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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Jaime Arturo Ramírez
Vice-Reitora Sandra Regina Goulart Almeida

EDITORA UFMG
Diretor Flavio de Lemos Carsalade
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
Danielle Cardoso de Menezes
Eduardo de Campos Valadares
Élder Antônio Sousa Paiva
Fausto Borém
Maria Cristina Soares de Gouvêa
Roberto Alexandre do Carmo Said

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A raposa de cima e a raposa de baixo
José María Arguedas
Tradução
Rômulo Monte Alto

Belo Horizonte 2016

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©
© 2016, da coleção, Márcia Larica
© 2016, Editora UFMG

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem autorização escrita do Editor.

A694z.Pm Arguedas, José María, 1911-1969


A raposa de cima e a raposa de baixo / José
María Arguedas ; tradução Rômulo Monte
Alto. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2016.
305 p. : il. - (Fora de Série)

Tradução de: El zorro de arriba e el zorro


de abajo.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0138-0

1. Literatura peruana. I. Monte Alto,


Rômulo. II. Título. III. Série

CDD: Pe 863.42
CDU: 860(85)-3

Elaborada pela Biblioteca Professor Antônio Luiz Paixão


– FAFICH-UFMG

Coordenação editorial Michel Gannan


Assistência editorial Eliane Sousa
Direitos autorais Maria Margareth de Lima
e Renato Fernandes
Coordenação de textos Lira Córdova
Preparação de textos Michel Gannam
Revisão de provas Camila Figueiredo, Phillip Félix
e Roberta Paiva
Projeto gráfico da coleção Márcia Larica
Formatação Rafael Chimicatti
Produção gráfica Warren Marilac

Editora UFMG
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Tel. +55 (31) 3409-4650
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www.editoraufmg.com.br

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A E.A.W. e ao violinista Máximo Huamani,
de San Diego de Ishua, dedico, temeroso,
este relato mutilado e disforme.

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Sumário

Alerta do tradutor 12

Introdução 14
O colecionador e as raposas

Primeira parte
31 Primeiro diário

49 I

79 II

107 Segundo diário

113 III

161 IV

205 Terceiro diário

Segunda parte
217 “Descalço e de camiseta…”

279 Último diário?

285 Epílogo

293 “Não sou um aculturado…”

Pequeno glossário 296

Cronologia de José María Arguedas 300

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Alerta do tradutor

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Este texto foi escrito durante os curtos períodos em que Arguedas
se encontrava bem de saúde, os quais não foram muitos, dentro de um
lapso de tempo de três anos. Além de projetar sinais de descrença do
autor na possibilidade de sobreviver ao assédio do suicídio, coloca em
xeque sua confiança na capacidade da própria palavra, que oscila entre
a confissão e a invenção. Portanto, é recomendável aguçar os sentidos
para entender as anomalias gramaticais encontradas, os erros na grafia
de palavras ou o desaparecimento repentino de sílabas e sinais orto-
gráficos, os ruídos inventados de uma pretensa oralidade popular e o
sem sentido de frases que ficam suspensas sem conclusão. Tudo isso,
bem entendido, não forma apenas o invólucro da obra. É parte consti-
tuinte de uma mensagem redigida numa zona árida na qual se batem,
por um lado, o espanhol e, por outro, o quéchua, que se assenhora da
sintaxe do texto e desata uma crise de reconhecimento da linguagem.
Sua perspectiva é eminentemente oral. Arguedas sugeria a sua mulher,
numa carta, que, para entendê-la, uma “leitura em voz alta é muito es-
clarecedora”. Em nosso trabalho de tradução procuramos recriar todos
os desvios e ruídos originais, acrescentados obviamente aos nossos, não
com o sentido de monumentalizar o texto, mas acreditando que são
parte essencial da história da sua escrita. Como texto póstumo, sua publi-
cação foi assumida por Sybila Arredondo, viúva do escritor, e pelo poeta
Emilio Adolpho Westphalen, segundo desejo do próprio autor. Assim,
esperamos, como dizia Guimarães Rosa, que o texto “continue”, em outra
língua, a nossa, e consiga “abrir caminho” dentro de uma literatura di-
ferente daquela da qual procede, com a mesma força e intensidade com
a qual foi criada na língua e na cultura original.

[Esta tradução teve início no ano de 2010, na cidade de Flo-


rianópolis, graças a uma bolsa do Procad (2007/212). Dois
anos depois, foi retomada, graças a outra bolsa, da Capes,
dessa vez de pós-doutorado, sendo finalizada em junho de
2013, em Castellón de la Plana, Espanha.]

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Introdução | O colecionador e as raposas

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Neste seu último romance, que apresentamos aos leitores brasi-
leiros 42 anos após sua publicação póstuma, José María Arguedas, es-
critor, folclorista, etnógrafo e docente universitário, possivelmente o
intelectual de maior prestígio do Peru na década de 1960, dentro e fora
de seu país, deixa um registro preciso das discussões que atravessavam
o mundo intelectual peruano e latino-americano de então, junto às
reflexões que levaram à sua morte, ocorrida ao final daquela década.
Arguedas trabalhou, ao longo de sua vida, pelo reconhecimento e inser-
ção do mundo andino quéchua – sua língua, arte e cultura – dentro do
mapa da nacionalidade peruana, a partir de uma conjunção única entre
arte e vida, que resultou num especial cruzamento da literatura com a
antropologia. Tornou-se assim um modernizador em todos os sentidos
do termo, ao reivindicar a inclusão de uma grande massa de pessoas
que viviam o exílio da existência dentro de seu próprio território, in-
terpelando uma sociedade acostumada a distribuir gradações sociais
em torno do pensamento que associava raça ao atraso e alimentava um
histórico desprezo por tudo que fosse proveniente do interior serrano.
Realizou suas ações tendo em mãos um elemento periférico e precário,
a arte serrana andina, a qual procurou trasladar paulatinamente dos co-
liseus populares e salões de encontros de moradores, para os espaços
de prestígio da cultura limenha, como museus, galerias, rádios, edi-
toras, jornais e universidades. Mas se engana quem busca em Arguedas
a imagem de um protagonista hábil com as palavras, dotado de um
pensamento marcado pela agilidade e versado nos jogos de poder que
o rodearam. Ao contrário, esse homem, que padeceu longos períodos
de depressão em sua última década de vida, que conheceu mais horas
de vigília que de sono e mal conseguia ler por longos períodos, era de
natureza frágil, constantemente atormentado pelas carências materiais
e dono de uma quixotesca visão da natureza e do próprio ser humano.
Seu método de trabalho era a “observação participante”, associada ao
paciente trabalho do colecionador, que terminaria na construção de
vários acervos. Em seu último livro é possível delinear a trajetória de
um homem que sempre se sentiu fora do lugar, um “provinciano do
mundo”, como dizia, mas que, por outro lado, soube construir e manter

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um lugar de prestígio nas imediações do Estado. Um indivíduo que
viveu todas as contradições de seu tempo na própria carne. E pagou
caro por todas elas.
Arguedas teve uma infância “especialíssima”, como ele mesmo
afirmou em diversas oportunidades, marcada pelo afeto que encontrou
no humilde universo quéchua serrano, mesmo proveniente de um es-
trato social superior. Nasceu no seio de uma família de proprietários
de terras, numa cidade do centro sul do país, Andahuaylas, mas pouco
desfrutou dessa fortuna; aos três anos de idade perdeu a mãe, e seu pai,
que se casa novamente com uma abastada fazendeira de San Juan de
Lucanas, é um juiz de pequenas causas que, por razões políticas, perde
seu trabalho e passa a viajar pela serra como advogado ambulante, em
busca de causas e pleitos por pequenas cidades. Ao ser rejeitado pela
madrasta quando menino, segundo Arguedas, ele passa a viver sob os
cuidados dos índios e índias que trabalhavam na casa senhorial, ao
passo que o irmão mais velho, Arístides, acompanha o pai em suas via-
gens. Ainda terá mais dois meios-irmãos, Pedro e Nelly, com os quais
se sentirá vinculado, especialmente com a última. Sua íntima vivência
do mundo quéchua, que havia tido início com as criadas na primeira
infância, seguirá na fazenda da madrasta e se tornará o principal ele-
mento que reivindicará ao longo de sua vida como signo de autoridade.
Uma série de contos sobre a vida comunal em pequenos vilarejos dos
Andes, além do período que passou entre os colonos da fazenda Viseca,
propriedade de um tio para onde havia escapado com Arístides, aos dez
anos de idade, a fim de fugir das crueldades do filho de sua madrasta,
dá forma a seu primeiro livro, Agua (1935), que será premiado naquele
mesmo ano na cidade de Buenos Aires.
Dois elementos se cruzam insistentemente na infância e adoles-
cência do escritor: o abandono e a viagem. O pai sempre o deixou com
alguém, em algum lugar, em razão de suas constantes viagens e proble-
mas financeiros, depois da morte da mãe. Aos 14 anos, Arguedas viaja
com ele e o irmão a Cusco, com o objetivo de visitar um parente, dono
de algumas fazendas, e dali seguem para Abancay, onde será internado
no Colégio Miguel Grau. Tanto as impressões da viagem pela serra e a

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chegada a Cusco como também seu tempo de estudos no colégio serão
retratados no seu romance mais aclamado pela crítica especializada e
traduzido a vários idiomas, Os rios profundos (1958), de caráter auto-
biográfico. Dali Arguedas sairá para estudar em Ica, no litoral, onde
sentirá pela primeira vez os preconceitos sobre sua condição de serrano,
e depois rumará para Huancayo, onde deverá terminar seus estudos se-
cundários. Datam dessa época, 1928, suas primeiras leituras de autores
como Manuel González Prada e José Santos Chocano, além do insubs-
tituível Victor Hugo, modelo de escritor que interiorizará, segundo sua
principal biógrafa, Carmen María Pinilla. Também há registros de suas
primeiras leituras da revista Amauta e o contato com as ideias de seu
diretor, José Carlos Mariátegui, um dos fundadores do Partido Comu-
nista Peruano. Também datam desse momento suas primeiras partici-
pações em protestos estudantis e os primeiros esboços de publicações.
De modo geral, os temas que compõem os livros que Arguedas escreve
seguem o curso de sua vida e seus deslocamentos. Em 1941, dez anos
depois de ambientado em Lima, publica Yawar Fiesta, romance que gira
em torno de uma festa taurina típica da serra andina, tradicional em
Puquio, local onde o pai residiu e ele visitou em várias oportunidades.
Será considerada uma das obras máximas da corrente literária indige-
nista peruana, rendendo ao autor reconhecimento no exterior, espe-
cialmente na França, onde o sociólogo François Bourricaud difunde e
estuda este livro.
Entre 1929 e 1930 Arguedas e Arístides estão em Lima, estudando
seus dois anos finais de curso, o primeiro, e se preparando para entrar
na universidade, o segundo. A morte do pai em Puquio representa
outro trauma para o jovem José María, que consegue um trabalho nos
correios para fazer frente à penúria em que vivia; em 1931, entra para
a Universidad de San Marcos. O apoio que recebe dos amigos recém-
‑conhecidos – Alberto Tauro del Pino, Carlos Cueto Ferdinandi, Emilio
Adolfo Westphalen, José Ortiz Reyes, Manuel Moreno Jimeno, Héctor
Araujo Álvarez, Luis Felipe Alarco, Francisco Miró Quesada e José Al-
varado – confirma o nascimento de um grupo de futuros companheiros
e protagonistas no cenário cultural limenho dos anos vindouros. Entre

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eles Arguedas revelará um tímido, porém decisivo, protagonismo, ao
editar Palabra en Defensa de la Cultura, revista dos alunos de Letras,
em 1936; a partir de 1938 se torna colaborador do jornal La Prensa,
de Buenos Aires, com um ensaio sobre César Vallejo, parceria que se
estenderá até 1948. Finalmente, em 1939 consegue uma vaga de pro-
fessor de castelhano em Sicuani, deixando em Lima sua futura esposa,
Celia Bustamante, com quem se casará no ano seguinte. Foram anos de
muitas descobertas do mundo limenho, nos quais passou a frequentar
a Peña Pancho Fierro, um local de encontros de escritores, pintores
e colecionadores de artesanato indígena, dirigido pela cunhada Alicia
Bustamante, também pintora e discípula de José Sabogal, mestre da
pintura indigenista no Peru.
No entanto, já por esses anos começam a aparecer as ambivalentes
posturas de José María sobre o meio em que transitava. Numa carta ao
irmão Arístides, de 1937, ao contar do término de uma relação amo-
rosa, completa afirmando estar cansado da vida da cidade; diz textual-
mente: “(…) odeio profundamente a vida intelectual que estou levando;
não quero ser de nenhuma maneira um intelectual.” Já em outra carta a
José Ortiz Reyes, em agosto de 1938, parecia se referir a um campo de
batalha, onde se enfrentam bandos contrapostos, ao animar o amigo e
falar da necessidade de cerrar fileiras juntos: “Nosso plano é opor nossa
produção à do outro bando. Qual é a literatura verdadeiramente repre-
sentativa do Peru? Qual é a que vale? Demonstraremos que é a nossa.”
Essa oscilação entre ser ou não ser um intelectual, que aparece nas re-
flexões de seus diários finais, presentes neste livro, reflete um dilema
próprio do intelectual latino-americano perante a modernização da ativi-
dade letrada, tendo em um de seus polos as figuras de Cortázar e Vargas
Llosa como defensores da profissionalização da atividade escritural e
do olhar cosmopolita, e no outro a resistência de tradição romântica,
que encontra no exercício da letra a expressão subjetiva do mundo na-
tural e assume a província como limite da verdade. Porém, essa falsa
querela não tira de Arguedas a consciência de ser parte de uma gera-
ção, como confirma esta referência numa carta que escreve a Manuel
Moreno Jimeno, em agosto de 1939: “Dessa garotada de 32, ou seja, dos

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que entramos então para a U.[niversidade], e dos que continuamos, dos
[que] começamos a luta e depois fomos passar dez, doze meses, em lu-
gares escuros e de provação.” Os “lugares escuros e de provação” fazem
referência ao tempo passado na prisão por razões políticas.
Antes de sair de Lima para trabalhar como professor em Sicuani,
departamento de Cusco, Arguedas e alguns dos companheiros mencio-
nados passam mais de um ano detidos na penitenciária El Sexto, entre
os anos de 1937 e 1938, por participar de um protesto contra a visita à
universidade do general italiano fascista Camarotta. Na prisão escre-
verá Canto Kechwa (1938), uma série de cantos quéchuas traduzidos
e publicados em uma edição bilíngue, acompanhados de um “Ensaio
sobre a capacidade de criação artística do povo índio e mestiço”, afir-
mando a capacidade de expressão daquela língua em comparação com
o castelhano. Em razão dessa sua última publicação e outros trabalhos
de recopilação folclórica, será convidado para o primeiro dos muitos
eventos internacionais a que assistirá, o Congresso Interamericano de
Indigenistas, que se realizou em Pátzcuaro, México, em 1940. O tempo
passado no presídio será também recuperado ficcionalmente em 1961,
quando Arguedas, aos 50 anos, publica El Sexto, um romance que ofe-
rece um retrato do país a partir das violentas relações que se davam nos
claustros daquele centro de reclusão.
José María e Celia passaram momentos felizes na pequena Sicuani
por quase três anos, onde deu aulas na Escola Pumaccahua e ensinou os
alunos a fazer coleta de dados sobre a cultura local. Tirava fotos, fazia en-
trevistas, instava os alunos a escrever; a Manuel Moreno escreve e conta
que está enviando “oito fotografias, duas de challakuy, duas da colheita
de trigo, o ‘Jaychay, e quatro da dança dos ‘K’anchis’”. Com os dados co-
letados, traçou planos para a publicação de uma revista com os trabalhos
de recopilação folclórica feitos pelos alunos, aos quais ensinava geografia
e literatura. Costumava ler para eles poemas dos autores clássicos, como
Federico García Lorca ou César Vallejo, bem como de seus amigos poe-
tas e escritores, como Emilio Westphalen e Manuel Moreno. A revista,
tão sonhada, nunca se concretizou por falta de recursos e divergências
com o diretor da escola local. Por suas leituras e comentários sobre uma

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possível reforma da educação secundária de Emilio Barrantes, é convi-
dado a voltar a Lima, em 1942, para fazer parte do grupo de trabalho
do Ministério de Educação sobre o projeto de reforma. Porém, depois
de um período de excesso de trabalho que entusiasmou o grupo de sete
estudiosos que sobre ele se debruçaram, a proposta acabou se frustrando
por sofrer a ingerência de padres e diretores de escolas particulares, o
que custou a Arguedas uma crise nervosa e a primeira manifestação da
depressão que o acompanhará até o final de seus dias. É designado para
dar aulas no Colégio Afonso Ugarte, passa por momentos de muita de-
bilidade física e volta a ter problemas financeiros.
Em 1945 se matricula no recém-criado Instituto de Etnologia da
Universidad de San Marcos, carreira que vai ao encontro de sua natural
vocação de construir pequenos acervos sobre a arte e a cultura andina;
concluirá seus estudos de antropologia em 1950. Aqui começa a se de-
linear um dos traços característicos da figura pública de Arguedas, de
permanente colecionador a criador e gestor de arquivos, de bens ar-
tísticos e culturais. Em duas cartas a Emilio Westphalen, escritas em
épocas distintas, enumera os objetos de sua apaixonada atividade: “Não
tenho apenas poemas e outros artigos. Tenho trabalhos dos alunos sobre
danças, costumes, waynos, lendas, contos; e descrição de lugares, de
rios, de montes, lagos. Trabalhos sobre economia, sobre o trigo, o milho,
o feijão (…)” (Sicuani, julho de 1939); “Tenho no Arquivo não menos
de 15 mil versos de poesia folclórica em castelhano; um verdadeiro
universo. Começarei a publicação desse material no n. 3 de Folklore
Americano” (Lima, julho de 1955). Também na literatura parece dar
continuidade a seu instinto colecionador, como se organizasse uma ti-
pologia de homens peruanos. Numa carta ao antropólogo John Murra,
em 1960, relaciona os personagens para o romance que está terminando
de revisar, El Sexto: “Negros, índios, mestiços, cholos, mulatos: homens
puros como santos e degenerados; fanáticos e tolerantes; todo o Peru
que talvez em nenhum outro lugar esteve mais exatamente represen-
tado do que nessa prisão.”
A Peña Pancho Fierro não apenas era um local de encontro de co-
lecionadores de arte indígena, mas um espaço aglutinador de homens

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e mulheres com certa vocação para o arquivo. Por ali passaram, por
exemplo, o amigo Carlos Cueto Ferdinandi, educador e filósofo, ex-
‑diretor da Biblioteca Nacional e Ministro da Educação em 1962; sua
mulher, Lilly Caballero Elbers, bibliotecária e criadora do Centro de
Documentação e Informação de Literatura Infantil do Peru; Luis Val-
cárcel Vizcarra, historiador e antropólogo, diretor emérito dos Museus
Nacionais e criador da Revista del Museo Nacional; Federico Schwab,
bibliógrafo alemão, organizador dos fundos documentais da Universidad
de San Marcos e editor do seu Boletín Bibliográfico. Além desses, Arguedas
manteve relações em Lima com uma série de homens que, em seus di-
ferentes âmbitos profissionais, pareciam também cultivar a missão de
organizar, relacionar e registrar, como o microbiólogo Julio César Gas-
tiaburú, fundador da Sociedade Química do Peru e iniciador do pro-
cesso de tratamento da água que abastecia a capital peruana; o médico
Juan Francisco Valega, fundador da Sociedade Peruana de Higienistas
e da Sociedade Peruana de Pediatria; o geógrafo Gonzalo de Reparaz
y Ruiz, de origem luso-espanhola, chefe da Missão de Assistência Téc-
nica da UNESCO e editor do primeiro guia turístico do país; Enrique
Pinilla Sánchez-Concha, compositor e diretor de orquestra, fundador
da Escola Superior de Cinema e Televisão da Universidade de Lima,
entre outros. Vale a pena mencionar especialmente Francisco Carrillo
Espejo, professor da San Marcos, que se dedicou a escrever uma En-
ciclopédia histórica da literatura peruana, obra da qual se publicaram
apenas nove tomos pela editora Horizontes (1986-1999). Essa sucessão
de nomes ilustra algo da efervescente prática de institucionalização e
arquivamento do conhecimento, que vigorava no ambiente limenho por
onde transitava Arguedas.
O Peru experimentava, na segunda metade da década de 1940 e
na primeira de 1950, anos de esperança e ares de modernidade, espe-
cialmente com a presidência de José Luis Bustamante y Rivero entre
1945 e 1948. No cenário internacional, o fim da Segunda Guerra ofe-
recia imagens modernas de um mundo em reconstrução sob a supre-
macia americana, ao passo que a intensa migração da serra para as
grandes e médias cidades litorâneas mudava a fisionomia destas, que

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experimentam importantes mudanças em suas leis de ocupação do
solo. A reurbanização da Praça de Armas e do centro histórico de Lima,
a criação de grandes unidades habitacionais para a população de renda
média e baixa, especialmente em Lima e Callao, a criação da ONPU,
Oficina Nacional para o Planejamento Urbano, proposta pelo então
jovem deputado e arquiteto Fernando Belaúnde Terry, que se tornará
presidente da República de 1963 a 1968, são alguns dos acontecimentos
de caráter modernizador do país. Lima é sacudida pelo aparecimento
de grupos vanguardistas e movimentos culturais em vários campos,
sejam artísticos ou acadêmicos. Dentre esses diversos movimentos,
merece atenção um grupo com cujos membros José María tem con-
tato, a Agrupación Espacio. Formado por estudantes de arquitetura da
Universidad Nacional de Ingenería e liderados por Luis Miró-Quesada
Garland, lança, em 1947, um manifesto ao país conclamando pela re-
modelação de seu espaço urbano, como forma de responder ao desafio
dos tempos modernos. Editam a revista Espacio em 1949 e mantêm
uma seção no jornal El comercio sobre arte moderna. A construção
da nova Faculdade de Arquitetura em 1951, com projeto do arquiteto
italiano Mario Bianco, é um referente do novo lugar da arquitetura no
país, e a visita de José Luís Sert e Walter Gropius em 1953 coloca o Peru
em sintonia com a mais avançada arquitetura mundial. Agrupación Es-
pacio fomenta também o desenvolvimento da pintura abstrata, a partir
de um grupo de pintores vanguardistas, como Jorge Piqueras Sánchez-
-Concha, Alberto Guzmán, Benjamín Moncloa e o inseparável amigo
de Arguedas, Fernando de Szyszlo. Esse grupo de pintores mantém uma
estreita relação com os chamados pintores indigenistas, que, sob a ba-
tuta de José Sabogal e Julia Codesido, procuravam retratar os espaços
e costumes interiores da serra peruana. Na poesia, o olhar surrealista
de Emilio Adolfo Westphalen, escritor a quem Arguedas dedica seu
último livro, junto a Blanca Varela, esposa de Szyszlo, aporta ao país o
que de mais avançado aparecia na poética dos países centrais, especial-
mente a França. No início da década de 1950 também surge uma nova
narrativa urbana, que procura refletir a cambiante realidade das grandes
cidades e seus personagens marginais, influenciada pelas leituras de

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Joyce, Faulkner e Borges; seus principais escritores, Julio Ramón Ri-
beyro, Carlos Eduardo Zavaleta, Enrique Congrains e Mario Vargas
Llosa, são também próximos, alguns mais, outros menos, de Arguedas.
Nesse cenário dinâmico, Arguedas segue seu itinerário pessoal,
agora nomeado, em 1953, chefe do Instituto de Estudos Etnológicos do
Museu da Cultura Peruana, cargo que ocupará por dez anos. Passa a
editar a revista Folklore Americano, ao ser nomeado secretário do Co-
mitê Interamericano de Folclore. Viaja pelo interior do país realizando
trabalhos de recopilação folclórica e, em 1955, com o conto “La muerte
de los hermanos Arango”, é vencedor de um concurso promovido pelo
jornal El Nacional, do México. Passará os meses de janeiro a julho de
1958 na Espanha, na província castelhana de Valladolid, com uma bolsa
da Organização dos Estados Americanos (OEA), recolhendo dados
para sua tese doutoral, sobre as relações entre as comunidades agrícolas
andinas e espanholas. Visita, juntamente com Celia e a cunhada Alicia,
Paris e Roma, onde encontra amigos comuns, como Emilio Adolfo.
Finalmente consegue publicar seu romance Os rios profundos, que lhe
renderá, além do Prêmio Nacional de Fomento à Cultura “Ricardo
Palma”, reconhecimento internacional por seu trabalho literário. As-
sume, provisoriamente, a chefia do Instituto de Estudos Etnológicos da
Universidad de San Marcos, o que lhe proporciona um grande desgaste
emocional a partir de 1959. Ali também começa a ministrar um curso
introdutório de etnologia e, a partir de 1962, outro de língua quéchua
na Universidad Agraria de la Molina. São anos de grandes disputas po-
líticas na universidade, o que faz José María se afastar da San Marcos e
continuar vinculado apenas à Agraria, onde será contratado em tempo
parcial. Em 1963 será nomeado diretor da Casa da Cultura do Peru e
funda a revista Cultura y Pueblo, de difusão popular. No ano seguinte,
deixa a Casa da Cultura e se torna diretor do Museu Nacional de His-
tória. Publica Todas las sangres, livro no qual discute a problemática do
desenvolvimento da serra peruana, mediante as atitudes díspares de dois
irmãos fazendeiros, no qual vinha trabalhando nos últimos tempos. Esse
livro será alvo de uma intensa polêmica na célebre mesa-redonda, orga-
nizada no dia 23 de junho de 1965, no Instituto de Estudos Peruanos

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(IEP), ao ser duramente criticado pelos sociólogos presentes no encontro,
que não o valorizam como meio de conhecimento da realidade peru-
ana. Essas críticas, juntamente com a necessidade que lhe impõem de
promover cortes financeiros no Museu, demitindo vários funcionários,
tarefa à qual se nega, levam Arguedas à sua primeira tentativa de suicí-
dio, tomando uma overdose de comprimidos de Seconal em sua própria
sala do museu. Após sua recuperação, retoma as aulas e os projetos de
trabalho, publicando dois anos depois sua tese doutoral Las comunidades
de España y Perú, sendo promovido a chefe do Departamento de Socio-
logia da Universidad Agraria.
Arguedas havia viajado para fora do país duas vezes na década
passada, indo a La Paz, Bolívia, em 1951, para uma reunião de espe-
cialistas em trabalho indígena, feita pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Depois, em 1953, viajou ao Chile para participar da
Primeira Semana do Folclore Americano. A década de 1960 começa
com uma viagem a Buenos Aires, para o Terceiro Festival do Livro
Americano. No mesmo ano, vai à Guatemala com uma bolsa da OEA
para pesquisar temas ligados à arte popular. Dois anos depois, é convi-
dado para ir a Berlim, Alemanha, ao Primeiro Colóquio de Escritores
Ibero-Americanos e Alemães. Publica nesse meio-tempo Tupac Amaru
Kamaq Taytanchisman. Haylli-Taki. (A nosso pai criador Túpac Amaru),
um texto-manifesto dirigido aos intelectuais, em que anuncia a pre-
sença em Lima de uma multidão de vozes prontas para conquistar a
cidade dos falsos senhores. Consulta-se em Santiago do Chile, pela pri-
meira vez, com a doutora Lola Hoffmann, psicoterapeuta junguiana que
terá papel decisivo nas mudanças pelas quais sua vida passará daí em
diante. Também nessa cidade conhecerá Sybila Arredondo, com quem
se casará alguns anos depois em Lima. Arguedas passa a ser requisi-
tado com mais frequência em eventos nacionais e internacionais, como
no México, aonde vai em 1964. Em 1965, assiste em Gênova, Itália, ao
Colóquio de Escritores Latino-Americanos, onde conhece Guimarães
Rosa e Juan Rulfo, com os quais se sentirá profundamente irmanado.
Nesse mesmo ano viaja aos Estados Unidos, convidado pelo Departa-
mento de Estado para diversas palestras e se emociona com a cidade de

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Nova York. Na volta participa em Arequipa do Primeiro Encontro de
Narradores Peruanos, organizado por Antonio Cornejo Polar, então
diretor da Casa de Cultura daquela cidade. Ainda viajará em 1966 a
Arica, Chile, para a Reunião de Escritores e Artistas, organizada pelo
Conselho Nacional de Cultura de Santiago, e Montevidéu, onde começa
a se tratar com o doutor Marcelo Viñar. No ano seguinte ainda viajará
ao México, Chile, Áustria e Cuba, a fim de participar de congressos
de escritores e antropólogos, além de fazer parte do juri do concurso
“Casa de las Américas”, em Havana. Paralelamente às viagens, mantém
uma nutrida correspondência com antropólogos estrangeiros, como
John Murra e Pierre Duviols, com os quais compartilha opiniões, con-
fidências, projetos e traduções de textos e manuscritos quéchuas, como
Dioses y hombres de Huarochirí, editado em 1966, em que fazem sua
primeira aparição as raposas de seu último livro.
Entre a província e o estrangeiro, cresce o prestígio de Arguedas,
que passa a ocupar um lugar de centralidade no cenário intelectual pe-
ruano, além de referência para a formação de um pensamento nacional.
Vargas Llosa, em seu livro La utopía arcaica: José María Arguedas y las
ficciones del indigenismo, de 1996, reconhece as teses arguedianas como
um dos pensamentos centrais no Peru, apesar de questionar seu prestígio
e condenar seus postulados ao relacioná-los com o atraso e o arcaico. O
crescente prestígio de José María se deve ao que ele próprio dizia a Murra
numa carta de novembro de 1961: “O prestígio vem somente quando o
que uma pessoa faz aporta uma nova mensagem sobre o nosso povo ou
sobre os problemas gerais que o homem procura estudar.”
Em Chimbote, cenário deste último livro, encontramos novamente
o colecionador em ação. Com o gravador em punho, confirma a ex-
tensão do seu trabalho: “conseguimos dados sobre 3.645 pescadores
e 3.840 trabalhadores”, afirma em carta a John Murra em fevereiro de
1967. Sua sobrinha Vilma também se transmuta em colecionadora, ao
escrever ao tio oferecendo sua ajuda na coleta de dados sobre os pes-
cadores: “Eu estou disposta a ajudar no que seja possível e estou cole-
cionando informações sobre a vida de alguns pescadores que vieram a
esta sala.” Chimbote é uma cidade costeira que dista 420 quilômetros ao

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norte de Lima pelo litoral, subindo a rodovia Pan-americana, um antigo
lugar de veraneio que se transforma na maior praça da indústria da fari-
nha de peixe, mais exatamente a anchoveta. Ali Arguedas encontra re-
novadas energias para retomar seus trabalhos etnográficos, que tinham
como missão inicial rastrear a presença de mitos pré-hispânicos naquela
região. No entanto, ao se deparar com o universo caótico das relações
sociais entre os protagonistas daquela revolução econômica, especial-
mente as que mediam entre os habitantes do litoral e a impressionante
massa de serranos de fala quéchua que chegavam ao porto diariamente,
decide abandonar seu projeto inicial e retomar o antigo desejo, que
acalentava desde 1962, de escrever um romance sobre o mundo da
pesca. A obra recebe inicialmente os nomes de “Farinha mundo” e,
posteriormente, “Peixe grande”. Concomitantemente ao trabalho de co-
leta de dados e escrita, viaja a Santiago do Chile para se consultar com
a doutora Hoffmann, além de manter sua volumosa correspondência
com antropólogos e amigos. Seu quadro físico se debilita ao longo dos
anos de 1968 e 1969, a insônia se torna crônica e as dores de cabeça
não o deixam trabalhar como gostaria. Após a publicação do segundo
capítulo em Marcha, revista dirigida por Ángel Rama em Montevidéu,
as editoras Siglo XXI, do México, e Seix Barral, de Barcelona, fazem
ofertas para a publicação do livro. Também receberá uma proposta da
editora Sudamericana em Buenos Aires para a publicação, mas finalmente
dará prioridade ao editor Gonzalo Lozada, da editora Lozada, de Buenos
Aires, por razões pessoais. O livro se estanca em 1969, o autor sente já
não ter forças para terminá-lo e viaja ao Chile para ver sua psicotera-
peuta, que o estimula a misturar seus diários pessoais com o relato que
escreve. Finalmente, regressa a Lima no final daquele ano e faz seus
últimos preparativos.
Ao escrever “despeçam em mim um tempo do Peru”, em seu úl-
timo diário, Arguedas sabe que em seu debilitado corpo se cruzam vá-
rias instâncias e poderes contraditórios. Seus acervos sobreviveram a
duas raposas milenárias, que começaram a correr dentro do seu relato
e fugiram do seu alcance, como ele mesmo reconheceu. O colecio-
nador, intelectual e fatigado escritor sobreviveu também a seu livro

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final, contrariando suas previstas expectativas. Deixou uma obra ex-
tensa, composta de cinco tomos de novelas, contos e poesias, editados
desde 1985 pela Editorial Horizonte, além de outros sete dedicados aos
estudos etnográficos, publicados em Lima em setembro de 2012, com
apoio de Derrama Magisterial, Instituto de Estudos Peruanos, Região
de Cultura de Cusco e Banco de la Nación. Sua correspondência pes-
soal, publicada por amigos, parentes e estudiosos, alcança já a cifra de
dez livros, e se imagina que ainda há missivas guardadas em algumas
gavetas. O Arquivo Arguedas está em fase de implementação pela Casa
de la Literatura Peruana, com um acervo em torno de 2.500 relatos orais
do Peru autóctone, feitos de lendas e contos, recentemente recuperados e
digitalizados por um grupo de especialistas. Esses relatos foram coletados
no Peru entre os anos de 1946 e 1953, quando Arguedas trabalhou
como funcionário do Ministério de Educação. Não é sem razão que ele
tenha escolhido dois locais públicos dedicados ao conhecimento – pri-
meiro um museu, em 1966, e depois a universidade, em 1969 – como o
lugar derradeiro onde desejava receber as homenagens póstumas. Uma
escolha própria de um homem que dedicou sua vida ao conhecimento.

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Primeira parte

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Primeiro diário

Santiago do Chile, 10 de maio de 1968

Em abril de 1966, há pouco mais de dois anos, tentei cometer suicí-


dio. Em maio de 1944 entrei em crise por causa de uma doença psíquica
contraída na infância, permanecendo quase três anos neutralizado, sem
escrever. O encontro com uma zamba gorda, jovem, prostituta me de-
volveu o que os médicos chamam de “vontade de viver”. O encontro com
aquela alegre mulher deve ter representado o toque sutil, complexo, que
meu corpo e alma precisavam, para recuperar o vínculo perdido com
as coisas. Quando esse vínculo era intenso, eu conseguia transmitir à
palavra a matéria das coisas. Desde aquele momento tenho vivido com in-
terrupções, um pouco mutilado. O encontro com aquela zamba não con-
seguiu ressuscitar em mim a capacidade plena para a leitura. Nesses anos
consegui ler somente alguns livros. E agora estou outra vez às portas do
suicídio. Porque novamente me sinto incapaz de lutar bem, de trabalhar
bem. E não penso, como em abril de 66, em me converter num enfermo
inepto, numa testemunha lamentável dos acontecimentos.
Em abril de 66 passei vários dias à espera do momento mais opor-
tuno para me matar. Meu irmão Arístides tem uma carta com as re-
flexões que explicam o porquê de não conseguir me liquidar naqueles
dias. Hoje tenho medo não exatamente da morte, mas da maneira de
encontrá-la. O revólver é seguro e rápido, mas não é fácil conseguir um.
Considero inaceitável e doloroso o veneno que usam os pobres em Lima
quando se matam; não recordo o nome daquele inseticida neste mo-
mento. Sou covarde para a dor física e mais ainda para sentir a morte.
As pílulas – que me garantiram serem mais eficientes para matar – pro-
duzem uma morte dolorosa, quando matam. E quando não, deixam o
que eu tenho, em gente como eu, um sentimento pegajoso de morte
num corpo ainda robusto. E essa é uma sensação indescritível, como
se dentro da pessoa lutassem, sensualmente, o desejo de viver e o de
morrer. Porque, para quem está como eu, o melhor é morrer.

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Escrevo estas páginas porque me disseram, insistentemente, que se
consigo escrever recupero a sanidade. Porém, como não consigo escre-
ver sobre os assuntos pensados, elaborados, pequenos ou muito ambi-
ciosos, vou escrever sobre o único que me atrai: de como não consegui
me matar e como agora quebro a cabeça buscando uma forma de me
liquidar com decência, incomodando o menos possível as pessoas que
lamentarão meu desaparecimento, bem como aos que meu desapareci-
mento proporcionará alguma forma de prazer. É maravilhosamente in-
quietante essa minha preocupação, e de muitos outros, isso de preparar
o suicídio de modo que ocorra da melhor forma possível. Acho que é
uma preocupação natural da vaidade, da sensatez, e talvez do egoísmo
que se apresentam bem disfarçados de generosidade, de piedade. Assim,
vou tratar de misturar, se consigo, este tema que é o único cuja essência
vivo e sinto como para poder transmitir a um leitor; vou procurar mes-
clar e enlaçar com os motivos escolhidos para um romance que, final-
mente, decidi chamar de A raposa de cima e a raposa de baixo; também
tratarei de misturar com tudo o que em muitas ocasiões meditei sobre
as pessoas e sobre o Peru, sem que tivessem estado especificamente
compreendidos dentro do plano da obra.
Ontem à noite decidi me enforcar em Obrajillo, de Canta, ou em
San Miguel, em caso de não encontrar um revólver. Será horrível para
quem me encontre, mas me certifiquei de que o enforcamento produz
uma morte rápida. Em Obrajillo e San Miguel poderei passar uns dias
coçando a cabeça dos porcos que vagam pelas ruas, conversando franca-
mente com os cachorros, ou mesmo rolando na terra com alguns desses
cachorros vira-latas que aceitam minha companhia nesse extremo.
Muitas vezes consegui brincar com os cachorros dos vilarejos, como se
fosse um deles. E dessa maneira a vida é mais vida para mim. Sim; há
cerca de quinze dias consegui coçar a cabeça de um nionena (porco),
bem grande, em San Miguel de Obrajillo. Ele até procurou fugir, mas a
felicidade do toque foi tanta que se deteve; aí, começou a grunhir com
alegria, depois (como me custa encontrar os termos necessários!) se
deitou devagar e, pouco a pouco, já deitado e com os olhos fechados,
gemia suavemente. A alta, altíssima cachoeira que desce da inalcançável

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altura das pedras cantava no gemido daquele nionena, em suas cerdas
duras que se converteram em suaves; e o sol tíbio que aquecia as pedras,
meu peito, cada folha das árvores e arbustos, caldeando de plenitude,
de beleza, inclusive o rosto anguloso e enérgico de minha mulher, esse
sol aparecia melhor do que em nenhuma parte na linguagem desse nio-
nena, em seu sono delicioso. As quedas d’água do Peru, como as de San
Miguel, que descem sobre abismos, a centenas de metros em salto quase
perpendicular, regando os parapeitos onde florescem plantas alimen-
tícias, alentarão meus olhos instantes antes de morrer. Elas retratam o
mundo para nós que sabemos cantar em quéchua; poderíamos ficar
eternamente ouvindo seu rumor; elas existem por causa dessas mon-
tanhas íngremes, que se ordenam caprichosamente em quebradas tão
fundas como a morte e sempre ásperas de vida; escarpas bravias onde
o homem semeou, levantou chácaras com seus dedos e seus miolos,
plantando árvores que se estendem desde o precipício até o céu, espi-
chando com transparência. Árvores úteis, tão bárbaras de vida como
esse monte de abismos frente aos quais os homens são gusanos belís-
simos, poderosos, bastante menosprezados pelos destros assassinos que
hoje nos governam. Querido irmão Pachequito, tenente em Pinar del
Río e você, Chiqui, da Casa de las Américas: quando chegar aqui um
socialismo como o de Cuba, vão se multiplicar as árvores e os canteiros
que são terra boa e paraíso! Felizmente as pílulas – que me disseram
que eram seguras – não me mataram, porque aí conheci vocês e esse
jovem armado com uma metralhadora, que vigiava a entrada do Ter-
minal Pesqueiro, em Havana. O garoto sorriu quando disseram que eu
era um amigo peruano convidado: “Entra, companheiro, veja o que
temos feito.” E em seu rosto havia a felicidade, a inteligência, a força,
a generosidade natural dessas cachoeiras que na luz do mundo e na
luz da sabedoria cantam dia e noite. Apesar de que para mim já não
cantam com toda a vida, porque meu corpo abatido já não vibra, apenas
tremula. Essa é, pois, a morte, e a morte também é necessária, é conve-
niente! Sim, é muito simples, Pachequito, como seu olho minúsculo em
que brilhava a força que o levou a matar para construir o que para vocês
agora é a vida justa. Para os impacientes são inaceitáveis os dias de cama

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ou de invalidez, à espera da morte. Não, eu não suportaria. Também não
suporto viver sem lutar, sem fazer algo para retribuir aos outros o que
aprendi, além de também fazer algo para enfraquecer os perversos ego-
ístas que converteram milhões de cristãos em resignados bois de carga.
Não detesto o sofrimento. Talvez, inteligente companheiro Dorticós,
alguma vez o homem consiga eliminar o sofrimento sem menoscabar
seu poder. Você, por exemplo, nos minutos em que falava parecia um
sujeito que sabia de tudo, era imune ao sofrimento, como seus óculos.
Em outros casos não existe generosidade nem lucidez, a não ser como
fruto, em grande parte, do sofrimento. Porque só depois de fazer cessar
a dor, quando ela é vencida, é que vem a plenitude. Talvez o sofrimento
seja como a morte para a vida. O homem sofrerá, mais tarde, pelos
esforços que fizer para chegar fisicamente, que é a única chegada que
vale, às miríades de estrelas que em San Miguel podemos contemplar com
uma serenidade feliz que, mesmo para os condenados como eu, trazem
tranquilidade por instantes. Sempre haverá muito que fazer.

11 de maio

Ontem escrevi quatro páginas. Faço isso por terapia, mas sem
deixar de pensar que poderiam ser lidas. Que pobre é a palavra quando
falta o ânimo! Quando o ânimo está sobrecarregado com tudo o que
aprendemos através de todos nossos sentidos, a palavra também se car-
rega dessa matéria. E como vibra! Eu me converti num ignorante desde
1944. Tenho lido muito pouco desde então. Lembro-me de Melville, de
Carpentier, de Brecht, de Onetti, de Rulfo. Quem carregou a palavra
como você, Juan, de todo o peso dos sofrimentos, das consciências, da
santa luxúria, da hombridade, de tudo o que na criatura humana existe
de cinza, de pedra, de água, de uma podridão violenta para parir e
cantar, como você? Naquele hotel, mais morto que vivo, o Guadalajara
Hilton, onde nos alojaram juntos, seria casualidade? Ali você me contou
um pouco da sua vida. Como foi despedido e voltou a ser nomeado em
torno de vinte vezes nos Ministérios da Revolução Mexicana. Seu tra-
balho numa fábrica de pneus. Como deixou o trabalho porque queriam

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que fosse para outro país. Enquanto falava deitado em sua cama, você
fumava sem parar. E falando muito mal de Juárez. Não era surpresa a
heterodoxia com que ia ordenando as causas e os efeitos da história
mexicana, de como parecia conhecer a fundo, tanto, ou melhor, que
sua própria vida, essa história. E me fez rir, descrevendo o velho Juárez
como um sujeito meio nefasto e com pinta de fanfarrão. Lembrei-me
da primeira vez que nos conhecemos em Berlim, de como tomei seu
braço e fomos até o ônibus, era a mesma felicidade de como quando,
já profissional, voltei a encontrar dom Felipe Maywa, em San Juan de
Lucanas, e, de repente, me senti igual a esse grande índio a quem via na
infância como um sábio, como uma montanha condescendente. Igual
a ele! E ao passo que alguns indivíduos ali me adulavam, doutoreavam,
não permitindo que eu apreciasse nem mesmo o sol da terra, ele, dom
Felipe, permitiu que o tomasse do braço. E senti seu cheiro de índio,
esse hálito amado de bata suja de suor. E abracei dom Felipe de igual
para igual. Dom Felipe tem estatura pequena – ainda está vivo. Eu, que
sou de estatura média, sou bem maior que ele. Mas olhamos um para
o outro, de homem para homem. E não foi maior meu assombro jus-
tificado, bem contido e por isso tenso. Abraçados nos olhamos, frente
a outro tipo de surpresa das pessoas, índios e wiraqochas gentes im-
portantes que estavam me respeitando, não me conheciam. Se eu era
o mesmo, o mesmo menino que quis morrer num milharal do outro
lado do rio Huallpamayo, tudo porque dom Pablo me jogou na cara o
prato de comida que a Facundacha havia me servido! Mas ali também,
naquele milharal, só fiquei e dormi até a noite. Não me quis ali a morte,
assim como não me aceitou na sala da Direção do Museu Nacional de
História de Lima. E despertei no Hospital do Funcionário. E vi uma luz
leitosa, depois o rosto meio apagado das pessoas. (Uma farmacêutica
não quis me vender três comprimidos de Seconal; ela garantiu que com
três eu poderia dormir sem despertar; eu tomei trinta e sete. Foram tão
ineficazes como a súplica que dirigi à Virgem, chorando, no milharal de
Huallpamayo.) Dizia que eu era o mesmo menino a quem dom Pablo,
senhor do vilarejo, aprendiz de cacique então, jogou a comida na cara,
mas sem dúvida alguma, ao mesmo tempo era também outro. Esse

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outro e o menino do milharal, no entanto, eram uma só coisa, e dom
Pablo, de baixa estatura, maciço, antigo e novo como eu, aceitou, achou
natural que assim fosse. Por isso me tratou de igual para igual, como
você, Juan, em Berlim e em Guadalajara, também em Lima, e naquele
povoado de Guanajuato, explorado até não poder mais, como Cusco.
Você fumava e falava, e eu ouvindo. E me senti pleno, contentíssimo,
que conversássemos como dois iguais. Ao contrário, via dom Alejo Car-
pentier como muito “superior”, certamente como me viam as pessoas
que me doutoreavam. Só havia lido O reino deste mundo e um conto;
depois li Os passos perdidos. Como é diferente de nós! Sua inteligência
penetra as coisas de fora para dentro, como um raio; é um cérebro que
recebe, lúcido e feliz, a matéria das coisas, e como as domina. Você tam-
bém, Juan, mas a partir de dentro, do interior, do próprio começo das
coisas; a inteligência está; trabalhou antes e depois.
Bem, vou reler o que escrevi; ando bastante confuso e, apesar de
muito angustiado pela dor na nuca, um pouco mais confiante que on-
tem para falar. E o que eu dizia, Juan? Vi Onetti no México. Andava
com um bastão, acompanhado por alguns conhecidos. Eu não tinha
lido nada dele. Uma pena. Possivelmente o cumprimentaria; já de dom
Alejo não me atrevi a aproximar, fomos apresentados duas vezes. Di-
zem que é tímido, porém eu sentia ou o sentia como um europeu ilustre
que falava castelhano. Muito ilustre, desses ilustres que apreciam o in-
dígena americano, medidamente. Não me leve a mal dom Alejo; não é
que o senhor me aborreça. Senti como considera nossas coisas indígenas
como um excelente elemento ou material de trabalho. E que trabalha
como um poeta e um erudito. Difícil façanha. Como será maravilhoso
ser iluminado e instrumentalizado por tantas memorizações de todos
os tempos? Onetti estremece em cada palavra, harmoniosamente; eu
queria estar em Montevidéu – estou em Santiago –, entre outras coi-
sas, para cumprimentá-lo, apertar a mão com a qual escreve. Assim é.
Carlos Fuentes é muito artifício, como seus trejeitos. De Cortázar só li
contos. As instruções que coloca para ler Rayuela me assustaram. Fi-
quei, assim, merecidamente impedido, de momento, de entrar nesse pa-
lácio. Lezama Lima se deleitava com a essência das palavras. Vi quando

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comia em Havana, parecia um misto de beija-flor com hipopótamo.
Abria a boca, borrifava líquido antiasmático na garganta e continuava
comendo. Gordo fabuloso, Cuba que devorou e transfigurou o mel e o
fel da Europa!

13 de maio

Estou péssimo. Um amigo peruano me levou ontem à noite a uma


boate-teatro deprimente; disseram que ali se apresentavam danças e
músicas chilenas. Era verdade, muito divertido para o público, este que
de forma vaidosa ainda que “objetivamente” chamamos de vulgar, frí-
volo etc. Entre mulheres nuas, humoristas, conjuntos de jazz e gente
fantasiada, tudo medíocre, apareceu uma “dança” chilena. Maldito seja!
Não digo que isso já não seja chileno; mas para quem sabe como são as
coisas que o povo faz, esse besteirol é coisa que nos deixa entre iracun-
dos e perplexos. Mas também não direi, como outros sabidos, que isso
é pura porcaria. Algo tem de chileno. Os huasos aparecem muito arru-
madinhos, muito afeminados (quase uma ofensa ao huaso), e as garotas
um tanto achuchumecadas (como não querendo perturbar a frivolidade
dos presentes que pagam pelo espetáculo), com a graça intensa do macho
e da fêmea humanos, enganchados, que no campo ou na cidade não dis-
simulam quando cantam ou dançam, e assim transmitem a essência da
terra. Não digo que entre a chamada “aristocracia” e a desfalecida classe
média desses povos não exista também gente que tenha conservado esse
espírito. Mas quase todos se deixam arrastar pelas “convenções” sociais,
por esse enredo fenomenal em que aparecem esses huasos afeminados,
estas meninas achuchumecadas, que se achuchumecam dessa maneira
para converter as danças de um povo forte em “espetáculo agradável
e nacional”. Maldito seja, negro Gastiaburú! Você era um médico, um
doutor. E juntos maldizíamos essas coisas inventadas pelos “gringos”
para fazer dinheiro. E quando já não exista a imprescindível urgência
de ganhar dinheiro? Deixará de ser afeminado o que o comércio afemi-
nou, também na literatura, na medicina, na música, até no modo como
a mulher se acerca ao homem. Prova disso, do renovado, do honrado,

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encontrei em Cuba. Mas, no Peru, o intocado pela vaidade e pelo lucro
se encontra, como o sol, em algumas festas dos povos andinos.
E não falo como se fosse um sectário indigenista. Viram e sentiram
isso muita gente igual a mim, que vi chegar de Paris, Estados Unidos,
Itália ou mesmo foi criada em Lima, de alguns desses que foram criados
em “sociedades” bem formadas ou se deformando. Não é verdade Gody,
E. A. Westphalen, Jaqueline Weller…? Tenho certeza de que dom Alejo
gostaria muito dessas festas, apesar de imaginar que ele se manteria sério,
pouco comunicativo, amassando talvez por dentro inúmeras sutilezas,
encadeando o que visse das festas com os gregos, assírios, javaneses e cem
nomes mais, estranhos e certos. Por outro lado, esse Carlos Fuentes não
compreenderia bem, acho. Perdoem-me os amigos de Fuentes, entre
eles Mario Vargas Llosa e este Cortázar que esgrime com sua “geniali-
dade”, com suas solenes convicções, de que se entende melhor a essência
do nacional a partir das altas esferas do supranacional. Como seu eu,
criado entre o pessoal de dom Felipe Maywa, dentro do próprio oqllo1
dos índios durante alguns anos de minha infância, para depois voltar
à esfera “supraíndia”, de onde tinha “descido” entre os quéchuas, afir-
masse que melhor, muito mais, essencialmente interpreto o espírito, o
apetite de dom Felipe do que o próprio dom Felipe. Falta de respeito e
legítima consideração! Não se justifica. Não falaria assim García Már-
quez, que se parece muito com dona Carmen Taripha, de Maranganí,
Cusco. Carmen contava ao padre, de quem era criada, infinitos contos
de raposas, condenados, ursos, cobras, lagartos; imitava esses animais
com a voz e o corpo. Imitava tão bem que o salão do curato se convertia
em cavernas, em montes, em punas e quebradas onde se ouvia o arrastar
da cobra removendo lentamente ervas e gravetos, a voz da raposa entre
cômica e cruel, a do urso que parece ter um bocado de farinha na boca,
a do rato afiada que corta até a sombra; e dona Carmen andava como
raposa e como urso, movendo os braços como cobra e como puma, até
o movimento do rabo ela fazia; e bramava igual aos condenados que

1
Oqllo: peito.

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devoram gente sem jamais se saciar; e dessa maneira o salão paroquial
se tornava semelhante às páginas de Cem anos…, apesar de que em
Cem anos só existe gente desanimalizada, enquanto nos contos de Ta-
ripha os animais também transmitiam a natureza dos homens em seu
princípio e fim.
Esse ânimo doentio parece ter me dado coragem para falar com
“audácia”. E não porque suponha que estas páginas serão publicadas so-
mente depois de me enforcar ou estourar os miolos com um tiro, coisas
que sinceramente ainda acredito ter que fazer. Pode ser também que me
cure aqui, em Santiago, como em 1962, de um mal da mesma laia e ori-
gem, apesar de menos grave e em idade ainda de merecer. E se consigo
curar e algum amigo a quem respeito me diga que a publicação destas
folhas servirá para algo, publico. Porque se não escrevo e publico, eu me
mato. Em San Miguel de Obrajillo caí na tentação de continuar vivendo,
mesmo que só para sentir o sol daquele lugar e passar os dias acariciando
os cachorros e alguns porcos na rua. No entanto, esse prazer não duraria
muito tempo. Apesar de me dar muito bem com os cachorros, especial-
mente esses da serra, que perambulam pelas ruas e campos pensando
no que fazer, esta antiga amizade não silenciaria as mil angústias que
um indivíduo tão agitado como eu, tão impaciente, cultiva e multiplica.
Como morreu meu amigo Guimarães Rosa! Cada um à sua maneira. É
esse modo de escrever que não dá lugar a genialidades com as de dom
Julio, mesmo que seja para utilidade e proveito. Guimarães me fez uma
confidência no México, no momento eu me sentia mais “deprimido” do
que o normal, por causa de uma febre passageira. Não vou revelar o que
disse. Mas senti, então, que aquele Embaixador tão majestoso me falava
porque tinha, como eu, “descido” até as entranhas de seu povo; e o consi-
derava mais, no meu modo de ver, porque ele tinha “descido” e não sido
obrigado a “descer”. Depois de me contar sua história, sorriu como um
menino pequeno. Nenhum amigo citadino me tratou tão de igual para
igual, tão intimamente, como naqueles momentos este Guimarães; refiro-
me aos escritores e artistas; nem Gody Szyslo, nem E. A. Westphalen, nem
Javier Sologuren, menos ainda os estrangeiros notáveis. Um pouco… o
Pepe Revueltas, mas de outro modo. Guimarães não parecia mordaz, não

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parecia ter aprendido isso. Encontrei a mordacidade nos escritores inte-
ligentes e aborrecidos. A essas alturas não chegaremos, os que estamos
marcados pela piedade e pela infância. Penso neste momento em Ni-
canor Parra, quanta sabedoria, quanta ternura e ceticismo, além de uma
poderosa couraça de proteção que deixa entrar tudo, porém filtrando,
como uma espécie não de vaidade, mas de ferida aberta para as opiniões
negativas sobre sua obra! Que maneira incrível de se tornar amargo e
irascível por essas coisas! Na cidade, amigos, acho que na cidade não
gostei de ninguém mais do que gostei de Nicanor e, ao mesmo tempo,
me distanciei dele como de ninguém mais. Mas por que tenho que dizer
essas coisas de Nicanor? Muita cidade tinha dentro ou tem dentro de si
esse senhor tão mesclado e nascido num vilarejo, o mais inteligente de
todos que conheci nas cidades. O que dizia, sabia e não sabia, ou não
sabe sobre as mulheres! Seu irmão Roberto foi muito mais meu irmão
que dele! Claro! Porque meu trato com Roberto sempre foi pelo lado
bom. É desnecessário dizer que Roberto padecia de uma imensa ternura
nas centenas de prostíbulos mais pobres do Chile, onde cantava e tocava
violão, ao passo que me tornei igual a ele nos ayllus2 de Ayacucho, entre
as índias que sofriam e cantavam como beija-flor, voando para o sol,
bebendo dele e retornando. No mesmo quarto dormíamos Roberto e
eu, na casa de Nicanor, em La Reina, quando cheguei enfermo em 1962.
Volto outra vez à mesma cantilena; então, para mim Roberto era como
dom Felipe Maywa, mais jovem, mais acessível. Porque enquanto Ro-
berto falava com voz de pessoa resignada, com pouco futuro, muito triste
e carente de atenção, dom Felipe me acariciava em San Juan de Lucanas,
como se fosse um bezerro sem mãe, ele tinha a presença de um índio que
conhece, mediante uma longa aprendizagem e herança, a natureza das
montanhas imensas, sua linguagem, bem como a dos insetos, cachoeiras
e rios, pequenos e grandes; e se por um lado ele era “lacaio” de minha
madrasta, às vezes creio que vaqueiro, aparecia perante ela como quem
pode oferecer proteção, como quem de fato está procurando proteção,

Ayllus: comunidade indígena.


2

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apesar de ser servente. Todo o futuro meu e de minha madrasta, que era
patroa de dom Felipe, parecia depender de dom Felipe Maywa. Aquilo
me parecia assim, não sei por quê; devia ter alguma razão. E quando esse
homem me acariciava a cabeça, na cozinha ou no curral dos bezerros,
não só acalmava todo o meu desassossego, como eu me sentia estimulado
a vencer qualquer classe de inimigos, fossem demônios ou condenados.
E eu era muito intranquilo; vivia sozinho, em meio aos índios domésti-
cos, frente às imensas montanhas e abismos dos Andes, onde as árvores
e as flores comovem com uma beleza em que a solidão e o silêncio dos
mundos se concentram. Esse Roberto, irmão de Nicanor Parra, cantava
com outro tipo de solidão, um pouco parecida à minha; rasgava na viola
umas cuecas um tanto desesperadas, de alegria mais sonhada que vivida.
Por isso fomos tão amigos em La Reina. Ele contava de um amigo seu
que tinha ficado sentado sobre uma pedra, com o olho completamente
vermelho, esperando. Que boa era a vida com Nicanor e Roberto Parra!
Como provaram da seiva, diferentes e diversas seivas do mundo, aque-
les irmãos! Conversava com Roberto com muita confiança, amigos, que
era umas das formas mais estranhas de ser feliz. Ele contava as histórias
dos prostíbulos e eu, contos de animais e condenados, que é meu forte.
Roberto se embebeda até a agonia; eu padeço de solidão e sonhos certa-
mente patológicos, e “por puro gosto”, porque sou amado por gente boa
e bonita, como minha mulher, por exemplo. Mas alguma coisa fizeram
conosco quando mais indefesos éramos; lembro de muitas coisas, mas
dizem que mais perigosas são as coisas que não lembramos. Assim será.
E García Márquez? Dele acho que estava dizendo algo. Ele conta coisas
do ser humano deste continente, do indivíduo muito contaminado com
os modos e pareceres de Europa, conta com a mesma fantasia e certeza
com que Carmen contava história de ursos e cobras. Absolutamente
certo e absolutamente imaginado. Carne e osso, e pura ilusão. Não co-
nheci Gabriel. Estava muito atarefado quando veio a Lima. E sabia que
andava cercado de curiosos, entendidos e admiradores. Certamente não
pode ser como dom Alejo, nem como Juan; não será uma combinação
de Carpentier, Rulfo e Carmen Taripha, em seu aspecto vivo? Dizem
que é cativante, que bom! Então terá também algo do negro Gastiaburú.

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15 de maio

Fiz algo contraindicado na noite passada, contraindicado por mim.


Cada pessoa toma seu veneno, deliberadamente, de vez em quando; e
eu sinto os efeitos neste instante. Em minha memória, o sol do pequeno
e alto vilarejo de San Miguel de Obrajillo tomou, novamente, uma certa
cor amarela, semelhante ao dessa flor em forma de sapatinho de bebê,
flor que cresce ou prefere crescer não nos campos, mas nos muros de
pedra construídos pelos homens, presentes em todos os povoados ser-
ranos do Peru. Nessa flor aveludada o corpo das moscas negríssimas,
os huayronqos, se cobre de amarelo e permanece mais negro e brilhante
que sobre os lírios brancos. Porque nessa flor pequena o huayronqo
enorme pousa, bate asas, pateia, encasula-se. A superfície da flor é ave-
ludada, a da mosca é brilhante, azulada de tão negra, como a crina dos
potros verdadeiramente negros. Não sei se pela forma ou cor da flor,
além do modo meio abrasador, parecido com a morte, com que a mosca
se funde em sua corola, mexendo, devorando com suas extremidades
ansiosas, o pó amarelo; não sei se por isso é que em minha terra essa
flor é chamada de ayaq zapatillan (sapatinho-de-morto) e representa
o defunto. É colocada em ramos nos caixões e no jazigo mortuário,
junto aos cadáveres. Ter lembrado tão intensamente do huayronqo e
desses ramos de flores, além do sol de San Miguel de Obrajillo a meio
crepúsculo, é um sintoma negativo. Eu estava retornando bastante ani-
mado, voltando à vida, até ontem. Hoje não me sinto à beira da morte,
como dizia segunda-feira, 11. Falar isso seria, de certa forma, afirmar
ou dar mostras do contrário. Agora, neste momento, o amarelo, não
apenas um mau presságio, mas a própria matéria da morte, esse ama-
relo do pó da mosca, que tão facilmente se mata em minha terra, está
assentado em minha memória, numa dor lenta e feia na nuca. Será que
não vou conseguir continuar escrevendo? Adeus por alguns dias, talvez,
por algumas horas! Havia começado a crescer uma torrente de mundo
vivo dentro de meu corpo. Hoje, noite passada, deixei-me levar, como
os bêbados habituais e reprováveis, e tomei meu venenozinho. E tinha
decidido falar hoje alguma coisa a respeito do juízo de Cortázar sobre

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o escritor profissional. Eu não sou escritor profissional, Juan não é es-
critor profissional, García Márquez não é escritor profissional. Não é
profissão escrever romances e poesias! Ou eu, com minha experiência
nacional, que por certos resquícios continua sendo provincial, entendo
provincialmente o sentido desta palavra “ofício” como uma técnica que
se aprende e é exercida unicamente, redondamente, para ganhar di-
nheiro. Sou nesse sentido um escritor provincial; sim, meu admirado
Cortázar, e, errado ou não, assim entendi que era dom João e que é
dom Juan Rulfo. Porque se não fosse assim, Juan, que conhece infini-
tamente o ofício, não deveria ser pobre. Eu tive que estudar etnologia
como profissão; o embaixador foi médico; Juan trabalhou de empre-
gado. Escrevemos por amor, prazer e necessidade, não por ofício. Isso de
planejar um romance, pensando que com sua venda haverá de receber
honorários, parece coisa de gente muito limitada às especializações. Eu
vivo para escrever e creio que é preciso viver incondicionalmente para
interpretar o caos e a ordem.
Ah! A última vez que estive com Carlos Fuentes ele estava es-
crevendo como um operário que trabalha por empreitada. Tinha um
romance com prazo definido para entregar. Almoçamos, rápido, em
sua casa. Ele tinha que voltar para sua máquina. Dizem que o mesmo
acontecia com Balzac e Dostoievski. Certo, mas como algo reprovável,
não de que se orgulhasse. Teriam escrito o que escreveram em outras
circunstâncias? Quem sabe. O que mais poderiam fazer com o que ti-
nham no peito? Perdoem, amigos Cortázar, Fuentes e você também,
Mario, que está em Londres. Creio que estou desvairando, pretendendo
o mesmo que vocês, essa coisa contra a qual me sinto irritado. É possível
que vocês não tenham melhor, ou nem mais nem menos razão do que
eu. Há escritores que começam a trabalhar quando a vida os prepara,
com um preparo não livremente escolhido, mas condicionado, e aí estão
vocês, que são, podemos dizer, mais de ofício. Talvez vocês tenham
maior mérito, mas não é natural que nos irritemos quando alguém
diz que a profissionalização do romancista é um sinal de progresso, de
maior perfeição? Vallejo não era profissional, Neruda é profissional;
Juan Rulfo não é profissional. É profissional García Márquez? Será que

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gostaria que fosse chamado de escritor profissional? Podemos dizer que
Molière era profissional, mas não Cervantes.
(Passou um pouco esse pó amarelo da mosca que parecia ter en-
trado e assentado nos meus ossos. Não é uma desgraça lutar contra a
morte, escrevendo. Creio que têm razão os médicos. E os que me aten-
dem não me tratam como profissionais, mas como semelhantes.)

16 de maio

Os efeitos do veneno continuam. É como se os olhos estivessem


encharcados desse pó amarelo que o huayronqo abraça com seu corpo
negro. Eu tenho no olho o peso desse inseto voador, que manoteia com
sua cabeça mineral, com suas patas e seus quase microscópicos pelos, e
que são lentos, mas que mesmo assim, ao sobressair de um corpo longo,
encouraçado de negríssimo metal brilhante, dão a impressão de ânsia
que vai se satisfazendo, a cada movimento que parece triunfal, agudo,
fruto do máximo esforço, explosão da vida que existe nestes corpos que
ao serem esmagados lembram cascas de ovos, como frágeis armações
de lâminas. Por alguma razão esse huayronqo coberto com o pólen da
flor amarela é tido pelos camponeses quéchuas como uma alma que
se deleita no fundo da bolsinha aveludada que é a flor dos cadáveres.
E o voo do huayronqo é estranho, mistura de mosca e beija-flor. Eu vi
um deles há quarenta e cinco dias em San Miguel de Obrajillo. Ele con-
segue, como o helicóptero e o beija-flor, além do falcão rapaz, parar no
ar. O huayronqo tem um corpo enorme, quase tão brilhante quanto o
do beija-flor. E em San Miguel voa mais alto que em centenas de outros
lugarejos onde, com muita atenção e cuidado, segui o curso de seu voo.
É quase tão frágil quanto o beija-flor e realiza manobras ousadíssimas
como este. Porém, é um inseto! Sobe a dez metros de altura, e talvez
vinte, em San Miguel de Obrajillo. É uma mosca e a partir dos vinte me-
tros seu corpo suspenso por um movimento particularíssimo das asas,
que não são transparentes, parece estar a uma distância tão grande que
o olho se esforça sobremodo para contemplá-lo, para levar ao interior
de nossa vida o intenso significado de suas patas pendentes, manchadas

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frequentemente de amarelo, de seu corpo de alguma maneira parecido
ao de uma tartaruga. E, de repente, zarpa como um raio, mas não a tanta
velocidade que o olho de quem o vê não consiga acompanhar. Mas,
acompanha, esse monstro encouraçado cativa aos que sabem o que é.
Neste instante, sinto como se estivesse à minha frente, lento, aspergindo
sobre minha cabeça seu pó de cemitério, aumentando minha enfer-
midade. Mas sem desejos de suicídio! Ao contrário, há certa dureza
no corpo de meus olhos, uma dor difusa, como de chão maldito, de
morte temida e não desejada. Sim, meu queridíssimo João Guimarães
Rosa, vou te contar de algum modo em que consiste este meu veneno.
É vulgar, no entanto me recorda o conto que você escreveu sobre aquele
homem que saiu numa canoa, por um rio na selva, e os outros ficaram
esperando, esperando tanto… e creio que já estava morto. Deve haver
alguma relação entre o voo do huayronqo manchado desse pólen mo-
ribundo, a pressão que sinto na cabeça inteira por causa do veneno e
esse seu conto, João.

17 de maio

Havia chegado de Ukuhuay, um lugarejo calorento. Dizem que era


chichera. Nas árvores da quebrada estreita, onde no fundo ficavam as
casinhas de Ukuhuay, viviam parasitas e florescia a “salvajina”. A “salva-
jina” parece inerte, são folhas longas em forma de fios grossos; enlaçam
com suas raízes o córtex das árvores que crescem nos precipícios; são de
coloração cinza clara; apenas o vento forte consegue balançá-las, porque
são pesadas, estão carregadas de uma essência vegetal densa. A “salva-
jina” se dependura sobre abismos onde o canto dos pássaros, especial-
mente dos loros viajantes, reverbera; ima sapra é seu nome em quéchua
em Ukuhuay. O ima sapra se destaca pela cor e pela forma; as árvores
se estiram para o céu e o ima sapra para as rocas e a água; quando o
vento aparece, o ima sapra se mexe de forma pesada ou é sacudido, as-
sustado, transmitindo seu espanto aos animais. A sombra é dulcíssima
nesta quebrada escaldante. Os patos de crista vermelha nadam nostál-
gicos nos remansos, como em poços de lágrimas, segundo os cantos da

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região. Fidela subiu do fundo dessa quebrada; chegou ao vilarejo bem
alto, de passagem, como disse, a Huamanga. Estava grávida e ia para
uma cidade distante, sem nada que comer e desamparada. Ficou em
Lambra três dias; era mestiça e não podia pedir misericórdia. A patroa da
casa onde eu servia ofereceu a ela um embornal com carne seca, cancha
e queijo duro, além de uma manta em farrapos. Essas coisas foram en-
tregues no pátio empedrado de laje da casa, em pleno sol. Uns fios de
cabelo desgrenhados cruzavam partes de seu rosto e entravam em sua
boca, numa extremidade, por onde também saía saliva. Era branquela
e suja; estava assustada, decidida. À noite, na escuridão, conversavam
na cozinha o “lacaio” e a cozinheira; eu escutava a conversa na bateia de
amassar pão que me servia de cama. A mestiça dormia sobre uns trapos
velhos, perto do fogão, longe da bateia. Senti que se arrastava como uma
serpente; colocou uma mão na borda da bateia. No sol do pátio tinha
me olhado de forma demorada; eu era o bezerro da senhora; tão sujo
como a mestiça e era branco. Senti que a mão de Fidela levantava o pon-
cho de pako que me abrigava. O “lacaio” e dona Fabiana, a cozinheira,
discutiam. Fidela chegou mais perto de onde estava meu corpo; devia
ter chegado até o meio da bateia. E foi avançando sua mão na direção do
meu ventre. Seus dedos duros queimavam como brasas. Eu guardei si-
lêncio; vi, irmão João. Por que me dirijo a você? Será porque está morto
e a morte me ronda desde menino, desde aquela tarde solene em que fui
até o riacho de Huallpamayo, rogando ao santo padroeiro do povoado
e à Virgem que me deixassem morrer, mas tudo o que consegui foi que
a luz do sol entrasse pela minha cabeça e empapasse meu corpo, que
passou a arder em ânsias todo-poderosas e inalcançáveis como esses
pelos das árvores que, com o vento forte, são sacudidos produzindo
medo entre os animais? Hoje já é 18, João, e desde ontem, desde que
comecei a escrever as primeiras linhas ontem, a nuca me oprime ao
ponto de me desequilibrar. Estou fazendo um esforço muito grande
para falar com um mínimo de clareza, como para que essas linhas pos-
sam ser lidas. Assim somos os escritores de províncias, estes que por
terem sidos comidos pelos piolhos, chegamos a entender Shakespeare,
Rimbaud, Poe, Quevedo, mas não o Ulisses. Como? Esqueçam. Nisso

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de escrever do modo como faço agora, somos diferentes, nós que fomos
pasto de piolhos em San Juan de Lucanas e no “Sexto”, diferentes de
Lezama Lima ou Vargas Llosa? Não somos diferentes quando pen-
sava ao falar de “provincianos”. Todos somos provincianos, dom Julio
(Cortázar). Provincianos das nações e provincianos do supranacional
que é, também, uma esfera, um estrato bem limitado, o do “valor em
si”, como apontam com muita felicidade suas palavras. E quando de San
Miguel de Obrajillo contemplamos os mundos celestes, entre os quais
giram e brilham, como eu vi, as estrelas fabricadas pelo homem, até
podemos falar, poeticamente, de ser provincianos deste mundo. Não,
João: não vi nada quando Fidela tocou o meu ventre e seus dedos, como
aranhas escaldantes, meio desesperadas, me acariciavam. Senti como se
o ar me sufocasse, acreditei que a morte chegava na forma de ar quente.
O meu corpo inteiro desejava. Ela levantou o poncho que me cobria.
Os meninos, naquele frio, não usavam tirar a roupa. Fidela se deitou
a meu lado. Havia levantado sua bata; toquei seu corpo com minhas
mãos. Através da pele de minhas mãos, endurecida pela geada, senti a
sufocação de sua garganta, enquanto meu corpo pesava e minha alma
se encomendava aos santos, em orações quéchuas. Ela me levantou so-
bre seu corpo. E o doce arcano maldito, João, onde se forma a vida, o fel
do sol que você bebe na escuridão com cada poro que é como língua de
huahua… O veneno dos cristãos católicos que nasceram à sombra dos
pelos dessas árvores que assustam os animais, das orações em quéchua
sobre o juízo final; a reza das senhoras prostituídas, enquanto são viola-
das pelo homem diante de um menino para que a fornicação seja mais
endemoniada e derrame uma salpicada de morte nos olhos do garoto…
Fidela subiu a grande encosta com seu embornal nas costas. Foi acom-
panhada por nós serventes até o Degrau das Despedidas, que naqueles
tempos havia em todos os vilarejos hispano-indígenas. Despediu, cho-
rando. Sempre tinha alguns cabelos na boca umedecida. Cruzavam seu
rosto de um lado a outro e todos os céus contrastavam nesse arco que
fazia escorrer saliva numa extremidade dos lábios. As nuvens altíssi-
mas, apertadas, o movimento pequeno do qoyapso, ervinha, dançavam
nesse arco; e mais quando Fidela começou a chorar. Eu estava atrás de

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dona Fabiana, segurava no vestido da índia. Outra vez, a viajante, essa
desconhecida, me olhou com intenção, ajoelhou diante da cozinheira
e beijou um extremo de sua roupa. Depois começou a subir o grande
morro, escarpado e cheio de lajes. Ficamos um longo tempo olhando
ela ir embora. Passou atrás do muro de espinhos que rodeava um po-
treiro da senhora do vilarejo e começou a subir a encosta cascalhenta.
“Vai, pois, parir um órfão, um forasteiro; quem sabe onde”, disse dona
Fabiana. Já tinha subido bem alto; não podia voltar.
A raposa de cima: A Fidela prenha; sangue; foi embora. O garoto
estava confuso. Também era forasteiro. Desceu a seu terreno.
A raposa de baixo: Um sexo desconhecido confunde a esses. As
prostitutas fodem, puteiam, com direito. Deixaram o pobrezinho mais
distante. A “zorra” da prostituta não tem dono; é do mundo daqui, meu
terreno. Flor do pântano é seu nome. Na sua “zorra” aparece o medo e
a confiança também.
A raposa de cima: A confiança, também o medo, o forasteirismo
nascem da Virgem e do ima sapra, e do ferro torcido, retorcido, parado
ou em movimento, porque quer mandar na saída e entrada de tudo.
A raposa de baixo: Ji, ji, ji…! Aqui, a flor da cana são penachos
que dançam roçando a membrana que envolve o coração dos que podem
falar; o algodão é ima sapra branco. Mas a serpente amaru não tem fim.
O ferro solta fumaça, filetinho de sangue, faz arder o cérebro, também
o testículo.
A raposa de cima: Assim é. Continuamos vendo e conhecendo…

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I

Chaucato partiu em sua bolichera Sansón I, levando na tripulação


seus dez pescadores, entre eles um veado, o Mudo, e como ajudante
extra, fazendo um teste, um violinista da boate “El gato negro”.
Alta madrugada. Chaucato conversa com o Mudo na ponte:
– Mudo filadaputa: aqui o trabalho é coisa di’homem. A gente co-
nhece o homem é pelo cacete, entendeu? Você nasceu com um, viu Mudo,
pelo menos serve pra’foder. Quando o homem mostra a navalha num é
pra’reciber lapo no chão. Pra’remar a chalana, pra’aguantar o tranco,
pra’puxar a chumbada e o boliche, pra’entrar na levantada é preciso ter
cacete. Aqui se aprende custa o que custar ou então te enfio uma man-
gueira até as agalhas. Você veio madrugando até a ponte pra’confessar
e reciber seu esporro?
A bolichera “Sansón I”, da Companhia “Fauna do Mar”, apesar
de registrada no nome do armador Fuentes de los Palotes, avançava a
pleno vapor já bem distante da baía de Chimbote. Os tripulantes dor-
miam. Chaucato, com o rosto queimado, olhava para o Mudo na ponte,
a céu aberto.
– “Grande padrinho, pai nosso!”, pedia ontem de noite, babando
no beco do puteiro. Filadaputa, Mudo veado; aqui ti’faço virar homem.
– Já sou filho de puta, patrão. Você sabe.
– Não, seu bosta. Aqui, caralho, no barco todo mundo é filadaputa,
menos o capitão. Quer ver? Chama este violinista do “Gato”. Deve está
mariado, vomitando.
O Mudo desceu até os camarotes e voltou com o músico. O violi-
nista não tinha vomitado. Parecia mais decidido.
– Não vomitou? Então toca direto pra anchoveta que Braschi, cabra-
‑macho, tá roubando dos “coxos” pelicanos. Esse, qui’tá aí do seu lado,
vai esquecer aqui o cu, porque o mar é a maior buceta chupadora do
mundo. Toda buceta precisa de um cacete, né não Mudo?
– É, Chaucato.

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– Espera aí. Estão chamando pelo rádio. “Anchoveta a uma hora
ilha Corcovado… a uma hora ilha Corcovado… rumo 180, rumo
180…” Essa é a voz do “Cadete”. Hoje, com violinista e veado, arran-
camos cem toneladas; manda à merda o violino e o Mudo tranca o
rosquete, né não?
Como se não tivesse escutado bem tudo o que o capitão disse, o
violinista se aproximou dele e perguntou:
– É verdade, Chaucato, que você ficava pendurado nos penhascos
bem altos, nas ilhas, quando caçava lobos?
– E vem com pergunta fudida, bem na hora em que o “Cadete”
tá falando pra’orientar a navegação, tecnicamente, pra mancha das
anchovetas?
“A uma hora ilha Corcovado… A uma hora ilha Corcovado…
Rumo 180… Rumo 180…”, continuava repetindo a voz pelo alto-falante
do rádio. Chaucato se aproximou do microfone:
– Ei, “Cadete” veado, “Cadete” veado…
“Você que é veado levou o Mudo prá sacanear com ele”, respondeu
o alto-falante.
– Ei, “Cadete”, tá interessado no Mudo? Se fudeu! Ele tá aqui do
lado, seu porra…
“E quantas você bochou nele pra’que te acompanhe?”, disse a
outra voz.
– Esse é o “Characato” Pretel – disse o Capitão. Meteu as caras com
você alguma vez? – e olhou para o Mudo.
– Não, Chaucato. Esse… Você sabe.
– Aqui não sei de nada não, viu, Chueca! – chamou o Mudo por
seu sobrenome. Você, músico, vai ajudar primeiro o popeiro, o “cabe-
cero” qui’arreia o pano no mar, dispois vai ser ajudante do estivador
de chumbada. Entendeu, seu saco de gato…? Não; não responde, filho
da puta. Depois tem que ajudar na levantada do pano. Vai’pesar como
cagada do diabo. Se a gente fizer as cem toneladas aí eu conto a história
dos lobos. Eu achava que só as putas é que gostavam dessa história…
– Ô Chaucato…
– Fala, músico. Aistá inda o Mudo.

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– Escuta, Chaucato. Entendido. O Mudo me explicou o trabalho
no barco. Mas… como é que outros patrões menos antigos na pesca,
com menos méritos – você é cumpa de Braschi, quase seu pai, e ensinou
quase todos os capitães de barco a calar anchoveta – como é que você
tem um barco velho e de cem, quando os outros novos, que sabem
menos, receberam de duzentas e até duzentas e cinquenta pra’ganhar o
dobro que você? Não… Chauco! Sem ofensa, pelo contrário, é amizadi,
agradecido… irmão.
O rosto do capitão foi se contraindo enquanto o músico falava.
Os braços soltos, o olho esquerdo com a pálpebra baixa, quase caída e
vermelha; a boca também um pouco caída pro mesmo lado e o pômulo
começando a inchar…
– Filho da puta! – disse claramente. – Esses alcaguetes do “Gato”
espiam tudo, sabem até a cor do saco. Quando eu enfiar até as bolas
no seu rabo, aí você vai entender, como as putas. Você tá na merda do
“Gato”, né? E vem de lá pra falar o quê aqui, seu merda?
O Mudo puxou o músico pelo braço e desceu com ele a escada que
comunicava a ponte com a coberta da lancha. “Tocou na ferida dele…
a qualquer outro matava”, – disse o Mudo.
Chaucato empunhou o timão pelas pontas. O pequeno barco co-
meçou a cortar as ondas e cabecear firme no mar aberto. O rosto do
pescador foi se nivelando lentamente, enquanto falava em voz baixa,
como se conversasse com o próprio umbigo: “Duzentas toneladas, eu
cem; duzentas e cinquenta, eu cem. Antes a gente puteava junto, apesar
da Muda falar que ele colocava o Mudo de ginete… Estes malnascidos,
di’tudo quanto é lado…” Observou as centenas de bolicheras que saíam
disparadas, como a “Sansón I”, na direção assinalada pelo “Cadete”.
“Mudo! Vem cá, Mudo!”, ordenou. O Mudo parou assustado no último
degrau da escada. Chaucato, perguntou sem olhar: “É certo que em
outros tempos você ia junto?” “É certo”, respondeu o Mudo. “É certo
que a Muda mandava você montar o qui’tava em cima dela?” “É certo;
no escuro, Chaucato.” “Some daqui, seu merda!” E continuou falando
com o ventre. (O Mudo desceu para a coberta.) “São Pedro, grande
macho fudedor, dono do mar; esses branquelos têm vício de outra laia.

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Doido por uma rosca, doido por um caralho, assim de igual pro ne-
gócio. Nunca estão que satisfeitos. Fábricas, bolicheras, molhes, ferros,
cada ano menos trabalhador e mais lucro eles, pra’comer no mar. Eu
comecei a urrar primeiro na baía pra’Braschi; na água limpinha me-
temos ferro. Braschi é grande! Tem mais potência que a dinamite na
cabeça, no rabo, na firma. Braschi, filadaputa!, você fez a pesca. Agora
come gente. Pra isso criou a máfia, com os apristas. Eu, filadaputa, fui
homem do General, não fui? Mas o General também levou o dele; com
ele amarraram pior a máfia. Agora Chaucato, irmãozaço de Braschi,
está contra Braschi. Diz que pra comer grande tem que subir alto, como
pássaro no mar. Braschi, que se deixava montar no puteirinho de antes,
quem porra vê ele agora em Chimbote? Eu era seu guarda-costa, não
era? Porque me torava o saco. Muita raça de gente vive dele; em troca, ele
devora todo mundo. O saco de Chaucato e a grana de Chaucato regam
as cantinas e as putas da ‘Rosada’, com alegria de minha parte. Braschi
rouba meu trabalho; não vai ter sacanagem. Não se fode com a mãe, né
mesmo? Ninguém nem nunca fodeu com o rabo de Chaucato. Não se
come a mãe, né mesmo?”
Pela primeira vez pensava em se casar. Esse pensamento corria como
uma palpitação entre as exclamações e reflexões que saíam de sua boca.
O corpo magro, o rosto bonito e os olhares cortantes de sua cunhada,
irmã da mulher de seu único irmão morto recentemente e por quem ele,
Chaucato, havia chorado um dia inteiro, mexiam com ele. “Puxa! Tenho
medo dela. Não consigo me declarar. Tanta puta! e a língua pesa como
chumbo quando quero falar com ela. Como merda eu falo com ela?”
Escutou que a tripulação jogava e xingava alegremente na coberta,
mas não subia ninguém na ponte. O sol opaco pelas altas nuvens da
Cordilheira fazia ressaltar a grande nuca, um pouco avermelhada, de
Chaucato.
Continuou falando: “Como porra… estes donos de fábrica conse-
guem parir tanta grana de cada anchoveta, cozinhando as pobrezinhas
a ferro e fogo violento? Nós, puta merda, é que levamos pra eles estes
materiais… Eu faço o mar parir… Preparado todo mundo, caralho!

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Olha a mancha, sombreando. A puta que o pariu essa ecossonda! De-
baixo da chalana, seus filho duma grande puta!”
Uma fila em ângulo de enormes pelicanos apareceu sobre a “Sansón
I”. O monte El Dorado, cortado a pico sobre o mar, com santuários pré-
-incas em cima, aparecia, alto, bem longe, separado da Cordilheira por
uma profunda garganta. Tutaykire está trançando lá, durante dois mil
e quinhentos anos, uma rede de prata e ouro. Sua cabeça brilha lento;
seu corpo duro oferece sombra, e por isso esse monte altissonante, com
um abismo sobre o mar, vigia os pescadores, agora mais do que nunca.
Tutaykire foi aprisionado por uma “raposa” doce e contrária, entre os
yungas. Do alto do monte El Dorado, enxerga em cima e embaixo.
Chaucato sentiu a sombra da montanha e examinou com alegria
burlesca a ecossonda, que desenhava em linhas miúdas e densas a
mancha de anchovetas. Quando apareceu a fila de pelicanos, a pálpe-
bra inferior do seu olho caiu, avermelhando, defeituosa desde que era
huahua. “Vagabundos, despatriados, mortos di’fome, grandaços”, disse
olhando a majestosa fila dupla e em ângulo fechado dos pássaros. Co-
meçou a dar ordens à tripulação, tranquilo aparentemente, porém com
o fígado amargando.
Meia hora depois, as lanchas bolicheras haviam tendido calas de du-
zentas e trezentas braçadas de largura sobre a mancha. As redes acabavam
embolsando as anchovetas: nadavam saltando, boqueando, abrindo suas
agalhas em espaços cada vez mais reduzidos, chispeando na superfície.
Lulas enormes, negras, continuavam devorando anchovetas e acabavam
se afogando na armadilha. Os pelicanos desceram, passarinhavam vo-
ando ao nível do mar; davam alguns mordiscos na efervescente rede
carregada, nadavam ao lado dos flutuadores do boliche; tropeçavam
com a tarrafa de nylon duríssima, estiravam seus flácidos bolsões e os
bicos longos, batendo as asas. Saltimbanqueavam e pescavam bocados
de anchovetas; depois de embolsadas, levantavam a cabeça e deixavam
escorregar, como por um tule frio, dúzias de anchovetas, da bolsa flá-
cida ao bucho. Nem as moscas das mais sujas chicherias dos bairros das
cidades andinas faziam uma dança tão negra. Alguns pelicanos maiores

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se enredavam na tarrafa e no pano. O chalanero os agarrava do bico,
levantava e jogava no mar. Mas novamente voltavam ao ataque.
O barco de Chaucato, claro; sim, de Chaucato, não tinha macaco;
era necessário levantar a rede com guincho, puçá e braço. Todo mundo
dando duro, enquanto ele vigiava. Tiveram que devolver ao mar a me-
tade da pesca, cem toneladas, felizmente de peixe vivo. O rosto do ca-
pitão se abrandou novamente.
– Ei, violinista, fodido – gritou da ponte –, trabalhou bem, mos-
trou vontade. E você, Mudo, fala. Vai receber uma grana gorda pela
cala de hoje. Qui estará fazendo esse gringo Maxwell com a puta gorda?
Nunca dentrava o bordel. Você sabe, seu veado, por isso quis furar ele,
sem saber usar navalha.
Os tripulantes não sabiam se Chaucato falava sério ou brincava. O
depósito do barco estava repleto. A anchoveta morta alumbrava; trans-
bordando do depósito até a coberta, melhorava a luz opaca do dia, fazia
ressaltar a cara dos tripulantes. Um imenso porco do mar, um golfinho,
que foi apanhado na rede, estava deitado sobre o boliche já recolhido
na coberta.
– Me disseram, Chaucato – respondeu o Mudo.
– Disseram o que? Quem?
– Me contaram porque eu era um merda. D’agora em diante sou
mais merda não, Chaucato. Você sabe…
– Cortar o gringo? Este… Maxwell, bom gringo.
– Já sou pescador, né, Chaucato.
– Ah, seu bosta, cobra traiçoeira! A máfia, né?
O Mudo sentou sobre o boliche, perto do porco do mar. Chaucato
perguntou:
– O gringo é ou não é contra o frei Cardozo? É gringo, não é gringo?
– Escuta, Chaucato – respondeu Maxe, um tripulante alto, um
pouco mulato, que caminhava balançando, como se a força do seu corpo
o tivesse vencido. Olha, Chauco: você não é juiz pra esses assuntos que
acontecem em terra. Tô com fome. Calamos bem. O que o gringo e o
Mudo é ou não é, isso a gente vai ver na hora certa. Vamos?

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– Já merda, vamos comer! Eu também acho di’fome mi’azedo por
demais.
Chaucato olhava com satisfação para Maxwell. Tinha uma loura
magrela sentada no seu colo. Quase todos os casais haviam deixado de
dançar. Um zambo, devidamente agarrado a uma jovem nariguda, me-
xia seu corpo cálido sovando a mulher num ângulo do extenso salão.
Chaucato acompanhou de longe, com o rabo do olho; “Filadaputa”,
disse e continuou olhando para Maxwell.
Maxwell dançava um rock and roll com uma chola, magra, bem
achinesada. A dança do norte-americano roubou a atenção de todos os
presentes no Salão Rosa do prostíbulo. No pátio externo, uma árvore
raquítica de loureiro, de tronco saliente, projetava meia sombra, niti-
damente, na luz do salão que chegava até a metade do tronco. Outra
sombra mais débil e completa se estendia da árvore à terra molhada a
baldadas de água; era pela luz da lua. Maxwell saltava, caía na ponta dos
pés; levantava a “China” no ar, deixava que caísse a um passo, tomava sua
mão e a fazia girar, tornava a soltar; olhava para ela; o ritmo do seu corpo
contagiava até a pequena árvore lá fora. Como a água que salta e corre,
canalizada por sua própria velocidade nas quebradas escarpadas e irregu-
lares, mudando de cor e barulho, atraindo e afugentando certos insetos
voadores, do mesmo modo o corpo de Maxwell fazia a temperatura
subir no salão. Em pouco tempo, os presentes, bêbados ou não, capitães
de barco, pescadores, comerciantes, curiosos ansiosos sem dinheiro,
foram se aproximando do americano e sua acompanhante. Algumas ra-
meiras cholas viam Maxwell como candela. Chaucato disse: “Todos vão
querer chegar na ‘China’ e as putas no gringo.” A “Magrela” não escutou;
olhava para Maxwell. Gerania, a mulher, e Petronila, a irmã de Tinoco,
pareciam estar ajoelhadas, apesar de bem apertadas pelos braços de
dois capitães de lancha. Alguém assoviou do pátio, enquanto Pretel, o
“Characato”, entrava no salão. Maxwell rodopiava sobre um pé; com
o assobio mudou de postura, ficou como agachado, porém um pouco
levantado, enquanto a “China” fazia o mesmo. “É pura borracha tre-
medeira, elástico com sangue dentro”, disse em voz alta e sem perceber,

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Gerania, a mulher de Tinoco, “Vespa de São Jorge, que come aranha
venenosa; por isso tem candela”; “Cala a boca, porra”, espetou o capitão,
um negro grande que estava com ela (nas assembleias do sindicato esse
negro falava de forma atropelada, mas com certo ar solene e nas oca-
siões mais perigosas). Era chamado de “Toro Morto”. Gerania escutou
o assovio e correu até o gringo. “Agora sua vez, dança”, disse a “China”,
parando. Maxwell continuou movendo os joelhos por um instante…
– Cuidado ianque! – gritou alguém. Maxwell sentiu o ar de alguém
pelas costas e se jogou no chão; o Mudo tropeçou sobre ele e caiu. Não
conseguiu segurar a faca. Antes de qualquer outra pessoa, a Muda, sua
mãe, agachada, agarrou a faca e guardou. Era a prostituta mais sábia
de Chimbote.
Pretel, o “Characato”, levantou o Mudo pela camisa e descarre-
gou um sopapo bem medido na sua boca. A Muda deixou que ele apa-
nhasse. Levantou as mãos pedindo calma. Começaram a se juntar os
presentes no salão iluminado; somente o zambo e sua acompanhante
seguiam dançando. Uma guaracha tinha substituído o rock. Na porta
do salão apareceram duas rameiras do pavilhão branco; chegaram
cansadas; eram gordas e tinham o ventre grande. Gritou uma delas:
“Gringo veado, gringo puto.” Chaucato, então, aproveitou a gritaria
dos insultos; desceu de sua cadeira alta carregando a “Magrela” numa
postura inverossímil.
– Troco com você – disse a Maxwell. Quero a “China”.
Ela estava de pé junto ao gringo.
– Faz isso não, Maxwellzinho. Seria uma merda – uma voz disfar-
çada se ouviu.
– Como ela quiser.
– Então levo as duas – disse Chaucato. Soltou a loura magrela,
abraçou as duas, cada uma com um braço, e saiu para o pátio. A “China”
grudou no corpo do pescador. Chaucato era um pouco encurvado, pa-
recia oleoso.
– Pra isso é solteirão, pra isso arranca do mar montão de grana –
disse alguém.

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Quando Chaucato passou foi puro silêncio; nesse momento,
Gerania, a serrana, abraçou de supetão Maxwell e começou a reme-
xer seus cabelos louros. Todos olharam para “Toro Morto”, o orador
negro, o homem da serrana. Porém, Maxwell levantou a mulher com
a mesma postura que usou Chaucato para carregar a “Magrela”. Com
seus dedos calosos o gringo apertava Gerania, enquanto a carregava.
Novamente ela sentiu medo, “Vespa de São Jorge que come aranha
venenosa”, e ficou quieta. Maxwell avançou com passo cerimonioso
até “Toro Morto”.
– Sua mulher, pois, dessa noite – disse e soltou a mulher nos pés
do capitão de barco.
– Chola cachaceira.
“Toro Morto” empurrou a mulher com o pé.
Maxwell esticou o braço para a prostituta mais gorda das que aca-
bavam de chegar do pavilhão branco. Depois de duvidar um instante,
ela aceitou. Agachada, como um boxeador na defensiva, ela começou a
se requebrar ao compasso da guaracha; o gringo imitou e passou a fazer
os mesmos passos, repetindo os mesmos movimentos do corpo, da ca-
beça e dos braços, como se fosse uma extensão da gorda, sua sombra um
pouco deformada. A quase velha e grande prostituta se mexia cada vez
com mais energia; seus seios pendurados, seus ombros, suas faces fer-
viam; abria a boca. “Um hipopótamo sagrado!”, dizia em inglês Maxwell.
Novamente a plateia, dessa vez do Salão Rosa do prostíbulo de
Chimbote, se juntou para acompanhar o casal. A gorda deslizava ao longo
do espaço cercado pelos clientes; sua pele escura e olhos da mesma cor
estavam fixos no gringo; cada batida de seus braços e seu pescoço, junto
com a tremedeira de sua barriga e suas nádegas, transmitia a putas e
clientes seu desejo de ficar em silêncio, ouvindo, recebendo, o quê?, o ar,
carregado da força da podridão que subia da fumaça, dos lixões, da boca
agonizante dos pelicanos chimbotanos. Gerania se mexeu, sacudindo-se
por fim, saiu ao pátio; foi para o penumbroso corrredor rosado. Devagar,
foi seguida por vários clientes; sem perceber, seguiram como uma fila.
Seu marido e macho, Tinoco, viu que ela saía. Estava perto da máquina

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de caça-níqueis e toca-discos. Pretel, o “Characato”, chegou junto e disse:
“Anda, bate na porta do Chaucato, deve tá na ‘China’.”
O cholo pescador ficou parado um instante, de costas, na porta do
salão; depois deu de ombros e foi para o pátio. De camisa vermelha e
sapatos lustrados, uma grande correia na cintura, foi para o “curral”. A
brilhantina cheirosa, “Glostora”, fazia brilhar não só seus cabelos duros,
mas também o rosto.
O Mudo gemia no quarto da mãe, enquanto uma curta fila de
clientes esperava na porta. Ela grunhia: “Uh, uh, uh!”, e fazia como se
chupasse algo com seus lábios. O Mudo disse: “Primeira vez que uso
navalha e o gringo me escapa. Tenho medo de Pretel, mas ainda vou
fazer ele, caralho, Muda.” Ela desenhou no ar o tamanho de Pretel, de-
pois descreveu sua figura, e entregou quatro notas de quinhentos soles
ao Mudo. O Mudo entendeu. Tinham lavado seu rosto. Como o sangue
foi por um sopapo, não ficou inchado, somente um pouco avermelhado
no nariz e na boca. Saiu tranquilo na direção do salão do prostíbulo.
Ao passar pela porta do quarto da “China” se deteve, colocou os lábios
junto à maçaneta e falou: “Chaucato, Grande padrinho, pai nosso, já sou
pescador…” Pretel o agarrou pelos cabelos e levou até a árvore de louro.
“Fica aqui, seu veado – falou. Na luz, quero ver seu chifre até acabar a
confusão no salão.”
A gorda e Maxwell saíram abraçados pelo pátio. O baile acabou
se generalizando. O Mudo começou a correr atrás de Maxwell e gritou
ao mesmo tempo que batia nele com um galho do loureiro. Gerania, já
vestida com seu tule, abandonou o homem que estava em seu quarto
e correu para o pátio. Encontrou o tumulto no corredor que ligava o
pátio com o beco rosado. Maxwell tinha agarrado o Mudo pelo pes-
coço com um braço. Dois homens caíram sobre ele. A puta gorda
começou a gritar:
– Pescador marginal, putos, assassinos, serranos!
Já se preparava para cair sobre o grupo enroscado no chão. Ouviram
os apitos dos policiais. O tumulto foi desfeito. A puta pegou Maxwell
pelo braço e saiu com ele, apressando o gringo.

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O zambo silencioso do salão continuava se contorcendo, intermi-
navelmente, ao compasso da música. Um cabo deu ordem de prisão.
“Vai preso”, disse: “Por mais bordel que seja, não se faz isso aqui, no
salão público.” “Tô vestido, chefe. Gosto de ensaiar primeiro, esquentar
primeiro, chefe. Sou conhecido: Mendieta, a suas ordens, capitão de
barco, de Braschi. Cada cristão dança do seu jeito, propriamente, chefe.
A ‘Narizona’ também tá vestida. Olha.”
– Ninguém preso? – perguntou o cabo a um guarda que entrou
no salão.
– Vamos levar a Gerania. Arrancou um pedaço do cotovelo de um
pescador inocente. Pelos olhos dá pra ver que ela tá doida.
Gerania tinha os olhos grandes, pretos e indiferentes, mas de
quando em quando se avermelhavam, e então…
– Deixa essa puta! – ordenou o cabo. A puta não morde porque
quer. Leva preso o pescador vagabundo. Está preso?
– Também, meu cabo. Tá aí, fora. Tem um número no pescoço,
acho que é inocente. Tiramos dois mil soles do Mudo, meu cabo. É que
num trabalha.
– Então deixa ele. Que se foda. Tem que levar preso os pescadores
marginais; a esse “inocente”… E também este zambo puto.
– Chefe, cabo, o Mudo pesca agora no barco de Chaucato – disse o
zambo. Não é mesmo, “Narizona”? Leva ele preso também; é marginal.
Eu sou capitão, puto, tô com putas, né não?, tô parado. “Você? Quer
também?” – e fechou um olho.
Outro guarda entrou no salão. Trazia um sujeito pequeno de ca-
belos hirsutos.
– Vinha correndo, meu cabo – mostrou o guarda. A Argentina,
do rosado, tava olhando, chamando ele. Este cholo assustado confessou
já, pois.
– M’inganei, chefe – falou o homenzinho e cumprimentou o
zambo.
– Sou patrão dele – disse Mendieta. Pago por ele, chefe. Quanto, a
Argentina? É de quarenta ou de cinquenta?

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– Achava que era pavelhão branco, mi’ecovicado – repetia o ho-
mem. Calçava sapatos novos.
– Tá preso – ordenou o cabo. Pensou que era o “curral”. Você é do
“curral”.
– Pescador, eu, barco Mendieta; Chefe Fábrica, sinhor respeito
Rincón, Chefe Baía, sinhor respeito Corosbi; Companhia Braschi,
chefe. No “curral” vai pião faminto, chinês fudido, negro disgraciado…
O zambo deixou a “Narizona” no canto do salão, caminhou enér-
gico até o cabo.
– Isso não é justiça, chefe. O que ganha a puta se este serrano índio
vai preso? Bom pescador, chefe. Já não vai ao curral mais. As putas co-
bram na entrada, chefe. O paisano sabe. O que confessou ele?
– Vai preso. Você também, zambo puto, vai preso também. Por que
tá me chamando de “paisano”?
– Pela cara, no falar do serrano se conhece. Você serrano.
O cabo pôs a mão na pistola.
– Fora! – disse. Seu urubu!
O zambo fez um sinal com o ombro para a “Narizona” e saiu para
o pátio. Os guardas seguiram atrás. Levaram junto o pequeno sujeito
extraviado, desalinhado.
Poucos minutos depois muitos casais dançavam no salão. A “Na-
rizona” permaneceu de pé no extremo do salão, longe do caça-níquel.
Recusou o convite de vários comerciantes e capitães de barco. Estou
esperando o zambo “Mendieta”, respondia. Quando Petrel insistia, o
zambo regressou.
– Aí vem, Mendieta. Quanto? – perguntou “Characato”.
– Quinhentos por mim, trezentos pelo serrano bruto. Tinha grana
o serrano! É novo. Estes índios são do contra: perdem a cabeça com
dinheiro.
– Oitocentos! Desse jeito você alimenta a sanha desses guardas
sarnentos.
– Piolhento igual a uns conhecidos, né? Você conhece mais, você
sabe! Vamos, “Narizona”.
Deu as costas a Pretel.

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Outro capitão de barco parou Mendieta na porta do salão, disse
algo em seu ouvido. “É de mim que esse puto tá falando?”, perguntou
a “Narizona”.
– Quando você tiver com outro e ele em seu diante, não tem que
ouvir o que falam de você viu, besta?, com perdão de meu cumpa.
“Disse que Braschi lançou outro jornal grande em Lima. Que o
‘Branco’, o ‘Rosado’, o ‘curral’, você também, pagam a Braschi tanto
por cento…”, explicava o zambo na penumbra vermelha do quarto da
“Narizona”.
– Inveja, inveja, inveja, só! Zambo da minha vida, por você a
morte. Esse capitão deve ser alcaguete do Braschi. Braschi é veado.
Começou a lamber as pernas do pescador, da volta do joelho para
cima. De olhos fechados avançava pelo corpo; ele apertava os olhos,
as mãos sobre a cabeça da mulher. Ela gostava dos cabelinhos enro-
lados do homem em seu paladar; subia, e quanto mais em cima no
corpo, esfregava os peitos na pele do zambo; sua língua pegava fogo,
fazia chegar seus movimentos até os dedos do zambo, à nuca, até o dia
de seu nascimento. E enquanto o pescador repetia, “Por tudo se paga a
Braschi, tudo se paga; de tudo que é bom ele tira dinheiro aos montes”,
dava para ouvir passos no corredor, passos de sapatos com pregos. Os
passos voltaram.
Quem passeava fora era, sempre, Zavala. Meditador, leitor e pes-
cador, sindicalista enérgico, não falava besteira nem nos bares nem nas
assembleias, porém não podia dirigir um barco e farejava ansioso pelos
prostíbulos.
Caminhava pelo pequeno passeio do pátio do loureiro e pelo beco
de luz avermelhada. Em uma hora exata, na véspera, quando mais gente
se via, ele caminhava primeiro no pátio e depois junto à porta da “Nari-
zona”, no beco rosado. Não se fazia fila naquela porta quando o zambo
Mendieta “fechava” o quarto.
O fedor repulsivo que se formava na base do tronco do loureiro, por
causa dos baldes de água que se jogavam ali, deu origem a uns vermes
peludos. “Filhos da puta e da terra”, dizia Zavala. Todo o restante do
pátio recebia baldes de água.

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O pavilhão branco não tinha pátio nem árvore. Os quartos davam
para becos mais largos, com piso de cimento, iluminados com tubos de
luz neon brancos. Corredores estreitos, que ficavam na sombra, comu-
nicavam os becos, e também ali havia quartos, os menores, das ramei-
ras mais baratas. O salão de dança ficava nos extremos do lugar; tinha a
aparência de um grande depósito ou de uma pequena igreja. Cheirava a
arruda. As prostitutas não vestiam seus tules para se exibir nas portas dos
quartos, como algumas do “Rosado”; se mostravam com meio corpo nu. O
cheiro dos urinóis se misturava com o da arruda no piso e nas paredes, e
como seus corredores eram largos, pareciam menos concorridos que os es-
treitos e de luz vermelha do pavilhão rosado. Zavala caminhava primeiro
pelos becos do “Branco”, sozinho ou acompanhado de um pescador gago
e muito avarento, um paisano seu. Depois saía pelo estacionamento de
veículos do prostíbulo e se dirigia ao “elegante” Rosado. Uma fila irregular
de grandes pedras caiadas sobressaía no local do estacionamento, todo
desnivelado e meio empinado. As prostitutas passavam de um lugar para
o outro muito raramente. Zavala levava seu paisano do “Branco” ao “Ro-
sado” e de vez em quando iam também ao “curral”. O gago acompanhava
seu amigo nos passeios em frente ao quarto da “Narizona”.
– Po-po-por que vo-cê-cê anda? – perguntou na noite em que
Maxwell dançou.
– Seu nariz é chaminé de transatlântico, binocular. Cheira o
mundo todo.
– Co-co-cocobolo!
– Quando passo ela sente, por segundos, a milímetros. É outro
prazer.
– Ma-ma-mare nostrum!
– Mare seu, minilíngua. Eu… seu nariz ansioso, aventado; tristeza.
– E o serrano triste, Za-za-zavala? E-e-esse que-que prenderam?
Voltou onde estava a Argentina; mostrou duas notas de cem soles.
“Entra”, ela falou. Entrou e a Argentina fechou a porta. “Por que você
correu?”, perguntou.
– Pulicial, pulicial, pois, assustando a gente.
Era alta, branca, de cabelo dourado.

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– “Ei milico, morenado, eu muito foda”, falando falei pra pulicial.
Pulicial me prende. Patrão meu, zambo Mendieta, soborna pulicial.
Poca grana. Você puta, brancona, fodona. Aistá, merda. Toma, caralho.
Duzentos soles nada pra mim. Puta, putaça.
Ia jogar as notas na cara da mulher. Jogou sobre a cama.
A Argentina mostrava suas pernas suaves atrás de um tule rosado.
Não aceitava compromissos “para a noite inteira”. Cobrava caro. Apro-
ximou-se do homem. Ele retrocedeu. Era como se tivesse o céu sobre
sua cabeça. Loura, branca, pelada!
– Você tá assustado. Cheirando a sabão. Não diga o que não sente.
Você não é um pescador filadaputa…
– Piscador foda, macheza… oitenta tunelada anchovita, eu.
Retrocedia. A Argentina mudou de direção. Seu quarto, locali-
zado no final do corredor rosado, era um quadrilátero irregular, mais
amplo que as outras alcovas. Sorria e avançava; dirigiu o homem para a
cama. “Você não é um filadaputa, é só uma pequena viscacha; chê, um
menino, bebê.”
A rameira abriu os braços, branquíssimos, mexeu os peitos. Asto
se chamava este pescador. “Sol, estrela!”, falou sem pensar, quando ela
se inclinou para abraçá-lo.
Asto saiu do quarto da Argentina pelo corredor coberto, sobre o
qual caíam os feixes de luz de uns tubos de neon avermelhados. Nessa
luz os rostos apareciam como indefinidos, os trajes escuros eram inten-
sificados. Asto não percebeu a fila de clientes da Argentina e das outras.
Foi embora assoviando um huaino, cruzando outras filas de clientes.
Zavala viu que saía. “Pisa firme agora – disse. Caminha firme, assovia
firme esse índio. Sem roupa, amarrado ao molhe, dias e dias, aprendeu a
nadar para conseguir licença de pescador. Não falava castelhano. Quem
terá sido a puta generosa que o batizou? A partir de amanhã vai trepar
nos próprios irmãos, será um Caim, um Judas…”
– Pa-pa-para los se-se-serranos da terra. O-o mar i-i-iguala, vi-vi-
viu ca-ca-caminhante.
Asto percebeu que assoviava somente quando chegou ao final do
corredor rosado e acabou a luz de neon. Entrou pelo campo de areia.

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“E eu… mestiço caralho, argentino caralho. Quem serrano, nu’agora?”,
falando se aproximou de um dos táxis.
– Ei, chofir – disse –, meu casa, caralho. Até meu casa.
– Pra onde, chefe?
– Acero, bairro Acero. Pescador lancha zambo Mendieta, eu.
– Barriada, você quer dizer, serrano, corrigiu o chofer.
Saiu com o carro, cruzou o campo desigual, pedregoso, no qual
estacionavam os automóveis, e entrou no areal que separava os prostí-
bulos da Rodovia Pan-americana. O carro balançava sobre a trilha dei-
xada por outros pneus; seus faróis cortavam a luz da lua. Pelas janelas
laterais, Asto sentia a luz.
– Conhece zambo Mendieta? – perguntou ao chofer.
– Sim, “conhece”. É do contra, gosta de serrano bruto.
– Eu, Asto, capitão seu, chofer ladrão.
O chofer parou o carro e se virou para o passageiro. Asto segurava
uma faca.
– Capitão seu agora. Pega, carai, rápido!
Com a outra mão Asto jogou no seu rosto uma nota de cin-
quenta soles.
– Selincio!
O chofer sacudiu a cabeça, se ajeitou e colocou o carro em
movimento.
A rodovia estava congestionada pelo trânsito. Triciclos pedalados
velozmente por mulheres e rapazes rodavam entre as muitas filas de
caminhões, caçambeiros, caminhões tanque e reluzentes automóveis.
O táxi do prostíbulo não conseguia entrar no asfalto; encontrou uma
rampa e parou.
O chofer desceu do veículo, abriu a porta do passageiro.
– Sai fora, cholo serrano desgraçado, malandro, filadagrandeputa!
Mostra a chaveta, índio de merda, capitão da puta que te pariu!
Asto sacou a faca; desceu. O chofer descarregou sobre ele uma
varada de ferro. Asto se esquivou e começou a correr para o prostíbulo.
Vinha outro carro. Asto saiu da trilha; seus sapatos novos afundavam
na areia. O mau cheiro do mar substituía o fedor denso da fumaça que

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saía das caldeiras em que milhões de anchovetas se desarticulavam,
derretendo, exalando esse cheiro quase alimentício, enquanto ferviam
e transpiravam óleo. O fedor dos dejetos, do sangue, das pequenas en-
tranhas pisoteadas nas bolicheras e lançados ao mar por mangueiras,
junto com o cheiro das águas que borbotavam das fábricas na praia,
fazia aparecer na areia uns vermes gelatinosos; esse fedor saía do chão
e ia subindo. Asto começou a senti-lo, depois que deixou a trilha.
– Eu, chefe! – disse. Ferrada de chofer burra, no ar!
Continuou andando pelo areal solto, novamente em direção ao
prostíbulo, empunhava na mão direita um maço de notas. Desse modo
entrou no “curral”, não aos pavilhões, mas ao “curral” das chuchumecas,
mais baratas ainda; um conjunto cercado de quartos levantados sobre
a areia solta.
Negros, zambos, mestiços, bêbados, cholos insolentes ou assustados,
chineses magros, velhos; pequenos bandos de jovens, espanhóis e ita-
lianos curiosos, caminhavam pelo “curral”. Iam de um lado a outro;
passavam pelas portas dos quartinhos, olhando, parando um pouco. As
prostitutas, vestidas de roupas de algodão, ficavam sentadas no fundo
dos quartos, em cima de uns caixotes pequenos. Quase todas perma-
neciam com as pernas abertas, mostrando o sexo, a “zorra”, raspadas
algumas. Alguns serranos ficavam paralisados, olhando, entravam. Elas
recebiam o que eles podiam pagar, desde cinco soles; porém, não se
deixavam levar pelas súplicas de alguns que apertavam as mãos frente a
elas, nem aceitavam presentes, como jaquetas, anéis baratos ou chapéus
de palha, que eram oferecidos. Guardas armados vigiavam as duas filas
de quartos do curral, completando a segurança de todo o prostíbulo.
Nos outros dois lados do “curral” só havia muros de tijolos grandes,
fortes, que continham o vento e a areia.
O “curral”, pobremente iluminado por dois refletores altíssimos,
presos na ponta de um poste de madeira sem lavrar, um pouco tor-
cido, recebia diretamente o mau cheiro das fábricas e do mar. Quando
a areia e o vento se levantavam, caíam direto nos narizes dos visitantes.
A maioria dos clientes vinha a pé da rodovia e muitos só vinham ver.
Não tinham dinheiro. Regressavam tropeçando nos endiabrados sulcos

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de areias que o vento desenhava e apagava na superfície do deserto. O
conjunto dos salões e do “curral” estava separado da rodovia por grandes
depósitos de farinha de peixe, que foram construídos pelo caminho.
Desse jeito, a fila de carros e pedestres se deslocava para o prostíbulo
sem ser vista pelos viajantes da Rodovia Pan-americana.
Asto se dirigiu a um dos quartos da fila que dava na direção do mar,
contra as montanhas de areia e pedras dos Andes. Zavala e seu paisano
tinham passado ali alguns minutos antes. Zavala “inspecionava” quase
todos os prostíbulos. Era reconhecido. Acompanhado pelo gago an-
dava bem perto das filas de quartinhos do “curral”. Algumas prostitutas
criollas o cumprimentavam de seus caixotes. Ele respondia levantando
o braço ou sorrindo, dependia da distância. O ar era forte. O vento car-
regava os cheiros fugazes; o fedor do mar não cessava. “E-e-este viciado
che-cheira a-a-as ‘zorras’ empestadas, a-a-assim, a-abrindo as ventas”,
pensava o gago Tarta. Ele também viu passar Asto. Também percebeu
a pressa que o pescador levava no corpo.
Zavala viu que Asto entrou num dos quartinhos do extremo da
fila. Tarta e Zavala pescavam para a mesma companhia que Mendieta.
Os três tinham visto o índio pelejando no mar, dias e dias, amarrado ao
molhe, aprendendo a nadar para conseguir sua matrícula na Capitania.
Seguido por Tarta, Zavala caminhou na direção do quarto ao que tinha
entrado Asto. Dessa esquina do “curral” era possível ver a cadeia de
ilhas que circundavam a baía, as bocainas que separavam as ilhas e por
onde centenas de barcos pesqueiros entravam e saíam do porto.
Zavala esticou o braço e apontou para a baía.
– Esta é a grande “zorra” agora, mar de Chimbote – disse. Era um
espelho. Agora é a puta mais generosa, “zorra” que fede a coisa podre.
Ali podiam caber tranquilamente, juntas, as esquadras do Japão e dos
gringos, antes da guerra. Os pelicanos voavam planando como senhores
absolutos.
– De-de de-ssa “zo-zo-zorra” vo-cê vive, seu bicha – respondeu o
Tarta. Vi-vi-vive a pátria.
– Vive e transpira, Tarta animal. Asto agoniza, como peixe na areia
quente.

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– De-de-deixa de-de ser burro. A-a-asto lu-lu-luta co-com unhas
e dentes, em-em-em qualquer parte.
Viram que ele deixava o quartinho, abraçado a uma mulher miúda.
Ela carregava no braço direito uma maleta pequena. Zavala, seguido do
Tarta, foi na direção do casal.
– Te presento min’irmã – disse Asto a Zavala. Eu… como sacana
Tinoco era. Agora, oitenta tunelada no diário, três semana cobrei. Meu
‘niversário é, meu santo. Tenho grana pra enfiar garganta do Tinoco,
do Braschi também, se quiser. Adeus puteiro “curral”!; adeus, adeus,
ai, vida de merda!
Foram embora. Deixaram aberta a porta do quartinho. Zavala e
Tarta seguiram os dois até o campo de estacionamento dos carros.
– Chefinho, patrãozinho – disse Asto a um motorista – leva bairro
Aciro, com coidado.
– Triste puta que você leva.
– No, cavalero, min’irmã é. Santo meu, agora!
Assim que arrancou com o carro, o motorista escutou que o pas-
sageiro falava em quéchua, alto, já quase gritando. A mulher respondia
igual. Falaram, depois, juntos, ao mesmo tempo. Parecia um duo ale-
gre e desesperado. “Estes serranos! Ninguém sabe, nunca”, disse asso-
biando, o chofer.
– Uma volta mais pela “Narizona”, Tarta – pediu Zavala a seu pai-
sano. Uma passada mais.
– Va-va-vai so-sozinho, xará. Eu vou pra grande puta que pariu
e a-a-alimenta to-to-do mundo, que pariu Braschi, Rincón. Chimbote
resplandece fu-fu-fumaça, chama vi-vi-viva. Vida de merda!
Saiu rengueando sobre a areia.
“Poeta gago, avaro; senhor de povoado antes, só fornica a grande
‘zorra’ que é a baía – ficou pensando Zavala. Antes espelho, agora sexo
milionário da grande puta, sacaneada por uns putos estrangeirizados,
mafiosos. E, e aquele índio, de merda, discípulo arrependido do Tinoco,
que se foda!” Depois começou a andar na direção do Salão Rosa.
Na luz neon seu traje azul ficou negro e um brilho apareceu na
roupa: era de tecido sintético. “Tubarões sacanas, fodem Chimbote,

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fodem o Peru até mesmo do puto inferno.” Pensando entrou Zavala ao
pavilhão rosado. Entre três, quatro, ou sozinhos, saíam homens apres-
sados. “Não têm rosto, acho, estes, ou eu tenho os olhos feito breu…” E
começou novamente a dar curtos passeios na frente da mesma porta.
– Entra, Za-za-zavala – escutou que lhe chamava o zambo Men-
dieta. Pelos pregos!… de seu sapato, entra – convidou, mantendo a porta
aberta. Aqui, com a “Narizona” num tem tempo pa’pensar. Tô indo já.
– É uma “deferência” Mendieta. Entro – disse Zavala.
Pela primeira vez cruzou aquela soleira. Mendieta fechou a porta
pelo lado de fora. Zavala passou o trinco.
A “Narizona” meio que se ajoelhou na cama. A luz vermelha do
velador, um refletorzinho em forma de lança, iluminava seu rosto, o
traço duro de seu nariz.
– Tanto tempo passeando – disse. Relógio despertador sem dono.
– Melhor é passear – respondeu Zavala, e se voltou para a porta.
– Não! Pobre animal! – saltou da cama a “Narizona”. O zambo
mandou. Faço o que você quiser; por ele.
– Como a grande “zorra” de Chimbote, quando a ordem vem
de Nova York a Lima e de Lima a Chimbote. Vai à merda, espertona!
Finish!
Zavala abriu a porta e saiu. Uma pequena fila de homens se formou
imediatamente frente naquela porta.
O “curral” era fechado antes dos pavilhões. No momento em que
a “Narizona” tomava um táxi no estacionamento, os refletores eram
desligados no poste do “curral”, e como se tivesse sido pisado por um
bando de pombas, o areal era varrido pelo vento. Um segurança atra-
vessou uma corrente, juntamente com um cadeado vermelho oxidado
em forma de escudo, na porta de madeira do local.
Enquanto isso, acossadas pelo vento, três chuchumecas subiam na
direção da barriada de San Pedro, por um dos caminhos por onde pas-
savam as piaras de burro dos aguateiros. Eram putas do “curral”. Não
aceitavam pagar a tarifa cara que os táxis da cidade pediam à noite para
subir a barriada da grande duna. Sempre desconfiavam de que as rodas
dos carros atolariam em algum ponto.

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As três andavam em fila pelo estreito caminho traçado e pisoteado
pelos burros, em suas milhares de viagens pela colina de areia.
– Maldição de vida! Vida de merda! – disse a que ia por último.
– Claro. Como em despenhadeiro barrancamos. Mas também vou
levantar. Ah merda, que vou! – respondeu a do meio.
A que ia adiante não falava; acelerou o passo, o que a deixou mais
cansada. Enterrava os pés na areia; nos trechos onde os burros encontra-
vam cascalho e seguiam a trilha de terra batida, aquela mulher andava
com passos miúdos. Chegou à rua “marginal”, de areia grossa e lixo por
onde começam as ruas, todas retas e quadradas da barriada. Embaixo,
ao pé da duna, o maior porto pesqueiro do mundo ardia como um
braseiro. Uma fumaça densa subia das chaminés das fábricas, e outra,
mais alta e com uma coloração rosada, da Siderúrgica. O mau cheiro
do ar não chegava à barriada. A chuchumeca correu, meio encurvada,
resfolegando na areia solta; subiu por uma rua que era iluminada pelas
estrelas até se perder na parte mais alta e distante da duna, a rua Co-
lômbia. Atrás de um velho caminhão-caçamba desmantelado, com um
resto de marcas de amarelo brilhante, ficava sua casa. Interrompendo
e, em alguns momentos, rodeando as chamas, as luzes e a fumaça do
porto brilhavam como metal meio escondido os grandes pântanos nos
quais ainda crescia a totora, selvagem.
A mulher que ia atrás comentou, enquanto lutava com a subida:
– Essa Orfa procura morrer, sei. Doentada corre celerado, morro
acima.
– Ocê num sabe, ocê machorra – respondeu a que ia na frente.
– Vai morrer. Chuchumeca doentada, com filho, num’guenta – in-
sistiu a que ia atrás.
A mulher que seguia na frente deu uma volta; com os pés empur-
rava a grossa e pesada areia do último trecho do morro, o mais empinado.
– Ocê nem sabe parir – disse a outra. Mulher com filho aguenta
vento, morro impinado. Guenta tudo.
A outra, de costas para o porto, para a fumaça e as chamas que
ressaltavam mais a figura do seu corpo contra a areia branca, levantou
a cabeça.

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– Filho de chuchumeca é maldição! Aistá! – gritou. Deu meia
volta ela também e retrocedeu um passo para ficar junto da primeira
mulher e de frente para o mar. Aistá! Inferno – e apontou para o porto
– cozinhando peixe, merda de peixe também! Aistá! candela. Seu filho
do inferno, filho de Tinoco, é o filho de Orfa.
– Filho de chuchumeca, filho. Tinoco escroto, tem lani demo-
niado, louco – replicou a primeira.
– Tinoco, filadaputaaaaaa! Pior que inferno, fio de candela pesti-
lentosa. Eu, eu, Virginzinha do Carmen, não machorra – começou a
rezar a outra, depois de ter gritado no morro. Isso, Pequena Virgem do
Carmen, Tinoco candela pestilenta, bom moço, bom moço… Víbora,
barranco, beija-flor, asno, macho asno, pinto lani, putaço.
Ajoelhou-se frente às luzes e a fumaça. Continuou falando:
– Beija-flor de puta, Tinoco: de candela, de bosta merda. Eu, eu,
Paula Melchora, Mãezinha do Carmen! Não machorra; prenhada é, mas
da maldição do Tinoco prenhada, eu. Ai, morro areia, pesao, de meu
coração seu peito! Asno macho, víbora.
Chorava e falava; chorava e falava. A outra chuchumeca ficou
olhando as labaredas que saíam das chaminés. O fogo se misturava com
a fumaça; o da Siderúrgica lambia o céu, lançava sombras sobre a água da
baía que a luz fazia brilhar como óleo. Sem chorar, saiu disparada para a
rua Colômbia. Chegou até o esqueleto amarelo do caminhão, virou por
ali, entrou na casa de Orfa. Havia acendido uma lâmpada clara, de uma
luz suave. Sentada sobre um catre de madeira, coberta por uma colcha
brilhante com bordados, olhava seu filho que dormia num berço de
madeira. Atrás dela, uma cholita jovem, de pé, lutava com o sono. A
visitante avançou devagar, na direção da mãe.
– Filho de Tinoco é sua huahua, de asno macho? – perguntou a
visitante.
– De ninguém! – disse a mãe. Meu nome não é Orfa. Filha de
fazendeiro sou, enjeitada, desonrada, cajamarquina.
A rameira chola se aproximou do menino. Viu que tinha uma testa
grande, os olhos claros. Agachada, e sem olhar para a mãe, desabotoou
a camisa dele; viu que tinha o peito bastante alvo. Percebeu, então, que

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toda a roupa da huahua era de tecido fino, as beiras das fraldas esta-
vam bordadas com seda rosa. Levantou-se devagar, tirando o chapéu
que usava na subida do morro; cumprimentou respeitosamente Orfa e
voltou a colocá-lo; dirigiu-se para a porta. Sentiu o ar batendo nas abas
do chapéu.
– Senhorita Chuchu… Desculpa, senhorita! – disse antes de sair.
Correu morro abaixo, procurando a rota dos burros. Encontrou a
outra mulher no mesmo lugar. Estava sentada, com o rosto na direção
da fumaça e das chamas. Filas de bolicheras já partiam para as ilhas. A
luz da lua não conseguia se refletir nas águas sujas da baía, ao passo que
as baforadas de fumaça incandescente das fábricas flamejavam naquela
água estancada.
– Senhorita desonrada, triste senhorita enjeitada é chuchumeca
Orfa. Seu filho não tem pai. Juro! – disse a mulher, sentando perto
da outra, Paula Melchora, que olhava fixamente a baía. Paula estendeu
o braço e apontou para uma aguada, que as luzes das fábricas faziam
brilhar, próxima da praia.
– Vai voar gaivota. Olha só! – disse.
Um bando denso de gaivotas lançou um coro de grasnidos contra
o morro de areia. Levantaram voo borboleteando nas margens enegre-
cidas da baía, pelo lado do grande bairro de fábricas 27 de Outubro.
Sem limites definidos, estreitando e alargando, a mancha de gaivotas
parecia indecisa. A luz começou a mudar nesse momento. As ilhas,
cobertas de guano de pelicano (nitrogênio e cal), começavam a mudar
de coloração, clareando com a luz da aurora.
– Gaivota; gentil gaivota – voltou a falar a mulher – de meu olho,
de meu peito, de meu coraçãozinho voa voando. Bendiz a puta merda
prostíbulo. Mi’stá ardendo meu “zorrinha”. Tropeliada foi, gentil gai-
vota, em maldiciado “corral”, negro bêbado, chinês bêbado. Ai vida!
Asno Tinoco me prenhô, sô depois.
Ela se levantou; ficou um momento de pé. Sua companheira, a
que estava a seu lado, viu que os olhos da mulher diminuíam, toda a
cavidade dos olhos e parte da testa se enrugavam e desse jeito, nesse
rosto contraído, viu que a grande baía, o mais intenso porto pesqueiro,

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se refletia nos olhos enrugados de sua companheira. Viu quando foi
embora, com trancos firmes sobre a areia grossa da subida. Ela foi atrás,
pensando, enquanto as gaivotas grasnavam e o vento empurrava insis-
tentemente areia sobre o “curral” prostíbulo. Ao chegar na primeira fila
de casas da barriada, ao lado da “rodovia do contorno”, trilha feita de
restos de lixo, voltou o rosto para as fábricas; tirou o chapéu, arqueou o
braço como se fosse dançar, rodopiou a fita do chapéu, fazendo-a brilhar,
e com a melodia de um carnaval muito antigo, cantou, dançando:

Víbora Tinoco
víbora Chimbote
víbora asfalto
víbora Zavala
víbora Braschi
morro areia víbora
fábreca areia víbora
challwa1 peixe-rei, anchovita, víbora,
roduvia víbora
caminho de bolichera no mar, víbora,
fila pelicano, fila huanay 2 víbora.

Cantava, dançando em volta, remexendo a areia, agitando o cha-


péu, enquanto a outra, a prenha, se perdia, caminhando indiferente na
sombra das primeiras casas da barriada. Alguns moradores se levan-
tavam bem cedo e viram a mulher que cantava e dançava. “Bêbada!”,
disse um deles. Outro teve trabalho para abrir sua porta, pela areia
acumulada durante a noite nos muros; viu a mulher contorcendo todo o
ritmo de um carnaval no corpo e no chapéu. Foi direto até ela, decidido.
– Dança, vem – disse ela. Bolicheras já se’indo trazer grana.

1
Challwa: peixe.
2
Huanay: ave guaneira.

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– Um centavo procê, um centavo pra mim; oitinta so capitão lan-
cha, vinti pra piscador; melhão, melhãozinho pra gringo peruano es-
trangero. Dança intão, infeliz! Eu, fudidu, horista iventual, fábreca. Oito
semanas, dispois, pé no rabo, cai fora! Dança madrugada, puta mari-
posa, ou é sombração?
A mulher o pegou pela cintura. Voltou a cantar com outra tonali-
dade e outra letra, fazendo o trabalhador temporário dançar:

Gentil gaivota
ilhas voando
víbora, víbora,
morro acima, víbora,
morro abaixo, víbora,
bandera piruana víbora.

– Bandera piruana víbora? – interrompeu o homem. Ocê é puta?


– Animal, em barriada San Pedro nunca putas. Eu canto em
morro areia.

Bandera piruana
vermelho e branco
víbora, víbora, víbora…

O homem lhe deu um pontapé.


– Eu licenciado exército – disse.
A chola caiu no chão, levantou simulando muito esforço e jogou
punhados de areia, com ambas as mãos, nos olhos do licenciado.
– Puta, filadaputa, me fudeu – gritou o peão.
A mulher saiu correndo. O pequeno círculo de gente que se for-
mou em torno dos dois, enquanto dançavam, abriu passagem. Depois
dispersaram.

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O peão diarista voltou para casa tateando. Ali, lavou os olhos
com a água que guardava num recipiente de gasolina. Sua mulher viu
quando entrou e foi tateando até o recipiente. Agachada num canto da
casa, a mulher se preparava para acender o pequeno primus; os três
filhos dormiam no chão, sobre sacos vazios de farinha de peixe. Um
galo, três galinhas, oito frangos, dois cachorros e vários porcos da índia
circulavam pelo piso endurecido à base de água e barro. A mulher reparou
na penumbra que o homem tinha os olhos avermelhados.
A raposa de baixo: Entende bem o que digo e conto?
A raposa de cima: Você confunde um pouco as coisas.
A raposa de baixo: Assim é. A palavra, pois, tem que esquadri-
nhar o mundo. O canto dos patos negros que nadam nos lagos gelados
das alturas, onde a neve ao se derreter empoça, repercute nos abismos
de pedra, se funde neles; é arrastado pelas punas, faz dançar as flores
das plantas duras que se escondem debaixo do ichu, não é verdade?
A raposa de cima: Exato, o canto desses patos é grave, como de
ave grande; o silêncio e a sombra das montanhas convertem esse canto
em música que se funde em tudo que existe.
A raposa de baixo: A palavra é mais precisa e pode confundir.
O canto do pato das alturas ajuda a entender o espírito do mundo.
Continuemos. Este é o nosso segundo encontro. Há dois mil e qui-
nhentos anos nos encontramos no monte Latausaco, de Huarochirí;
conversamos junto ao corpo dormido de Huatyacuri, filho anterior a
seu pai, filho artesão do deus Pariacaca. Ali você me revelou os segre-
dos que permitiram a Huatyacuri vencer o desafio proposto pelo genro
de Tamtañamca, deus incerto, vaidoso e enfermo. O genro desafiou
primeiro Huatyacuri, a cantar, dançar e beber; depois cantou e dan-
çou duzentas danças diferentes com duzentas mulheres; Huatyacuri,
acompanhado de sua esposa, que também era filha do simulador Tam-
tañamca, fez as montanhas dançarem cantando ao compasso de uma
tinya3 fabricada por uma raposa. O filho de Pariacaca ganhou todas

3
Tinya: tamborzinho.

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as provas; apareceu com um vestido feito de neve, foi o melhor traje;
construiu durante uma noite, trabalhando com os insetos e animais
maiores, um palácio completo; fez um puma de cor azul soltar um
bramido; bramou ele também, com mais força, enquanto dançava ves-
tido de branco e negro; espantou seu rival, convertendo-o em cervo, e
à mulher de seu rival em milagrosa rameira de pedra. Naquele tempo,
nosso mundo estava dividido em dois, como agora: a terra em que não
chove, terra quente, o mundo de baixo, próximo do mar, onde os vales
yungas, que encaixados entre montes escarpados, secos, de coloração
ocre, quando próximos do mar se fendem como a luz, em veias carre-
gadas de larvas, moscas, insetos, pássaros que falam; terra mais virgem
e parideira que a do seu círculo. Este mundo de baixo é meu e começa
no seu, abismos e planícies pequenas ou desiguais que o homem faz
produzir por meio de uma força tenaz e de canções; aço, felicidade e
sangue, são as montanhas e precipícios de maior profundidade que
existem. Acontecem agora, neste tempo, histórias melhor entendidas,
em cima e embaixo?
A raposa de cima: Agora você fala de Chimbote; conta histórias
de Chimbote. Há dois mil e quinhentos anos, Tutaykire (Grande Chefe
ou Ferida da Noite), o guerreiro de cima, filho de Pariacaca, foi detido
em Urin Allauka, vale yunga do mundo de baixo; foi feito cativo por
uma virgem rameira que o esperou com as pernas nuas, abertas, os
seios descobertos e um cântaro de chicha. Ela o seduziu para fazê-lo
dormir e dispersar. A água desce das montanhas que eu habito, corre
pelos vales yungas enfiados entre as montanhas secas e ocres, abrindo-se
igual à luz, é certo, perto do mar; são veias finas sobre a terra seca, entre
dunas e pedras cansadas, que é a maior parte de seu mundo. Olha: eu
sempre tenho descido e você subido. Mas agora é pior e melhor. Há
mundos mais acima e mais abaixo. O indivíduo que pretendeu tirar
sua vida e escreve este livro era de cima; ainda tem ima sapra sacu-
dindo dentro do peito. De onde, de que parte é agora? Yanawiku hina
takiykamuway atispaqa, asllatapas, Chimbotemanta. Chaymantaqa,
imaymanata, imaynapas, munasqaykita willanakusun Yaw! yunga atoq.
[Ei raposa yunga, como um pato, conta um pouco sobre Chimbote.

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Canta se pode, um instante. Depois conversamos e diremos como seja
preciso e tudo que seja preciso.]
A raposa de baixo: Nisiutam kaypi, sumaq, millay qapaykuna,
imaymana runakunamanta, asnasqaña o mar qochamantapas,
imaymana uku yakumanta, llasaq wayramanta, hichaq, bichanakuq,
tubukunamanta qapaynin, sinqayta, uyariyniyta tutayachin.
Ninriyñataqmi, saya sayarispa, huk asnaywan, huk qapaywan, chay
nisqay minisqa asnaykunawan, kancharin, tanlinyan; wañuyta,
achikyayta, mosoqyayt, poqchiqta, poqchoqta, llanllariqta, kikillanmanta,
ou pela força, tasnuqta, qasillaqta musiaspa. Qawaytaqa qawanipunim.
Qam hina imaymana kap, chay kaqllamanpas tukukuytaqa atinitaq.
Chaynam, Willanakunsuyá, aypanakunsunyá maykamapas imaynapas.
[Com mais intensidade, aqui, os cheiros repugnantes e as fragrâncias;
as que saem dos corpos dos homens tão diferentes, de águas fundas
que não conhecíamos, do mar fedorento, dos incontáveis tubos que
descarregam uns sobre os outros no mar, e o ar pesado, tudo uma
grande mistura, congestionam meus nariz e meus ouvidos. Mas a ponta
de minhas orelhas, quando se empinam, encontram os maus cheiros
e as fragrâncias que falei, tornando-se transparentes; dá para sentir,
aqui, uma mescla do morrer e do amanhecer, do que ferve e salpica,
do que se cozinha e se torna ácido, do que se apazigua pela força ou no
braço. Todo este fermento está reunido e eu o sinto pelas pontas das
orelhas. E vejo, vejo; posso também, como você, ser o que for. Assim é.
Conversemos, caminhemos até onde seja possível e como seja possível.]
Chaucato dormia entre as prostitutas; roncava alto. A “Magrela”
começou a se vestir.
– Cara de lobo tem – disse. Matou muita raça de lobo nas ilhas,
quando era menino. Pede que ele conta. Comigo não teve agora, no
propriamente. Desse jeito é… Daqui sai direto pro mar.
– Sem nada – respondeu a “China”. E você leva a metade sem
trabalhar.
– E o que mi’olhou? Nem me tirava o olho tarado de cima, en-
quanto… Tudo isso que fez nocê, pois.

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– Pra’isso trabalha e tem ñeque. Num será que de menino os lobos
qui’matou nas ilhas pariram ele de novo? Olha só: parece lobo sem
bigode, de respeito.
– Pode ser, pode… Você tocou nele, né? De vera que tem os ovos
redondos, pra’sua desgraça. Já vai acordar. Um táxi está esperando. Leva
ele até La Caleta.

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II

Na primeira esquina da praça do mercado Modelo, a principal do


porto, próximo das bancas de roupas, verduras e mil quinquilharias que
tomavam mais da metade da rua, Moncada desceu a cruz que levava no
ombro. O tronco pesado da madeira vertical permitiu que ela ficasse bem
reta. Moncada levava na mão esquerda um trapo de pano vermelho. O
sol fugaz do inverno tíbio caía precisamente sobre este lado da cidade,
iluminando todo o bairro do mercado, chegando até o outro extremo
da linha do trem que ia para Huallanca. Moncada se ajoelhou ao pé da
cruz, depois começou a se levantar lentamente, sacudiu o trapo ver-
melho e, com o braço erguido, começou a falar. A esta hora, de muito
movimento, poucas pessoas prestaram atenção nele.
“Eu sou o toureiro do Deus, sou mendigo do seu cuidado, não do
cuidado falso das autoridades, da humanidade também! Vejam!”
Gritou com força e começou a tourear junto da cruz. Era um zambo
mulato, de nariz perfilado, porém baixo, com as fossas nasais muito
abertas na base e fechadas para cima em ângulo reto, bem nítido, como
se fossem não de carne, mas de puro osso. Essas cavidades no nariz da-
vam ao seu rosto um ar de indiferença, apesar do ímpeto com que falava.
“Vejam como eu toureio as perversidades, as pestes. Eu sou a pinta
negra que embeleza o rosto; quando brota na face da mulher elegante
ou no rosto do homem, a pinta embeleza. Quem disse que não? Eu
sou a pinta de Deus na terra perante a humanidade. Vocês sabem que
a polícia quis me prender várias vezes, porque diziam que eu era um
gato de unhas longas, como um ladrão. Eu não nego que sou um gato,
porém roubo a metade, o coração de Deus, assim arranho mais… E não
é o dinheiro o que me faz desvariar, mas a minha estrela…”
A cada frase se distanciava da cruz e voltava, levantando as duas
mãos. Um arco de pessoas tinha se formado em torno dele, pois cami-
nhava um longo trecho ao final de cada frase, o que não permitia que
se formasse um círculo. Não olhava para ninguém. Um pedaço de rede
e um saco preto estavam pendurados no braço da cruz, ao sol.

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“O general Jose Luis Orbegozo y Moncada que foi presidente da
República, ai! ai! ai! meu parente ai! ai! ai! Vou aparecer na televisão dos
estrangeiros. Vou sair retratado em todos os jornais do mundo, de mim a
humanidade vai se lembrar. Toreio; não me pega nenhuma das tentações
que deixam rico Braschi, ou o comerciante Mohana, que quis ser prefeito.
Agora os touros já não investem contra mim; todos foram toureados.”
– Estamos em estado de sítio, diz um espectador.
– Moncada é conhecido, ninguém incomoda ele. Fala a verdade
dos loucos – contestou outro.
Sem olhar para ninguém, com os músculos retesados e a voz mais
aguda a cada instante, descalço, Moncada continuava falando e o pú-
blico aumentava.
“Belaúnde, presidente da República, Victor Raúl Haya de la Torre,
pai mãe de presidentes, senador Kennedy morto; pobrezinho mãe de
Belaúnde, do General Doige, do Almirante Zamoras, do Peru América.
Eu! Eu! Eu! Lembram da peste bubônica que saiu de Talara-Tumbes?
Eu sou essa peste, aqui estou suando a bubônica de Talara-Tumbes In-
ternacional Petrolium Company, Esso, Lobitos, libra esterlina, dólar.”
Com o trapo vermelho limpou o suor. Duas veias ressaltaram em
seu pescoço, engrossaram e permaneciam sem palpitar, pareciam de
borracha. Já seco, foi em direção à cruz andando devagar, logo se ajoe-
lhou e abriu o saco preto. Tirou de dentro um pequeno boneco e, com
um apito que levava no pescoço, pendurou-o na madeira vertical, mais
ou menos a meio metro do chão. O boneco estava vestido exatamente
como Moncada, tinha uma pinta bem grande na face, o rosto colorido
de branco sobre preto; o nariz, com as fossas nasais em ângulo agudo,
pintadas com laca, resplandecia.
O louco se agachou; o boneco ficou atrás de sua cabeça.
“Pobre Moncada, louco Moncada, todo mundo calunia você” –
continuou falando. “O governo calunia você, faz suar, flagelar, calafetar
com candela, persegue e empurra pra lama do barco, do pernilongo;
Mohana, o candidato a prefeito, cospe sua baba, paquera, diz ‘branqui-
nho, branquicela’, espeta alfinete no coração. Pobre Moncada, Monca-
dinho, filho! Você não vê? Agora mesmo, quando falo de você, até o sol

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se esconde. Já sabia que era sol nublado. Mas aí ele pensa e desaparece
quando falamos de Moncada. O sol sabe quem sou eu, de mim res-
tará memória! Braschi me odeia; ele tem um queixo grande, parece um
macaco enorme. Escutem: Braschi fez este porto crescer; emprenhou
o mar, vocês são filhos de Braschi, esse Caim ao contrário, irmãos…”
Levantou-se; sem soltar o boneco, colocou a cruz no ombro e co-
meçou a caminhar, desviando dos carros e coletivos que entulhavam a
rua. Somente duas pessoas o seguiram. O grupo de curiosos demorou
a dispersar. Moncada chegou à outra esquina, a mais próxima da praça
de armas. Próximo dos pontos de venda que ficavam no chão, deixando
um espaço entre as mercadorias e a rua, tornou a assentar a cruz; ficou
de joelhos e, ao se levantar, deu um grande alarido:
“Oh, ah!”
“Orbegozo Moncada, presidente do Peru, dono da fazenda Mon-
cada. Never! – e apontando para o boneco. Este negro caluniado, depen-
durado, vai ser lembrado pelos séculos dos séculos. Deus veio descalço,
como ele; como ele, foi pendurado, não como eu. Eu, uma vez, dos pés,
na delegacia. Você se lembra, filho, filho querido, eu, eu mesminho?”
Sua voz não se afligia. Como as duas veias de seu pescoço, a voz
era firme, não acompanhava o significado do discurso. Ficou de pé e
se dirigiu ao grupo de pessoas que se encontravam paradas frente a
ele. O resto da multidão que comprava e vendia, murmurava fundo; os
alto-falantes cuspiam propaganda e música dançante; os vendedores
de retalhos enfeitiçavam cholos, cholitas, jovens e velhos, oferecendo a
gritos ou com megafones, o corte de tecido a cem, para logo vender a
vinte, e todos contentes ao final. Não existe engano.
Agora, Moncada representava um pescador descalço. Na semana
anterior circulou e fez suas prédicas como um grã-fino no centro da
cidade. Em outra ocasião, saiu vestido de turco, e alguns ainda se lem-
bram – isso havia ocorrido já há vários meses – quando apareceu nos
mercados vestido de mulher grávida, no momento de parir. Mostrava o
ventre, a barriga artificial onde havia colocado um gatinho que chorava,
e ele, o louco Moncada, chorava também: “Foi renegado pelo pai; seu
nome é Anacleto Pérez Albertis, o engendrador, capitão de barco. Mas

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em Chimbote os trabalhadores da Siderúrgica Sogesa, unicamente eles,
reconhecem a seus espúrios! Pagamento alto, regular, descontável por
lei; eles moram no bairro “Cuernavaca”. Bonito, fiscal, elegante. Tra-
balham turnos de noite e ali fabricam chifres as senhoras, melhor que
melhor que a fundição produz arames de aço. Eu, ai, ai, meu pai!, nin-
guém quer me reconhecer como pai, Anacleto Pérez Albertis. Em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo, os outros bairros de Chimbote
estão empesteados e gatos sem pai, como eu, filhinho!” E fez o filhote
de gato gemer. Dizem que o afogou. Alguns dias depois, caminhava
com passos largos, majestoso, vestido tão elegantemente que ninguém
conseguia explicar; sua roupa não era fina nem limpa, mas estava na
moda; as calças apertadas, um pouco curtas; camisa amarela, aberta,
flamejante; chapéu, sim, um chapéu negro e lenço no bolso alto do
paletó, lenço branco no paletó verde. Caminhava rapidíssimo, a mão
direita no bolso da calça.
Vestido de elegante, Moncada não pregava de modo formal; sem-
pre dava uma volta pelo Passeio Bolognesi; parava em alguma esquina,
dizia frases curtas, continuava andando e voltava a falar na esquina
seguinte, ou na porta de alguma loja importante, de um banco, do Club
Social Chimbote: “Aqui, no Peru por dizer, depois de San Martín, dom
José, só existem forasteiros, estrangeiros que mandam. Nós aqui semos
apenas serventes de estrangeiros…” Caminhava lento, com a cabeça
levantada, depreciativa; “Isso de me chamar de louco não interessa; eu
mesmo coloquei, lembram?, dois letreiros, um na frente e outro atrás,
que diziam: ‘louco, bobo, bêbado’. Existe Virgem da Porta, existe urubu,
existe Moncada…” Assim, pomposo, falava algumas frases e logo saía,
a passo rápido; o corpo todo enérgico de tanto menosprezo. Duas
ou três quadras depois, falava de novo: “Os estrangeiros são como
os perversos enganadores de mulheres. Oferecem tudo e depois que
aproveitam, pancada e cuspe. Mas agora, os filhos das mulheres estão
preparados para devolver as pancadas. Fora com os estrangeiros! Agora
aprendi que a enfermidade vem da inteligência…” E sempre com a mão
direita no bolso da calça caminhava pela calçada, uns passos, regressava
à esquina; não se detinha para pregar: “O louco Moncada cumprimenta

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a todos! Ja, ja, ja! O sol, a lua, as estrelas, o pequeno focinho da baleia,
o tubarão fisgadinho. Never as anchovetas! Bom dia, padre Cardozo,
norte-americano ianque. Corpos de Paz, levantem as mãos! Deus, in-
tranquilidade, Braschi em cima, em baixo, na virilha…”
Porém, desta vez que conto, da Praça Modelo, Moncada arrancou o
boneco de trapo pendurado, que balançava diante de seus olhos, enfiou
no saco preto e levantou a cruz. “O pescador pescado vai para o bairro
La Esperanza Baja. O louco já está no bolso”, disse e começou a andar.
– Nunca deve ter ido numa barriada, aposto. La Esperanza fica
muito longe, na areia – comentou um curioso.
– Bem depois do cemitério fica –, disse outro.
Já com a cruz no ombro, Moncada voltou a tomar a aparência de
um trabalhador a quem tivessem encomendado levar a cruz a algum
lugar para ser abençoada, ou cravá-la sobre qualquer ruína incaica in-
vadida pelos migrantes serranos. Desse modo, atravessou os quarteirões
que desembocavam na avenida Gálvez, as ruas do mercado e os pontos
de ônibus.
O louco era puxador de pescado, dos botes cortineiros até a praia,
quando estava são; não era louco de contínuo. Ganhava um bom di-
nheiro quando estava bem. Com a cruz no ombro, suado, descalço, seu
andar de transeunte não perturbou ninguém. As portas das lojas esta-
vam repletas de compradores; os ambulantes anunciavam suas merca-
dorias a gritos; os triciclos dirigidos por homens e mulheres desviavam
do carregador da cruz sem maiores problemas. Chegou Moncada à ave-
nida Gálvez, uma via dupla, onde o mercado continuava. Os postos de
venda de verduras, frutas, comidas, farinhas, pães, sabonetes, anilinas,
plásticos eram poucos; a maioria dos vendedores já tinha ido ou es-
tava indo embora. Moncada passou como quem vai longe. Precisava ir
longe. Na altura da rua onde o muro da estação de trem para Huallanca
terminava e a cidade se abria, à direita da avenida Gálvez, num labirinto
de pequenos canais, ruas compridas ou sem saída, valetas, depósitos –
tudo recém-construído, tudo sobre terra –, Moncada tomou a direção
do mercado da Linha, onde esse labirinto começava, o bairro já reco-
nhecido, porém ainda sem luz ou água, “21 de Abril”.

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O mercado começava na cerca de madeira que fechava a entrada da
estação. Essa cerca permitia ver o enorme espaço, uma ilha entre os bair-
ros, ocupado pela estação. Por ali caminhavam huachimanes1 fardados
e com capacetes brancos, que vigiavam a grade e os depósitos. O mer-
cado se estendia a partir da cerca para cima, na direção das montanhas,
ao longo de toda a avenida Buenos Aires. A linha do trem dividia ao
meio a rua e o mercado. De um lado ficava o terreno onde se vendiam
animais vivos, grãos, verduras, alfafa; centenas de pontos de venda. Na
outra margem, as barracas de esteira, um formigueiro de bancas com
telhados e corredores na sombra, além de uma fila alegre de bancas
“privilegiadas” com mostradores que davam para a linha. A linha do
trem era uma rua ativa do mercado e sobre os trilhos havia bancas de
vendedores de limões, flores, alfaces, pequenas gaiolas com porquinho-
da-índia, pequenas caixas de papelão repletas de frangos vivos. Dezenas
de restaurantes se encontravam no labirinto coberto. Ali, milhares de
pessoas almoçavam ou tomavam o café da manhã. Por volta do meio-
dia, grunhindo de alegria, alguns ratos se atreviam a sair; alguns cães
vira-lata os perseguiam, latindo e fazendo alvoroço. Nunca caçavam de
verdade; agitando o rabo, deitados, os cachorros cheiravam os buracos,
as gretas do chão. Os compradores trombavam pelos corredores; os
donos dos restaurantes torciam os pescoços das galinhas, girando-as
no ar, enquanto conversavam. A parte coberta do mercado cheirava a
excremento, a frutas, a suor, a ervas medicinais. Pelicanos tristes sobre-
voavam o ar, passarinhando soltos, ou olhavam, com o bico suspenso,
dos telhados baixos das casas e ramadas. De vez em quando alguma
mulher jogava para eles tripas de peixe ou restos de porco-do-mar. Se
desciam, recebiam chutes, eram perseguidos com paus e pedras; os ca-
chorros se banqueteavam com eles.
Quando Moncada chegou à grande cerca da estação, o mercado
já raleava. Um apito de locomotiva chegou do final da rua. Os donos
dos postos da linha começaram a retirar suas bolsas e cestas do meio

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Huachimanes: guardas.

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dos trilhos, as gaiolas de porcos e as caixas de papelão; os vendedores
de fruta se retiraram, deixando dois limões, laranjas, pacaes, pepinos…
sobre os dormentes. A locomotiva entrou no mercado apitando insis-
tentemente; o maquinista, com meio corpo para fora, dirigia o trem, de-
vagar; arrastava vários vagões velhíssimos, descoloridos e carcomidos.
O último vagão triturou uma gaiola de porquinhos-da-índia e um galo
de pernas peladas, vermelhíssimas, que apareceu correndo da sombra
dos restaurantes. Moncada colocou sua cruz sobre o resto de sangue,
tábuas e penas que ficou colado nos dormentes e na superfície dos tri-
lhos. O corpo do galo, já cansado, foi arrastado junto com a gaiola dos
porquinhos.
“Ah! Ah! A vida, a morte, a peste da farinha de peixe, do padre
norte-americano gentil, ilustre senhor que não pronuncia o caste-
lhano como é devido. O ianque cura, sacerdócio, escutem, escutem,
pois não vai conseguir nunca nunquinha jamais falar como é devido
o castelhano, o espanhol que usamos. Isso não importa! Não vêm aqui
impor. Aqui eles pregam, se arriscam, ilustres senhores, entre as pes-
tes, como Moncada, imitando Moncada que pregaria também com
obras, se tivesse monis. O galo morreu, os porquinhos morreram; a
locomotiva mata sem saber, amigos. Assim igual os ianques de Talara
Tumbes Limited, Cerro de Pasco Corporation. Não; não são respon-
sáveis. Oh!, ah, padre Cardozo, padre Tadeo, bons amigos, venham
ressuscitar este galo…!”
Agachou-se, ficou de joelhos, pegou a mistura de sangue, carne,
tábuas e penas. Um grupo maior que o do mercado Modelo, formando
um cordão alongado na direção dos trilhos, ouvia, fazendo uma roda
em torno dele.
“Eu, louco, negro, pescador pescado, vou me alimentar desse san-
gue de galo da paixão. À saúde de todos, ao pulmão de todos! Eu sou
a saúde, eu sou a vida da vida, sarcófago, tuberculose, Braschi! Para
ajuda dos padres norte-americanos que andam de jipe levando mortos
cadáveres ao hospital da Caleta. Obrigado, padres norte-americanos,
sem batina urubu, com calça limpa. Abaixo os estrangeiros! Delicioso
sangue de galo corredor!”

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Começou a mastigar os pedaços ensanguentados, de pé, junto
da cruz.
– Negro porco! – disse uma negrinha.
– Cristão reventado! – falou um homem pequeno de omoplatas
salientes, olhos miúdos e pestanas bastante grossas. Moncada pareceu
reconhecê-lo e fez um sinal com a cabeça na direção de onde partiu a
voz. O homenzinho inclinou o corpo para o negro. Estava no cordão
de gente que se havia formado frente ao louco. Moncada viu que as pes-
tanas faziam sombra no fogo mortal que partia dos olhos do pequeno
homem, seu compadre dom Esteban de la Cruz. Porém, acabou de mas-
tigar, com expressão neutra, os pedaços ensanguentados que tinha na
boca; engoliu e continuou falando.
“Também pela saúde de Eberto Solano y de Teódulo Yauri. Quem
vencerá no Sindicato dos Pescadores e Anexos de Chimbote? Batalha,
vingança, oceano Pacífico, máfias! O único que sabe isso é o pobrezinho
negrinho que está guardado no saquinho da cruz. É claro que sou um
negro porco! Eu farejo o solo, a areia barrenta, morna que fica no mar
de 27 de Outubro, fábricas. Farejo o ar fedido, o céu limpo também.
Um nariz, outro nariz. A peste é sempre mais forte. Bendigo a vocês na
Linha nublado, feira, do trem de ferro Huallanca-Chimbote, mata galo
pelao! Eu era galo cansao amigos. Kikiriki!! Já resuscitei. Ja, ja, ja! Outro
pouquinho mais e adeus!”
Ele levantou dos trilhos outro pedaço mais de carne mesclada com
terra e pelos de porco-da-índia. “Eu comungo com você – disse –, Mon-
senhor Ilustríssima Bispo ianque de Chimbote, senhor ilustre, coração.
Porco sangue inocente, negro e branco.” E em posição militar, parado
junto à cruz, mastigou o bocado e engoliu rápido. Depois, levantou a
cruz e traçou no ar, com o madeiro e a sacola preta, uma cruz diante
de seu corpo e na direção do mercado que se esvaziava. Colocou o ma-
deiro no ombro, respirando forte pelas fossas nasais em ângulo, muito
abertas, e saiu caminhando trilho acima. Ninguém o seguiu.
– Louco santo, negro, melhor que Frei Martín, que João XXIII!
Adeus! – disse um ervateiro, vendedor de plantas medicinais, evangé-
lico, que tinha uma banca no final da parte coberta.

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– Esse merda é só um louco de merda – disse um vendedor de bor-
regos, olhando fixamente o evangélico. O ervateiro evangélico deu-lhe
as costas, um pouco assustado.
– O negro é qualquer coisa, às vezes o evangélico também, qual-
quer coisa – comentou despreocupadamente uma senhora que vendia
torresmo em um triciclo. Levava um grande chapéu de palha. Moscas
vorazes sobrevoavam em volta de suas pernas, cheias de nós negros das
veias varicosas.
Ninguém disse mais nada. Os que formavam o cordão de especta-
dores do negro se dispersaram. Porém, logo após as palavras de senhora
houve um momento de silêncio profundo e foi possível ouvir, ao longe,
o tristíssimo violão do cego Antolín Crispín. Três homens que esta-
vam no cordão rumaram na direção do som do violão, sem formar um
grupo. “Estão famintos – pensou a mulher das varizes. Estavam parados
desde o amanhecer.”
Moncada carregou seu madeiro até uma desembocadura que dava
para a avenida Gálvez, onde um negro magro, muito velho, tinha uma
banca “elegante” de venda de limões, com mesa e cadeira. O negro esguio
olhou para Moncada detidamente e com um sorrisso, enquanto se aproxi-
mava. “Um limão para seu filho que está preso na sacola, negro”, disse. Le-
vantou-se de seu banquinho e lhe alcançou um limão grande e reluzente.
– Pra sede do areal – disse Moncada, pegando o limão.
O negro magro deixou de sorrir.
Moncada tornou a entrar na avenida Gálvez, na altura de seu úl-
timo quarteirão.
Das lojas de venda de camas e colchões, de peças para carros e ca-
minhões; do portão do moinho de farinha para os serranos, das ofici-
nas de recauchutagem de pneus, viram quando passava como se fosse
um morador mais da cidade. Porém, quando atravessou a ponte que
cruzava sobre a linha o trem de ferro e tomou a direção do bairro El
Progresso, uma mulher saiu da porta de sua casa e disse:
– Ele também, o negrinho pobre!
O cemitério tinha sido murado e foi construído um grande pór-
tico! Moncada teria que passar em frente ao cemitério, pelo terreno ao

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lado da rodovia e dos bairros altos, para chegar a Esperanza Baja. Dois
ângulos retos de quadras de nichos branquíssimos, recém-construídos
sobre o areal aberto, quatrocentos metros pelo lado do caminho e tre-
zentos desafiando uma duna formavam o cemitério; um quadrilátero
inconcluso. Moncada já tinha visto havia um mês, ou dois ou seis, ou
mais. As portas dos nichos davam para a duna, uma duna não muito
abrupta. Da rodovia era possível ver claramente as filas de marcos dos
nichos vazios, no lado das quadras que davam para o monte. O setor
dos pobres ocupava as faldas e o alto da duna. Ali não havia nichos,
apenas cruzes fincadas em desordem, com um letreiro, ou simples ini-
ciais, e uma data num madeiro horizontal. Não eram de madeira escura
as cruzes, mas, por causa da areia branquíssima, penteada sempre pelo
vento, aquela madeira ressecada parecia escura. As cruzes em desordem
sombreavam a duna, frente aos quarteirões retos que se protegiam em
ângulo. Ramos de flores murchavam nos nichos e umas arvorezinhas
de cipreste, recém-plantadas, em fila, balançavam suavemente próximo
às quadras do cemitério.
Moncada caminhava pela grande área de terra ao lado da rodovia;
cruzava o pedaço de deserto ventoso, entre o bairro Progreso e o cemitério.
Ali deu uma mordida no limão e o jogou na areia. Quando levantou a
cabeça, não viu as quadras de nichos, mas o arco imenso do pórtico.
Uma cruz de pedra reluzente estava de guarda junto da porta arqueada.
Cruz e arco eram parecidos um pouco com os navios grandes, cada vez
maiores, que de repente surgiam na neblina, na baía de Chimbote; entra-
vam navegando lentamente e era possível ver as poucas luzes de suas co-
bertas brancas, mais altas que este portal repentino do cemitério. Através
do arco entrava muita gente no panteão, alguns vestidos de negro.
O louco seguiu os visitantes do cemitério. Entrou no local. Viu que
as pessoas desciam com cruzes do alto da duna. Arrancavam as cruzes
da areia, fazendo força e curvando a espinha dorsal, para logo descer
com elas a duna, enterrando os pés na areia. Moncada era o único que
levava uma cruz no sentido contrário, para dentro do cemitério, e uma
cruz grande, com um pedaço de rede suja e um saco preto pendurado
num dos braços.

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A Municipalidade, a Beneficência, a polícia, os vigários, todos ti-
nham ordenado e persuadido os pobres das barriadas a trasladar seu ce-
mitério até uma encosta, que havia do outro lado do morro de San Pedro.
O lixão do porto estava próximo dessa encosta, mas também por perto
passavam a Rodovia Pan-americana e o caminho asfaltado, que subia até o
alto do morro onde acabavam de instalar a torre retransmissora de televi-
são. Nesse terreno da encosta, vizinho da barriada de San Pedro, ao norte
do centro da cidade e das vinte e sete barriadas, mas perto da rodovia
principal e não muito ao leste, como o cemitério novo, seriam enterrados
os pobres, gratuitamente, sem gastos paroquiais, municipais nem com
a Beneficência. As associações de moradores das barriadas tinham sido
notificadas e solicitadas. Ninguém ordenou levar os mortos já sepultados
no alto do cemitério recém-murado, agora solene com o arco e a cruz
de mármore. A parte alta ainda não tinha sido cercada. Em cinco, dez
anos, essas longas e altas quadras de nichos brancos se estenderam; foram
construídas sobre o velho cemitério que era plano, em meio a lagartixas
que deixavam suas marcas na areia quando subiam e desciam a duna, ou
corujas mudas, cor de areia, que passarinhavam entre as cruzes, como
nos cemitérios dos portos menores do Peru, que ficam todos no deserto.
Porém, mesmo assim murado e com seu grande portal, esquadri-
nhado diariamente pela fumaça das fábricas e pela poeira, o novo cemi-
tério ainda continuava isolado por franjas de deserto, como se fossem
expressamente respeitadas pelos líderes das barriadas e pelos chefes das
invasões de terras, homens que tinham conquistado, juntamente com
os serranos recém-chegados ao porto, tanto aguadas fedorentas e em-
pestadas de pernilongos, quanto dunas e terras semeadas, e claro, mais
facilmente, os desertos, os mais próximos da área urbana, como estes
que rodeavam o cemitério. Esses espaços desérticos deixavam o cemi-
tério em silêncio, agora encerrado, e ainda manchados com as cruzes
que os pobres estavam arrancando nesse momento no alto do morro.
Os pobres continuavam arrancando as cruzes de seus mortos,
quando Moncada ingressou pelo arco e continuou em frente.
– O negro Moncada, o louco – disse alguém que fazia parte de um
grupinho que esperava, ou parecia esperar perto do pórtico.

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As sombras se projetavam para o lado da cordilheira. Os pobres não
deixaram uma única cruz no alto da duna. As pessoas das barriadas ali
reunidas iam retirando, primeiro, uma cruz, cada uma delas, sendo que
quase ninguém tirou mais de uma cruz. Eram finas e curtas, com o ma-
deiro horizontal plano. Essas cruzes foram colocadas em fila, com as ins-
crições para cima, na direção do arco novo do portal. Depois, arrancaram
todas as cruzes, começando do lado leste e do oeste, marcadas pelas cor-
dilheiras e pelas ilhas da baía. Somente as que estavam muito inclinadas
sobre a areia foram deixadas para trás, como mortas ou abandonadas. Um
homem jovem, que levava um cinturão grosso com uma fivela vistosa,
arrancou cinco cruzes, ao passo que dois sujeitos que o acompanhavam
arrancaram sete cada um. Com as cruzes nos ombros, aproximaram-se
da fila de madeiros que tinham as inscrições com seus nomes na direção
do arco, levantaram aqueles sobre suas cabeças e os colocaram sobre o
outro ombro. E cada penitente desfilava, morro abaixo, com cruzes sobre
os dois ombros. Formaram assim uma comitiva muito grande que descia
levantando poeira, uma massa de gente que avançava sem falar.
A procissão se deteve por um instante frente ao mausoléu de um an-
tigo comerciante japonês, que tinha sido importante no porto quando
era porto algodoeiro. O mausoléu era tão novo quanto o arco e estava
frente a ele, reluzindo. Moncada alcançou ali a multidão, mas de frente
para a duna; deu meia-volta, militarmente, desceu sua cruz como se
fosse uma escopeta, apontou para o mausoléu:
– Japonês sozinho! – disse. Forasteiro. Mato você, mato todos!
Já iam arrastá-lo, mas ele outra vez, deu meia-volta e entrou rapi-
damente em forma, entre as pessoas.
– Pobrezinho! Vai ver perdeu, pois, a cruz do seu morto e trouxe
essa grande, para sempre – disse uma mulher.
Moncada ficou tranquilo, com a cabeça abaixada, o suor descendo
pelo pescoço, entre os penitentes. Somente ele e o criador de porcos
Bazalar levavam uma única cruz.
Do pequeno grupo de homens que se encontrava frente ao arco
saiu um padre, vestido de civil, com a gola branca e dura. Levantou um
megafone a pilha, como o dos vendedores ambulantes mais poderosos.

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“Irmãos, irmãos, companheiros…” – falou. “Não sendo, não sendo
disposição que vocês levem cruzes nem cadáveres deste cemitério a
outro cemitério. Somente novos mortos enterrar em outro cemitério,
outro lado San Pedro. Vocês decidir, ilustríssimo bispo Monsenhor re-
peitar. Eu dar nome ilustríssimo bispo, bênção. Qualquer terra santo,
santo, terra de Deus para recepção da alma e corpo Cristo. Amém.”
Ergueu as mãos para dar a bênção. Moncada adiantou uns passos,
saiu do meio das pessoas caminhando como soldado; deixou sua cruz,
na qual o trapo de rede refletia alguma coisa; levantou o peito, como
quando se vestia de grã-fino elegante e apontou com o madeiro para
o padre.
– Gringo! – disse. Monsenhor, grande celestial. Coveiro!
E saiu na direção do portal, a passo rápido, com a cruz ao ombro.
– Louco será de tristeza – disse alguém.
As pessoas começaram a caminhar atrás de Moncada, sem voltar
os olhos para o padre norte-americano e sua comitiva. Somente Gre-
gorio Bazalar, um criador de porcos de San Pedro, que encabeçava a
procissão, fez um gesto de adeus ambíguo com o braço.
Era tarde já. Tinham que andar muito. Era necessário cruzar a ro-
dovia e a pampa pesada, entre El Progreso e a imensa duna San Pedro.
Teriam que atravessar por ali a rodovia, na direção das barriadas altas
e subir por La Esperanza, a duna grande. Era um caminho pesado, mas
tinham decidido fazê-lo a pé e por esta rota, porque se fossem utilizar
a rodovia teriam que entrar na cidade e dar uma volta maior, o que
ninguém propôs. “A pé, enfrente, subindo e descendo San Pedro, em
procissão formal, fúnebre triste”, propôs o criador de porcos Bazalar em
uma assembleia e ninguém se opôs.
O trânsito foi interrompido na rodovia. Os motoristas e passageiros
dos ônibus e caminhões tiraram seus chapéus.
– Aí vão os presidentes das Associações das Barriadas – disse um
motorista. Isso, e também as invasões, está organizado. Agora não é
contra as autoridades, nem patrões, nem comunidades de indígenas de
Chimbote. Ninguém sabe contra o que. Ali vão, na frente, os presiden-
tes das barriadas.

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– Não – disse uma passageira. De nós, La Esperanza, ninguém vai;
bairro já somos. Ali só os mais pobres serranos estão indo.
– Quem disse que tem presidentes das barriadas? Quem disse? Eu
sou Mancilla, presidente do mesmo barriada San Pedro. Tem delegado e
só isso, e esse criador de porco Bazalar que, agora com os mortos, posa
de dirigente falso, se ajeitando.
– Tem presidentes – insistiu o motorista, enquanto a procissão
continuava atravessando a rodovia.
– Não, meu amigo – respondeu Mansilla. Para esta missão foram
nomeados delegados entre os mais serranos das barriadas; todos estes
que aparecem são como delegados. O criador de porco organizou esta
sublevação pacífica. Ali vai, de esperto, carregando só uma cruz, como
importante dirigente, de mortos.
– De mortos que param a rodovia? – perguntou o motorista.
– Escuta uma coisa. Para os mais serranos, quer dizer, os ín-
dios, vale a cruz que marca o lugar onde estão os mortos, certo!? Nós,
acriollados, já trasladamos os restos dos ossos dos parentes para os ni-
chos das quadras. Assim é. O criador de porco sabe de mais; o morto
nada valia em Chimbote, farinha de peixe, porto; agora vale. Isso aí!
“Chimbote! Chimbote! Chimbote!”, começou a gritar em tom de
proclama, o negro Moncada, já bem longe.
– Esse é o presidente dos presidentes – disse a mulher de La Es-
peranza Baja.
– De vosmicê será presidente, vosmicê mais serrana – disse outra
passageira à primeira do mesmo ônibus.
– Merdas! – respondeu a senhora de La Esperanza.
O homem que estava no meio das duas, e dizia ser presidente da
barriada San Pedro, apertou-as contra o assento, abrindo os braços.
– Respeito pela cruz – disse. Serrano é serrano, não é pior que
ninguém.
A multidão acabou de cruzar em silêncio o caminho de trilha e
cascalho.
– Agora que os pobres si’foram devem pavimentar o caminho do
cemitério – disse um motorista.

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– Talvez, até o portal. O resto é caminho pras barriadas.
As cruzes subiram a imensa duna, na direção de San Pedro. Che-
garam à “rodovia do contorno” da barriada, que os moradores tinham
construído com cascalho e lixo. Desfilaram dando a volta no morro. De
quase todas as barriadas do porto, dos molhes e lanchonetes era possível
ver o desfile como um cordão negro, uma imensa lombriga negra. Eles
também, como peregrinos, viam a poeira das barriadas, o asfalto novo,
recém-colocado, do centro; todos os molhes das fábricas de farinha de
peixe, a fumaça rosa, triste, da Siderúrgica. Bazalar ia na frente, carre-
gando sua cruz “fúnebre”, que neste mesmo dia havia fincado bem no
meio da duna do cemitério, e media a extensão das barriadas, que tinha
visto aparecer, crescer a ferro e fogo, enquanto ele, incrédulo, invejoso,
cholo ainda aturdido, ia e voltava do porto a Lima, perdendo tempo.
Examinou detidamente o poço e a bomba que alimentavam de água as
barriadas, assim como as piaras de burro que subiam do poço à duna;
foi observando tudo sem voltar a cabeça ostensivamente a nenhum
lado, num estado de procissão “fúnebre”.
Os meninos da barriada correram das ruas, morro abaixo, na di-
reção da rodovia. Foram seguidos por seus cachorros, mais magros e
barulhentos que os donos.
A luz das ilhas de guano da baía já estava se tornando dourada
nessa hora e chegava, intensa, nas encostas e no morro de San Pedro.
Respiravam essa luz, intensamente, as pessoas que tinham levantado
suas casas no menosprezado morro de areia que dominava todos os
horizontes de Chimbote.
O padre norte-americano foi do cemitério ao bispado. Conversava
em inglês com o bispo norte-americano de Chimbote.
– Monsenhor, são mansos e bravos. Não se sabe…
– Já sabia, filho. É preciso consultar o padre Cardozo.
Atravessaram a duna e a barriada entre entediados e nervosos, os
carregadores de cruzes. Nem um policial. Tiveram que costear quase
toda a duna San Pedro, onde os antigos yungas construíram o oratório,
agora pouco conhecido, maior e principal da areia. Uma cruz com su-
dário flameja na destroçada parte superior das ruínas. Ali, no sudário,

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poeira pura, dizem que se retrata em janeiro-fevereiro o próximo e cau-
daloso rio Santa.
Mais cachorros, mais meninos e mulheres do que homens mar-
geavam a rodovia do contorno, enquanto a procissão passava. A fila
de curiosos estava parada sobre a areia, rua acima, de costas para as
primeiras casas da barriada. Não se aproximavam muito nem as mu-
lheres nem os meninos. Latiram alguns cachorros, enquanto pedaços
de jornais e trapos eram levantados pelo vento sobre as cabeças dos
peregrinantes e suas cruzes; os cachorros, sentados, salivando, olha-
vam. Os meninos também olhavam, sozinhos, sem agarrar nas saias de
ninguém, não importando qual fosse sua idade. Contemplavam a fila
de carregadores de cruzes, guardando silêncio, apesar de muitíssimos
homens e mulheres terem colocado nos ombros até dez cruzes. Não
se aproximaram, nem se manifestaram. Porém, três mulheres estavam
como esperando no final da rua. “Deus, água, milagre, santa estrela ma-
tutina; peixe que sai como flecha da pedra verde, da cabeleira ondulante
que brinca na corrente, grama do rio; sombra da libélula que firma seus
grandes olhos na água dos remansos; salvajina pendurada nas árvores
no fundo do ar; terra sangrenta que torna pesada a corrente do rio em
janeiro-fevereiro, que salta sobre pedras e árvores e deixa seu pó para
sempre na vida daquele que bebe sem saber o sabendo…” Rezava em
quéchua a prostituta prenha, Paula Melchora, “Cruzes santas, em cinco,
em quatro, que morra o Tinoco, que se queime, que corra atrás de vocês,
que chegue onde vocês vão ficar, tristes…”
Estavam um pouco separadas as três mulheres, não muito, ape-
sar de um pouco longe umas das outras, mas escutavam as palavras.
“Amém, sulpay, amém, sulpay”, disse a outra que sabia quéchua. Orfã,
a senhorita rameira de Cajamarca deu um passo atrás e em seguida
foi embora. “Cholas – disse. Nem mais com elas. Deu errado, nojo!
meu castigo”. Apertou o passo e se afastou da procissão. “Que nojo!”,
repetiu enquanto subia pela areia pesada da rua. “Nojo, nojo, ai! como
não terá nunca de nunca. Obrigado, cruzes santas, errantes, como eu,
expulsas. Na sua luz vi o nojo da minha vida, de como ando pisando
na minha vida.” Endereçou o corpo, a sombra de seu corpo começou

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também a cortar de outro modo o ar, em dois. Decidiu afogar seu filho,
qualquer noite ou dia desses, e tomar a estricnina que guardava numa
caixinha desde que fugiu, escondida e desonrada, da aristocrática ci-
dade de Cajamarca.
Carregando suas cruzes, as pessoas entraram na parte desabitada
do areal. A duna se alinhava, muito acima, com os Andes de pedra e,
depois, com a neve. Enrubesciam já, sombreando, as nuvens do lado do
mar. Começava o crepúsculo.
O novo cemitério de pobres não estava bem traçado. No entanto,
o guardião-sacristão do cemitério de Chimbote e o delegado de San
Pedro conheciam o lugar escolhido pela Prefeitura.
– É aqui, daqui começa; não tem fim – disse o guardião.
“Concidadãos que carregam as cruzes de vossos mortos – falou
dom Gregorio Bazalar da barriada San Pedro, delegado. Concidadãos:
aqui chegamos, em nome do Pai, do Filho, do Monicipio e do Subpre-
feito, pois. Para enterrar as cruzes que trazendo viemos, fúnebres! Em
qualquer cantinho. Aqui chegamos na encosta. Aqui ninguém vai en-
contrar ninguém para levar até o vale de Josafat. De sempre por aqui
ficamos. Ninguém se enteressou, vale dizer, que cada um conhece onde,
o ponto onde, para o eterno, resta o morto pai, irmão, irmã. O que tem
no coração é o campo onde tranquilo está o morto, acompanhando sua
comunidade povo. Assim é, senhor guardião, representante do senhor
Bispo, Governos. Não querem a gente ficando no cemitério moderno,
americano? Graças por adiantado; para nós essa encosta da montanha
está bem. A murada desmancha; a flor, feio queima no sol. O montanha
não se acaba. Aqui ninguém chora, vale dizer. Amém.”
Tirou de dentro de sua camisa uma flor grandona de magnólia;
amarrou a flor na ponta da cruz e levantou o madeiro. A flor iluminou
um pedaço da encosta. E depois de fincada a cruz na duna, como o céu
estava se avermelhando, a magnólia continuou, com sua auréola, pro-
jetando na areia as sombras dos enterradores de cruzes. Assim pareceu
a dom Gregorio Bazalar, de San Pedro, conhecido criador de porcos,
no momento em que, de regresso à barriada, passou entre vários que
cravavam suas cruzes na encosta.

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Moncada, que tinha seguido humildemente Bazalar em toda a pro-
cissão, jogou sua pouco fúnebre cruz no solo, tirou o negrinho de pano
do saco preto e o enterrou com um pouco de areia. Fez uma cruz com
palitos de fósforos, deixou-a firme com umas pedrinhas sobre a terra
remexida e saiu correndo morro abaixo, desenfreadamente, sem, no en-
tanto, cair na já mansa descida. O guardião-sacristão do cemitério grande
levantou do chão a cruz de Moncada, que tinha uma madeira pesada na
base; bendisse com ela a encosta que já se encontrava mosqueada de cruzes;
disse umas frases em latim e se dirigiu para a barriada de San Pedro.
– Escuta – disse uma mulher que estava sentada junto a outra, bem
no lugar onde começava a “rodovia do contorno” da barriada. Ninguém
ia mesmo visitar esses cruzes qui’levaram. Melhor fica tudo na encosta.
Esse parede grande, estrangeiro, com arco qui’se alevantou no cemitério
pra tirar as cruzes qui’tinha na duna, do governo é? dizem?
– Quem é você? que é serrana? – perguntou o guardião-sacristão.
– Eu, pois! O negro despencou morro abaixo deixando sua cruz
qui’ocê tá levando. Grande é. Pra lenhazinha, é?
– Serrana animal, em Chimbote não faz falta lenha. Ninguém tirou
as cruzes. Em procissão santa…
– Agurinha mesmo foi tirado do panteão, cemento. O cruz gran-
daço foi levantao pra lenha, pois. De ninguém será.
– Vai à merda! – respondeu o guardião-sacristão e continuou es-
trada adiante, com sua cruz.
– Achachau, pesteado! Pesteado de cruz falso! – gritou uma das
serranas.
As duas mulheres continuaram olhando as pessoas que fincavam
suas cruzes no novo cemitério.
Somente um homem permaneceu na encosta até a noite, junto a
uma cruz grossa que tinha fincado perto da magnólia. Os outros foram
para a cidade em grupos ou sozinhos. Quase todos desceram para a Ro-
dovia Pan-americana, não como o louco Moncada, através do campo,
mas por uma trilha recém-feita pelas marcas de um trator e com pedras
dos lados. Os moradores de San Pedro e La Esperanza Baja e Alta vol-
taram a subir a duna.

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O sacristão-guardião foi novamente interrompido por uma mulher
pequena, na desembocadura do Passeio Huaraz, de La Esperanza Baja.
– Senhorito – disse – entra descansar na casa, com seu cruz, pois,
Deuszinho.
O sacristão olhou para ela detidamente.
– Bem, paramos um pouco. Tem alguma coisa de beber?
– Sim, pois sim. Tem chicha também, gostosinha.
– Não tomo chicha senhora! Não sou serrano.
– Ai, cavalero, disculpa, pois sim!
A mulher se inclinou; virou as costas e saiu.
Era a irmã de Asto. O sacristão-guardião viu a mulher sair um pouco
preocupado. Com o tom de sua voz e a luz de seus olhos, a pequena mu-
lher despertou nele um repentino calor na boca; não entendeu bem
isso e respondeu, ofendendo-a: “Não sou serrano.” Então, meio agitado,
o guardião se dirigiu a uma pequena barraca próxima, na mesma rua
Huaraz; pediu uma Coca-Cola.
– Tem gelada – disse secamente o dono da barraca.
– Sim, sim, Esperanza Baja progride. Tem até luz elétrica já; de
motor, não é? Me dá a Coca bem gelada.
– Sim, senhor; progrede.
– Essa cruz é de Moncada, amigo – disse o dono do bar, enquanto
destampava a garrafa.
– Queima ela, moço! – disse um pequeno homem que estava sen-
tado sobre um saco de arroz. Eu, pois, tenho um triciclo. O negro Mon-
cada, dizem que fazia pregar feio essa cruz, em de noite.
O sacristão-guardião deu de ombros. Bebeu, pagou e já não co-
locou a cruz no ombro; levou-a debaixo do braço. “Agura sim”, disse o
do triciclo.
– Ninguém é ninguém aqui – exclamou o dono do bar.
Um pequeno apartamento foi construído para o guardião-sacristão,
próximo do elegante escritório do administrador do cemitério; foi cons-
truído no próprio cemitério, na direção do areal de fora, frente a uma
esplanada assentada com entulho. Um menino aguadeiro ia regar as
plantas recém-nascidas em torno da esplanada. Chegava ao anoitecer,

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montado em um “tanque”, pintado de vermelho, que era puxado por
um grande burro negro. O “tanque” era feito de dois cilindros de gaso-
lina toscamente soldados; um chassi engraçado de madeira sobre duas
rodas com pneus sustentava o “tanque”. Quando o guardião chegou à
Esplanada, o menino acabava de jogar a última lata de água sobre as
plantas; subiu na carroça e, de pé, puxou as rédeas do burro; fez com
que desse uma volta rápida. O burro levantou a cabeça com alegria e
começou a trotar. O menino cumprimentou de passagem o guardião:
“Muita cruz para levar no sovaco, patrão”, disse. O guardião respirou o
ar das plantas recém-regadas e entrou em casa.
– E essa cruz? – perguntou sua mulher.
– Vou cravar no lugar mais alto da duna do cemitério. Esta cruz
sofreu; tem que permanecer na duna. Não é de ninguém.
– Será de você, homem herege. Desse modo, assim se traz uma
cruz? No sovaco?
A irmã de Asto chegou em casa e encontrou Tinoco no cômodo
maior, a sala-venda. Ele estava sentado em uma das cadeiras novas de
salgueiro e totora. O tubo de luz neon, obliquamente pendurado sobre
a porta que dava para a rua, iluminava toda a sala, ressaltando o grosso
tecido que servia de cortina da porta de entrada para o quintal.
– Filadaputa, faz tempo que ocê deixou o “curral”. Vou cortar
seu irmão.
Tinoco se levantou. O correão largo, de borracha e fivela brilhante,
as calças apertadas, a camisa vermelha, os cabelos lustrosos; aproximou-se
de Florinda, irmã de Asto. Já ia colocar as mãos em seus ombros.
– Você é sicário de Braschi, né? – disse ela. Me’rmão sabe; vai te
matar, com Zavala, com Maxe, com…
– Quem mais?
– Com o diabo mais. Vai queimar seu lani. Isso sei, vai sim!
Tinoco tirou do bolso um canivete embainhado.
– Caraia! Chaveta! – Florinda pronunciou com tristeza as palavras.
Tenho medo não, assusta a Gerânia, a Felicia; a Paula, que tá lá em cima,
em San Pedro, prenhada…

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Tinoco tirou o canivete da bainha. Fingia afiar a pequena faca na
palma da mão.
– De traidor safado sua faca… Assusta, ninguém.
– Vou montar n’ocê – abriu a boca o cholo. Vim montar n’ocê.
– Vai lá pra cima, pra San Pedro; lá vai montar, cinza vai comer…
Quando Florinda estava falando, apareceu na porta que dava para
o quintal o jovem cego, magro, de óculos escuros, Crispín Antolín.
– Tinocucha! – disse. Escuta só – a voz saía não só de sua boca,
mas das duas lentes negras, bem ajustadas dos óculos – escuta, você le-
vou cinco cruzes para a encosta. Em vez de bater com as cruzinhas nos
tristes, você arrumou, mansinho, na areia, um por um, cinco cruz. Mas
falta ainda pra ser maldito. Na casa de Paula você trocou de roupa co-
mum por roupa de sacana, dedo-duro, homilde de Braschi. Seu saco
não tem dinamite, água de piolho tem, escuta…
Crispín se aproximou mais da grade da porta; abriu bem a cortina.
Continuou falando:
– Eu desci montes nevados, pampas, barrancos, sem ninguém me im-
pedir, sem ninguém me fazer andar. Você é traidor, veado, água-sangue…
– Agora você é so marido de Florinda…
– Agora você vai ir onde o “Characato” Pretel – interrompeu o
cego. O que vai dizer pro seu chefe?
– Vou não Crispín, agora vou receber no hotel “Florida” prostituta
elegante que vem de Lima. Não, pois, como a Florinda.
– Você não vai receber isso, Tinocucha. Ainda tá de pé, né? Mais
tarde vai joelhar como de frente o Bispo para receber, mais certo, na
cara, o escarro do “Characato”. Você afinou na encosta; não cumpriu
ordem da máfia. Não conseguiu perseguir os pobres, batendo nas ca-
beças deles, nos seus corpos, com as cruzes que carregava nos ombros;
não conseguiu armar confusão pras pessoas dizer em Chimbote: “Pes-
cador meliante, anticristo.” Nem conseguiu mandar nos ajudantes, não
é? Você fincou na verdade cruz sem dono, assustado…
– Desse mesmo jeitinho, velho! No escuro em que vive – Ti-
noco retrocedeu até a porta que dava para a rua. Água-sangue vou ser,

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piolho-escroto vou ser. Escuta… no escuro conhece o cego o que é.
Mesmo assim, algum dia… eu, veado sacana pra vosmicê, Crispín… Me-
lhor toca o violão, escuta. Aistá, na banca. Toca o violão, hein, Crispín,
pra alma do triste fodido água-sangue. Eu, oqollo2 negro na areia duna
pateia candela merda, sem olho; hein, Crispín, oi… me diz?
Parou de retroceder porque Antolín Crispín abaixou a grade que
separa a porta do quintal da sala-venda. Com o braço levantado, ca-
minhou na direção da cadeira. Sentado, começou a dedilhar as doze
cordas do violão. Duas primas, duas segundas de arame e mais uma de
aço para cada corda afinada. Tinoco escutava. Durou um bom tempo
aquele dedilhar; Antolín experimentava cada corda e cada encordo-
amento, fazia chorar cada uma delas. Depois tocou a introdução ao
huayno, acordes e melodias improvisadas que descreviam, para Flo-
rinda e para o cholo safado, as montanhas e as pequenas quedas d’água,
as aranhas que se dependuram das matas de espinhos até os remansos
dos rios grandes. Tinoco não percebeu a passagem do afinamento aos
acordes e melodias; ouviu, forte o rasgar das doze cordas e a música:

No silêncio, no silêncio
Me dizem que por outro você está chamando,
Que por outro está chamando
Passar bem, fazer o quê
Se esse é seu destino…

Tinoco girou o corpo e saiu caminhando para a porta. Abriu devagar,


saiu para a rua. Voltou a subir o areal de San Pedro. Deu várias voltas, na
escuridão, em torno do barraco de Paula Melchora. Circulou em volta
do barraco, olhando a cada instante na direção das ilhas brancas da
baía. Depois se retirou, descendo duna abaixo; rodeou o morro rumo
ao novo cemitério dos pobres. Com passadas largas se dirigiu para a

2
Oqollo: renacuajo [girino, larva de anfíbio anuro]. (N.T.)

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encosta. Ali no cemitério encontrou o homem que seguia sentado junto
da cruz de madeira redonda.
– De sua filha é, não é? – perguntou, lembrando de Crispín.
– Filha – disse o homem.
– E vosmicê não consegue chorar, não é?
Tinoco sentou ao lado do homem.
– Vosmicê não consegue chorar.
– Talvez, acho – disse o homem.
– Eu, irmão, vou chorar por vosmicê. Última vez, com violão, por
todas as cruzes da encosta vou gritar.
Apoiou a cabeça na beirada e começou a chorar, primeiro de men-
tira, e depois, em sério, triste, lembrando “sem que nem pra que” do pe-
licano “coxo” que, de noite, na hora em que os barcos saíam zarpando,
voava, devagar, da praia até a borda da bolichera “Moby Dick”, na qual
ele, Tinoco, aprendeu a pescar. Esse velho pelicano pousava “homilde”
na popa e se deixava levar ao alto-mar pela Moby Dick e ninguém,
nem Tinoco, o espantava. “Chora pra dentro”, dizia do pássaro o grande
capitão de barco, dom Hilario Caullama, oriundo das margens do lago
Titicaca, homem aimará, das alturas. “Chora pra dentro, o pobrezim.”
Tinoco começou a aumentar o tom do choro na encosta, enquanto o
homem, o dono da cruz, continuava sentado ali, junto.
Os cachorros da barriada San Pedro latiam, eram muitos. Eram qua-
tro, cinco para cada família; quanto mais pobres, mais cachorros. Latiam
por grupos, pior que nos vilarejos meio desertos da serra e das punas.
– Felizmente, aqui, não é forte o vento. Não vai tumbar nenhuma
cruz. Cale vosmicê já! – disse o homem a Tinoco. O cholo pescador não
escutou. Agitando um pouco os braços, estava procurando chorar mais
forte que o latido dos cachorros.
O homem se levantou para ir embora. Tomou a direção da bar-
riada. Tinoco seguiu atrás; procurou alcançá-lo, conversando. A areia
da duna pesava na encosta.
– Ao prostíbolo vamos, senhor – disse. Vamos tomar cervejinha
em bordel. Escuta amigo, escuta, aqui! Aistá minh’irmã, eu morrir tam-
bém. Agora decide. Grátis tudo, mulher, bebida, vamos!

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Tinoco ia falando atrás do homem que apertava o passo e não
deixava que o alcançasse.
– “Olho de pomba”, dizem de meu morrir no prostíbolo. Escuta
amigo! Estava prenha. Se queria fazer operação, escuta, pra abortar. Eu
disse: “Não, Gerania, deixa ele, talvez é gringuinho, louro. Os gringos
de barcos grandes…”
O homem mudou de direção; começou a correr duna abaixo, como
o negro Moncada.
Tinoco desembainhou o canivete. “Corto minhas bolas, Gerania?
Corto minhas bolas, Gerania?” – disse. “Pois não corto, grande puta
merda! Maxe, comonista, Padre Cardozo, comonista, vou te cortar; pior
que o veado Mudo vou te deixar.”
Subiu rápido para a barriada. Esperou na “rodovia do contorno”
um bom tempo, escondido. Logo depois tomou, sozinho, um auto-
móvel coletivo; desceu a duna e passou em frente ao arco e à murada
branca do cemitério.
– Milhares de milhares minhas bolas – disse em voz alta, dentro
do carro. Ei, motorista: anchovetas, máfias, rameira elegante que agora,
sexta-feira noite, estão chegando ao hotel “Florida”, um monte só para
mim, chefe. – Inclinou o corpo para diante – Vosmicê diz que pescador
é safado? Vosmicê, chofer?
– Eu não sei de nada, amigo – respondeu o motorista.
– Ah! Eu pescador com chaveta-bainha, elegante. Vai ver! Cinco
cruz plantei, de ninguém, na encosta. Olha a chaveta!
O motorista sentiu a ponta da lâmina na nuca. Acelerou.
– Pescador, sempre safado, escuta chefe. Sem beber, bêbado, no
mar, no prostíbolo, tudo, tudo, sempre confusão. Assustado, né? Nada
não, guardamos chaveta, pagamos farto a motorista obediente. Toca
pro hotel “Florida”.
O táxi entrou no pavimento de mão dupla da avenida do Hospital
Obreiro. Ali começava a iluminação elétrica e o “elegante” bairro dos
trabalhadores da Siderúrgica; o motorista parou o carro ao lado de um
poste, debaixo das luzes das lâmpadas.

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– Pra delegacia, chefe? – disse a seu passageiro. Você se embebe-
dou de ar, mais cedo. Vai descansar primeiro na delegacia, tranquilo, e
depois na prisão.
– Como seja, meu chefinho. Eu “máfia”. Toca pra delegacia. Ali você
fica, eu não pago. Me leva no hotel “Florida”, puta elegante, pago farto.
– Paga farto, chefe.
O motorista colocou o carro em movimento; acelerou. Tinoco,
com a chaveta embainhada em uma das mãos, viu as conhecidas casas,
bares e lojas da avenida Gálvez; mais à frente, o Grande Hotel Chimú.
– Cedo ainda, chefe. Puta elegante chega mais tarde. Me leva no
bar da viúva.
O motorista entrou na rua principal do porto, pegou depois uma
transversal e parou em uma esquina, na frente do bar da viúva.
– Escuta, amigo – disse Tinoco ao motorista. Eu, com a viúva não
posso. Muita grana! Não posso.
– Alto calado, navio, a viúva, amigo.
Desceu do táxi, Tinoco; entregou três notas de dez soles ao motorista.
– Tudo seu – disse.
“Bêbado de ar, de dinheiro anchoveta; Deus meu que criaturas!”,
o motorista se dirigiu a sua casa, em outra barriada distante, próspera,
na mesma em que o hotel “Florida” se destacava pelas trepadeiras esca-
lando sua fachada, como uma chuva de ouro.
Maxe, Zavala, Solano e Haro conversavam com Chaucato no molhe
das fábricas de farinha de peixe de La Caleta. Encontraram-se na casa
de Haro para fazer acordos.
A “Sansón I” estava ancorada no molhe de La Caleta, junto a uma
das bombas mais potentes. Um jorro de água disparado da coberta
vinda do bico de uma mangueira remexeu, na bodega, um poço prate-
ado de anchovetas. A luz das escamas começou a se tingir de sangue,
como se desfazendo. Um chateiro, vestido com uma grande calça im-
permeável amarela e de botas, olhava o redemoinho de sangue e con-
vulsão, que ele revolvia com a mangueira; olhava indiferente. Outro
chateiro aprendiz, jovem, serrano índio como todos chateiros, levantava

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na coberta, com um gancho de braço longo, as tábuas que separavam os
compartimentos do depósito. Mastigava coca com a boca cheia; olhava
de lado a queda desse material desconhecido, a cada tábua que levan-
tava; o brilho era abafado pelo sangue e pelo movimento, sendo que
tudo era tragado pela boca de um imenso tubo girador que, pendurado
de um guincho, aspirava. O tubo lançava a corrente de anchoveta des-
troçada nos tubos aéreos do molhe. Esses tubos cruzavam La Caleta
debaixo da terra, despejando a massa de peixe e água em uma cadeia
de grandes colheres, que levavam a carga até as caçambas pesadoras das
fábricas. Sobre as colheres negras pedaços de anchoveta reluziam na
direção da rua, e continuavam reluzindo ao cair em borbotões, como a
água de uma catarata, dentro dos tanques de mil toneladas.
A fumaça das fábricas, a gritaria dos vendedores de fruta, comidas,
sanduíches, amendoim, que tinham suas banquinhas nas calçadas das
ruas ou junto dos muros que rodeavam as fábricas; o fluxo dos ônibus
e triciclos que iam e vinham debaixo de redemoinhos de fumaça; o
desfile, em grupos ou sozinhos, de pescadores que saíam do molhe e
tomavam os ônibus, ou paravam para devorar anticuchos, sanduíches,
fruta; o latido dos cachorros nas barriadas, tudo isso se reunia, também
reluzindo, no violão de Crispín Antolín, que continuava cantando em
sua casa da Esperanza Baja, sentado na mesma cadeira. Cego magro,
jovem, ele tinha descido, certo, neves, cumes, precipícios, de seu po-
voado, atrás da Cordilheira dos Andes, até a linha do trem que passa
pelo endemoniado vale do rio Santa. Tocava nos mercados e perto do
molhe. Escutava a luz da ilha, o zumbido da traqueia humana de onde
sai a fala de qualquer ser humano, tal como é a vida. Desse modo, seu
violão dedilhava a corrente que vai das dunas e pântanos encrespados
de barriadas até o mar pestilento, da ecosonda à caldeira, da cruz de
Moncada ao bispo gringo, do cemitério à poeira da rodovia. Um círculo
apertado de gente sempre escutava Crispín; ficavam horas, muitas horas
alguns, esperando, perto do violão, sob o sol ou debaixo das nuvens.
Florinda não sabia cantar. Essa noite ela ouvia, de pé, seu compa-
nheiro que, escondido por um tapa-olho, comprimia o pensamento.
Asto chegou. Abriu a porta.

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– Centi oitenta tonelada anchovetas! – disse. Agorinha entregamos.
– O Tinoco teve aqui – disse Florinda. Maldizendo. Aqui veio. Foi
s’embora, de ouvir canto, de ouvir violão se foi.
Asto sentou numa cadeira.
– Conhece gringo chamado Maxwell? – perguntou a Crispín.
– Sei.
– Pra tocar charango vai vim, mais tarde.
– Maxwell?

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Segundo diário

Museu de Puruchuco, Lima, 13 de fevereiro, 1969

Desde que comecei a escrever em Santiago o balbuciante diário


que aparece como primeiro capítulo, um pouco estrambótico, deste
romance, estive mais duas vezes no Chile e cinco vezes em Chimbote.
Não consigo dar início agora ao capítulo III. Desse modo, passo, uma
vez mais, a divagar.
O último romance que escrevi, Todas las sangres, foi redigido em
duas etapas separadas, uma da outra por vários anos. Li este romance
de novo esses dias, sem intenção de buscar nada, simplesmente por
obrigação.
Como no ar dos abismos andinos, em cujo fundo corre água car-
regada de sangue, assim aparece, certamente, nesse romance, o sub-
metido mundo indo-hispânico. Ali está o homem, livre de amargura e
ceticismo, forjado pela antiguidade peruana, e também o que apareceu,
cresceu e encontrou o demônio nas planícies de Espanha. Uma parte
desses diabos se misturou nos montes e abismos do Peru, permane-
cendo, no entanto, separados seus germes e naturezas, dentro da mesma
entranha, pretendendo seguir seus destinos, arrancando as tripas uns
dos outros, na mesma corrente de Deus, excremento e luz. Essa luta
aparece no romance como vencida pelo yawar mayu, o rio sangrento,
como chamamos em quéchua à primeira cheia dos rios, que carregam a
mescla de tudo que se forma nos cumes e abismos pelos insetos, sol, lua
e música. Ali, naquele romance, vence o yawar mayu andino, e vence
bem. É minha própria vitória. Mas neste momento não consigo empal-
mar o capítulo III do novo romance, porque, apesar de estar excitado,
não entendo a fundo o que está acontecendo em Chimbote e no mundo.
Vou transcrever em seguida – farei isso à margem – as páginas que
escrevi em Chimbote, quando da mesma maneira que hoje, depois de
noites de completa insônia, oprimido com tanto ódio e ilusão, impo-
tência e vazio, decidi, outra vez, cometer o suicídio. Copio à margem,

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palavra por palavra, a ingenuidade não tão falaz com que escrevi então.
Claro que não devo ser tão puro como me descrevo nestas páginas.
Acredito ter, como todos os serranos encarniçados, um pouco do sapo,
da cotovia, da víbora e do killincho, o pequeno falcão que tanto amamos
na infância. Porém, neste momento de lembrança, sinto, tenho mais
saudade da pariona ou pariwana.
É um imenso pato das lagoas das alturas – quatro a cinco mil metros
–; vive acasalado ou em bando e, de repente, levantam voo em grupo,
voando mais alto que todas as montanhas e cruzando sobre o ar dos
vales profundos, como um sonho inalcançável da cor do sangue. (Suas
asas são vermelhas e brancas, dizem que delas se copiaram as cores
da bandeira peruana.) Iluminam do alto, sem consolo e nem alcance;
iluminam todos os olhos, até dos piolhos que eu tinha então quando
menino, aos milhares, na cabeça e nas dobras da roupa. Aqueles piolhos
se iluminavam, ficavam transparentes, mostrando suas pequenas tripas
com a luz das asas da pariwana, mais íntima e distante que a luz do sol.
Porque, quando as pariwanas passavam, o sol refletia suavemente as
manchas vermelhas no sem-fim do céu e aquela imagem convertia em
música toda nossa vida, os abismos de pedras e salvajina, as libélulas
olhudas que dançavam sobre os canais e as águas fétidas dos estanques.
Sim, nestas linhas que escrevi em Chimbote, depois de ter tomado
a decisão, novamente, de me eliminar, tudo é pureza e impotência. Eu
agonizava então, porque não conseguia escrever o segundo capítulo;
agora se trata do terceiro. O segundo capítulo foi escrito num arrebato,
sem conhecer bem Chimbote e nem conhecer, como se deve, nenhuma
outra cidade em nenhuma outra parte. Através simplesmente do temor
ou da alegria não se consegue conhecer bem as coisas.
Eu sempre vivi feliz, saudosista e assustado nas cidades. Andei uma
semana por Nova York, era como se estivesse em minha aldeia natal,
quando ela ardia nas festas, entre rojões e foguetes disparados dos cas-
telos de fogos de artifício feitos por dom Amilcar Astoyuro. O eucalipto
da praça parecia então querer cantar com voz de touro. Não me assus-
tou aquela cidade em que os edifícios eram parecidos aos castelos de
fogos, também de cem andares, que dom Amilcar fazia para as festas.

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Mas onde em Nova York se pode encontrar um lugar para descansar a
mão, como na cabeça de uma pomba ou nas patas rosadas de um gato,
que você criou desde que abriu os olhos pela primeira vez? Não existe!
Nunca tão nostálgico e tão feliz andei dia após dia, uma semana, sem
descanso, pela Quinta Avenida, na rua 42, no Greenwich Village, no
Harlem, na Broadway… Até que certa noite, em pleno êxtase, ousei
seguir uma linda negrinha e conversar com ela. “Conquistei” a moça
falando em quéchua, que num caso como aquele, me parecia e servia
melhor que o castelhano. A negrinha me entendeu, porque era uma
“mariposa noturna”. Fui atrás dela até seu bonito apartamento, encra-
vado num sombrio edifício de ferro. Puro medo e triunfo. No entanto,
foi a única coisa de mais íntima que trouxe dos Estados Unidos. Além
da lembrança da Golden Gate, que é imensa para descrever, do mesmo
modo como fazem e cantam as pontes de cal e canto do Peru e Espanha.
Assim é. Creio não conhecer bem as cidades e estou escrevendo
sobre uma delas. Mas que cidade? “Chimbote! Chimbote! Chimbote!”
Parece que se acabaram os assuntos que alimentam a infância,
quando é intensa e estende cruelmente até a velhice. Uma infância com
milênios nas costas, milênios de história de gente entremesclada até os
extremos da acidez e da dinamite. Agora se trata de outra coisa.
E creio que a tentativa de suicídio, primeiro, e depois o desejo de
suicídio foram tanto pelo esgotamento – estou lutando em um país de
falcões e sapos desde que tinha cinco anos de idade –, como pelo susto
perante o medo de ter que escrever sobre o que se conhece apenas através
do temor e da alegria adulta, e não do zumbido da mosca que a pessoa
percebe assim que o ouvido se forma, através da mordida familiar do
piolho no couro cabeludo e na barriga, e nos milhões de picadas na
raiz e nas ramas ainda ternas da sorte, dadas por homens e rios, grilos
e autoridades famintas.
Mas e tudo o que vivi nas cidades durante mais de trinta anos?
Até passei um ano na prisão comum (aranhas, arco-íris, sêmen) de um
país do terceiro mundo e escrevi um romance sobre esta prisão. Ali, eu
somente olhava, sofrendo com minha infância antiquada. E não co-
nheço a mulher da cidade, por exemplo. Tenho medo dela, como tive

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medo do remanso do rio Pampas, que cruzei a cavalo, quando menino,
no inverno, quando a água é transparente. Via os peixes nadarem quase
roçando as paternais patas do cavalo que me levava, suas queridas patas.
Via esses peixes no mais fundo e sentia nos olhos umas lágrimas mor-
tais de querer o melhor do melhor; sim, pensava que o cavalo podia me
jogar a qualquer momento na corrente lenta, forte, sentia todo o corpo
do animal como que tremendo, acho que se deliciando com o morrer,
também como eu, enquanto braceava o rio com os mesmos pensamentos.
Assim é.
E como faço, agora eu, por isso, para renovar e avivar as ramas
que, apalpando e anelante, como um sujeito que desperta de um coma
profundo, estendi tanto no primeiro capítulo deste romance? É possível
perceber ali que de tanto ter e estar, entre deslocado e louco de felici-
dade, nas cidades – em Paris acreditei entender tudo e todos – aprendi
um pouco de como ardem as cidades, conheço alguma coisa de sua
verdadeira polpa. Aqui, vou, então, como encontre forças, escrever o
capítulo III, com esta dor feroz na nuca, com este mal-estar produzido
pela fadiga e pela insônia.
“Aí vou eu se não escorrego!”, assim gritava um cavernoso e grande
negro velho que vendia tamales, em Lima, lá pelo ano 34, quando o negro
Gastiaburú me falava de comunismo, de socialismo iminente, que es-
tava chegando, como ele dizia, de hoje para amanhã: “Sem demora,
serrano sonso!”
Amanhã, ou depois de amanhã, ou segunda-feira, começo o capí-
tulo III de qualquer maneira. Pedi, para escrever este livro, dez meses
de licença sem salário na universidade, e quatro e meio já se foram. Não
posso folgar mais tempo. E não regresso ao porto até terminar o trabalho
ou rebentar. Não que eu pense escrever precisamente sobre Chimbote.
Não, vocês sabem melhor que eu. Essa é a cidade que menos entendo
e mais me entusiasma. Se vocês a conhecessem! Tenho medo, não con-
sigo começar este maldito capítulo III, de verdade! Quantas vezes fala-
mos dele, doutora Hoffman? Mas não irei ao Chile. Assim, mesmo que
não durma, mesmo que este trem que passa às 4:30h da madrugada,
sem perdoar um único dia, a dez metros da casinha que aluguei em

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Los Ángeles de Chaclacayo, continue atropelando meu sono, vou seguir
em frente. Bom, mas e se não consigo? Então terei que ir a Santiago, à
casa de mamãe Angelita. Mas estas páginas, as primeiras de Puruchuco,
onde Arturo me arranjou uma sala para escrever, vou incorporá-las
como o estrambótico primeiro diário. Fazem parte do livro, se é que o
tal livro chegue a existir. As ingênuas linhas que escrevi em Chimbote
– não é um diário; só escrevia alguma coisa quando estava decidido a
tirar minha vida de puro inútil e deteriorado –, essas linhas vão à mar-
gem, junto com outras coisas que escrevi depois em Santiago. E agora
vou almoçar no magnífico restaurante “Miguel Ángel”, de Vitarte.
Vitarte está, aqui, perto de Puruchuco, na rodovia que vai para
Cerro de Pasco, Brasil, Cuzco, Vale do Mantaro, Bolívia. Em Vitarte foi
aberta a primeira fábrica de tecidos de Lima. Agora é um distrito abar-
rotado de gente do interior. No “Miguel Ángel” vão comer somente
trabalhadores, cholos, passageiros de ônibus e um ou outro com jeito de
comerciante ou viajante de “categoria”. Os professores da minha univer-
sidade, a Agraria de la Molina, vão às vezes, em bando, almoçar no “Mi-
guel Ángel”. Uma feliz e elegante senhora gorda é a dona do negócio.
Gostamos de ver como ela atende e conquista seus clientes. Sempre faz
um desconto especial para os professores da Agraria, “para a gasolina”.
“Aí vou eu se não escorrego!”, negro Gastiaburú. Estou falando não
do almoço, mas do que tenho que escrever. Revolução socialista por
estes lados somente em Cuba, negro. Lá eu vi, desfrutei por um mês, e,
no entanto, ando com dificuldades para começar este maldito capítulo
III. Será que você tem razão, negro? Eu sou da “lã”, como você dizia;
“das alturas”, que no Peru significa índio, serrano, e agora pretendo
escrever sobre os que você chamava “do pelo”, zambos criollos, gente
da costa civilizada, cidadãos urbanos; os zambos e azambados de todo
grau, no longo trabalho da cidade. Você não considerava os índios e
serranos “incaicos” nessa categoria de azambados, recém-“deformados”
pela cidade. Segundo você, os da “lã”, os “oriundos”, os do mundo de
cima, como dizem as raposas – por que será que enfiei estas raposas
tão difíceis neste romance? –, sentimos, mas não entendemos, os “do
pelo”: a cidade. Mas assim e tudo, “oriundo”, e como já acabou minha

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“lã”, mergulho no seu coração, que era o mais zambo e azambado que
conheci. E como te conhecia bem! Tenho testemunhas, apesar de dois
dos melhores terem morrido, igual a você, negro, Dr. Julio Gastiaburú.

Santiago do Chile, 6 de março

Estou de novo em casa de Angelita Heinecke. Comecei a escrever


o capítulo III.

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III

O chefe da fábrica de farinha de peixe “Nautilus Fishing”, dom Ángel


Rincón Jaramillo, viu aparecer na porta de seu escritório um homem
magro, de bigodes longos e ralos, cujos pelos bem separados estavam
esticados um a um, quase horizontalmente, a ponto de despertar uma
curiosidade irresistível e risonha.
– Trago um envelope para o senhor, dom Ángel – disse o jovem. E
andou na direção da sua mesa, sem fazer ruído. Dom Ángel percebeu
que o tipo tinha as pernas curtas, harmoniosamente curtas, e essa espe-
cialidade de seu corpo ficava clara e bem ressaltada por causa de uma
casaca extremamente moderna, longa, quase uma levita, de botões dou-
rados. O sujeito tinha nas mãos uma boina cinza, jaspeada, que dom
Ángel tinha visto com os mineiros da Cerro de Pasco, como a primeira
prebenda assimilada da “civilização”. Além disso, o visitante calçava sa-
patos sumamente pequenos, também cinza jaspeados, admissivelmente
felpudos e ajustados com cordões de couro cru. As calças eram de cor
preta chamuscada. Com um sorriso que produzia agradáveis cócegas
na alma toda do senhor Rincón, o visitante lhe estendeu o envelope.
Alguma coisa especialíssima no rosto do forasteiro preocupou o chefe,
enquanto recebia o envelope. O visitante tomou assento em uma pol-
trona que estava não em frente à mesa, mas a um lado.
As chamas da fábrica e a fumaça das várias chaminés, além do tre-
mor causado pelos geradores Caterpillar, produziam umas espécies de
ondas na luz branquíssima de uma luminária extensa, com vidros qua-
driculares, que estava colocada no centro do teto do escritório. Era quase
meia-noite. O visitante observava um bicho alado que zumbia sobre o vi-
dro da luminária; o corpo do bicho parecia encouraçado e azul anil, lutava
ferozmente contra o vidro; era rechaçado como um raio e voltava à carga.
– Oh, meu amigo! – disse dom Ángel. Deixe-me apertar sua mão.
O visitante percebeu que o chefe levava um lenço de seda em volta
do pescoço gordo; seus óculos, de uma grossa armação escura, aumen-
tavam uns olhos amarelados e contentes.

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– Escuta – continuou falando –, o senhor tem, na verdade, amigos
de confiança, que pertencem a outras esferas, de altas considerações.
Estou completamente à sua disposição, para tudo e por tudo.
Piscou um olho para ele. O visitante também respondeu o gesto.
– Também conheço a senhora Lucinda, de El Trapecio – disse o
visitante, e seus olhos se comprimiram tanto que dom Ángel se encheu
de entusiasmo com essa luz estreitíssima, inteligente como uma agu-
lha, que brotava dos olhos fechados do jovem, sem que nenhuma ruga
houvesse aparecido em sua cara, como sempre acontecia, e de forma
chocante, quando o “Characato” Pretel se referia com o mesmo gesto
à bela Lucinda.
– Escuta – disse dom Ángel. Seus olhos são parecidos com os de
uma aranha caseira, é só olho, mas não se vê o olho, não é? O senhor
sabe. Agora me conta – e se acomodou no sofá reclinável –, esteve o
senhor muito no estrangeiro?
– Não, dom Ángel. Nem sempre é preciso ter estado no estrangeiro
para se apresentar com roupas semelhantes às que estão de moda na
Europa e América do Norte…
“Este lê as colunas sociais dos famosos jornais elegantes de Lima,
assim como a coluna humorística do jornal do meu patrãozaço”, pensou
em seguida dom Ángel. O visitante esperou que o chefe acabasse sua
reflexão e dom Ángel percebeu, sem remédio, que o magrela da perna
curta o estava “estofando”.
…Há comunicações que vêm por condutos eletrônicos – continuou
expondo o visitante – e, antes de tudo, existem homens e mulheres que
trazem em seu corpo o reflexo desses países estrangeiros, mas o melhor
de tudo são as armações computadorizadas cibernéticas. Assim, uma
pessoa se veste à Europa, Machu Pikchu, Miami Beach e, verdade
seja dita, com esta boina que levo na mão, alguns de nós damos gar-
galhadas de nossas modernidades. O que importa é saber aproveitar à
custa da farinha de peixe e comprimir, aconchavar o que é desigual. Não
é mesmo? Ajustando, apertando, na baía de Chimbote o Hudson com
o Marañón; o Tâmisa com o Apurímac e um pouquinho Paris, o Sena,
Bairro Latino… Que se misturem os cholos de merda com os criollos

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que passam por ladinos! Quantos trabalhadores mantém atualmente
sua planta industrial e quantos são os diaristas, dom Ángel?
O chefe sentiu um alívio ao escutar a última pergunta.
– Os trabalhadores fichados da “Nautilus Fishing”, desde o fim da
última grande proibição da pesca, são exatamente sessenta e quatro,
trinta e dois em cada turno de oito horas; antes eram duzentos, cin-
quenta e oito. Não existiam eventuais nesta planta. Agora os eventuais
são precisamente vinte. Com cinquenta e dois homens funciona a fá-
brica de farinha que ocupa o segundo lugar em Chimbote, ou seja, no
Peru, ou melhor, no mundo. Gostei dessa última pergunta concreta
sua; o que não entendi bem claro é a referência a comprimir o Tâmisa
com o Apurímac, o Hudson com o Marañón, o Bairro Latino, e que se
misturem os cholos. Que se apaguem seus rostos… é isso?
O visitante dirigiu uma mirada neutra a dom Ángel.
– São obsessões próprias dos que muito pensamos, amigo; mas di-
zem, dom Ángel, que aqui em Chimbote todos perdem seus traços, têm
sua moral temperada, são enfiados num molde.
– Da moral já falaremos, jovem. Aí o senhor verá. E métodos
existem para manipular, mas não para moldar a tantos de diferentes
naturezas que chegam ao porto. O senhor é amigo dos grandes, que
voam alto e não vêm às naturezas. Foram feitos moldes, mas todos
fracassaram. Quem, cacete, enfia num molde a uma lloqlla? Você sabe
o que é uma lloqlla?
– A avalanche de água, terra, raízes de árvores, cachorros mortos,
pedras que descem se chocando debaixo da corrente, quando se en-
chem os rios com as primeiras chuvas nessas montanhas assustadoras…
– Desse modo é agora em Chimbote, como conto; e ninguém co-
nhece ninguém. Falei que diminuímos os trabalhadores de duzentos,
cinquenta e oito para noventa e seis, certo? Essa lloqlla come fome. Mais
trabalhadores despedimos das fábricas, mais chegam da serra. E as bar-
riadas crescem e crescem, pequenos mercados brotam nessas barriadas
com mais moscas que comida.
– Felizes, felizes, felizes estão os pelicanos com a morte a sua volta,
e a avalanche lloqlla com a vida que a ronda!

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“Assim é, assim é. Sinto tudo isso nas entranhas. Este encapotado
hippie é de confiança, um tipo elegante um pouco desesperançado, re-
sultado de Braschi?” Enquanto dom Ángel pensava, orgulhoso de suas
reflexões, o visitante se levantou; ergueu um pé, deu uma volta debaixo
da luminária, pescou de uma mãozada o bicho voador que seguia ata-
cando a luz; pescou como um raio na fria lua, deu-lhe uma mordida e
deixou o cadáver sobre a mesa de dom Ángel.
– E assim, do jeitinho como este bicho apareceu, os serranos de
todos os povoados das montanhas andinas, não é certo?, continuam
descendo para procurar trabalho em Chimbote; também da selva vem
gente, atravessando picadas e montes, rios calados de tão caudalosos.
De Cuzco e Arequipa, cidades grandes, de muita antiguidade, já não
vêm índios, mas mestiços trabalhadores, comerciantes; e muitos tam-
bém de Huacho, Chiclayo, Pacasmayo, de toda a costa. Saiba uma coisa,
senhor dom Ángel, conquistador ilustre da bela Lucinda, que ninguém
antes havia tocado e nem podia; veja bem, encontrei também uns men-
digos cegos, procedentes da ilustre cidade andina de Cajamarca e da
outra ilustre cidade do porto de Paita, tocavam seus instrumentos no
mercado Modelo. O paitenho tocava um triste, um tristíssimo triste,
cego dos dois olhos; o de Cajamarca eram dois, veja só, marido e mu-
lher, também cegos; a índia tocava um tamborzinho, o índio, violino; e
cantavam mal, fazendo um dueto; feio, raspando a garganta cantavam.
E eu comecei a dançar; a raspada de garganta parecia ter alma; passei a
dançar bonito, com minha casaca levita de botões dourados; na frente
dos cegos dancei, dando voltas como sombra de pião quando gira. E os
dois cegos muita grana levantaram. Não sabendo bem quem tinha dan-
çado, choravam agradecendo ao ar empesteado. Chimbote é obra das
armações cibernéticas, do seu mando de patrão, que é também meu re-
lacionado, por outra corda contra contrária, como dizem por ali, acho;
porque seu mando está na vigilância e coordenação das forças grandes,
certo? Lloqlla que quer arrasar tudo, porque está recém se despren-
dendo. Quero ver a fábrica, dom Ángel, ou, se não, me diz como que em
seu fígado e em seu experimentado juízo repercutiram meus saltinhos
e palavras. Ali está o corpóreo bicho que me ajudou a morrer. Porque,

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veja, esse ofício quero, não é mesmo? Ajudar a morrer e a ressuscitar
mais forte do que morrer. Ui, ui, ui…! Assim nos entremesclamos todos
no Peru, graças aos caminhos por onde passam os negócios da alma e
da carne, estamos bem com peixes e pescados.
O bicho deu uma volta cega na mesa, produzindo um ruído
penetrante.
– Escuta, dom Ángel, apesar de não acreditar, esse zumbido é o
lamento de uma lagoa que está no interior mais dentro da duna San
Pedro, lugar onde os serranos construíram uma barriada de ruas bem
retas, como a área urbana de Chimbote, que foi traçada, como você
sabe, pelo grande ianque Meiggs! Na duna San Pedro existe uma grande
ruína dos antigos; sobre essa ruína, os invasores levantaram uma cruz
alta, com sudário que está se lamentando sobre Chimbote, né mesmo?
Este bichinho se chama Onquray onquray, que significa em língua an-
tiga “Enfermidade de enfermidade”, e nasceu dessa lagoa cristalina que
existe na entranha do morro de areia. Dali sai para curiosear, para co-
nhecer; com a luz se embriaga. Já vai morrendo, dando outra voltinha
mais em círculo, chorando como espinha…
O jovem começou a mexer a cabeça para frente, balançando seu
corpo como um ramo de árvore; colocou sua boina; seu rosto se afilou,
suas mandíbulas se alongaram um pouco e seus bigodes se levantaram
de forma claramente perceptível, enegrecendo nas pontas. O rosto do
jovem, assim, induziu a cabeça gordíssima de dom Ángel a se virar para
o bicho. Este deu uma volta lenta sobre o verniz da mesa e, enquanto
girava, soltou um gemido que dom Ángel sentiu entrar por sua orelha
e se alojar no mais íntimo de suas intimidades. Olhou para o visitante
com certa desconfiança…
O jovem pegou o bicho que permanecia imóvel, com as patas azuis
esticadas nas costas, quieta a pequena cabeça em forma de coração ajus-
tado, bem chamativa.
– Faleceu o mensageiro aziago, dom Ángel, o que me diz? Por que
continuam vindo serranos para Chimbote? Eles sabem que as fábricas
estão reduzindo seu pessoal à quinta parte? Que já não é interessante
para a indústria ter trabalhadores fichados, com direitos sociais, e que

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logo vão reduzir o restante, mantendo apenas os eventuais sob um sis-
tema de contratos gerais? Desse modo sobrará mais gente à mercê, como
esse bicho com cabeça de coração, que acertei em sua mesa, à mercê
mais dos armadores e industriais do que os pescadores delinquentes.
Esse Braschi é um gênio. E o senhor sabia, dom Ángel, que Braschi
vende farinha para cem países, e que nesses mesmos cem países é o
próprio Braschi quem compra?
– Não chega a cem países, dom Diego…
O visitante estava novamente sentado na poltrona. Observava a
desordem dos móveis de aço e de madeira, de gavetas abertas, de papéis
amontoados sobre as máquinas de escrever de carro longo…
– Não. É um exagero – disse o visitante. Braschi é grande, o maior
capitão da indústria que o Pacífico viu aparecer nestas duas décadas,
e, como o senhor sabe, tem mandíbula de macaco, de mono enorme,
grande! Mas estou postergando meu encargo. O senhor, dom Ángel,
trabalhou nas fábricas dos portos de Ilo, Tambo de Mora e Supe. Aqui
está culminando sua carreira. Como funciona o “Characato”?
– Veja, dom Diego. O que posso dizer se o senhor, de um modo
particular, sabe mais que eu, pelo que entendo de suas palavras?
– Veja bem, dom Ángel. Estou informado dos problemas, mas não
conheço seu procedimento. Aí está! Desse bicho que ajudei a morrer
conheço muito; sei de onde vem, o que há em suas patas, em seu la-
mento de despedida. Os insetos, alguns, se despedem de forma mais
triste desta vida do que as pessoas. Eu, se o senhor quiser, posso contar
como sei essas coisas. Assim como o senhor sabe deste porto, desta fá-
brica, destes índios e dos criollos pescadores, dos grandes e pequenos;
saber é saber, pois, dom Ángel.
O visitante voltou a fechar os olhos para concentrar o olhar no
rosto do gordo dom Ángel que, verdade seja dita, tinha uma cabeça pa-
recida com a de um porco, tão inteligente como astuta; de gostador de
cevada, caldos e molhos picantes, pela mistura de seus sabores e aromas;
o visitante o olhava, girando cabeça, com graça, de um lado para o outro,
carinhosamente. Dom Ángel sentiu a ternura exploradora, ansiosa de
cumplicidade de dom Diego.

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– Este… – disse. Olha, meu amigo. O senhor “me empurra pro
fogo”, como digo eu, não para Lucinda, mas para minha querida esposa;
porque a bonita é cheia de agrados, apesar de sacre, mulheraça, mas
maldosa. Não dá para confiar! Minha esposa, pelo contrário, é minha
sócia de alma, mãe dos meus filhos e escuta bem, Diego, ela conhece
Braschi, Fullen, Gildestrer… os peixes grandes. Conhece todos, e tem
me ajudado bastante. Posso dizer uma coisa? O senhor parece ser do
meu bando; ferramenta ou observador leal e útil para a indústria, que
é a cabeça dinâmica da pátria, ponta de lança… Não tomamos nada
até agora, né mesmo? E esse morto, esse bicho, ouça bem, acho que
está fedendo a chicha estragada. Bem, a esta hora já não vem ninguém
incomodar… Escuta… Os serranos das alturas continuam vindo para
Chimbote, porque há apenas uns dez anos atrás se implorava para achar
peão por aqui, e essa história, que foi atiçada pela chamada “máfia”,
continua correndo pelos povoados, continua correndo e continuará
correndo… E isso já não está bem, acho, nem para a indústria, como
disse a Braschi, a Fullen, a Gildestrer. Você sabe alguma coisa do que
aqui se chama e é a “máfia”?
– Pouco, pouquinho, pouco.
– São duas máquinas. A antiga, montada de forma bruta, no calor
do começo, que agora é pura fantasia, e a outra, renovada, fina, como
as máquinas das fábricas. Essa, nem eu mesmo conheço a fundo. Foi
montada e afinada depois da grande greve. Com os apertos e a fome
causados pelas greves e os períodos de pesca proibida, os pescadores
ficaram excitados. As bebedeiras e putas, etc., etc., que a gente oferecia
a eles, pelas narinas, pela língua, por todos os orifícios por onde o gosto
entra, em troca de gastos e diabruras, e assim eram mantidos sempre
dependentes. Veja: os funcionários fixos das grandes empresas acre-
ditamos saber mais em muitos termos do que os grandes industriais.
Já verá. É certo, mas só pela metade. Eu dizia: “Estão pegando pesado
demais, estão pegando pesado demais.” E nada. Dizia isso aos Braschi.
Daquele primeiro tempo da “máfia” sobrou o bajulador “Characato”. A
“máfia” antiga espalhou a notícia, como pólvora, de que em Chimbote se
encontravam terras boas para levantar casa própria de graça; que tinha

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trabalho nas fábricas e nas lanchas bolicheras, nos mercados, nas olarias,
lojas, bares, restaurantes. E assim foi. A gente “homilde”, como eles se
chamam entre eles, desceu da serra a borbotões, porque na serra, eu
mesmo vi!, os fazendeiros grandes e pequenos mijam na boca e na cons-
ciência dos índios, chupam sua seiva, seu alento, um pobre caldinho
seco; e roubam fácil, apenas por puro costume. Claro! – exclamou, ao
sentir que o olhar do visitante se tornou agudo. Metem bala neles de vez
em quando e promovem, imediatamente, os oficiais que ordenam abrir
fogo. Uma razão mais para que a chama de Chimbote iluminasse longe,
de forma salvadora. Essas são as coisas que o senhor queria saber, certo?
O visitante mexeu a cabeça, dando a entender que sabia algo e
que por isso precisava saber mais. Sorriu, alargando a boca, exagerada-
mente, a ambos os lados do rosto. Dom Ángel acreditou entender que
dessa maneira expressava melhor sua satisfação e interesse.
– É como digo, amigo – continuou –, que nestes lares da serra
norte às vezes é pior, nisso de surrar os índios, que ali nos lugares onde
restam lembranças dos tempos dos incas; em Cuzco, Apurímac, por
exemplo. Conheço. Nas serras do norte falam castelhano; na maior
parte das províncias já não sabem o quéchua. Melhor. Assim não exis-
tem segredos, compreende? Estão à vista, compreende? E se conver-
teram em coisa sem importância, no meu ponto de vista. Em Cuzco,
Apurímac, Huancavelica, Puno… o índio te olha como se estivesse na
outra margem. Estranho. E se pretende mandar bala neles, pior. Com-
preende? Então calculamos…
– Os Braschi?
– Braschi é águia. Aprende rápido e voa. Todo este… plano foi ela-
borado sobre a experiência da época da Chimbote pequena, atuneira.
Depois veio a anchoveta. Compreende? Então “calculamos e dissemos”:
os criollos são ainda mais chegados ao vício que os serranos. São como
eu, mas não têm freio. Nós vamos ensinar a nadar e pescar os pobrezi-
nhos dos serranos. Vamos pagar pra eles centenas, até milhares de soles
e, cacete!, como não sabem andar com tanto dinheiro, também faremos
com que gastem em bebedeiras, e depois putas, e também construir
suas casinhas próprias que tanto querem, estes pobres coitados. Aqui

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em Chimbote está a baía, maior do que a própria consciência de Deus,
porque é o reflexo do rosto de nosso senhor Jesus Cristo. Ali mesmo, na
baía, estavam os bancos de atum e anchoveta. Os pelicanos comem, você
sabia?, vinte quilos de anchoveta cada um, por dia. E quantos dormiam
nessas ilhas que guardam a baía de Deus, do meu amor? Devoravam
milhões de toneladas. Pegamos tudo em dois ou três anos. Agora os
pelicanos coxos andam mendigando pior que judeus errantes.
– E o reflexo do rosto de Deus, dom Ángel?
– Aí está. Turvo. Os pelicanos voando em tristeza. Por outro lado,
o Peru agora é o primeiro país do mundo na pesca. Deus continua aqui.
– Claro, dom Ángel. Continuemos com a história.
– Bom. Assim é. Então trouxemos para Chimbote espanhóis e iu-
goslavos contratados. Chaucato veio antes. Saía até três vezes ao mar por
dia. Botava pra foder cada dia mais. Nesse espelho e em Hilario Caullama,
também por essa época. Braschi aprendeu e com isso cresceu uma de
suas asas; a outra crescia nas cosmópolis norte-americanas e europeias.
Depois vieram criollos de todo o litoral; experientes na pesca menor,
no comércio, no punhal e chaveta. Isso também era bom. Mas aí, da
serra desceu uma corredeira de gente, índios que falavam castelhano
choramingando, ou índios que vinham do sul com uma cara como de
huacos ou de santos…
– Dom Hilario Caullama.
– Como te falei, esse grande huaco chegou aqui. Já chegou como
capitão. Ele é aimará, do lago Titicaca, quatro mil metros de altura. Dali
desceu até o litoral sul; um paisano o ensinou a ler quando tinha mais
ou menos trinta anos. Aprendeu nos portos do sul. Mas outros famintos
chegaram diretamente aqui para trabalhar no que fosse; no lixo ou na
pesca. Eram amarrados em grupos de dez, sem roupas, nas ferragens
do molhe e ali, sufocando, afogando, esporrando uns nos outros, apren-
deram a nadar, ou começaram a lavar pratos, varrer, carregar sacos nos
mercados, que começavam a aparecer sem lei nem ordem, como o da
Linha, que você já deve ter visto. Os pântanos onde os pernilongos
reinam, os desertos pesados, foram invadidos por essa avalanche. Olha,
eles invadiram em ordem, melhor do que em Lima, militarmente, diria

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eu; com uma disciplina castrense traçaram suas ruas e praças, dividiram
seus lotes, apareceram bairros que nem a consciência de Deus teria
imaginado. Defenderam seus lugares com astúcia e sangue, quando as
invasões chegaram às terras da Corporação do Santa, que é do governo.
As mulheres lutaram com truques desses para enganar menino, com
chicha e cerveja contra a polícia; derrotaram capitães e tenentes. Aí
estão, veja; ficaram. As casas são minúsculas nos terrenos próximos da
área urbana e nos pântanos; grandes e tranquilas nas dunas…
– Mas agora, dom Ángel.
– Sim, agora brigam pelos lotes, roubam entre eles mesmos. Mas
dessa história sei pouco. O que posso dizer é que os que entraram na
pesca enlouqueceram com o dinheiro que ganhavam. Veja bem, de um
sol diário que recebiam de vez em quando em suas terras, aqui passa-
ram a tirar até cem, até trezentos ou quinhentos por dia. Para eles foram
abertos bordéis e cantinas, feitos na medida do seu apetite ou gosto;
isso aparece sem esforço; depois é cevado. A máfia? Adestramos alguns
criollos e serranos, até índios para que… como é, como é mesmo a
palavra? Para “provocadores”! Eles armavam as confusões; usavam na-
valha e ensinaram a usar navalha, a bater nas putas; aplaudiam quando
se acendia cigarro com notas de dez, quinhentos, ou alguém regava o
chão das cantinas e bordéis com cerveja e até uísque. Um chinês com
experiência, magro, abriu o “curral”, com nossa complacência. Ali arran-
cam o couro dos pobres coitados, dos mais desgraçados. Mas, no Salão
Rosa e nas cantinas, mais ainda no da viúva, é que o chão era regado
até com uísque…
– O Chaucato…
– Esse grande lobo sacana que agora está… Não, meu amigo…
– Prossiga, dom Ángel. De Chaucato vou saber alguma coisa logo,
logo. Está recém-casado, velhaco; com filhos gêmeos, não é mesmo?
– Isso. O Chaucato! Mas não sou de falar de particularidades muito
secretas; do geral, sim, porque é sabido apesar de não ser proclamado…
E como ia dizendo, foram adestrados, estavam “forrados” para os gastos
e riscos, criollos e cholos foram adobados, antes de serem calibrados.
Para provocadores… E… zás! Tudo saiu conforme o calculado e um

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pouco mais. Quanto mais do bordel, da putaria, do jogo, ardiloso, quanto
mais comprador de geladeira para pendurar roupa, calcinha de mulher,
retratos – se não tinha, pois, eletricidade, e continua sem ter ainda hoje,
nas vinte e sete barriadas de Chimbote, cento e cinquenta mil habitantes!
– cacete, mais tretas e navalhadas, mais notas de quinhentos ou de cem
queimadas para acender cigarros, mais macho o pescador, mais galo,
mais famoso, cumprimentado, contente…
– Como os Braschi, os Gildestrer…?
– Como Braschi… Claro! Mas ao contrário. Em tudo. Mais pare-
cido com o pelicano de antes.
– Quando a baía foi a consciência de Deus?
– Isso! Sim, jovem. Igual a um pelicano de antes, inteiro, bico forte
embaixo e olho insolente; igual, mas com a tripa de Lúcifer que tem
o homem, não importando sua condição. O pelicano de antes voava
em bando… Como se diz…? Harmoniosos, tranquilos, enfeitando céu
como parte flor dessa baía.
– Agora não faz mais parte?
– Não. Você não os viu por aí? Agora o pelicano é um urubu ao revés.
O urubu revolvia o lixo pernicioso; o “coxo” de hoje espreita, como
um ladrão caído, envergonhado, nos mercados de todos os portos; em
Lima é pior. Dos telhados, parados em filas, frios, ou passarinhando
com seu último alento, olham a terra, escuta. Estão velhos. Morrem aos
milhares; fedem. Os pescadores se compadecem deles, como se fossem
incas convertidos em mendigos, sem esperança. Compreende? Mas dei-
xemos de lado os pobres “coxos”, retomemos o fio da história principal.
Sim. Chaucato comprava camisas e pagava sem olhar o preço. Pedia ao
dono da barraca que contasse o dinheiro. Ele simplesmente entregava
as notas.
– Essa era a “máfia” antiga? Só isso? Dom Ángel, o senhor conhece
a história sentimental de um capitão de lancha, Guerrero, vindo de Si-
cuani, Cuzco?
Enquanto fazia a pergunta, o visitante mexeu perceptivelmente as
orelhas. Dom Ángel percebeu. Ele tinha um primo que também mexia
as orelhas, mas não dessa forma, lançando graciosamente para cima as

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pontas. O chefe esteve a ponto de rir, apesar das questões “transcendentes”
sobre as quais conversavam; porém, viu que na levita do visitante on-
dulava e brincava sobre os botões dourados uma luz jaspeada, como às
vezes costumam mexer os pelinhos de certos bichos felpudos que ele,
dom Ángel, havia visto na selva.
– Já – respondeu dom Ángel, piscando e observando, sem poder
evitar e sem que sua mente se perturbasse, o jogo de brilhos que ondu-
lava sobre os botões dourados do visitante. Essa história de Guerrero é
um exemplo. Claro. Esse capitão de lancha serrano que teve que se apre-
sentar perante a namorada, e depois, aos pais da moça, dizendo que era
mecânico de primeira. Os pais da moça eram açougueiros, uma família
acomodada. Se o namorado tivesse se apresentado como pescador, hon-
radamente, teriam colocado ele no olho da rua a pontapé, ou simples-
mente amaldiçoando. Uma vez aceito, já que gastava como verdadeiro
mecânico de primeira, ele se casou, apesar de falar o castelhano ao estilo
serrano bruto. Uma semana depois, Guerreiro entregou ao sogro seus
ganhos de seis dias como capitão de barco; sete mil soles bem enroladi-
nhos; mais do que um ministro de Estado. Como era cholo analfabeto,
que mal sabia assinar o nome, entregou o dinheiro de joelhos. Estava
naquele momento então apaixonado pela mulher. O sogro açougueiro
ensinou o genro a ler um pouco e hoje controla suas finanças. O cholo
tem casas, negócios. Fracasso para a “máfia”, bom exemplo, bom aviso.
Era necessário afinar a maquinaria. Porém, a “máfia” fez os pescadores
gastarem tudo em seu devido tempo; cevou seus apetites de machos
brutos. Com bons truques fez com que gastassem tudo o que ganhavam;
manteve essa gente em conservas de delinquência e essa mancha não
se lava fácil. Compreende? Quer saber mais? Teódulo Yauri, o grande
dirigente sindical aprista, “era”. Pescou? “Era” máfia e contramáfia, se-
gundo o caso e a conveniência. Jogava fino para esses tempos. Visita ele.
Agora é puro lixo, mas é no lixo que se encontram os restos dos tempos
idos. Sabe o que fazia Teódulo quando queria reunir uma assembleia
contra os interesses da indústria, ou a favor da máfia? Mandava Pedro
de la Cruz Fierro, junto com o negro Baldomero, Ciriaco Arce e Juan
de Dios Pablo. Eles iam até as cantinas, armados com um pau em forma

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de macana, usados pelos exércitos incas. Entravam nas cantinas e di-
ziam: “Pra assembleia companheiros, camaradas, filasdaputa”, e arreben-
tavam a paulada todas as garrafas de cerveja que achavam nas mesas.
Até os mais amargos dos malditos tinham pânico desses quatro. As
garrafas de cerveja voavam em pedaços, caíam cacos nas paredes, nas
roupas… Os donos fechavam as portas; retiravam os pescadores por
portas falsas, por meias-portas. As assembleias alcançavam quórum e
eram realizadas com interrupções macarrônicas, em que os camaradas
e companheiros se comiam as tripas. Corria sangue. Mas aí se faziam
acordos “contra” as empresas; quase sempre acertados de antemão com
a gente: roupa de água, mais vales de comida, mais e mais soles por to-
neladas de pesca. Olha só, bigodudo…, conto mais? Antes, as fábricas,
por exemplo, compravam o atum por dúzias. O próprio Braschi pas-
sava na mão alguma substância secreta e levantava um ou dois atuns de
cada lanchada, levantava os bichos pelas agalhas, chamava o capitão do
barco e dizia: “Fede, porra, fede.” “Tá certo, dom Eduardo” – respondia
cabisbaixo, ardendo de merda, o pescador. “É mesmo, patrão, começa
a cheirar. Não sei por que. É fresco.” “Fresco podre, porra. Três soles a
dúzia.” E o que custava trinta, ele comprava por três. Sim…
Dom Ángel se deteve em seco. Deixou de falar. Assim como a su-
perfície desses vermes peludos, tornassóis, cujos quase invisíveis pelos se
mexem um a um, expedindo resplendor a pleno sol como se o dia fosse
noite, a boina do visitante e os botões de sua casaca, sob a luz potente da
luminária ultramoderna do escritório, continuavam transmitindo mo-
vimentos e cores, como seres vivos.
– Teódulo Yauri! Lindo sobrenome, dom Ángel! – disse o visitante.
Bom para a “máfia”, melhor para os pescadores. Por que um homem tão
decidido, tão cholo, foi descartado e virou lixo? Era da serra, conforme
averiguei, e se dava muito bem com os criollos do litoral. Os botões de
minha casaca são de Paris, dom Ángel, de Paris-Machupikchu, como
agora se usa. Minha boina é minha boina! E este Yauri, que vocês colo-
caram num pedestal, por que desceu ao fundo do poço?
O visitante se colocou de pé, exatamente sob a lâmpada. Tudo nele
pareceu muito delgado, seu rosto, suas mãos, suas pernas curtas, seus

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pés. E foi a espécie de couro cru, que servia de cordão para os sapatos,
que se tornou transparente. O visitante girou em círculo umas duas
vezes sob a luz, e a cor tornassol do veludo de sua casaca caiu bem aos
olhos do senhor Rincón; gostou muito. Quando o visitante sentou de
novo na poltrona, o chefe disse:
– Teódulo Yauri era um orador poderoso, perturbador. Sua pala-
vra era como chicha, melhor que a cerveja. Esquentava os ânimos, não
esclarecia nada. Por essa razão brigavam seus partidários com os con-
trários, usando até com puçá, que são feitos de rede e chumbada. Assim,
ele manipulava os pescadores, que eram e são a mais besta mistura de
merda com patriotismo, de comunismo inconsciente, de letrados e cha-
veteiros, de filhos da puta e cholos extraviados, ou felizes como nunca
foram na época dos incas. Essa turba era manipulada por Teódulo Yauri
a nosso favor, mas nunca de forma incondicional. Também dava muita
dor de cabeça. Costumava conseguir, às vezes, um grão de areia mais, e
um grão de areia para um milionário vale tanto como uma montanha;
ele luta igual, com o mesmo empenho, por um centavo do que por um
milhão. E, veja bem, assim como os serranos despenharam-se das fazen-
das e suas comunidades pequenas, onde viviam estacados como servos
ou múmias, despenharam-se até aqui, até o porto, para endoidecer qual
peixe feliz na água, ou boquear como peixe na areia, ou seja, pra gozar ou
pra cagar fogo, assim também, sabia?, vieram em bando os que queriam
ser industriais, vieram trazendo seu capitalzinho de mesquinhas heranças
e economias. Ganharam muito no começo, mas quando os grandes co-
meçaram a aperfeiçoar a indústria, a comprar barcos e maquinários
novos, a produzir em uma hora o que eles levavam um mês, decidindo
fixar um preço baixo pela anchoveta, aí também cagaram fogo. Expul-
samos quase todos. E até o meu Teódulo, os comunistas, em cinco anos
de trabalho paciente, os comunistas instruídos que entraram depois
para a pesca, fizeram ele mijar pra trás e, zás!, pro lixo… Yauri passou
dos limites. Veja você.
O visitante mexia os braços para a frente, como estivesse ensacando
as palavras de dom Ángel em seu ventre, e a luz que expandia sua roupa
e agora, um pouco, algo, muito suavemente, suas unhas, foi mostra de

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seu aplauso a dom Ángel, de sua admiração por dom Ángel, sua com-
preensão e afeto. As mãos permaneceram na plena força da luminária.
O chefe também estava embalado em sua história e enredo.
– Veja, você! Isso me lembra um professor de castelhano que tive
no colégio. Era enrolado um pouco para falar, como eu, mas o entu-
siasmo ou a inspiração com que falava contagiava qualquer um para
sempre, e acho que o fundo do que dizia dos autores e obras ficava
retido não no cérebro, mas na memória e em…, em…, não é a ética,
nem a estética, nem a cosmética… Bom, digamos, nos rins. Assim era.
Por que se deu mal Teódulo Yauri? Pelas mesmas razões dos ansiosos
pequenos e médios empresários que entraram na pesca com a língua
de fora. Aqui, na indústria, “nós” operamos de cabeça fria. Nada de
deixar subir à cabeça os testículos, nem a língua, ou a garganta. Nisso,
Braschi é campeão. Eu vi como se lançava às aquisições, os créditos que
davam calafrios e… vi como engolia aos que pensavam fazê-lo cagar
fogo! Ele ainda continua fazendo suas putadas por aí, como na época
em que vivia nos bordéis com Chaucato, aqui, em Chimbote. Enten-
deu? Solano, o primeiro secretário-geral comunista do sindicato, que
ji, ji, ji…! (Dom Ángel percebeu que a segunda risada foi em duo com
o visitante, mas a do jovem levitudo zumbiu como a do coleóptero
morto, que ainda fedia a queimado, em um canto do escritório. Disso
gostou dom Ángel e se entusiasmou, prosseguindo.) Este Solano, es-
cuta, foi recebido juntamente com Haro, no escritório de Braschi em
Lima. Solano é correto, moral até as tripas. Sabia tudo sobre a pesca,
como um bom advogado… Deixou as coisas no branco sobre preto com
Braschi. Mostrou a ele que o atual contrato de armadores e capitães
de lancha, uma supercombinação jurídica e sábia, converte o pesca-
dor em locatário sem locação, e em trabalhador sem patrão; separa o
armador da indústria, apesar de industrial e armador serem a mesma
pessoa, mais unida do que a Trindade; e a entrega do Fundo de Be-
nefício do Pescador ao controle de uma comissão governo-sindicato
é uma armadilha cínica, e que, enfim, todo este leque legal era sus-
tentado pelas mãos sujas da força. E que, por isso, acontecia a grande
greve, em quase todo o litoral, até “as últimas consequências”. Braschi

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então disse a Solano: “Ah, que então você é muito macho e sabido, né
mesmo? Solanito! Vai ser meu marido então; eu estava procurando um
homem para fazer dele meu marido! Entendeu? Você trepa em mim
e me explora, filhinho lindo!”, e enquanto dizia isso, juro pela minha
mãe!, mexia a cintura e esticava o braço atrás da calça. Pegou um re-
vólver todo desenhado e o colocou sobre a mesa. Solano olhou para o
revólver, olhou tranquilo para Braschi e disse: “Pense, senhor Braschi,
no que falei claramente aqui. Com relação à outra história, pode muito
bem se servir de negros e brancos, nacionais e estrangeiros, melhor do
que nas fábricas.” E antes que Braschi reagisse, Solano pegou o revólver,
empunhou de forma devida a arma, se levantou e saiu do escritório.
Sim, com o revólver na mão. E não era de brincadeira, escuta! Estava
carregada, Haro, armador, o gente boa do Haro, cholo, duro dos pés à
cabeça, seguiu a passo medido atrás de Solano, e depois, nessa mesma
noite, foi a um elegante bordel da avenida Colonial e fornicou com três
putas lindas, uma depois da outra, de pura alegria, para festejar. No
dia seguinte, Braschi nem se lembrava do assunto. Estourou a greve.
Os grevistas… Mas, espera! Teódulo não é Braschi. O desconto que o
sindicato conseguiu para a assistência social, em cima das fábricas e
pescadores, chegou a centenas de milhares. Teódulo, somente com sua
assinatura, podia dispor desse dinheiro. Andava com o talão de cheque
do sindicato no bolso. O que acontece, num caso como esse, com um
cholo fogoso, endiabrado? Pois montou um escritório, contratou médi-
cos e dentistas, já que o pescador não é trabalhador e nem empregado.
Você já deve saber. Era necessário organizar a assistência médica do
sindicato. O que aconteceu depois? Nos livros da contabilidade desco-
briram que apareciam pescadores operados dos ovários, de partos com
cesárea… Aí a coisa estourou! Solano, criollo do litoral, almoçou facil-
mente Yauri. E quem não conhece o verdadeiro grande final da greve
que dirigiu, com sabedoria e mão firme, Solano? É uma piada nacional,
cruel e sacana. Demos muita risada junto com Braschi. Os ganhos dos
pescadores foram aumentados em trinta soles por tonelada de ancho-
veta; foram revisadas as caçambas pesadoras das fábricas; descobriram
que as fábricas roubavam uns milhõezinhos; foram reembolsados estes

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milhõezinhos; somente a Atahualpa Fishing, empresa norte-americana,
não reembolsou. Continua recorrendo. Qualquer dia desses o sindicato
para seus barcos. Bom, bom. Depois de tanto aumento, zás!, “desvalori-
zamos” a moeda, de 27 soles o dólar a 43. Solano deve ter enfiado o re-
vólver no rabo, apesar de não ter disparado, porque no final das contas
também tem sua cabeça fria. Agora o pescador recebe trinta por cento
menos que antes da greve. Viu? Não tem saída; no Peru e no mundo
mandamos uns poucos. Braschi já não vem mais a Chimbote. A última
vez que veio foi há dois anos, para entronizar San Pedro, patrono dos
pescadores, em um local com gruta que mandou construir na entrada
do molhe de sua maior fábrica. Foi uma festa e uma bebedeira só, com
dois conjuntos. Braschi bebeu uísque com pelo menos uns duzentos
pescadores. Quem o diferenciava de um pescador comum? Divertia
mais que qualquer outro. Deu um puta abraço em Chaucato e o pobre
do Chaucato chorou. É o primeiro capitão de barco que trabalhou para
ele; Chaucato, para dizer a verdade, é um pouco pai de Braschi. Com
Haro bebeu em silêncio. Hilario Caullama foi o único capitão de barco
que não veio à festa. Nós que éramos mais próximos de Braschi ficamos
preocupados com a ausência de Caullama; incomodou, sim. Mas Braschi
não reprovou a ausência de dom Hilario. “É inca”, disse, “Sozinho”.
Mais ou menos às três da madrugada, as senhoras, moças e mocinhas
saíram em disparada do grande pátio das centrífugas da fábrica, onde
acontecia a festa, porque o “Characato” Pretel chegava, nessa hora, em
vinte automóveis, com umas cem putas e entrou, cantando, na fábrica.
Entrou e foi direto até a gruta de San Pedro, numa procissão ordenada.
O patrono San Pedro estava brilhando, com lâmpadas que iluminavam
de todos os lados as cores de seu manto e sua túnica, e também um
imenso peixe de prata, fabricado em Lima, como imitação dos que são
feitos nos povoados do lago Titicaca para as bailarinas da Virgen de
la Candelaria; o imenso peixe ondulava como um peixe-rei vivo, com
olhos de esmeralda; ficava nas mãos do Santo. “Characato” e as putas
se ajoelharam, pediram bênção, enquanto os pescadores bêbados olha-
ram de longe, com respeito, tocando seus pênis, meio dissimulados,
esfregando as mãos em suas barrigas. Eu vi tudo. Braschi já tinha saído.

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Seu avião particular deu meia-volta sobre a fábrica e o molhe, justo
quando as putas ultrapassaram o limite da pracinha e eram agarradas
pelos bêbados. A festa continuou e houve fornicação generalizada no
pátio e em tudo quanto foi canto da fábrica. Escuta, meu amigo, alguns
homens carregaram no ombro a “Characato”. “Olhos de pomba, olhos
de pomba!”, choramingava um cholo ignorante que existe neste porto.
Procurava sua mulher legítima, que era montada seguidamente por um
ou outro homem. Ela é puta. Dinheiro, relógio, isqueiros finos, até re-
vólver serviram de moeda naquela noite. Os conjuntos continuavam
tocando. Quando o dia raiava, “Characato” se levantou sobre a escala de
uma centrífuga. Soprou forte, três vezes, um apito. Ninguém deu bola.
Então, uma mulher já de certa idade, vestida de seda brilhante, subiu
pela escada à mesma centrífuga: “Putas, quengas de merda!”, gritou. Es-
cutaram todas. “Pros carros, bocetudas.” E todas seguiram em fila para
os carros. Os “secretários” de “Characato” tiveram que fazer força para
arrancar alguns pescadores que estavam presos às putas. A “matrona”,
que fez as chuchumecas desfilarem, ainda está em Chimbote. Vive no
Salão Rosa do prostíbulo. Dali dirige tudo.
– O “Characato” é principal da máfia, certo?
– Não, amigo, este sujeito é, como diríamos, o que aparece, a cabeça
do parafuso, a parte visível. Para os pescadores, ele é uma mostra do
que chamam de “agente patronal”, em suas exatas palavras. E o homem
dá sonoras gargalhadas. Usa um boné de couro, é branco, simpático…
Ah!… A entronização rendeu assunto. O Superintendente da Baía, Or-
lando Cabieses Crosby, meteu os pés pelas mãos. Descontou dos capi-
tães de barco o valor do Santo, da urna e da gruta. Houve, então, uma
assembleia dos pescadores da fábrica e o Superintendente da Baía teve
que assistir: “San Pedro” – disse – “não é patrono das fábricas, nem dos
armadores ou industriais; é, e sempre foi, patrono dos pescadores. Os
senhores vivem jogando no molhe; alguns, às vezes, chegam bêbados
nos barcos, caem na água, nas bodegas; nisso tudo corre muito perigo.
Nem todos os pescadores são corretos. Colocamos San Pedro para a
proteção de todos. Os senhores pagam.” Os pescadores não tragaram,
ficaram calados. Os iugoslavos e espanhóis não foram à assembleia.

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Então, no silêncio, dom Hilario Caullama avançou, com passo lento,
como índio que parece não ter aprendido a andar direito na cidade e
nos salões. Caminhou desconcertado, como um pato rengueando até
a mesa, parou num extremo, de lado, frente ao intendente, de perfil,
para os pescadores e disse: “Escute vosmecê, senhor Superintendente,
representante do capital; eu, como antigo capitão que sou, dos primeiros
que chegamos a este baía de Chimbote, falo como representante dos
trabalhadores. Vosmicê diz que San Pedro é patrono dos pescadores,
certo? Certo. Ali, no local do sindicato, temos uma anda em forma de
bolichera barco, linda. Nesse trono levamos em procissão no mar, em
seu dia, o patrono San Pedrito, que está na igreja. Vosmicê sabes que
eu sou como analfabeto. Mas a Hilario não engana nem condor nem
raposa, nem víbora nem soperintendente. Nosso patrono de pescadores
é San Pedrito, assim como é chamado nesse Chimbote o Patrono, porque
o busto do santo é assim de pequeno, pois, seja dito. Esse outro busto
grandaço que vosmicê mandou fazer comprando de loja em Lima foi
batizado, bem, legalmente, pelo padre vigário; mas, na noite e madru-
gada desse mesmo cerimônias vosmicê e o próprio grande industrial,
olho de águia, Braschi, desbatizaram feio com as putas. Putas não,
amigo Soperintendente! Putas têm seu lugar marcado em Chimbote.”
Orlando Cabieses Crosby ia falar. “Não!” – gritou dom Hilario. “Estou
com o uso das palavras, em nome do trabalho frente do capital. Temos
patrono San Pedro consagrado de antigo pela Santíssima Igreja Cató-
lico Romano; está na igreja. O busto com peixaço falseficado, que o
Soperintendente entronizou em gruta papelão e pedra falseficado, pátio
molhe, e que as chuchumecas desbatizaram, não foi pedido pelos traba-
lhadores ao capital. Não pago! Se aqui, nessa assembleia, existe algum
bobo pescador descrismado, que pague, então.” “Todo mundo vai re-
ceber de volta, vai receber de volta. Aceito, em parte o argumento dom
Hilario Caullama”, disse imediatamente Cabieses Crosby. “Encerra a
assembleia.” “Um momentinho, um momentinho, senhor capital”, disse
Caullama, quando todos os pescadores já estavam se levantando para
ir embora. “Eu, homilde pescador, Hilario Caullama, soplico que este
busto de gruta, agora mesmo, tenha outra vez a bênção do senhor Bispo

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com sua alta consideração eclesiástico hierarquia ou que seja jogado no
barro areia lodo do praia.” E o Bispo bendisse novamente a imagem. E a
jogatina continuou intensa, até que na grande greve os pescadores fica-
ram de calça na mão, literalmente na “lona”, como dizem os motoristas.
Mesmo empenhando máquinas de costura, geladeiras, televisores, con-
tinuavam em apuro. Somente os Caullama e os Haro, que são poucos,
desconfiados por instinto ou calculistas por experiência criolla, escapa-
ram. Então, vimos algo que tinha sido escrito no livro: as vendedoras da
praça e de todos os mercados, os comerciantes do Modelo, começaram
a fiar para os pescadores registrados; venderam fiado de alface e batata
doce, a detergente, perfumes e cortes de seda. “Vivemos deles, eles são
o sangue de Chimbote”, diziam elas. “O aguay uno,1 o yawar mayu”,
chegaram a proclamar algumas verdureiras serranas, esquecendo sua
vergonha do quéchua. As cantinas também venderam fiado, apesar de
colocar tempo; até as putas também fiaram para os conhecidos. Mas
os pescadores ficaram sem grana, pela primeira vez. Os vagabundos,
ou quem era do ofício de nascença, caíram fora; muitos restaurantes e
cantinas fecharam. Nas barriadas morreram de fome patos, galinhas,
cachorros e alguns meninos também. Então viram que Solano é um
bom comandante e Maxe um bom suboficial, do mesmo modo que
o fino bordeleiro Zavala. Em vez de se acovardarem, os pescadores se
rebelaram; os líderes converteram a amargura em pólvora…
O visitante consentiu com a cabeça, dirigindo a Rincón uma mi-
rada lúcida; seus olhos adquiriram a transparência mais profunda, que
não é a do ar nem a do céu, mas da circunscrita e viva, sem limite de cor,
dos lagos das alturas ou de um remanso, a verdadeira transparência pro-
funda que transmitem ao conhecimento e à esperança os minúsculos
seres que por ali se agitam, dando voltas, disparando rumo ao fundo e
aos lados, bem como os peixes de brilho suave que se precipitam a ve-
locidades diferentes, segundo a vontade ou o desejo dos animais. Dom
Ángel acreditou encontrar naquele olhar transparente algum segredo.

1
Aguay uno: a água deus que dá vida.

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– Venceu Solano, como o senhor sabe – disse. Como o senhor
sabe. Venceu o honrado, o insubornável, o político que fala para abrir
os olhos e a consciência do pescador; venceu a Teódulo, que incitava os
nervos e confundia o entendimento deles. Melhor, escuta, melhor! É
mais fácil a luta agora. Tiro mais preciso, inimigo mais claro; tiro mais
preciso. Já verá! Teódulo era para reunir e manipular correntes porcas.
Agora está melhor, mais fácil. O senhor, o senhor… sabe alguma coisa…
– Lembra, dom Ángel, que os grevistas, apoiados pelos trabalha-
dores da Siderúrgica, bloquearam a Rodovia Pan-americana?
– Sim, claro, e ali a polícia matou um trabalhador, um pescador e
uma mulher…
– O que mais, dom Ángel?
– Houve discussão sobre os cadáveres, entre apristas que haviam
extrapolado e os homens de Solano. Os de Solano também ganharam. A
polícia regressou para o quartel da polícia na praça de armas. Os cadá-
veres foram levados para o prédio do sindicato dos pescadores. Chim-
bote fervia de gente furiosa e assustada. Assim é. Eu tenho uma larga
experiência. O sangue assim, boqueando pela balaceira, desperta ódios,
mas também… como diria?, faz crescer diante do olho a foice da morte.
Isso quem disse foi, acho que, Teódulo. Bom. O velório teve gente por
todo lado. E então me lembro; o fino bordeleiro Zavala propôs algo
temerário. Ele tinha ficado encarregado dos ataúdes. Quando os corpos
já estavam nos caixões, Zavala disse: “Vamos velar na praça de armas,
em frente ao prédio da polícia. Alguém será contra?” “Para a praça
de armas”, gritaram homens e mulheres. Porque, naquela vez, com a
mulher morta, centenas de mulheres alvoroçaram o velório. Solano foi
surpreendido e ficou para trás. Os três ataúdes foram carregados e co-
locados, não exatamente no próprio centro da praça onde existe um
coreto, mas foram depositados nuns bancos, bem próximos da porta
do quartel da polícia, a uns quarenta metros mais ou menos. A porta
do quartel estava fechada. Na praça foi feito silêncio. Porém, de tanto
em tanto, alguém gritava: “Braschi assassino!”, “Ianques assassinos!” E
de maneira igual chamaram o presidente, o ministro do Governo e o

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prefeito. As horas se passaram e as pessoas foram se retirando; os gritos,
não. Eram cada vez mais exaltados e no final se ouviam palavrões…
– Sim, dom Ángel… E, por volta das duas da madrugada, abriram
a porta do quartel; um pelotão de soldados saiu, armados com casse-
tetes e fuzis.
– E uma coisa estranha, amigo Diego; os que custodiavam o cadá-
ver saíram em disparada, espantados, porém, logo em seguida, retor-
naram, xingando. Os policiais deveriam avançar, mas não o fizeram.
Estiveram em posição de marcha, um momento, olhando o grupo que
ficou parado junto dos caixões. O coro de insultos se tornou mais rá-
pido e provocador. O esquadrão deu meia-volta e retornou ao quartel.
Fecharam a porta. Dizem que Zavala, cuspindo cobras e lagartos, co-
meçou a chorar.
– É que os caixões estavam cheios de dinamite, amigo dom Ángel.
Os mortos foram deitados sobre um colchão de cartuchos de dinamite,
colocados em fila debaixo do tecido dos ataúdes. O senhor sabia disso,
não? Eles acreditavam que seriam atacados. Iam simular espanto e,
alguns poucos, os “valentes”, voltariam desafiadores para defender os
caixões. Quando a policía viesse sobre eles para recuperar os corpos,
esses valentes também deveriam correr e, no instante em que os guardas
começassem a levantar os caixões, mortos e policiais iriam pelos ares,
voando em pedaços pela praça.
– Soubemos depois, Diego. O subtenente que fez a tropa regressar
ao quartel já é agora capitão. Saberia esse tenente alguma coisa da arma-
dilha? Nunca se descobriu. Dizem que alguém da “máfia”, dos inferio-
res, soprou a coisa ao subtenente. Ele levou o pelotão fora para mostrar
força e percebeu de que a coisa podia ser verdadeira. No dia seguinte,
foi feito um imponente enterro, como queríamos também “nós”, os in-
dustriais e o pessoal superior das fábricas. Queríamos isso mais talvez
que os próprios pescadores. Isso emociona os trabalhadores combativos
e a coisa termina por aí, quando se tomam as devidas precauções. Na
noite do enterro, já tudo em calma, dormi com a Lucinda, Diego. Os
trabalhadores e os Solanos felizes, e eu também, em boa companhia.

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Dizem que esse dedo-duro menor da “máfia” recebeu uma bolada e
sumiu de Chimbote. A dinamite, se teve, deve estar no cemitério, espe-
rando o dia do juízo final. Teve dinamite, amigo Diego?
– Os que dizem que teve afirmam que teve. Nos morros e areais
dizem que é pura história, mas que podia ser verdade…
– Agora, Maxe, Zavala e Haro, auxiliares que foram de Solano, são
cabeças do sindicato… Ji, ji, ji…! Não existe suborno, existe tiro certo,
amigo, tiro certo. Zavala é secretário de Assistência Social. Como no
necrotério do Hospital de La Caleta os médicos legistas se apressam
para fazer as autópsias dos pescadores mortos em acidentes, Zavala não
só presencia os procedimentos, mas também às vezes vira ajudante…
Consola viúvas, acompanha os enfermos; fez a Policlínica do Sindicato
crescer, trouxe aparelhos médicos ultramodernos; permite que o pobre
ajudante do necrotério, um pé-rapado de quatorze anos que abre os
cadáveres, fique com a roupa dos mortos; ele, Zavala, veste novamente
os defuntos. Está magro Zavala; vai pouco agora ao Salão Branco e ao
Salão Rosa. Ao hotel “Florida” nunca foi. O “curral” vai ser fechado esta
semana… Ji, ji, ji! – dom Ángel ria, imitando um pouco dom Diego, e
também parecia o zumbido pré-mortal do coleóptero. Sabe? Um cholo
meio esperto, Tinoco, auxiliar de “Characato”, sugeriu um lugar fabu-
loso para o novo prostíbulo; trata-se de um pequeno morro de terra
dura, não de areia, que fica na margem de um tremedal, rodeado de um
totoral bastante selvagem, cheio de patos, longe, uns dez quilômetros,
secreto. Combinação com motoristas e outros… A “máfia” pequena
atuando…
O visitante se colocou de pé, fez uma discreta reverência, muito
cortês, e deu uma volta quase completa na escrivaninha, caminhando
suavemente. Com uma mão levantada e aberta na direção de dom Ángel,
fechava, gentilmente, como um leque de asas de mariposa, a boca do
chefe. Dom Ángel seguia com o olhar a mão. O visitante se agachou
sobre a escrivaninha, aproximou seu rosto ao de dom Ángel; fez que
sentisse um aroma parecido ao pólen, a vento com cheiro de flores sil-
vestres serranas, esse ar que em abril perfuma os abismos de pedras e

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chega até os frios ninhos das águias, com a mesma naturalidade que a
luz das estrelas.
– E Cardoso, dom Ángel, esse padre ianque, com sobrenome la-
tino? E o Bispo? E o Plano de Padrinhos?
– Alta-costura – disse o chefe, colocando-se também de pé. Alta
e baixa-costura. Cardozo é comunista católico, assim dizem? Me dá
pena. Em Chimbote, de sete congregações religiosas, cinco são ianques.
Sobre o Plano de Padrinhos não conheço bem. É uma organização ca-
ridosa, acho que internacional, que dirigem a partir dos Estados Uni-
dos. Protege as famílias comprovadissivamente pobres. Tem uns quinze
empregados e vários veículos em Chimbote. Agora cuidam de umas três
mil famílias. Dez dólares mensais e uma boneca, ou uma metralhadora
de plástico, no dia do aniversário do afilhado. Um filho de cada família
numerosa tem um padrinho gringo. O escritório do Plano é agora se-
mioficial e está entupido de mulheres que choram seus problemas e
suas lágrimas, no grande terreno que existe na frente do edifício. E isso,
apesar de que nas barriadas se falava, não sei se os comunistas ou os
bruxos, que todos os afilhados seriam exportados para a América do
Norte como gado, depois de crescer. Esses boatos assustaram os mo-
radores. Mas a fome vence o susto e a cada semana uma multidão de
gente procura o novo edifício do Plano. Você também deveria ir; vá ver,
amigo, o pequeno espetáculo. Max e Zavala vomitam de repugnância
com isso. Eu, eu conheço um pouco estas esferas…
– Muito claro, dom Ángel, e suficiente o que sabe de tantas esferas,
mas e o panorama? Como vê o senhor o panorama, o conjunto?
– Sim, amigo Diego; vejo esse panorama mais claro. Espere um
instante. O conjunto é assim. Já! Olhe bem o mapa, o diagrama com
nomes que vou traçar e escrever; vou desenhando. Começo. Siga minha
mão e escute minhas palavras. Acho que deve sair alguma coisa; já, algo
objetivo. Veja:

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Sete ovos brancos contra três vermelhos. Nós, a indústria, U.S.A.,
o governo peruano, a ignorância do povo peruano e a ignorância dos
cardozos sobre o povo peruano, somos as forças brancas; João XXIII,
o comunismo e o ódio lúcido ou enviesado de uma pequena parte do
povo peruano contra U.S.A., a indústria e o governo, são as forças ver-
melhas. A verdadeira cor de Cardozo eu não coloco. Solano gosta dele
de coração, tem por ele muita estima. Cardozo e Solano organizaram o
Congresso Nacional dos Trabalhadores da Pesca dentro de um prédio
religioso da paróquia de San José; Solano pronunciou discursos políticos,
apoiando as mãos sobre o altar da capela, sobre a ara. Cardozo falou ali
de revolução, num estilo anglocriollo endiabrado. Maxe confia em Car-
dozo, também gosta dele; Teódulo Yauri o odeia; Braschi o ama; a Embai-
xada Ianque respira; Chaucato o abraça; dom Hilario Caullama, o índio
aimará, olha para ele e balança os braços, diz que não o entende bem.
Para Caullama, capital e ianque é a mesma sopa; o trabalhador é outra
sopa que não pode se misturar com a sopa ianque. Em resumo, amigo
Diego, somos sete brancos contra três vermelhos. E um dos vermelhos,
o comunismo, está atualmente no leito de morte. Sei do que falo. E este
mapa jamais vai mudar em nada contra o capital, sempre a seu favor. Tiro
certeiro! Alguns poucos mandam em todo o universo, céu e terra, água
e mar. O rosto de “Characato”; o rosto desse outro cholímetro cabra que
é seu ajudante garrote, Tinoco. O rosto de Maxe, de Zavala… Ji, ji, ji…!

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– É para rir, dom Ángel, é para rir mesmo. Que saia do pulmão o
ar guardado; como de um corpo iluminado, que saia, como a lêndea da
barriguinha do piolho, como o ovo do sapo que há de ser oqollo negro
com rabo de cometa… Que saia! Que saia! Que saia!
O visitante levantou as mãos como os braços de um candelabro,
e, com a boina ladeada, o rosto alongado no qual os bigodes, escure-
cendo nas pontas, deixavam sua cara mais fina, incandescente, começou
a dançar dando voltas no mesmo lugar, como se estivesse segurando
nas mãos algo invisível, que zumbia com ritmo de melancolia e aço. A
sombra do visitante dançava com mais harmonia que o corpo. Dom
Ángel já não conseguia achar graça e rir, apesar de ter tentado várias
vezes. Seus olhos, aumentados pelas lentes, ficaram retidos no corpo
do visitante que girava numa sombra dupla. Sentiu por um momento,
enquanto acompanhava a dança, sentiu naquele que chamava de “seu
ouvido de ouvir, não de assobiar, nem de cantar”, nesse ouvido, escutou
um som melancólico de asas de pernilongo, acompanhado de sininhos
de aurora e fogo; um ritmo bem definido, que pelejava para irromper
em sua plenitude, na lúcida lembrança. Os olhos de dom Ángel, cada
vez mais aumentados pelas lentes, começaram a girar, meditando, da
sombra ao corpo do dançarino, da cabeça aos pés. A aparência de ovos
duros daqueles olhos começou a mudar de fora para dentro, tornando-se
como um vidro de cores densas em movimento. Dom Ángel sentiu, no
que chamava de “seu ouvido de lembrar e não de cantar, nem de asso-
biar”, porque era um pouco desorientado em termos de música para
se expressar, nesse ouvido escutou, por fim, um canto que nascia vaci-
lando, muito parecido, de verdade, ao zumbido das asas dos pernilongos,
quando voam em bando, em uníssono, na noite escura; o canto foi fi-
cando mais claro, graças aos chocalhos que marcavam um ritmo terno
e se fundia com a melodia numa corrente parecida ao sangue que brota
a borbotões da veia de um animal grande, cortada de um talho certeiro.
O ritmo e a dança foram despertando sua memória e seu corpo, a carne
humana viva que gosta tanto dessas melodias de compassos doces e
imperiosos. O chefe começou a mexer a cabeça, com uma graça pesada,
sobressaindo sobre sua tão criticada como elogiada barriga, que não o

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impedia de caminhar rápido, sapatear meio que de brincadeira, meio
a sério para os cholos, quando era “necessário e devido”, saltando as
velozes embarcações que levavam as pencas de pescadores aos barcos.
– Dom Diego, amigo! – gritou de repente. Essa é a “yunsa” ser-
rana, de Cajabamba, cantada e dançada agora pelos cholos na fazenda
Casa Grande.
O visitante marcou mais airosamente o ritmo, ondulando o corpo
que girava entre luzes e cores. Desse modo confirmou o entusiasmo de
dom Ángel.
– Prossiga, cavalheiro! – exclamou o chefe da fábrica. Prossiga, pros-
siga! E o gordo de óculos começou a balançar seu corpo, a barriga e o
peito dançavam, subindo e descendo, tratando ansiosamente de manter o
ritmo, de se excitar e concentrar mais; porém, não mexia os pés, não con-
seguia fazê-lo; estava parado no lugar; então começou a falar, a recitar:
– Segue, segue, segue a roda… Chimbote é o porto…, o maior
porto pesqueiro… maior do universo… e Casa Grande e Casa Grande…
que está aqui perto…, a cem, a cem quilômetros… é o engenho açu-
careiro… o engenho açucareiro… maior do mundo… toda estatística,
toda estatística… prova o que digo. Quem não sabe, quem não diz… é
pobrezinho, é pobrezinho…

maior do mundo
maior do mundo
Chimbote, Casa Grande,
prossiga, dom Diego, prossiga, dom Diego.
A chaminé da Casa Grande
leva sua fumaça até os rios
até os rios do Amazonas
porque Casa Grande…
Casa Grande começa no Pacífico
devora o litoral, devora os Andes
tem porto próprio, ai, Chicama!
tem presidente, o gerente!, lagarto!
chega na selva, fode os chunchos,

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como eu Braschi, como eu Braschi
já fodi Maxe, já fodi Maxe,
o secretário dos pescadores
e anexos de nada, anexos de nada
pescadores de Chimbote
porto pesqueiro grande no mundo;
aqui não existe ninguém, aqui não existe ninguém
senhor, os cholos são merda,
os negros zambos-chineses são merda,
eu também sou merda;
o iugoslavo não é merda
o espanhol não é merda
Braschi está por todos os lados
por todos os lados está senhor
freio, estribo, arreio
Maxe secretário não sei se é merda
não sei se é merda, não sei se é merda
Zavala, Haro, Tinoco, Characato, amigos,
surramos uns, surramos outros,
no totoral dos pernilongos cagamos todos
sem remédio, sem remédio, sem remédio.
O bispo ianque não é merda, não é merda
Teódulo Yauri não era merda, não era merda
fiz dele um monte de lixo, bostinha de merda
ilustre senhor, fiz dele merda de cachorro.
O Peru litoral, como me fode, como me fode
O Peru serra, como me entendia, como me oprime
O Peru selva, chas, chas, chas
como me consome, muito me oprime
a chaminé da Casa Grande…
“Os homenzinhos da Casa Grande
já estão preparados para marchar
todos os dias a partir das quatro
vão para o campo trabalhar.”

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“Pobres homens!”
Assim a mesma coisa, assim a mesma coisa
como nos pelicanos, bolsa triste acima,
como nas putas, pernas prá cima
do litoral do Amazonas estão cagando em mim
em Chaucato não, em Caullama não
em Caullama não, em Chaucato sim
ai sim, ai não “Pobres homens!”

Dom Ángel recitava e cantarolava de uma forma diferente em


tudo, ritmo, melodia e movimento. Procurava acompanhar os passos
de Diego; agachava até sentir a barriga comprimida, se levantava como
fazem os bêbados desafiadores; colocava, em seguida, as mãos sobre a
mesa, abaixando e levantando o peito, como essas lagartixas dos pe-
nhascos do litoral peruano, pequenos animais que correm espantados,
mas que se detêm bruscamente na ponta ou na beira de algum penhasco
erodido, mexendo a cabeça e o busto, energicamente, em movimentos
eloquentemente afirmativos, como se tivessem pregando com energia.
“Pobres homens!”, repetiu dom Ángel, lembrando que tinha ouvido essa
expressão em um disco long-play e essa parte era recitada por uma pes-
soa diferente do cantor, enquanto “Cholo Cajabambino” repetia a estrofe:
“Os homenzinhos de Casa Grande…” Recordou, e recordando já bem
claramente, olhou para o visitante: sua boina tinha se convertido em lã
de ouro, cujos filamentos se revolviam pelo ar; os sapatos, em sandálias
transparentes de cor azul; a casaca estava cheia de pequenos espelhos em
forma de estrela; os bigodes, em espinhos cristalinos nas pontas, muito
parecidos ao do anku kichka, uma árvore carnosa que nunca cresce no
litoral e que defende, com essas puas, suas flores vermelhas de sépalas
felpudas, brancos como a geada. Ele, dom Ángel, cajabambino de nas-
cimento e infância, limenho adaptado, recordou nesse instante que os
beija-flores de cor verde tornassol dançavam sobre aquelas corolas, um
longo período; dançavam felizes, enquanto ele, filho bastardo, renegado,
observava o tremor do passarinho, com lágrimas nos olhos. Continuou
cantando dom Ángel, repetindo palavra a palavra a letra fiel da “yunsa”:

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A chaminé da Casa Grande
expele fumaça sem piedade…

O visitante foi moderando o ritmo, abaixou os braços, seus bi-


godes começaram a apagar, assim como os espelhos da casaca e a cor
dos sapatos. A dança, já mais definidamente cajabambina, foi como se
diluindo em todo o corpo de dom Ángel; sentiu que ia se extinguindo
ao longo do nariz, cabeça e cartilagens externas das orelhas.
– Visitamos a fábrica, senhor dom Ángel Rincón? – escutou que
o visitante perguntava, boina na mão, inclinando-se para o chefe com
gestos de “verdadeira gentileza”.
– Em seguida, senhor visitante – respondeu o chefe da Planta. – A
fábrica produz a todo vapor. Nossos barcos pescaram hoje duas mil e
trezentas toneladas de anchoveta.
Dom Ángel levantou do respaldo da cadeira uma blusa de nylon,
forrada com uma bonita lã de angorá; vestiu-a, caminhou para a porta,
abriu e convidou o visitante para sair. Cinco enormes cilindros giravam
no centro de uma área com piso de cimento, cruzada por tubos e cana-
lizações aéreas; eram os ciclones, que, ao funcionar, transpiravam fogo
e lançavam fumaça por cinco chaminés não muito altas. O visitante
parou. O fogo branquíssimo estendia sua língua no interior do cilindro,
sem sair pelo buraco lateral; algo fazia com que o fogo se concentrasse
encarcerado, “perigando”, sem querer e nem poder sair.
– Comecemos do princípio – disse dom Ángel –, um único cholo
comanda estas cinco centrífugas.
– Sabe ler? – perguntou o visitante, enquanto acompanhava o chefe,
na direção do mar.
– Não sabia quando chegou. Dom Hilario ensinou a ele.
– Dom Hilario?
– Quer dizer, dom Hilario e seu filho. Dom Hilario diz: “O traba-
lho algum dia vencerá o capital com o educação…”
Passaram debaixo de roldanas e tanques, correntes e colheres gira-
tórias. O ruído abafou a voz de dom Ángel. O chefe se deteve ao pé de
uma escada de ferro úmida e suja.

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– Venha comigo. Veremos o trommel que Solano impugna e Teó-
dulo lembrará aflito. Za-za-zavala na putaria. Ah! Conhece o Tarta, o
“poeta” gago? – perguntou o chefe, enquanto subia a escada.
– Não, não conheço.
– Sei que Maxe me compara com ele. Disse que sabemos mais do
que podemos falar. Que temos miolo de esponja e a língua pedante,
mais pedante ainda que a do Tarta, apesar dos motivos totalmente con-
trários. Isso ouvi ele dizer. Um enredo calculado desse pescador inte-
lectual, simpático. Já chegamos, amigo Diego. Chegamos ao trommel.
O Tarta preocupa, chama a atenção. Mas veja isso.
Fumaça e arcos de luzes encordoavam a baía pelo lado sul. O centro
urbano aparecia, do alto do trommel, como um braseiro, pequeno e mal
iluminado; ao norte desse braseiro, outro arco de luz e fumaça menos
extenso que o do sul; entre os dois arcos, dois ou três castelos de luzes,
pequenos campos iluminados dos quais saía fumaça, que se desfazia
a meia altura; e a leste dos molhes do porto, a fumaça rosada da Side-
rúrgica despedia sua própria luz, chegando a iluminar a base e o cume
das pequenas montanhas que separavam a grande baía do vale do rio
Santa. A fumaça da Siderúrgica surgia mais alta que a das fábricas de
farinha de peixe; aparecia como uma nuvem de crepúsculo, movendo-se
pesadamente…
– Essa fumaça parece a língua do porto, sua verdadeira língua –
disse o visitante; tem e não tem luz, tem e não tem limites, não desa-
parece nunca. Ascende por estas galerias longas, percorre um labirinto
de torres, minerais, suores e luz elétrica, das tripas mais escondidas de
tanta maquinaria; é difícil sua ascensão, mas parece que ninguém, nem
mesmo as mãos dos deuses existentes e por existir, poderiam detê-la.
O que o senhor acha, dom Ángel?
– A Siderúrgica não preocupa muito Chimbote. Isso está orde-
nado, amigo Diego. Veja: a fumaça rosada sobe em linha reta entre
dois grandes molhes do porto. Vê os molhes? Na escuridão, são como
esqueletos de luz ordenados que entram pelo mar adentro. O mais reto
e que mais brilha é o da Corporação do Santa. Ainda não funciona, é
pura fachada. Custou milhões. Essa fumaça que tanto impressiona é da

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Corporação; leva embora milhões e deixa alguns milhares. O governo
perde ali milhões diariamente. Mas sustenta a fachada de poder. Nossos
molhes de farinha quase não se notam, porém por eles desembarcam
milhões toda noite. Na Corporação tudo está em “ordem”; há três em-
pregados para cada mesa, apesar de cada empregado ter sua própria
mesa. Desculpa, dom Diego, mais ou menos assim fala o senhor. Quem
se preocupa em Chimbote com a Siderúrgica? Poucas pessoas. O sin-
dicato dos funcionários e o sindicato dos trabalhadores estão de braços
dados. Moncada, o louco, conhece todos eles… Eu, meu amigo, des-
prezo o governo como empresário… Mas não lhe trouxe aqui para…
– Esta fumaça parece, por outro lado, como que saindo do seu
peito, senhor dom Ángel. Do peito de todos nós. É rosada, sobre contra
tudo, como se tivesse um pouco de sangue em sua forma incerta. Saía
também da garganta do cego que cantava com voz parecida com a de
um carneiro, nem alegre, nem triste, porém com um ritmo forte. A voz
desse carneiro cego, sentado no chão, me fez dançar, ali no mercado, e
cantava como ferro a partir do chão. Dancei melhor que um beija-flor
siwar, desses que sobem até as estrelas para afiar melhor seu bico, e re-
tornam para as quebradas, enfiando sua pequena lança até o fundo das
flores, distribuindo centelhas de cor mundo inteiro. Estamos apoiados
nesta varanda suja…
Dom Ángel percebeu que o braço do visitante era muito curto,
que suas mãos eram peludas e seus dedos sumamente delgados, com
unhas longas…
– Dancei e ninguém estranhou, fez escândalo. Na verdade, todos
os que estavam na roda junto ao cego me olharam tristes, ele seguia
encostado contra a parede, e depois jogaram algumas moedas no vaso
da cega. Eu fui embora. E esta fumaça também, não aparecia menos
rosada ao sol grande do que agora de noite. As fábricas, como são? E
o que é esse lugar repleto de luz branca, fina, que aparece ao longe, na
direção da rodovia para Lima?
Dom Diego fez a pergunta justo no instante em que dom Ángel
já começava a sentir uma espécie de desprezo frente a seu visitante. A
pergunta saiu num tom quase autoritário.

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– Olha, meu amigo. Aquele é o elegante conjunto residencial
“Buenos Aires”, que os executivos da empresa, menos eu, insistiram em
construir para a alta classe do porto. Eu vivo no vale, atrás dessas mon-
tanhas que aparecem frente a nossos olhos, rodeadas da fumaça que
tanto impressionam. “Buenos Aires” se debate entre a areia e o vento,
plantaram ali árvores que, veja só, estão crescendo na areia e contra o
vento. Os executivos moram bem longe da fumaça e da catinga, mas
também numa duna. E aquelas luzes que aparecem mais perto do porto
são do bairro fiscal da classe “trabalhadora”, El Trapecio. Para lá se mu-
daram Chaucato, Solano, Zavala, Maxe… Teódulo, não. Ele construiu
uma casa e uma loja numa barriada próxima do centro. Como já disse,
a coisa é assim: “Buenos Aires”, logo depois a escuridão, vários quilôme-
tros. Nessa escuridão tem cinco barriadas, entre totorais, água salgada
e vento; depois, novamente, a escuridão; depois, El Trapecio, a região
central, a Siderúrgica e seu bairro, os molhes e mais escuridão, na di-
reção das dunas e do mar. Digamos, umas trinta mil pessoas nas áreas
iluminadas que vemos daqui; o resto, umas… digamos trinta barriadas,
duzentas mil, vive no meio do lixo e sob a luz das estrelas. Assim tem
que ser. Porém, dom Diego, eu queria dizer algo muito importante.
– Sobre a escuridão?
– Sim, amigo. Mostrei a você este imenso arco de luz que contorna
a parte sul da baía, que é quase a metade de toda a única praia de Chim-
bote. Olha bem para ela, amigo. É obra de Braschi. Foi chamado de
louco quando construiu sua primeira grande fábrica aqui, que era puro
deserto; areia limpa, mar sem ondas, um lugar selvagem. Agora há vinte
fábricas, cada uma com seu molhe. No molhe de Braschi descarregam
barcos de dez mil toneladas. “Águia”, é como Caullama o chama, “Águia
imparável, olho do capital”.
– Agora, dom Ángel, Braschi produz, Braschi compra; ele está aqui
e no Japão, na Rússia; produz farinha e produz loucos também, cegos
também; ele e sua tropa de águias imparáveis levantaram voo até as al-
turas onde não existe sol, nem lua.
– Certo, amigo Diego. Creio que o senhor exagera um pouco. Mas,
sim, realiza voos cada vez mais altos… até onde o senhor disse?

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– Até onde não existe o sol, nem lua.
– Isso, pelas barbas do profeta, para dizer em bom português! So-
mente a partir dessas alturas é que se manda, dispõe, ajeita, dá forma
a uma misturança como essa, pior que merda de porco de barriada,
como é essa… país.
– O que o senhor ia dizer em lugar de país, dom Ángel?
O chefe riu. Uma luz forte que chegava da caçamba automática,
um pouco mais acima e à frente do trommel, ressaltou a mirada dos
olhos grandaços e brancos de dom Ángel.
– Ia dizer uma palavra feia, dom Diego.
– Pátria! Não é mesmo?
– Sim. Como você adivinhou?
– Não era muito difícil.
– Claro! O senhor é um pouco especial, escuta, nisso e no outro.
Nenhum índio tem pátria, não é mesmo? Assim me consta. Não sabem
pronunciar nem o nome da sua província. Nenhum cholo, nenhum
negro verdadeiro, zambo ou mestiço, consegue acordo entre eles. São
piores nisso que os índios. Onde está a pátria, amigo? Nem no coração,
nem na saliva. “À merda!”, é o juramento dos cholos, mestiços e negros;
e os índios são uma manada. Estão aí! Nos areais e pântanos, roubando
uns aos outros. “À merda!” Porém, ouça isso, daqui deste varandado
eu afirmo: uns não sabem pronunciar nem o nome da sua província,
outros amaldiçoam o pai e a mãe, muitos se embebedam pra morrer;
no entanto, quando aprendem a usar as máquinas, e mais, quando os
engenheiros explicam o funcionamento das peças difíceis, principais,
das máquinas e de todo o conjunto, estas bestas aprendem um pouco
devagar, mas, com certeza, eu diria, que mais a fundo do que os próprios
gringos. Me entende, dom Diego? Melhor que os estrangeiros, mas sem
concerto, disciplina, verdadeira orientação; sua alma navega sem rumo,
como um carregamento de merda. Assim e todo, de mão limpa e com
coração, que tenho, fiz minha aprendizagem com índios e cholos. Des-
confio dos negros e zambos. Você vai entender; os índios me chamam de
padrinho, os cholos e negros, tio. Mandei construir grandes complexos
de maquinarias com esses cholos. Os engenheiros ficam de boca aberta

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ao ver como acertam estes “nativos”. Algumas vezes, veja bem, eles ficam
enfeitiçados com as tubulações, engrenagens, agulhas, os detalhes das pe-
ças; advinham, em lugar de aprender, seu funcionamento; passam horas
sem pedir hora extra, olhando o funcionamento das peças, seu efeito;
ficam felizes, festejam as máquinas. Não têm jeito. Não entendem; o que
se chama de verdadeiramente entender, não entendem. Compreende?
O visitante, de pé, atento, no pequeno espaço da passarela de aço
do trommel, mexeu as orelhas de forma excessivamente visível, como
um sinal de concordância. Agora parecia mais alto que dom Ángel.
– Compreende, claro – continuou o chefe. Não sei se para melhor
ou para pior. Porém, faço e controlo estes “mestres”. Mas não posso con-
tratá-los, porque a manutenção e a montagem das máquinas são feitas
durante o grande período da proibição da pesca. Três meses. Depois
vão vender batatas, catar lixo nas barriadas. Ficam apenas um mecâ-
nico e seu ajudante… Assim é. Mas não subimos aqui no trommel para
continuar falando besteira, e sim para que o senhor conheça e veja o
que é uma grande fábrica, e como, agora que é a maior, é tocada por
apenas um quarto dos trabalhadores que tinha antes. E o que é Chim-
bote à noite. Chimbote à noite somos nós, as fábricas de farinha de
peixe e óleo. Eu esporro na fumaça rosada da Siderúrgica, que tanto lhe
impressiona. De noite, essas máquinas, nossos molhes e as bolicheras
devoram anchoveta e defecam ouro; isso é vida, não é? Os outros, os co-
merciantes e os milhares de famintos dormem na escuridão natural ou
na escuridão apagada. Aqui, na minha fábrica, tudo está funcionando
e você não vai achar nenhum gringo, um único que seja…
– Estão onde não existe sol e nem lua, dom Ángel…
– Bem, estarão onde você quiser, porém aqui já não precisamos
deles. Vamos ao ponto central. Estou falando muito, não sei por quê.
Ao ponto. Veja: o trommel, este cilindro grande, gira e gira, retirando
até a última gota de água da anchoveta, que fica limpinha; os pescadores
já não recebem nada pelo peso da água. Ali na frente está o tanque de
pesagem automática. Vamos até o tanque; dali, vamos conhecer o pro-
cesso que produz a farinha e o que produz o óleo. Todo mundo fala da
farinha, ninguém menciona o óleo; no entanto… Vamos, amigo.

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O visitante deixou dom Ángel passar na frente pela escada, des-
cendo depois dele. Era uma escada estreita e longa. Dom Diego deixou
o chefe passar, pelo espaço inverossímil para aquele corpo gordo, pelo
lado esquerdo, onde não apoiava a mão na passarela. “A escuridão eu,
a luz elétrica você. Eu vou despertar. Não se desperta da luz. Os perni-
longos são mortos, mas eles nunca morrem.” Dom Diego ia falando e
saltando os degraus. Um homem abriu a porta da casinha de controle
ao ouvir a voz. “Figura estranha que me mandaram de Lima; esquisito
hippie incaico. E elegante, caralho, simpático, pra caralho! Muito estra-
nho. Este Braschi procura cada auxiliar”, pensava dom Ángel, enquanto
descia as escadas gordurosas do trommel e subia a outra, a do ciclone,
que dom Diego escalou como se tivesse quatro pés.
– É um visitante de Lima, da empresa – disse ao chegar à porta da
casinha. É enviado especial do senhor Braschi; vocês sabem que ele tem
todo tipo de auxiliares. Este senhor nunca trabalhou em circo.
– Nunca, em nenhum tempo – disse dom Diego.
Seus bigodes longos, grossos, sumamente separados, seu rosto alon-
gado, terminando em uma ponta que acariciava a curiosidade dos traba-
lhadores, além do corpo desproporcional, a casaca, novamente brilhante
de dom Diego, foram bem recebidos pelos dois homens. Foi cumprimen-
tado familiarmente, quase sem perceber.
– Esta pesadora trabalha com sonar – disse dom Ángel. Foi inven-
tada por um engenheiro peruano. Quando a caçamba enche e o peso
é registrado, a operação é anunciada com som e luz. O operário aperta
um botão, a anchoveta cai e a caçamba começa a encher. É operada por
um único homem. O outro é o pescador que controla o peso da carga
de seu barco. De onde você é? – perguntou ao operário.
– De Pataz, padrinho, departamento Cajamarca.
– Sabe ler?
– Um pouco. Segundo primária.
– E você? – perguntou ao pescador.
– De Buldibuyo; quinto ano de primária, dom Ángel.
– Eu sou de todo o litoral, areais, rios, povoados, Lima. Agora sou
de cima e de baixo, entendo de montanhas e da costa, porque falo com

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um irmão que tenho desde antes na serra. Da selva não entendo nada.
Quantas toneladas levantou seu barco hoje, dom Policarpo? – perguntou
o visitante.
– Duzentas e cinquenta.
– Um dinheiro gordo.
– Mais, muito mais para dom Ángel e a “Nautilus”. Dom Ángel
contou que meu nome é Policarpo?
– Não. Há uma correspondência entre o nome, a voz e o coração,
não é certo?
– Não, senhor. Nem sempre. Aqui, na frota da Nautilus tinha um
zambo Policarpo, que era chaveteiro.
O visitante sorriu. Ouviram um ruído surdo; o operário apertou
um botão vermelho.
– Este chaveteiro tinha uma voz diferente da sua, amigo Policarpo.
– Que graça!
– Assim é a graça, não é mesmo?
– Talvez seja, amigo – disse Policarpo num tom completamente
familiar. A graça, pois, é de cada um.
– Eu moro na barriada La Esperanza e dom Policarpo em El Tra-
pecio – disse o operário.
– Não perguntamos isso, Juan. Vamos.
Dom Ángel tomou o visitante pelo braço.
– Não desça a escada a saltos. Fiquei um pouco indignado com a
maneira com que Policarpo lhe dirigiu a última frase.
– Mas era correta e irrepreensível.
– E o senhor não dá a mesma importância à forma como um exe-
cutivo de empresa.
– Claro, dom Ángel; eu sou executor ouvinte, não executivo.
Chegaram à beira dos imensos reservatórios de mil toneladas. Ali
a anchoveta caía a ritmos e instantes precisos.
Um dos reservatórios estava vazio. No centro das paredes inclinadas
do fundo, duas engrenagens enormes, de aço, giravam, dirigindo para
a comporta seus infinitos dentes. Sob a luz de uma luz alta e distante
que iluminava os oito reservatórios, no centro desse espaço de cimento

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opaco, quadrado, as duas engrenagens brilhavam, devorando o ar. Dom
Diego se apoiou num braço do chefe.
– Estão girando em vão, girando no vazio. É uma demonstração.
Não se preocupe, amigo. Veja: assim, em cada curva oca dentada, a
engrenagem arrasta a anchoveta até a draga de abastecimento. Para os
visitantes especiais, se há algum reservatório vazio, costumo mandar
colocar em funcionamento a engrenagem. Uma é necessária. A outra
é para emergência.
– Realmente me assustou, a engrenagem. Parece que está comendo
ar numa sepultura vazia.
Dom Ángel se alegrou de ouvir esta declaração de seu visitante,
ficou bem satisfeito.
– Você chama de sepultura o que é uma verdadeira boca de mina.
Bem se vê que não entende…
– Amigo, nem sempre entender satisfaz, pelo contrário, algumas
vezes assusta, um pouquinho.
– O senhor, dom Diego! Alegre-se então; olhe para a esquerda veja
estas pás das dragas, umas colheres imensas que sobem cheias dos re-
servatórios e levam a anchoveta para os tanques de abastecimento geral.
A anchoveta não perde seu brilho através das tubulações por onde é
sugada e destroçada, nem nas colheres, nem nas dragas; não perde até
entrar nas prensas…
– Isso, dom Ángel! Parece mercúrio. Não. Também não é prata.
Somente a vida produz um brilho como este que está vendo meu olho.
E nessa pouca luz, o mar envia seu resplendor que nós apagamos e con-
vertemos em outra vida; mas a morte é como essa engrenagem que está
no vazio do cimento. Alguém comanda e ela devora ar; o ar que dão
para comer, não é certo?
– Certo, dom Diego. Peixe grande come o pequeno. Nada de novo,
amigo, se é que entendo bem o que disse.
– Entendido e adiante. Prossigamos. O senhor vai na frente.
– Pois bem! Nunca falei tanto. Porém, verdade seja dita, agora fi-
cou mais claro até para mim o panorama de tudo e por tudo. Agora o
senhor vai entender bem a fábrica, porque até eu também, amigo Diego,

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entendo mais a fundo. E…, ouça, sabia que nos contos dos índios, cholos
e zambos que aqui na “pátria” se contam, o zorro é chamado de Diego?
Agora dom Ángel havia descido dos reservatórios, falava andando.
– Sabia, dom Ángel.
Desse modo atravessaram passarelas de metal, subiram e desceram
pequenas escadas; caminharam debaixo de goteiras de água fria e
quente que caíam dos altos depósitos ou das tubulações, saltaram so-
bre manchas de água oleosa; pararam mais em alguns lugares que em
outros, tornaram a subir…
– Compreendeu? – disse, ao final, dom Ángel.
– Sim, ficou claro.
– Bom. Mas eu ainda tenho que fazer um resumo prévio; sim,
amigo, um resumo prévio: a engrenagem coletora dos reservatórios leva
a anchoveta para as dragas de abastecimento, que enchem os tanques de
abastecimento geral das cozinhas, ou seja, os ciclones. Desses tanques,
a anchoveta passa por filtros para a prensa que espreme tudo. O caldo
passa das prensas para o separador de líquidos e sólidos. O queque, ou
seja, o sólido que sai da prensa, a carne e tudo mais do peixe, espre-
mido, passa para os secadores ou queimadores, que são os ciclones.
Ali começa o processo de produção da farinha. Você já viu os ciclones,
giram com uma temperatura interior de mil graus. Do ciclone, o que-
que sai convertido em scrap, completamente seco, que passa para os
moinhos. Dos moinhos, a farinha, já farinha, é ensacada por um único
homem, que controla um tubo automático; depois, vem o operário que
costura, fechando a boca do saco, que é colocada numa correia trans-
portadora até a plataforma, de onde os operários carregam os cami-
nhões. Os ciclones têm chaminés, produzem fumaça, são barulhentos
e parecem como se fossem o fole central da fábrica. Porém, ninguém
presta atenção ao processo do óleo. Vamos até as centrífugas. Levo você
até lá, em seguida.
Os dois estavam frente aos imensos cilindros que lançavam luz,
mas não calor, na direção do pátio de cimento. Aquela luz e a fumaça
marcavam a figura de Ángel e Diego, diferentes e atentas. As pernas ex-
tremamente curtas do visitante se destacavam, assim como sua casaca,

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que parecia que seria alcançada pelas línguas de fogo que se contorciam
no interior dos ciclones. Dom Diego retrocedeu um passo.
– É que sua casaca, amigo, tem uma aparência de cisco de carvão. Va-
mos, saímos daqui. Os ciclones nunca queimaram gente, mas quem sabe…
– Sim, dom Ángel, quem sabe. Vou atrás.
Atravessaram o pátio, o espaço aberto onde os ciclones giravam;
entraram por um longo corredor onde delgadas tubulações aéreas cor-
riam sobre suas cabeças, na direção de um edifício longo, com uma
porta quadrada. Chegaram a essa porta e entraram por uma galeria que
trepidava com a força que expeliam oito aparelhos estranhos, feitos de
cobre, ferro, lâminas, colheres, arames, um ar feroz comprimido, tudo
debaixo de um teto relativamente baixo. O visitante deteve seus passos
poucos metros depois de entrar. Repirava não com o seu peito, mas com
o das oito máquinas; o ambiente estava muito iluminado. Dom Diego
começou a girar com os braços estendidos; de seu nariz começou a sair
uma espécie de vapor um pouco azulado; o brilho de seus sapatos fel-
pudos refletia todas as luzes e compressões que havia naquele interior.
Uma alegria musical, parecida com as das ondas mais encrespadas que
morriam nas praias não defendidas por ilhas, sem ameaçar ninguém,
correndo sozinhas, caindo na areia em cascatas mais poderosas e fe-
lizes que as cataratas dos rios e torrentes andinas, dessas corredeiras
em cujas margens delgados penachos de palha florida tremulam; uma
alegria assim envolvia o corpo do visitante, girando em silêncio, e por
isso mesmo, dom Ángel e vários operários que estavam sentados ali,
tomando caldo de anchoveta, apoiados nos muros da galeria, sentiram
que a força do mundo, tão centrada na dança e nas oito máquinas, che-
gava até eles, tornando-os transparentes.
– Pelas tubulações aéreas chega o líquido até estas centrífugas! Estas
centrífugas separam o óleo do líquido; veja a água espumosa que es-
corre das centrífugas na direção do canal condutor de cimento! Veja,
como o canal leva uns quinze por cento de sobra, de materiais ricos!
Vão para o mar, mas a outra fábrica de Braschi recolhe tudo! Veja, dom
Diego, como goteja o óleo das centrífugas para os tubos; os tubos são de
cristal. Dá para ver gotejar o óleo. Esse óleo é ouro que escorre as vinte

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e quatro horas do dia, sem parar, sem parar nunca. Desse óleo se fazem
cosméticos, pintura, manteiga, lubrificantes finíssimos, dom Diego. A
água espumosa cai do canal na praia, onde gera uns bichos estranhos
de vida precária. Não servem para nada.
O corpo bastante desproporcional do visitante girava quase no
mesmo lugar, sem se deslocar nem mesmo uns poucos centímetros; po-
rém, como era desigual e a velocidade das voltas não era regular, pelo
contrário, frenética, a forma do visitante também mudava, assim como
a extensão e cor de sua casaca. O vapor azul que brotava de seu nariz
começou a tomar um brilho intenso e se apagou, em seguida, de re-
pente. Dom Ángel percebeu que todos os operários batiam palmas, já
de pé. Aplaudiram quando o vapor sumiu, e o corpo de dom Ángel,
a partir desse momento, mudou um pouco sua música que já não se
ouvia fora, mas dentro, do exterior para o interior do corpo, porque
no silêncio da galeria somente as palmas dos cholos se escutava; nesse
mesmo silêncio, começou a mudar a cor da boina do dançarino, ver-
melho primeiro, depois roxo, depois verde, depois amarelo e finalmente
branco, igual a essas pedras polidas durante milênios no curso dos pe-
quenos rios perenes, que somente sabem conservar e intensificar a cor
branca, verdosa e cinza das pequenas pedras inalteradas em seus leitos,
onde tudo se precipita.
– Estão tomando caldo de anchoveta os trabalhadores! Quer provar,
dom Diego? Quer provar? Estamos contentes – dizia a voz do chefe.
– Sim, um pouquinho de caldo…
O visitante ficou de pé, de frente para a pequena fila de operários.
Novamente as centrífugas fizeram sentir a pressão de sua força e se
ouviu um grande barulho. Dom Diego se aproximou de um que lhe
estendia uma xícara enorme, de ferro porcelanizado.
– É bom, amigo – disse o operário.
Dom Diego sorveu o caldo, tomou tudo de uma vez, tudo. Os ho-
mens aplaudiram.
– Isso é bom – disse dom Ángel. Este jovem é um amigo da Empresa.
– Quem sabe! – quase gritou um operário.
– Um amigo de Braschi…

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– Pode ser…
– Que sim ou que não…
– É a alegria, dom Ángel. A alegria – falou o visitante.
– Quando tem trabalhinho, dom – disse outro operário.
– Aqui está um terço dos homens que movimentam a fábrica. Gos-
tam de tomar caldo de anchoveta nesta galeria.
– E quem não, dom Ángel?
– Terminou a visita, vamos embora. Dê adeus para os cholos.
– Eu, para que vou dar adeus, não é mesmo?
– Claro! – responderam em coro os operários.
Dom Diego tirou a boina e sua pequena cabeça alongada, suas
orelhas um pouco pontiagudas e aveludadas voltaram a silenciar a ga-
leria. Uma ponta da língua do visitante apareceu fora de seus lábios,
sua umidade se converteu num vapor levemente visível; a cor azul da
umidade, que todos viam e sentiam também no ar, refrescou a galeria.
Os trabalhadores saíram atrás de dom Ángel e dom Diego. Permaneceu
na galeria apenas um homem. Fora, por cima da fumaça da Nautilus,
uma coluna ascendente, de cor rosa, sem limites, como a dança de dom
Diego, subia ao céu.
– Disse a dom Ángel que esta fumaça da Siderúrgica parece ser
a respiração de Chimbote. É pesada, de coloração rosada, pigarrenta,
iluminando – disse dom Diego, virando-se para a fila de trabalhadores.
Ainda mantinha a boina nas mãos.
– Quem sabe, dom – respondeu a mesma voz que fez referência
ao serviço e à alegria.
O barulho da fábrica podia ser ouvido com mais intensidade um
pouco distante dela do que em seu próprio centro.
– De verdade, não quer dar um pulo no “Gato Negro”? – per-
guntou dom Ángel ao visitante, já perto do portão da Nautilus. Veja;
são duas da manhã; aquilo deve estar fervendo. Como acabou o perí-
odo da proibição e os pescadores receberam por três semanas duras de
trabalho, nesta hora muitos vão ao “Gato”, antes de embarcar. Lembra
que os pescadores de Chimbote não são menos de cinco mil. Quantos
desse cinco mil não irão esta noite ver “La Caprichosa”, como na guerra,

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sem poder sair correndo depois, imediatamente, para um bordel ou
um hotelzinho barato? “La Caprichosa” acaba de chegar, na reabertura
da pesca; é uma desnudista que encandela coxos, aleijados e velhos. Os
pescadores passam para vê-la e depois embarcam. Mentalmente se mas-
turbam e depois aguentam até sexta-feira, e não somente os solteiros,
escuta. Às vezes, muitos mais, os casados que não podem fazer com
suas mulheres o que fazem com as chuchumecas. Não estão piores que
os soldados americanos no Vietnã, com a Raquel Welch que o Estado
ianque manda para eles. A diferença é que os pobres dos marines não
têm por lá nenhum bordel, acho, mas aquelas armações de bambu…
Bem o contrário de uma chuchumeca do Salão Rosa ou uma grande
puta do hotel “Florida” de Chimbote. Não é? Você, daqui, deveria ir
comigo ao “Gato”, amigo Diego!
– Certo, dom Ángel. Vamos ao “Gato”. Porém…
– Não, Diego. Tudo corre por minha conta. A visita tem que ser
completa.
– Entendido, aceito e agradecido, senhor dom Ángel.
Não perguntou o chefe ao visitante como havia chegado até a fá-
brica. Voltaram para o estacionamento, que ficava junto dos escritórios.
Dom Ángel acendeu os faróis do jipe, colocou luz alta, que iluminou um
extremo da pampa, onde a fábrica depositava a farinha, as últimas filas
de sacos que se perdiam na escuridão, bem longe das colunas de fumaça.
– Até onde chega o depósito, esta pampa, e onde começa, dom
Ángel? Última pergunta. Não vejo o final dessa ruma de sacos.
– Chega até o mar; começa no muro que separa esta fábrica de
outra que está mais ao sul. O depósito corre paralelo ao mar, é sua parte
mais longa. Digamos, quinhentos metros por duzentos de largura. Nem
um terço do campo está ocupado, umas sessenta mil toneladas. Por isso
Braschi construiu aqui sua fábrica. Veja: o farol do jipe não consegue
iluminar o final da ruma de sacos. Não está em linha reta. Existe, entre
o Trapecio e a região urbanizada, depósitos que correm perigo de ser
invadidos ou expropriados. Nesta pampa cercada, que excita, já que
nunca se enche toda com sacos de farinha, você pode ver, meu amigo,
outra face da “Águia imparável”.

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– Das águias…
O huachimán de capacete branco abaixou a corrente do portão
e fez uma saudação. Os faróis do jipe iluminaram a rodovia irregular,
cheia de buracos, coberta de cascalho empoeirado, que margeava o arco
de luzes das fábricas do sul da baía.
– Temos que ir devagar por esta estrada horrível. Sei por que não
foi pavimentada, mas não temos mais tempo para contar histórias.
Quando chegar ao asfalto, vou pisar fundo. Preciso voltar ao escritório.
No portão de cada fábrica aparecia o mesmo conjunto de ramas,
onde se vendiam café, fruta, cerveja, sanduíches, e uma pequena fila de
homens sentados a certa distância da luz.
– Esses esperam em vão algum serviço – disse dom Ángel. Es-
peram seus paisanos e “primos” que são operários. Uma vez ou outra
ficam sabendo que alguém vai faltar e que vai dar para trabalhar uma
noite, oito horas, às vezes, dezesseis… O caldo de anchoveta… Meus
homens trabalham dois turnos alternados de oito horas, ou seja, dezes-
seis por dia… Estes pobres…
– Estão um pouco pior que os ianques no Vietnã?
– São comparações sem sentido. Lá eles morrem mais e devagar…
O ianque arrebenta tudo, não é verdade? É diferente morrer de morte
natural do que na ponta de bambu ou por uma bala.
Passaram junto das margens de um extenso totoral. Havia barracos
construídos muito próximos da água.
– É incrível, amigo Diego – disse dom Ángel. Vivem melhor, ali,
quer dizer, melhor que uma conjunção de patos e pernilongos. Ali moram
pessoas, cholos, índios; tem até algumas vendas, pequenos currais feitos
de barbante, de porquinhos-da-índia e patos, entre o barro de falsa solidez
das margens desses pântanos tão estranhos neste deserto. Ali eles dançam,
alguns dias, enchem a cara, penduram até bandeiras peruanas, sem saber.
– Assim é. O homem aguenta…
– É rei! – disse dom Ángel, dando uma gargalhada. Da estrada para
o mar, e até nas dunas, existem barriadas melhores, muito melhores.
Mas, escuta, estas da aguada não são tão tristes, não sei por que merda
de razão. Tristes não são.

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– É rei, o senhor disse, certo?
– Escuta, amigo. Ninguém sabe puxar a língua de uma forma tão
alegre e fodida como o senhor.
– É que eu não puxo. Eu entro.
– Isso! Entramos juntos, o senhor em mim e eu no senhor. Agora
vai conhecer o “Gato”! Um bom fim de festa.
Chegaram à Rodovia Pan-americana e atravessaram a grande ve-
locidade o iluminado bairro El Trapecio. Automóveis coletivos, que iam
e vinham pela pista asfaltada, bem escura, formavam um cordão de
duplos faróis quase contínuo…
– Os bordéis e as fábricas estão por este lado. Ao norte da baía só
existe um núcleo industrial pesqueiro, o de La Caleta.
– E também ali estão o hospital público, chamado de La Caleta, e
o necrotério, certo?
– Estão ali. Aqui, em frente, o “Gato”. Caleta e “Gato”… Lembra?
Uma curta fila de táxis estacionados fazia guarda perto do night
club. Sobre um muro rosado estava pintada a cabeça de um gato negro,
entre duas palmeiras. Uma espécie de cortina, feita de cana de bambu,
protegia a porta de entrada do salão.
Chegaram a tempo. “La Caprichosa” acabava de tirar a última prenda,
uma calcinha de nylon transparente, cujas bordas marcavam o corpo
muito branco da dançarina.
– Construíram um pequeno palco para ela no fundo da sala; a pista
de dança fica no centro. Deve estar cheio de bêbados – disse dom Ángel.
Um palco especial de dois níveis.
A mulher não tinha as nádegas, nem os peitos e nem as cadeiras tão
grosseiramente opulentas, como as figuras que apareciam nos cartazes e
fotografias de propaganda que o próprio night club expunha nas vitrines de
sua porta. Protegendo o sexo, de forma calculada, com uma de suas pernas;
um pouco agachada, com os cabelos caídos sobre um dos seios, olhando
para os braços que mexia lentamente, “La Caprichosa” exibia um corpo na
verdade magro. Mexia a cintura com certa luxúria bem contida e dirigida. O
salão estava muito escuro e em silêncio. Dom Ángel e seu visitante, bem pró-
ximos da porta, viram um homem magrelo se aproximar, como um réptil,

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até o palco. As luzes que caíam sobre o corpo da dançarina permitiram, a
todos que estavam de pé, ver a figura do homem se arrastando sob a parte
baixa do palco em direção a umas grades que estavam a um lado do salão.
O homem chegou até as grades, ficou de pé e deu um salto sobre o palco.
Levava um maço de notas na mão. Era jovem, apesar de um pouco calvo.
– Deixem o Tarta! – gritou alguém da escuridão.
Foi atendido. No fundo ao palco apareceram dois homens altos,
fortes; ficaram parados olhando, com as mãos para trás.
O Tarta avançou respeitosamente na direção da dançarina. Esti-
cou o braço e mostrou o maço de notas de quinhentos soles, selado. A
iluminação ressaltou a cor do dinheiro.
– Cin-cin-cinco mil soles. P-p-por un beso… en la-la chu-chumeca.
A-a-ahorita.
Falou e continuou avançando devagar, como se temesse assustar
a si mesmo. A mulher olhou para ele; manteve a mirada fixa sem olhar
para nenhum outro lado. A luz salientava a boca aberta do Tarta, que
não era demente, pelo contrário, vinha como quem vai se aproximando
de uma fonte de água florida, com uma ânsia louca de se lançar, sem
ferir ou escandalizar, a fim de acender um raio, de recebê-lo na boca.
Colocou o dinheiro no chão. Ajoelhou. A mulher se levantou com
o mesmo movimento ondulante; girou a perna com que se protegia,
abrindo-a, e se colocou de lado para o público. O Tarta avançou de
joelhos; tomou com cada mão uma perna da mulher. Os que estavam
do lado do palco, para onde a dançarina virou seu rosto, puderam ver
os pelos dourados do púbis da mulher, onde a cara do Tarta fundia
suavemente seus lábios, com os olhos fechados. Depois de um longo
instante, de puro silêncio, ele retrocedeu, sem se colocar de pé. Os dois
homens, que estavam no fundo do palco, correram para a mulher; ela
ergueu o maço de notas e sua roupa, e se deixou levantar por eles, ainda
nua. Desapareceram por trás de uma porta pequena que ela abriu com
o pé. Na escuridão os homens gritavam enlouquecidos.
– Este é o Tarta. Língua de animal e língua desse que na antigui-
dade era chamado de Platão ou Diógenes, ou uma merda qualquer,
amigo. Não, não é um animal. O senhor viu.

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Ninguém respondeu dom Ángel. Também ninguém conseguia
acender as luzes.
– A luz, caralho! A puta que o pariu, a luz! Acende, porra!
O Tarta desceu as escadas e se agachou. Sentiu que uma mão ás-
pera e estreita puxava sua mão direita e a apertava. Ele se deixou levar.
Dom Ángel entrou mais para dentro do salão e também gritou para que
acendessem as luzes. O Tarta apareceu fora da cortina de bambu, na
rua. Um homem pequeno, de focinho longo, sorria para ele; um vapor
azulino saía de sua boca.
– Você, você é uma “raposa” – disse o Tarta sem se aproximar.
Você vem do alto dos montes ou do fundo do Totoral de la Calzada?
Ou eu sou você e por isso não gaguejo? Ninguém fez o que eu fiz com
apenas cinco mil soles na mão. Ninguém, amigo Tarta, entre estas feras
e com a mais desnaturada fera. Isso se consegue quando existe fogo no
coração, fogo de vida, apesar de louca, como a desse cogumelo maldito
de fumaça rosa que se eleva sobre Chimbote, que na verdade é uma bo-
ceta na qual estou enfiado até o pescoço, mas sem me perder. Uma vida
entre cholos desiguais, criollos chaveteiros e chimpanzés internacionais
chupadores de qualquer sangue, de mar, ar, terra, amigo, amigo Tarta.
Tenha cuidado com dom Ángel. É o ouvido do ouvido dos chimpanzés.
Não é necessário me despedir. Eu sou o Tarta.
Subiu a rampa sem cambalear; logo, dali, chamou um táxi. Diego
colocou sua boina, vacilou um instante. Já com luz, o “Gato” se enchia
cada vez mais de bramidos. Todos os motoristas correram para a porta.
Dom Diego começou a galopar na direção do campo fechado da estação
de trem da linha Huallanca-Chimbote. Para isso, teve que escalar os
muros de um depósito de sacos de farinha de peixe, do último que
ainda ficava perto da área urbana. Correu por vários minutos sobre
as rumas de sacos, empilhados de dez em dez. Chegou à linha e ali se
perdeu na escuridão da densa barriada “21 de Abril”.
– Contei vinte mil sacos de farinha – disse. Está me ouvindo?

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IV

Dom Esteban sentiu claramente que Moncada o havia reconhe-


cido no mercado da Linha, antes de engolir o último pedaço de sangue,
terra e pelos do coelho que pegou dos trilhos. O louco procurou com
os olhos a voz de seu compadre que havia dito, com um tom cavernoso
que sempre o deixava incomodado: “cristão reventado!” Mas não con-
seguiu ver bem por causa do grupo de pessoas que estava ao seu redor.
Nesses momentos, Moncada não reconhecia com precisão os indiví-
duos; somente conseguia perceber matizes de figuras, cores, sons que,
por razões muito especiais, encontravam repercussão em alguma parte
de suas entranhas. Procurou por um instante seu companheiro, mas, no
minuto seguinte, já o esquecia. Tragou o bocado de carne de galo cheia
de barro e continuou pregando. Dom Esteban sentiu que o compadre
percebeu sua presença; quando o louco bendisse com a cruz de madeira
os seus ouvintes e rumou linha acima, com a cruz ao ombro, começou
a tossir. Percebeu que era um acesso forte e tirou de dentro da camisa,
na altura do peito, uma folha inteira de jornal; com passo rápido e um
pouco cambaleante, caminhou na direção de um carcomido cilindro
que se encontrava bem perto da cerca que separava o pátio da estação.
Ninguém jogava lixo naquele cilindro; despejavam à sua volta. Entre o
cilindro e o muro ficava um pequeno espaço, aonde vinham vomitar
alguns bêbados mestiços de respeito. Dom Esteban se ajoelhou, abriu
o jornal sobre o lixo podre e as moscas azuis que dançavam sobre ele;
ajoelhado, começou a tossir com calma e soltou um escarro quase com-
pletamente negro. Na superfície da fleuma, o pó de carvão intensificava
na luz sua cor aziaga, parecia aprisionado, como se mexesse querendo
se separar do escarro no qual estava fundido. Dom Esteban tossia com
certo ritmo. Não conseguia blasfemar. Quando sobre a folha do jornal
apareciam laqiadas muitas cusparadas, as mandíbulas de dom Esteban
já tinham se juntado como as de um cachorro quase morto de fome,
porém ainda soprando de forma brusca, inchando e voltando a se colar
no mais dentro de suas costelas e ossos da cadeira. O peito do homem

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roncava como a corda de um wankarcaja seco e desafinado, ou seja, do
grande tambor que tocam os índios de Ancash, sua região nativa. Sim,
dom Esteban retirava sua coragem do ronco do seu pobre e diminuto
peito. Decidia falar quando o escutava. Naquele meio-dia, atrás do ci-
lindro, falou: “Filho de minha vida, filho de minha vida? – disse. Da
foice so filho. Senhor, senhor, senhor…!” Duas crianças pararam para
vê-lo. Os automóveis, triciclos e caminhões atravessavam a linha a pou-
cos passos do cilindro; levantavam poeira. Ainda era possível ouvir as
buzinas e gritos dos uniformizados vendedores de sorvetes Donofrio,
bem como dos pobres vendedores de chupe-chupe que circulavam em
triciclos velhos. Dom Esteban escutou perfeitamente os gritos humildes
desses últimos vendedores, assim como a buzina do sorveteiro, que an-
dava num reluzente triciclo amarelo. De joelhos, temendo outro acesso,
olhava com uma grande esperança de que a mancha que tremulava sobre
a fleuma cinzenta não fosse sangue, mas carvão. As crianças se aproxi-
maram do pequeno homem; estavam descalças. O menino vestia apenas
uma camisa muito suja que chegava até o joelho; a menina usava tranças;
vestia uma saia rosa limpa, mas a blusa era velha e suja; a garota tinha
as bochechas rosadas e o garoto era ossudo de rosto, sua pele era da
mesma cor da terra. Dom Esteban ouviu os passos das crianças sobre
as folhas secas de milho e as cascas dos ovos, a parte quebradiça do lixo.
Do jeito que estava, de joelhos, inclinado, quase de quatro, conseguiu
virar a cabeça. Viu as crianças e se levantou um pouco. Assim pode ver
mais claramente: “E o homem será homilhado – recitou – e o macho
será… Rebentados serão os olhos dos bandido; não, filhinhos, dos al-
tivos.” Assim que ouviram essas palavras, os meninos correram em di-
reções opostas. Dom Esteban sentou sobre suas panturrilhas. Rasgou
a folha de jornal; dobrou com mãos trêmulas o pedaço que recebeu as
manchas negras; dobrou formando uma espécie de caderneta, confe-
rindo que pudesse ser aberto e fosse visível o carvão. Levantou a camisa
e guardou no peito a folha de jornal dobrada. Ficou de pé. Permaneceu
um instante parado. Suas pestanas, negríssimas, um pouco arqueadas e
grossas, estavam tendidas sobre a cavidade sem fundo dos seus olhos.
À medida que foi caminhando, seus passos se tornaram um pouco mais

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firmes e rápidos; sob os arcos de suas pestanas apareceu uma luz que
desenhou um limite para as órbitas dos olhos. Chegou até a esquina do
primeiro quarteirão da rua Buenos Aires. Bem próximo dos trilhos,
uma mulher, ostensivamente vestida de mestiça, levava nos braços um
menino que teria por volta de dois anos; estava sentada no chão, junto
a um monte de batatas e outro de cebolas.
– Quanto vendeu? – perguntou dom Esteban.
– Regular.
– Por que regular? Hoje veio farto gente.
– Regular é, pois. Assim é. Botou muito, é?
– É, botei fora.
– E guardou.
– É, guardei.
– Mas por que, assim, dom? De nada serve guardar.
– Carvão é! Animal, burra. Carvão é! Se chega a cinco onças tô
salvo. Amanhã tranquilo vou Trujillo trazer batata. Já voltou a força. Traz
a huahua.
A mulher passou o menino. Dom Esteban o carregou com um
braço, tranquilamente. “O carvão faz morrer – disse em voz baixa no
ouvido do menino –, mas não deixa feder, filizmente. Filho de meu
vida! Meu vida, pequenino já, mas com tutano que não esfria nunca,
nunca…”
– Vai morrer, Esteban. Fala pior que pescador meliante.
– Pescador meliante, é? Pelo ouvido de minha huahua você me
escuta, animal? Meliante pescador, vai dizendo, putaça? “Ai dos que
chamam os maus de bons e os bons de maus; pois fazem da treva, luz,
e da luz, treva…”
Enquanto recitava, levantava seu filho com ambas as mãos e se
aproximava da mulher que, de pé, permaneceu atenta não às palavras,
mas aos braços descarnados de seu marido que mantinham a criatura
no alto. Dom Esteban colocou o menino no chão, olhou para a mulher
detidamente; um fio de saliva escorria de sua boca. A mulher ficou
indiferente; começou a preparar os sacos, pois já era hora de guardar
as batatas e cebolas. Dom Esteban conseguiu levantar a perna direita e

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tocar o corpo da mulher; no entanto, não conseguiu converter o movi-
mento em um pontapé:
– Existiria compadre meu se não tivesse pescador? – perguntou. A
mulher continuou arrumando os sacos.
– Existiria o Chimbote se não fosse por pescador? Teria na casa
máquina de costurar sapato? Você teria falando com Deus todo sábado,
de sábado a sábado?
E fez de conta que chutava a mulher. Tomando cuidado para não
cair no chão, esticava a perna e tentava tocar com a ponta do sapato
as costelas da mulher. A senhora parou de arrumar os sacos e olhou
para o homem. Este ficou parado, com os braços caídos. Sua mulher
murmurava, não falava em voz alta, apenas mexia os lábios. Dom Es-
teban sabia, entendia que quando a mulher falava daquele modo, para
si mesma, se dirigia a ele como se fosse um cadáver. “Todo mundo do
meu terra que foi pra Cocalón morreu; você também vai morrer – dizia
a mulher. Nem força mais tem pra chutar. Você tá morto, mas tá vivo,
maldição do Senhor. Em so corpo tem diabo ‘em toda potência’ e a sua
boca fala, cuspindo carvão maldiçoado… Coragem que acaba nunca,
diz pro inocente. Putaça, me chama…”
Dom Esteban começou a se abaixar com cuidado, devagar; conse-
guiu esticar o corpo no chão. Deitou e fechou os olhos. Suas pestanas
se cruzaram sobre as pálpebras; ficaram estendidas como cerdas bri-
lhantes, na direção da pálpebra inferior. Seu peito começou a roncar.
“Sua pestana é igual que as patas de São Jorge Voador, anemal bruxo;
seu peito, sanfona do diabo. Nem se confessa! Nem quer conversar com
o Irmão!”, pensou Jesusa.
– Não falo do meu sujeirada com Irmão, nunca, nunca – disse
dom Esteban com voz bastante frágil e cavernosa, como se tivesse escu-
tado o pensamento da mulher. Com o Senhor falo reto, direto.
A mulher percebeu que a huahua chorava. Estava chorando mo-
notonamente já fazia algum tempo. Os poucos compradores que ainda
buscavam alguma coisa nessa esquina do mercado viram como o pe-
queno homem, excessivamente magro, de omoplatas salientes, tentava
chutar a mulher, e seus braços frouxos balançando, cada vez que esticava

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penosamente uma das pernas. Observaram com especial curiosidade.
Quem assistiu à peleja até o final saiu tranquilo, apesar de parecer es-
tranho que o corpo esticado do homem não parecesse tão pequeno no
chão, como nos momentos em que tentava, sem sucesso, acertar um
único pontapé. “Existe homem assim – disse um. De tudo tem no hu-
mano. Pequenininho, mas com jeito de homem.”
Dom Esteban descansou um momento e depois foi se levantando,
com cuidado, até ficar de pé.
– Enquanto recebia, e depois também, como um morto me maldi-
çoando, com a língua pra trás – disse, tranquilamente.
– Seus olhos e sua pestana estão de inferno, Esteban – respondeu
a senhora.
– A candela não é inferno toda vez. A raiva não é pecado toda vez.
Em meu olho tem candela do força que acorrenta a morte, contra d’ocê,
senhora. Assim diz o Irmão. Assim também, em seu modo, fala meu
compadre Moncada.
– Amanhã vai pra Trujillo comprar batata, com tudo que botou
de carvão hoje? – perguntou a mulher. A huahua seguia chorando no
mesmo tom.
– Eu sempre vou – disse dom Esteban. Eu nunca paro. Abre sacos.
Agachou-se. Os dois começaram a ensacar as batatas e cebolas.
Quando chegou o tricicleteiro, que levava os sacos até um dos de-
pósitos que alugavam no final da rua, dom Esteban costurava a boca do
último saco. A mulher levava o menino numa manta colorida, atraves-
sada nas costas, com as pontas amarradas na altura do peito.
Dom Esteban ficou para trás. Novamente estava cansado.
– Em casa dou alcance. Pode ir – disse. E voltou a sentar no chão.
A mulher andava rápido, quase na mesma velocidade do triciclo,
pelo terreno desnivelado, empoeirado, cheio de montes e restos e lixo,
dos quais o tricicleteiro procurava desviar.
Os pelicanos continuavam revoando, cada vez mais baixo, perto
das casas e do chão. Alguns haviam caído de pernas abertas entre os
dormentes. Já não conseguiam ficar de pé. Agonizavam durante algu-
mas horas, ou eram atacados por bandos de meninos, que tentavam

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esquartejá-los. Com as cabeças pendentes, os olhos abertos, tão pe-
quenos em um rosto incompreensível, os pelicanos mexiam alguma
parte de seu corpo, enquanto os garotos estiravam suas patas e asas.
Frequentemente, quando o chefe de alguns daqueles bandos sentia que
estava a ponto de morrer, ordenava que jogassem ao chão o imenso
pássaro e, sobre ele, dançavam cantando alguma música do momento.
Nos primeiros tempos da desgraça dos pelicanos, Moncada circulou
pelos mercados durante várias semanas com uma escopeta de madeira,
que ele mesmo fez de um tronco de salgueiro, defendendo a agonia dos
“coxos”. Não pregou, então. Era temido pelos meninos. Seu compadre,
dom Esteban, era quem lhe dava de comer à noite. Ninguém se atrevia
a convidar Moncada a comer nada nos mercados.
Dom Esteban ouviu que a seu lado um grupo de meninos mal-
tratava um pelicano. Levantou a cabeça e se incorporou. Os meninos
correram para os trilhos quando viram a cara de dom Esteban; acaba-
ram se perdendo no labirinto de barracas cobertas. “Meu compadre!”,
disse dom Esteban e voltou a se recostar. O sol aquecia suavemente suas
pernas, onde mais lhe atacava o frio.
“Compadre meu é complacência. Testemunha de minha vida, eu
também de so viver. Nada mais, pois. Para todo mundo, louco, louco que
manso prega: testemunha de meu vida, para mim. Eu bravo ‘homilde’,
ele, soberbo. Assim na Bíblia Santa; desigual, como o mina de carvão
e o luz dos ‘céus’ qu’intrava pelas janelas da profundura da mina, pois;
onde todos os trabalhadores o pulmão deixamos. Só me restou pouco
de peito; pulmão quase não tem. Pulmão está carregado de pó carvão.
Se boto cinco onças carvão pulmão meu vai aparecer de novo. Compa-
dre meu também sabe. Já pesei, todos, folhas do jornal donde escarro.
Om quilo papel, dois onça pó de carvão já tem. Agurinha terei botado
om grama. Grama com grama vou andar até sarar esse pulmão meu. ‘A
chama devora a palha… O justo perde so justiça…’ Eu pelejo, caraio!
Com o Irmão tamém. Está bem, Deus Senhor, que a so criatura pede
que seje sem aguardente, vim, inveja, vaidade, em so coração. Está bem.
Vaidade dizem pro soberbia. Mas, caraio!, eu não joelho perantes nin-
guém pedindo perdão! Perdão! Eu não joelho nunca por nunca. Por isso

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mi’correram de mina, de restaurante. Viva profeta Isaías, abaixo viadinho
David que chorando chorava! O Irmão diz que sou um pouco demônio e
que vou salvar na hora do morrer… Vou salvar escarrando hasta so final
o carvão que se agarrou dentro de pulmão. Então, paizinho Esaías, já de
meu boca não vai sair sapo, cobra; nem vou patear sem efeito, como ago-
rinha sem força, pra morrir; endenoite nem fazer mais sujeirada até cair
como pelicano moribondo nos lixos. Caraio! Lindo se fala em selencio,
com o pensamento, como o Deus. Igual. Não cansa o peito; mais certo
tranqueliza. E que? Compadre meu estava lendo jornal em mesa so casa,
com lampião querosene; triste luz estava. Mas para compadre meu tris-
teza não existe, caraio! Entrando sentei no so lado. Já estava pra cair em
so estado de predicação. ‘Como era Cocalón? – quis saber. Como morre
ali, disse vosmecê, a joventude do indiada?’, Veje vosmicê, cumpadre,
respondi: De Parobamba fomos a mina vente homens, em dia sinalado
pra nós. Andamos três jornada. Descemos um quebrada seca, descida
de profondeza como enferno. Chegamos casario zinco Cocalón mina.
Seco barranco em frente, seco barranco do lado de socovão. Socovão
pra’baixo, caraio!, mundo negro, língua terra negra, socovão pra baixo,
o barranco; pra’riba, ar e poeira negra namais. No fundo do quebrada…
Sim, porque apesar de ainda são, entonce, cansava boscando palavra cas-
telhano para contar bem, claro, ao compadre. Agora, tanto, tanto pele-
jando pra apriender castelhano, pouco no certo arrimei. Me’rmão menor,
aistá, lindo fala castelhano, rapazim escapou Chimbote, agora, não quer
falar quichua. Bom cozinhero é, restaurante ‘Puerto Nuevo’, grandaço.
Lindo castilhano fala; mas so irmão, doentado, ambolante de mercado,
agora despreza. Caraio! cozinhero iscravo, ingordurado em cozinha. Se-
gunda-feira anda pavão em barriada Aciro. Quem será me’rmão? Carai,
tranquiliza so pensamento, Estebán. Anda reto…”
Não era a primeira vez que os vendedores desse setor da linha
viam dom Esteban despachar sua mulher com o tricicleteiro e a huahua,
depois deitar no chão no mesmo lugar, que era um pouco inclinado e
de terra solta, que antes foi posto de venda de alfafa. Sabiam que era en-
fermo e assim esquentava o corpo, espichado no solo. Os meninos não
o incomodavam. Tinham um pouco de medo dele. Seu corpo, assim

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estirado, dava impressão de estar mais vivo do que quando tossia, com
as omoplatas salientes. Não parecia um cadáver, mas um corpo pesado,
descansando com direito, ao final do barulhento trabalho do mercado.
As moscas também não o incomodavam muito. Na linha elas encontra-
vam bocado melhor que esse corpo magro, com ossos salientes e firmes
em seu rosto tranquilo.
“No fundo do quebrada, perigando, bulhando forte, corria o rio,
que dizem, mayu, pois, em quichua. Lindeza, carai!: do língua carvão
que estirava o mina ao mayu, pra’riba, água crestalino, claro, como o
espelho era; do mayu pra’baixo, carvão salta saltando, negrecendo as
pedras… ‘Não diga mayu, compadre, não diga’, pediu meu compadre.
Obrigado, compadre, respondi. So atenção estava forte, acho, vivo es-
tava. Intonces, segui com me’história: um gringo polonês, era, caraio, o
capataz do mina, o ingenhero era trojillano, coxo de so perna esquerda.
Quanto paga?, perguntamos. ‘Cinco soles diário, domingo não trabalha,
mas paga.’ Está bom, está bom, falamos, todo mundo, os vente. Para gal-
pão fomos levados; cancha grande, folgada; esteiras tinha para dormir.
Forte calor. Do dia descia calor do barranco seco, esquerda, direita, di-
reita, esquerda; fodido. De noite tranquilizava calor. Nem um cachorro
tinha, compadre, em casario mina. Nem molher. Silêncio. Uma senhora
namais dava pensão, barato. Com sos rapaz atendia. Os pedação de
carne, caraio, dava, com batata bom, batata-doce bom. Vinha cami-
nhão, cada semana. Por barranco do lado do mina ia estrada até linha
trem, só até aí perto. Meio-dia descia. Sim, compadre, trem Chimbote
-Huallanca. De enxadero, operador de trilho, ajudante de perforação,
maderador, todo mundo, os vente, caraio, entramos trabalhar. Luz elé-
trico tinha. Meio-dia se descansava um poco socovão adentro. O pes-
soal dormia. Poeira carvão fazia dormir. Três anos trabalhei ali. Mestre
de maderamento fui. Premero, ajudante, um ano já trabalhava. E nisso a
gente alevantava armação grande. Falei pro mestre: caraio, num’tá bem
esse armação grande, mestre. So eixo tronco num’tá firme. ‘Você não
sabe nada, índio parabambino’, mi respondeu agastado. Num’tá firme,
mestre, tornei falando, pedindo. O mestre tinha sobido, vai sobindo…
Pandangam!… o armação no chão. Poeirão forte. Tiramos fora o corpo

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do mestre. So alento poco namais saía pelo nariz. Esticamos o corpo na
mesa da oficina carpintaria… E ali, namais, de poquinho, rio de carvão
saiu de so boca, de so nariz vinha; desceu pro meio da serragem que
tomava o chão, da madeira do pé da mesa escorrendo… Tanto, tanto
água guarda o corpo do cristão! Num minutinho sangue borbojava de
so boca do mestre; preto era, mas era claro o colorado no so dentro e
no em cima do carvão. Borbotejou e a poquinho escorreu… ao último
já. ‘Mais de seis anos!’, disse o capataz gringo polonês. Olhou forte no
ingenhero. Manquitando tranquilo se saiu o ingenhero. Polonês gringo
joelhou. Joelhamos todo mundo. Enterramos numa cancha que se
cortou em precipício, pra cemetério, numa costa riba da mina. Nenhum
cruz tinha. Nem mesmo tomolo de terra que dizem, também tinha não.
Um poco altinho assim, em filas, sepolcros, sepolcros, dormindo enfi-
leirados em lugar terrenoso. O rio cantava sozinho, crestalino. Em so
beirada, retama enclenque, agonia, florescendo. Bebeu de esse flor, ma-
riposa amarela. Cansado chegou, unzinho, doiszinho. Então, compadre,
subiu raiva em meu peito, palpetou louquejando o sangue coração…
‘Contra de quem?’, perguntou meu compadre. Contra de barranco si-
lêncio, desgracento, falei. Mais pior, grande, foi dispois a raiva. Dispois,
quando Jesus Condoroma, um magrelim, paisano meu, despencou em
redemunho poeira, quando perforação fez chover carvoaria em des-
tempo. Tiramos o Jesus dali. Vivo estava. Cruz, com so braço fez no ar
sobre so cara. ‘Parobamba’, falou. E dispois, o carvão, rio mayu, de so
nariz jorrou, igualim ao mestre. Correu pelo chão, porta de carpinta-
ria chegou, alcançando. Não tinha, pois, serragem. Atrás da porta saiu
carvão serpente, fininho correu ainda, um tempim… Dispois, Tríbulo
Garriaso morreu, de Picartambo; dispois, Félix Rivero, de Pircatambo;
Ambrosio Tauco, de Pircatambo; Paulino Ayasa, de Yanama… ‘Igual
compadre? Sangue, água preta?’, preguntou meu compadre Moncada.
Poco sangue, falei; poquim. Aí já ninguém rabiava; selincio a gente en-
terrava. ‘E as mariposas?’ Mariposa amarelo, sempre, pois, chegava can-
sado no plataforma cemeterio. Da árvore pobrezinha, retama pequeno,
sobia ao cemeterio, padecendo. Depois paisanos vimos, nos foneral en-
terros, as mariposinhas. Voavam grande, subiam os bandos, do retamal.

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Vento forte arrastava so asinha no desfiladero barranco, rio pra’baixo ar-
rastava, em grota seco barranco. Levavam elas, umas vezes, pro rio preto
de carvão; caindo caíam. Na poeirama, ali, atoravam. Dom Cristóbal
Ayahuanco, de Yanama, alegrava o tanto quando mariposa chegava até
cemeterio. ‘So lágrima, mensagero do retaminha é, seguro’, dezia. ‘Por
cristão forastero, endio sozinho em Cocalón morte, mariposa chorando
chora, silêncio’, respondia forte. Então: ‘não tem mensageiro de nada,
compadre!’, falou alto meu compadre Moncada. ‘A morte no Peru pátria
é estrangeiro – começou so predicação. A vida também é estrangeiro’,
e dizendo se parou.”
Com o golpe que Moncada deu sobre a mesa, a lamparina cam-
baleou. Dom Esteban continuou sentado na cadeira de madeira, um
momento, enquanto o louco pensava, de costas para ele; os pernilongos
passavam zunindo em todas as direções, apesar de às vezes também
ficarem parados, com suas patas altíssimas, sobre o vidro da lamparina.
Quando Moncada se virou para seu compadre, dom Esteban também se
colocou de pé. Moncada começou a andar sobre o piso úmido, porém
já apisoado, de seu quarto.
– Um monte de terra pantanosa é sua casa, compadre, minha casa
igual, e as casas das trinta famílias que moramos, que nem parasita, no
corpo da Corporação do Santa. Como somos? O que somos, compadre,
dom Esteban de la Cruz? Isso! Como disse exato, um verme que se in-
troduz e depois produz uma ferida purulenta na carne do cavalo, assim
estamos enfiados nesse bairro Bolívar do Totoral. Por que não somos
arrancados com agulhas hipodérmicas? Por que, compadre? Porque so-
mos vermes parasitas no falso ânus dos quinhentos hectares da Corpo-
ração. Estamos ou não estamos nas margens do Totoral de La Calzada,
ou seja, da lagoa, pantanal, aguada, rebrote do grande rio Santa que
corre atrás dessa montanhazinha de Coishco?
– Verdade, compadre, é certo – respondeu dom Esteban, entusias-
mado. Suas pestanas brilhantes e grossas formavam um aramado de
sombra na luz enegrecida de seus olhos, toda concentrada na cara de
seu compadre, que ia se convertendo em impessoal; quanto mais falava
ou olhava, mais impessoal.

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– Certo, compadre dom Esteban. Esta pantanal-aguada é agora um
falso ânus da Corporação. O canal que corre em frente de nossas casas, o
que é? Esgoto do lodaçal; veia falsa, tripa de bosta do lodaçal. E atrás de
nossos barracos está o anel de totora que guarda a água onde, ja, ja, ja!,
algumas garças de branco imaculado procuram alimento. Estamos numa
linguinha de terra barrosenta, compadre? As camas dos moradores que
vivem longe da pontezinha do canal, por acaso não estão com os pés
enfiados no barro, como patas de asno, compadre?
– Sim, compradim.
– Eu estou aqui porque quero. Porque sou o centro das explosões
internacionais de nuvens e flash dos fotógrafos. Aqui serei e sou rei.
No pantanal, falso e verdadeiro ânus do Peru, mundo, Corporação do
Santa. Mas você, compadre, está aqui porque não tem pai e nem mãe.
Estrangeiro, pior que eu, zambo Mendieta y Moncada!
– Como bêbado, compadre. Igualim sou!
Moncada ficou incomodado com esta afirmação de dom Esteban.
Depois de vociferar, olhou para seu compadre detidamente e sua ex-
pressão impessoal foi desanuviando. Dom Esteban viu que seu com-
padre “voltava”. “Senta, compadre”, disse a ele. “Fala”. Dom Esteban se
sentou frente a Moncada. Na lamparina, de pouquíssima luz, alguns
pernilongos esfregavam as patas traseiras. Outros zumbiam. De fora,
do lado escuro do totoral, chegavam grasnidos.
– Continua, compadre – disse Moncada, escutando com atenção
os patos e pernilongos. Igualzinho a um bêbado, é?
– Compadre, mi’botaram duas vez do mercado Buenos Aires
Linha. Premera vez briguei, rabiado, perigando. Os polecias monicipal
me bofetearam, pegaram forte. Segonda vez, tranquilo guardei minhas
batatas, meu cebolinha; esperei duas semanas; dispois, de volta abri
minha tendinha. Nada mi’fizeram. Assim é enquanto barracas com teto
de parede quincha, laberinto, estejam ali. Bom. Segonda vez, tranquilo
sofri, não pelejei com polecia. Estaqueando sapato velho, maquinando
costura farrapo, aguentamos duas semanas. Falei: pobre é que nem bê-
bado perante autoredade polecia, perante ingenhero patrão, dono de
mina, de fábrica…

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– Et cetra, et cetra, compadre.
– Certo, compadre. Igual que bêbado.
– Por que, compadre?
– Quando bêbado fala verdades, verdade verdadera, de justiça so
fundamento Deus, entonces autoredade, polecia, ingenhero, et cetra,
diz: “Tá bêbado, tá bêbado; vai preso, caralho.” E ti levam preso, deitam
borracha. Fodido. Palavra de bêbado, ainda que seje verdade verda-
dera, do Senhor so corpo coração mesmo, não vale. E se quiser fazer
valer jostiça com so força, tamém igual que bêbado não tem as forças.
Facilim te retocam no chão, leva preso; a so família mais pior tamém
abusam…
Moncada colocou a lamparina num extremo da mesa. A luz ilu-
minou de forma trêmula uma caveira, que tinha sido colocada sobre
uma prateleira, na cabeceira da cama, que era um estrado de ferro com
algumas varinhas douradas.
– Bêbados ou estrangeiros, compadre?
– Conhece o Braschi? – lembrou de perguntar a dom Esteban.
– Claro compadre. Claronete! É estrangero e bêbado mais que
você, mais que “Chicote”. Cabeça dos bebaços. Já eu, eu… Não foi Deus
quem me enviou à terra, mas a consciência…!
Dom Esteban continuou perguntando, apesar de Moncada ter se
colocado de pé, com a expressão totalmente neutra.
– Quem abusa desses bêbados, compadre? Quem coloca Braschi
pra correr? Para quem será bêbado?
– Para você, Esteban. Mas bêbado de champaim, de uisqui, francês,
alemão, ianque… Como pode comparar, miserável compadre, ao bê-
bado de pisco venenoso..?
– Chaucato também já tomou champaim…
– Como chimpanzé, macaco de África, gorila. Há bêbados pra’que
sejam surrados, há bêbados estrelas, astros, estrangeiros que tomam
bebida de seu povo-nação de origem e se desafogam no povo-nação
onde amassam a incandescência do sol, a fortuna poder que eu posso
volatilizar, vitrolizar, aromatizar com minha voz que escutam as cons-
telações. Me traz o chapéu que está no cabide, dom Esteban de la Cruz!

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Dom Esteban ficou na ponta dos pés para pegar o cabide, que es-
tava colocado no alto. Moncada, militarmente parado frente à caveira,
dizia algo em voz baixa. Nesse instante, entrou no quarto Jesusa, a mu-
lher de dom Esteban. Trazia dois pratos, fumegantes, de sopa de trigo.
– Compadrinho! – disse. Deixou os pratos na mesa.
Moncada tomou em silêncio a sopa. Olhava em alguns momentos
para dom Esteban. Ficou impressionado com suas pestanas de pouco
arco, grossas e brilhantes. Porém, o rosto do louco já estava meio cin-
zento; suas fossas nasais, “deferentes”, como dizia dom Esteban, respira-
vam forte na luz rala; espantaram os pequenos pernilongos que vinham
zumbindo lentamente e pretendiam pousar sobre o pano branco que
dona Jesusa estendeu na mesa, para guardanapo de Moncada.
O louco terminou de tomar sua sopa. Voltou-se a se perfilar em
frente à caveira; fez uma reverência, pegou o chapéu que estava sobre a
mesa, ajeitou cuidadosamente suas asas, colocou-o na cabeça, bem ao
estilo dos jovens “coléricos”, e saiu a passos largos, com o corpo rígido,
tenso de furores e majestosidade.
– De noite vai pregar? O Irmão diz que é inocente; vaidoso ino-
cente… – disse Jesusa.
Dom Esteban, até então, ainda não havia sido completamente con-
vertido às filas evangélicas. Havia aprendido a ler bem, com o Irmão.
Tinha assistido a muitas reuniões e escutava com interesse e preocupação
os comentários da Bíblia. Começava a se inquietar com a linguagem “de
esse Esaías”. Não entendia bem o que dizia, mas a ira, a força que tinha
ele, o próprio Esteban, contra a morte, bem claramente contra a morte,
seu juramento de vencê-la, era alimentada pelo tom, a “treva-luz”, como
ele dizia, das predicações do profeta.
Naquela noite, o compadre Moncada não voltou ao Totoral. Pregou
com fúria na rua Bolognesi, de esquina a esquina, dando passos largos,
imponentes, de um lado a outro de cada esquina, indo e voltando. “Al-
guns se embebedam para devorar sangue humano quente-inocente, eu
juro! Primeiro embebedam suas vítimas. Como uns pavões de páscoa
florida, estrela matutina que brota de meu dente maior, dessa, desta
presa que tenho, a única. Porque a outra foi comida por Braschi num

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banquete de baleias. Amigos, cavalheiros e cavalos, Chimbote-Peru-
-América do Sul, bêbados estrangeiros! Eu, o único, estrela livre de
todos os céus oceanos. Você, Mohana, bêbado você, Belaúnde, Presi-
dente, bêbado; você, pescadores bêbados, pequenos bêbados que a ba-
leia segura com suas barbas antes de devorar. Prefeito bêbado, alcaide
bêbado; burros aguateiros das dunas… Mas mais, mais, mais Teódulo
Yauri. O ilustríssimo, sua senhoria, padre norte-americano; esse não;
de caridade bêbado, de muita caridade… Levam cadáveres ao Hospital
de La Caleta, grávidas mocinhas bêbadas, à clínica de caridade diocese;
anciãos bêbados ao asilo diocese. Todos, sem astros, sem pulmão-carvão,
orinando preto…”
Caminhou na direção da praça Grau; de forma decidida, no en-
tanto, virou na última esquina da rua Bolognesi, na direção do Grande
Hotel Chimú. Era sexta-feira. Havia um baile no hall principal. Abriu a
porta. Não foi reconhecido de imediato pelos porteiros. Com o chapéu
na mão, esperou que o baile e a orquestra parassem. Quando os casais
se reagrupavam no iluminadíssimo hall, Moncada chegou ao centro do
salão, a trancos largos, calculadamente majestosos:
– Cavalheiros, damas, autoridades terrestres – disse; vou orinar
carvão no encerado deste chão. Não temam! A água-carvão saltará de
“meu olho”, de “meu peito”, do “mensageiro mariposa que na ramagem
flores de retama.”
Vários homens caíram sobre o negro. Algumas senhoritas se ate-
morizaram e correram para o salão de fumantes, outras ficaram entre
surpreendidas e curiosas, custodiados por seus pares, contemplando
o aspecto “majestático” do louco, sua expressão irritada e, ao mesmo
tempo, completamente neutra, abstrata, intensamente iluminada pela
esclerótica dos seus olhos, que é sempre tão predominante nos negros e
que, em Moncada, se convertia em brilhante, como porcelana, quando
estava pregando, e um pouco apagada e mansa, quando trabalhava
carregando peixe ou recebia um prato de sopa de sua comadre Jesusa.
Seu corpo tenso cedeu quando foi rendido por policiais. Permaneceu
calado. Em outras ocasiões havia sido amordaçado com uma espécie
de tapa-olho de mula. Saiu levado pelos braços pelos policiais. Abaixou

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a cabeça, deixou que caísse de lado e fechou os olhos. Exceto uma se-
nhora, os elegantes jovens e damas se esqueceram dele assim que desa-
pareceu através da porta giratória e a orquestra recomeçou a tocar. “É
Moncada – disse alguém. Um louco é um louco. Não tem remédio.” A
senhora Rincón tomou do braço a seu par, o convidado principal dessa
noite, um advogado da poderosa Sociedade Nacional da Pesca; como
percebeu que lhe prestava atenção, disse levantando a voz:
– Moncada é algo muito especial, original. Fala como um homem
que houvesse recebido muita instrução, esse negro. Dizem que, efeti-
vamente, é descendente do Mariscal Orbegozo y Moncada, e que em
seu sangue de negro há algo valioso. Meu marido sempre o leva em
consideração… Não é verdade, Ángel? – perguntou ao chefe da fábrica
da Nautilus, que se aproximava nesse momento.
– Não é um evangélico alienado. Não teve a cachola esvaziada
pelos profetas. É um Moncada degenerado pelo sangue africano e ou-
tros vírus. Uma…, uma espécie de subproduto bem chimbotano, amigo
Lavalle! Vamos tomar algo.
Dom Ángel levou o aristocrático advogado ao bar, para tomar um
uísque.
– Vão dar uma esfrega nele na delegacia?
– Creio que não. Já apanhou bastante. Você viu que ele saiu com-
pletamente desinflado. Devem deixá-lo dormir no chão, em alguma cela.
– E dormirá?
– Não, doutor, “vai preparar” seu próximo discurso, que nunca se
sabe onde e nem como vai pronunciar. Talvez se vista de turco, de índio,
de Batman, de cigana. Acredito que depois desta crise vai se dedicar a
trabalhar um tempo… Mas vejo que é a primeira vez que se atreve a
entrar neste hotel. Ele prega formalmente nos mercados, discursa na
rua Bolognesi. Agora estava… inusitadamente excitado.
– Mas com cara de pau. Eu me diverti – disse o advogado. Acho
que em Lima não existem pregadores assim.
– Doutor, o senhor sabe. Braschi tem assessores cientistas. As bar-
riadas de Lima estão a “mil quilômetros” dos grandes hotéis e mais longe
ainda das zonas residenciais; mil quilômetros histórico-geográficos.

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Sim. Aqui, o que chamamos de centro urbano, ou seja, a parte urba-
nizada do porto, foi traçada pelo grande Meiggs, é de recente data e
apenas uma parte da cidade. A grande Chimbote é feita de barriadas,
e quase todas humildes, algumas bem grandes, mas humildes demais,
de gente dispersa.
– E por que seria de outro modo? – perguntou Lavalle, sorrindo e
olhando para a senhora Rincón.
Dom Ángel reteve na ponta da língua vários argumentos “perti-
nentes”. Mas a senhora, aproveitando a hesitação de seu marido, falou:
– É verdade – disse. Mas Moncada, às vezes, me deixa intranquila.
– Os loucos que pregam são boas misturas de frustrações vocife-
rantes, raciais ou não raciais – disse Lavalle. As barriadas se estendem
como manchas de óleo, senhora, não apenas nas cidades do litoral, mas
também em Arequipa, em Cusco. Conheci a um jovem advogado índio
que, durante sua vida de estudante, dormia numa casinha de cachorro,
em Cusco. Agora depena seus irmãos de raça…
A senhora e o senhor Rincón tinham a virtude de conseguir sus-
citar e manter conversas “transcendentes”, mesmo durante as festas es-
peciais com orquestras e baile do Grande Hotel Chimú.
Os séculos – continuou Lavalle – condenaram para sempre os ne-
gros, cholos e índios… Me permite, senhora? Esta nova música de Cha-
buca Granda é deliciosa e a orquestra não é nada ruim.
Lavalle convidou a senhora e dom Ángel os acompanhou até o hall.
Cerca de vinte casais dançavam. Dom Ángel, de pé, sob o arco
decorado de luzes indiretas que separava o espaçoso hall dos salões do
hotel, dedicou-se a elaborar, de forma clara e categoricamente possível,
os argumentos que apresentaria ao advogado, sobre as diferenças e se-
melhanças que existia entre as barriadas de Chimbote e de Lima, entre
a serra “inca” da qual se nutria Lima e a serra norte, de comunidades
“historicamente mais liquefeitas”, que haviam migrado para Chimbote.
Ele compreendia isso, por experiência própria, um pouco de estudo e
porque “eu controlo esse pessoal das barriadas e o assessor de Braschi
conversava à vontade comigo. Já discuti e mostrei ao próprio Braschi, e
também ao seu estado maior, todas estas coisas.”

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“Dispois, outra noite, meu compadre, mi’fez sentar em so cama.
Estava bem das ideias. Quantos semanas teria passado desde que esteve
preso, causa daquela pregação em hotel Chimú, grandaço, em festas de
chefes de farinha? Quantos semanas teria passado?” “Compadre – me
disse, dizendo –, como saiu de mina Cocalón? Onde foi depois? Como
entrou em Chimbote?” O olho de meu cumpadre, quando não tem so
loucura, é tranquilo, querendoso. Meu perna nem alcançava o chão.
Carai, que graça! So catre de meu cumpadre é altaço, sos pé com rodinha.
Quando era mochacho eu pro negro dizia que capaz não era gente.
Como om homem assim, com so coro oscuro brioso, so mão, so rosto,
so cabelo carvão vai ser gente cristã?, eu dizia. Em de noite, so olho
namais sobressalta. Assim, preto também será sos vergonhas que tem
pa’orinar?, dezia. Agura meu compadre pergontava por meu vida me-
lhor que Irmão, melhor que… será que tive pai? Entonces, falei pa’meu
compadre. Eu nem pai nem mãe conheci. Meu pai foi carneado pelos ir-
mãos de uma mulher que meu pai tinha robado, desabandonando nossa
mãe. Sos irmãos dessa mulher esfaqueram meu pai, dizque carnearam o
pobre em descampado. Nossa mãe, intonces, dança dançando, pisou no
mundo, si’foi longe, a incontrar o estrada qui’dava no litoral. Levou com
ela so filho pequenim; a mim tamém, que era maqtillo, de oito, dez anos
seria, mi empurrou pro caminho do chácara de meu tio Aníbal. “Anda
donde so tio”, vozeando, mi’disse. Di’aí, desse chácara, com otro primo
escapamos pro montanha. Ai, compadrim, compadre! Trabalhamos em
plantação coca. “Inda era menino, então?”, preguntou meu cumpadre.
Não, respondi. Tiria uns treze, quatorze, doze; meu premo era mais ve-
lho, adolescente já. Veja vosmicê, compadrim, a gente era amarrado com
corrente en de noite, o fazendero. Em galpão tinha argolas pregado no
parede; ali, com corrente amarravam os pião. Cachorros ficavam fora,
latindo livre, forte. Pagavam regular, três soles. Pior que em Cocalón
era martírio de so calor do fazenda, do pirnilongo; do pike que entra
em carne, no unha, faz casa no arredor do cu que dizemos aqui e deixa
retalho feio, como maldição. Fugimos desse fazenda Condorbamba; fu-
gimos com meu premo. Dispois de tomar sopinha, noitecendo já, para
fazer necessidade pidimos licencia, e, carai!, no escuro, como serpente

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a gente se foi arrastrano silêncio por so beirada barranco di’um… di’um
água que dizque riacho torrentoso. Montanha bravo era. Meu premo
endenoite mió que leão gato enxergava. Caraio! Por om ponte de so
fibra do maguey com chacla1 passamos barranco e dispois, com fós-
foro querosene que tinha robado meu premo, quemamos ponte: “Ui,
ú ú ú i! Fazendero, maldiçoado, anticristo! A a a i! A á á á i! U ú ú
ú ú i!”, vozeava meu premo. Nas penhasquera com tanta árvore, que
rebentava o coração do pedra manso da montanha; com tanta árvore,
capaz não tivesse ressonanciado o maldição de meu premo. Mas res-
sonanciou como cantar do condenado, feio, em silêncio do montanha
despenhadeiro. De puro gosto fazendero rebentou so escopeta revólver
fuzil. O cachorro tamém triste latia. Caralho!, bravo era, latia pesadaço
rondando galpão donde nós tudo quedava correntado! Mas quando
meu premo gritoriou em silêncio do montanha, o cachorro tamém se
covardou. Pra dizer verdades, cumpadre, eu tamém meu perna tremia
e tremia. Meu premo gritoriava feio, raivosento, maldizendo egual que
se saísse de sepoltura um gente condenado, gretando com so língua do
mundo so candela. O ponte de chacla longo, grandaço, torava no fogo,
ardendo!
“Meu premo gargalhou demais, e dispois, caminhamos sem parar
ventiquatro horas. Om dia mais, a Parobamba chegamos. De ali saímos
contrato estrada ao rio Marañón pa’dentro. Campamento quidamos um
ano. Di’aí, com dinheirim pro capital Lima, fomos vesitar. Trabalhei em
tanto, tanto trabalho de meseria, esperando receber pedacim de terra
em algum barriada. Caraio! Organização se tinha bastante para invasão
barriadas, para cuperativa. Consegui nada não. Centenas tinham clubes
de gente serrano; futebol, festa pro patrono santo faziam, bonito. De
meu terra Parobamba não tinha clube. Em coliseu teatro, canto, baile,
dança costumbrista, música andino serrano programa, cada domingo.
Quase fiquei ali em coliseu ‘Dos de Mayo’, de varridor. De uma dança-
rina Carhuaz calentado de amores estava. Mas, compadrim!, compadre!,

1
Chacla: pedaços de madeira.

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o destino, destino é. Entrei de mordomo de senhora, bunitona, branca,
em avenida Orrantias, casa palácio. Assim homem que erai já, na es-
cola noturna endustrial mi’mandou. Muitos bom. Caraio! Aprendi um
poco escola instrução, sapataria mais melhor. Água quente mi’fez to-
mar banho, sempre, o patroa. Dispois… água quente… Senhora, uma
sujidade fez mi’levou a so dormitorio, espelho, lustre… cama baixim.
Como maldição a senhora sabia que eu erai machaço, mais que galo,
carijó? Carai! Em colcha seda conseguiu colocar com so mão meu lani,
pra fornicar ela. Mas galo, animal é; centenas galinha sobe, igual fica.
Gente é de miolo, o miolo com fornicação vicioso debelita. A tutano
do cérebro mi’chupou noite tras noite, compadrim, em dois, três me-
ses; sujo mi’obregava… O branco do olho de meu compadre, outra vez
como porcelana brilhoseava, gira girando, mi’merando forte. Entonce
contei pra ele, caralho!, a verdadero diabo demônio. É, pois! Om sobri-
nho do senhora tamém querendo… On homem maldição, que so mãe
pariu, dizque, rabo na frente! Meu compadre, entonce mi’falou. ‘Pra Coca-
lón compadre. Não precisa repetir o que por demais é sabido pa’todos
nós, negros, zambos da costa cidade. Como saíram de Cocalón? Como
juntou com a Jesusa?’ O polonês capataz de mina tava decidido fazer
imposição de força. Tarefa na pá, urgente mi’deu; eu mando, outro ho-
mem, grandaço, de Ticapampa, pião a meus ordens. Trabaiando duro,
homem muito do grandaço, de Ticapampa, cansao, acho, enganando.
‘Limpo nada mais não, merdas!’, dizendo, so corpo deitou longe do car-
vão poeira que nós tinha levantado; em lugar fresco sombra si’esticou.
Levanta so vagabundo, viado, grandaço! Arreganhei. ‘Limpo nada mais,
merdas!’ Outra vez dizendo, sos olho fechou, tranquilo. Eu, caraio!, es-
cuta, compadrim, tamém de um de repente bambeza cansanço tinha
intrado meu perna. Caminhei pra um mais longim, como tristecido.
Estiquei o corpo. Meu olho cerrou tranquilo. Meu peito num se fatigou
nadinha. Tranquilo, fresquim, mina adentro… Botado ficou o carro
pesador. Dispois, compadrim, acordei com a vozaria do ingenhero
polonês. ‘Cochino, ocioso, mentiroso’, gretou. O outro grandaço de
Ticapampa em so detrás estava. ‘Ele disse que você si’dormiu como um
porco castrado’, dizendo, apontou com so mão o grandaço. Entonce,

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como do chuncho o flecha, o flecha do índio selvagem, selva Amazonas,
Ocayali, Marañón, desse jeitim, lancei meu corpo no grandaço; em so
peito com meu cabeça ataquei. Pro carvão do mina volteou so corpo
grandaço. Aí embiquei forte. O gringo polonês mi’agarrado por trás
meu costa. Meu braço envergava. ‘Num tem mais trabalho pro’cê, la-
craia encrenquera’, disse. Entonce, tranquilo, devagar, contei; jurando,
jurando, fazendo cruz em meu boca, contei todo o ocorrido, verdade
verdadero. ‘Pra mim se acabou, acho, ouviu, Cruz!’, mi’disse o gringo.
‘Joelha de ver pa’crer; joelha em so diante de Gracián, este de Tica-
pampa’, mi’disse. ‘Joelha vosmicê, gringo de merda, frente meu que sou
Esteban de la Cruz, homem de palavra consciência’, falei, caraio!, com
força. Polonês gringo se foi silêncio. O Gracián, de Ticapampa, deixei
ele parao… em dois dias mi’fizeram endenização. Trezentos soles. ‘Te
enganaram firme, compadre – falou meu compadre. Trezentos soles
por três anos… Despedida intempestiva…’ Trezentos soles, dinherim
bom!, disse. Sobi a um lugar pequenim, riba arriba de Cocalón, lugarejo
com cabra farto, com fruta, limão, romã, banana, pacae. Ali conheci
a Jesusa. Era so cozinhera de’um senhora que tinha tendinha fonda
restaurantezim. De noite escapamos. Esse senhora está agora em Chim-
bote. Tem barraca grande verdura, mercado Bolívar. Caraio! Dispois, de
Parobamba descemo otra vez Chimbote. Parobamba, vilazinha andina,
nu’tem esperança; porquim, ovelhinha, chacrinha pequeninha, um coi-
sinha, dois. Fazenda grande tamém silêncio, obediencia, boca cerrado.
Silêncio comem lá, alturas, serra que dizemos, compadre. Em so tripa
de serrano, em so veia sangue do serrano que já provou Trojillo, Lima,
Chimbote, em so peito adentro, mais toavia, silêncio, cemeterio é o que
sobra quando fazem ficar em so terra gentes. Quando desce pra costa já
tamém, lembra so enfância, morros, festas com traguim, pito e tambor,
violin; chora silêncio, tantim namais em trabalho homilde, disprezao,
caraio! Entonces… em meu terra; num’tem esperança dizendo. Vamos,
Jesusa, pro Chimbote, porto grandaço!, falei. Mesmo no manhã se-
guinte descemos ao roduvia. Seis ano chupitero, ganho regularzim, fui
sendo. Agarramos este brejo totoral do Corporação; casinha mosqui-
tada levantamo. Vosmicê alembra, compadre? É, compradim, vosmicê

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mi’ajudou de puro vontade. Levantamos casa adobe, pedra cemento,
piso cascalhado. ‘Eu sei amansar lodaçal’, dizia, falando, ‘gosto’. Dispois
mais melhor Irmão evangélico visitando Totoral; bastante em vindo,
homilde, bonito falando. Leu Bíblia. A Jesusa levou premero para so
igreja, com meu lecencia.”
Moncada se levantou do catre. Tinha as pernas um pouco
adormecidas.
– O evangélico não toma, não mente, é limpo – disse. Mas… seu
alento, quero dizer, sua vida, tomado em seu completo, é desabrido. Não
tem sal, compadre, menos ainda pimenta. Nem animal, nem pessoa com
seu rim de gente, com sua língua completa de gente, com sua barriga
e entrepernas completos; o evangélico está fugado. Seu canto também
é desabrido, não é verdade, compadre? Vosmecê gosta dessas músicas
com violão que eles cantam? Nu’é violão, nu’é alegria, nu’é tristeza. Até
o cachorro, o carneiro, faz sentir sua vida quando late um, ou quando
brama o outro, ao sentir a faca no pescoço.
– E o porco, compadrim?
– O porco é majestade em seu… claro, compadre!, em seu falar.
Já criei meus porcos em curral ou na chacra, mas não do guardado em
granja. Muito aprendi dos porcos. O sentimento, o alegria que é comer
sabendo no focinho, assim de longe, na língua, o calorzinho, o cheiri-
nho do alimento misturado de farinha de peixe com outras coisinhas;
o rumor “profondo do garganta” como vosmecê diz, temperado, com
sua melodia como seda ou como tripa, em que as chispas e raízes do
mundo, da própria entranha da terra se manifestam; esse grunhido,
compadre. Aí, no grunhido destintos do porco, se sente, compadre, a
água quente e a água fria, o barro, o mar limpo; o “pestelencia” e como
vosmecê diz o desafogo “contentaço” de defecar, do arroto ventocidade.
E quando soltam os porcos para tomar banho, compadre? Chicoteiam
com seu rabinho o ar; seu corpo gordo não salta muito, mas ninhum
animal, nem gente, de alegra assim de seu movimento do corpo…
– Mas faca passam nele, compadre.
– Quando já está muito gordo. Pronto pa’morrer como ninguém
nenhum!

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– Compadre – disse dona Jesusa, entrando na casinha de Moncada
–, o Irmão namais vai salvar so vida do Esteban. Vosmicê diz a ele. Vos-
micê é respeito para dom Esteban.
– É médico o Irmão? É curandeiro, bruxo? – perguntou o negro.
– Trençando ali fora, beira de corgo escutei o que vosmicê dize do
evangélico. Vai ver, vosmicê, cumpadre; quando Esteban confesse seus
pecado grande… joelhando…
– Peço perdão a ninguém não! Num joelho perantes ninguém.
Irmão…
– Nu joelhando nem que seja, pois, Esteban. Assim como cumpa-
drim, assim só, confessa. Te salva.
– Ao contrário, comadrinha – disse Moncada. A confessão apura
a morte quando tem enfermidade grave; engorda a saúde quando tem
saúde.
– Compadre – replicou entonces Jesusa. Nesse lugar de donde o
Esteban mi’robou, lugarejim, morriam tanto pião que chegava de mina
Cocalón. Sentavam em mesa tendinha. Comiam pãozim, frutinha, to-
mavam leitim cabra; dispois morriam, magrim eles. Mosquitos comiam
so preto carvão que de so nariz corría. Otros, com so bastãozim subia
pouquim a costa. Alegres inda iam seguindo a costa. Limoeros pendu-
ravam limão do quintal pelo caminho. Aí paravam, aí caíam. Toda gente
morreu, compadrim, tudim ali morreu!
– Meu compadre dom Esteban de la Cruz não vai morrer. Ele jurou.
Não vai morrer cuspindo carvão. Talvez de Parkinson, ou de sífilis, talvez
de câncer, senhora.
– O que vai deixar pa’sos filho? Essos pião que em Liriobamca
morria, seja no restaurantezim, seja na costa, um sacolinha de dinheiro
deixavam.
– Liriobamba?
– Assim é o nome desse lugar fruta no barranco seco, arriba,
riba de Cocalón – disse dom Esteban. Ali tinha cemeterio verdadero.
Nunca vinham os parente dos mortos. O pião, infermo, declarado, so-
bia o costa barrancoso para Liriobamba. Cansava pa’eterno. O carvão é
traiçoeiro. Em Liriobamba chegava sentenciao já. Morria em qualquer

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cantim. Escuta, compadre! Sobiam, sem falta, costa Cocalón-Lirio-
bamba, mesmo que so olho apagando já, perna tiritando, chegavam
Liriobamba, sempre. Ali morriam ou mesmo no Cocalón mina. O bol-
sinha do pião, chuspa que dizemos, com o dinherim, quidava pa’o padre,
pa’igreja, pa’cemeterio, pa’escolinha tamém. Cemeterio Liriobamba tem
fachada arco, árvore cipreste, lindo. Ninguém das parentelas do morto
chegava. Longe é Cocalón, barrancoso, qaqcha, ou sija, que ressonga
com morte no alma do cristão que anda boscando destino em terra
estranha!
– Mas meu comadre Joliana, que so restaurantezim tinha, gardou
dinhero do sacolinhas dos mortos. Com isso desceu Chimbote, pa’so
filho treciclo comprou…
– Liriobamba! – disse Moncada. Liriobamba? Tinha lírios?
– Não, compadrim – respondeu a Jesusa. Limoero, pacae, banana,
maracujá.
– Não tinha lírios?
– Não, compadrim. Nunca.
– Com razão, Jesusa, comadre, você quer sacolinha de dinheiro;
que dom Esteban de la Cruz, serrano bravo, deixe pra você de herança
sacolinha com grana. Que confesse pro Irmão evangélico um pecado
grande, não é isso? Meu compadre carrega lírio em seu pulmão, lírio
preto deve ser, mas é flor. Não vai joelhar frente de ninguém. Não vai
preparar sua morte, nem a confissão, nem a canto desabrido que nem
vida é, nem oração, sal ou pimenta. Meu compadre comprou máquina
de costurar sapato, grande, suave, com manivela parecida com o guin-
daste de uma molhe de primeira, não é? Tem que caminhar firme
quando peleja com a carcancha2, igual que dom Esteban, caminhar,
com seu lírio negro desangrando em meu peito, coração. Vá si’mbora
vosmecê! Com respeito digo isso, comadrinha! Com todo respeito!
Moncada tomou do braço a dona Jesusa, que começou a chorar
forte. Guiou a mulher pela beira do canal, sustentando-a pelo cotovelo.

2
Carcancha: morte.

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Os sapos volteavam na água; a pestilência do lixo apodrecido que vinha
do bairro Bolívar, muito próximo, ao totoral, pesava no ar. Dona Jesusa
apertou o passo, Moncada a seguiu segurando seu braço. Na casa de
dom Esteban, o menino maior, Amílcar, estava chorando.
– Liriobamba, compadre? – perguntou Moncada, assim que en-
trou de volta à casa. Isso significa pampa de lírios.
– Certo – disse dom Esteban. Balançava os pés no ar, porque não
chegavam a tocar o chão. O catre do louco era muito alto. Compadre,
estou pensamento… Talvez o evangélico de Chimbote é…, como dizia
vosmicê? Desabridoso?
– Desabrido.
– Isso mesmo, em quichua, mais certo dizem qaima. Mas, diga
vosmicê. Esse desabridoso, qaima, faz conhecer profeta Esaías. Gran-
daço é; parece ouvir o Huascarán, monte neve maciço, com negros pe-
dras em sos partes feios. Veja só, compadre… “Sos olhos alevanta nos
arredor… andarão na luz… veja… estes se juntaram… sos filhos virão
de longe (como vosmicê, compadre, como eu tamém)… sobre o lodo
serão criados… então verás, resplandor… se maravilhará so coração,
ensanchará, tempestade…”
Moncada viu que o corpinho de dom Esteban se afiançava no ar,
ganhava peso, enquanto recitava, porque seus pés não chegavam ao solo.
– Liriobamba, disse vosmecê, compadre, enantes? Vômito negro?
Mariposa mensageira que se alevanta como mensageira do rio; chega
cansadinha onde o morto que tem ninguém… Vosmecê, compadre, não
é evangélico, vosmecê quer enterrar a morte, não é assim?
– Enterrar, compadre, para sempre nunca mais amém!
– Compadrinho, compadrinho, mas os profetas assustavam com
a morte. Eu também li. Aqui, em Chimbote, centenas de evangélicos
de toda laia andam pelas barriadas. Por que, compadre, não vão pra
“Buenos Aires”, bairro dos graúdos, pro hotel Chimú, ou mesmo pro
Trapecio, onde moram os capitães de lancha elegantosos? Por que não
cantam ali com seus violões? Não gosto, compadre. Que limpem com
sua Bíblia o ar de estrangeiro mandão sem lei dos patrões. Que não
fiquem cantando como pássaro dissecado nas barriadas. O pobre não

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precisa de consolo. Pisar na terra, compadre, sem medo, sem medo.
Mais firmeza toavia que vosmecê e eu, qui’andamos foribundos nin-
guém sabemos bem pra’onde.
– Exato, compadre! – exclamou em bom castelhano dom Esteban,
e continuou: “Está de candela inferno extraviado as consciências.” Pro-
feta Esaías fala… Desconfio eu, sempre, de evangélico, de padre pároco
pior. Jesusa diz que ando demoniado.
– Estamos demoniados, compadre! Mas quem não? Se eu não jogo
cascalho e terra no chão desse meu quarto a cada dois meses, a cama
afunda na lama, né mesmo? É daqui, também a Corporação vai botar
a gente, compadre.
Dom Esteban escorregou da cama para o chão; ficou de pé e co-
meçou a tossir.
– Amanhã não trabalhe muito na máquina, compadre.
– Claro, compadre, vou indo.
Conteve a tosse. Moncada o levou carregado. Pesava muito pouco,
mais ou menos como um carneiro. Dom Esteban deixava se carregar
por seu compadre, quando era de noite. “Fortaço vida, so braço de meu
compadre”, dizia, enquanto o louco o levava, devagar, pela beirada do
canal. Deixava-o na porta de sua casa.
– Não tinha, de verdade, lírios, compadre? – tornou a perguntar
essa noite.
– Nunca. Limoeros, romãzera… tranquelidade pa’o morto.
Os vizinhos se inquietavam com esta amizade do vendedor de
chupe-chupe com o negro Moncada. Dom Esteban era desacreditado
por sua mulher dia trás dia. “Vai se condenar”, dizia, segredando, dona
Jesusa. Alguns, bem poucos, viram Moncada carregar dom Esteban. So-
mente à noite, quando já era muito tarde e a tosse atacava, é que o negro
levava seu compadre carregado. Baixava-o de seus braços com muito
cuidado, e ele ia na direção, quase sempre, do bairro Bolívar, na região
urbana. Cruzava a ponte de madeira e barro que os moradores do To-
toral fizeram sobre o canal. Caminhava sozinho, contendo as ânsias de
falar em voz alta. As conversas com dom Esteban o deixavam calmo ou
ensandecido. Quando suas ânsias de falar não se acalmavam no passeio

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e, pelo contrário, as caminhadas, ou sua casa, com a presença da caveira
na estante, toda a noite, deixavam-no mais excitado, ele decidia quem
seria, como quem amanheceria no dia seguinte, para pregar pelas ruas
e mercados. Costumava se concentrar até chegar ao ponto em que sua
testa suava. Já com o rosto neutro, aproximava o lampião de um imenso
baú que mantinha cheio de trapos, vestidos, chapéus, cordas, correntes,
bastões, pedaços de redes de todo tipo, colares, correias, enormes cor-
chos amarelos boiadores de boliches anchoveteros. Confeccionava cui-
dadosamente seu traje. Unicamente naquela noite em que foi pregar no
Grande Hotel Chimú, sua decisão foi tão súbita.
Por outro lado, quando dom Esteban era levado em braços pelo
negro, entrava em sua casa e começava a tossir. Estendia folhas de jornal
pelo chão, no escuro. As folhas estavam bem colocadas, bem ordenadas,
sobre um caixote, junto da porta. Ali tossia, sentindo as bordas dos jor-
nais nos dedos. Dona Jesusa rogava, implorava que falasse com o Irmão
e, depois, começava a insultá-lo. Dom Esteban riscava o fósforo; olhava
os esputos pretos, dobrava a folha no escuro e a colocava em uma caixa
bem grande, sobre as outras folhas já guardadas. Tampava a caixa, co-
locava em cima uma manta e, se Jesusa não o insultava, se estava im-
plorando, dizia: “Eu confesso como manda prencípio do religião, com
Deus, sozinho, nada de Irmão.” Se a mulher o insultava, procurava fazer
sexo com ela e a possuía com certo desespero. “Vai morrer, de um de
repente, como o raio mata na jalca3 o guanaco ou se não, vai inchar
como venenado”, vociferava ofegante a senhora. Dom Esteban ficava
exausto, mas furibundo. Recitava, sem conseguir se fazer ouvir, pedaços
de Isaías, oriundos e desconexos: “Virão chora chorando a so pessoa os
filhos que te homilharam… nas pisadas de so pé se curvarão… o mais
pequenim valerá por mil… Caraio!”
Dom Esteban se levantou alegre, depois dessa tarde de meditação
e lembranças, no chão do mercado da Linha. Sentado, viu que o lugar
vazio não era tão grande como quando estava repleto de gente. Apenas

3
Jalca: puna.

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depois da loja do grande atacadista, que vendia toda classe de grãos, fa-
rinhas, batatas, cebolas…, ainda havia gente pesando sacos nas balanças
que continuavam fora, junto da porta. Ficou de pé, tranquilo, descan-
sado. Começou a caminhar linha acima, por um caminhozinho que
existia ao lado dos trilhos. “Vou terminar de pensar andando”, disse.
“O pensamento em deveras é coisa de Deus, não faz cansar corpo, mais
certo faz entrar força. Será porque pura raiva, pura vengança namais
lembrança, assim com força? Meu compadre, carai, meu compadrim,
lindo! Mariposa mensageiro. Certo! Mariposa negro existe. Lindo é mari-
posa negro, quando batendo asinha, melhor que girassol, que amarelece.
Assim o carvão vai bater asa fora de meu peito, compadrim, quando
teje botado tudim. Jornais vão voar…”
E lembrou que uma tarde, enquanto pedalava seu triciclo de chupe-
tero e acabava de tocar sua buzina, foi detido por um policial municipal.
Fazia calor; era quase meio-dia. Dom Esteban acabava de percor-
rer o mercado da Linha e o então recém-inaugurado mercado do “21 de
Abril”. Tocou sua buzina com alegria; mas o sol o sufocava e queimava
forte em seu peito. Sentia curiosidade para conhecer esse ardor repen-
tino que lhe sobrevinha em lugares que não recebiam o sol de frente.
Algumas vezes chegou a parar para pensar nisso, porque sentia uma
espécie de estreitamento na garganta. Era uma dorzinha. Sua mulher já
tinha percebido que ele emagrecia e que a cor do seu rosto começava a
parecer com a dos mortos de Liriobamba, e apesar de que ela já o tinha
visto regressar da mina fogoso de energia, pelos olhos e pelo corpo
todo, mesmo pequeno como era, e à noite a procurou e encontrou na
cozinha, e a arrastou para a cama sem dar tempo nem mesmo de pensar,
não deixando que ela dormisse até entrada a madrugada, Jesusa temia.
Mas dom Esteban construiu a casa; endureceu, à base de terra, lixo e
cascalho, o estreitíssimo terreno pantanoso que existia entre o canal do
esgoto e a própria beira do tremedal, e mais ainda, conseguiu assoalhar
a “sala”, o primeiro quarto onde enquadrou, com ar de vencedor, a má-
quina de sapateiro, enorme; então ela, Jesusa, confessou ao Irmão que
seus temores eram de tanto ter visto morrer trabalhadores de Cocalón
em Liriobamba. Seis anos se passaram. Jesusa instalou seu posto no

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mercado da Linha; pariu dois filhos. Dom Esteban era sim, às vezes,
repentinamente iracundo e seus acessos de cólera se tornaram mais
frequentes. Há mais de um ano despertava à noite um tanto asfixiado
e então começava a chutar os caixotes, as paredes e, finalmente, chu-
tava a mulher; pronunciava imundícies e, depois, cerrando os punhos,
recitava versículos de Isaías. “Que desafogue comigo”, tinha pedido o
Irmão. “Que confie em mim.” Com o ar peleja Irmão, com escuridão
troca soco; não encende luz. Não quer encender. Diz com sua raiva
doentia: “Davi veadinho, caralho! Esaías candela!” Dispois me aperta
como serpente ou arranca meu sangue do nariz de pancada. Quando
acende luz, deixa levantado so cabeça. Não arrepende; faz brilhosear
sua pestana, de frente. Olha meu sangue de assim, do parede, como
porco, quando pensa. Diz que escuta o sapo que faz contra a musiqui-
nha do pernilongo e do cigarra. Para o Esteban sapo é animal de res-
peito. Num está duente, está duente? De seu pulmão, Irmão, ou de seu
célebro está duente? Quando encende o candeia, ainda que meu boca
teje de sangue, mi’faz ouvir o sapo que grosso canta no canal. “Esaías
– disse, Irmão, como herege, o Esteban. Sapo Esaías; cigarras, gente pe-
queno, nós, mosquitinhos, fudidos, bêbados que’nascemos de montoera.
Do barro pretejante fala sapo contra do escuro, bravo. Num faz nele
contágio pudridão homildade, barro brejo, caralho. Pa’ele num tem es-
curo; o contrário. Este homanidade vai desaparecer; outro vai nascer do
garganta do Esaías. Vamos empurrar montes; pedregal pa’trazer água
pro entero duna; vamos fazer jardim céu; do monte vão despertar ani-
mais qui’agora têm susto do cristão; mais que caterpilar vão empurrar…
tudo, caralho, tudo; vão agrandar quebrada Cocalón, mariposa amarelo
vai respirar lindo. Esse totoral namais vai quedar para lembrança do
tempo do sangue do Jesusa, do predicação deo meu compadrim.”
– Acho que estou fudido, Jesusa – disse ao chegar à casa. O mo-
nicipal, de ser por gosto, na calor que fazia mi’levou hospital Caleta
“Onde está caderneta saúde?” dizendo. Caraio, ali mesmo me fezeram
entrar câmara raios. O diabo tenia feito limpar pa’mim hospital Caleta
onde é pior que mercado Linha, não é? O doutor mais velho mi’olhou

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feo; o doutor novo mi’compadeceu. Pior, caralho! Deixei treciclo fá-
brica. Licencia até quarta-feira.
O doutor “velho” sentenciou que ele tinha os pulmões destroçados;
que separasse os talheres com que comia; que, se tivesse casa em Pa-
robamba, fosse embora. O doutor jovem marcou uma consulta para o
dia seguinte, mexendo a cabeça, como desaprovando a sentença. “Mal,
está fodido paisano”, disse-lhe o doutor jovem, no dia seguinte. “Você
não é tebeziano. Está com os pulmões atacados de carvão. Não precisa
separar os talheres. Não trabalhe em coisa pesada…” Anos já saí de
Cocalón, dotorzim, anos já. Em fortes trabalhos trabalhei, doutorzim.
Qui’fazendo, pois, agura… “Nada de força. Graças a Satanás ou a Deus
você tem vivido bem com esse polvorim no corpo. Para você tanto faz
serra ou costa. Deixa o triciclo.” Já deixei de lao. Agura, me diz vosmicê,
quanto, quando, pois, vai vim a carcancha? “Pra você não tem tempo
certo – respondeu o doutor jovem. Tem medo?” Medo nunca, caraio, ou
é o mesmo que a raiva? Ninguém tem medo em Cocalón. Igual na mais,
candela afora, candela boca mina dentro carvãozim. Treciclo. O vida é
aguantar, caralho, aguantar. Dispois jorra serpentinha negra do nariz
boca, finim. Vamos cigarra! Cumprimentou o doutor, inclinando-se.
E a partir do dia seguinte passou a procurar em todas as barriadas
os “cocaloneros” de seu tempo, os que diretamente da mina tinham
descido para o porto, e outros que, como ele, deram volta por vários
lugares e trabalhos antes de chegar a Chimbote.
Os mercados da Linha e da rua José Gálvez eram bons centros
de notícias. Era possível escutar ali que tal ou qual “cocalonero” tinha
morrido, tossindo seco e inchando-se horrivelmente na véspera. Che-
garam a saber que os enfermos que regressaram à serra voltaram pior
a Chimbote ou morreram em seus povoados. Bairro por bairro, dom
Esteban foi comprovando que todos os “cocaloneros” já tinham sido
enterrados, todos os “enganados”, menos um, um primo de sua mulher.
Morava no bairro Acero, não muito longe do Totoral.
Quando o encontrou, estava deitado na cama, coberto da cintura
para baixo com um lençol.

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– Carvão ocê tosse? – perguntou a dom Esteban.
– Uma vez na mais: de um de repente, na porta do Fábrica. Me’as-
sustao, irmão, porque preto era, pretinho o saliva, como com coroa
de luto.
– Se salvou, Esteban, caralho! – disse o primo. Mesmo em Lirio-
bamba um “cocalonero” ficou tossindo carvão. Dia noite tossindo esteve.
Dispois, tranquilo si’foi pra so terra, de Parobamba pa’baixo. Vistei’ele;
conversemos. Com boi está arando; está tendo filhos. O bruxo qui’fala
com espírito do montanha, aukillu, sentenciou; se o corpo retruca o
carvão no esputo, livre o corpo fica. Eu seis onça valia. Devagar, pa-
gando so obrigação falei com bruxo. Ocê, pequeninho é. Vou dizer:
bota cinco onçae e, jáistá, irmão! Livre vai ficar! Paga preço so vida
qui’deu pro capitão polonês mina Cocalón. Livre também Cocalón vai
ficar! O aukillu sabe.
Dom Esteban ficou como porco pensativo, ouvindo, olhando o
lençol. O primo explicou como devia tossir nas folhas de jornal e de-
pois, a cada mês, pesar as folhas com esputo e sem esputo. Se chegava
a cinco onças, podia cantar vitória. Assim havia sido instruído pelo
bruxo.
– Quantas onça parobambino de baixo qui’tá tendo filho, irmão?
– Aukillu bruxo sabe; sete onça. Tamanhão tem. Eu, nem um
adarme botei. Nadinha.
– Primo, caralho – disse dom Esteban. Ocê, fudido já entonces.
Como homem cigarra vai morrer de carvão. Filizmente bom morrer
vai se dizer: assim deixa titulação casa, barraca mercado monicípio,
bairro 21. Assim é que capitão polonês mina carrega carvão qui’nós
afocinhamos pá varreno? Dispois, todos pião trabalhadores cravados
carvão-veneno quidamos? Espírito aukillu cobra de pião natural endí-
gena. Num cobra de gringo estrangero? Num cobra?
– Aukillu, montanha amigo, senhor grande. Sabe.
– Capitão polonês gringo, mais rei entonce, primo?
– Espera, escuta, Parobamba. Gringo é desabrido – e o primo estava
já cansado do peito, como um fole carunchado. Gringo polonês soborna
governo, primo. Bota carvão, Esteban, Irmãozinho, dia e noite! Pesa

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bem. Bota de so peito quatro onça, um já’terá retrucado; cospe gringo
polonês! Carvão mundo voltea volteando! Dois tem que ter qui’bota-
ram carvão de so corpo. Dois tem que ter! Homem Parobamba-baixo
está esperando. Voltea carvão mundo; limpo, nada metal gringo queda,
bandeira piruano. Aguinha, Marianita! Caralho, Esteban, arcanjo, alto
deusinho…!
Com os olhos fechados, boqueando, colocou a um lado a coberta;
levantou uma perna inchada e a deixou cair sobre a cama. As moscas
saltaram em cima do tumor. A mulher do primo levou Esteban para
fora, para um pequeno quintal que a casa possuía. Ali se encontrava
o irmão de Esteban, o castelhanista cozinheiro do restaurante grande.
Caminhou na sua direção, dom Esteban. Engravatado, com um terno
elegante, o cozinheiro parecia visita, parado no meio do quintal.
– Eu faz prova pesar carvão, pa’sarar na mais, ouviu, so safado –
disse dom Esteban. Esperto tamém capaz bruxo, safado de safado de
polecia-governo. Eu boto, caralho!, essa poeira! – o cozinheiro olhava
para o chão, para seus sapatos bem lustrados. Trabalhador traga in-
chação pó, cemeterio; gringo faz quemar grandaços pedra carvão
fogo, dizque, pa’negócio grandaço, sobornando guarda-governo. Essa
homem qui’sarou em Parobamba, Liriobamba, espera junta parelha
pa’voltear mundo carvão? Contra de gringo estrangero? Contra de
polecia-governo?
– Eu de isso nem sei, Esteban. Não me chama safado! – respondeu
o irmão.
Esteban levantou a cabeça de seu irmão, tomando-a do queixo. As
pestanas do “cocalonero” brilhavam mais que a cerda lustrada com a
qual se faziam anéis finos, mensageiros, em Parobamba; jogavam sombra
sobre os olhos de dom Esteban.
– Esteban, ocê…
– Sos olho dança igual que de viado merda – interrompeu dom
Esteban. Cozinhero safado. Mantega em restaurante, cigarra de sapato
brilhante, com falso gravata merda. Tranquilo, caralho! Com falso gra-
vata merda em casa de viúva que vai ser! Talvez o aukillu num’é safado!
Safado Tinoco, safado ocê tamém! Aistá, em sos olho…

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– No inveje – ouviu a voz de Marianita. Anda, Esteban. Já apu-
rou o morrer de so primo. Anda a vomitar carvão, dia e noite, até
salvar-morrer.
Felizmente seu compadre Moncada estava em casa, estirado no
catre, quando dom Esteban regressou ao Totoral. A brancura da caveira
resplandecia, na estante. Dom Esteban sentou no catre. Moncada tinha
revolvido o baú grande de trapos e instrumentos. Não estava tranquilo;
a parte branca de seus olhos girava, brilhando.
– Pestana de bruxo magro, compadre – disse, sem olhar para ele.
A pestana de vosmecê olha mesmo sem querer. Qui’foi?
Dom Esteban lhe contou toda a história, desde a hora em que o
policial o levou ao Hospital de La Caleta.
– Cospe, compadre. O bruxo sabe da pesada do carvão qui’mora
no pulmão do mineiro. Do gringo e do governo, do voltiar do mundo,
desso não conhece, sonha antiguidades. Num tem que escutar ele caso
em quanto ao ordem do ordenamento universal novo mundo. Mas
cospe vosmecê.
Levantou-se; dirigiu-se à mesinha que havia no centro da sala. Ali
estava o jornal do dia. Rasgou uma folha. “Cáspita, o retrato da roda
irregularenta que dizem vai voar prá lua! Cospe aí.”
Estendeu a folha no chão.
– Cospe, compadre! Fica vosmecê de joelho, diante de Moncada que
pode ver o ordenar dos insetos e dos planetas, dos rangers peruvianos, ja,
ja, ja! ianquestofados, das cigaras invisíveis. Cospe!
Dom Esteban se ajoelhou. E não teve necessidade de fazer muito
esforço. Cuspiu seco, primeiro, três, quatro, dez vezes; depois lançou
uma laqiada, ou seja, um jato de coisa que se cola numa porta, ou na
cara, ou no muro de uma igreja, fazendo ressaltar cores e formas. Dom
Esteban lançou uma laqiada de envoltura negra.
– Aí está a raiz brote da cor, da brilhosidá grossura de suas pesta-
nas, compadre! – disse o louco e continuou falando. Eu sempre estava
desconfiado, medo ansiedade que existe frente à coisa fora de lugar,
como sua pestana. Não é morte, mas vida… Já tá expulsando o carvão.
Os astros tranquilizam o humano; as minas martirizam o humano; os

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comerciantes triunfam; os polecias são gotas do pus que expele para
amostra e exercício do qui’tem no coração, nem ar, nem areia, do Go-
verno Palácio Pizarro. Andando estamos no descarrilamento duna
deserto, sem dono, onde polícia e comerciante cobra um passo, outro
passo, um passo, outro passo, outro…
Contava as tosses de seu compadre. As omoplatas de dom Esteban,
assim como seus olhos, ficaram salientes. Olhou para Moncada. Era de
tarde; o sol já estava aproximando-se das ilhas da baía; penetrava como
luz e como lança, pelas gretas, no chão e na parede. Sobre os olhos um
pouco salientes, as pestanas de dom Esteban brilhavam forte.
– Luz negra, compadre. Levanta!
Não conseguiu. Estava sentado. Então Moncada o levantou, com
muito cuidado, colocando-o sobre o catre. Dom Esteban fechou os
olhos e seu corpo permaneceu estendido, conservando ainda essa apa-
rência de maior tamanho e peso. Moncada pegou uma tesoura, grande
e pontiaguda, no baú da mesinha, e, enquanto dom Esteban respirava
com dificuldade, o louco lhe cortou uma pestana. Examinou-a, cuida-
dosamente, à luz de um raio que entrava obliquamente por uma fresta
do teto. Em seguida, começou a revirar o baú de madeira em busca de
alguma coisa. Tirou do fundo um chapéu de palha com uma fita verde:
apenas isso. Frente ao espelho ajeitou o chapéu, retorcendo-o, dando-
‑lhe uma forma mais alongada. Saiu do quarto a passos rápidos; cruzou
a ponte do córrego, percorrendo a trancos enérgicos as ruas muito con-
corridas do centro urbano.
Chegou à porta do Clube Social Chimbotano. O porteiro, unifor-
mizado e com galões nas mangas e no quepe, estava, como sempre,
erguido, imitando fotografias que os diretores tinham mostrado dos
porteiros de clubes limenhos e estrangeiros.
– Irmão primata, te perdoo – disse-lhe Moncada. Afinal, você é
reflexo da mancha de óleo e resto de peixe que brilha nesta hora na baía.
Brilha, filho. Mas não como esta pestana que arranca a morte da vida…
O porteiro fez um sinal de ameaça, porém nesse momento ouviu
passos e vozes se acercando, dentro do clube. O conselheiro de plantão
havia atendido ao advogado da Sociedade Chinesa, que reclamava o

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local do clube como seu, e o trazia do braço: “O título é legal – disse atrás
da divisória. O local é da colônia chinesa. No entanto, o clube ocupa
esta casa há quinze anos e agora é o centro da aristocracia do porto, dos
executivos de trinta fábricas. Os chineses são chineses, apesar da lei.
Suas gestões não prosperarão, doutor, aqui. Não estamos na França…”
Moncada ouviu esse argumento e quando os dois senhores apa-
receram na porta jogou a pestana de dom Esteban no ar e ficou de pé,
com o chapéu na mão:
– Os zambos e chineses do Peru América – disse – possivelmente
não tomaram o voo com Gagarin e com os gringos que depois desba-
rataram as estrelas com uma chave de fendavete, não é?, senhores do
clube. Nem como o brilhar desta pestana, luz de luzes. Porém, o mau-
soléu de um chinês está de presidente na entrada do cemitério novo, de
arco e fachada, ianquilândia de Chimbote. Vencer no cemitério é mais
que vencer no Clube Social Chimbote Company, sociedade anônima…
– Fora, negro! Tirem daqui este louco desgraçado! – gritou o
conselheiro.
O porteiro deu um soco na boca de Moncada, mas isso não foi
suficiente para derrubá-lo. O advogado também se jogou sobre ele e
conseguiu imobilizar seus braços, mais para defendê-lo do que para hu-
milhá-lo. Cidade comercial, em Chimbote não se fez muito alvoroço pelo
caso. Umas seis ou sete pessoas se juntaram na porta do clube.
– Moncada y Orbegozo jorra sangue que nem picador Cristo Este-
ban de la Cruz – continuou vociferando o louco. O mausoléu do chinês
reina no cemitério. A morte, escuta, engomado; escuta, clubman vigi-
lante, faz você orinar e à criatura de Deus em você…
Entregaram o negro a um policial. O policial levou Moncada até
sua casa. Atravessaram as ruas pavimentadas do centro urbano e a po-
eira do Baixo Bolívar, em silêncio. Dom Esteban já não estava no quarto
do louco, nem a folha de jornal com os esputos negros. O sol, que tanto
se excita em cada coisa antes de se retirar, fazia dançar as penas de cada
mata de totora do tremedal da Calzada. Formava uma espécie de coroa
ondulante de resplendor em torno do pântano, que era recortado, nesse
momento, pela coluna rosada da fumaça pesada da Siderúrgica.

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O louco se dirigiu à casa de dom Esteban. Encontrou o amigo pe-
dalando a máquina de costura no estreitíssimo corredor, endurecido a
base de cascalho, na beirada do totoral. Esse corredor era a “delícia” da
casa. Estava protegido do sol por um leve teto de totora.
– Pronto! – disse dom Esteban. Inda pedalo com tremendera. O
candela do solzim, tranquilo mi’faz cancha. Caralho, Federico, merda!
– Federico é o porteiro do Clube Social Chimbote, socaço, compadre?
– Não, compadre. Me’rmão castelhanista, pasteador ambecioso de
inchao moribundo. Cigarra mosquito; lani cemeterio.
Moncada arrastou uma cadeira de vime e totora do quarto assoa-
lhado; sentou na beirada do lodaçal. Transcorreu um longo momento.
Dom Esteban pedalava lentamente; remendava uma bota de trabalhador
da Siderúrgica. Chegou a Jesusa com seus dois filhos. “Vou comer a
caveira”, disse o compadre em voz alta e saiu. Jesusa o seguiu um mo-
mento depois. Espiou por uma fresta da porta. A caveira continuava
na estante. O compadre vestiu uma saia branca e uma mantilha negra;
tinha um ramo de flores artificais na mão. Desse jeito se deitou.
A amizade de dom Esteban e Jesusa com o louco começou em
uma ocasião parecida; quando Moncada se vestiu de mulher grávida
e depois de aparecer assim na porta do seu quarto se deitou, ficando
assim durante três dias, sem se levantar. Ao contrário dos moradores do
Totoral, que achavam graça ou não se preocuparam, dom Esteban tocou
sua porta ao tercero dia. Moncada mandou entrar. Dona Jesusa levou-
‑lhe um caldo. O louco tinha um trapo branco amarrado na cabeça. Um
jarro de água limpa estava ao lado da cama. Os moradores do Totoral
faziam suas necessidades, de noite, fora no canal ou dentro do tremedal.
– Compadrim… Toma. Três dias faz que não prova alimento – in-
sistiu dom Esteban. Moncada tomou o caldo.
– Vou parir filho negado – disse. Gato sem olhos. O chorar con-
solo desconsolo; aurora sem crescimento de luz verdadeiro.
Levantou-se e saiu para pregar.
Dom Esteban vivia, então, num quartinho de esteiras, com piso
lodacento. Já tinha um filho. O louco o olhava com simpatia, no corre-
dor e na ponte sobre o canal, ou na descidinha empoeirada do tremedal.

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Acenava, dando adeus com a mão. Dona Jesusa sentia pena: “Louco por
causa de nossos pecados; pobrezim – dizia. Prega e como um santo é
marterizado.” Não, respondia dom Esteban. Fúria, vento, tem, bonzaço;
candela; é muito respeto. Ninguém entende ele mais melhor que eu.
A partir do momento em que recebeu o caldo, antes de pregar
como mulher enganada, o louco, com a risonha complacência ou a
suspeita temerosa dos moradores do Totoral e seus arredores, o louco
Moncada e dom Esteban foram compadres.
Moncada carregava peixe, nas madrugadas, no mar da praia, dos
barcos até o velho terminal formigueando de pescadores cortineros.
Não conseguiam se burlar dele. Aparecia e desaparecia do terminal, mas
sempre lhe davam trabalho. Carregava os enormes robalos brilhantes,
um a um, além dos cestos com corvina, peixe-espada, cojinoba e até
mojarra. Tudo rápido, direito, com o mar no peito, junto aos barcos.
Quando seu compadre teve que deixar o triciclo chupetero, Mon-
cada o visitava com mais frequência, com mais frequência levava para
ele corvinas ou peixes-rei. Três vezes foi com ele a Trujillo a comprar
batatas no mercado atacadista.
No dia seguinte à pregação do louco sobre o galo e os porquinhos-
-da-índia esmagados na Linha, dom Esteban sentiu que lhe faltavam,
pela primeira vez, não o ânimo ou a raiva, mas as forças. Enquanto ca-
minhava em direção ao terminal de caminhões de Trujillo, suas pernas
se dobraram. Conseguiu recostar em uma esquina.
– Eu, caralho, não volto prá casa nem morto, caralho.
Olhou para o céu, onde a luz do sol, que não tinha saído ainda,
começava a mudar a cor do mundo.
– Perna, caralho, obedece. Eu mando, enquanto não estejemos na
sepoltura. Duas onça já de carvão botei fora. Eu mando!
E chegou ao terminal e encontrou seu caminhoneiro conhecido.
O motorista o ajudou a subir. No caminho, dormindo um pouco, repôs
as forças. Seu caseiro de costume o atendeu em Trujillo e, no mesmo
caminhão, carregou os sacos de batatas e cebolas. “Enquanto não esteje
na sepoltura, eu mando.”

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Na volta, no depósito da rua Buenos Aires, soube que sua mulher
tinha conseguido, “por milagre” e com a ajuda de dona Juliana, de Lirio-
bamba, um ponto de primeira no mercado municipal de Bolívar Alto.
Mercado triste, piso de cimento vermelho, longe das linhas de coletivos,
com pouca clientela, distante da região do trem de ferro, perto das bar-
riadas e dunas, mas em área urbana “calificada”. Bolívar Alto era a pro-
longação direta e planejada de cada rua ampla e já asfaltada do centro
urbano, na parte da poeira, e não da areia, do terreno. Nem bairro, nem
barriada, prolongação “homilde” do centro urbano que o asfalto, os edifí-
cios de cimento e os letreiros luminosos tinham começado a limenhizar,
ianquizando toda a área. Mas sua praça de mercado era municipal, ver-
dadeira; cada posto tinha um mostrador e uma estante de cimento. Atrás
do mostrador, o antigo dono do posto adjudicado a Jesusa tinha deixado,
talvez por esquecimento, um banquinho de madeira. Ali se deitou dom
Esteban, de um modo tranquilo, enquanto Jesusa arrumava o local.
Já não seria mais necessário guardar as batatas e cebolas todos os
dias num depósito distante, nem mesmo buscá-los na madrugada. Am-
pliariam a venda com verduras, grãos e também fruta. E o posto podia
ser fechado com umas tábuas, a qualquer hora. O mercado tinha um
segurança, que recebia uma mensalidade-gorjeta de cada comerciante,
além de um pequeno salário do município.
Quando no depósito da rua Buenos Aires contaram a dom Esteban
a notícia triunfal de sua mulher, ele seguiu para lá no mesmo caminhão.
Havia poucos carregadores com seus carrinhos na porta do mercado
Bolívar. Um deles levou os seis sacos de dom Esteban até o posto, que
se encontrava no fundo de uma fila de mostradores, porém quase em
linha reta frente à porta de entrada.
– Cheguei, caraio… Cheguei – disse.
Encontrou o banquinho estreito, colado ao muro, e se deitou ali;
pesadíssimo seu corpo pequeno e fraco. Dona Jesusa o deixou tran-
quilo. Estava muito afanosa, suando de felicidade. Já tinha limpado a
estante. Tinha acomodado no mostrador as melhores cebolas e batatas,
sendo que o restante deixou na estante de baixo. Ela mesma fez duas

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filas visíveis com os sacos, a um lado do mostrador. E ainda sobrou
espaço. Abriu os sacos.
– Boa batata, linda cebola, Esteban. Inda tem campim pra ver-
durinha, furtinha e milhinho, arroz; tudo, tudo. Os huahuas devem de
estar gritando, pois, no Totoral.
– A esta hora já meu compadre está. Seguro acompanha; pãozim,
balinha vai dar a eles. O branco de seu olho estará carinhoso como
num’tem nem em glória nem em céu.
– É de vera, Esteban! Certo mesmo!
E ao meio-dia o local abria. Vendia pouco a Jesusa; a praça si-
lêncio não parecia mercado. Porém, a essa hora algumas vizinhas se
aproximaram de dona Jesusa. Falaram com ela do grande futuro do
Mercado, porque os milhares de vendedores ambulantes da Linha e da
rua José Gálvez iam ser expulsos com energia, em breve, e empurrados,
uma parte, para o mercado “Bolívar”, que tinha dezenas de postos de
vendas por terminar, na parte de trás, pelo lados dos toldos; a outra
parte, a maioria, para os pontos de ônibus de Miraflores Baixo e Alto,
assim como de todas as grandes barriadas que existia entre a rodovia,
na direção sul, e o mar. “Sorte d’ancê – disse uma mulher a dona Jesusa.
Bolívar vai ser como o ‘21 de Abril’, mais ainda. As barraca da Linha
dizque vão quemar. O trem vai quedar com seu trilho limpo, tranquilo.
Esses pobrezinhos ambulantes vão vim aqui e o monicípio vai mandar
linha coletivo para mercado Bolívar. Quanto ancê pegado de luva pelo
ponto? Quanto pro municipal?”
– Esteban – disse Jesusa. Impenhei so máquina costura em mil
quinhentos. Dona Juliana mi’deixou prazo de dois mes pa’entregar. No
levou máquina ainda. Aistá. Se num pago em dois mes, vai levar.
Dom Esteban não entendeu. Ouvia a conversa como um murmúrio
incerto, um pouco semelhante à chirriada de milhares de gaivotas que
às vezes cobriam, gritando, o céu do Totoral e logo desciam, caindo len-
tamente sobre a pouca água que boiava no pântano. Dom Esteban era
tomado por um atordoamento alegre quando escutava o bater de asas e
o barulho desses milhares de aves, que também tinha visto e ouvido nos
lagos cristalinos das grandes alturas; porém, nas águas frias a gaivota é

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rara, linda e airosa; não forma grandes bandos que revolucionam o céu,
como essas que chegavam ao pântano do totoral, cujo fundo ninguém
vê e nem conhece.
Dom Esteban trabalhava cada vez menos na máquina. Passava as
manhãs deitado no banquinho do posto do mercado. Evitava dona Ju-
liana; caminhava um pouco na direção da porta da praça. Saía; chegava na
esquina, na direção dos morros. Uns índios tinham levantando um toldo
na esquina, onde vendiam choclos macios, ollucos recém-colhidos, com a
terra ainda presa nas cascas; mashua, tarwi, oka… Vendiam muito rápido
e desmontavam a lona. Dormiam no chão. Iam embora. Os toldos desapa-
reciam durante uns dias e depois reapareciam. Bem perto desse local, uma
fila de burros, a única fila longa que havia em Chimbote, permanecia chi-
coteando o próprio rabo para se defender das moscas. Essa fila protegia,
de alguma maneira, os índios que eram obrigados a pagar uma propina vil
aos municipais. Os toldos eram erguidos longe da fila de burros.
Ao meio-dia, quatro ou cinco semanas depois da tomada de posse
do posto do mercado, dom Esteban sentiu muito frio no banquinho.
As vendas aumentavam. O resgate da máquina estava assegurado e dom
Esteban nada sabia desse negócio. Sentiu frio e caminhou até o portão.
Antes mesmo de chegar à grade, escutou o violão de Crispín Antolín. Fazia
tempo que não via o cego. Encontrou-o sentado em um kullu de ma-
guey, um pedaço redondo dessa madeira suave e leve. Estava sentado de
costas para a parede, perto da esquina. Claramente se percebia que quem
formava roda para escutá-lo eram, em sua maior parte, os vendedores
de ollucos e tarwi, que a essa hora já tinham desarmado seus toldos.
Um homem bem baixo, mas baixo que ele, dom Esteban, pernicurto,
com um bonezinho, escutava Crispín de um modo estranho, como se
estivesse transmitindo a melodia ao músico. Assim pareceu a dom Este-
ban. Os bigodes do pequeno homem subiam e desciam lentamente, cada
pelo, quando abria a boca, alongando-a a ambos os lados da cara. Estava
descalço e vestia um macacão apertado, extremamente limpo, com uma
camisa de cor vermelho gerânio. Olharam-se um ao outro, ao mesmo
tempo, mais de uma vez. Sobre as lentes negras dos óculos de Crispín
muito pó tinha se depositado. “Em que remanso brinca, patinho mouro

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do rio – em que remanso brinca. – Se o rio seca, patinho mouro – eu farei
outro mais fundo com minhas lágrimas cristalinas – patinho mouro – e
você continuará brincando.” Então perceberam, dom Esteban e o ho-
menzinho bocudo, que enquanto Crispín cantava em quéchua, os dois
foram repetindo os versos e mexendo os lábios. “Você não é mendigo”,
disse o bigodudo fitando dom Esteban. Mi’passou o frio que estaba em
meu corpo, no osso do joelho, respondeu dom Esteban. “O tristeza em
vezes é candela; assim, esse canto violão do Crispín. Você nunca triste,
não?” Certo! Você nunca vai morrer, ei bocudo, por quê?, respondeu
repentinamente dom Esteban. O homenzinho fez um gesto afirmativo
e saiu da roda. Dom Esteban o seguiu com os olhos. Viu como chegou,
muito rápido, longe, justo no lugar onde a rua direita terminava. Dom
Esteban percebeu que, a partir dali, o homenzinho começou a galopar
mais que um galgo pela pampa, e depois duna acima. Quando Crispín
tocava a fuga do tristíssimo huayno, uma fuga de ritmo fogoso, e alguns
vendedores do toldo, que tinham bebido chicha, começaram a bater
palmas, o falador bocudo chegou ao alto de uma duna, excessivamente
empinada e movediça, que existia a um costado de La esperanza Alta e,
por essa razão, nunca tinha sido escalada de frente por ninguém. Subiu
o areial ziguezagueando. No alto, começou a dançar, assim, ao longe. Sua
camisa vermelha se via claríssima, girando sobre a brancura da areia.
Dom Esteban puxou do braço a um dos índios que batiam palmas. “Veja,
paisano, veja!”, disse, e mostrou o alto da duna. “Ah! Está; ramo de ge-
rânio é. Ocê, homem, carago, vê”, respondeu o paisano. Mas imediata-
mente se apoiou em seu companheiro e deixou de bater palmas.
Dom Esteban regressou à praça, meditando, esquecendo o mú-
sico. No portão da praça encontrou seu compadre. Chegou quase
cambaleando.
– Pa’la tarde tenho muito trabalho de máquina, cumpadre – disse.
Três botas de trabalhadores do Siderúrgica.
Moncada precisou segurá-lo. Somente um pouco de gente ainda
circulava pelo mercado. Os compadres chegaram ao posto de dona Je-
susa. Não estava ela.

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– Eu vi um anão vermelho, compadre – disse dom Esteban. Escutou
huayno do Crispín perto do esquina da praça e dançou a fuga no alto
da duna Cruz de Hueso. Como entende vosmicê? Um instantim passou
três, quatro quilômetros pampa terra, areia bravo. Subiu a monte duna
empossível, ziguezagueando.
– Um homem como vosmecê e eu vemos – disse Moncada. Quantas
onças ainda falta, compadre?
– Uma onça na mais. Uma oncinha; já pesei três.
Dom Esteban se apoiava no mostrador e segurava com um braço em
um dos ombros do negro. Moncada lhe pediu que entrassem juntos no
posto. Dom Esteban se deitou no banco. Ali se sentiu melhor. O banqui-
nho estava acolchoado com uns restos de trapos e peles bem costuradas,
pregadas com tachinhas na outra face da madeira. Moncada entrou no
posto e apoiou as costas no mostrador.
– Uma onça – disse. Falou vosmecê com o anão vermelho?
– Palavrinhas na mais.
– Deveria ter perguntado da onça. No alto da duna Cruz de Hueso
não consegue subir, por esse frente, a gente comum.
– De veras, compadre! Bocudo era, com bigode grosso, de ca-
chorro. Talvez sabe…
– Talvez não, compadre… Olhou pra vosmecê?
– Olhou, compadrim. Agurinha vou te contar – levantou a cabeça.
Seu olho num era como de cristão corrente; era como metal vidro cris-
talino, que capaz não gasta com olhar nem o céu nem a terra.
– Ah!
Ouviram passos. Chegou dona Juliana com Jesusa. Quase todos os
postos já estavam fechados. Dona Juliana viu que dom Esteban estava dei-
tado, com a cabeça recostada na madeira que servia de parede do posto.
– Fala com o Irmão, Esteban – disse dona Juliana. Esteban, filho:
esse homem grandaço qui’vomitou carvão em meu tenda de Lirio-
bamba, bruxo era, dizem. Um ano na mais teve em Cocalón. Você, três
trabalhou. Até minha Jesusa ocê robou, filho. De suas sujidades qui’fez,
Esteban, fala com o Irmão e a vida vai entrar de novo no seu corpo. Ocê

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já está meio cinza como os que a gente enterrava em Liriobamba. Filho,
fala, pois, com o Irmão…
– De sujidades, dona, mais certeza está falando com o Irmão, a
Jesusa. Eu raivo, senhora, não tem sujo em meus espíritos. Se o Senhor
não escuta, nem o dia, nem o noite, que estou chamando, que vai estar
podendo o Irmão?
– Mesmo o pecador, de sua atrocidade tem que falar, filho, por seu
intermédio do pastor. O castigo morte…
Moncada já se impacientava. Virou-se de costas para o diálogo.
– A morte vem vindo, senhora? – disse dom Esteban. Mentira, ca-
ralho! Eu, com o carvãozim, nela estou indo mais. Enfio nela uma onça
de carvão, caralho, e capaz so olho rebento em sangue…
Duas mulheres, de uma certa distância, procuravam escutar a dis-
cussão. Não podiam ver dom Esteban. O mercado Bolívar era silêncio.
Sobre o teto dos postos e no piso vermelho se ouvia o canto de Crispín
Antolín, não como se viesse de fora, mas dos próprios materiais que se
animaram a recordar seus tempos no descampado.
– Em de noite rola pelo chão, o Esteban – disse dona Jesusa com
voz mais ressoante. No chão se retorce todo. Tem força entonce. Que
com o Irmão confesse! De ondezinho vem este força pa’empurrar, re-
trocer papel, murder meu peito? Dispois frio fica. Com o Irmão que
fale. Vai salvar…
– Não quer – disse Moncada, encarando as duas mulheres. Nada
tem que dizer meu compadre pros cantores desgraças, nem mesmo pros
padres ianques ou espanhóis. Peruano acho que já não existe, salvo este
esperto que… De Liriobamba sim, que fale, senhora. O capitão polonês…
Diz pra mim, comadrinha Jesusa, pelas chagas do cristo!, de noite bri-
lham as pestanas de meu compadre?
– Quando tem candeia, brilha.
– Lírio da morte-vida que ninguém apaga. O bruxo serrano é pa’os
frouxos. Hoje meu compadre viu um mono vermelho dançando na
ponta da Cruz de Hueso. Eu vou falar com o Irmão. Eu, Moncada, o
louco. Querem?

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– Sim, amigo Moncada. Na tardezinha te levo. Vosmecê também vai
salvar de loquecer. Vai cantar ao meu lado. Vai fazer cantar o Esteban,
rebelde…
– E nós todos vamos nos converter – o negro interrompeu a dona
Juliana – num bando de merdas cantor, pa’que o humano se reconcilie
de puro tédio. Já compadre, Esteban de la Cruz! Viva a salvação. Mundo
sem Moncada, sem seu compadre. Nadinha de pimenta! Pura bestei-
rada “homilde”.
Até dona Juliana riu um pouco, mas depois mordeu os lábios.
Moncada fez seu compadre caminhar um pouco sobre o cimento ver-
melho, a passo ligeiro. Nunca antes o negro tinha dito aqueles palavrões.
Naquela tarde, dom Esteban pedalava lentamente sua máquina de
costura. Apesar de saber que seus olhos não distinguiam bem as coisas,
parou para observar com certo orgulho essa espécie de guincho hori-
zontal, “fortaço”, que movimentava a agulha e o fio. E como só percebia a
forma da sombra, e não os detalhes, deixou de pedalar e começou a apal-
par com as duas mãos o guincho, os fios, os ângulos, as partes planas e re-
dondas da máquina de metal, enquanto as cigarras começaram a chirriar
incertamente. Com as mãos atentas sobre o ferro, esperou o canto do
sapo, sua voz de respeito. Será que minha perna está inchando?, pensou,
com raiva, ao sentir um entorpecimento frio nas pernas. Apoiou-se ple-
namente na máquina. Fortaço! – disse. Mais que eu, mais que o cristão
que te fundiu, caralho. Uma voltinha mais vou te dar.
E fez funcionar a máquina, entusiasmando-se, porque vários sapos
começaram a cantar uns depois dos outros, de lugares e orientações
muito diferentes.

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Terceiro diário

Santiago do Chile, 18 de maio de 1969

Vou atazanar ou entediar os possíveis leitores deste possível ro-


mance, interrompendo-o novamente com um diário, porque estou outra
vez num poço sem fundo, sem ânimo para quase nada. Depois de ter
escrito o capítulo III, onde creio ter conseguido dar um sentido para
o espaço aberto, como um redondo e um tanto aturdido formigueiro
de homens e destinos, que é o segundo capítulo; depois de ter apresen-
tado confidencialmente meus amigos dom Esteban de la Cruz e o louco
Moncada, no capítulo IV, e quando ainda me faltavam apenas umas pá-
ginas para concluir aquele capítulo, resolvi chamar minha mulher para
vir a Arequipa, para comemorar a saída do poço, do breu que escurecia
meu pensamento. Viajei feliz e quase triunfalmente. Arequipa é uma
cidade na qual Ángel Rama passearia com sua impertubável, ou melhor
dizendo, com sua serena cabeça e seu disciplinado coração; passearia
entendendo bem os contrastes que existe entre os silhares de pedra
branca vulcânica, com que foram construídos os edifícios coloniais de
silhares como a neve opaca, e a esmeralda sangrenta do vale na qual a
cidade se levanta. Ángel compreenderia o significado do contraste entre
esta esmeralda e a secura astral do deserto montanhoso, no qual o vale
aparece como um rio tristíssimo de tão fértil e brilhante. Ele, Ángel,
compreenderia; seus imensos olhos se encheriam um pouco mais de es-
perança, de tenacidade, de sabedoria festejada e não assoberbada e, por
isso mesmo, invendável no mais voraz dos mercados do mundo. Você,
Roberto (F. R.), pedernal e ternura, se encheria em Arequipa de mais
certezas e júbilos sobre nós, os andinos. Ali nasceram Melgar e Mario.
Enquanto isso, a partir da grandíssima revista norte-americana
Life, Julio Cortázar, que realmente cavalga em flamígera fama, como se
estivesse sobre um centauro cor de rosa, lançou na minha direção uns
dardos reluzentes. Dom Julio quis me atropelar e diminuir, irritadís-
simo, porque afirmo no primeiro diário deste livro, e repito agora, que

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sou provinciano deste mundo, que tenho aprendido menos dos livros
e mais nas diferenças que existem, pois tenho sentido e visto, entre um
grilo e um alcaide quéchua, entre um pescador do mar e um pescador
do Titicaca, entre um oboé, um penacho de totora, a picada de um
piolho-branco e o penacho da cana de açúcar: entre os que, como Paria-
caca, nasceram de cinco ovos de águia e aqueles que surgiram de uma
lêndea aldeana, de uma lêndea comum, da qual tão subitamente salta
a vida. E esse saber, claro, tem, assim como o predominantemente eru-
dito, seus círculos e profundidades. Escrita e publicada a nota com que
pretendo fazer que dom Julio desça, ainda que seja por apenas alguns
segundos, de seu flamígero cavalo, voltei a me sentir sem ânimo, sem
candela para continuar escrevendo. Talvez seja porque entrei na parte
mais intrincada do curso das vidas que pretendo contar, entre as quais
o meu próprio emaranhamento que, em vez de encontrar o caminho
do desembaraço, pretende desembocar ou desaparece, porque… Bom.
Viajei a Arequipa em abril. Passei por Moquegua, cidade colonia-
líssima que não conhecia. Em Moquegua conversei com um paralítico
que descansava, ao parecer, placidamente, no bonito jardim de uma
casa tipicamente moqueguana. Os tetos estavam rebocados de barro
por fora; são de duas águas, porém não concluem em ângulo, mas sim
num pequeno local plano. Esse plano e o barro oferecem um encanto
estranho. No jardim, havia uma aroeira que o ilustre paralítico dizia ter
defendido durante muitos anos, porque seus descendentes considera-
vam aquela árvore como indigna. O senhor ordenou que me mostras-
sem a sala de sua casa. Permaneci ali vários minutos. O teto e o espaço
da sala, com essa forma geométrica de plenitude tão estranha, ressalta-
ram a felicidade que eu tinha dentro de mim mesmo. O paralítico me
disse com serena resignação: “quando eu morrer, vão cortar a aroeira,
derrubarão esta casa e construirão um prédio de cimento quadrado,
quente, moderno…”
O estilo moqueguano de casas, altas, frescas pelo espaço e pelos
materiais de que foram feitas, foi criado e construído para proteger, ani-
mar e pacificar o homem que habita o estreitíssimo vale ardente, quei-
mado pelo deserto de terra já empinada a esta altura da yunga litorânea.

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Mas o tipo de ambições, os desejos e a força do homem precipitada-
mente modernizado…
Neste dia em que sinto como se a asfixia se aproxima de novo e
apaga, ou pretende apagar de minha imaginação, o amarrado, ainda que
não tão bem coordenado, universo dos próximos capítulos das “Raposas”,
não sei bem por que me lembro de Moquegua; do contraste entre esse
barro aureamente modelado com que são feitas as antigas casas e o ho-
tel de três andares – o melhor da cidade –, cuja lisa fachada de cimento
de onde as portas dos quartos se abriam como nichos ou celas, fez meu
corpo rebotar e sair apressadamente rua abaixo; recordo o senhor tão
placidamente resignado em sua casa moqueguana, sentado em uma
cadeira de rodas frente à sua confidencial aroeira, já condenado por
ser nativo.
Em Arequipa estive doze dias. Ali escrevi quinze páginas, as fi-
nais do capítulo III. Pela primeira vez vivi um estado de integração
feliz com minha mulher. Pela primeira vez não senti temor à mulher
amada, pelo contrário, uma felicidade apenas em pequenos instantes
espantada. O pínus de cento e vinte metros de altura que está no pátio
da Casa Reisser y Curioni, dominando todos os horizontes dessa cidade
intensa que se defende contra a agressão do cimento feio, não do bom
cimento; esse pínus chegou a ser meu melhor amigo. Não é uma simples
afirmação. A dois metros de seu tronco – é o único gigante de Arequipa
–, a dois metros de seu tronco poderoso, escuro, se ouve um ruído, o
típico que brota aos pés destes solitários. Como foi podado até uma
grande altura, talvez até os oitenta metros, os curtos troncos de suas
ramas, assim escalonados na altura, fazem com que pareça um ser que
apalpa o ar do mundo com seus milhares de cortes. De perto, não se
consegue ver bem sua altura, somente sua majestade e ouvir este ruído
subterrâneo, que aparentemente somente eu escutava. Conversei com
ele com respeito. Era para mim alguma coisa tão profundamente ín-
tima e, ao mesmo tempo, de outra hierarquia, lindante do que na serra
chamamos, muito respeitosamente ainda, de “estrangeiro”. Mas era uma
árvore! Ouvia sua voz, que é a mais profunda e carregada de sentido
como nunca escutei em nenhuma outra coisa, em nenhum outro lugar.

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Uma árvore destas, como o eucalipto de Wayqoalfa da minha terra, sabe
tudo o que existe debaixo da terra e nos céus. Conhece a matéria dos
astros, de todos os tipos de raízes e águas, insetos, aves e larvas; esse
conhecimento se transmite diretamente no som que emite seu tronco,
mas é preciso estar bem próximo; transmite como uma música, como
sabedoria, como consolo, como imortalidade. Quando nos afastamos
um pouco desses imensos solitários, a sua imagem é que conterá todas
estas verdades, sua imagem completa, mexendo-se com a lentidão que
o peso da sabedoria e da beleza não obriga, mas lhe imprime. Porém,
nunca, nunca antes, tinha visto uma árvore como esta e menos dentro
de uma cidade importante. Nos Andes do Peru as ávores são solitárias.
Em um pátio de uma casa senhorial, convertida em casa de negócios,
este pínus, escuro, o mais alto que meus olhos viram, me recebeu com
benevolência e ternura. Derramou sobre minha cabeça toda sua sombra
e sua música. Música que nem os Bach, Vivaldi ou Wagner conseguiram
fazer tão intensa e transparente de sabedoria, de amor, de um modo
tão oniricamente penetrante, da matéria da qual todos estamos feitos e
que, ao contato dessa sombra, se inquieta com um penetrante regozijo,
com totalidade.
Eu conversei com esse gigante. E posso assegurar que ele escutou
e guardou, em seus nós e suas fibras, no látex semitransparente que
brota de seus cortes, derramando sem cessar, sem se distanciar quase
nada dos nós, ali guardou minha confidência, as reverentes e íntimas
palavras que usei para cumprimentá-lo e dizer quão feliz e preocupado
estava, quão surpreso por encontrá-lo ali. Porém, não lhe pedi que me
transmitisse suas forças, o poder que se sente ao ofitar seu tronco tão
de perto. Não pedi. Porque, quando cheguei perto dele, eu estava cheio
de energia e agora estou muito abatido; sem conseguir escrever a parte
mais intrincada do meu pequeno romance. Talvez por isso lembro dele,
agora que estou escrevendo novamente um diário, com a esperança de
sair do inesperado poço em que caí, de repente, sem motivo preciso,
meio devorado pelo despertar de meus antigos males que, esperava,
explodissem em iluminações ao contato da mulher amada. Mas ela veio
entre muitos estrondos, lamentos e relâmpagos.

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20 de maio

Voltei de Arequipa em tal estado de ânimo e lucidez, que imaginei


que terminaria o livro nos três meses que restam para reassumir a uni-
versidade. Dois dias trabalhei na continuação do capítulo IV. Depois,
caí em um estado de prostação tão lôbrego, como os que me atacam
nos últimos vinte anos e dos quais saio cada vez com maior sofrimento.
Quando fui convidado a Valparaíso, por Nelson Osorio, a amizade com
suas três filhinhas, de dez, nove e sete anos, de “Gog”, um cachorro
muito intuitivo, muito entendido dos males que atacam os homens,
consegui me reanimar. A casa do Nelson e da Nena, sua mulher, é a
mais informal e livre que conheci. No Chile encontrei pessoas assim,
em quem a máxima informação universitária, a inteligência excepcional
e cultivada com os recursos de vários idiomas, o lúcido exercício da
docência e do cargo dirigente universitário, essa hierarquia, não apenas
não cria, estimula ou mesmo faz aparecer o operático formalismo, a
rotundidade, os sempre perceptíveis trejeitos do convencionalismo nato
ou aprendido. Na casa do Nelson, como na de Pedro (Lastra), intrin-
secamente organizada, meu corpo se movimentava com uma liberdade
nunca antes experimentada nas cidades; tudo estava à minha disposição,
especialmente o ar que respiramos. Porque é mentira que este ar seja
tão livre e também pura propriedade de todo mundo. O ar dentro de
um cerco estranho, de uma casa estranha, mesmo na de muitos amigos,
está alienado; o peito não consegue se encher dele com a mesma alegria
ou inconsciência com que o respira nos campos, também todos com
donos, mas se você está sozinho, o ar, ali, é seu sim, como os altíssimos
céus que, não por serem inalcançáveis, não chegam a ser parte de seu
ânimo e de sua carne.
Nelson tem trinta e um anos; ganhava cem dólares por mês até o ano
passado, agora ganha o dobro, e sua mulher, que é professora de música
em colégios, não sei quanto recebe. No entanto, desse jeito gostaria de
imaginar o homem do futuro. Desse modo. Em que se diferencia Nelson
de “Gog” e do imenso pínus que está nesse jardim colonial arequipe-
nho? Sou, claro…, um animalista, um interiorano incurável? Eu afirmo

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que há mais coisas em comum entre eles do que diferenças. Por isso os
cortázares pensam que somos tão microbianos. E isso não é de todo
mau. Assim tem que ser. Por isso o mundo é grande, cresce e se multi-
plica, seu fundo e sua forma, sem cessar. Além disso, Nelson, comunista
a quem os velhos desse partido parece que ansiosamente temem e esti-
mam, poderia debater interminavelmente com Julio Cortázar, Alberto
Escobar e Mario Vargas Llosa, por exemplo, interminavelmente. Eu
me converteria num ouvinte assustado, faminto e feliz desse encontro.
Compreenderia certas coisas apenas um pouquinho mais que o meu
queridíssimo amigo “Gog”, o que, claro, me deixaria, por essa mesma
razão, intranquilo, ao passo que ele, certamente, um pouco inquieto.
Pois bem, ali na casa de Nelson, acomodada minha cama na pequena
biblioteca – me refiro ao espaço livre, porque os livros ocupam tudo do
solo até o teto –, ali recobrei o alento e concluí o capítulo IV. Porém,
uma sessão acadêmica seguida de uma festa na Universidade de Valpa-
raíso, que durou até a madrugada, apagou a pouca chama de repente
acesa. Por quê? Por quê? Uma professora muito gorda, podemos dizer
feia, uma que no Peru pensariam que estivesse vencida pela amargura,
cantou e dançou na festa de tal modo que, primeiramente, fez megulhar
na meditação, ou no silêncio, aqueles que em seu corpo precisam de si-
lêncio, a fim de que possam se abrir todos seus poros e se fartar de luzes
e lembranças; depois, ela mesmo, a gorda, convidou a todos para dançar
e dançou com energia e liberdade, um pouco parecido às das festas
dos povoados peruanos indígenas. A professora gorda, de óculos, rosto
redondo, era encantadora dançando, como unicamente essas flores
pequeníssimas e audazes que sempre menciono, porque sua imagem,
quando se balanceiam no contato com os ferozes rios dos Andes, não
são esquecidas por ninguém que as tenha visto… Esta professora… Mas
acho que tudo isto que estou dizendo está se tornando monótono. Re-
almente, desde que voltei de Quipué (Valparaíso) só consegui escrever
essas linhas em resposta a Julio Cortázar. Que curioso! Com me ocupar,
impremeditadamente, de dom Julio e outros escritores, foi que me ani-
mei a começar este livro. E suspeito, temo, que para continuar com o
enredo das “Raposas” alguma coisa, ou muito mais, devo ter aprendido

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com os cortázares, o que não significa apenas ter aprendido a “técnica”
que eles dominam, mas ter vivido um pouco como eles. Mario (Vargas
Llosa) esteve um dia em minha casa. Desde os primeiros minutos, com-
preendi que havíamos andado por caminhos diferentes. Como poderia
ser diferente – salvo exceções, porque o homem é Deus –, como poderia
ser diferente quem brincou na infância de fazer cordões ondulantes, às
vezes retilíneos, de lêndeas tiradas da própria cabeça, para depois ir
esmagando uma por uma, com as unhas, e achando graça, de verdade
e com gosto, do barulhinho que faziam ao serem espatifadas; como
não seria diferente esse indivíduo do homem que passou sua infância
em uma cidade tão intensa, grande e rica em pessoas e edifícios como
Roma ou Arequipa, por exemplo? Como não será diferente o homem
que começou sua educação formal e regular em um idioma que não
amava, que quase o enfurecia, e aos quatorze anos, idade em que muitos
garotos estão por concluir ou já concluíram esta etapa? Por que não seria
certo que esse indivíduo tivesse dificuldades para entender o Ulisses,
de Joyce, como tem para entender Lezama Lima, tão densa e inescru-
pulosamente urbano? Que tenha abandonado algo contrapostamente
horrorizado – quando tinha vinte e um anos – a leitura dos Cantos de
Maldoror e que, por outro lado, tenha bebido como se fosse água régia
nutritiva e quase íntima, Uma estadia no inferno, Briznas de hierba,
Trilce, as tragédias de Shakespeare e de Sófocles? Não será esta uma
forma de reação verdadeiramente indo-hispânica e respeitável? Desse
modo entendeu Mario e, por isso, em lugar de negar os resultados dessa
experiência, aprecia com entusiasmo. E compreendo, ao mesmo tempo,
que Cortázar, excessivamente transpassado e talvez um pouco rendido
pelo cheiro e pelo fedor das ruas, derive para a ofensa, perante a confissão
da mesma experiência, e a menospreze, desdenhando.
Já não consigo começar o capítulo V deste romance, porque perdi
o ardor da vida e porque, talvez, me falte mais mundo de cidade, o que,
de certa forma, significa dizer erudição, ainda que a erudição e a técnica
possam vir a ser a “carabina de Ambrosio” ou um falso desvio para en-
frentar certas dificuldades, especialmente aqueles que buscam a ordem
das coisas em meio ao povo e não na cidade, ou na cidade recém-parida,

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no falcão e não no jet. Tomara que seja assim. E tomara que, como
parece demonstrar o fato de estar conseguindo escrever estas linhas,
um dia desses possa também começar o capítulo V. Estas “Raposas” se
colocaram fora do meu alcance: correm muito ou estão muito longe.
Certamente apontei a um alvo excessivamente longe ou, de repente,
alcanço as “Raposas” e já não as solto mais. Porque esta dor atroz na
nuca me deixou perdido, ao parecer por circunstâncias imediatas e não
por outras causas mais longínquas e perigosas. O tempo está para mim
novamente emparedado; se dentro de duas semanas não consigo vencer
as inesclarecidas dificuldades pelas quais estou empantanado, voltarei
ao Peru. Passarei por Chimbote, muito temeroso e sem parar, seguindo
em frente; subirei na direção dos Andes, até Caraz. Ali deve acabar isto.
Estão à minha espera, nesta cidade tão harmoniosa e tão mestiça, uma
mesa e um quarto bonito, uma horta, um pátio empedrado, o grande
rio Santa, o mesmo que, como já foi dito antes, é retratado, quando se
estende próximo do mar e detrás do monte Coishco, de Chimbote, é
retratado no sudário, um flamejante trapo sempre cheio de poeira, da
cruz que foi cravada nas ruínas pré-hispânicas que se levantam com
carcomida grandeza, no centro da barriada de San Pedro. Essa horta e
o quarto estão na casa de um amigo, de um grande senhor que, segundo
dizem em Caraz, amou a muitas índias e mestiças, permanecendo, por
essa razão, solteirão.

28 de maio

Na volta de uma viagem a Quilpué, no trem, creio ter encontrado


o método, a “técnica”, não para o capítulo V, mas para a “Segunda parte”
deste ainda incerto livro. Já escrevi os três primeiros “Fervores” dessa
“Segunda parte”; Chaucato com “Mantequilla”; dom Hilario Caullama
com “Doble Jeta” e a Decisão de Maxwell.

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Segunda parte

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Descalço e de camiseta, os braços de fora, o peito sem um único
pelo, local em que a meia gordura e a meia velhice já davam seus pri-
meiros sinais na avultada barrriga que, a olhos vistos, pendia dos mús-
culos que rodeavam seus mamilos, Chaucato, dormia desparramado
num sofá forrado de nylon. A televisão estava ligada, mostrando figuras
borradas e o som estava muito alto. A sala estava mobiliada com um
jogo de sofás chamativos; uma mesa de centro com um floreiro, em
cima de um “desenho” feito à mão, azul, que se destacava a figura de
uma pomba. O teto da sala era muito baixo, como o da maioria das
casas de El Trapecio; o calor era denso. A mulher de Chaucato, sua ex-
-cunhada, havia arrumado essa peça unicamente como sala, apesar de
ser uma copa, enquanto todos os moradores desse bairro moderno e
uniforme adotaram de alguma maneira seus móveis, ou compraram ou-
tros novos, para mobiliar como era devido a copa. Porém, num ângulo
da casa de Chaucato aparecia, imponente, uma geladeira com o puxador
esmaltado, verde. A porta que comunicava a sala com os quartos, a cozi-
nha e o quintal da casa estava aberta. “Mantequilla” entrou e despertou
Chaucato. Este não o reconheceu de imediato; mas quando percebeu
quem era o visitante, o tom avermelhado do rosto e das bochechas do
pescador se inflamou.
– O que você quer? – perguntou, sem mudar de postura.
– Você está na primeira linha da lista negra, Chauco. Braschi vai
te foder… Me contou, irmão, alguém que sabe.
– Quem? – perguntou o capitão de barco.
– Quer saber mesmo?
– Não estou perguntando, seu filadaputa?
– O padre, o padre Vizcardo… e também um compadre de dom
Ángel.
Como Chaucato prestou atenção e desceu os pés da beira do sofá,
“Mantequilla” continuou falando.
– Olha, Chauco… Todo mundo sabe, né? Você deu grana pro So-
lano, Zavala, pro Maxe. Com essa grana fizeram folheto contra a in-
dústria, e principalmente contra Teódulo, contra o Apra. Foderam com
eles… Claro! Haro também deu grana, mesmo tanto que você; mas ele

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não é gastador, mamadeira de bêbados sem vergonha. E ninguém pega
ele. Claro! Dizem que dom Hilario também tinha dado, mas não por
seu próprio intermédio, ou melhor…
– E por onde sabe nada esse padre Vizcardo, excomungado, piolho
di’barriada? E como vai me foder Braschi? Vai fazer ressuscitar Teódulo
e vai tirar sua placa’e bronze de traidor que leva na testa, seu bosta?
– Braschi pode ressuscitar mortos que inda andam. Aí está Elias.
– Elias, você sabe… Não sei por que que te escuto, seu saco de
merda. Vai ver será que não acordei bem da cabeça. Espera… Elias des-
ceu pro inferno como o próprio Jesus Cristo. Recebeu grana de Braschi
junto com vocês, andou com vocês no meio da merda e depois, escuta,
“Mantequilla”, não confessou tudo numa assembleia pública? Denun-
ciou; entregou a grana. Se queimou como esses monges suicidas desse
povo aí… esse que está botando pra foder com os ianques. Frias tem
ovos de ouro, aistá! O pessoal da sua turma chama ele de ladrão e tam-
bém alguns ignorantes; mas os machos sabemos que entrou mesmo é
nos infernos… Você mesmo, qui’era tipo uma privada conselheiro, por
falador e enganoso, foi deixado na mão.
“Mantequilla” riu. Sentou-se num sofá frente a Chaucato.
– Tudo bem, Chaucato. Você tem fígado. Está bem. Elias se quei-
mou; pois se queimou, se queimou, e no inferno, como você diz! E de-
pois, porque bateu no peito, vomitando vintemil de quarentamil que
recebeu, agora é um monge santificado, mas vivinho e armando. Mas não
vim aqui para falar disso. Eles vão te foder! Braschi vai tirar sua lanchi-
nha de cem toneladas… E esta casa, não está segurada ainda, né mesmo?
– E por que você vem me avisar? Por acaso eu sou seu compadre? Por
acaso você acha que vou te pagar uma simples cerveja pela informação?
“Mantequilla” tornou a rir.
– Então? Você, Chauco, macho curado em quinze anos de parar
pistoleiro e bravo, não só com a grana, mas com os nervos; fodão qui’bo-
tou fora toda a grana, milhões caralho!, com as putas e com o uísque que
regava a barriga das chuchus ou o chão das cantinas e bordel, e que agura
nem tem onde cair morto, né mesmo? Por mais que diga alguma coisa,
tá pensando o que? Você não vai me dar nada, porque sou um merda,

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conforme o acontecido do acontecido, e agora você tá pelao. Vim te con-
tar que Braschi vai te foder porque eu comi as melhores putas da minha
vida, argentinas, gringas, que você mi’habilitava, sem lembrar depois
do punhado de dinheiro que me dava. Por isso! E que estou cagando e
andando que você se rebente no fundo da miséria, casado e com filhos,
nessa sua idade, por culpa de Solano, de Maxe, de Zavala, de Mendieta,
que são a pior merda que existe na pior merda que é o Peru onde, cara-
lho, segundo minha experiência de traidor com placa’e bronze, estamos
todo mundo correndo de um lado a outro como formiga na tampa da
panela qui’deixaram na chapa do fogão… Sua patroa não tá aí, né? Que
não pode aconselhar a merda, você falou? A pura merda?
– Desliga essa porcaria – disse Chaucato, mostrando a televisão.
A “patroa” está com os gêmeos… “Patroa” é como os Braschis chamam
suas fêmea-senhoras, não é? Tá bem, “Mantequilla”; mas eu ti’fiz des-
ligar esta merda pa’mi escutar bem e nunca mais voltar na minha casa
pra falar de uísque, de puta, nem do seu coraçãozinho. Você sabe… et
cetra, et cetra.
Chaucato se sentou. A fumaça rosa da Siderúrgica continuava “mi-
jando” no céu. Assim, sentado, o pescador viu que se levantava mais lenta
e reta do que a fumaça das fábricas de anchoveta, deixando sua marca
em todo o sol da tarde, colorindo uma grande parte das pedras no monte
Coishco. Chaucato olhou detidamente aquela coluna e a cor pesada que
“mijava pra’riba”, não apenas para o céu, mas sobre todo o monte.
– Nós dois fomos parido aqui em Chimbote – disse. Braschi e
eu… Não me faça acompanhamento em quando eu falar, ouviu, nem
cabeça, nem boca. Braschi sabe melhor que minha mãe quem sou eu
nas tripas e na cabeça, e ele, por mais alto que voa agora, sabe que
eu também conheço ele melhor do que o mosquito conhece a bosta…
Olha, “placa’e bronze”, vou te dizer isso pra você contar pro Vizcardo,
ou pra qualquer filho d’uma quenga que de verdade, ou por querer, faz
parte da nova máfia, porque você e Teódulo… Tá bem? Quando Braschi
já era o cabeça de águia dos que comeram nossas ovas dos pescadores
e tinham enfiado a gente num boliche bem fechado, quando isso era já
bem sabido pelos “placa’e bronze” como você e aqueles que têm pinto

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ou peito, dá no mesmo, sem vendimento pro diabo e nem pra puta,
quando tudo isso… Você sabe melhor que ninguém, “Mantequilla”; eu
era seu guarda-costas de Braschi. Eu dava grana pa’foder com ele nos
“mimeógrafos”, mas se alguém do fígado ruim quisesse, pra’sua des-
graça, fazer alguma coisa contra Braschi, teria topado primeiro com
meu corpo na frente, que quando esquenta é pior que dinamite! Não é
verdade? Não mi’faz acompanhamento no falar, sua cloaca de galinha,
nem com a boca e nem com a cabeça. Escuta, se quiser ouvir, até o final,
pra’sua própria consciência ou pra’ir contar pra máfia, ou vai embora
agora mesmo. Mas não mi’faz acompanhamento. Minha cabeça, o pensa-
mento que se diz tinha sido uma coisa, as ovas e o coração são outra coisa.
Braschi e eu sempre fomos como irmãos. Quando puteamos juntos e
pegamos anchoveta e bonito do mar, na baía e junto da Ilha Branca,
como quem ordenha uma vaca mansa; eu pari ele. E depois ele pariu
todo esse mundo de Chimbote, e é certo que agora sua boca de mono
que tinha parece boca de vulcão candela que traga, traga, traga dinheiro
merda do mundo pra’foder apenas. Mas assim e tudo, e pela mesma
maldição, ele sabe. Ele sabe que se quiser me tirar o barco eu meto
dinamite no rabo dele e de todo mundo… Eu já pesquei com dinamite.
Sabia, merda? Num só dia matei a pau cem lobos quando tinha acabado
de fugir de casa, quinze anos. Braschi sabe que eu meto…
– Por isso mesmo vai te meter antes, Chauco… por isso mesmo vim…
Chaucato permaneceu com os olhos quietos e fixos, neutros, no
rosto e depois olhou nos olhos de “placa’e bronze”.
– Um vulcão que traga assim, por quê? – perguntou –, pra’que vai
foder com o velho Chauco? Os tempos de entretenimento com pescarias
pra’ele já passou. Pa’que, diz? Você é inteligente, ardiloso, uma boa merda…
– Assim todo mundo. Olha, Chauco: os grande não perdoam a
mãe da sua merda que si’amargou e tem seu corpo como diabo engarra-
fado, não importa que esse mundo seja uma garrafinha. Você amargou
a merda pra Braschi, não é? Com os milhões que curtiu e que ele fez
parir, pior que a porra do peixe, mas pra’foder e se foder como você diz.
– Verdade. Escuto e vou lambendo o veneno que sua língua quer
injundir. Continua. Continua, filadaputa, mais do que eu… Mas no

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seu cérebro e’traidor, você não entende que pra’Braschi, como pra’você,
foder é gozar? Certamente, não entende?
– Bem, Chauco. Foder, foder, foder como tubarão perseguido, né?
Só o coração dos bobos aguenta tranquilo o bombeado dia e noite. Mas
o assunto é foder, você diz. De acordo. Cada um do seu jeito e alcance.
Braschi quer te foder, Braschi t’encontra fácil, a qualquer hora… Não,
merda! Ele te faz encontrar com qualquer negro ou branco, ou iugos-
lavo ou índio. Lembra: “Mantequilla” é enredador e enredao, quer di-
zer, sacaneado por Braschi, a águia dos industriais. Dirigente fui. Isso
nu’é pra’qualquer um. Merda é o “Characato” qui’recebeu mais chute no
rabo do que todas as notas que nu’mesmo lugar a indústria enfiou nele.
Eu sou “placa’e bronze”. Está bem? Você está na mão de Braschi. Onde
você pensa encontrar ele? Ele não tem casa, nem tem família. Mora num
clube. Nunca se sabe quando está em Lima, na Europa ou atrás da cortina
de ferro. Ali vende a farinha, por seu intermédio da Alemanha Federal.
Chaucato continuava ouvindo, mais do que escutando. E então
perguntou:
– Então, qual é o seu conselho, caralho?, se não tem jeito de en-
contrar ele, se é envesível…
– Tira seu barco e ninguém no litoral vai te dar outro. Ninguém.
– Isso se sabe. O conselho, o pedido, a verdadeira merda qui’você
trouxe pra’cá, pra’mim. Vomita logo.
– Escreve pra ele. Diz que reconhece…
– Qui agora tem boceta, ou melhor, rabo’e vulcão? Porque é viado.
O Mudo trepava nele. Esses que gostam das duas armas, acaba que
ficam no final só com o buraco…
– E esses são maus como a lacraia.
Chaucato se levantou. A barriga apareceu por cima da cabeça de
“Mantequilla”. Estavam muito perto um do outro.
– Cai fora, “Mantequilla”. Fica sabendo que eu vou escrever pro
Braschi, eu mesmo. Não vou pedir pro Zavala e nem pro Eberto escrever
para ele. Você conta pra quem te contou. Dom Ángel não fala com você,
nem manda falar. Mas, seja quem for, diz isso: se me tirar o barco, enfio
dinamite no cu dele. Braschi não deve estar no Peru, mas caralho! Puta

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merda! De Chimbote e de Chaucato nunca esquece, nem quando tiver
conversando com o Papa ou com o rei das putas no inferno. Não tira meu
barco. E agora, andando com sua placa, seu bosta, por onde achar melhor.
“Mantequilla” não conseguiu responder nada mais. Saiu fora. Atra-
vessou um descampado, sem jardim e nem pavimento, que separava a
calçada do asfalto. A coluna de fumaça rosada da Siderúrgica dividia
seu corpo em dois, mas não o cobriu inteiramente. Chaucato teve a
impressão de ver na fumaça desigual um eixo amarelado, fino como
uma agulha.
Nessa mesma hora, era sábado, “Doble Jeta”, um pescador ai-
mará que havia conseguido comprar duas chácaras pequenas no vale
do Santa e cultivar, com sucesso, verduras desconhecidas no altiplano,
desceu da Rodovia Pan-americana na direção da beira de um canal sujo
de lixo, apesar de não fedorento. O canal passava por um túnel debaixo
da rodovia. A seu lado, a leste da rodovia, bairro Miraflores Alto, já do-
cumentado, vários pescadores haviam construído casas de pouca frente,
mas com muito fundo. “Doble Jeta” tocou na porta de dom Hilario. O
próprio dono da casa abriu e sorriu ao ver seu paisano.
– Entra filho. Que milagre!
“Doble Jeta”, de sobrenome Apasa, examinou os móveis “finos”,
forrados de tecido brilhante da sala; as fotos penduradas na parede dos
três últimos barcos que havia comandado dom Hilario. No centro apa-
recia a “Moby Dick”, de cento e sessenta toneladas. Frente ao quadro,
na outra parede, havia um grande espelho de marco dourado, onde
também aparecia a imagem do barco. Havia muitos móveis na sala.
Dom Hilario conduziu seu paisano para perto das fotos dos barcos. Fez
com que sentasse numa poltrona, protegida até a metade do espaldar
por um tecido branco bordado. Apasa se sentiu, a princípio, um pouco
incômodo. Dom Hilario perguntou:
– Como faz você, paisano, para coltivar alcachofas, rabanete, espi-
nafre, todos essos verduras, estando na mar?
Dom Hilario, também, como Chaucato, tomou assento em um
sofá frente a seu visitante.
Apasa riu:

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– Cada vez menos vou no mar, tio. “Doble Jeta”, “Doble Jeta”, me
dizem asquiando inda, uns pouquinhos contra de mim. Mas tio, com
respeito a vosmicê, digo: a mulher da costa gosta “Doble Jeta”. Me so-
bram molheres bem entendidos em coltivo verdura. Agura três tem no
quintalzinho, com sos casinha de estera no mais que juntos levantemos,
duazinhas.
– E deita com as três? – perguntou dom Hilario.
– Não, tio. Não, pois. Um por um, deito em dias separados.
– Ah! E, por que de so visita, paisano?
– Um favor vim aqui fazer ao senhor, tio. Não gasta incomodar.
– O favor servicio se agradece, não incomoda o cidadão
trabalhador.
– Vosmicê, tio, ajudou derribar Teódulo Yauri, ajudou sobir Eberto
Solano, dispois Maxe, comonistas. Deu, dizem por aí, grana pra propa-
gandístico contra Braschi, armadores…
– Você não deu? Quantos filho tem na sua mulher legítimo que
segundo notícias está em Chimbote?
– Eu não sou política sindicato. Em meu mulher legítimo seis filhos
legítimos tem. So barriga bem alementado, bem vestido; a escola vão…
– Já, então. Quatro mulheres tem.
– Não, tio. Como, dom Hilario, pensamento, não entendendo? Es-
sos três molheres que estão em meu chacra piões na mais são de mim.
Como molher para meu alabância pois, são, não para vício; elas gostam.
– E se as três mulheres o paisano emprenhar? O que vai fazer?
“Doble Jeta” riu.
– Eu uso forro. Tudo com forro, “Doble Jeta”. Cada tempo, quatro
meses, cinco meses, vou mudar piões lavrança molheres… Muito tem
boscando servicinho.
– Contra do bom ensinamento não do Deus, do próprio coração
gente retidão. O castigo do Deus no outro mundo assusta, consola, o
covarde inda mais, que não tem forças para lotar e fazer mal para o
semelhante, seja cristão, seja capital milionário…
– Assim fala padre Cardozo, não é? – interrompeu, sorrindo,
“Doble Jeta” a seu “tio”.

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– Assim falou, Hilario Caullama, desde que eu uso ferramenta.
Qual favor, diz?
– O Braschi Capital vão tirar seu barco “Moby Dick”, por qui’o
senhor deu dinheiro pra’foder Teódulo, pra’elição Maxe, Solano.
– Paisaninho – respondeu dom Hilario –, em sua popa de meo
barco está preso um pelicano, velho já. Tranquilo fica em sua borda
do popa. Levamos mar afora. Aí come farto, até encher bucho como
o Deus nunca tinha dado. Anda, paisaninho, buscando, encontra ele
na praia. Deve estar durmindo. Conta pra ele essa história. Nada mais.
Quem anemal terá ti’mandado? Tinocucha? Três anos joguei fora esse
lani… Não, anemal, paisaninho, não abre boca. Levanta respeito. Om
tarefa vou te dar, andando, andando, até roduvia vou te companhar.
Pobrezinho!
Pegou ele de surpresa. Não deixou falar. Enquanto caminhava na
beira do canal, dom Hilario dizia:
– A meu lado o Inca está, quando chegamos a mar alto. Atahualpa
num’tá morto, diz pra Tinocucha, ou pra Teódulo, pra quem passando
de bobo, mas como vivo, carrapato do capital, ti’mandou. O Inca a meo
lado, mais quando em minha cabeça sinto o buliço profondo do ancho-
veta. Aistá o Inca, a meo lado, tranquilo, como busto, grandaço, sem
cor. A Cajamarca fui ver donde dizem que morreu. Banhos do Inca, que
dizem, ali também banho tomei. Em todo vale Cajamarca corpo-alma
do Inca está, em barranco monte El Dorado também, no mar resso-
ando. O capital vai se render, com o tempo, paisaninho, pobrezinho.
Anda, vai embora!
No momento em que despachava “Doble Jeta”, que se foi sem des-
pedida formal prévia, passava em seu jipe o padre Cardozo. Deteve o
jipe. Desceu. Abraçou a dom Hilario. Cardozo, sem tirar seu braço do
ombro de dom Hilario, perguntou:
– Veio te visitar “Doble Jeta”? Veio de Santa de visita? Conta, dom
Hilario.
– Pra que, amigo? Se já sabe tudo.
Cardozo se ruborizou. Era baixo, um pouco narigudo, sem traço
visível de gringo. Umas pintas ou grânulos que tinha no rosto eram

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parecidos ao que nos povoados da serra se consideravam como signos
de vícios solitários. Dom Hilario olhava de frente para ele. Logo, perce-
beu o rubor no rosto do sacerdote.
– Tem vosmicê cólera ou vergonha? Por que me pergunta desse
pobre diabo? Bem sabe que ele tem três pobres coitadas que faz traba-
lhar e com “forro” vesita elas em de noite. Esses pobres mulheres, por
necessidá meseria estão, de certo, com ele. Esse pobre anemal de altura
diz que essa molher gosta “Doble Jeta”. Sabia?
– Sabia, dom Hilario. Apasa sempre conta isso. Deve ser falso,
acho. Mas, por que me diz que sei tudo?
– Pra’isso veio, senhor sacerdotes ianque. Pra’que entonces?
– Qualquer sacerdote precisa saber tudo. Não qualquer um, mas o
que procura, revolucionariamente, a salvação do homem, agora.
A cor da fumaça da Siderúrgica começou a chegar até a beira da
Pan-americana. O padre estava de costas para essa luz e dom Hilario,
de frente.
– Por que, Padre Cardozo, não faz revolução nos Estados Unidos,
onde capaz é mais orgente?
– Mais urgente?
– Mais defícil, padre?
– Igual, dom Hilario, mesma coisa de difícil como de urgente. E
vosmecê acredita de veras que eu sei por que veio “Doble Jeta” de visita?
– Vosmicê, pois, me perguntou por que tinha vindo “Doble Jeta”.
Sabe vosmicê ou quer saber. Por quê?
“Senhor; isto é pior de atroz, que a vigília da mulher da barraca
de Coishco, onde os homens eram menos e tinham menos alma que as
moscas; é pior que a primeira vez que vi atropelar um menino na rodo-
via e todos disseram que melhor se tivesse morrido, porque assim…”
Foi interrompido em sua lamentação de consciência por dom Hilario.
– Padre Cardozo, vosmicê sabe; eu como cholo aimará, altiplano
Lago Teticaca, em nenhum gringo confio, ni quando vestem batina, e
é castelhanista melhor que eu. Vou dizer uma coisa: esse pobre coitado
cholo aimará vesitou meo casa para deixar encomenda, com seu duplo
beiço, que o Capital-Braschi mi vai tirar o barco… Espera, padre… Eu

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respondi: Inca a meu lado está… Quando subo alto-mar e estou sozinho
com timão em meu mão, aistá, Inca, fuerte, tranquilo. Ele mi leva nariz-o-
lho o volteado do anchoveta, no fondo… Um pelicano velho, faz tempo,
se acomoda em meu barco… Levamos de noite. Devora anchoveta me-
xendo sua asa descarado cansao velho. De dia dorme. Encarguei meu pai-
saninho de buscar ele e na sua orelha dormido rezar mandado de máfia…
– Obrigado, dom Hilario. O senhor me despreza, desconfia; eu o
respeito. Que siga assim a história…
– Vosmicê agradece, vosmicê agradece debaldemente. Defícil des-
prezo a padre ianque, generosidade vesível. Hilario tamém agradece o
atenção. Como não!
Cardozo colocou suas mãos sobre nos ombros dele e o examinou,
esquadrinhou, até o mais profundo que conseguia, a cara de huaco e os
olhos do pescador. Sim, estava tranquilo. A quase veneração com que
colocou as mãos em seu ombro não produziu nele nenhum efeito. Su-
biu no jipe e saiu arrancando com pressa. Dom Hilario regressou pelo
caminho um tanto irregular, de terra, para sua casa.
“De donde, trás de quem teria vindo Apasa? Piscador ganha fuerte
toavia, mas so vida pende do capital pior que mosquito de aranha – ia
pensando enquanto andava. De mim, eu, só o carinho a meo barco, meo
pessoal, me fariam perder. Dinheiro, de mais já tenho; meo filho é forte
no estudo. Tem que veriguar isso, com Solano, com Maxe. O mesmo
lei diz: do indústria peixe tem cabeça escondido pa’Deus e pal Satanás,
quando tem reclamo. Não tem patrão do trabalhador mar quando tem
reclamo. Mas esse cabeça envesível pode te degolar. Felizmente agora, o
Sendecato é… comonista dizem quando não é pongo do capital. Maxe,
Solano para forte, comu’é devido o cabeça envesível. Num tem cuidao!
Pobrete Apasa. Bem gusanado pela pestelência costera; em seu pior gu-
sano está andando. Alma vagabondo. Padre Cardozo, vagabondo bom:
om braço carinho em ombro Caullama, outro braço apoio em ombro
Capital-Braschi. Quem prova tem ponte direto do inferno pro glória?
Hilario, tranquilo, filho. Inca sombra, seu lado sempre, no eterno.”
Maxwell já havia chegado à residência e escritório de Cardozo
no novíssimo bairro Laderas del Norte, planejado para futuro centro

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universitário de Chimbote. Estava acompanhado por dom Cecilio Ra-
mírez, irmão mais novo que tinha sido de uma família pobre em uma
acastelhanada e pequena cidade do norte andino, às alturas do Ma-
rañón. Dom Cecilio era o dono do lote e da casa em La Esperanza onde
Maxwell morava. Mas também esperava Cardozo, Bazalar, o criador de
porcos de San Pedro.
Com a dança no salão rosa do prostíbulo, Maxwell se despediu
do Corpo de Paz, a que havia pertencido até a véspera desse mesmo
dia. Conseguiu convencer Ramírez a aceitá-lo como ajudante-sócio
permanente na empresa de construção barata e na fábrica de tijolos de
cimento; também conseguiu que lhe cedesse uns metros do seu lote, no
lugar em que limitava com o de uma velha senhora emigrada de uma co-
munidade litorânea, cercada por grandes fazendas açucareiras. A velha
senhora era dona de um ponto de venda no mercado da barriada; tinha
uma filha, dona Fredesbinda, e três netos órfãos. Brigava, às vezes, com
Ramírez e a “Mamacha”, mulher de Ramírez, pelas incursões de porcos
e galinhas de um lado a outro. Maxwell construiu em poucos dias um
quarto de alvenaria, no canto da parte mais disputada do lote. Com
umas madeiras velhas e um pedaço resistente de esteira montou a porta
da moradia. Fez tudo com a aprovação entusiasmada de “Mamacha”,
de dona Fredesbinda e de “Lucero”, o cachorro vigia da velha senhora.
Levou para o quarto sua pobre cama feita de madeira de salgueiro e
arame; as duas cadeiras de totora, o baú serrano enfeitado com listas de
lata roxa e vermelha, no qual guardava sua roupa, e um banquinho de
madeira. Levou também, muito feliz, para sua nova morada, o espelho,
um pouco grande, que antes havia preferido deixar pendurado no salão
do comerciante do qual alugava um quarto estucado, de teto muito
baixo, branco. Seu charango com estuque de madeira cru, feito por um
carpinteiro cholo e seu amigo, de Ayacucho, também foi junto, no final.
Ele sabia que em nenhuma barriada ninguém se atrevia a roubar nada
dos “gringos”, e especialmente dos Corpos de Paz. Os moradores em
geral roubavam uns dos outros, desde um cabo de uma vassoura até
panos velhos. O quarto recém-construído era espaçoso e alto, com um
teto feito com boa esteira. Dom Cecilio o ajudou a distribuir a massa

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de barro sobre o telhado. “Depois, vamos pintar de branco as paredes”,
disse. Maxwell obsequiou a dona Fredesbinda seu lampião a gás, para
que o usasse em seu posto de venda do mercado e pudesse iluminar, de
noite, seu caminho de volta à casa. Ele comprou para uso próprio um
lampião a querosene, simples, de mecha, com um vidro de boca estreita.
O espelho refletia a luz e aumentava a claridade do lampião.
Já não era mais Corpo de Paz, mas ajudante de pedreiro fixo de
dom Cecilio. Era, a partir desse momento, morador gringo quase livre
da clandestina e maior e distante barriada de Chimbote, La Esperanza.
Trinta mil cristãos, que haviam invadido o deserto e traçado ruas largas
e retas que chegavam quase até o mar, da Pan-americana para o oeste.
Em três anos, a população havia aumentado talvez de quatro para trinta
mil. Naqueles mesmos anos, pouco depois da chegada do aqueduto da
irrigadora “Chimbote” às dunas altas, apareceram de forma repentina no
deserto umas áreas pantanosas, batizadas pelos moradores de “aguadas”;
no começo eram pequenas, mas depois foram cada vez maiores; algumas
brotaram onde havia casas, que primeiramente foram ilhadas, e logo
a seguir, totalmente derrubadas, todas; outras apareceram na frente,
da rodovia para os montes. Ali se formaram, felizmente, os maiores
pântanos. A totora crescia quase a olhos vistos das pessoas nas maiores
aguadas; um verde pálido e com penachos ondulando no alto; esbran-
quiçada, na parte baixa do talo. Das “aguadas” voavam para a barriada
verdadeiras nuvens de pernilongos vorazes. Chegavam e não permane-
ciam toda a noite, ou o vento, ou alguma outra necessidade desconhe-
cida, fazia com que desaparecessem pronto. Na beira do totoral maior
e com mais água, uns homens corajosos construíram uma área empe-
drada. Maxwell ajudou. Calcularam o nível da água. Era areia forte.
Instalaram ali um grande lavador de caminhões e carros, que depois se
converteu numa oficina mecânica e, posteriormente, numa fábrica de
carrocerias. Colocaram uma placa, muito bem presa entre dois madei-
ros altos: “Fábrica de carrocerias Inka Bala.” Era engraçado; parodiava
a fábrica de refrigerantes “Inka-Cola”, que, de acordo ou não com a
“Coca-Cola”, foi responsável pelo desaparecimento das pequenas fábri-
cas de todos os lugares. Para a beira das aguadas também se mudavam,

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principalmente nas horas do entardecer, bandos de gaivotas; flutuavam
sobre a superfície. Em alguns momentos levantavam voo como labaredas
que se projetavam piscando e ondulando milhões de vezes e, sem que
ninguém esperasse, em lugar de ir embora, voltavam a descer como
ordenadamente precipitadas. Alguns meninos se aventuravam a ex-
plorar aqueles pântanos. Eram vistos sozinhos, andando muito devagar,
e muito mais solitários quando a sombra das gaivotas vibrava sobre as
aguadas, e era uma verdadeira sombra. Maxwell, então, lembrava da
comunidade de Paratía e dos totorais sem fim do lago Titicaca, onde
aprendeu a tocar charango. A desolação dessas planícies e águas era
diferente; os meninos de La Esperanza, buscando nada nos pântanos e
mais, quando o crepúsculo tropical marcava nitidamente essas figuras,
como que devorando-as, aumentando-as, Maxwell conseguia tocar, às
vezes, as melodias e ritmos aimarás e quéchuas que havia aprendido;
porém nunca conseguiu cantar bem e menos ainda quando queria, um
pouco desesperado, frente àqueles meninos meio extraviados e curio-
seando nos pantanais da barriada.
À noite, a primeira desde sua saída legal e perfeita do Corpo de
Paz, Maxwell se dirigiu caminhando para o porto. Passou do lado de
todas as “aguadas”; chegou à bifurcação da Rodovia Pan-americana
com o caminho que levava ao bairro 27 de Outubro; o caminho para as
fábricas estava recoberto de areia. Dali até El Trapecio havia um des-
campado; chegou às luzes brancas, elegantes, do bairro fiscal, onde as
casas eram todas uniformes. Havia deixado o estojo de seu charango
pendurado num gancho fincado na parede de seu quarto, junto do es-
pelho. Conscientemente, “estupidamente”, em lugar de seguir na direção
do porto, Maxwell desviou para a trilha por onde os pedestres, os que
apenas levavam o justo ou iam olhar, chegavam ao prostíbulo. Chegou;
ouviu o rock and roll no enorme Salão Rosa e convidou a “China”. Não
havia pago a ela nenhuma bebida. Nunca se via um Corpo de Paz no
prostíbulo. Sua entrada chamou a atenção de todos que o viram; e os
que não o viram perceberam que as pessoas olhavam para algo espe-
cial, e era ele. Logo, os casais começaram a dançar. A “China” acabava
de chegar. Um manco, que sempre usava cachecol no inverno e verão,

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tocava com um ferro as portas dos quartos das prostitutas, quando os
encontrava fechados. O golpe soava como um estampido. Tocava às
doze em ponto. Anunciava a hora em que as “meninas” deviam ir para o
salão. Batia forte e alto porque algumas continuavam dormindo. Depois
dessa hora, o manco já não incomodava mais os casais que voltavam
do salão para os quartos. Isso acontecia no pavilhão rosa. Quem dava
os golpes de ferro no pavilho branco era um gordo com cara de gor-
dura, como se fosse uma banha congelada em cujo centro, no entanto,
os olhos do homem brilhavam, mexendo-se muito, como o de alguns
animais montarazes. “Banha morta”, assim era chamado. Era neutro.
Algumas chuchumecas “degeneradas” quiseram dormir com ele e não
conseguiram.
Maxwell foi aceito imediatamente pela “China”. E todo o salão,
menos o zambo Mendieta, que cumpria seu rito dos sábados com a
Narizona, ficou abstraído pelos saltos rítmicos do gringo, pelas figuras
que seu corpo já convertido em verdadeira candela, que não despertava
inveja e nem luxúria, nem surpresa, mas pura atenção, ali, naquele salão
onde havia ocorrido tantos cortes sangrentos, ou tanta cerveja tinha
corrido pelo chão vinda da boca de vinte ou trinta garrafas ao mesmo
tempo; onde as cadeiras passavam voando entre insultos de bestas can-
sadas ou iracundas… Depois de tudo que aconteceu, o ataque louco do
“Mudo”, a dança com a gorda, a saída abraçado com ela do pavilhão rosa,
aturdido e envergonhado até as orelhas, Maxwell se despediu da gorda,
o hipopótamo sagrado, no campo onde estacionavam os coletivos. Pri-
meiro a gorda insultou, depois pediu; pediu que fosse deitar com ela,
sem pagar, por puro prazer dela; disse assim: “você mi’esquentou a ‘zorra’
como ninguém nessa vida; mais que ardiência tenho… tenho amor,
amorzinho verdadeiro…” Maxwell agradeceu o fato de a mulher ser do
pavilhão branco; por isso foi possível se despedir na semiescuridão do
campo, se não? Começou a correr pela areia grossa, na subidinha que
precisava vencer para alcançar a trilha dos coletivos. A gorda lhe atirou
um punhado de terra: “Vai embora: quando ti’enterrarem na sepultura,
gringo viado, esse punhad’e terra vai cair sobre seus dentes.”

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– Vem comigo – disse a ela um negro encorpado. Apago sua fúria
com minha mangueiraça que tenho, maior que a da bomba “Grau”.
A gorda se deixou levar.
Um retrato a óleo do “Che” Guevara parecia presidir o escritório
do padre Cardozo. Outros quadros mais enfeitavam o lugar, entre eles
a figura de uma velha vestida de mestiça, vencida pelo cansaço. Tinha
toda a aparência de ter sido copiada de alguma fotografia. Maxwell
e Ramírez perceberam que debaixo do quadro do “Che” estava pen-
durado outro quadro, um Cristo incomum, desenhado em uma folha
grande de papel revestido de nylon. Havia sido desenhado com giz de
cera escolar. O rosto do Cristo aparecia excessivamente indianizado
pela cor, pela forma dos olhos, que consistiam nuns traços negros oblí-
quos feitos a tinta, e por um papagaio azul desenhado ao lado do corpo,
perto da ferida. A ferida da lança aparecia muito grande e, depois de
ver essa mancha, Maxwell percebeu que também o rosto e o crânio do
Cristo não eram exatamente desproporcionais, mas talvez intencional-
mente maiores, e a expressão do quadro estava centrada ali, no peso
da cabeça e na figura da lança no peito. O retrato do “Che”, apesar de
aparentemente imaginado, não chegava a impressionar, salvo pelo ta-
manho e lugar que ocupava no escritório. Bazalar, o criador de porcos,
entrou no escritório quando Ramírez ainda continuava olhando o qua-
dro. Ao ver os dois homens, Bazalar adotou imediatamente uma atitude
cerimoniosa.
– Eu sou Gregorio Bazalar – disse –, presidente da barriada San
Pedro, senhor mister, ao seu mandar. O senhor será Corpo de Paz, e o
cavalheiro que acompanha?
Nesse momento apareceu na porta um padre jovem, muito louro.
Disse algo em inglês a Maxwell e saiu. Bazalar achou o padre com a cara
seca e um pouco depreciativa. Não cumprimentou os demais. Maxwell
sorriu:
– Disse que o padre Cardozo acaba de chegar. Os gringos almo-
çam cedo. Pede que esperemos por ele um momento. Eu não sou mais
Corpo de Paz, senhor, faz tempo; sou sócio-ajudante de dom Cecilio

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Ramírez, aqui presente, pedreiro de La Esperanza. Estamos fazendo
alguns servicinhos.
– Ah! – disse Bazalar e seu ar cerimonial se desfez; seus joelhos,
mão e pescoço tomaram a atitude de descanso, não completo, porque
o escritório estava cheio de livros em estantes bem enceradas; havia
duas máquinas de escrever, uma na escrivaninha e outra numa mesa
especial de aço…
– O “Che” – disse Bazalar. O “Che” entrou em toda parte. Aqui,
o padre tem ele no lugar alto, pintado destinto. Será para mostrá que
neste lugar num’tem susto ao comonismo que dizem dele; mais certo
o contrário. Defesa do pobre não faz só comonista, que pensa o se-
nhor, mister?
– Nós somos só pedreiros, só isso.
– Pedreiros. Não sabemos comonismo – disse Ramírez. Ramírez es-
tava folgadamente sentado em um banco de madeira, acolchoado com
um grosso tecido de lã. O estilo do tecido era cusquenho e o banco ha-
via sido comodamente encostado à parede, que se encontrava recoberta
até certa altura por outra manta dobrada em dois e presa na parede
por algum sistema muito especial. O manto da parede era de uma cor
apenas, amêndoa, ancashino.
Dom Gregorio pediu licença e, com uma solenidade que não dava
para saber se era habitual ou estudada, preferiu sentar numa poltrona
de madeira, também de feitio ancashino, mas, sem dúvida, dirigida e
encomendada.
– O “Che”, desse jeitim está com o Senhor Cristo – disse Bazalar.
Corioso, senhores! Que já visto a mocinhos e mocinhas guardar em sos
bolsinho ou carteira postal do “Che”. Assim será…
Padre Cardozo rezou a oração habitual antes da comida no refeitório
da residência. Havia na mesa seis padres e um jovem peruano convi-
dado. Nas cabeceiras, padre Cardozo e um ancião, o padre Federico.
Próximo do ancião, ao lado da parede, um sacerdote de olhos grandes
e uma cor verde sumamente clara. No lugar equivalente, mas ao lado
de Cardozo, um gringo de aspecto feliz, jovem e com grande apetite.

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– O padre Federico esteve quinze anos no Oriente – disse o sacer-
dote de olhos verdes-claros. Pôde escolher, depois, entre Peru e Brasil.
Preferiu este país pela antiguidade de suas origens.
Falou lentamente, cuidando de construir bem as frases e olhando
para o jovem convidado.
– Você já esteve em Cusco, padre? – perguntou o jovem ao ancião.
– Já – respondeu – e em Machu Picchu também. Nenhuma ci-
dade me ofereceu tanto como Cusco, tanto elemento para compreender
melhor o homem; o de lá, o daqui, gringo ou não. Mas existe… como
diria? Ah! uma espécie de contraste entre esse riqueza da cidade e o
solidão dos índios… Queiram me desculpar os senhores.
– Infelizmente, apesar de ser normalista, não conheço Cusco. Per-
guntei por perguntar.
– Eu…, eu acrescentaria – disse o padre de olhos claros – que esse
contraste de que fala padre Federico é como um mina de sabedoria para
saber o Peru e fazer o sondagem do proceder para desenvolver o país
até o salvação completo.
O jovem, que começava a fazer uso dos talheres, um pouco inibido
e ao mesmo tempo orgulhoso de estar sentado naquela mesa, compre-
endeu pela metade o alcance das palavras que acabava de ouvir; sua
confusão aumentou e ficou um pouco aturdido. O jovem padre que
estava sentado a sua frente era o mesmo, seco e distante, que havia
conversado com Maxwell. Olhou para ele, enquanto comia; então o
convidado falou:
– A salvação do Peru… – disse assim, sem mais.
– A salvação pelo superamento do subdesenvolvimento.
– Mas, todos dizem, que os ianques se opõem… Muito – acrescentou
o jovem, precipitadamente e mais desconcertado ainda.
O padre que tinha em frente comia rápido, mas sem demonstrar
grande entusiasmo, e tornou a mirá-lo.
– Jovem – continuou Cardozo –, onde existe mais poder…?
– Estados Unidos é a maior potência do mundo! Eu afirmo isso de
convencimento, padres – respondeu o convidado.

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– Jovem: é preciso destruir a dependência; não existe salvação
completa do alma nos países subdesenvolvidos…
– Certo, pois, padre Cardozo – voltou a interromper o jovem –,
certo é. Estamos condenados. O senhor tem razão.
O padre de olhos verdes-claros olhou com preocupação não dis-
simulada para Cardozo.
– Ao contrário – cortou o ancião. Aqui é onde existe mais espe-
rança. Eu estou ajudante do padre em uma barriada. Aqui, mais ne-
cessidades e mais esperanças, muita, encontro; cada dia mais desejo,
potência de perfeição.
– O Senhor, padre, o senhor é ajudante de paróquia de barriada?
Nessa idade e com o que sabe deveria estar de bispo. Eu sou professor
numa escola; na sua idade serei Inspetor ou Diretor; é a corrida no
estabelecimento do Carreira.
O padre mais jovem e feliz, que comia com grande apetite, colocou
uma mão no ombro do normalista, que era seu vizinho de assento.
– Eu sou esperança! Comamos bem, amigo.
– Obrigado, padre.
O jovem começou a comer de verdade. Encontrou os pratos um
pouco estranhos, mas agradáveis. Percebeu que não o olhavam, e todos
ficaram calados.
– Pode continuar conversando quanto quiser. Eu tenho uma visita
de trabalho. O Senhor volta para Chepén amanhã? – perguntou Car-
dozo ao jovem.
– Não, padre. Vou agorinha mesmo. Obrigado pelo convite. Vou
embora já. É cedo. Tem coletivos toavia.
Cardozo lhe abraçou de forma familiar.
– Não existe homem e, menos, cristão condenado. Aqui é preciso
lutar revolucionariamente e duro, de coração. Volte logo – disse a ele.
– Assim é, padre. Obrigado.
O jovem gringo, que estava sentado a seu lado na mesa, se ofereceu
para levar o professor até a parada dos coletivos para Chepén. Os jipes
estavam fora, frente ao local. Pegou o normalista pelo braço, fez com
que se despedisse dos padres e seguiu com ele para a porta. O jovem

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lançou um último olhar para a garota, cheia de graça, que servia os
padres. Logo, os dois jovens foram seguidos pelo ancião.
– Vá a Cusco – disse o ancião ao convidado.
O jovem professor se deteve um instante na porta do edifício. O
mar estava carregado de uma nuvem levemente avermelhada, enegre-
cida, que aparecia como muito distante. Não se viam as ilhas. E nesse
começo de escuridão, o jovem professor se sentiu entre satisfeito e feliz,
tranquilizado, com o olhar detido que o padre Federico lhe dirigiu; de-
pois viu e se deixou impressionar pela coluna, tão próxima, no pequeno
e especial bairro de Laderas del Norte, a coluna de fumaça da Siderúr-
gica, subindo sobre os bosques de eucaliptos do Viveiro da Corporação.
Esses eucaliptos são os únicos, assim tão retos e formando um bosque
uniforme, de toda a costa do Peru. Sobre esse grande bosque, viu que a
fumaça emprestava à escuridão um hálito rosado e um eixo movediço,
porém constante:
– Veja, padre Federico – disse com essa mesma seriedade, um
pouco menos equívoca e obrigada que o tinha atormentado durante
a comida com os religiosos norte-americanos. Padre Federico: a Side-
rúrgica é esperança, não é? Essa fumaça de cor rosada que não presta
atenção à escuridão.
– Vá a Cusco, assim; com essa disposição.
Os três homens se colocaram de pé no escritório de dom Cardozo,
quando ele apareceu na porta. Antes de cumprimentar os visitantes,
acendeu a potente luminária do escritório. Os três visitantes pareciam
haver estado calados na semiescuridão e isso mortificou Cardozo; sentiu
certa irritação em relação a Maxwell, que deveria ter vindo e acendido a
luz. Ele sabia perfeitamente onde estava o interruptor. Cardozo usava
sempre um casaco de aspecto modesto; seu rosto era juvenil, de ar ri-
sonho, mesmo quando se concentrava para refletir sobre temas ou as-
suntos mais importantes ou urgentes. Abraçou primeiro Bazalar, depois
Ramírez e, finalmente, Maxwell. Pediu aos três que se sentassem.
– Bem-vindos a esta casa – disse. Qual dos senhores é Bazalar, o
presidente?
– Eu – e o criador de porcos se levantou.

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– Nesta casa conversamos como se estivéssesmos em público,
salvo quando nossos visitantes queiram dizer alguma coisa em segredo.
O que tem a dizer, amigo? – perguntou Cardozo.
– Digo, e estes senhores é melhor que sejam testemunhos de meus
palavras…
– Muito bem. Mas… antes de começar nossa conversa, permitam-me
explicar que esse retrato do “Che” que, sem dúvida alguma, chamou
a atenção dos senhores, foi feito por mim – disse Cardozo. E… este,
este Cristo envolvido em folha transparente foi comprado numa rua de
Cusco, do jeitinho como está. O que vocês acham?
– Retrato do “Che”, sem vida, eternidade emponente. O Cristo,
cabeça caído, loraço, também emponente – disse Bazalar, ainda sem
se sentar.
– E os senhores, o que diriam? – Cardozo olhou para dom Cecilio.
– Esse crucificado tem lançada grande, triste – respondeu dom
Cecilio. Sua cabeça, sim, está grande, olhando.
– Muito bem, certamente. Fico feliz em vê-los, especialmente o
senhor, companheiro Bazalar. Tomem assento!
Em Bazalar produziram efeito as palavras de uma especial defe-
rência do padre Cardozo; sua postura ficou mais solene, de modo que
parecia para dom Cecilio “mais sincero”; depois, o criador de porcos
tomou assento e ficou em uma posição de visível comedimento.
– E agora me conta, companheiro – dirigiu-se a ele Cardozo –,
como foi sua eleição para presidente de San Pedro e por que o padre
Vizcardo não quer reconhecê-lo na Federação de Barriadas?
– História longa; os senhores também…
– Meia hora? – perguntou Cardozo.
– Soficiente, penso. Recortamos detalhamentos. Vosmicê sabe:
Mancilla era presidente, eleito por quatro gatos. Abusos cometia a cada.
Cinco soles para arrumar buracos pista rua, cinco soles para arrumação
campo esporte estádio, cinco soles para fazer reconhecimento, pedia a
cada família. Porque comonidade San Pedro, clandestino é, igual que La
Esperanza, de onde são dignos representante estes dois senhores, mister
e peruano. E nada faziam. Também nem todos pagavam cotas. Cada

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moradores limpava tantinho so rua. A joventude colaborou abertura
estádio pequeno frente grande monumento ruína incaico, que com so
cruz está. Depois, quando os pobres levamos cruz, por meu inciativa…
– Mas a autoridade e o Monsenhor não pediram que levassem as
cruzes. O senhor fez um discurso na sala da Federação, precisamente,
exatamente, em La Esperanza, para fazer aquela manifestação. Você
ouviu, Maxwell?
– Ouvi. O senhor Ramírez não. Eu entendi menos. Os moradores
aplaudiram estentóreo…
– Isso, mister, palavra bonito, expressiva. Estentóreo! Com so
mano e so coração, todos, em público assembleia cabido. Eu era en-
tonce morador comum.
– O senhor, o senhor… É. Caldeou o ressentimento.
– Precisamente, padre. E o Federação qui’é enativo, com esse movi-
mento renasceu, tomou sos força de novo. Aqui, toda gente, os pobres,
os meio pobre também; acho até os que mandam das salas governo,
estejemos ressentidos. E melhor desfogar esses mal humores. Mal hu-
mores preteiam a consciência. Na processão dos cruzes, solene fune-
rário, a gente chorou seu pouquinho; se desfogou, foi atuação massa
comonitário. Isso uns mi’reconheceram, outros mi’an maldizendo.
Assim Mancilla. Dizque com mortos sobi na presidência. Talvez assim
seje certo. Mas o morto quando faz apurar o vivente que dizemos, é
legítimo direito. Eu convoquei nova assembleia eleger diretoria. Até o
senhor subprefeito, autoridade máxima, torpeceu trâmite. No começo
vezinhança temorizou, melhor, deu de costas meu gestão renovador;
mas dispois, com meu atividade que tenho desde que fui dirigente
barriadas Lima, reunimos moradores e em lugar legítimo Associação
Moradores, dozentos fizemos assembleia. Meu dirigência reconhecido,
presidente…
– Duzentos, companheiro Bazalar, não é pouco para um bairro
que tem vinte mil habitantes?
– Clarividente, padre. Reconheço. Mas Mancilla saiu três anos já,
um ano outro ano, com vente, ventedois, trenta votos. Eu tive cento
sessenta e nove. Perdendo, Mancilla vencia sos votação de anteriores.

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Ressentido, como vosmicê acertadamente calefica, não quiseram entregar
ni arquivos, semanas. Felizmente senhor subprefeito dispois soube que
calunioso me tinham caleficado por ante so escritório de comonista.
Três quermesses organizei para levantar local posto polecía. E mi’en-
tregaram, todo retalhado, arquivos. Sobre o altura do duna prencipal,
um costado “Cruz de Hueso”, com joventude construímos estádio regu-
lamentar com traves, rede e tudo. Meu presença colaborou com Plano
Padrinhos ianque também, desautorizando conversaria rumores contra
padrinhos norte-americanos.
– Que rumores?
– Tamém deziam que afilhados padrinhos gringos iam ser leva-
dos América do Norte, esperando sejem grandezinhos, para entroduzir
mataderos Chicago cidade; qui’iam levar guerra eterno Vietnã pa’carne
de canhão.
– Essas coisas se diziam em La Esperanza, companheiro Ramírez?
– Nunca escutei falar cidade Chicago matadero; isso não ouvi;
Vietnã também não; mas, certo, falavam que iam ser levado os afilhados
para nação dos gringo de serviçal, uns falavam; outros falavam que para
dar de comer para uns porcos grande que nem burro. Também diziam
que gringos padrinhos eram comunistas, que, por isso, davam dinheiro
sem cobrar os juros…
– Obrigado, concidadão Ramírez, por so confirmação rumores –
disse Bazalar.
– Mas isso era faz dois ou mais anos, senhor – precisou dom Cecilio.
– Mas em barriada San Pedro a ignorância é forte, noventa por
cento analfabetos, barriada fora Rodovia Pan-americana em duna al-
tura isolada, muito índio serrano, mais menos como eu. Agora já nem
tem cuidado nengun. Eu, juramento faço. Padre ancião ianque, amauta
barriada, sabe. Agora tudo tranquilo; gratidão povo Plano Padrinhos,
garantido.
– Como em tão pouco tempo conseguiu desautorizar estes rumores,
companheiro Bazalar?
– Enteressados macabro rumor eram só pouquinha gente já. Des-
cobrimos meu presidência; convencemos; fotografias, testemunhas pais

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famílias… Um por um. Mas todo em anonimato, silêncio. Eu não é
possível dizer nominações específicos…
– Aceito e agradecido, companheiro. Não pelos ianques, mas pela
verdade. Prossiga.
– Em três quermesses mencionado dancei, primeira vez, joventude
San Pedro, alegre, orquestra agogô que dizem. Fizemos, também, enter-
médio cultural, como é devido; pouco discurso de so servidor; depois,
tocou programa folclórico costombrista, cantor cego Crispín Antolín.
Dedicou letra especial joventude San Pedro, esporte…
– O senhor lembra alguma coisa dessa música? – perguntou Maxwell,
que escutava o criador de porcos tão atentamente como Ramírez, mas
sem proteger sua orelha com uma mão aberta, como fazia Cardozo,
para entender bem o estilo e o relato, para concentrá-lo no ouvido…
– Lembranças… Vosmicê, o que disse, padre?
– Crispín Antolín… Conta, se não demora muito.
– Pouquinha coisa apenas lembro: “Joventude errante, concentra
so pensamento… Ferramenta, esporte, suor, costura sentimentos…”
– Bonito – disse Ramírez.
Maxwell quis saber quanto tempo havia passado dessa apresentação.
“Faz pouco”, disse Bazalar, e continuou sua ladainha.
– Eu, senhores – e Bazalar se colocou de pé; Cardozo escutava sen-
tado numa poltrona como a que ocupava o criador de porcos. Empulso,
avivo o atividade do barriada pa’que organize e foncione como as bar-
riadas de Lima que até título eleitoral partecolar, com brasão tem, e com
esse atividade conseguiram já alombrado elétrico, quase-todos; San
Cosme já está com so magnânimo tanque inorme de água… Entonces,
padre Cardozo, por que repodiado padre Vizcardo, emoral, presidente
Confederação Barriadas não quer fazer meu reconhecer como proco-
rador presidente no Confederação e, mais certo, fazer concorrer, abuso
ilegítimo, para Mancilla que nem ninguém é mais? Vosmecê, padre Car-
dozo, é influência prencipal grande porto industrial Chimbote, perante
mundos cevil e eclesiástico. Façame vosmicê respeitar! Eu enfrento em
barriada não por enveja ni ambeção pessoal desqualificado!
Concluiu abaixando o punho.

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Cardozo se levantou; aproximou-se de Bazalar.
– Eu não sou principal influência; trato de convencer pessoas, au-
toridades boa-fé, que aceitam a razão.
– O grande “homilde” ancião reverendíssimo padre, so paisano
que está em meu bairro, conhece meu força exercido legítimo avanço
comonidade. O “Che” também desde so tumba desconhecido, sabe – e
dirigiu o rosto para o retrato.
Mas o ancião padre nunca se atreveu a dar uma opinião favorável
sobre Bazalar. “Tenho pouco tempo – havia dito. Não sei ao certo o que
aqui é mau e o que é verdadeiramente bom. Bazalar é ativíssimo; nada
mais posso dizer. Você, apesar de mais dedicado aos sindicatos, estudou
para conhecer as sociedades, já leva algum tempo neste difícil lugar.”
E não quis fazer referência ao rumor que, para alguns moradores mais
próximos da casa de Bazalar, parecia ser convicção de que o criador de
porcos tinha duas mulheres em casa.
O presidente esperou a resposta de Cardozo. Nesse dia Bazalar não
estava tão cuidadosamente barbeado como quando saía, ao amanhecer,
de sua distante casa da barriada, na frente de uma das duas mulheres,
Juana, que puxava a burra “Nicasia” com uma corda de lã de lhama. A
burra carregava as sobras de comida em grandes latas vazias, duas de
cada lado de uma espécie de angarilha armada pelo próprio Bazalar.
– Eu converso pouco com o padre Vizcardo. A verdade; conheço
pouco as barriadas – disse Cardozo, examinando detidamente o rosto
do criador de porcos. Acho, companheiro, que essa Confederação é
mais simulação do que efetiva. O senhor, por exemplo, decidiu a mu-
dança das cruzes…
– Essa Confederação atende onicamente assuntos em que pode ga-
nhar dinheiro; assenala presidentes de barriadas que faz especolação lotes
terrenos, direitos mercadinhas meserável – Bazalar interrompeu Cardozo
e falou, gesticulando e agitando um braço com muita energia. Isso não é
correto, padre, nem para consciência cristão e nem para progresso como-
nidades… Por outro lado, mudança cruzes foi entusiasta aprovamento de
so companheiro, máximo dirigente piscadores, senhor Maxe…
– De Maxe?

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– Ele me contou, casualidade encontramos enterro om pescador
morto acidente. Eu falei pra’ele e comoniquei que Sendicato deveria ser
mais atento assunto barriadas e contei meu eneciativa mudança cruzes e
sos consequências. “Bem, companheiro – me respondeu. É preciso revol-
ver descontento da gente barriadas que parece morto resignação meseria.
É preciso revolver, companheiro, até o rabo, com qualquer circonstância,
o resignação negativo. As barriadas mi dão nojo até”, disse com enteiro
franqueza, esse grandaço homem jovem Maxe; franqueza enteressante…
– Bom, companheiro. Creio que não será difícil convencer o padre
Vizcardo. Vou falar com ele.
– Quando volto, padre?
– Sábado que vem, com certeza.
– Bem, padre. Vosmicê é benfeitor grande porto Chimbote. Atenda
vosmicê a senhores respeitáveis, agura, dom Cecilio e mister.
Aproximou-se de Cardozo e estendeu a mão, adotando uma ati-
tude excessivamente cerimoniosa; despediu-se de Ramírez e Maxwell
e, antes de sair, fez uma reverência frente ao crucifixo desenhado no
papel e forrado de nylon, e também frente ao retrato do “Che”. Cardozo
o acompanhou.
– Não gosto desse homem. Parece falso – disse Ramírez.
– Ambicioso parece. E está encenando. O que o senhor acha?
– É certo, Max. Em sua casa deve ter outra…, outra conduta.
Na volta, Cardozo começou a rir alto, espontaneamente, na porta
do escritório, dirigindo-se a Maxwell e dom Cecilio. Os outros padres,
especialmente o de olhos verdes-claros, criticaram sua risada. “Algu-
mas vezes pode ser grata, outras persuasiva, sabiamente incitante; mas,
em outros momentos, parece chacota. Você sabe escolher bem a cir-
cunstância, desde seu lugar de sacerdote católico?”, perguntou, concre-
tamente, o padre de olhos verdes-claros. “Como posso saber? O riso,
quando se forma no rosto, está formado, e os resultados se endereçam
ou se aproveitam. Sou infeliz nisso de não conseguir mandar em meu
rosto no que se refere a começar a rir.”
Esta vez, frente aos visitantes de La Esperanza, a gargalhada de Car-
dozo soou a chacota, quase justificada, apesar de dom Cecilio ter sentido

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um comichão pelo corpo, o que não o deixou acompanhar bem a risada.
Maxwell conseguiu sorrir.
– Aqui estou – disse. Vim com meu sócio.
O padre tornou a sentar-se na poltrona.
– Você não ganhou, foi ganhado – disse Cardozo em inglês.
– Sim – respondeu em castelhano Maxwell. Sou ajudante de dom
Cecilio. Estou pensando em me casar com nossa vizinha, dona Fredes-
binda. Aumentamos a produção de tijolos a ritmo chimbotano ianque;
já temos algumas obrinhas. Foi muito importante ter viajado de Lima
até Paratía com os dançarinos de ayarachi; todas as cordilheiras, dois
mil quilômetros de ônibus, caminhão, a pé…
Enquanto Maxwell falava, Bazalar subia para San Pedro pela rota
dos burros aguateiros. Precisou contornar somente algumas centenas
de metros até encontrar aqueles caminhos, porque Laderas del Norte
e a grande duna San Pedro estão na frente de um estranho bosque de
eucaliptos, as árvores mais altas e frondosas que existem em três mil
quilômetros de deserto – a yunga do Pacífico – em que montanhas ro-
chosas se alternam com vales estreitos, planícies e dunas de até dois mil
metros de altura, de areia branca, onde manchas escuras se levantam e
evaporam com o vento: “o mundo de baixo.” Esse bosque de Chimbote
foi plantado pela Corporação do Santa, sobre um pântano que desse-
caram e converteram em viveiro, depois em bosque, jardim e pomar, e,
finalmente em parque, com pequenas lagoas e ilhas povoadas de gansos
e patos ornamentais. No parque construíram uma piscina e um restau-
rante de claro estilo norte-americano, para os executivos das fábricas de
Chimbote e seus hóspedes importantes. Bazalar, como todos os mora-
dores interessados nos assuntos públicos, estava informado de que na
Corporação se estudava com urgência um meio de isolar a piscina e o
restaurante, para entregar o parque ao público de Chimbote, o imenso
Viveiro onde todas as ervas e árvores yungas cresciam. Esse projeto
interessava em “sumo sengular exceção” a Bazalar.
A residência da congregação a que pertencia Cardozo, o padre
Francisco e o de olhos verdes-claros, ocupava a parte baixa da duna de
San Pedro, de frente para o alto forno da Siderúrgica e o bosque. A

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barriada ficava no alto dessa mesma duna, um pouco recostada para o
norte. Bem próximo da residência dos padres norte-americanos, um
distribuidor de gasolina sortudo, que pediu autorização da Corporação
para instalar um pequeno posto de gasolina “Esso”, descobriu um ma-
nancial de água, que passou a vender aos moradores da barriada. O ma-
nancial e o posto estavam dentro dos terrenos da Corporação. Bazalar
avançou pelas ruas e atalhos que formavam a ampliação de Laderas del
Norte, na direção do posto e encontrou o caminho dos burros. Com
passadas largas e seguras escalou a duna; a parte solta da areia onde as
chuchumecas do curral se demoraram tanto naquela madrugada, foi
rapidamente cruzada por Bazalar. O criador de porcos morava na pe-
núltima e mais alta rua transversal da duna, no passeio Huari. O tra-
çado irregular feito de pura areia do passeio Huari, onde carro nenhum
chegava, foi transposto por Bazalar também a passo largo. Chegou à
casa, que estava numa pequena esquina irrregular no meio da rua; em-
purrou habilmente a porta e fez saltar o trinco de arame que ele mesmo
havia colocado ali; entrou no primeiro cômodo, que estava dividido em
dois por uma parede de madeira; passou para o segundo curral-quintal,
onde residia a burra e o cachorro “de dentro”. Nesse lugar o chão era
empedrado. “Nicasia” pretendeu entrar logo depois de dom Gregorio
na cozinha-copa, onde estavam as duas senhoras e os cinco meninos.
Esmeralda, a mulher mais jovem, carregava um porquinho nos braços.
O porquinho grunhia com uma doçura e felicidade “que o humano em
nenhum idade é possível comonicar”. Chupava e mastigava pedaços de
pão molhado numa sopa de aveia Quaker, que a senhora enfiava em sua
boca. Esmeralda precisou gritar para que a burra deixasse de seguir
avançando; já tinha posto uma pata na primeira grade. A cozinha-copa
ocupava um nível mais baixo que o primeiro pátio. “Nicasia” retroce-
deu. Juana atendia o fogão feito de tijolo, alto, com pequenas bocas de
diferentes tamanhos, que Bazalar tinha construído, lembrando das co-
zinhas dos patrões que teve em Lima. Juana carregava nas costas um de
seus filhos, um menino em torno de dois anos. As outras crianças, um
pouco maiores, brincavam com os patos e porquinhos que corriam de
um lado a outro pela sala, com a mesma liberdade e tolerância que os

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meninos. O mais velho coçava a cabeça de um galo, que dormia numa
vara de madeira colocada num canto do cômodo, cuidadosamente pre-
parada para que pudessem caber ali o galo e até dez galinhas. “As porcas
parem de oito, de seis – explicava Bazalar a Esmeralda, quando foi en-
contrada por ele e levada à casa. A porca mãe não consegue alementar
a todos pequeninos, porque também o alimento que damos do lavagem
não tem força. Dez, nove dias depois de ter feito parição e alementado
seus porquinhos, de puro fraqueza a mãe já nem consegue nem ficar de
pé. Então, nós temos de dar comer pros porquinhos com o mão, de
tudo. Vai ver como é. Na cozinha cabemos tranquilo dorante o jornada
dia, porquinhos, galinhas, galo, patos, vinte porquinhos-da-índia. Você
vai atender tudo, manhãs; eu com a Juana vou pôr negócio de alementos
no porto, cedinho.” Esmeralda pariu um menino poucos meses depois
de ter sido recebida na casa. Juana viu a jovem chegar sem manifestar
oposição e nem alegria. Poucas semanas depois, o trabalho e a relação
das duas senhoras estavam “bem esclarecidos, estatuídos”. Quando nas-
ceu o filho de Esmeralda, Bazalar disse que era de pai desconhecido e
sempre sustentou que nenhum dos filhos de Juana era seu, que Juana
era sua “sobrinha”. Mantinha as crianças a distância. Levava para eles,
muito de vez em quando, um pacote de biscoitos e distribuía entre to-
dos, bem contado, para cada menino o mesmo tanto. Nunca os acari-
ciava. Juana era magra, pálida, de voz musical; suas mãos tinham dedos
longos e aptos para toda classe de trabalhos. Ela conduzia a burra desde
a madrugada até o meio-dia. De tarde, Esmeralda descia ao posto para
buscar água; durante a manhã, cuidava dos porcos e dos meninos, fazia
o almoço, limpava um pouco a casa. O fedor dos porcos dominava o
ambiente na casa de Bazalar. Nenhum cheiro que viesse da cozinha,
nenhum perfume de flores, nem mesmo o tão penetrante das açucenas
que cresciam nos pântanos e que, às vezes, Esmeralda trazia para ofe-
recer à Virgen de las Nieves, deixando-as num floreiro que Bazalar pen-
durou corretamente debaixo de uma estampa da virgem, conseguia
superar o fedor dos porcos. Os porcos viviam amontoados em um curral,
que se comunicava com a cozinha por uma porta firme e solidamente
feita de grandes tábuas de madeira. “Chuspi” (mosca) era como se

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chamava o porquinho que Esmeralda carregava, essa noite, quando
chegou Bazalar de sua reunião com o padre. Tinha sido salvo da agonia;
foi encontrado numa madrugada dando seus últimos suspiros, ao lado
da porca e seus irmãos, no pátio empedrado. Esmeralda deu a ele de
mamar do seu peito; logo, abrigou o pequeno com um trapo de castela.
O animalzinho recobrou a vida, mas não conseguia crescer, nem mesmo
as cerdas cresciam em seu corpo. Aprendeu a se comunicar e a se fazer
querido pelos donos da casa, até mesmo dom Gregorio; compreendia
muito bem a linguagem das duas senhoras e das crianças, especialmente
a de Esmeralda. Bazalar permitia essa criação “pouco produtiva” de
“Chuspi”, com uma condescendência não isenta de solenidade. “Esse
piedade pelo animalzinho é cristão, mais ainda”, disse uma vez. “Chuspi”
era um filho que resistia com êxito a se converter naquilo para o que
tinha nascido: um porco. Os porcos habitavam o curral onde “incrivel-
mente mas necessário”, Bazalar instalou umas muchkas, ou seja, uns co-
xos de pedra, longos, que mandou construir com um pedreiro-talhador,
paisano seu. Nessas muchkas servia para os porcos os restos de comida
que trazia da cidade. Os morteiros de pedra foram trazidos por Bazalar
e dois ajudantes do talhador, numa espécie de estrado que, apesar da
pouca curiosidade dos moradores, foram levados morro acima, na
areia, umas duas quadras, em meio à expetactiva de crianças e adultos.
Tiveram que fazer três viagens, uma por cada pedra; porém, Bazalar
sentia um prazer “sengular” ao ver como os porcos, em fila, comiam
naquelas bonitas e inamovíveis muchkas. Quando estavam com muita
fome, os porcos golpeavam brutalmente as grandes tábuas da cozinha
com seus focinhos. Mas Bazalar também sabia como se fazer respeitar
por seus porcos. Dominava o desespero daquela pequena manada, que
se atropelava na porta quando Juana e Esmeralda entravam com as
grandes latas no curral. “Em ordem, porcaria! Em fila!”, gritava de pé,
desde o marco da porta, com um grosso pau na mão. Os porcos espe-
ravam. “A palavra, filhas, é coisa do Deus que deu pro hombre para que
comande os cristãos, mais razão os anemais”, dizia para as duas senhoras.
A burra e seu filhote ocupavam um lugar especial da casa. Era a burra
de uma brilhosa pelagem, a única “vierdadeiramente feliz de seu

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destinação, trabalho e padrões”, entre centenas de burros da barriada.
Esmeralda varria, porque gostava de fazê-lo, o pequeno canto empe-
drado onde a burra passava a noite, e nesse lugar era onde menos che-
gava o fedor dos porcos; algumas vezes corria um cheiro de ar puro e
Esmeralda percebia isso. Ela, Esmeralda, “tinha sido trazida de um lu-
gar triste abandonado do porto, que para a maior parte do cristão, é
martirioso enferno”, foi toda a explicação que Bazalar deu a Juana. “De
donde?”, perguntou com tristeza Juana, atrevendo-se a colocar uma
mão no joelho do criador de porcos. “Tristeza, mas não emoral”, res-
pondeu, e nada mais. Esmeralda era de rosto redondo, de tez quase
branca e seus olhos pareciam conter ou reter emoções e lembranças
tenazes. Engordou rapidamente no alto da duna; nessa casa que dava
tanto trabalho, mas onde comia e exercitava suas forças quase em plena
liberdade, todos os dias. Bazalar e até Juana trouxeram uns panos para
que ela fizesse roupa para seu filho. Pariu e a poucos dias já estava tra-
balhando de novo. Dois cachorros rodeavam à noite, por fora, o alto,
porém frágil, cercado de bambu e barro que protegia o chiqueiro. Rode-
avam por fora, até que certa noite os porcos cercaram os dois cachorros
e os comeram. O outro conseguiu escalar, ninguém sabe como, a cerca.
Nunca mais se atreveu a entrar no chiqueiro. Tremia na porta. A esse
permitiram que ficasse no pátio empedrado, que se comunicava com o
primeiro cômodo por uma porta de madeira; era o cachorro de dentro.
Bazalar não permitia que ninguém conhecesse a casa toda. O visitante,
assim como a burra e seu filhote, passavam pela primeira peça escura,
onde havia duas camas de madeira; frente a esse cômodo, havia outro,
sempre fechado. Diziam que nas peças dormiam Juana e Bazalar, e que
Esmeralda estendia sua cama na cozinha. “Mentira; ele dorme junto do
galo; de noite se converte em galo pelado, fazendo trabalhinho extra”,
havia contado um vizinho; essa história se repetia meio em sério, meio
em gozação, pelas ruas próximas do passeio Huari. No restante da vas-
tíssima área da barriada, Bazalar era respeitado, era já verdadeiramente
respeitado, porque saía cedo para buscar lavagem nos restaurantes mais
baratos do porto e sempre andava impecavelmente barbeado, com ca-
misa limpa e uma jaqueta que levava com uma formalidade distinta,

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que nem impressionava tanto, mas lhe dava certo espírito de respeita-
bilidade na vizinhança. Para isso devia contribuir seu castelhano, que
apesar dos “motes”,1 não deixava de se impor, uma vez que conseguia se
fazer entender e respeitar, além das palavras “assenhoradas” que usava,
empregadas com petulância, mas de forma legítima. O que martirizava
Bazalar é que ele não era o dono dos porcos, apenas o alimentador e
sócio menor. O dono era um comerciante do mercado Modelo que só
aparecia na hora da “colheita”; o encontro acertado para a venda dos
porcos e também quando seu sócio comunicava que tinha ocorrido
parição. Bazalar tinha calculado exatamente em quatro anos o prazo
para sua total independência do capitalista. A história de sua luta com
Mancilla foi fácil. Mancilla era na verdade um ladrãozinho e, como a
maioria dos dirigentes das barriadas também eram, Vizcardo, presidente
da Confederação de Barriadas, padre sem paróquia, marginalizado pelo
Bispo, que não se decidiu ou não conseguiu tirá-lo da presidência da
Confederação, não quis reconhecer Bazalar. Compreendeu que o cria-
dor de porcos era honrado “por ambicioso” e considerava que “esses são
os mais perigosos”. Bazalar tinha conseguido entusiasmar, agitar, a dis-
persa barriada de San Pedro. Com a ajuda do pedreiro-talhador e al-
guns jovens, distribuiu folhetos impressos em Chimbote em quase
todas as casas de San Pedro, denunciando os “peculados” e “vivezas” de
Mancilla e seus “compinches”. A assembleia foi realizada com duzentos
assistentes, cifra “tremendo”, como disse o criador de porcos. E Bazalar
denunciou com energia, sem perdão, as “ladroagens” dos dirigentes e
expôs um plano de ação que começou a realizar rapidamente, assim que
foi eleito. Vários dias teve que descer até o porto, Juana sozinha, com
“Nicasia”, para buscar as sobras de comida. Por outro lado, o bairro
começava a mostrar verdadeiro interesse em tapar os buracos das ruas,
na limpeza e ordem do mercadinho, no cinema em construção, nas es-
colas que estavam “abandonados” pela administração, e Bazalar propôs

Palavras ou frases em castelhano pronunciadas de forma defeituosa pelos “serranos”: “oscoridade”


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ou “a cachorro”.

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para o futuro a construção de um local “magnânimo” para um colégio,
“antessala universidade”. Mancilla contra-atacou com o único argu-
mento: “Bazalar é bígamo; quem vive com duas mulheres em sua pró-
pria casa é um anticristo, capaz dos piores crimes.” Bazalar se defendeu.
E, finalmente, como a vizinhança via as duas senhoras com ar de gente
não abatida, mas trabalhadora; como Juana percorria ruas e ruas de
Chimbote, subindo até três vezes durante o meio-dia, arreando a forte
teimosa mula carregada de lavagem nas quatro latas nas angarilhas, e
como todos viam Esmeralda que, de tarde, subia e descia a duna tão
rápido, às vezes mais rápido que os aguateiros profissionais, a acusação
de “bígamo” ficou em dúvida… Bazalar se fortalecia, e tanto de noite
como quando peregrinava pelos balcões da Superintendência da Polí-
cia, da Subprefeitura ou da Prefeitura, acalentava com mais lucidez e
firmeza um projeto grande, “magnânimo” que tinha “adevinhado para
a felicidade geral do barriada e so pedestal pessoal heroico”. A luta o
fortalecia e inspirava, ampliava “sos enstromentos verbais execotivos, e
cada dia mais e melhor”.
Depois de regressar do encontro com Cardozo, dom Gregorio
pendurou seu chapéu numa estaca que, para “esse objetivo”, tinha pre-
gado na parede. Uma mesa com dois bancos, construído pelo próprio
Bazalar e colocado no lado esquerdo das grades, perto do fogão alto,
formavam “a sala de jantar” da casa. Ali recebia as visitas. Bazalar sen-
tou num dos bancos de madeira. Apoiou a cabeça na parede e fechou
os olhos. Juana o atendia. Esmeralda, com o porquinho guinchando nos
braços, olhava de esguelha para Bazalar e depois observava sua huahua,
que estava deitada numa pequena cama, não no chão ou em alguma
cesta, mas num berço grande de ferro, bastante velho, que Bazalar trouxe
uma noite à casa. Os cachorros latiam. “Sua sopa, dom Gregorio”, disse
Juana. A sopa fumegava. Os meninos continuavam brincando com os
porcos. “Sua sopa, dom Gregorio”, disse também Esmeralda. Um pouco
mais tarde, a casa estava às escuras, como a imensa duna. Bazalar lem-
brava de seus tempos de mordomo nas residências grandes de Lima,
assim como de membro secundário da diretoria da pequena barriada
limenha, mas de origem sangrenta, La Caída del Ángel. Não queria se

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lembrar dos tempos de quando era criança quase sem roupas, ou de
quando foi peão sem terra e sem casa no mundo de cima. Pensou com
regozijo no acerto que teve ao estudar, muito em sério, somente três
anos e já homem, numa escola noturna de um bairro residencial de
senhores serranos ricaços de Lima. Agora via mais claro “o senda” para
realizar seu “magnânimo” ambição. Estava carregado, mais que nunca,
de energia e convicções “precisos” quanto às conveniências do bairro
e das suas próprias, que dependiam de que ele conseguisse realizar as
primeiras, encabeçando essa “comonidade desenganada”. Ele não tinha
se deixado “captorar” por nenhum partido político, nem seita religiosa
protestante, em nenhuma cidade, menos em San Pedro. Segundo “o
direção do vento do poder”, aparentava simpatias bem calculadas, e
chegou até visitar locais de partidos políticos opostos, mas sempre na
cidade, nunca na barriada. Como então era um zé-ninguém, podia fa-
zê-lo sem se comprometer, pensando no futuro e para “tomar contatos,
experiência em atuações e oratórias”. As duas senhoras que viviam
com ele tinham sido “muito sabiosamente” disciplinadas, rápido e com
“bom lucrativo resultado para ambos três partes”. Elas trabalhavam o
dia inteiro; não eram “aproveitadoras”, nem acriolladas, mas “somissas
que nem torcaz”, e como eram muito mais novas que dom Gregorio,
sempre o viam e tratavam com “respeitoso desceplina e carinhosidade”.
Enfrentavam, ou melhor dizendo, pelejavam com os porcos; mas Juana
e Esmeralda ficavam felizes quando viam os porcos comendo, sabore-
ando os restos de comida que pegavam das grandes e bonitas muchkas
de pedra, no chiqueiro. As crias separadas das mães eram alimentadas
como huahuas humanas e dormiam com as crianças. Os filhos de Juana
dispunham de um terreno livre, com areia branca, sem perigo para suas
aventuras e brincadeiras. Não andavam pior vestidos que os vizinhos
e tinham, melhor que muitos, as bochechas rosadas e cheias, apesar de
viver com a roupa tão suja como os demais. Alegres. Não ficavam uma
hora sem vigilância. Esmeralda pela manhã, Juana pela tarde. O mais
velho de todos, de sete anos, já fazia recados na rua e sofria apenas nos
piores momentos do verão, porque, como não tinha sapatos e a areia
queimava como brasa, tinha que correr de sombra a sombra de algumas

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casas, porque as ruas longitudinais tinham sido traçadas na direção do
sol. Alguns meninos choravam ao sentir aquela queimação; mais as
meninas, mais, muito mais, porque quase todas elas tinham que correr
aqueles trechos carregando huahuas de poucos meses. Os cachorros
de “fora” de Bazalar também tinham sido “sabiosamente enstruidos”
e eram calculadamente alimentados. Não latiam em vão, somente por
fome ou doença, não nesse tom muito triste ou muito “raivosento” que
lançam “envejas e sensabores”, que entre eles e por “culpa do humano”,
tem os cachorros; latiam dando voltas no chiqueiro e em toda a casa, o
tom de sua voz era diferente quando viam algum transeunte, ou quando
alguém se aproximava do muro do chiqueiro ou da porta da casa. Ron-
davam com a “entelegencia, calculação e resestencia” que “único” o
cachorro como “nenhum niguém” tem, quando é ensinado “comedida-
mente”. Essa noite, depois da reunião com o padre Cardozo, frente ao
retrato “sigoro talvez não entruso ni tela” do “Che”; “sigoro talvez”, dom
Gregorio via bem próximo a realização de seu “magnânimo” façanha,
sentindo-se muito satisfeito do “contundencia elegante” com que tinha
contado mentiras “táticas” e verdades no escritório de Cardozo. Desde
o discurso que pronunciou no novo cemitério para pobres, felizmente
“habelitado” ali, ao pé da duna San Pedro, acreditava ter progredido
muito nos comandos “do política atuação”, e da “lábia contundência”.
“Eu, talvez – pensou, já não conseguia pensar em quéchua – pode ser
capaz, em so exestencia de mim, não serei mais forastero neste país
terra onde nascemos. Premeira vez e premeira pessoa colmina este fa-
çanha defícil em so vida exestencia.” As duas senhoras pensavam muito
pouco, trabalhavam para os filhos e “Dom Gregorio”. De noite dormiam
pesado e não se podia assegurar quantas vezes recebiam em suas camas
a Bazalar, ou se não o recebiam. Pela luz de seus rostos também não se
podia saber isso, nem delas, nem bem, de nenhuma outra mulher mais
ou menos assim, que são a maioria nas milhares de barriadas. Nem
mesmo nesta, com tanta areia limpa e uma cruz alta sobre uma grande
huaca desrespeitada do antigo mundo.
– Dois mil quilômetros e todas as cordilheiras – dizia Maxwell a
Cardozo. Dom Cecilio sabe; sabe tudo. Seis dias de viagem com doze

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índios e seis índias que não sabiam mais do que cem palavras em cas-
telhano. Vestidos de negro; eu já contei isso faz tempo; com penas de
avestruz ou de condor como uma coroa na cabeça, os homens; as mu-
lheres com dez saias cada uma, lenços de franja prateadas e na mão um
laço curto repleto de fios quase invisíveis, de todas as cores. Diziam que
o ayarachi é uma dança com a qual esses índios de Paratía, não muito
longe do grande lago, continuavam lamentando, evocando e fazendo
presente os funerais do inca Atahualpa. Não! Vestem-se de negro,
homens e mulheres, para a dança. Um dos homens toca um wankar
enorme, uma espécie de bombo; os outros tocam sikus de diferentes
tamanhos, flautas de bambu duplas; a maior tem sessenta centímetros,
a menor, dez – Cardozo apoiou a cabeça sobre os cotovelos e mãos para
escutar melhor, Ramírez se recostou na parede decorada de tecidos.
Maxwell usava o inglês, de repente, uma ou duas palavras, pequenas
frases. Cada homem toca somente um número fixo de notas. Fazem um
círculo e tocam a escala musical completa; um após o outro tocam as
notas que lhes correspondem; depois começam a dançar com o corpo,
os instrumentos, as insígnias e a música. Os bombos ressoam nas altas
planícies como os mais potentes tambores das orquestras europeias;
as duplas flautas de bambu, com essas diferenças de tamanho, aber-
tura e diâmetro de cada bambu, mensuráveis, porém inaplicáveis para
nós, converteram a sala do Teatro Municipal de Lima não em fúnebre,
mas em um caldeirão flamejante, como uma espécie de combinação
de Wagner, Beethoven, Mussorgsky e Bartok, em suas raízes. “É fúne-
bre, terrível”, “É atroz, selvagem”, “É maravilhoso, estranho”, “Pertence
a outro mundo”, diziam alguns presentes. “Isso serei eu, isso é parte de
mim e para sê-lo integralmente, tenho que andar milhares e milhares
de quilômetros e astros no tempo para diante e talvez mais, talvez não
sabia e sigo sem saber, para trás no tempo, com eles, com os ayarachis”,
disse eu. E disse isso não porque tinha estudado música. Você sabe
disso. Na Casa de Cultura de Lima consegui falar diretamente com os
dançarinos; passei noites inteiras no internato do Colégio Militar Le-
oncio Prado, onde eles estavam alojados. Fui bem aceito desde o prin-
cípio. E aceitaram meu pedido de viajar com eles. Apertados em um

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ônibus de uma empresa barata, viajamos primeiro a Puno, até o lago
Titicaca, quatro dias; depois a Lampa, um dia e logo um dia a pé para
chegar à vila. “Você, galo para caminhar”, me disse o chefe do conjunto
que sabia um pouco mais de castelhano que os outros. “Galo gringo,
valente, carai! Sem sabendo, gringo coração tem para mósica ayarachi,
para natural endígena.” Estive com eles seis meses. Pastores de alpaca,
trabalhei no que trabalhavam, comi o que comiam; dormi na puñunas
em que dormiam. Fui chamado de outras comunidades vizinhas; todas
a mais de quatro mil metros de altura, sob um céu em que a luz e as nu-
vens se retorcem em sombras e fogos que o coração do estrangeiro mal
resiste. E em todos esses lugares e comunidades fui recebido como um
irmão ilustre, não apenas por ser branco gringo, mas porque cheguei
com os ayarachis, já convertido em homem de confiança, por ser quem
sou, possivelmente por causa da música. Quantas vezes dancei com as
solteiras e as casadas, nas festas em meio ao riso, e em lugar de zombar
de mim eles me “distinguiam”, conferindo-me “distinção”? Eu saltava
ou movimentava sempre no ritmo, bastante bem no ritmo das danças,
mas certamente como um animal estranho.
– E com sua graça e simpatia, agelidade jovem – disse dom Cecilio.
Cardozo sorriu.
– É possível, mestre. Em seis meses vi trinta danças diferentes, em
música, trajes e coreografia, diferentes; e uma “água de fundo, um espe-
lho de mercúrio comum que reflete cada coisa como diferente, porém
com o que em suas naturezas têm de vibramento, de salvação e nas-
cimento comum” – e desde a palavra “água” até a palavra “comum”, o
timbre de voz de Maxwell soou de um modo muito especial, como a
de um animal entusiasmado. Trinta danças. Eu olhava a partir de um
círculo de espectadores. O horizonte, que é nessas alturas como de mar,
porém com rochedos e montes que vão se tornando brilhantes e escuros
conforme passam as nuvens e os ventos, contrastava com as figuras
dos dançarinos. O diretor do conjunto de ayarachis me disse que eu
tinha que aprender a tocar um instrumento “como para si. Você nunca
vai conseguir tocar o siku, talvez antara dos yunkas poderia”. Convi-
dou para vir a sua casa, onde eu estava alojado, um mestiço de Lampa,

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mestre em charango. Aprendi bem o charango. Nunca é possível tocar
as danças maiores neste instrumento mestiço. Toca-se o bravio ou o
triste, mas do coração de cada um. Isso também me disse o diretor. “O
senhor cavalheiros sofrem destinto, por meserias ambeção, ou mulher”,
me disse. “Você, não estou saber se é egual a estes senhores; do que mais
branco é, gringos. Será pior, melhor, talvez com outros; com Paratía
conjunto, comonidades, bom, tranquilo, bravo pa’trabalho. Anda, vai
embora, melhor. Melhor pa’você, talvez. Não estou mandando embora,
pensando apenas.” Vim embora. O diretor tinha razão. Agora, assim
como estão os gringos aqui, seria preciso ter os consentimentos impos-
síveis daqui e de lá, muito mais do que pintar o cabelo e a pele para me
diluir entre os paratías. “Gringo caralho, irmão, como você será em so
fundo?”, perguntavam os que melhor sabiam o castelhano. E desde a
primeira vez que ouvi, entendi que diziam a palavra “caralho” não como
insulto, mas com alegria. Fui para Puno… Sim, Cardozo, uma noite,
nesse silêncio do altiplano que te permite escutar a voz das moléculas
das plantas e dos planetas, e mais, sua própria palpitação, não a do cora-
ção, não, a da vida inteira e através dela o labirinto humano; uma noite
dessas, durante uma festa em que dançamos e bebemos, dormi com uma
moça de Paratia. Isso aconteceu pouco antes de vir embora. Cada sol-
teiro tinha sua namorada e eu decidi entrar na dança. Um rapaz de rosto
alongado, com uns raríssimos bigodes ralos, me animou. Falou comigo
em sua língua, sorrindo, abrindo a boca tão exageradamente, que este
gesto dava a sua cara uma expressão como de totalidade; escutei o que
disse, no sangue e na clareza do meu entendimento. Você não consegue
compreender isso.
– Por quê? – perguntou Cardozo. – Por que não consigo? Eu en-
tendo. Te escuto muito bem.
– Não, bem mesmo não entende. Você anda nadando nas cascas
desta nação. Não disse isso com desprezo. Em Paratía aprendi a usar bem
as palavras. Você está na superfície, no invólucro que defende e oprime…
Depois discutimos. Mandou me chamar por um enlace norte-americano
e acabei vindo com um enlace peruano. E vou te dizer todas a coisas
claras…

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Cardozo assentiu com a cabeça. Sua expressão, sempre invariavel-
mente juvenil, ficou marcada por uma espécie de rigidez que parecia
ser o resultado da atenção concentrada, cada vez mais intensa, com que
ouvia o ex-Corpo de Paz.
– Você compreenderá pela metade, e isso; assim como pela metade,
e talvez menos, acho que me aceita agora. Saí à meia-noite de Paratía,
de acordo com o diretor. Ele explicaria aos amigos. Quis evitar as des-
pedidas solenes que dedicam aos que se vão para sempre, depois de ter
encontrado algo especial e… Sim, companheiro, algo “transcendental” e
querido para eles. Essas são as palavras mancas. Vou dizer, dom Cecilio,
com sua dispensa, as únicas, porém, fodidas palavras que lembro para
expressar experiências que o castelhano e o inglês, naturalmente, não
conseguem expressar bem, acho, que porque nós já não gozamos delas
e nem as sofremos. Alguma coisa aprendi do quéchua. Poucas, porém
boas palavras e frases; pouquíssimas canções. Podia me acompanhar
com o charango. Na pampa gelada, perante a sombra dos rochedos, já
longe dos últimos muros do povoado, toquei alguma coisa… Em Puno,
na beira do lago, um dançarino de Qaqelo, dança com que se comemora
a fabricação do chuño, que me dizem ser necessário pisar no gelo com
os pés descalços; um brancão “altaço”, aperfeiçoou meu aprendizagem
do charango. Esse dançarino mestiço tinha se convertido em cateador
de minas com um bom olfato. De pé ou sentado, sempre com seu ca-
checol de vicunha, quando tocava parecia alcançar, com suas pernas e
a voz de seu instrumento, a torre de Eiffel e a Estátua da Liberdade, e
comia ambos monumentos. Aprendi charango, percorri as margens do
Titicaca. Na península de Capachica, a região mais povoada do lago,
certa tarde e até o começo da noite, assisti dançarem carnaval. Em torno
de charanguinhos, pequeninos, coroas de jovens vestidos de trajes nos
quais o céu parecia se refletir com o peso do crepúsculo; “não, não
apenas o céu, mas também, e mais intensamente, o seu reflexo na água
do lago, repleto de totorais nas beiradas e mexendo-se no fundo com o
canto dos patos e a agitação de suas asas, que ao anoitecer têm força” –
e novamente, a partir da palavra “no”, que pronunciou duas vezes, sua
voz mudou de tom. Assim, com o resplendor do céu em seus trajes,

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dezenas de grupos de centenas de jovens dançavam, lançando a cada
momento um grito, um só, em uníssono e ao compasso dos charangos
pequeninos. Esse rasgado eu conheço muito bem. Vim embora, então.
Tinha autorização para ficar mais tempo, mas acabei descendo para
Lima. Em lugares como aqueles, Capachica e Paratía, e também de todo
o lago, o estrangeiro, e principalmente o ianque, não consegue se diluir
facilmente, e menos ainda se ouviu e entendeu o mesmo que eu, se
aprendeu o que eu aprendi. São povos ainda fechados e íntegros em seu
primitivismo mais sutil que o Empire State, mais seguros de si mesmos
do que você e eu, apesar de serem vistos como se estivessem dançando
dentro de uma muralha ou na beira de um abismo.
– Conhece Hilario Caullama? – perguntou Cardozo.
– Não. Não conheço. Sei que é um pescador, um capitão de barco
famoso.
– Nada mais?
– É famoso como Chaucato. Mas parece que não se tem medo e
nem ódio dele. Tenho conversado pouco com pescadores; moro no lado
pobre de uma barriada pobre. De Chaucato sei que agora falam dele
com pena em La Esperanza. Dizem que a casa onde vive em El Trapecio
foi invadida mais por despeito que por valentia, e que também ele corre
risco com a justiça.
– Acho que isso é certo. Dom Hilario por outro lado…, aimará…
– É como o Empire State? – perguntou sorrindo Maxwell.
– Não sei. Mas acho estranho que tendo estado no lago, você ainda
não foi ter com ele.
– A dom Hilario e o senhor Haro todo mundo respeita. Nunca fo-
ram de confusão e nem bebedeira. Eles são, na verdade, exemplo. Agora
são senhores já endinheirados; Max sempre vai ver Crispín Antolín,
para tocar e reunir, de quando em quando – disse dom Cecilio.
– Procure dom Hilario, Max – disse Cardozo. Depois conversamos.
E agora continua com sua história. Percebe que estou escutando?
– Percebi, companheiro Cardozo. Continuo. Quando voltei do
lago, na Casa de Cultura de Lima, um charanguista de outra região do
Peru, onde a música transmite “o ar de poderio e lágrima que existe na

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quebrada”; esse famoso charanguista me ensinou o estilo de sua região:
Huamanga. Conversei com ele sobre alguns povoados de sua região
nativa e ele me ensinou seu estilo de charango, “triste arrabatado”; me
ensinou durante muitas horas e semanas, enquanto tomávamos pisco e
cerveja, sem chorar nunca. Depois me mandaram a Chimbote; um cen-
tro “vital” do litoral. Fui mandado para a barriada de La Esperanza…
Espera, Cardozo, meus relatórios para a Oficina de Paz sempre foram
assim, como esta confissão que estou fazendo e, no final, ficaram con-
formes. Fui enviado, para minha sorte, a Chimbote. Os poucos Corpos
de Paz, como em todos os lugares, estavam aqui como cachorro ou-
vindo missa, como galo em terreiro dos outros. Entendeu? – Cardoso
concordou. Alguns tinham chegado a entender alguma coisa da missa
e escavar o terreiro. Me entende?
– Não – disse Cardozo. Não entendo bem. Você estudou a fundo
o castelhano em sua universidade e aqui aprendeu muito da linguagem
refinada e popular; até muda seu tom de voz nas referências especiais
que faz. Também nas barriadas existem pessoas, como parece ser assim
o senhor Ramírez, que falam o espanhol melhor que muitos criollos
pescadores. Explique-se ou me explique. E use o inglês com mais fre-
quência, com perdão do senhor Ramírez.
– Escutar a missa é entender as pessoas no que elas têm de parti-
cular; ouvir e saber o que elas ouvem, sabem e obedecem ou não. “Es-
cavar o terreiro” é trabalhar, por esse entendimento, do modo e maneira
como eles, nativo.
– Bem. Está claro – e o rosto do sacerdote americano, tão jovial e
sempre juvenil, continuava rigidamente atento esta vez.
– Certo, paisano Cardozo – continuou Maxwell. Outros Corpos
de Paz, especialmente aqui, em Chimbote, ficaram surpresos e interes-
sados porque, segundo eles, e é verdade, todos aqui sentem inveja uns
dos outros, todos se comparam rancorosamente. E muitos Corpos de
Paz pareciam felizes de que assim fosse. Eu também, mas por outras
razões, que não pretendo contar. Poucas semanas depois de conhecer
La Esperanza e as outras barriadas, compreendi que este é meu lugar,
meu verdadeiro lugar.

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– Por quê? – perguntou Cardozo. Por quê?
– Talvez pudesse ser pelos mesmos motivos que entusiasmam
você, que fazem com que vá de um lado a outro de jipe ou a pé, pen-
sando, refletindo, trabalhando. A mesma razão sua e de Hutchinson
que circula bem menos, muito menos, mas que assimila a fundo tudo,
sem pressa, como esses cavalos sedentos do altiplano gelado, que bebem
nos escassos mananciais ou nas aguadas, com o pescoço esticado; e pela
mesma razão do padre Federico, aposentado nos Estados Unidos aos
setenta anos de idade, que agora sobe e desce os “pesadaços” arenais de
San Pedro, tão sereno sempre, porém mais ligeiro que se estivesse nas
ruas de Chicago ou Nova Iorque. As mesmas razões, causas, incitações,
padre Cardozo?
– Pode ser. Se você não quiser combinar.
– Não. Não quero, e é possível que mesmo se quisesse não poderia
combinar de um modo claro. Mas certamente nossas finalidades, mé-
todos e esperanças são muito diferentes, assim como o lugar e o modo
como vivemos aqui.
– É possível. Veremos. Faz tempo que queria conversar com
você, Max. Não achei que o assunto seria tão sério. Desculpe, senhor
Ramírez.
– Eu também interessado, padre.
– Muito bem, continue, Max, por favor.
– Certo. Dom Cecilio também vai falar depois para contar nossa
vida. Eu vou continuar, que é como dizem quando fica difícil resumir.
Bom. Sim. A poucos dias da minha chegada, quando Chimbote me sa-
cudia e eu começava a recobrar minhas forças, conheci a madre Kinsley,
que estava nas últimas semanas de sua bolsa universitária no porto. A
madre Kinsley me apresentou o vendedor ambulante de peixe, dono da
casa onde ela se hospedou durante um ano. Esse pequeno comerciante
de peixe é um dos poucos admiradores do louco Moncada, apesar do
louco pouco se importar com isso, e, por essa razão, muitos zombam
do comerciante. Sua mulher foi e é dirigente do bairro onde moram,
El Acero. Têm uma filha em casa e dois filhos estudando em Trujillo.
A madre Kinsley me disse que o vendedor de peixe e sua mulher não

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quiseram cobrar nada dela pelo bom quarto que ocupava, nem pela
alimentação que recebeu durante todo aquele tempo. Ela mostrava os
dólares que recebia da universidade americana, de onde tinha sido en-
viada para fazer seu trabalho de tese: “Está bem – dizia o vendedor.
Que bom, madrezinha, para gastar em suas necessidades nos Estados
Unidos, onde dizem que se ganha forte, mas tudo é muito caro. Eu me
levanto às cinco da madrugada e a uma ou duas da tarde já ganhei o
dinheiro que precisamos. Depois tem descanso, tranquilidade.” A madre
Kinsley me disse que assim que chegasse aos Estados Unidos renunciaria
à ordem religiosa e se dedicaria, até sua morte, a fazer com que os ame-
ricanos entendessem que estão no caminho do embrutecimento e da
podridão. O domínio e o desprezo direto ou meloso sobre as nações de
meio mundo os apodrecem e embrutecem, porque em lugar de apren-
der dos velhos povos como este, somente buscam fomentar dissensões e
o caos neles e entre eles, com o propósito insensato e impossível de co-
locá-los num molde e bebê-los depois, como se fossem uma garrafa de
Coca-Cola. Espere, Cardozo – exclamou ante um gesto do padre para
interrompê-lo. Vou concluir esta parte. Depois você fala. É “importante
excepcional”, como diria esse sério presidente que me antecedeu no uso
da palavra. Dizia a madre Kinsley que o Papa XXIII abriu uma grande
porta, mas que os Estados Unidos vão usar todo seu poder para fechar
essa porta ou disfarçá-la com outras… Espere, Cardozo. Já vou concluir.
Essa religião católica tinha fé em você e nos novos padres católicos, mas
não tinha completa ou suficiente…
– Está equivocada! Eu disse a ela – interrompeu Cardozo. Ela podia
entrar até onde os civis não podem, influir nas interioridades das cons-
ciências onde os civis não chegam.
– Assim é aqui, no tércio mundo católico. Mas a madre Kinsley
preferia não agir com essa classe de influência inconsciente que ela cha-
mava de “patética”. Além disso, prefere atuar lá, nos Estados Unidos;
acredita ser mais urgente. Eu não sei como ela vai fazer. Você deve ter
alguma informação. Ela deixou a ordem religiosa assim que chegou à
Califórnia?
– Deixou, Max.

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– Claro! Eu toquei para ela em meu charango melodias do altiplano
e das quebradas de Huamanga. Não interpreto como os nativos, porém
já em muitos desses cantos estou vivo, vou me virando. O vendedor
ambulante de peixe e sua mulher, que são da serra norte, sorriam. “Es-
tranho tom, bonito”, disseram. A madre escutava muito concentrada,
com as duas orelhas atentas. Escute, dom Cecilio, já contei isso ao se-
nhor; balançava sua cabeça, lentamente, a madre Kinsley quando me
ouvia tocar, da esquerda para a direita, de frente para trás. Ela me disse
que essa música conseguia comunicar a essência de almas puras e indo-
máveis. “Essa música sobreviveu – respondi, lembro bem. Essa música
resistiu a invasões e menosprezos por mais de quatrocentos anos.” En-
tusiasmada, ela me levou para conhecer o cômodo hospital do Seguro
Trabalhador; me levou na sala de maternidade onde há dois médicos e
cinco enfermeiras, mas nem uma parturiente, porque as fábricas despe-
diram todas as trabalhadoras. Dali fomos para o hospital de La Caleta
onde… Não preciso continuar, Cardozo; vocês conhecem essa antessala
do inferno melhor que eu. Depois me disse: “Agora você vai conhecer o
asilo, a enfermaria, a maternidade e o colégio que as ordens religiosas
americanas de Chimbote mantêm aqui, e vai conhecer o Plano de Pa-
drinhos. São todos serviços caritativos, à base de esmolas americanas,
produzem mais propaganda e bem-estar lá, nos Estados Unidos, do
que aqui. Tudo isso não pode estar melhor, nem pode ser mais…” Vou
repetir exatamente como ela disse em inglês: “mais ingênuo ou estúpido
e lugubremente enganoso.” Posso continuar, companheiro?
– Sim, Maxwell. Continue, apesar de você estar pouco sereno. De-
pois discutimos; esta noite, se houver tempo. Mas pedimos que continue.
– Bom. Já contei. Agora vou falar de algo mais relacionado comigo.
Estou sereno, melhor que quando tinha que estudar na biblioteca da
universidade. Aprendi a serenidade com os homens de Paratía e com
dom Cecilio. Bom, padre Cardozo, certamente você sabe melhor que
eu para que servem os relatórios dos Corpos de Paz. Mandaram um
embora de Chimbote, porque se contagiou com a decisão dos invasores
do bairro El Acero, que agora é oficial e reconhecido, inclusive recebe
ajuda do Estado; porém, há poucos anos atrás…

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– Cinco!
Nenhum dos três havia pronunciado essa palavra, que se escutou
claramente no escritório. Dom Cecilio observou com visível dissímulo
os retratos que estavam na sala.
– Bom, cinco, cinco anos – continuou apressuradamente Maxwell.
Antes disso, os invasores defenderam o terreno, com pedras e astúcia,
porque era da Corporação. O que aconteceu com aquele Corpo de Paz
que interveio, sem premeditar, na luta, com paus, insultos e pedras contra
a polícia que os atacava?
– Foi devolvido para os Estados Unidos.
– Por quê? Por que não foi enviado a outra cidade do litoral ou da
serra? Estava provando que participava a fundo.
– Não se pode… não se deve. Espere – disse Cardozo. Eu não
decido esses assuntos… Eu não estava em Chimbote.
– Não se deve participar tão a fundo, mas apenas observar, ins-
truir, influir, não é?
– Exato. Participar dessa forma, não. É minha opinião. Nenhum
país permite isso.
– Dessa forma não, mas você intervém muito mais diretamente, só
que apenas no nível da casca. Por isso você me mandou chamar. Porque
eu participo. Mas eu não vim sozinho. Você é um “revolucionário”;
dom Cecilio é um resignado cidadão que… sim, que tem sido e ainda é
oprimido pela casca, mas que agora comigo, juntos, resistimos melhor.
Escute bem. Você estudou teologia moderna, procure me entender ao
modo criollo, não ao ianque. Eu deixei de ser ianque em um trinta ou
noventa por cento. O jovem americano que procura participar e vai em-
bora “arde por dentro” ou sofre nos Estados Unidos para sempre. Cor-
respondo com alguns desses que choram ou que já não encontram seu
lugar entre os ianques. Eu decidi ficar e já venceu o prazo de tolerância
que nos dão. De todo modo, vou ficar. Comemorei, sem premeditação,
minha saída do Corpo com uma dança no prostíbulo. O Corpo de Paz
informante participante é apenas uma peça, não é? Espere! Eu pedi a
dom Cecilio que contasse a outra parte da história; nós vivemos em
sociedade. Depois, se você quiser, se precisar, discutimos.

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Cardozo se virou para Ramírez, que seguia com a cabeça recostada
na parede. Cardozo havia conseguido manter toda sua atenção e seus
nervos atentos. Seu hálito juvenil, que se mantinha fresco e incitante
durante as reuniões mais “bravas” dos dirigentes do sindicato de pes-
cadores, havia desaparecido desta vez por completo. Representava sua
idade; uns quarenta anos; um rosto maduro.
– Padre Cardozo, verdade seja dita – começou dom Cecilio e, com
o gesto de deferência à pessoa dono da casa, separou seu corpo do muro
e o manteve ereto. Verdade seja dita – levantou lenta e pesadamente
um braço. Um de meus irmãos está agora de colono meeiro de uma
fazenda. Não consegue escapar das dívidas que legalmente deve ao ad-
ministrador. Legalmente já está amarrado, acho, até suas mortes, na fa-
zenda. Eu escapei de minha terra fazendo rigores. Quando cheguei em
Chimbote, estava a invasão de La Esperanza e consegui um terreninho.
Tinha já três filhos. Minha mulher felizmente é curandeira, acertado;
“Mamacha”, chama ela. Isso em língua quer dizer Mamãezinha, porque
curou muita gente. Eu trabalhei como ajudante de pedreiro, como o
mestre Max tem sido de mim, antes do nosso associamento. Misérias
pagavam por cada milhar de tijolos de cimento, cento e vinte soles.
Agora ganhamos quinhentos. No terreninho levantamos casinha de
esteira. Depois, uma senhorita servidora Plano de Padrinhos me falou.
Eu entendi bem. Agradecido, por aquele entonces, aceitei os duzentos
soles mensais que davam, dez dólares. Mandei retrato de minha filhinha
para os Estados Unidos; dali também mandaram retrato do padrinho.
A senhorita do Plano, por simpatia a minha família, me fez conseguir
empréstimo de outro padrinho, acho, para levantar minha casa, tijolo e
cimento. Construí três quartos e um corredorzinho com telhado, den-
tro, no terreiro. Nisso, chegou da serra um sobrinho louco, que tinha
aloucado porque dizem que um vizinho de chácara, por ambição do
terreno, mandou fazer a ele malefício. O malefício, coisas feias, encon-
traram. Porém, não sarou o sobrinho e aloucado chegou na minha casa,
com sua mulher mocinha e dois filhos já. O homem desvariava e batia
na mulher. Demos de comer aos quatro, com chazinho, caldinho de
couve e batata-doce. Ela conseguiu lugarzinho no mercado bem grande,

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que abriu em La Esperanza. Ali demarcaram centenas de postos de
vendas; no princípio, todo mundo pegou, e depois, em meses, como
poucos compradores tinha e pouco também tinham os vendedores,
minha sobrinha só triguinho moído no mais vendia; o mercado vazio
ficou, com uns pouquinhos que aguentaram e agora estão cheiaços de
negócios, esses, como o senhor terá recebido relatório. Mi sobrinho,
quando sarava, alguns dias no mais, trabalhava duro, como animal com
desesperação; duzentos tijolaços cunhava por dia, veja o senhor! In-
credível! Pois sim… vou encurtar detalhes tristezas meninos. Depois
chegou em casa um amigo paisano, padeiro; ele vinha de uma vila de
negócios do litoral, Barranca. Com mentiras, disse ele, foi trazido por
um tio seu que é açougueiro no porto. Fazia ele trabalhar, mas nada de
paga. Todo dia ia onde o tio, e a “Mamacha” e eu alimentando a mu-
lher, que pobrizinha, só!, chorava. Estava grávida. Teve suas dores e seu
aliviamento em um dos meus quartinhos; a “Mamacha” atendeu ela.
Depois choraram as duas. O homem só voltou no dia seguinte. Bêbado
chegou, assoviando. Tomou susto em vendo seu filho, sua mulher com
febre. Febre deu uma semana. O homem ia onde o tio e pedacinho de
carne, pouco, trazia, pela noite. Já nas fábricas não tinha lugar; na pesca
também estava cheio. Então… a gente já estava com esse homem acho
que meio ano. Então disse pro amigo: “Vosmecê vai com os pobres
catar junto esses mariscos que encontraram perto daqui, no mar praia
pedras. Eu vou acompanhar. Eu já não posso entrar nesse trabalho por-
que sou debilidade do pulmão e já estou na construção; mas vosmecê
forte corpo tem. Esse marisco compram bem, estes dias…” O homem
aceitou. Fomos na madrugada. O senhor escute, padre! Centenas, acho,
milhares estavam, que nem animal, sem roupa pelado, os pobres serranos,
e também alguns criollos, arrancando esses mariscos, recebendo golpes
água fria, onda. Com ferros, tiras de metal, até com varas que na serra
tem de um madeira duro chamado lloqe arranhavam rochedo pedras
debaixo da água. De sua barriga pendia costal. Ali embolsava esse ani-
mal marinho. Quatro, cinco, seis caminhões ficavam esperando perto
do praia com os compradores. “Quanto paga?”, perguntou o amigo ao
comprador. “Sol dúzia”, disse. Ficou pensativo o homem. Eu dei xingo

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nele, com perdão da má palavra, mas com respeito… para que entrasse.
Eu tinha entregado em sua mão um antigo tranca de meia porta, bom
ferraço, planinho. O homem tirou a roupa. Adentrou na água em meio
dessa moltidão de pelados tremedeiro que tiravam farto marisco, me-
tendo o focinho no mar. O homem esse, meu amigo que foi em tempos
de joventude, tinha sido merda covarde. Tirou sua calça, camisa, sa-
patos, ficou de cueca. Não aguentou. Dentrava e ali mesmo saía; den-
trava outra vez, fazendo cruzes so testa, e outra vez saía. Os homens
chamando ele em quéchua e castelhano também. “No princípio só é o
frio; depois o corpo costuma. Entra amigo!” “Entra merda!”, disse um
criollo, “filho d’uma quenga”. Mais se assustou. Quando estava tirando
sua cueca molhada para vestir a roupa, ah!, claro pois, inverno era;
estava neblinoso e com frio o praia… Eu voltei rabiando, com o ânimo
erritado. Tranquilo sou. Mas tinha estado olhando o luta grande, mais
bendizido que maldizido, capaz, de essa gente pobre que ia trabalhar
só para a comidinha de so família, enfrentando o mar do qual os ser-
ranos temos trevas medo, e estava vendo esse amigo, de corpo fortaço,
teritando na beirada, persignando, quando em seu diante estavam esses
milhares carai!, lutando como certo tem de ser na guerra pelo coragem
que se necessita do humano… Me vim, revoltado no ânimo, escute o
senhor, padre. Um único merda choramingando entre milhares que
estavam sofocando sua medosidade para defesa do vida da família.
Voltei. Caminhei rápido na areiada neblinoso. Na chegada mesmo, em
minha casa, encontrei este rapaz, Max. Um evangélico, de bom senti-
mento nobreza e melhor falar, tinha mandado ele na minha casa. Esse
evangélico tem uma banca na entrada do mercado da barriada, e eu
moro nos dereito da rua que é frente do mercado. Aí estava Max, porta
de minha casa. E nesse momento, como por casualidade fatal, chegou
correndo um menino pequeno, filho de outro pedreiro sem muito va-
ler, pior que eu então, mas que era meu paisano e compadre intimi-
dade, porque dele apadrinhei quatro filhos: “Meu pai está vomitando
sangue, padrinho – disse gritando –, sangue tá botando de sua boca.
Está morrendo.” Fomos lá com Max. Não é notícia, padre. Quantíssima
gente de La Esperanza vive assim. Tem oito filhos este desventuradoso

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amigo. E estava cuspindo as bocadas de sangue. Tinha, primeiro, con-
seguido servicinho eventual numa fábrica; dali foi despedido porque
tinha escopido sangue. Este ocasião estava vomitando. Atendemos com
Max. Não levamos ele hospital La Caleta, porque ali é pior. Com Max
levantamos, rápido, um quarto de esteira, para ele. A so mais velho
filho tomamos para ajudante pedreiro; ao outro menorzinho, pouco
força, outro mestre tomou de ajudante, meia paga. A mulher, minha
comadre, lava todo o dia roupa, dois, três vezes a semana na casa de
senhores do porto. Então, três afilhados tive que levar pra minha casa,
desse família. Plano de Padrinhos conseguiu para ele um lugar entre
gringos mendigantes da América para o mais pequenino. E esse outro
homem, o padeiro grandaço, desapareceu abandonando sua mulher um
tempo. É para creder no céu, escute o senhor, padre; com Max temos
trabalhado entusiasmo, firmeza, eneciativa grande. Outro mundo tem
gringo pro trabalho. Mas… antes que me esqueça, padre. Quando nos
piores tempos dias a gente chegava do trabalho a casa, encontrava minha
comadre, mi sobrinha, e esse senhora abandonado, conversando, rindo,
gracejeando…
– Eu assustei no começo, Cardozo – interrompeu Maxwell. Achei
que elas estavam um pouco loucas. Não. Davam de comer, apenas, pão
e sopa de batatas-doce com farinha às quatorze pessoas que haviam na
casa, e às sete que estavam no barraco do compadre que continuava
botando sangue. E riam…
– A inconsciência do miserável tradicional – disse Cardozo, quase
automaticamente.
– Eu não teria tanta certeza, Cardozo… – Max viu que dom Ce-
cilio levantava uma mão. Continue, dom Cecilio, assim, com esse falar
sossegado que o senhor sempre teve.
– Padre Cardozo… Eu vou contar uma coisa. A senhora do padeiro
não tinha visto muita miséria. Era filha de um chacareiro meio apru-
mado de um lugar que se chamava Cochabamba; mi sobrinho tinha sua
terra, sua vaca, seu burro, sua casa; venderam os animais para vim curar
sua louquice, porque ainda que se encontrou o bruxaria, ele seguia mal
de sua cabeça. Eu já fui pobre, mas nunca cholo desprezado, fodido…

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Tenho meu pouco de instrução oficial. O senhor diz “miserável tradi-
cional”, é como dizer desde seus pais, avôs?
– Sim, companheiro, isso.
– Equívoco, padre companheiro. Mais certo é como rebentação
de miséria e peleja reunido. Aqui em Chimbote, a maior parte gente
barriada estamos, mais ou menos, igualados últimos anos esses; nos
igualamos na miséria miserenta que será mais pesadaço em suas apa-
rências, padre, que nas alturas serra, porque aqui está reunida a gente
desabandonada de Deus e mesmo da terra, porque já ninguém é de
nenhuma parte-terra em barriadas de Chimbote. Mas aqui podemos al-
guns, como essas mulheres, redir assim, quase diante do que está boque-
ando sangue, desbatizando de sua sorte porque – e pôs sua mão direita
sobre o peito – aqui, na treva do coração, tem esperança; certo, mexe
sua luzinha como asinha de mosca será… Não, padrezinho, não sou
evangélico! Pouco vou também na igreja católico. Ou seja, também, não
é de mim que digo, quando falo da esperança, mas, mais claro, dos ou-
tros amigos paisanos… Verdade seja dita; as fábricas em Chimbote não
recebem já trabalhadores, também na pesca já tem milhares, mas dali
sai dinheiro, corre… Vendedores compradores aos milhares também se
vê em tanto loja, mercados. Bulha do negócio está no ar e, verdade seja
dita, padre, aqui não tem desprezos de grandes sobrenomes, mais gran-
des mais pequenos, contra os homildes cholos que dizem, pouca ajuda
haverá entre vizinhos e na verdade até se roubam; por desventurança,
brigam seu pouco; mas desprezo mesmo não tem e quando chega o
oportunidade de força levantamos um a outro, como eu a mi compadre
e sobrinhos. Assim é. O miséria na barriada que dizemos é bicheira que
faz levantar o desabandonado; empurra ele pra luta; primeiro encontra
seu terra no lotezinho que ninguém tira dele e depois, qualquer um
sabe que morador barriada pode alevantar cabeza. Assim, com o jovem
Max… Pelo contrário, nos povoados, lá, na altura, onde o mando é do
senhor fazendeiro, o chacareiro pequeninho e o pião colono a bicheira
do miséria come ele pior que o morto, porque o morto, escute o senhor,
esse não sente, nem o gusano, nem o pássaro negro que arranca sua
tripa podre. Ali não tem terra para o desabandonado do Deus. Aqui,

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o jovem Max melhorou o molde do tijolo cemento, so funcionamento.
Mil a gente fazia em sete dias cada um; agora em três, quatro dias. Meu
compadre já’stá pra morrer, mas seu filho mais velho é ajudante regu-
lar, seu segundo filho está aprendendo bem. O padeiro, esse merda co-
varde, mandou seu irmão buscar a senhora, lá de Barranca. A senhora
foi contente com sua huahua. O cunhado contou pra ela que homem
covardaço na mar é bom para mexer forno de petróleo. O jovem Max
toca o charango como arcanjo serrano. Eu não entendo muito bem essos
melodias, mas alivia o pensamento, e mais, quando às vezes toca com o
cego Crispín Antolín, grande sentimento. Agora dona Fredesbinda, filha
de minha vizinha ancianinha, está caída de amores pelo jovem Max;
mas, verdade seja dita, ontem estava triste, porque tem sua banquinha
no mercado e ali passam todo o dia, e guardam seus animaiszinhos aves
mais estimação. Esqueceram ontem de guardar o pato…
– Conte mais, dom Cecilio – alentou Maxwell. Tudo o que o se-
nhor disser nesta sala vai ser para benefício, como o senhor diria…
– Conte companheiro – pediu também Cardozo. A rigidez do seu
rosto começava a relaxar. Dom Cecilio, muito comedidamente sentado,
falava com uma tranquilidade que dava a impressão de que continuaria
perante qualquer situação e em qualquer tempo.
– É um história engraçado triste. Veja o senhor, padre. O galo
nunca vence por completo o pato nas brigas; sapateia nele por gosto.
O corpaço do pato aguenta, aguenta, qualquer tanto. O galo depois de
desafogar bicando e esporeando se retira cansao. O pato não consegue
de nenhum modo alcançar ele. Porém… e isso foi o que aconteceu. Mas
se brigam em lugar pequeno fechado, para o galo já não tem esperança.
Dona Fredesbinda esqueceu de colocar o pato na gaiola grande e fechar
com a tampa. Como o galo de dona Fredesbinda é um pouco metido
a luxurioso, pisava também nas fêmeas do pato, e este animal estava
jurado contra o galo. Na madrugada se encontraram frente a frente na
banquinha fechada do mercado. O galo sapateou, sapateou certeiro, até
cair desalentado. O pato aguenta, aguenta, lapeando às vezes com a asa.
Quando o galo cansa, sobe em cima dele. O senhor já viu o ganchinho
que tem o pato macho na ponta do seu bico?

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– Não – disse Cardozo.
– Não viu. Tem um ganchinho cortante. Quando o pato sobe em
cima do galo, já o rival está condenado. Não tem remédio, nem volta.
O pato enfia o bico no ânus que dizemos do galo; enfia bem ali dentro
mesmo e puxa a tripa dele. Não solta. Puxa e aí mesmo, mais no inte-
rior vai enfiando o gancho e tirando, tirando tripa. Depois cai, quando
o galo perde sua vida. Cae, e sai grasnando, sacode o corpo, alonga o
pescoço, como o senhor também já viu alguma vez, quando esse animal
alegra. Dona Fredesbinda estava meio chorando pelo galo morto, mas a
avô disse ao pato: “Tudo bem, ouviu togado, você aproveitou a ocasião
como qualquer cristão.” Bom, padre. Agora vou ao último da história,
que diz o jovem Max necessário que o senhor ouça e se tem lugar dis-
cussão. Para o louco também já conseguimos lote e levantado casa. No
outro lado da Pan-americana. Com redes velhos redondeamos um gali-
nheirozinho; para minha sobrinha habelitamos pra’que tenha banca no
mercado grande, ar livre, de Miramar. Os pobres, os mais pobrezinhos,
compram comida que ela prepara de farinhas da nossa serrania. Veja,
padre; ele, o louco, é galo; bate na mulher, quando está com a louqueira,
chuta nela; com uma tábua ela se defende, assim como se fosse o escudo
que dizem. Mais chuta ela, mas aprende ela a se defender. Talvez algum
dia, que nem o pato, ela arranca a tripa do louco ou capaz amarra ele.
A gente nunca sabe; mas ela levanta na madrugadíssima; cozinha em
Miramar. A maiorzinha de suas filhas, oito anos já terá, cuida dos ani-
mais. Nos dias em que está bem o homem trabalha comigo; já digo ao
senhor; desenvolve força demônio, igual a cinco. Eu não preciso mais
Plano de Padrinhos. Fiz um pedido para passar essa ajudinha para meu
sobrinha. Não quiseram, vão considerar, dizem, eu santifiquei melhor
essa negativa. Muita falação tem contra apadrinhados, muita inveja;
e também inveja entre os irmãos com o afilhadinho, mais quando na
páscoa recebe seu presente. Então… Passando a outro assunto: meu
compadre não quer morrer. Tanto sangue que deita fora; mas seus filhos
mais grandinhos e seu mulher conseguem cada vez mais nos servici-
nhos que arrumaram. Com o jovem Max dois quartos mais levantamos
no lote do compadre. Esperando estamos para levar ele até o cemitério

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que, clandestino, encontramos lugar perto de uns rochedos bravos da
mar, para os pobres de La Esperanza. San Pedro está do outro lado; todo
Chimbote. Depois acho vamos comemorar matrimônio rapaz Max com
dona Fredesbinda. Ela é mais velha, quer dizer, mulher completo já. In-
veja algumas têm dela, causa do jovem Max; outros com medo querem
assustar ela dizendo que um gringo assim será bruxo, será excomun-
gado de seu comunidade milionário. Digá?
– Está feita a pergunta, Cardozo! – recalcou Maxwell. Responde!
O padre se levantou imediatamente e começou a rir, contorcendo-se
todo, muito mais do que quando entrou na sala, depois de ter despa-
chado o criador de porcos. Dom Cecilio não se mexeu e, observando
Cardozo, percebeu como era baixo de estatura e tinha um nariz bas-
tante longo, com a ponta um pouco avultada. Quando Cardozo foi na
direção de Maxwell, dom Cecilio se colocou de pé. Maxwell se levantou.
Cardozo lhe deu um forte abraço. Tinha uma lágrima em cada olho.
– Fica, Max! – disse. Fica, bravo criollo! Eu farei o casamento, por-
que aqui tem que ser pela igreja. Não é certo, dom Cecilio?
E foi abraçar dom Cecilio. “Eu me levantei, padre – disse ele –,
somente para comprovar que o senhor tinha sido um pouco baixo…
Aí está outro padre, mais gringo, e alguém também…”
Um homem tocou a campainha da casa dos sacerdotes americanos,
enquanto dom Cecilio contava a última parte de sua história. O cha-
mado foi repetido duas vezes. O padre de olhos verdes-claros estava ou-
vindo em seu quarto, muito atento. Quando se repetiu a campainha, saiu
sem fazer nenhum gesto de desgosto, mas muito contrariado e quase
correndo. Os padres jovens dormiam. Quando o gringo abriu o postigo,
encontrou um homem de rosto muito alongado e sorridente. Levava um
pequeno estojo de madeira branca na mão.
– Padre Hutchinson – disse –, tenho recado da senhora de dom
Cecilio. Trouxe este instrumento para o jovem Max e venho também
falar de um assunto muito urgente com ele. O senhor dirá.
– Entre. Venha.
Quando mensageiro cruzou a porta e ficou esperando, a uns passos,
sobre o piso de cimento quadriculado do largo corredor com cabeceira

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que parecia um pátio, o padre de olhos verdes, um pouco preocupado,
fechou a porta. Era a primeira vez que era chamado pelo sobrenome,
e não pelo nome, por alguém de Chimbote. Hutchinson era novo no
porto, menos de um ano de permanência, e sua missão não parecia ser
a de militar no nível popular. Não era conhecido nas barriadas. Viu que
o homenzinho; exato, era um homenzinho, de pé, com o estojo debaixo
do braço, estava parado no lugar exato por onde deviam entrar ao refei-
tório e, depois, no escritório de Cardozo. Quando Hutchinson começou
a andar, o homem abriu a porta de tela metálica que dava acesso à cozi-
nha; entrou no refeitório, seguido em silêncio por Hutchinson; dirigiu-se
para o living muito iluminado que dava ao pátio interior do local; esse
espaço, o living, tinha grandes janelas. A sombra de uma palmeira baixa
e cabeçuda se estendia em várias direções, a partir do centro do pátio,
sobre o longo e humilde corredor de cimento no qual se abriam as portas
dos quartos. Hutchinson observou, foi como obrigado a observar, que
a sombra do homenzinho acompanhou, mexendo-se na caminhada,
acompanhou cada uma das várias figuras da palmeira, no momento em
que o visitante cruzava o living. Entrou no corredor estreito que comu-
nicava o living com o escritório de Cardozo e a sala paroquial que ficava
ao fundo. Já perto, a um passo do escritório de Cardozo, o homenzinho
fez um gesto persuasivo a Hutchinson, com o braço que tinha livre e a
mão. Os dois pararam. O mensageiro continuava de costas para o padre.
Escutaram a parte final da história de dom Cecilio, como se o tempo que
durou entre o soar da campainha e a chegada ao escritório de Cardozo
não houvesse transcorrido. Hutchinson prestava tanta atenção às pala-
vras de dom Cecilio, como a essa irreprimível sensação de irrealidade.
Houve ou não houve timbre? O homenzinho estava diante dele, um
pouco agachado e com a perna meio dobrada. Quando Cardozo lançou a
gargalhada, o mensageiro puxou Hutchinson do braço e o colocou junto
à porta do escritório. O padre de olhos verdes-claros teve que recorrer
à sua máxima força de vontade para reprimir o asco que lhe produziu a
gargalhada de Cardozo, assim como a estranheza de ver o homenzinho apa-
recer, já dentro do escritório, com maior estatura que a dele, Hutchinson, e
sofrer o brilho jaspeado que despedia sua boina no escritório.

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“Outro padre mais gringo, e alguém também…”, tinha advertido
dom Cecilio, quando Cardozo se preparava para abraçá-lo.
– Paratía! Amigaço! – exclamou Maxwell, acreditando reconhecer
o mensageiro. Quando você chegou ao porto?
– Paratía é altura, puna, frio, alpacas, jovem Max. Eu tempos vivo
em Chimbote. Seu charango trouxe.
Dom Cecilio ouviu a voz do visitante e percebeu mais claramente
a severidade do padre gringo. Essa percepção sentimento se afirmou ao
ouvir a exclamação de Max e a resposta do homem que, com sua pe-
quena boina irradiava luz no escritório e sobre os retratos. Dom Cecilio
se inclinou muito respeitosamente perante o sereníssimo e severo padre
louro, que entrou junto com o mensageiro, falando:
– Padre…
– Donald – disse o portador do estojo de charango.
– Padre Donald, de meu respeito; me diga uma coisa; uma gar-
galhada sarcasmo assim, como do padre Cardozo, é resposta cristão,
apesar de ser acompanhada de abraço, a perguntações que tranquilo
fizemos, pelo interesse do próprio dono da casa, e com o esperança
de um paroquiano que horas esperou resposta final? Aqui, respeitado
padre gringo, em sua frente do Senhor Crucificado e do senhor “Che”
entronizado? O que diz, padre?
– Eu – interveio o mensageiro e tirou a boina –, eu vim por in-
cumbência da “Mamacha” – os dois padres e os dois pedreiros fizeram
silêncio com os rostos e os corpos marcados por um centelhar de luzes.
Max tem reunião hoje, sexta-feira, de antecipado convenido com o mú-
sico Crispín Antolín e sua senhora Florindita. Em quanto ao principal,
eu também declaro, com minha boina na mão, respeitoso, que a res-
posta do reverendo padre Cardozo não está conforme as necessidades
de qualquer humano regular, assim como está se manifestando na ex-
pressão de severidade profundo do padre Donald Hutchinson. Digá?
O mensageiro ficou na mesma posição de dom Cecilio, porém
com a boina sobre o peito e o estojo pendurado no outro braço.
– O senhor tem que saber – respondeu imediatamente Hutchinson
–, tem que saber que a risada do padre Cardozo é de complicação.

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Ao senhor que perguntou direi que o padre Cardozo tem derramado
lágrima de emoção sincero. Ele é devoto com ideias bem fundadas,
porém não aprendeu bem a dar controle de modo permanente a suas
expressões intensos. Depois de uma explosão sentimental, ele faz sere-
nidade e explica.
Max ouvia e examinava o mensageiro. Não, não era o amigo de
grossos bigodes e rosto alongado, que na festa de Paratía fez com que
se levantasse e aproximasse da jovem que o olhava da fila das garotas.
Ela se levantou sorrindo e os cinquenta casais de solteiros começaram
a dançar, que foi como o gelo aceso pelo crepúsculo, queimação de
ritmo que conclui no abraço das veias, olhos, bocas, ventos, músculos,
tempos… Não era, mas parecia tanto como um kolli, única árvore da
estepe, a outro kolli, ou uma alpaca jovem a outra alpaca jovem.
– A revolução – ressoou firme a voz de Cardozo – será obra desses
dois exemplos, um divino, o outro humano, que nasceu desse divino:
Jesus e o “Che”. Certo, dom Cecilio. Max é um excomungado da sua
comunidade milionário. Não se mexam, por favor! – Cardozo olhava
detidamente para o mensageiro como se fosse dom Cecilio, e dom Ce-
cilio se sentia perfeitamente aludido. No peito do mensageiro, a boina
tomou a cor do gelo eterno, quando caem das cargas em que são le-
vados em pedaços, desde os cumes altíssimos, para oferendas ou para
fazer raspadinha, e a luz do crepúsculo os surpreende e enrubescem no
chão, inteiros ainda, mas com as bordas se derretendo em gotas. Sim.
Essa comunidade milionário que se chama Estados Unidos não suporta
indivíduos como o senhor que tem, tem… sim, amigo, uma humil-
dade rebeldíssimo em sua densidade semiescuro generoso, nem menos
para um gringo jovem que haverá de ser tocado com essa rebeldia que
não só brota, qual Amazonas, no coração de alguns poucos gringos
bons, inocentes, que entram nas aldeias das serras solitárias, nas mi-
nas e, mais, nas barriadas dos cidades grandes… Porque… porque ali,
nas barriadas, dom Cecilio, existe o senhor, que alimentou quatorze,
quinze, dezessete famintos e desafiou, como Jesus, como o “Che”, esse
homem altaço que não conseguia suportar da mar sua treva frio, disse
o senhor. Esse comunidade milionário não consegue suportar homens

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assim, porque como se amontoam os milhões se não é dobrando e fa-
zendo trabalhar de joelhos, ou alegrando essa gente em festas bebedeiras
insensatos satanás, os humanos? E assim, em algazarras bebedeiras in-
sensatos, insensível luminoso, fazem trabalhar lá os sábios, técnicos,
filósofos, cientistas, matemáticos… Pior que no tempo dos romanos
ou hitleristas. Dom Cecilio, senhor da boininha: eu sou contra! Com
lágrima rio; afago as costas gordos de Braschi, suporto o olhada duraço,
pejorativa de Hilario Caullama; o desconfiança carinhoso, medido de
Eberto, o mais confessado de Zavala, o injurioso humorístico do Tarta,
o vigilância lúcido de Maxe, o inocente desafiante do jovem Maxwell.
Por esses senhores aqui entronizados suporto tudo, dom Cecilio! Nosso
Senhor Jesus Cristo, e o humano, que tinha querido com o osso do crâ-
nio abrir caminho na Cordilheira dos Andes, para que ande a justiça
igualitário, como diria Max ou este senhor da gorra pequena, como
yawar mayu. Rio de sangue, não é?, que arrasa e dá alimento. Espere,
Max! – gritou o padre ao ver que o jovem pretendia falar. O mensageiro
levantou a boina em sinal de consentimento, e a boina apagou seu res-
plendor, ficou natural, cinza; o estojo, por outro lado, acendeu como cal
de parede ao meio-dia, com luz sem cor e nem movimento. Ao outro
gringo grande, padre, não se sentia. – Espere, falei! Escute Max, escute
dom Cecilio, amigo recém-chegado que me fez chorar lágrima garga-
lhada minha vida: esses dois senhores fizeram aliança…
– Assim como Chaucato pariu a Braschi e Braschi a Chimbote? –
perguntou o mensageiro.
– Assim, amigo.
– Mas ao contrário, não é mesmo? Não foi?
– Sim, amigo, ao contrário. Chaucato-Braschi foi parição comecinho
para litoral anchoveta negócio explosivo, uma partezinha pequenino
América. O Senhor fez o “Che” e o “Che” repercute sobre o Senhor para
redenção do católico e mediante esse redenção, livrar o humano; mais
força vai ser rapidinho que esses mandões do comunidade milionário
que mantêm afundado na estrangulação, no escuro, a força do pensa-
mento, os braços acorrentados. Certo, dom Cecilio, que você entrou
em sociedade parecido com o jovem Max; sim, Hutchinson; eu aceito,

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andando pela senda luminosa que João XXIII abriu especialmente para
a salvação do humano maltratado de negros, índios, cholos; eu aceito
que a Igreja aprendeu, foi transfusionada com o sangue do “Che”. E,
por isso, como disse a madre Kinsley, vão tentar desfigurar o “Che” e as
portas que abriu João XXIII, distorcer falsamente engrandecendo eles
a partir de Nova York e também, apesar de outro forma e destino, de
Havana…
Ninguém perguntou nada, nem fez comentário. Cardozo esperou
uns instantes. Hutchinson nem mesmo o olhou; fazia um grande es-
forço para entender a linguagem aluviônica, inesperadamente entrin-
cada, ianque-cecilio-bazalártica, em que falava ou na qual o mensageiro
o induzia a se expressar.
– Nada de imprimir figurinhas-calendários com esse rosto de espírito-
-carne salvado para salvar, do “Che”! Nada de canonizar João XXIII,
torná-lo santo para levá-lo embora de nossas barriadas, silêncio de
noite, bagunça labirinto rebelião de dia – continuou o padre. Estampa
consolador enganoso para a carteirinha do mocinha ou rapazinho,
mesmo que altar, urna, barreira, adoração enganosa, contraproducente.
Céu, que não é mais que plataforma forte dos mandões milionariaços,
pequenos, grandes, ianques, criollos…
– E, então o que, padre? Diga o senhor, pois, rematando claro,
como é devido.
– Revolução, dom Cecilio! Como o Senhor Jesus Cristo em seu
predicamento e morte, como o “Che” em seu heroico predicamento mo-
derno valentia…
– Tiro?
– Sim, dom Cecilio.
– Um tirambaço na cabeça e no coração de cada um, não para
fazer saltar os miolos ou quebrar esse músculo generosidade e esva-
ziar seu sangue. Um tirambaço de luz entendimento para dar clareza e
energia de modo que possa ver o humano e todos os humanos, negros,
tortos, índios, igualzinho que nosso Senhor, como o “Che” via também,
com força verdadeiro, decisão fazer se respeitar; ver que um homem é
igual a outro homem.

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– Somos destintos, padrezinho.
– Não, irmão Cecilio! Em que estão as deferenças? No olho, na
mão, em nossas tripas? Nisso? Não, caralho! Seja dito com sua dispensa.
Isso é igual em todo mundo. Na roupa, na casa em que moramos, a
cama, o assento que recebe o corpo? Mas isso tem conserto se o se-
nhor, dom Cecilio, enraivece com serenidade forte assim como frente
de mim, em frente dos mandões!
Dom Cecilio riu; não em tom alto, mas como em gotas e de forma
respeitosa, medidamente desafiante.
– Palavreio emocionante, sincero, padre – disse. Eles, o senhor
sabe, os mandões, fazem falar o metralha, canhão mira telescópio, as-
sim como esse rifle que transpassou com sua bala o cérebro do senhor
presidente Kennedy que, também dizem, era milionariaço, apesar de
não ser tão ambecioso…
– A metralha, amigo companheiro Cecilio, é disparada pela mão
do humano pobre, não é mesmo? O mandão não aperta gatilho. Espere!
Mão delicada do mandão milionário também não fabrica o gatilho…
E se aproximou de Ramírez. Segurou em seus ombros, como fez
com dom Hilario na beira da Pan-americana.
– Em quem você acredita, companheiro? – perguntou-lhe. Não acre-
dita nada, nada no homem que maneja o gatilho e a fábrica? Não acredita?
De verdade que não acredita na sua alma triste sereno enfurecido?
– No senhor é que estou por acreditar… no milionário que co-
manda fábrica, no Braschi, nunca jamais. Podia tocar Max alguma coisi-
nha? E o senhor, monsenhor Hutchinson, rosto lindo sem alma vibração,
padre, consentirá?
– Toca, Max! Esta casa é do Deus do triunfo, da esperança! Toca,
Max! Hutchinson fervilha mais que você e que os mares dos mares…
Maxwell abriu o estojo em um instante, antes de que Cardozo ter-
minasse de falar. As cordas de arame brilharam; luz de aço, azul. Rasgou
a dança de Capachica.
O mensageiro começou a se emplumar da cabeça, como um pavão
real ou beija-flor. Retrocederam todos para as paredes. Diego começou
a fazer vibrar suas pernas abertas e dobradas em ângulo diferente; fez

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com que vibrassem mais rápido que qualquer corda que o homem te-
nha estirado e ardido, depois deu uma pirueta no ar e fez balançar a lu-
minária, dando a ela som da água, voz de patos de altura, dos penachos
de totora que resistem gemendo à força do vento.
– Eu nunca jamais teve esperança! – se ouviu a voz de Ramírez. Só
tenho andado forte. Último tempo, com Max do braço trabalho rendi-
mento. Esperança verdadeiro, onde está? Dança, jovem!
Dom Cecilio deslizou para o centro do escritório. Começou a
dançar uma chuscada ao resplendor das penas e dos filamentos acesos;
um huaino-chuscada, sozinho, entre as cores que ardiam. Quando Max
deixou de tocar, o escritório retomou a formalidade, sem qualquer sinal
do que acabava de ocorrer. Somente dom Cecilio, já sob a luz da mo-
derníssima luminária, continuava dançando lento, derramando jorros
de lágrimas sobre o peito, com a cabeça agachada.
– Antolín Crispín não vai esperar mais tempo já – disse o mensageiro.
Hutchinson se aproximou de dom Cecilio, que não tinha ouvido
a voz do mensageiro. Deteve-o, justamente, frente aos quadros. Falou
com ele em voz baixa.
– O padre Cardozo não é agente do CIA, companheiro – disse.
Dou ao senhor minha palavra de honra, carinho. Não dance mais; mú-
sica do charango já não está. Desligado.
Abraçou-o, guardando uma distância.
– Disse o senhor, padre, disse o senhor?
Hutchinson não repetiu o que disse.
– Não acredite nele, dom Cecilio! – gritou Cardozo. O senhor não
o entenderá. Não acredite nele! – Cardozo estava com Max na porta da
sala e falou dali.
– Aqui, escritório, estará talvez a esperança para os senhores, pa-
drezinhos. Em meu peito não – Ramírez falou com energia, erguida a
cabeça. Em meu peito não! Precisa ir onde o ceguinho, coração doce,
não é? Claro, amigo “Che” que está tronizado aqui para dar seu mere-
cido, a qualquer unzinho, algum dia, tempos… dizem.
Dom Cecilio se dirigiu para a porta e saiu. Foi seguido por Max,
sem se despedir ou olhar para os padres. Diego diminuiu de tamanho

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diante da soleira da porta. Voltou a cabeça na direção do escritório. Fez
uma reverência sorrindo com toda sua cara, seu longo focinho, com
uma língua muito alegre, pendurada a um lado da boca.
– Você se equivocou, Donald Hutchinson! – disse Cardozo em
inglês, quando os dois padres ficaram a sós.
– E você, Michael Cardozo, o que gritou? Que enormidade você
gritou?
– Gringos filhos d’uma puta! Estamos aprendendo? – respondeu
Cardozo.
Mais tarde, em seu quarto, com os cotovelos apoiados numa pe-
quena mesa, o padre Michael Cardozo lia; o disforme nariz sereno até o
último pelo que se alimentava no mais profundo das fossas nasais. Um
pequeno retrato do “Che” e um Crucifixo, juntos, apareciam colados
sob o vidro da mesa:

Se eu falo na língua dos homens e dos anjos, mas não tenho


amor, não sou mais que um tambor que ressoa ou um prato
que repenica. Se entrego mensagens recebidas de Deus, e não
conheço todas as coisas secretas, e tenho toda classe de conhe-
cimentos, e tenho toda a fé necessária para mover as monta-
nhas de seu lugar, mas se não tenho amor, não sou nada. Se
reparto tudo o que tenho, e se entrego até meu próprio corpo
para ser queimado, mas não tenho amor, de nada me serve…
O amor nunca morre. Virá o tempo em que já não será neces-
sário receber mensagens de Deus, nem se falará em línguas,
nem será necessário o conhecimento. Pois conhecemos so-
mente em parte e em parte entregamos a mensagem divina;
mas quando conhecermos de forma completa, o que é em
parte desaparecerá… Quando eu era criança, falava, pensava
e raciocinava como criança; porém, quando virei homem,
deixei atrás as coisas da infância. Da mesma maneira, agora
vemos as coisas de forma confusa, como reflexos borrados
em um espelho; mas, então, veremos as coisas como elas são.
Agora só conheço em parte, porém então vou conhecer por

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completo, como Deus me conhece. Assim, pois, a fé, a espe-
rança e o amor duram para sempre; mas o maior destes três
é o amor…

– E o ódio? – disse Cardozo em inglês. O ódio de dom Cecilio


Ramírez, ódio com lágrimas, que me perturbou e perturbou a todos no
escritório. Tenho visto aqui, em Chimbote, visões entre apocalípticas e
ternuras. Senhor! Cada noite, cada dia tenho revelações que me con-
vulsionam e conturbam. Este dom Cecilio disse mais, muitíssimo mais,
que o cadáver da jovem parturiente que descansava sobre uma esteira,
entre centenas de moscas, lá na barriada de Coishco, enquanto seus
parentes bebiam. Agora sei que possivelmente as moscas chupavam o
ódio desse cadáver triste. E este Hutchinson tarda, tarda em aprender.
Para que tanta inteligência e tanto estudo? É errado dizer filho d’uma
puta, Senhor? Não, não é errado! Procura ardências necessárias nos
neurônios e no sangue. Por isso os pescadores… Apesar de que dom
Hilario nunca diz essas palavras. Nunca? É verdade, dom Hilario, que
você é para mim, e vai ser sempre, como o azeite na água?

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Último diário?

(Partes selecionadas e corrigidas em Lima, em 28 de outubro)

Santiago do Chile, 20 de agosto de 1969

Lutei contra a morte ou acredito ter lutado contra a morte, de peito


aberto, escrevendo este entrecortado e queixoso relato. Eu tinha poucos
e frágeis aliados, inseguros; os dela venceram. São fortes e estavam bem
resguardados em minha própria carne. Este desigual relato é imagem
da luta desigual.
Quantos Fervores permaneceram enterrados! As Raposas não po-
derão narrar a luta entre os líderes esquerdistas, e de outros, no sindi-
cato dos pescadores; não poderão intervir. Os séculos que carregam em
suas cabeças cada um desses homens que se enfrentam em Chimbote e
continuadores muito sui generis de uma pugna que vem desde que a ci-
vilização existe. Não aparecerá Moncada pronunciando seu discurso fu-
nerário, à noite, logo após a morte de dom Esteban de la Cruz; o sermão
que pronuncia no molhe de La Caleta, perante dezenas de pescadores
que jogam dados perto das escadas por onde descem para os botes e
chalanas que os levam às bolicheras. As Raposas iam comentar e dançar
este sermão funerário, no qual o zambo “louco” esquadrinha o mar e a
terra. E o último sermão de Moncada no campo queimado, coberto de
esqueletos de ratos, do mercado da Linha que a municipalidade manda
arrasar com tratores. Ali o zambo faz o balanço final de como viu, a partir
de Chimbote, os animais e os homens. Porque ele é o único que vê, em
conjunto e no particular, as naturezas e os destinos; e as Raposas não
dançariam a saltos e luzes estas últimas palavras. Não poderei relatar,
minuciosamente, a sorte final de Tinoco que, enfeitiçado, com o pênis
duro, tenta escalar a duna “Cruz de Hueso”, acreditando assim encon-
trar a cura, mas não consegue avançar um único passo, até que a areia
o enterra, enquanto “Ojos de Paloma” e Paula Melchora… a Raposa de
Cima, girando como um pião, estava chamando Tinocucha lá do alto

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da duna, enquanto fervem no ar as lágrimas de “Ojos de Paloma” e a
felicidade atrocidade de Paula Melchora. Sim. E como Chaucato… larga
e sanguinolenta história que nenhuma das Raposas baila. Elas veem o
paridor inocente de Braschi, compreendendo. Não sabem chorar. La-
tirão… O “magnânimo” projeto do criador de porcos vai se realizar. E
Asto, apesar de não ter conseguido aprender a dançar a cumbia, per-
manece enardecido, fortalecido, contente, e hipnotizado, ao que parece
por toda a vida e como um fantasma, pela brancura e carinhosidade da
“Argentina” que sempre o trata como uma viscachinha. As Raposas não
discutem isso. Antolín Crispín toca tudo isso em seu violão, como os
senhores sabem, no escuro.
Nem o suicídio de Orfa, que se joga do alto de “El Dorado” ao mar,
desenganada por todos e mais, porque ali, no alto, não encontra Tutaykire
trançando ouro, nem nenhum outro fantasma, apenas um esbranqui-
çado silêncio, o do guano da ilha. Em sua própria casa, o pescador Asto,
esse índio, havia contado a ela, como pensando em outra coisa, perante
uma testemunha tão séria como o gringo que chamavam de Maxwell e de
um cholo de focinho largo com uma boina que parecia ter lantejoulas, ha-
via dito a ela que no alto de “El Dorado” um fantasma protetor e grande
trançava uma rede de ouro. Porém, ela não conseguiu vê-lo porque ti-
nha nos olhos uma cerração de ferozes arrependimentos, de ima sapra,
e saltou ao abismo com seu huahua nos braços, às cegas.
Nem a morte de Maxwell, degolação, cuja vida não tolera o “Mudo”,
em quem Chaucato atiçou o veneno, voando sobre ele com braços de
coxo embravecido em sua última hora. Nem a vida luz tenebrosa de
Cardozo e de olhos verdes-claros. As Raposas correm de um a outro
de seus mundos; dançam sob a luz azul, sustentando pedaços de bosta
agusanada sobre a cabeça. Elas sentem, musiam, mais claro, mais denso
que os meio loucos transidos e conscientes e, por isso, como não sendo
mortais, de algum modo alinhavam e iam continuar alinhavando os
materiais e almas que este relato começou a arrastar.
Será muito menos o que sabemos do que a grande esperança que
sentimos, Gustavo? Pode me dizer você, o teólogo do Deus libertador,
que veio me visitar aqui, em Lorena 1275, onde passamos tão bem,

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apesar de que eu nesses dias já não escrevia nada? Claro; eu havia lido
para você em Lima essas páginas de Todas las sangres, em que o sacristão
e cantor de San Pedro de Lahuaymarca, queimada já sua igreja e refu-
giado entre os comuneros das alturas, responde a um padre do Deus
inquisidor, responde com argumentos muito semelhantes aos de suas lú-
cidas e patéticas palestras pronunciadas, há pouco tempo, em Chimbote.
Eu ia ou pretendia… O primeiro capítulo é um tanto morno e enre-
dado… Pretendia ser um mostruário cavalgada, atiçado de realidades e
símbolos, que vejo pelos olhos das Raposas lá do alto da Cruz de Hueso,
onde nenhum humano chegou nem eu também… Devia ser mais amar-
rado e enxuto na “Segunda Parte”. Você era parecido com as duas Raposas,
Gustavo. Queria te pedir que depois que algum irmão meu tocasse cha-
rango ou quena (Jaime, Máximo Damián Huamani ou Luis Durand),
depois que qualquer dos jovens políticos de esquerda que não estejam
condenados e presos e que tanto brigavam quando saí do Peru… Sim,
se fosse possível e ele aceitasse, Edmundo Murrugarra. Edmundo foi
meu aluno num cursinho que dei em San Marcos. Edmundo também
tem a cara das duas Raposas; tem uma facha de morador de lugar pe-
queno, uma alma iluminada e azeitada pela sede de justiça e as melhores
leituras… Em nome da Universidade, se é possível e ele aceita, Alberto
Escobar. E pelos rapazes, se parece bem a eles, um estudante de La Mo-
lina. (Fiz tão pouco pela Universidade, apesar de possivelmente ter feito
alguma coisa para ela!)
Eu gosto, irmãos, das cerimônias honradas, não das fantochadas do
caralho. As cerimônias não cerimoniosas, mas palpitação. Assim acre-
dito ter vivido; se é possível. E você, Gustavo, ou vocês, como é correto
dizer, Alberto, Máximo Damián, Jaime, Edmundo… nunca se pres-
tem, por nada desse mundo, enquanto continuarem sendo como os
conheci, às fantochadas… Existe em meus ossos muitas das apetências
do serrano antigo por histórias, convertido por suas mães e pais, maus e
bons, em veemente, asolenado e alegre trabalhador social; invulnerável
à amargura mesmo estando já quebrado. Perdoem a inocente e segura
convicção: invulnerável como todo aquele que viveu o ódio e a ternura
dos runas (eles nunca se chamam de índios entre eles).

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…Possivelmente comigo começa a fechar um tempo e a come-
çar outro no Peru e o que ele representa: se acaba o tempo da cotovia
consoladora, do chicote, do encabrestamento, do ódio impotente, das
fúnebres “rebeliões”, do temor a Deus e do predomínio desse Deus e
seus protegidos, seus fabricantes; começa o da luz e da força libertadora
invencível do homem do Vietnã, o da cotovia de fogo, o do deus liber-
tador, Aquele que se reintegra. Vallejo era o princípio e o fim.
Vocês, Emilio Adolfo, Alberto, Gustavo, Edmundo, acham que
tudo isto que digo e peço é vaidade? Este romance ficou inconcluso e
um pouco truncado, e talvez dom Gonzalo não o considere com mé-
rito suficiente para publicá-lo, e com razão (tenho um compromisso de
boa-fé com ele), mas minha vida não foi truncada. Despeçam em mim
um tempo do Peru. Fui feliz em meus prantos e lançaços, porque foram
pelo Peru; fui feliz com minhas insuficiências porque sentia o Peru em
quéchua e castelhano. E o Peru, quê?: Todas as naturezas do mundo em
seu território, quase todas as classes de homens. É muito menos extenso,
porém mais diverso do que foi a Rússia antiga. Esses rios de “tanta e tão
crescente fundura”, como foi sentido por dom Pedro Cieza muito antes que
se tornassem mais profundos e intrincados. Não sabemos muito, Emilio
Adolfo? E esse país, em que estão todas as classes de homens e naturezas,
eu o deixo, enquanto fervilha com as forças de tantas substâncias dife-
rentes que se agitam para se transformar no final de uma luta sangrenta
de séculos que começou a romper, de verdade, os ferrolhos e as trevas
que os mantinham separados, sofrenando-se. Despeçam em mim um
tempo do Peru, cujas raízes estarão sempre chupando a seiva da terra
para alimentar aos que vivem em nossa pátria, na qual qualquer ho-
mem não acorrentado e embrutecido pelo egoísmo pode viver, feliz,
todas as pátrias. Como estão as fronteiras de arames de puas, Coman-
dante? Quanto tempo vão durar? Do mesmo jeito que os servidores dos
deuses treva, ameaça e terror, que as levantaram e afiaram, acredito que
se debilitam e corroem.

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Na voz do charango e da quena, ouvirei tudo. Estará quase tudo,
e Maxwell. Você, Maxwell, o mais atingido, com tantos monstros e ali-
márias dentro e fora de você, que tem que aniquilar, transformar, chorar
e queimar.

22 de outubro

Regressei de uma viagem não tão inútil que fiz a Lima. Haverão de
me perdoar o que há de petitório e de pavonesco neste último diário, se
o tiro se produz e acerta. E, por força, tenho que esperar não sei quantos
dias para fazê-lo.

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Epílogo

(Corrigido e reafirmado em minha volta a Lima,


em 5 de novembro)

Santiago do Chile, 29 de agosto de 1969

Senhor Dom
Gonzalo Lozada
Buenos Aires

Meu caro Dom Gonzalo,

Um dia destes parto definitivamente para Lima. Esta carta será


entregue junto com o “Último diário?” das “Raposas”, documento que
talvez possa, como pretende, aliviar o romance de seu verdadeiro, ainda
que parcial, truncamento. Tendências e personagens já definidos – o
projeto era amarrar e atiçar na “Segunda Parte” –, e símbolos mal esbo-
çados que começavam a mostrar sua entranha ficaram retidos. Desse
modo, os capítulos da “Primeira Parte” e os episódios da “Segunda”
chegam, acredito, a conformar um romance um tanto desconexo que
contém o germe de outro mais vasto. Vejo agora que os “Diários” foram
impulsionados pela progressão da morte.
Está lembrado quando escrevi – parece que foi em junho ou julho
– anunciando que em dois ou três meses mais terminaria o primeiro
rascunho dos Fervores, que faltavam da “Segunda Parte”? Se tivesse
conseguido continuar trabalhando no mesmo ritmo com que havia co-
meçado então, provavelmente teria conseguido. No entanto, caiu sobre
mim um repentino huayco que me soterrou o caminho e não consegui
levantar, por muito esforço que fizesse, o lodo e as pedras que formam
essas avalanches que são mais pesadas quando caem dentro do peito.
Quero deixar constância que o huayco foi repentino, apesar de não

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completamente inesperado. Há muitos anos que meu ânimo funciona
como as estradas que vão da costa à serra peruana, subindo por abismos
e ladeiras geologicamente ainda instáveis. Quem pode saber em que
dia ou noite haverá de cair um huayco ou desmoronar um barranco
seco sobre esses caminhos? O romance ficou, pois, repito, não acho que
absolutamente truncado, mas contido, um corpo meio cego e disforme,
mas que talvez seja capaz de andar.
Ali estão, por exemplo, quatro homens índio-falantes, que pela
diferença de suas origens e destinos se expressam e chegam a ser na
cidade porto industrial (esse retorcido polvo fosforescente) distintos
castelhanos, apesar de ser de procriação semelhante; e se encaminham,
claro, para pontos ou estrelas alguns mais definidos que outros. E an-
dam lado a lado com a outra laia, cada um. Estão, também, dois ci-
dadãos criollos, portenhos, bem contrapostos: “livre” um, Moncada;
mancornado o outro, Chaucato. Assim é… E alguns mais, a meio ter-
minar; fora as Raposas, suas andanças e palavras. Uns símbolos, uns
encontrões cortados no momento exato em que todos começavam a
se inflamar.
Por isso, se no entendimento de seus assessores e do seu próprio,
dom Gonzalo, o relato aparece como insuficiente, permita que minha
viúva o ofereça a qualquer editor peruano ou de outro país. Eu não du-
vido do valor de alguns capítulos (comecei a recompor o primeiro dias
atrás) e da importância documental do conjunto. Não posso aventurar
um juízo definitivo, tenho dúvidas e entusiasmos. Foi escrito em sobres-
saltos, em meio a uma verdadeira luta – em parte triunfal – contra a
morte. Eu não vou sobreviver ao livro. Como estou certo de que minhas
faculdades e armas de criador, professor, estudioso e incitador, foram se
debilitando até o ponto de ficarem quase nulas, sobrando apenas as que
me relegariam à condição de espectador passivo e impotente da formi-
dável luta que a humanidade está livrando no Peru e em todos os lados,
não conseguiria tolerar este destino. Ou ator, como tenho sido desde
que entrei na escola secundária, há quarenta e três anos atrás, ou nada.
De sua parte recebi, como motivo do projeto de redação das “Ra-
posas” e enquanto escrevia o Livro, as mais nobres, as mais generosas

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cartas. Estou agradecido, e levando em conta sua boa vontade, faço um
último pedido: uma edição popular de Todas las sangres para o Peru e
do relato sobre Chimbote, se chega a ter demanda. Algum dia os livros e
tudo de útil não serão mais motivo de comércio lucrativo em nenhuma
parte. Eu sei que está de acordo, no fundo, com essa conveniência e que
não foi o lucro o principal estímulo de sua empresa de editor. Minha
viúva estará plenamente de acordo com o pedido que faço. Ela tem
direito sobre estes dois livros.1 Além disso, se o amigo aceita A raposa
de cima e a raposa de baixo assim como está, e mantém sua decisão de
realizar a edição imediata, peço inserir à maneira de prólogo o breve
discurso que pronunciei quando recebi o prêmio Inca Garcilaso de
la Vega, e que minha viúva, Sybila (fortaleza e pomba), e meu amigo,
Adolfo Westphalen, sejam encarregados de revisar as provas e orientar
a respeito da edição. Emilio Adolfo é meu amigo desde 1933; nunca fez
concessões interessadas e acredito que é o poeta e ensaísta que mais
profundamente conhecia e conhece a literatura ocidental, que de forma
muito severa e jubilosa apreciou e difundiu a literatura peruana, oral
e escrita, a partir das revistas que dirigiu e dirige. A ele e ao violinista
Máximo Damián Huamani, de San Diego de Ishua, dedico, temeroso,
este relato mutilado e disforme. Graças ao auxílio da doutora Hoffman
é que consegui escrever desde o capítulo II de Todas las sangres até a
última linha dos Fervores.
Receba um abraço de despedida do seu amigo,

José María Arguedas

1
Minha ex-mulher, Celia Bustamante, tem direito sobre os meus outros romances e contos. Ela, sua
irmã Alicia e amigos comuns me abriram as portas da cidade (Lima), ou tornaram mais fácil meu não
tão profundo ingresso a ela e, com meu pai e os livros, o melhor entendimento do castelhano, a metade
do mundo. Também com Celia e Alicia começamos a romper a muralha que cerrava Lima e a costa – a
mente dos criollos todo-poderosos, colonos de uma mistura bastante indefinida de Espanha, França
e Estados Unidos, com os colonos destes colonos – romper a muralha que cerrava Lima e a costa para
a música, em milênios criada e aperfeiçoada por quéchuas, aimarás e mestiços. Agora a Raposa de
Cima empurra e faz cantar e dançar, ela mesma, ou está começando a fazer dançar o mundo, como
fez na antiguidade a voz da tinya de Huatyacuri, o herói-deus com jeito de mendigo.

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P.D. Vou dedicar não sei quantos dias a encontrar uma forma de sair
bem do meio dos vivos.
P.D. (ao voltar a Lima). Consegui no Chile um revólver calibre 22. Fiz
um teste. Funciona. Está bem. Não será fácil escolher o dia, fazê-lo.

José María Arguedas

Senhor Reitor da
Universidade Agraria, Jovens estudantes,

Deixo aos senhores um envelope que contém documentos onde


explico as causas da decisão que tomei.
Professores e estudantes temos um vínculo em comum que não
pode ser invalidado pela negação unilateral de nenhum de nós. Este
vínculo existe, inclusive quando é negado; somos membros de uma
corporação criada para o ensino superior e a pesquisa. Eu invoco este
vínculo ou o levo em conta para cometer aqui algo considerado atroz:
o suicídio. Alunos e professores mantêm comigo um vínculo do tipo
intelectual que se supõe e se concebe como generoso e não entranhável.
Desse modo receberão meu corpo como se ele houvesse caído em um
campo amigo, ao qual pertence, e saberão suportar, sem agudezas de
sentimento e com indulgência, este fato.
Serei acolhido em nossa Casa, terei meu corpo cuidado e acom-
panhado até o local em que deva estar definitivamente. Esse gesto con-
siderado atroz não posso e nem devo fazer em minha casa particular.
Minha Casa de todas as idades é esta: A universidade. Tudo o que fiz
enquanto tive energias pertence ao campo ilimitado da Universidade e,
especialmente, o desinteresse, a devoção pelo Peru e pelo ser humano
que me impulsionaram a trabalhar. Nomeio por uma única vez este
argumento. Faço isso para que me dispensem e me acompanhem sem
tristeza nenhuma, mas com a maior fé possível em nosso país e sua
gente, na Universidade que estou certo é o que estimula nossas paixões,
mas sobretudo nossa decisão de trabalhar pela libertação das limitações

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artificiais que impedem o livre voo da capacidade humana, especial-
mente a do homem peruano.
Acredito ter cumprido com minhas obrigações com certo sentido
de responsabilidade, seja como empregado, como funcionário, docente
e escritor. Agora me retiro porque sinto, comprovei que já não tenho
energia e iluminação para continuar trabalhando, ou seja, para justificar
a vida. Com o acrescentamento da idade e o prestígio das responsabi-
lidades, a importância dessas resposanbilidades cresce e se a chama
do entusiasmo não se mantém e a lucidez começa, pelo contrário, a se
debilitar, creio pessoalmente que não existe outro caminho a escolher,
honestamente, que não seja a retirada. E muitos, tomara que todos os
colegas e alunos, justifiquem e compreendam que para alguns a retirada
para a casa é pior que a morte.
Dediquei este mês de novembro a calcular minhas forças para des-
cobrir se as duas últimas tarefas que comprometiam minha vida podiam
ser realizadas, dado o esgotamento que padeço já há alguns anos. Não.
Não tenho forças para dirigir a recompilação da literatura oral quéchua,
nem muito menos para empreendê-la, apesar de ter acordado com o
doutor Valle Riestra, Diretor de Pesquisa, que esse trabalho eu podia
realizar de acordo com o plano que apresentei. Vou escrever à Editora Ei-
naudi de Turim, que aceitou minha proposta de editar um volume de 600
páginas de mitos e narrações quéchuas. Nossa Universidade pode em-
preender e ampliar esta urgente e quase agônica tarefa. Pode conseguir
se contrata, primeiro, com meu salário que ficará disponível, Alejandro
Ortiz Rescaniere, meu ex-discípulo e aluno brilhante de Lévi-Strauss du-
rante quatro anos, nomeando-o depois. Ele se preparou da maneira mais
séria possível para este trabalho e pode formar, com o doutor Alfredo
Torero, uma equipe do mais alto nível. Acredito que a Editora Einaudi
aceitará minha substituição por esta equipe que representaria a Univer-
sidade. Em quanto ao resto, está tudo exposto em minha carta a Losada e
no “Último diário” de meu quase inconcluso romance A raposa de cima e
a raposa de baixo. Documentos que acompanham este manuscrito.
Declaro ter sido tratado com generosidade na Universidade Agra-
ria e lamento que tenha sido a instituição a que mais limitadamente

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servi, por alheias circunstâncias. Aqui, na Agraria, fui membro de um
Conselho de Faculdade e pude comprovar quão fecunda e necessária
é a intervenção dos alunos na administração da Universidade. Fui tes-
temunha de como os eleitos estudantes radicais foram sendo ganhos
pelo sentido comum e pelo espírito universitário quando os professores,
em lugar de pensar somente com a indignação, refletiam com a maior
serenidade, energia e inteligência. Já não tenho, desventuradamente,
experiência pessoal sobre o que ocorreu nos treze últimos meses que
estive ausente, mas acredito que certamente as mudanças não tenham
sido tão radicais. Espero, acredito, que a Universidade não seja jamais
destruída; que da atual crise se levantará mais aperfeiçoada e com maior
lucidez e energia para cumprir sua missão.
As crises se resolvem melhorando a saúde dos viventes e nunca antes
a Universidade representou mais e de forma tão profunda a vida do
Peru. Um povo não é mortal, e o Peru é um corpo carregado de pode-
rosa seiva ardente de vida, impaciente para se realizar; a Universidade
deve orientá-la com lucidez, “sem ódio”, como diria Inkarri, e os estu-
dantes não estão carregados de ódio em nenhum lado, mas de generosi-
dade impaciente, e os professores verdadeiros obram com generosidade
sábia e paciente. O ódio não!
Permitam-me estas póstumas reflexões. Vivi atento às pulsações
de nosso país.
Perdoem-me ter escolhido esta Casa para passar, de forma um
pouco desagradável, ao estado de cessante. E, se possível, que me acom-
panhem em harmonia de forças que por muito contrárias que sejam, na
Universidade e talvez somente nela, podem alimentar o conhecimento.

La Molina, 27 de nov. 1969

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Ao Reitor e alunos
Nota à parte

Se apesar da forma como morro tiver que haver cerimônia, e discursos,


peço não levar em conta o pedido que faço no “Último diário” com res-
peito aos músicos, meus amigos, Jaime, Durand ou Damián Huamani,
mas sim o de Alberto Escobar. Ele é o professor universitário de quem
mais gosto e admiro, ele e Alfredo Torero. Gostaria que Escobar lesse
o “Último diário”. Digo para não se levar em conta o dos músicos pela
simples razão dos inconvenientes de qualquer índole que possam exigir.
Além disso, esse “Diário” é mais do que um pedido expressão final de ane-
los e pensamentos. Também, sim, confirmo meu desejo de que, se tiver
que haver discursos que seja um estudante de La Molina. Dispensem-me.
J. M. A.

Espero que minha esposa Sybila Arredondo não tenha inconveniente


em receber o que me corresponde por este mês. Haverá de necessitá-lo.
J. M. A.
28 de nov. 1969

Escolho este dia porque não perturbará tanto o movimento da


Universidade. Acredito que a matrícula já terá terminado. Aos amigos
e autoridades talvez lhes faça perder o sábado e o domingo, mas é deles
e não da U.
J. M. A.

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“Não sou um aculturado…”

Palavras de José María Arguedas no


ato de entrega do prêmio Inca Garcilaso de la Vega
(Lima, outubro 1968)

Aceito com alegria o prêmio Inca Garcilaso de la Vega porque sinto


que representa o reconhecimento a uma obra que pretendeu difundir
e contagiar no espírito dos leitores a arte de um indivíduo quéchua
moderno que, graças à consciência que tinha do valor de sua cultura,
pode ampliá-la e enriquecê-la com o conhecimento, a assimilação da
arte criada por outros povos que dispuseram de meios mais vastos para
se expressar.
O sonho de juventude do autor parece haver sido realizado. Não
teve ele mais ambição que a de verter na corrente da sabedoria e arte
do Peru criollo o que considerava degenerado, debilitado ou “estranho”
e “impenetrável”, mas que era, na realidade, apenas o que chega a ser
um grande povo, oprimido pelo desprezo social, a dominação política
e a exploração econômica no próprio solo onde realizou façanhas pelas
quais a história o considerou um grande povo: havia se convertido numa
nação encurralada, isolada para ser melhor e mais facilmente admi-
nistrada e sobre a qual apenas os encurraladores falavam, olhando-a a
distância e com repugnância ou curiosidade. Porém, os muros isolantes
e opressores não apagam a luz da razão humana e muito menos se ela
experimentou séculos de exercício; nem apagam, portanto, as fontes
do amor de onde brota a arte. Dentro do muro isolante e opressivo,
o povo quéchua, bastante arcaizado e se defendendo com dissímulo,
continuava concebendo ideias, criando cantos e mitos. E sabemos bem
que os muros isolantes das nações nunca são completamente isolantes.
Fui jogado por cima deste muro, um tempo, quando era menino; fui
lançado nessa morada, onde a ternura é mais intensa que o ódio e onde,
por isso mesmo, o ódio não é perturbador, mas fogo que impulsiona.

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Contagiado para sempre dos cantos e mitos, levado pela fortuna
até a Universidad de San Marcos, falando toda a vida o quéchua, bem
incorporado ao mundo dos cercadores, visitante feliz de grandes ci-
dades estrangeiras, procurei converter em linguagem escrita o que era
como indivíduo: um vínculo vivo, forte, capaz de se tornar universal, da
grande nação cercada e da parte generosa, humana, dos opressores. O
vínculo podia ser universalizado, estendido; aparecia como um exemplo
concreto, atuante. O cerco podia e devia ser destruído; o leito das duas
nações podia e devia ser unido. E o caminho não tinha por que ser, nem
era possível que fosse unicamente, o que era exigido com um império
de vencedores expoliadores, ou seja: que a nação vencida renuncie a
sua alma, mesmo que apenas na aparência, formalmente, e tome a dos
vencedores, ou seja, que se aculture. Eu não sou um aculturado. Eu
sou um peruano que orgulhosamente, como um demônio feliz fala em
língua cristã e em língua índia, em espanhol e em quéchua. Desejava
converter essa realidade em linguagem artística e ao parecer, segundo
certo consenso mais ou menos geral, alguma coisa consegui. Por isso
recebo o prêmio Inca Garcilaso de la Vega com alegria.
Mas este discurso não seria completo se não explicasse que o ideal
que procurei realizar, e que como parece alcancei até onde é possível,
não o teria conseguido se não fosse por dois motivos que alentaram
meu trabalho desde o começo. Na primeira juventude estava carregado
de uma grande rebeldia e uma grande impaciência para lutar, por fazer
algo. As duas nações de onde provinha estavam em disputa: o universo
me aparecia crispado de confusões, de promessas, de beleza mais que
deslumbrante, exigente. Foi lendo a Mariátegui e depois a Lênin que
encontrei uma ordem permanente nas coisas; a teoria socialista não
apenas deu um leito comum a todo o futuro, mas também ao que havia
de energia em mim deu um destino, carregando-o mais ainda de força
pelo próprio fato de lhe dar um sentido. Até onde entendi o socialismo?
Não sei bem. Porém, não matou em mim o mágico. Nunca pretendi
ser um político, nem acreditei que tivesse aptidões para a disciplina de
um partido, mas foram a ideologia socialista e o estar próximo dos

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movimentos socialistas o que deram rumo e permanência, um claro
destino à energia que senti que se desencadeava durante a juventude.
O outro princípio foi o de sempre considerar o Peru como uma
fonte infinita para a criação. Aperfeiçoar os meios de entender este
país infinito, mediante o conhecimento de tudo quanto se descobre em
outros mundos. Não, não existe país mais diverso, mais múltiplo em
variedade terrena e humana; todos os graus de calor e cor, de amor e
ódio, de urdiduras e sutilezas, de símbolos utilizados e inspiradores.
Não é à toa, como diria a gente chamada comum, que aqui se formaram
Pachácamac e Pachacutec, Huamán Poma, Cieza e o Inca Garcilaso,
Tupac Amaru e Vallejo, Mariátegui e Eguren, a festa de Qoyllur Riti e
a do Senhor dos Milagres; os yungas da costa e da serra; a agricultura
a 4.000 metros; patos que conversam nas lagoas das alturas onde os
insetos da Europa se afogariam; beija-flores que chegam até o sol para
beber de seu fogo e flamejar sobre as flores do mundo. Imitar a partir
daqui a alguém resulta um tanto escandaloso. Na técnica nos superarão
e dominarão, não sabemos até quando, mas em arte podemos já obrigar
a que aprendam de nós e podemos fazê-lo sem sairmos daqui mesmo.
Espero que não haja muito de soberba no que tive que falar; agradeço
a todos e peço desculpas.

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Pequeno glossário

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Achachau (quéchua)  Interjeição que expressa susto, medo, surpresa,
compaixão.

Achuchumecadas  Vestidas como chuchumecas, prostitutas.

Amaru (q.)  Serpente mítica. Foi um dos atributos do Inca. O amaru


vive nas profundezas da terra (minas) e dos lagos; sua aparição anuncia
um cataclismo cósmico.

Antara  Flauta de Pã andina, de tamanho variável e dotada de um nú-


mero variável de tubos.

Barriada  Bairro marginal feito de casas precárias. Favela.

Cancha (q. kamcha)  Milho para tostar; milho tostado. Principal ali-
mento dos viajantes andinos.

Chichera  Mulher responsável pela fabricação ou venda da chicha, uma


bebida fermentada de milho.

Chicherias  Lugar onde se vende chicha.

Chuchumecas Prostitutas.

Chuncho (q. chunchu)  Termo pejorativo da região andina usado para


se referir aos provenientes da região amazônica; nos ritos andinos, per-
sonagem ridículo que representa os índios amazônicos.

Criollo(a)  Filho(a) ou descendente de espanhóis nascidos na América.

Huaco  Nome dos recipientes de cerâmica, normalmente antropomorfos


ou zoormorfos, extraídos das tumbas pré-hispânicas.

Huahua (q. wawa)  Menino pequeno. Filho ou filha da mulher.

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Huaso  Camponês chileno.

Huayco (q.)  Avalanche de água, terra e pedras, sinônimo do q. lloqla.


Derivado do q. wayqo, quebrada.

Huaino (q. waynu)  Música popular da região andina.

Ichu (q.)  Gramínea. Relva palhiça das punas, alimento dos camelídeos.

Ima sapra (q.)  Bormeliácea. Planta parasitária musgosa, de cor cinza


esverdeada, que se dependura nas árvores. Usada na farmacopeia an-
dina. Seu nome significa “barbuda”, em alusão a seu aspecto visual; em
espanhol, salvajina.

Lani (q.) Pênis.

Laqiada (q. laqay)  Pegar, enlamear, passar algo pegajoso em um muro


ou outra superfície.

Maqtillo  Garotinho. Diminutivo híbrido (sufixo espanhol -ilho) do q.


maqta, garoto.

Mashua (q. maswa)  Tubérculo cosmestível doce (Tropaelum tuberosus).

Musiar  Meditar. Neologismo arguediano derivado do q. musya, con-


jeturar, perceber, advinhar, saber, pensar.

Ñeque  Valor, energia, caráter.

Oka (q.)  Planta que se cultiva a 4.000 metros de altitude (Oxalis tuberosa
Mol.). Suas raízes longas e enrugadas são doces, feculentas e comestíveis.

Ollucos (q. ulluku)  Planta da família das baseláceas; pequeno tubér-


culo comestível (Ullucus tuberosus).

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Pako (q., também paqo)  Alpaca, camelídeo domesticado.

Pongo  Índio doméstico que fazia serviços de casa na fazenda.

Puñuna (q.)  Nos lugares em que a madeira é escassa, a puñuna é uma


armação de adobe coberta com peles e mantas.

Sulpay (q.)  Deformação do castelhano: Deus te pague! É usada como


expressão de agradecimento com certa compaixão.

Tarwi (q.)  Lupino, leguminosa nativa dos Andes (Lupinus mutabilis


Sweet). É cultivada em terras entre 2.000 e 3.800 metros de altitude.

Tutaykire  Deus da mitologia quéchua.

Wiraqochas (q.)  Epíteto de uns heróis míticos andinos que desapa-


receram pelo mar, depois de haver organizado o mundo. Foi aplicado
inicialmente aos primeiros espanhóis por sua procedência “oceânica”.
Por extensão, membros dos setores rurais dominantes, latifundiário.

Yungas (q. yunka)  As yungas são os vales quentes do litoral ou da Alta


Amazônia, os yungas são seus habitantes.

Yunsa  Dança que se baila em muitas regiões do país na época dos


carnavais. Em círculo, em torno de uma árvore bastante enfeitada e
colocada num lugar bem aberto, os casais vão dançando e cortando-a
paulatinamente, até que finalmente cai.

[Agradecimento especial a Martín Lienhard, que permitiu


a glossa de vários vocábulos do glossário que preparou para
a edição da Coleção Arquivos/Archivos.]

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Cronologia de José María Arguedas

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1911 18 de janeiro: nasce José María Arguedas Altamirano, em An-
dahuaylas, departamento de Apurímac, centro-sul do Peru.

1914 Morre sua mãe, Victoria Altamirano Navarro. Segundo infor-


mantes de Andahuaylas, o pequeno José María passava longos períodos
na casa de sua babá, uma mulher falante de quéchua chamada Luisa
Sedano Montoya.

1917 O pai se casa novamente em San Juan de Lucanas, passa a tra-


balhar em Puquio como juiz e seus filhos vão morar com a madrasta,
Grimanesa Arangoitia Iturbi. José María revela maus-tratos por parte
da madrasta e seu filho mais velho.

1921 Juntamente com o irmão, Arístides, fogem da casa da madrasta


e se dirigem à fazenda Viseca, propriedade de seu tio, José Manuel
Arellano, que os acolhe. Ali passam dois anos.

1924 Viagem do pai com os dois filhos a Cusco. Essa viagem, assim
como a vivência no Colégio Miguel Grau de Abancay, será retratada no
livro Los ríos profundos.

1926 O pai transfere os dois filhos para o Colégio San Luis Gonzaga,
de Ica, na costa peruana, onde José María experimenta a discriminação
por ser serrano e a recusa de seu primeiro amor por uma jovem local,
Pompeya Miranda Falconi. Nos dois colégios por onde passou, Arguedas
obtém as melhores notas escolares.

1928 Matriculado no Colégio Santa Isabel de Huancayo, começa a es-


crever artigos para a revista Antorcha. Primeiras leituras de autores pe-
ruanos, como José Santos Chocano e José Carlos Mariátegui, além de
clássicos hispano-americanos, como Rubén Darío.

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1929 Em Lima, estuda no Colégio La Merced. Arístides, seu irmão, se
prepara para entrar para a universidade.

1931 Morre o pai em Puquio. Ingressa na Universidad Nacional Mayor


de San Marcos, onde se familiariza com um grupo de artistas e escrito-
res. Atravessa dificuldades financeiras. Com a ajuda de um amigo, con-
segue um trabalho nos Correios, no qual trabalhará até 1937.

1933 Publica seu primeiro conto, “Warma Kuyay” [Amor de niño].


No ano seguinte, publica “Los comuneros de Ak’ola”, “Los comuneros
de Utej Pampa” e outros.

1935 Publica seu primeiro livro de contos, Agua, que obtém o segundo
lugar no prêmio organizado pela Revista Americana de Buenos Aires.

1936 Com amigos, funda a revista Palabra en defensa de la Cultura,


órgão dos alunos da Faculdade de Letras da San Marcos.

1937 É preso, juntamente com vários colegas, por um violento protesto


contra a presença do general fascista Camarotta na universidade. É le-
vado ao presídio El Sexto, onde passa quase um ano.

1938 Com o ensaio “César Vallejo, el más grande poeta del Perú”, dá
início à colaboração com o jornal La Prensa, de Buenos Aires, onde
escreverá por dez anos. Publica Canto Kechwa.

1939 Nomeado professor de geografia e castelhano no Colégio Mateo


Pumaccahua, de Sicuani, província de Canchis. Um ano depois se casa
com Celia Bustamante.

1941 Retorna a Lima para trabalhar num projeto de reforma pedagó-


gica dirigido pelo Ministério da Educação. Publica Yawar Fiesta. Fre-
quenta a peña Pancho Fierro.

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1942 É nomeado professor de castelhano no Colégio Nacional Afonso
Ugarte. Sofre sua primeira crise depressiva. Dois anos depois será trans-
ferido para o Colégio Nacional de Nuestra Señora de Guadalupe com a
mesma função.

1945 Decide se matricular no recém-criado Instituto de Etnologia da


San Marcos.

1947 Nomeado para a Seção de Folclore do Ministério da Educação; três


anos depois assume a chefia da Seção de Folclore, Belas Artes e Despacho.

1949 Publica Canciones y cuentos del pueblo quechua.

1950 Conclui seus estudos de Antropologia.

1952 Realiza trabalhos de recopilação folclórica no vale do Mantaro.


Com o material coletado, publica Cuentos mágico-realistas y canciones de
fiestas tradicionales del valle del Mantaro, província de Jauja y Concepción.

1953 Nomeado chefe do Instituto de Estudos Etnológicos do Museu


da Cultura Peruana, cargo que ocupará até 1963. Secretário do Comitê
Interamericano de Folclore. Funda a revista Folklore Americano.

1954 Publica o romance curto Diamantes y pedernales. Reedita Agua


e publica o conto “Orovilca”.

1955 Publica o conto “La muerte de los hermanos Arango”, com o qual é
ganhador de um concurso promovido pelo jornal El Nacional, do México.

1957 Publica o conto “Hijo solo”. Torna-se bacharel em Etnologia com


a tese Evolución de las comunidades indígenas. El valle del Mantaro y la
ciudad de Huancayo; un caso de fusión de culturas no comprometida por
la acción de las instituciones de origen colonial.

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1958 Publica Los ríos profundos, obra vencedora do Premio Nacional de
Fomento a la Cultura “Ricardo Palma”, no ano seguinte. Passa os meses
de janeiro a julho na Espanha, com uma bolsa da Unesco, realizando
pesquisas para sua tese de doutorado. Visita também França e Itália.

1961 Publica El sexto, um relato sobre o tempo passado, 24 anos antes,


no presídio de mesmo nome.

1962 Começa a dar aulas de quéchua na Universidad Agraria de la Mo-


lina. Continua ministrando cursos sobre etnologia na San Marcos. Pu-
blica Tupac Amaru Kamaq Taytanchisman. Haylli-Taki (A nuestro Padre
Creador Túpac Amaru. Himno Canción). Publica também La agonía
de Rasu-Ñiti. Conhece a psicoteraupeuta chilena Lola Hoffmann em
Santiago, com quem passa a se tratar regularmente.

1963 Obtém o doutorado em Etnologia, com a tese Las comunidades


de España y del Perú, na San Marcos. Deixa o cargo de diretor do Insti-
tuto de Etnologia. É nomeado diretor da Casa da Cultura do Peru, cargo
que ocupará por apenas nove meses. Edita a revista Cultura y pueblo.

1964 É nomeado diretor do Museu Nacional de História. Funda a re-


vista Historia y cultura. Publica Todas las sangres. É nomeado professor
associado na Agraria de la Molina.

1965 Ao regressar de uma longa viagem aos Estados Unidos, onde foi
convidado pelo Departamento de Estado para dar conferências em uni-
versidades, separa-se de Celia Bustamante. Sybila Arredondo se junta a
ele. Participa da mesa-redonda no IEP sobre Todas las sangres, de onde
sairá deprimido com a recepção que encontra de sua obra. Publica “El
sueño del pongo” e “Oda al jet”.

1966 Primeira tentativa de suicídio em sua sala, no Museu Nacional de


História. Ao se recuperar, renuncia a seu cargo e pede sua aposentadoria
como funcionário público. Viaja a Montevidéu para uma consulta com o

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doutor Marcelo Viñar. Publica o primeiro capítulo de seu projetado ro-
mance Harina mundo, que posteriormente se chamará El zorro de arriba
y el zorro de abajo. Publica também “Dioses y hombres de Huarochirí”,
além do poema “katatay”. Começam as visitas frequentes a Chimbote.

1967 Publica Amor mundo y otros relatos. Casa-se com Sybila Arre-
dondo. Nomeado professor principal na Faculdade de Ciências Sociais
da Universidad Agraria de la Molina.

1968 Publica sua tese de doutorado Las comunidades de España y del


Perú. Recebe em Lima o prêmio Inca Garcilaso de la Vega. Solicita uma
licença sem vencimentos à Agraria para se dedicar ao romance que es-
creve sobre o mundo da pesca. Em visita à doutora Hoffmann, em San-
tiago, ela o aconselha a misturar seus diários pessoais com o romance
que escreve. A depressão se acentua.

1969 Visitas a Chimbote e Santiago. Retorna à Agraria em outubro.


No dia 28 de novembro dispara em sua cabeça, após escrever cartas de
despedida ao reitor, estudantes e editor Gonzalo Lozada, dentro de sua
sala na Universidad Agraria de la Molina. Falece quatro dias depois, no
dia 2 de dezembro. A obra seria publicada dois anos depois pela Editorial
Lozada, de Buenos Aires.

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A presente edição foi composta pela Editora UFMG e impressa pela Imprensa Universitária
UFMG em sistema offset, papel pólen soft 80g (miolo) e cartão supremo 250g (capa), em
fevereiro de 2016.

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