna do terreiro, onde somente é permitida a entrada de pessoas que já foram iniciadas.

75
dicotomia, seria possível classificar hierarquicamente estes dois cultos, sendo então o
Candomblé mais puro, estruturado, organizado em relação à Umbanda. Bem como a
classificação que colocaria o Candomblé em plano “mais africano” em relação a Umbanda,
que por sua vez seria “mais nacional”. Como se tem visto e ainda se verá, a partir de
Manzo, a linha divisória e fronteiriça entre estes cultos só podem ser entendidas a partir
do sentido que elas possuem para aqueles que as vivenciam e as experienciam, ou seja,
visto desde dentro, pela forma que os membros do Santo as vivenciam, concebem e
percebem. E nesse caso não me parece ser possível a existência dessa dicotomia
transcendência/imanência como categorias estanques, como se verá mais a frente, essa
opção me parece menos uma sociologia da religião e, mais uma forma teológica cristã de
classificar o fenômeno religioso.

As práticas da Umbanda, nos relatos de Manzo, remetem a busca por se fazer


o bem, enquanto uma dimensão teológico-moral por um lado e, por outro, como um
relato da diáspora africana. Giumbelli assim descreve esta relação temporal da Umbanda
com o presente, o passado e o devir:

(...) Ela [África] está nas palavras e nas práticas. Ainda mais: ela está nas
narrativas que fazem a genealogia da nova religião, mesmo quando se trata
apenas de um lugar de passagem. E, no entanto, não é aí que a presença da
África é mais forte nas construções umbandistas. Afinal, a umbanda não se
pretendia um empreendimento de preservação ou de recuperação do passado.
Seu olhar estava voltado para o presente, tempo de combater o mal “que ainda
domina no planeta”; e para o futuro, quando uma nação mais evoluída surgiria
por sua contribuição.” (Giumbelli, 2010: 115)

A Umbanda, segundo Vagner Gonçalves Silva (1994), se origina em torno dos


anos vinte e trinta do século XX, a partir da mescla entre as tradições Kardecistas urbanas
de classe média, as matrizes religiosas afro-brasileiras, o catolicismo popular e as práticas
ameríndias em um amálgama que se apresentou como genuinamente brasileiro.
Autodenominando-se uma religião cristã e legitimando a possessão dos espíritos, a partir
de um discurso racionalista, ela vai em seu princípio, identificar nas práticas africanas um
fator de primitivismos e/ou barbarismos, que levavam à identificação da Umbanda com a
Macumba e/ou feitiçaria, algo a ser abolido.

76
Entretanto, como lembra Vagner Silva (1994) e Giumbelli (2010), se ela
defendia um “embranquecer” dos valores e práticas presentes na macumba, tais como,
evitar-se o sacrifício – em Manzo o que se faz é a sacralização [ver mais a frente em
detalhes] - de animais e a “domesticação” da presença de espíritos não evoluídos, a
macumba também buscou “empretecer” os valores kardecistas. Disto temos uma mescla,
em que, por exemplo, o panteão recebe grande influência da macumba e do candomblé,
mas se mantém uma cosmovisão dicotômica que divide o mundo entre Bem e o Mal.
Portanto, para Vagner Gonçalves a passagem da umbanda para o candomblé é como uma
reordenação da trajetória religiosa em que as diferentes tradições religiosas estão em
permanente processo de reinvenção e rearticulação64.

Prandi, em Os Candomblés de São Paulo (1991: 77-90), também debate este


tema, a partir da análise de uma série de histórias de vidas de diversos pais e mães de
santo. Na análise de Prandi trata-se de uma passagem da Umbanda ao Candomblé. O caso
de Manzo, e de outros Candomblés com os quais já mantive contato, por ocasiões de duas
outras pesquisas de Inventariamento65, segue a tendência da Umbanda ao Candomblé,
mas como argumentarei ao longo do trabalho principalmente para o caso de Manzo, não
existiriam neste processo de trocas e caminhos cruzados, passagens no sentido
convencional do termo, ou apagamentos e sim uma transversalidade de Ngunzos – aqui
advogo que a transversalidade é, portanto uma mão dupla, tripla, múltipla. De modo que
intento, ver estes movimentos de acordo com a sociocosmológica Angola e não a partir de
uma análise externa do fenômeno.

64
Para um debate mais aprofundado ver: Vagner Gonçalves da Silva “O terreiro e as cidades nas Etnografias
Afro-brasileiras”, Rev. de Antropologia, Vol.36, 1993.
65
Baseio-me aqui no fato de ter participado de duas pesquisas de Inventário e Mapeamento de bens
culturais afro-brasileiros no município de Belo Horizonte. A primeira realizada nos anos de 2003/2004 e a
segunda nos anos de 2011/2012. Na primeira atuei como pesquisador de campo nos Terreiros de Umbanda
e Candomblé e na segunda na coordenação dos levantamentos de dados de Terreiros de Umbanda e
Candomblé e de Quilombos Urbanos.

77
Assim como Edgar Barbosa Neto, percebeu no caso dos Batuques Gaúchos, em
Manzo convivem tempos, cosmoespaços e cosmologias do Candomblé e da Umbanda:

O fato, devemos acrescentar, é que esses objetos às vezes discordam e outras


vezes concordam, mas nunca se ignoram. O “sincretismo”, a “linha cruzada”, são
tentativas de descrever um complicadíssimo sistema de operações, máquinas,
ao mesmo tempo, rituais, cosmológicas e corporais atravessadas por maneiras
heterogêneas de cortar e conectar. (Barbosa Neto, 2008: 07).

O que Manzo nos aponta em sua linha cruzada e que terá consequências como
se verá na luta empreendida pelo grupo, no que eles próprios denominam “a tomada da
palavra política” é um coletivo que se define por uma transversalidade. Tomo como
referência, por aproximação, a acepção de Deleuze e Guatari, portanto, transversalidade
refere-se à propriedade de fazer a relação entre heterogêneos. Nas palavras de Dos
Anjos(2008:82) “(...) religiosidade afro-brasileira em lugar de dissolver as diferenças
conecta o diferente ao diferente deixando as diferenças subsistirem enquanto tal. Um
caboclo permanece diferenciado de um orixá mesmo se cultuados no mesmo terreiro e sob
o mesmo nome próprio (como por exemplo, Ogum).

Esta transversalidade, como se verá mais a frente, aponta os limites da relação


com a forma-Estado por parte da cosmopolitica de Manzo. Como se sobressai nas falas de
Makota Cássia, o Santo conduziria a uma ontológica da múltiplicidade66, e nessa operação,
explodiriam conceitos caros as formas de pensamento e organização político-social do
Estado. A Cosmológica do Santo coloca em fluidez aquilo que o ocidente aprendeu a
substancializar, por exemplo, categorias como pessoa, família, território. Um exemplo:
Zazi que é Inquisse do Candomblé Angola, é Luango em uma de suas qualidades, é caboclo
Marakaiá ou Caboclo da Cachoeira no Candomblé de Caboclo dos Angolas, é São Jerônimo

66
Deleuze e Guatari em Mil Platôs (1995) se referem como uma ordem de intensidade e não de quantidade;
múltiplo não se opõe ao uno e não se reduz à idéia de plural, pois cada ponto singular já é plural em si
mesmo. Nos termos dos próprios autores: “Não se trata do múltiplo que resulta do uno, ou ao qual se
acrescenta o um (n+1). Não se trata de unidades, mas de dimensões, ou melhor de direções moventes”.
(1995:31).

78
nos caminhos trocados que a Umbanda transversaliza, é o trovão, e é também o ronco do
trovão. Zazi, portanto, é transversal67:

Oh Zaziêee, oh Zaziáaaa Eu sou o Rei dos Ares, mas o


meu nome é São Jerônimo.
Oh Zaziêeee Maiangolê,
Maiangoláaaa Eu venho pelo ronco do
O Zaze que vem de Angola trovão, mas o meu nome é
Oh Zaziêee, oh Zaziáaaa
Caboclo Marakaiá Zazi. Zaziêeee!!!
Oh Zaziêeee Maiangolê, O Zaze que Amací Eu sou o Rei dos Ares, mas o
Maiangoláaaa O Zaze que vem de Angola meu nome é São Jerônimo.
É um Tata, é Luango é um
Eu venho pelo ronco do
Zazi é um Tata
trovão, mas o meu nome é
É um Tata, é Luango é um Zazi. Zaziêeee!!!
Zazi
Aeeeeê, Aêee é Zazi.

(pontos cantados em homenagem ao Inquice Zazi)

A cantiga acima deixa claro essa transversalização da multiplicidade. Pois Zazi


é um Tatá, ou seja, um Pai, um Inquisse, mas é também Luango: Inquisse que é qualidade
de uma das multiplicidades de Zazi em seu Ngunzo. E Zazi-Luango é também o Caboclo
Marakaiá e São Jerônimo, bem como o Trovão.

2.2 A Senzala é Angoleira

MUTALAMBÔ-Kabila
Aruê Nganga Kabila Mutalambô - Salve o Grande Senhor Caçador, Mutalambô
Mukongo Duilo! - O Caçador Do Universo! Kiuá Mutalambo!

67
Retomarei este ponto no próximo capítulo, portanto, aqui sua apresentação serve como exemplificação e
não como unidade de análise, o que será feito no capítulo sequente.

79
Aruê Caçador Lá Na Aruanda Ê Ô Lambaranguange Zinguê no
Caça Caça no Kaindé, Rêrê Matossibauê, Tauamim Gangulê
Bulaê Buloô Kabila Keuala Tala Tauamim Que Tatê no Gangulá
Caça Caça No Kaindé Manzuê Tauamim Ai Ai, Zingue no
Kabila É Um Berecô É Um Tata Kambono Izô Tala Popô Gangulê
Na Aruanda Ê Tauamim Que
Tauamim
Aruê Arerê, Oia Junça Male
Gongombira Mutalê
Aruê Arerê,
Gongombira Mutalê

Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Mutalambô, o segudo Inquisse a ser saudado no Xirê. A Comunheira do terreiro de
Manzo é um assentamento ao grande Cacador!!!

Faz-se primeiro: a oferenda ao Exu, o Nijila da rua nas encruzilhadas. É o Ebó de


rua. É dado ao Exu que é o mensageiro que abre todos os trabalhos. Então faço a
oferenda e a homenagem para ele na encruzilhada, prepara-se tudo e leva para
ele os presentes e o filho que vai recolher e ai vem caminhando pelo mato, pela
estrada, pelo Nkossi, pela água. Ai depois tem o Ebó, que se prepara e se dá na
casa e entra na camarinha para iniciar os rituais de feitura. É muito bonita a
religião. A feitura se inicia com o Nkudiá Mutuè que é uma mesa que se oferece
para a cabeça. Quem come ali é Kaiaia e Nkausuté68 para fortalecer a mente e
purificar os banhos da madrugada e a matéria do iniciante, para ele receber a
energia do Nkise. Kaiaia e Nkausuté comandam as cabeças. Em qualquer nação
que eu conheço é assim que funciona. Ai tem a primeira saída com sete dias, sai
de branco, todo vestido de branco louvando a Oxalá. Inquisse Lembá, na nossa
nação, no Jeje chama-se a saída de Saracopã, lá é todo vestido de chita colorida
e com pena de Agudidé [ave]. Ele vem a sala faz se as cantigas e depois é
recolhido de novo. E com 14 dias tem nova saída e com 21 dias já sai raspado e
pintado. Já sai feito, mas isto é iniciação, tem-se um caminho grande pela frente
de aprendizado. É como se você tivesse passado no vestibular, se matriculado e
ai vem o caminho grande pela frente. O candomblé é movido pelos elementos
da natureza. Que são as folhas, que são muito importantes em nossa religião, as
inçabas que são as folhas. A maza que é a água e as pedras que são os otás. Sem
estas três coisas não conseguimos fazer santo. E nem mover o Candomblé. Por
este motivo que nós candomblecistas temos muita necessidade de preservar a
natureza. Nós precisamos muito de preservar a natureza: que é a água que
precisamos muito e as plantas. Aprendi muita coisa de Jeje, mas sou Angoleira.
(Mãe Efigênia, julho de 2012)

68
Kaiaia é a Senhora das águas salgadas. Inquisse dos Oceanos. Para os Bantos é aquela que cuida da grande
Kalunga, o mar. Nkausuté Lembá é o Inquisse da criação. Foi o primeiro Inquisse criado por Nzambi, o ser
supremo. E traz em seu caminho a representação dos muitos tempos passados e eternos, e se apoia em um
cajado ritual, por ser o mais Nkakulu dos Nkices(velho).

80
Como dito Mãe Efigênia, achava o Candomblé muito “certinho e
arrumadinho”, e sua Umbanda era “a macumba comendo ali” para os que precisavam.
Mãe Efigênia recorda que “nesta época não conhecia bem o candomblé” e “a porta da
minha casa mal comparando parecia a de Chico Xavier, todo dia chegava um quebrado,
para benzer, um queimado”. Sua aproximação desconfiada do Candomblé: “resolvi ir, mas
muito desconfiada”, se deveu ao encontro com um iniciado no Candomblé da Nação Jeje,
que viria a ser seu futuro marido: “Ai eu cresci e conheci um ogã69 que veio a ser meu
marido e que já tinha feito o Santo e me convidou só par ir aos rituais públicos de
obrigação dele.”

Segundo Mãe Efigênia, apesar de acompanhar alguns dos rituais do


Candomblé, ela preferiu não fazer o processo de iniciação neste primeiro momento, pois
ainda sentia um desconforto: “todo mundo tomando cerveja, depois da festa, eu aquela
coisa da Umbanda, eu não conformava com aquilo.” Seu processo de iniciação, no
Candomblé, ocorreu de uma forma um tanto quanto semelhante ao seu processo de
iniciação na Umbanda. Talvez por isto a Mãe goste de afirmar “não escolhi, fui escolhida”.
Após sofrer uma série de desmaios, com possíveis consequências graves para ela e para a
sua família, ela resolveu entrar para o Candomblé:

Em abril daquele ano eu grávida de barrigão caí na rua. Com hemorragia interna,
pressão alta, perda de placenta. Fui para o CTI e ai eu disse minha Mãe Iansã não
me deixa morrer ainda: - oh minha Mãe Iansã são sete vidas que depende da
minha. Deixa-me criar meus filhos que eu vou raspar minha cabeça, para a
senhora este ano ainda. Na hora eu melhorei, fui melhorando, que dizer:
melhorei assim entre aspas, sai do risco de vida. Ai quando foi no dia 25 de
agosto eu entrei para raspar minha cabeça. Fiz meu santo, mas eu não conhecia
nada de candomblé se falasse assim: “- vou matar um periquito, um sabiá, um
macaco na sua cabeça”, por mim, ficaria por isto mesmo, pois não conhecia
nada. (Mãe Efigênia, março de 2012).

69
No Candomblé o ogã realiza diversas atividades, como cuidar do Peji (altar dos santos), zelar pelos
assentamentos dos filhos da casa. Tocar os atabaques, realizar a sacralização dos animais votivos, auxiliar o
pai de santo nas diversas tarefas religiosas e sociais da Casa. Ele não vira no santo, e detém grande
conhecimento das práticas religiosas. Como se verá mais a frente.

81
O relato de Mãe Efigênia é preciso não existe uma mudança religiosa da
Umbanda ao Candomblé e sim um caminho onde se faz as trocas com os santos. O
caminho cruzado entre Umbanda e Candomblé, portanto, não supõe uma partilha tão
demarcada e opositiva como quer nosso modo religioso - apresentar-se-á mais a frente de
maneira pormenorizada esta crítica, ao que considero um modo cristão de análise dos
outros campos religiosos, adotado pela antropologia - de analisar o campo das religiões.
O despertamento do Santo, por parte de Mãe Efigênia, algo que ela escolheu,
já estava por outro lado, dado, visto que ela já havia sido escolhida e não existe nenhuma
contradição (cosmo)lógica nesta afirmativa. A narrativa de Mãe Efigênia e Makota Cássia é
precisa: em uma dada situação, os Inquisses do Candomblé, se mostraram mais potentes
para resolver o momento de crise que se vivia. Ocorre que, conforme apresentado no
capítulo anterior, a mesma Makota Cássia, afirma, sobre a potência do Ngunzo dos Santos
da Umbanda:
Esta foi uma época de muita dificuldade, lembro que passamos até fome.
Quando a Mãe fez 03 anos de santo, a Mãe achou que a vida estava péssima,
sem luz, sem comida direito, enfim as coisas estavam ruins.(...) Ai neste
momento o que a Mãe fez foi montar o altar de novo.

Ou seja, nesta outra crise foi a potência de Pai Benedito que veio socorrer a
aflição que o grupo passava. Portanto, o caminho entre a Umbanda e o Candomblé é
cruzado, não implica em exclusões e sim em arranjos variados. Assim sendo, antes mesmo
de fronteiras, que remete mais a quantidade, seria mais adequado falar em relações em
termos qualitativos, algo próximo a sugestão de Birman (1985:28)
As fronteiras entre os cultos, são pensadas em relação as qualidades diferenciais
que cada um adquire nas casas a que se vinculam e também são avaliadas pelas
ações rituais que cada um terá que enfrentar caso queira ultrapassá-la.

Makota Cássia recorda-se parcialmente deste momento:


Lembro-me que as pessoas falavam que ela devia fazer o Santo, pois Iansã
estava gritando na cabeça dela, que ela já era uma boa mãe de santo da
Umbanda. (...) Nesta época a mãe adoeceu, sofreu um aborto natural, mas foi
algo que ficou grave e a Mãe precisou ir para o hospital. Que eu me lembre, foi à
primeira vez dela ser internada. Pois nós nascemos em casa. A mãe achava que
estava na beira da morte e diziam a ela que o santo queria a feitura. Ela teve em
termos médicos uma eclampse. Para minha mãe foi como um último aviso. (...)
Ela foi procurar o terreiro deste companheiro dela. Lá o zelador de santo que era

82
Jeje entregou a Mãe aos cuidados de um pai de santo amigo e de confiança, pois
ele não poderia cuidar diretamente da minha mãe, pois é tabu, mas ficou
supervisionando. O pessoal de Jeje não tem muita ligação com a umbanda, ou
pelo menos esta nossa umbanda meio macumba. Então ele disse para a mãe
que ela deveria confirmar logo o Santo e mudar para o Candomblé. Minha mãe
foi fazer o santo assim; lembro-me que saíamos com balaio na cabeça
esmolando para conseguir dinheiro e comprar coisas para o processo de
iniciação, pois ela já estava recolhida na Camarinha. (Makota Cássia, janeiro de
2014).

Mãe Efigênia foi iniciada em uma Casa Jeje, razão pela qual possui bastante
conhecimento de rituais desta Nação, mas seu pai de santo era da Nação AngolaO
Candomblé da Nação Angola também chamado de Candomblé Bantu. Banto é uma grande
família linguística com mais de 250 línguas aparentadas. Em geral os estudiosos, utilizam
o termo Candomblé Bantu para se referir tanto aos praticantes da Ngola quanto do
Congo, que utilizam o Kimbundo e o Kicongo além de variações dialetais como língua
cerimonial e ritualística. As línguas quimbumdo e quicongo se assimilaram ao português
falado no Brasil, sendo fornecedores de diversos vocábulos e expressões a nossa língua.

Em relação ao tabu de que nos fala Makota Cássia, deve se evitar a relação
sexual entre os membros da comunidade do Terreiro. Aqueles que passam pelo processo
de “despertamento do santo”, para valer-me da expressão êmica, torna-se filhos de sua
mãe ou pai de santo, e nesta condição tornam-se irmãos de santo de outros filhos de
santo de sua mãe ou pai de santo. A terminológia não deixa dúvidas e criará a hierarquia
que deve existir no comportamento e nas relações entre os parentes de santo. A família
de santo tem característica extensa, sendo comum ao iniciado falar em uma rede de
parentesco ritual: via de regra, um filho de santo saberá indicar e manterá relações
hierárquicas com seu avô ou avó de santo, bisavô ou bisavó de santo, bem como com os
terreiros destes. Certa vez, Makota Cássia me contou com alegria que alguém havia
cumprimentado-a efusivamente e respeitosamente nos termos do Santo e solicitado que
ela enviasse saudações calorosas a Mãe Efigênia, através de uma mensagem em uma rede
social. Após retribuir o cumprimento ela pediu mais informações sobre o jovem que se
dirigia daquela forma a ela e a sua Mãe. Ele então exclamou: “devo muito a Mãe Efigênia
de quem sou neto de santo”.

83
Makota então me disse algo, na seguinte direção: é assim, somos uma grande
família a mãe tem dezenas de filhos, já deve ter muitos e muitos netos de santo e
bisnetos. Alguns frequentam mais, outros menos, mas existe esta rede. De fato, pude
observar em festas em outros terreiros dos parentes de Santo de Manzo, que a visitação
principalmente nos toques aos irmãos de santos, primos de santos, filhos, netos e
afilhados de santo são bastante comuns. É também perceptível nas famílias certa
rivalidade competitiva entre os filhos na ocasião das festas, sendo sempre a presença de
um irmão, dos pais ou avôs de santos ou parentes principalmente os de maior hierarquia
ansiada, esperada e comemorada, mas também um momento de tensão com os
inevitáveis comentários avaliativos a respeito de como se realizou a festa, o paramento
dos santos, o toque e a ausência de parentes um grande desprestigio para o Pai ou Mãe
de Santo e seu Ngunzo. De fato, poder-se-ia dizer que faz parte da festa, os comentários
sobre a mesma. Em geral com tons de cobrança em relação àquilo que em sua casa seria
feito de maneira mais adequada.

A relação sexual entre irmãos do mesmo barco, aqueles que foram recolhidos
e iniciados ao mesmo tempo na camarinha sofre rigores ainda maiores por serem “irmãos
e irmãs de decisa70”, ou seja, de esteiras. Iniciação pode ser feita com o recolhimento a
camarinha de apenas uma pessoa ou pode ser o recolhimento de várias pessoas, neste
caso dá-se o nome de barco a esse conjunto de iniciantes. Entretanto alguns Santos
podem não permitir a iniciação conjunta. Cabe ainda registrar que existe uma ordem
hierárquica no barco, por ordem de entrada na camarinha, cabendo, portanto aos irmãos
de decisa além do característico respeito mútuo o respeito hierárquico de iniciação.

70
Decisa é a esteira que cada iniciante possui e sobre a qual dorme, senta e realiza a maioria das atividades
enquanto encontra-se recolhido na camarinha. A Decisa é posta sobre ervas e folhas sagradas. A decisa
como outros objetos usados nos rituais carrega consigo o Ngunzo, portanto a decisa é pessoal e recomenda-
se que não se deixe qualquer outra pessoa sentar ou deitar sobre ela.

84
A interdição atinge idealmente os demais membros da casa, mesmo
pertencentes a outros barcos, pois neste caso desencoraja a relação sexual entre irmãos –
ou seja, filhos de um mesmo pai ou mãe, nestes casos de santo. A regra também busca
normatizar a relação entre os kambonos71 e makotas com demais membros, do Terreiro.
Como todo Kambono é pai – ver-se-á mais a frente – e toda Makota é mãe – ver-se-á mais
a frente – neste caso a relação sexual entre estes e os demais membros da casa, seria
considerado uma relação não desejada entre pais e os filhos. Outra regra de interdição,
diz respeito ao casamento entre pessoas que possuem o mesmo santo de cabeça. Um
exemplo, em geral filhos de Nkossi são interditados de manter relações sexuais com outro
filho de Nkossi. Ainda que formais todas estas regras estejam passiveis de ser negociadas,
autorizadas ou solicitadas com e pelas deidades, mas são casos específicos e mais raros.

Os tabus – não somente do incesto - fazem parte da vida cotidiana dos


iniciados no Candomblé e são chamados de preceitos, interdições ou quizilas – kijila na
língua Banto: aquilo que não é bom – e visam a proteção dos filhos de santo das
influências que possam cruzar de forma dissipatória a proteção do Ngunzo: força sagrada
que impulsiona, as coisas, os objetos, as pessoas, que cada filho de santo carrega consigo.
Os preceitos, interdições e as quizilas são, portanto tipos de comportamentos litúrgicos,
cotidianos, verbais, sexuais, alimentares, gestuais, de vestimenta, de procedimentos que
devem ser seguidos ou evitados pelos filhos de santo em consonância com os Santos
assentados na cabeça de cada qual, ou seja, o dono de seu Ori- cabeça, daí a frase “é
quizila do meu Santo” ou então “é preceito” bastante comum na conversa com os
membros do Candomblé.

71
Tata Kambono. Tata - Pai e Kambono e suas variações Kambondo ou ainda Kambundu significa algo como:
aquele que possui grandes responsabilidades. São os que cortam, rezam, cantam para o santo, bem como
fazem a segurança do Terreiro.

85
Entretanto, se o tabu é importante, a maneira como cada Abassá72 lida com as
transgressões aos tabus é especifica. Lucas, companheiro de Mãe Efigênia, sempre afirma:
“Cada Casa é uma Casa.” Ou então: “Cada Candomblé é único, não existe um certo e
errado universal” para em seguida apresentar uma série de regras implícitas e complexas.
Na qual a palavra final será sempre do Santo. É este que define o preceito, a interdição, a
quizila ou sua suspensão. Assim, como dito acima, apesar das interdições matrimoniais a
sua prática poderá ser autorizada ou determinada pelo Santo, por exemplo, para o bem
de um filho.

A obediência aos preceitos e quizilas é bastante grande, mas não se trata de


uma obediência definida por razões apenas protocolares ou convenções exteriorizadas,
ela é fundamentada na relação pessoal do filho de santo com seus Inquisses. Sua força
reside neste caráter de dom e contra-dom com o Santo. Tanto as quizilas, os preceitos
como as chamadas obrigações para com o santo, podem ser negociados caso a caso.
Como por exemplo, o oferecimento de Bori aos santos como recompensa pelo atraso no
processo de feitura do santo, que explicitarei mais a frente.

Portanto, existem quizilas e tabus que são pessoais, ou seja, só se aplica a uma
determinada pessoa, e são determinados pelos odus – caminhos, presságios, destinos e
predestinações - daquela pessoa. Algumas quizilas e alguns preceitos não são estáveis
mudando, de acordo com o desenvolvimento do iniciado, com a situação, o lugar, o
contexto, dentre outros. Disto temos que: Um filho de santo em etapa inicial possuirá
mais interdições que um filho que já alcançou mais graus hierárquicos no santo.

Os tabus, interdições, quizilas, preceitos e obrigações servem também como


temas jocosos, sendo estes momentos bastante propiciatórios para aprendizados. É
comum, a formação de rodas de conversas antes da realização de atividades no

72
Salão onde se realizam as cerimônias públicas do candomblé, também chamado de terreiro, roça de
santo, barracão.

86
Candomblé, e se existe um respeito nos atos e etiquetas bastante rigoroso, como tão bem
registrou a literatura do tema, existe também nestas rodas, - pode presenciar
principalmente aquelas formadas por kambonos - uma forte relação de jocosidade que
funciona como uma “relação séria” para usarmos os termos de R. Lowie (1920) “Os
gozadores de um homem são também seus censores morais” 73.

É interessante notar que se os preceitos e interdições – e suas violações –


cumprem através de suas transgressões uma função pedagógica, pois servem de exemplo
para todos os membros da Casa, cumprem antes um papel de regra de aprendizado das
coisas do santo. Cabe aos noviços observarem os comportamentos dos mais velhos e a
partir desta observação e de erros e acertos cumprir um processo educativo que se baseia
na práxis mais do que na teoria.

Como me disseram alguns iniciados de Manzo, as coisas do santo se aprendem


no fundo da roça, ou seja, ao longo do processo iniciático, através da vivência. Sendo que
o descumprimento de preceitos e quizilas muitas das vezes por desconhecimento dos
mesmos torna-se um momento importante de aprendizado. Que pode acontecer através

73
Entre os kambonos existe um tipo específico de socialidade que se organizam, em torno de visitas as
macumbas, sendo este momento de tocar o instrumento de percussão e a participação na festa um dos
principais divertimentos dos ogãs. As festas funcionam, portanto, para além de seu aspecto religioso como
momento privilegiado de socialidade e lazer. Algo bastante semelhante foi visto por Birman em sua pesquisa
em Umbandas e Candomblés do Rio de Janeiro do começo dos anos 80: “Há uma circulação jovem e
masculina. Aquela que “corre macumbas” em busca de festa e principalmente em torno do interesse que
despertam os intrumentos de percussão. “Tocar tambor”, de casa em casa, ganhando bebida em troca, é
algo corriqueiro entre jovens e certamente é vivido como uma grande diversão.” (Birman, 1995:10) A
afirmação de Birman acrescentaria que para o universo das macumbas de Belo Horizonte, a presença nas
festas não é somente motivada pelo ganho na forma de bebida; existindo também, principalmente nas casas
mais novas ou de menor prestígio a contratação mediante troca financeira de kambonos músicos. Os
Kambonos criaram grupos exclusivos de conversas nas redes sociais, como o facebook e o whatsapp onde
combinam a participação nestes eventos, onde comentam sobre festas, rituais, sobre outros filhos de santo,
trocam fotos, comentam de vestimentas, bem como é um espaço para a exibição e defesa das qualidades de
determinados tocadores, enfim um espaço em que se pode exercer uma das atividades importantes da vida
no santo, o fuxico. Para além das festas nos Terreiros, outro momento em que se é possível encontrar
muitos kambonos são as rodas de samba.

87
das palavras de incentivo, mas também de reprimendas, por parte dos mais velhos no
santo. O que reforça assim, um tipo de gerontocracia, onde os anciãos no santo são
depositários de saberes devido à longa convivência com o sagrado e atua no reforço da
valorização da ancestralidade como parte central da prática do Candomblé.

O conhecimento é ele próprio um Ngunzo, que deve ser movimentado,


trocado, mas como possuí-lo é ter poder e força deve ser mantida as devidas precauções.
Do ponto de vista do olhar externo, diria eu, que o tabu no Candomblé ajuda a perceber
aquilo que não pode ser apreendido apenas intelectualmente. Os preceitos, tabus,
interdições obrigações e quizilas formam os fundamentos do Candomblé. Aquilo que
Makota Cássia costuma afirmar após alguns dos meus questionamentos: “os fundamentos
são aprendidos na prática”. Tal aprendizagem na prática não se trata da manutenção de
algo oculto, ou a se esconder, como certa visão exotizante promulga e sim o relativo
cuidado com um conhecimento que é eminentemente participado e participativo e que
detém nesta participação um agenciamento de poder, a mesma Makota Cássia, certa vez
me disse: “Carlos o que dizemos, tem o poder de quizilar as relações”.

De maneira similar, como se verá nas próximas páginas, do mesmo modo


como se desperta o santo, se desperta o conhecimento74. Mas como no despertar do
santo, exige-se uma série de responsabilidades e cuidados. O conhecimento como o Santo
é coparticipativo de uma ontologia que conjuga simetricamente metafísica e filosofia
social e natural (Goldman,2005).

Em outra ocasião Mãe Efigênia, bem ao seu gosto, contou-me através de uma
historia exemplar como o processo de aprendizado no santo é vivido cotidianamente:

74
Certa vez a caminho de uma Festa de Santo em um Terreiro de uma irmã de Santo de Mãe Efigênia,
Makota Cássia me disse: “Convidei-te, pois a Casa dela é de Zazi. E eu vejo em você aquela necessidade de
conhecimento, mas não porque se trate de pesquisa, não é apenas isto, mas porque é a necessidade de
conhecer melhor o Santo, o seu Santo particular inclusive, e nisto de se fazer pesquisa, pode-se dizer já tem
um despertar do santo.”

88
Eu particularmente fui feita no Angola por uma pessoa de Angola, mas o
coordenador era de Jeje Mahin. Na minha época de feitura, eu entrei nua e crua.
Eu não sabia o que era bater um Maku75, eu não sabia o que era uma Decisa,
que é uma esteira que você deita nela. Eu não sabia o que era dilonga 76. Eu não
conhecia nada. Eu me perguntava onde eles enfiaram Santa Barbara. Pois eu
pensava que era uma santinha Barbara, deste tamaninho que eles iriam abrir e
enfiar em minha cabeça. E eu pensava, mas não tá dolorido. Que esquisito, não
inchou nada e ai eu cheguei para um pai e perguntei: - oh meu Pai, como vocês
enfiaram a Santa Barbara na minha cabeça se não esta doendo nada? Ele virou
para mim e falou: - oh minha filha coitada de você, deixa eu te falar, vou te
explicar. Ele me sentou dentro da camarinha, puxou um banquinho e disse para
mim: - filha, não enfiaram Santa Barbara na sua cabeça, você é filha de Iansã.
Então ninguém vai enfiar Iansã em sua cabeça. Iansã já é a própria energia que
você carrega em seu corpo. É a sua própria energia que em Angola se chama não
de Iansã, mas de Matamba. Então eu sou de Matamba e filha de Kaiango, minha
mãe é uma Iansã que veste toda de branco. Então cada um tem sua
especialidade. (Mãe Efigênia, julho de 2012)

Esta fala de Mãe Efigênia, nos remete novamente ao fato de que o santo ou
inquisse e seu Ngunzo não são representações e muito menos substancializações
objetificadas, ele é participação. Mãe Efigênia é resoluta: “Iansã já é a própria energia que
você carrega em seu corpo.”

O que a fala de Mãe Efigênia nos permite compreender é a multiplicidade do


Inquisse como o Ngunzo de seus filhos. A força, a energia que os mantém vivos. Este pode

75
Maku pode ser traduzido como mão. No contexto da fala de Mãe Efigênia, trata-se da prece realizada em
formas de palmas ritmadas, dirigida aos Inquisses. Cada Inquisse é despertado ou consultado, através de
uma série de palmas ritmadas. Nos termos que aprendi em Manzo, trata-se de bater maku. Exemplos, desta
prática, consistem no ato de se bater maku antes de entrar nos assentamentos ou casas de Santo, ou ao fim
de atividades votivas aos Inquisses. Trata-se, como dito, de uma prece e um pedido de licença. Como já
apresentado, no Candomblé Angola, as conversas às vezes se iniciam com a expressão Mukuiu, variação de
Maku iu, ou seja, sua benção e com sua licença. Outra cerimônia bastante central no Candomblé Angola
chama-se Maku-Nvumbe ou tirar a mão do Nvumbe, é realizada após um ano da cerimônia fúnebre da
mametu ou do tatetu. Quando uma pessoa é iniciada passa a ter um vínculo de troca e caminhos cruzados
com seu iniciador, denominado tese diz que esse iniciador possuí a mão na cabeça do iniciado, ou seja, a
mão que transmitiu o Ngunzo. Quando o responsável por este processo falece é necessário tirar sua mão da
cabeça daqueles que continuam vivos.
76
Trata-se da caneca que os iniciados recebem no processo de iniciação e serve como reservatório para
tomar água. Ritualmente são importantes no Dilonga Lembá, festa das águas de Lembá, na tradição Ketu
seria próximo a Festa para as Àguas de Oxalá.

89
crescer e diminuir de acordo com as práticas e preceitos, nos termos de Manzo: é
necessário sempre rodar em torno do Intoto, este movimento pode ser entendido como a
constante renovação na estabilidade. Nos termos de M. Goldman, trata-se de uma
ontologia que conjuga uma metafísica e uma filosofia da natureza e da sociedade, visto
como múltipla e em construção.

As próprias divindades ou orixás, em primeiro lugar. Cada um deles não é mais


que a encarnação de uma modulação específica de axé. Em seguida, os seres e
coisas do mundo: pedras, plantas, animais, seres humanos – mas também cores,
sabores, cheiros, dias, anos etc. – “pertencem” a diferentes orixás, mas apenas
na medida em que com eles compartilham dessa essência simultaneamente
geral e individualizada. (...) essa ontologia comporta uma metafísica e uma
filosofia da natureza e da sociedade. Os mitos apresentam, sobretudo, o caráter
polívoco das divindades: simultaneamente essências imóveis, forças da natureza
(raios, trovões, rios etc.),instituições culturais (guerra, justiça...), indivíduos que
viveram no passado (reis, rainhas,guerreiros...). E não se trata aqui apenas –
talvez seja preciso advertir – de representações (o raio representando a orixá
Iansã), relações de propriedade (o mar pertencendo à orixá Iemanjá) ou controle
(a doença sendo provocada e controlada por Omolu), mas de uma forma muito
complexa de agenciamento. Em certo sentido, o mar é Iemanjá, o raio e o vento
são Iansã, e a doença é Omolu. Natureza, cultura, seres humanos, o cosmos,
tudo parece articulado nesse sistema. (Goldman, 2005:08)

Em que se preze o que hoje consideraría essencialismos, objetificações, e


termos não tão adequados e mesmo indiossicracias77, Edson Carneiro, em seu
Candomblés da Bahia (2008) já antevia este caminho, apesar de não ter levado as
inferências de campo aos termos de uma sociocosmologica:

As divindades naturais da África não têm representação antropomórfica ou


zoomórfica (...) o que verdadeiramente as representa são a sua moradia favorita
– pedras, conchas, pedaços de ferro, frutos e árvores – ou, secundariamente, as
suas insígnias. (...) (Carneiro, 2008:15).

Ou então:

77
Como, por exemplo, falar em degeneração do Candomblé pela presença nos seus termos de
homossexuais e afeminados. O que a luz dos discursos nativos soa além de preconceituoso algo que vai de
encontro a sociocosmologia do Santo, que não se resume a classificação em termos de uma dimorfia sexual,
como se verá mais a frente. Para uma análise deste tema em uma chave etnográfica que inverte as
proposições de Carneiro ver Rita Segato (1992,2003) e P. Birman (1995).

90
Xangô, representação das tempestades e dos raios, do trovão e das descargas
elétricas (...) Mora na pedra do raio, as suas cores são o branco e o vermelho e
sua insígnia é um machado com asas. Come carneiro, galo e cágado (ajapá) e
amalá, um caruru especial. Além da sua manifestação principal, a mais comum,
Xangô pode surgir como Xangô de Ouro, adolescente, forma hoje rara, ou como
Airá velho e alquebrado: Xangô de Ouro veste das mais variadas cores, enquanto
Airá se veste de branco com barras vermelhas. Identifica-se ora com São
Jerônimo, ora com Santa Barbara, e na forma de Airá com São Pedro, no Xangô
de Ouro com São João Menino. É ambivalente, macho e fêmea (veste calças por
baixo das saias), mas cada vez mais se torna um orixá masculino. (Carneiro,
2008:65-66)

Se antes não conhecia muito do Santo, como ela mesma afirma, hoje Mãe
Efigênia é tida, entre os Angoleiros, como uma das mais respeitadas no Axé de Minas,
tendo filhos espalhados por várias partes do país e do mundo, e tendo clientes78, como ela
se refere àqueles não iniciados, que a procuram para realizar o jogo de búzios ou para dar
obrigações como banhos e ebós de limpeza em todas as partes do mundo79.

78
Prandi (1991: 156), afirma que os terreiros dependem de uma clientela, que ele denomina “os de fora”,
sem estes clientes, segundo o autor, não seria possível manter outros gastos da casa, ou mesmo fazer o
“santo de esmola”. Segundo Prandi, apesar de não manter laços religiosos com a comunidade de culto, estes
clientes possuem cumplicidade em torno de orixás comuns, assim um cliente filho de Iemanjá, segundo o
autor, contribuirá para obrigações de iniciados deste Santo, pois isto agradará o pai ou mãe do iniciado,
somará força a obrigação, e este benfeitor irá compartilhar do Axé alcançado pela obrigação.
79
Durante dois dias, em fins do ano de 2012, acompanhei Mametu Muiandê dando obrigações e fazendo
ebós em uma cliente, uma senhora brasileira que reside na Suíça, tem casa e família em Goiânia, mas que
anualmente viaja até a cidade de Belo Horizonte para fazer trabalhos e ebós com Mãe Efigênia. Como
Manzo se encontrava interditado neste momento, os trabalhos foram feitos na casa que a Mametu possui
na cidade vizinha de Santa Luzia.

91
92
Capítulo 3 - Manzo N’gunzo Kaiango
KATENDÊ
Aruê Nganga Tateto Kinsaba - Salve o Senhor Pai das Folhas
Katendê Mukua-Xi Nsaba! - Katendê Habitante Das Folhas! Kiuá Katendê
Katendê de la digina, Katendê Ê Ê Ê Katendê Maingandu okê okê
Aluandê Katendenganga Katendê Ganga Tombency okê oká
Meu Katentê lá diginá Na Aruanda Ê Maiangandu okê okê
Ganga Tombency okê oká
Katendê Katendenganga Katendê oia Bibikoia
Mau mau Maruê Katendê oia Bibikoia Katendê Unqueto Tatetu
Keua Me oia Bibikoia Azan Mipanzo Ê
Katendê ê eiá Keua Me oia Bibikoia Katendê Unqueto Tatetu
Katendê ê eia Azam Minpanzo Á
Tá me chamando Katendenganga Kurusu
Na Aruanda, Aldeiá Katula de Angomi Poramô Sale Maianguê Minipanzo
Tá me chamando Katendenganga Kurusu Sale Maianguê Katendê sale
Na Aruanda, Aldeia Katula de Angomi Poramô Salê dundum

Malembe meu Katendê


Tata que Minaê

Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Katendê, o senhor das


folhas é o terceiro Inquisse a ser saudado no Xirê.

Posteriormente, após a feitura no Santo, a iniciação de Mãe Efigênia no


Candomblé de Angola, a Comunidade passou a ser chamar Manzo Ngunzo Kaiango “Casa
da Força de Matamba80.” Cássia afirma:

(...) foi em 1986 que viramos Terreiro de Candomblé e aí vem até hoje. Toca-se
um Terreiro de Candomblé, mas respeitando sempre Pai Benedito, em respeito
até mesmo ao terreno, ao espaço dele que foi o primeiro que chegou aqui com a
gente. (Makota Cássia, julho de 2012)

Mãe Efigênia explica este processo:

80
Kaiango é uma das qualidades da Inquisse Matamba. Matamba é a “dona” do terreiro, por ser a “dona”
da cabeça da Mãe Efigênia. Matamba é a divindade dos ventos, tempestades e raios, aproxima-se à Iansã no
candomblé de nação Ketu. E saudada com os cumprimentos de Nenguá Mavanju – Kiuá Matamba: Senhora
dos Ventos – Viva Matamba. Mãe dos Mvumbi (mortos), é a guia dos espíritos desencarnados. Oya, Oya,
Oya ê!/Oya Matamba de kakoroká zingue/Oya, Oya, Oya ê!/Oya Matamba de Kakoroká zingue ô.

93
A Senzala de Pai Benedito é o nome que se deu desde o inicio, quando a
registrei como Casa de Umbanda. Éramos uma Casa de Umbanda e eu não tirei
até hoje. Ai eu fiz o Santo, raspei minha cabeça no Santo, dentro do Candomblé
e meu pai de santo me disse que não podia manter este nome, pois Senzala vem
da Umbanda era preciso um nome em Banto. Ai nós olhamos no jogo e ficou
Manzo Ngunzo Kaiango: A Casa da Força de Matamba, Manzo é Casa, Ngunzo é
Força e Kaiango é a qualidade da minha Mãe Iansã. E ai ficou a Comunidade
Manzo Ngunzo Kaiango. (Mãe Efigênia, julho de 2012)

É comum entre os moradores e frequentadores, se referirem ao Quilomblé por


ambos os nomes. Quando perguntada a respeito, Mãe Efigênia se referiu a este fenômeno
como sendo a resultante de uma mudança temporalmente recente: “Manzo Kaiango todo
mundo conhece. Mas a Comunidade sabe que o Terreiro é de Pai Benedito. É tanto, que
quando faz a Festa de Pai Benedito a Casa, você já viu né!!! então são os dois.”

Makota Cássia, certa vez quando indagada sobre o nome do grupo,


respondeu:

A mudança de nome tem haver com a cantiga da Casa. Matamba precisava


trazer uma cantiga. Mas é aquela coisa não adianta querer sair da Senzala de
São Benedito e chegar em Manzo, eu acho que Manzo caminha atrás da Senzala,
pois se criou e trocou o nome para ter a cantiga, mas até hoje a cantiga não
chegou. Então assim, fez o jogo e confirmou que teria que ter um nome Bantu
para a cantiga. Por exemplo, em outras Casas de Angola, tem a cantiga da Casa,
a cantiga da boa vinda, na casa do Pai de Santo da Mãe é: Bibiqualaê, Imabiotê
Batukassange, Bibiqualaê!!! Mas me lembro de que fomos a Pai Benedito e ele
disse: coloque o nome que quiserem, mas para nego nunca vai seixar de ser a
Senzala de Pai Benedito. Então o nome é para a Cantiga da Casa e de boas
vindas, e é um nome do Candomblé. Mas é por causa da cantiga de saudação e
não necessariamente por ser um Candomblé, ainda que exista por causa do
Candomblé. Mas veja tem Candomblés de muita tradição com nome em
português. (...)
Manzo é o nome que está no registro. Penso que nós invertemos. A comunidade
devia ser Senzala de Pai Benedito e o Terreiro de Candomblé ser Manzo Ngunzo
Kaiango. Mas hoje como a Comunidade é Manzo podemos dizer que a Senzala
de Pai Benedito é o Terreiro que existe dentro da Comunidade. (Makota Cássia,
janeiro de 2014).

O ato da nomeação que poderia ser visto como uma formalidade “uma
expressão” para o Candomblé é uma definição menos corriqueira, como se percebe nas

94
falas, ele aponta para a própria emergência política da comunidade. Tal qual a digina de
um iniciado, o nome é palavra81 – ou seja, Ngunzo e é passada através do jogo de búzios.
Não se trata de uma atividade trivial e nem mesmo um ato secundário. Só se nomeia
aquilo que foi despertado, ou seja, o nomear foi a forma de se reforçar a pertença ao
santo. Nominar é fazer caminho cruzado, por isto, ambos os nomes podem e devem
conviver transversalizando seus Ngunzos: “Não posso abandonar este nome. É a senzala
de Pai Benedito e aqui Pai Benedito faz cura, Pai Benedito benze.” (Mãe Efigênia).

Mãe Efigênia, foi criada no Jeje e raspada em Angola82. Deste modo, Mametu
Muiandê, se define como uma angoleira de raiz, que começou na Umbanda, rito que
mantém e que, como visto e ainda ver-se-á é um dos alicerces da existência da
Comunidade e do Quilombo. A Umbanda e o Candomblé tal qual aprende-se em Manzo,
são cultos interrelacionados. São multiplicidades ou linhas – para mais uma vez recorrer
ao vocabulário de Deleuze e Guatari – que conformam um todo que é específico para cada
casa de santo. O fato da convivência entre Umbanda e Candomblé, pelo menos para o
universo das casas de santo de Belo Horizonte – como dito participei como pesquisador
no período de 10 anos de dois Inventários de Bens Culturais Afro-Brasileiros na cidade de
Belo Horizonte – advém antes do antropólogo e de sua concepção e modelo de religião do
que da realidade pesquisada. Nos termos precisos empregados por Birman (1995:16)
“Onde os religiosos veem um conjunto de “linhas” inter-relacionadas sem limites
institucionais precisos, os estudiosos buscam limites claros e inequívocos entre crenças
(...).”

3.1 - Manzo é Angoleiro

81
Ver-se-á mais a frente uma análise a partir da Cosmológica Angola do conceito nativo de Palavra.
82
Como se tratam de pessoas terceiras, omitiremos seus nomes civis, de santo, de digina e de suas casas ou
terreiros a que pertenciam.

95
(...) cada casa é uma casa, cada candomblé é único, portanto, é engraçado
pesquisas definitivas, pois para cada Inquisse, cada mito, cada história, para
cada quilombo, temos uma história única, e nenhuma é mais verdadeira que a
outra. São apenas diferentes. Somos como já te disse outras vezes, uma cultura
oral. Portanto depende de quem conta. Tem esta coisa de tradição, mas cada Pai
tem a sua, o que se faz aqui em Manzo, não se faz igual na casa de meu Pai
[Lucas não foi iniciado em Manzo e é membro de outro Terreiro de Angola], ou
em outra. Apesar de existir alguns que conhecem mais de Angola. Não tem uma
única regra. (Lucas, fecereiro de 2014)

A afirmação de Lucas, companheiro de Mãe Efigênia, nos mostra que é


necessário uma visão abrangente, mas que ao mesmo tempo permita ver cada terreiro
como um fragmento do todo. Que não se perca de vista uma perspectiva global do
pertencimento a Angola, mas respeitando o estudo particularizado de cada terreiro, suas
práticas, reelaborações, retenções, transformações, em consonância com a situação
espaço-temporal.

Cada casa é uma casa e os rituais do candomblé são bastantes variáveis


devido à diversidade da prática cotidiana e a “tradição”. Tradição nos ensina a
sociocosmológica Angola: não é aquilo que permanece imutável, ao contrário, é aquilo
que se modifica constantemente a partir das decisões de cada mãe ou pai de santo, criada
e recriada no contexto e cotidiano da “roça de santo”. Entretanto, se a tradição é mutável,
se cada casa é uma casa, e não existe uma realidade mais verdadeira que outra e se a
regra não busca o unitário; permanece também como parte dessa filosofia social e
natural, a ideia de que existe um conjunto mítico, ritualístico, comportamental, de
etiquetas, litúrgicos, dentre muitos outros, que permite identificar as comunidades do
Santo, bem como aqueles que detêm maiores conhecimentos dentro destas
comunidades. Esse processo é denominado de pertencimento a Nação de Candomblé. Os
filhos de santo, por isto mesmo, fazem questão de identificar a qual Nação pertence e, via
de regra, nominam e listam as principais características que, no seu entender, torna a sua
Nação específica em relação a outras, Nações.

96
Os candomblecistas, no contexto da cidade de Belo Horizonte83, se
apresentam como pertencendo a uma das três principais nações do candomblé: nagô, jeje
ou angola, com suas variantes e especificidades. Os nagôs cultuam os/as orixás, os jejes
os/as voduns e os angolas os/as inquisses e caboclos. A liturgia, de cada um, segue a
língua ritual e as variações dialetais, do Iourubá, do Fon/Gbé e do Banto. Raul Lody (2008:
XV) na Apresentação da nova edição de Candomblés da Bahia de Edson Carneiro comenta
que “três grandes modelos socioreligiosos ganham os espaços na Bahia e no Brasil,
reconhecido nas nações Queto/Iorubá/Nagô, Jeje/Nagô de base fon/ewe e iorubá, e
Angola/Congo ou Moxicongo.” Mais a frente ele afirma que “os modelos chamados
nações foram organizados a partir de semelhanças principalmente linguísticas” (2008:XVI)
e por fim fala em uma divisao do Candomble nos dias de hoje contendo as seguintes
nações: Queto-Nagô (Iorubá); Jexá ou Ijexá (Iorubá); Jeje (Fon); Angola (Banto); Congo
(Banto); Angola-Congo (Banto); Nação de Caboclo (modelo afro-brasileiro).

Cabe ainda aqui destacar que os chamados Povos Bantos – e aqui seguimos a
definição imprecisa do termo - são os africanos austrais e que ocuparam principalmente a
hoje região sudeste brasileira, principalmente às Minas Gerais. Em termos temporais sua
chegada ao Brasil se deu durante todo o período escravocrata, mas com índices quase
sempre decrescentes, de modo que segundo a historiografia nas últimas décadas do
comercio escravocrata, a presença Iorubá era dominante entre os africanos
desembarcados como escravos. Os povos Iorubás: sudaneses e nagôs por razoes geo-
sócio-históricas e cosmológica que não cabe aqui explicitar - para uma definição de fôlego
e notável ver Parés (2013) – continuaram a chegar até o último momento do sistema
escravista e ocuparam principalmente o Nordeste e a região litorânea. Os Povos Fon, por

83
Como já dito, baseio-me aqui no fato de ter participado de duas pesquisas de Inventário e Mapeamento
de bens culturais afro-brasileiros no município de Belo Horizonte. A primeira realizada nos anos de
2003/2004 e a segunda nos anos de 2011/2012. Na primeira atuei como pesquisador de campo nos
Terreiros de Umbanda e Candomblé e na segunda na coordenação dos levantamentos de dados de Terreiros
de Umbanda e Candomblé e de Quilombos Urbanos.

97
sua vez, foram deslocados principalmente para o nordeste setentrional e para partes do
litoral do sudeste.

Para Lucas, as nações são discursos e reconstruções mitológicas, ritualísticas,


políticas, comunitárias e identitárias realizadas pelos negros que foram escravizados na
diáspora:

O candomblé é também um culto à ancestralidade, que visa preservar o que os


nossos ancestrais deixaram. O nosso culto para alguns é visto como arcaico. Só
que tínhamos a necessidade de que aquilo não se perdesse, então adaptamos as
coisas brasileiras. (...) Na África o culto era bem diferente. O candomblé é uma
coisa bem típica nossa, porque na realidade os cultos africanos são cultos
isolados, cada tribo cultuava uma entidade específica, uma força da natureza
específica. No candomblé aqui nos abrangemos muitas tradições e doutrinas.

Um exemplo desta reconstrução brasileira do candomblé é o uso constante de


termos que pertenceriam a outras nações84. Assim palavras que “classicamente”
representariam uma Nação, na verdade, pertenceriam inicialmente ao vocábulo de outra.
Ou o constante uso de termos de uma Nação por outra, como no caso de Manzo.

Quando perguntada, a respeito da utilização de termos em Iorubá, Mãe


Efigênia fala de uma troca existente entre os membros das diferentes Nações, uma vez
mais, portanto, a transversalidade da abrangência das tradições e doutrinas, da
multiplicidade e da força criativa dessa sociocosmológica, como tenho advogado. Mãe
Efigênia fala também de uma tradição marcada pela oralidade. Para ela, houve uma maior
popularidade da nação Queto. Sua explicação se aproximaria do que se convencionou a
chamar no campo etno-histórico de nagoização do Candomblé brasileiro.

Os nagôs, usualmente identificados apenas como quetos, são numericamente


a maioria dos Candomblés na cidade de Belo Horizonte, e coube a eles a introdução – pelo
menos no relato oficial – do Candomblé nessa cidade. O panteão dos Orixás e suas

84
Esta constatação é apresentada também em outras etnografias a respeito do Candomblé, como por
exemplo, Parés 2013, Carneiro, 2008, dentre outros.

98
litúrgias tornaram-se dominantes não só em Belo Horizonte, como no Brasil, seja no
campo acadêmico, cultural, artístico e de domínio público. A razão para esse fenômeno é
múltipla, diversa e variável a cada contexto, apesar de seguir um padrão etno-histórico.
Ainda que não seja o tema central, cito Parés em seu texto O Mundo Atlantico e a
constituição da hegemonia nagô no Candomblé Baiano (2010):
É importante notar que a cidade de Ketu, depois de ter sido destruída pelos
daomeanos em 1883 e 1886, foi reconstruída só em 1896, e é provável que as
notícias desses eventos chegassem à Bahia naquela época. Levando em conta
que o etnônimo ketu não está documentado na historiografia da escravidão
brasileira, e que as referências escritas a candomblés de “nação” ketu aparecem
apenas nos anos 1930, poder-se-ia especular que a identidade ketu de casas
como o Engenho Velho ou o Gantois foi uma elaboração tardia do final do século
XIX, talvez inspirada pela reconstrução de Ketu. Se isso for verdade, teríamos um
exemplo de como formas de “invenção da tradição” foram entrelaçadas com a
dinâmica transatlântica no processo de “nagôização”.(Parés, 2010:179)

Para um maior conhecimento sobre este movimento complexo que envolve


uma notável conjuntura de fatores sócio-históricos inter-relacionados: cabe reiterar a
importância decisiva da agência dos líderes religiosos nagôs na sua autopromoção; assim
como o papel dos viajantes transatlânticos que mantinham contatos regulares com a
costa africana, todos eles inseridos na complexa teia de interesses, disputas e alianças que
costuravam a micropolítica da comunidade negro-baiana; a participação de intelectuais,
principalmente escritores e antropólogos dentre outros; no que Parés denomina de
“nagôização” do Candomblé, incluindo aí uma análise do processo de purificação ritual
como sendo um processo sócio-demográfico com raízes nas relações entre africanos e
crioulos, ou seja, entre negros estrangeiros e negros nacionais, ou ainda entre escravos e
ex-escravos, ou seja, entre nascidos livres e aqueles ainda escravizados, acrescida de uma
sistemática demografia de casamentos preferênciais que levará a um duplo movimento:

99
primeiramente de predominância masculina africana no culto do candomblé e em um
segundo momento, a predominância feminina crioula85.

Mãe Efigênia explica que, antigamente, os termos Iorubás eram usados em


muito Terreiro Angola:

Nós falávamos antigamente muito em Iorubá, pois é uma mistura, pois era
muito difícil ter um sacerdote ou uma sacerdotisa que dominasse e passasse o
Banto. Meu Pai de Santo, que pesquisou muito e trouxe de lá para nós a língua
banto, mas nós mais velhos de santo, de 30 anos ou mais, temos dificuldades
ainda para falar em banto. (Mãe Efigênia, julho de 2012)

Makota Cássia segue na mesma direção:

Na família de Angola nem todo mundo segue as mesmas hierarquias. Tem


muitas casas de Angola que tem muitas referencias de Ketu. É muito difícil achar
uma Angola pura.

Para J. Lorand Matory (1999), a “pureza nagô” e a ideologia da cultura iorubá,


a que se refere em outros termos Makota Cássia e Mãe Efigênia, que foi colada ao
candomblé baiano, e por extensão, arrisco dizer ao candomblé mineiro, derivou de um
contexto geopolítico não apenas brasileiro mas transatlântico. Consiste num produto de
um diálogo transatlântico, ainda em processo. Para os autores dessa escola é necessário
fazer uma reconstrução etno-histórica do período do fim do século XIX na região da atual
Nigéria, bem como do surgimento de uma elite negra em Lagos, que eles denominam
como a “renascença iorubá”.
Segundo estes autores, esta elite é resultante da própria diáspora interna
africana ocorrida em princípios do século XIX, quando navios ingleses capturavam navios
negreiros que partiam do Golfo de Guiné e realocavam os cativos em Freetown, na Serra

85
Entender tal fenômeno tornou-se um dos principais campos de pesquisa no que se refere aos estudos
sobre o Candomblé, principalmente com um diálogo bastante frutífero entre a história e a antropologia, em
um espaço discursivo, que vai para além das fronteiras brasileiras – apesar de ter como centros de
irradiações a cidade de Salvador – UFBA e a cidade de Campinas -Unicamp - e abarca os chamados debates
sobre o Atlântico Negro e a chamada Afro-American Culture. Para conhecer melhor este debate ver Parés
2013, 2010,2008,2012, Gilroy 2001, Mintz e Price 2003, Martory 1999, dentre outros.

100
Leoa, onde seus descendentes eram chamados de “creoles” ou “krios”. Estes ex-cativos
escolarizados pelos missionários ingleses tornaram-se uma classe de africanos influentes e
com postos no governo colonial inglês. Deste modo tornaram-se uma importante classe
letrada, os “saros”, que produziram os padrões ortográficos e léxicos pelos quais o iorubá
seria estabelecido como língua escrita. Outra parte desta elite se constituiu em
comerciantes bastante proeminentes que passaram junto com comerciantes baianos, a
financiarem o intercâmbio de viagens entre as costas da África Ocidental e a Bahia. Em
1890 e 1891, o governo colonial subsidiou viagens regulares e foi implementada uma linha
experimental de navio a vapor entre Lagos e as cidades da costa do Brasil. Estes
comerciantes e viajantes negros livres foram os principais interlocutores e facilitadores do
retorno de ex-escravos brasileiros para a costa da atual Nigéria.
Os chamados “retornados” afirmaram-se como mão de obra especializada na
arquitetura e em técnicas de construção da Lagos colonial. A somatória destes grupos
passou a controlar o comércio da região do Golfo da Guiné, com mercadorias e serviços
identificados como provenientes “do país do homem branco”, ao mesmo tempo em que
forneciam aos brasileiros objetos religiosos e serviços autenticados por uma origem
africana. Estes autores sustentam a tese de que a “pureza nagô” constitui, acima de tudo,
um grande capital ideológico transatlântico.
Nessa vertente, portanto, o processo de trocas do denominado Atlântico
Negro, somado a etnogenese iorubá, protagonizada pelos retornados brasileiros e pela
elite saros levou a um movimento cultural que, buscou reviver aspectos da religião do
antigo reino de Oió, destruído pelas guerras do início do século XIX. Seria este
nacionalismo iorubá que reexportado para o Brasil, funcionou como uma ideologia da
pureza ritual nagô. Em solo brasileiro, esta pureza ritual foi adotada por lideranças
carismáticas do Candomblé como Mãe Aninha do Axé Opô Afonjá, Mãe Menininha do
Gantois, Mãe Senhora, dentre outras e reforçada por pesquisadores, notadamente os
antropólogos brasileiros, franceses e norte-americanos. Os estudos que advogam essa

101
tese, envolvem etnografias multisituadas – no caso de Martory: USA, Brasil, Afro-Caribe e
Costa dos Escravos na África e trabalho histórico:
Considero o trabalho de etnógrafo e de detetive de arquivos extremamente
importante. Ele nos permite colocar em questão o padrão teórico de
representação da cultura africana nas Américas, que fala de memória coletiva na
ausência de agency, ou intencionalidade estratégica, dos diversos atores.
Falando quer da “Santería” e Candomblé, quer de “shouting” (isto é, o dançar e
falar sob a influência do Espírito Santo nas igrejas negras dos Estados Unidos),
quer discutindo a identificação negra com a Etiópia bíblica ou o movimento de
repatriação de Marcus Garvey, quer olhando a ordem política dos quilombos,
palenques e maroon societies, a África que vive nas Américas negras não deve
ser medida em termos da sobrevivência mais ou menos pura de um “alhures”
primordial. A África que vive nas Américas é uma mobilização estratégica de um
repertório cultural circum-Atlântico de quinhentos anos. Em suma, muito do que
é chamado de “memória” cultural ou coletiva na diáspora africana, e em toda
nação, ocorre em contextos de poder, negociação e recriação. Este ponto é
geralmente negligenciado pelo discurso da “invenção da tradição”, tornando
nula a agency dos oprimidos. (1999:68).

Além de uma pesquisa de fôlego, a reconstrução etno-histórica – em que pese


a menor importância de dados etnográficos quando comparados a opção aqui adotada -
levada a cabo por estes autores bem como por Parés (2013) em relação ao Candomblé do
tipo Jeje inovou a leitura clássica do Candomble, ao reconhecer a agência aos atores
africanos e afrobrasileiros, e ultrapassou os debates entre a escola Herskovitsiana, que
destacava as sobrevivências culturais como sendo a principal característica do Candomblé
no Brasil, bem como os africanismos essencialistas da escola nagocentrica brasileira-
francesa86.
Nesta operação, ao reconhecer as agências dos atores envolvidos, puderam ir
além: tanto da escola funcionalista das sobrevivências como da escola essencialista, e até
mesmo da escola antiessencialista, uma vez que combinaram as críticas as
substancializações ao refutamento de um discurso de pureza africana ou nagô, ao mesmo
tempo em que demonstraram por outras vias, que tais essencialismos discursivos tiveram

86
Por exemplo, Juana Elbein dos Santos. Em relação a essa autora, se em alguns momentos seus escritos
apontam na direção de um convite a um estudo mais aprofundado que chamo aqui de sociocosmológica do
Candomblé, em geral seu trabalho caiu em armadilhas substancialistas e essencialistas.

102
importância na luta política, e não foram apenas imposições brancas aos sacerdotes e às
sacerdotisas negros, ao contrário estes atuaram politicamente para afirmar um discurso
identitário, ainda que este tenha resvalado em essencialismos. Concordo, com estes
autores, o que me parece ter ocorrido – ao cruzar estas leituras com as falas de lideranças
do candomblé mineiro, temporalmente mais recente que o baiano, mas ligado a estes por
relações de parentesco e ancestralidade religiosa - foi uma troca entre os praticantes,
sacerdotes e mais tarde pesquisadores todos eles interessados de algum modo em
produzir um discurso sobre as práticas das religiões de matriz afro-brasileira.

Para Makota Cássia, entretanto, a Angola tem suas características “próprias”:

A Angola é mais leve, é mais família, mais folha, mais natureza. É mais canto, a
reza é mais cantada, é menos rígida. Mas não se têm muita diferença não. No
preceito, por exemplo, na Nação Jeje nós nos damos mais. Vive-se mais a
religião dentro de sua casa. O Jeje passa por um processo mais interno e o
Angola é um processo mais externo. Angola é mais aberto ao público que o Jeje,
o Jeje é mais cheio de segredo, muita coisa no Jeje só pode ser revelado após 07
anos de feitura. Já no Angola não, em Angola você acompanha de acordo com
seu crescimento, no Jeje é assim, você chegou aos 07 anos e ai sai preparado
recebe as informações, em Angola você caminha com o crescimento e aprende
de acordo com sua convivência no Terreiro. E tem mais participação das pessoas
da assistência. Angola é mais aberta para a assistência, o bori, por exemplo,
quem tiver presente dentro da Angola pode participar, no Jeje não. Só quem já
tiver completado os 07 anos de iniciado no Santo. (Makota Cássia, abril de 2012)

Por sua vez Lucas, nos informa:

Ketu é mais tranquilo que Angola. A questão é que a Angola Moxicongo deu os
elementos para a Umbanda. Mas Nação é complicado né, Nação é uma
definição de linguística. Pois é reunião de povos com línguas semelhantes ou
que se entendiam melhor. Reuniam em grandes povos ou nações ai temos
Nagô, Bantu, Kassanje, Jeje, dentre outras. Angola como o candomblé é religião
brasileira, daí falarem de sincretismo. Nação neste sentido funciona. É
complicado, é igual futebol, uma coisa para demarcar simbolicamente e, às
vezes, tem aquela disputa fervorosa, o pessoal de Ketu dizendo que é mais, de
Angola dizendo que é melhor, ou é o certo. Mas hoje existe um respeito entre as
Nações.
Nossa religião, não é religião de noção exata, não existe esta coisa de que “eu
tenho que fazer algo assim, e sempre assim” fazemos o que fomos criados e
aprendemos a fazer, portanto, outra pessoa faz de outro jeito, porque aprendeu
de outro jeito. Não tem que brigar ou acusar fulano de errado ou certo. Não é
assim, senão teríamos que voltar ao primordial, mas somos o resultado do que
vivemos. Não existe este certo que é único. Cada santo é um, cada pessoa faz o
seu santo. Nossa religião é a crença no Inquisse, o que ele fala tá certo. O que

103
Inquisse querer é o que deve ser seguido, por isto é importante ter cuidado até
com o pai de santo que se escolhe, mas o mais importante é entender o
Inquisse, o Ifá - o jogo.
Por isto digo: um pai de santo é aquele que tem 21 anos de preparo, e é muito
sério. Mas é aquela coisa: é o Inquisse que não vai querer nosso mal. É ele que
sabe das coisas. Não adianta, se ele não quiser, ele te tira daquela casa, daquele
pai. Ele é que decide, eu vejo, por exemplo, discussões sobre cor de roupa, guia,
essas coisas comuns no Candomblé, mas é ele que decide as cores que ele vai
usar. Então não é só esta coisa de tradição, de certo, isto tudo é complicado. Na
nossa religião é sentimento, às vezes o pai pega um pedaço de carne, um
pedaço de manga canta 06 rezas e opa, você sente um negócio. Ai você passa a
acreditar. As pessoas falam que acreditam, mas como não se vê tudo! Então
nesse sentido nossa religião é sentimento mais que uma norma. É quando você
sente que fica bacana, é quando faz um ebozinho e começa a fluir; uma criança
com problema de saúde, então chega à entidade e faz, este é o tipo de coisa. É
lógico que o fundamento é importante, ele é a base, mas o importante é não
reduzir o fundamento ao simbolismo. (...)
Eu sou velho de santo, eu nasci na roça de santo, então vejo estas coisas desde
menino. Antigamente era menos simbolismo. Simbolismo parece mais para
outros de fora ver. E ai fica medindo o que seria o correto pelo que o fulano ou
beltrano faz. Isto não é o mais importante. O importante é o Inquisse. Mas hoje
a própria criação de um pai, é influenciada pelo capitalismo. Pelo tempo que não
é o tempo da roça. Se for seguir o tempo do Santo é tudo muito mais complexo,
é muito estudo das qualidades, enredos, Odus. Mas o que se pode fazer é buscar
conhecimento. Fazer curso, viajar, conviver, aprender, meu pai [de santo]
mesmo vai na Bahia, vai no Maranhão, vai no Rio Grande do Sul e em cada uma
destas tradições se aprende. Isto é importante, mas é costume e prática.
Veja a maneira mesmo de cantar: é variável, pois mudamos as palavras, tem os
costumes do lugar, dos modos mesmo de pronunciar, então, as palavras variam
mesmo [para exemplificar Lucas canta uma reza e na sequência, repete a
mesma reza com inversões de alguns fonemas e com diferentes inflexões tônicas,
infelizmente, não consegui por ausência de conhecimento – musical e linguístico
transcrever ambas as formas – mas ressalte-se que o exemplo foi bastante
preciso em elucidar sua linha de raciocínio apresentada ao longo desta
conversa]. Na verdade mais do que a exatidão de um falar correto o Santo
responde é a isto aqui [faz então no braço do sofá e em uma cadeira variações
em um diálogo rítmico de toques, ao que complementou]: o Toque, qualquer
santo responde a isto aqui, ao toque. Se tocar o Santo responde, pode tocar
Ijexá: Oxum, Logunedé, Kabila, Komkobira, responde. Pode ser toques
diferentes, pode ser Moxicongo, pode ser Macumba, eles respondem. O Santo
fala de vários modos, ele entende o toque e suas variações. Ou então ele fala no
sonho, enfim: é importante dominar a língua Banto? É. Mas não é tudo. (Lucas,
janeiro de 2014)

Esta fala de Lucas é mais um dado etnografico vai de encontro a duas tradições
teóricas das pesquisas antropológicas em candomblé, o nagocentrismo e a pureza

104
essencialista. Vagner Gonçalves da Silva (1993) em “O terreiro e as cidades nas Etnografias
Afro-brasileiras” afirma que Nina Rodrigues,
(...) no texto inaugural dos estudos das religiões afro-brasileiras (...) pesquisou,
sobretudo os candomblés de tradição religiosa sudanesa, pois acreditava terem
sido os nagôs (iorubás) os africanos mais influentes do Brasil (...) com relações as
outras tradições de origem africana, como a dos Bantos (outro importante grupo
étnico da África Equatorial introduzidos no Brasil), assume que “o fetichismo
dos Bantos é muito mais simples e rudimentar que os dos negros da África
Ocidental” não merecendo portanto maiores considerações. (Silva,1993:35-36)

Da mesma forma, que neste texto seminal Nina Rodrigues inaugura o


nagocentrismo, inauguraria também uma tendência que foi forte até fins dos anos 70 do
século passado, de se buscar sempre uma pureza essencialista nos Candomblés, visto que
para este autor, existiria dois candomblés: aqueles dos negros africanos em que se
mantinha uma “pureza primitiva” e os candomblés de brasileiros, na qual haveria uma
degenerência oriunda da mistura de crenças, algo em todo coerente com as teorias
eugenistas do autor.
Arthur Ramos discípulo de Nina Rodrigues, criticará em seu predecessor o
evolucionismo e as teorias racialistas, bem como ampliará seus estudos para além da
cidade de Salvador, analisando também as chamadas macumbas cariocas e paulistas, bem
como o catimbó do nordeste. Entretanto, tal qual Nina Rodrigues, Arthur Ramos reforçará
o nagocentrismo, pois como informa Vagner Gonçalves, os cultos Bantos foram tomados
por Ramos, como contrapartida dos cultos sudaneses, e deste modo, caracterizados como
cultos de pobreza mítica, o que explicaria a influência nestes das religiões ameríndias, do
espiritismo e do catolicismo. Para Ramos, os Bantos se caracterizavam por extrema
simplicidade ritual quando comparadas a complexidade nagô. Bom poder-se-ia
desenvolver longamente este tema, entretanto, a intenção foi demonstrar que o
nagocentrismo do mundo acadêmico dos antropólogos, pareceu desconhecer a
sociocosmologica Angola, onde a troca, o caminho cruzado, antes de ser uma pobreza
mítica ressalta uma riqueza filosófica e ontológica.

105
A fala de Lucas, ao contrário de Nina Rodrigues e Ramos, nos indicam a
transversalidade do conceito de nação. Manzo é de Angola, mantém os preceitos, saberes,
fazeres, viveres deste “pertencimento”. Entretanto, este pertencer por ser caminho
cruzado e Ngunzo em movimento em um contexto altamente inventivo, inspirado nas
reflexões de BHABHA (2002) posso afirma que nação pode ser entendida como uma
narrativa, que compõem heterogeneidades. E inspirados nas reflexões de Arjun
Appadurai (1999) nação pode também ser vista como uma rica categoria, que permite
compreender a união de conjuntos como economia, cultura, política, saberes, viveres,
fazeres, comportamentos, dentre outros, mas não se trata de relações essencialmente
dadas, trata-se de “(...) interpretações profundamente perspectivas, modeladas pelo
posicionamento histórico, linguístico e político das diferentes espécies de agentes”
(APPADURAI, 1999: 312).

Para Mãe Efigênia, a importância de se apurar a angola – o que traduzo a


partir de nossas conversas, como uma maior valorização do Candomblé Angola e não
como seu isolamento - parece ser menos um ideal de pureza, ou o medo da impureza e
mais uma busca de valorizar junto aos praticantes da Angola, que sua religiosidade não é
inferior às demais nações do Candomblé. O aprofundamento no Candomblé Angola para
o exterior parece cumprir o papel de combater, internamente o complexo de inferioridade
que os praticantes desta Nação às vezes carregam:

[dizem] (...) Angola não tem reza, Angola não tem isto, Angola não tem aquilo.
Angola tem muita coisa preciosa. Angola tem reza para comer, para beber água,
para tomar banho, Angola tem reza para apanhar folha, para você ir ali colher
uma folha você deve rezar. Você entra ali numa mata que você não plantou e diz
vou ali apanhar uma folha, não é sua. Como assim vai lá apanhar? Ai você reza,
faz um agrado ao Seu Katendê e ai ele te dá o direito de apanhar a folha. Você
pagou com uma moeda, um pedaço de run. (...) É que não conhecem os
fundamentos de Angola. (Mãe Efigênia, janeiro 2013)

Assim sendo, Nação é um termo usual nos candomblés e em Manzo,


entretanto, ao contrário da operação comum a nossa sociocosmologia de dissolver as
diferenças, em unidades fechadas e dicotomias opositivas, o que se percebe em Manzo é
a Nação como tipo ideal de saberes, fazeres e viveres: especificidades ritualísticas,

106
cantos, danças, a maneira como se toca e invocam as deidades através dos atabaques,
conjunto de mitos que animam seus ritos, interditos, idioma litúrgico, as cantigas que se
cantam, tipos de toques, estrutura celebrativas, as vestimentas, nome das divindades, as
interdições, benzenções, banhos, obrigações, a lida com os elementos da natureza, as
comidas sacralizadas, as quizilas, dentre outros elementos de vivência da fé, em termos
nativos os preceitos.

Portanto, existem diferenças entre os terreiros que se classificam em nações


distintas, mas também entre os que se classificam na mesma nação, bem como existem
transversalidades – dinamicidades, permeabilidades - entre nações diferentes e dentro
das nações. Parés (2010:168) cita, por exemplo, a ocorrência de:

terreiros que se identificam como “nagô puro”, [mas] os membros de um grupo


iniciático (dofona, dofonitinha, gamo, gamotinha, etc.), a sala de iniciação
(hunco), o quarto dos altares (peji), os tambores (hun) e outros importantes
elementos do ritual, são designados com termos jejes (originários da área
linguística gbe). O fato de esses elementos formarem parte da “estrutura
profunda” do culto é indicativo da decisiva intervenção dos jejes na fundação
institucional do Candomblé.

Parés estuda a Formação do Candomblé Jeje na Bahia, daí a ênfase, nesta


nação. A partir dos dados de Manzo, elaboraria tal passagem, da seguinte maneira: O fato
de esses elementos formarem parte da “estrutura profunda” do culto é indicativo da
decisiva transversalização das diferentes nacões na fundação institucional do Candomblé.
Vagner Gonçalves e Rita Amaral (1992) vão na mesma direção, ao chamarem a atenção
para o fato de que por detrás de um discurso que reclama por um "purismo" de Nação
nos rituais e de um movimento de reafricanização dos Candomblés, que eles analisaram
para a cidade de São Paulo, existe na prática um processo de influências e empréstimos
entre as várias Nações, que de certo modo se assemelham ao processo de iniciação de
Mametu Muiandê, entre as diferentes Nações.

Em “O conceito de “Nação” nos Candomblés da Bahia”, publicado em 1976,


Vivaldo Costa Lima após detalhada genealogia dos Terreiros de Candomblé na Bahia, e de
uma pormenorizada descrição dos processos de organização dos grupos de negros

107
escravizados a partir de seus lugares de origens em África, e do processo de guerras e
capturas nos antigos reinos e cidades africanas, bem como sua distribuição geográfica e
temporal no Brasil escravocrata e, por fim, como ele mesmo ressalta com base
principalmente na fala dos pais e mães de santos, entrevistados em sua etnografia, nos
afirma que:

A nação, portanto, dos antigos africanos na Bahia foi aos poucos perdendo sua
conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente
teológico. Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos
terreiros da candomblé da Bahia estes sim, fundados por africanos angolas,
congos, jejes, nagôs, - sacerdotes iniciados de seus antigos cultos, que souberam
dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário que se
vêm transmitindo através dos tempos e a mudança nos tempos. (Lima, 1976:77)

Portanto, cada terreiro de candomblé pertence idealmente a uma nação, e se


organiza em termos de uma representação por origem e semelhança. Entretanto, a
organização em termos de nações coaduna com a transversalidade. O Candomblé Angola,
que se caracteriza pelo culto dos Inquisses, por exemplo, como corretamente percebeu
Nina Rodrigues, mas por razões opostas às identificadas pelo autor, incorporou elementos
xamanísticos ameríndios, como os rituais do Candomblé de Caboclo, influências da
religião católica e de outras tradições das demais Nações Jeje e Nagô, pois estes como
corretamente nos apontam Lucas e Makota Cássia, é um amálgama brasileiro dos vários
saberes e fazeres que em África pertenciam a grupos, cidades e reinos diferentes.

Tais influências múltiplas nos termos da cosmovisão e da cosmológica do


Candomblé Angola, não se trata daquilo que a teoria clássica definiu como sincretismo. O
antropólogo Pierre Sanchis, uma das referências da antropologia das religiões
desenvolveu uma importante linha de pesquisa para a reabilitação do conceito
sincretismo, questão central de suas publicacões. Não pretendo resumir e muito menos
analisar o pensamento deste autor sobre o sincretismo, que são bastante complexos.
Quero aqui destacar a ideia de que para P. Sanchis seria possível reabilitar o conceito de
sincretismo, que, aliás, ele localiza como sendo uma das contribuições brasileiras a
antropologia internacional, retirando-lhe o caráter ideológico que o tornou uma invenção

108
da classe dominante para legitimar sua dominação. Em relação ao Candomblé, o próprio
P. Sanchis reconheceu que seu mundo religioso não se constitui apenas de permanência,
repetição ou cópia. Sendo uma religião dinâmica. O que seria fruto para este autor de um
complexo sistema de representação identitário que reivindicaria a assimilação da
diversidade.

A esta última afirmativa de P. Sanchis contraponho-me: não me parece a partir


de Manzo, correto a ideia de assimilação como um sistema identitário – no sentido mais
clássico e essencialista deste termo – ao contrário, me parece que o Candomblé, se
coaduna mais com a ideia de diferença em Deleuze e Guatari (1995) que é a operação que
nos arranca de nós mesmos e nos faz devir outro. A política das identidades, ainda que
seja uma bandeira de luta – do ponto de vista da política pragmática – tende a normatizar
a diferença em ordenamento, o que pode levar o oprimido a novas formas de opressão.

A diferença no Candomblé de Manzo parece-me uma operação política que vai


além de criar uma identidade para si e reconhecer o outro, respeitá-lo; trata-se de
conceber uma troca permanentemente, em que o nós é atravessado constantemente
pelos outros. Trata-se de uma sociocosmológica que conjuga o mesmo e a diferença. Uma
transversalidade que não se confunde com sincretismo, não tanto no sentido de que este
pressuporia um processo de absorção de influências – pois esse processo de absorção de
fato ocorre e é reconhecido pelos membros do Candomblé - mas sim no sentido de que
este processo conformaria uma nova unidade essencializada. O que a cosmológica Angola
de Manzo parece nos propor nesta transversalidade é antes de tudo uma troca constante
de Ngunzo. O Ngunzo como força – energia e poder – necessita sempre estar em
movimento. O Ngunzo é também Pambu Njila: caminho e a encruzilhada, portanto não
busca a conformação de unidades e sim de multiplicidades em trocas constantes. Tal
assepção fica claro na afirmativa que ouvi diversas vezes em Manzo, “Candomblé é uma
religião do dar de se comer”.

No Candomblé tudo começa com comida. E no Candomblé tudo termina com


comida. Inclusive na morte. Na morte aqui fazemos comida e damos festa. Pois

109
no Candomblé não sei para onde nós vamos e eu nem quero saber [risos], mas
sabemos que não acabamos com a morte. (Mãe Efigênia, janeiro de 2015)

O candomblé de Manzo em outras palavras é a transversalidade das trocas e


alianças. O caminho e a encruzilhada, lugar de se dar de comer, ou seja, de realizar trocas,
assim como se troca Ngunzo entre os Inquisses e seus filhos, entre os filhos e os
assentamentos: faz-se a troca através do ato de se alimentar o otá com comidas e bebidas
votivas, bem como com o oferecimento de comidas propiciatórias - ebós. Trocar e fazer
aliança são reter e distribuir ao mesmo tempo Ngunzo87, o elemento constitutivo e
construtivo da vida, o princípio dinâmico que participa e representa ao mesmo tempo, a
força que circula e permanece em um movimento centrípeto e centrífugo, ou seja, contém
e veícula o princípio genérico e ao mesmo tempo diferenciado da vida. A força dinâmica
que permite o ser, o devir e a ancestralidade não como um vetor linear, mas como
transversais de energias.

É esta energia, que se re-assenta no terreiro que assegurará a existência


dinâmica, permitindo a troca entre a ancestralidade, o presente e o devir, em suas
múltiplas formas.

Como visto nas falas de Mãe Efigênia, Makota Cássia e de Lucas, as divindades
que reinavam em África sobre uma região, uma cidade, um reino, um domínio da
natureza, uma tribo, família extensa se (trans)-mantém no Brasil, incluindo ai uma nova
relação de ancestralidade entre divindade e seus filhos, a partir de um novo espaço
idealizado, e repleto de Ngunzo, o Terreiro que transversaliza a concepção contida na
cosmovisão religiosa do Candomblé.

87
Como pude presenciar em Manzo, um dos momentos mais aguardados pelos membros da família de
Santo após o ritual de Obi – ou seja, após o ritual de alimentar o santo da cabeça de um individuo, é o des-
arriamento da Mesa do Santo, e a distribuição dos alimentos, principalmente das frutas e doces utilizados
nesse ritual; como precisamente ouvir em Manzo, trata-se de um momento de enorme importância, “pois
iremos comungar o Axé do Santo e o seu Axé, já que os Inquisses comeram no seu Ori”.

110
Dito de outro modo, uma prática que “sem mudar seus preceitos”, como
dizem localmente mais profundos e nem seu depósito de fé realiza constantes trocas e
alianças a partir do contato com a vida vivida e vivenciada. Não se trata de uma prática
religiosa estática, sectária, e fechada à diferença. O Candomblé praticado em Manzo é um
constante movimento – o necessário girar em torno do intoto, como definiu Makota
Cássia, a respeito da ideia de circular a vida nos termos de Manzo. Nos termos da nossa
sociocosmologica: “um sistema assentado no ritual e na busca de continuidades [que]
possui uma grande flexibilidade e um enorme poder de assimilar as novas realidades com
as quais a história o confronta” (Goldman, 2005:05).

Existem centenas de Inquisses, o que eles fizeram aqui, foi um processo de


aproximação dos Santos. Dá para fazer em santos diferentes desde que se tenha
a mesma natureza. Por exemplo: Kissimbe, Aborin são da água e se aparentam,
apesar de possuírem cultos distintos e específicos. A água é regida por deusas da
criação e da maternidade, aí o que eles fizeram: eles juntaram, sendo alguns
Inquisses qualidades da Inquisse principal desse reino natural, em Angola, a
Inquisse Dandalunda88. Aí é que eles dizem Dandalunda-Kissimbe-Kiamanze ou
antigamente em algumas casas Dandalunda-Kissimbe-Kiamian, agregou e os
segundos ficaram como qualidades de Dandalunda.
Nbondo, Ngongo, Luango, Nzazi89, foi a mesma coisa. Nzazi é vaidoso, mas
também é bruto, não tão bruto como Nkosse, se bem que às vezes, dependendo
da qualidade ele pode ser mais sanguinário que o Nkosse. Nzazi é um
conquistador, veja ele conquistou o fogo. A justiça de Nzazi não é bem a justiça
como a gente fala, ele é: conquistador. Já Luango, tem outra qualidade, ele
come igual a Oxalá90, ou seja, não come azeite doce, não vai dendê, ele

88
Chamada também de Ndandalunda. Nda - Senhora da terra dos Lundas. Senhora das riquezas, da
fertilidade. E dos movimentos das águas. Chamada de Ndandalunda Kisimbi, Ndandalunda kia Maza (Mãe
das Águas), pois neste caminho também está Kisimbi, a senhora das águas doces. É a senhora dos jogos de
búzios (ver a frente).
89
Ver mais a frente descrição.
90
Associado à criação do mundo e a espécie humana. Suas duas principais qualidades é a forma jovem,
chamado de Oxaguiã e seus símbolos são uma idá (espada), um pilão de metal branco e um escudo. Na sua
forma idosa, Oxalá é chamado Oxalufã e seu símbolo é um cajado de metal chamado opaxorô. Sua cor é o
branco levemente mesclado com azul. É chamado de o pai maior das nações Queto pois é o criador e,
portanto, é respeitado por todos os orixás. Oxalá significa luz (oxa) branca (alá); Se diz que a Oxalá
pertencem os olhos que veem tudo. Em Angola, se transversalizaria em Lembá Dilê o
primeiro Inquisse criado por Zambi e responsável pela criação do mundo. Sua importância é tal, que todos
aqueles que, por exemplo, se submetem ao ritual do Obi, além das guias e contas de seu santo pessoal,
precisam fabricar a guia de Lembá. De modo que todos aqueles que já passaram por esse ritual e não são

111
acompanha nestes quesitos Kassuté91; mas novamente, vai depender da
qualidade de Kassuté, pois tem Kassuté que come com Oxalá, mas outros
comem junto a Iemanjá. É isto que diferencia que a gente chama de qualidade.
Que ver: Olaxuquê, em Ketu seria equivalente a Oxum Opará, seria Oxum92 que
veste as roupas de Iemanjá para se lembrar de que foi responsável pela morte
desta. Em outras versões ela na verdade é ao mesmo tempo Oxum e Iemanjá93,
pois teria sido a forma de Oxalá acabar com a briga entre as duas mães, sendo
meio uma e meio a outra. Então Olaxuquê é específica e carrega várias
qualidades, sendo algumas com Oxossi e outra com Omolu. (Lucas, janeiro de
2014)

A fala de Lucas ajuda a entender nos termos de Manzo e da sociocosmológica


Angola o processo de desterritorialização – reterritorialização nos caminhos e
encruzilhadas em que se encontravam nossos ancestrais tornados mercadorias no sistema
escravocrata:

Outro exemplo, Oxukumbi, é um Nkosse especifico. Ele é aquele que traz o que
foi se buscar, na ponta da espada, este é guerreiro. Mas outras qualidades serão
cultuadas de maneiras diferentes e específicas. Você tem Nkosse que é o Senhor
da Agricultura. Você vai ter outras qualidades, Nkosses mais velhos, que andam

filhos de Lembá, carregam pelo menos 02 contas, uma nas cores de seu Santo e uma outra na cor branca
que idealmente deverá ser feita pelo próprio individuo que se submete ao ritual, sendo já sua feitura um
processo de troca de Ngunzo.
91
Kassuté Lembá, é o caminho, enredo de Lembá, jovem, o Lembá que vai a caça e a guerra. Kassuté pode
ser traduzido por caçador ou moço.
92
Orixá que reina sobre a água doce dos rios, o amor, a intimidade, a beleza, a riqueza e a diplomacia. Reina
no Rio da Oxum na atual Nigéria. Tem o título de Ìyálòdè, ou seja, senhora e chefe de todas as mulheres. Diz
um dos otans – falas sagradas - que nos tempos antigos, pouco depois que Òlódùmàrè delegou a criação do
mundo. Os Òrìsàs agbóros(masculinos), realizavam oferendas para o Senhor da Criação, com o intuito de
intervir pelos seres humanos e manter o equilíbrio das forças da natureza. Mas não convidavam as
mulheres, pois a cerimônia era proibida para o sexo feminino. Oxum então descontente com esta
situação recorreu as Ìyamí Òsòròngá (Mães ancestrais) rogando a participação das mulheres nos ritos
sagrados. As Iyamís relegaram então aos homens uma série de feitiços e males que os obrigaram a recorrer
a Orumilá. Este então recomendou aos Orixás masculinos que convidasse uma mulher que estava esperando
um filho, para as oferendas. Está mulher era Òsun. Òsun resolveu acompanhá-los nas oferendas, mas com
uma condição: que todos os Òrìsàs masculinos deveriam passar um pouco de seus poderes para a criança
que ela estava esperando. Oxum deu à criança o nome de Osé Otura: a criança tem o poder de todos Òrìsàs.
O garoto ficou conhecido como o décimo sétimo odu do jogo de búzios e, a partir de então, este odu passou
a intermediar as mensagens e oferendas para todos os outros odu. Apenas ele tem o poder de entrar e sair
do Orun, quando e como quiser, sem ser perseguido pelas Ìyamí Àjé. Oxum transversaliza em Angola com
Ndandalunda.
93
Seu nome deriva da expressão iorubá Yéyé omo ejá "Mãe cujos filhos são peixes". É identificada pelas
cores azul e branco. Transversaliza com Kaiaia a senhora das cabeças e da Kalunga dos Angolas (ver nota de
pé de pagina anterior).

112
e cuidam dos Eguns [mortos]. Então cada um é um na qualidade e é o mesmo.
A qualidade é a forma de você se reverenciar ao seu santo. Mas às vezes outro
Inquisse têm mais influências sobre você. O cara é de Oxalá, mas carrega um
Odu de Nkosse que pode ser mais presente na vida dele do que Oxalá. Aí é que
tá, pois vai agradar o Santo, mas o Odu não pode com aquele agrado, por isto a
qualidade é importante. A qualidade neste sentido não é apenas um nome,
mas é aquilo que se come. Dandalunda tem qualidade que se você colocar
dendê, você acaba com a vida da pessoa, em outras se você não colocar dendê,
nada na vida dele anda, entendeu? É ai que esta o valor da qualidade. A
qualidade diferencia o enredo da vida. Dependendo da qualidade é que se
define o que se come, como vestir, como se realizar as oferendas. Os Odus são
os ancestrais, toda a sua família de ancestrais do seu santo, e isto é calculado de
acordo com as indicações do jogo. O Odu é importante, pois indica questões
como os perigos do caminho daquela pessoa, as áreas que ela deve se dedicar
mais, as questões de saúde. O Odu tem influência na feitura do Santo. Muitas
das vezes a pessoa quer fazer o Santo, mas é o Odu que define este tempo e as
complicações da feitura.
Por exemplo, os filhos de Exu, não são feitos em Exu, são feitos a uma qualidade
de Nkosse94, um Nkosse que anda com Eguns, ou um Nkosse que como se diz,
come carne de cachorro. Mas ainda assim, uma força mais controlável do que
Exu. Pessoas feitas neste Nkosse são muito destemidas e violentas, em geral
morrem cedo. Eles controlam tudo, eles controlam o jogo, o destino, a casa, eles
tem o dom. Se tocam, tocam muito, se jogam o búzio, no jogo eles possuem o
dom: diagnosticam e te dão à solução. Resolvem a sua vida. Mas também,
quando estão a fim de brincar acabam com a sua vida. (Lucas, ibdem)

Portanto, para Lucas, a organização das nações do candomblé no Brasil, é fruto


um contexto local, ou seja, eminentemente brasileiro. Os terreiros são como expõe Lucas,
centros irradiadores de criatividade ritual e sociocosmológica, onde se elabora o que Dos
Anjos (2008) corretamente denominou de “filosofia política afro-brasileira”, que dispõe
das suas próprias maneiras de articular as relações entre o “interior” e o “exterior”. Em
um modelo criativo, no qual aquilo que se faz – o santo, por exemplo – é aquilo que já
existe como potência, eis o Ngunzo, isto é, um modelo de criação no qual o ‘dado’ e o
‘feito’ se encontram em uma relação de ‘pressuposição recíproca’ (Goldman, 2009).

94
Chamado de Senhor dos Caminhos, das estradas. Transversaliza com o Orixá Ogum do Candomblé Ketu.
Em Angola é chamado - Roxi Mukumbi / Nkosi Mukumbi – por ser guerreiro, o senhor do ferro.

113
114
Capítulo 4 - A Senzala, o Abassá e o Abantu do Quilomblé

KAVUNGO
Aruê Nganga Kimbanda kia kussara, Kavungo - Salve o Feiticeiro verdadeiro curador das
Doenças, Kavungo
Taeto Matemba Kukala Kuiza! Dibixé ! - O Pai da Ráfia está chegando, eu te Saúdo! Silêncio!

Kumbe Kumbelaci Insumbu Ê, Ê Sumbunanguê Katumlembe Efu Gangazumbá


Marumbe E Rumbe Lajô Insumbo Essa Muquenda Ê Katulembe Ê Mona Eco
Kumbe Kumbelaci Lembá Dilê Katulembe Efu Gangazumbá
É Maior Keufita Fita Katulembe E Mona Ecô
Insumbo Ê Ê Kamona Kê Ki, É Maior Que Sambo Quenda E Mona Mona Kuia Kuia
Kafuidiê Axiúna E Mona Mona Kuiabecô
E Mana Quera Insumbu Ê
Aizô Yoyô Aunguelê Katulá Maiongongá Aganguê
Aizokô Ka Kaiá E Mana Quera Insumbu Ê Katula Maiongongá Aganguê
A Inguê, Inguê Aunguelá
Aizokô Ke Kaiá Iperuá, Iperuá Yayá
Abre A Sala Do Angolê Lembá Ê Ê, Meu Katuezó Iperuá Kibuke Que Malembé
E Sibuco Lelê Lambá Ê, Katuloiá Iperuá Mameto, Iperuá Tateto
Abre A Sala Do Angolá Lembá Ê Ê, Meu Katuezô Iperuá Kibuke Que Malembê
E Sibuco Lalá Lembá Ê Ê Meu Katulembá
Dilê Yamuké Ké Ké Ké Ké No
Dundurê, Dunduraiaiá Maianguê
Dundurê Maimbanda Kavungo Quando Kamba Yamuké Ké Ké Ké Ké No Siriá
Banda Guame Serekossi Lembá Dilê Yamuké No Maianguê
Dundurê A Siaoci Fala Mametu Kaiangô Yamuké No Siriá
Undurê Maimbanda Kavungo Quando Kamba Kuambo Ké Ké Ké Ké No
Banda Guame Serekossi Mavukaiá Maianguê
Fala Mametu Kaiangô
Aê Aê Sagafunam Ludiamungongo N´Angolê
Kavungo Que Belujá Katulembe Efu Gangazumbá Aê Kuazinzê
Aê Aê Sagafunam Katulembe Ê Mona Eco Ludiamugongo N´Angolá
Kafundeji Combelamê Katulembe Efu Gangazumbá Aê Kuazinzá
Aê Aê Sagafunam Katulembe E Mona Eco
E Mona Mona Kuia Kuia Ê Ê Ê Kafungê
Ludiamungongo De Angolê E Mona Mona Kuiabecô Katulemboracimbe Ekô
Ludiamungongo De Angolá Kuiabecô, Kuia Kuia Senzala
Ludiamungongo De Angolê Kuiabecô, Kuia Kuia
Ludiamungongo De Angolá
Mixauê, Chora Mungongo Kombe Kombelacy
Mixauê, Chora Mungongo Kombe Kombelamê
Aê Aê Kafungê
Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Kavungo, o quarto a ser saudado no Xirê. Kavungo é o Kabila –
Senhor do Chão de Angola- nesse sentido senhor de todas as terras do Mundo, senhor das Doenças, da Saúde.
Todos os assentamento Intoto de todas as Casas de Angola são de seu domínio.

115
O que se desterritorializou em África se reterritorializa – assenta - aqui nos
Terreiros, mas não como um território de fronteira fixa. Como visto, na cosmovisão de
Manzo, o terreiro é o próprio Ngunzo. Portanto, o terreiro é mais do que a definição de
um espaço físico delimitado, ele é móvel e ao mesmo tempo imóvel em sua
transversalidade. Ele fixa o Ngunzo ao tempo que distribui Ngunzo. É nele que é possível
girar no Intoto e distribuir existência, devires e pertencimentos ancestrais. O terreiro
reterritorializa na medida em que desterritorializa. Eis o paradoxo para a
sociocosmológica ocidental da forma-Estado. Ele opera na sobreposição de territórios,
movimentos, impulsos, trocas e caminhos cruzados, pessoas, coisas, objetos em uma
operação que nega a própria fixidez e unidade que o conceito de territorialidades requer
na forma-Estado.

Em Angola a terra pertence ao Inquisse Kavungo. Ao Velho foi cedido o


domínio da volta grande da Terra em que ele não para nunca de andar, pois possui
moradia nos quatro cantos do mundo. Kavungo é nômade, sua territorialidade é anterior à
definição de uma fronteira, todo chão de Angola é de seu domínio, cabendo a Kavungo
em todas as Senzalas e Abassás de Angola o Intoto, ou seja, o Otá assentado no chão da
Casa, normalmente na posição central do Terreiro.

Saudando o Dono do Chão da Angola

O velho é o dono do tempo Passei na casa de palha


não para nunca de andar onde ele é morador
e todo o peso do mundo pedi a benção do velho
carrega em seu xaxará e o velho me abençoou

A volta do mundo é grande Não vi a cara do velho


pra quem nem bem começou porque ele nunca mostrou
a gente faz o caminho mas todo mundo é seu filho
que o velho já caminhou que neste mundo passou

Quem tem ajuda do velho Conhece o chão pelo avesso


já vira caminhador de vida e morte ao senhor
que mais de vez rodou o mundo poder maior do que o velho
e mais de vez já voltou somente o do criador

Tem moradia do velho


que um passarinho me contou

116
nos quatro cantos do mundo
por onde o velho já andou

O Terreiro comporta a transversalidade desterritorialização –


reterritorialização pois é vivamente o Otá e seu Ngunzo. Desterritorializa na medida em
que reterritorializa, reterritorializa na medida em que desterritorializa, pois sua
territorialidade é conformada pelo “nomos que é muito diferente da lei”95 (Deleuze e
Guatari, 1997). Em oposição ao território-estrutura que se define pelo conjunto de pontos
e posições trata-se o terreiro de uma metamorfose da multiplicidade. Nos termos de
Makota Cássia que se verá mais a frente, Manzo se territorializa por causa do Intoto. E
Mãe Efigênia, ao explicitar a importância do Intoto para a existência de Manzo, vivamente
o desterritorializa: “o assentamento do intoto são vasilhames dentro dos quais se
encontram algumas pedras, chamadas de otás, que são os nossos Deuses, nossos
Inquisses. Cada Inquisse constitui uma pedra. Esta Pedra é o que assenta e o que
adoramos.”

Ou seja, Território96 é imanência, ou seja, ele vai além da representação e da


mediação simbólica. Território tal qual o assentamento do santo: conjunto entre otá [Mãe

95
Em Deleuze a crítica às teorias da lei se baseiam no fato de que essa coloca o acento fora do social, como
se a lei fosse um direito natural, portanto positivo, enquanto o social por essa visão criticada por Deleuze
seria um direito negativo, como que apenas a limitação contratual.
96
Deleuze e Guattari (1997) nos fala em uma territorialização nomâde que resulta da construção de um
território existêncial no próprio agenciamento de desterritorialização.
“ [...] o nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade pode
ser chamado de o desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz
depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário
com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado). Para o nômade,
ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na
própria desterritorialização.” (Deleuze; Guattari 1997: 44).
Uma vez mais é necessário cuidado, e menos pressa em minhas comparações. Deleuze e Guattari ao falar de
espaços nômades como liso, marcado apenas por "traços" que se apagam e se deslocam com o trajeto;

117
Efigênia é resoluta: “Iansã já é a própria energia que você carrega em seu corpo” 97] e as
representações iconográficas das qualidades dos Inquisses, chamadas de ferramentas do
santo - é um fe(i)tiche98 o que é feito, o fetiche e como se representa esse feito como um
híbrido, nem apenas fato, nem tão-somente fetiche. Território enquanto
desterritorialização-reterritorialização é, no caso da comunidade de Manzo, uma
“ontologia que comporta uma metafísica e uma filosofia da natureza e da sociedade”
(Goldman, 2005:08).

O terreiro, deste modo, participa da composição de uma complexa


sociocosmológica de tomada da palavra política na precisa expressão de Makota Cássia,
em que se busca de uma maneira sofisticada, agenciar a partir de sua multiplicidade as
relações com o exterior – exterior não significa necessariamente o opositivo, pode sê-lo,
mas é acima de tudo aquilo com que se quer fazer caminho cruzado - ao terreiro. Veremos
isso com detalhes no capítulo O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra-política.

4.1 A Comunidade da Senzala

Terreiro, para os quilomblecistas de Manzo, pode ser considerado um centro –


ou melhor, o caminho cruzado - de sua cosmovisão. Trata-se do local em que as
concepções cosmológicas pronunciam seus modos, saberes, fazeres e viveres. A Senzala de

falam também em espaço sedentário aquele que é estriado por muros e cercados. Não se trata, portanto, de
uma transmutação simples dos conceitos destes autores para a análise de Manzo, diria eu que em Manzo
têm-se na verdade uma transversalização de ambos os espaços. Em Manzo, têm-se o sedentarismo dos
muros, dos cercados, das casas construídas e resididas de forma perene, mas têm-se também o nomadismo,
que os próprios autores definem como “não é surpreendente que se tenha invocado viagens espirituais,
feitas sem movimento relativo, porém em intensidades, sem sair do lugar: elas fazem parte do nomadismo.”
(idem).
97
A esse respeito, Maria Bethania também filha de Matamba declama: “O raio de Iansã sou eu/ o vento de
insã também sou eu. Sou a Casa do Raio e do Vento, por onde eu passo é zunido e clarão. Iansã desde o meu
nascimento tornou-se a dona do meu Coração. O raio de Iansã sou eu/ o vento de insã também sou eu.”
98
Latour, Bruno. Jamais Fomos modernos ...(1994) e Como os modernos fabricam seus deuses ...(2002).

118
Manzo, seu Abassá e Abantu constituem “sistema de mundo”, organizado em torno do
Ngunzo que ao mesmo tempo, em que se troca se retém e subsiste enquanto potência
assentada em um espaço físico, e deste modo é tornando geratriz do Abantu, ou seja, da
vida comunitária. O Ngunzo, portanto, é potência móvel e fixa – assentada – no terreiro e
mantém afinidade com a vida ritual, com os preceitos e as contraobrigações dos filhos
com os Santos, mas também com aquilo que chamaríamos de vida socio-lógica, e que
Makota Cássia define tão bem, como vida cívil.

É por este motivo, que os membros do quilomblé encontram-se indignados


com a suspensão, acarretada pela interferência desastrosa do poder público sobre o
espaço físico-cosmológico da comunidade99. Makota Cássia, ao afirmar a necessidade de
se girar o Intoto – algo impossível desde a interferência estatal sobre a territorialidade de
Manzo – expressa o momento vivido pela comunidade, desde fins do ano de 2011.
Período que eles chamam de retirada do Candomblé, ou seja, um ciclo em que os
impedimentos, causados pela interferência do poder público na vida do grupo, acarreta
danos gravíssimos para os filhos de santo, colocando em risco a existência dos mesmos:
individual e como comunidade. Em julho de 2013, Makota Cássia, afirmava:

Até então tínhamos certeza que possuíamos um Terreiro de Candomblé em


nossa comunidade. Eu pensei muito ... é assim, tenho conversado muito sobre
isto: o que é nossa identidade, não é somente o lugar. Mas o que têm dentro da
nossa comunidade, o que têm dentro e como vivemos, não é o físico apenas.
Pois nós não temos plantação, nós não temos nem espaço. Estamos cercados
né, não temos espaço nenhum. Não estamos no modelo nem dos Candomblés e
nem de um Quilombo, por isto tanta dúvida dos de fora e do poder público. O
que temos é nossa Cultura e o Terreiro e a prefeitura faz esta palhaçada. (...)

99
A esse momento, o leitor mais atento, objetará que a interferência do poder público, alegada pelo autor
da tese ainda não foi apresentada, explicitada e debatida. Trata-se de uma objeção precisa e correta,
entretanto, peço ao leitor um pouco mais de calma. Pois como dito na introdução para melhor compreensão
da tese aqui apresentada tratar-se-á primeiro a sociocosmológica de Manzo, logo após o seu processo
cosmopolítico de tomada da palavra, para então, poder apresentar em termos de uma etnografia a relação
entre Manzo e os poderes públicos, no capítulo 8, razão pela qual peço um pouco mais de paciência ao
leitor. Entretanto, ao longo do texto, sempre que possível apresentarei algumas características desse
processo de interferência do poder público sobre a cosmológica de Manzo.

119
Resolver o Terreiro é para ontem. Precisamos da Camarinha e cozinha100. Eu
quero que a prefeitura venha aqui e coloque porque ela que derrubou. Estava
caindo? Pois então que coloque novamente caindo, mas que coloque lá, a
cozinha e a camarinha e ai aguardamos qualquer processo ou projeto. Ai sim, eu
posso aguardar um projeto de arquitetura, uma regularização de território,
indenização, qualquer processo. Mas precisamos da cozinha e camarinha. Não
tem como fazer Candomblé sem Cozinha e Camarinha. NÃO TEM!!! Precisamos
dar os fundamentos. Temos que fazer isto antes que a Comunidade desapareça.
(...) O problema é a prefeitura que não deu condições para o Candomblé voltar.
Porque se ela dê condições de voltar. (...) Outra forma de ver: para mim foi uma
forma de eliminar o candomblé, não tem outra explicação. Foi preconceito e
discriminação da prefeitura. Não tem outro jeito de ver. Foi eu apresentar o
Terreiro para a prefeitura e ai começa esta palhaçada. Eu acho que tudo
começou quando eu fui a prefeitura pedir uma ajuda para um evento. (Makota
Cássia, dezembro de 2012)

Antes ainda, em dezembro de 2012, após o retorno das pessoas, mas não dos
santos. Makota Cássia apresentou seu protesto, inclusive formal, quanto às obras
insuficientes e os danos causados pelo poder público municipal:

A Defesa Civil foi clara que antes tinha riscos gravíssimos e mesmo agora que
retornamos, a Defesa Civil nos disse que: a reforma foi totalmente insuficiente.
Eu mesmo só aqui em casa já gastei mais de 06 mil reais, após voltarmos para
arrumar encanação, fiação e outros reparos, além de aproveitarmos para
trocarmos portas e janelas. O pessoal da Defesa Civil pelo que me avisaram não
gostoram de nada. O meu irmão os ouviu comentando entre eles, que parecia
não ter havido nenhuma reforma. Só sei que questionei isto com a Urbel 101, mas
ela disse que teríamos que pedir um relatório para saber se continuava o risco
ou não e, ela nem sabia se eles da Urbel faziam isto.

Como visto, os filhos de santo precisam manter um vínculo, baseado nas


trocas de Ngunzos com seu espaço vital, o que no caso de Manzo, é impossível desde fins
de 2011. É no Terreiro, que se assentam os Santos - Inquisses de cada um dos filhos, os
Inquisses da Casa, do Pai de Santo, Inquisses de segurança, os Pambu-Njilas da Casa, dos
filhos, os Pambu-Njilas que acompanham cada um dos Santos pessoais assentados, os
elementos sagrados, a casa dos eguns. O Terreiro, portanto, organiza uma comunidade,

100
Refere-se a ambos os elementos, que somados a outros, como quartos de santos e quarto de jogo foram
derrubados e não reconstruídos na reforma realizada pela prefeitura de Belo Horizonte na comunidade, em
caráter de urgência, mas sem a devida participação da comunidade, ver-se-a mais detalhes a frente.

101
Companhia Municipal de Urbanização.

120
em que os seus membros podem ou não residir permanentemente. Como nos afirmou
Lucas, o terreiro é o “espaço único” para a distribuição das divinações e, uma
especificidade brasileira do culto de origem afro, uma vez que em África “não existe a
presença de assentamentos de múltiplas divindades em um só espaço”. Algo semelhante
às conclusoes de Juana Elbein dos Santos: “o asé [em Angola Ngunzo] impulsiona a prática
litúrgica que, por sua vez, o realimenta, pondo o sistema em movimento.” (1984:38).

Se cada casa é uma casa, é preciso conhecer um pouco mais, não do


Candomblé Angola no genérico, mas do Candomblé Angola de Manzo.

4.2 A estrutura física do Abassá102

Manzo é formado por várias construções e atualmente possui sete (7) imóveis
que abrigam: o Terreiro e os estabelecimentos residenciais, mas este número é variável,
podendo às vezes ter mais ou menos elementos construtivos. O mais comum é que os
elementos construtivos sejam subdivididos ou acrescidos de novos cômodos
independentes. Os números são variáveis e depende de dinâmicas organizativas bastante
fluidas. Por exemplo, a chegada de um novo parente, um casamento, um retorno, um filho
querendo maior liberdade e ou maior intimidade em relação aos pais, podem dar origem a
um novo elemento construtivo, ou mesmo erigir uma nova divisão a partir de um
elemento construtivo anterior.

As residências não seguem um único padrão, existindo residências com até


cinco (5) cômodos, compostas de sala, cozinha, banheiro, quartos, e residências de apenas
um (1) cômodo, no formato de barracões. Ou residências de um (1) cômodo que se
formam em sub-lajes – puxadinhos – de antigas construções, ou em cômodos que faziam

102
Como dito: Salão onde se realizam as cerimônias públicas do candomblé, também chamado de terreiro,
roça de santo, barracão.

121
parte de outras residências ou estruturas construtivas. O Quilomblé possui três (3) imóveis
residenciais no nível da rua e os demais no interior do terreno.

Por se localizar em um declive, o Quilomblé apresenta, a um primeiro olhar,


uma estrutura labiríntica com suas várias construções residenciais, religiosos, cerimoniais,
escadas, e “entre níveis” que abrigam e comportam atividades sociais, educacionais, lazer,
moradia e religiosas.

Para chegar ao Terreiro, que é considerado pelo grupo como seu “centro vital”,
deve-se seguir, após o portão de entrada, um corredor-escada. No corredor, encontra-se,
à esquerda de quem o percorre, no sentido rua-terreiro, o assentamento para o Pambu
Nijila da Porta, e a direita o assentamento para Giramavambo103, que são os guardiões do
portão do Terreiro. Logo à frente do portão, rente ao muro de divisa com a residência
vizinha, do lado direito da escada, localiza-se uma série de assentamentos para os outros
Pambu Njilas e Inquisses protetores do Terreiro.

Ao fim da escada e à sua esquerda, localiza-se o corredor interno de acesso ao


Terreiro. Em um nível abaixo do terreiro, localizam-se outras construções residenciais. Em
um nível acima, mas não por cima do Terreiro, uma residência e em um nível acima desta,
as residências defronte à rua.

O edifício que abriga o Terreiro possui em seu corredor de acesso três (3)
quartos, sendo que um deles serve como um pequeno cômodo-residência104. Pode-se
dizer que Manzo conforma uma espécie construtiva sui generis que se estende ao longo
do terreno acidentado e diminuto de cerca de 250 metros. Nas palavras da Makota Cássia:

103
Uma qualidade do Inquisse que faz a intermediação entre os seres humanos e os outros Inquisses, neste
caso conhecida como Mavambo.
104
Mais recentemente, tal organização sofreu uma pequena mudança. Visto que uma das netas biológicas
de Mãe Efigênia encontrava-se grávida, os três quartos foram anexados de forma a se criar uma nova
residência, para ela e o filho, o que exemplifica bem o processo de criação e reorganização do espaço
residencial na comunidade.

122
Éramos cinco filhos e a minha mãe tinha o costume de pegar os filhos dos outros
para criar. E a família foi crescendo, foi multiplicando e começou a necessidade
de construir várias outras casas em volta do terreiro mesmo, chegando até o
ponto de o terreiro ficar no meio das casas dos moradores. A família cresceu e
ninguém quis ir embora, até mesmo por causa do terreiro. Nós começamos a ter
uma ligação muito direta com o terreiro. E aí ficou, começamos a dividir as casas
para que coubessem todas as famílias dentro. São onze famílias, no total de mais
ou menos 42 pessoas. (Makota Cássia, maio de 2012).
Segundo Makota Cássia, o Terreiro de Candomblé Angola “deve ser um galpão” e
idealmente não deve haver uma separação de nível entre a audiência e o espaço de gira, como
ainda ocorre em Manzo:

(...) alguns terreiros respeitavam esta divisão de assistência com a roda do santo,
mas hoje entendemos que quanto mais pessoas estiverem em circulo, melhor
para convivência, a gente acha melhor não ter mais este espaço de separação no
Candomblé. (Makota Cássia, abril de 2012).

Ainda, que não se siga um único modelo, os Terreiros devem manter-se


seguindo um padrão, como acontece em Manzo:

(...) o espaço deve ser fechado, como se fosse um galpão. Não pode ter
construção nenhuma em cima do Terreiro, pois nós temos Santos que moram
aqui em cima e santos que moram na Terra. Então não pode ter nada construído
em cima e nem embaixo do Terreiro, na camarinha também não pode ter nada
construído embaixo ou em cima. (...) o Terreiro e a Camarinha são espaços
muito sacralizados. Camarinha deve ficar isolada do contato com a rua, mas
deve ter contato com espaços sagrados como a cozinha e o Terreiro. (Ibdem)

Para Makota Cássia e Mãe Efigênia, além da Camarinha105, é importante a


presença um quarto onde se possa “suspender o santo (...) desvirar do santo, ou seja,
desincorporar o santo para ele ir embora. Neste quarto também ficam os paramentos e
ferramentas dos santos.” (Mãe Efigênia, 2012)

Para Cássia, em um Terreiro Ideal, o salão da gira deveria ser rodeado pelo
lado de fora, por 05 quartos de santos do mesmo tamanho. Um quarto para o Santo da

105
Camarinha neste caso refere-se a um quarto fechado, onde se encontram distribuída as decisas –esteiras
- também chamado de quarto de recolhimento, no qual o neófito é resguardado e confiado aos cuidados da
mãe ou pai de santo, de seu pai-pequeno ou pai-criador que os auxiliará e ensinarão alguns dos preceitos e
fundamentos da religião, este momento é denominado período de iniciação, momento de grande
importância no despertar do santo e para as coisas do santo.

123
Casa, um quarto para os Santos Frios: Oxalá, Iemanjá e Luango, que são santos que
vestem branco. Uma casa para as Inquissianas: onde moram Iansã e Oxum. Um quarto
para os Santos de ferramenta e um quarto para os santos da Terra. E uma camarinha de
chão de terra. Os Inquisses da natureza como Nkosse e Tempo, deviam ser assentados ao
ar livre, de preferência em seus elementos sagrados, como árvores específicas ou outro
elemento pertencente à ferramenta do santo, e não em quartos.

A descrição, feita por Cássia de seu terreiro ideal, nos remete a descrição de
Vagner Gonçalves Silva (2005), da estrutura arquitetônica de um compound africano, onde
moravam grandes famílias, que se organizava a partir de uma planta quadrada constituída
por vários cômodos dispostos em torno de um pátio interno. Nestes templos africanos,
Pambu Nijila era a divindade protetora da entrada, e no pátio se sepultavam os mortos e
se davam os encontros e celebrações, e outro cômodo era dedicado a entidades106.
Entretanto, se os modelos ideais de Terreiros podem se assemelhar a compouds africanos,
não se pode falar como propôs Bastide (2001) de que os Terreiros de candomblé são
pequenas Áfricas, ou seja, aldeias africanas perdidas no meio de árvores. Seja porque nem
todos reproduzem esta estrutura física, mas e principalmente, porque como nos
mostraram os amigos de Manzo, a própria sociocosmológica de culto do Candomblé é um
caminho cruzado brasileiro e vivamente vivido nas trocas que são únicas para cada Casa,
não comportando um modelo tão rígido e fechado como os das pequenas áfricas.

Os Terreiros, por razões tanto cosmoorganizacionais - a organização de um


Terreiro, esta submetida aos designos dos Santos – como por razões de ordem econômica,
material, urbanística, de direitos imobiliários, dentre outros não seguem necessariamente

106
Por outro lado, Marianno Carneiro da Cunha, em seu From Slave Quarters to Town Houses nos fala de um
processo em que a arquitetura brasileira é que foi introduzida e se espalhou na região iorubá da África
Ocidental. A imagem dos candomblés baianos, analisada por Bastide (2001) não se aplica em Manzo no que
se refere ao espaçamento físico: diminuto e adensado com várias contruções e sem áreas verdes, ainda que
permaneça uma cosmoorganização espacial assemelhada.

124
o modelo bastidiano da pequena áfrica. Grandes terreiros, com diversas unidades
edificadas, distribuídas por um espaço relativamente grande, com a presença de
elementos da natureza como cursos de água, áreas verdes, divisões entre espaços de
residência civil – termo que ouvi junto com outro: vida civil em Manzo para se referir ao
modo organizativo da forma-Estado, e espaços cosmológicos dentre outros, existente em
grandes terreiros baianos, como a Casa Branca do Engenho Velho, ou mesmo em terreiros
localizados em Belo Horizonte e região metropolitana, mas esses são de certo modo
exceções na cena do candomblé urbano de Belo Horizonte.

A comunidade de Manzo considera que seu espaço não é o ideal. A afirmação


da ausência de um espaço ideal deve ser interpretada a vista da vida vivida de Manzo e
não necessariamente pelo discurso externo107. É na vida vivida que se percebe que o
diminuto espaço e a ausência de elementos da natureza, de um quintal apropriado, faz
falta como afirmam os membros de Manzo, mas essa ausência não impede a existência da
comunidade e suas sociocosmológicas ordinárias e extraordinárias. A comunidade
desenvolveu, a partir de uma cosmo-lógica e uma sócio-lógica própria, uma cosmografia,
aqui entendida como em Paul Little (2002:04), ou seja, os saberes ambientais, ideologias e
identidades – coletivamente criados e historicamente situados – que um grupo social
utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo inclui seu
regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a
história de sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e
as formas de sua defesa e, que permite abrigar no pequeno e acidentado terreno não

107
Para os técnicos, conforme registrado em laudos, as construções não respeitam as regras da boa
arquitetura e engenharia. O arquiteto designado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -
IPHAN, assim descreveu a organização espacial do Quilomblé de Manzo, após uma visita ao mesmo:
“Verifica-se como é próprio nas construções de famílias de baixa renda, em ocupações fundiárias informais, a
execução de obras com pouco planejamento, estruturas e compartimentação quase sempre
subdimensionadas, ou seja, sem as orientações técnicas adequadas de arquitetura e engenharia.” (folha 19
Inquérito Civil Público – ICP 1.22.000.003507/2011-63 Volume 01, Procuradoria da República – Minas
Gerais, Ministério Público Federal).

125
somente o templo religioso e os assentamentos dos santos, mas também as residências
das famílias que a compõem. Se Bastide (2001:78) falava em pequenas áfricas em relação
aos Terreiros, falava também em seus escritos, que: “(...) cada candomblé é obrigado a
adaptar-se ao sítio onde está construído, no alto de uma colina, no flanco de uma
elevação; e as dimensões às vezes mais extensas, outras vezes mais restritas, do terreno
que possui (...)”. A prática do Candomblé, como nos informa seus membros de Manzo, se
adapta com a devida permissão – negociação – com o Santo ao sítio territorial e aos seus
elementos constitutivos, assim sendo, é possível na ausência de um elemento, em comum
acordo com o Santo, substituí-lo por outros elementos a sua semelhança: isto pode
ocorrer, por exemplo, com a substituição determinadas folhas; ou a adequação de
assentamentos por ausência de espaço dentre outros108.

4.3 A estrutura cosmológica do Abassá 109

No centro, não somente físico, desta estrutura encontra-se o Terreiro do


Candomblé. O Terreiro é o lugar onde ocorrem os eventos extraordinários da vida
comunitária, como as cerimônias religiosas, as celebrações, mas também os eventos
ordinários como os afazeres cotidianos da religiosidade, o projeto sócio-educativo

108
Para um estudo das especificidades dos Candomblés no contexto urbano ver Prandi 1991, Gonçalves
1996; 2005, Gonçalves e Amaral 1992, Amaral 1996.
109
Farei a descrição do Terreiro, tal qual conheci e não como se encontra atualmente, após o processo de
alteração imprimida - de forma “desrespeitosa e absurda” para valer-me dos termos usados pelos membros
de Manzo - pelo poder público municipal, quando este interditou o Quilomblé e realizou obras de reparo
que não respeitaram os modos, fazeres e saberes do grupo, sua religiosidade e sua cosmovivência e
acarretaram como consequência, o desarranjo sociocosmológico do Terreiro. Cumpre salientar que a obra
realizada pelo poder público derrubou quartos de santos, quarto de Preto Velho e também os ancestrais
coletivos “guardiões” do grupo, a cozinha, a camarinha, o quarto de “virar o santo”, o banheiro ritualístico,
isolou o quintal interno onde localizava a cozinha e deste modo tornou inviável a prática religiosa do
Candomblé.

126
Kizomba110 e os fazeres e viveres da comunidade. O Terreiro, na concepção dos
quilomblecistas, é o local mais vivo da Comunidade:

Aqui tem atividade o tempo todo. O local que reunimos todo mundo para
conversar, discutir, é o Terreiro. O Terreiro é o coração da família. Aqui as
crianças vêm brincar, fazer exercício de casa, recebemos visitas aqui. O terreiro
é o quintal e o local que reúne todo mundo. Tem-se um respeito com o sagrado
do espaço, mas se vive muito aqui (...) O terreiro é como se fosse a sala de
encontro, é onde tudo acontece. (Makota Cássia, abril de 2012)

O Terreiro que é a sala, o quintal, o lugar das conversas e dos debates, das
cerimônias e centro social, cosmológico, familiar, político do grupo; é uma construção na
forma aproximada de um retângulo, dividido em duas partes assimétricas em tamanho e
altura: a parte da assistência e da gira.

A gira é o espaço para as cerimônias religiosas, para as rodas de capoeira 111,


de maculelê e de samba. O galpão, como alguns se referem à construção, é feito de
alvenaria, coberto em parte com laje - espaço da audiência - e em parte com telhas -
espaço da gira -, possui varias portas e um quintal interno, cujo acesso se faz por uma
escada. No quintal está localizada a cozinha e o assentamento ao Inquisse Kitembo ou
Tempo. Ao lado da escada de acesso ao quintal encontra-se um banheiro utilizado
preferencialmente, em dias de cerimônias públicas, pelos membros rodantes do Terreiro
e, nos dias de cerimônias privadas, para o cumprimento de obrigações para com o santo,
como, por exemplo, os banhos.

110
O projeto Kizomba é um projeto sócio educativo e cultural realizado pelos quilomblecistas de Manzo,
organizado principalmente em oficinas. Dedicarei mais a frente um subcapítulo para analisá-lo de forma
pormenorizada.
111
A capoeira é elemento bastante importante em Manzo, e sua presença, como se verá mais a frente,
coaduna a sociocosmológica do Santo. Em Manzo, portanto, capoeira é também um Ngunzo e palavra que
faz caminho cruzado. Mas desde já esclareço que um estudo mais aprofundado dessa relação da capoeira
com o Ngunzo de Manzo, é algo que não será realizado nesse trabalho. “Doze homens me chamavam. Ora
meu Deus é melhor saber quem sou camará. Agua de beber, eh lêlê água de beber, camará; água de lavar,
eh lêlê água de lavar, camará; goma de gomar, camará. É a capoeira, camará. Ela é mandigueira, eh ela
mandigueira, camará! Eh dá volta ao mundo, camará. Eh dá volta ao mundo camará!”

127
Neste quintal existe uma grande vara – mastro – com uma bandeira branca
hasteada no topo, em uma altura superior ao telhado do terreiro. Trata-se do
assentamento do Inquisse Tempo112 ou Kitembo. A Bandeira de Tempo está presente em
todos os Terreiros de Candomblé da Nação Angola, pois Tempo é o dono da Bandeira da
Nação, sendo seu assentamento sempre feito em um espaço aberto, onde são realizados,
as maiangas: banhos para os iniciados. Para Makota Cássia:

112
Chamado de Rei da Angola. Senhor do tempo e estações do ano. Saudado como Nzara Kitembo – Glória
ao Tempo. Em Angola se diz que nada se faz sem sua autorização. Conhecido também como Inquisse da
gameleira branca, onde geralmente é feito seu ritual e suas oferendas. Recebeu de Zambi o domínio sobre o
tempo e as estações. Segundo alguns enredos Tempo existe desde o princípio e a tudo assistiu, a tudo
resistiu, e a tudo resistirá. Caetano Veloso, em Sua Oração ao Tempo, se dirigiu creio eu a este Inquisse.
És um senhor tão bonito/Quanto a cara do meu filho/Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido/Tempo Tempo Tempo Tempo
Compositor de destinos/Tambor de todos os ritmos/Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo/Tempo Tempo Tempo Tempo
Por seres tão inventivo/E pareceres contínuo/Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos/Tempo Tempo Tempo Tempo
Que sejas ainda mais vivo/No som do meu estribilho/Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo/Tempo Tempo Tempo Tempo
Peço-te o prazer legítimo/E o movimento preciso/Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício/Tempo Tempo Tempo Tempo
De modo que o meu espírito/Ganhe um brilho definido/Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios/Tempo Tempo Tempo Tempo
O que usaremos prá isso/ Fica guardado em sigilo/Tempo Tempo Tempo Tempo
Apenas contigo e migo/ Tempo TempoTempo Tempo
E quando eu tiver saído/Para fora do teu círculo/Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido/Tempo Tempo Tempo Tempo
Ainda assim acredito/Ser possível reunirmo-nos/Tempo Tempo Tempo Tempo
Num outro nível de vínculo/Tempo Tempo Tempo Tempo
Portanto peço-te aquilo/E te ofereço elogios/Tempo Tempo Tempo Tempo
Nas rimas do meu estilo/Tempo Tempo Tempo Tempo.
Gilberto Gil, por sua vez em Tempo Rei, poetiza:
Não me iludo/Tudo permanecerá do jeito/Que tem sido/ Transcorrendo, transformando/ Tempo e espaço
navegando todos os sentidos (...)
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver /Ensinai-me, ó Pai, o que eu
ainda não não sei/ Mãe Senhora do Perpétuo socorrei.
Pensamento, mesmo fundamento singular/ Do ser humano, de um momento para o outro/ Poderá não
mais fundar nem gregos nem baianos.
Mães zelosas, pais corujas/ Vejam como as águas de repente ficam sujas/ Não se iludam, não me iludo/
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo.

128
A Bandeira é o símbolo de todo Terreiro de Angola, é a carteira de identidade do
Terreiro. Ela tem que ser bem visível, pois ela é uma referência de identificação
do Terreiro. Tipo assim: “- tá vendo aquela bandeira lá. Então lá é uma
comunidade de Terreiro Angola113”. E no pé desta Bandeira ficam vários
assentamentos do Santo que a rege. (Makota Cássia, abril de 2013).

Ao fundo do quintal encontra-se a cozinha onde eram preparados ritualmente


os alimentos. E ao lado desta, um pequeno cômodo que servia para guardar os alimentos
e animais utilizados no Candomblé. Para Makota Cássia e Mãe Efigênia, na ausência de
uma cozinha, não se pode falar em Candomblé.

Neste quintal se encontra ainda um pequeno quarto - assentamento - com


oferendas para o Preto Velho. Segundo Cássia, devido às limitações do terreno, não se
tem um Quarto de Egun ou de Baba, que idealmente deveria estar mais isolado e sem
muito barulho no entorno.

Entretanto, Makota Cássia não soube dar maiores informações sobre este
espaço sagrado, uma vez que “Eu não participo. Eu sei que fazemos oferendas a Baba -é
assim que se chama -, faz-se rituais e oferendas, nos dias das festas grandes, mas eu
nunca participei.” A resposta de Cássia, por um lado explicita a sua condição feminina: no
culto de Babá Egum, alguns espaços são interditados às mulheres114. E por outro vai à
direção apontada por Bastide:

(...) De duas, uma: interrogam-se exteriormente alguns dos membros, que não
dão senão poucas informações e logo se refugiam no silêncio, ou então penetra-
se na sociedade, mas fica-se prisioneiro da lei do segredo. A morte é a

113
Anteriormente à retirada do grupo e a interferência do poder público, a Bandeira de Tempo tremulava
alta e visível, sendo possível avistá-la de longe e de várias partes da região onde se localiza o terreiro. Desde
o retorno das pessoas, para usar uma expressão de Cássia, mas não do Candomblé, a Bandeira de Tempo
continua ausente. Não sendo mais possível identificar Manzo à distância, como eu fazia, sempre que visitava
o grupo, desde o alto Santa Efigênia, pela Rua Major Barbosa.
114
Tive a oportunidade de acompanhar um Xirê para Baba Egum em outro Terreiro da região Metropolitana
de Belo Horizonte e, segundo a Mãe de Santo da Casa, as mulheres depois de certa idade, notadamente
quando deixam de menstruar, podem ter acesso às ritualísticas dos Eguns Babas. Mas, como demonstra, a
precisa fala de Makota Cássia, as mulheres não estão de todo ausentes do culto, já que elas possuem
responsabilidades de ajudar na preparação das oferendas.

129
condenação de todos os que violam os mistérios dos Egum. (Bastide, 2001: 169-
170)

Vizinho a este quintal, em seus fundos, localiza-se um lote que durante muito
tempo foi utilizado pelo Quilomblé para atividades, como o Candomblé de Caboclo: ritual
que acontece embaixo de uma árvore e em um local com chão de terra, estava presente
nesta área – posteriormente cercado pelo proprietário –, algumas plantas sagradas para o
Culto Angola, como o bambuzal, um dos assentamentos para a Inquisse Matamba. Mãe
Efigênia, enquanto caminhávamos no quintal de sua residência em Santa Luzia, cidade
vizinha a Belo Horizonte, afirmou:

(...) O candomblé é movido pela natureza. As folhas – inçabas– são muito


importantes em nossa religião. A maza –água– e as pedras que são os otás
também. Sem estas três coisas não consiguimos fazer santo. Por este motivo
que nós candomblecistas temos muita necessidade de preservar a
natureza(...)115.

De volta ao Galpão, ao lado da porta de acesso a este quintal interno, localiza-


se o assentamento dos atabaques116. À esquerda desses fica o quarto de consulta ao jogo
dos búzios, e mais à frente, ainda à esquerda, já no espaço da audiência, em nível mais
elevado em relação ao espaço da gira, fica a porta que dá acesso ao corredor de ligação
entre o Terreiro e a escada de acesso à rua. Um pouco mais à frente, depois da porta de
acesso ao corredor, localiza-se uma terceira porta, que dá acesso a dois pequenos
banheiros para uso da audiência.

115
Na mesma direção, Lucas esposo de Mãe Efigênia, em uma conversa me afirmou, em nosso culto sem
folha não fazemos nada. Esta fala me lembrou do ponto:
Cosi euê/Cosi orixá/ Aiê, Aiê, Aiê/Sem folha não tem sonho/ Eueô, Eue á Orixá/ Sem folha não tem festa/
Eueô, Eue á Orixá/ Sem folha não tem vida/ Eueô, Eue á Orixá/ Sem folha não tem nada/ Eueô, Eue á Orixá /
Aiê, Aiê, Aiê/ Cosi euê/Cosi orixá/ Aiê, Aiê, Aiê/Quem é você e o que faz por aqui/ Eu guardo a luz das
estrelas/ A alma de cada folha/ Sou Aroni/ Euê ô/ Euê ô orixá/Agué vem salva as folhas, Agué vem salvar o
verde/ Agué vem salvar a natureza/ Agué Agué vem salvar a natureza /aiê, aiê, aiê/ aieeeê.
116
O Atabaque é ele próprio uma entidade, é através de sua vibração, comandada pelos Cambonos, que os
Inquisses são invocados e convocados. Nos Terreiros da Nação Angola, os Atabaques idealmente devem
ficar de frente para a porta principal, de forma que os cambonos, que são os guardiões da Casa, possam ter
o controle total do Terreiro.

130
Ao fundo do galpão, atrás dos bancos para a audiência e de frente para o
assentamento dos atabaques, localiza-se outras duas portas, que permitiam o acesso a
dois Quartos ou Assentamentos de Santo. Como dito, são os cômodos onde se guardam as
ferramentas características e onde se encontram assentados os Inquisses. Os quartos de
santo não possuem imobiliário, mas pequenas “arquibancadas” com dois (2) ou três (3)
lances de degraus, que começam a 30 cm do chão e chegam a aproximadamente 1 metro
de altura. Ao centro da “arquibancada”, em um degrau mais alto fica a Inquisse da
Mametu ou do Tatetu da casa.

À direita dos atabaques no espaço da gira, encontra-se a porta de acesso à


camarinha ou quarto de iniciação. E outra porta que dá acesso ao quarto de incorporação.
Ao longo do salão se encontram-se fotos de toques e festas, rodas de capoeira, bem como
elementos referentes ao Projeto Kizomba, assim como quadros representando os
Inquisses de Mametu Muiandê-Mãe Efigênia: Kavungo e Matamba, e entidades como o
Preto Velho.

No galpão encontram-se ainda os dois elementos mais importantes de um


Terreiro de Candomblé, o Axé principal da Casa, o Intoto117 e a Comunheira.

Esse assentamento, ou Axé é o elemento gerador do Terreiro, pois concentra a


energia que rege a força da Casa. Ele se divide em duas partes: o Intoto, um assentamento
para o Inquisse dono do chão do Terreiro. E o assentamento para o/a Inquisse da casa, que
deve ficar acima das cabeças dos frequentadores, normalmente em uma posição central
no Xirê – espaço da gira - e é denominado Comunheira. O Intoto e a Comunheira devem

117
O otá é uma pedra, podendo ser o seixo de um rio, ou de outra parte da natureza, sobre a qual se afixa o
Ngunzo de um Inquisse por meio de ritos consagratórios. O otá tem agência, estando em constante fluxo em
um movimento contínuo e, que se diz que está vivo, e compõem redes sociais, nas quais humanos e não
humanos interagem.

131
ficar simetricamente sobrepostos para que ocorra a troca de energia entre estes
elementos.

A Comunheira é o assentamento para o protetor da Casa e é definida no jogo


de búzios, no caso de Manzo, a Comunheira é um assentamento para o inquice – Kabile
Mutalambo. Abaixo deste, enterrado, encontra-se o Intoto dedicado sempre a uma das
Qualidades do Inquisse Kavungo. Dentro do Intoto, está assentado como dito, o Otá que
deve ser trocado a cada sete anos para reenergizar a casa.

Quando da interferência do poder público, houve uma reunião para decidir


como tratar os assentamentos dos/das Inquisses da Casa, e os assentamentos dos Santos
de cada um dos filhos da casa, bem como os outros elementos religiosos. Na reunião, os
membros da comunidade de Manzo, decidiram pela retirada dos assentamentos da
maioria dos Inquisses e dos assentamentos dos filhos da casa e seu reassentamento
provisório na casa de Mãe Efigênia, na cidade de Santa Luzia na região metropolitana de
Belo Horizonte, de modo que a Mãe de Santo pudesse minimamente cuidar dos mesmos.
No entanto, a Comunheira e o Intoto, bem como alguns outros assentamentos de
segurança, permaneceram em Manzo. A este respeito Makota Cássia, ainda no período de
interdição física do Quilomblé, nos relatou que:

Se levássemos o Intoto para Santa Luzia seria uma mudança definitiva. Nós não
queremos. Até mesmo porque é o nosso território, nosso espaço, onde nós
vamos morar juntos. Aí teríamos que formar um Quilombo lá 118. Teria que ir
várias famílias para lá. (...) quando nos perguntam: Vocês vão deixar o Intoto lá?
Nós não recebemos nenhuma ordem do próprio Pai Benedito para retirar o
Intoto.

118
Manzo possui um sitio na internet (http://kizombaprojeto.tumblr.com/) e neste encontram-se algumas
informações sobre o grupo e sua luta. Como a definição dos mesmos para Quilombo: “Quilombo era uma
forma fundamental de resistência como fenômeno inerente à escravidão, reflexo da inconformidade do
negro frente à escravidão que lhe fora imposta em todas as partes onde surgia a agricultura, trabalho
forçado, logo os quilombos apareciam enchendo as matas e pondo em sobressalto os senhores de terra. Hoje
em dia Quilombo também são espaço que segue na tradição afro, lugares que essa tradição é passada de pai
pra filho ou para comunidade que se localiza.” Retomarei a frente esta definição bem como as demais
obtidas durante o percurso etnográfico sobre ser quilombola.

132
Os quilomblecistas de Manzo vêem no Terreiro a base para as atividades
religiosas e também para as atividades sociais, mas principalmente a base de sua
existência enquanto Povo do Santo e Quilombo. O Quilombo é a comunidade que vive o
entorno do Intoto e da Comunheira.

4.4 - O Abantu

Como apresentado, o terreiro é o caminho cruzado do Candomblé, ou seja, ele


transversalmente apresenta, representa e é Ngunzo. Como já dito, os filhos de santo
precisam desse espaço consagrado, pois é nele que preferencialmente o Ngunzo
estabelece a troca vital. O terreiro, portanto, organiza uma comunidade, cujos membros
podem ou não residir permanentemente, sendo que a maioria não habita o mesmo
espaço, mas mantém entre si vínculos de aliança, através da troca de Ngunzo que os une
ao passado, ao presente e se estende para o futuro e para os devires em uma organização
sócio-hierárquica resguardada por preceitos, obrigações e deveres, em uma relação de
parentesco, para com os seus irmãos de santos, bem como aos pais de santos, os
ancestrais e os inquissses.

Não é pretensão nesse trabalho analisar a questão do parentesco como uma


entrada compreensiva do Candomblé, isto demandaria outro tipo de pesquisa. Entretanto,
parece-me necessário acompanhar Rita Segato (1992) quando esta afirma que os termos
parentesco e família no Candomblé, operam em um sentido diferente do marco usual de
definição de família na sociedade brasileira:

No nível mais superficial, o panteão é constituído por uma família de orixás, o


que poderia levar os incautos a acreditar em um modelo de assimilação da
família patriarcal. De fato, a articulação entre o discurso de seus membros e o
discurso sobre as relações sociais em geral é construído com base em palavras
retiradas da esfera de parentesco, mas esta primeira impressão não resiste a um
exame mais rigoroso. (1992:04-05) (...) Basta dizer, por enquanto, que, quando o
mito parece obedecer, submisso, a linguagem institucional da família, como ela
é construída pelos valores dominantes na sociedade brasileira, o que ele

133
realmente faz é desmontar, desconstruir, mostrando-nos a fragilidade desta
línguagem frente a realidade das relações sociais. (tradução minha, Segato,
1992:04-05)119

Birman (1995) chama atenção em sua etnografia para algo que de tão
corriqueiro em um Terreiro pode passar despercebido do pesquisador: a noção de família
do Candomblé exige apenas um genitor e este independe do seu sexo no plano biológico e
de sua opção sexual. Neste sentido, Birman (1995:131) é precisa: “um único genitor não
significa um único gênero, em primeiro lugar, e que a presença de um único genitor não
exclui a presença de outra forma de relação através da figura do ogã- ou seja, a de pater.”
Aqui se ressalte que o pater não significa necessariamente uma identidade de gênero. Em
Manzo se vive em um espaço de respeito e valorização das diversas opções de gênero ou
de suas transitividades. Como afirma de Mãe Efigênia: “é uma Casa de Portas Abertas”.
Isso não significa que todos os filhos de santo da casa tenham a mesma opinião a respeito
das opções de cada um dos filhos.

Em outro trabalho, Género, política e hibridismo en la transnacionalización de


la cultura Yoruba, Segato (2003) aprofunda tais afirmações ao analisar os termos de
gênero no Xangô do Recife – o que poder-se-ia classificar como uma outra Nação de
Candomblé ou como uma sub-nação Queto/Iorubá, com forte presença no Recife – ao
afirmar que a utilização da linguagem do dominador, pelos membros do Xangô, trata-se
de uma forma de translocamento, desgaste e desestabilização da mesma:

119
No original: En el nivel más superficial, el panteón está constituido por una familia de orixás, lo que
podría llevar a lós incautos a creer que se da aquí una asimilación del modelo de la familia patriarcal. De
hecho, el discurso sobre las articulaciones entre sus miembros, así como el discurso sobre las relaciones
sociales en general es construido sobre la base de palabras retiradas de la esfera del parentesco, pero la
primera impresión que de esto resulta no resiste a um escrutinio más riguroso. (1992:04-05) (...) Baste decir,
por ahora, que, cuando el mito parece obedecer, sumiso, al lenguaje institucional de la familia, tal como ésta
es construida por los valores dominantes en la sociedad brasilera, lo que de hecho hace es desmontarla,
desconstruirla, mostrándonos la fragilidad de este lenguaje frente a la realidad de las relaciones
sociales.(1992:05)

134
(...) no ambiente dos cultos afro-brasileiros, a reprodução, a criação dos filhos
[de santo] e a organização doméstica são concebidos como separado da
biologia. A unidade familiar e de culto, a chamada "família de santo", operam
em todas as áreas da vida, não estando baseada em pressupostos de um
substancialismo biológico compartilhado, e sim no processo de iniciação, ou
seja, na substância ritual compartilhada (chamada "axé" e inoculado no
organismo do iniciado por seu "Pai de Santo"). Também as personalidades e a
orientação sexual são livres de determinações biológicas. E seria possível
continuar indefinidamente dando exemplos de um ambiente do gênero que
opera com liberdade em relação aos dados anatômicos, em que as noções
iorubás descritas por Oyeronke podem ser nitidamente reconhecidos. Entretanto,
uma indicação clara de gênero, não é ausente, dado ser um vocabulário para
categorias importantes na vida social, ainda que subvertendo o sistema
ocidental120. (tradução minha, grifos do original. Segato, 2003:342)

Estas conclusões de Segato, para a questão da família, do parentesco e de


gênero, nos interessam aqui, pois por outros olhares reafirma o local da transversalidade
o do caminho cruzado do Candomblé, como uma multiplicidade que se metamorfoseia.
Um princípio da diferença-diferenciadora:
A genealogia flui através da "mãe" ou do "pai de santo" para os "filhos de
santo", isto é, como membros iniciados do culto. (...) os orixás permanecem
dividido por gênero, o que reforçou seu funcionamento, mais claramente do que
nunca, como classificadores das personalidades de seus pupilos, em masculino e
feminino. Neste verdadeiro zodíaco do gênero, uma pessoa com corpo feminino
pode ter uma personalidade classificadas como masculina se sua divindade
tutelar é do sexo masculino. Neste caso, ele vai dizer que o "santo da sua cabeça
é um santo ou orixá-homem". E uma pessoa com corpo masculino pode ser, da
mesma forma "filha" como um orixá "mulher". Neste modelo, é a personalidade
que se encontra predista pelo gênero, e a anatomia ideal, paradigmática dos
orixás opera como um significante desta diferença. Ao mesmo tempo, a
androginia e a transitividade de gênero também são encontrados no sistema,
incorporados a mitologia de alguns orixás: Logunedé, é na Bahia, seis meses do
ano masculino e, seis meses feminino, e Oya teria tido um passado masculino,

120
No original: “(...) en el ambiente de los cultos afro-brasileños, la reproducción, la crianza de los niños y la
organización doméstica son concebidas como separadas de la biología. La unidad familiar –y la doméstica–
del culto, la así llamada “familia de santo”, operativa em todos los ámbitos de la vida, no está basada en el
presupuesto de la sustância biológica compartida, sino en la iniciación, es decir, en la substancia ritual
compartida (llamada “ashé” e inoculada en el cuerpo del iniciado por su “padre de santo”). También las
personalidades y la orientación sexual están libres de determinaciones biológicas. Y sería posible proseguir
interminablemente dando ejemplos de un ambiente de gênero que opera con libertad en relación al dato
anatómico y en el que las nociones Yoruba descriptas porOyeronke pueden ser vívidamente reconocidas. Sin
embargo, un claro esquema de género, lejos de encontrarse ausente, da el vocabulario para categorias
importantes de la vida social, aunque subvertiendo el sistema occidental. (Segato, 2003:342)

135
tornando-se feminina em tempos mais recentes, depois de seu casamento com
Xangô, embora mantenha ainda uma personalidade viril. Um contínuo está
traçado ao longo dos percursos dos orixas em suas qualidades personais, o que
resulta em que alguns santos femininos são considerados mais viris do que
outros. E que exista gradação de masculinidade para os "santos homens" ao
ponto que, de acordo com a perspectiva de uma linha específica de
personalidade, um santo feminino pode ser entendido como "mais viril" ou "mais
masculino" que um santo homem no desempenho de uma ação ou tarefa
particular. 121 (tradução minha, Segato, 2003:354)

O terreiro organiza a comunidade - Abantu nos termos de Manzo - local das


práticas ritualísticas, litúrgicas, mas também da vida ordinária sem as quais, o Ngunzo não
pode se realimentar e manter-se em constante movimento.

Segundo Mãe Efigênia, a vida no santo exige grande dedicação e um


aprendizado contínuo, cotidiano e total. Um “Pai de Santo” costuma dizer: “só recebe, os
seus direitos, seu doutorado” – expresão seguida de riso –, o que não significa “o fim do
processo de aprendizado”, após cumprir um “processo de formação” que dura, no caso
dos “bons alunos” e daqueles que possuem “condição de manter em dia suas obrigações
com o santo, vinte e um anos”.

121
La genealogía fluye a través de la “madre” o del “padre de santo” para los “hijos de santo”, esto es, por
iniciación como miembros del culto.(...) Los orixás permanecieron subdivididos por género, lo que reforzó su
funcionamiento, más nítidamente que nunca, como clasificadores de las personalidades de sus tutelados en
masculinas y femeninas. En este verdadero zodíaco de género, una persona con cuerpo femenino puede
tener una personalidad clasificada como masculina si su divinidad tutelar es masculina. En ese caso se dirá
que su “santo dueño de la cabeza es un santo –u orixa– hombre”. Y una persona con cuerpo masculino
puede ser, de la misma forma “hija” de uma orixa “mujer”. En este modelo, es la personalidad lo que se
encuentra predicado por el género, y la anatomía ideal, paradigmática de los orixas, opera como el
significante de esa diferencia. Al mismo tiempo, la androginidad y la transitividad de género también se
encuentran presentes en el sistema, incorporadas en la mitologia de algunos orixas: Logunede, en Bahía, es
seis meses del año masculino y seis meses, femenino, y Oya habría sido masculina em el pasado, tornándose
femenina en tiempos más recientes, después de su casamiento con Xango, aunque exhibe todavía una
personalidad viril. Un continuum es trazado a lo largo del precurso de lós orixas en su calidad de
personalidades, lo que resulta en que algunos santos femeninos sean considerados más viriles que otros y
que hayan grados de masculinidad para los “santos-hombre”, al punto que, según la óptica de algún trazo
específico del carácter, un santo femenino puede ser entendido como “más viril” o “más masculino” que un
santo masculino en el desempeño de una acción o tarea particular.” (Segato, 2003:354).

136
Os direitos são obtidos por etapas. O primeiro é obtido após os sete primeiros
anos, período mínimo para se adquirir o direito de ser Mametu ou Tatetu e possuir uma
Casa de Santo.

Com nove anos de santo recebi os meus direitos de mãe de santo. São sete
anos que você estuda. É igual faculdade, são sete anos. Eu atrasei por falta de
condição, na preparação, e também por falta de tempo, pois tem que parar, um
mês, dois meses, tem que recolher na casa do zelador, tem a peneira de búzios,
a faca que é o pocó, a tesoura que é sunzango, a navalha e aí sim você, recebe
os seus direitos, que é seu diploma. Você joga os búzios na sala para todo
mundo ver. É esse que é duro. Tem a reza em dialeto africano, você tem que
rezar tudo em banto, tem uma festa com comes e bebes e ai você sai com a
roupa de gala, é a sua libertação, entendeu? (...) Os fundamentos de cada
Inquisse, de cada orixá. Cada orixá tem seu fundamento. Não é tudo a mesma
coisa. Cada orixá tem seu fundamento! Cada pessoa tem um enredo diferente.
Porque, vamos supor, você que é de Xangô, e ela digamos que também é de
Xangô. Porque o Nzaze122 dela é a mesma qualidade do seu, mas ela tem um
enredo, ela tem um ajunto diferente do seu. E se for o mesmo ajuntó, tem um
enredo diferente. Aí tem um processo para fazer: ou na encruzilhada, ou na
mata, ou na beira da água, tem os ebó de rua. Tem que se aprender tudo isto.
(Mãe Efigênia, janeiro de 2012).

Na fala acima, ao referir-se ao ajuntó como já visto, no capítulo anterior, cada


pessoa, conforme reforça a explicação de Mãe Efigênia tem um Inquisse individual, único
e exclusivo, não existem dois Inquisses iguais em toda terra. Portanto “meu” Nzazi é
pessoal e único, não obstante exista uma potência Nzazi que perpassa a todos os seus
filhos arquetipais. A pessoa do Candomblé é múltipla e “composta” por sete Inquisses,
sendo o principal, chamado de inquisse da "frente" - o dono do Orí, ou seja, da cabeça -, o

122
Como já visto, Inquissee que em geral se identifica com as mesmas qualidades e enredo do Orixá Xangô
na Nação Ketu. É o inquisse das pedreiras, dos raios e do trovão, cuida da justiça, do poder, da política.
Saudado A Ku Menekene Usoba Nzaji – Nzaze (Salve o Rei dos Raios – Grande Raio).
A uma das qualidades de Nzazi, Baden Powell compôs uma das mais belas letras e música do cancioneiro
nacional, Canto de Xangô:
Eu vim de bem longe/ Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim/Sou filho de Rei/Muito lutei pra ser o que
eu sou/ Eu sou negro de cor/ Mas tudo é só o amor em mim/Tudo é só o amor para mim/Xangô Agodô/Hoje
é tempo de amor/Hoje é tempo de dor, em mim/Xangô Agodô/Salve, Xangô, meu Rei Senhor/Salve, meu
Orixá/Tem sete cores sua cor/Sete dias para gente amar/Mas amar é sofrer/Mas amar é morrer de
dor/Xangô meu Senhor, saravá!/Me faça sofrer/ Ah, me faça morrer/Ah, me faça morrer de amar/Xangô,
meu Senhor, sarava/ Xangô Agodô.

137
segundo é o ajuntó. Cada Inquisse possui as qualidades e enredos que são variados, mas
que seguem certos modelos de acordo com a nação e para tanto recebe títulos
específicos, nomes, tipos de animais votivos, lugares, situações, formas, quizilas, preceitos
exclusivos. A título de exemplo: uma pessoa pode ter como 1º santo Nzazi e ajuntó
Matamba; existir outra pessoa com esses dois orixás nesta ordem não é difícil, mas ter 07
Inquisses que coincidam e tenha todas as qualidades exatamente iguais, é impossível, pois
a diferença como multiplicidade compõe o enredo ou a qualidade. Os caminhos, enredos,
qualidades, compõe a múltipla forma do Inquisse, Goldman (2009: 120) nos fala: “(...)
“Fazer o santo” ou “fazer a cabeça” não é tanto fazer deuses, mas, neste caso, compor,
com os orixás, uma outra pessoa.(...)”.

Manter em dia as obrigações significa para além de uma força de vontade


pessoal, dedicação contínua e cotidiana, mudanças de hábitos que abarcam o que Makota
Cássia, gosta de chamar de a vida cívil ou a vida lá fora do Candomblé. Envolve também a
possibilidade de manter em dia, as obrigações com o Santo, como visto, Mãe Efigênia
demorou 02 anos a mais do que o mínimo para receber seus direitos que podem ser
recebidos em 07 anos.

Apesar da dedicação do filho às coisas do Santo, se este não possuir as devidas


condições materiais, por exemplo, financeira e de tempo, para a manutenção de suas
obrigações seu caminho dentro do Candomblé se encontrará mais dificultado. Segundo
Makota Cássia, um dos únicos senões do Candomblé, são seus altos custos, o que
ensejaria segundo ela até mesmo “uma inflação de preços” por parte de alguns pais de
santo.

Segundo Makota Cássia, na ausência de um grande terreiro, aquela em que


toda a comunidade residiria em seu entorno e viveria das suas provisões – uma
comunidade também de produção -, é necessário repensar o que ela denomina de fundo
de roça:

No candomblé hoje, no meu ponto de vista, o pobre está sempre no fogão de


lenha, ele não tem cargo, ele só tem cargo se tiver um parentesco muito grande

138
com o pai de santo, hoje a maioria dos pais de santos é branca. Por quê? Porque
eles conseguem dar as obrigações em dia, eles conseguem pagar suas
obrigações. Não é que eles compraram seus cargos, muito ao contrário, mas é
porque eles conseguem cumprir as obrigações, pois têm salários mais altos,
empregos melhores. Olha eu mudando totalmente de assunto da sua questão. E
o negro, como a maioria é pobre, descalço, sem formação acadêmica, eles já vão
direto ao fogão de lenha, onde eles conseguem se destacar mais. Por quê?
Porque são domésticas, donas de casa, elas vão crescer na cozinha. Estão
acostumados a arear panela com areia, coisa que branco não está. Então é o que
a gente chama de fundo de roça. E aí o que acontece, vemos gente que tem
mais de 20 anos de santo, mas até hoje não conseguiu tomar obrigação no
candomblé, por que não sabe ler, não sabe escrever, e ai não tem um bom
emprego. [refere-se sobre os filhos nessa situação] (...) ele vem da prática,
aprende com a prática entende. Ele não aprendeu em livros e no caderno, ele
aprendeu sobre o Candomblé na prática, praticando. (Makota Cássia, dezembro
de 2012)

Makota Cássia amplia o que se pode chamar de uma critica sociocosmológica,


ao expressar seu temor que a relação com o santo se transforme em uma questão de
estatus, perdendo-se a importância da vivência, o que aprofundaria o risco de se
reproduzir dentro da roça parte do processo de desigualdade sócio-racial, existente fora
desse espaço:

Hoje tem um pouco de status, a mãe vai brigar se ouvir-me falando isto. Mas
antigamente fazia o processo de obrigação e crescia no candomblé. Hoje existe
o tal chão. Que o pai de santo fala, o preço do meu chão é tanto. Não é chão na
verdade. Chão era antigamente. Chão era aquilo que a gente fazia para o
crescimento do candomblé. Obrigações não ficam em menos de 07 mil reais. (...)
Fora que você vai fazer uma festa e tem Pai de Santo que fala: “- não compra
Bavária não que os convidados da minha casa tomam é Brahma.” Mas pera ai,
esta vindo pelo santo ou pela bebida? (...) Para mim, o Candomblé é por a mão
na massa, é oferecer ao Santo aquilo que nós fazemos, mas tem pessoas que
preferem não fazer. Daqui a pouco, vamos ver máquinas de despenar frango nos
Candomblés, pois tem pessoas que querem facilitar o trabalho. (...) Como esta
pessoa é vista pelo Santo, eu num sei. Às vezes acho que ela nem é vista. Mas ai
penso também, o contrário que ela vai ser vista porque ela esta beneficiando o
candomblé. Ai eu fico com esta dúvida. Porque também o pai de santo precisa
manter as despesas do candomblé. Então têm aqueles que não ajudam a colher
a lenha, a ascender o fogão, mas ajuda com dinheiro. Eu ajudo a colher a lenha,
a ascender o fogão de lenha, mas o que precisar pagar eu penso duas vezes.
Não que o Santo não mereça, mas eu sei que o que eu tenho a dar, é muito mais
com as minhas mãos ao santo do que com o meu bolso. Mas tem pessoas que
pensam o oposto. Eles têm muito mais a dar ao candomblé com os bolsos.
Ao candomblé, tudo bem, mas e o santo? Eu acho que aos santos só com as
próprias mãos mesmo. Tem gente que paga para cozinhar para o Santo. O ideal
seria ela mesma cozinhar, fazer a troca, mas tem o outro lado, o Santo aceita.
Pois, o Santo entendeu que quem cozinhou também precisa. Mas a gente ensina

139
aqui, se você cozinhou para fulano e ele te pagou, pega este dinheiro e guarda
para sua obrigação do santo. (ibdem)

A este respeito Reginaldo Prandi (1991:159) afirma:


É pelo sacrifício que o Orixá se afirma e a pessoa se realiza religiosamente (...) O
Candomblé é uma religião de deuses ricos para fieis pobres. Ele joga aí com uma
contradição, que é dupla. Primeiro, é uma religião de deuses ricos na medida em
que as obrigações que lhes são devidas envolvem somas consideráveis de
recursos financeiros, sendo os iniciados em geral pobres ou muito pobres,
especialmente os que constituem o baixo clero. Segundo, primando pela
personificação - cada orixá pessoal é único -, e não contando com um corpo
doutrinário que privilegie o altruísmo, o candomblé lança mão também da ajuda
mútua para que o iniciado seja capaz de juntar os tópicos da ‘lista da obrigação’.
Deuses ricos e crentes pobres, ações coletivas para fins particulares, ainda que o
mecanismo desta sacralização de gastos possa promover essa espécie de
redistribuição alimentar entre os membros do grupo e o fortalecimento da força
religiosa da casa, Axé que é de todos.

Gisele Binon Crossard (1981) bem como Birman (1995) dentre outros
identificou em seus estudos este ethos do trabalho doméstico nos candomblés, bem como
sobre a questão do volume de atividades que acarreta a vida no santo, os vultosos custos
e gastos, bem como, principalmente Birman (1995) uma divisão social do trabalho entre
os que Makota Cássia classificam de “fundo de roça” e os filhos que só frequentam as
festas.

Em outra conversa, Mãe Efigênia destaca que para além do conhecimento dos
fundamentos, é necessário encarar a vida no Santo com dedicação e como uma missão:
“eu senti que tinha uma missão a cumprir. Essa missão que eu tenho hoje de ser uma
zeladora, de ser uma Mametu dya Nkisi.” Missão para a qual ela tem grande zelo:

A mesma função que eu tenho na minha casa, no dia-a-dia eu tenho no


Candomblé, mas bem mais, porque ai é uma religião e eu tenho que mexer com
a cabeça das pessoas. Com a vida de cada um no dia-a-dia. Então eu tinha que
ter tempo disponível e paciência para ter uma resposta, é preciso ter tempo e
dignidade, para poder responder bem as pessoas e suas aflições e que não fosse
inventada. Minha vida é isto ai. Tirar piolho dos outros, curar feridas. E estas
coisas que eu continuo fazendo até hoje. É tanto que eu nem estudei, hoje eu
vejo a gente precisa aprender; a mexer com computador. Mas eu não aprendi a
fazer nada. Só aprendi a pegar espírito, pitar cachimbo, jogar búzios, fazer
comida e cuidar do povo. Tanto que não sou aposentada até hoje. Não tenho
uma renda fixa. É assim: um chega e dá uma doação, outro não dá. Você nunca
sabe o que vai ter no fim de mês. Não tem um salário fixo, não tenho uma conta
bancária. Eu sei lavar, passar, cozinhar, benzer, pegar espírito e jogar búzio. Mas

140
eu não fico triste com isto, pois sei que de algum lado vem o benefício e o
agradecimento.
Eu me dediquei ao Orixá. Então eu faço tudo, guardo preceito (...) Porque olha
só, se você mantém um relacionamento, se tiver sexo hoje, amanhã você tem
que fazer preceito, tem que tomar um banhozinho, tomar um banho de folhas
da cabeça aos pés para limpar seu corpo. Porque senão você não pode nem
jogar búzios, você não pode fazer um fundamento. Pois está com o corpo sujo,
entendeu? Se eu sair na rua eu tenho que voltar e tomar um banho antes de
mexer com qualquer coisa, pois você pega carrego de rua. (Mãe Efigênia, janeiro
de 2012).

O Santo também é muita responsabilidade, segundo Mãe Efigênia, por lidar


com a palavra. A palavra falada somada aos gestos, expressões e corporeidades permite a
troca de Ngunzo e possui potência interativa. A palavra em Angola é parte e todo,
representa e é o Ngunzo. A palavra proferida é a palavra que se troca e, portanto,
carregada de potência. Como visto na afirmativa de Lucas - capítulo anterior -, a palavra
mesmo que não pronunciada corretamente carrega consigo o som, e este permite a
comunicação e a troca de Ngunzo123. O som seja através das palavras, seja através da
emissão sonora dos instrumentos musicais, seja através do Maku – prece realizada em
formas de palmas ritmadas, dirigida aos Inquisses – é evocativo. Portanto, a palavra é
perlocutória: tem a potência de exercer um efeito sobre o ouvinte, pois conduz Ngunzo.

123
Por uma destas boas coincidências, quando já havia elaborado a linha diretiva da tese, a compreensão da
sociocosmologia de Manzo, a partir de seus conceitos, fiquei sabendo da realização de um mini-curso
denominado: Minicurso "Ìlù (Tambores Falantes) no Museu Inimá de Paula em Belo Horizonte, no dia 18 de
julho de 2014. Inscrevi-me no mini-curso com 04 horas de duração e, esta experiência com um professor
nigeriano, que se apresentou assim: “sou Iorubá, da região do Candomblé que vocês chamam de Queto ou
Nagô”. Segundo Samuel Ayòbámi Akínrúlí que ministrou o curso e é presidente do Instituto de Inovação
Social e Diversidade Cultural (INSOD), “o som é a fala do tambor, sem tambor não tem dança e sem ambas
não existe a troca” ou em outro momento “o tambor anda junto com movimentos corporais, ele é uma
conversa. Ele troca frases. Ele é a fala (...) quem tem ouvido, escuta; se trocam lógicas em cada toque” e por
fim, uma frase reperida várias vezes em diversos contextos do curso, e em diversas explanações sobre o que
ele definiu como “cultura Iorubá” “nossa ideologia é a troca.” Ainda que se trate de um autodenominado
Iorubá a região do Candomblé Queto ou Nagô, me parece que suas afirmativas reforçam a leitura aqui
proposta para o Candomblé Angola de Manzo. Como já visto, o Tambor é palavra, o Semba de Angola. Já
diria Vinícius de Morais: Fazer samba não é contar piada/ E quem faz samba assim não é de nada/ O bom
samba é uma forma de oração. Para depois afirmar: O branco mais preto do Brasil/ Na linha direta de Xangô,
saravá!/ A bênção, Senhora/ A maior ialorixá da Bahia.

141
A palavra, portanto é ela também a transversalidade, que faz caminho cruzado
e que permite as trocas e as alianças. Recorde-se Pambu Njila é condutor da palavra e o
responsável pela comunicação124.

A conversa traz muita paz para espiritualidade, muita paz mesmo. Eu falo que o
pai de santo é psicólogo, juiz, advogado, ele é tudo. (...) Jogo de Búzios tem que
ter jogo de cintura. Você precisa de ver! Tem homem que chega e diz: “- quero
saber se minha mulher esta me traindo.” Vou te contar... Homem apaixonado é
a pior coisa que tem. Ele senta e quer saber se a mulher está o traindo. Ai eu
falo: “- o Búzio não fala isto não.” Nossa Senhora!!! E o pior é que fala né. Mas
eu digo: “- Búzio não fala isto não”. Ai ele diz: “- fala sim.”Eu digo: “então vai
procurar outro Búzio, pois o daqui não fala não!!!” Olha a responsabilidade, você
está doido, eu falo e aí o homem sai daqui e mata a mulher ou a mulher mata o
homem. É muita responsabilidade. Responsabilidade muito grande. (Mãe
Efigênia, abril de 2012).

A partir de Manzo, dimensionarei um pouco do dia-a-dia de um Candomblé


Angola. Makota Cássia nos explica a seguir o processo de feitura no santo, através dos
rituais de dar um Bori e abrir o Obi:

O Bori125 é um ritual, chamado de mesa branca, onde você coloca todas as


comidas brancas. É um ritual para a alimentação da cabeça. Tem o Bori de
equilíbrio e tem o Bori de iniciação. O procedimento é o mesmo. O Bori de
equilíbrio também é feito por quem já se comprometeu a iniciar no Santo. O
Bori é a apresentação ao Santo. O Bori de Iniciação é o processo de abertura do
ritual de feitura. O Bori de equilíbrio se usa mais em problemas de saúde e de
convivência com as pessoas e famílias, é um equilíbrio mental, muita gente
chama de esfriar a cabeça. É uma etapa para o processo de Bori de Iniciação. No
Candomblé, digamos assim, tem três fases de inicio. A primeira é dar o Obi, o
Obi é uma fruta sagrada126. Este qualquer pessoa pode dar. Até mesmo um

124
Pambu Njila como dito é o Inquisse da comunicação, o intermediário, mensageiro. Várias de suas
representações têm formas fálicas, significando a fecundidade e o poder da comunicação. A palavra como
Pambu Njila, é grávida de significações.
125
Literalmente dar de comer a cabeça. Em Iorubá Bo é oferenda e ori cabeça. O bori é ritual de troca de
Ngunzo com o Santo sem a qual o noviço, não poderá prosseguir no processo de despertamento do Santo.
126
É um tipo de noz. Sendo comum no oeste da África. É um fruto sagrado, sem o qual não é possível a
confirmação, ou seja, se os Inquisses aceitaram as oferendas. Sao utilizados, portanto, nas confirmações de
obrigações e também nos ritos do Bori. Funciona como comunicação entre os homens e os Inquisses. O obi
de quatro gomos utilizado nos rituais deve ser aberto com as mãos e não com objetos cortantes. O jogo de
obi é prepoderante nos ritos, pois a depender de sua caída é que se dará a continuidade dos mesmos.
Quando os gomos caem abertos, ou seja, com os gomos para cima, os Inquisses aceitaram e abençoaram o
rito. Outra noz sagrada utilizada nos ritos é o Orobô. Que pode ser usado junto ao Obi, ou mesmo no lugar
do Obi. O Orobô e utilizado principalmente nos ritos para os Inquisses Nzazi e Matamba, pois é tido como

142
cliente. Diz-se vou abrir um Obi para ele. O Obi você abre ali: você deita e fica
algumas horas deitadas para o Orixá. Arria a Mesa Branca para a pessoa e ali ela
fica deitada um tempo descansando e meditando, descansando a cabeça para
Oxalá e Kaiaia.
Em Angola o Bori se chama Kibangulo. O Obi então qualquer pessoa pode fazer
sem vínculo com a religião e sem promessa futura de seguir a religião. Já o Bori é
uma fase de iniciação. (...) O Bori é um ritual que você fica de 4 a 6 dias
recolhido. Durante esses dias você passa por um processo de purificação,
banhos, rezas, você aprende o princípio de comportamento no Candomblé e
aprende um pouco o que é o Candomblé.
É assim, você chega e fala: “- Oh D. Efigenia eu quero entrar para a casa da
senhora.” A primeira coisa a fazer é dar um Obi para fazer parte do quadro
mediúnico da casa, daí certo tempo você vai precisar de um Bori - quando você
perde certo controle sobre as coisas da sua vida - então se faz um Bori, durante
o Bori você está descansando sua cabeça e aprendendo sobre o que é o
Candomblé. (...) Então você sai de lá aprendendo. As rezas você aprende
algumas, pois é uma obrigação da mãe de santo lhe ensinar e uma obrigação sua
aprender algumas rezas: como para comer, para o Santo, a reza da benção que é
a reza da casa. Você come comidas com tempero mais leve, e ai você começa a
aprender o que são as quizilas.
É justamente, porque você tem a oportunidade, de perguntar as coisas às
pessoas, que você aprende mais rápido. O Bori é um pré-primário. É um duplo
aprendizado. É um processo interno. É a nova vida que você vai passar a seguir.
Você sabe que a partir dali jamais você vai, por exemplo, vestir preto em uma
sexta-feira. Que no dia do seu Santo você não pode usar roupa escura. Se você
for mulher, que você só acompanhará um funeral vestida de saia. A partir de se
dar um Bori se inicia tudo.
O Bori, pelo que acompanho, muda inclusive a relação da pessoa com a família,
pelo que eu vejo a partir do momento do Bori ela começa a ver o problema dela
com a família, e não o problema da família com ela. Então o Bori e isto, às vezes
as pessoas dizem tomei um Bori e fiquei lerda. Não é isto, a partir do momento
que você toma Bori, você se torna mais reflexivo. Lá dentro da Camarinha, você
deixa tudo, você entra apenas com um pano amarrado no corpo. Então a certeza
é: aqui dentro nada do que você tinha lá fora tem valor para nós, aqui dentro o
que tem valor é o Santo, e agora você vai ser apresentado ao santo. Isto é o Bori,
uma apresentação de você a sociedade do candomblé, mas também a
apresentação de você ao Santo. Então você começa a se integrar mais ao Santo.
(Makota Cássia, dezembro de 2012).

Segundo, Makota Cássia, uma pessoa pode dar vários Boris antes de terminar
o processo de feitura “às vezes as pessoas não podem completar o processo de iniciação

uma semente quente como as pedras de raios de Nzazi. Os orobôs também são utilizados em consultas à
divindade, assim como o obi.

143
pelos custos ou porque não tem tempo” e aí se realizam vários Boris. O Bori e sua validade
são definidos através do jogo de búzios “o Búzio informa que está sendo solicitada a
feitura da cabeça”. O Bori é “como se tivéssemos abrindo sua cabeça e implantando o
fundamento nela”, portanto enseja uma obrigação de se completar o processo de
iniciação até a fase da feitura do Santo:

Se não puder concluir o processo de feitura. Pode se consultar o búzio


novamente para ver se o Santo aceita mais um Bori. Mas ai só a interpretação,
feita pelo Pai de Santo, do jogo de búzios pode definir isto. Se chegar à data e
você não poder por outras razões como trabalho - em outras Jeje e Ketu, isto
não existe prometeu tem que cumprir - na Angola se faz isto. Por isto que
dizemos que ela é mais leve, há uma negociação novamente com o Santo, em
troca de Bori e alimentação. Mas não se devia passar de sete anos entre o
primeiro Bori e a feitura. (ibdem).

Como nas demais Nações, em Angola, os Búzios são centrais na prática


religiosa, sendo a Mametu ou Tatetu aquele que é capaz de fazer a interpretação correta
do jogo. São os Búzios, os responsáveis para a definição do santo principal da cabeça de
um filho, de seu ajuntó e as qualidades ou caminhos. São os búzios que definem quais
filhos que incorporarão, ou seja, que poderão “virar no santo” e aqueles que não
incorporarão, mas possuirão papel fundamental nos rituais e no dia-a-dia do Terreiro, os
Kambonos e as Makotas.

O jogo do oráculo é central no Candomblé, pois através dele se faz a ligação, a


comunicação e a troca entre homens, Inquisses e ancestrais. É através dele, como visto,
que se definem os Inquisses, as qualidades de cada Inquisse, as obrigações a serem feitas,
os preceitos a serem seguidos, dentre várias outras operações centrais no ato de
movimentar o Ngunzo. No Brasil, principalmente a partir do século XX, o jogo de oráculo
passou a ser um direito – praticamente exclusivo - do pai ou mãe de santo; entretanto a
crônica, as literaturas especializadas, e os primeiros estudos sobre o Candomblé no Brasil,
principalmente as descrições das nações Ketu e Jeje fala da existência dos Babalawos,
sacerdotes especializados na leitura dos oráculos. O Baba lawo, ou seja, o Pai dos destinos
é um porta voz de Orunmilá, potência ligada ao conhecimento e sabedoria. O Babalawo
não entra em transe e sua presença é bastante marcada no Candomblé de Cuba e do

144
Haiti. Além de interpretar oráculos, ele é capaz de fazer rituais, é também um líder
espiritual e aconselhador das pessoas.

Segundo Makota Cássia, aqueles que não incorporam não passam pelo mesmo
processo de iniciação. Neste caso, eles também são recolhidos à camarinha, mas ao invés
de serem “raspados no santo, são levantados”127 para mostrar para todo o “Abantu como
a gente diz, ou seja, para a Casa, e para que fique claro a todos, que eles terão um cargo.”
Aqueles que não incorporam tem papel ritualístico tão importante quanto os que
incorporam:

Eu oriento os filhos de santo nas atividades da casa. Pois sou Makota. Eu


confirmei o santo quando eu tinha quinze anos. Makota é um cargo, é como se
eu fosse à governanta da casa. Tomo conta tanto da criadagem quanto das
visitas. É também uma relação pública, mais ou menos isso. (...) Então confirmar
o santo era ter um nome de resgate, que é a “digina”. E aí eu recebi o cargo para
ser Makota. Um auxiliar, um assistente do pai de santo, da mãe de santo. E
desde então estou sempre aprendendo um pouco mais, me aprofundando um
pouco mais sobre a religião. (Makota Cássia, dezembro de 2012).

Esta afirmação de Makota Cássia, bem como as de outros membros do


candomblé com quem conversei nesta pesquisa, e pelo que pode observar, me leva a
discordar parcialmente da afirmação de Carneiro (2008) para quem as ekedes do
Candomblé Ketu – em Angola similar as Makotas – ocupariam o lugar mais baixo na
hierarquia do Candomblé. Em Manzo, e possivelmente em Angola, tal afirmação não se
confirma. Os kambonos e makotas como todos devem respeito às hierarquias de iniciação
e a Mametu ou Tatetu, mas podem ser vistos como co-celebrantes dos rituais, sendo aliás
a esses devotado grande respeito no trato e nas referências formais como pais e mães
ainda que com esses se possa ter, a depender do filho, um tipo de relação mais

127
Trata-se do momento, como pude testemunhar no Terreiro do pai de santo de Mãe Efigênia, em que um
filho é literalmente levantado, ou seja, é carregado por cima dos ombros de outros Kambonos para que
todos os presentes no Toque possam ser comunicados e possam reverenciar o novo Kambono ou Makota.

145
informalizado para Makota Cássia, é como se eles já possuíssem naturalmente os graus
iniciais, não necessitando de realizar todos os processos de feitura.

Então quando elas chegam ao Candomblé, elas já chegam por não incorporar
com um grau a mais. É como se ela já tivesse passado pelo Bori. Por isto se
levanta a pessoa, para todos saberem que ela já tem um grau a mais. Como ela
não vira, ela jamais vai reproduzir o que ela vive. Ela jamais vai dar Bori em
alguém. Por que nós que não viramos não podemos ter filhos de santo. Nossos
filhos são os filhos do Pai ou da Mãe de Santo. Nós cuidamos do Pai ou da Mãe
de santo, da Casa e ajudamos com os filhos dos pais e mães de santo. Nós
servimos eternamente a Casa e ao Pai de Santo. O nosso Bori é dado como
forma de equilíbrio. O processo de feitura é diferente, dura 07 dias e o Bori
apenas 02 dias, para os que viram no santo, o processo dura 21 dias ao todo e o
Bori 06 dias. (...) ele já esta confirmado. O Pai de Santo só vai despertar nele o
Santo, o Orixá e dar a ele as responsabilidades. Porém sua formação é mais
longa e intensa, pois em um ano ele deve aprender aquilo que os outros podem
levar 07 anos. Ou seja, assim que cai o kelê128 nós já participamos da vida
religiosa, já começamos a participar das matanças, os kambonos já começam a
cortar e a participar da sacralização dos animais, fazemos assentamentos,
montamos assentamentos. Tudo isto em um processo de aprendizado rápido. A
makota ou kambono não é definido, ele é descoberto no jogo. Mas as pessoas já
trazem isto no comportamento. O Pai de Santo e outros iniciados conseguem
perceber isto e já sabemos que eles não vão incorporar, ou seja, jamais vão
rodar. O jogo só confirma, mas geralmente a maioria dos pais de santos já sabe
isto na convivência. (Makota Cássia, dezembro de 2012).

Apesar de utilizar a palavra feitura, Makota Cássia esclarece que não existe um
processo de feitura e sim de iniciação, uma vez que as pessoas já nascem com a energia
vital que é o Santo, o Inquisse. O que se faz, como gosta de dizer Cássia é “despertamos o
Santo”. Portanto, não se faz um Santo, o desperta. As afirmações vão à mesma direção
apontada por Goldman (2009: 120)

(...) “Fazer o santo” ou “fazer a cabeça” não é tanto fazer deuses, mas, neste
caso, compor, com os orixás, uma outra pessoa. Neste caso, porque não são
apenas as pessoas que estão divididas entre os orixás, mas tudo o que existe e
pode existir no universo: grupos sociais, animais, plantas, flores, comida, pedras,
lugares, dias, anos, cores, sabores, odores… Todos os seres “são” de

128
O kelê é um colar de contas que é colocado no pescoço do iniciante, ao começo do processo de
despertamento do santo. O mesmo deve ser utilizado idealmente por 03 meses após a cerimônia da saída de
santo. Durante esses três meses o muzenza continuará seguindo vários preceitos como dormir numa esteira,
usar roupas brancas e seguir uma série de restrições. Terminado o período de quelê, é feita a retirada do
mesmo, gralmente em outra festa chamada "caída de kelê".

146
determinado orixá e, ao mesmo tempo, alguns devem ou podem ser
consagrados, preparados ou feitos para ele.

Como já vito, na afirmação de Mãe Efigênia, o Inquisse “é a própria energia


que você carrega em seu corpo.” Ou seja, já existe como Ngunzo que transversaliza o
corpo de qualquer pessoa enquanto potência. Sendo possível, por sua característica de
princípio dinâmico que participa e representa ao mesmo tempo, ser despertado para fazer
o caminho cruzado e a aliança entre a divindade – Santo e seus filhos, de santo.

Por esta característica, a rigor não é possível, “fazer o santo”, pois ele “já está
feito” sendo o processo um despertamento e seu assentamento na cabeça de seus filhos,
neste caso, bem como os demais assentamentos um fe(i)tichismo, no sentido proposto
por Latour, ou seja, aquilo que faz falar: “(...) “Quem fala no oráculo é o humano que
articula ou o objeto-encantado? – os dois.” (2002:17)129. Como fica precisamente
apontado, na fala de Lucas, sobre as qualidades dos Inquisses: “A qualidade neste sentido
não é apenas um nome, mas é aquilo que se come”.

Todos aqueles que - ainda - não despertaram o Santo são os Ndumbe, ou seja,
não iniciados. Após os primeiros rituais, os Ndumbes tornam se Muzenzas. Os Muzenzas
são os Mona Inquisse, ou seja, são filhos de Santo que ainda precisarão passar por um
longo processo de formação, marcados por diversos rituais, privados e públicos, ordinários
e extraordinários.
O candomblé como é sabido é religião iniciática. Aqui a cosmologia reforça
uma vez mais, o argumento apresentado, fazer o santo é fazer aliança, troca,

129
Usamos Latour, no sentido restrito de sua crítica, ao repertório da ciência dos modernos, o qual o autor
denomina de: “pensador crítico filho das luzes” (2002:32), aquele que em seu afã denunciatório acaba por
separar o “objeto-encantado de um lado, e o objeto-feito de outro” (2002:32). Nas palavras do próprio autor,
os nãos modernos são aqueles que escapam desta falsa escolha: “ao juntar as duas fontes etimológicas,
chamaremos fe(i)tiche a firme certeza que permite à prática passar à ação, sem jamais acreditar na
diferença entre construção e compilação, imanência e transcendência” (2002:46). O objeto é
transversalmente objeto-encatado e objeto-feito. Em outros termos, o ritual de iniciação no Candomblé visa
efetivar aquilo que ele já é e realiza. Eis ai em um passe de genial simplicidade, a (cosmo) lógica Angola,
colocando em embaraço a (cosmo) lógica herdeira das luzes!!!

147
transversalizar o Ngunzo. Após a iniciação de um filho-de-santo, ele tem que,
periodicamente, se recolher novamente para receber a energia da divindade. São as
obrigações com o Santo. Que são variáveis de acordo com a Casa, mas em geral são
realizadas com um, três, cinco, sete, quatorze, vinte e um e cinqüenta anos de santo. A
obrigação dos sete anos, como já apresentado, é bastante central, pois publicizará que o
iniciado, como disse Mãe Efigênia, possui conhecimento, Ngunzo suficiente para dar
alguns passos sozinhos e realizar atividades que antes lhe eram proibidas. E caso tenha o
consentimento de seu pai-de-santo, poderá inclusive ter sua própria casa e/ou iniciar
outra pessoa no candomblé, ou seja, tornar-se um pai ou mãe-de-santo.

Manzo, como as Casas de Angola, possui uma organização e uma hierarquia,


em que Mametu Muiandê, Mãe Efigênia, ocupa o cargo de maior importância e
responsabilidade. A Mametu pode ser denominada por seus títulos completos, como
Mam’etu Ria Mukixi – Sacerdotisa no Angola. Mam’etu Nkisi ou Inquissiane – Minha ou
nossa Mãe de Santo. O seu correspondente masculino é denominado Tatetu tem como
títulos, Tat’etu Ria Mukixi – Sacerdote no Angola. Tata Mukixi/ Tata Nkisi, ouTat’etu Nkisi
– Meu ou nosso Pai de Santo. Tata se traduz por Pai, e Ma por Mãe. Mãe Efigênia
comenta que:

Para ter casa tem que ter qualificação e a pessoa já nasceu para ser líder de uma
casa. Gerar uma casa, porque o Terreiro, querendo ou não, é uma Comunidade,
você tem que liderar uma casa. Eu tenho filho de Santo antigo que não tem casa,
pois não tem capacidade de tocar uma casa. Aprende tudo, mas nasceu para
acompanhar o Pai de Santo, ou seja, nasceu para fundo de roça, para morar com
o pai de santo e é seu auxiliar. (...) Zeladora do santo é a matriarca, a pessoa que
coordena tudo. A líder da casa. Eu raspo o filho de santo, eu faço os
fundamentos com ajuda dos kambonos e makotas, mas a linha de frente sou eu.
Tem as pessoas que ajudam, mas quem toma a frente de tudo da casa sou eu,
esta é a função da zeladora. Eu sou zeladora, do tipo que faço tudo: limpo casa,
lavo, preparo ebó, dou ebó, faço defumação, banho, chás. (Mãe Efigênia, julho
de 2012).

Nesta hierarquia, pode-se dizer que acima da Mametu ou do Tatetu, somente


os Inquisses, “o Inquisse e a palavra. Ele é que decide (...)”. A hierarquia de uma Casa é
definida cosmologicamente como explica Makota Cássia, ao se referir ao processo de
iniciação das Makotas e Kambonos:

148
Antes de levantar, o Pai de Santo joga búzios, faz banhos, pois tem que estar
confirmado para levantar no Santo como Makota e Kambono. A pessoa só é
levantada se o Pai de Santo jogou e sabe qual o cargo que ela vai ocupar na casa,
e qual santo ela vai servir. Porque tem uma coisa, às vezes o Pai de Santo quer te
levantar para um Santo, mas o jogo te indica a servir outro Santo. (Makota
Cássia, dezembro de 2012).

No Candomblé Angola, os cargos de importância são designados pelo radical


Ma e Tata indicando o respeito e a obediência àqueles que se tornaram mães ou pais.
Idealmente todos os muzenzas – filhos de santo - receberão após o longo processo de
formação, um título com o radical Ma o Tata, virando ou não no santo. Vejamos um
exemplo: Makotas, são as Mães que cuidam do santo. O radical Ma, designa mãe e Kota
designa aquela que cuida do Inquisse. Os Kambono, por sua vez são pais que possuem
grandes responsabilidades. Seu título, o designa Tata Kambono. Tata - Pai e Kambono e
suas variações Kambondo ou ainda Kambundu significa algo como: aquele que possui
grandes responsabilidades. São, portanto os pais detentores de conhecimento e
responsabilidades, portanto poder, ou seja, Ngunzos. São os que cortam, rezam, cantam
para o santo, bem como fazem a segurança física e cosmológica do Terreiro.

Todos os iniciados do Terreiro de Manzo se dirigem àqueles que possuem


títulos com uma saudação em que se rogam as bênçãos as Mães ou Pais. E em geral,
dirigem-se todas as vezes que vão falar com estes, pelo vocativo Mãe ou Pai. Mesmo na
ausência destes. Um exemplo: vocês viram o Mauro? A resposta: - Eu não vi o Pai hoje. Ou
então: vocês viram a Cássia? A resposta: - A Mãe está lá no Terreiro.

O princípio de senioridade é central no Candomblé, a senioridade é marcada


pelo tempo de despertarmento no santo. E os cargos que se ocupam na hierarquia, para
além das definições dos Inquisses, dependerão também da idade de despertamento no
santo, como disse certa vez Makota Cássia “o indube virar Muzenza é uma etapa do
Candomblé” que tem como característica vivenciar em si mesmo as etapas ritualísticas
antes de trocá-las com outros. Jamais se permitirá a um pai ou mãe de santo que não
tenha vivenciado as etapas ritualísticas, realizar em terceiros aquilo que eles não
vivenciaram. Não se troca o que não se possui. Na precisa fala de Makota Cássia: “Como

149
ela [makota] não vira, ela jamais vai reproduzir o que ela vive. Ela jamais vai dar Bori em
alguém. Por que nós que não viramos não podemos ter filhos de santo. Nossos filhos são
os filhos do Pai ou da Mãe de Santo.”
Prandi (1991: 159) chama a atenção para o fato de que o recém-iniciado utiliza
indumentárias que os distingue dos demais, como a cabeça coberta, os contra-eguns nos
braços – tranças de palhas da costa - e que estes idealmente não devem olhar nos olhos
de ninguém, devem manter-se em geral curvado para os mais velhos, deitar-se de bruço
ou bater cabeça aos mais velhos e a hierarquia. Juana Elbein dos Santos (1984), também
se refere às hierarquias, senioridades e obediências que são devidas pelos mais novos aos
mais velhos e da necessária relação de sacrifício como etapa de formação, apredizagem e
retenção de Ngunzo. Em Manzo, pude ver uma muzenza ser corrigida pela Mãe de Santo
após ter pedido bênçãos e beijado as mãos de outra iniciada de maior hierarquia e tempo
no santo de maneira inadequada. Após a admoestação, a muzenza se prostrou diante de
sua irmã de santo, bateu a cabeça aos seus pés e em Quibundo fez uma oração de
saudação a sua irmã de santo, ao santo dessa e aos santos da Casa.

Em seu aspecto religioso o Terreiro possui (ia) um calendário bastante intenso


e cotidiano, marcado pelas reuniões públicas, pelas atividades ritualísticas ordinárias,
como o preparo e o oferecimento de alimentos para os Inquisses - “dar comida ao santo”,
os Ebó, Obi e Bori, os banhos, atendimento ao público, jogos de búzios. E as
extraordinárias, como os processos de iniciações, o cumprimento das obrigações dos
filhos da casa, obrigações para equilíbrio, para abrir os caminhos dentre outras atividades
e rituais.

Além destes, o Terreiro apresentava um calendário de festividades e


atividades. Como as festas para Inquisses, referidas em geral como toques: “vamos tocar
para Matamba” ou “vamos tocar para Kavungo”. Começando em janeiro quando se
realiza-(va) a Festa de Mutacalambo, o calendário festivo seguia pelo restante do ano,
com a Festa do Exu (catiço) Paredão na quaresma, no sábado anterior ao sábado de
Aleluia, Festa para Pai Benedito no último domingo do mês de maio, Festa para Nkossi no

150
início de junho, em agosto a Kukuana130 de Kavungo, e em setembro a Festa para
Matamba, que podia ser comemorada no fim do ano, no dia da Festa para as Inquissianas,
e em outubro, geralmente em seu primeiro domingo, a Festa de Wunji/Cosme e Damião.

A principal festa do Terreiro é o Toque em homenagem a Pai Benedito, momento em


que ocorrem os batizados geralmente para as crianças, mas que podem ser realizados em todos os
interessados. Em outubro, a Festa de Wunji, Cosme e Damião ou ainda dos Erês, é dividida em
duas etapas, sendo no período da manhã uma Festa com o Projeto Kizomba e à tarde outra com
os wunji. No dia desta Festa, geralmente se faz uma Caminhada pela Paz reunindo os alunos do
Projeto Kizomba, crianças e adolescentes e o pessoal do Candomblé. A caminhada divulga o
respeito à diversidade religiosa.

Atividades do Terreiro:

Segundas-feiras: Dia de realização, quando agendado, dos Toques Públicos


para pretos velhos e outras entidades da Umbanda.

Terças, quintas e sábados: Atividades do Projeto Kizomba: oficina e roda de


capoeira. Sendo as terças e quintas dias de treino, e no sábado roda de capoeira, samba e
percussão, quando era comum a comunidade receber outros capoeiras. Em datas
específicas, ocorrem encontros de capoeira, quando são recebidos capoeiristas não só de
Belo Horizonte e do interior de Minas Gerais, mas de outros estados e do exterior para
participar de batizados de capoeira, a troca de cordel ou graduação dentro do grupo.

130
Festa em que Kavungo, distribui pipocas aos presentes para que esses passem por todo corpo, e
depositem num balaio apropriado para receber o carrego. Novamente aqui vemos a cosmologia reafirmar a
centralidade da troca. A festa conta também com a presença de Matamba, que carregando insabas (folhas)
verdes completam a limpeza. É comum nas Casas de Angola uma atividade chamada esmolar para Kavungo,
que consiste na saída de filhos de santos, paramentados e com bacias de pipocas para as ruas e a ida para
porta de mercados – um dos locais de Ngunzo deste Inquisse – onde se faz a troca das pipocas e do Ngunzo
contida nelas, por outros elementos, principalmente dinheiro. Como diz a cantiga: “Iperuá, Iperuá yayá/
Iperuá Kibuko okê malembê/Iperuá Mam'etu/ Iperuá Tat'etu/ Iperuá Kibuko okê malembê!” Iperuá é o milho
duro da pipoca, ao qual se transfere Ngunzo. Kibuko é Sorte. Malembe é o pedido de licença ao Inquisse
para que transmute o milho duro em pipocas brancas e macias que são o alívio, a cura, a boa sorte.

151
A cozinha tinha atividades à semana inteira, no preparo de chás, banhos, ebós,
alimentos necessários aos diversos rituais e obrigações do santo. A comida e o comer,
como dito, são fontes da energia vital, do Ngunzo, o alimento – sempre os melhores - que
é ofertado aos Inquisses retorna aos fiéis. A comida preparada e trocada com o Inquisse e
com as pessoas contém uma prestação e contraprestação de renovação do Ngunzo. A
cozinha, como afirma os membros de Manzo, é lugar central em um terreiro, pois aí se
prepara os alimentos. É neste espaço que se realizam também parte das conversas.
Makota Cássia, por exemplo, cita como um dos significados de Candomblé, para ela, a
sensação dos cheiros e da fumaça. A cozinha é um espaço da transversalidade e de troca
de Ngunzo, ponto de caminhos e encruzilhadas. Lugar onde se sacralizam os alimentos
para os santos, os banhos, os ebós131, mas lá também se prepara as comidas paras as
festas, e lá também que filhos e filhas de santo fazem os fuxicos sobre a vida pública e
privada dos parentes de santo, dentre outras atividades.

131
Ebó é um termo iorubá, que tem várias acepções nos cultos do candomblé, todas referidas ao ato de se
ofertar uma oferenda, a algum Inquisse, podendo envolver – mas não necessariamente - a sacralização de
um animal.

152
Parte 2
A Senzala é uma Comunidade Quilombola

Eu não estou sendo poética. Nem nada não, mas eu acho que é a dedicação, o
amor da pessoa com o sagrado. Eu amo demais minha religião e brigo demais
por ela, por isto não consigo imaginar Manzo fora daqui. Mesmo que todos
mudem, o Candomblé é aqui! Não adianta, mesmo que perca essa história, essa
referência de família morando em torno do Candomblé, aqui continua a ser um
Candomblé. Só vai deixar de ser no dia que construírem um prédio na frente,
atrás e outro dos lados, mas mesmo assim ainda acharíamos um buraquinho
para entrar. O que faz de um lugar um Candomblé, são as pessoas que
frequentam e têm a intenção de respeitar aquilo que está ali. O que faz de um
lugar um Candomblé são as pessoas que têm a mesma visão de respeito com o
Sagrado. (Makota Cássia)

153
154
Capítulo 5 - A Comunidade da Senzala
Hongolô
Aruê Tateto Nindala, Nganga Curmenha, Iungonaba, Duílo - Salve o Pai que une o Céu e a
Terra, com a Água!
Nganga Hangolo Kiambote! - O Belo Senhor Do Arco-Iris!
Hangolo Ê! Hangolomenha!
Angorô e e angorô Vulaio ganga vulá
angoro tá no kajambanda Ganga vulá Vulaio
da kimbanda, no kibandô Ganga vulá Vulaio, Vulaio
angorô, ê ê angorô
Tala tata angorô
Angorô azinha no Angorô tatetu amase
kalunga no kalunguê A gingala tatetu, angoromeam
angorô azinha no a gingala tatetu, angoromeam
kalunga no kalunguê
Angorô alumiando
Angorô sinhô Angorô alumeia
que dandalunda sessé Angorô alumiando
angorô sinhô Angorô alumeia
que dandalunda sessé
angorô sinhô Angô adila kura menha kiluandê
que dandalunda sessé angô adila kilumino kiluandá
angô adila kura menha kiluandê
Angorô sinhô angô adila kura menha kiluandá
simbeganga jauntale aruê tate malembeuá
simbeganga jauntale angô adila kura menha kiluandê
simbeganga jauntale angô adila kilumino kiluandá

Aruê aê tatetu Kiluandê kiluandá


angorô anomeando tatetu indala mu kanzuá
angô andila tatetu indala mu kanzuá
angô andila kiluandê, kiluandá
angorô anomeando

Ai bulaiô
bulaiô angô tate nazá bulaiô
bulaiô angô tate nazá bulaiô
bulaiô angô tate nazá bulaiô
Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Hongolo, o quinto Inquisse a ser saudado no Xirê. A grande Cobra
com as cores do arco-íris auxilia a comunicação entre os seres humanos e as divindades. Sempre que aparece um
arco-íris no céu os bantu saúdam Hongolo pois Ele está entre eles. Representa em si mesmo as características
transversais do Angola, sendo dimorfico.

(...) Têm as famílias que frequentam o Terreiro: grupo religioso em busca de


afeto. Tem a família nossa: de criação, parentes que chegam à cidade do interior
sem recurso e vai acomodando e cria-se um vínculo e essa família passa fazer
parte da nossa família. (...) E muitas mantêm o vínculo e a ligação com o

155
Quilombo, só o Candomblé poderia fazer isto. (...) Esta é a preocupação, de
manter este espaço, pois não é somente nós que temos a perder, mas a cidade
também. (Makota Cássia, abril de 2013).

Os atuais moradores da comunidade – que como se verá a seguir é uma


classificação êmica - mantêm laços de parentesco consanguíneo e de afinidade com Mãe
Efigênia. Ela possui seis filhos carnais e muitos filhos adotivos132, como relata Mãe
Efigênia:

(...) Criei aqui mais de 18 filhos dos outros e sei lá mais quantos. Se aparecia na
minha porta eu pegava. Sabe, é muito difícil morar na rua, eu morei na rua com
dois filhos. Então eu pedi e prometi ao Santo: que se não perdesse minha casa,
todos que aparecessem na minha porta precisando, eu daria um cantinho para
eles morarem. Porque, meu filho a pior e a melhor experiência que eu tive na
minha vida foi esta: amanhecer e anoitecer sem saber para onde ir. Mas para
mim não foi sofrimento e sim experiência [fala emocionada]. (...) alguns dizem: “
Mãe! A senhora é doida. Quem é que você colocou em casa”. Eu digo: “- sei lá
gente. Não sei da onde veio. Apareceu ai na porta.” Domingo, lá na Casa de meu
Pai [refere-se ao Terreiro de seu Pai de Santo] chamei o pessoal, pois tem um
menino lá e eles pegando no pé do menino, e disse: “- temos que aprender a
conviver. Vocês não vão o fazer entrar nas suas e nem vocês entrar na dele.” É
fazer o entendimento. (...) Ai eu disse: “- se o menino tá aqui é porque Oxum133
quer o menino aqui.” Nossa missão é essa: abrir as portas para quem precisa. É o
meio que nós temos para agradecer e agradar a Deus, os Inquices e as
humanidades. (Mãe Efigênia, abril de 2012).

132
O número de filhos adotivos é variável, uma vez que o próprio conceito de adoção é alargado pela
sociocosmologia do Candomblé entre os membros da Comunidade, sendo difícil delimitar tal número.
133
A remissão a Oxum reforça a cosmologia da adoção. No enredo dos Orixás, Oxum é descrita nas várias
versões míticas como a grande Mãe. Oxum é genitora por excelência. Ligada à procriação em alguns enredos
é a Mãe de criação de todos os filhos dos demais orixás, ela cuida da gestação e do recém-nascido até o
décimo sexto dia quando entrega o recém-nascido aos seus progenitores. Em outras versões ela é a Mãe
criadora por toda a vida dos filhos de vários Orixás. Por isto, ela governa o ventre das mulheres e as crianças.
É saudada em Iorubá: Rora Yeyé Gbémil!!! Que pode ser traduzido: Mãe Grandiosa, Proteja-me!!! No
Candomblé da Nação Angola Oxum transversaliza com a Inquisse Dandalunda e confirmando o seu papel de
Mãe por excelência, cabe a ela em Angola, determinar os cargos ocupados por todos os filhos na hierarquia
de um Terreiro Angola independente de qual Inquisse pertença à cabeça do iniciado, ou seja, independente
de qual Inquisse seja o pai ou mãe daquele filho. É saudada Mametu Maza Mazenza– Dandalunda ê/Oh,
Mãe da Água Doce – Dandalunda ê. A adoção (não necessariamente formal) é uma atividade altamente
valorizada por mães e pais de santo. A adoção perfaz mais um elemento cosmológico de troca e aliança, que
visam reter e distribuir ao mesmo tempo Ngunzo.

156
A adoção, portanto, pelo próprio relato de Mãe Efigênia não segue os ritos de
uma adoção formal e pode ser temporária, ela se coaduna uma vez mais com a
cosmológica da transversalização das trocas e dos caminhos cruzados:

Criar filhos dos outros vem de hierarquia. Minha mãe criou muita gente, só eu
criei 18 mais 2, 20 filhos dos outros mais 06 meus. Ah vou te contar uma coisa
[suspiro e risada]!!! Mas você sabe de uma coisa. Um dia apareceu um homem
na minha porta, e falou assim: “- Oh Mãe de Santo, porque na porta de Centro
Espírita a gente não vê mendigo. Vocês os matam.” Eu falei: - não. Mas aquilo
me irritou, pois ele falou criticando, ele era evangélico. Ele disse: “- A porta da
nossa Igreja vive cheia de mendigo.” Ai eu falei: - sabe por que na nossa porta
vocês não veem mendigos? Porque todos que aparecem nos colocamos para
dentro. Acabei com ele. Mas é verdade mesmo. Apareceu na nossa porta,
botamos para dentro. Ai ele disse: “- é porque vocês são mendigos também.”
Respondi: - É porque nós também somos humildes, não mendigos, então damos
roupa, banho comida, apoio, colo. (Mãe Efigênia, abril de 2012).

Como visto as categorias de parentesco, bem como de gênero e sexualidade,


não seguem necesariamente as determinações biológicas e biogenéticas, a que se
encontram ligados na sociedade brasileira de modo geral (Segato,1992;2003). Neste
sentido, o modelo familiar segue a sociocosmológica e opera no sentido de transversalizar
a relação materna e/ou paterna, reconhecendo a importância da mãe e do pai na vida civil
de uma pessoa, tal qual a sua importância na vida religiosa. Como já visto cabe aos pais ou
mães, genitores ou não, o papel de serem educadores e protetores de seus filhos.

No caso de Manzo, alguns dos filhos adotados ou de criação e a maioria dos


filhos carnais se mantiveram por longo tempo, ou se mantém por toda a vida, junto à
Comunidade, da qual também fazem parte alguns genros e noras de Mãe Efigênia, assim
como seus netos. Alguns filhos de santo moram eventualmente na casa. A comunidade é
formada por estes e pelos demais filhos de santo de Mãe Efigênia, pelos integrantes do
projeto social Kizomba, e simpatizantes do Candomblé que são considerados da família
como, por exemplo, os participantes mais frequentes, ainda que não iniciados, e
recentemente como costumam dizer, os estudantes. Mãe Efigênia costuma afirmar com
grande ênfase: “Esta é uma Casa de Portas Abertas”. Para ela, em sua casa entra qualquer
tipo de “gente, raça e opção sexual”.

157
Grande parte dos adultos que vivem no Quilomblé são adeptos do candomblé.
Os filhos carnais de Mãe Efigênia são iniciados no Candomblé – mas nem todos são
praticantes da religiosidade do Candomblé ou Umbanda. Iniciados também são alguns dos
filhos de criação, além de alguns genros, noras e netos mais velhos. Como os preceitos e
fundamentos interditam a iniciação de filhos carnais, estes não são filhos de santo de
Mametu Muiandê. Diz-se no candomblé que uma pessoa nao pode tornar-se mãe ou pai
de santo dos seus filhos carnais, nem de seu pai ou mãe carnal, nem de seu cônjuge ou
parceiro sexual.

Os dados etnográficos que possuo não me permitem ir além da sugestão de


que, uma vez mais, opera aqui a sociocosmológica da troca e dos caminhos cruzados. Esse
movimento gera uma dupla genealogia, a de sangue e a do candomblé nesta grande
família de Manzo. A família de santo: pai, mãe, irmãos e irmãs de santo, passam a ter
prerrogativas como os parentes consanguíneos, como: laços de solidariedade, obediência,
respeito, dentre outros:

Família de Santo é isto. Pessoas que desenvolveram e que temos participado da


vida particular deles. (...) o [se refere a um irmão de santo através da digina] em
todas as fases da nossa vida, a família dele esteve presente. Os filhos dele
frequentam a minha casa e, os meus, a dele. Como se fosse uma casa só.
Quando eu estou na casa do [idem] eu não tenho a sensação de estar em casa
estranha. O mesmo com a [se refere a uma irmã de santo através da digina].
Então é assim se um menino cai, na hora do sufoco ou da alegria procuramos
estar juntos. Tem as brigas, discussões, brigo demais com a [idem], mas não
desgrudamos, ou seja, uma coisa familiar de irmãos mesmo. (Makota
Cássia,abril de 2013)

Para Mãe Efigênia, seus filhos já nasceram dentro da religião: “Não tinham pai.
Caboclo e Preto Velho foram estes que os educaram”. Makota Cássia, também comenta
em termos semelhantes, a ligação com as entidades:

Já nascemos no Terreiro, nosso pai eram as entidades. Eles que nos orientavam
em tudo, se a gente brigava muito, Pai Benedito pegava uma bacia de milho e
feijão preto e fazia a gente ficar a tarde inteira separando o feijão do milho.
Quanto maior a bagunça, maior a punição. Chegava a misturar 05 grãos para
separar. Quando era uma coisa mais grave, o Caboclo vinha e puxava a orelha
mesmo e punha de castigo mesmo. Era assim, foi assim que fomos crescendo e
nossos filhos foram assim também. Então, estar sentada aqui e o Pai Bendito
estar entre a gente era a coisa mais normal. (Makota Cássia, abril de 2012).

158
Se nem todos os membros do quilombo são adeptos do candomblé, a maioria
compartilha o Ngunzo recebendo bênçãos, assistindo aos toques e ajudando no dia-a- dia,
para Makota Cássia “Mundo é diverso e religião é uma coisa que a gente escolhe:”

Eu posso sempre estar contado com eles, mesmo que eles não sejam
candomblecistas, eles fazem de tudo para manter o Candomblé. Não
atrapalham o desenvolvimento do Candomblé, até ajudam. Se perguntar a eles:
“- se o Candomblé incomoda, eles dirão que não, tenho certeza absoluta.” Se
perguntar se eles gostam? Eles vão responder: “- gostamos.” Se perguntar a
eles vocês deixam bater folha ou defumar suas casas? Eles dirão: “- deixamos.”
Para nós é natural. Eles não têm aquele vínculo, mas é natural para eles.
(ibdem).

Segundo Cássia, as crianças e jovens não são mais iniciados, somente depois
de atingir a maturidade e a idade adulta, pois o candomblé é visto como uma
responsabilidade bastante grande: “Porque é um vínculo, é como se despertasse uma
energia que perpassa por dentro de você. E a partir de hoje é você que tem que controlar a
energia, tanto seu lado positivo quanto seu lado negativo.” Ainda que não iniciadas, o
Terreiro, é central também para as crianças sendo um local de brincadeiras, de se estudar,
de realização das atividades do projeto Kizomba. Em dias de toque ou em reuniões, é
comum ver crianças assistindo e circulando pelo terreiro durante o ritual, às vezes
prestando atenção, às vezes brincando, às vezes indo ao local da gira, às vezes repetindo
gestos rituais dos adultos. Brincar de pegar santo é uma tividade lúdico-educativa.

Makota Cássia considera a sua família: “diferente e normal”. Diferente por ter
o Santo tão forte e presente no dia a dia e normal, pois, como toda família tem-se as
discórdias e os momentos de convivência feliz e de união.

Somos uma família diferente. Diferente sim. Mas na forma de viver e não
diferente na aceitação. Agora família é assim: nós brigamos mesmo, mas
estamos sempre juntos. Hoje sentimos muita falta de ir toda manhã tomar café
com a mãe. Pois era assim, todo dia a gente tomava café na casa da mãe. Hoje
sentimos falta. É igual ao almoço de domingo, com o frango queimado, que não
tem em outro lugar, junto com o feijão com farinha, que não tem igual o que a
mãe faz. É assim que fomos criados.

O número de moradores residentes na comunidade como visto é inconstante.


Residiam na Comunidade, no momento em que fiz um pequeno censo em abril de 2012,

159
entre 40 e 45 membros, e 10 famílias, sendo aproximadamente metade adulta e metade
crianças. Certa vez no Abrigo, no começo de 2012, para onde haviam sido transferidos,
Makota Cássia enumerou os moradores da Comunidade e a situação dos mesmos após a
interdição da mesma:

Aqui em casa somos 05. Na casa do meu irmão Emerson são 04, o Emerson,
esposa e dois filhos. Na casa da Gisele são 05, Gisele, marido, irmã e 02 filhos.
Na casa da Regina 06, Regina, Cássio, Mário, Claudineia, Vitória, Ana Clara. Na
casa do Vitor tem 02 ou 03 mas só o Vítor esta aqui no abrigo. Na casa do
Maurinho 06, ele, a esposa, a enteada e 03 crianças. Casa do Gilson: 04. Mas
tem os que não vieram para o abrigo e moravam no terreiro: Rosimeire, as 02
filhas e 01 neta que foram morar de aluguel na Fazendinha. Leonarda que foi
morar com filhos e marido em um total de 05 na casa da sogra. Tem a Paula que
foram morar de aluguel com esposo e 03 filhos lá embaixo perto do Terreiro.
(Makota Cássia, abril de 2012)

Para Makota Cássia, a organização física da Comunidade é fruto


principalmente da opção pelo Santo e da dimensão do terreno:

Como éramos cinco filhos e a minha mãe sempre tinha o costume de pegar
filhos dos outros para criar, a família foi crescendo, foi multiplicando e começou
a necessidade de construir várias outras casas em volta do Terreiro mesmo,
chegando até o ponto de o terreiro ficar no meio das casas dos moradores. A
família cresceu e ninguém quis ir embora, até por causa do Terreiro. Nós
começamos a ter uma ligação muito direta com o Terreiro. E aí começamos a
dividir as casas para que coubessem todas as famílias dentro. São onze famílias,
no total de mais ou menos 42 pessoas. (ibdem).

Para Makota Cássia, os moradores do Quilomblé compõem parte da


Comunidade de Manzo. Mas a Comunidade vai além de seus parentes consanguíneos ou
de afinidade que residem na mesma, pois abarca os parentes que não residem no
quilombo, a família do Santo, a família formada pelos alunos do projeto, a família de
apoiadores e mais recentemente a família de estudantes:

Esta é a preocupação de manter este espaço, pois não somos somente nós que
temos a perder, mas a cidade também. Isto é então a comunidade. Hoje nosso
mundo, hoje eu percebi o quanto nós somos diferentes sem perceber que
éramos diferentes, porque nós tivemos que atravessar este espaço que nós
conquistamos e chegarmos ao mundo onde as pessoas não nos reconhecem
pelo que somos e pela nossa existência. A gente percebeu que o mundo lá fora
está bem complicado. Manter este espaço e este vínculo é essencial para a
própria comunidade. (Makota Cássia, abril de 2012).

160
Certa vez perguntei a Makota Cássia, sobre a especificidade de um ritual – o
“levantamento de Kambonos e Makotas no Candomblé da Nação Angola” –, e ela me
disse: “sua pergunta me permite chegar lá onde eu quero. A minha opinião sobre
comunidade”. Esta resposta àquela altura me surpreendeu, pois, nas gavetas do meu
pensamento, a questão da comunidade se referia acima de tudo ao campo das lutas
políticas do grupo e à conversa que ensejara a minha pergunta sobre os Kambonos e
Makotas era especificamente sobre rituais e elementos que eu entendia “cosmológicos”
da prática do Candomblé.

A resposta de Cássia, à pergunta sobre o levantamento de Kambono e Makota


me despertou para a inexistência de uma separação “natural” entre os rituais134 de ordem
cosmológica, a razão da minha pergunta e os rituais sociológicos ou políticos. Foi a
pergunta sobre o levantamento de Kambono, que a ensejou, falar sobre a comunidade.

A comunidade do Manzo para mim, não é a família de moradores do Manzo. A


comunidade do Manzo é mais externa. Eu acho que o Manzo é o candomblé né,
a história é a história do candomblé. O quilombo é o que nós lutamos para
preservar. E este é o candomblé. Então para nós a comunidade é o que se baseia
dentro do candomblé. São as pessoas que vivem dentro do candomblé com a
gente: é a família de sangue, mas a maioria do Candomblé não é família de
sangue. Então eu vejo o filho de santo falando: “- eu sou quilombola.” Porque
você é quilombola? E ele responde: “-Porque sou filho da Mãe Efigenia” ou
porque “- sou filho da Mametu.” E acaba sendo mais quilombola e Manzo do
que alguns moradores daqui que não frequentam o candomblé.
Carlos: mas os filhos de santo usam este termo “eu sou quilombola” !?
Muitos dizem “- eu sou quilombola”. Principalmente aqueles que criaram
histórias aqui dentro, que descobriram a própria vida aqui dentro. Como, por
exemplo, a mãe do [se refere a um morador da comunidade]. A família biológica
da [se refere a sua filha adotiva] se diz quilombola. A família do [se refere a um

134
Tratar-se-á mais a frente da questão ritualística. Mas para os fins que proponho aqui, a sociocosmológica
de Manzo, sigo a sugestão de Tambiah (1985), que Mariza Peirano (2002) resumiu com a excelente frase
“bom para se pensar e bom para se comer”. Que como sabido se remete a Lévi-Strauss e suas reflexões
sobre o mito e o rito.
“No caso dos rituais focalizá-los em sua especificidade para demonstrar que são momentos de intensificação
do que é usual torna-os loci privilegiados, verdadeiros ícones ou diagramas para se detectar traços comuns a
outros momentos e situações sociais.”(Peirano, 2000:12).

161
filho de santo da Casa] eles se dizem mais Manzo do que os moradores. Se for
para defender Manzo eles se colocam a frente. (Makota Cássia, dezembro
de2012)

Esta primeira parte da explanação de Makota Cássia sobre sua ideia de


comunidade aponta que a Comunidade de Manzo é o Candomblé. Entretanto este
pertencimento não está congelado, pois é vivido e vivenciado cotidianamente. Processo
social complexo, que foge das definições dogmáticas e formalistas. Vivido e vivenciado é o
que se apresenta como multiplicidade, potência, diferença, fluxos, agenciamentos
metamórficos, nômade; em oposição às categorias dogmáticas e formalistas - demasiado
ocidental e colonialistas - como os conceitos de norma e seus correlatos: unidades,
uniformidades, sistemas fechados, sedentarizados. Por outro lado, vivido e vivenciado é a
celebração da agência, feito e fato da e na prática, feito e fato da e na ação e (rel)ação
social.

Faz-se necessário, aprofundar um pouco mais essa ideia: A agência aqui é o


jogo ainda sendo jogado, e por isto deixa de ser um termo dado e autoevidente para
tornar-se uma transversalidade no qual as diferenças são constantemente reformuladas,
não existe uma posição pré-definida na estrutura social e a agência na práxis –a vida
vivida- é a comutação simultânea de atos de ordem técnico, econômico, político, ritual,
emocional, sentimental, sensível, dentre outros, assim: o agente institui a agência ao
mesmo tempo em que a agência restitui o agente – vida vivenciada -, o ato é simultâneo,
transversal, de troca constante e de caminhos cruzados, se o separamos é por que, nosso
exercício descritivo, ainda opera em tal ordem classificatória que tende a separar, como
foi o meu caso, em escaninhos aquilo que é vivamente vivido e vivenciado,
(extra)ordinariamente. Vida vivida e vivenciada pode ser visto como uma “ontologia
prática”, um modo de interação e criação ao mesmo tempo em que se trata de um modo
de refletir e de comunicar agenciamentos transversais, que apontam também para a troca
de potências –Ngunzo- com o presente, os ancestrais e os devires.
Por ontologia prática, não sigo o sentido clássico de ontologia, ou seja, como
unidade do mundo ou do ser, uma essência. Como visto em Manzo ser é uma

162
multiplicidade transversal metamórfica. Assim é o otá, assim é o despertar do santo, assim
o é no conceito de comunidade, de território, dentre outros. Estou, pois, a falar de uma
ontologia em que signo, significações, significantes, e significados se transversalizam em
uma diferença que é difere-rente. Nos termos de Eduardo Viveiros de Castro, Morten Axel
Pedersen and Martin Holbraad (2014):
(3) o conceito antropológico de ontologia como a multiplicidade de formas de
existência promulgada em práticas concretas, em que a política torna-se a
elicitação não-cética em relação a um coletor potencial de como as coisas
podem ser ser - o que Elizabeth Povinelli ( 2012b ) ,como nós a entendemos,
chama de "a outra forma". (...) a política da ontologia é a questão de como as
pessoas e as coisas poderiam alterar a partir de si mesmos (Holbraad e Pedersen
2009; Pedersen 2012b) (...) Ontologia, na medida em que a antropologia no
nosso entendimento coloca em causa, o comparativo, a dedução
etnograficamente fundamentada do Ser transcendental (o paradoxo é
proposital) como o que difere de si mesmo (idem)- estar-como-outro sendo
imanente ao estar-como-si. A antropologia da ontologia é a antropologia como
ontologia; não a comparação de ontologias, mas a comparação como ontologia .
(tradução minha)135 .

Entretanto, diferentemente da leitura dos autores acima, a ontologia,


como a advogo aqui, não é apenas uma tecnologia de descrição (This, in our
understanding, is what the ontological turn is all about: it is a technology of description). A
ontologia como propõe Mauro Almeida (2013: 9-10) pode ser vista como:
o acervo de pressupostos sobre o que existe (...) pressupostos ontológicos dão
sentido, ou permitem interpretar, encontros pragmáticos, mas vão além de
qualquer encontro particular (...) Mas vemos que atrás dessa ontologia há o
resíduo de um universo de entes naturais não-produzidos, e para além dessa há
outro resíduo de entes sobrenaturais também não-produzidos.

135
*No original: (3) the anthropological concept of ontology as the multiplicity of forms of existence enacted
in concrete practices, where politics becomes the non-skeptical elicitation of this manifold of potentials for
how things could be—what Elizabeth Povinelli (2012b), as we understand her, calls “the otherwise.” (…)the
politics of ontology is the question of how persons and things could alter from themselves (Holbraad and
Pedersen 2009; Pedersen 2012b). Ontology, as far as anthropology in our understanding is concerned, is the
comparative, ethnographically-grounded transcendental deduction of Being (the oxymoron is deliberate) as
that which differs from itself (ditto)—being-as-other as immanent to being-as-such. The anthropology of
ontology is anthropology as ontology; not the comparison of ontologies, but comparison as ontology.
Eduardo Viveiros de Castro, Morten Axel Pedersen and Martin Holbraad (2014).

163
Para que não restem dúvidas sobre a ontologia a qual me refiro:
O que é uma ontologia? A palavra reentrou no vocabulário filosófico na primeira
metade do século XX, depois de ter sido abandonada pela transformação
filosófica do século XVIII que seu autor, Immanuel Kant, chamou de “revolução
copernicana”, mas que, curiosamente, ao contrário da revolução de Copérnico
que tirou o observador do centro do mundo, consistiu em fazer girar o mundo
em torno do sujeito. A virada ontológica volta a fazer o sujeito girar em redor do
mundo; como a virada fenomenológica que ocorre em paralelo a ela, prega a
volta às coisas. (2013:10).

Esta virada Mauro Almeida denomina, de relativismo ontológico, onde se


convive com certo anarquismo ontológico, “um ambiente de ontologias múltiplas e
contraditórias entre si” em que “concordância (no sentido pragmático) deixa a ontologia
indeterminada” (2013: 12).

Neste sentido, o Quilombo136 é aquilo que se busca preservar, mas não porque
ele substancializa um pertencimento. Pelo contrário, ele relaciona, contextualiza e
processualiza a vivência em Manzo.

Manzo sugere que, a comunidade, no contexto do candomblé urbano de


Manzo, abriga diversos agrupamentos sociais, em termos êmicos, diversas famílias que se

136
A partir de agora para efeitos práticos, quilombos, quilombolas e a categoria político-juridico-normativa
de “remanescentes de comunidades de quilombos” não deve ser confundida com aquilo que o senso
comum chama de definição histórica e passadista de Quilombo, tão bem definida por Alfredo Wagner B. de
Almeida (2002) como frigorificada e, por isso mesmo, trata-se de uma concepção a ser superada. A ideia de
quilombo percorre há longo tempo o imaginário da nação e é uma questão relevante desde o Brasil Colônia,
passando pelo Império e chegando à República. Concorda-se com (Leite, 2003) quando esta afirma que
tratar do tema quilombos e dos quilombolas, ainda na atualidade, é tratar tanto de uma luta política quanto
de uma reflexão científica em processo de construção. Vários autores (Almeida, 1996; 2002; 2006; Arruti,
1997; 2003; 2006; Leite, 2003; 2008; O’Dwyer, 2005; Marques, 2008; 2009a; 2009b; 2012a; 2012b Simião
et.al., 2009; Marques e Gomes, 2013 dentre outros) têm apontado para a necessidade de se superar a visão
congelada de Quilombo baseado em uma definição histórica e passadista, que entende-o apenas como
patrimônio histórico, esquecendo suas características como um patrimônio vivo, que comunica passado,
presente e futuro. Quilombo, não é apenas uma tipologia de dimensões, atividades econômicas, localização
geográfica, quantidade de membros e sítio de artefatos de importância histórica. Ele é (e se pensa como)
uma comunidade e enquanto tal passa a ser uma unidade viva, um locus de produção material e simbólica.
Aqui faz importante registrar alguns dentre as dezenas de trabalhos etnográficos desenvolvidos nesse
campo: Ana Paula Comin de Carvalho (2008); Osvaldo Martins de Oliveira(2005). Mirian Chagas (2005), Luis
Fernando Cardoso e Cardoso (2008), Aderval Filho (2008) dentre outros.

164
configuram em pluralidades sociais, ou unidades conformadas pela diversidade, e
enquanto tais abertas a constantes transformações.

Carlos: se Manzo é uma comunidade do Santo. Como fica a questão dos


moradores que não são do santo?
Cássia: Bom para mim eles são também da comunidade. Eu posso sempre estar
contado com eles, mesmo que eles não sejam candomblecistas, eles fazem de
tudo para manter o Candomblé. (...) A [se refere a uma moradora] não participa
como religião, mas ela ajuda, assiste cerimônias, faz comida, ajuda. Eles são
comunidade. Vou falar o que é para mim. Comunidade são pessoas que
caminham juntas. Para mim comunidade é isto, pessoas que caminham juntas.
Que defendem as mesmas ideias e lutam pelos mesmos ideais. Acho que isto é
comunidade. A palavra certa para pessoas que caminham juntas e lutam pelas
mesmas causas. (Ibdem)

Para Cássia, a Comunidade são os que caminham juntos. O caminhar junto,


nesse momento, é encruzilhar na e pela existência da Senzala de Pai Benedito, Ngunzo da
família espiritual, da família de criação, da família do projeto, da família dos estudantes.

Porque foi na luta que eu consegui ver o que é a comunidade. Espere, deixa-me
tentar te explicar como que foi: Virou uma luta da comunidade nossa com a
comunidade do Candomblé, protegendo, dando força e caminhando junto. A
família na hora que eu falei com todo mundo: “- nós vamos ter que ir para o
abrigo.” No primeiro momento muitos sairam para procurar barracões para
alugar. Mas quando pensou: “- nós vamos ter que nos separar?” Decidiram: “-
vamos todos para o abrigo.” E o pessoal do candomblé? A Mãe deu livre
arbítrio, para cada filho de santo pegar seu santo e levar para onde quisesse. A
Mãe disse:
“- o único lugar que eu tenho é minha casa em Santa Luzia 137.” E ai teve todo um
debate sobre para onde levar os Santos, pois eu não estava indo para Santa
Luzia e a Mãe sozinha lá. Porque na minha função de Makota sou eu que os criei
[como visto, uma das funções da Makota como Mãe é ser criadora, aquela que
ajuda os filhos de santo em seu processo de crescimento religioso e
aprendizados] e os ajudava, ensinava, dava conselho na minha função de
governanta da casa. Nada mais do que minha obrigação. Mas neste caso a Mãe
em Santa Luzia e eu no Abrigo tivemos toda a discussão de quem iria cuidar dos
santos. Alguns pensaram em levar para a própria casa. Mas ai teve uma reunião,
Mãe conversou, eu conversei. O [refere-se a um irmão de sangue], o [refere-se a
um irmão de sangue], ai foi uma reunião da família e do Santo. E disseram pode
levar para Santa Luzia que nós ajudamos, isto os juntou a nós na luta pelo
retorno o mais rápido possível. O [rerefe-se a um filho de santo pela digina], a

137
Como dito, cidade vizinha a Belo Horizonte, onde Mãe Efigênia possui uma casa residencial e para onde
foram transferidos os assentamentos dos filhos da Casa e alguns assentamentos dos Inquisses..

165
[rerefe-se a uma filha de santo pela digina], a [rerefe-se a uma filha de santo
pela digina] também fazem parte desta comunidade, pois tanto eles como nós
estão desabrigados, de uma forma ou de outra, todos eles participaram dos
processos com a gente, para cobrar do poder público algum tipo de solução para
que eles possam também voltar para cá, ainda que não morem aqui. (ibdem)

A comunidade, para Makota são “pessoas que caminham juntas”, “lutam pelos
mesmos ideais”, aqueles que se reconhecem na luta, que se constitui na transversalidade
das trocas. Ao contrário do que supõe o pensamento afiliado ao substancialismo. A
multiplicidade de formas de existência promulgada em práticas concretas como no caso
da sociocosmológica de Manzo pressupõe um agenciamento in becoming. Em que se
transversalizam não o uno e sim múltiplicidades, devires. A crítica à substancialização
reificadora e reificante é a crítica ao pensamento linear, unidimensional e unidirecional
que solapa em caracterizações apenas organicistas e mecanicistas a heterogeneidade dos
diferentes mundos sociais que colocam em movimento diferentes caminhos que se
entrecruzam. Pela etnografia torna-se possível contribuir ao chamado de Otávio Velho:

A crítica do colonialismo de conceitos da ordem e para ordem deve englobar


não apenas sua dimensão de poder, mas também a dimensão do saber, espaço
onde crescem nossas elites intelectuais, “mais realistas do que o rei”, mais
incapazes de reconhecer o colonialismo interno de que são agentes do que os
europeus originais, e também as transformações civilizatórias que estão
colocando tudo isso em xeque. Fazê-lo implicará, inclusive, reconhecer os
movimentos sociais como loci de produção de conhecimento que desafiam os
intelectuais a um esforço de discernimento e de domesticação de sua húbris.
(Velho, 2009:126)

Manzo e sua comunidade não são um a priori histórico, jurídico, arqueológico


ou sociológico, e sim uma das dimensões138 de um modo de ser, fazer e viver, uma forma
de se habitar o mundo:

É o que falo para a mãe: “- se não tiver candomblé não vale a pena ser Manzo.
Não vale a pena ser comunidade, não vale a pena ser nada.” Para mim tudo
começou pela religião. Inclusive até a nossa vinda para cá. Nossa moradia aqui, a
casa que a mãe conseguiu foi tudo por causa da religião. Então se não houver

138
Por dimensões entendo a coexistência no sentido proposto por Deleuze e Guattari de linhas de
segmentarização e estratificação, mas também linhas de fuga e de desedimentarização. A multiplicidade
capaz de variar a si mesma e as rel(ações) sociais, a heterogênese, os caosmos do qual o cosmos emerge.

166
candomblé não vale a pena querer nada do governo. Não acho direito meu ir
atrás de governo se não for ter o candomblé, que cada um tenha sua vida
normal. E aí vou entender que fazemos mesmo parte da cidade formal que eles
falam. Mas se tiver o candomblé não. Pois se tiver o Candomblé vale a luta. Por
isto que se me perguntam hoje o que é o Manzo, eu digo é o Candomblé e tudo
que se envolve dentro dele. Isto é o que penso. (ibdem)

Como visto, na explanação de Makota Cássia, a Comunidade de Manzo é o


Candomblé139 e este como tenho argumentado é o movimento e troca com o Santo.

O que realmente é o Manzo, (...) [é] aquela fumaça do fogão de lenha subindo,
aquele monte de roupa branca no varal (...). Estamos em Manzo por causa do
Intoto, mas ele esta dormindo. O Intoto e a Comunheira estão aqui, mas sem o
essencial para movimentá-los é como se eles estivessem adormecidos140. Falta
o círculo de pessoas rodando em torno, não tem a fumaça do fogão de lenha, o
fogo. Na camarinha começamos a dar valor a tudo, tudo, tudo Carlos, pois lá
você come com a mão. Mesmo quem tem nojo, lá dentro você é obrigado a
comer com as mãos que é uma forma de você aprender a dar valor às mãos e
não tocar a comida que é sagrada com nenhum objeto que possa servir de arma.
A água você descobre, ou redescobre, que a água é sua primeira fonte de
alimento. Dentro da camarinha, você aprende dar um valor enorme para isto.
Você começa a descobrir que debaixo de sua decisa, é cheio de ervas e folhas
sagradas, com o passar do tempo na camarinha, você começa a pegar as folhas e
descobrir os cheiros, de um e de outro. (...) E isto nós estamos sem ter. Sem este
despertar. Igual a fumaça, muita gente se incomoda com fumaça. Mas quando
você sabe que aquela fumaça ali, você esta preparando uma comida para o
santo. E consegue imaginar a comida pronta e a maravilha de arriar aquela
comida e enfeitar a Mesa toda, você tem a sensação até mesmo com a fumaça.
E é justamente na fumaça que vem a roda de conversa, pois é na cozinha. Então
sentimos muita falta disto, deste tempo que a gente tinha aqui. E que não temos
mais. Hoje o tempo dos meninos é vazio.(ibdem)

Em Manzo, como visto, a comunidade tem como base o candomblé, “se não
tiver candomblé não vale a pena ser Manzo".

139 Para Makota Cássia, o uso do termo Candomblé não se refere somente à instituição religiosa per si, mas
ao sentimento para com o sagrado, e a ligação indissolúvel com a Senzala do Pai Benedito. Candomblé,
portanto é uma forma de se referir a este sentimento como um todo. Funciona como substantivo e adjetivo
da própria comunidade. Neste caso, o mesmo ocorre com a palavra Quilombo, que pode ser usada ora como
substantivo para comunidade e ora como adjetivação para a mesma.
140
Refere-se às consequências da reforma malsucedida realizada pelo poder público municipal, sem a
devida consulta à comunidade e que resultou na descaracterização do Terreiro e no impedimento das
atividades cotidianas, ordinárias, extraordinárias e ritualísticas da comunidade, e que poderá levar ao
desaparecimento da mesma.

167
Agora voltamos, mas os Santos não voltaram conosco. O candomblé não voltou.
Os Atabaques não voltaram conosco. Tanto é que... num sei explicar... você
Carlos, está com a gente há tanto tempo e viu, a capoeira aquele dia, a roda,
fizemos o possível para conseguir aquela energia que às vezes conseguíamos
com apenas 02 alunos, e não tivemos a resposta. Ficou cansativa. Faltou alguma
coisa, e não era gente. Faltava alguma coisa para complementar. Nós que somos
filhos temos essa consciência. Estamos tentando fazer de conta que não. Mas
nós estamos sentido a falta dos Orixás aqui dentro. Ficou um silêncio. Não
adianta tocar atabaque, pois aqueles atabaques não são atabaques do
candomblé, são atabaques da capoeira, é diferente. Voltou todo mundo, mas
não voltou o som. E para mim o som é o Candomblé. No meu ponto de vista, o
som é... A terra só responde ao som, num sei tá muito frio lá, o Terreiro. (...)
Tudo aqui está dormindo, só tem pessoas aqui. O que realmente é o Manzo, só
vou ver voltando e só vou sentir quando eu ver funcionando, aquela fumaça do
fogão de lenha subindo, aquele monte de roupa branca no varal. Então isto nós
temos consciência que não esta acontecendo. Às vezes dizem assim: “- vocês
voltaram!!!” Mas só voltou a gente. E dizem: “- mas só tinham vocês mesmos
para voltarem.” Porém sabemos que têm mais, e este mais alguém para vir é o
Candomblé.

Manzo desperta a comunidade na medida em que nega a substancialidade e a


ilusão essencialista da existência de comunidade como algo definido e acatado e que se
mantém de forma estática, dito de outro modo, no caso de Manzo não existe comunidade
fora da relação criada na gira em torno do Intoto, nos caminhos cruzados. Despertar a
comunidade pode ser acionar a palavra-política ao se vestir de baiana pelas ruas do
bairro, participar da reunião para decidir os rumos dos santos, ir a uma caminhada contra
a intolerância religiosa no centro da cidade, ou ainda incorporar no toque dentre tantas
outras formas de pertencimentos.

Comunidade coaduna com outra afirmação exemplar de Makota Cássia,


quando ela se refere a tornar-se quilombola como uma forma de ter palavra-política.
Tornar-se quilombola é a tomada da palavra-política na medida em que nega ao mesmo
tempo a substancialização anti-histórica que eliminaria as forças humanas desta categoria,
quanto a substancialização da história em seu sentido teleológico e positivista, que busca
aprisonar a riqueza processual em uma categoria congelada e essencializada.

168
Ao definir a pertença ao quilombo como palavra-política, Makota Cássia
expressa uma vez mais, agora na esfera da política141, a transversalidade do processo da
ação social e da relação social daí surgida. Aquilo que denomino aqui de uma
cosmopolítica exigiria uma genealogia dos debates realizados tanto no campo da
antropologia como da ciência política, a respeito dos novos movimentos sociais. Como
este debate já foi feito alhures e com muito mais competência por Goldman (2007),
retomo aqui apenas uma simplificação do mesmo. Cosmopolitica aqui é a busca a um só
tempo de uma nova natureza da política e de uma nova política da natureza. De forma,
mais especifica, a etnografia de Manzo, nos mostra a sobreposição, convivência e o
embate entre práticas e discursos “ocidentais-modernos” do Estado e das coletividades
que se pautam por outra lógica, como Manzo. A vida vivida e vivenciada é um complexo
herterogêneo em constante movimento, criar comunidade, tornar-se quilombo, é
reafirmar a dinâmica e, por conseguinte, a experiência como lugar privilegiado para a
explicação social.

141
Destarte aqui meu agradecimento a Cientista Política e Professora Sônia Alvarez (Director of the Center
for Latin American, Caribbean, and Latino Studies, Univ. Massachusetts Amherst), uma das organizadoras
com Dagnino e Escobar, do clássico livro “Cultura e política nos movimentos sociais latinoamericanos: novas
leituras” (2000) que em comunicação pessoal durante um evento na Universidade Federal de Minas Gerais -
UFMG em março de 2013, após uma rápida explanação de parte desta pesquisa de campo, disse-me
concordar com a validade de se pensar o processo de luta política da comunidade de Manzo, em termos de
uma cosmopolítica. Outro agradecimento, semelhante, deve ser feito a Márcio Goldman, a quem pode
comentar em forma de um questionamento, em aula proferida pelo referido professor, na disciplina de
Teoria Antropológica do doutorado em Antropologia da UFMG, a respeito do uso da categoria cosmopolítica
na Antropologia.

169
170
Capítulo - 6 O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra-política

NZAZI
A Ku Menekene Usoba Nzazi! - Salve o Rei dos Trovões!
Nzaze Ê!
Aruê Nganga Tatetu Kilumino, Acodi Soba - Salve o Senhor do Trovão, o Grande Rei

Aê Zaze Luango, macundeo Kumbela Zaze que Maiangolê Luango É Tata no Ararê
demozazia macundendeó Aê Kumbela Zaze Luango É Tata Nno Araraê Ô
Aê Zaze Zaze Luango, Kumbela Zaze que Maiangolê
macundeo demozazia Ê Zaze Kibuco Soba Zaze Kinambukê
macundendeó Lembê Lembê E Komazenze é Komazenzeê
O Zaze Ê Lembê Zazezulê
O Zaze Á Lembê Lembê Kumbela Zaze Kumbela Mê
O Zaze Ê Lembê Zazezulê Kumbela Zaze Kinambukê
Maiangolê, Maiangolá Keuamê Keuamam
Ê mananganga, ê manungange Keuamê Keuamam
Ê Tata Mamê Luango ê Zaze daianlongo,
Ê Tata Mamê Luango ê Zaze ê mananganga manunganguê Ô Ô Ô Ô é de Kariolé
oiaê Massanga de Massanganga
Zaze no Atilenum Tindorerê Managanga Ê Ê Lumbondo Massanganga do Kariolé
Kumbelazazi Managanga Ê Ê Lumbondo Lessim Lessim
No Atilezim Tindorerê Aruê Ganga ê no Goiamim Massanga do Kariolé
Gangaê Lessim Lessim
Zaze Kuambu Aê Aê Aruê Ganga ê no Goiamim Massanganga do Kariolé
Kumbelazazi Gangá
Zaze Kuambu Aê Aê Kibuco na Sabatina Aê Que Zaze Kelê
Kumbelazazi Ererê na Sabatina Que Zaze Namburê
um belê zaziê, a um belê zaziê Que Zaze Kelá
Zaze Ê Ê Ê Zaze ê Aê Que Zaze Kelê
Zaze Luango Aê Aê Aê Macundiandemo Mananzanzê
Kumbela Zazi Ô Zaziê Zaze Ê Macundiandemo
O Zaze que vem de Angola Zaze Macundeô Ke Simbe Lele Ke Sinhá Larê
Caboclo Marakaiá Gangaramatamba
O Zaze que Amací Que quero Umbondo eué,
O Zaze que vem de Angola reure
Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Nzazi, o sexto Inquisse a ser saudado no Xirê

A tese apresentada aqui é: seguir a sociocosmológica de Manzo, para entender


a conformação de uma (cosmo)-política na relação de Manzo com os poderes públicos. E
apontam para a centralidade da Palavra na cosmologia Angola no Quilomblé de Manzo, a
palavra é transversalidade refere-se à propriedade de fazer a relação entre heterogêneos.

171
Em consonância com Dos Anjos (2008) poder-se-ia falar que a palavra conecta o diferente
ao diferente deixando as diferenças subsistirem enquanto tal.

A palavra é o som, e sem o som não é possível fazer a troca. A palavra é


Pambu Nijila, ela é caminho e faz encruzilhada, ela transversaliza, ela é meio, intermeio,
ela é fecunda e grávida de significações, a palavra proferida é a palavra que se troca e,
portanto, carregada de potência que exerce efeitos, pois conduz Ngunzo.

Palavra é o fe(i)tiche que permite ir da imanência à transcendência, é o passe


que permite passagem, faz-fazer e faz-falar142. Trata-se de uma ontologia que conjuga
uma metafísica e uma filosofia da natureza e da sociedade, vista como múltipla e em
construção, em que o ‘dado’ e o ‘feito’ se encontram em uma relação de ‘pressuposição
recíproca’143.

Palavra que se apresenta como múltiplicidade, potência, diferença, fluxos,


agenciamentos de multiplicidades metamórficas, nômade; em oposição às categorias
dogmáticas e formalistas como os conceitos regulares e seus correlatos: unidades,
uniformidades, sistemas fechados, sedentarizados.

Palavra que se agencia, feito e fato da prática, feito e fato da ação e da


(rel)ação social. A palavra atua como agência, em um jogo ainda sendo jogado, em uma
transversalidade no qual as diferenças são constantemente reformuladas, não existindo
uma posição pré-definida na estrutura social. O agente institui a agência ao mesmo tempo
em que a agência restitui o agente.

Palavra como Ngunzo permite uma ontologia prática em que signo,


significações, significantes, e significados se transversalizam em uma diferença e, em uma
“multiplicidade de formas de existência promulgadas em práticas concretas, em que a

142
Expressão que utilizo a partir de Latour, 2002.
143
Expressão que utilizo a partir de Goldman 2005, 2009, 2012.

172
política torna-se a elicitação não-cética em relação a um coletor potencial de como as
coisas podem ser.” (Viveiros de Castro, Pedersen and Holbraad, 2014)144.

KITEMBU – TEMPO
Aruê nganga tatetu kitembu nganda lakan - salve o senhor do tempo, controlador da vida

Ai, ai maianguelê
Kitembo me deu uma bandeira que é tão
tempo mavila é maiangulê
Branca quanto de Lembá.
Kaê zilá kauê zilê Quando alguém olhar para ela, vai ver que a
tempo mavila auê tempo Casa é de Angolaááá.
Ai, ai o minha Angola!!!
Tempo rê, inganga zambi
tempo ê, inganga zambi Ai, ai o meu Angolaááá!!!
oiá kissimbe cececé
Tata Kitembo me deu uma bandeira, que é tão
oiá matamba
Branca quanto de Lembá. Quando alguém
a ingue tempo
olhar para ela, vai ver que a Casa é de
Angolaááá
Tempo makurá dilê
é de amuraxó Tempo mavilo kassanje
tempo makurá tatá a inguê ame
é de amuraxó tempo mavilo kassanje
xoxó makuriá a inguê ame
aí aí aí é de amuraxó
aí aí aí é de amuraxó
xoxó makuriá

6.1 Caminhos cruzados, palavras trocadas, caminhos trocados, palavras cruzadas:


Manzo incorpora o Quilombo

Se o candomblé organiza a vida comunitária, o que significa torna-se


quilombola em Manzo? Ser Quilombola pode ser visto como o modo que às lideranças de
Manzo se referem quando quer identificar na linguagem política-normativa estatal as
especificidades de seus saberes, fazeres, modos e viveres. Por isto, Makota Cássia,
brilhantemente denominou ao se referir à condição quilombola, como uma forma de
tomar a palavra-política e a possibilidade de ver suas demandas específicas e seus modos,

144
Viveiros de Castro, Pedersen and Holbraad (2014) The Politics of Ontology: Anthropological Positions.
Fieldsights – Theorizong the Contemporany, Cultural Anthropology on line.

173
fazeres, viveres, saberes e seus lugares respeitados pelos poderes públicos e pela
sociedade civil em geral.

Makota Cássia situa o processo de autorreconhecimento como quilombola,


em termos de uma vontade política, em uma identidade de e para a luta. Assumir-se
como quilombola é uma vez mais a sociocosmologia de Manzo na prática, ser quilombola
é um processo de tornar-se, incorporar, fazer caminhos cruzados, girar o Ngunzo. Em
termos de nossa teoria, poderia ser visto como: “[...] conceito estratégico e posicional. Isto
é, de forma diretamente contrária àquilo que parece ser sua carreira semântica oficial,
esta concepção de identidade145 não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do
início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história.” (HALL, 2000, p.
108).

Manzo despertou comunidade e assentou-a em um território, que deve ser


visto, conforme sugerido anteriormente como territórios de imanências e transcedências
que não são meramente sedentários e nem meramente nômades. Por isto, lugar objetivo
e subjetivo em que a comunidade acumula e transmite bens físicos, simbólicos,
memoriais, técnicos, mas principalmente Ngunzo em suas diversas características
metamórficas, incluindo ai a palavra146. O não reconhecimento, desta ontologia que
conjuga uma metafísica e uma filosofia da natureza e da sociedade, visto como múltipla e
em construção (Goldman, 2005), pelo poder ordenador estatal precipitou o
autorreconhecimento de Manzo, como uma comunidade quilombola. Categoria estatal,
vista à época pelas lideranças como a possibilidade para outros caminhos cruzados e para

145
Ao invés de identidade, categoria em si mesma problemática e eivada de um discurso da ordem e
colonialista, penso que em Manzo, como tem se visto e ainda se verá mais a frente o que se coloca em pauta
é um discurso da diferença e não da identidade. Diferença como já apresentada ao longo do trabalho no
sentido de Deleuze e Guattari.
146
Como afirma Juana Elbein dos Santos (1984), em conclusões semelhantes à apresentada aqui no que se
refere ao poder vinculativo do Ngunzo, o àse comunicado através das palavras tal qual os fluídos como o
hálito, a saliva, o suor do Orixá repassado a pele de um filho, o alimento oferecido, o som, dentre outras
formas veiculam potências e são compostos de intencionalidade.

174
outras palavras-políticas que permitissem a continuação do girar em torno do Intoto, e
para movimentar o Ngunzo:

Antes não sabíamos. Quilombo era apenas aquele quilombo de Zumbi dos
Palmares, para nós não existia outro quilombo. Nós sabíamos que éramos
descendentes de escravos, isto sabíamos, pois somos negros, mas sobre terra,
direito, ninguém aqui sabia. Foi o CENARAB 147 que teve a ideia do abaixo-
assinado, porque a prefeitura não estava autorizando o alvará para a reforma,
então a gente achou que este documento para a Fundação Palmares iria ajudar.
Para que a Fundação Palmares obrigasse a prefeitura liberar o alvará para a
reforma. Nós achamos também que era o reconhecimento da história da Mãe.
Mas de fato naquele momento não sabíamos muito sobre quilombo. (...) Um
dia, fui à página da Palmares, para olhar outro assunto, no que abro por muita
coincidência, acho que foi dia 26 de março, na primeira página estava escrito
governo Lula certifica não sei quantas comunidades quilombolas, e tinha assim:
clique aqui e veja as comunidades, eu fiquei curiosa e cliquei. Estava algumas
comunidades, minto estava assim, uma não sei onde, tantas no Rio de Janeiro,
nem sei quantas ali e tinha lá, duas em Minas Gerais, Belo Horizonte ai eu cliquei
e estava o nosso, ai eu dei um berro e falei mãe, mãe corre aqui!!! O governo
Lula esta reconhecendo nossa casa como quilombo. Imediatamente peguei o
telefone e liguei para o CENARAB, pois foi ele que entregou nossa carta com o
histórico da casa e foram eles que nos orientaram. O reconhecimento foi senão
me engano em 2006 ou começo de 2007. (Makota Cássia, abril de 2013).

Makota Cássia se lembra de que a primeira reação de Mãe Efigênia, foi de


alegria “agora a Palmares sabe que eu existo”. Por sua vez a liderança do CENARAB em
Minas Gerais, segundo Cássia também estava exultante e sugeriu a Cássia, a organização
de uma festa, pois Manzo seria – nas palavras deles, recorda-se Makota Cássia - o
primeiro Terreiro de Candomblé a ser reconhecido como Quilombo.

147
Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira. O CENARAB segundo seu próprio site: “foi
fundado por religiosas e religiosas da tradição de matriz africana, no 1° Encontro Nacional de Entidades
Negras- ENEN, em 1991, na cidade de São Paulo-SP. De lá pra cá, já somamos alguns anos de muita luta e
disposição de transformar a realidade das comunidades tradicionais. No rol de suas ações destacamos o
investimento da instituição na formação de lideranças como forma de combater a intolerância religiosa, o
preconceito e a discriminação. Para o CENARAB fortalecer as comunidades tradicionais, impulsando sua
organização é a melhor forma de colocá-las na rota da discussão racial, privilegiando o debate de ideias
como forma de eliminar o preconceito que muitos têm destas. CENARAB encontra-se, hoje, organizado em
18 Estados da Federação, com diretorias estaduais independentes e autônomas organizando as
Comunidades Tradicionais de matriz africana e propondo políticas públicas nas diversas esferas do poder
público constituído.” (http://www.cenarab.com.br/cenarab/).

175
Ai foi quando soubemos sobre o movimento, que existia movimento
quilombola. Mas com característica de terreiro era só o nosso quilombo. E de
imediato alguns militantes do movimento negro e do santo, aqui da cidade,
começaram tentar desfazer este documento. Dizíam que não éramos quilombos,
que era invenção. Que aqui nunca foi quilombo. Isto abriu uma ciumeira em
alguns setores do Candomblé e em alguns militantes negros, acho que a ideia
era atingir e minar o CENARAB, briga de movimentos, mas para isto precisavam
desmerecer Manzo. Ai comecei a pesquisar sobre quilombo. Perguntava a um e
a outro, o que era um quilombo, a opinião. Se era possível mesmo a gente ser
um quilombo? Ai era assim uns atacavam e outros entravam na defesa. Eu
lembro de um militante histórico do movimento negro que disse: “- eu não
concordo de vocês serem quilombolas, porque para ser quilombola tem que ter
uma referência e só pelo fato de ter um terreiro não é...” ele não concordava,
pois para ele a Mãe teria que ter tido uma história direta com a escravidão para
ser quilombola. Neste debate teve alguém que discordou dele. E foi assim íamos
ouvindo e guardando frases de cada um sobre quilombola. Me lembro que
alguém rebateu: “- vocês são quilombolas. Somos todos descendentes de
escravos sim. O que fez vocês chegarem ao Candomblé148? ao samba, capoeira?
então tudo isto é fruto da escravidão.” (ibdem)
Este período inicial de autorreconhecimento, somado ao processo inicial de formação
de um discurso político, levou a Comunidade a consultar a Fundação Palmares:

Então eu mandei um e-mail a Fundação Palmares. Ai o Maurício da Fundação me


respondeu. Mandei um e-mail a eles questionando sobre a veracidade da
certidão, pois estávamos sofrendo preconceito por não termos histórias direto
com a escravidão. Ele então respondeu dizendo algo tipo: só o fato de vocês
serem uma família, e preservarem uma cultura isto já quer dizer que podem ser
quilombolas. E que nós é que havíamos nos autorreconhecido e que o governo
estava de acordo. Ele explicou também que tínhamos o certificado mas para a
regularização e titulação, precisávamos fazer um levantamento histórico da
nossa trajetória para poder vir uma titulação. Mas que éramos comunidade
quilombola pois tínhamos nos autorreconhecidos como quilombolas. (...).
Pouco depois o INCRA nos procurou, acho que a pedido do CENARAB, aquele
homem, que estava na coordenação ...[Carlos: o Antônio Carlos] Cássia: é o
Antônio Carlos, o INCRA veio até nós, este senhor conversou com a Mãe e com
alguns dos moradores e explicou que para o INCRA não tinha nenhuma dúvida
que aqui era quilombola. Foi onde acalmou um pouco a mãe. (...) Depois me
apresentaram o Pablo, naquela época o CEDEFES149 era aqui mesmo no Santa

148
Luis Nicolau Parés, em seu estudo histórico e etnográfico sobre os Candomblés Jeje na Bahia, afirma que
em começo dos 1800 era público o fato de que Candomblés eram também Quilombos. O caso de Manzo
difere dos estudados por Parés, mas ainda assim, mostra o longo lastro nos debates envolvendo a militância
negra e do Candomblé.
149
“O CEDEFES é uma Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, filantrópica, de caráter
científico, cultural e comunitário (...) Seu objetivo é promover a informação e formação cultural e
pedagógica, documentar, arquivar, pesquisar e publicar temas do interesse do povo e dos movimentos

176
Efigênia, ali na Padre Marinho, ai o Pablo veio aqui. Me lembro que era para eu
ir lá, mas fiquei com vergonha estava ainda insegura, tanto que eu falava para a
Mãe “não fica falando que somos quilombolas não”. Eu tinha medo de as
pessoas ficarem zombando da Mãe, falando que não era verdade. Até porque
não tínhamos muito relação com os quilombolas, até o dia que os Mangueiras
procurou a gente. Era o Seu Válter 150, isto ajudou muito, depois vocês, os
meninos do NUQ: Pedro, a Ju, Amanda. (...) O Pedro era muito tranquilo, o
Pedro conversava com a gente então era mais fácil, pois ele é mais tranquilo e
sempre falava com calma, explicando para a gente, nos tranquilizando. (ibdem)

Para Makota Cássia, o reconhecimento como um Quilombo exigiu primeiro


uma consciência interna ao próprio grupo, “não sabíamos que a nossa história, essa
cultura, essa nossa forma de viver era definida como de um povo quilombola”. E depois a
disposição para gritar pelos direitos, ou como certa vez me disse Mãe Efigênia, bem ao
gosto de sua Inquisse Matamba, para guerrear.

Para Cássia, este grito teve que partir do grupo, para tanto, foi necessário
saber quais são os direitos e deveres de uma Comunidade Quilombola, quais são as
políticas ou verbas destinadas a estes grupos, qual deve ser a organização civil e
burocrática de uma associação para sua existência formal.

O reconhecimento de um Quilombo é visto como um processo complexo e


difícil, como em outras lutas empenhadas pelo grupo, como contra o racismo, o
preconceito racial e religioso, é necessário saber os direitos e deveres e deve-se possuir
algum conhecimento da organização dos poderes públicos, que, segundo Makota Cássia,
às vezes “se torna mais uma forma de impedir o acesso aos direitos”:

sociais. O nome escolhido para o Centro, fundado em 1985, é uma homenagem a Eloy Ferreira da Silva,
trabalhador rural e sindicalista, assassinado em 16 de dezembro de 1984, no Vale do São Francisco, Minas
Gerais.” (http://www.cedefes.org.br/index.php?p=inst_apresentacao) No que se refere a questão
quilombola o CEDEFES foi e talvez ainda seja a principal ONG a apoiar as lutas quilombolas em Minas Gerais.
150
Liderança quilombola já falecida. Compunha a diretoria da Federação Quilombola de Minas Gerais
N’golo, sendo liderança da Comunidade do Quilombo Urbano de Mangueiras, em Belo Horizonte. Seu Válter
foi uma liderança bastante ativa apesar de seus já agravados problemas de saúde. Minha amizade com Seu
Válter ainda que temporalmente breve foi uma grande dádiva que tive ao pesquisar e militar na questão
quilombola.

177
Em uma das notificações da defesa civil151 houve um pouco de desentendimento
entre eu e o técnico, porque eu falei com ele que só assinava se ele colocasse na
notificação, que estava notificando a Comunidade Quilombola, e ele disse: “- nós
não notificamos comunidades quilombolas.” Eu falei: “- tem que notificar a
Comunidade, senão estaria recorrendo de uma decisão dirigida somente a mim.”
Disse: “- eu exijo que você notifique como Comunidade.” E foi só depois de
notificar como comunidade é que tivemos uma resposta da prefeitura de Belo
Horizonte, pois até então a prefeitura sempre falava, não existe política pública
para quilombo, a prefeitura sempre falava que Belo Horizonte não tem política
pública para quilombos. Até hoje eles falam: “- nós não sabíamos que tinha um
quilombo aqui.” Mas sabiam que tinha essa família, esse povo aqui, pois todo
bairro sabe. Eu estranho a cidade não fazer um levantamento, até para poder
modificá-la, pois eu tenho certeza que dentro de Igreja não iria passar rua
alguma152. Aqui na regional leste, que possui o maior número de terreiro de
candomblé da cidade de Belo Horizonte, a prefeitura não esta respeitando.
(...)
A assistência do governo, que nos trate como comunidade quilombola. Isso é
ainda um grande problema para nós. Nem todo mundo nos reconhece como
comunidade quilombola. Eles não vêem a importância de manter esse núcleo
familiar unido. Este está sendo o grande problema, pois nós temos dificuldades
até mesmo de permanecer no local onde estamos. (Makota Cássia, fevereiro de
2012).

A não atuação ou a atuação confusa e dúbia por parte dos poderes públicos
levou certa vez Mãe Efigênia a afirmar, se referindo a possibilidade de registro do grupo
como patrimônio cultural:

151
Refere-se à notificação feita pela Defesa Civil Municipal em fins de novembro de 2011, determinando a
imediata saída da Comunidade e a imediata recuperação das áreas de risco, sob a pena de multas diárias.
152
Nesta fala Cássia vai enfileirando uma série de assuntos, que acompanhei e acompanhamos –
pesquisadores e estudantes do Núcleo de Estudos Quilombolas da UFMG - junto ao grupo, por isto ela não
entra em detalhes. Neste trecho específico, ela se refere a uma reunião que participei a convite dela na sede
da Urbel - Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte. Nesta reunião os técnicos da Urbel justificaram mais
uma vez as dificuldades em lidar com uma Comunidade Quilombola principalmente porque a mesma não
existiria em seus dados. E para exemplificar abriram sobre a mesa um grande mapa da região onde se
localiza a Comunidade para mostrar que do ponto de vista da cartografia do órgão, a mesma era apenas um
lote e que, inclusive, no novo planejamento urbano da região, elaborado a partir de relatórios técnicos de
engenharia, planejamento, urbanismo que incluía uma pesquisa de perfil social, não existia qualquer
menção ou registro da existência de um grupo autoidentificado como Comunidade Quilombola ou de
Terreiro. De modo que, o local onde se localiza o Quilomblé e alguns de seus vizinhos estava previsto para
ser desapropriado para dar origem a uma via pública, no novo traçado que buscaria harmonizar a topografia
local.

178
Tombou, tombou mesmo [risos]. Tombamento no sentido de cair. A casa não
caiu, mas o que foi tombado, tombou. Pois não conseguimos nada, mas vamos
ver. (Mãe Efigênia, julho de 2012).

A Cidade de Belo Horizonte possui dois bens culturais, de matriz religiosa afro-
brasileira, tombados. São eles a Irmandade do Rosário do Jatobá, na região do Barreiro, e
o Terreiro da Nação Ketu Ilê Wopo Olojukan, no bairro Tupi, ambos em regiões periféricas
e em bairros fronteiriços as cidades vizinhas da Regiao Metropolitana de Belo Horizonte.
Estes tombamentos ocorreram dentro das comemorações do primeiro centenário da
cidade de Belo Horizonte, ocorrido no ano de 1997. Wanessa Lott (2005) em sua
dissertação de mestrado, em que buscou analisar estes processos, afirma que os
tombamentos se deram de forma intraburocratico e para os de dentro da Avenida do
Contorno, ou seja, foram feitos dentro da lógica da cidade planejada, a cidade dos
católicos brancos. A autora ainda afirma que, estes tombamentos mantiveram uma
estrutura ossificada e tutelada pela visão de pedra e cal de patrimônio, o que reverberou
na proteção apenas ao espaço físico dos mesmos, sem o registro das manifestações
ocorrentes nestes espaços.
O terreiro de candomblé Ilê Wopo Olojukan - Casa do Trono de Oxóssi, da
Nação Ketu, é considerado por Morais (2006) e Almeida (2012) em seus trabalhos
dissertativos, como o mais antigo de Belo Horizonte. Segundo Mariana de Morais - em sua
dissertação sobre a construção identitária em dois terreiros de Belo Horizonte, sendo um
deles o Ilê Wopo Olojukan - teria sido a construção da Via 240 que impulsionou o processo
de tombamento do terreiro. Segundo seus relatos, a prefeitura tinha o projeto de abrir
uma avenida que passaria nos fundos do terreiro. Mas, para que a Via fosse construída,
parte do terreno da casa de candomblé teria que ser desapropriada. A perda de parte do
terreno significaria perder o espaço do culto dos orixás e uma área da mata com mais de
2.000 mil metros quadrados do imóvel. Razão pela qual, teve início um movimento pela
preservação do local e durante o primeiro Festival de Arte Negra (FAN), em 1995, evento
promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte, por ocasião do tricentenário de Zumbi de

179
Palmares, o Terreiro foi apontado pelos participantes como um dos bens afrobrasileiros a
ser preservado na cidade de Belo Horizonte.
Ainda segundo Morais, naquele momento “apenas três elementos da cultura
afro-brasileira haviam sido tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan): a Serra da Barriga, em Alagoas, o Terreiro Casa Branca, em Salvador, na
Bahia, e o monumento a Iemanjá, em Belo Horizonte”. Para a autora, com a proteção do
município, o terreiro conseguiu evitar que a construção da avenida afetasse a área
destinada ao culto dos orixás153.

O registro do Quilomblé como patrimônio cultural da cidade foi uma das


possibilidades debatidas junto a Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, como
forma de se apoiar dentro das estruturas do poder público municipal a luta da
comunidade154. Ao que emendou

Mas nós somos guerreiros, somos da raça de Zumbi. Não vamos morrer na praia,
vamos à luta155. (ibdem)

153
Para maiores detalhes ver Morais (2006) Lott (2005), Amarildo Almeida (2012).
154
Para registro, entre o ano de 1986 e o ano de 2005, alguns órgãos de “defesa do patrimônio cultural”
realizaram alguns processos de tombamento e posteriormente de registro de Terreiros de Candomblé. A
seguir a lista de alguns destes bens culturais protegidos.
(1986) Casa Branca do Engenho Velho (Salvador, IPHAN).
(1990) Axé Ilê Obá (São Paulo, CONDEPHAT).
(1999) Ilê Axé Opô Afonjá (Salvador, IPHAN).
(2002) Ilê Axé Omim Iyá Yamassê - Gantois (Salvador,IPHAN).
(2002) Casa das Minas (São Luís, Maranhão, IPHAN).
(2003) Inzo Manzo Bandukenké Bate Folha (Salvador,IPHAN).
(2005) Ilê Mariolaje - Olga do Alaketu (Salvador, IPHAN).
Para o caso da Bahia, que possui um programa especifico de proteção cultural para os Candomblés, ver
André Oliveira (2013) “A cidade e o Terreiro...”, onde ele computa em um quadro os 24 Terreiros protegidos
até o ano de 2010 na Bahia. E pra uma etnografia dos processos inicialmente de tombamento e
posteriormente de registros dos Candomblés na Bahia, ver Mabel Zambuzi (2010).
155
Esta afirmação que remete a figura mitificada de Zumbi já havia aparecido em outra pesquisa que fiz
junto a Comunidade Quilombola de Marques, no Vale do Mucuri mineiro e pode sugerir que para algumas
destas comunidades, Palmares e seu líder configuram como uma inspiração bastante forte: “Para nós hoje,
chegar ao ponto em que estamos é um orgulho, vários lugares em que fomos, vimos coisas que achávamos
que não iriamos conseguir, só viamos coisas negativas, mas sempre estávamos com a expectativa de

180
Foram as lutas pela reforma do Candomblé da Comunidade e a resistência do
poder público municipal em conceder inicialmente a liberação “do alvará” para a
realização da obra, sob a alegação de que os moradores não possuíam a propriedade de
seu lote que levou ao acionamento da posição como um Quilombo. Posição reforçada
posteriormente, por outro ato do poder público municipal, a retirada compulsória da
comunidade em fins de 2011156 e a posterior reforma do imóvel sem as devidas consultas
aos membros da comunidade. A alteridade vivenciada como experiência permitiu que a
Comunidade de Manzo pudesse conceituar a diferença.

Carlos: então posso pensar que hoje dia 29 de dezembro de 2012, se Manzo é
isto que você esta me dizendo, não estaríamos em Manzo neste momento...
Makota Cássia: Isto. Não estamos em Manzo. Aliás, estamos em Manzo sim,
mas em um lugar onde está tudo dormindo. É esta é a sensação que tenho. Tudo
aqui está dormindo, só tem pessoas aqui. O que realmente é o Manzo, só vou
ver voltando e só vou sentir quando eu vê funcionando, aquela fumaça do fogão
de lenha subindo, aquele monte de roupa branca no varal. Então isto nós temos
consciência que não está acontecendo. Às vezes dizem assim: “- vocês
voltaram!” Mas só voltou agente. E dizem: “- mas só tinham vocês mesmos para
voltarem.” Porém sabemos que tem mais, e este mais alguém para vir é o
Candomblé.
Carlos: então o que falta para ele voltar...
Cássia: O que falta mesmo Carlos, é reconstruir o que foi derrubado. Por
exemplo, a cozinha, os quartos de Santo. Isto que falta.
Carlos: por outro lado o Axé...
Cássia: continua aqui.
Carlos: nunca saiu?
Cássia: nunca saiu.
Carlos: então é aquela coisa, nós não estamos em Manzo, mas estamos em
Manzo.
Cássia: Por isto que disse não estamos em Manzo, mas na hora mesmo eu me
corrigi. Estamos em Manzo por causa do Intoto, mas ele esta dormindo. O Intoto
e a Comunheira estão, mas sem o essencial para movimentá-los é como se eles

vencermos... É um grande orgulho ter essa cor aqui, do grande zumbi dos palmares, terror dos
latifundiários.” Edson, presidente da Associação Quilombola de Marques. Ver Marques, 2012b.
156
Uma vez mais conforme já dito, peço paciência ao leitor, no que se refere a uma descrição densa desse
processo, que apresentar-se-á mais a frente.

181
estivessem adormecidos. Falta o círculo de pessoas rodando em torno, não tem
a fumaça do fogão de lenha, o fogo. (...)157

No momento “só tem pessoas”, pois falta ao Quilomblé o que o especifica


como lugar da comunidade de Manzo que é vivenciar o pertencimento ao Candomblé que
está dormindo. O Intoto e a Comunheira continuam à espera que se despertem as
energias adormecidas através do “círculo de pessoas rodando”. As falas Makota Cássia,
remetem a sensações, sentimentos, aos sentidos: tato, olfato, paladar, audição, visão, a
corporificações que transversalizam o modo de multiplicidade das relações, esta
multiplicidade (des)territorializante como justificativa para um processo territorializante
torna-se um paradoxo para os operadores da política estatal quilombola, aferroados ao
modo prescritivo-normativo.

Makota Cássia, ao longo de todo o processo, tem apontado para o fato de que
o Intoto e a Comunheira jamais devem sair de Manzo, pois de outro modo Manzo corre o
risco de desaparecer. A princípio li a posição de Cássia como uma metáfora política de
resistência. Minha leitura inicial apesar de possível, não me permitia perceber a
radicalidade sociocosmológica desta afirmação, que vai além da metáfora política. O
Intoto e a Comunheira, como visto, não são representações, eles são a própria energia.
Neste sentido eles não estão submetidos a uma ideia externa de territorialidade, ao
contrário, a ideia de territorialidade deve ser entendida de um modo para além de uma
questão de materialidade física.

Em termos de Deleuze e Guattari (1997) poderia se dizer que o território,


conforme apresentado não é apenas um referente de “espaço”, mas aquilo que estes
autores chamariam de uma “geografia da razão”, mas que entendo estar mais bem

157
Trechos desta conversa já foram apresentados em outras partes ao longo do trabalho.

182
definida como uma geografia da afecção158. De modo, que a ausência daquela
espacialidade poderá levar ao fim da comunidade, como nos dizem os membros de
Manzo, mas o oposto também é possível, assim sendo, a permanência física em um
território descaracterizado, levará ao desaparecimento inexorável da comunidade.

Neste sentido, a permanência apenas das pessoas é visto pelas pessoas de


Manzo, como uma violência estatuída mais danosa do que o próprio deslocamento do
território159. O território de que nos fala os membros de Manzo, consiste antes de tudo
em um processo, em um tornar-se, ele também é Ngunzo.

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa
o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam
segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos
fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto
a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O
território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma.
Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar,
pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos
tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI e
ROLNIK, 1986:323).

Tal como proposto por Deleuze e Guattari, bem como na passagem acima de
Guattari e Rolnik, o território em Manzo é agenciamento de multiplicidades, que
extrapolam o espaço apenas geográfico, sociológico, político, pois (trans)abarca todos
estes e muitos outros. A territorialidade em Manzo participa do movimento dos caminhos
cruzados – Pambu Njila – ela não conforma em si mesma nem apenas sedimentariedade e
não somente nomadismo, não se trata apenas de uma exterioridade ou uma
nomenclatura dicotômica entre: os corpos sociais, técnicos, políticos, artísticos e os

158
Território que produz um modo de vida. Nos termos segmentados de nossa cosmológica: um território
que produz sentimentos, valores, formas de ver, ser, fazer e de perceber “o mundo” que são interiorizados
pelos atores sociais.
159
Várias vezes, e em diferentes contextos e momentos, Makota Cássia se refere a possibilidade de
mudança de toda a comunidade e sua sociocosmologia, como uma decisão difícil, dolorosa e violenta, mas
como melhor do que a existência da atual maneira. De modo que, uma das palavras-politicas possíveis ainda
que não externalizadas, seria a mudança de todo o grupo de seu território.

183
corpos da natureza. Ao contrário do modelo estatizante e estatal de território160, ela não é
apenas transcendência de relações sociais, em segmentariedades duras, como propõe a
linguagem do Estado.

Trata-se no caso de Manzo de um território também de imanência.Convém


lembrar que o terreiro de Candomblé é um ser vivo que periodicamente deve ser
homenageado com rituais e sacrifícios, por isso sempre em constantes mudanças. Neusa
Gusmão (1995) no seu hoje já clássico Terras de Preto nos fala de uma terra-território
como a narrativa de um tempo real vivido ao mesmo tempo em que contém em si, um
tempo mitificado, capaz de unir o passado, o presente e o futuro. A conformação de um
território quilombola em Manzo assenta e incorpora a comunidade do santo, portanto,
relações que são traçadas e suportadas, por sujeitos – que não se findam em sua forma
antropocizada - e assim transversalizam relações múltiplas em intensidades de memória,
identificações, formas de participação social e política que a antropologia resume pelos
conceitos de territorialização e de territorialidade. Tais conceitos são necessários, mas
insuficientes para a descrição do território como espaço ao mesmo tempo objetivo e

160
Para Little (2002), essa hegemonia territorial do Estado-Nacão se confunde com a própria ideia de nação
e é fundamentada pelo conceito legal de soberania. Na concepção de Little, os territórios sociais - nos quais
para mim se encaixa o território quilombola- representam um desafio para a ideologia territorial. Neste
sentido, a existência destes territórios sociais colocariam em risco a normatização e ordenamento definido
por esta instância e, enquanto tal, para seus operadores devem ser combatidos ou em caso de acolhimento,
devem ser submetidos e mantidos em relação com a hegemonia territorial do Estado-Nação.
As maneiras específicas como Manzo transversaliza em lugar e (des)(re)territórializa seu Manzo exige uma
troca de saberes que considere as epistemologias e cosmologias êmicas sob a pena de em nome de uma
política anti-colonial se aprofundar um modelo colonialista de invisibilidades expropriadoras. Em outras
palavras, é importante um debate sobre a hegemonia territorial do Estado-Nação, pois essa hegemonia
violenta à realidade de alguns dos sujeitos do direito. A ideologia territorial fundada no conceito de
soberania e exclusividade no controle do território, comum ao nosso modelo cosmopolítico, como lembra
Little (2002), “requer que outros territórios que existem no seu seio sejam tratados na sua relação com este”.
A consecução de uma cidadania plena e a efetiva participação das populações tradicionais nas diretrizes das
políticas públicas, em uma tradição de direitos humanos, pressuporia a compensação das desigualdades
materiais e imateriais com respeito a diferença, através de um status pleno e diferencial. A predefinição da
titulação territorial sem a consulta aos grupos interessados diminui a plenitude e a integralidade deste
estatus e vai contra as dinâmicas e especificidades de cada grupo. Dito de outro modo, a legislação obriga os
grupos específicos a se encaixarem no marco legal: único e geral do Estado.

184
subjetivo, em que os quilomblecistas de Manzo, acumulam e transmitem seu Ngunzo e
que pode tomar múltiplas formas de bens físicos, simbólicos, memoriais, técnicos, dentre
outras infinitesimais potências.

Tornar-se quilombola em Manzo, nos termos dos próprios atores do processo,


e em sua sociocosmológica é mais uma forma de se fazer troca de caminhos cruzados com
os termos da política prescritiva da norma e da lei – liberal burguesa161. O contato, a troca
entre este prescritivo legal-normativo e o performativo da vida vivenciada e vivida é nos
termos da sociocosmológica de Manzo coloca em movimento e em contato: o múltiplo, os
fluxos, as formas metamórficas e nômades do Santo; ou seja, um terceiro [quarto,
quinto...infinitesimal] potência de se fazer política e, as categorias dogmáticas,
formalistas, os conceitos de norma e seus correlatos: unidades, uniformidades, sistemas
fechados, sedentarizados do fazer politico ocidental.

Não existe assim um eu que se identifica em Manzo como quilombola


enquanto essência – diria que jamais um eu é totalmente essencializado - mas formas de
transversalização de pertencimentos, multiplicidades de devires e potências. Diferenciar-
se quilombola é girar os pertencimentos-devires, territórios-devires. Diferenciar-se
quilombola é nos termos do santo: imanência, nos termos nossos: contingência e sua
assunção é acionada principalmente na esfera normativa, jurídica, estatal e estatizante.
Seu uso carrega multiplicidade de conotações, pode ser afirmativo, e quase sempre o é,
nas lutas políticas externas, mas pode ser também carregado de dúvidas, cercados de
contradições. Seu uso às vezes é peremptório, mas outras vezes é inconcluso. Suas

161 Não adentrarei aqui, de forma pormenorizada, no debate das insuficiências do modelo burguês-liberal.
Dentre outras insuficiências, interessa aqui particularmente a inadequação do locus da tomada de decisão
neste modelo, que constantemente solapa e obscurece os demais vocabulários, percursos, performatives
act, e discursos políticos. No caso especifico das lutas quilombolas, esses novos sujeitos políticos criam
novas gramáticas, performatives e discursos que não têm eco no espaço público dominante (Fraser, 2007).
Diante desta insuficiência é necessário pensar numa concepção pós-burguesa de espaço público (Fraser,
2006). Tal concepção pós-burguesa permitiria refletir sobre várias formas híbridas alargando a capacidade
de se pensar as possibilidades e os limites da democracia realmente existente (Fraser, 1998).

185
insígnias são não raramente mistificadas em categorias segmentarizantes, como a de raça,
pertencimento étnico, classe social, status ou origens, mas são também cosmologizadas
em categorias transversalizadas de Ngunzo. Movimento constante, dinâmico e vivo. A
essencialização que as categorias normativas carregam em seus discursos normativos
tendem a transformar este movimento em um sedimento - objeto de desejo e não raro
insaciável -, a ser rememorado a partir de uma definição externa a despeito de suas
especificidades próprias. Esta operação, que negaria a própria dinamicidade do
Candomblé que é o anima da existência do quilombo nega também a palavra-política.162

As palavras políticas tornam-se práticas– mas não se essencializam – através e


(n)os símbolos, especificidades ritualísticas, a língua cantada nas cerimônias e rituais, o
conjunto de mitos e ritos, a maneira como se toca e invocam os Inquisses através dos
atabaques, as cantigas que se cantam, as cores que se usa no vestuário, as interdições,
benzenções, banhos, obrigações, a lida com os elementos da natureza, as comidas
sacralizadas, as quizilas, dentre outras.

Em Manzo, tornar-se quilombola, portanto, difere fundamentalmente não


somente do que isto representava no transcorrer do regime escravocrata, e mesmo quase
um século após a abolição da escravidão quando ainda era uma categoria vinculada à
criminalidade, à marginalidade e ao banditismo, como tabem de outras formas

162
O professor Christiano Tambascia, a quem agradeço, comentou a respeito de uma formulação
semelhante a esta em um texto resultante da disciplina que ele havia ministrado, posteriormente publicado
em uma coletânea, sobre antropologia e patrimônios culturais: “a despeito da dinâmica cultural, as
fronteiras identitárias trabalham com noções como autenticidade. Ou o contrário: apesar das reificações, ou
pelas reificações, a cultura ainda assim se dinamiza.” Continua Tambascia: “Há aí, de qualquer modo, a
essência da esquizofrenia (...) Me parece que o desafio de fato é a possibilidade de reconhecer este caráter
processual da significação e pertença de um território (em sua relação com a valorização identitária), é difícil
conciliar reivindicação identitária (e territorial) sem a demarcação de sinais diacríticos congelados. (...)
Algumas respostas implicam numa constante etnografia contextual e passa exatamente pela necessidade de
repensar novos parâmetros de uma atuação antropológica em contextos “novos” (aspas porque não
exatamente novos, no sentido de serem perspectivas apenas distintas das adotadas geralmente pelos
etnólogos).” (Marques 2012d In Tambascia, 2012)

186
encontradas em outros contextos brasileiros. Tornar-se quilombola pode ser visto como
um devir, uma diferença na prática, a história como variação de perspectivas. Deste
modo, em Manzo assumir sua identificação como quilombola, é tornar-se, em termos
antropológicos, um grupo étnico.

Mas não somente no sentido que tem sido utilizada essa categoria nos estudos
antropológicos sobre quilombos no Brasil, como por exemplo, nas releituras de Weber,
Barth e outros teóricos do que se convencionou chamar de teorias da etnicidade – dos
quais trabalhos anteriores meus (Marques 2008, 2009a, 2009b) bem como de diversos
outros colegas são exemplos; e com isto não quero negar o valor heurístico deste sentido
e sim alargá-lo, complementá-lo. O contexto etnográfico de Manzo aponta para uma
relação de transversalidade entre a diferença e a différance163, e neste caso pode-se dizer
que tornar-se quilombola têm efeitos dinâmicos tanto sobre aquilo que ela reflete – como
diferença– como sobre as próprias metacategorias, como ‘différance’ ou seja: a diferença
não é apenas um encounter de fronteiras entre os de dentro e os de fora, mas está
conjugada com a différance localizada dentro das fronteiras. Retornarei a frente a este
ponto.

Tornar-se e assumir-se quilombola em Manzo, dentro do atual processo é


também uma das maneiras de lidar com as esferas estatais e com o seu discurso na forma-
Estado164; portanto, trata-se daquilo que Spivak (1988) denominou de “essencialismo

163
Différance é um neologismo francês cunhado por Jacques Derrida e homófono à palavra
"différence". Différance faz um jogo com o fato de que a palavra francesa différer pode significar tanto
diferir quanto diferenciar. O termo différance tem papel-chave na teoria desconstrucionista derridiana. O
conceito de différance de Derrida sugere a ausência de forma ou vazio de conteúdo. Para Derrida, a
diferença deve se manter aquém e além de todo lugar para não gerar falsos centros, falsas ideologias; deve,
portanto, não ter nenhuma direção ou orientação política, social, artística, filosófica, a fim de garantir a
vigência de todas as possibilidades ou de todas as reivindicações da diferença. Em Jacques Derrida, a
desconstrução considera que o significado é sempre relacional: qualquer ponto é definido por suas relações
com outros pontos, que por sua vez são definidos por suas relações com outros pontos.
164
Devido a extensão desse trabalho reproduzo aqui, para facilitar a leitura, a nota explicativa sobre o
significado do uso desse termo que aparece já na introdução do trabalho. Por forma-Estado refiro-me ao

187
estratégico”. Ocorre que, tal essência estratégica, na medida em que é definida de
antemão pela forma-Estado, incorre paradoxalmente em nome da eliminação de uma
opressão naquilo que a mesma Spivak (1988) denominou de “violência epistêmica” 165e

(o)corre-se assim, o risco de fortalecer por outras vias a violência e as palavras


dominantes. Assim tornar-se quilombo é visto como um modo e uma forma de lidar com
as constantes e correntes violações de seus modos, saberes, fazeres, de suas
sociocosmologias, bem como de exigir direitos garantizados nas normativas, convenções,
legislações e outros aparelhos da forma-Estado. Mas é também nesta mesma medida,
uma forma de se questionar a esfera estatal e ao Estado-Nação166 e seus projetos
hegemônicos de formatação de fronteiras (étnicas).

Não se trata aqui de uma crítica conservadora, nos termos do pensamento


patrimonialista, estamental, racista, ruralista, patriarcal e sim um questionamento da
forma que o Estado lida na formatação das fronteiras. Dito de um modo direto: não se
trata de uma crítica aos processos de etnogêneses, mas a maneira com que o Estado

modelo, legal e legalista, que busca resumir a vida vivida e vivenciada a teoremas e axiomas que subtraem
as operações de vivência das condições do sensível, a fim de convertê-las apenas em ciência régia. A teoria
social, mesmo as de matrizes progressistas tendem a resumir à política a sua forma Estado-Nação e essa a
um “organismo funcional” do sistema capitalista. A leitura nesses termos não é distante da realidade aqui
estudada, entretanto, para que seja uma leitura válida seria mais interessante arguirmos esse modelo
descritivo a partir das rotinas e rituais – da vida vivida e vivenciada– - que organizam e não necessariamente
fundam os modelos de regulação moral. Nesse sentido forma-Estado aqui é uma metáfora demonstrativa
dos limites desse modelo de organização burocrática-política e seus vícios de origem, classe, status,
pertencimento ideológico, religioso, dentre outros. A Diferença como política ultrapassa o modelo liberal-
burguês em reconhecer o outro, vai mais além, trata-se de assumir as consequências de sermos
permanentemente atravessados pelo outro. A poética da cosmopolítica de Manzo é o caminho cruzado e a
troca com os múltiplos outros, como se verá ao longo desse trabalho.
165
Tomo aqui, livremente o conceito de violência epitêmica como a operação realizada pelo Estado e sua
forma-Estado de alienação e posterior extinção de sistemas de subjetivação, representação que o diferente
tem de si mesmo e suas formas tangíveis e intangiveis de experiência, registro, memória, ou seja, de sua
vida vivida e vivenciada. E a imposição violenta de um processo internalizador de repressão e de assunção
de um discurso de verdade produzido pela sociocosmológica dominante e suas categorias de pensamento,
que têm como finalidade política a imposição de sua supremacia sobre outras cosmologias.
166
Para uma análise mais pormenorizada do conceito de Estado-Nação e seus correlatos jurídicos ver,
Marques (2009b).

188
busca impor seu projeto de construção de Estado-Nação que excluí as diferenças. A
antropologia esteve associada ao debate sobre a construção da nação, como é de
conhecimento amplo, talvez seja o momento de uma antropologia da deconstrução do
Estado-Nação e de seu correlato: o discurso do desenvolvimento. É necessário pensar em
novos modos político-epistemológicos sobre a democracia em seus diversos níveis e
modalidades.

Noções outroras vistas como “libertadoras” como multiculturalismo,


pluralismo e diversidade, foram apropriadas pelo Estado e são operacionalizadas no
sentido de conformar um formato estabilizador para a diferença e restaurador da
norma!!! Apesar de uma renúncia parcial a um modelo assimilacionista, o caso de Manzo,
demonstra que a forma-Estado é ainda é integracionista. Assim as diferenças para serem
respeitadas e valorizadas devem ser subsumidas ao projeto ideológico-político maior de e
do Estado-Nação fundando dentre outras características, três pressupostos: Soberania,
Estado como quadro burocrático-institucional e base territorial. Portanto, Estado-Nação
em seu modelo burguês-liberal pressupõe a ideia de um ente de direito: o cidadão como
individuo uno e genérico, portador de direitos e deveres abstratos. O reconhecimento da
diferença que não conduz ao uno, ou ao dicotômico e sim ao múltiplo – regime de signos
diferentes, nos termos de Deleuze e Guattari, - e que contém em si mesmo o antídoto do
seu próprio veneno primordialista não é possível nesse modelo político.

É necessário, pois um rompimento com o legado do colonialismo, mas


também com os wfeitos colatarais da própria luta anticolonialista em seus inícios. É
precisamente aqui que o discurso nativo de tomada da palavra política desestabiliza o
discurso hegemônico transversalizando os discursos outros e dos diferentes como
construtores de outra política.

6.2 A palavra-política como cosmopolítica

189
Em Manzo, como afirmado, Quilombo é palavra que participa daquilo que os
quilomblecistas denominam o círculo de pessoas rodando em torno do Intoto, ou seja,
Ngunzo. Quilombo é palavra, neste caso, palavra-política, nos termos, perspectivas,
cosmogonias, cosmografias, cosmologias e poéticas de Manzo. Tomar a palavra-política é
tornar-se e fazer-se político. Mas não qualquer político. Em Manzo, tornar-se político é
compor-decompor-recompor tal qual o Ngunzo que é múltiplo em si mesmo. “Melhor
dizer: nada é político, tudo é politizável, tudo pode tornar-se político. A política não é nada
mais nada menos do que o que nasce com a resistência à governamentalidade, a primeira
sublevação, o primeiro enfrentamento.” (Foucault, 2008: 287).

Esta resistência, este enfretamento como lembra J.Butler (1998) são feitas
pelos sujeitos/coletivos políticos produzidos pelas práticas de exclusão como as mulheres,
jovens e os negros. Criaturas inicialmente do sistema de poder e da ordem, estes sujeitos
ao criticar os esssencialismos, as polarizações binárias, somado a defesa da diferença
constituem-se em coalizões contingentes, rejeita-se a identidade essencial, mas não ao
conceito contingente da identidade. Parafraseando Butler “mulheres [quilombolas]
designa um campo de diferenças indesignáveis que não pode ser totalizado ou resumido
por uma categoria de identidade descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de
permanente abertura e re-significação”. (Butler,1998: 35-36). Como afirma Prado e Toneli
(2013:356)

o político nessa perspectiva não poderá estar restrito às instituições racionais da


política liberal, ao discurso acordado pela lei (...) pelo contrário, o político é
sempre aquilo que escapa às malhas da regulação e da conformidade com o
consenso (...) racionalidade moderna não foi capaz de confrontar algo
estranhamente constituinte da própria experiência (...) político nesta
consideração são processos da experiência que se instituem na contingência da
ação (...).

Ter a palavra-política é a possibilidade que Manzo, encontrou para denunciar


a insuficiência do modelo político estatal-normativo, da forma-Estado. Tornar-se
Quilombola é, portanto, potência-denúncia da inadequabilidade do modelo prescritivo-

190
normativo para a riqueza da vida vivida e vivenciada. Aquilo que a cosmologia de Manzo
nomeia como político torna-se uma dimensão instituidora da vida social, e informa
diferentes práticas e rel(ações) sociais, para além do conjunto de instituições e práticas
convencionalmente chamadas de políticas. Esta potência-denúncia permite desvelar a
incapacidade da forma-Estado em reconhecer as outras perspectivas e cosmopolíticas, a
plena participação nos seus termos e em seus modos específicos.

Entretanto, antes de estender-me em uma análise da palavra-política torna-se


necessário, ainda que de forma sucinta localizar a relação da comunidade com os poderes
públicos e a forma-Estado, trata-se aqui de uma apresentação sucinta, pois a relação
Manzo - poder público será apresentado de forma ampliada - a partir da análise de
documentos, reuniões e da minha participação neste processo acompanhando a
comunidade - mais a frente no capítulo 8 da tese.

A comunidade requisitou e obteve em março de 2007, o certificado de


autorreconhecimento como Remanescente de Quilombo, estando registrada no Livro de
Cadastro Geral da Fundação Cultural Palmares n.10, Registro n.942, fl07. Por sua vez, o
INCRA-MG abriu o processo de n. 54170.006166/2007-91, no dia 01 de novembro de
2007, no entanto, não realizou nenhuma das etapas previstas no Decreto 4887/2003 para
o reconhecimento, demarcação, desintrusão e titulação do território quilombola, pois
para este Instituto, foi celebrado um acordo informal em que o território requerido, por
ser pretensamente uma propriedade de domínio do governo estadual, seria titulado em
conjunto por este ente federativo e pela prefeitura municipal da cidade167.

As relações do grupo, com os poderes públicos, se intensificaram a partir do


fim do ano de 2011, quando houve a interdição do Quilomblé e a remoção de seus

167
As informações são referentes ao período de maior campo da tese, ou seja, entre fins de 2011 e
novembro de 2014. Entretanto, como o processo continua em aberto e sendo acompanhado por Ministério
Público Federal e Defensorias Públicas Estadual e Federal, existe sempre a possibilidade de um fato e um
dado novo.

191
moradores para o Abrigo Municipal. Nesta intensificação, tornou-se comum
principalmente para as lideranças a visita a órgãos públicos para entrega ou solicitação de
documentos, licenças, laudos dentre outros e a participação em reuniões, debates,
audiências. Espaços estes todos conformados em uma linguagem definida a priori pela
forma-Estado e, portanto, muito pouco, ou nada formatada para a cosmopolítica Manzo.
No espaço civil, para usar um termo de Makota Cássia, a pertença ao Santo, só pode ser
aceita pela negação e não pela potência. Nesse sentido, o Santo para ter direitos precisa
ser inferiorizado e tutelado; ou então diminuído a uma estereotipia desidratada; aquilo
que remanesce; aquilo que se busca proteger e congelar nas formas canônicas do
“protetor”, aqui, a saber: branco, cristão, ocidental; dentre outras operações que
esvaziam a política, de seu sentido pleno e, para alguns – potencialmente perigoso: o
sentido (cosmo)político.

A interdição do Terreiro e a posterior demolição da cozinha, considerada área


de risco construtivo, dos quartos de assentamento dos santos para a construção de um
muro de arrimo, da camarinha e do quarto de virar o santo para um reforço na estrutura
do Telhado do Terreiro, dentre outros elementos do sagrado, impedem ainda hoje em
janeiro de 2015, portanto, três anos após os acontecimentos, o retorno de toda a
comunidade e não apenas das pessoas, o que é visto pelas lideranças do grupo como um
etnocídio. Para Makota Cássia:

Esta é a preocupação de manter este espaço, pois não somos somente nós que
temos a perder, mas a cidade também. Hoje eu percebi o quanto nós somos
diferentes sem perceber que éramos diferentes, porque nós tivemos que
atravessar este espaço que nós conquistamos e chegarmos ao mundo onde as
pessoas não nos reconhecem pelo que somos, pela nossa existência.
Percebemos que o mundo lá fora está bem complicado. Manter este espaço e
este vínculo é essencial para a própria comunidade. (Makota Cássia, abril 2013).

O reconhecimento dos direitos aos modos, fazeres, saberes e viveres das


comunidades negras foi garantido formalmente em diversas Constituições na América
Latina, bem como a territorialidade para a existência destes fazeres, saberes e viveres,

192
entretanto tal reconhecimento – quando se efetiva, o que é raríssimo - é feito nas bases
de um monismo estatal168.

O que se depreende, a partir das falas das lideranças de Manzo, é uma palavra
política que reúne os diversos elementos presentes no processo constitutivo de tornar-se
comunidade, aquilombar-se: transversalizar lugares e entre-lugares, re(des)territorializar
o espaço, perante uma arena estatal que busca negar ou reduzir a ideia de
reconhecimento e de direitos a apenas uma dimensão diminuída de seu Ngunzo em suas
múltiplas potências.

Cássia ao relatar como se deu a retirada compulsória do grupo de seu habitar


reforça a atuação da forma-Estado como monopólio de deveres e de alguns direitos. Este
modelo, apesar de suas boas intenções, acaba por tornar-se mais uma forma de
aniquilamento da diferença, como exposto na narrativa abaixo de Makota Cássia a
respeito da conversa, com os funcionários públicos no dia da retirada compulsória da
comunidade:

Eu penso assim: como é que eu vou pedir ajuda ao governo? De que forma, pois
eles falam que não tem políticas públicas para quilombos. Então neste caso, eu
tenho que negar a minha identidade, tenho que negar que eu sou quilombola
para que aconteça alguma política pública. (...) E ai eu digo: - nós não queremos
nos separar. Nascemos com esta cultura. Não queremos perde-la. (...) Eu disse a
ela: “- Não!!! Nós não vamos para a rua não!!! Eu vou ficar aqui.” Ela respondeu:
“- Mas aqui vocês não podem ficar.” Ai eu disse: “- mas somos Comunidade
Quilombola.” E ela disse: “- como Comunidade Quilombola não sei? Vou ter que
procurar saber.”
Então neste caso, eu tenho que negar a minha identidade, eu tenho que negar
que eu sou quilombola para que aconteça alguma política pública. Acho isto
muito complexo. Veja a forma que a prefeitura lida com a gente, à prefeitura
vira e diz: “- vocês vão ser despejados, pois estão morando em uma área de
risco.” Ai eu digo: “- então eu posso pegar minha família, meu povo todo e levar
para um abrigo?” A resposta: “- Não.” “- Por que não? - Porque a prefeitura tem
abrigos públicos só para Vilas, Favelas e moradores de rua.” Ai eu digo: “- pera aí
eu pago impostos, eu voto, eu cumpro meu papel social e cumpro meu papel

168
Ver Marques e Gomes 2013. “A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos contemporâneos:
Limites e potencialidades”In:Revista Brasileira de Ciências Sociais - RBCS Vol. 28 n° 81 fevereiro/2013.

193
político e na hora que retiram da minha Casa, porque dizem que eu construí de
uma forma errada não tenho direitos.”
Eu até entendo [se refere à retirada] mas existem meios para isto, a maioria das
pessoas aqui não possuem alvará da prefeitura e construíram como nós
construímos. Aí quando eu falo com eles para recapear a rua, devo ir à gerência
social ou algo assim da regional. Que dizer então que para asfaltar, a rua é
informal. Pois esta gerência cuida de asfaltar becos de favela, mas para poder
nos amparar ai eu moro na cidade formal. Então eu digo: “- tudo bem, mas o que
devo fazer?” Nos responderam “- Não sei vocês deverão procurar barracão de
aluguel.”
E ai eu disse: “-não queremos nos separar. Temos nossa cultura e não queremos
perde-la. Não queremos viver neste mundo sem respeito (...).”
Então toda a dificuldade do poder público está em nos reconhecer como
comunidade quilombola. Nossa comunidade tem condições de por nós mesmos
desenvolvermos atividades: sabemos fazer, aprendemos fazer, mas precisamos
de auxílio dos poderes públicos, financiamentos para desenvolvermos nossas
próprias fontes de renda. Nós precisávamos que o poder público tivesse mais
atenção naquilo que a gente pode oferecer e já oferece. (Makota Cássia, abril de
2012).

Em termos da (cosmo)política liberal-burguesa, estes processos nos remetem


aos desafios do chamado espaço público. Um exemplo desta postura é delineado por
Arruti (2011) que ao analisar o programa governamental Brasil Quilombola - PBQ aponta
que este visa “direcionar as políticas universais para todas as comunidades quilombolas do
país”. Segundo Arruti esta afirmação “resume boa parte da concepção governamental
sobre o tema: o reconhecimento dos quilombos como um segmento diferenciado da
sociedade nacional não leva de imediato a políticas diferenciadas.” Para Arruti

(...) as políticas voltadas para comunidades quilombolas podem ser divididas,


grosso modo, entre aquelas geradas especificamente para esta população e
aquelas formuladas como simples extensão ou como atribuição de uma cota
especial para esta população no interior de políticas universais ou focadas na
pobreza (...) o reconhecimento dos quilombos como um segmento diferenciado
da sociedade nacional não leva de imediato a políticas diferenciadas. Pelo
contrário, tal reconhecimento implica em um reforço e uma correção das
políticas de redistribuição, na medida em que a diferença dos quilombos é
traduzida em termos de um agravamento das condições gerais da pobreza e não
exatamente em demandas ou necessidades diferentes. (2011:289).

Segundo o autor, o PBQ expressaria assim que existe uma política de


redistribuição e de reconhecimento, pelo menos no que se refere à questão territorial.
Segundo Arruti o mesmo não ocorreria em outras políticas públicas, como no campo das

194
políticas de educação, onde se encontra presente apenas uma latência de
reconhecimento que não deveria e nem poderia ser resumido apenas à dimensão da
redistribuição, como é o caso dos programas educacionais que ele analisou. Concordo
com Arruti, mas os casos mineiros, que acompanho como pesquisador permite-me dizer
que não existe uma política de reconhecimento da questão territorial dentro do monismo
da forma-Estado. O que Manzo ajuda exemplificar é, que: nos poucos casos em que o
poder público, reconhece a territorialidade dos grupos quilombolas, o faz nos termos
violentos de seu modelo de Estado-Nação e de sua forma-Estado que predefine o que é
territorialidade quilombola. A palavra-política nos esclarece que a manifestação estatal,
quando ela ocorre, não ultrapassa a visão do outro para além de um cliente deficitário ou
dominado, para percebê-lo como efetivamente diferente.

A palavra-política, o Ngunzo, que Makota Cássia busca tomar indica que o


contexto e as lutas políticas do Santo tornadas quilombolas, perpassam por poéticas
políticas densas e riquíssimas, que expressam um campo de reflexão política, tanto para
Manzo, como para a forma-Estado. A luta política, a tomada da palavra, é uma poética de
resistência. Através da cosmopolítica, os grupos inicialmente subalternizados buscam a
introdução de inovações que tratem as injustiças ainda não nomeadas.

São estes novos sujeitos, Manzo aqui os exemplificaria que criam, em


determinados tempos históricos, seus próprios vocabulários, ampliando o debate e
definindo situações que inicialmente não têm eco no espaço público dominante169 (Fraser,

169
Fraser (2006) em sua análise, do sistema liberal-burguês de democracia chama a atenção para que o
mesmo se sustenta em um tripé, qual seja: a má distribuição, o falso reconhecimento e a falsa
representação. Que se engedra em uma arquitetura interestatal de fracionamento do espaço político que
ela própria – a arquitetura interestatal - institucionalizou, excluindo assim, de modo efetivo, as questões
sobre a justiça do processo democrático de tomada de decisão. Portanto, como princípio: trata-se de um
modelo de relações assimétricas de poder que implicam a definição prévia de quem serão os atores que
serão efetivamente ouvidos e quais serão os temas que efetivamente serão tratados como públicos. A
tomada da palavra política, portanto, reveste-se de enorme importância na medida em que reivindica o
direito de participar no processo de estabelecimento do que é a própria política a partir de suas próprias

195
2007:327). Estes novos atores, como se vê em Manzo, na medida em que mantém sua
autonomia criam as possibilidades de questionamento crítico do Estado. Isto porque seu
discurso carrega a hibridez da realidade vivida e vivenciada. No texto “What’s critical
about critical theory?” (1988), Fraser considera inadequado, por exemplo, o modo como a
teoria habermasiana opera através de uma análise que se estrutura em separar “sistema”
e “mundo da vida”. A crítica é dupla: à separação em si destas esferas e; o privilégio a
análise do sistema em lugar da análise do mundo da vida. Com base nos dados de Manzo,
concordo com Fraser, o mundo da vida vivenciada pelo que aprendi em Manzo é a poética
para o reconhecimento da diferença, da redistribuição material e simbólica e da
representação política, por outro lado, sistema e mundo da vida não podem ser
confinados a determinadas categorias que estabeleçam separações estanques.

A cosmopolítica, que Manzo apresenta, nos remete ao que Goldman tem


chamado de uma pragmática da cultura, ou seja,

(...) não se trata de encarar os códigos a partir de sua organização interna,


(privilégio da sintaxe), nem de analisá-los segundo suas relações com os
referentes aos quais remetem (privilégio da semântica), mas de buscar os
modos específicos através dos quais esses códigos são atualizados, jogados, ou
manipulados na realidade concreta de cada sociedade particular – uma espécie
de “pragmática”, portanto. (Goldman, 1999:20).

As relações de Manzo, com o Estado por um lado nos permitiria celebrar a


tentativa de influência dessa socialidade - a objetividade da socialidade opera na
subjetividade das pessoas-em-interação, são relações ontológicas e não metafísicas -
sobre o Estado. Entretanto, o que se percebe é a negação deste espaço às palavras
políticas outras. O máximo que este modelo representativo-liberal comporta é uma busca

cosmografias, cosmologias e cosmogonias. Ao agir deste modo, as lideranças de Manzo expõem as


insuficiências do sistema liberal-burguês de tomada de decisão, bem como os procedimentos não
democráticos que geram resultados substantivamente desiguais. Gomes e Marques (no prelo) em um
estudo de caso comparativo entre Brasil, Colômbia e Equador no que se refere à adequação das
constituições destes países aos paradigmas do chamado Novo Constitucionalismo, chegam a conclusões
semelhantes não somente para o Brasil, mas para Equador e Colômbia.

196
genérica e abstrata por cidadania, através de um reconhecimento apenas parcial - e na
maioria das vezes pela negação e não pelas potências - das palavras políticas que são ditas
em outra gramática política, ou em outras perspectivas e sociocosmológicas.

Este processo nos parece ser efeito daquilo que Fraser denunciou: o avanço
em termos democráticos, ainda se centra nos públicos fortes, não levando em
consideração os públicos fracos, termo da autora que mantenho aqui, mas entendo que
no lugar de fraco seria mais interessante usar o termo público outro, afinal este outro
ainda que fraco na forma-Estado é forte enquanto potência de seu discurso; aliás Fraser
aponta nesta direção, quando chama a atenção para o fato de que, não raras vezes, são os
públicos fracos que levam a introdução de inovações linguísticas que denunciam as formas
de injustiças ainda não nomeadas. Nos termos de Manzo, a palavra-política não pressupõe
“a extensão de direitos supostamente universais em nome de uma "igualdade" algo
abstrata, os novos movimentos (de mulheres, negros, índios, homossexuais, deficientes
etc.) opuseram a reivindicação de direitos específicos e, por definição, não
universalizáveis.” (Goldman, 2007: 09).

São estes novos sujeitos, que Manzo aqui os exemplifica, que criam em
determinados tempos (cosmo)políticos, seus próprios vocabulários, ampliando o debate e
definindo situações que inicialmente não tinham eco no espaço público dominante
(Fraser, 2007:327). Estes novos atores, como vemos em Manzo, na medida em que
mantém sua autonomia criam as possibilidades de questionamento crítico do Estado. Isto
porque seu discurso carrega a hibridez da realidade vivida e vivenciada.

A palavra política em Manzo reúne os diversos elementos presentes no


processo constitutivo de se formar comunidade, tornar-se Quilombo, inventar cultura,
criar lugares e entre-lugares. Manzo criou comunidade e a assentou em um território que
se tornou o lugar objetivo e subjetivo em que a comunidade acumula e transmitem bens
físicos, simbólicos, memoriais, técnicas, dentre outros saberes, fazeres, viveres. O não
reconhecimento deste processo pelo poder ordenador estatal que busca negar ou reduzir

197
a ideia de reconhecimento e de direitos a apenas uma dessas dimensões precipitou o
autorreconhecimento de Manzo, como uma comunidade quilombola. Esta cidadania
regulada (Santos, 1979) é a clarificação da característica autoritária do Estado-Nação
brasileiro. A cidadania regulada, ao invés de reconhecer as experiências vividas e as
múltiplas socialidades, acaba por desidratá-las, ao capturá-las para dentro da forma-
Estado. Dito de outro modo, a extensao de direitos supostamente universais em nome de
uma "igualdade" abstrata tende a reduzir a diferença a um dispositivo esvaziado e
genérico de direitos específicos. Ocorre que nem sempre – e diria quase nunca - tais
principios são redutíveis às formas juridicas e politicas clássicas, direção semelhante à
apontada por Goldman (2006).

6.3 A Kizomba é uma palavra política170

Nós sabemos que o que a gente faz aqui é manter, e não resgatar. A gente
mantém a nossa tradição, a nossa cultura e tentamos repassar isso para a
população, para a comunidade do entorno, para todas as pessoas que visitam e
frequentam o terreiro.
Aqui no terreiro a gente trabalha com crianças da comunidade e do entorno. As
atividades desenvolvidas são: capoeira, samba de roda, dança afro e percussão.
A gente trabalha muito com os ritmos de tambor mesmo: maracatu, samba de
crioula, maculelê. A ideia nossa é quebrar o tabu, o preconceito, conversando
com as crianças e mostrando para elas que o espaço, além de religioso, é um
espaço também social, que pode ser usado para atendê-las, tirando elas das
ruas, acolhendo-as, numa forma de abrigo para elas. (...) O projeto Kizomba não
recebe nenhum recurso ou ajuda do governo. É através da cultura mesmo.
(Makota Cássia, uma das coordenadoras do projeto Kizomba).

O projeto Kizomba171 é organizado principalmente em oficinas, e suas


atividades dependem da presença de voluntários, principalmente oficineiros

170
Parte dos debates desenvolvidos ao longo deste capítulo e principalmente esta parte se encontram
reunidos de forma de brain storm, no ensaio: “Bandeira Branca em Pau Forte: considerações sobre direitos e
a "tomada da palavra política" em um Quilomblé Urbano de Belo Horizonte” (no prelo, a ser publicado na
coletânea da Associação Brasileira de Antropologia: 25 anos da Constituição Federal e a Questão
Quilombola).

198
(educadores). Os educadores são em geral pessoas que mantém algum vínculo religioso
ou afetivo com o terreiro. O projeto não recebe nenhuma ajuda estatal ou de um parceiro
fixo da sociedade civil. Sendo mantido pelo trabalho voluntário, por doações de amigos e,
por recursos da própria Comunidade. A Oficina de Capoeira, atividade perene do projeto é
ministrada por Maurinho, kambono do Terreiro e filho biológico de Mãe Efigênia e o
acompanhamento do desempenho escolar dos educandos é feito por Makota Cássia.

Para Cássia: “a capoeira é para nós o braço direito, pois é a única oficina que
saiu do Terreiro mesmo. Uma coisa que vem passando de pai para filho, na terceira
geração e já atendemos cerca de 90 crianças do entorno, dentro do espaço do Terreiro.”
Ao explicar o Projeto Kizomba, Makota Cássia aponta para a abrangência social e política
do mesmo, e como consequência destas, o combate à intolerância religiosa e racial.

O Projeto Kizomba é visto pelas lideranças do Quilomblé, como uma forma de


comunicação dos seus modos, saberes, fazeres e viveres aos moradores do entorno e ao
poder público e também como um processo de legitimação das cobranças por direitos
junto a estes poderes, visto que a Comunidade assenta no projeto uma forma de
contribuir - nos moldes da forma-Estado, ainda que com conteúdos de sua própria
sociocosmológica - com a persecução de uma melhoria na vida dos jovens da região onde
se localiza o Terreiro.

171
Em 1988 no ano do centenário da Abolição da escravidão, o G.R.E.S Unidos de Vila Isabel (R.J) escolheu a
resistência negra para o seu samba-enredo denominado Kizomba- Festa da Raça: Valeu Zumbi!/O grito forte
dos Palmares/Que correu terras, céus e mares/Influenciando a abolição/ Zumbi valeu!/ Hoje a Vila é
Kizomba/ É batuque, canto e dança/ Jongo e maracatu/ Vem menininha pra dançar o caxambu (bis)/ Ôô, ôô,
Nega Mina Anastácia não se deixou escravizar/ Ôô, ôô Clementina/ O pagode é o partido popular/ sacerdote
ergue a taça/ Convocando toda a massa/ Neste evento que congraça/ Gente de todas as raças/ Numa
mesma emoção/ Esta Kizomba é nossa Constituição (bis)/ Que magia/ Reza, ajeum e orixás/ Tem a força da
cultura/ Tem a arte e a bravura/ E um bom jogo de cintura/ Faz valer seus ideais/ E a beleza pura dos seus
rituais/ Vem a Lua de Luanda/ Para iluminar a rua (bis)/ Nossa cede é nossa sede e que o "apartheid" se
destrua/

199
Eu descobri que os nossos deveres já cumpríamos muito bem. Não estávamos
recebendo eram os nossos direitos. Como social, vínhamos cumprindo um
papel, praticando um papel social dentro da cidade, mas não estávamos tendo
nenhum retorno como comunidade quilombola. (Makota Cássia, julho de 2012).

Makota Cássia diversas vezes me afirmou a ideia, contida nesta passagem:


“Estou convicta de que repassamos nossos valores, o Axé e o respeito pelo Santo, através
da Capoeira. Os outros Terreiros deviam fazer o mesmo, pela Capoeira levamos o Santo,
para aqueles que antes temeriam. Temos evangélicos na Capoeira, e aí discutimos o
respeito à diferença.” Ainda segundo Cássia, com o projeto “conquistamos o respeito das
escolas daqui da região, pois sou fiscal. Vou às escolas para saber se os alunos do projeto
estão frequentando as aulas. Mantenho diálogo com as escolas próximas, para inserir
melhor as crianças.” Para ela, o projeto ajuda as pessoas a aprenderem a respeitar e
aceitar a diferença. “Somos diferentes, porque nós temos uma religiosidade e vivemos
nossa religião, na verdade a vivenciamos nas 24 horas. E conseguimos conquistar a própria
região deste modo.” Ou então: “(...) os vizinhos nos pedem para interferir junto aos seus
netos, pedem para entrar na capoeira para ver se param de vender drogas.”

O Projeto Kizomba, ao modo que nos apresenta, é exemplar na desconstrução


da sinomia criada entre desigualdade e diferença, mostrando que “a própria antítese
esconde a interdependência dos dois termos, já que a igualdade não é a eliminação da
diferença, e a diferença não exclui igualdade” (SCOTT, 1999, p. 209).

Mãe Efigênia, chama a atenção, para o fato de que o Projeto Kizomba atua no
combate ao racismo e ao preconceito:

É importante a gente ver que a população negra sofre muito preconceito. Então
a nossa ideia com o Kizomba, é a cultura afro, é fazer com que as crianças
sintam-se importantes e faça com que elas resgatem de onde vieram, até como
elas chegaram aqui. O nome Projeto Cultural Kizomba significa “festa do povo
que resistiu à escravidão”. (Mãe Efigênia, julho de 2012)

O discurso e a prática do combate aos preconceitos diversos e ao racismo é


bastante presente no dia-a-dia de Manzo, como fica claro nos diversos relatos dos
quilomblecistas, e principalmente de Mãe Efigênia, sobre episódios que eles classificam
como racistas ou preconceituosos. O combate ao racismo e as diversas formas de

200
preconceitos, através de trocas e caminhos cruzados são elementos que a própria
comunidade de Manzo elenca, como necessários na tomada da palavra- política tanto
com os poderes públicos como com setores da sociedade civil172.

Como visto, a palavra falada somada aos gestos, expressões e corporeidades


permite a troca de Ngunzo e possui potência interativa. Assim sendo, optei por descrever
algumas das muitas histórias narradas por Mãe Efigênia a respeito de atos que ela e os
quilomblecistas de Manzo classificam como racistas ou preconceituosos. A transcrição de
algumas destas histórias, exemplifica um dos processos didáticos preferidos de
aprendizados no santo: a palavra proferida é a forma de se “aprender a ler e ensinar os
camaradas” no Quilomblé.

A Invasão da Polícia
Existe aquele preconceito, aquele medo, aquela vergonha. A gente foi muito massacrado. Muito...
Ah Carlos! Você tá doido. Já teve época lá em casa, de eu estar sentada tocando Candomblé e a
policia entrar pela minha casa adentro. Éramos perseguidos. Tivemos este problema. Eu sofri
muito preconceito: negra, mãe solteira, empregada doméstica e mãe de santo.
Polícia entrou lá em casa: - mão na cabeça, [emula a voz em um toma mais grave] barraquinho de
compensado, nem tijolo tinha na Senzala de Pai Benedito, todo mundo descalço, fazendo batuque.
Outra vez, ai, já era o Candomblé, já era feita. A polícia chegou e disse:
- Quem que é o dono disso ai? Quem que é o dono?
Eu disse:
- não tem dono não. Tem dona. Isto, o homem quase me esganando lá dentro e todo mundo
olhando para mim. Era uma Festa para Obaluaê. Eu disse:

172
O conceito de sociedade civil, além de polissêmico, possui uma historicidade. Aqui me interessa o
conceito de sociedade civil de Gramsci. Gramsci parte do conceito de sociedade civil de Hegel. Para Hegel a
sociedade civil representaria a incompletude dos interesses privados em oposição ao Estado que
representaria a eticidade da convivência humana. Portanto, em Hegel Estado e Sociedade Civil encontra-se
em um embate permanente, no qual o bem comum é alcançado pela prevalência do Estado. Partindo da
definição hegeliana, Gramsci afirma que o Estado e Sociedade Civil estão em uma relação de
encadeamentos recíprocos e dialéticos. E invertendo o pressuposto ético de Hegel, em Gramsci a sociedade
civil é o lugar da busca do bem comum. Pois ela comporta as relações sociais, as instituições, as ideologias,
as práticas, os valores, a vida vivida e acrescento um devir-vida. É o espaço de luta para interferir e
transformar a esfera estatal. É na transversalidade da vida vivida e vivenciada, nos meus termos e na
sociedade civil, nos termos de Gramsci, que se assentam as garantias para um projeto político
emancipatório.

201
- tem é uma dona, não é dono não.
- Quem que é, quem que é? [modulação na voz para deixar claro a brutalidade da pergunta] disse
o policial.
Eu virei para ele e disse:
- ela esta aqui, olha ela aqui do meu lado.
Ele então achou que eu estava abusando com ele e começou a gritar comigo. Colocou a mão no
meu braço.
Eu disse:
- tira a mão do meu braço. A dona esta aqui, o senhor não esta enxergando?
- Tô vendo ninguém aqui não, falava gritando o policial.
Ai eu falei assim:
- é que o senhor não esta tendo o poder de enxergar. A dona desta casa chama-se Iansã. A gente
nem falava Matamba, ainda não tinha muito esta divulgação de Angola, então a gente falava
Ketu:
- Ela chama Iansã. Ela que é a Rainha e Dona desta Casa. Ai ele começou a gritar comigo, a fazer
gracinha.
Ele disse:
- eu vou te dar 10 segundos, para você acabar com esta merda ai.
Na verdade ele não falou merda, falou outra coisa pior:
- 10 segundos para acabar com essa porra ai! [de novo, Mãe Efigênia faz entonação da voz para
deixar clara a truculência].
Eu falei: - meu senhor esta casa aqui é do Santo. Eu não tenho casa não. Aqui é do Santo. Do Santo.
Ai ele fez um tanto de gracinha. Falou um tanto comigo. Ai outro policial, não sei se era sargento,
falou:
- deixa a Dona em paz.
Mas foi um vizinho, um vizinho que tinha chamado a policia para mim.

A implicação do Vizinho
Tinha um vizinho de lado.
Todo dia, ele dizia - vou jogar o carro em cima destes pretos, pobres, favelados, macumbeiros173.
Eu não dormia com medo de jogar o carro nos meus meninos. Eu era muito boba. Ele jogava pedra.
Pedra e pedra, meu telhado era cheio de buraco. Na época nem era lona preta, era lona de
caminhão, ficava cheia de buraco de tanta pedra. Um dia ele pôs fogo na lona em cima do telhado.
Quando foi um dia, eu estava saindo para levar roupa para o patrão. Porque hoje não tem mais:
antigamente punha a trouxa na cabeça e ia levar a roupa para a casa do patrão. Ia pegar e levar.
Você via um tanto de neguinha com trouxa na cabeça, hoje em dia, não vemos mais. Daí um pouco
escutei o barulhão. Um grito. Era o carro dele que tinha caído do outro lado, na casa de outra
vizinha. E eu que fui tirar ele do meio das ferragens. Ele era bombeiro ai liguei para lá e eles
acabaram de tirar ele.

173
Manzo, como a própria Makota Cássia já explicou fica no entre-lugar entre a favela e o bairro. Seu acesso
e sua localização ficam nas franjas do morro, mas em uma parte “formal(izada)” para usar os termos do
poder público municipal.

202
Eu tinha uma horta, plantava couve, mostarda, repolho e chuchu. Na época eu deixava para os
meninos comerem chuchu, que fritava naquela gordura de boi. Pois você acredita que o homem
cortou o pé de chuchu. Pastei, pastei muito. Roubaram a Cássia na minha porta com 02 para 03
anos de vida, fui ver ela de novo com 09 anos de idade. E eu chorava à noite por causa da Cássia.
Se eu for sentar para contar minha vida. A Vivi disse que quer escrever um livro da minha vida, mas
ela esta na Espanha. Eu disse a ela: - então minha filha, vai ser bem grosso, com muitas páginas.
Mas sempre com aquele espírito Carlos de que eu vou vencer. Eu vou vencer.

O Preconceito refletido em casa


Em Ouro Preto, no convento, todo dia lá pela hora da Ave-Maria as freiras falavam assim: ajoelha,
reza e faz um pedido. Ai eu ajoelhava e pedia muita sabedoria. O que eu mais queria era
sabedoria. O que mais queria era conhecimento, mas eu não sabia no que, mas queria aprender.
Pois eu via minha mãe naquele sofrimento todo, minha avó. Minha avó pôs fogo no corpo e ficou
nove anos na cama antes de morrer. Eu estudei no Colégio Dom Pedro II, ganhei uma bolsa, mas
minha mãe não me deixou estudar, pois moça pobre e negra tinha que trabalhar de empregada
doméstica, na casa dos outros. Ela não deixou, não tinha que estudar. Era muito preconceito na
época. Eu falo minha mãe tinha preconceito com ela mesma.

Portanto, tomo e aceito a categoria nativa de raça e seus corrrelatos racismo e


preconceito racial, não em seu sentido biologizante e nem tampouco, desconhecendo que
seu uso, ainda que, como categoria social de denúncia resulta em muitos riscos, já que se
trata de uma categoria carregada de imprecisões (Appiah, 1997), mas porque a
identificação fenotípica - per si e pelos outros; negativa ou positiva - é um dos principais
modos de reconhecimento aos Quilomblecistas de Manzo, de seu pertencimento a um
determinado grupo, com o qual ele compartilha uma história comum. Trata-se, pois não
de um fenômeno biológico, e sim de um “sense of peoplehood” de caráter relacional.

A ideia de raça causa inseguranças e pode provocar interpretações muitas


vezes equivocadas acerca da vida dos sujeitos, mas seu uso social como visto nas
narrativas nativas de Manzo carregam “[...] o coração de estórias sobre as origens e
propósitos da nação” (HARAWAY, 1997: 01) e retrata “(...) um trauma que produz fraturas
no corpo político (body politic) da nação – e nos corpos mortais de seu povo.” Se Foucault
tiver razão em sua máxima que “(...) na verdade, nada é mais material, nada é mais físico,
mais corporal que o exercício do poder.” (FOUCAULT, 1985: 147), a raça assim tomada, em
sua forma nativa é fator exponencial para entender Manzo, seus saberes, fazeres, viveres

203
e suas lutas. Os pertencimentos sociais são múltiplos e mutáveis. Não existe raça, tal qual
não existe o negro como identidade monolítica e deve se evitar a reificação de um ser
negro – neste caso abstrato. Reconhecer estes fatos são necessidades para se evitar novas
formas de violência. Entretanto, raça e negro em que pesem seus potenciais de
essencialização, cumpre um papel político, de modo que a negação em falar de raça,
quando os nossos sujeitos de pesquisa os utilizam, seria parte de um projeto acadêmco e
político de negação da exclusão dos negros no Brasil, da qual não participo. Neste sentido,
tal qual, para os membros de Manzo, estar negro além de uma questão – não menor - de
fenotipia é como categoria política, um devir. “I'M BLACK and I'M PROUD. I Feel GOOD”174.

O Kizomba, é por um lado em sua tomada da palavra política à recusa ao


processo social de eliminação da diferença e por outro uma contribuição para a
eliminação da desigualdade em termos políticos, jurídicos, econômicos, materiais, raciais
dentre outros e, para tanto utiliza-se da palavra-política, que internamente remete a
vivência do Ngunzo, mas que externamente produz um discurso inteligível aos termos e
aos marcos do monismo estatal.

O monismo do Estado, nesse sentido, é um conjunto de operações voltadas


para a essencialização, naturalização e literalização de experiencias sociais. Experiências
estas que são múltiplas e polifônicas, o efervescente caótico nos diria Deleuze e Guattari.
A sociocosmológica de Manzo se aproxima do que afirma Goldman (2006), ou seja, as
tentativas de se estabelecer identificações aparentemente muito bem enraizadas podem
valer mais pelo seu desdito, ou seja, pelos movimentos que desencadeiam e menos pelas
supostas identidades que criam ou cristalizam. Realizar a Kizomba é um dos modos de
tornar-se - nos caminhos cruzados e nas trocas entre as diferentes práticas e experiências
vividas e vivenciadas – quilombolecista em Manzo. O Projeto Kizomba retrata

174Tradução livre “Eu sou PRETO e Eu sou ORGULHOSO. Eu me sinto BEM.” James Brown, album Say It
Loud, I'm Black And I'm Proud (1968).

204
exemplarmente na prática a rejeição da escolha entre igualdade ou diferença, rechaçando
a ideia de que constituem uma oposição. Nesta medida, o Kizomba denuncia o “dilema da
diferença” como um “falso dilema”.

Olhado de fora, do lugar de pesquisador, o Kizomba exemplifica e singulariza


alguns dos conflitos com os poderes públicos. Para os quilomblecistas de Manzo, cultura
ou cultura afro é a celebração da diferença, mas não como essência e sim como a
possibilidade do múltiplo, a différance que nos fala Derrida175. Entretanto, o poder público
continua preso ao uno que opera com categorias não somente prescritivas, mas
essencializantes.

175
Derrida, tal qual Deleuze e Guattari, pode ser classificado como teórico pós-estruturalista para alguns,
como filósofo do desconstrucionismo para outros, e ainda como expoente junto a Foucault, Lyotard dentre
outros da chamada French Theory. Cabe ressaltar que as ideias destes autores encontram convergências,
mas existem também as divergências. Não cabe aqui, uma análise mais aprofundada destas similitudes e
diferenças, seja pela questão de espaço, seja principalmente pela nossa incompetência para tanto.
Entretanto torna-se imperioso fazer uma justificativa do porque usar nesta etnografia, de forma
complementar conceitos Deleuze-guattarrianos e Derridianos.
O conceito de différance de Derrida, como já dito sugere a ausência de forma ou vazio de conteúdo. Para
Derrida, a diferença deve se manter aquém e além de todo lugar para não gerar falsos centros, falsas
ideologias; deve, portanto, não ter nenhuma direção ou orientação política, social, artística, filosófica, a fim
de garantir a vigência de todas as possibilidades ou de todas as reivindicações da diferença. Em Jacques
Derrida, a desconstrução considera que o significado é sempre relacional: qualquer ponto é definido por
suas relações com outros pontos, que por sua vez são definidos por suas relações com outros pontos.
Deleuze e Guattari também advogam a 'diferença' (embora não différance). Para estes autores, o Ser parece
existir como uma espécie de fluxo, uma espécie de efervescente caótico, energia indiferenciada na raiz do
mundo – Guattari (2006) em seu texto Caosmose e Esquize falará em linhas virtuais de emergências e
renovações sem equilíbrios dominantes. Assim sendo, o que me leva a unir estes autores aqui é o
compartilhamento de uma antipatia comum a eles, com o pensamento da 'representação'. Com base nos
dados etnográficos de Manzo, uso-os na medida em que a (des) construtiva de Deleuze e Guattari nos
permite fazer a crítica forte ao discurso da ordem, da norma e do poder e a (des) construtiva de Derrida
permite a crítica forte ao discurso da essência substancialista das categorias que questionam a primeira
(des) construtiva. É no espaço dos (des) encontros de ambos que penso ver a potência -valendo me de um
conceito caro a Deleuze e Guattari - da aplicação conjunta de ambas as desconstruções na análise dos
dados etnográficos.

205
A teoria nativa em Manzo usa categorias como raça, cultura, religião176, todas
elas originalmente impregnadas de discursos da ordem, da norma e ossificadas, mas que
na sociocosmológica do Santo transmutam-se em categorias vivas e não essencializantes.
Neste sentido, a cultura, tal qual a raça, a religião e outras categorias discursivas
funcionam tanto sem aspas como com aspas (Carneiro da Cunha, 2009) e a depender da
situ(ação) social pode até ser separadamente ou em conjunção a diferença de que nos fala
Eriksen, mas é quase sempre o jogo imprevisível da différance que nos fala Derrida.

A diferença quando não essencializada ou naturalizada parece permitir


questionar o sistema material e simbólico que legitima o Estado e sua forma-Estado e a
falácia de passar a desigualdade como diferença, e nesta operação questiona também a si
mesma. A imbricação dos diversos elementos do reconhecimento da diferença, de
direitos, de redistribuição material e simbólica e da representação política, demonstra que
as palavras políticas e as outras sociocosmológicas não podem ser confinadas a
determinadas categorias que estabeleçam separações estanques, ou que conforme em
modelos estáticos, aquilo que diz respeito a outras cosmológicas, a outras medidas de
equivalência. Pois como demonstra Manzo, a atuação da forma-Estado, mesmo que bem
intencionada, tende a produzir novas formas de violências estatais. Outros mundos são
possíveis!!! São as sociocosmológicas e suas formas cosmopolíticas que nos permitirão
uma maior inteligibilidade e superação da forma-Estado-Violência. Laroie Exu!!!!177

Neste sentido, tornar-se quilombo pressupõe submeter-se ao Estado para que


de algum modo sua palavra política possa ser proferida e ouvida. Tal processo, se por um
lado demonstra a pragmática e a inventividade do ser político e da tomada da palavra

176
Estas categorias são objetivações e sobrecodificações históricas. E devem ser vistas dentro de um
processo de alcance muito maior. Sua cristalização faz parte da operação política representativa. Ao tempo
que as novas (cosmo)-políticas nos apresentam uma operação política participativa. Não se trata mais de
concessão a um outro nos modos nossos.
177 Como visto o grande mensageiro e tomador de conta dos caminhos cruzados; lugar aonde as
mensagens vão e voltam com declarações de amor ou guerra - a política - portanto.

206
política, e a vivacidade da “interface entre política e cultura” (Alvarez, Dagnino e Escobar,
2000), por outro, é uma denúncia eloquente da violência ordenadora estatal, que em
nome de uma política de cidadania, pode vir a reduzir as experiências vividas e vivenciadas
apenas a uma dimensão menor - violentada e concedida - de cidadania, definida de
antemão pelo Estado, reprodutor da ordem tutelar e iníqua carregada de opressões de
raça, classe, cor, etnia, status, jurídicas, econômicas, culturais fomentadoras de antigas e
novas formas de violência, como nos disse Mãe Efigênia sobre si mesma, carrego o fato de
ser: mulher, negra, lavadeira, empregada doméstica, do Santo, mãe solteira.

Nesta concepção amputada, estatista, estatizante e violenta, a palavra política


é cassada em sua potência e é reduzida a um conceito de cidadania concedida pelo
Estado178, em que: 1- a palavra política deve se submeter aos modelos de desenho
institucional previamente acertado pela organização política e suas arenas, em geral sem
espaços para outras sociocosmológicas; violentando assim, como no caso de Manzo, as
outras socialidades;

2- a palavra política deve se submeter, via de regra, ao campo do econômico


através de programas de redistribuição de benesses socioeconômicas, que no contexto da
violência estatal se transmutam – como no caso de Manzo - em políticas de pouco
accountability, na qual o reconhecimento dos quilombos não pressupõe políticas

178 Em uma mensagem postada no facebook, no dia 03 de abril de 2014, o antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro aponta de maneira um tanto quanto instigante tal operação:
Viveiros de Castro: Mais uma vez, esta é a escolha crucial da esquerda em nosso continente e no presente
momento histórico mundial: pensar os "índios" (= todas as minorias) do planeta como "pobres" versus
pensar os "pobres" como "índios" e agir politicamente nesta direção. Porque pobre é um conceito "maior",
pobre é maioria, pobre é um ~conceito de Estado~ (um conceito, justamente, "estatístico"). Mas acontece
que a imensa maioria (estatística) dessa ~maioria pobre~ é minoria (étnica, política, sexual, racial), atual ou
virtualmente. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. E quem não é? Aqueles que já foram virados
em "pobres" (perdeu, índio! dançou, negro!), ou aqueles que querem fazer os pobres um pouquinho menos
pobres, só o necessário para que eles possam comprar (a crédito) o celular ou o televisor que importamos da
China. Mas antes que se consiga transformar todos os índios do mundo em pobres, os pobres terão se
retransformado em índios. E aí, quem tiver de sapato não sobra.

207
diferenciadas. O não reconhecimento das experiências vividas e vivenciadas e as outras
palavras políticas, levam a um discurso de reforço do ordenamento violentador, a
diferença é resumida em termos de um discurso etnocêntrico - onde os termos das nossas
(cosmo)políticas tornam-se a única cosmológica- desconsiderando-se os termos das
demandas ou necessidades dos sujeitos da palavra política.

Outrora (Marques, 2009 a, 2009 b, 2012 a, 2012 b, 2012 c) Marques e Gomes


(2013) e Marques, Simião e Sampaio (2012 d) argumentei que reivindicação no presente
da identidade “somos quilombolas” funciona como um reforço para institucionalização de
uma cidadania179, que questiona os efeitos de uma antiga legislação colonialista e
escravocrata. Tal agurmentação, afectado por quatro anos de convivência mais direta com
Manzo continua válida, mas merece um anteparo: as falas de nossos parceiros desta
reflexão política nos remetem a todo tempo a sensações, sentimentos, sentidos, a
corporificações que são os próprios modos de ser e viver no Candomblé. Ao fazê-lo, ao
tornar explícitas tais vivencias em categorias, como direito, território, política, denunciam
na prática que o discurso do Estado, reduz em monoteicas e monotécnicas, as potências
múltiplas, fractais e infinetesimais da política. Manzo nos informa que a forma-Estado e
sua normatividade-juridicidade ainda que bem intencionada, em geral, não consegue
romper e ao contrário, acaba como nesse caso, por aprofundar a forma hegemônica de

179
Em outras palavras, precisam se impor, enquanto um coletivo étnico, e, para tanto, não mais importa o
arcabouço “jurídico-formal historicamente cristalizado” a despeito dos quilombos, que existira na estrutura
jurídica colonial e imperial (sempre com características restritivas e punitivas), e que se encontrava ausente
do campo jurídico republicano até a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em
1988. Importa, aqui, o direito adquirido no art. 68 dos Atos Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT).
Nesta nova visão a categoria remanescentes de quilombo passa a depender do auto-reconhecimento por
parte dos atores sociais envolvidos. Se o conjunto legal - p.ex. Decreto 4887/2003, Art. 68 do ADCT,
Convenção 169 da OIT referendada pelo legislativo e executivo nacional - exige a auto-proclamação como
“remanescente”, o processo de afirmação não passa pelo resíduo, pela sobra ou “pelo que foi e não é mais”,
senão pelo que de fato se é vivido. Na versão ressignificada o termo remanescentes de quilombo exprime
um direito a ser reconhecido em suas especificidades e não apenas um passado a ser rememorado. Ele é a
voz da cidadania autônoma destas comunidades, tão bem expressa na fala de uma liderança de Brejos dos
Crioulos, comunidade quilombola do norte mineiro: “quilombos não são do passado, eles têm necessidades
vivenciadas no presente.”

208
organização, de ordenamento e de agrupamento social e geográfico, quando lida com
outras cosmopolíticas180.

6.4 Tornar-se quilombola como palavra política ou como falar de categorias


reificantes como raça, etnia e religião

Como dito, a categoria nativa de raça é utilizada em Manzo não em seu


sentido biologizante, pois se trata de um “sense of peoplehood” de caráter
transversalizado. Mas então como se constrói este processo? Segundo os quilomblecistas
de Manzo, a situação atual em relação ao preconceito e racismo é melhor do que foi no
passado. Cássia por exemplo, nos afirma que:

Nós temos uma relação muito boa aqui porque nós conseguimos conquistar,
marcar o nosso território. Eu falo que a sensação que a gente tem aqui é de um
verdadeiro quilombo porque a gente se sente livre. Nós sabemos que, o que a
gente faz aqui é manter, não é resgatar, a gente mantém a nossa tradição, a
nossa cultura aqui e tentamos repassar isso para a população, para comunidade
de entorno, para todas as pessoas que visitam o Terreiro, que frequentam o
Terreiro. A nossa ideia é essa: mostrar como nós somos e conquistar as pessoas
pelo que a gente é. E nós conseguimos uma boa resposta, um resultado positivo
disso tudo. A gente fez roda de capoeira. Agora não podemos mais. Mas sempre
no primeiro domingo do mês a gente fazia uma roda de capoeira na rua. Há sim
uma abertura, nós pedimos doações vestidas de baiana de porta em porta para
fazermos a festa das crianças. E a gente tem uma boa resposta disso. (Makota
Cássia, julho de 2012).

Outro relato, de Makota Cássia situa essa melhora como reflexo da tomada da
palavra política para valer-me do termo, cunhado pela própria Cássia:

180
Sou grato aos amigos Amanda B. Santos, Gustavo Jardel Coelho, Sarah Schmidt, Ric Oliveira pelos muitos
papos, primeiro no ambiente assimétrico da relação professor-aluno que conseguimos logo simetralizar na
relação de amizade pelos corredores e pracinha da Fafich, pelos bares e botecos, pelas reuniões etílicas,
pelas festas e outras socialidades, pelas conversas tangíveis e intangíveis onde trocamos
anarcoarqueoantropologias. O frescor e a radicalidade de algumas das provocações, questionamentos e
trocas destes jovens antropólogos estão em latência assentadas nos caminhos cruzados deste capítulo.

209
Tínhamos problemas com a discriminação. Quando eu era pequena mesmo, por
minha mãe ser mãe solteira. Quando ela veio para cá: eles achavam que os
filhos deles não eram dignos de andar com a gente. Mas hoje nós os vemos
pedindo nossa ajuda, vários nos pedem para interferir junto aos seus netos, para
tirá-los das coisas ruins, pedem para entrar na capoeira para ver se param de
vender drogas. Antes éramos proibidos de entrar na casa dos vizinhos, quando
nós éramos pequenos. Hoje, parece que este tabu foi quebrado, pelo exemplo.
Hoje eles respeitam. Tanto é, que o sacolão aqui embaixo, é evangélico e somos
muito bem recebidos e bem tratados. Eles respeitam mesmo quando estamos
vestidos com roupas de Santo, roupa de Candomblé. Hoje, neste bairro, eu
posso andar ele inteiro vestida de baiana que o pessoal me cumprimenta: “- Oi
Cássia, tudo bem e sua mãe está bem.” Ninguém fala olha lá: lá vai a
macumbeira. Aqui nas festas para Erê, os filhos dos evangélicos vêm escondidos
para comer os doces, balas, e as comidas. Os pais sabem, mas fingem que não
estão vendo. (Makota Cássia, fevereiro de 2012).

A situação atual, melhor do que a do passado, em relação ao preconceito


religioso, de cor e o racismo, coaduna com um processo em que a ritualização funciona
como valorização da diferença enquanto um discurso ético e estético, o “trabalho que
desenvolvemos é reproduzir aquilo que aprendemos, pela busca da nossa ancestralidade,
do reencontro” me disse Cássia certa vez.

Mãe Efigênia, nos conta mais uma história que ilustra bem, este processo:

Eu tive muito problema no inicio. Vizinho que chamava polícia. Mas eu enfrentei
o preconceito e venci, enfrentei a cor, a raça, a religião e venci. Teve dia de a
polícia chegar e querer parar o ritual. Por isto, que naquela época ficou
conhecida a minha frase: “- eu queria ser livre.” Pois naquela época, os
evangélicos colocavam seus alto-falantes, tocavam e falavam, os católicos
podiam fazer procissão como fazem até hoje, mas se eu pegasse meus tambores
e colocasse na Praça Sete181 teria cacetada, seria chicoteada, apedrejada. Corria

181
Praça Sete de Setembro conhecida como Praça Sete, é a mais movimentada da cidade de Belo Horizonte.
Está localizado nos cruzamentos de duas grandes avenidas, a Afonso Pena e a Amazonas, e é entrecortada
pelas ruas Rio de Janeiro e Carijós. Na confluência das avenidas, localiza-se o Obelisco conhecido
popularmente como "Pirulito", marco comemorativo da Independência do Brasil. É uma agulha feita de
granito apoiada sobre um pedestal adornado por postes em cada uma de suas arestas e sem passeio no
entorno. A praça difere do formato mais comum às praças, conformando quatro praças independentes –
melhor seria chamar de passeios públicos -, um em cada uma das vertentes do cruzamento. Junto com a
Praça da Liberdade, antiga sede do executivo estadual, a Praça Raul Soares, e a Praça de Estação são as
quatro principais praças da cidade. Na planta do projeto de Belo Horizonte, o traçado, como já apresentado,
da cidade foi desenhado a partir de uma cruz formada por duas grandes vias que se cortam
perpendicularmente. O ponto de intersecção, onde haveria uma praça e marcaria o centro da capital é hoje
o Obelisco. Seu contorno atual foi fruto de uma reforma de 1971 e o seu entorno sempre foi marcado por

210
risco de ser algemada e ir para cadeia. Ai alguém me perguntou: o que a senhora
queria hoje? Eu falei: “-ser livre. Botar um tambor na Praça Sete e tocar uma
sessão. Eu posso fazer isto? Mas quem sabe um dia eu possa.” E chegou o dia. E
eu consegui fazer isto. Foram os meus tambores que foram para a Praça Sete,
toquei de Exu a Oxalá e dei uma sessão em plena Praça Sete. Realizei meu
sonho. Foi logo que inaugurou o Quilombo lá em casa, quando recebi a
jubilação. Foi acho que 2007 ou 2008182, um negócio assim. E daí que temos a

prédios que são marcos da cidade como o Cine Teatro Brasil, o Edifício Banco da Lavoura, o Edifício do Banco
Mineiro de Produção projetado por Oscar Niemayer. A Praça Sete foi e é o centro comercial, financeiro,
político, social e cultural da cidade. Em seu entorno são realizadas as comemorações de campeonatos dos
clubes de futebol da cidade, comemorações de vitórias eleitorais e festivais como o Internacional de Teatro,
é o ponto de encontro das manifestações políticas e partidárias, dentre outras. Em 2003 cada um dos quatro
quarteirões fechados ganhou o nome de quatro grupos étnicos que povoam hoje, Minas
Gerais, Krenak, Pataxó, Maxacali e Xacriabá. As quatro ruas transversais a Praça já possuía nomes de Tribos
Indígenas: Tamoios, Tupinambás, Carijós, Guarani, e fora definido deste modo pelo projeto de Aarão Reis
em homenagem, segundo o construtor da cidade aos primeiros moradores da Nação. Na última reforma da
praça, no ano de 2003, foi construído no vértice entre Avenida Amazonas, Avenida Afonso Pena, Rua Rio de
Janeiro e Tamoios uma Tribuna na forma de um palco que pode ser usado pelos interessados para expressar
suas opiniões. E muito os fazem, sendo comum, o parlatórios estar ocupado. Anos atrás em outra pesquisa
que participei de Inventariamento das Casas de Umbanda e Candomblé, o líder de uma destas Casas me
disse algo próximo a seguinte ideia: a Praça Sete com o Obelisco fálico ao centro e seus cruzamentos em um
complexo formado por 07 vias, é um local de comunicação e por excelência a morada de Exu.
182
BH repudia invasão de terreiro Por: Redação - Fonte: Afropress - 6/2/2007
“Belo Horizonte - Apesar da chuva, cerca de 250 pessoas, representando 100 terreiros da região
metropolitana de Belo Horizonte, além de lideranças negras e anti-racistas compareceram ao Ato contra a
Violência Policial em Terreiros de Candomblé, que aconteceu na tarde desta terça-feira (06/02), na Praça da
Rodoviária, Centro de BH.A concentração começou por volta das 15h30. Em seguida os manifestantes
saíram em passeata pela Avenida Afonso Pena, terminando na Praça Sete, onde foi feito um Xirê - ritual em
que uma sequência de danças é executada em homenagem a todos os Orixás. O Ato foi um protesto pela
invasão pela Polícia Militar mineira, no último dia 1º de fevereiro, da Comunidde-Terreiro Unzo Atim Nzaze
Yia Omin (Terreiro da Nação Bantu de Angola), na Rua Gurutuba, bairro Santo André, sob a alegação de uma
denúncia anônima de cárcere privado. A operação, iniciada pelo tenente PM Dálrea de Souza Braga,
demorou cerca de uma hora. De arma em punho a tenente e os policiais que a acompanhavam – a maioria
composta por negros – desacataram o Pais de Santo e ameaçaram prender os sacerdotes e as pessoas
presentes.
Também tiraram fotografias das dependências da comunidade. A tropa composta por 20 policiais, todos
armados, não pediu nenhuma documentação do terreiro (que está documentado e legalizado) e só se
retirou quando os Pais de Santo ameaçaram chamar o CENARAB – Centro Nacional de Africanidade e
Resistência Afro-Brasileira. Segundo Makota Célia Gonçalves, coordenadora nacional do CENARAB, o caso já
foi denunciado ao Ministério Público Estadual que pediu a abertura de inquérito e também foi levado à
Corregedoria da Polícia. Também o Batalhão da PM foi notificado, bem como o Ouvidor da Seppir, Luiz
Fernando Martins. Por iniciativa própria, os responsáveis pelo terreiro já descobriram que a denúncia
anônima falsa foi feita pelo 190 por uma ex-adepta da comunidade, chamada Rosa, que virou evangélica de
uma Igreja do ramo pentecostal.”
http://br.dir.groups.yahoo.com/group/candomble_nacao_angola/message/379 consultado em 06 de
janeiro de 2013.

211
caminhada até hoje. Este ano teve a que você foi 183. Mas este ano não foi bom.
No primeiro ano sim, a Celinha conseguiu reunir uma multidão não sei como ela
conseguiu. Tinha mais de duas mil pessoas. Hoje já é mais normal. Mas muita
gente ainda não aceita. Mas eu não tô importando com muita gente. Eu quero é
fazer o que me faz bem. Conseguimos apoio de outros religiosos e raças,
budistas e mesmo evangélicos. Temos lutado muito para acabar com a vergonha
que sentimos e com o preconceito. (Mãe Efigênia, julho de 2012).

O uso do termo raça, portanto, pelas lideranças de Manzo, porta a


historicidade dos sujeitos sociais e são categorias acionadas em situações sociais. Em que
a agência e a capacidade de reinterpretação dos agentes interagem em contextos
específicos. Portanto raça, em Manzo não é nem categoria substancializada e
essencializada, mas tão pouco um postulado metafísico e deslocado dos contextos sociais.

183
Refere-se ao ano de 2012. Quando acompanhei em um fim de tarde a concentração e no começo da
noite a caminhada contra a intolerância religiosa. Nesse ano, o ato contou com a presença de praticantes
das religiões de matriz afro-brrasileira, movimentos negros como o Unegro, o Educafro, dentre outros.
Apesar de quantitativamente não ter sido um número tão expressivo de presentes, foi impactante a
ocupação de uma das faixas da Avenida Amazonas no sentido Praça Sete/Praça da Estação, os religiosos
vestidos com suas roupas cerimoniais, com suas ferramentas saíram em caminhada acompanhados por um
trio elétrico sobre o qual, vários kambonos, ogãs, pais e mães de santo entoavam pontos e cantigas
religiosas entremeadas por discursos contra a intolerância e a favor da diversidade religiosa, racial, cultural.
No chão, outros tantos filhos de santo, ao som da música dançavam ritmadamente, em acordo com a
entidade ou Inquisse/Orixá homenageado e distribuíam centenas de flores nas cores branca e amarela aos
populares, em sua maioria nos pontos de ônibus. Outra parte dos filhos também paramentados com suas
guias, mojás, adjá, abençoavam os que pediam com águas de cheiro que carregavam em vasos por cima de
suas cabeças. Apesar de o horário ser de trânsito pesado, a acolhida em geral foi bastante boa, com vários
dos cidadãos presentes nos passeios aplaudindo, recebendo as rosas e água de cheiro, alguns inclusive
aderiram à parte da caminhada, outros ainda como pode perceber entoavam parte dos pontos cantados e
tocados pelos ogãs, kambonos e pais e mães de santo. A caminhada seguiu Avenida Amazonas abaixo em
direção a Praça da Estação, onde houve novas falas e onde se fez um pequeno e simbólico xirê. Na Praça já
estava aguardando o grupo, duas Guardas de Congo e Moçambique de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, que em momentos separados e depois juntos tocaram seus tambores. “eu também sou
feiticeiro e cantador/ Eu também ouço historias na voz do tambor/ Eu também sou guerreiro e sonhador/ eu
também sei cantar para não gritar de dor.”
A Congada é segundo diversos de estudos que pode recolher, nos anos de 2003 e 2004, por ocasião da
realização do Levantamento de Bens Afro-Brasileiros na cidade de Belo Horizonte, é apresentada como a
manifestação religiosa por excelência da negritude mineira, de modo que, apesar de sua característica mais
vinculada ao mundo rural, ela se mantém na urbanidade da cidade de Belo Horizonte. Segundo outro
levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais da UFMG- NuQ
(2013) contam-se pelo menos 20 Guardas ativas na cidade de Belo Horizonte.

212
Para a Mãe, o negro ainda não é totalmente liberto, “recebemos uma carta de
alforria. Mas eu digo: eu não sou uma negra forra. A diferença é que o negro trabalha e
recebe, mas o preconceito continua.” Para ela, a aparência e os modos ainda são sinais
que ensejam preconceitos e discriminações “você continua sendo barrado pela aparência,
pelos modos”.

“Eu vim carregando todo preconceito e enfrentei todos eles” gosta de dizer a
Mãe, antes de enumerar alguns deles: negra, mulher, mãe solteira, doméstica, do santo,
baixa escolaridade. Que de tão forte, leva a Mãe de postura quase sempre altiva diante
dos preconceitos e racismos a titubeios: “O negro ainda não é liberto, e nunca vai ser. Esta
é uma ilusão, nunca vai ser” para logo se corrigir: “melhorou bastante. Mas ainda não é
liberto.” Em outra ocasião a Mãe afirmou:

Às vezes os meninos chegavam dizendo que os coleguinhas haviam dito que


calça branca era de macumbeiro em tom de gozação e eu dizia: assume que é.
Você é mesmo!!! E assim acaba a graça. Mas dentro da sociedade o preconceito
ainda existe. Vocês e nós estamos lutando contra isto, mas vocês sabem que
tem, não adianta falar que não tem. Hoje para um negro subir um degrau ele já
tomou vários tombos, já tomou muito tombo, mas como nós somos teimosos,
nós chegamos até lá. (Mãe Efigênia, fevereiro de 2012).

Um dos presentes a conversa então afirma: “- Que assim seja.” Ao que


respondeu Mãe Efigênia: “- Axé. Meu filho. Axé”. Em Manzo, portanto, tornar-se
quilombola pressupõe no discurso nativo uma remissão a ideia sociológica de raça – como
um complexo processo de significações, social e cosmológica, ainda que muitas das vezes
reduzidos de sua densidade enquanto uma différance.

Tornar-se quilombola, pode ser dentre outros, um processo de produção de


demandas de reconhecimento, a tomada da palavra política vale-se contigencialmente de
um discurso de identidade produzido transversalmente num processo de interlocução
situado com e contra: a comunidade, as fronteiras, a cidade, a forma-Estado, a forma
política dominante, dentre outros. Ao produzir nesses termos identidades, produz-se uma
vez mais a diferença. Mas não apenas a diferença caricaturizada, caricatural e autorizada

213
desde os organismos externos e de controle. O processo contigente não produz apenas
uma etnicidade permitida e controlada pela forma-Estado.

A tomada da palavra política e a cosmopolítica por se basear na


processualidade da vida vivida e da vida vivenciada é múltiplo, inacabado, instável,
experimentado como um caminho cruzado. Neste sentido me parece que a operação
teórico-antropológica de denominar tais cosmológicas como étnicos ou como uma
assunção identitária é operação necessária, porém insuficiente para descrever uma
comunidade de Santo tornada quilombo urbano. O termo identidade étnica tem sua
validade como contigência e deve ser exaltado nesses termos, mas deve-se tomar cuidado
para que não se incorra no erro de resumir o processo de tornar-se quilombola em uma
qualidade primordialista. Tornar-se quilombola - in becoming – em Manzo é um devir-
quilombo, onde inexiste uma identidade substancial184.
Em um texto mais antigo de 1981, e hoje relativamente pouco lido, “A
autodeterminação indigena como valor” Viveiros de Castro, afirma a respeito da questão
indígena, mas que creio com suas devidas especificidades caiba a questão quilombola:

A autodeterminação, como ideia, sublinha ao contrário o caráter de Sujeito dos


povos indígenas, sublinha sua diferença ativa; sua capacidade virtual de definir
os rumos da própria história. A autodeterminação implica um direito essencial: o
direito à diferença, direito difícil de se conceber e de se conceder; de resto,
direito que não se concede, e sim que se reconhece. Assim, em vez de dizermos:
“é nosso dever” (fazer isto e aquilo com e para os “nossos índios”) , passamos
antes a reconhecer “não é nosso direito” decidirmos pelos índios o que é melhor
ou pior para eles. Não porque sejam puros, bons, respeitadores da ecologia ou
donos de sabedoria milenar, e sim porque são outros, outros Sujeitos, definidos

184
Uma vez mais, devem-se levar a sério as recomendações de M. Carneiro da Cunha: “o que se ganhou com
os estudos de etnicidade foi a noção clara de que a identidade é construída de forma situacional e
contrastiva” (Cunha, 1985: 206). Do contrário, nossa teoria e nossa prática terá sido tendenciosa em favor
das supostas necessidades do Estado contra as aspirações dos sujeitos do direito. E mais ainda no caso de
Manzo, a realidade etnográfica, o proceso dinâmico, pleno de desestabilização, não se trata apenas de
encontro de fronteiras e sim da relação entre sujeitos plenos e seus incomodos dentro dos significantes
insuficientes.

214
por uma interioridade irredutível, a menos que por violência, à nossa
sociedade.” (1981:235) (...)
Quando falamos em autodeterminação, queremos sempre dizer:
autodeterminação face ao Estado brasileiro. (...) a noção de autodeterminação
possui um sentido imediatamente político (...) paradoxalmente, vivemos a exigir
que o Governo brasileiro, através da aplicação correta da legislação existente,
seja ele mesmo um agente da autodeterminação (face ao Estado!) dos povos
indígenas. Tal paradoxo deriva de outro, próprio do lugar do Estado no Brasil: o
Estado é, ao mesmo tempo, um dos maiores inimigos e uma das poucas fontes
de proteção aos direitos dos povos indígenas. Eis porque tanto pedimos ao
aparelho de Estado que se puna a si mesmo, que aplique as leis que o
constituem contra os crimes que comete ou acoberta.
O Estado não é monolítico (...) e o Governo não é o Estado. É certo. Mas há
quem sustente que o Estado nacional, a forma-Estado, é essencialmente
antagônica a qualquer autodeterminação autêntica. E há quem diga mais: que as
minorias — e os índios como minoria étnica — são a única força que, por sua
existência, desafiam (mesmo que apenas conceitualmente) um sistema de Poder
em que ricos e pobres, dominantes e dominados, estão unidos pela dominação e
unificados por um Estado que existe para e pela imposição de uma Linguagem
Majoritária, uma Norma, que controla, dilui e absorve toda variação e toda
diferença. As minorias seriam, assim, o Outro do Estado, e o direito à diferença
algo incodificável pelo Direito. (1981:235-236)

Parafraseando Viveiros de Castro deste mesmo texto, diria que a questão


quilombola como se apresenta em Manzo, “por ser política, só pode fazer sentido dentro
de uma discussão sobre a democracia. E a democracia não é simplesmente o voto
universal, a eleição de alguns representantes por um povo abstrato, indiferenciado e
automatizado. É, sobretudo, a aceitação de diferenças (...)”

Tornar-se quilombola, inspirados nos termos de Viveiros de Castro (2012) é um


relacional e não apenas um relativo: visto que, relativo é um absoluto que a sociedade
envolvente cria, para encapsular a diferença em si. Como lembra Viveiros de Castro, a
realidade indígena – aqui quilombola - deve ser estudada, como constituindo desde o
início um para si, isto é, como um sistema autointencional de relações.

Tornar-se quilombola em Manzo, também é transversalização da religiosidade


não está desprovida de suas funções integradoras, como supõe a teoria da secularização.
A religião não se deslocou para o mundo privado, ela sempre esteve transversalizando o
mundo privado e o mundo público: aliás, mundo público versus privado no que se refere
ao religioso já é uma cosmologia ocidental de organização política; o individuo não se

215
tornou autônomo em relação a esfera religiosa, ele é caminho cruzado entre autonomia
individual e pertencimento religioso, seja nas dimensões das socialidades, seja nas
dimensões cosmológicas.
Uma crítica à teoria da secularização que os dados etnográficos de Manzo, nos
permitem diz respeito a preponderância da análise meramente simbólica do sagrado
nessa teoria, em detrimento a uma análise conjugada dessa com o aspecto performativo
do campo religioso. Para as religiões de Matriz Afrobrasileira, parece-me que uma
possibilidade mais interessante seria colocar em foco os processos e as práticas religiosas
como participação e não somente os símbolos como representação, e deste modo, nos
permite entender o processo de tomada da palavra política uma vez mais como a
sociocosmólogia se transversalizando em cosmopolitica.
Como apontado a dois capítulos anteriores, erro semelhante a este, pois
animado pela mesma lógica foi cometido por R. Bastide em seu sistema classificatório
hierárquico e essencialista a respeito da relação Umbanda e Candomblé, que recusei
àquela altura com base nos dados etnográficos desta pesquisa. Agora aqui uma vez mais
poder-se-á recusar outra opção de Bastide. Herdeiro da sociologia francesa
durkheminiana, Bastide segue a tendência cristologica e em seus estudos sobre o
candomblé, acaba por separar, transcendência e imanência, em polos opostos,
privilegiando-se o polo da transcendência. Somente deste modo, pode-se entender a
análise bastidiana do sacrifício como abnegação e acesse. Como já dito, em capítulos
anteriores, aquilo que as teorias que estudam o Candomblé de modo geral e o senso
comum externo aos Terreiros, chamam de “sacrifício animal”, é definido nos termos
êmicos de Manzo, como uma sacralização alimentar. Ato de estabelecimento de alianças
e de realização da troca de Ngunzo, a partir da comensalidade. A comensalidade, como
dito, abarca não somente a troca de Ngunzo com os Inquisses, mas também a troca de
Ngunzo entre todos os participantes dos rituais.
Ao Inquisse conforme registrado na literatura e visto em Manzo, se oferecem
as partes dos animais que contem o Ngunzo, em geral a cabeça, as patas, o sangue, alguns

216
órgãos internos, as demais partes dos animais são preparadas para o consumo dos
membros do terreiro e seus convivas. O ritual de alimentar o Inquisse e de lhe oferecer
ebós participa a troca, sendo este um elemento vital dos Terreiros e uma obrigação dos
iniciados. Entretanto, este também é um momento de socialização e muitas das vezes –
principalmente no passado – momento em que membros do culto, obtinham distribuição
proteica, visto que não podiam consumir estes alimentos, no seu dia-a-dia em razão dos
custos. O ritual de alimentar o Inquisse e de lhe oferecer ebós participa a troca, sendo este
um elemento vital dos Terreiros. Para não restar dúvidas, cito a passagem esclarecedora
de Lucas a este respeito:
(...) as pessoas às vezes pensam que a gente mata bicho por matar. Não é assim,
tudo tem que ser sacralizado. (...) Então a gente faz os rituais para pedir a
benção e a autorização, pois não foi a gente que gerou e criou aquele animal ou
a folha. (...)A gente não sacrifica animais, nós os sacralizamos. Sacrifício é matar
na indústria da carne, onde se mata um boi, machuchando o coração dele, isto é
sacrifício. Nós não, nós cortamos os animais para consumí-los. Nós e os Santos
comemos o animal. Nós não machucamos e nem estressamos os animais, e eles
precisam estar de acordo. Vou te dar um exemplo, antes do corte tem todo o
ritual, faz se as rezas, recolhe-se as folhas, pede se permissão para usar as
folhas, mas se o animal não quer, nada feito, ele não é levado a força. Afinal se
ele não foi é porque não está pronto. Como vai se comer o que não se está
pronto ou o que não quer ser comido. É assim, por isto sacrifício é na industria.
No Candomblé, eles possuem vontades, lá na casa de pai mesmo tem um
cabrito, aquele bicho é um capeta, mas todos tem amor a ele. Ele não quis ser
cortado. Preparou-se todo o ritual e na hora ele refugou. Hoje tá lá têm anos
que vive conosco. Não é sacrifício é sacralização. Mas é assim mesmo, uma vez
fui levar uma senhora mais velha a quem devo respeito e que tinha virado
evangélica ao culto e aí o pastor descendo a falação no Exu e Pombagira que era
o capeta e coisa e tal. É assim, desentendimento, um mês depois fui visitá-la e
por respeito a ela, fui novamente ao culto. Chegando lá, tá o mesmo pastor
cheio de rosas vermelhas, mas aí já era banho de rosa vermelha do senhor. Aí
pode né, [rs]. Ele passando rosa vermelha, sal grosso para tomar banho. Agora
pensa bem, você está entendendo. Então é um ritual, mas as coisas são
deturpadas. Vivemos ainda em um país racista. E assim que se classifica: o cara
pobre de Kassute com uma conta no pescoço vai ser mal tratado, mas se ele
estiver com uma bíblia debaixo do braço, não importa quem ele é e o que ele
fez, vão tratá-lo como sendo uma pessoa de bem. Esta é uma sombra que
carregamos. Todo mundo come no candomblé, os inquices, nós e vocês. Não é
algo de satanismo, de morte, ao contrário, é troca vital, mas o que resta é o
preconceito. Outras religiões fazem é assim no judaísmo, nos cristãos, tá na
bíblia, dia destes eu via na TV a cabo um documentário é assim em várias partes
do mundo, mas se tem preto no meio, aí é errado, é coisa ruim. O capeta é
sempre o homem preto.

217
Portanto, a dimensão sensorial e “dinamogênica” encontram-se presente no
Candomblé de Manzo e longe de “privatizar-se”, as religiões de matriz afrobrasileira, pelo
menos, o caso de Manzo, constitui-se em agentes que transversalizam a palavra na
construção do espaço público.

Montero (2009 a) tem razão quando argumenta que a teoria da secularização


de Weber naturalizou e acrescento eu universalizou a visão protestante do espaço
público, e que as sociologias e antropologias posteriores, não foram capazes de se libertar
desta naturalização:

Ou, dito de outro modo, o conceito de “secularização” talvez tenha deixado de


ser útil como categoria analítica, tendo-se deslocado, progressivamente, para a
esfera normativa.
Isto não significa que estamos em desacordo com Max Weber quando o autor
afirma, em sua teoria geral da secularização, que a emancipação histórica da
esfera secular do domínio do religioso teria sido um processo inerente à
modernização das sociedades que culminou, como sabemos, com a separação
jurídica entre Estado e Igreja. No entanto, mais do que reiterar a necessidade
abstrata dessa separação para que a modernização tenha lugar, parece-me ser
interessante e profícuo observar como cada processo histórico particular pro-
duziu esse tipo de ruptura, de modo a compreender como uma sociedade espe-
cífica configura para si aquilo que ela entende como esfera civil.” (Montero,
2009 a:09-10)

Acompanhados de Montero, o que aprendi em Manzo, confirma que a


separação entre o domínio do religioso e o domínio do político não é autoevidente e as
religiões são também parte do processo de construção dos critérios de público e privado.

O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião,
não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são
historicamente específicas, mas porque esta definição é ela mesma o produto
histórico de processos discursivos.(Asad, 2010:264)

Assim sendo, em Manzo como visto, o candomblé é um jogo altamente


político que gira - para usar um expressão êmica - um circuito que permite tal qual sugere
Asad (2010) a produção de desejos, expectativas, sensibilidades, comportamentos e
interações tangíveis e intangíveis. Asad se aproxima e complementa o argumento
apresentado ao longo do trabalho, a multiplicidades como uma ordem de intensidade e
não de quantidade. Em termos Deleuzeguattarrianos o Candomblé pode ser visto como

218
uma multiplicidade que assegura a existência presente, o porvir, o devir e as necessárias
relações com a ancestralidade, portanto refratários a totalidades, totalizações e
fenomenologias representacionistas.

Este jogo altamente político e sociocosmológico característico de uma religião


dinamogênica é visto, pela forma-Estado como um perigo ao seu modelo de organização
secularista. Montero (2011) tem argumentado que o discurso secularista modela uma
esfera pública e espaço cívico, que nega a pluralidade e tem como referência a civis cristã
que busca asssim: definir a linguagem, o que pode ser dito e pensado como legítimo nesse
espaço, o que e o como dizer. Em resumo as formas legítimas de reivindicar direitos. No
qual a tomada da palavra política, para valer-me da afirmação êmica, só é permitida, se
for dentro dos mecanismos, como visto, predefinidos pelos operadores da esfera pública.
Para Montero (2012 a:176):

A esfera pública não pode ser pensada, portanto, como um espaço vazio. Em
nossa maneira de ver, ela deve ser tratada como um fluxo de interações
discursivas que carregam as incertezas, as aspirações, os medos e as esperanças
de falantes e ouvintes.

Concorda-se com Montero (2012 a & b) quando a autora afirma que a esfera
pública é constituída de fluxos discursivos e o processo passa pela definição da
legitimidade da fala e do que pode ser dito. Neste sentido, Manzo faz a tomada da
palavra política e adentra ao espaço público185, por exemplo, com o Kizomba: através das
rodas de samba e capoeira onde transversalizam seu Ngunzo e fazem as trocas e
caminhos cruzados de sua sociocosmológica em termos de uma linguagem compreendida
pelo discurso da cosmológica cristã186.

185
A tomada da palavra política como estratégia de ação coloca os filósofos políticos de Manzo, mais
próximos de Toqueville do que de Weber. O espaço público trata-se menos de laicidade e mais de
convivência de diferenças.
186
Rita Segato (1992) diz algo semelhante, mas de outro modo a respeito da ideia de família na cosmológica
do Candomblé: “Basta dizer, por ora, que, quando o mito parece obedecer, submisso, a linguagem
institucional da família, tal qual esta é construída pelos valores dominantes na sociedade brasileira, o que ele

219
A tomada da palavra política opera num contexto político específico de luta
contra o racismo, o sexismo, o preconceito de classe, origem, cor, status e a exclusão
social, e torna possível questionar as políticas que em nome de uma cidadania um tanto
quanto esvaziada, abstrata, indiferenciada e automatizada acaba por consolidar o Estado
como uma forma de violência; que busca dissolver as palavras políticas a apenas uma de
suas dimensões, a de linguagem de poder, na qual o lócus máximo deste mesmo poder é a
própria forma-Estado.

Quilombo como um dos caminhos cruzados do Candomblé na esfera pública é


tomada da palavra política, pois parte de uma sofisticada visão de política em um jogo de
espelhos em que se combinam momentos de visibilidade e invisibilidade, uma ocultação
na revelação e uma revelação na ocultação... tornar-se quilombola, ou seja, incorporar-se
na forma do outro, é também uma subversão. Dito de outro modo, tornar-se quilombola
como Ngunzo é desnudar a insuficiência dos conceitos, categorias e elementos
normativos, jurídicos e estatais da própria categoria.

6.5 O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra política e o território


quilombola como patrimônio ritual

6.5. 1-Território-Ritual

Concorda-se com Da Matta (1978:11), quando este afirma que os ritos


enquadram uma coerência seja ela grandiosa ou medíocre que esta aquém e além das

de fato faz é desmontá-la, desconstruí-la, mostrando-nos a fragilidade desta linguagem frente a realidade
das relações sociais.” No original: Baste decir, por ahora, que, cuando el mito parece obedecer, sumiso, al
lenguaje institucional de la familia, tal como ésta es construida por los valores dominantes en la sociedad
brasilera, lo que de hecho hace es desmontarla, desconstruirla, mostrándonos la fragilidad de este lenguaje
frente a la realidad de las relaciones sociales.

220
representações. O ritual187 é um processo dinâmico e cheio de significados que são
dramatizados e performatizados188. No caso de Manzo, o toque – como dito a festa para o
Santo – é um exemplo de ato performativo de um processo maior e contínuo, o tornar-se
comunidade quilombola e a tomada da palavra política. O Toque é um momento
extraordinário - mas não necessariamente extracotidiano - pelo menos em Manzo. Esse
extraordinário é um momento heurístico importante para o trabalho do antropólogo,
como nos ensinou V. Turner (2008)189, inspirado em Van Gennep (1978): o ritual é posição
relativa dentro de um contexto.

O toque em Manzo é um mito vivenciado, o toque ao vivenciar o mito conjuga


pensamento e representação, mas também ação, a agência e a relação social. O mito
vivenciado na vida vivida é algo próximo da visão da ritologia de M. Leenhardt, na seminal
etnografia Do Kamo (1961)190, que antecipa assim a visão de Leach, para quem ritual e
mito se configuram mutuamente em formas de pensar e agir dos indivíduos. Como bem
percebeu Tambiah:

Damos em geral grande importância aos pressupostos culturais, e as


construções cosmológicas como sendo anterior e antecedente ao ritual,
devemos afirmar que em nossa compreensão dos aspectos comunicativos do
ritual este não pode ser pensado em um contexto ou crença que explique
adequadamente o ritual de forma per se. Mas a pista para sintetizar esta
antinomia aparente já foi revelada, no fato de que construções cosmológicas
estão embutidas (claro que não exclusivamente) em ritos e rituais que por sua

187
O ritual do Toque em Manzo será apresentado no próximo capítulo.
188
O ritual dramatiza e performatiza ao reenquadrar “elementos heteróclitos como componentes
interdependentes de uma nova totalidade experienciada” (Houseman, 2003: 79-80).
189
Para V. Turner o mundo social é um mundo in becoming, ou seja, um mundo em construção processual.
Portanto, o estudo da estrutura em si, como que congelada, não tem serventia alguma, pois o processo
social não é frigorificado, ao contrário é dinâmico e coativo: conjuga interação e o atuar de coisas diferentes.
190
Segundo M. Leenhardt na sua obra vanguardista de fins dos anos 30, Do Kamo: “Havia captado esta
inquietude dos etnólogos, pois estes se deparam com formas míticas que não estão preparados para
analisar. Não se atrevem a ver por detrás destas “mitos vívidos”, uma expressão que não cabe entre os
mitólogos de tradição clássica.” (tradução minha 1961:09). Do Kamo é uma inspiração também por sua
proposta avant guard de dialogia, deixar-se afectar, propor uma compreensão “simétrica” e de dentro, o
interesse pela cosmomorfia, a idéia de dinâmica, dentre tanta outras contribuições.

221
vez, promulgam e encarnam concepções cosmológicas. (Tambiah 1985:130 -
Tradução minha)191

A sociocosmológica de Manzo ensina que o ritual transversaliza pensamento e


ação, sentimento e razão, represent(ações) e rel(ações) sociais. O ritual apresenta,
comunica e relaciona uma dimensão transversal de sociabilidades. Manzo como visto é o
som do atabaque, e girar em torno do intoto é o cheiro da fumaça, a dança da vela, é o
calor, no momento ausentes, o que faz com que Manzo esteja dormindo, mas Manzo
também é o Kizomba, as reuniões, os toques, o dia-a-dia de pertencer ao santo. Manzo
em sua sociocosmológica aponta para a percepção de que o indíviduo transversaliza – faz
troca e caminhos cruzados - campos e esferas da vida social. O mental, o social, o
econômico, o político, o religioso, a vida vivida e vivenciada não formam compartimentos
estanques.

Neste sentido, o ritual do toque como mito vivenciado192 permite através da


experiência contextual buscar a transversalização da palavra política nas margens dos
limites postos pelo discurso normativo.

6.5.2- Patrimônio Cultural e a palavra política

Para algumas lideranças do Quilomblé, Manzo é um patrimônio cultural da e


para a cidade. O Quilombo como patrimônio cultural é também bastante forte nos
discursos de outras lideranças de quilombos urbanos de Belo Horizonte, como visto. Ser

191
Thus while we must grant the importance of cultural presumptions, of cosmological constructs, as
anterior and antecedent context to ritual, we must also hold that our understanding of the communicative
aspects of ritual may not be furthered by imagining that such a belief context adequately explains the form
ritual per se. But the clue for synthesizing this seeming antinomy has already been revealed, in the fact that
cosmological constructs are embedded (of course not exclusively) in rites, and that rites in turn enact and
incarnate cosmological conceptions.
192
Aqui concordo com Tambiah (1985), para quem performative act não se confunde com performance.
Como lembra Peirano (2001), performance ainda está presa a dicotomia representação/relação social
entendida como drama social ou teatral. Já os performative acts dialogam a representação e a relação social.

222
Patrimônio Cultural pode ter vários significados: pode ser a proposta de um operador de
políticas públicas; pode ser uma construção advinda de movimentos sociais, pode ser um
pedido dos sujeitos de direitos, a sugestão de pesquisadores, a aplicação de uma medida
compensação jurídica, um experimento técnico-científico, dentre muitos outros
significados e significações. Em nosso dia a dia, utilizamos a categoria patrimônio nos
mais diferentes contextos, sejam eles de caráter jurídico, econômico, social, arquitetônico,
cultural, ecológico, genético, moral, religioso, mágico, estético, fisiológico, dentre outros.
Mas, em Manzo, consiste em uma palavra política.

Como visto, por exemplo, em relação ao Projeto Kizomba, Manzo advoga


direitos a ser Patrimônio Cultural da cidade não porque carregue consigo uma memória
histórica, ou uma grandiosidade arquitetônica, nem mesmo uma pureza de suas práticas
religiosas, ao contrário Manzo advoga sua patrimonialidade no que desdiz as antigas
visões conservacionistas e objetificadoras de preservação histórica. Manzo se vê como
patrimônio, por se constituir em um conjunto sociocosmológico onde as fronteiras sejam
elas jurídicas, territoriais, normativas, patrimoniais, identitárias, dentre outras são menos
rígidas do que se exige o padrão técnico-normativo. Neste sentido, quando lideranças de
Manzo se afirmam como patrimônio cultural eles se aproximam daquilo que José
Reginaldo Gonçalves (2005) tem denominado ao pensar o patrimônio cultural em termos
etnográficos, como um “fato social total”. Para o autor, patrimônio cultural como fato
social total leva a desnaturalização de seus usos apenas como “discursos do patrimônio
cultural”, ou seja, de uma política externa.

Manzo é patrimônio para suas lideranças por ser parte inseparável de sua
vivência sociocosmológica e cosmopolitica. Nos termos próximos de Mauss, conforme
sugerido por José Reginaldo Gonçalves (2005), Manzo é patrimônio por ser ao mesmo
tempo: objetos, sujeitos, materiais, imateriais, naturais, culturais, sagrados, profanos,
divinos, humanos, dentre outras multiplicidades de formas.

223
Enquanto um gênero cultural, nas sociedades ocidentais modernas, a
categoria patrimônio - desde fins do século XVIII até o século XX – se confunde com as
práticas de “preservação histórica”. O patrimônio adjetivado de cultural se liga às práticas
de identificação, coleta, restauração e preservação de objetos culturais em que as
diferentes modalidades de objetos e sujeitos, na forma de coleções, apropriadas a
principio individualmente e mais tarde dispostas nos museus e em instituições similares,
são aceitos com o propósito de representar categorias sociais e culturais.

Segundo José Reginaldo Gonçalves (1996) essas práticas de colecionamento e


exposição respondem ao desafio de salvar esses objetos - ao que acresço sujeitos - do
desaparecimento, uma vez que são imaginados como representativos de uma “cultura” ou
“tradição” considerada em risco pela relação com a sociedade moderna. O erro desta
leitura para além de seu caráter salvacionista e seu pessimismo sentimental, para valer-
me da precisa critica de Sahlins (1997), ou seja, a crença no desaparecimento do outro
como sendo inevitável, é a transformação destes patrimônios apenas em coleções
representativas em que categorias sensíveis tão bem apresentadas pelos quilomblecistas
são substituídas por categorias delimitadas, delimitantes e reificadoras.

É em relação a essa concepção dominante de “preservação histórica” que os dados


etnográficos de Manzo permitem levantar questões. Para Whorf (1978 apud Gonçalves, 1996),
existe uma “tendência da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não materiais (como o
tempo) como se fosse algo concreto, objetos físicos existentes”. As narrativas apresentadas pela
sociocosmológica de Manzo não se permite objetificações desta ordem. Ser patrimônio não é
obedecer a uma lógica preservacionista que desconsidere a agência e rel(ação) social, mas sim o
seu contrário.

O patrimônio cultural que Manzo advoga não é apenas – ainda que possa sê-lo
em partes- de pedra e cal, essencialista, frigorificado, mera função social ou apenas
funções simbólicas. Faz parte de um sistema de pensamento, de situações sociais,
corporais e existenciais ao mesmo tempo: material, histórica, social, cultural, moral,
estética, econômica, imaterial; não se trata de uma categoria histórica teleológica,

224
monista e unilinear em uma relação espaço-temporal. Manzo é um patrimônio porque é a
palavra tocada, cantada, invocada, trocada no candomblé e nas arenas públicas da
política. E assim constituem história, cultura, tempo, espaço, cosmopolítica, rituais dentre
outras potências.

Manzo des-re-territorializa um patrimônio não porque substancializa


fenômenos materiais e imateriais, mas porque processualiza e experiencializa o mundo.
Ainda que o Estado ou movimentos genéricos da sociedade civil busquem, e eles buscam
apropriar desses fazeres, saberes e viveres para reafirmar um discurso monista e
substancialista de Estado-nação e de identidade nacional, os atores sociais, os
quilomblecistas de Manzo, ao reafirmar o Candomblé como tornar-se quilombo está no
âmbito das ontologias locais, definidas e guiadas pelas cosmológicas do Santo. A tomada
da palavra política caso se concretize no âmbito das políticas do patrimônio cultural
deverá fazer dialogar a prática local, ou seja, aquilo que homens e mulheres fazem no
Candomblé de Manzo, e o Estado, que por sua vez, reunirá as práticas sociais dispersas
em diferentes contextos, ou seja, diferentes casas de candomblé, em um modelo genérico
de forma-patrimônio cultural, um modelo de Candomblé de Belo Horizonte, quiça um
modelo de Candomblé de Minas. Nessa operação, partes dos processos dinâmicos de
Manzo serão tipificados e definidos a partir de meios técnicos considerados mais
adequados pela forma-Estado. A vida vivida e vivenciada será resumida a categorias
homogeneizadoras, objetificadoras que, via de regra, se definirá não pelas multiplicidades
de potências diferenciadoras, mas ao contrário, por aquilo que os unifica, as substancializa
em categorias estanques e tipificadas, como consta dos manuais do IPHAN. Penteado
Junior (2010: 27) resume bem este processo em seu estudo sobre o Jongo como
patrimônio cultural brasileiro:

Em suma, os patrimônios culturais nacionais, longe de serem meros resultados


do trabalho de identificação do Estado Nacional, são sempre resultantes da
atuação de diversos atores sociais que se articulam numa fala política sobre a
cultura.(...) o que se revela nos processos de patrimonialização de bens culturais
é sempre um dissenso; vozes dissonantes que se esforçam para a construção de
um discurso que se pretende, em sua aparência, consensual.

225
O Território em sua forma ritual-patrimônio expressa o modo de ser, fazer,
saber do santo tornado quilombola. Neste sentido é uma forma de habitar o mundo.
Experienciá-lo. O território ritual-patrimônio é o loci de uma memória, mas a memória, ao
contrário do que crê certo monismo ocidental, aponta também para o futuro e não
somente para o passado, e comunica principalmente sobre o momento presente.

Territórios, como Manzo, ritualizam patrimônios pois conjugam semântica e


pragmática. Não deve ser tomado como produtor de essências e congelamentos. O
território patrimônio de Manzo não é apenas representacional, salvacionista,
objetificador, homogeneizante, coeso, sistemático, coerente; reificado, estereótipos de
uma política estatal de objetificação. Ao contrário, pressuposto em uma transversalidade,
o território-patrimônio de Manzo é a ação e a relação entre os filhos e os santos e não
pode ser totalmente literalizado sob a pena de diminuição de seus múltiplos significados.
O território ritual-patrimônio é um espaço experiencial em que se permite a agência, o
contextual, o dinâmico, que aponta para um act performative das relações e
representações sociais. O Território Ritual-Patrimônio é a imbricação dos diversos
elementos do reconhecimento das diferenças e das identidades, de direitos, de
redistribuição material e simbólica, da representação política, dentre outros, que não
podem ser confinados a determinadas categorias que estabeleçam separações estanques
e definidas de forma apriorísticas.

Entender Manzo como ritual-patrimônio pode ajudar a transformar a esfera


pública dos direitos das comunidades negras, reconhecidas através do aparato legal como
quilombolas ou remanescentes de quilombo.

226
227
Capítulo 7 Toque para Pai Benedito
MATAMBA
Aruê pôpo Mametu Matamba, izô, lakan, sinavuru, muki - Salve a poderosa Mãe do fogo, do
raio, da felicidade e da força.

Oiá matamba e tata imê Lauê lauê oia dumba lê lê Sami insá ofange
Kayango é da muinganga aruê kondembala kiá mucossi zuá
e tata imê, Mametu Matamba oiá dumba lê lê kenda kalungombe
Kanindé tata kimbanda já inda kalu no abaçá
Aê aê, é kongo euandê minajô kuendá, kuendá, kuendá
é kongo euandá ai ai já minajô kuendá
é no kongo euandá kaiango kapanzo já minajô kuenda kalungombe
é no kongo euaê ai ai já minajô inda kalu nkanzuá
kaiango kapanzo já minajô
Ké muké kucê mavile, se Jonjurê unketa mametu
mavulê Imbê imbê yayá bankankam jonjurê unketa mametu
ká muké kucê mavule, se indeburê bateké dilongá nganda popô
mavulê bankankam bokum inse muki

Monauêlembê mametu Aê zim zim, aê zinzá Takalá oiá tumberekê


afurimam oiá matamba de aruê takala oiá tumberenã
monauêlembê umbó oiá matamba de aruá aê, aê, aê
afurimam jonjurê que sinha la lê
Aê bamburucena jonjurê maimbanda
Oiá oiá aê bamburucena dundê kongo serecô
oiá oiá minha janja kalunga é um simbe ê ê aê jonjure ê ê
oiá oiá ê bamburucena jonjurá yayá
kimbanda para kindondo jonjurê maimbanda
ingombê Oiá oiá oiá ê banda guame serecô
minha janja kalunga, oiá oiá oia matamba
de kakurukaia zinguê Como ximbeuanda
Endemburê, endemburê oiá oiá oiá ê euamê oiá dundumê
e e e mavanju oia matamba como ximbeuanda
nkise kô, nikisi kô de kakurukaia zingueô euamê, oiá dundume
ê ê ê mavanju
Qué qué mi o embanda Singanga ê ê lumbondo
olha matamba Aruê ganga
me qué o embanda ê no goia mim ganga ê
aruê ganga
Oiá oiá ê no kaimbelê ê no goia mim ganga
gangaiô mametu

Cantigas do ritual em homenagem A Inquisse Matamba, a nona a ser saudado no Xirê. Matamba em seu enredo

228
Kaiango é a dona da cabeça de Mãe Efigênia e patronesse de Manzo

Este capítulo pretende privilegiar a descrição de duas, das quatro festas para
Pai Benedito que acompanhei em sua Senzala. Trata-se de raros momentos, uma vez que
a comunidade de moradores e do Santo encontra-se impedida de realizar a maior parte
dos eventos e festas do Candomblé em seu Terreiro.

O Toque, como se denominam as festas públicas para os santos193, por suas


características de performative act, pelo canto, pela dança, pela ultrapassagem do ‘eu’ no
transe, se demonstrou com um momento importante, para a compreensão da tomada da
palavra política na prática. A música vibrada através dos Ngomas – tambores sagrados e
cantada nos pontos é um momento privilegiado de troca de Ngunzo, de cruzar caminhos
em que a vibração sonora acompanhada de preces desperta as divindades e as entidades
para estarem juntos aos seus filhos e transversaliza a existência de Manzo, enquanto
comunidade. Makota Cássia, como visto, já se referiu, as ausências dos Toques como: um
imenso silêncio; vazio; frio ou estar dormindo.
O primeiro Toque, que apresento aqui, para Pai Benedito, ocorreu no começo
de 2013, no dia 27 de janeiro e marcava o retorno da comunidade, ainda que somente a
comunidade de “pessoas” ao seu território. Esse dia a Senzala de Pai Benedito estava com
o espaço da audiência lotada com muitos dos presentes permanecendo em pé durante a
celebração. De onde me localizava no espaço da gira, pude contar mais de meia centena
de pessoas na assistência. E no espaço da gira, a presença de pelo menos 30 filhos da
casa, entre incorporantes, kambonos e makotas.

Tratava-se como Mãe Efigênia, ressaltou antes da abertura dos trabalhos de


um agradecimento a Pai Benedito. A organização do toque iniciou-se na semana anterior.

193
Para Duvignaud (1976) ‘festa de participação’ é aquela em que os participantes são conscientes dos mitos
que ali são apresentados, assim como dos símbolos e rituais utilizados em contraposição as ‘festas de
representação’ que tem como característica a ênfase no caráter de representação em oposição à
participação.

229
Por ser uma cerimônia de Umbanda, a mesma segundo os quilomblecistas possuía menos
preceitos do que um toque para os Inquisses. O Toque foi cercado de grandes expctativas
e marcou um momento de reavivamento da pertença ao Santo, com a presença nos dias
anteriores a festa, de vários filhos da casa tanto no Terreiro em Santa Efigênia como na
residência de Mãe Efigênia em Santa Luzia.
Antes da chegada dos convivas é colocado junto ao Intoto as quartinhas de
barro com a farofa de dendê, pimenta e o mel, que serão oferecidas a Pambu Njila e junto
a essas uma (a)muíla194 acesa. O Toque em Manzo inicia-se com os atabaques tocando
para a entrada do Abantu195. Este momento da entrada solene, a partir da liderança de
Mãe Efigênia, é seguido pelos demais filhos da casa em ordem hierárquica de cargos e de
iniciação. Como visto cada Casa é uma casa, e em cada uma, a palavra mais importante
cabe ao próprio Inquisse e, em seguida a Mãe ou Pai do Santo, mas pode se dizer que
existe uma ordem cerimonial nos toques de Angola, que se iniciam com cânticos para
Pambu Njila (Exu) .
Durante a saudação ao Njila da Casa, os filhos de santo mais graduados–
aqueles com mais tempo de Santo - dançam em volta desta oferenda. Que depois é
levantada em gesto de saudação aos quatro cantos do sambilè196, seguido da saudação ao

194
Pode ser uma das nominações do Inquisse Kitembu, chamado Rei de Angola, e representado pela
Bandeira Branca em pau forte. Aqui, entretanto, o seu significado é de vela acessa. O ato de ascender a vela
para os Angolas é ato de se propiciar a abertura das trocas e dos caminhos cruzados. A vela que ilumina o
caminho, se somará a palavra (en)cantada - e ao Ngoma – tambor ritual usado nos ritos Angola - no ato de
fazer falar e fazer troca e caminhos cruzados entre os filhos e os Santos. Em outras palavras, uma Kizomba –
festa do povo que resiste - de Candomblé.
195
Abantu como visto foi a palavra que Makota Cássia usou certa vez em uma conversa para se referir aos
membros do Terreiro presentes em uma reunião ou sessão. Da maneira utilizada por Makota Cássia, trata-se
de uma palavra que nomeia não o indivíduo, mas sim o conjunto de pessoas, cosmológicas e espaço físico
que forma a comunidade do Santo.
196
Tambem chamado de Barracão do Santo e principalmente Terreiro- sambilè, este é o local onde se
realizam as cerimônias e atividades ritualísticas abertas ao público. O local mais indicado para se dar
obrigação é o centro do sambilè, visto que neste se encontra o Intoto e a Cumeeira, permitindo assim a
troca de Ngunzo entre estes assentamento que sustentam a própria existência do Candomblé e de sua
Comunidade.

230
Intoto, aos atabaques e por fim em direção ao portão, onde novamente se saudará o
Pambu Njila assentado no Portão de Entrada, chamado de Exu da Porta, aquele que
protege a Casa, com este ritual se pede a autorização e a proteção aos trabalhos que
serão realizados. Durante todo o tempo desse ritual, os demais filhos de santo fazem com
as mãos um gesto de encostar o dedo indicador da mão direita no dedo indicador da mão
esquerda, como que fazendo um cruzamento.

Quemauê, Quemauê
Quemauê Queuafá
Quemauê Quemauê
Que Lumbondo 197 Euafá

Dentre outras, cantigas que podem ser cantadas neste momento:

Ê gira gira mavambo/


Recompenso ê ê ê/
Recompenso a

Exu apavenã./
Exu apavenã/
Sua morada (ou aldeia) auê

Pambu Nijila vem toma xoxô


Pambu Nijila vem toma xoxô
Os ritos iniciais prosseguem após o retorno daqueles – a Mãe de Santo, acompanhada
por sua Makota pessoal e por filhos com cargos rituais direcionados a esta cerimônia - que foram
colocar o exu na rua ou despachar o exu com a saudação dos filhos da Casa, ao Axé principal do
Terreiro, o Intoto, em um ato denominado em Manzo de bater cabeça. Mãe Efigênia
primeiramente em gesto que depois é seguido pelos demais filhos da casa sempre respeitando a
ordem de cargos e iniciação, e normalmente em duplas, primeiro ajoelham e depois deitam-se e
pronuciam uma prece e na sequência batem cabeça - kamutuês para o Intoto, colocando sua
cabeça junto ao Intoto, - que no caso de Manzo consiste em uma marcação de pedra ardósia no
centro da gira. Abaixo desta pedra ardósia se encontra propriamente o assentamento – o otá é

197
Lumbondo é um dos enredos da Inquisse Matamba, a senhora dos ventos e das Tempestades. Nesta
qualidade ela afugenta todas as energias que não são favoráveis.

231
uma pedra, podendo ser o seixo de um rio, ou de outra parte da natureza, sobre a qual se afixa o
Ngunzo de um Inquisse por meio de ritos consagratórios. O otá tem agência, estando em
constante fluxo em um movimento contínuo e, que se diz que está vivo, e compõem redes sociais,
nas quais humanos e não humanos interagem - como já visto na descrição do espaço cosmológico
do Terreiro.
Atotô, Obaluaiê
Atotô, babá
Atotô, Obaluaiê
Atotô, babá
Meu pai Oxalá
É o rei
Venha me valer
Meu pai Oxalá
É o rei
Venha me valer
O velho Omulu
Atotô, Obaluaiê
O velho Omulu
Atotô, Obaluaiê

Kavungo quando kamba lembá dilê


fala Mametu Kaiango
kavungo quando kamba mavukaiá
Mametu Kaiango
Logo após este momento inicial, Mãe Efigênia se dirigiu aos presentes e bastante
emocionada relembrou a história da Senzala de Pai Benedito, os acontecimentos que levaram a
interdição do Quilomblé “o dia mais triste da minha vida, quando eu vi a Defesa Civil colocando as
coisas dos meus filhos em um caminhão e eles saindo [emocionada não completa a fala]”, as
aflições deste período e a crença de que o Ngunzo de Pai Benedito, a quem segundo ela pertence
o chão de Manzo, permitirá a correta solução dos percalços sofridos pela comunidade.

Na sequência, contou aos presentes a sua luta como mulher, negra, doméstica, mãe
solteira e do santo, relembrou que muitas das vezes, antes da Senzala não tinha alimentos para os
filhos e que deixava “de comer na casa dos patrões para trazer para os filhos” e que “o Ngunzo de
Manzo e a vitória que é a sua vida se devia a fé em Pai Benedito e nos Inquisses”. Ainda muito
emocionada nomeou cada um dos filhos carnais e vários de criação e lembrou com eles, as
histórias de lutas e vitórias da Comunidade do Quilomblé. Aos filhos de Santo da Casa, nomeando
alguns deles, agradeceu o empenho e a luta pela manutenção da Senzala.

232
Em seguida, Mãe Efigênia convidou alguns dos presentes no espaço da audiência para
que ocupassem as cadeiras dispostas no espaço da gira comunicando aos demais que, o convite,
era uma forma de agradecimento a alguns dos amigos “fieis” da Senzala que ao longo dos últimos
anos “ampararam a casa, estando presentes, principalmente no apoio, na palavra de fé e amiga.
Estas pessoas são frequentadores de longa data, amigos e alguns de datas mais recentes, mas de
enorme apoio para a comunidade, como os estudantes.” Após estas pessoas estarem acomodadas
no espaço da gira, Mãe Efigênia fez um agradecimento a cada uma delas, citando-os
nominalmente e lembrando as trocas destas pessoas com a casa ou um acontecimento marcante
em que estas pessoas estiveram presentes “nos momentos mais difíceis e que vai muito além de
ajudas materiais ou financeiras”198.

Na sequência a sessão teve continuidade, com a defumação da Casa. Em Angola, o


momento de limpeza do ambiente com o pó de Pemba e a defumação é central nos Toques.
Sendo inclusive devotada a este momento uma série de cantigas e preces.

O kipembê, Pembentá que pembentá é monakaleê


O kipembe ewiza pembentaá que pembentá é monakalê
Kassange ewiza pembentá
D'angola
O kipembê Pemba não anda, pemba voa
Samba d'angola segura a pemba que a pemba é boa
Segurazilê mona mona oia o pembê
segurazilê mona mona oia o pembá

Mokoiu que pemba oiô


tata mona que pembê
mokoiu que pemba oiô
tata mona que pembá

198
Ao se dirigir a mim e ao colega Pedro Moutinho, [citou o nome de alguns outros colegas de Núcleo de
Estudos ausentes] agradeceu pelo apoio com “as palavras amigas e também na forma da presença
constante, do apoio e palavras em reuniões, no contato com o poder público, na tentativa de resolução de
problemas, na participação em eventos internos e externos a favor de Manzo, como na Assembléia, na
prefeitura”. Alguns meses antes, em abril de 2012, Mãe Efigênia havia me dito: “Carlos, isso que vocês estão
fazendo aqui, você pensa que faz parte somente de seu estudo, mas não é. Isto não faz parte somente de seu
estudo. Isto faz parte de um campo espiritual muito importante seu. Porque muitas vezes, Carlos uma
palavra, um bate papo, uma palavra amiga, uma mão estendida vale muita paz de espiritualidade.”

233
Marcada pelo vibrar dos atabaques - Ngoma199 e berimbaus acompanhados por
palmas e cantos. Mãe Efigênia, entoou o ponto de Adoração as Almas, sendo seguida pelos
kambonos e depois pelos demais filhos da casa, e por alguns dos presentes na audiência.
Eu adorei as almas
As almas eu adorei
Eu adorei as almas no dia de hoje
Eu adorei as almas

Repetido várias vezes, o ritmo e o canto vão em uma crescente com o


acompanhamento dos atabaques e palmas aumentando de acordo com as repetições.
Após este momento, os kambonos iniciaram uma série de pontos dedicados aos pretos
velhos, chamados de pontos de firmamento, pois evocam a participação das entidades
através da incorporação nos filhos de santo:
Firma ponto minha gente
Preto velho vai chegar
Ele vem de Aruanda
Ele vem pra trabalhar
Saravá Preto Velho
Saravá, saravá, saravá,
Ele chegou no terreiro
Ele vem nos ajudar
Com Pai Benedito, já incorporado em Mãe Efigênia, o Kambono Maurinho, filho
biológico de Mãe Efigênia, responsável pela Capoeira no Projeto Kizomba, reverencia Pai Benedito,
retirando o chapéu de palha que carregava em sua cabeça e colocando-o primeiro aos pés de Pai
Benedito e em seguida sobre a sua cabeça, cantando, uma canção de capoeira:
Apanha laranja menino
Apanha laranja no chão
Defende seu reino sozinho
Com a força do seu coração

Com vários filhos incorporados, iniciou-se uma série de pontos com narrativas
do período da escravidão, das condições desumanas a que foram submetidos àqueles que

199
Ngoma é um tambor encontrado na África Bantu em vários formatos, mas em geral segue sempre o
mesmo modelo de construção: que consiste em esticar uma pele de animal sobre um cilindro de madeira.
No Brasil pode ser usado nas cerimônias do candomblé Bantu, em algumas Umbandas e nas cerimônias de
Jongo. Sobre sua centralidade no Jongo ver Penteado Júnior, 2010.

234
chegaram escravizados, bem como pontos em homenagens aos feitos e a sabedoria
destes pretos que foram escravizados. Ao ritmo dos instrumentos musicais e do canto, os
Pretos Velhos através de gestos marcados irrompiam ao centro da Gira para sambar, fazer
o uso de seus instrumentos e demonstrar seu Ngunzo, como, por exemplo, ao fumar o
cachimbo200 ao contrário, colocando a fornilha ao invés da piteira junto as suas bocas. Ou
então para conceder bênçãos aos presentes:

Olha Congo ê, olha congo á


Olha Congo ê, olha congo á
Chegou Preto Velho para Saravar
(repetido várias vezes, sempre em um crescente de ritmos, vocais e execuções de bailados e danças)

Logo após este momento, a celebração passa a ser um momento de exaltação a


superação do período de cativeiro:
Olha a macumba iá, iá, iá
Olha a macumba iô, iô, iô
E viva ô ô ô ô
Que o cativeiro acabou
É preto, é preto, é preto
É do meu congá
É preto, é preto, é preto
Ora vamos saravar
Eu também sou preto, preto, preto
Quem não gosta de macumba
O que faz neste lugar
(repetido várias vezes, sempre em um crescente de ritmos, vocais e execuções de bailados e danças)

Durante a execução das cantigas e entre as evoluções, algumas das pessoas


presentes, principalmente os kabures201 foram benzidos a pedido de Pai Benedito:
Cantor Principal: Salve todo Povo de Aruanda. Salve Todo o Povo de Aruanda.
Filhos: é preto, é preto, é preto, é preto,
é preto, é preto, é preto, é preto, oh
voz mais alta; eu também sou um preto.
Filhos: é preto, é preto, é preto, é preto, oh
voz mais alta: eu também sou um preto.

200
Segundo FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Segunda edição. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986. p.307 "Cachimbo" deriva do termo quimbundo kixima.
201
Designação para as Crianças.

235
Filhos: é preto, é preto, é preto, é preto, oh
Não judia sinhá
A cada novo ponto o som ecoava mais alto e mais forte:
Lá vem vovô
Descendo a ladeira
Com sua sacola
Com seu rosário e seu patuá,
Ele vem de Angola
Eu quero ver ê ê ê
Eu quero ver ê ê ê
Se filho de pemba tem querer...

A sessão seguiu com a evolução dos pretos velhos, principalmente quando se


tocava e cantavam os pontos em homenagem a um(a) preto(a) velho(a) em particular.
Para manter o ritmo, os Kambonos se revezaram na lida com os instrumentos e com o
canto. Em vários momentos Pai Benedito se dirigiu aos presentes, para lhes passar
mensagens como “esta Terra é a Senzala de Pai Benedito. Oh Preto Velho fala que a
Senzala é aqui, o nome é Senzala de Pai Benedito (...) o nego fala outra língua que não é a
língua do candomblé”. Pai Benedito deixou bem claro aos presentes neste e em outros
momentos, que junto ao Candomblé, deviam respeitar seu espaço, seu culto e suas
vontades.

Pai Benedito também comentou sobre as dificuldades que o Terreiro vinha


passando e comemorou o retorno ainda que incompleto da comunidade “nego velho, está
muito feliz, muito feliz mesmo”.

Durante o toque, que nesse dia durou pouco mais de duas horas, foi servida aos
presentes uma série de alimentos da mesa feita em homenagem a Pai Benedito como doces,
bolos, canjiquinha, cuscuz, rapadura, broas, mandiocas fritas, batatas doces cozidas, bolinhos de
feijão dentre outras comidas.

Ao som da cantiga Tá Caindo fulô, os presentes saudaram Pai Benedito jogando sobre
o seu dançar pétalas de lírios brancos e rosas brancas:
Ta caindo fulo, eh eh
Ta caindo fulo, eh ah
Lá do céu, cai na terra
Ai meu Deus, ta caindo fulo

236
(repetido várias vezes, sempre em um crescente de ritmos, e os vocais exaltando partes da música em tom
mais alto: Tá caindooooo fulô ÔÔÔ. Ao que Pai Benedito respondia com mais vigor nos bailados e danças)
Anunciando sua despedida, Pai Benedito dirigiu suas bênçãos ao Terreiro, aos filhos
da casa, fez saudação aos Axés e àqueles que trabalharam no Toque, recomendou aos presentes à
bondade e a caridade. Os Kambonos então cantaram o Hino da Umbanda:
Avante filhos da fé
Como a nossa lei não há
Levando ao Mundo inteiro
A bandeira de Oxalá

Levando ao Mundo inteiro


A bandeira de Oxalá

Luz que refletiu na terra


Luz que refletiu no ar
Luz que veio de Aruanda
Para nos iluminar

Refletiu a luz divina


Com todo seu explendor
Vem do Reino de Oxalá
Aonde há paz e amor

A Umbanda é paz e amor


É um Mundo cheio de luz
É a força que nos da vida
E a grandeza nos conduz
Após este canto, Pai Benedito pediu aos kambonos para tocar a música do Navio
Negreiro, para a qual, com enorme destreza e beleza gestual vivenciou primeiramente sentado em
um banco, que simulava o convés de um navio e, depois em pé utilizando os braços, as mãos e o
caminhar, em um bailado que seguiu m ritmo menos acelerado do que os demais pontos.
Navio Negreiro no fundo do mar
Navio Negreiro no fundo do mar
Correntes pesadas arrastando na areia
A negra escrava se pôs a cantar
A negra escrava se pôs a cantar
Saravá minha Mãe Iemanjá
Saravá minha Mãe Iemanjá
Virou a caçamba pro fundo do mar
Virou a caçamba pro fundo do mar
Quem me salvou, foi mãe Iemanjá
Quem me salvou, foi mãe Iemanjá
Na parte final da cantiga, os atabaques voltaram a vibrar mais alto acompanhados por
palmas. Pai Benedito fez várias evoluções com passos de samba, ao que era respondido pelo vibrar

237
mais ligeiro e alto do toque dos atabaques. Pai Benedito entoou então o canto “Zambi202, me
trouxe. Zambi vai me levar” momento em que os atabaques se arrefeceram em um ritmo menos
intenso acompanhado por pontos de subida ou desincorporação.

Após o fim do toque religioso, se iniciou uma contagiante e animada roda de samba.
Para a qual foram convidados todos os presentes, iniciados ou não, formou-se então uma nova
roda em torno de um novo conjunto de atabaques, repiques, caixas, berimbaus e outros
instrumentos. A roda de samba não se trata da superação da etapa anterior, mas a sua
continuidade, momento em que os ritmos e cantos percorrem os corpos dos presentes, ainda que
não iniciados, que começam a se estremecer, a fazer remeleixos, e umbigadas203.
que me-ni-na é a-que-la,
que entrou na ro-da agora,
ela tem um re-me-lei-xo,
que va-lha-me De-us, no-ssa se-nho-ra.

202
Para o povo Banto Nzambi é o ser supremo criador de todas as coisas. Pode receber também outras
denominações de acordo com suas qualidades, como Kalunga, quando se refere a sua potência como
senhor Infinito. A Nzambi não é dedicado altar ou culto específico. Como também não é representado, pois
é concebido como incriado, não tendo forma e nem se podendo conceber forma finita a seu Ngunzo. Os
membros da Angola, como já dito, podem se saudar ou iniciar algumas conversas com o vocativo: Mukuiu,
ou seja, um pedido de bênçãos. Ao que se responde Mukuiu N’zambi, algo como que Deus te abençoe.
Alguns outros já dirigem inicialmente o vocativo Mukuiu N’zambi.
203
Ao som da música, ora em gestos ora contidos, ora extravagantes os corpos dançam para alegria de
Pambu Nijila, dono dos corpos e do semba no mundo Kalunga!!!
Em 2012 o G.R.E.S Unidos de Vila Isabel (RJ) retornou a um de seus temas centrais a questão da contribuição
Bantu na formação nacional, e mais uma vez foi feliz, pois como em 1988, ganhou mais um carnaval com
seu samba-enredo em homenagem a Angola, denominado Semba de lá, que eu sambo de cá. Que além de
falar de Angola ressalta os tambores, os rituais, a Kizomba e a Inquisse Matamba, que como vimos é a dona
da cabeça de Mãe Efigênia; um samba enredo que ilustra o debate aqui proposto: Viva o povo de Angola/
Semba de lá, que eu sambo de cá/ Já clareou o dia de paz/ Vai ressoar o canto livre/ Nos meus tambores, o
sonho vive/ Vibra óh minha vila/ A sua alma tem negra vocação/Somos a pura raiz do samba/Bate meu peito
à sua pulsação/Incorpora outra vez kizomba e segue na missão/Tambor africano ecoando, solo feiticeiro/Na
cor da pele, o negro/Fogo aos olhos que invadem,/Pra quem é de lá/Forja o orgulho, chama pra lutar/ Reina
ginga ê Matamba vem ver a lua de luanda nos guiar/Reina ginga ê Matamba negra de zambi, sua terra é
seu altar/Somos cultura que embarca/Navio negreiro, correntes da escravidão/Temos o sangue de angola
Correndo na veia, luta e libertação/A saga de ancestrais/Que por aqui perpetuou
A fé, os rituais, um elo de amor/Pelos terreiros (dança, jongo, capoeira)/Nasci o samba (ao sabor de um
chorinho)/Tia ciata embalou/Com braços de violões e cavaquinhos a tocar/Nesse cortejo (a herança
verdadeira)/A nossa vila (agradece com carinho)/Viva o povo de angola e o negro rei martinho

238
O segundo toque que descrevo ocorreu no dia 15 de setembro de 2013, um
domingo e fez parte do Encerramento do Projeto:dLideranças Quilombolas: transmissão
de saberes e troca de experiências para o empoderamento, estímulo à luta pelos direitos,
qualidade de vida e iniciativas solidarias de desenvolvimento comunitário204.

Neste dia, a Comunidade de Manzo recebeu em seu Terreiro para um almoço


as lideranças das Comunidades de: Marques, Arturos, Mata do Tição, Chacrinha dos
Pretos, e a presidente da Federação Quilombola N’golo de Minas Gerais, que haviam junto
com algumas lideranças de Manzo, participado do projeto nomeado acima, bem como
filhos de santo e convidados.

A tarde se iniciou com um farto almoço que teve como prato principal
muqueca de peixe, bastante quente205 acompanhada de arroz branco, pirão, saladas
diversas e feijão fradinho, tendo como sobremesa um manjar branco - comida ritualística
de Kaiaiá. Logo após este momento, se iniciou a reunião final e avaliativa do curso, que foi
seguida de uma apresentação de capoeira, maculelê e um Toque para Pai Benedito.

Antes da descrição dos eventos, cabe um registro da mensagem que Makota


Cássia postou no dia seguinte ao evento, em sua página da rede social facebook:

Cassia Cristina: Gente estou sem palavras para agradecer a todos pela realização
do evento ontem aqui no Manzo, mais uma vez mostramos o que é ser povo do
terreiro! Somos sim, guardiões do saber, somos povo de uma cultura realmente
brasileira, viva o Kizomba! Por que ele é a nossa comunicação cultural que
ultrapassa qualquer barreira. Obrigado mestre, Mão Branca, Mestre Zumbi, e
em geral a capoeira Gerais pela visita surpresa, por acreditar e respeitar nossas
crianças que com certeza quando crescer vão querer se tornar adultos
admirareis como vocês.
Quero agradecer muito a minha mãe Mametu Muiande que com ela aprendi a
humildade e o amor ao próximo. Que o sagrado e tudo aquilo que sai da boca e
tudo que é natural.

204
Este curso foi promovido, no ano de 2013, pela ONG Filmes de Quintal, sob a coordenação de duas
antropólogas. E foi financiado com recursos da Secretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade
Racial- SEPPIR do governo federal. O
205
Com o gosto acentuado do codimento pimenta.

239
E como não podia ser diferente aos meus irmãos Jorge, Cassio, Emerson e
sempre Lampião Projeto Kizomba. Maurinho lembra um dia que eu disse que
tudo que você quer, você consegue? Então ontem mais uma vez você provou
que é verdade.
A Fernanda a Filmes de Quintal ao professor Aderval Costa Filho da UFMG, ao
meu grande amigo Carlos Eduardo Marques, Sandra da Federação NGOLO a Bia,
ao Jonas, aos Quilombos Marques, Carrapatos, Chacrinha,Mato do Tiçao e
Arturos, aos filhos de santo em geral a todos os moradores da Comunidade
Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango (Casa da Força de Matamba) que força viu.
Muito Gunzo a todos !!!” (16 de setembro de 2013)

A reunião de avaliação do projeto foi iniciada com uma moda de viola cantada
por Rosinere da Comunidade Quilombola de Marques acompanhada no violão por seu
primo e presidente da Associação Quilombola de Marques, Edson, duas jovens lideranças
desta comunidade. Rosinere cantou primeiro uma música, que ela compôs a melodia e
uma amiga a letra. A música relata o sentimento dos Quilombolas pelo Rio Mucuri que
circunda a sua comunidade, na qual foi construída, uma Pequena Central Hidrelétrica. E
que ensejou a luta dos Quilombolas de Marques, por seus direitos.
Pedaços da história, indo embora assim, lembranças jogada fora,
Te vendo assim, dói em mim. dói em mim. oh Mucuri
Te vendo assim, dói em mim. dói em mim. oh Mucuri
Mucuri sem seus rastros, sem destino. Afogaram a sua identidade.
Te vendo assim, dói em mim. dói em mim. oh Mucuri
Te vendo assim, dói em mim. dói em mim. oh Mucuri
A sua origem espera certeira e agora em tempos modernos, represa sua viagem.
Te vendo assim, dói em mim. dói em mim. oh Mucuri
Te vendo assim, dói em mim. dói em mim. oh Mucuri
Agora só nos restam, somente versos para protestar e na memória a nossa dor, nossa saudade.
Logo após, Rosinere cantou a música Saudade de Nosso Lugar206 com letra e
melodia de sua autoria e arranjos do primo. Rosinere apresentou a música do seguinte

206
Saudade do nosso lugar é uma canção que Rosinere já estava esboçando, mas tomou sua forma final em
uma tarde-noite, a nosso pedido: meu e de alguns companheiros quando da realização do filme a respeito
da Comunidade de Marques, da qual fui produtor, argumentador, roteirista. A este respeito: “A intensidade
desse segundo contato ganhou forma por meio das imagens fotografadas e filmadas. Além de depoimentos
sobre as reações e anseios por conta da chegada da PCH, buscou-se acima de tudo registrar a vida dos
Quilombolas de Marques e suas impressões acerca do cotidiano e do lazer, da produção e da
sustentabilidade. Pode-se registrar as alegrias, tristezas e as expectativas, e acima de tudo, as reações dos
Quilombolas de Marques em resenhas sobre a luta, sobre o momento vivido, sua história e antepassados,

240
modo, “saudade de nosso lugar, conta nossa história, da nossa comunidade mesmo, o Rio
Mucuri que cantei antes fala mais da região. E a saudade do nosso lugar é nosso
sentimento, nossa luta.”

Saudade do nosso lugar Vou ter que morar em um lugar estranho.


A minha casinha, o meu lugarzinho, Me adaptar em um chão sem instantes,
a minha terra, o barulho do rio Por causa da água, eu tenho que ir,
a minha esperança, o meu exagero, mas fique sabendo meu lugar é aqui,
a minha força e o meu desespero, O meu corpo vai, mas minha alma é daqui
a minha fé que eu carrego no peito.
lá, lá, laiê, lalá, laiá,
lá, lá, laiê, lalá, laiá, da minha terra vou longe morar
da minha terra vou longe morar lá, lá, laiê, lalá, laiá.
lá, lá, laiê, lalá, laiá. Vou sentir saudades do nosso lugar,
Ahaaaa, ahaaa, ahaaaa.
Vou sentir saudades do nosso lugar,
as minhas sementes, minhas gerações,
a minha gente, que tinha união.
Por causa do fato de ser quilombola,
acabou a força e nos deu as costas.
Por preconceito e por esmola.

Após a apresentação de Rosinere, Mãe Efigênia bastante emocionada


comentou “Esta música fala muito de nós aqui de Manzo e é um recado” e relatou para as
demais lideranças quilombolas, um pouco das origens de Manzo, de sua luta, das
memórias de ocupação daquele território, das dificuldades e a resistência para manter
Manzo, os eventos da retirada da comunidade, e emendou:

Estão destruindo tudo que eu construí aqui, mas espero com fé nos Orixás, que
eles não vão destruir o meu sonho, vou ter de volta, custe o que custar.
Portanto esta sua música fala umas verdades. Você foi cantando, eu lembrando
e pensando. O que mais eu sinto falta é da comunhão, pois a gente podia comer
pão seco, beber água com açúcar, mas estávamos unidos. Isto é o que sinto mais

sobre os lugares e a paisagem, sobre seus fazeres e saberes, inclusive os musicais. A música apresentou-se
neste momento de passagem em toda a sua intensidade e assim quase que diariamente assistimos e
participamos das modas, com a presença de compadres, vizinhos e visitantes. Em geral, os momentos de
reuniões se transformavam em efervescentes rodas e temas musicais, como fica à mostra na composição por
parte da Quilombola Rosinere de uma canção especialmente direcionada ao projeto, relatando a vida e os
acontecimentos atuais vivenciados pela comunidade.” (Marques, 2012 a pp.27)

241
falta, mas para Deus nada é impossível. Mas continue cantando que está bonito
demais.

Após Rosinere e Edson cantarem outra moda de viola, várias das lideranças
presentes fizeram o uso da palavra em que destacaram a necessidade da organização dos
quilombolas para a exigência do cumprimento dos direitos conquistados, de se combater
não somente o processo de desigualdades históricas, mas também as violações do
presente, como inclusive os projetos de leis contra quilombolas e indígenas em trâmites
no Congresso.

Mario Lúcio, membro da Comunidade de Manzo e rapper pediu a palavra para


falar de sua satisfação em receber as demais lideranças quilombolas no Terreiro. Segundo
Mario Lúcio o evento era a confirmação “que a luta libertária continua”. Na sequência,
Mário Lúcio, declamou uma poesia ritmada - rap, de sua autoria207.

Mario: Os escravos se rebelaram cansados de tanta covardia.


Todos: Negros Guardiões da Periferia
Mario: está escrito que o racismo é crime, por pura hipocrisia.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Mario: As mensagens surgem dos guetos para os negros de correria.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Diga aos eternos guerreiros a batalha ainda não esta perdida.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Grandes líderes negros lutaram heroicamente para que tivéssemos uma vida melhor no presente.
Estou disposto a bater de frente com quem estiver comigo, recordando as dores das chibatadas desde
o início.
A desigualdade tomou conta, e disso eu já sei: é porque somos excluídos nesta terra sem lei, onde
aquele que tem humilha o que não tem, balançando e jogando notas de 100.
Escravos eram vendidos como mercadoria.
No morro, a dor da mãe é triste; a prostituição da filha que não quis se formar e saber da verdadeira
história do padroeiro que está sempre guardado em nossa memória.
Muitos persistem no erro, agindo do mesmo jeito, julgando-se superiores e menosprezando os
outros pretos.
Dignamente afirmo: a indecisão não está em mim.

207
O Hip-hop tem se apresentado como um dos canais preferenciais para setores da juventude pobre e
negra brasileira passar seu recado. Segundo Ottman (2002) o rapper é um residente da periferia e seu
combate ao racismo e ao preconceito racial se expressa principalmente em uma critica ao sistema
capitalista.

242
Com atitudes inconvenientes, vejo vários agindo assim, atrasando o lado do outro, reforçando o
mundo escravista, desconhecendo que, por Zumbi, foram vários anos de batalhas vencidas, não se
rendendo aos valores estéticos de uma outra raça, que no passado escravizou, massacrou e ainda
massacra, porque, furiosamente caçados, negros são capturados pelo mesmo mundo racista que hoje
vive em defesa do Estado.
O presente nos recorda o passado. Chega de festa. Os negros querendo lugar ao sol, e os covardes
promovendo guerras.
Essa guerra não é somente de um, mas de todos. A maior flecha já foi lançada para favorecer nosso
povo.
Zumbi, o general dos generais. Batalhas foram definidas por ele, mas é preciso acreditarmos mais.
Acreditar que vamos vencer a luta contra a desigualdade para não ver os irmãos jogados nos cantos
da cidade, todos libertos do inferno interior, das marcas preconceituosas e do trabalho escravo, que
não acabou.
Confrontos reiniciaram. Somos 30 vezes 30, mas é preciso resgatar mendigos, idosos, crianças
famintas.
Os excluídos unidos jamais serão vencidos se se autovalorizarem e se não se esquecerem disso.
Os escravos se rebelaram cansados de tanta covardia.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Mario: esta escrito que o racismo é crime, por pura hipocrisia.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Mario: As mensagens surgem dos guetos para os negros de correria.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Diga aos eternos guerreiros a batalha ainda não esta perdida.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Quinhentos anos de existência, país de terceiro mundo, política ineficiente, vários com armas em
punho. O quilombo ressurgiu, o confronto continua.
Uma nação cansada de ser escravizada está à procura da fé sim. para vencermos a guerra.
Quantos morrem por falta e quantos vivem graças a Oxalá e a ela. Uma dor sendo aliviada, ferida
que não cicatriza.
Perdemos quase tudo, mas não a valorização da vida, porque somos negros guardiões da periferia e
não nos igualamos aos putos que fazem do pobre a moeda da economia.
Prostituição infantil nas ruas, avenidas. Escolas de portas fechadas, vidas marcadas, mentes vazias.
Todos temos defeitos, não é? Quem não sabe disso?
Os racistas que massacram os pobres e defendem os ricos, assimilando os aspectos de um jovem que
se sente inferior e abusando do poder por emblemas.
Isso, seja quem for, não se reprima. Seguiremos em busca de alforria, para reconstruir a autoestima e
valorizar a família.
A alma aqui é incolor, encarnada em um corpo escuro, mas me sinto, às vezes, meio inseguro.
Não com os periféricos, que se encontram por detrás dos muros, mas com os corruptos que fazem
campanhas e promessas para o futuro, iludem a Nação e depois a marginalizam.
Se a raça mestiça segue sofrendo, colocam a culpa na negra. São situações semelhantes. Basta
recordar o passado, quando negros cansados de serem escravizados se refugiaram, atravessaram
precipícios em busca de liberdade, sem temer os índios e desconhecendo o pio das aves.
Existia um verdadeiro paraíso: o Quilombo dos Palmares. Igualdade para todos e, digo, sem
falsidade.
Atenção, atenção. Presídios estão sendo construídos. Abaixar a maioridade não. Não irá resolverá
nada disso.
Não arrotarei vitória, porque sei minha origem e minha história. O racista que me quer ver privado
pode estar aplaudindo-me agora.
Mas para relatar a verdadeira história não tem dia, não tem hora, ao lado da preta, aqui serena, e da
criança que chora.

243
Os escravos se rebelaram cansados de tanta covardia.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Mario: esta escrito que o racismo é crime, por pura hipocrisia.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Mario: As mensagens surgem dos guetos para os negros de correria.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
Diga aos eternos guerreiros a batalha ainda não esta perdida.
Todos: Negros Guardiões da Periferia
AXÉ !!!!!
(Aplausos, Assobios, gritos.)

Após a fala-canção de Mario Lucio, Cássia se dirigiu aos presentes, e afirmou


“Pai Benedito um dia disse comigo e com o meu irmão que devíamos crescer, ganhar o
mundo e multiplicar.” Segundo ela, um dos caminhos decididos para cumprir este pedido,
fora a capoeira e o Projeto Kizomba.

Maurinho, conhecido na capoeira, como contramestre Lampião, apresentou o


grupo de capoeira da comunidade, e a importância do projeto social para o combate às
mazelas sociais, para formação da juventude e como forma de combate aos preconceitos e
racismos, e relatou a emoção por estar recebendo para aquela roda, o lendário Mestre
Mão Branca208, e afirmou aos presentes: “(...) o que ensino é a importância do

208
Makota Cássia, assim saudou Mestre Mão Branca, neste dia, “Estamos muito felizes, porque estamos com
um presente, que é a presença do Mestre Mão Branca. Não tinha dia melhor para ele vir do que hoje. Isto
prova que nós realmente somos militantes e temos militância. E pode vim qualquer chegado.” Maurinho, o
contramestre Lampião, não conseguia esconder sua emoção com a participação de Mestre Mão Branca.
Maurinho descende na linhagem capoeirista de Mestre Mão Branca, que é Mestre de seu Mestre. Mão
Branca foi, segundo contam vários moradores de Manzo, frequentador da Casa de Mãe Efigênia a quem
nutre respeito e carinho por ela ter ajudado em sua caminhada. Manzo serviu em consonância com o
espírito de casa aberta que nos fala Mãe Efigênia, como abrigo para vários capoeiristas e músicos, como
Carlinhos de Oxossi, criador do grupo de samba e projeto social em Belo Horizonte: Fala Tambor que Mãe
Efigênia, considera com um dos seus muitos filhos adotivos.
Mestre Mão Branca nascido William Douglas Guimarães em Belo Horizonte, teve seu primeiro contato com
a capoeira aos 10 anos de idade na cidade do Rio de Janeiro, em uma roda na Central do Brasil. Nesta época
residia nesta cidade no Morro da Providência. De volta a Belo Horizonte, passou a treinar com Mestre Luiz
Mario Ladeira, o Jacaré. Após um tempo retornou ao Rio e passou a treinar com Elinho Águia Negra e depois
com José Carlos Vicente, o Mestre Gigante, a quem escolheu como seu mestre de Capoeira. Após seu
retorno a Belo Horizonte, fundou o grupo de capoeira Guerreiros de Angola, filiado a Associação de Capoeira
Negrinhos de Sinhá- ACNS de Mestre Gigante. Após a morte de Gigante, fundou o Capoeira Gerais. E a
Federação Mineira de Capoeira da qual foi presidente, ajudou a fundar a Confederação Brasileira de

244
conhecimento. Podem nos tirar nossa Casa, nossa roupa, pode tirar o que for, mas o
conhecimento fica com a gente.” Após esta fala, Maurinho convidou Mestre Mão Branca
para comandar a roda:

Hoje o negro é cultura popular. Coro: capoeiraaaa


Coro: cultura popula á á á A capoeira é luta mais linda/livre que me féz
De África trazido para cá. Apanhou sem parar. acreditar
Coro: sem parar. que tudo na vida tem um segredo
Hoje o negro é cultura popular. Malícia e gingado na arte de amar
Lê, lê, lê ôooo Foi capoeira, capoeira quem me ensinou
Eh Luanda Quem me ensinou a amar
Coro: Luandaaaaa Capoeiraaaa, capoeiraaa
Cavaleiro de Santo, Luanda
Coro: Luandaaaaa Zumbee, Zumbi, Zumbiiii
Eh Luandaaaaa Força Zumbiiii
Salve Cobrinha verde Eh Paraná
Salve Mestre Pastinha Paranauê
Salve seu Mestre Bimba Eh Paraná
Veio de muito longe, êêê Paranauê
Luandaaaa Voz: Sua hora vai chegar
Salve seu Mestre Bimba Coro: Eh Paraná
Salve seu Mestre Camafeu Oxossi Paranauê
Luandaaa Voz: fui passar no matagal
Salve Meu Pai Ogum Coro: Eh Paraná
Luandaaa Paranauê
Salve Meu Pai Oxalá Voz: vou levar lata d’agua
Luandaaa Coro: Eh Paraná
Quando eu vim do cativeiro Paranauê
Foi capoeira, capoeira quem me ensinou a amar

Após uma série de exibições, Mestre Mão Branca, se dirigiu aos presentes:
(...) acho que vale a pena aproveitar o momento. Para falar do Quilombo na
capoeira. A posição que a capoeira tomou é muito importante na resistência. Eu
sempre digo que o primeiro movimento político no Brasil foi a capoeira. Porque
a capoeira foi perseguida como primeiro movimento que aglomerou pessoas e
que de certa forma ameaçou a coroa, a época. (...) Veja bem a capoeira, é o
camaleão, é a largatixa rasteira que muda de cor várias vezes para resistir até os
dias atuais. (...). A capoeira é uma brincadeira, mas é uma luta. Isto aqui
machuca. Na época da escravidão quando o senhor chegava, ficava aquela
brincadeirinha manhosa, mas quando ele saia o ritmo subia, ou couro comia. Por
isto quando eles iam atrás eram recebidos por pernadas, cabeçadas, eles não

Capoeira. Criou no início da década de 80 o Jornal Rabo de Arraia no intuito de levar informação aos
capoeiristas e gravou 04 CDs e uma coletânea, sendo considerado um dos principais compositores da
capoeira do Brasil. E um dos mestres considerado referência política e de notório saber na capoeira
nacional.

245
sabiam o que estava acontecendo, mas era a capoeira. (...) Capoeira é o corpo, é
o instrumento, a musicalidade é o corpo. Capoeira não é uma bandeira política é
uma causa, independente se jogada em cima ou embaixo. Angola ou Regional.
Como disse Mestre Pastinha, Capoeira é tudo que a boca come. E a boca só
come coisa boa. Então não tem isto de Regional, Angola, Contemporânea.
Capoeira é sentimento. Negro escravo jogava capoeira, por sentimento. Antes
sentia e depois por necessidade de liberdade usou a capoeira para isto. A
capoeira defendeu o Terreiro de Candomblé, quando os Terreiros foram
perseguidos, e os capoeiristas quando eram perseguidos escondiam-se nos
terreiros de candomblé. E nesta junção a cultura afro-brasileira está engajada
em uma luta. Samba de roda, maculele. (...)

Voz: Ohh, Ohhhhh, Ooohhhhh


Coro: Ohh, Ohhhhh, Ooohhhhh
Voz a capela: Ohh, chibata batia e o Sangue escorria nas costas, e o negro vivia cansado de apanhar,
daí eles fugiram para os quilombos, criaram a capoeira para se libertar.
Eh capoeeiraa
Coro:
Eh jogo de negro
Capoeira era arma usada na escravidão
Eh capoeira
Eh jogo de negro
Capoeira era arma usada na escravidão
Eh capoeira
Oh oh oh oh
Oh oh oh oh
Oh oh oh oh
capoeira, camará !
vamos embora !
vamos embora, camará !

Após esta canção, os alunos do Projeto Kizomba, a uma só voz, entoaram


seguidos pelos demais capoeiristas:
AH QUILOMBAR!!!!!
AH QUILOMBAR!!!!!
AH QUILOMBAR!!!!!
Após esse grito, trocaram-se alguns instrumentos, o ritmo da música e
paramentados com roupas de palhas e bastões, os jovens do Kizomba passam a exibir com
eximia destreza no jogo de bastonadas cada vez mais intenso e rápido, uma roda de
Maculelê:
Deus salve casa santa Bahia, ô África, vem cá vem, nos ajudar!
Deus salve casa santa Bahia, ô África, vem cá vem, nos ajudar!
Foi Zambi que criou o mundo Força baiana, força africana,
Foi Zambi que criou o mar força divina vem cá, vem cá!

246
Foi Zambi que criou o mar Força baiana, força africana,
força divina vem cá, vem cá!
Rosa Guerreira, Rosa Vermelha, Rosa Mística
vem nos ajudar.
(Durante a execução destes pontos, para exibição do Maculelê, os ritmos dos tambores tocam em um ritmo
acelerado e alto, sendo a música entrecortada por gritos ritmados)

Após a roda de capoeira e maculelê iniciou-se o Toque para Pai Benedito,


como já descrevi os ritos gerais de um toque em Manzo, registrarei, apenas as
especificidade deste toque, que ao contrário do previsto, conforme havia me
confidenciado Makota Cássia, dias antes, acabou por não ser um “toque rápido somente
para que Pai Benedito possa abençoar nossos irmãos quilombolas”. A sessão se iniciou
com um ponto de firmamento:

Na Aruanda tem um Negro


Entra o Agogo para marcar o ritmo
Letra: que não sabe caminha(aa)r (rr)
Demais vozes: Na Aruanda tem um negro, OHHH que não sabe caminhar
Cantador principal repete a frase acima
Demais repetem a frase acima.
Todos: ele caminha, é devagar, é devaga(aa) r(rr), é bem devagar (vozes arrastadas)
Cantador Principal: Na Aruanda tem um Negro
Todos: que não sabe caminha(aa)r (rr)
Na Aruanda tem um Negro
que não sabe caminha(aa)r (rr)
ele caminha, é devagar, é devaga(aa) r(rr), é bem devagar, é bem devagarzinho
(vozes arrastadas, ritmos marcados)

Pai Benedito: Louvado Seja o Senhor Ogum.


Todos: para sempre seja louvado.
Pai Benedito: sejam bem vindos à Senzala do Nego. Que abençoa a todos.
Obaluaiê tome conta desta casa. [som de chocalho].
Não deixe esta Casa padecer meu Pai!!!! OH PAIII !!! Não deixa!!!!
Após a fala inicial Pai Benedito, saúda o Intoto da Casa e a súplica exclama:
“Pai!!!!! Olhai estes Filhos na Terra meu Paiiii!!!! Oh Meu Pai!!!! Ilumina todo este povo
meu Pai. Dê mais coragem meu Pai a este Povo. Proteja e cubra esta Casa com o Manto de
meu Pai Oxalá.” Seguida de várias súplicas, que foram abafadas pelo ritmo dos atabaques
e da ladainha cantada: Obaluaiê, toma conta desta casa.

Pai Benedito então entoa:

247
Meu pai Oxalá Cantor Principal: Atotô, Atotô (ÔOO) Babá.
É o rei Atotô, Atotô (ÔOO) Babá.
Venha me valer Atotô, Atotô (ÔOO) Babá.
O velho Omulu Todos: Atotô, Atotô (ÔOO) Babá.
Atotô, Obaluaiê Atotô, Atotô (ÔOO) Babá.
O velho Omulu
Atotô, Obaluaiê
(repetido sequencialmente em um ritmo cada vez mais alto e veloz)

Cantor Principal: Salve Todo o Povo de Benedito já chegou


Aruanda. Já chegou lá de aruanda!
Filhos: é preto, é preto, é preto, é preto, Ele veio ajudar
é preto, é preto, é preto, é preto, oh A salvar filhos de umbanda!
voz mais alta: eu também sou um preto. Cantador: Adorei as Almas
Filhos: é preto, é preto, é preto, é preto, oh
voz mais alta: eu também sou um preto.
Filhos: é preto, é preto, é preto, é preto, oh
Não judia sinhá
É preto, é preto, oi Cambinda
Na terra de preto, oi Cambinda
Eu também sou preto, oi Cambinda
Na terra de preto, oi Cambinda

Pai Benedito:
- Que Zambi tome conta desta Casa [se inclina e faz uma nova série de súplicas.
Em voz mais alta entoa] “- Que São Jorge tome conta desta Casa. Ogum foi
menino, mas deu a Palavra, e Palavra de Ogum não é caçoada.”

Pai Benedito se dirige a Maurinho:

Filho, você lembra quando nego veio falava assim, oh minha Mãe, eu preciso de
um tabaqueiro para tocar para mim, na Festa de Nego Veio. Não tinha
tabaqueiro formado. O que você falou para mim?

Maurinho:

eu falei que [choro, voz embargada] falei que se o senhor me [engasga voz]
ajudasse aprender a tocar. Eu tocaria sempre para o [voz embargada] Senhor,
onde estivesse. Pai, onde o senhor estiver eu vou tá para cantar e tocar para o
senhor. Aplausos.
Pai Benedito: cadê meu amigo.
Todos: não veio.
Maurinho: ou será que ele veio.
Filhos: não sei.
Maurinho: deixou na saudade. Apanha laranja menino
Filhos: outra vez. Apanha laranja no chão
Maurinho: Faz uma, faz duas. Defende seu reino sózinho

248
Filhos: faz três. Com a força do seu coração
Maurinho: faz quatro, faz cinco. Convidei meu amigo
Filhos: ou faz seis. Não veio
Maurinho: procurei meu amigo Sera que é meu amigo
Filhos: não veio. Eu não sei
Maurinho: porque ele não veio. Me pediu amizade
Filhos: eu não sei. Eu dei
Maurinho: deixou na saudade. Me deixou na saudade
Filhos: mais uma vez. Outra vez
Maurinho: Faz uma, faz duas. Quem faz uma faz duas
Filhos: faz três, faz quatro. Faz tres
[sobem as vozes e palmas] Quem faz quatro faz cinco
Faz seis
Maurinho: apanha a laranja no chão, apanha Apanha laranja menino
menino. Apanha laranja no chão
Com a força do seu coração Defende seu reino sózinho
Apanha laranja menino Com a força do seu coração
Apanha laranja no chão Apanha laranja menino
Filhos: apanha a laranja no chão, apanha Apanha laranja no chão
menino. Defende seu reino sozinho
Com a força do seu coração Com a força do seu coração
Apanha laranja menino
Apanha laranja no chão
apanha laranja menino
Apanha laranja no chão
Defende seu reino sozinho
Com a força do seu coração

Na sequência, Pai Benedito relata sua alegria com o evento e da necessidade


da luta para defender o terreiro. Como se tratava de um Toque especial, o kambono puxa
um ponto de subida: quando o Galo canta as almas se levantam.

Quando o galo canta


As almas se levantam
Quando o galo canta
As almas se levantam
E o mar recua
Os Anjos do Céu dizem amém
e o pobre lavrador
Diz aleluia, diz aleluia
Seu Tranca Rua [Exu Catiço] diz aleluia
Diz aleluia, diz aleluia
Seu Tranca Rua diz aleluia
Diz aleluia, diz aleluia

Entretanto Pai Benedito pede para chamar duas mulheres grávidas presentes
e canta:

249
Vovô Rei Congo mora na beira do mar
Também sou congo, também quero morar
Na beira do rio o verde, só tem cobra coral.
Filhos: Vovô Rei Congo mora na beira do mar
Também sou congo, também quero morar
Na beira do rio o verde, só tem cobra coral.
Voz feminina mais alta: Também sou congo, também quero morar
Voz masculina mais alta: E ele vem beirando o rio, ele vem beirando o mar
E ele vem beirando o rio, ele vem beirando o mar
(Filhos repetem algumas vezes a cantiga nesta sequência)

Após a benzeção das mulheres grávidas, uma das Makotas diz a Pai Benedito
que tinha um caso grave de um rapaz. Após o inicio da benzeção, o corpo de Pai Benedito
se enrijece, as súplicas são gritadas em voz alta. Pai Benedito clama a Ogum e se dirige ao
rapaz pedindo que ele tome cuidado e que faça “rápido, rápido” um trabalho de proteção.
Diante da gravidade da fala, os atabaques cessam e se ouve Pai Benedito: Faça a
obrigação depressa meu Filho, você sabe do que eu to falando. Meu Pai Ogum que te de
força pelas espadas sagradas dele. Que meu Pai Xangô proteja pelas asas de Pai Benedito.

Outra Makota se dirige ao Pai, “só mais este outro jovenzinho Pai que não esta
se sentido bem e este outro aqui”. Pai Benedito, “leva ele para outro quarto, dá água para
ele. Pois a energia esta muito alta. Ele vai virar, ele não esta passando mal, ele vai é virar.
E não tá na hora.” Outra Makota leva mais um jovem a presença de Pai Benedito. Assim
que o jovem se aproxima, Pai Benedito exclama: “Meu filho você é aquele menino né que
chegou aqui com a cara toda queimada quando kaburé. Hoje tá aqui um homem.” E benze
o jovem, com a cantiga Segura Antônio é quimbada, é curador. Segura a barra do mar.

Após o fim do passe:

Nego véio abençoa a vocês neste kazuá. Muita paz e proteção. Nego veio tá
muito feliz de vê todos vocês. Mas ainda vai ter mais um batuque depois. Sunce
pode fazer seu batuque meu filho. Agradecer este povo todo, que veio fazer esta
coisa bonita. Trazer alegria no Terreiro do Pai, né meu Filho. Saravá!!! Nego
Velho que é o Chefe do Congar. Cê sabe cantar aquele ponto.
Kambono: Hoje tem alegria no terreiro do meu pai
Sarava meu Pai Benedito.
Que ele é chefe de conga
Pai Benedito: oh meu Filho, Deus Te abençoe Meu Filho.

Todos: Embala eu, embala eu meu Pai. Embala eu, Meu Pai.

250
Embala eu. (palmas)
Embala eu, Pai Benedito (palmas)
(Repete-se algumas vezes com o ritmo subindo e com todo Abantu recebendo as bênçãos de Pai Benedito).

Pai Benedito: “-Um abraço dado, de bom coração. É o mesmo que uma
bênção, uma benção.” Seguida de uma troca generalizada de abraços. Os kambonos
tocam e cantam para subir:

Preto velho vai se embora


a saudade no meu peito vai ficar.
Ele vai pra sua Aruanda
sarava filhos de umbanda

Durante toda a sessão foram servidos bolinhos de feijão, broas, bolos, batatas,
mandiocas, biscoitos, doces, pedaços de cana- de-acucar, refrigerantes, manjá. Após a
sessão foi servido uma canjiquinha de galinha e começou o samba de roda.

Os Toques são momentos propícios para percebermos a comunidade em ação


e a transformação do espaço em lugar da palavra política. O lugar que como visto é
composto da transversalização da des-re-territorialidades e des-re-territorializações.
Concorda-se com Agier (2011) quando este chama a atenção para a centralidade do
momento ritualístico para a compreensão de um processo em sua múltipla dimensão
relacional.

Ao colocar em prática a ontologia de Manzo, apresentada ao longo do


trabalho, o toque ilustra o processo de transversalização entre o Candomblé, a capoeira e
o quilombo em um território que conjuga um caráter de imanência e - não apenas –
transcendência, bem como a propositura da palavra como uma categoria cosmopolítica.

251
Capítulo 8 A Senzala e as políticas públicas

“Ogum foi menino, mas deu a Palavra, e Palavra de Ogum não é


caçoada”209. Mãe Efigênia

DANDALUNDA
Aruê Mametu Dandalunda, Nganga euála, menha janjau - Salve Dandalunda, Senhora do ouro
das águas doces e da beleza.
Kitula dandalunda Como sabá katumberequê
Tabalacimbe no kabandô
kuná zambi como sabá katumberenam
aê aê
kitula dandalunda aê aê aê
Tabalacimbe me kabandô
kuná zambi como sabá katumberenam
terêkompensu ê ê
tabalacimbe mi kabandô
Re re danda re re Dande, dande, dande danda
terêompensu á
danda euananguê euará
danda mutarere okê danda euadandê
dandalunda euafakê Oiá dila mungongo dande, dandaeuara
mikalando
Marimbá marimbabeuê terêkompensu ê ê
dandalunda euananguê Kissimbiê kimssibê monamê
ila mungongo mikalandô Leuá, leuí
Mamãe, koquê rerê terêkompensu á kissimbe ê
rerê oiá mandandá lumbondo euádeci
koquê koquê Sambá samba mona me kissimbe ê
minha tala kitula katumberequenam lumbondo euadecí
e samba ô mametu
Axokê axokê oiá mandandá sanmba mona me
ela é dandalunda katumberequenam Re re danda re re
danda mutarere
Dandalunda mainbanda Aruê sambe samba danda euananguê
koquê samba mona me danda mutarere
Dandalunda pererê dandá tatê katumberequenam dandalunda euafakê
dandá rerê samba mona me ê

Cantigas do ritual em homenagem A Inquisse Dandalunda, a décima Inquisse a ser saudado no Xirê.

209
Com estas palavras Mãe Efigênia ofereceu Ngunzo aos presentes em Manzo na reunião do dia 01 de
setembro de 2014. Esta reunião convocada pela comunidade teve a finalidade de uma vez mais discutir
possíveis caminhos para resolução das violações cometidas pelo poder público contra o grupo. Mãe Efigênia
ao seu modo comunicou aos presentes na reunião que a palavra empenhada é Ngunzo. A palavra proferida
é a palavra que se troca e, portanto, carregada de potência. Só não é possível afirmar que os atores do
poder público tenham entendido.

252
Como se localiza em uma área, reinvindicada pelo Estado como sendo de
domínio público, e como existe a promessa de transferência dos domínios da área do
executivo estadual para a Comunidade, o INCRA acompanha o caso de Manzo sem,
entretanto, ter iniciado210 as etapas previstas no Decreto 4887/2003211 para o
reconhecimento, demarcação, desintrusão e titulação de territórios quilombolas.

O acesso formalizado ao território é fundamental para que os membros da


comunidade possam realizar melhorias estruturais, físicas, elétricas, hidráulicas e
construtivas, que eles esperam ocorra através de uma relação de troca com os poderes
públicos, para que as atividades religiosas e educativas, bem como as moradias possam
ter a sua dignidade restabelecida.

A relação do grupo, com o poder público se intensificou bastante a partir de


fins do ano de 2011, devido à interdição do Quilomblé e a remoção do grupo para um
abrigo municipal. Nesta intensificação, tornou-se comum principalmente para as
lideranças a participação em reuniões, debates, audiências junto a órgãos públicos, como
prefeitura municipal – PBH, Companhia de Urbanização da cidade de Belo Horizonte -
URBEL, Coordenadoria Municipal de Promoção da Igualdade Racial - CPIR, Ministério
Público Federal - MPF, Assembléia Legislativa de Minas Gerais- ALMG, Secretária Estadual
de Planejamento – SEPLAG, Defensoria Publica Estadual, dentre outros órgãos públicos.

Como visto esta relação não surgiu de uma vontade do poder público, muito
ao contrário, nasceu da tomada da palavra política, pelas lideranças de Manzo, “brigamos
muito com o poder público, que dizia: não saber que ali tinha um Quilombo”.

210
Em fins de setembro de 2014, em acordo com os técnicos do setor quilombola do INCRA, a Comunidade
solicitou que este órgão inicie o processo visando à titulação de seu território, independentemente, da
atuação dos poderes municipais e estaduais. Para tanto, ficou acertado que eu irei elaborar de forma
voluntária o Relatório Antropológico da referida Comunidade, junto com uma colega antropóloga
funcionaria desse órgão. Entretanto, tal acordo está agora em análise pelo setor jurídico deste órgão.
211
Para ver uma análise mais pormenorizada do Decreto e demais conjuntos legais que normatizam a
questão quilombola, ver Marques 2008.

253
8.1 A desocupação de Manzo: repercussões, mediações e desdobramentos

Diante de um cenário denso e de jogos sérios (Otner, 2007a; 2007b), busca-se


compreender o campo de agência política e suas variadas reações à desocupação de
Manzo. Diferentes opiniões sobre esse episódio e as versões de eventos relacionados
serão descritos com a intenção de apresentar o quadro de posicionamentos a eles
associados. Trata-se, portanto, da análise de um processo que se atualiza diuturnamente.
Partirei do presente para um passado recente, através das memórias dos quilomblecistas
e da análise de documentos produzidos neste processo212. E ao fim retornarei aos últimos
acontecimentos.
No dia 14 de maio de 2013, à noite, nos reunimos no Terreiro, e gravamos em
áudio e vídeo – que tem como resultante um DVD. Abaixo transcrevo parte dos
testemunhos213 para que possamos localizar o debate aqui proposto:

Cássia: Eu sou representante da Comunidade de Manzo, e o fato de estarmos


aqui hoje, busca entendermos o que realmente aconteceu com a nossa
comunidade perante a Prefeitura de Belo Horizonte. Pois Manzo é uma
Comunidade Quilombola, certificada e mesmo assim vem sofrendo
desconversas e transtornos com a prefeitura. Fomos até eles em busca de apoio
e acabamos tendo que sair da nossa comunidade, ficar um ano no abrigo, perder
o nosso sagrado que é o nosso Terreiro. Nossa identidade e o motivo de
estarmos reunidos. Hoje não temos mais o Terreiro e a prefeitura não nós da
nenhuma resposta sobre isto e nem mesmo uma justificativa ou explicação, de
porque tivemos que ficar no abrigo. Passo para minha Mãe, que é além da Mãe
de todos nós, é Mãe do Terreiro e da Comunidade, e é a fonte de onde todos se
unem. Antes tínhamos a Mãe aqui por causa do Terreiro, e hoje por causa [da

212
Faz-se necessário esclarecer que parte dos documentos que poderiam ajudar na análise da questão e a
esclarecer às minúcias das violações ocorridas a comunidade, tiveram seus acessos negados ao pesquisador,
a comunidade bem como a órgãos de fiscalização como o Ministério Público Federal. Razao pela qual o
relato aqui apresentado contará com omissões – principalmente em relação à nominação de alguns dos
responsáveis pelos fatos ocorridos - e lacunas fáticas.
213
A princípio minha intenção seria transcrever sem edição todas as falas, mas de fato, tal opção se
mostraria bastante grande e repetitiva, a opção pela edição visa destacar aquilo que o pesquisador
considera mais forte das falas nos termos do que se propõe este capítulo. Por isto, editei parte de falas
nesta transcrição, bem como excluí falas inteiras de alguns dos presentes. A versão integral pode ser vista no
DVD que foi produzido deste evento.

254
falta] do Terreiro tivemos que abrir mão da Mãe, porque ela teve que ir para
Santa Luzia, para não deixar o nosso sagrado abandonado, por causa disto ela
teve que ir para lá, para cuidar do santo. E nós não temos nenhuma resposta da
Prefeitura: se ela vai nos devolver a nossa história e nossa identidade, ou se a
ideia dela era isto mesmo, des-fazer do nosso sagrado e da comunidade.
Mãe Efigênia: eu sou Efigênia Maria da Conceição e queria saber e entender o
que houve; o que aconteceu. (...) Cheguei aqui e encontrei o pessoal da Defesa
Civil retirando todo mundo. Aquela tristeza de ver filhos, netos e bisnetos
saírem, todo mundo com trouxas nas costas, como se fossem sem tetos. E eles
não deram posição nenhuma até hoje, tivemos que 87 o que aconteceu e o por
quê? É racismo. É preconceito. E é falta de respeito. Quero uma explicação, pois
tenho direitos, sou um ser humano, sou uma cidadã e quero um porque de sair e
depois retornarmos ainda com vários problemas. Eu quero uma explicação. O
Candomblé está parado, o Sagrado parado, uma instituição religiosa parada, e os
filhos perdidos. (...)
Maurinho: eu senti um pouco caso conosco. De repente somos comunicados
que devemos sair às pressas, pois a casa estava caindo. Tive que desmembrar a
família. Pois nem todos foram para o Abrigo. O abrigo em si, um local infestado
de rato. Nós dividíamos nossas casas com um monte de rato. Tinha que fazer
comida na conta, pois não podia sobrar, senão os ratos comiam tudo.
Dormíamos com rato passando em cima da gente. Quando falávamos com eles,
diziam que é assim mesmo. O nosso trabalho social foi desmantelado. (...) Ai
vem e fazem uma obra aqui sem sentido. Não entendo muito de obra, mas não
me parece que as obras feitas foram no que precisava(...) Queria uma
explicação. Pois são várias famílias, histórias separadas e destruídas. Agora
reestruturar esta difícil. A reforma foi pífia, nós mesmos que tivemos que
complementar. Eles entregaram sem água, sem luz, sem porta, sem janela, sem
banheiro. Entendeu. Telhados mal feitos, pois quando chove molha tudo lá
dentro. Eu não estou nada satisfeito com isto aqui, nós não pedimos para sair e
ir para o abrigo. Ficamos lá quase um ano, choveu, ventou, fez sol e nada
aconteceu (...).
Emerson: (...) cheguei do serviço e de repente estava todo mundo saindo e eu
sem saber o que estava acontecendo, totalmente perdido. E ai fomos parar no
abrigo com pessoas que nunca vimos, criações diferentes, maldades diferentes,
eu comecei me assustar; disseram que iria fazer uma reforma aqui e depois de
um tempo começaram a mexer, mas só em coisas desnecessárias. Não
trabalharam onde a Defesa Civil havia indicado perigos. Com isto teve uma
turbulência na minha vida: na questão de emprego, desmembramento da minha
família, perda de móveis, de material, perda sentimental. Pois tive que mandar
meu filho para a casa da minha Mãe, separar da minha ex-mulher, sair do meu
antigo emprego para resolver coisas aqui, tive prejuízos de porta, fios, telhados.
Na época que saímos tínhamos que vim aqui para as pessoas não entrarem, não
transformarem em local de uso de drogas. Então quero ter respostas do porque
aconteceu isto. (...) como todos estou tentando reestruturar e reconstruir a vida
e o sagrado. (...)
Regina: prometeram muita coisa, e no fim não fizeram nada. Na minha casa, por
exemplo, após a reforma tem goteiras. Quando chove, molha tudo lá dentro
parece que você esta no tempo. Não mexeram em nada que importa. A escada
aqui, a entrada tudo que eles prometeram reformar e não fizeram nada.
Ficamos aquele tempo todo no abrigo, aquele sofrimento e qual foi à reforma:

255
mudaram alguns telhados e nada mais. Mas as trincas continuam, os problemas
estruturais continuam o mesmo. Aliás, até pioraram algumas estruturas como
fiação.
Rosimeire: sou moradora da Comunidade. E ate agora o que recebi aqui do
poder público foi cesta básica e dois colchões. Na minha casa trocaram o
telhado, mas nos deixaram sem água, luz, banheiro. Na verdade eu que estou
providenciando estas melhorias pouco a pouco com meus ganhos. Não fui para
o abrigo, pois meus patrões não aceitariam a distancia, então tive que morar de
aluguel aqui perto.
Margarida: sou nora da D. Efigênia. Na minha casa as ferragens expostas que
corriam risco segundo a defesa civil, continuam lá. De reforma mesmo, só
levantaram uma parede. E ficou por isto mesmo, até hoje não entendemos
nada. A própria saída foi sem negociação. A ferragem continua igual, fizeram só
o tal muro de arrimo, no resto a casa esta igual. Nós que tivemos para voltar que
reformar o banheiro.
Cássia: (...) Fomos até o prefeito pedir um alvará para uma reforma, pois há
muitos anos atrás tínhamos conseguido uma verba de uma emenda parlamentar
para as reformas. Precisávamos somente que a prefeitura autorizasse o alvará.
(...) Quando a Defesa Civil veio aqui, eu pensei assim: a Defesa Civil veio para
avaliar, vai confirmar os riscos e a necessidade da reforma e o alvará será
concedido, pois tínhamos as verbas. Ai aconteceu o contrário. (...) De tempos
em tempos passamos a ser vistoriado pela Defesa Civil que sempre nos
indicavam os riscos: de desabamento, muro descer, incêndio. Mas somente nós
recebíamos notificações e alertas, os vizinhos não. Comecei a achar que poderia
ser perseguição religiosa e não preocupação com vidas. Na ultima vistoria, no
momento que ela ocorria aqui, eu estava na regional leste em uma reunião com
a própria prefeitura discutindo prazos e pedindo um recurso de uma multa
anterior que alegava que a cozinha do Candomblé estava irregular e em risco de
desabamento. Enquanto discutia este caso, pois além da multa fomos obrigados
a contratar uma empresa demolidora. Enquanto estava lá pedindo prorrogação
de prazos, pois não tínhamos de imediato, condições financeiras para contratar
a empresa demolidora. A Defesa Civil estava aqui desalojando as pessoas. Com
uma ordem de retirar todos os moradores e só sair após o cumprimento desta
determinação. Foi onde tudo começou. A princípio não tinha lugar para ir,
depois sugeriram nos dividir, indo alguns para o abrigo São Paulo. Ai eu disse:
nós somos comunidade, nascemos juntos e só vamos sair daqui se for juntos,
vamos permanecer juntos. Foi ai que mandaram a Assistência Social,
comuniquei a eles que só sairíamos juntos e se pudéssemos levar nossa cultura,
tradição e sagrado. E também com a promessa de respeito ao Sagrado, pois sem
ele não somos nada. A prefeitura então nos garantiu que teríamos espaço para a
cultura e projetos no Abrigo. Somente o Sagrado que deveria respeitar os
demais moradores. Isto tudo bem, apesar de que lá tínhamos que ouvir as
manifestações religiosas dos outros. Mas tudo bem. (...) Não entendo! A
prefeitura veio aqui e na reforma construiu um muro de sustentação do lote
com a rua, para evitar desabamento. Reformou o telhado que é a linha de frente
das casas, e ai a mesma prefeitura vem posteriormente nos multar, pois
estamos invadindo a rua. Quem invadiu a rua então foram eles, pois quem
construiu o muro e os telhados foram a prefeitura nesta reforma mal feita. E,
além disto, quando viemos para cá e construímos nem rua existia, de fato quem
invadiu as casas foi à rua e não o contrário. Esta rua aqui na verdade, é assim,

256
quando anos atrás pedi asfaltamento, eles alegaram que era ZEIS, mas quando
nós pedimos algo para a comunidade, ai somos cidade formal. Ficam usando
estes termos conosco, pensando que somos leigos, ignorantes, burros. Tudo
bem, até passamos por cima disto. Mas queremos resposta: cade o nosso
sagrado? Cade os nossos santo? Cade o candomblé? Que eles falaram que iriam
reformar. Que iria ficar tudo direitinho e bonitinho? Nós estamos impedidos de
ter a religião, pois estamos sem os Santos. E o principal de tudo, cade a nossa
mãe? Pois ela morava aqui, mas precisou ir embora para guardar o nosso
sagrado em outro lugar. Cadê nossa história? A prefeitura não dá respostas. Esta
é a pergunta que cada um de nós fazemos para a prefeitura e o governo em
geral. Outra coisa que sentimos é uma grande omissão da Fundação Palmares,
pois ela entrega certificado para uma comunidade, mas deixa, ela para sofrer
preconceito, discriminação com os poderes municipais e estaduais. Porque até
hoje ela não intervém, apoia Manzo. Em Manzo o problema não é com
fazendeiros como nos rurais. Aqui nós temos um documento de compra desta
área, minha mãe comprou este terreno. Comprou e pagou. O problema é o
reconhecimento pelos poderes públicos. Porque será que vizinhos regularizam e
nós não. Será que é porque somos negros? Somos de Terreiro? Somos do
Candomblé? Mas esta é nossa religião, somos assim, vivemos assim, vamos
morrer assim. E queremos respostas nestes termos. O reconhecimento para
Manzo na opinião do governo serve para que? Para sermos mais um na luta. (...)
E falam que Manzo, invadiu. Invadiu que rua? Isto aqui não era rua, era só mato.
Foi à cidade que nos invadiu. Estamos exprimidos, mas vamos permanecer aqui
e vamos lutar contra todos. Não vamos sair. (...) O nosso sagrado, a nossa
história? Não foram eles que nos deram. Nós construímos nossa história, nós as
trazemos desde os nossos ancestrais. Não vamos esquecer nossa história. Não
adianta, podem nos colocar em abrigos no meio de pessoas sem crenças,
cultura, educação como fizeram, mas nós temos cultura, tradição, história e
ninguém nos toma isto.
Maurinho: temos aqui um projeto, o Kizomba, atuamos com a comunidade do
bairro, com as pessoas do Terreiro. Um projeto social que através da Capoeira
podemos atuar na formação, educação dos meninos, pode levar outros
conhecimentos e disciplinas. Quando fomos para o abrigo minha maior
preocupação era não perder o projeto. Inclusive comuniquei a assistência social,
que levaríamos o projeto para o abrigo e seria nossa contribuição para as
crianças abrigadas, pois abarcaríamo-las também. E de fato comecei o projeto
lá. Mas fomos impedidos pelas burocracias. Ainda tentei explicar o projeto, a
importância do mesmo, as melhorias que já estávamos vendo nas crianças
abrigadas, que antes ficavam sem nada para fazer e viviam brigando entre elas,
o que significava a briga entre os pais delas ao tomarem as dores dos filhos. Mas
eles simplesmente proibiram o projeto.
Cássia: era uma cadeia para famílias. Quem entra ali, fica sem esperança e
previsão. Às vezes as pessoas perguntam: qual a importância tão grande do
Terreiro? Gente: aqui nós fomos criados, mesmo que sem pai, a maioria aqui é
sem pai, como acontece em vários lares, mas fomos criados pelas entidades.
Aqui éramos sentados para ouvirmos o preto velho nos educarem. Aqui fomos
educados pelas entidades no respeito pelo próximo, aos que sabem mais, aos
antepassados e as memórias, fomos criados assim. Manzo é a proteção ao
mundo lá fora. Brincar aqui é fazer Candomblé, assim fomos criados e assim
criamos nossos filhos. E de repente, vem alguém de fora e diz: acabou, chega!!!

257
E aquilo que vocês chamam de sagrado não vai com vocês. Quando chegamos
ao Abrigo ficamos assustados, pois lá é tudo diferente, respeito no abrigo,
ninguém conhece. Mas sabe por que? porque eles já são frutos do desrespeito,
são retirados de suas casas de maneira desrespeitosa. Nem os culpamos, pois
eles ainda são mais vítimas que nós. Pois nós ainda temos onde buscar
identidade, eles não. Nós sentimos falta de poder cantar nossos cantos
africanos, nossas cantigas religiosas, pois isto nos alimenta também. Dá-nos
coragem para levantar todo dia e trabalhar com disposição e superar
transtornos do dia. Os meninos aprenderam a ter confiança neles próprios,
porque sempre falamos com eles: você não é sozinho, você tem um orixá que te
protege. Não faz isto, pois isto não esta de acordo com o Santo. Então aqui
crescem assim. Sempre falo que Manzo são 11 famílias que permanece ligada,
mas Manzo são diversas famílias. Somos Terreiro, aqui reunimos famílias para
serem educadas juntas. Aqui no nosso Terreiro podíamos andar o dia inteirinho
de baiana, com nossas contas e contraeguns, de pé no chão, porque as pessoas
sabem que somos assim. Conquistamos respeito na região. Podíamos entrar na
padaria e comprar 50 pães que sabiam que viria para a Capoeira, para o
Terreiro. Éramos reconhecidos por sermos do Santo. Já que respeitamos e
prezamos por ele, não entendemos porque o governo demora em reconhecer o
que já é de Manzo. Esta demora do governo, no processo, o não
reconhecimento; somos comunidade; somos projetos sociais; temos utilidades
públicas; dizem que somos patrimônio imaterial. Que patrimônio é este? É assim
que se trata um patrimônio? Qual a forma de proteger este patrimônio? É assim
desapropriando e tirando o principal da Comunidade, nosso Candomblé. Pois
somos candomblecistas, tocamos atabaque, isto é nossa história e faz parte da
história do Brasil. Nós somos parte da história deste país. Porque o distrato,
perseguição e pouco caso conosco quando pedimos apenas os nossos direitos?
A Capoeira é nossa porta para demonstrar nossos modos e melhorar a educação
dos jovens e crianças. Dentro de um Terreiro de Candomblé acontece muita
coisa boa. A capoeira é uma forma de reunir pessoas da região e diminuir o
medo e preconceito com a religião. O mesmo vale para o Preto Velho, ele aqui é
educador, foi obstetra da comunidade: fez vários prénatais, pois aqui na região
era comum, as mulheres grávidas virem ao preto velho durante a gestação para
bênçãos e acompanhamento. Qual o incômodo que criamos na região para nos
retirar. Aqui Pai Benedito é um protetor das crianças. Aqui não aprendemos
porque falaram, aprendemos porque aqui presenciamos o Preto Velho
educando as crianças. Podem dizer que não acreditam. Tudo bem. Mas não
abrimos mão deste modo de vida. Para alguns parece que não podemos exercer,
pois incomodaria a outros. Mas a verdade é que quando resolvíamos descer de
lá do Granja de Freitas [complexos de conjuntos habitacionais que hoje consiste
um bairro vizinho ao Taquaril, Alto Vera Cruz e ao Santa Efigênia/Paraíso e onde
se localizava o Abrigo] até aqui no Santa Efigênia a pé, com berimbaus,
atabaques, a criançada do abrigo vinha conosco, a pé. Então para que fechar as
portas lá. Fecharam a porta até para a Capoeira um Patrimônio reconhecido do
país. A única coisa que levamos daqui para lá e mesmo assim foi proibida.

Há vários anos, a comunidade tem procurado regularizar seu território e sua


ocupação, mas não tem tido sucesso. A situação agravou-se a partir do ano de 2011.
Inicialmente, no dia 23 de março, a Comunidade de Manzo recebeu uma vistoria da

258
Defesa Civil Municipal, quando foi emitida uma Notificação em que se constatou
“problemas de infiltrações e umidade causando danos nas ferragens das lajes e vigas”
sendo indicada então a necessidade de recuperação estrutural: “os moradores devem
executar reforma das casas principalmente eliminar os pontos de infiltração, tratar as
ferragens expostas e recompor sua proteção (massa forte)”.

Essa notificação apesar de constatar os danos acima descritos nos imóveis da


comunidade, afirmava que tais avarias não colocavam em riscos imóveis vizinhos, não
apresentavam riscos parcial ou total de desabamento do imóvel e, também não
apresentava riscos de tombamento de muro, deslizamento de encosta, inundação,
alagamento, incêndio ou queda de árvore. Motivos pelo quais não se apresentavam
também riscos à perda de vida dos ocupantes dos imóveis e de terceiros e/ou mesmo
danos aos bens públicos e de terceiros.

Em 18 de outubro de 2011, foi feita uma nova vistoria no Quilomblé quando


foi emitida uma nova Notificação em que se constatou que “o local das 07 residências
abaixo do nível da rua, trincas, infiltrações em todas as moradias, alguns fios expostos e
pilar base sustentação com ferragens expostas e com queda de material” sendo indicada
então a necessidade de “proceder a contratação de profissional habilitado para avaliação
e intervenção necessária, não ocupação das residências do fundos (4), monitorar local e
residências do nível da rua (4)”. Esta notificação também trazia a necessidade de
“contratar profissional qualificado para reforço da fundação e estrutura, já que a PBH não
atende risco construtivo”.

A notificação diferentemente da anterior, afirma que os danos constatados,


colocavam em riscos imóveis vizinhos, apresentavam riscos parcial ou total de
desabamento, apresentava riscos de tombamento de muro, e risco de incêndio. Mas
reafirmava que não existia risco deslizamento de encosta, inundação, alagamento ou
queda de árvore. Os danos elencados, segundo a notificação, causavam riscos a perda de

259
vida dos ocupantes dos imóveis, risco a vida de terceiros e danos aos bens públicos e de
terceiros.

A segunda notificação, como bem registrou o procurador federal Rodrigo


Prado na folha 23 do Inquérito Civil Público - ICP 1.22.000.003507/2011-63 Volume 01,
Procuradoria da República – Minas Gerais, Ministério Público Federal, trazia informações
conflitantes, uma vez que em sua primeira folha sugeria “não ocupar residências até a
avaliação pormenorizada” e em sua terceira e última folha dizia no relatório final “os
moradores podem permanecer no local, mantida as condições atuais”.

Logo após a segunda vistoria, e mediante a informação passada pelos técnicos


da Defesa Civil Municipal, a Associação Cultural da Comunidade Quilombola de Manzo
Ngunzo Kaiango encaminhou no dia 24 de outubro um ofício à Presidência da Fundação
Cultural Palmares - FCP, em que solicitava “em caráter de urgência uma providencia
efetiva na situação a qual encontra a Comunidade Manzo Ngunzo Kaiango” relatava ainda
que “esta comunidade encontra-se sob a intervenção da Defesa Civil do Município de Belo
Horizonte, que exige dos seus moradores a retirada do local por ser área de risco
eminente, o que já era de conhecimento das autoridades locais, há pelo menos 04 anos
atrás, sem que tenha havido alguma providência da Prefeitura de Belo Horizonte”. Por fim,
solicitava orientação e acompanhamento da Fundação214 à situação, bem como a
intervenção dessa junto a outros órgãos públicos como PBH e INCRA no intuito de buscar
a melhor solução para a questão, uma vez que a comunidade não dispunha de “condições
financeiras e estruturais de buscarem outra moradia”.

No ofício à Palmares, como visto, a Comunidade informa que a situação a que


estava submetida era de conhecimento das autoridades há pelo menos 04 anos e que as

214
Constata-se pela análise documental, quanto pelas falas de lideranças da comunidade, bem como pelo
meu acompanhamento, que a Fundação Palmares nada fez em relação ao caso. Segundo algumas
lideranças, a Palmares designou um funcionário para uma visita ao grupo. Sem, no entanto, apresentar
qualquer tipo de solução.

260
mesmas não tomaram qualquer providência no sentido de minorar a situação de risco. O
oficio comunicava ainda a Fundação Palmares que a solução dos problemas levantados
pela Defesa Civil deveria passar pelo diálogo e troca com os órgãos públicos, uma vez que
a comunidade não possuía condições financeiras para resolução do problema.

Exemplos desta tentativa de diálogo estão reunidos no Inquérito Civil Público -


ICP 1.22.000.003507/2011-63 Volume 01, Procuradoria da República – Minas Gerais/
Ministério Público Federal, por exemplo, na folha 25 do ICP encontra-se apensado uma
carta do Gabinete do vice-prefeito215 da cidade de Belo Horizonte, de 06 de julho de 2009,
a carta é uma resposta à solicitação feita por Mãe Efigênia para o levantamento dos
custos para a construção e revitalização da sede do Quilomblé de Manzo e também da
possibilidade de limpeza e desratização do lote localizado ao fundo da Associação. Ao que
recebeu como resposta: “informamos que a solicitação foi encaminhada à Secretária
Adjunta de Administração Regional de Serviços Urbanos Leste e estamos aguardando um
retorno”.

A comunicação não se resumiu ao vice-prefeito, na folha 11 e subsequentes do


Inquérito Civil Público - ICP 1.22.000.003507/2011-63 Volume 01, Procuradoria da
República – Minas Gerais/Ministério Público Federal encontra-se também apensado um
ofício enviado no dia 16 de fevereiro de 2009 pelo Centro Nacional de Africanidade e
Resistência Afro-Brasileiro - CENARAB ao prefeito de Belo Horizonte, com cópia ao
ministro da Igualdade Racial, no qual solicitavam “providências urgentes por parte desta
administração municipal em relação a situação de risco eminente de desabamento da
construção edifcada na rua São Tiago, 216 (...) sede do primeiro Quilombo Urbano
reconhecido por autodefinição em uma comunidade de matriz africana em nosso estado”.

215
O então vice-prefeito de Belo Horizonte Roberto Carvalho, ex- vereador e deputado estadual pelo Partido
dos Trabalhadores tinha como uma de suas bases eleitorais a regional leste da cidade de Belo Horizonte,
onde se localiza o Quilomblé. Sua ligação como Mãe Efigênia era maior, uma vez que a Mãe fora empregada
doméstica de parentes de Roberto, e por isto ele teria – no discurso - uma atenção maior com o grupo.

261
Portanto, foi a comunidade, diretamente ou através de parceiros que veio a
público reconhecer a situação de risco que sofria e foi à própria comunidade, em 2009 que
reforçou aos poderes públicos municipais uma ação conjunta para reparar tais riscos. Tal
solicitação reforçava os pedidos na mesma direção, feitos em 2007 pelo mesmo CENARAB.
No ofício de 2007, enviado ao prefeito da cidade e ao ministro da Igualdade Racial, o
CENARAB anexa um relatório produzido pela própria entidade, onde apresenta um rápido
histórico da Comunidade, contendo sua formação, as atividades sociais, educacionais,
culturais e religiosas desenvolvidas pelo grupo, a comunidade de residentes e por fim o
relato produzido por um arquiteto contratado pelo CENARAB para avaliar a situação física
e construtiva da Comunidade. Para entender este relatório, é necessário, primeiro
compreender a sua elaboração, que se deu mediante um projeto maior216, conduzido pelo

216
No ano de 2006, o Coletivo de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros em Minas Gerais –
CEABRA em parceria com o CENARAB assinaram um Convênio de número 054/2006 com a União por
intermédio da Fundação Cultural Palmares através do procedimento administrativo nº 01420.003333/2006-
14, tratava-se de um projeto a ser iniciado em dezembro de 2006 com termino em maio de 2007 com a
finalidade de realizar projetos arquitetônicos de reforma e reestruturação de 03 Templos de Matriz Africana,
o Centro Religioso e Cultural Afro Brasileiro LogunEdé, Associação Religiosa e Cultural Manzo Ngunzo
Kaiango, Associação Religiosa e Cultural Bakisso Unkambo Ameã.
A escolha destes 03 Templos de Matriz Africana, ao que se depreende da leitura dos documentos
elaborados pelos proponentes do convênio se deveu a importância destes Templos em suas regiões, sua
tradicionalidade religiosa, seus trabalhos sociais, educativos e culturais e sua importância no contexto das
lutas pela igualdade racial.
Por exemplo, a escolha do Centro Religioso e Cultural Afro Brasileiro Logunedé, se deveu dentre outros
fatores: por ser uma referência na região do Barreiro, classificada pelos proponentes do projeto como uma
das áreas de maior concentração negra e operaria da cidade; pelo comprometimento do zelador de Inquisse
da Casa, o Tatetu de Inquisse Arabequen com a organização da população negra e carente “sendo que seu
terreiro se tornou há anos uma das maiores referências contra o racismo e a intolerância religiosa” (fls 38).
Os promotores do projeto destacam em várias passagens a importância deste Centro como um espaço de
debates políticos e sociais a favor das lutas pela igualdade racial, bem como seu papel educacional inclusive
junto a crianças e jovens na valorização dos saberes, fazeres e conhecimentos afros brasileiros.
Segundo relatos das entidades proponentes, o projeto desde o seu começo enfrentou dificuldades de ordem
jurídica e burocrática, por ser um convênio com entidade pública. A primeira etapa do projeto foi a
realização da análise de solo, topografia e sondagem dos Terreiros participantes. Tal procedimento visava o
conhecimento da qualidade do solo para as futuras interferências na reforma.
Após a conclusão das análises de solo e topografia deu-se inicio a etapa de elaboração do projeto
arquitetônico de reforma e reestruturação que se baseava, em uma metodologia participativa, na qual o

262
CENARAB para a reforma e recuperação de Terreiros de Matriz Afro, da Nação Angola na
Região Metropolitana de Belo Horizonte.

É no contexto desse projeto, ou melhor, como resultado desse projeto que o


CENARAB escreve em 2007 o referido Ofício de denuncia da situação de Manzo aos
poderes públicos. Como dito, o anexo deste ofício, trazia relevantes informações, como o
número aproximado de moradores “52 pessoas, em suas dependências, sendo que a
maioria destas crianças”. A área ocupada pela comunidade “uma área de 260 metros
quadrados” e as atividades desenvolvidas pela comunidade como oficinas de percussão,
dança, capoeira, “as crianças são desde cedo educadas para terem autoestima e postura
firme diante da vida e da sociedade” ou então que “as pessoas podem ser elas mesmas,
felizes com suas historias e ancestalidades”.

O relatório descrevia ainda algumas das atividades realizadas pelo grupo,


como a distribuição de alimentos e roupas, entretanto concentrava-se na caracterização
da situação precária dos imóveis. E na negativa, por parte do poder público municipal, em
conceder a autorização para a reforma, apesar da difícil situação construtiva-estrutural do
imóvel. Segundo consta neste documento do CENARAB, o poder público municipal alegou:
“a área em questão não é regularizada, trata-se de parte de lote colonial (...)” razão pela
qual, ele não concederia autorização para a realização das obras e intervenções. Anos
mais tarde em 2013, Mãe Efigênia comentaria: “comprei, paguei o terreno. Ai chega e diz
que se comprei o terreno, foi na mão de quem não era dono”.

Por ser um remanescente de uma gleba de terra indivisa, a Gerência de


Licenciamento de Parcelamento de Solo - GELPS da PBH exigiu para a liberação da obra, a
comprovação da regularização do imóvel através de uma série de documentos, como

arquiteto contratada mediante conversas com as lideranças dos Terreiros e considerando as especificidades
religiosas elaboraria os projetos: técnico, arquitetônico e construtivo de reforma e reestruturação.

263
registro e matrícula do imóvel. Como afirmaria o CENARAB, na carta ao prefeito e ao
ministro da SEPPIR em 2009, tais exigências não faziam sentido, pois como já alegara a
entidade em ofício de 2007, com base em dados do próprio poder municipal: “se torna
um paradoxo, quando nós é exigido documentos que sabidamente não existem, no caso
escritura do imóvel, registro ou matricula do imóvel e certidão negativa de ônus.” 217

Mediante este paradoxo, ainda no ano de 2007, o CENARAB solicitou uma


audiência junto a URBEL, para expor a questão e chamar a atenção para o fato de que, o
caso em tela, se tratava de um Quilombo Urbano, portanto a questão da titularidade das
terras deveria ser analisada de modo específico e em conformidade com a legislação
constitucional para os remanescentes de comunidade de quilombos. A Urbel após esta
audiência remeteu o caso para outra instância, a Secretária de Regularização Urbana, que
por sua vez não apresentou nenhuma solução para a questão.

Com ausência de respostas do poder público municipal, o CENARAB procurou


a Superintendencia da Caixa Econômica Federal e apresentou o problema de moradia
enfrentado pelo grupo, bem como a existência de dois lotes vagos vizinhos a Comunidade
que poderiam ser adquiridos e permitiria na reforma uma maior dignidade para as
moradias, e para as atividades religiosas, culturais, sociais e educacionais. A resposta
obtida da Caixa foi positiva, segundo relato contido no anexo da carta enviada ao prefeito
e ao ministro:

O superintendente da Caixa Econômica Federal, Senhor Dimas Lamounier nos


colocou que há recursos para investimentos na área de habitação e que era
necessário uma interlocução com a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
através da Secretária Municipal de Habitação, na ocasião o superintendente da
CEF colocou-nos em contato com a Administração Municipal de quem até o

217
Em setembro de 2014, a defensora pública Ana Claudia Alexandre presente, na reunião no Quilomblé,
exclamou perplexa, algo na seguinte direção: o racismo institucional é tão absurdo que a comunidade paga o
preço de ter agido dentro das regras e normas. Se tivesse feito como a maioria, e realizado as obras sem as
devidas regulações, apesar de incorretos não teriam sofrido a violência do Estado.

264
presente momento aguardamos a resposta a nossa solicitação de audiência para
apresentarmos a demanda.

Mediante a informação, o CENARAB se reportou a Secretária Municipal de


Habitação, entretanto, a comunidade aguarda em janeiro de 2015, respostas da Secretária
Municipal de Habitação a este ofício encaminhado em 2009.

Esta movimentação em 2007 e o documento de 2009, não surtiram efeitos


positivos, sendo a comunidade procurada pelo poder público, como já exposto aqui,
primeiramente em março de 2011 e posteriormente em outubro do mesmo ano, não para
um diálogo como havia sugerido a comunidade, mas na forma de um poder ordenador e
policial, através das notificações de risco e com exigências como a elaboração de projetos
de demolições e realização de reformas que a Comunidade naquele momento não
poderia arcar.

Como me afirmou os quilomblecistas, eles sabiam da necessidade de reforma,


e, por isto mesmo, foram eles que comunicaram ao poder público tais riscos e pediram
uma parceria para solucionar o problema. O que torna inconcebível para estes, portanto,
a forma de atuação do poder público que, primeiro, impediu a realização das reformas
quando o grupo possuía profissional e verbas para tal, em parceria com o projeto do
CEABRA-MG e CENARAB e, em um segundo momento, quando o grupo não mais possuía
tais condições materiais, passa a exigir do mesmo em caráter de urgência a realização de
projetos, obras e reformas sob a pena de multas diárias de um salário mínimo além de
processos judiciais.

Ao agir deste modo, o poder público desconsiderou os apelos por um caminho


cruzado e de trocas, bem como os direitos específicos da comunidade enquanto um
remanescente de quilombo, bem como a importância do trabalho social, cultural e
educacional vistos por eles como fundamentais para a comunidade do entorno. De modo
que, ao invés de apoiar – fazer a troca – este trabalho, o poder público agiu na direção de
inviabilizá-lo.

265
Diante desses fatos, em fins do ano de 2011, elaborou-se em conjunto,
comunidade e rede de apoio à luta de Manzo, uma carta que foi encaminhada para várias
intituições com denúncias de violações de direitos, dentre elas Instituto do Patrimônio
Histórico e Artistico Nacional - IPHAN.

Um novo relatório a respeito da real situação dos elementos construtivos da


comunidade foi realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional -
IPHAN. No dia 18 de novembro de 2011, um arquiteto lotado no IPHAN emitiu um
relatório onde afirmava que:

O imóvel é composto de casa-sede do Quilombo, que é circundada por outras


moradias, assentadas de forma sequencial, improvisada, escalonada no terreno,
que é em declive. As moradias são pertencentes a uma mesma família. Verifica-
se como é próprio nas construções de famílias de baixa renda, em ocupações
fundiárias informais, a execução de obras com pouco planejamento, estruturas e
compartimentação quase sempre subdimensionadas, ou seja, sem as
orientações técnicas adequadas de arquitetura e engenharia.

Na conclusão de seu relatório o arquiteto informa:

A condição deste imóvel é uma realidade que incomoda a todos. (...) neste
sentido há que se manter contato com os organismos públicos competentes.
Primeiro para se informar sobre as avaliações e medidas até então adotadas em
relação aoa imóvel e, segundo, para se iniciar entendimentos no sentido de se
formular ações integradas de preservação deste importante espaço de
manifestação cultural. (Folha 19 e 20; Inquérito Civil Público – ICP
1.22.000.003507/2011-63 Volume 01, Procuradoria da República – Minas Gerais,
Ministério Público Federal).

Este relatório, ao reafirmar os riscos construtivos ainda que não difira muito do
relatório realizado anos antes pelo arquiteto contratado pelo CENARAB e CEABRA tem a
importância de ser uma resposta institucional do IPHAN, que se posicionou deste modo
sobre a importância de Manzo como bem cultural material e principalmente imaterial e da
necessária intervenção dos poderes públicos na recuperação de seu patrimônio material.

A movimentação dessa rede de apoio obteve alguns ganhos parciais, como


uma reunião ente os quilombolas e a PBH através da CPIR – Coordenadoria Municipal de
Promoção da Igualdade Racial que assumiu o compromisso de centralizar as questões
referentes a Manzo, bem como sensibilizar aos demais setores da PBH, para o respeito à

266
especificidade do grupo enquanto Quilombo e Comunidade do Santo. Além da CPIR, o
Escritório de Direitos Humanos – EDH, órgão pertencente à Secretária Estadual de
Desenvolvimento Social - SEDESE, instigado pelo INCRA218 passa a acompanhar a situação
da comunidade. O próprio EDH registra em relatório interno:

No dia 24 de novembro de 2011, em reunião com o CONEPIR [Conselho Estadual


de Promoção da Igualdade Racial], o CEPIR [Coordenadoria Estadual de
Promoção da Igualdade Racial] e o Incra, foi solicitada a atuação do EDH no caso
do quilombo urbano Comunidade Tradicional Terreiro Manzo Ngunzo Kaiango
(...) O EDH foi informado que a Comunidade possui Certidão de Auto Definição
como Remanescente de Quilombo concedida pela Fundação Palmares. No
entanto, o Incra não estava apto a realizar a demarcação do terreno para a
titulação das terras, uma vez que esse é propriedade do Estado de Minas Gerais.
(...) No dia 12 de dezembro de 2011, em reunião com o CEPIR e o CONEPIR, o
EDH disponibilizou-se a elaborar junto a Cepir um modelo de decreto – a ser
encaminhado pelo CONEPIR primeiro ao secretário da SEDESE, vislumbrando
posterior encaminhamento ao Senhor Governador – desafetando e declarando o
terreno ocupado pelo Quilombo Manzo Ngunzo Kainago como de interesse
público para fins de titulação. É importante mencionar que o decreto chegou a
ser elaborado, mas, posteriormente o EDH averiguou que a desafetação para
doação de terreno deve ser feita por meio de um Projeto de Lei. (...) Com
relação a desafetação do terreno para sua posterior doação pelo Estado, o EDH
firmou a seguinte perspectiva: o terreno ocupado pelo quilombo Manzo Ngunzo
Kaiango esta em nome da Secretaria de Planejamento e Gestão de Minas Gerais,
o que implica um entrave ao processo de titulação desse. (...) Para tanto é
necessário que o Executivo apresente um Projeto de Lei. Assim o EDH optou por
formular um parecer referente à pertinência de um Projeto de Lei visando a
desafetação do terreno e sua posterior doação a comunidade. (Folhas 94-95, os
grifos são meus)

No dia 23 de dezembro de 2011, um dia chuvoso como de costume nessa


época do ano, a Defesa Civil Municipal emitiu mais uma notificação, que foi entregue a
Comunidade, no dia 26 de dezembro, com os seguintes dizeres:

Notificação

218
Segundo o Incra a área que o grupo requer pertenceria ao poder executivo estadual, devendo este em
consonância com a legislação atuar na titulação do território da comunidade. Esta posição do Incra,
acordada inclusive com outros organismos estatais foi problemática, visto que o Estado de Minas Gerais
através de seu poder executivo não possui políticas efetivas para titulação de territórios quilombolas. E
como afirmado, foi revista em setembro de 2014, a pedido da Comunidade.

267
O não atendimento no prazo de 03 (três) dias aos termos
desta notificação sujeitará o infrator às seguintes penalidades:
multa aplicável nas reincidências a cada 1 (um) dia, em
valores progressivamente aumentados do valor base,
embargo, interdição, cassação da licença, demolição e
impedimento de novo licenciamento, conforme Lei 9725/09,
artigos 74 a 80 e anexo VII, item 03 e Lei 8147/00.
Prazo de recurso: 03 dias.

Após a nova notificação, a Comunidade e a rede de apoiadores fez circular


novamente a Carta já divulgada em novembro, em que se conclamavam os poderes
públicos ao reconhecimento da especificidade do grupo como comunidade quilombola e o
respeito a sua forma de organização cosmológica. Mediante o conteúdo da carta, o
Ministério Público Federal recebeu em seu plantão judiciário, já que o órgão estava em
recesso pelas festas de fim de ano, no dia 02 de janeiro para uma reunião a Sra. Cássia
Cristina, vice-presidente da Associação Quilombola e alguns pesquisadores do Núcleo de
Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais/NuQ-UFMG. No despacho resultante
desta reunião, o procurador de plantão Rodrigo Leite Prado registra que este órgão iria
atuar, preferencialmente junto à prefeitura municipal da cidade para buscar uma solução
adequada para a questão.

Entrementes, no dia 06 de janeiro, a Defesa Civil Municipal decidiu embargar o


quilombo e determinar a retirada compulsória dos moradores. Na decisão da Defesa Civil
não foi levada em consideração as especificidades do grupo. Somente, após a insistência
de Makota Cássia e outras lideranças, como já visto, pelo respeito aos direitos do grupo
como comunidade do santo e quilombola, com a participação da CPIR-PBH e de uma
assistente social, foi encontrada uma solução de meio termo, o encaminhamento dos
moradores do Quilombo ao Abrigo Municipal Granja de Freitas, onde permaneceriam por
no máximo dois meses, período em que se realizariam as obras necessárias para o retorno
do grupo.

268
O ano de 2012 iniciou para os moradores de Manzo com seu deslocamento
compulsório. O sentimento do grupo, nesse primeiro momento foi de que a saída ainda
que dolorosa e triste, era necessária para a sua própria segurança e para a segurança de
terceiros que frequentavam a comunidade, no entanto, o que os incomodavam era, por
um lado o descaso anterior do poder público aos apelos do grupo por uma troca em que
cada parte multiplicaria suas potencialidades para a resolução da questão aventada e, por
outro lado, a falta de perspectiva efetiva para resolução dos problemas que o grupo
enfrentava. O que se mostrou uma visão correta, já que ainda agora, em começos de 2015
o impasse continua.

Uma vez que a Comunidade não possuía os meios materiais para a reforma,
bem como não possuía os documentos exigidos pelos poderes públicos para acessar as
políticas públicas do campo da habitação, a solução aventada naquele começo de 2012,
por alguns técnicos, fora a de regularização fundiária através de programas como Vila Viva
ou o Minha Casa, Minha Vida na modalidade em que as obras são realizadas pelo próprio
poder público.

Tais proposições continham 02 óbices. Um de caráter pragmático: a adoção


efetiva das propostas previa-se poderiam demorar anos entre prazos de negociação,
aprovação, elaboração, assinatura de convênio, liberação de verbas dentre outras
burocracias e; o outro de ordem sociocosmológico, estes projetos não conseguiriam, nos
relatos dos técnicos, respeitar as especificidades “culturais” do grupo beneficiado.

Os poderes públicos, portanto, não sabiam como lidar com a especificidade de


uma Comunidade Quilombola e de Terreiro. Alguns funcionários públicos e alguns órgãos
de maneira mais voluntariosa do que oficialmente se ofereceram para pensar a questão
da Comunidade, mas em linhas gerais esbarravam nas suas limitações de competência,
tecnicidade e vontade política das estruturas de mando a que pertenciam.

269
Ao longo do quente e chuvoso verão de janeiro de 2012219, foram realizadas
várias reuniões, como por exemplo, nos dias 09 e 11 de janeiro, com a intenção de decidir
as providências a serem tomadas em relação à desinterdição do Quilombo. As reuniões
foram pouco proveitosas e as discussões bastante fragmentadas. A primeira reunião se
concentrou na realocação da comunidade; colocando em relevo quais os procedimentos
que deveriam ter sido realizados, das possíveis violações aos direitos da comunidade
dentre outras discussões que se voltavam mais para o ato da retirada do grupo, do que
para a permanência da comunidade fora de seu território e a ausência de prazos e
perspectivas reais para um possível retorno ao território.

A segunda reunião teve caráter mais propositivo, e foram aventadas algumas


sugestões, tal como: desafetação do lote ocupado pela comunidade e recuperação,
reforma e reestruturação das estruturas construtivas. As reuniões, apesar de pouco
produtivas, permitiram organizar algumas cambiantes diretrizes, para as quais não se
tinham muitas certezas de como efetuar na prática:

 O executivo estadual cuidaria do processo de desafetação e


doação do imóvel.
 A prefeitura de Belo Horizonte se responsabilizaria pela
questão do abrigamento da Comunidade no período de
deslocamento compulsório e pela reforma e reestruturação do
Terreno.

219
No dia 01 de março de 2012, o Jornal o Estado de Minas em matéria que versava sobre a vida em abrigos
e que registrava o Abrigo Granja de Freitas, onde a comunidade ficou abrigada,afirmou: “De acordo com
balanço divulgado ontem pela Cedec, no período de chuva do fim de 2011 e início de 2012, além das 9.545
desabrigados, outras 105.997 pessoas ficaram desalojadas. A Defesa Civil não sabe informar quantos dos
desalojados voltaram para casa.”
(http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/03/01/interna_gerais,280783/mais-de-40-dias-depois-
dos-piores-temporais-quase-2-mil-pessoas-ainda-estao-desabrigadas-em-mg.shtml)

270
Seguindo o acordado, o Escritório de Direitos Humanos, elaborou a minuta de
um Projeto de decreto do executivo e de um projeto legislativo visando à desafetação e
doação do terreno.

A CPIR-PBH, na pessoa de sua então coordenadora Sra. Denise Pacheco -


considerada ainda hoje pela comunidade uma aliada nessa luta, tornou-se o centro
aglutinador dentro das maquinas administrativas municipais, dos possíveis
encaminhamentos para solucionar a questão sucitada pelo deslocamento compulsório da
comunidade. Entretanto, se a atuação da CPIR era importante ao fortalecer as palavras da
comunidade e ao assegurar aos demais órgãos municipais a legitimidade de tal caminho
cruzado, do ponto de vista prático, a Coordenadoria consistia em uma estrutura mínima, a
época com 03 técnicos, incluindo ai sua coordenadora, de modo que sua atuação, apesar
de bastante aguerrida acabou sendo mais simbólica do que efetiva.

Em primeiro de fevereiro de 2012, foi realizada uma nova reunião e poucas


novidades foram acrescidas. De novidade, registre-se a constatação feita pela, na época
única antropóloga do INCRA-MG Sra. Vanessa Silva, de que a proposta de doação da área
efetivamente ocupada como estava em debate, deveria ser precedida de uma consulta
mais detalhada a comunidade, pois o conceito de território quilombola poderia abarcar
áreas ocupadas ou de pretensa propiedade de não quilombolas. A antropóloga sugeria
que se isso ocorrese e as áreas vizinhas fossem particulares, o INCRA, poderia atuar em
consonância com os outros órgãos, para realizar a desintrução desses terceiros por ter
competência legal e constitucional para tanto.

Nessa reunião, Makota Cássia, relatou as dificuldades que os membros da


comunidade enfrentavam no abrigo, uma vez que estavam afastados de seu universo
cultural e religioso. Por fim foi sugerida uma reunião, desta vez, junto ao Executivo
Estadual para que este se pronunciasse em relação à possibilidade de desafetação e
doação do terreno em caráter de urgência, ainda que apenas o efetivamente ocupado,

271
para posteriormente se proceder as demais etapas de titulação, inclusive se fosse
necessária de áreas vizinhas.

No dia 06 de fevereiro, o Ministério Público enviou ao Quilombo um


engenheiro-perito que produziu mais um laudo sobre a situação do grupo. O laudo do
perito sugeria que economicamente, o mais viável seria a demolição de todas as
estruturas construídas e sua substituição por outras construções mais adequadas a
topografia e as regras construtivas, por fim recomendava que a prefeitura eliminasse os
riscos antes de retornar a comunidade.

Um mês mais tarde, no dia 06 de março, em uma tarde em que as águas de


março indiciavam o fim de mais um verão chuvoso, foi realizada uma audiência pública na
Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, para debater “a
possível violação de direitos humanos da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo
Kaiango” como constava no ofício dirigido aos membros que comporiam a mesa de
debates.

A mesa da audiência foi composta por funcionários de vários órgãos públicos,


pela liderança da comunidade, por mim e por deputados da Comissão de Direitos
Humanos. Na plateia, estiveram presentes várias lideranças de movimentos negros,
quilombolas, apoiadores e pesquisadores das lutas sociais na cidade.

A audiência permitiu a comunidade expor sua visão do processo, e também


um debate por parte dos deputados e de alguns presentes sobre o rumo da política
quilombola em Minas Gerais, que tinha na questão de Manzo um exemplo particular, que
confirmaria a prática geral.

As notas taquigráficas desta reunião que durou várias horas ocupam mais 80
páginas. De modo que optei, por reproduzir apenas alguns trechos da mesma, para que
sirva de registro dos debates ocorridos nessa reunião.

272
Em sua fala, Makota Cássia, fez uma rápida apresentação do quilombo, dos
projetos sociais, educativos, culturais e reafirmou a importância do sagrado para a
definição do quilombo de Manzo:

Buscamos a recuperação de nossa terra para que, daí, possamos reconstruir as


nossas casas, nosso quilombo e nosso candomblé. O que ficou na construção,
além de um pedaço dos nossos corações, foi a nossa identidade como o Intoto, a
Comunheira e a bandeira de Tempo, orixá padroeiro da nossa nação de Angola,
e outros fundamentos que estão plantados naquele solo. Por intermédio da
mediunidade e da constante dedicação de nossa mãe, que os ensinamentos e o
culto de raiz afrodescendente se tornaram, a cada dia, o pilar de sustentação e
força da nossa comunidade. É nesse meio que a nossa família cresce, com os
ensinamentos que prezam, acima de tudo, o bem e o axé. (pp.20)

Cássia também se referiu à questão territorial do grupo:

Minha mãe comprou aquele terreno com uma doação que foi feita ao preto
velho. Não sabíamos que era preciso legalizar esses documentos. Houve apenas
um contrato verbal. Hoje, com a exigência da regularização, descobrimos que o
terreno que a minha mãe tinha comprado e pagado, pertence ao Estado de
Minas Gerais. É por isso que estamos aqui, pedindo aos representantes do
governo que intercedam por nós, a fim de que possamos chegar a um acordo e
para que a nossa comunidade tenha condições de dar sequência aos seus
trabalhos. (- Palmas.) (pp.22)

Por sua vez, a então Coordenadora da CPIR-PBH, Denise Pacheco, reconheceu


as dificuldades enfrentadas pelo poder municipal no caso de Manzo e enumerou as
medidas tomadas pela CPIR-PBH para minorar os danos à comunidade. Na sequência Célia
Gonçalves Souza, Coordenadora-Geral do CENARAB, fez uma retrospectiva, para
demonstrar que a situação presente vivida por Manzo, se coadunava, com a situação do
negro e do racismo no país secularmente. Em sua fala, ressaltou que as mazelas que
acompanhavam Manzo era fruto de um longo período de mentalidade escravocrata que
não fora de toda rompida, como comprovariam as iniquidades vividas nos dias atuais por
Manzo e pela população negra:

A comunidade Manzo Ngunzo Kaiango é a mais fiel expressão de uma realidade


perversa que nos acompanha em nossa trajetória de homens e mulheres negros
na diáspora brasileira; uma realidade que, por mais que tentem mascarar,
refletirá a forma como somos vistos por uma sociedade que não reconhece a
diversidade e a sua pluralidade de formação. (pp.34-35)

273
Ronaldo Pereira da Silva, presidente do Conselho Estadual de Promoção da
Igualdade Racial fez uma fala onde destacou o apoio do Conselho à luta de Manzo, e o
empenho deste junto ao executivo estadual para solucionar o mais rápido possível aas
demandas da Comunidade. Helena Dolabela, representando o MPF reforçou a
necessidade de garantias dos direitos das comunidades, que em casos como o que estava
em debate são afetadas pela lentidão do poder público, pela ausência de políticas
específicas e pela omissão destes mesmos poderes públicos em relação a direitos
existentes. Neste sentido, ela afirmava a necessidade, conforme já sugerido em reuniões
anteriores da celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC em que os
poderes públicos assumissem formalmente suas responsabilidades.

O secretário municipal adjunto de Direitos Humanos reafirmou conforme a


coordenadora da CPIR-PBH o “grande interesse da PBH em aplicar o Estatuto da Igualdade
Racial na cidade” e reforçou a importância da manutenção de espaços como o de Manzo
para a luta cotidiana contra o racismo. Para ele, uma atuação mais efetiva da PBH, como
por exemplo, recuperar e buscar recursos para restaurar os bens da Comunidade,
necessitava antes da atuação do executivo estadual através da transferência da
propriedade para os quilombolas.

Segundo Pedro Ferreira, representante do Instituto de Terras de Minas Gerais


- Iter, o lote ocupado pela Comunidade, conforme levantamento preliminar feito pelo
órgão poderia pertencer a Secretária Estadual de Planejamento-SEPLAG-MG, mas uma
resposta definitiva só poderia ser dada ao fim da pesquisa de levantamento da cadeia
dominial dos imóveis já em andamento junto aos cartórios de imóveis da cidade. Clever
Alves, da Secretária de Desenvolvimento Social –SEDESE, por sua vez fez um relato
pormenorizado da atuação desta secretária, principalmente através de seu Escritório de
Direitos Humanos - EDH. Para a SEDESE, o caminho mais promissor para a resolução da
questão seria a transferência de domínio de propriedade e posse do terreno do executivo
estadual para a Comunidade, através da elaboração de um Projeto de Lei ou decreto de
desafetação e doação do terreno.

274
Para Antonio Carlos da Silva, funcionário do INCRA-MG então responsável pela
coordenação de assuntos quilombolas, a resolução da questão de Manzo “depende
exclusivamente do governo do Estado de Minas Gerais” ainda assim ele colocava o INCRA
a “disposição para colaborar no que for possível”. Mas ressaltava que o setor que dirigia
no INCRA enfrentava dificuldades e limitações de mão de obra, capacidade técnica,
financeira, dentre outras. O Superintendente Regional do INCRA em Minas Gerais Sr.
Carlos Calazans usou seu espaço para destacar os avanços do governo Lula e Dilma no que
se referia às conquistas sociais e da necessidade de se continuar a avançar o pagamento
da divida secular do governo brasileiro para “o povo que aqui veio forçado, escravizado e
vilipendiado para construir tudo o que há neste país.” Sem, no entanto, apresentar
qualquer proposta neste sentido.

Após as falas, o presidente da comissão Deputado Durval Ângel, externou suas


preocupações em relação à forma de se encaminhar a resolução do problema da
Comunidade, de modo que os órgãos públicos presentes, não alegassem estar
imobilizados em razão da inatividade de outro órgão, como transpareceu, em sua opinião
nas várias falas. Para ele faltou às falas dos órgãos públicos vontade política para a
resolução da questão. A fala do deputado vocalizava assim, o que apontei ao longo desse
trabalho, a estratégia de submeter à vida vivida e vivenciada a um jogo de empurra nas
burocracias do Estado, o que acaba por se constituir em novas formas de se violar os
direitos já atingidos.

Após as falas dos convidados da Mesa, a sessão foi aberta à plenária,


momento em que vários dos presentes - em sua maioria militantes de movimentos negros
e quilombolas, pesquisadores, apoiadores e membros da comunidade - usaram do espaço
de fala para relatar violações a outras comunidades quilombolas, bem como casos de
racismos, ou ainda para apontar sugestões, encaminhamentos e principalmente se
solidarizar e apoiar a luta da Comunidade.

275
Por fim, o deputado Paulo Lamac que solicitou a audiência faz a sua fala em
que ressaltou:

A comunidade está fora do seu território. (...) Está vivendo num abrigo
municipal. Todos demandam e têm essa necessidade, mas esse caso demanda
uma ação imediata, emergencial por parte dos Poderes Públicos. Então, em que
pese a participação extremamente representantiva que temos nesta Mesa,
parece-me que ficaram dois encaminhamentos principais, um deles visando ao
TAC junto ao Ministério Público, que seria uma ação que possibilitaria um
regresso emergencial. Queríamos concluir, solicitando a todas as partes
envolvidas agilidade e empenho nesta questão, que me parece ser decisiva. Em
segundo lugar, uma atuação do Estado para regularizar o território. Não vamos
também dourar a pílula aqui. Cabe ao governo do Estado regularizar o território
do Manzo, uma vez que é área estadual. (pp.77)

As palavras finais, do presidente da Comissão destacou a questão do racismo,


do latifúndio e das dificuldades em Minas Gerais para fazer avançar a questão
quillombola.

Logo após esta audiência, o Ministério Público Federal encaminhou ofício à


Secretária de Estado Extraordinária de Regularização Fundiária, em que solicitava a este
órgão apresentar em um prazo máximo de 30 dias, o resultado da pesquisa cartorial sobre
a cadeia dominial do imóvel em que esta localizada a Comunidade Quilombola de Manzo e
qual modalidade de regularização fundiária seria aplicável ao caso. Cerca de um mês
depois, em 10 de abril, a Secretária de Regularização Fundiária respondeu o ofício,
afirmando ter total interesse em solucionar a questão, mas solicitando a prorrogação do
prazo por mais 60 dias, de modo a concluir as “apurações devidas aos documentos
apresentados, para assim, prestar os esclarecimentos cabíveis e definitivos”. (Folhas 151-
152 do ICP).

No dia 04 de maio, a Comunidade de Manzo participou de uma reunião no


Edifício Sede do Executivo mineiro, na Cidade Administrativa, a reunião convocada pela
Casa Civil do Governo teve a participação ainda da SEPLAG, do CONEPIR, da Defesa Civil
Estadual, Advocacia Geral do Estado, CPIR-PBH e Secretária de Direitos Humanos da PBH,
da Comunidade representada por Makota Cássia, neste ato acompanhado por mim e pelo
colega Pedro Moutinho do NuQ/UFMG.

276
No começo da reunião, Cássia foi convidada a apresentar a situação da
Comunidade e o ocorrido com a mesma. Como outras vezes, Cássia relatou a história do
grupo, seus fazeres, saberes e viveres, suas práticas religiosas, a questão da interdição e
do deslocamento da Comunidade, as aflições do grupo, e a inadequação das medidas
tomadas que desrespeitaram a Comunidade, equanto grupo Quilombola e povo de
Terreiro.

Na sequência à fala de Cássia, o secretário municipal de Direitos Humanos e a


coordenadora da CPIR-PBH chamaram a atenção para a importância e o significado da
Comunidade de Manzo para a cidade de Belo Horizonte, para a cultura negra e para as
lutas por uma maior Igualdade Racial, e de que a mesma se constituía em um espaço
tanto de moradia, como do sagrado e de formação política e social e que sua retirada, por
parte da Defesa Civil Municipal se deveu, portanto, somente ao risco de desabamento das
construções. Em seus termos, a medida tomada, fora para a proteção da própria
comunidade, sendo, importante que o executivo estadual atuasse na desafetação do
terreno, para que se pudesse pensar em possibilidades de reformas e retorno da
Comunidade a seu território.

Sugeriam ainda, que a ação do executivo estadual fosse célere, uma vez que
era um ano de eleições municipais e a prefeitura ficaria impedida legalmente, a partir de
julho, de iniciar ou celebrar qualquer tipo de contrato, convênio, programa, obra ou
medidas de intervenção na comunidade.

Após estas apresentações a secretária da Casa Civil, Profa. Maria Coelli iniciou
sua fala confirmando a importância de grupos como Manzo para a cidade e, por isto
mesmo, da necessidade de se fazer todo o esforço possível para a construção de uma
proposta razoável e justa, uma vez que diferentemente de outros casos, a Comunidade
não era uma invasora e possuía uma história na localidade em que ocupava e a demanda
seria tratada com toda seriedade e objetividade em razão do interesse cultural do grupo.

277
A representante da Advocacia Geral do Estado afirmou que a Comunidade
estaria presumivelemente localizada em uma área pertencente ao Estado, uma vez que
quase todo o bairro Paraíso está inserido em uma matrícula imobiliaria de 1911 sem
desmembramento, chamada Fazenda Olaria, pertencente ao poder dominial do Estado de
Minas Gerais. Mas para que tal presunção fosse comprovada seria necessária a adoção de
procedimentos demorados e complexos, como a realização de um estudo aprofundado da
cadeia dominial do imóvel.

Segundo a advogada, caso o estudo da cadeia dominial comprovasse serem as


terras devolutas, algo improvável, ou seja, não possuísse proprietário, o caminho seria a
regularização fundiária via Instituto de Terras - ITER. No entanto, como as pesquisas
preliminares indicavam serem as terras públicas, a atuação do Instituto Estadual de Terras
não era adequada, pois este órgão não possuia competência para atuar em casos de
terras pertencentes ao executivo estadual.

Esclareceu ainda, que se a área pertencesse a um proprietário privado, o


Estado não poderia agir, uma vez que cioso da legalidade, sua atuação neste caso estaria
impedida. Tal afirmativa demonstrava a posição política do governo estadual, uma vez
que nada impediria a atuação deste poder em caso de a área pertencer a um proprietário
privado, visto que o Decreto 4887/2003 reconhece competência aos demais entes
federativos, como os executivos estaduais e mesmo municipais, para atuar em casos de
titulação quilombola, incluindo ai áreas de particulares. Ela prosseguiu explanando: “No
caso, por exemplo, de a área como aventado – em círculos da própria advocacia -
pertencer a Companhia Energética/Cemig”, algo que ela não acreditava, o Estado também
não poderia agir de maneira direta, pois apesar de ser o maior acionista, a CEMIG possui
personalidade jurídica e patrimônio distintos e separados do executivo, este no máximo
poderia agir na propositura e no incentivo a uma doação, desde que apresentando razões
suficientemente fortes, mas a decisão final caberia ao conselho da empresa.

278
Por fim, se o levantamento da cadeia dominial comprovasse ser a área de
domínio público do executivo estadual, como ela acreditava, este teria todo o interesse
em fazer um processo de desmembramento da matríicula e doação da área ocupada pela
comunidade, desde que a mesma não apresentasse nenhum risco geológico, visto que o
executivo é impedido de doar terrenos que coloquem em risco a vida de seus cidadãos.

Logo após essa fala, o coordenador da Defesa Civil Estadual explicou que este
órgão elaboraria um relatório sobre as condições geológicas do terreno. Por fim, a
advogada chamou a atenção para o fato de que a sugestão feita pelo MPF de se assinar
um TAC, não seria adequado, pois o TAC proporia prazos que não seriam possíveis de
serem cumpridos, uma vez que o processo no âmbito do Estado ainda estava no começo.
Portanto, antes mesmo de conhecer os prazos propostos pelo MPF, o executivo estadual
já reconhecia sua morosidade em casos como esse, morosidade essa que, como cidadão
vivendo em Minas Gerais, não vejo ocorrer em outros casos, como por exemplo, na
doação ou desafetação de áreas para empreendimentos privados de beneficio público,
como obras energéticas, minerarias, de grandes plantas industriais, dentre outras.

Após a reunião, a SEPLAG-MG solicitou a Comunidade mais de uma dezena de


cópias de documentos, certidões, registros, fotos, bem como estudos a respeito do grupo.
Quatro dias após essa reunião, comparecemos – Eu, Pedro Moutinho do Nuq-UFMG e
Makota Cássia - a uma audiência na Procuradoria da República em Minas Gerais, com a
finalidade de discutir o andamento das violações aos direitos da Comunidade Quilombola
de Manzo. Nesta reunião, Cássia relatou a reunião ocorrida na Cidade Administrativa.

Em seu relato, Makota Cássia, lembrou que o executivo estadual informara


que seria necessária a elaboração de estudos cartoriais e geológicos, pois o governo
estadual se comprometera a fazer a desafetação do terreno, mas somente no caso deste
ser propriedade do executivo estadual e não apresentar riscos geológicos.

Cássia informou também sobre suas dúvidas em relação a uma nova


realocação da comunidade, uma vez que já havia vencido o prazo inicial de 60 dias de

279
permanência no Abrigo. Informou a necessidade de saída o mais breve possível deste
local, uma vez que este não era adequado tanto para a vida cotidiana, quanto religiosa. A
este respeito, em uma das visitas que fiz a Cássia no Abrigo, nesta época, ela afirmava:

Morar aqui tem sido difícil. No primeiro mês é igual visita, tudo é novidade. Mas
no segundo mês a história de cada um começa a incomodar. (...) Isto aqui é um
presídio de portas abertas. Isto aqui é um verdadeiro presídio, pois você fica
limitado dentro deste espaço, você não tem liberdade. Você não pode pensar
que isto aqui é sua casa, pois não é; não é! Você, por exemplo, não pode pregar
um armário, pendurar um quadro. Expor sua crença. Não pode de forma
alguma, expor a crença; pois o abrigo não cuida da segurança da gente. Cuida da
segurança do patrimônio público da prefeitura que é o abrigo. Briga aqui é de 05
em 05 minutos. As brigas aqui são dentro das famílias. Acho que ficam todos em
um ambiente muito fechado, e ai não consegue limitar o respeito dentro do
cômodo. Não tem horário, música cada um quer competir em altura (...) Um
cômodo para 5 pessoas. (...) As pessoas aqui dentro são tratadas como nada.
Quem trabalha no abrigo morre de medo dos abrigados. Falam que as pessoas
chegam revoltadas. Mas é claro as pessoas chegam aqui por causa da perda do
imóvel. A Prefeitura devia oferecer um pouco mais. (...)
Ficamos inseguros, pois dependemos da nossa fé para viver, precisamos
alimentar a fé e alimentamos a fé com as atividades religiosas. E aqui não
podemos fazer e ai começa a complicar, pois começamos a jogar qualquer
problema para o fato de não estarmos tendo nossa vida religiosa, não estarmos
podendo, por exemplo, dar comida ao santo para abrir o caminho. E durante
este período que estamos no abrigo nós nunca sentimos tanta falta de uma
sessão e de um atabaque, de um defumador então. Eu to aguada com cheiro de
defumador.

Ao longo da reunião, o MPF apresentou 03 possibilidades de resolução para o


problema, que seriam: “1) aguardar o processo de demarcação e titulação do INCRA/MG;
2) propor ao estado um Termo de Ajustamento de Conduta –TAC contendo os
compromissos assumidos para se promover a doação do imovel, correndo-se o risco de o
TAC não ser aceito pelo governo do Estado; 3) aguardar todo o processo, sem a realização
de um TAC, “confiando” na palavra do Estado.” (Ata da Reunião). De comum acordo, os
presentes entendiam que a proposta mais segura era a de número 02, no entanto, como
fora informado na reunião junto ao executivo estadual, de que por determinação da
Advocacia Geral do Estado, o mesmo não participa de TAC, a terceira opção se apresentou
como uma saída possível.

280
Entretanto, para o MPF sem nenhuma formalização a questão passaria a ser
um compromisso moral, e a experiência do órgão, com os poderes públicos, indicava que
estes nem sempre cumpriam os acordos morais. O MPF se comprometeu a cobrar dos
órgãos estaduais a continuidade do processo, bem como consultar órgãos federais, a
respeito da possibilidade de financiamentos para a reforma ou reconstrução das
edificações do quilombo, bem como consultar o IPHAN a respeito da possibilidade de um
inventário e registro dos quilombos urbanos de Belo Horizonte, como havia sido aventado
em conversas anteriores.

A possibilidade de um Inventário e de registro das comunidades quilombolas


urbanas de Belo Horizonte foi de fato aventada e sugerida por alguns dos que
acompanhavam a questão de Manzo neste período. A realização de um Inventário e
posterior registro das comunidades quilombolas urbanas se apresentava naquele
momento no começo do ano de 2012, como uma solução intermediária visando evitar
invasões, usurpações e o processo de imensa especulação imobiliária, que a cidade vinha
passando, muitas das vezes induzidas pelo próprio poder público, e uma forma de se
evitar a interferência despreparada e desastrada dos poderes públicos, como estava
acontecendo nos casos dos quilombos urbanos da cidade.

A ideia básica era a elaboração de etudos sócio-antropológicos com a


finalidade de tombamento não dos bens construídos e sim da territorialidade indicada
pelo grupo, de modo que, o território ficaria protegido de violações públicas e privadas e
poderia receber políticas públicas antes mesmo da atuação do(s) órgão(s) de titulação
fundiária.

Em agosto de 2012, a Defesa Civil Estadual concluiu seu relatório que indicou
ser a área segura geolgicamente. Em começo de dezembro de 2012, como a comunidade
não obtevera novas informações sobre o andamento dos estudos cartoriais foi solicitado a
SEPLAG-MG, dados atualizados sobre a questão, que obteve como resposta:

Os estudos que têm sido feitos demonstram com alto grau de clareza que o
imóvel é do Estado de Minas, mas de antes da construção da capital, os

281
chamados lotes coloniais. Não há registro em cartório destas áreas o que
significa que ninguém se declarou proprietário. Antes de pensarmos em doação
para a PBH ou cessão de uso para o Quilombo temos que nos certificar de que o
imóvel é de fato remanescente de lote colonial e regularizar a situação cartorial,
criando um registro novo e atualizado. Assim não há como falarmos em prazo.
Contudo, informo ainda que já pedimos ajuda à PBH, pois ela têm registros
cartográficos precisos das áreas que compõe a cidade e pode nos auxiliar neste
processo de regularização dominial.

Paralelamente a esta movimentação com o executivo estadual, a prefeitura de


Belo Horizonte pressionada principalmente pela administração do Abrigo, uma vez que a
comunidade se encontrava nessa instituição por um tempo maior do que o previsto e sem
previsão de saída, decidiu realizar uma obra de recuperação emergencial do Quilombo de
Manzo, a cargo da Urbel. A obra foi apresentada a comunidade de uma forma quase que
clandestina220, como se tratasse não de um direito e sim de um favor pessoal, como me
disse certa vez uma liderança da Comunidade. Como afirmou Makota Cássia, em reunião
no mês de setembro de 2014, com o Ministério Público Federal e as Defensorias Estadual
e Federal, ao invés da publicidade obrigatória às obras públicas ou com financiamentos
públicos o que se viu foi uma total ausência de publicização das obras e de debate das
mesmas, incluindo aí seus principais beneficiários, os quilomblecistas, que foram alienados
de participar do processo.

220
Aqui se faz necessário esclarecer: boa parte das pessoas envolvidas nesse evento não será nominada, não
por opção teórico-metodologica, nem mesmo por uma decisão do pesquisador ou da comunidade, sua
ausência aqui faz parte do próprio processo violento que se relata. Tanto comunidade, como pesquisador,
bem como o Ministério Público Federal pediram através de diversas citações, sejam elas orais, escritas ou
protocolizadas acesso aos documentos bem como a publicização de acordo com a legislação dos
documentos que registram esses fatos, mas tanto, comunidade, quanto Ministério Público, bem como
pesquisador não tiveram seus pedidos atendidos. Que o pesquisador não tivesse seus pedidos aceitos, ainda
que em violação a legislação que torna o acesso aos documentos públicos um direito, infelizmente seria algo
até corriqueiro, mas que o próprio sujeito do interesse – a comunidade – e principalmente o Ministério
Público não tenha recebido esses dados é assombroso e apresenta um exemplo grandioso do modo violento
e discricionário de atuação do Estado nesse caso, razão pela qual Ministério Público e Defensorias Públicas
estudam medidas judiciais em relação a essa omissão. Desse modo, infelizmente não é possível cumprir com
denodo nosso compromisso ético de citar os nomes dos envolvidos nesse caso de violência, que como se
verá é classificado pelas próprias vítimas como um caso de racismo institucional.

282
Durante o processo da realização das obras, a Comunidade solicitou acesso ao
projeto arquitetônico, executivo, estrutural, elétrico e hidráulico da reforma que estava
ocorrendo na Comunidade. As lideranças também pediram acesso aos valores que
estavam sendo aplicados na obra e o prazo de execução da mesma, bem como uma
participação informada dos rumos da obra.

Apesar dos pedidos, a comunidade não obteve nenhuma das informações


requeridas na administração municipal. Foi negada à comunidade até mesmo acesso aos
procedimentos que seriam adotados durante a execução das obras como a derrubada da
cozinha do Candomblé, troca do antigo telhamento e madeiramento de sustentação do
mesmo, elevação do pé direito de parte do Terreiro com consequente derrubada de
elementos sagrados como os quartos de santo, o desmanche de estruturas associadas ao
Terreiro, como a camarinha, o quarto de preto-velho; bem como a construção de um
muro interno em toda a extensão frontal do lote para reforço das estruturas e que levou a
eliminação de dois quartos de assentamentos do santo.

Em outubro de 2012, em uma visita as obras no Quilomblé, quando já


havíamos – comunidade e este pesquisador - tentado acesso aos dados sem sucesso,
Makota Cássia afirmava:

Existe um processo na prefeitura, processando-nos e embargando a Associação


por risco de desabamento. E só poderia ser liberado, tenho isto por escrito, após
uma apresentação de melhorias em determinados locais e demolições,
assinadas por um técnico responsável. Ou seja, eu preciso do projeto da reforma
até mesmo para responder o processo na própria prefeitura. (...) A prefeitura
esta me negando um documento. É a mesma prefeitura que só libera nossa
volta depois que um técnico habilitado assine este documento comprovando a
reforma. O engenheiro me disse que a Urbel não faz este documento. Tudo que
perguntamos a eles, eles dizem é a eleição, é a eleição. Então vamos esperar
passar este processo eleitoral. (...) eu não entendo mais, estão fazendo a
reforma, mas na PBH oficialmente não tem obra nenhuma. Eles nos mandaram
sair pelo risco de vida, mas vamos voltar sem um documento que comprove a
eliminação deste risco? (...) Este é um dinheiro público, eles tem que prestar
conta. Não somente para nós, mas o povo da cidade precisa saber. Precisa ser
transparente. Quanto foi liberado? qual o material? é material de primeira
qualidade? Quanto pode e vai ser gastado? Nós precisamos saber. Outro dia eu
perguntei ao engenheiro: porque você não manda a quantidade certa de
cimento? Pois eles ficaram aqui a toa. Tudo tinha que ser organizado e pelo que

283
vejo não é. Veja que já tem um morador que retornou. Não tem controle de
material, nós não podemos fiscalizar o que está sendo feito. Cada dia é uma
noticia nova. Um dia vão reformar a escada, depois não vão mais. Um dia vai
reformar a casa do Maurinho, depois não vai reformar mais. Sem informação é
um risco inclusive para nós que vamos voltar. (...) O que eu queria era o projeto.
Pois ai eles diriam: o projeto é este aqui ó, não esta contente, não esta bom? Vai
reclamar com o prefeito, pois o liberado é isto. Até para eles seria mais
confortável. Ninguém sabe. Acho que virou uma brincadeira, eles fazem da
maneira que quiser. (...) tínhamos que ter informações sobre o engenheiro
técnico responsável pela obra, número de registro dele, nome dele, prazo de
término, orçamento, qual órgão que está emitindo a verba, ou seja,
transparência. (...) agora se voltarmos ao fim da obra como está sendo dito,
continuaremos, sem este documento das realizações da obra, embargados. Ou
seja, não poderemos receber pessoas e realizar projetos. (...) nenhum
engenheiro vai assinar mesmo um projeto aqui, pois todos os laudos falam que é
preciso reconstruir e não apenas uma reforma paliativa. Quem vai assinar um
relatório de uma obra que não fez. (...) Aliás informalmente um engenheiro da
Urbel disse-me que não precisava ter interditado aqui. Ele é o único, inclusive
outro engenheiro discordou dele.

Posteriormente a visita, Makota Cássia me pediu que escrevesse um ofício,


para ser encaminhado pela comunidade ao poder público municipal pedindo, uma vez
mais acesso às informações sonegadas. Apesar do ofício, a Comunidade seguiu sem
nenhum tipo de informação oficial, tendo as obras, sido concluídas em meados de
novembro.

No começo de dezembro de 2012, Makota Cássia já residindo novamente em


sua casa no Quilombo Manzo, me explicou que ela e os demais moradores, se
encontravam em imenso estado de insegurança, uma vez que na ausência de qualquer
documentação sobre a reforma, eles não possuíam segurança da real situação dos imóveis
e, aparentemente todos os danos apontados pela Defesa Civil permaneciam. O que se
agravava com o fato do retorno ter ocorrido exatamente no período chuvoso do verão.

Veja Carlos, primeiro eles falaram que precisavam de reparos, demolições e


reforma. O que foi feito aqui no Manzo foi apenas demolição, nada mais.
Tiraram a cozinha, os quartinhos. Este negócio de falar em pequena reforma não
existe. Foi feito uma demolição. Demoliram o telhado, mas não existia nada no
telhado aqui. Podia estar velho, mas não tinha nada. Deixaram-nos sem luz, sem
água. (...) Veja, para eles tirarem aquele beiral da casa do meu irmão, ele teve
que ameaçar quebrar todos os materiais. Pois não iriam tirar o beiral lá da
cozinha dele. Mas nos fizeram ficar 10 meses no abrigo, por causa
principalmente deste beiral que poderia cair nas demais casas. E queriam que
ele voltasse com o beiral lá. (...) A Defesa Civil me falou informalmente: o que

284
fizeram aqui foi uma porcaria. Isto nos preocupou. Veja que eles deixaram aqui
tudo sem luz e água. A encanação, a luz foi por conta nossa, depois que
voltamos. Tem casa ainda sem luz e água. (...) Eu estou preocupada, pois não
sabemos sobre a obra. Veja o que eles falavam era que estava prevista a troca
de telhado de todas as casas, mas não trocaram o da casa do Emerson. Disseram
que a casa dele não estava no planejamento. Falei gente! Porque tiraram o
Emerson então. Disseram, mas nem precisava tirar ele! Mas quando a Defesa
Civil parou o caminhão aqui na porta, disseram que só sairiam após a retirada de
todos, até o último morador. (...) Carlos como já te disse queria saber quem foi o
responsável por isto aqui, qual a verba? A CPIR-PBH me disse que a prefeitura
chegou ao limite de gastos. Mas eu queria saber qual o valor, porque este valor,
ele foi transformado em quê? (...) quando a prefeitura abraçou o caso,
pensamos que seria solucionado o problema. Mas ela nos devolve para cá com
os problemas mantidos.

As infiltrações, as rachaduras, os problemas nas vigas, dentre várias outras


notificações constantes nas autoaçoes da Defesa Civil não foram contempladas pela
reforma, como visto nas falas acima e presenciado pelos que visitam o Quilombo. Um
passeio pelo Quilomblé confirma tais afirmações, pois as mazelas construtivas – para citar
o termo constante nas notificações da Defesa Civil - continuavam todas as vistas. Como
corretamente afirmou Makota Cássia, os problemas construtivos continuavam: “só que
para piorar e como maior absurdo derrubou o sagrado do Terreiro de Manzo, o que
impede o retorno deste junto aos moradores.”

No dia 11 de dezembro de 2012, seguindo o pedido de Makota Cássia,


encaminhei ao Ministério Público Federal uma carta na qual expunha às questões
relatadas por Makota Cássia e as angústias da mesma. No dia seguinte, recebi como
resposta, a informação:

o MPF vai mandar hoje um Ofício (você verá que eu utilizei bastante o seu
relato) para o Presidente da URBEL informando os fatos passados e a
atual situação, exigindo a justificativa do retorno e a resposta quanto à
permanência do risco ou não. Além disso, informações sobre o projeto da
obra. Ao final, em letras garrafais, adverte-se que se alguma ocorrência vier a
ameaçar ou retirar a vida de algum membro da comunidade no local a PBH e os
seus funcionários serão responsabilizados civil e criminalmente.

Ainda no mês de dezembro, a comunidade recebeu a visita de técnicos da


Urbel que informaram a mesma, que as reformas feitas eram suficientes para a segurança
do grupo. Informaram ainda que não existia risco imediato de desabamento, mas isto não

285
eximia o grupo de realizar novas e necessárias reformas nos espaços construtivos.
Relataram ainda, que no entender deles, a comunidade jamais sofrera riscos de
desabamentos. De modo que a própria retirada do grupo poderia ter sido precipitada.

Ao fim da fala, segundo o relato dos quilombolas presentes, a comunidade


pediu aos técnicos um relatório escrito nestes termos. Segundo os quilomblecistas, um
relato nestes termos seria o suficiente para se suspender junto a Defesa Civil o processo
de interdição do imóvel. Ao que teriam recebido como resposta, a informação de que os
técnicos da Urbel não poderiam relatar tal teor de conversa em um relatório. Sendo
apenas uma comunicação para tranquilizar o grupo.

No dia 14 de janeiro de 2013, a CPIR-PBH convidou o CONEPIR – Conselho


Estadual de Politicas da Igualdade Racial para uma reunião, na sede do Quilombo com a
finalidade “realizar uma conversa para se apurar o que se realizou aqui pela prefeitura, o
que se falta, e o Estado dizer como anda o processo de desafetação”. No começo da
reunião Makota Cássia expôs que a Comunidade não poderia informar sobre a obra, pois a
mesma não era de conhecimento do grupo “este é o ponto principal não foi apresentado a
Comunidade o que a Urbel iria fazer.”

Segundo Cássia, as alterações feitas não seguiram as sugestões dos laudos da


defesa civil, e citou como exemplo, a “não a reforma das escadas, não se reforçou as vigas
e pilares de sustentação, dentre outras recomendações.”

Ao fim da reunião Makota Cássia afirmou:

Nós voltamos, mas o Terreiro não pode voltar. O terreiro não pode voltar, pois
foram desmanchados os quartos de santo, a cozinha, a camarinha. Então o que
penso, posso até ser ignorante, mas é o que penso: a prefeitura queria era
eliminar o Terreiro. Acho assim: - Nos falamos que está caindo. Tiramos eles de
lá. Desmancha o Terreiro, os deixa sem condição de continuar as atividades e
depois os voltamos. E de certo modo, é isto. Por lei nós não podemos fazer nada
porque estamos interditados, estamos sem alvará. Que dizer tá interditado o
Terreiro, mas as casas não, pois os moradores voltaram. Nos trouxeram de
volta mas o Terreiro não pode voltar. Para mim foi uma forma de eliminar o
Terreiro. Pois tudo acontecia em volta do Terreiro. Daqui a pouco eu não vou
querer ficar aqui. Pois o que me segura aqui é o Terreiro, a Comunidade vivia
em volta do Terreiro. Porque tinha o Terreiro, mas se agora que não tem o

286
Terreiro, cada um vai querer viver sua vida em outros lugares. (...) Aqui tinha
uma madeira que sustentava a Comunheira, que era madeira de lei, eles
levaram. Hoje não temos condição de ter outra. Nós falamos para eles, que o
Intoto esta aqui e a Comunheira tinha que ficar em cima na mesma direção
[Cássia apontado o local, para os membros do CONEPIR e da CPIR relata que não
foi respeitado o pedido para que uma das madeiras passasse exatamente em
cima do Intoto, de modo a ser o suporte para a Comunheira], não tiveram
cuidado nenhum, o tempo todo nos avisamos que algumas partes eram
sagradas e eles fazendo massa em cima. Aí o meu irmão colocou uma grade
encima do Intoto para mostrar que era um local sagrado. Mas nem podemos
cobrar, pois eles são funcionários não sabiam que era um local sagrado. Eles não
foram avisados. Um dia eles iriam usar os objetos da Comunheira no material. Aí
meu irmão que disse não mexe nisto não!!! Ai o menino falou: “- ué né pedra
não. Quase que as usamos no muro”. Mas como mudava os pedreiros, todo dia
era a mesma coisa, explicar a eles, mas mudava todo dia. Como que se tem
Terreiro sem cozinha? Não tem como (...)

Ao longo do ano de 2013, o ritual de consulta aos órgãos públicos descritos


acima, foi repetido algumas vezes. Tendo sempre resultados insatisfatórios, de modo que,
foi realizada, em fins de maio de 2013 uma reunião com a Secretária Adjunta da Regional
Leste da PBH, responsável administrativo pela região onde se localiza o Quilomblé, onde
uma vez mais, foi prometido e não cumprido, que a PBH providenciaria uma nova licença
de funcionamento para as atividades do Quilomblé, bem como cancelaria um novo Termo
de Notificação recebida pela comunidade, desta vez acusando-a de ter invadido a via
pública.
Termo de Notificação: 122713
Obrigado a Cumprir:
Desocupar e demolir a construção que
invade logradouro público (local R. São Tiago) de acordo
com a lei 8616/03 art. 318, decreto 14060/10, art. 176 C/C a
lei 10406/02. O não atendimento no prazo de 30 dias
acarretará a penalidade de uma multa de 3577,36 aplicada
em dobro ou em triplo, em caso de reicidência a cada 30
dias.
Demolição através de ação demolidora judicial proposta
pelo poder executivo e apreensão cf. lei 8616/03.
Prazo de recurso 15 dias
29/04/2013

287
Como ficou registrado no OFÍCIO n° 474/2013/DPDH da Defensoria Pública do
Estado de Minas Gerais – Defensoria Especializada em Direitos Humanos, coletivos e
socioambientais/DPDH para a Secretária da Regional Leste da PBH, caberia a essa:

a) Cancelamento da notificação 1227113;


b) Liberação do Alvará de funcionamento da Casa de práticas religiosas – O
Candomblé da Comunidade Quilombola e a respectiva expedição de certidão
negativa da Receita Municipal.
c) Criação de um grupo de trabalho no âmbito da Prefeitura de Belo
Horizonte envolvendo seus diversos órgãos que tenham atribuições correlatas
às demandas da comunidade, para elaboração e regularização do território
Quilombola de forma adequada às legislações urbanísticas em vigor no
Município.

As recomendações sugeridas não foram acatadas. A respeito dessa notificação


de invasão de rua, em setembro de 2014, Makota Cássia se referiu a mesma com mais um
eloquente exemplo de racismo, visto que, somente o Quilombo fora notificado, sendo que
o mesmo se localiza na mesma testada de rua dos demais imóveis. Makota Cássia
lembrou que a denuncia, para além do racismo, não poderia ser levada a sério, uma vez
que fora a própria prefeitura a autora do muro de retificação e arrimo entre a testada da
rua e o Quilombo, de modo que se a Comunidade de fato invadiu a rua, isto seria fruto da
própria reforma feita pelo poder municipal.

Por sua vez Mãe Efigênia, lembrou que caso tivesse havido alguma invasão
fora por parte da Rua ao Quilombo e não seu oposto, lembrando que tanto o Quilombo
como alguns vizinhos são anteriores ao arruamento, portanto, este na verdade foi
definido a posteriori das ocupações.

A defensora pública que acompanha o caso de Manzo, se refere a tais atitudes


como um comportamento perverso por parte dos aparelhos estatais: “o Estado que
deveria proteger o Quilombo acaba por ser o mantenedor e incentivador desta situação
perversa, que fortalece a posição hegemônica de quem ocupa o espaço do Estado.” Ainda
nesse ano, a pedido da comunidade e para subsidiar os órgãos públicos de defesa do
direito quilombola elaborei um relato – contendo 37 páginas – onde expus os
acontecimentos e as violações sofridas continuamente pelo grupo, bem como os riscos

288
eminentes da dissolução do grupo enquanto uma comunidade, devido a ausência de sua
sociocosmológica. Este documento foi enviado as Defensorias Públicas: Federal e
Estadual, Ministério Público Federal, e Secretária Especial para a Promoção de Políticas
para a Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR.

O ano de 2014 se iniciou do mesmo modo que se encerrara o ano de 2013,


com a Comunidade requerendo e não obtendo acesso aos dados referentes aos processos
que respondia, e menos ainda a respeito da obtenção de informações referentes ao
processo de titularização territorial e de liberação municipal de suas atividades.
Entretanto, diferentemente dos anos anteriores, a Comunidade já descrente da atuação
destes órgãos acabou por ter uma atuação menos ativa. Diante disso, em agosto de 2014,
após algumas conversas ficou decidido a retomada das cobranças aos órgãos públicos e,
para tanto, organizou-se uma reunião no próprio Quilombo para a qual foram convidados
diversos atores sociais.

Foi nesse contexto que a SEPLAG/MG instada pelo INCRA-MG informou que o
processo de pesquisa cartorial iniciado quase dois anos antes não havia localizado as
matrículas referentes aos lotes da região onde se localiza o quilombo. Tendo então sido
iniciada uma nova pesquisa junto ao poder municipal de Belo Horizonte, esse novo
levantamento apontou que o território ocupado pela Comunidade, que tseria segundo a
SEPLAG – 312 m2 – está localizado “dentro do então chamado Núcleo Colonial Bias Fortes,
precisamente, no Lote Colonial 33, que totalizava 41 mil m2.” Lote esse que foi “parcelado
sem a autorização” razão pela qual a SEPLAG/MG aguardava a resposta do terceiro
exame que estava sendo realizado pelo Cartório do 2o Ofício.

Diante da baixa resolução por parte dos poderes públicos ao fim do ano de
2014, após nova provocação da comunidade, formou-se uma força tarefa entre
Defensorias e Ministério Público para atuar de forma mais direta e urgente no caso,
visando solucionar os riscos construtivos que a comunidade ainda enfrenta e,
principalmente, a reconstrução do sagrado destruído pela intervenção do poder público.

289
Conforme escrevi em nota de registro dessa reunião, encaminhada aos participantes da
mesma:
Ficou decidido:
1. A retomada do processo de titulação da comunidade, pelo
INCRA-MG via DECRETO 4887/2003 uma vez que o acordo para
que essa etapa fosse cumprida pela prefeitura e governo do
estado não logrou êxito. Independentemente da regularização,
reforçar a recomendação para Estado, Município e União
atuarem em Manzo nos casos urgentes como: a reconstrução
do sagrado que foi destruído pelo próprio poder público, bem
como para atuar em obras emergenciais de segurança física e
construtiva ao grupo.
2. Propor uma vez mais, aos poderes públicos a formalização de
medidas compensatórias e mitigatórias pelos danos e omissões
causados pelos poderes públicos a comunidade reconhecendo
nessa atuação um dolo de racismo institucional. Se estes
organismos não aceitarem um acordo amigável, TAC ou
assemelhado a propositura de ações judiciais.

290
291
Considerações Finais

Lembaranganga - Oxalá
Aruêakodi Nganga, Jafuzí, Gitiça - Salve o Grande Senhor da Paz e do Amor
Lembá, Lembá Rei Kassuté Lembá Lembá lembadilê
lembá, Lembá Rei Kassuté Lembá lembá de kanamburá
Monaê lembê lembá lembaringanga lembá

Kaiango kapanzo maku koiadi Rei kassuté, te, te


ê zambi é de bandamunam rei kassuté tatetu kingongue
kaiango kapanzo maku coiadi rei kassuté tatetu kingongue
ê zambi é de bandamunan rei kassuté tetu kingongue

É de ê ê ê é de ê ê á Lembá lembá muxió


aruê tata mona xere xeré é de lembá muxi
Lembaranganga gangazumbá lembá lembamuxiô
o mixaxá é de lembá muxi

E tata biri biri bi oká oiê Okê Zambi okê Zambê


e tata biri biri bi malembá Zambi no apongo deus
ai arueiá, tatá biri biri bi oká Lembá zambi apongo paraquenam
aindô, aindô
E gangazumba ê
ê gangazumba, Malembê zambi
berê, berê malembê
malembê zambi aruê
Aê aê Kaçuté Lembá Zambi okê zambê
aê aê kaçuté lembaranganga tata kabilê
teramugangá zambi okê zambê
Kaçuté é é é aruê
kaçutemam teramugangô Kaiango kapanzo mako koiadi
Miaxi kamá, miaxikamá e zambi de banda munam
kaçuté lembaranganga kaiango kapanzo mako koiadi

Cantigas do ritual em homenagem ao Inquisse Lembá. O Xirê de Candomblé Angola se encerra com a saudação ao
primeiro Inquisse criado por Zambi na criação do mundo. Lembá é o Inquisse que determina o fim da vida. Sua
importância é tamanha que todos os filhos independentes do santo da cabeça vestem branco em sua homenagem.

(...) se tiver o Candomblé vale a luta. Por isto que se me perguntam hoje o que
é o Manzo, eu digo é o Candomblé e tudo que se envolve dentro dele. Isto é o
quilombo. (Makota Cássia)

292
Nesta tese apresentei uma etnografia do processo de criação do quilombo
Manzo Ngunzo Kaiango e dos processos de des-re-territorialização por ele sofridos. A
partir de aspectos da vida vivida e vivenciada dos quilomblecistas de Manzo apresentei o
diferenciamento religioso como um despertar da Comunidade que criou um Quilombo na
cidade, bem como, o processo em que práticas, ações e as represent(ações) perfazem o
lugar e o habitar dos quilomblecistas. Para tanto privilegiei a análise sociocosmológica das
trocas e dos caminhos cruzados através da expressão êmica tomada da palavra político
entendido como uma cosmopolítica.

Assim procurei compreender que tornar-se quilombola em Manzo e sua


incorporação em um território - onde se expressa sua materialidade e imaterialidade - visa
o presente e o futuro, a partir de um passado, o movimento trans, presente nas religiões
de matriz afro-brasileiras, tanto “de invenção” quanto “de herança”, que faz com que a
“memória” seja “dinâmica de transformação”. A questão quilombola em Manzo, ao
afirmar a diferença, introduz uma cizânia no senso comum formador do ideário de nação
brasileira, de modo geral, e da formação da urbanidade de Belo Horizonte, de modo
particular. A afirmação do quilombismo221, ou seja, o autorreconhecimento como

221
Abdias Nascimento cunhou um conceito/categoria clássico, o Quilombismo. No capítulo Documento nº 7:
Quilombismo: um conceito científico emergente do processo histórico-cultural das massas afro-brasileiras,
do livro denominado Quilombismo (1980:245-281). Através da re-significação do termo quilombo em uma
nova categoria, o quilombismo, busca um projeto de organização sócio-política a partir de uma resposta
teórica para os problemas étnico-raciais do País. Abdias também é preciso ao falar em um sentimento
quilombista. Para ele esse sentimento é a resultante do longo processo de discriminação e pré-conceito
contra o negro no Brasil. Isso transparece na relação do Estado com os afro-brasileiros, principalmente
quando são comparados com os migrantes europeus, pobres e necessitados em seus países de origem, que
com a ajuda material recebida do Estado, inclusive terras, tornaram-se membros privilegiados da elite no
Brasil. Este mesmo processo racista que, por exemplo, excluiu o indivíduo negro do acesso a terra, colocou-o
à margem do emprego, restando-lhe os semiempregos, os subempregos ou os empregos menos
qualificados, o que os empurra para uma segregação residencial dupla: racial e econômica. Restariam ao fim
do processo, como área de moradia para os negros, as favelas, os alagados, as terras e os conjuntos
populares invadidos, os mocambos, que acabam se tornando verdadeiros guetos, sujeitos à violência,
principalmente por parte do Estado. Tais “ghettos” são tipicamente bairros em que a maioria da população

293
quilombola, comunica a perigosa ideia de que tornar-se equável é ter o direito de ser
diferente e afirmar essa diferença. O direito à diferença não pode funcionar somente de
acordo com os padrões dos iguais, do contrário, deixa de ser um direito e torna-se uma
imposição. Para que o direito se expresse enquanto tal é importante a participação deste
outro nos termos de suas palavras de forma que também seja um construtor do processo
e não somente seu receptor.

Tornar-se quilombola é, nesse sentido, ato eminentemente político, pois fere o


projeto hegemônico pós-abolição, ou seja, o discurso de harmonia e cordialidade
brasileiras. A sua afirmação é um rompimento com a ideia do igualitarismo universalista e
com o discurso de inclusão que, diga-se de passagem, se deu pela assimilação violenta.

(...)Tolera-se a diferença, desde que essa não seja, de fato, diferente. Prega-se
uma miscigenação genérica que caracteriza certo bom convívio entre as raças
desde que as pessoas não se considerem distanciadas deste projeto e não
formem identidades paralelas a ele. Ou, desde que a suposta cordialidade jamais
traga à tona seu projeto de silenciamento sobre um passado de intensa violência
sobre a qual a elite jamais se responsabilizou (...). (Mariana de Lima e Silva,
2007:8)

A categoria jurídica de remanescentes de quilombo ou quilombola é tributária


de uma conceituação longa e multifacetada222, em Manzo, uma de suas significações é
como resistência, uma política de ação afirmativa e uma denúncia do racismo à brasileira.
Uma postura política de enfrentamento a um discurso de não reconhecimento das
diferenças que se expressam tanto, em termos de uma suposta democracia (inclusive
racial), quanto em um universalismo igualitário de características assimétricas.

Manzo demonstra também que a assunção dessa diferença não é uma


substancialização da vida vivida e vivenciada da Comunidade. Se, por um lado, não se

é de origem africana. “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre,
solidariedade, convivência, comunhão existencial” (NASCIMENTO, 1980:263).
222
Por ocasião da dissertação de mestrado realizei uma etnografia da categoria: seu surgimento, usos,
debates, verMarques (2008)

294
trata de essencializar o tornar-se quilombo em isolados negros, por outro lado, não se
pode resumir o tornar-se quilombola meramente a uma luta fundiária, pois não se trata de
uma luta por qualquer terra, e sim por um território, que se constitui como um locus
marcado pela perseguição, discriminação e preconceito, mas principalmente por ser o
Abassá e o Abantu de seus comunitários: “Eu falo que a sensação que a gente tem aqui é
de um verdadeiro quilombo porque a gente se sente livre” nas precisas palavras de Makota
Cássia, com um modo específico, uma dinâmica e uma organização próprias, ou seja,
constituído por e para seus membros.

Esses territórios são depositários de significações em vários níveis e épocas,


seja para os quilombolas, para seus vizinhos ou para o imaginário da cidade e da
sociedade brasileira, seja no passado ou no presente e no d’avenir. A sua persistência-
existência é denotativa desse processo.

No caso de Manzo busquei entender, a partir do movimento transversal, à


semelhança do Ngunzo, os princípios de conjunção entre metafísica e filosofia social e
natural do Povo de Santo de Manzo que formam tanto a ordem sociocultural quanto a
ordem performativa experimentada na vida vivida e vivenciada. Não existe nessa
sociocosmológica e em sua cosmopolítica uma teleologia da história, bem como seu
oposto, uma vivência a-histórica. A política, nos termos da sociocosmológica de Manzo, é
troca e caminhos cruzados, que são os princípios e as energias da existência do grupo.. A
política, portanto, subsiste e – nos termos de Manzo – gira em momentos específicos,
porque ela já existe como potência de troca e caminhos cruzados.

Não vale a pena ser comunidade, não vale a pena ser Quilombola, não vale a
pena ser nada. Para mim tudo começou pela religião. Inclusive até a nossa vinda
para cá. Nossa moradia aqui, a casa que a mãe conseguiu foi tudo por causa da
religião. Então se não houver candomblé não vale a pena querer nada do
governo. Não acho direito meu ir atrás de governo se não for ter o candomblé.
Se não for ter, que cada um vá ter vida normal. E ai vou entender que fazemos
mesmo parte da cidade formal que eles falam. Mas se tiver o candomblé não.
Pois se tiver o Candomblé vale a luta. Por isto que se me perguntam hoje o que
é o Manzo, eu digo é o Candomblé e tudo que se envolve dentro dele. Isto é o
quilombo. (Makota Cássia)

295
A tomada da palavra política, o tornar-se quilombo - nos termos da própria
comunidade aquilombar-se -, não se trata apenas de representação funcional de uma
socialidade e menos ainda uma resposta meramente adaptativa às condições
socioeconômicas e/ou ecológicas, ainda que as sejam também. Aquilombar-se são as
agências, práticas e represent(ações) em um ritual in becoming. E se aproxima bastante da
ideia apresentada de Wagner (2010:29), para quem, a cultura não é produzida, mas
ativamente inventada e experienciada.

Aquilombar-se, deste modo, é algo que incorpora uma base relacional


produzida através de uma mediação de pontos de vistas em um processo ritual. Este
processo permite perceber o marco da invenção através da relação. Aquilombar-se em
Manzo é transversalizar a diferença em uma multiplicidade de formas de existências
promulgadas em práticas concretas, que permite ao grupo experienciar-se a si mesmo e
ao pesquisador, essa espécie de jogo - em atuação - entre nossos conceitos e ações e os
conceitos e ações do outro223.

O processo de diferenciação e afirmação quilombola - nos termos de Manzo


aquilombar-se - não passa pelo resíduo, pela reminiscência, “pelo que se foi e não é mais”,
senão pelo que de fato se está ou se torna, pelo que é vivido e vivenciado. Tornar-se
quilombola, aquilombar-se é a transversalização da palavra como Ngunzo de sua
existência. Diferenciar-se quilombola não é substância, e sim, transformação.

Ocorre que a tomada da palavra política, como busquei demonstrar,


interagem com estruturas e dinâmicas de dominação e poder, que, em geral, buscam a
anulação ou a negação de sua potencialidade enquanto palavras de autonomia política e
cultural. A tomada da palavra política, desse modo, demanda um caminho cruzado em

223
Objetificar este movimento, como faço aqui para ir ajustando e apreendendo-o denuncia o próprio limite
de nossa pesquisa diante da irredutibilidade da vida em esquemas teóricos e/ou metodológicos.

296
que seja possível o reconhecimento da diferença em um projeto de cidadania e de
direitos, e que esse projeto cidadão respeite efetivamente a alteridade, em um processo
que vá para além de um caráter multicultural e que inclua, nesse caminho cruzado, não
somente direitos materiais como, por exemplo, o direito a moradia digna, saúde,
educação, dentre outros – de suma importância – mas também direitos imateriais como,
por exemplo, o direito de se viver enquanto quilomblecista. Esse caminho cruzado,
proposto pela tomada da palavra política, desafia de diferentes maneiras a existência e o
discurso do Estado-Nação Moderno.

Quilombo, portanto, não é uma categoria frigorificada (Almeida 1996; 2002).


Entretanto, o conjunto normativo exige o autorreconhecimento como “remanescentes” e
a delimitação territorial exige avanços jurídicos e políticos, ainda em vias de construção.
Manzo, com a tomada da palavra política, coloca-se nesse debate, reconhecendo-se como
portadores do direito em termos universais e generalizáveis, mas também como
portadores de uma diferença que se busca manter, não no sentido de estabilizá-la mas de
vivenciá-la. Nesse sentido as palavras de Manzo desestabilizam o modelo da forma-Estado
que, na maioria das vezes, reconhece esses grupos apenas como uma menoridade legal,
ou seja, como grupos a serem tutelados e subordinados. E desestabilizam, também, no
momento em que expressa na prática algo que já se desconfiava teoricamente: as
situações sociais são mais complexas e múltiplas do que as regras e regulamentos, os
modos e a forma de operar do Estado. A vida vivida e vivenciada é multidimensional
enquanto o modelo da forma-Estado e a consequente prática do Estado é, em geral,
dimensional224. Dito de outro modo, a relação Manzo/Estado produz regularidades

224
Em virtude da multidimensionalidade deve-se constantemente fazer o saudável exercício do
estranhamento a concepção jurídica de território quilombola, definido pela hegemonia do Estado-Nação.
Tal constatação, contudo, não deve servir como modelo de contestação nos modos conservadores como
fazem os opositores desse direito jurídico. Pelo contrário, minha crítica é no sentido de radicalizar, aquilo
que assusta a esses críticos.

297
objetivas de comportamentos, mas também práticas baseadas na improvisação.
Coexistem aspectos estruturais e aspectos conjecturais, dimensões racionais e dimensões
sensíveis.

O caminho que sugiro, para compreender o contexto dessa relação, bem como
o próprio contexto de tornar-se quilomblecista, é “levar a sério” aquilo que os amigos de
Manzo me dizem e que denominei de sociocosmológica. A opção foi, então, por uma
apreensão dos fatos etnografados como sistemas dinâmicos. Mesmo quando utilizo
categorias totalizantes - como visão de mundo – o faço de modo desconstrucionista, ou
seja, aquém e além do subjetivismo e do objetivismo, não como uma totalidade existente,
mas como um construí(n)do, ou um fe(i)tiche nos termos de Latour, ou devires em termos
de Deleuze e Guattari.

Esse desafio, como os dados etnográficos de Manzo sugerem, diz respeito à


necessidade de desmistificar a forma-Estado, a prática estatal mas também o processo de
assunção de diferenciações sociais. Tanto o Estado, sua forma-Estado quanto o processo
de tornar-se quilombola são processos vividos e vivenciados, portanto, modos de
différance.

O olhar etnográfico em combinação com análises conjunturais se mostrou


duplamente feliz para os intentos dessa pesquisa, pois, ao reconhecer os sujeitxs de
Manzo como produtores de uma filosofia e sociocosmologia, torna possível reconhecê-los,
também, como vítimas de uma ideia genérica de igualdade, expressa em um conceito
diminuído de cidadania. De modo que, ao tempo em que se reconhecem as dimensões
totalizantes da forma-Estado através de seu caráter legalista, classificador, ordenador,
regulador, demonstra-se também que a Comunidade é tomadora da palavra na arena
política, nesse sentido apta para através de palavras, imagens, símbolos, organizações,

298
instituições, movimentos, fazer um diálogo-confrontação com o modelo da forma-Estado,
ainda que com boixo poder de resolução junto ao Estado.

Sem dúvida que, no contexto específico de Manzo, e no contexto mais geral


das lutas sociais no Brasil do começo do ano de 2015, a forma-Estado e a exacerbação
estatal do uso de suas formas violentas, legítimas ou não, é um dado que não se pode
apagar. As técnicas de governo e suas racionalidades expressas em rotinas e relações de
poder são formas de violência, mas quero sugerir, em consonância com P. Clastres (2013),
que os sistemas políticos devem ser entendidos como sistemas de relações (onto)lógicas
que vão além das categorias institucionais. Ao tempo em que denuncia o encapsulamento
da política a um modelo jurídico e de Estado225, a tomada da palavra política, é a
possibilidade de transformar ou superar essa realidade.

A existência da tomada da palavra política afectou a tese aqui apresentada na


medida em que demonstra possibilidades de questionamentos as palavras do Estado226.
Dito de outro modo, mesmo diante da violência – incluindo aquelas que se se têm
dificuldades de nominar227 - existem possibilidades de formas de resistência. A tomada da

225
Repito aqui parte de uma nota apresentada na introdução desse trabalho e a amplio: “(...) ao contrário de
ser o Estado o instrumento de dominação de uma classe, portanto o que vem depois de uma divisão anterior
da sociedade, é o Estado que engedra as classes. (...) é a partir do poder, da detenção do poder, que se
engedra o trabalho alienado (...)” Clastres (2013:237). Uma reflexão política da Política como potência e
maquina produtiva não é uma análise apenas da forma-Estado como instituição. Mas do próprio
funcionamento do Estado. Perceber isso é escapar ao projeto totalizante do Estado. O Estado é um
poderoso organizador e limitador da vida vivida e vivenciada, mas não é o seu fundante - se o fosse, não
haveria escapatória. Nesse sentido, a expressão êmica tomada da palavra propõe uma possibilidade de
superação dos termos de uma forma-Estado e da atuação estatal que nunca para de ditar suas formas de
regulação e disciplina social.
226
Os nossos clássicos, apesar das divergências teórico-políticas, concordaram que o Estado define a própria
esfera do uso da palavra. E define assim os limtes do que seja aceitável e normalizado. Para Marx, o Estado
funciona como uma comunidade, ainda que ilusória, totalizante, para Durkheim, o Estado é o próprio órgão
de pensamento social e em Weber a jaula de aço sobre as socialidades. As diferentes perspectivações e suas
cosmopolíticas, como no caso de Manzo, nos ajudam a exercitar a imaginação teórica que coloca em debate
esse poder estatal, e tal contribuição nativa não é pequena no universo dos debates antropolíticos.
227
Refiro-me, não somente, a possibilidade de etnocídio, como no caso aqui estudado de Manzo, mas
também, na banalização de dados estarrecedores, como por exemplo, na recepção quase sem palavras a

299
palavra política consiste nessa operação trans que combina ambos os aspectos. É a
esperança de outras palavras, de outros mundos possíveis, sejam palavras nos próprios
léxicos da forma-Estado, seja a palavra como caminho cruzado que busca acrescer novos
Ngunzos a léxica da forma-Estado e assim revolucioná-lo.

estudos como o realizado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais – Flacso, denominado Mapa
da Violência, segundo o qual, em 2012, as mortes juvenis (de indivíduos de 15 a 29 anos) provocadas por
causas externas representaram 71,1% do total de mortes, enquanto para a população não jovem esse índice
foi de 8,8%; e que no período de 2002 a 2011, a participação de jovens negros no total de homicídios no país
se eleva de 63% para 76,9%, enquanto que a participação de jovens brancos decresce de 36,7% para 22,8%.
Os números mostram que para cada jovem branco assassinado, há 2,7 jovens negros vítimas de homicídio.
http://www.mapadaviolencia.org.br/

300
301
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Caderno de Imagens

Carlos Eduardo Marques

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319
Caderno de Imagens

320
Bandeira Branca em Pau Forte

321
Placa comemorativa em alusão ao autorreconhecimento de Manzo como Comunidade Quilombolo

322
323
Visão da fachada externa e interna de Manzo e Conjunto de Assentamentos dos Santos

324
Abassá de Manzo em Santa Luzia;Assentamento para Zazi e Imagem de Kavungo e altar da Umbanda

325
Saudação ao Intoto de Manzo

326
Festa de Pai Benedito em sua Senzala – Quilomblé de Manzo, em Santa Efigênia

327
328
Mãe Efigênia e a Palavra em Manzo

329
Filha de Santo dançado com seus Inquisses

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331
Kambonos de Manzo tocando e cantando aos Inquisses

332
Filha de Santo dançado com seus Inquisses

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Projeto Cultural Kizomba

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Projeto Cultural Kizomba em Santa Efigênia, fundo da roça em Santa Luzia

337
Abassá de Manzo em Santa Luzia, fundo da roça e samba – Momentos da Festa para Exu Paredão

338
Mãe Efigênia

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A caminhada contra a Intolerância, o Povo de Santo nas Ruas de Belo Horizonte

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Mãe Efigênia e o pesquisador na Caminhada contra a Intolerância Religiosa

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