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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE


PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CULTURAL

JOSIAS VIEIRA DO NASCIMENTO JUNIOR

ECOTEOLOGIA E RECONEXÃO: Um olhar para o Bem Viver Xucuru (Limolaigo Toipe) e


os Ideogramas Adinkra sob a luz da Sociologia das Imagens.

Recife
2022
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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE


PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CULTURAL

JOSIAS VIEIRA DO NASCIMENTO JUNIOR

ECOTEOLOGIA E RECONEXÃO: Um olhar para o Bem Viver Xucuru (Limolaigo Toipe) e


os Ideogramas Adinkra sob a luz da Sociologia das Imagens.

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como prerrequisito para a
finalização Curso de Especialização em
Educação Ambiental e Cultural do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Pernambuco - IFPE.

Orientador: Marcos Valença


Coorientador: Iran Ordônio Xucuru

Recife
2022
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LISTA DE FIGURAS

fig 1 .......................................................... Ananse Ntontan – Simbolo Adinkra - Ashanti – Gana


fig 2 ......................................................... Gye Nyame – Simbolo Adinkra - Ashanti - Gana
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 3

2 REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................................ 6

3 METODOLOGIA................................................................................................................ 13

4 RELEASE DA EXPOSIÇÃO ............................................................................................. 15

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 16
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1 INTRODUÇÃO

Na intenção de contribuir para o processo de descolonização da academia, busca que


tangencia todo o andamento do Curso de Especialização em Educação Ambiental e Cultural do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE, há um lugar que
se mantém rígido e necessário de crítica que é o modo de apresentar os resultados dos
aprendizados e conhecimentos construídos no decorrer do tempo de curso. O IFPE se mostra
vanguardista no momento em que disponibiliza aos educandos uma série de modalidades que
descentralizam esse modo de apresentação escrita para suas conclusões de curso.

Via de regra, esse lugar é o do texto escrito como formato único de apresentação desses
resultados. TCCs em formato, unicamente, de: Monografias, Dissertações, Teses tem sido, ao
logo dos séculos, o modo pelo qual se comprova tais conhecimentos construídos, porém, esse
é um modo essencialmente eurocentrado que se deve criticar, pois aponta de forma inequívoca
para o iluminismo que tenta subjugar e subalternizar as demais formas de expressão, sobretudo,
de povos não brancos e não ocidentais de outros centros culturais que não a Europa e o
pensamento ocidental.

Contudo, é necessário ser didático e homeopático no processo de crítica e


descentralização de métodos, na intenção de, não arrancando, poder substituir paradigmas que,
em si, são necessários para desconstruções e reconstruções. Para tanto, este trabalho se coloca
assumindo esse papel na descolonização, tendo como metodologia central a apresentação,
através de uma exposição de imagens em esculturas, quadros e pinturas como modo de
demonstrar aprendizado construído no decorrer do referido curso, aliado a esse texto que ora é
apresentado como referencial teórico e metodológico para chegar ao resultado proposto. Não
obstante a isso, deve-se entender a utilização política da palavra quanto à qual a socióloga Silvia
Rivera Culsicanqui tem a dizer de sua função de encobrir para dizer somente o que interessa à
estrutura dominante e não demonstrar o todo. Silvia nos diz que: “Hay en el colonialismo una
función muy peculiar para las palabras: ellas no designan, sino que encubren.” (RIVERA, 2010.
p. 6).

O presente trabalho de conclusão de curso se conduzirá em forma de exposição


escultural, mas também composta por quadros, pinturas e poesia, com base no diálogo entre a
filosofia contida nos ideogramas Adinkra da região do Togo, situada entre Ganah e Costa do
Marfin no continente africano, o modo de vida dos povos originários em biointeração em Abya
Yala / Pindorama, representados nesta obra pelo povo Xucuru do Ororubá e as bases
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Ecoteológicas, de forma que, a partir dessa mesma biointeração, questiona a subalternização da


filosofia africana e originária baseada na lógica eurocêntrica.

Essa lógica trata tais povos como primitivos pelo fato de julgar que os mesmos não
possuam cultura desenvolvida ou escrita capaz de denotar a pretensa erudição da colonialidade,
mas que se relacionam com o folclórico e, em sua religiosidade, apresentam um panteão de
deuses diferentes, e por isso, menores do que o Cristianismo apresenta por parte da teologia
colonial.

Os ideogramas Adinkra, para além de representar o registro aprofundado de uma


filosofia com base na experiência milenar de povos que compuseram e compõem o continente
africano, nos oferecem um lastro estrutural para questionar as mensagens que são dadas como
verdades únicas e numa filosofia que se pretende única e nascida na Grécia antiga. Esta,
servindo de fonte de onde a teologia clássica, instrumentalizada pelo colonialismo como
ferramenta de legitimação, bebe para seu surgimento, disciplina esta que compõe a Ecoteologia
relacionada neste trabalho, porém de forma decolonial e crítica.

Bem como, com respeito aos povos originários, busca-se dialogar com as bases da
Agricultura Modo de Vida no Limolaigo Toipe, Bem Viver Xukuru, no que tange a relação
desses povos com a Pacha Mama, a Mãe Natureza, e a manifestação da essência criadora em
tudo que criou. Mesmo não sendo um modo sistemático, como afirma ACOSTA (2016), o Bem
Viver enseja práticas baseadas na comunidade local que anunciam a voz dessas comunidades
silenciadas pelo sistema-mundo vigente, que escreve sua história subalternizando-as e
silenciando-as na intenção de manter seu processo desenvolvimentista e exploratório da terra
como um todo, em sua estrutura biótica e abiótica. Além disso, o presente trabalho também se
propõe a apresentar o questionamento do autor a respeito de tão duros tratamentos epistêmicos
à espiritualidade dos povos africanos e originários, sob os quais já se chegou ao ápice de os
julgar sem alma e de que a escravização aliada a uma cristianização os levaria a “salvação”
(VER CITAÇÃO), sendo essa a ligação que dá unidade entre os três pontos teóricos deste
tralho, a saber: ideogramas Adinkra, Limolaigo Toipe e Ecolteologia Decolonial.

O olhar Ecoteológico aqui se destina a desmistificar essa máxima através da percepção


das mensagens transmitidas pelos ideogramas Adinkra e pelo Limolaigo Toipe, bem como
através da observação de sua relação com o meio ambiente.
Assim, pensar uma Ecoteologia de Reconexão com um olhar para os Ideogramas
Adinkra e Limolaigo Toipe sob a luz da Sociologia das Imagens de Silvia Rivera Cusicanqui,
é, sobretudo, propor para os descendentes de africanos na diáspora brasileira e dos povos
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indígenas que foram saqueados, um novo ponto de vista para o modo de ser e estar no mundo.
E fazer isso a partir da arte de ressignificar materiais nos faz pensar em ressignificar também o
lugar da fala hegemônica e colonial que nos subalternizou. É possível também ressignificar
nosso modo de consumo e o descarte que atinge a terra num nível de morte, fazendo isso através
da produção de arte que surge desses resíduos descartados. Por último, e não menos importante,
ressignificar o nosso relacionamento com a Terra e seus elementos de vida e espiritualidade.
Há então um questionamento que enseja todo o trabalho a ser feito. Esse questionamento
se pauta em: Como o Limolaigo Toipe e os Símbolos Adinkra apresentam a biointeração
Xukuru e Africana de relacionamento com a Terra do ponto de vista de uma reflexão
ecoteológica?
A tentativa de uma resposta para essa questão será dada a partir da expressão artística
afro-pindorâmica na exposição, mas que será pormenorizada na seção metodológica neste texto.
Para tanto define-se aqui os objetivos, geral e específicos deste trabalho que se
apresentam como:

OBJETIVO GRAL
Apresentar uma exposição escultural, também composta por quadros, pinturas e poesia
a partir de resíduos da poda urbana, de refugo de obras da construção civil e descarte do uso
doméstico, mas, ressignificado para expressar os ideogramas Adinkra, expressões do Limoláigo
Toipe junto com a poesia Ecoteológica argumentando a respeito da biointeração
africana/originária e seu relacionamento com a Terra

OBJETIVOS ESPECÍFICOS.
1 Confeccionar um release descritivo que possa apresentar a obra e sua mensagem.
2 Distribuir nas linguagens de imagens, esculturas e poesia os conceitos que
apresentam a filosofia africana e o modo de vida originário, fazendo um diálogo
com a Ecoteologia Decolonial.
O trabalho dessa exposição se apresenta relevante ao justificar que seu “fazimento” traz
para a pauta pós-colonial reflexões que, por hora, parecem desconsideradas ou impedidas ao
debate, que sejam:

• A Ecoteologia que percebe a relação da divindade criadora com sua Criação;

• A percepção em comum entre os povos contra colonizadores, a respeito de sua


relação com a divindade e a Terra;
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• Os saberes técnicos e espirituais, além de filosóficos que rebatem na manufatura


a partir dos elementos da natureza e resíduos;

• A habilidade do autor em ressignificar elementos que degradariam a natureza,


ou são frutos de sua destruição, para construir esculturas que dialoguem
permeando os saberes e tentando responder ao problema levantado.

Na sequência, apresenta-se, como referencial teórico, autores com os quais pretende-se


dialogar para a construção da exposição.

2 REFERENCIAL TEÓRICO (Sociologia das Imagens, Biointeração e povos Contra


colonizadores, Ecoteologia Decolonial)

Em meio ao caminho da minha formação intelectual, há uma construção nos últimos


três anos que, alinhada com a prática da educação popular, aponta um processo que dialoga
com a formação em teologia, no qual, a partir dela, busco a compreensão de um tema que aborde
a questão da fé com o meio ambiente cujo conteúdo, estudado de forma autônoma, direciona o
aprendizado a respeito da Ecoteologia. Neste sentido, venho ressignificando minhas práticas e
conceitos da espiritualidade que levam a repensar sobre minhas raízes e cultura. Embora não
esteja negritado quais as etnias que formam a minha ancestralidade, é certo de serem fruto de
uma construção que traz forte a assinatura de negros que vieram escravizados da África e
indígenas pindorâmicos (termo usado pelo piauiense, mestre de ofícios tradicionais Nego
Bispo, e usarei para identificar os povos indígenas dessas terras chamadas Brasil).

Ainda na literatura construída por Nego Bispo é importante trazer à tona outros
conceitos caros a este trabalho, a saber, biointeração e povos contra colonizadores.

Estes conceitos serão definidos negritadamente um pouco mais a frente nessa mesma
secção do trabalho. Firmando bem esses conceitos pode-se pisar melhor no terreno do
referencial teórico.

Esta ancestralidade, que pulsa forte desde muito cedo, impulsiona minhas ações na
intenção de reconhecer a identidade e rebate sobre a elaboração de atividades intelectuais e
artísticas de forma que sou levado a, sempre que construo um trabalho dessas áreas, buscar
identificar tais trabalhos como parte das vozes que foram silenciadas para que a voz da opressão
colonizadora pudesse se ouvir.
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Além das formações já citadas, lido em meu cotidiano, como já mencionado, com a
prática das artes que se distribuem entre a poesia e a transformação de materiais, porém, em
escala mais profissional com as artes manuais. Busco ressignificar materiais, fruto de descarte,
para que estes possam se tornar artigos de decoração e arte. Com isso, percebo meu trabalho
produzindo imagens que trazem sentido, significado, mensagens que são lidas, interpretadas e
por esse motivo acabam se relacionando com o que nos acostumamos a conhecer e é estudado
na filosofia como semiótica. Esta seria, de maneira geral, uma doutrina ou modo de reflexão
sistemática sobre os signos. Mas aqui iremos deixar de lado um pouco os conceitos construídos
a partir da episteme eurocentrada e buscar o que nos fala Silvia Rivera Cusicanqui abordando
a sociologia das imagens.
Em seu trabalho, Silvia, que é descendente do povo aymara, aponta que, ao entrar com
sua cultura, religiosidade e teologia colonial, o invasor negou toda a construção da
espiritualidade, da epstemologia dos povos que já habitavam Abya Yala, por exemplo. Vejamos
o que ela nos diz quando aborda sobre a sociologia das imagens.
Desde hace tiempo he venido trabajando sobre la idea de que en el presente de
nuestros países continúa en vigencia una situación de colonialismo interno. Y es en
este marco que voy a hablar ahora sobre lo que llamo la sociología de la imagen, la
forma como las culturas visuales, en tanto pueden aportar a la comprensión de lo
social, se han desarrollado con una trayectoria propia, que a la vez revela y reactualiza
muchos aspectos no conscientes del mundo social. Nuestra sociedad tiene elementos
y características propias de una confrontación cultural y civilizatoria, que se inició en
nuestro espacio a partir de 1532. (RIVERA, 2010. p. 19)

Sobre o uso das palavras, Silvia vai dizer que elas são muito bem utilizadas para
manipular como se pode observar nos discursos públicos que se converteram em uma forma do
não dizer, ou seja, de ocultar o que precisaria ser dito e passar a dizer o que se quer ouvir para
haver manipulação. Neste sentido criou-se uma forma de isolamento para qualquer outra forma
de apresentar ideias que não seja a forma escrita. Lembra muito o formato positivista de
Auguste Comte (1798-1857) de impor como válido apenas o conhecimento científico.
Por outro lado, as imagens nos conferem outras formas de tocar o conhecimento, o
sentido, e de produzir, a partir desses, mais conhecimento. Essa é a proposta da Sociologia das
Imagens. Não se trata de voltar a uma compreensão rupestre, mas de dar ao modo de leitura
muito mais do que a frieza rasa das palavras. Silvia ainda nos diz que:
Las imágenes nos ofrecen interpretaciones y narrativas sociales, que desde
siglos precoloniales iluminan este trasfondo social y nos ofrecen perspectivas de
comprensión crítica de la realidad. El tránsito entre la imagen y la palabra es parte de
una metodología y de una práctica pedagógica que, en una universidad pública como
la UMSA, me ha permitido cerrar las brechas entre el castellano standard-culto y los
modos coloquiales del habla[...] (RIVERA, 2010. p. 20)
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É essa construção que me faz querer dizer mais e aliar minha poesia a imagens que
traduzam o que as palavras não podem dizer.
Foi num desses momentos que, buscando uma forma mais bem definida identitariamente
para o meu trabalho que me deparei com um símbolo Adrinkra chamado Ananse Ntontan, como
vê-se na figura a seguir:

fig 1(Dicionário de Símbolos - https://www.dicionariodesimbolos.com.br/simbolos-adinkraAssessado e 02/12/2019)

Ananse Ntontan é o símbolo da criatividade dentro da filosofia africana e que compõe


com outros uma enorme lista de símbolos chamada de Adinkra e se origina de um povo, “o
Akan”, que atualmente está em territórios como Gana e Costa do Marfim.” (Simbolismo of
Things https://symbolismofthings.com/significado-simbolos-adinkras-simbolismo/Assessado
em 02/12/2019).
Fui cativado logo de princípio. Passei a estampar essa imagem como assinatura nas
minhas peças, mas não se resumiu a isso, a curiosidade por aqueles símbolos foi se acentuando
exatamente pela busca quanto a ancestralidade que, há mais de 15 anos me move por uma
necessidade de pertença.
Na curiosidade pelos símbolos Adinkra soam então as vozes de Marizilda dos Santos
Menezes e Jacqueline A. G. F. de Castro fazendo saber que esses ideogramas transmitem
mensagens milenares que são parte estrutural da sociedade dos povos africanos.

o ideograma representa conhecimento, filosofia, história e identidade destes povos, e


se obtém características simbólicas dos ideogramas ao observar a importância destes
ao seu povo, a menção social e patriótica à sua cultura, notada fortemente nos
ideogramas Adinkra. (MENEZES e CASTRO, 2007)
Foi então que outro Adinkra me chamou a atenção a partir da minha relação com o
pensamento epistemológico e ecoteológico. Este, apontando que há uma inter-relação, uma
integração entre a divindade que tudo criou, e a obra de sua criação, que se revela nesse “tudo”
e que cada povo, a seu modo, percebe e se relaciona com ela no cosmos, ou no todo criado. O
Adinkra em questão agora é o Gye Nyame. Este símbolo traz uma resposta filosófica muito
interessante que responde duas questões intrínsecas a este trabalho. As primeiras mensagens
que se recebe versam sobre o pensamento filosófico que teria nascido na Grécia. Aqui vemos a
África protagonizando a resposta e a reboque apresenta solução para o segundo questionamento
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intrínseco, a saber, de onde viemos e para onde vamos? E para essa informação, evoco a fala
do Claudio Zeiger em seu blog para elaborar a respeito do Adinkra Gye Nyame.

fig 2 (Dicionário de Símbolos - https://www.dicionariodesimbolos.com.br/simbolos-adinkraAssessado e 02/12/2019)

GyeNyame - SimboloAdinkra - Ashanti - Gana


Simboliza a supremacia e imortalidade de Deus. Por ser de difícil tradução,
geralmente usa-se o termo "Exceto Deus". Que vem do proverbio:
Abodesantannyifiritete, obinte ase a onim ne ahyease, na obintena ase nkosi ne
awie, GyeNyame.
Tradução:
Este grande panorama da criação data de tempos imemoriais, não vive ninguém que
tenha visto o seu começo e ninguém viverá para ver o seu fim, exceto Deus.
(http://claudio-zeiger.blogspot.com/2012/02/simbologia-adinkra-gye-nyame.html
Acessado em 10/12/2019)

A essa relação entre humano e divindade vivenciada no território, o Mestre de Saberes,


Nego Bispo, chama de Biointeração quando relata a respeito da pescaria comunitária e da
farinhada e diz que:

Segundo a orientação das mestras e mestres, ninguém podia pescar para


acumular, pois melhor lugar de guardar os peixes é nos rios [...] além da pescaria,
também podemos apresentar uma organização própria dos quilombos e dos povos
indígenas e que quase todas as pessoas que moram nessas comunidades conhecem e
participam: a estrutura orgânico social de uma casa de farinha. [...] os rapazotes
também comparecem à casa de farinha, onde provocados pelo jeito maroto das
cabrochas, desafiam-se a enfrentar o manejo da roda. {...} de lá se vê todos os
movimentos que acontecem no recinto, inclusive os olhares interessados das meninas.
Se os meninos que estão na roda conseguirem cruzar o seu olhar com o olhar de uma
das cabrochas, logo elas lhe passam uma mensagem [....] Tudo isso acontece mediante
poucas palavras, quase ninguém percebeu, mas a menina já emitiu uma mensagem: a
noite ele deve ajudá-la a lavar a massa. E assim se lava a massa, se colhe a mandioca,
se torra a farinha, se faz o beiju; e assim se namora, marca noivado e vive-se um longo
período, onde se faz muita força, mas toda essa força se transforma em festa. [...] Isso
porque, segundo nossas mestras e mestres, a mandioca nós podíamos acumular, mas
o melhor lugar de guardar a mandioca é na terra. [...] aqui se vivencia a comunhão
prazerosa da biointeração. O que também rima com a roça de todo mundo. Com as
pescarias, com as farinhadas e muitas outras expressões produtivas das nossas
vidas[...] (BISPO, 2019)
10

Deste modo há que se reconhecer que a relação com a divindade, o Deus, que não
necessariamente é masculino, mas que gestou todas as coisas, necessita se mostrar por
intermédio desse meio onde acontece o espetáculo da vida, a Criação. E são, para além dos
textos escritos, as imagens impressas por todo cosmos que denotam isso. É preciso criticar essa
relação vertical e unívoca que representa a espiritualidade e, inclusive, essa objetificação
imposta à Criação e que é conhecida apenas pela palavra escrita, como chamamos na teologia
de teologia da Revelação e passa a entender a Teologia Natural como a demonstração
iconográfica do artífice que tudo criou. É preciso demonstrar que essa relação tem de ser
pautada no respeito e devoção, pois está, não com, mas no próprio Deus. E é por intermédio de
uma Ecoteologia de Reconexão que podemos, munidos de imagens que fazem refletir, criticar
o aprisionamento explorador que o desenvolvimento causa na Criação como aponta Alberto
Acosta

Os elementos substanciais da visão dominante imposta pelo


desenvolvimento nutrem-se dos valores impostos pelo progresso civilizatório
europeu, extremamente expansionista, influente e destrutivo. A partir de 1492, quando
a Espanha invadiu com uma estratégia de dominação para a exploração a região que
após a chegada dos conquistadores passou a se chamar América, impôs-se um
imaginário para legitimar a superioridade do europeu, o “civilizado”, e a inferioridade
do outro, o “primitivo”. Neste ponto emergiram a colonialidade do poder, a
colonialidade do saber e a colonialidade do ser, que não são apenas uma recordação
do passado: estão vigentes até nossos dias e explicam a organização do mundo, já que
são um ponto fundamental na agenda da Modernidade. Para cristalizar o processo
expansionista, a Europa consolidou uma visão que colocou o ser humano
figurativamente falando por fora da Natureza. Definiu-se a Natureza sem considerar
a Humanidade como sua parte integral, desconhecendo que os seres humanos também
somos Natureza. Com isso, abriu-se o caminho para dominá-la e manipulá-la.
(ACOSTA 2016)
Urge um pensamento de libertação, e a Ecoteologia nos mostra que isso está para além
das questões eclesiocêntricas do cristianismo, mas abrange todos os seres humanos e não
humanos que partilham a mesma casa comum. Assim nos aponta Boff ao dizer que:

Esta visão [“a salvação está em curso na história e encontra nas libertações
concretas sua presença”] propicia ao cristão articular-se com outros homens que, não
sendo cristãos, possuem, entretanto, a mesma intencionalidade e buscam a mesma
libertação. Veem neles também agentes do Reino e nele descobrem a presença atuante
de Deus. (BOFF. 1984)

Com essa fala de Boff pretendo trazer para a pauta o outro termo que Nego Bispo nos
apresenta e que podemos entender como crucial para uma Ecoteologia de Reconexão. Esse
termo indica que os povos que foram vítimas da colonização não são povos colonizados mas,
contra colonizadores.
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Vamos entender por colonização todos os processos etnocêntricos de


invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela
outra, independentemente do território físico geográfico que essa cultura se encontra.
E vamos compreender por contra colonização todos os processos de resistência e de
luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as
significações e os modos de vida praticados nesses territórios.
Assim sendo, vamos tratar os povos que vieram da África e os povos
originários das Américas nas mesmas condições, isso é, independente de suas
especificidades e particularidades no processo de escravização, os chamaremos de
contra colonizadores. (BISPO, 2019 p. 35)

Com isso percebe-se que não seja o caso da academia, como formato epistêmico da
colonialidade, detenha a única forma de exprimir conhecimento, mas que existe sim uma
diversidade de conhecimento que essa colonialidade fez questão de suprimir suas formas de
expressão para que se mantivesse apenas o padrão imposto.

Assim, lastreado pela Sociologia das Imagens, tem a intenção de colocar luz sobre as
expressões dos povos contra colonizadores e ouvir a voz que esses têm.

Por otra parte, desde una perspectiva histórica, las imágenes me han
permitido descubrir sentidos no censurados por la lengua oficial. Un ejemplo de ello
es el trabajo de Waman Puma de Ayala, cuya obra se desconoció por varios siglos, y
hoy es objeto de múltiples estudios académicos. Su Primer Nueva Coronica y Buen
Gobierno es una carta de mil páginas, escrita hacia 1612-1615 y dirigida al Rey de
España, con más de trescientos dibujos a tinta. La lengua en la que escribe Waman
Puma está plagada de términos y giros del habla oral en qhichwa, de canciones y
jayllis en aymara y de nciones como el “Mundo al Revés”, que derivaban de la
experiencia cataclísmica de la conquista y de la colonización. (RIVERA, 2010. p. 21)
Dois séculos antes de Karl Marx nascer e popularizar as ideias de revolução contra uma
minoria detentora e poder, capital, que oprime as populações do mundo, Waman Puma de Ayala
já denunciava essas opressões através da cosmovisão indígena do “Mundo Investido” e a
hecatombe que a colonização causou por onde chegou.

O ato de deixar que as verdades se propaguem apenas através das palavras, acaba
comprometendo muito a construção de conhecimento e limitando a expressão daqueles que tem
sido silenciados pelo Norte Global, em detrimento de culturas, epistemes e filosofias para que
um padrão eurocêntrico se estabeleça, ou continue estabelecido.

Para contribuir no diálogo sobre este tema, lanço olhos, ouvidos e espírito para filosofias
que estruturam meu ser do Sul Global, como é o caso do povo Xukuru do Ororubá. Entendendo
a relação direta com a prática do Bem Viver exercida pelo povo Xucuru do Ororubá no agreste
pernambucano, quando este povo compreende que as árvores velhas guardam o sagrado da
Criação, e sua relação de respeito honra, não somente a própria natureza, mas o divino que
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habita nela, ou se revela nela, sendo ela, assim, sagrada, busco relacionar esse Bem Viver com
o que podemos construir para uma Coexistência harmônica na Criação.

Na Serra do Ororubá, podemos encontrar uma relação biointerativa que entende o tempo
da terra produzir e descansar, entende o que precisa ser cultivado, mas, sobretudo, o que precisa
ser guardado, protegido como forma de manter viva a relação com o sagrado da divindade que
tudo criou.

E a partir dessa leitura, que vai se materializar em esculturas e poesia, que trago a
reflexão de Marcos Valença, explicando Boaventura de Souza Santos, e demonstrando que é a
partir da ecologia dos saberes, que tão bem se representa na sociologia das imagens, e de uma
desobediência epistemológica, que poderão ser superadas as progressivas colonizações de
saberes e vozes quando diz que:

O movimento que abala as linhas abissais é denominado de cosmopolitismo


subalterno, movimento coletivo com o objetivo de desenvolver uma epistemologia do
sul – sul global não imperial, nos contextos do capitalismo global e do colonialismo.
(VALENÇA. 2019)
É com o sentimento deste cosmopolitismo subalterno, inquieto e subversivo que quero
apresentar aqui o fabuloso descortinar de conhecimentos e a incrível descoberta sobre saber
aprender. Pois é exatamente este o sentimento que ao escrever este trabalho, que me deparo
com o aprendizado na sua elaboração. Sou desafiado, e por conseguinte acabo desafiando a
academia, a agir num processo de ruptura com os moldes estáticos de produzir, desconstruir e
reconstruir conhecimentos. A elaboração deste trabalho de conclusão de curso de
Especialização em Educação Ambiental e Cultural do IFPE é desafiadora e permite que eu
emerja do casulo textual e reflexivo, para o âmbito do sentir-pensar e que, para além de minha
mente que percebe a poesia, eu possa agir com meu corpo sentindo cada peça que vai sendo
produzida.
Sendo este um dos embasamentos da educação construtivista, aprender a aprender, hoje
eu reaprendo.
Ao contrário do que ocorre na educação formal e, segundo Paulo Freire, bancária, onde
assimilamos o que nos é oferecido como verdades únicas. O mestre aponta que o mundo se faz
de outra forma quando diz que

Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente,


permanente, que os homens (e mulheres) fazem do mundo, com o mundo e com os
outros (e as outras).
Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam
sábios aos que julgam nada saber. (FREIRE. 2015) – Grifo meu
13

Neste sentido, o educando passa a sorver como pétreos os conhecimentos produzidos e


impostos como que de cima para baixo pelo Norte Global colonizador. Aprendo, com a
produção deste trabalho, que é possível tomar outro caminho na construção de conhecimentos,
que é possível uma desobediência epistêmica, mas não sem causa, e sim na direção de ouvir as
vozes e potências munidas de seus saberes orgânicos e vivenciais oferecendo o conteúdo
suficiente e produzido com o encontro dos saberes que pouco se encontra nos livros, mas muito
nos lugares e viveres tradicionais do nosso povo. Esses viveres nos apresentam a Terra Velha
do povo Xukuru do Ororuba. Limolaigo Toipe é o termo usado na aldeia para compreender que
é o respeito ao território que nos leva a relação com a divindade. Pisando com sutileza e
compreendendo o cuidado da terra para com todos e entramos assim no Bem Viver Xukuru.
O Bem Viver Xukuru, além de promover as percepções pedagógicas da
educação para o viver na terra e o viver da terra, também estimula o diálogo de saberes
e a visibilidade de práticas e processos que incluem plantar, colher, comer e suas
complexidades. Todos baseados na íntima relação com a natureza e com o sagrado.
Esta cosmovisão é abordada entre o povo Xukuru através da agricultura como
promotora da cultura do encantamento, (ORDONIO, 2019)

Para embasar esse entendimento de forma a compreendermos como ele é importante para
a epstemologia do Sul, evoco a teoria da Ecologia dos Saberes de Boaventura de Sousa Santos,
que tem a intenção de ser o azeite que faz melhor o encontro entre saberes, não apenas citando
como exóticos, mas reconhecendo seu valor enquanto composição de um mundo real ou mesmo
nos conecta como complementares para uma outra forma de leitura do cosmos. Boaventura nos
diz que:
A actual reorganização global da economia capitalista assenta, entre outras
coisas na produção contínua e persistente de uma diferença epistemológica, que não
reconhece a existência, em pé de igualdade de outros saberes, e que por isso se
constitui, de fato, em hierarquia epistemológica, geradora de marginalizações,
silenciamentos, exclusões ou liquidações de outros conhecimentos. Essa diferença
epistemológica inclui outras diferenças – ainda que não se esgote nelas. A luta contra
ela, sendo epistemológica, é também anti-capitalista, ante-colonialista e anti-sexista.
É uma luta cultural. A luta cosmopolita e pós-colonial aposta na reinvenção das
culturas para além da homogeneização imposta pela globalização hegemônica.
(SANTOS. 2006)

Com essa apresentação que versa sobre a Ecologia dos Saberes, não há que se esperar que
somente a ciência e a academia tragam os frutos de uma sociedade e vida melhores, ou mesmo
que essas, por se acharem em alta conta na sociedade, indiquem quais saberes estão certos ou
errados, ou ainda pior do que isso, digam quem tem o direito de falar ou quem deve ou não ser
ouvido. Faz-se ouvir aqui o eco da pergunta de Spivak: “O subalterno pode falar?” (SPIVAK.
2010) como um grunhido que começa tímido e apavorado pelas consequências deste
14

atrevimento, mas que logo se reveste de força da ancestralidade e de toda energia de seu
território para reivindicar seu lugar verdadeiro de anunciação.

3 METODOLOGIA

Levando em consideração que há uma necessidade de diferenciar Metodologia,


Epistemologia e Método faz-se importante citar que:

Discussões sobre método (técnicas para coleta de dados) e metodologia


(teoria e análise de como a pesquisa deve proceder) tem sido misturados entre si com
questões epistemológicas (questões sobre teorias adequadas do conhecimento ou
estratégia justificatória) em ambos os discursos tradicionais...” (HARDING, 1986,
apud MOUNTIAN, 2017)
Pelo fato de que este trabalho se utilizará da exposição como metodologia de
apresentação, mas também composta de revisão bibliográfica, seu método de composição está
baseado na arte plástica, muito embora exista também um aprisionamento acadêmico para que
esta terminologia seja aplicada a epistemologia dos povos subalternizados ao longo da história.
Mas, mesmo assim, para fins de compreensão, tentarei responder as seguintes questões: Como?
Com quê? Onde? Quanto? De forma separada, mas arrematando com o formato que as liga
entre si para fins de melhor compreensão.

3.1 COMO FORAM CONFECCIONADAS AS PEÇAS?

Foram selecionados três ideogramas Adinkra com suas possíveis correlações da cultura
Xukuru. Esses conceitos serão reunidos e darão origem a peças esculturais confeccionadas a
partir de madeira de demolição que passará pelo processo de talha e modelagem para dar como
resultado às 08 (oito) peças esculturais que serão expostas na oportunidade de apresentação do
trabalho.

Cada conjunto de Adinkra/Xukuru recebeu uma publicação poética, fruto do encontro


da literatura de cordel com o cosmopolitismo subalterno e a poesia ecoteológica que fez o
encontro dos conceitos para apresentar a desobediência esptemológica do Sul global.

3.2 COM QUAIS MATERIAIS AS MESMAS FORAM PRODUZIDAS?

Como já mencionado no tópico anterior, os materiais utilizados serão:

a Madeira oriunda de demolição ou descarte por diversos motivos como poda urbana;

b Plástico descartado do uso doméstico;


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3.3 ONDE OCORREU A PRODUÇÃO DAS MESMAS?

As peças foram produzidas no meu ateliê, na região central do Recife e pretendemos


executar uma exibição e apresentação do trabalho neste mesmo local, além do IFPE.

3.4 QUANDO, ONDE E DE QUE FORMA O RESULTADO SERÁ


APRESENTADO?

O resultado do trabalho será apresentado no formato de exposição, porém com toda


influência nordestina e afro-pindorâica. Além da exposição das peças esculpidas, quadros, e
pinturas, haverá declamação de poesia e apresentação dos detalhes conceituais das obras. O
prazo para que isso aconteça é no mês de Abril de 2022.

Quanto a natureza da pesquisa realizada, trata-se de uma pesquisa básica, onde o


objetivo foi gerar conhecimentos novos e úteis para o avanço da ciência sem aplicação prática
prevista. Envolve verdades e interesses pluriversais.

Quanto aos objetivos da pesquisa, esses se dão de forma exploratória e seu foco será
proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a torná-lo explícito.

Na abordagem do problema foi utilizada a modalidade qualitativa como objetivo de


produzir peças que dialoguem entre si e com o tema.

Quanto aos delineamentos da pesquisa, talvez nenhum dos formatos que


corriqueiramente se use para especificar tal delineamento possa ser aplicado, uma vez que trata-
se de uma exposição de esculturas, desenhos, pinturas e poesia baseada em campos distintos de
conhecimento.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como encaminhamento para esta sessão escrita do trabalho, entendo que o trabalho se
conclui com a materialização de sua exposição de peças, declamações e publicação das poesias
compostas. É nesse sentido que se dá a construção do conhecimento a partir da perspectivava
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do Sul Global. A materialidade se dá no encontro, na coletividade, na subjetividade das


compreensões diante da mensagem transmitida pela imagem socializada.
Para tanto, apresento o release composto pela descrição das peças a ser expostas na
oportunidade da defesa em conclusão ao Curso de Especialização em Educação Ambiental e
Cultural do IFPE, conforme se observa.

Release

ECOTEOLOGIA E RECONEXÃO
Josias Vieira – Pinturas e esculturas

Como trabalho de conclusão do curso de Especialização em Educação Ambiental e Cultural,


apresenta-se aqui a exposição ECOTEOLOGIA E RECONEXÃO, do artista plástico Josias
Vieira (Killino Vieira). Bacharel em Teologia, tem na Ecoteologia Decolonial o foco de seus
estudos e elaborações intelectuais e artísticas como uma só coisa. Poeta e músico, a
sensibilidade lhe atravessa e permite um cosmosentir e um sentipensar que o levam a
materializar, a partir de resíduos, texturas cores e superfícies diversas, mensagens em peças
inquietantes que convidam a uma reflexão de reconexão.

A Sociologia das Imagens, nascente na obra da intelectual Aimara Silvia Cusicanqui e


impulsiona o trabalho do artista a partir do multiverso cosmológico do Povo Xukuru do
Ororrubá, permeado pela filosofia Adinkra do povo africano Akan. “Para ser Decolonial, a
Ecoteologia precisa pensar a reconexão a partir da perspectiva da espiritualidade e a partir do
cosmosentir dos povos subalternizados pela teologia colonial”, diz o artista para indicar seu
lugar de fala, afroindígena, e a intenção clara de colaborar na descolonização da academia e da
igreja como espaços de produção e reprodução do conhecimento que foram construídos, ou
mesmo reestruturados historicamente na colonialidade. A igreja aqui mencionada com “i”
minúsculo, nomeia-se para questionar a estrutura institucional humana. Essa estrutura difere da
compreensão de uma Igreja com “I” maiúsculo que representa o corpo materializado e coletivo
do maior representando do evangelho, Jesus Cristo. Assim a Ecoteologia Decolonial discorda
fortemente das estruturas de poder construídas por aquela igreja unicamente opressora.
A exposição aqui apresentada se construirá a partir de oito (08) peças que, compostas pelos
mais diversos materiais descritos anteriormente e uma diversidade de técnicas, serão
introduzidas neste release.

Abro esse release com o que irá seguir cada peça, uma poesia a partir da literatura e poética do
Nordeste do Brasil. E como abertura uma poesia Ecoteológica Decolonikal sobre uma visão
escatológica e apocalíptica.

A besta fera do Apocalipse


Sangrando as tetas da Natureza

Diz o velho e sagrado livro


Que o mundo vai se acabar em destruição
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Que não vai dar nem pra pegar na mão


De alguém que esteja ou fique vivo
Nem se guardando dentro do vidro
Vai ser possível tal esperteza
A desgraça que cai sobre a beleza
De repente como fosse num eclipse
A besta fera do apocalipse
Sangrando as tetas da Natureza

Rios de sangue, morte e miséria


São narrados nas páginas da Bíblia
Dizendo do colapso na barriga
De quem não tiver informação prévia
Não vai dar pra medir a tragédia
De quem do minério fez riqueza
Não dá pra medir a tristeza
Brumadinho, Mariana e tu num visse?
A besta fera do apocalipse
Sangrando as tetas da Natureza

Essa Besta é um farrapo humano


Fala de um Deus que ele não conhece
Mesmo que lhe faça uma prece
Não sabe pra quem está rezando
Uma bolsa de fezes carregando
Pela facada que levou de esperteza
Pro deus dinheiro ele dá sua macheza
Não se esqueça que um dia eu lhe disse
Que a besta fera do apocalipse
Tá sangrando as tetas da Natureza

Enxofre, fogo e saraivada


Cai na cabeça da população
Colocam na senzala da prisão
Nossos pretos e pretas numa armada
Pra justificar a emboscada
Pela guerra às drogas, sutileza
Querem criminalizar a pobreza
Seja o cabeça ou o visse
É a besta fera do apocalipse
Sangrando as tetas da Natureza

O fogo continua caindo


E tá incendiando a floresta
O mundo encantado que nos resta
E é protegido por cada índio
Ancestralidade se esvaindo
Mataram um parente com frieza
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Guajajara tombou com firmeza


Eu chorei cada vez que eu disse
Que é a besta fera do apocalipse
Tá sangrando as tetas da Natureza

Pobre e preto tudo encurralado


Pra refazer a triste escravidão
Com desculpa de pôr em detenção
Por conta do conflito que foi travado
Contra as drogas aquele enviado
Do demônio é um acinte com certeza
Se percebe por sua avareza
Ser refugo da mão de um artífice
Que é a besta fera do apocalipse
Sangrando as tetas da Natureza

Crianças pretas morrem de bala


Os artistas morrem é de fome
É do prato que a comida some
Quando a velha não é aposentada
A terra pode ser renovada
Quando o apocalipse se achega
Mas a besta precisa é ser presa
Pra que se acabe com essa doidice
Aí se foi a besta do apocalipse
Que sangrava as tetas da Natureza.

AS PEÇAS:

- Oratório
Criada a partir da reutilização de restos da poda urbana, essa peça é composta por quatro itens
de troncos de árvores de espécies diversas, apontando, já de início, o sacrifício que a cidade
impõe a Natureza para que possa crescer. A Natureza precisa ser “retirada do caminho” para
que a urbanidade e seu complexo de progresso passe, desencantando o solo sagrado da presença
da deidade de quem o criou. O Oratório será destinado ao ornamento e suporte para imagens
do Cristianismo, que por sua vez, podem ser entendidas como a cristandade que chegou ao
território de Abya Yala, apoiando a invasão colonizadora que demonizou, e continua
demonizando, muitas espiritualidades. Em contrapartida, o Oratório traz estampados em si,
através da técnica do entalhe e pintura sobre madeira, os ideogramas Adinkra e o grafismo
Xukuru. Este, apontando uma direção de sentido para cima, aludindo o Reino em Pé e o Reino
Velho do povo Indígena já mencionado, e aquele passando pelo Criador que está antes e estará
depois de tudo, evocando a engenhosidade e a necessidade de buscar no passado para construir
o presente e o futuro. Ambos demarcando que continuam vivos como semente.
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Oração
Pai, Mãe que se revela na Natureza
Que criou tudo manifestando amor
Dê-nos licença pra cantar tua beleza
Com os pais e mães que você já levou
Criou cultura e arte pra onde meu olhar for

Peço licença entrar rima de flor


Que é muito curta, que muito pequena
Que desceu de tu, pai e mãe da cor
Peço nestes corações, entrada plena
Com espaço de amor sem metro nem trena

Das palavras tenho é muita pena


Pouco elas conseguem expressar
Pra que se tenha vida plena
É muito mais que somente relatar
Mas que encobrir é melhor pensar

Pra impedir sobre o que pensar


As palavras sozinhas não designam
Ao contrário elas encobrem
O que meus ancestrais já diziam
Pra minhas imagens digo: Digam!

- Pisar com Sutileza


Através da técnica da pintura sobre papel, aplicação sobre madeira também pintada, o artista
apresenta a prática das mulheres que utilizam as ervas para a cura, mas que isso se faz através
do que o artista, como Ecoteólogo, costuma chamar de coexistência harmônica na Criação.
Pisar com Sutileza, para as mulheres e para todo o Povo Xukuru, implica em caminhar em
respeito na mata sagrada, sabendo que ela cuida e promove a vida. A cura, o plantar e o comer
são partes da Agricultura Modo de Vida Xukuru, que reside no encantamento e na relação com
o Reino dos Encantados. O Pisar com Sutileza leva a humanidade e o restante de Criação para
um encontro que já é sonhado desde o princípio, a terra sem males.
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Coração de Pilão

Como batida de pilão, trago um coração em mim


Apressando os meus paços, procurando um pedaço de terra pro meu jardim
Terra não é somente chão onde eu posso plantar
Eu planto no coração a esperança de pilão de var café a se coar.

Numa mão trago a vontade, na outra a poesia


Só pra ter a vida eterna só pra ter a via em flor, só pra ter a luz do dia

No porão lá do meu peito tenho as malas da viagem


Que eu ainda não desfiz, deve ser porque eu quis água fresca e pastagem.
No meu cavalo tão ligeiro eu carrego um estandarte
E bem dourado num letreiro ando com um caixeiro plantando poesia e arte

- Ciência dos Invisíveis


Num misto de técnicas entre pintura e escultura, o artista propõe, através do uso de resíduos, a
técnica do entalhe e a colagem de recortes, a reflexão de que são a natureza e os povos da
floresta que oferecem os caminhos de cura. Esses caminhos se dão por uma relação íntima com
a Natureza, Mata Sagrada/Território, que são a Dia-fania do Grande Espírito que a tudo criou e
sustenta. A indústria farmacêutica transforma em mercadoria e aprisiona esse poder de cura em
cápsulas, e tenta criar formas de dominar o que, por natureza, é livre, solto. A peça propõe que,
em lugar da mercantilização, o processo de comunhão entre sujeitos na mesma Natureza precisa
caminhar através do diálogo entre saberes. Em vez disso a apropriação indevida desses saberes
acaba perpetuando o processo de colonização entre saberes. Sem conexão com a espiritualidade
acabam por folclorizar e demonizar a cultura dos que não são vistos ou são invisibilizados.
Quando se fala da ciência dos invisíveis não está se falando dos espíritos nessa ocasião, mas
sim dos sábios e sábias que, por não estarem dentro do espectro acadêmico, não são vistos.
Nesse ponto, a sociologia das imagens de Silvia Cucicanqui alia-se a sociologia das ausências
de Boaventura Sousa Santos para concluir que a sociologia das emergências do mesmo autor
fala de quão necessário é trazer à evidência de forma que esses mestres e mestras saiam da
invisibilidade e assim se possa denunciar a mercantilização do saber que lhes é próprio.
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O saber dos invisíveis

Tentam transformar em pobre


Quem nunca teve dinheiro
Mas não entendi direito
Porque vale tanto o cobre

Se para se ser nobre


O que precisa é o saber
Que vale mais é ser
Do que ter o que se cobre

Até que se sobre


Mais doença que cura
Sobra sabedoria pura
Em quem se chamou pobre

A academia esnobe
Não reconhece o saber
E faz desaparecer
Quem ofereça e não cobre

Talvez no final sobre


A cápsula e o cachete
Ninguém vê a manchete
Do sábio que morreu pobre

Mas é mesmo pobre


Quem se entope de dinheiro
E não sai do seu puleiro
Mas o conhecimento encobre

Com diploma que recobre


A tinta da parede
Mesmo que tenha sede
O que encontra é rima pobre
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Hoje se redescobre
O pensar popular
Da mata vem curar
Saber que se descobre

Talvez não tenha o que sobre


Quando a Natureza sumir
De tanto se poluir
A conta venha e cobre

As curas factíveis
Vêm de quem mais se cobra
É de largo o que sobra
O saber dos invisíveis

- O Mestre do Membí entre Sancofa e Ananse Ntontan


O Mestre do Membi é uma figura muito importante nas manifestações da espiritualidade
Xukuru. Desde a pajelança, celebrações e o Toré, é uma figura que conduz o ritmo da toada
com sua flauta aguda e doce. A técnica para tocar o Membi é recebida do mais velho para o
mais jovem, de forma que, na antiguidade, apenas um mestre do Membi existia até que outro o
substituísse. Na contemporaneidade já existe uma quantidade maior de jovens despertando para
o talento da toada com coluna de ar. Como trata-se de uma técnica que se herda dos mais velhos,
e com arte se aprimora, a peça a ser exposta trata-se de um tapete em algodão cru, pintado à
mão, que, numa forma de indicar direção de leitura, usa o grafismo Xucuru para ligar o Adinkra
Sankofa, passando pelo Mestre do Membi, e chegando ao Adinkra Ananse Ntontan, como uma
forma de apontar que a ancestralidade, através de uma espiritualidade de reconexão, leva a arte
e a engenhosidade para construir o presente e um futuro de Coexistência Harmônica na Criação.

- Mestre do Membi
É uma peça talhada em um tronco de jaqueira que resultou da poda urbana. Talhar o Mestre do
Membi é mostrar o tronco velho como este ícone de sabedoria e leitura da natureza, mas,
sobretudo, da ciência desses sábios tanto no celebrar quanto no conduzir o povo. O Mestre do
membi é único na cultura Xukuru, sendo substituído pelo próximo que dará continuidade ao
seu legado. Fala de interação completa com a natureza e celebração ao ser criador a partir e em
coexistência harmônica com o que foi criado.
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-Mundo “Desinvertido” (Alusão ao Mundo al Revés de Waman Puma de Ayala)


Nessa gravura, podemos identificar a representação Indígena e africana em proporção maior e
o europeu, invasor, representado pelo navegante e pela religião, reverenciando a grandeza
desses povos.
Com a experiência que nossos povos tiveram com a barganha e tentativa de compra por parte
dos invasores, essa imagem parece contraditória e até confusa, chegando ao ponto de parecer
falsa a atitude dos invasores. Mas o que se quer aqui é anunciar um Mundo Desinvertido. O
“Mundo al Revés” (Mundo Invertido) é uma imagem de Waman Puma de Ayala que apresenta
a inversão de valores que foi a invasão europeia que transformou reis e rainhas em serviçais
para os invasores, assim, profeticamente, essa imagem oferecida denuncia e convoca a
desinversão e “desinvenção” do mundo colonizador opressor.
A técnica usada foi a pintura com tinta sobre madeira oriunda de poda usando a perspectiva
para apresentar os povos contra colonizadores como maiores em sua sabedoria, riqueza e amor
coexistente na Criação.

- Comonucleação
A talhada no tronco de aroeira, resíduo de poda, retrata uma semente de feijão que germina e
dá luz ao mundo. Essa talha traz a cultura da cosmonucleação Xukuru que segreda toda a vida
dentro das sementes. Sementes crioulas são guardiãs da vida porque não recebem a intervenção
da morte que a transgenia lhes imputa.
Nas palavras de Iran Ordônio, o Iran Xukuru, bacural do Terreiro da Boa Vista, há vezes em
que o indígena não sabe ler e nem escrever seu próprio nome, mas sabe ler a Natureza, de forma
que entende quando plantar, quando colher, ou se haverá chuva ou estiagem naquele ano. A
essa prática se dá o nome de Lonjy-Abaré. O termo que define o encontro vem de dois
vocábulos Xukuru: Lonjy que significa "observar com atenção", e abaré que significa "ficar em
silêncio ou concentrado". Sendo a prática de observar os reinados e interpretação do tempo, a
essência de Deus no que foi criado. Isso pode ser entendido também no saber de mestres e
mestras quando lidam com a semente que, não sendo modificada e nem tendo recebido nenhum
tipo de agrotóxico, segredam a vida e salvam a Natureza da qual o ser humano faz parte. A isso
se dá o nome de Cosmo nucleação, entendendo que o cosmos tem as sementes como núcleo de
onde a vida brota.
A técnica usada foi o entalhe empregado em um tronco de aroeira oriundo da poda urbana.
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Cosmonucleação
Na terra cai a semente
Da árvore ou da mão
Ela fecunda o chão
Que estava dormente

De repente se sente
Um tremor uma luz
É o milho do cuscuz
Que brotou de plenamente

O agro que só mente


Não é pop, é morte
Não alimenta, entope
As veias e a mente

Do incauto vivente
Vulnerável que consome
Nem vê a saúde some
Pouco mais está doente

Aqui hoje temente


À força da natureza
Que é dura com firmeza
Quando sofre com a gente

Do solo antes dormente


Subiu o tronco que hoje é velho
Que guarda todo mistério
Da sabedoria da semente

Dos encantos pros viventes


De muitos esquecidos
Subalternos excluídos
Nossos mestres são potentes

Potentes na destreza
De alimentar e curar
Somente o que eu plantar
Pode superar a pobreza
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Pobreza é um título
Posto pra te nivelar
Condição de torturar
O que não pode ser digno

Digno pão que eu produzo


Da mandioca que plantei
O bejú que eu assei
Capital não faz uso

Uso mesmo o saber


Saber dos ancestrais
Pra cultivar mais
Comida pra comer

Comer o que traz vida


O tremor que eu senti
É que a terra quis parir
De semente pra comida

Comida vai brotar


E o corpo vai manter
Sustentar o viver
Do agricultor familiar

Agricultura Familiar
Sem indústria de morte
Ecologia dá suporte
No ecossistema agricultar.
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- Reino em Pé (Jurema)
Confeccionada numa janela antiga, recebeu. É uma pintura com tinta acrílica e caneta posta
para representar a árvore sagrada do povo Xukuru, a Jurema, indicando o que está fora da terra
só se mantém de pé porque tem suas raízes fortes e que são tão importantes quanto a copa. O
Reino em Pé fala da importância de manter a mata viva para que o povo se mantenha vivo e
saudável. Segundo a fala de Iran Xukuru, o reino em pé são “encantos que moram nas árvores”
(ORDONIO, p. 5)
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REFERÊNCIAS

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Viçosa MG 2014)
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido / Paulo Freira – 59ª ed ver e atual. – Rio de Janeiro:
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MURAD, Afonso. O Núcleo da Ecoteologia e a Unidade da Experiência Salvífica. Rev.
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ORDONIO, Iran Neves ; LIMA, Camila Silva de, PEREIRA, André Luís Gonçalves;
JACQUES, Rafaele Nunes ; ALMEIDA, Edgar Oliveira de , PEREIRA, Ângela Neves ; LIMA,
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RIVERA Cusicanqui, Silvia Ch’ixinakax utxiwa : una reflexión sobre prácticas y discursos
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SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: Modos e Significações. 2 ed. Brasilia:
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política /
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