1590/1982-02752018000400005
Resumo
O presente artigo destaca a arte, em sua dimensão humanizadora e potencial para afetar o sujeito, como instrumento de
trabalho do psicólogo no favorecimento da constituição de formas mais elaboradas de o sujeito ser, estar, pensar e agir
no mundo. As proposições apresentadas se assentam nos conceitos de Vigotski, notadamente aqueles da “Psicologia da
Arte”, defendendo a potência dessa linguagem para fazer emergirem emoções, contradições e a reflexão, como meios
de fazer avançar a consciência sobre si e sobre o mundo. Assumindo essa perspectiva, o artigo apresenta o relato de
parte de uma pesquisa-intervenção realizada em uma escola da rede pública estadual de Ensino Fundamental II e Médio,
com turmas do ensino médio noturno, focalizando a expressão de uma das estudantes, que elucida o caráter promissor
da arte na promoção da imaginação de adolescentes.
Palavras-chave: Arte (Psicologia); Imaginação; Psicologia histórico-cultural; Psicologia educacional.
Abstract
PSICOLOGIA DA ARTE: FUNDAMENTOS
This paper highlights art in its humanizing and potential dimensions to affect the subject. As a psychologist’s instrument,
it works in favor of the constitution of more elaborate forms of being, think and act in the world. The propositions
presented are based on the concepts of Vygotsky, notably those from “Psychology of Art”, in which the author defends
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Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. John Boyd
Dunlop, s/n., 13060-904, Jd. Ipaussurama, Campinas, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: V.L.T. SOUZA. E-mail:
<vera.trevisan@uol.com.br>.
Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Processo nº 2016/163207-5).
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CC
BY Estud. psicol. I Campinas I 35(4) I 375-388 2018
the power of art to emerge emotions, contradictions, and reflection as means of developing consciousness about oneself
and the world. This article reports part of an intervention-research carried, at a school of the state public network of
elementary school II and middle whose expression of one of the students elucidates the promising character of art in
promoting the imagination of adolescents.
Keywords: Art (Psychology); Imagination; Cultural-historical psychology; Psychology educational.
Este artigo destaca a arte em sua dimensão incompletude, não oferecendo possibilidades para
humanizadora e potencial para afetar o sujeito, questionamentos e reflexões. Na vida vivida, pas-
como instrumento de trabalho do psicólogo, na sado e presente imbricam-se indissociavelmente, e
mediação da constituição de formas mais elabo- os sujeitos são chamados a comparecer por inteiro
radas de ser, estar, pensar e agir no mundo. Como e a revelar a síntese histórica do desenvolvimento
núcleo organizador das relações que se constroem e possível de sua personalidade até aquele dado
se mantêm nos espaços educativos, a arte favorece momento, por meio da expressão, subsequente
as ressignificações dos sujeitos sobre seu papel nas às afecções produzidas nessas relações, dos seus
diferentes interações de que tomam parte e sobre pensamentos, de suas emoções e de suas ações
suas condições de vida atual e futura. O espaço (Arendt, 1958/2014; Heller, 1989; Vigotski,
educativo, que assume primazia nas proposições ora 1934/2009).
apresentadas, é o da escola pública de educação As demandas da vida vivida estão na base
básica, notadamente da rede estadual de ensino dos motivos que levam os sujeitos a se relaciona-
que atende adolescentes no Ensino Fundamental rem pragmaticamente com a realidade, e a orienta-
II e no Ensino Médio. rem sua conduta para atender rapidamente as
Essas acepções se assentam nos pressupos- reivindicações lhes são apresentadas, fazendo
tos teórico-metodológicos da Psicologia Histórico- emergir o olhar que padece de “viciação de
-Cultural, sobretudo aqueles defendidos por origem”2 como forma de significar o mundo.
Vigotski (1925/1999) em seu livro “Psicologia da Nessas ocasiões, embora o olho veja situações
Arte”. O presente estudo assume características heterogêneas, consegue enxergá-las apenas a
de pesquisa-intervenção, visando simultaneamente partir de um único prisma, que as fragmenta e as
produzir conhecimentos sobre os fenômenos homogeneíza, dando origem aos automatismos
investigados, elaborar métodos para acessá-los e cristalizações dos modos de perceber, explicar,
e oferecer subsídios para o desenvolvimento relacionar-se e atuar em diferentes contextos. As
de práticas psicológicas comprometidas com condutas que decorrem dessas interações quase
a transformação das condições que produzem sempre carregam em si a possibilidade da não
alienação e sofrimento dos sujeitos que estudam e conclusão do desenvolvimento de formas mais
trabalham na escola. elaboradas de relação da pessoa com o mundo, uma
Na cotidianidade, os modos de interação vez que estas não contribuem para a mobilização
entre sujeito e realidade se constituem a partir de dos recursos humanos potenciais que poderiam
certo nível de consciência e de intencionalidade, levar à construção de formas mais criativas de se
em que um afeta e constitui o outro de maneira relacionar com a realidade e à transformação das
dialética e permanente. Entretanto, o ritmo da próprias condições materiais de existência (Heller,
vida cotidiana é marcado pelo imediatismo e pela 1989; Vigotski, 1934/2009).
V.L.T. SOUZA et al.
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Termo utilizado por Guimarães Rosa, no conto “O Espelho”, para se referir à cristalização do olhar em relação ao cotidiano. “E os
próprios olhos, de cada um de nós, padecem de viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por
começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura
dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do
engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de
376 rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?” (Rosa, 1962/2001, p.95).
2016; Petroni & Souza, 2014; Souza, 1998; Souza, segmentos podem promover, a um só tempo, uma
2016a; Souza, Dugnani, Petroni, & Andrada, 2015). aproximação e um afastamento entre a forma e o
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Neves & Souza (2018) definem signo emocional comum como “uma combinação de imagens e eventos que possuem uma mesma
base afetiva”. As autoras destacam que, para exemplificar essa ideia, Vigotsky (1930/2009) dá como exemplo as significações histórica
378 e culturalmente atribuídas às cores: “el hombre simboliza com el color negra al dor y al luto; com el branco a la alegria ...” (p.10).
alienados, cabendo a uma ação externa “corrigir” rigidez dos modos de relação na escola, a utilização
sua visão e “trazer luz” à sua consciência. Pensa- de instrumentos mediadores que os coloquem em
-se que não, visto que as leituras que fazem de sua movimento e possibilitem a sua expressão pode
realidade, de fato, descrevem as situações que se promover a sua transformação. E, como afirmado,
repetem constante e cotidianamente. É fato que os a arte tem se mostrado potente na promoção
professores muitas vezes não contam com o apoio dessas afecções e no favorecimento da ampliação
dos pais, como o é que muitas salas são desor- da consciência dos sujeitos em relação à realidade
ganizadas e que os alunos agitados dificultam a em que estão inseridos.
concentração daqueles que querem prestar atenção Compreende-se por ampliação de cons-
na aula, assim como também é fato que os gestores ciência o desenvolvimento de modos ativos e
realmente enfrentam resistências quando propõem criativos de o sujeito se relacionar com a realidade, 379
ao se constituir como tal, assume dimensões con- sobre trabalho e futuro, e para isso foram utilizadas
traditórias que só se revelam no ato mesmo de materialidades artísticas, tais como músicas, docu-
pesquisar-intervir. mentários, fotografias e reproduções de obras de
É unidade, uma vez que as ações de pesquisar arte, assim como perguntas disparadoras para fa-
e intervir são concomitantemente contraditórias e vorecer os processos reflexivos. Os oito encontros
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A grafia do nome do autor aparece de diferentes formas nas produções brasileiras e estrangeiras. A depender das traduções do russo,
ora seu sobrenome é grafado com dois yy – Vygotsky, ora com um no início – Vygotski ou no fim – Vigotsky e, por último, com
dois ii – Vigotski. No Brasil, após um período em que se discutiu sobre qual deveria ser a grafia correta, a maioria dos estudiosos do
autor tem adotado esta última grafia – Vigotski – e mantido nas citações a forma como aparece nas obras utilizadas. É esta a razão de
mantermos nos títulos e nos artigos deste tema as grafias utilizadas pelos autores. 381
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Projeto Outras Américas (1977-1984; publicado em 1999); Equador; Projetos Trabalhadores (1986-1991, publicado em 1996) – tra-
balhadores em uma mina de carvão na Índia; Projeto Terra (1980-1996, publicado em 1997) – bebês, abandonados e/ou confiados
por suas famílias a uma instituição assistencial do Estado, tomando sol no telhado da FEBEM; Movimento Sem Terra iniciando um
acampamento; Menino sem Terra; Garota estudando na escola do assentamento dos sem terra; Nordestina e Nordestino; Pai preparando
o enterro de seu filho; Projeto Êxodos (1993-1999, publicado em 2000) – nordestinos migrando para as cidades grandes; Projeto África
(2000-2003, publicado em 2007) – Garoto perdido de sua família após o massacre em Ruanda; Campo de refugiados de Ruanda;
Projeto Gênesis (2004-2013; publicado em 2013) – Grupo de nômades na Sibéria; Elefantes, Pinguins nas Ilhas Sanduíche do Sul, na
Antártida; Bushmen – Botsuana – Povos que vivem como há cinquenta mil anos atrás; Sítio que era da família de Sebastião Salgado
382 no Brasil.
frio abraço da morte em meu corpo pálido imagens que se traduzem em palavras – ambas são
causado pelo medo, senti o sangue saindo matéria de que somos formados” (p.350).
pelas minhas vísceras, tive medo, medo de Parece ter sido esse movimento que Alice
morrer sem ter feito o suficiente, vi a luta faz – das imagens para a palavra. Mobilizada pela
de animais da mesma espécie, a humana, estética própria da fotografia, produz um texto
a minha espécie. Todo aquele holocausto crítico, cuja emoção está no centro, expressa pela
estava vivo em mim, passei por terrores indignação em relação às cenas acessadas. As reali-
noturnos, pensei no rio de sangue no chão e dades, ainda que distantes de sua experiência, são
o cheiro do massacre a inocentes, com gosto vividas com emoções reais. Eis uma das dimensões
de egoísmo humano pelo poder na porta da imaginação e seu enlace emocional, conforme
de meu alojamento, e tudo que eu tinha postula Sawaia (2009). 383
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Segundo Souza & Andrada (2013, p.362), “... Vigotski (1935/2010), ao se referir ao meio, não o considera como um fator puramente
ambiental, mas como movimento relacional entre o interno e o externo que configuraria uma situação sui generis, única, que ele
denomina de Situação Social de Desenvolvimento. Para Vigotski (1935/2010), como o sujeito vivencia algo se modifica na medida
384 em que se modificar sua Situação Social de Desenvolvimento”.
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Trata-se do nível em que a emoção se enlaça na imaginação, constituindo a significação da realidade. Nas palavras de Souza (2016b,
p.84), dessa perspectiva: “todo sentimento e emoção interferem no modo pelo qual apreendemos a realidade, o que significa que nossos
afetos se tornam congruentes às imagens, impressões e ideias que temos dela. ... as bases afetivas são o caminho para compreensão
como a imaginação é constituída em cada sujeito”. 385
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