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REFERÊNCIA: FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo.

Tradução Maria Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
PREFÁCIO
“Lacan nos apresenta uma teoria da subjetividade radicalmente nova. Ao contrário da
maioria dos pós-estruturalistas, que procuram descontruir e negar a própria noção de
sujeito humano, o psicanalista Lacan acredita que o conceito de subjetividade é
indispensável e explora o que significa ser um sujeito, como alguém se torna um sujeito,
as condições responsáveis pelo fracasso em tornar-se um sujeito (levando à psicose), e
as ferramentas à disposição do analista para causar uma ‘precipitação de subjetividade’”
(FINK, 1998, p. 9)
“Contudo, é extremamente difícil reunir a enorme variedade de coisas que Lacan diz
sobre o sujeito porque sua teoria do sujeito mostra-se tão ‘pouco intuitiva’ para a
maioria de nós (considere a ‘definição’ que Lacan reitera com frequência: o sujeito é
aquilo que um significante representa para outro significante) e porque ela evolui
bastante no curso de sua obra” (FINK, 1998, p. 9)
“Somos alienados na medida em que somos falados por uma linguagem que funciona,
de certa forma, como uma máquina, um computador, ou um dispositivo de
gravação/montagem com vida própria; na medida em que nossas necessidades e
prazeres são organizados e canalizados em formas socialmente aceitáveis pelas
demandas de nossos pais (o Outro como demanda); e na medida em que nosso desejo
surge como o desejo do Outro. Embora Lacan invoque o sujeito em seus seminários e
escritos, muitas vezes o Outro parece roubar a cena” (FINK, 1998, p. 9-10)
“[...] Na década de 1950, partindo de suas primeiras noções fenomenológicas, Lacan
define o sujeito como uma posição adotada com relação ao Outro enquanto linguagem
ou lei; em outras palavras, o sujeito é uma relação com a ordem simbólica. O eu é
definido em termos do registro imaginário, enquanto o sujeito como tal é,
essencialmente, um posicionamento em relação ao Outro. À medida em que a noção de
Outro de Lacan evolui, o sujeito é reconceitualizado como uma postura adotada com
relação ao desejo do Outro (o desejo da mãe, de um dos pais ou ambos), uma vez que
aquele desejo provoca o desejo do sujeito, isto é, funciona como objeto a” (FINK, 1998,
p. 10)
“Cada vez mais influenciado pelos primeiros trabalhos de Freud e por sua prática
psicanalítica, Lacan começa (numa visão resumida de sua evolução teórica) a ver aquele
algo em relação ao qual o sujeito adota uma postura como uma experiência primária de
prazer/dor ou trauma. O sujeito advém como uma forma de atração na direção de uma
experiência originária e esmagadora e como uma forma de defesa contra essa mesma
experiência de gozo que em francês chama-se jouissance: um prazer que é excessivo,
que leva a uma sensação de esmagamento ou nojo e, no entanto, ao mesmo tempo,
fornece uma fonte de fascinação” (FINK, 1998, p. 10)
“O sujeito – falta-a-ser – é visto, portanto, como consistindo numa relação com o desejo
do Outro, ou como uma postura adotada com relação a esse desejo, fundamentalmente
emocionante, porém ameaçador, fascinante e, no entanto, esmagador ou revoltante”
(FINK, 1998, p. 10) – Sujeito como sintoma, como repetição
“[...] A segunda face do sujeito lacaniano aparece na superação daquela fixação, na
reconfiguração ou travessia da fantasia, e na mudança da forma como alguém se diverte
ou obtém gozo: isto é, a face da subjetivação, um processo de tornar ‘seu’ algo que
antes era estranho” (FINK, 1998, p. 11)
“Através desse processo, acontece uma inversão completa na posição do indivíduo com
relação ao desejo do Outro. Assumimos a responsabilidade pelo desejo do Outro, aquele
poder estranho que nos criou” (FINK, 1998, p. 11)
“É a teoria de Lacan do objeto como causa do desejo, não como algo que poderia de
alguma maneira satisfazer o desejo, que nos permite entender alguma das inovações
introduzidas por Lacan no campo da técnica analítica. Ele reconceitualiza a posição do
analista em termos de papéis que este deve evitar (aqueles do outro imaginário e do
Outro como juiz onisciente, implícito nas abordagens da ‘psicologia do ego’) e o papel
que ele deve assumir para tomar parte na fantasia do sujeito (objeto a) a fim de causar
uma subjetivação cada vez maior, pelo analisando, das causas estranhas que lhe deram
origem” (FINK, 1998, p. 12)
“Na visão de Lacan da situação analítica, o analista não é chamado a encenar o ‘objeto
bom’, a ‘mãe suficientemente boa’, ou o ‘ego forte’ que se alia ao ‘ego fraco’ do
paciente. Ao contrário, o analista deve, ao manter uma posição de desejo enigmático, vir
a servir como objeto na fantasia do sujeito a fim de causar uma reconfiguração da
fantasia, uma nova postura em relação ao gozo, uma nova posição do sujeito. Uma das
ferramentas à disposição do analista para conseguir este objetivo é o tempo, a sessão
com tempo de duração variável é um meio de gerar a tensão necessária para separar o
sujeito de sua relação fantasiosa com o desejo do Outro” (FINK, 1998, p. 12)
“O objeto também é elaborado por Lacan como a causa que perturba o funcionamento
tranquilo das estruturas, dos sistemas e dos campos axiomáticos, levando a aporias,
paradoxos e enigmas de todos os tipos. Nos pontos em que a linguagem e as redes que
usamos para simbolizar o mundo racham, encontramos o real. É a letra que insiste
sempre que tentamos usar o significante para dar conta de tudo e dizer tudo” (FINK,
1998, p. 12)
“Portanto, o objeto tem mais de uma função: enquanto o desejo do Outro, ele provoca o
desejo do sujeito; mas enquanto letra ou significância (signifiance) do significante, ele
possui uma materialidade ou substância associada a outro tipo de prazer. Em certo
sentido, é a polivalência do objeto a que leva Lacan a distinguir o desejo sexual (o
prazer do desejo ou de desejar, a que ele se refere como ‘gozo fálico’, ou mais
apropriadamente como ‘gozo simbólico’), de outro tipo de prazer (‘o gozo do Outro’)”
(FINK, 1998, p. 12)
“Já que a psicanálise pode não constituir uma ciência, da maneira como se entende
‘ciência’ atualmente, ela não precisa procurar legitimidade no meio médico e científico
existentes. A obra de Lacan nos fornece meios para constituir a psicanálise como um
discurso que é ao mesmo tempo historicamente dependente do nascimento da ciência e,
no entanto, capaz de se sustentar” (FINK, 1998, p. 13)
“Ao invés de afirmar, como fazem alguns, que a psicanálise está fadada a permanecer
para sempre fora do campo da ciência, a questão de Lacan é, ao contrário, que a ciência
ainda não tem capacidade de acomodar a psicanálise. O discurso científico pode,
algum dia, ser remodelado de modo a abranger a psicanálise em seu âmbito, mas por
enquanto esta pode continuar a elaborar práxis distinta: a prática clínica e o edifício
teórico” (FINK, 1998, p. 13)
PARTE UM
ESTRUTURA: ALIENAÇÃO E O OUTRO
Capítulo um
Linguagem e alteridade
“Um discurso nunca possui uma só dimensão. Um lapso de língua nos lembra
imediatamente que vários discursos podem usar o mesmo porta-voz ao mesmo tempo”
(FINK, 1998, p. 19)
“Experimentalmente, podemos presumir que não somente existem dois tipos diferentes
de fala, mas que eles surgem, grosso modo, de dois lugares psicológicos diferentes: o eu
(ou self) e o Outro” (FINK, 1998, p. 20)
“A psicanálise começa com a pressuposição de que aquele Outro tipo de fala origina-se
de um outro que é de alguma forma localizável. Ela afirma que as palavras faladas sem
intenção, escapadas, murmuradas ou truncadas surgem de algum outro lugar, alguma
outra instância que não o eu” (FINK, 1998, p. 20)
“Enquanto a maioria das pessoas não atribui importância alguma ao Outro discurso que
irrompe e interrompe o discurso do eu, os psicanalistas afirmam que existe método nesta
aparente loucura, uma lógica bastante identificável por trás destas interrupções; em
outras palavras, que não há nada de acaso nelas. Os analistas procuram descobrir o
método por trás daquela loucura, pois é apenas trocando a lógica que governa essas
interrupções, somente afetando o Outro discurso, que a mudança pode acontecer”
(FINK, 1988, p. 21)
“Muito antes de uma criança nascer, um lugar já está preparado para ela no universo
linguístico dos pais: os pais falam da criança que vai nascer, tentam escolher o nome
perfeito para ela, preparam-lhe um quarto, e começam a imaginar como suas vidas serão
com uma pessoa a mais no lar. As palavras que usam para falar da criança têm sido
usadas, com frequência, por décadas, se não séculos e, geralmente, os pais nem as
definiram e nem as redefiniram, apesar dos muitos anos de uso. Essas palavras lhes são
conferidas por séculos de tradição: elas constituem o Outro da linguagem, como Lacan
chama em francês (l’Autre du laungage), mas que podemos tentar converter em o Outro
da linguística, ou o Outro como linguagem” (FINK, 1988, p. 21)
“O Outro enquanto a coleção de todas as palavras e expressões numa língua” (LINK,
1988, p. 22) – Definição de Lacan
“O Outro como linguagem é assimilado pela maioria das crianças (as autistas são as
exceções mais notáveis à regra) à medida que tentam preencher o vácuo entre o desejo
inarticulado, que só pode ser expresso no choro e interpretado para o que der e vier, e a
articulação do desejo em termos socialmente compreensíveis, se não aceitáveis” (FINK,
1988, p. 23)
“De acordo com a teoria lacaniana, todo ser humano que aprende a falar é, dessa forma,
um alienado – pois é a linguagem que, embora permita que o desejo se realize, dá um nó
nesse lugar, e nos faz de tal forma que podemos desejar e não desejar a mesma coisa e
nunca nos satisfazermos quando conseguirmos o que pensávamos desejar, e assim por
diante” (FINK, 1988, p. 23)
“Há muito tempo, as pessoas expressam uma nostalgia por uma época anterior ao
desenvolvimento da linguagem, por um tempo imaginário em que os homo sapiens
viviam como animais, sem linguagem e, portanto, sem o que pudesse contaminar ou
complicar as necessidades e desejos do homem. A glorificação e exaltação por
Rousseau das virtudes do homem primitivo e da vida ante das influência corruptora da
linguagem é um dos exercícios de nostalgia mais bem conhecidos” (FINK, 1988, p. 23)
– Ver Zizek O sujeito incômodo
“O Outro parece então esgueirar-se pela porta dos fundos enquanto as crianças
aprendem uma língua que é virtualmente indispensável para sua sobrevivência no
mundo como o conhecemos. Embora considerada, em geral, inócua e puramente
utilitária por natureza, a linguagem traz com ela uma forma fundamental de alienação
que é um aspecto essencial da aprendizagem da língua materna do indivíduo. A própria
expressão que usamos para falar a respeito dela – ‘língua materna’ – é indicativa do fato
de que é a língua de algum Outro antes, a língua do Outro materno, isto é, a linguagem
da mãeOutro, e ao falar da experiência da infância, Lacan, muitas vezes, como que
iguala o Outro à mãe” (FINK, 1988, p. 23-24)
“Em sua essência, será que o inconsciente é menos estranho para o indivíduo em
questão do que para uma pessoa de fora, uma outra pessoa? O que pensamos conhecer
sobre nosso mais íntimos eus (selves) pode na realidade estar tão longe da verdade
quanto nossas suposições mais desvairadas sobre outras pessoas. A compreensão que
temos de nós mesmos pode ser quase tão ignorante, quase tão distante da realidade,
quanto as opiniões dos outros sobre nós. Os outros podem, de fato, conhecer-nos muito
melhor do que nós realmente nos conhecemos. A simples noção do self, como algum
tipo de parte mais íntima de uma pessoa, parece se decompor aqui” (FINK, 1988, p. 24-
25)
“Lacan declara de forma muito simples que o inconsciente é linguagem, referindo-se à
linguagem como aquilo que constitui o inconsciente. Muitos, erroneamente, consideram
Freud como tendo sustentado que os sentimentos são inconscientes, enquanto que na
maior parte do tempo ele afirmou que o recalcado é o que chamou de
Vorstellungsrepräsentanzen, em geral traduzido para o inglês como representantes
ideativos. Com base na tradição filosófica alemã, que fundamenta os trabalhos de Freud,
e em estudos detalhados dos textos freudianos, Lacan traduziu o termo para o francês
como représentants de la représentation, representantes de(a) representação, e concluiu
que esses representantes podem ser igualados ao que na linguística se denominam
significantes” (FINK, 1988, p. 25)
“Logo, de acordo com a interpretação lacaniana de Freud, quando o recalque ocorre,
uma palavra, ou alguma parte de uma palavra, ‘cai em baixo’, metaforicamente falando.
Neste processo, a palavra não se torna inacessível ao consciente e pode ser, de fato, uma
palavra que uma pessoa usa perfeitamente bem na sua conversação cotidiana. Mas pelos
simples fato de ter sido recalcada, aquela palavra, ou alguma parte dela, começa a
exercer um novo papel. Ela estabelece relações com outros elementos recalcados,
desenvolvendo um conjunto complexo de ligações com eles” (FINK, 1988, p. 25)
“Ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, Lacan não afirmou
que o inconsciente é estruturado exatamente da mesma forma como o inglês, digamos,
ou qualquer outra língua antiga ou moderna, mas que a linguagem, da forma como
opera a nível do inconsciente, obedece a um tipo de gramática, ou seja, a um conjunto
de regras que comandam a transformação e o deslizamento que existe dentro dela”
(FINK, 1988, p. 25-26)
“Mais do que ser o lugar privilegiado da subjetividade, o inconsciente, como concebido
por Lacan (exceto na expressão ‘sujeito do inconsciente’, à qual retornaremos mais
tarde), é em si Outro, estranho, e inassimilável” (FINK, 1988, p. 26)
“Na medida em que o desejo habita a linguagem – e em uma estrutura lacaniana não há,
a rigor, desejo sem linguagem – podemos dizer que o inconsciente está repleto de tais
desejos estranhos. Às vezes, muitas pessoas sentem que estão trabalhando em algo que
nem sequer realmente desejam, empenhando-se para corresponder a expectativas que
nem mesmo endossam, ou declarando objetivos que sabem perfeitamente bem que têm
pouca ou nenhuma motivação para alcançar. O inconsciente está, nesse sentido,
transbordando de desejos de outras pessoas” (FINK, 1988, p. 26)
“As opiniões e desejos de outras pessoas fluem para dentro de nós através do discurso.
Nesse sentido, podemos interpretar o enunciado de Lacan de que o inconsciente é o
discurso do Outro, de uma maneira muito direta: o inconsciente está repleto da fala de
outras pessoas, das conversas de outras pessoas, e dos objetivos, aspirações e fantasias
de outras pessoas (na medida em que estes são expressos em palavras)” (FINK, 1988, p.
27)

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