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Antropologia da Arte
2ª Edição
2011
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(SEAD/UECE). Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer
meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, dos autores.
EXPEDIENTE
Design instrucional
Antonio Germano Magalhães Junior
Igor Lima Rodrigues
Pedro Luiz Furquim Jeangros
Projeto gráfico
Rafael Straus Timbó Vasconcelos
Marcos Paulo Rodrigues Nobre
Coordenador Editorial
Rafael Straus Timbó Vasconcelos
Diagramação
Marcus Lafaiete da Silva Melo
Ilustração
Marcos Paulo Rodrigues Nobre
Revisor
Pedro Henrique Lima Praxedes
Capa
Emilson Pamplona Rodrigues de Castro
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Dilma Vana Rousseff
MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Fernando Haddad
VICE-REITOR
Antônio de Oliveira Gomes Neto
PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO
Josefa Lineuda da Costa Murta
Unidade 01
Introdução............................................................................................................................ 9
Capítulo 1 - Para uma Crítica da Modernidade .................................................................. 11
Capítulo 2 - Premissas para um Novo Projeto Civilizatório ................................................ 15
Capítulo 3 - O Artista Como Xamã...................................................................................... 19
Unidade 02
Sobre a Origem do Homem................................................................................................... 27
Capítulo 1 - A Tese Modernista ......................................................................................... 29
Capítulo 2 - As Dificuldades em Provar a Superioridade do Homem Moderno ................. 31
Capítulo 3 - Novas Descobertas da Ciência ....................................................................... 36
Unidade 03
As Origens da Arte ................................................................................................................ 45
Capítulo 1 - Reparos e Advertências ................................................................................. 47
Capitulo 2 - O Enigma das Catedrais de Pedra ................................................................... 49
Unidade 04
Arte, Magia e Máscara.......................................................................................................... 69
Capítulo 1 - Pensamento Selvagem e Magia ...................................................................... 71
Capítulo 2 - O Mana ........................................................................................................... 75
Capítulo 3 - O Mágico e sua Peformance ........................................................................... 78
Capítulo 4 - Máscaras Rituais ............................................................................................. 82
Unidade 05
A Arte Tradicional Popular .................................................................................................... 95
Capítulo 1 - O Belo e o Útil ................................................................................................ 97
Capítulo 2 - Arte como Ofício ............................................................................................. 102
Capítulo 3 - Mestres do Canto e da Palavra ...................................................................... 105
Capítulo 4 - A arte de Narrar ............................................................................................. 109
A Arte do Gato Maravilhoso .......................................................................................................... 110
Capítulo 5 - O Imaginário Popular e seus Disfarces .......................................................... 118
O Autor
Unidade
1
Introdução
Objetivos:
• Buscar assentar as bases para um debate sobre a Antropologia da Arte, a partir de
uma crítica da modernidade e da tentativa de estabelecer algumas premissas para
um novo projeto civilizatório que incorpore um olhar diferente sobre a arte.
Capítulo 1
Para uma Crítica da Modernidade
ANTROPOLOGIA DA ARTE 11
concebiam (e concebem) a natureza, nela incluindo o ser humano, como
emanação de Deus (que por sua vez se multiplicam em inúmeros deuses
particulares) , essas religiões colocam Deus fora e acima da natureza,
numa dimensão apartada desta. Já a modernidade, com seu materialismo
positivista, substituindo Deus pelos homens, desloca a espécie humana
da natureza, a colocando como senhora desta. Se a primeira operação, de
retirada de Deus da natureza, a dessacraliza, a segunda abre caminho
para sua destruição.
Nas religiões monoteístas, o ser humano separa-se de Deus pelo peca-
do, ou seja, opera-se uma queda (não apenas do homem como do restante
dos seres) na qual o paraíso terrestre transforma-se num “vale de lágri-
Ver série de DVDs: His- mas”. Com o “pecado original”, tanto o homem quanto a natureza perdem
tória das Religiões, episó-
seu caráter sagrado, apartando-se de Deus. Aparece uma natureza decaí-
dios sobre o cristianismo,
o judaísmo e o islamismo. da, sendo o homem redimido pela purgação do pecado e pelo perdão divino.
Pegar referências nas su- Mas como a natureza permanece fora de Deus, só com a morte surge a
gestões de DVDs. possibilidade do homem se reintegrar ao sagrado.
Ao eleger a racionalidade como atributo que coloca os humanos acima
dos demais seres, deles apartado por uma qualidade superior, a modernida-
de substitui Deus pelo Homem. Despreza o que nos homens seria comum a
outros seres e erige a razão como medida de superioridade e de afastamen-
to destes da natureza. Ainda mais, separa o cérebro do restante do corpo
humano e defi ne o letramento como instância da grande cultura. No docu-
mentário cinematográfi co de Victor Lopes, Vidas em Português, o grande
escritor José Saramago, criticando o empobrecimento da língua falada e es-
crita, afi rma estar havendo uma involução. Explica que estamos perdendo,
com a pobreza vocabular crescente, a complexidade da expressão humana
dantes alcançada, inclusive para falar de sentimentos. Brincou dizendo que
desse modo vamos voltar aos tempos primitivos, declarando nosso amor por
alguém através de um grunhido, como faziam os homens então.
Parece-me que aí está um bom exemplo do humanismo moderno, que
vê na complexifi cação da língua o índice por excelência do desenvolvimento
humano. Ora, o equívoco é facilmente demonstrado. Em primeiro lugar,
os homens ditos primitivos não expressavam seus sentimentos apenas por
grunhidos, porém com o corpo todo, de modo talvez tão complexo quanto
nós. Em segundo lugar, não se pode ligar complexidade com evolução obri-
gatoriamente. Muitas sociedades altamente complexas, como a egípcia, por
exemplo, eram marcadas por estruturas bem mais autoritárias que as da
maioria das sociedades ditas primitivas. E em terceiro lugar, se na moder-
nidade ocidental houve um hiperdesenvolvimento da racionalidade nas lín-
guas humanas, isto se deu em detrimento dos outros meios de expressão e
comunicação. O homem moderno, hipervalorizando o pensamento cerebral,
atrofi ou os outros recursos corporais de percepção e comunicação. Ou seja,
se ganhou complexidade no letramento e no vocabulário lingüístico, perdeu
na expressividade do corpo e na sutileza da percepção sensorial. O que se
vê agora, com o crescimento dos multimeios de comunicação, é a recupe-
ração de muitos recursos da expressividade humana, embora em prejuízo
da riqueza vocabular, não poucas vezes. Talvez o que se constate é a busca
do reequilíbrio perdido, com a modernidade, entre os diferentes recursos
corporais no campo da percepção e da comunicação.
Ver livro: As Conseqüên- Como decorrência desse modo de pensar, a modernidade desenvolve
cias da Modernidade, de
Anthony Giddens. Pegar um projeto civilizatório antropocêntrico, convencido de que a natureza exis-
referências nas sugestões te para servir ao homem. Outra não é a substância do humanismo moderno
de leitura. e da racionalidade positivista da ciência ocidental, ideologia que norteou
12 ANTROPOLOGIA DA ARTE
todo o projeto civilizatório da modernidade. Pelo menos, desde o fi m do renas-
cimento até os dias atuais, esta tem sido a “religião” hegemônica no Ocidente.
Tanto em sua forma capitalista quanto em sua forma dita socialista, a
civilização moderna assenta seu projeto na economia e na política, pilares
a serviço dos quais se estabelece seu projeto de desenvolvimento humano e
cultural. Submetida a lógicas econômicas, a espiritualidade se mercantili-
za, serve ao mundo do trabalho e da produção. Como outras instâncias da
cultura, a arte se desenvolve atrelada à economia, num campo de disputas
intestinas, movido a interesses monetários e políticos. Em nome de um co-
nhecimento dito científi co, experimental e empírico, o saber popular é desa- O Fórum Sociail Mundial
(FSM) é uma mobilização
creditado, condena-se a magia e o mito, elegendo a objetividade da ciência
“altermundialista”, orga-
como critério único da verdade. As grandes religiões se institucionalizam nizada por movimentos
em hierarquias rígidas e autoritárias, adequando-se às conveniências do sociais de diferentes con-
capital, enquanto a religiosidade do povo é tratada como fonte de ignorância tinentes, com o objetivo
de propor formas civiliza-
e alienação. A lógica pragmática considera supérfl ua qualquer possibilida- tórias alternativas para
de de transcendência e o mundo se desencanta. Concebe-se a história de uma transformação social
maneira evolucionista, como uma sucessão de etapas, hierarquizadas no no Planeta. Tem como
dístico: Um outro mundo
tempo, onde o passado é o atraso e o futuro o progresso, indo do selvagem é possível. Proposto como
ao civilizado, da natureza à cultura, do primitivo ao moderno, do animal um contraponto ao Fó-
ao humano, da magia à ciência etc., e em que cada época representa uma rum Econômico Mundial
de Davos, na Suiça, em
superação melhorada da anterior. data coincidente (de janei-
Muitos sociólogos e cientistas políticos falam de uma pós-moderni- ro), atualmente realiza-se
em datas diferentes, uma
dade, que na verdade é um prolongamento e exacerbação da modernidade, vez por ano. Trata-se de
caracterizada por uma globalização a partir do mercado, pelo fi m da alter- um espaço aberto e de-
nativa socialista a um capitalismo neoliberal, pela ausência de projetos po- mocrático, alternativo à
globalização capitalista
líticos diferenciados e pela penetração do capital em espaços ainda intoca-
e ao “pensamento único
dos da atividade cultural. O resultado dessa globalização, midiatizada pelo neo-liberal”, que reúne
mercado com a utilização de uma desenvolvida tecnologia digital, além de dezenas de milhares de
facilitar a formação de grandes redes internacionais de criminalidade (como representantes dos mais
diferentes movimentos
a pedofi lia e o tráfi co de drogas), foi um crescente processo de homogenei- sociais, assim como de
zação cultural, apagando diferenças na conformação de uma indústria de grandes personalidades
comunicação de massas em âmbito mundial. e líderanças planetárias.
Com uma participação em
Como reação a esse estado de coisas, se propõe, em primeira instância, crescimento (de 10.000
uma atitude que mais parece de adaptação. Neste sentido, fala-se em inves- pessoas, na primeira, a
120.000, de 150 países,
timentos na criatividade, em novos avanços na substituição do homem pela na última edição), os fó-
máquina, em tecnologias que dispensam uma mão de obra numerosa, na runs tiveram início em
priorização de projetos voltados à indústria cultural e ao turismo, na econo- 2001. Os três primeiros
foram em Porto Alegre
mia da cultura, na arte direcionada para projetos sociais, que combatam a (Rio Grande do Sul), o
violência e desviem os jovens das drogas e da criminalidade. Seguindo este quarto em Bombaim (Ín-
parâmetro, os projetos culturais e artísticos passam a ser avaliados por um dia), o quinto em Porto
Alegre, o sexto em três ci-
viés econômico e social, que inclui a educação para o trabalho, o combate a
dades: Caracas (Venezue-
mazelas sociais (como o tráfego de drogas, a violência marginal etc.) e a ge- la), Karachi (Paquistão)
ração de emprego e renda. O resultado é que conseguem retirar os jovens do e Bamako(Mali), o sexto
ócio, porém, em contrapartida, quase sempre, também do sono e do sonho. em Nairóbi (África), o sé-
timo foi descentralizado e
Para outra corrente de pensamento, que inclui desde físicos, ecologis- o nono em Belém do Pará.
tas, fi lósofos, teólogos, artistas, até movimentos sociais (como os Fóruns So- Entre outras, são discuti-
dos, nas edições do FSM,
ciais Mundiais, o Green Peace, os movimentos ecológicos, a Via Campesina, temas como sustentabi-
o MST etc.), estes fenômenos políticos e econômicos, assim como estas ino- lidade ambiental, aids,
vações no capitalismo, longe de apontar para uma nova era civilizatória, si- paz e confl ito, juventude,
situação das mulheres,
naliza o estertor da modernidade, abalada por crises econômico-fi nanceiras migrações e perseguições,
cada vez mais agudas e pela perspectiva de grandes catástrofes ecológicas. dívida externa, os sem-
-terras e a privatização de
Para esses militantes-pensadores trata-se de inaugurar um novo pro-
bens comuns etc.
jeto civilizatório para a humanidade, que faça a crítica, pelo menos, dos
ANTROPOLOGIA DA ARTE 13
últimos quatro séculos de modernidade. As mudanças exigidas no compor-
tamento humano são radicais e implicam retomadas de caminhos há muito
abandonados pelo Ocidente. O eixo dessa mudança de paradigmas inclui,
pelo menos, em primeira instância, cinco grandes questões, ou seja: o re-
encantamento do mundo, a recolocação dos seres humanos na natureza, a
quebra de barreiras entre natureza, cultura e sociedade, a relativização do
saber científi co e a recuperação do saber tradicional, e o rompimento com
toda e qualquer idéia evolucionista valorativa. Como conseqüência, exige
um projeto que seja planetário, isto é, parta da idéia da Terra como um
grande ser vivo, que precisa ser preservado e renovado.
14 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 2
Premissas para um Novo Projeto Civilizatório
ANTROPOLOGIA DA ARTE 15
deste livro. Uma primeira grande percepção é que no Cosmos tudo é vivo
e que a diferenciação entre seres animados e inanimados é impertinente.
Uma segunda é que no Planeta, concebido como um imenso ser vivo, tudo
está ligado, formando um único ecossistema, em que cada ser tem parte na
preservação e renovação do todo.
Sendo assim, advoga-se para os seres humanos, uma cosmovisão, que
os traga de volta à natureza, para que contribuam com sua recuperação e
enriquecimento, exercendo a função que lhes cabe, enquanto consciência
do Planeta. Ao mesmo tempo, que reponha Deus na Terra, reencantando
o mundo, e desautorizando qualquer pretensão humana de valer-se da na-
tureza a seu bel prazer. Esta virada ontológica não apenas descredencia a
pretensão de que a natureza existe para servir aos homens, como a ressacra-
liza, exigindo em relação a ela o respeito que se exige para com os deuses.
Entendendo a espécie humana como parte da natureza (e não desta-
cada dela, como o fez a racionalidade moderna), o resultado de seu fazer, em
conseqüência, também é natureza, ou mais precisamente, natureza produ-
zida por homens e mulheres. Portanto, um novo projeto civilizatório só terá
conseqüências benéfi cas ao Planeta se conceber a cultura como um prolon-
gamento da natureza ou, melhor dizendo, uma parte desta.
Seguindo a mesma linha de pensamento, as sociedades humanas,
assim como as sociedades animais (sendo a humana também uma socie-
dade animal), são como grandes ecossistemas. Tanto quanto as abelhas ou
as formigas, os lagos ou as bacias fl uviais, as sociedades humanas podem
jogar um papel na renovação ou destruição do Planeta, papel diferenciado
na qualidade, pois tendo a capacidade de mediar sua relação com a Terra,
os seres humanos têm uma maior responsabilidade na sua preservação.
Surpreendente é que muitas noções só alcançadas agora pelas ciên-
cias ocidentais, como algumas acima mencionadas, já eram corriqueiras
Acupuntura é um ramo
para muitas civilizações ditas primitivas, em várias épocas históricas e es-
da Medicina tradicional paços geográfi cos. Do mesmo modo, descobertas recentes da farmacologia,
chinesa, que consiste da botânica e da medicina, para citar apenas alguns campos da ciência,
num método terapêutico
reafi rmam conhecimentos há muito dominados pelo saber popular.
de aplicações de agulhas
ou outros tipos de estí- Sabe-se que, mesmo na Europa Ocidental, pelo menos até o Renas-
mulo, em determinados cimento, magia e ciência eram saberes compartilhados por sábios e po-
pontos do corpo.Além
de agulhas, são também pulares. Copérnico e Galileu, por exemplo, eram astrônomos e astrólogos,
utilizados o aqueximento química e alquimia dialogavam enquanto saberes válidos, ou seja, magia
promoido por moxa, um e ciência, longe de serem excludentes, eram consideradas conhecimentos
bastão de artemísia em
brasa, que é aproxima- complementares. Na grande maioria das civilizações, o mesmo diálogo
do da pele para aquecer acontecia e até hoje acontece no Oriente, onde a medicina científi ca convive
o ponto de acupuntura. com saberes de fundamentação mágica, como a acupuntura, a iridologia, o
Shiatsu é um processo
de harmonização do cor-
shiatsu e os estudos ungueais. Enquanto isto, no Ocidente, práticas como a
po físico e emocional que, homeopatia, largamente difundidas, que utilizam procedimentos fundados
por meio de massagens, na magia simpática, só recentemente passaram a ser reconhecidas como
ativa linhas de energia
e desbloqueia tensões,
procedimentos válidos pelos cursos de medicina. Enquanto no Ocidente a
corporais promovendo o medicina caminhava para a fragmentação do corpo humano, para a espe-
seu equilíbrio e ativando cialização profi ssional, e para o desenvolvimento de procedimentos cirúr-
seu potencial de energia.
gicos, no Oriente se insistia em tratar o corpo humano de modo integral,
Baseia-se numa visão psi-
cossomática das funções e procurando conhecê-lo a partir de sinais exteriores em seu estado vivo.
sistemas corporais, votan- Com o avanço do capitalismo industrial na Europa e das ciências di-
do-se para a compreensão
e unifi cação do indivíduo, tas exatas, como a física mecânica e a matemática, o pensamento racional
integrando sua psique ao ganhou precedência sobre outras lógicas e formas de apreensão do mundo.
seu corpo e suas emoções O fazer torna-se mais importante que o saber e o positivismo cartesiano
à sua estrutura física.
mostra-se bem mais apropriado, que todos os saberes tradicionais, ao de-
16 ANTROPOLOGIA DA ARTE
senvolvimento tecnológico e produtivo. O pragmatismo ganha terreno inclu-
sive entre as religiões, sendo inegável a influência do pensamento racional
na reforma protestante e na contra-reforma católica. Os saberes tradicio-
nais são estigmatizados como heréticos e supersticiosos. Bruxas e magos
são queimados. Quando tolerados, os saberes tradicionais são estigmati-
zados como inferiores e abandonados às camadas pobres da população. A
ciência passa a ser a fonte única da verdade e a comprovação empírica a
instância de legitimação da mesma.
Alguns séculos depois, paradoxalmente, descobertas científicas e
avanços tecnológicos, realizados no próprio Ocidente, alargam a consciência
humana da percepção de seus limites, ou seja, da reduzida capacidade de
perceber a realidade em seus diversos aspectos e dimensões, bem como da
impossibilidade do pensamento racional (por si só) explicar o sentido da vida.
Nessa direção contribuíram enormemente não apenas revelações da física
quântica, como a cibernética e a tecnologia desenvolvida através de com-
putadores, que ao lado de uma linguagem digital (absolutamente simbólica
e convencional), desenvolveu uma linguagem analógica, mais próxima da
comunicação artística e do pensamento mágico (pela utilização de ícones).
Tendo como referência o conjunto de percepções dos seres que com-
põem a paisagem natural (sejam minerais, vegetais ou animais), sabe-se
hoje que os humanos só conseguem perceber cerca de um por cento de seu
entorno, chegando a três por cento se contarmos com o auxílio de nossas
extensões tecnológicas. Desse modo, a pretensão não apenas de encontrar
verdades objetivas fica comprometida, como até mesmo de uma suposta su-
premacia dos humanos sobre os demais seres.
A idéia de uma evolução do homem e das sociedades por ele criadas,
mesmo que de modo fragmentário, cíclico ou descontínuo, em direção ao
progresso e ao aperfeiçoamento, perde consistência. O mesmo acontece com
a tese utópica das religiões monoteístas e das ideologias materialistas de um
paraíso no final dos tempos. Ganha terreno a percepção de que não há uma
ligação obrigatória entre desenvolvimento tecnológico, crescimento econô-
mico e bem estar social. As relações entre tendências humanas opostas,
como competição e cooperação, violência e pacifismo, egoísmo e generosida-
de, individualismo e coletivismo, já foram mais equilibradas em sociedades
distribuídas desigualmente por diferentes épocas e espaços. Nada nos diz
que este equilíbrio, quando obtido, não será sempre precário e temporário.
Nas religiões, em que não se configurou a queda do homem pelo
pecado e sua retirada da natureza, a utopia, o paraíso e a eternidade, a
transcendência, enfim, não são alcançadas após a morte, mas em momen-
tos especiais durante a vida, em lampejos de encantamento, onde a essên-
cia divina nos homens se manifesta. Momentos em que os deuses tomam
a forma humana, incorporados a partir de máscaras, que definem novas
dimensões do ser. Nessas culturas, a eternidade nos é contemporânea,
assim como o paraíso utópico (seja celeste ou terrestre), já que realidades
reveladas no encontro do grande espírito, que faz dos seres humanos parte
de Deus e da natureza.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 17
1. Qual a diferença entre religião, fi losofi a e ciência?
2. Em que princípios estaria assentado um novo projeto civilizatório para
a humanidade?
3. Por que se diz que ao ser humano é impossível uma apreensão objetiva
da realidade?
18 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 3
O Artista Como Xamã
ANTROPOLOGIA DA ARTE 19
O estado de nirvana, no budismo, é obtido por uma busca de alhea-
mento não só do entorno (em sua dimensão cotidiana), como de si mesmo.
No taoísmo (particularmente) se distingue três tipos de estágios no desen-
volvimento humano: o dos homens e mulheres prisioneiros de seus egos, em
que o poder e a riqueza, o rancor e a ambição (entre outras tendências des-
trutivas) dominam seus corpos; o dos homens e mulheres que conseguiram
controlar suas paixões egoístas, desenvolvendo sentimentos altruístas, de
generosidade, solidariedade e compaixão, obtendo equilíbrio e serenidade; e
o terceiro estágio, o dos budas, daqueles que, ultrapassando o bem e o mal,
se estabelecem na transcendência. Diz-se que muitos monges budistas já
poderiam dar este terceiro passo, mas optam por ficarem no segundo, com
o fim de ajudar na evolução dos que lhes cercam.
Usando esta referência, o artista seria um ser híbrido, com um pé na
transcendência e outro no cotidiano, ou melhor, com os sentidos nas pai-
xões, o cérebro na razão, mas com todo o corpo no transe. Ele pode ter um
acervo menor ou maior de informações, gerando uma arte mais ou menos
complexa; ele pode ter mais ou menos recursos técnicos (com formação aca-
dêmica ou não), porém lhe é indispensável a qualidade do insight e a frequ-
ência da inspiração. Talvez um corpo formado por vivências múltiplas, que
podem ou não incluir leituras, sonhe um delírio mais informado. Também
é possível que ao processo criativo seja necessário certo controle racional,
entretanto cabe ao artista ultrapassar a racionalidade, trabalhar com o ini-
maginável, muito mais do que com o imaginável.
No ano de 1996, o Sepultura, grupo mineiro de thrash metal, com pro-
jeção internacional, desenvolveu um diálogo musical com os índios xavante
do leste do Mato Grosso, que resultou na gravação da faixa Itsári, do seu
álbum Roots, lançado então. Durante as trocas culturais, chamou a atenção
dos índios não apenas a música barulhenta de Igor Cavalera e seus parcei-
ros, mas o modo estudado e minucioso como eles trabalhavam cada número.
Sereburã Xavante, o autor da canção gravada no álbum do Sepultu-
ra, explicou como os xavantes criam suas músicas. “– A gente se prepara
para ter o sonho desejado, colocando um tipo de pauzinho no furo da ore-
lha. Cada pauzinho puxa determinado tipo de sonho.”, disse Suptó Xavante
traduzindo as palavras de Sereburã ditas na língua lá deles. E completou:
“- A gente se concentra no sonho para poder revelar a música que vem nele.
Essa agora foi o canto da madrugada, veio do pauzinho que ele está usando.
Os adultos cantam em cada casa quando está amanhecendo.”
Suptó Xavante conta que a canção Itsári, gravada no álbum do Se-
pultura, foi escolhida pelo grupo mineiro entre os muitos cantos rituais
mostrados pelos xavantes, quando em visita à sua aldeia no Mato Grosso.
Itsári é uma canção de cura, para recuperar aqueles que estão à beira da
morte. “- No show, nós cantamos para curar a platéia”, disse Suptó. (Este di-
álogo foi retirado da série de DVDs: Música do Brasil – Disco 3, Música para
Índios, Bloco: Sepultura e Xavantes, Roteiro e Pesquisa: Hermano Vianna,
Direção: Belisário Franca. Produção: Giros Produções e Produções Abril;
Realização: Abril Entretenimento.)
Destaque
Sepultura: Banda de thrash metal formada em 1984, em Belo Hori-
zonte e mais popular nos Estados Unidos do que no Brasil, canta apenas em
inglês. O primeiro disco, “Bestial Devastation”, dividido com a também ban-
da mineira Overdose, foi lançado em 1985 por um selo independente, segui-
do por “Morbid Visions” no ano seguinte. Com a entrada de Andreas Kisser
na guitarra gravaram “Schizophrenia”, que os projetou internacionalmente.
20 ANTROPOLOGIA DA ARTE
No ano seguinte assinaram contrato com a gravadora americana Roadrun-
ner e passaram a se dedicar a conquistar o mercado externo. “Beneath the Re-
mains”, lançado em 1989, foi aclamado pela crítica especializada e fez com que a
banda se tornasse mais conhecida no Brasil e no resto do mundo, fora dos EUA.
Em 1996 vieram ao Brasil pesquisar e gravar sons e ritmos das tribos indí-
genas para lançar “Roots”. No mesmo ano, a saída do vocalista e líder Max
Cavalera causou contratempos, pois a banda decidiu não se desfazer e teve
que procurar um vocalista substituto, que acabou sendo Derrick Green, ofi-
cialmente parte da banda desde junho de 1998. A formação do grupo ficou
assim: Derrick Green, substituto de Max Cavalera, voz e guitarra; Igor Cava-
lera, bateria; Paulo Jr., baixo; Andreas Kisser, substituto de Jairo T, guitarra.
“Against”, lançado em 1998, foi o primeiro CD do grupo depois da saí-
da do antigo vocalista. O álbum traz algumas experimentações interes-
santes, como a percussão do grupo japonês Kodo. Contudo, a obra re-
flete ainda um período conturbado para a banda. Talvez por isso, não
tenha sido muito bem aceito pelos fãs e pela crítica especializada.
Em 2002, sai o duplo ao vivo “Under a Pale Grey Sky”. O disco é um re-
gistro de um dos shows da turnê do álbum “Roots”, gravado em 1996,
ainda com Max Cavalera nos vocais. Somente no seguinte, chegava às lo-
jas o inédito “Roorback”. Considerado melhor que os anteriores “Against”
e “Nation”, o disco deixou claro a intenção da banda de voltar às raízes.
Ainda em 2003, o Sepultura participou do festival Kaiser Mu-
sic e teve a honra de dividir o palco com um dos grandes no-
mes da história do Rock Mundial, o Deep Purple. Em 2004, o gru-
po volta a fazer turnês internacionais, ao lado da banda Motörhead.
O último trabalho do Sepultura, “Live In São Paulo” foi lançado em CD e
DVD, em 2005. Trata-se do primeiro show gravado desde o vídeo Under
Siege - Live in Barcelona, de 1992. Músicas como “Troops of Doom”, “Sepul-
nation”, “Territory”, “Choke”, “Arise” e “Escape to the Void” são alguns dos
destaques deste álbum duplo, que contou com várias participações espe-
ciais, incluindo Zé do Caixão, João Gordo e B-Negão.
Alguns artistas e teóricos falam do transe criador como um movimen-
to em direção aos deuses, outros falam de um movimento dos deuses em
direção ao artista. Muitos ainda relacionam estes dois movimentos como
complementares. Talvez seja mais apropriado se referir a um só movimen-
to, o do artista cedendo espaço para os deuses que carrega dentro de si,
fazendo desencantar os arquétipos (na forma de figuras e seres em geral)
nele ocultos em estados muitas vezes incipientes. Cabe, então, ao artista a
“iluminação”, seguida por sua dilatação, por seu preenchimento com ges-
tos, traços, palavras e outras elaborações estéticas, construindo e dando
acabamento consciente ao que foi esboçado intuitivamente.
Em “O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (Ver: Mircea
Eliade, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, São Paulo; Martins
Fontes, 2002. p. 16), Mircea Eliade descreve o desenvolvimento dos xamãs,
como a aquisição de um acervo de técnicas apreendidas e de experiências
vivenciais, que são aproveitadas na execução dos ritos, eles mesmos uma
sequência de procedimentos rigorosamente ordenados e prescritos. (7) Re-
cursos, como as máscaras, fazem partir o processo “mediúnico” do exterior,
ou seja, partem da máscara e evoluem no sentido da contaminação comple-
ta do corpo. Iniciam-se por processos técnicos e conscientes e caminham no
sentido da iluminação. Já outros, iniciam com a suspensão de qualquer ra-
cionalidade na busca do transe e, a partir dele, completam-se com técnicas
e outros procedimentos dirigidos pela consciência. Nos dois casos, contudo,
a construção de um estado criativo define a diferença do fazer artístico.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 21
Certa feita, falando a cientistas, Einstein afi rmou que o segredo da
criatividade está em dormir bem e abrir a mente às possibilidades infi nitas.
Depois perguntou sobre o que seria de um homem sem sonhos. Se dito a
cientistas isto é pertinente, quanto mais se dito a artistas!
Cabe acrescentar, no caso da arte, que seu processo construtivo, dife-
rentemente da ciência, muito mais do que com uma lógica racional positiva,
trabalha com técnicas e lógicas próprias do pensamento mítico-mágico, ou
anímico. Esta forma de pensar, por correspondências, contraposições, com-
plementações, proximidades e distanciamentos, é comum tanto à estética,
quanto à magia, e preside o trabalho do artista em seus procedimentos
criativos, como veremos adiante.
Portanto, na qualidade de xamã, o artista é aquele que opera prodí-
gios. Usa o próprio corpo e os mais diferentes recursos, para abrir as vias do
encantamento. Seu fazer suspende o tempo ordinário e estabelece o espaço
do maravilhoso. Sua arte instaura uma dimensão que sendo imaginária
não se opõe ao real. Funda um território que se instala entre o visível e o
invisível, o céu e a terra, o aqui e o além, a matéria e o espírito. Trafega nos
limites do real e do irreal, da história e da fi cção, estabelecendo paralelos,
correspondências, abrindo confl itos, fazendo ligações. Trabalha para além
da verdade e da objetividade, no campo do imponderável e da poesia. Inau-
gura lógicas a cada nova criação, lógicas múltiplas através das quais tudo
pode ganhar vida. Lógicas absolutamente rigorosas, que guardam a mais
estreita coerência, e que, por isso mesmo, podem fl uir do realismo mais or-
todoxo à fantasia mais delirante.
22 ANTROPOLOGIA DA ARTE
delas é que a criação artística se dá numa relação entre intuição e razão,
inconsciente e consciente, implicando um empenho de corpo inteiro do ar-
tista, no qual, sua capacidade de transcender os próprios limites racionais,
joga o papel principal.
René Descartes
Filósofo, fisiologista e matemático francês (1596-1650). Foi contempo-
râneo de Galileu e Pascal, tendo trabalhado, como eles, sob a pressão reli-
giosa da Inquisição. Escreveu cinco livros sobre filosofia e ciência: O Mundo
(sobre o universo físico), Discurso sobre o Método de Bem Conduzir sua Ra-
zão e procurar a Verdade nas Ciências (seu trabalho mais conhecido), Medi-
tações (sobre epistemologia), Princípios de Filosofia (particularmente acerca
da física) e As Paixões da Alma (sobre fisiologia e psicologia). Sua frase mais
conhecida, Cogito, ergue Sun (Penso, logo existo) é considerada a síntese do
chamado racionalismo positivista ou cartesiano (numa referência ao próprio
Descartes), procedimento lógico fundador da metodologia científica moder-
na. Segundo Descartes, o raciocínio é a operação mental, discursiva e lógi-
ca, que usa proposições para extrair conclusões relativas à verdade. Os filó-
sofos racionalistas, entre eles, Leibniz e Descartes, utilizaram a matemática
como instrumento da razão para explicar a realidade. O método cartesiano,
proposto para a ciência, baseia-se na Geometria e pode ser resumido em
quatro procedimentos: 1) Só acolher algo como verdadeiro, quando sobre tal
coisa não reste nenhuma dúvida. 2) Dividir cada dúvida no maior numero de
partes possíveis e em tantas partes necessárias para melhor resolvê-las. 3)
Ordenar o raciocínio de modo a começar pelos objetos mais simples e mais
fáceis de conhecer, até alcançar, pouco a pouco, os mais complexos, numa
ordem crescente de dificuldades. 4) Desenvolver acerca dos objetos obser-
vados enumerações tão completas e revisões tão gerais, com a certeza de
nada omitir. No campo da política, o racionalismo inaugurou o pensamento
liberal, que busca caminhos de planejamento lógicos e ordenados para a ob-
tenção do bem coletivo, através de soluções técnicas e racionais, acima de
quais quer outros interesses, sejam de classe ou de simples grupos sociais.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 23
rias alternativas para uma transformação social no Planeta. Tem como dís-
tico: Um outro mundo é possível. Proposto como um contraponto ao Fórum
Econômico Mundial de Davos, na Suiça, em data coincidente (de janeiro),
atualmente realiza-se em datas diferentes, uma vez por ano. Trata-se de
um espaço aberto e democrático, alternativo à globalização capitalista e ao
“pensamento único neo-liberal”, que reúne dezenas de milhares de repre-
sentantes dos mais diferentes movimentos sociais, assim como de grandes
personalidades e líderanças planetárias. Com uma participação em cresci-
mento (de 10.000 pessoas, na primeira, a 120.000, de 150 países, na última
edição), os fóruns tiveram início em 2001. Os três primeiros foram em Porto
Alegre (Rio Grande do Sul), o quarto em Bombaim (Índia), o quinto em Porto
Alegre, o sexto em três cidades: Caracas (Venezuela), Karachi (Paquistão) e
Bamako(Mali), o sexto em Nairóbi (África), o sétimo foi descentralizado e o
nono em Belém do Pará. Entre outras, são discutidos, nas edições do FSM,
temas como sustentabilidade ambiental, aids, paz e conflito, juventude, situ-
ação das mulheres, migrações e perseguições, dívida externa, os sem-terras
e a privatização de bens comuns etc.
ALBERT EINSTEIN
É autor, entre outras, das seguintes frases: “O tempo é relativo e não
pode ser medido exatamente do mesmo modo e por toda a parte.” “A menor
distância entre dois pontos não é uma linha reta.” “A religião do futuro será
24 ANTROPOLOGIA DA ARTE
cósmica e transcenderá um Deus pessoal, evitando os dogmas e a teologia.”
“A religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa
científica.” “A imaginação é mais importante que a ciência, porque a ciência
é limitada, ao passo que a imaginação abrange o mundo inteiro.” “Minha
religião consiste numa admiração humilde ao Espírito Superior e Iluminado
que se revela a si mesmo nos mínimos pormenores, que estamos aptos a
captar com nossas fracas e irrelevantes mentes. A profunda certeza de um
Poder Superior que se revela no Universo, difícil de ser compreendido, forma
a minha idéia de Deus.” “A mais bela experiência que podemos ter é a do
mistério. É a emoção fundamental existente na origem da verdadeira arte
e ciência. Aquele que não a conhece e não pode se maravilhar com ela está
praticamente morto e seus olhos estão ofuscados.” “O Universo é finito, ci-
líndrico e ilimitado.” “A massa de um corpo é uma medida do seu conteúdo
de energia.” “A leitura após certa idade distrai excessivamente o espírito
humano das suas reflexões criadoras. Todo o homem que lê demais e usa o
cérebro de menos adquire a preguiça de pensar.”
ANTROPOLOGIA DA ARTE 25
Unidade
2
Sobre a Origem do Homem
Objetivos:
• Questionar as teses que reivindicam a superioridade do homem ocidental moderno
sobre os demais, bem como as que destacam a linguagem abstrata e a lógica
racional-científica, como critérios dessa superioridade, em detrimento da linguagem
artística e do pensamento criativo.
Capítulo 1
A Tese Modernista
ANTROPOLOGIA DA ARTE 29
seu material sensível.” (CASSIRER pp. 65 e 66) Considera, ele, o caso citado,
como evidência de uma relativa autonomia do cérebro humano em relação
ao restante do corpo.
Em seguida, argumenta com evidências das limitações do pensamen-
to mítico, tanto no homem primitivo quanto no contemporâneo, afi rmando
que nele, o símbolo ainda não se despregou de seu referente, ou seja: “ain-
da é considerado propriedade da coisa”. Exemplifi ca, dizendo que o nome
de um deus ainda é parte deste mesmo deus e não seu representante, daí
porque os ritos têm que ser executados sempre da mesma maneira. Já o
pensamento simbólico pressupõe uma operação relacional, ou seja, uma
capacidade de designar abstrações, no caso, pontos comuns entre seres
diferentes. Pressupõe, portanto, distinguir relações, ou melhor, o ato inte-
lectual de chegar a generalizações a partir do estabelecimento de relações
entre particularidades.
Cassirer, porém, considera que nem todo pensamento relacional pres-
supõe um pensamento simbólico, ou seja, a recíproca não é verdadeira. Para
ele, o pensamento relacional está presente até mesmo nos mais simples atos
de percepção. Entretanto, o pensamento relacional próprio do homem vai
mais longe, e nisto ele se diferencia dos outros animais, pois só ele é capaz
de isolar relações, para produzir abstrações.
Outro índice de diferenciação do homem com relação ao mundo ani-
mal, para Cassirer, foi a descoberta do espaço e do tempo abstratos, o que
inicialmente teria se dado na Grécia de maneira mais completa. Mesmo os
animais ditos superiores, segundo ele, só são capazes de conceber espaço e
tempo orgânicos, ou seja, ligados à realidade sensível. Já o espaço matemá-
tico, concebido pelo homem (e aqui ele pede a ajuda de Isaac Newton) é pu-
ramente abstrato. Neste sentido, precisaríamos abandonar nossas relações
com o sensível para atingirmos uma “verdade real”, científi ca ou fi losófi ca,
diferenciando-se assim do pensamento anímico, que não se separa do sen-
sível e, pelo contrário, trabalha com ele.
Só abandonando, então, as concepções, afetivas e concretas, de tempo
e espaço do homem primitivo, podemos chegar ao tempo e ao espaço esque-
mático, homogêneo, universal, puramente imaginário, do homem moderno.
30 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 2
As Dificuldades em Provar a Superioridade do
Homem Moderno
ANTROPOLOGIA DA ARTE 31
qualidade em comum; conseguia, por exemplo, reunir todos os objetos de
determinada cor e colocá-los numa caixa.” (CASSIRER p. 71)
O fi lósofo alemão, entretanto, considerou o processo utilizado no ex-
perimento, raro, imperfeito e rudimentar, embora reconhecesse que o feito
daquele chimpanzé evidenciava o que Hume considerava “distinção da ra-
zão”. Resolve o problema dizendo que, mesmo aqueles animais, por ele con-
siderados superiores, não podem se desenvolver porque não possuem um
sistema de símbolos, já que só o homem é capaz de isolar relações e produzir
abstrações, para constituir um sistema de símbolos. Vai adiante, liga a lin-
guagem à capacidade de refl exão, dizendo que esta consiste “em discernir,
na correnteza dos fenômenos sensoriais, que fl utuam como massa indiscri-
minada, certos elementos fi xos a fi m de isolá-los e concentrar a atenção so-
bre eles”. (CASSIRER p. 71) Ora, mas esta mesma capacidade fi cou provada
no experimento da Sra. Kots, por ele mesmo citado, com os chimpanzés!
A Teoria Restrita (ou Es- No capítulo seguinte, em que Cassirer afi rma a superioridade con-
pecial) da Relatividade ceitual do tempo e do espaço abstratos, retilíneos e progressivos, próprios
(abreviadamente, TRR), da matemática e da física modernas, o fi lósofo alemão é forçado a reco-
publicada pela primeira
vez por Albert Einstein em nhecer que não apenas as tribos primitivas são dotadas de uma excep-
1905, descreve a física do cional percepção de espaço, como até mesmo os animais (diferentemente
movimento na ausência das crianças, que precisam aprender) possuem noções inatas de tempo e
de campos gravitacionais.
Antes, a maior parte dos
espaço. Mostra-se intrigado com a orientação espacial das abelhas, formi-
físicos pensava que a me- gas e aves de arribação, sem encontrar uma explicação plausível para seus
cânica clássica de Isaac comportamentos. Recusa-se, em todo caso, a aceitar que aqueles animais
Newton, baseada na cha-
mada relatividade de Ga-
se guiem por processos ideacionais, atribuindo tal capacidade “a impulsos
lileu (origem das equações corpóreos de um gênero especial”. (CASSIRER p. 76) Concluindo que eles
matemáticas conhecidas “não possuem imagem mental nem idéia de espaço”, (IDEM p. 76) nem têm
como transformações
uma prospecção das relações espaciais, arranja de todo modo um jeito de
de Galileu) descrevia os
conceitos de velocidade desqualifi car a percepção espacial excepcional daqueles animais, defi nindo
e força para todos os ob- de saída e sem discussão, a percepção racional mecânica como a mais alta
servadores (ou sistemas na escala das percepções espaciais.
de referência). No entan-
to, Hendrik Lorentz e ou- Já que, em relação à percepção orgânica do espaço, como ele entende,
tros, comprovaram que as o homem mostra-se inferior aos animais, Cassirer afi rma sua posição hie-
equações de Maxwell, que
governam o electromagne- rárquica mais baixa. Parece também não levar em consideração as desco-
tismo, não se comportam bertas de Einstein sobre a relatividade do tempo e do espaço, percepção que
de acordo com a transfor- de certa maneira já era observada no pensamento dito selvagem. Ou seja,
mação de Galileu quando
o sistema de referência
o homem primitivo sabia que a teoria na prática é outra. Isto é, que dois
muda (por exemplo, quan- períodos de tempo ou duas medidas de espaço, matematicamente iguais, no
do se considera o mesmo mundo sensível são percebidos diferentemente. Como diz o povo: “há tardes
problema físico a partir
do ponto de vista de dois
(ou caminhos) que parecem nunca acabar”.
observadores com movi- Cassirer admite, inclusive, que “as tribos primitivas são habitualmen-
mento uniforme um em
te dotadas de uma percepção extraordinariamente aguda de espaço. Um
relação ao outro). A noção
de variação das leis da nativo destas tribos tem capacidade de notar todos os pormenores mais
física no que diz respeito sutis do seu meio, é extremamente sensível a toda e qualquer mudança na
aos observadores é a que posição dos objetos comuns ao seu redor. Até em circunstâncias difi cílimas
dá nome à teoria, à qual
se apõe o qualifi cativo de é capaz de encontrar seu caminho”. (CASSIRER p. 80)
especial ou restrita por Ainda assim, Cassirer encontra argumentos para desqualifi car esta
cingir-se apenas aos sis-
temas em que não se têm capacidade perceptiva. Diz que a familiaridade do selvagem com o curso de
em conta os campos gra- um rio, por exemplo, está longe de alcançar um conhecimento abstrato e
vitacionais. Uma generali- teórico porque, enquanto o conhecimento do primitivo é “apenas apresen-
zação desta teoria é a Teo-
ria Geral da Relatividade,
tação”, o conhecimento do homem moderno “inclui e pressupõe representa-
publicada igualmente por ção”. (CASSIRER p. 81)
Einstein em 1915, in-
cluindo os ditos campos.
32 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Destaque: Aqui estabelecemos um parêntesis para fazer um paralelo
com a arte que, segundo o pensamento moderno, se diferenciaria do rito.
Isto, porque, enquanto o rito é presentifi cação, a arte seria representação.
Daí decorreria a superioridade da arte moderna sobre a arte primitiva, ain-
da presa ao animismo (e como tal ao rito). O mesmo aconteceria com os
folguedos e outras criações da chamada arte tradicional popular (com os
Aqui estabelecemos um
ex-votos, por exemplo) que, como veremos em capítulos seguintes, é uma arte de parêntesis para fazer um
presentificação, a vivência de outra dimensão da realidade (no caso a dimensão paralelo com a arte que, se-
gundo o pensamento mo-
artística) e não uma suspensão ou representação da vida. derno, se diferenciaria do
rito. Isto, porque, enquanto
A segunda ordem de questões, que evidenciam a difi culdade de Cas- o rito é presentifi cação, a
sirer em afi rmar a superioridade do homem moderno, decorre de sua visão arte seria representação.
limitada do mito e, junto com ele, do pensamento mágico e anímico. Sobre Daí decorreria a superiori-
o tema, ele parece concordar com Edward L. Thorndike que, citado por ele, dade da arte moderna so-
bre a arte primitiva, ainda
usa o termo “mito”, como sinônimo de ilusão ou inverdade. (CASSIRER p. 61) presa ao animismo (e como
No capítulo em que trata do tempo e espaço, o autor de Antropologia tal ao rito). O mesmo acon-
teceria com os folguedos e
Filosófi ca afi rma que a capacidade humana de generalizar parece ter origem outras criações da chama-
na astronomia babilônica. (Ver CASSIRER p. 85) De acordo com ele e segun- da arte tradicional popu-
do muitos outros estudiosos, na Babilônia, provavelmente, teriam surgido lar (com os ex-votos, por
exemplo) que, como vere-
todas as concepções mitológicas, religiosas e científi cas da humanidade. Fo- mos em capítulos seguin-
ram os babilônicos, por exemplo, que descobriram a álgebra simbólica, mes- tes, é uma arte de presenti-
mo que, de acordo com Cassirer, de maneira muito simples e rudimentar. fi cação, a vivência de outra
dimensão da realidade (no
O fi lósofo alemão admite que na primitiva astronomia babilônica caso a dimensão artística)
predomine ainda uma interpretação mítica do universo, embora já ultra- e não uma suspensão ou
representação da vida.
passasse à esfera do espaço concreto e corpóreo primitivo. Tal astronomia
“transporta o espaço, por assim dizer, da terra para o céu”, diz ele. Neste
sentido, a astronomia teria surgido da astrologia, como algo a ela superior,
num processo evolutivo. Isto porque, enquanto a astrologia ligava os acon-
tecimentos humanos às ocorrências celestes, a astronomia fez o espaço ce-
leste se emancipar do humano, transformando-se em espaço teórico.
O descolamento da astronomia em relação à astrologia, ocorrido no
Renascimento, teria se marcado no momento da ruptura entre o espaço geo-
Robert M. Yerkes (1876-
métrico e o espaço mítico-mágico, o primeiro ocupando o lugar do segundo. 1956) estudou psicologia
Cassirer precisa melhor seu pensamento ao afi rmar, referindo-se a esta comparada em Harvard,
precedência do mito, que “a forma falsa e errônea de pensamento simbólico tendo desenvolvido testes
de inteligência e aptidão
foi a primeira a preparar o terreno para um novo e verdadeiro simbolismo, com soldados america-
o da ciência moderna”. (CASSIRER p. 85) nos durante a Primeira
Guerra Mundial. Depois,
Aqui cabe outro reparo às posições de Cassirer. Como veremos em
transferiu-se para a Uni-
capítulos posteriores, na visão mítica do universo, tanto entre povos primi- versidade de Yale, onde
tivos, quanto em comunidades contemporâneas, mesmo se mantendo preso dedicou-se ao estudo do
ao concreto e ao sensível, o espírito humano, assim como de outros seres, é comportamento animal.
Ajudou a criar a Anthro-
passível de transcendência, indo, para usar a imagem de Cassirer, da terra poid Experiment Station
ao céu, do concreto ao abstrato, sendo o mundo sensível, uma manifestação of Yale University, que
do mundo espiritual. Além do mais, ao contrário do que julgavam os pen- depois tomaria, em sua
homenagem, o nome de
sadores modernos, o pensamento mítico tem se mostrado não uma forma Yerkes Laboratories of
rudimentar e anterior maneira do pensamento científi co, mas outra forma Primate Biology. Tran-
de pensar o mundo, outro procedimento racional, tão válido (e para a arte ferido para Atlanta, em
1965, sob a denominação
muito mais) quanto a lógica da ciência moderna. Uma argumentação mais de Yerkes Primate Center,
consistente neste sentido, porém, deixaremos para capítulos seguintes. transformou-se no prin-
cipal centro de pesquisas
No capítulo dedicado por ele à memória, Cassirer continua sua busca sobre primatas no mundo.
em provar a superioridade do homem moderno. Começa por reconhecer que Seus testes de inteligência
os animais têm memória, são capazes de lembrar e até sonham. Cita Robert e aptidão com soldados,
M. Yerkes, para quem os animais são capazes de acumular experiências, reforçaram tendências ra-
cista da época.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 33
antecipar, esperar, imaginar e, baseados nessa consciência, preparar-se
para acontecimentos futuros. Cassirer admite ainda, que os animais ditos
superiores podem “resolver problemas e, de modo geral, adaptar-se a situa-
ções ambientais com a ajuda de processos simbólicos análogos aos nossos
símbolos verbais, e na dependência de associações que funcionam como si-
nais”. (CASSIRER p. 89) Porém, apesar das provas apresentadas por Yerkes,
Cassirer insiste na sua tese, dizendo: “O que importa neste caso não é tanto
o fato da existência de processos ideacionais em homens e animais, mas a
forma destes processos.” (CASSIRER p. 89)
Nosso filósofo da antropologia pede a ajuda de diferentes autores, en-
tre eles Bergson e Goethe, para concluir que os animais não têm memória,
porque, segundo ele, a verdadeira memória “é um fenômeno muito mais
profundo e complexo (...) significa interpenetração de todos os elementos de
nossa vida passada”. (CASSIRER p. 90) Volta ao argumento do símbolo, di-
zendo que só há recordação verdadeira, se houver imaginação, ficção, o que
para ele (citando Goethe) está ligado à poética e, só então, ao simbolismo.
Assim, Cassirer chega à poética, mas ainda reduzida ao simbolismo. Em
sua poética não estão incluídas a criação intuitiva, a revelação do invisível,
a expressão dos sonhos, enfim.
Prosseguindo, Cassirer afirma que as ações instintivas dos animais,
mesmo quando dirigidas para um futuro, o são para um futuro tão remoto
que suas conseqüências não podem ser notadas pelo animal que as execu-
ta. Admite que os animais ditos superiores sejam capazes de antecipar fatos
futuros, mas deixa de observar, por exemplo, o trabalho minucioso e cole-
tivo de inúmeros pequenos animais, capazes de atividades antecipatórias,
por exemplo, de preparação para mudanças climáticas, como os insetos do
semi-árido prevendo a aproximação das chuvas.
Mais adiante, Cassirer procura corrigir Kant, para quem intuições e
conceitos são condições fundamentais do conhecimento, decorrendo daí a
necessidade do ser humano de trabalhar a partir de imagens, para chegar
a conceitos. Afirma não se tratar propriamente de imagens simplesmente,
mas de símbolos, de imagens simbólicas.
Embora reconheça que as grandes descobertas científicas foram ini-
cialmente hipotéticas (e eu diria, intuitivas), Cassirer apega-se à matemáti-
ca como o “orgulho da razão humana”. (CASSIRER p. 102) Argumenta que
a matemática foi incompreendida, tendo muitos dos seus conceitos se mos-
trados obscuros e equivocados, até que tomou um rumo claro e distinto,
quando se entendeu ser ela não uma teoria das coisas, mas de símbolos. Só
a partir daquele momento, os conceitos matemáticos fundamentais pude-
ram migrar para outros campos do conhecimento, como os das chamadas
ciências humanas e da ética, em particular. Só então, segundo Cassirer,
teríamos chegado a uma compreensão da verdadeira natureza humana que,
por meio do pensamento simbólico, “supera a inércia natural do homem,
conferindo-lhe nova capacidade, a de arquitetar constantemente seu uni-
verso humano”. (CASSIRER p. 105)
34 ANTROPOLOGIA DA ARTE
1. Para você, onde a argumentação de Cassirer sobre a superioridade do
homem moderno não foi convincente?
2. Em que sentido o homem moderno pode ser considerado diferente ou
superior ao homem tradicional, segundo Cassirer?
3. Que consequências teve para o desenvolvimento da humanidade o antro-
pocentrismo do pensamento moderno?
ANTROPOLOGIA DA ARTE 35
Capítulo 3
Novas Descobertas da Ciência
36 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Vale acrescentar, que estudos do DNA mostram diferenças inexpressi-
vas, em termos de genes, entre os grandes símios e os hominíneos, mesmo
quando estes são representados pelo homem contemporâneo. Calcula-se
que temos uma identidade genética entre 95% a 98% com os chimpanzés,
estando muito mais próximos deles, do que eles, por exemplo, em relação a
outros grandes símios, como o gorila e o orangotango.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 37
Tendo por base estudos sobre os macacos, espécie na qual há uma
correlação entre o tamanho do cérebro e tamanho do grupo, se supõe “que o
crescimento inicial do nosso cérebro por volta de dois milhões de anos tenha
ocorrido como resposta a demandas de interações sociais cada vez mais
complexas”. (NEVES p. 42) Há estudiosos, entretanto, que vêm no aumento
do cérebro do Homo erectus não um maior poder cognitivo, mas apenas uma
ocorrência correspondente ao crescimento do corpo como um todo.
Tendo surgido na África por volta de dois milhões de anos, os homi-
níneos começaram imediatamente a se expandir para outros continentes,
primeiro para o Oriente Médio e para a Europa e, em seguida, para outras
regiões da Ásia, só por fim tendo chegado até a Austrália e à América. Po-
rém, só em torno de 800.000 anos, também na África, surgiram os primei-
ros grandes cérebros, com cerca de 1.2000 cm³. Outro achado importante
foi a descoberta de grandes lanças de madeira, encontradas a pouco mais
de 10 anos na Alemanha, datadas de mais de 400 mil anos atrás.
Os heidelbergensis, espécie da qual descendem tanto os neandertais
quanto os sapiens, que viviam no Norte da Europa Ocidental, há 300 mil
anos, já apresentavam uma morfologia craniana muito próxima à nossa,
com a face afastando-se do neurocrânio e projetando-se para frente. Um
dos seus descendentes diretos, o Homo de neandertal, surgido por volta de
200 a 250 mil anos, como o Homo sapiens, possuía uma capacidade crania-
na ainda maior que a nossa, medindo cerca de 1.500 cm³.
Os neandertais tinham ossos mais grossos e fortes que nós, cer-
tamente como adaptação a trabalhos pesados e exaustivos, nos quais,
inclusive, usavam a boca. Conviveram com o Homo sapiens por muitos mi-
lhares de anos, em muitas regiões, tendo se extinguido, provavelmente, há
cerca de apenas 29 mil anos, com a expansão de nossa espécie no Oriente
Médio e na Europa, por volta de 40 mil anos atrás. Fica evidente, portanto,
que nessas regiões, sapiens e neandertais coexistiram, pelo menos, por
mais de 10 mil anos.
A descoberta mais surpreendente, entretanto, talvez seja a de que o
homem contemporâneo, que se pensava datar de somente 40 a 45 mil anos,
teve sua conformação física definida já por volta de 200 mil anos. Isto ficou
evidente após a descoberta, entre as décadas de 1960 e 1970, de fósseis na
Etiópia, cujos estudos só tiveram seus resultados divulgados de forma mais
sistemática, só muito recentemente.
O comportamento desses sapiens, porém, correspondia ao do Homo
neandertalis, com a diferença de que enquanto a forma atarracada destes,
favorecendo a manutenção do calor corporal, o adaptava aos climas frios,
a dos Homo sapiens, com seu perfil longilíneo, facilitando a perda do calor,
contribuía para sua adaptação às zonas mais tropicais da África. Não por
acaso, os tipos longos e esbeltos (tome-se como modelo os atletas quenianos e
tanzânianos, que vemos nas olimpíadas), concentram-se nos povos tropicais.
Entretanto, se anatomicamente, o homem contemporâneo já tinha de-
finido sua configuração há mais de 200 mil anos, do ponto de vista compor-
tamental e tecnológico, ele só veio se diferenciar dos neandertais há pouco
mais de 40 mil anos. Entre as características comuns a sapiens e neander-
tais, considerados os primeiros 150 mil anos de existência de ambos, estão
a coleta e a caça pouco seletiva, a utilização de um pequeno repertório de
pedras lascadas como ferramentas e a ausência de rituais mortuários.
A mudança tecnológica e comportamental do Homo sapiens verifica-
da a partir do Paleolítico Superior (há cerca de 45 mil anos), entre outras
evidências, incluiu a utilização de ossos, dentes e chifres na fabricação de
38 ANTROPOLOGIA DA ARTE
objetos utilitários e rituais, sepultamentos acompanhados de uma comple-
xa ritualização, ou seja, evidências de um rápido desenvolvimento criativo e
expressivo, além de noções de transcendência (no caso dos sepultamentos).
Aqui cabe um parêntesis, para uma crítica aos autores de “O Povo de
Luzia”. Walter Neves e Luís Piló ligam essa mudança de comportamento hu-
mana ao que chamam capacidade de abstração simbólica, como Cassirer.
(NEVES p. 54) Decerto, como eles afi rmam, desenvolveu-se uma capacidade
de representação, porém, muito menos ligada ao símbolo, que ao ícone. Até
porque, de 10 a 15 mil anos depois, aparecem as extraordinárias pinturas
rupestres, executadas no interior de imensas cavernas, que tanto estamos
acostumados a admirar. Charles Sanders Peirce
(1839-1914) fi lósofo, fí-
Ora, segundo a semiótica de Charles Pierce, os signos, de acordo com sico, astrônomo e mate-
o modo como representam o objeto ou referente, podem ser de três ordens: mático americano. Foi o
o índice, o ícone e o símbolo. (Ver ECO 1973, p. 52) Enquanto o índice re- fundador do pragmatismo
e da semiótica.. No campo
presenta seu objeto pelo contado, ou seja, é afetado por ele (a fumaça, por das ciências humanas es-
exemplo); o ícone representa seu objeto por semelhança (uma fotografi a, por tudou linguística, fi lologia
exemplo), o símbolo o faz por pura convenção (os algarismos arábicos, por e história, contribuindo,
ainda, na área da psico-
exemplo). Ao detectarem cheiros característicos, por exemplo, assim como logia experimental. Sua
outros indícios para se orientarem, os animais, certamente, reconhecem (e semiótica, ou teoria geral
mesmo usam, por ex., para marcar terreno) este tipo de signo, ou seja, o ín- dos signos, pretende ser
uma fi losofi a científi ca da
dice. Ao emitir sinais para seu formigueiro ou colméia, por exemplo, formi- linguagem.
gas e abelhas produzem símbolos. O mesmo acontece com outros animais,
embora se diga que esta emissão “não é deliberada, mas inata”, o que só é
verdade sob certo ponto de vista, já que acontece apenas sob determinadas
condições, não sendo, a emissão desses signos, nunca absolutamente me-
cânica ou previsível.
O caso da produção de ícones, por parte de outros animais (que não os
humanos), é mais controvertido, registrando-se somente o caso da mimesis,
em que insetos e outros pequenos animais, assemelhando-se a outros seres
(geralmente vegetais ou minerais) do meio em que vivem, se disfarçam para
confundir seus caçadores.
Parece-me, então, que o desenvolvimento da representação através de
ícones foi o motor da grande virada no comportamento humano do Pale-
olítico Superior. Isto porque, os sistemas simbólicos desenvolvidos poste-
riormente pelo Homo sapiens o foram feitos a partir e como desdobramento
das representações icônicas, tanto no campo da linguagem oral e escrita,
quanto nos demais procedimentos rituais.
Sabendo-se que o ícone é o signo por excelência da arte, tanto que
nela o símbolo aparece como um auxiliar expressivo (na literatura artística,
por exemplo, onde mais que a palavra é fundamental a imagética por ela
construída), se pode afi rmar que esta virada (do Paleolítico Superior) antes
de ser uma virada em direção à racionalidade, foi uma mudança em direção
à poesia. Uso poesia, aqui, em seu sentido amplo, como um fenômeno de
encantamento produzido pela arte, (o que veremos adiante) seja literária,
visual, performática ou musical.
Mais surpreendentes foram os resultados de escavações recentes, que
ainda estão acontecendo em Blombos e Katanda, África do Sul. Nelas fo-
ram encontrados diversos objetos reveladores da vida humana há 80 mil
anos atrás. Entre esses objetos, incluem-se um pequeno bastão de hematita
(pigmento mineral), fi namente decorado, além de um colar de conchas de
moluscos, o que indica uma prática artística bem anterior aos presumíveis
40 mil anos da alegada virada comportamental do Paleolítico Superior.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 39
As razões possíveis dessa mutação comportamental (criativa, como
denominam os autores de O Povo de Luzia) ainda são desconhecidas. Se-
gundo alguns paleontólogos “é possível que o último grande passo na
evolução hominínea tenha se restringido apenas a modificações neuro-
lógicas internas, impossíveis de ser detectadas e interpretadas com base
nos ossos.” (NEVES p. 56)
Descobertas também surpreendentes foram feitas acerca da relação
do Homo sapiens, com o Homo neandertalis e outros hominíneos. Sabe-se
que a primeira incursão dos sapiens para fora da África foi em direção ao
Oriente Médio, onde conviveram com os neandertais sem entrecruzamentos
mútuos aparentes. Quando os sapiens chegaram àquela região da Ásia, há
38 mil anos, ela estava ocupada densamente pelos neandertais que desde
muito antes e por cerca de 60 mil anos reagiram à sua invasão. Por certo,
esta longa convivência de homínineos com características físicas e com-
portamentais semelhantes (inclusive em matéria de tecnologia de guerra)
resultou não apenas em destruição mútua, como em alguma colaboração.
Provavelmente, este quadro mudou com a chamada Revolução Criati-
va do Paleolítico Superior (ver NEVES p. 58), dotando os sapiens de armas
mais eficientes, capazes de fazer frente com vantagens em relação aos ne-
andertais. Tanto é que aqueles foram capazes de atravessar a Europa em
apenas seis mil anos e ocupar toda a Península Ibérica já por volta de 32
mil anos, enquanto os neandertais foram reduzindo-se rapidamente, até se-
rem dados como extintos há cerca de 29 mil anos. Os autores de O Povo de
Luzia levantam, inclusive, a possibilidade do homem moderno (os sapiens)
terem substituído outras espécies de hominíneos, além dos neandertais,
que encontraram pelo caminho.
O fato de a África apresentar a maior taxa de diversidade genética
entre os humanos atuais corrobora não apenas para afirmar a origem do
homem moderno naquele continente, como o fato de que ele tenha vivido ali
por mais tempo. Porém, o resultado de algumas pesquisas recentes traba-
lha em sentido contrário à crença anterior de que a origem do Homo sapiens
corresponderia a um evento de especiação, ou seja, que ele pertenceria a
uma espécie diferente, incapaz de entrecruzar com outros hominíneos.
Cálculos matemáticos mais precisos aplicados ao estudo da diversida-
de do DNA humano, feitos nos últimos três anos, desautorizam a hipótese,
até agora aceita, de que o conjunto dos homens contemporâneos descenda
de um ancestral comum, surgido na África há 150 ou 200 mil anos. Embora
a maioria da população humana tenha origem, provavelmente, do mesmo
ancestral africano, o certo é que algumas de suas linhagens têm ascendên-
cia muito mais antiga em linhagens não representadas na África. Esta des-
coberta legitima a hipótese de que tenhamos trocado material gênico com
outros hominíneos, fora do território africano.
Há pouco mais de dois anos, na Romênia, foi descoberto um crânio de
cerca de 36 mil anos, com características típicas do homem moderno, mas
com alguns traços provavelmente de neandertais, o que reforça a hipótese
levantada no parágrafo anterior. Ou seja, há evidências, cada vez mais nu-
merosas, de que não somos uma espécie nova e superior, mas tão somente
uma raça de heidelbergensis (Homo eretus) ou talvez uma subespécie de
macacos, que tenha aprendido a sonhar acordado.
O fato é que muitas hipóteses têm sido levantadas para esta súbi-
ta mudança comportamental do Homo sapiens. Há quem a atribua a mu-
danças de hábitos alimentares ao lado da domesticação de animais para o
trabalho, como o professor norte-americano Jared Diamond, que dedicou
40 ANTROPOLOGIA DA ARTE
parte de sua vida a explicar a origem das desigualdades no desenvolvimento
humano, ligada a esses fatores em diferentes continentes. (Ver A Evolução
da Humanidade – Armas, Germes e Aço, DVD produzido pela National Ge-
ographic Society, episódio: Saindo do Jardim do Éden.)
Segundo aquele antropólogo, o pouco desenvolvimento tecnológico dos
papuas da Nova Guiné deu-se por motivo de um isolamento geográfi co e con-
fi nação em uma grande ilha onde não existiam animais passíveis de domes-
ticação, com possibilidades de serem utilizados como força de trabalho pelo
Homem, assim como onde não existiam vegetais com capacidade nutricional
considerável, como o trigo e o arroz, por exemplo. O único animal apropriado
para a criação era o porco, que não se presta como auxiliar em trabalhos pe-
sados (diferentemente do elefante, do camelo, do cavalo, do jumento, da lha-
ma etc.), assim como os papuas não conheciam o trigo, o arroz etc., cuja car-
ga de nutrientes compensa um trabalho duro e prolongado nas plantações.
Só a ausência desses fatores, fazendo com que os habitantes da Nova
Guiné consumissem a maior parte de seu tempo na obtenção de alimentos
para a subsistência básica, já implica um atrofi amento de suas possibilida-
des criativas, segundo o professor Jared Diamond. De outra parte, alguns
estudiosos atribuem esta mudança comportamental do Homo sapiens à
criação de circunstâncias de tempo e segurança, que o possibilitou dormir
mais profundamente (e consequentemente, sonhar com mais desenvoltura).
Outros, já atribuem esta mudança de comportamento humano à conjuga-
ção de uma série de circunstâncias fortuitas, o que me leva a pensar na
possibilidade de também os chimpanzés, por exemplo, ou outros símios
superiores, conhecerem mudanças comportamentais no futuro.
De resto, muitas são as hipóteses ou, empregando outro termo, as
intuições acerca do que determinou esta virada comportamental do Homo
sapiens. Para fundamentar cada uma dessas hipóteses foram reunidas
uma série de indícios e até provas racionais, mesmo porque para toda boa
intuição, como para todo bom sonho, sempre se pode criar uma justifi cati-
va, construir uma argumentação e fazê-la de acordo com a ciência, embora
para tal sejamos, muitas vezes, obrigados a rever as regras científi cas. Se
no atual estágio de conhecimento do Homem sobre sua origem, não se pode
concluir ser sua capacidade poética o atributo de diferenciação entre ele e
os outros animais, por certo não é absurdo levantar a hipótese de o Homem
ter em seu dom de perceber e criar poesia, sua qualidade, talvez, mais rara.
Mesmo que esse privilégio não o autorize a reivindicar supremacia sobre os
demais seres da natureza.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 41
sirer, põe em dúvida a propalada superioridade do homem moderno diante
das evidências da inteligência animal e do conhecimento mítico-anímico do
saber popular tradicional.
Por último, tendo como referência os dados apresentados pelo livro de
Walter Neves e Luís Piló, informa as descobertas mais recentes da paleonto-
logia sobre o processo de hominização e procura tirar conseqüência delas.
Tais descobertas evidenciam as origens humanas e da arte em épocas bem
anteriores às que, até pouco tempo, se imaginava. Assim como, comprovam
um parentesco, do Homo sapiens, muito mais próximo aos grandes símios
e aos demais hominíneos do que se tinha até recentemente por certo. Mos-
tra que não há relação comprovada entre inteligência animal e tamanho do
cérebro, assim como entre pensamento simbólico racional e superioridade
intelectiva. Afi rma a evolução não como um contínuo aperfeiçoamento dos
seres, mas como resultado de um processo adaptativo desligado da idéia de
progresso ou desenvolvimento. Enfi m, destaca a importância da intuição
poética não apenas na origem da arte, como na do próprio ser humano.
42 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Robert M. Yerkes (1876-1956)
Estudou psicologia comparada em Harvard, tendo desenvolvido testes
de inteligência e aptidão com soldados americanos durante a Primeira Guer-
ra Mundial. Depois, transferiu-se para a Universidade de Yale, onde dedicou-
se ao estudo do comportamento animal. Ajudou a criar a Anthropoid Expe-
riment Station of Yale University, que depois tomaria, em sua homenagem,
o nome de Yerkes Laboratories of Primate Biology. Tranferido para Atlanta,
em 1965, sob a denominação de Yerkes Primate Center, transformou-se no
principal centro de pesquisas sobre primatas no mundo. Seus testes de in-
teligência e aptidão com soldados, reforçaram tendências racista da época.
Leituras
• CAPRA, Fritjof: O Tao da Física, um paralelo entre a Física Moderna
e o Misticismo
Oriental. São Paulo, Cutrix, 1983.
O Ponto de Mutação, a Ciência, a Sociedade e a Cultura emergente.
São Paulo, Cultrix, 1982.
A Teia da Vida: uma nova compreensão científi ca dos sistemas vivos.
São Paulo : Cultrix, 2006.
GIDDENS, Anthony: As Conseqüências da Modernidade. São Paulo,
Editora UNESP, 1991.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 43
Filmes
• A Evolução da Humanidade – Armas Germes e Aço. 1ª. parte: Sain-
do do Jardim do Éden. National Geographic Society. O vídeo docu-
mentário apresenta a teoria de Jared Diamond sobre a origem das
desigualdades no desenvolvimento humano.
• História das Religiões (Religions of the World). Série de três DVDs,
de 4hs. de duração cada, produzida pela Libertty Internationl En-
tertainment Inc., com narração de Ben Kinglen, produção da série
de Clley Coleman e direção de Gene Smith. O DVD traça uma histó-
ria das mais importantes religiões, evidenciando as diferentes ma-
neiras que elas encontram para dar signifi cado ao mundo e à vida
humana. Além de pontos de divergência, há pontos de convergência,
que ajudam a clarear nossa compreensão relativa à natureza não só
de Deus como do Homem.
CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosófi ca. São Paulo, Mestre Jou, 1977.
ECO, Umberto. O Signo. Lisboa, Editorial Presença, 1973.
ICLE, Gilberto. O Ator Como Xamã: confi gurações da consciência no sujeito
extracotidiano. São Paulo Perspectiva, 2006.
NEVES, Walter Alves. O Povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos
/ Walter Alves Neves Luís Beethoven Piló, - São Paulo, Globo, 2008.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Mira-Sintra, Publicações Eu-
ropa-América, 2ª. ed. em português, 1972 (data da 1ª. ed. em francês).
44 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Unidade
3
As Origens da Arte
Objetivos:
• Investigar a arte nos seus primórdios, assim como acompanhá-la em sua trajetória
inicial no tempo e no espaço.
Capítulo 1
Reparos e Advertências
ANTROPOLOGIA DA ARTE 47
nhecemos por meio de achados arqueológicos, através do estudo de comu-
nidades contemporâneas que, supostamente, vivem em condições próximas
às daquelas. Ou seja, estudar uma comunidade de louceiras do Ipu ou de
Viçosa do Ceará (ou mesmo uma comunidade do Xingu), a maneira como
funciona na atualidade, pouco nos pode dizer sobre a arte dos tabajara 500
anos atrás, antes da presença europeia (a não ser acerca de determinadas
técnicas ou estilos das pinturas, porém certamente pouco sobre o signifi ca-
do ou o sentido delas).
Vitalino, Chico da Silva,
Noza e Nino foram artis- O terceiro reparo vai junto com uma crítica e tem como alvo o concei-
tas populares nordestinos to de arte primitiva. Esse conceito, assim como o de arte pré-histórica, leva
que viveram e produziram
no século passado, ten- embutido uma ideia evolucionista de progresso que tem como ápice o Oci-
do se notabilizado e feito dente urbano moderno, particularmente as megalópoles contemporâneas
nome internacionalmente, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A ideia de atraso, nessa con-
mercê da excelência de
seus trabalhos. Vitalino
cepção evolucionista, coincide com tudo que se afasta do Ocidente urbano
era mestre e escultor em moderno, tanto no tempo quanto no espaço. Além disso, sob o rótulo de arte
cerâmica. Pernambucano, primitiva, reúnem-se desde as pinturas rupestres do Paleolítico, passando
nasceu e viveu em Caru-
aru, onde produziu toda
pela arte das grandes civilizações antigas (orientais ou americanas, como
sua obra e fez escola. Chi- as indiana, chinesa, asteca, inca e maia), até as pinturas ou esculturas
co da Silva, maranhense de artistas populares brasileiros falecidos há pouco tempo como Vitalino,
de nascimento, dedicou- Chico da Silva, Noza e Nino. Quanto à divisão entre artes pré-históricas e
-se à pintura, tendo vivido
grande parte de sua vida históricas, no sentido de artes de povos que usam e não usam a escrita,
no bairro do Pirambu, em mesmo que se admita tal divisão, é preciso levar em conta o que postula
Fortaleza, onde produ- José Alcina Franch:
ziu a maior parte de sua
obra e formou grande nú- “dentro da primeira destas categorias temos que incluir, evidentemente,
mero de discípulos. Noza
a arte ocidental, porém ainda a arte de civilizações tais que, possuindo
foi santeiro e escultor em
madeira na cidade de Ju- algum gênero de escrita, tenham produzido documentos que comple-
azeiro do Norte sob orien- tem nosso conhecimento de tais artes, em relação com a biografi a dos
tação do Padre Cícero, artistas, ou em relação com outros pormenores ou aspectos diferentes:
fi cando afamado entre os China, Japão, Índia e outras civilizações antigas se acham neste caso.
romeiros e devotos daque- Dentro das artes pré-históricas há que incluir a totalidade daquelas que
le santo popular. Nino foi correspondem a povos que não chegaram a dispor de um código escrito,
escultor e criador em ma- e por conseguinte não podem oferecer documentos que sirvam de base
deira de Juazeiro do Nor-
para escrever a história artística ou que a complementem de maneira
te, que trabalhou temas
diversos sempre ligados à substancial. Daí que consideremos por igual à arte “parietal” do sul da
natureza e à vida popular França e norte da Espanha, ou a arte norte-africana ou sahariana, ou
sob uma ótica onírica e a de povos agricultores ou criadores de todos os continentes: a arte da
muito pessoal. cultura Jomem no longínquo Oriente, ou a da cultura Hohokam no sudo-
este dos Estados Unidos, ou a da cultura de Malkata, na desembocadura
do Danúbio. Todas elas, pelo fato de não poderem dispor de documentos
escritos, são pré-históricas, o que implica uma maneira diversa de tratar
os dados, mais que uma situação cronológica, que, evidentemente, não
é similar nos exemplos mencionados, ou nem sequer uma identidade ou
homologação cultural, o que tampouco se dá nos casos mencionados”.
(FRANCHA, 1982, pp. 25-26)
48 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capitulo 2
O Enigma das Catedrais de Pedra
Lascaux
ANTROPOLOGIA DA ARTE 49
Arnold Hauser, em sua conhecida obra “História Social da Literatu-
ra e da Arte”, nos chama a atenção para o fato de não existir qualquer
aproximação entre essas pinturas rupestres do Paleolítico Superior e a arte
infantil ou mesmo as manifestações artísticas da maioria dos povos ditos
“primitivos” contemporâneos. Segundo ele,
os desenhos das crianças e as manifestações artísticas dos atuais povos
primitivos são racionais e não sensoriais: revelam o que a criança e o
artista primitivo conhecem, não o que no momento vêem; dão-nos uma
concepção teórica e sintética do objeto, e não uma sua representação óti-
ca e orgânica. Eles consideram simultaneamente a perspectiva de frente
e de perfil do objeto que representam, e por vezes até a perspectiva vista
de um ângulo superior; nada omitem do que consideram, por conheci-
mento, fazer parte do objeto; aumentam a escala do que é importante
biológica e praticamente; mas desprezam tudo, por mais impressivo que
em si seja, desde que não desempenhe papel direto no conjunto do objeto.
(HAUSER, 1972, pp. 13-14)
50 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Porém, é Joseph Campbell, em seu enciclopédico livro “As Máscaras
de Deus”, quem vai mais longe na narrativa dos passos que levaram os ar-
tistas às obras magistrais das pinturas rupestres do Paleolítico Superior.
Inclui, na trajetória da origem da arte e do próprio homem, observações so-
bre o comportamento deste “ser, tão próximo de nós”, o chimpanzé. Trata-se
de dois relatos extraídos do livro “A Mentalidade dos Macacos”, de autoria do
Dr. Wolfgang Köhler, por ele citado. O primeiro relato diz respeito à afeição
que alguns chimpanzés adquirem por certos objetos que passam a carregar
consigo como espécies de brinquedos ou amuletos. Até aqui, não há nada
de extraordinário, porque, até mesmo entre cachorros e outros animais do-
mésticos, podemos nos surpreender com fatos semelhantes Segundo Köhler, dois
chimpanzés, um chamado
O segundo relato diz respeito à descrição de uma dança desenvolvida Tschengo e outro Grande,
pelos chimpanzés, inicialmente por um deles e logo seguida por todo o grupo, inventaram uma brinca-
que implica não apenas num ritmo, mas numa complexa coreografi a. En- deira, em que giravam ve-
zes seguidas, que logo foi
cantado com a “alegria de viver” dessa brincadeira dos chimpanzés, Köhler imitada por outros.
conclui: “Parece-me extraordinário, que pudesse surgir de modo espontâneo,
entre os chimpanzés, algo que sugere tão fortemente a dança de algumas tri-
bos primitivas” (KÖHLER, 1927, p. 95). De fato, ao reproduzir uma narrativa
de Radcliffe-Brown sobre uma dança dos pigmeus do arquipélago de Anda-
man no Golfo de Bengala, Ásia, observada no século passado, Joseph Camp-
bell mostra a notável coincidência, não apenas de ritmo como até mesmo de
alguns movimentos, com a dança dos macacos relatada por Köhler.
Destaque: Segundo Köhler, dois chimpanzés, um chamado Tschengo
e outro Grande, inventaram uma brincadeira, em que giravam vezes segui-
das, que logo foi imitada por outros.
Qualquer jogo a dois era capaz de acabar nessa brincadeira de “pião”, que
parecia expressar o clímax de uma amistosa joie de vivre. A semelhança
com a dança humana tornou-se mesmo impressionante quando as voltas
eram rápidas ou quando Tschengo, por exemplo, estendia os braços hori-
zontalmente enquanto girava. Tschengo e Chica – cuja atividade preferida
durante o ano de 1916 era esse “rodopio” – por vezes combinavam com as
rotações um movimento para a frente e assim giravam lentamente em vol-
ta de seus próprios eixos e pela área que lhes era destinada.Todo o grupo
de chimpanzés, às vezes, unia-se em padrões de movimento mais elabo-
rados. Por exemplo, dois lutavam e caíam perto de um poste, logo seus
movimentos se tornavam mais regulares e tendiam a descrever um círcu-
lo tendo o poste como centro. Um por um, o resto do grupo aproxima-se,
junta-se aos dois e, fi nalmente, marcham todos de maneira ordenada
em volta do poste. O caráter de seus movimentos muda; eles não andam
mais, trotam, e como regra, dando ênfase especial a um pé, enquanto o
outro pisa levemente, desenvolvendo assim algo próximo de um ritmo e
tendendo a ‘manter o compasso’ entre si... (CAMPBELL, 1992, p. 292)
ANTROPOLOGIA DA ARTE 51
noa viram tartarugas; homens viram porcos e porcos transformam-se em
pequenos seres fantásticos; animais mortos tornam-se “pais das matas” com
poderes sobrenaturais. Para se protegerem dos poderes dos animais, princi-
palmente daqueles que foram mortos pelos homens e que servem de alimento
para ele, ritos são encenados e ornamentações cerimoniais são produzidas.
Outras ocasiões nas quais os homens não podem prescindir da pro-
teção dos ritos, entre os andamaneses, se dão por ocasião do nascimento,
do casamento e da morte, bem como nos processos de iniciação dos jovens
para a vida adulta ou, até mesmo, em ocasiões fortuitas, como, por exem-
plo, no caso de um homem matar alguém, ele precisa ser ornado e protegido
cerimonialmente. “Em todas essas ocasiões, os indivíduos envolvidos são pro-
tegidos dos poderes desencadeados naqueles momentos por vários tipos de
ornamentação cerimonial – tinta vermelha, argila branca, desenhos incisados
(escarificados), fibras vegetais decorativas, conchas etc. – bem como por dan-
ças e prantos cerimoniais e a recitação de mitos.” (CAMPBELL, 1992. p. 301.)
Tais observações sobre as relações entre homens e animais no arqui-
pélago de Andaman podem nos ajudar a compreender o sentido das figuras
pintadas nas cavernas do Paleolítico Superior, ainda mais se as juntarmos
a outras sobre o significado das próprias cavernas para os povos daquela
época. Isso se dá porque, naquele período, as cavernas eram comumente
consideradas espaços de encantamento, isto é, de magia animal e de ritos
humanos. Além disso, eram tidas como um outro mundo, um reino de re-
banhos subterrâneos, um mundo oculto de onde procediam e para o qual
retornariam os rebanhos do mundo superior. Eram como uma réplica do
mundo noturno, da esfera das trevas na qual os animais são como estrelas
de um céu notívago mortas pelo sol e renascidas com o anoitecer. Faziam
parte da cosmovisão de um universo que ainda não perdera seu encanto.
Eram, portanto, o locus privilegiado onde tinham origem “as mitologias dos
mestres animais e do xamanismo, a jornada para o outro mundo por meio
de cerimônia de sepultamento, os ritos de passagem dos homens, o renas-
cimento e a dança mascarada (que) inspiraram as liturgias dessa época
brilhante.” (CAMPBELL, 1992. p. 305.)
Lascaux
52 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Além das pinturas rupestres, eram abundantes, nesse período, as es-
tatuetas de osso, marfim e pedra, representando a figura feminina e, curio-
samente, nas paredes das cavernas, as marcas de garras de ursos, sempre
próximas aos locais em que eram executadas as pinturas de animais, como
a indicar a propriedade dessa vizinhança. Não muito longe dali, para além
das garras do “mestre urso”, aparecem ainda contornos de mãos humanas.
Na caverna de Altamira, os touros são estrelas que cintilam no teto
para serem mortos pelas lanças do sol, que persegue os rebanhos do céu
noturno até o anoitecer seguinte. Em Lascaux, o bisão é o mestre animal
que morre voluntariamente, sacrificado na caça sacramental celebrada pelo
xamã, que, em Trois Frère, aparece em sua dança ritual. Trata-se, portan-
to, não somente de um ensaio para a caça, através da aplicação de técnicas
da magia, mas da constituição de uma via, ou mesmo, de uma dimensão
intermediária entre a vida cotidiana e o sobrenatural, a dimensão do en-
cantamento, como vermos adiante, possibilitadora do diálogo entre ambas.
Altamira
ANTROPOLOGIA DA ARTE 53
As pinturas rupestres das cavernas paleolíticas estão cercadas por
uma arquitetura de pedras que sugere um ritual complexo e minucioso,
cheio de mistérios e percalços. Os estreitos e intrincados labirintos subter-
râneos que dão acesso a muitas delas, a sequência de salas, a disposição de
fi guras e, algumas vezes, a presença de baixo-relevos e de esculturas pa-
recem propor vias de elevação espiritual. Para Campbell, a “localização do
xamã na cripta de Lascaux, a forma enfatizada do xamã dançarino de Trois
Frères e a expressão plástica dos dois bisões de Tuc d’Audoubert dizem
muito sobre o grau de sensibilidade estética dos artistas dessas cavernas,
que eram homens muito mais grandiosos do que mágicos primitivos invo-
cando animais. Eles eram mistagogos, conjurando as mentes dos homens”
(CAMPBELL, 1992. pp. 322-323), como que orientadores dos espíritos pelos
caminhos místicos do universo.
Para o autor de “As Máscaras de Deus”, a partir das cavernas locali-
zadas entre o sul da França e norte da Espanha, originaram-se os espaços
mágicos para a manifestação de Deus, reproduzidos pelos grandes templos
e pelas grandes catedrais, sejam do Oriente, sejam do Ocidente. A grandio-
sidade desses espaços – nos quais a mente, deslocando-se do corpo, fl utua
no céu interior do templo para, em seguida, desprender-se no além cósmi-
co – situa a arte dos pintores rupestres no contexto da busca humana pelo
divino, enquanto via de transcendência e superação da morte.
54 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Castellón
ANTROPOLOGIA DA ARTE 55
Pintura na cova do civil, Barranco de Valtorta (Castellón).
56 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Destaque:
Para mostrar a importância da descoberta da técnica da queima do
barro pelo homem, vale aqui revelar alguns detalhes do ofício como é hoje
praticado por nossos artesãos. Digo artesãos, porque a queima geralmente
fica por conta dos homens, devido ao forte calor envolvido. Há segredos,
herdados dos indígenas, como, por exemplo, o de que na lua nova ou quarto
crescente não é aconselhável queimar louça, porque ela racha. Se a queima
é feita ao rés do chão, a louça é colocada em círculos concêntricos e mo-
vimentada, ora aproximada, ora afastada do fogo, durante cerca de cinco
minutos. Se no forno, colocam-se as peças maiores primeiro, depois as me-
nores, botando fogo devagar, de acordo com a necessidade. Qualquer deslize
faz as peças racharem. Cobrem-se as peças com cacos de barro, fechando
bem as aberturas, de modo a não deixar sair o calor. O fogo vai sendo atea-
do aos poucos na lenha colocada, em partes iguais, dos dois lados, na parte
de baixo do forno. Nesse trabalho, se passam mais de duas horas, até che-
gar a um ponto em que a artesã testa a temperatura, despejando um copo
d’água. Se chiar, está no ponto de levantar o fogo com toda a força. Quando
as peças estão da cor de brasa, é sinal que estão prontas. O ritual completo
da queima dura de quatro a cinco horas. Só depois de queimadas, as peças
são pintadas com motivos geométricos, desenhos ou leves arabescos em
toar branco ou vermelho.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 57
Arnold Hauser procura explicar a passagem de uma arte “naturalista”
para uma arte próxima ao expressionismo, tendendo ao geometrismo e ao
abstracionismo, comparando-a à passagem correspondente, no campo artís-
tico, da magia ao animismo. Para ele, o homem do Paleolítico “encontrava-se
totalmente dominado pelo medo da morte e da fome, preocupava-se em se
defender contra os assaltos dos inimigos e das necessidades materiais, con-
tra o sofrimento e a morte, por meio de práticas mágicas, mas não estabele-
cia relação alguma entre a boa e a má fortuna que o acompanhava, e qual-
Arnold Hauser
Nasceu na Hungria em quer poder situado para além dos acontecimentos.” (HAUSER 1972, p. 25)
1892, estudou história Em outras palavras, a concepção mágica, própria do Paleolítico, se-
da arte e da literatura
nas universidades de Bu- gundo Hauser, seria monista, ou seja, a realidade se estenderia por uma
dapeste, Viena, Berlim e só e única dimensão, por um todo contínuo e coerente. Isso se dava porque
Paris. Em Paris, seu pro- o caçador, nômade e acossado por perigos e inquietações, não desfrutaria
fessor foi Henri Bergson,
que o infl uenciou profun-
da tranquilidade necessária para a aventura espiritual da transcendência.
damente. Após a Primeira Essa possibilidade só viria a aparecer no Neolítico, com o início da seden-
Grande Guerra, Hauser tarização da vida comunitária, proporcionada pelo pastoreio e pela agricul-
passou dois anos na Itá-
lia fazendo um trabalho
tura. Só então, os humanos teriam se apercebido de uma outra dimensão
de pesquisa sobre história da realidade, a dimensão divina, onde transitariam as almas dos animais e
da arte clássica e italia- das plantas, dos deuses e dos homens, de todos os seres, enfi m.
na. Em 1921, mudou-se
para Berlim, onde desen- Para Hauser, por trás da estilização geométrica da arte neolítica está
volveu sua visão de que essa concepção dualista de mundo própria do animismo, ou seja, a visão
os problemas da arte e da de uma realidade dividida entre o mundo concreto dos seres naturais e o
literatura são problemas
fundamentalmente socio- mundo abstrato das ideias, dos conceitos e das representações. Para ele,
lógicos. Três anos mais nesse momento teria início o processo de racionalização e intelectualização
tarde, estabeleceu-se em da arte. Em suas palavras, houve
Viena e, no ano de 1938,
mudou-se para Londres, a substituição das representações das formas concretas por sinais e
onde começou as pesqui-
símbolos, abstrações e abreviaturas, tipos gerais e sinais convencionais;
sas para sua grande obra:
A Historia Social da Arte,
a supressão das experiências fenomênicas diretas substituindo-as por
cujo trabalho consumiu conceitos e interpretações, por acentuações e exageros, distorções e des-
dez anos de intensa de- naturalizações. A obra de arte deixa de ser a representação pura de obje-
dicação. No início dos tos materiais e converte-se na tradução de uma idéia não somente uma
anos 1950, foi professor reminiscência, mas também uma visão. (HAUSER, 1972, p. 27)
visitante na Universida-
de de Brandeis nos Esta-
dos Unidos e, a partir de
Ora, o que já foi observado antes sobre a pintura rupestre do Paleolí-
1951, se tornou professor tico põe em questão esse raciocínio de Hauser. As pinturas “naturalistas”
de História da Arte na das grandes cavernas, como fi cou demonstrado, não apenas implicam um
Universidade de Leeds.
desenvolvimento intelectual e espiritual bastante avançado, como se dis-
tanciam, em muito, dos desenhos infantis e, até mesmo, dos desenhos dos
povos ditos “primitivos” contemporâneos. Ao contrário, as “simplifi cações”
acentuadas por Hauser estão presentes inclusive nos desenhos infantis e
não há nada que indique uma ligação entre naturalismo e irracionalidade
ou abstracionismo e racionalidade. Prova são os diferentes estilos que se
sucedem através da geografi a e das épocas históricas, indo de um extremo
ao outro, sem que haja qualquer relação valorativa entre a intensidade inte-
lectual de uma ou outra arte. No mundo contemporâneo, por exemplo, em
uma mesma cidade, costumam coexistir teatros que vão do mais extremo
realismo psicológico até a ritualização mais codifi cada. Para não falar no
campo das artes plásticas, no qual o paisagismo impressionista pode suce-
der, numa galeria de exposições, o mais ousado abstracionismo cromático.
Feito esse reparo, é possível admitir, como Hauser, que, em relação
ao Neolítico, o estilo naturalista se ligaria preferencialmente a povos com
organização social menos rígida, onde a iniciativa individual tem lugar mais
proeminente. Apareceria em sociedades menos hierarquizadas, menos or-
denadas, com estruturas mais fl exíveis e tendentes à anarquia, nas quais a
58 ANTROPOLOGIA DA ARTE
cultura está menos sedimentada e as tradições têm menos força de coerção.
Já o formalismo geométrico fl oresceria mais abundantemente em socieda-
des com instituições mais estáveis, com uma organização social mais uni-
forme e com uma religião mais fortemente estabelecida.
Joseph Campbell parece compartilhar de opinião semelhante ao as-
sociar o abstracionismo geometricamente organizado a um novo estilo de
vida nas aldeias, onde surge a diferenciação individual. Observa ele que,
nas sociedades caçadoras, as únicas diferenciações pareciam ser pelo sexo.
Nelas, cada indivíduo dominava, praticamente, todo o saber da comunida-
de. Já nas comunidades maiores e mais diferenciadas do Neolítico Superior,
aparece uma tendência à especialização e, consequentemente, à profi ssio-
nalização tanto no campo das artes como dos ofícios.
Um abstracionismo mágico
De certa maneira, não seria sem propósito dizer que a arte nasceu,
nasce e continuará nascendo em todo tempo e lugar onde esteja presente o
ser humano. Do mesmo modo, de alguma maneira, não soa absurdo afi r-
mar que todas as épocas nos são contemporâneas, ou seja, passado e fu-
turo como realidade têm sua existência no presente e, ainda mais, existem
tão somente no presente; porquanto, passado e futuro existem apenas como
fi cção, enquanto construções de nossa imaginação.
Digo isso para introduzir algumas observações sobre a arte das socie-
dades que José Alcina Franch classifi ca como “etnográfi cas”, ou seja, socie-
dades contemporâneas ágrafas e, eu diria, que vivem em padrões tecnológi- “A importância destas
cos, em certa medida, correspondentes aos do Neolítico Superior. Segundo culturas e, por conse-
Alcina Franch: guinte, de sua arte, não
reside no fato de que se-
La importancia de estas culturas y, por consiguiente, de su arte, no re- jam “primitivas” e de que
side en el hecho de que sean ‘primitivas’ y de que de esa manera ilustren dessa maneira ilustrem
as etapas antigas de nos-
las etapas antiguas de nuestra propia evolución o los momentos antiguos
sa própria evolução ou os
de la historia humana; sino en que, por ser más sencillas que nuestra momentos antigos da his-
civilización – al menos relativamente -, se prestan mejor a ser analizadas tória humana; senão em
con vistas a comprender los mecanismos siempre mucho más complejos que, por ser mais simples
de nuestro comportamiento artístico o estético. (FRANCH, 1982, p.28) que nossa civilização – ao
menos relativamente - , se
prestam melhor a serem
Faço essa abertura para justifi car, na discussão acerca das relações analisadas com vistas a
entre abstracionismo e racionalismo nas artes, a inclusão de um relato so- compreender os mecanis-
bre uma experiência artística bastante reveladora. Trata-se das pinturas mos sempre muito mais
resultantes de ritos praticados pelos índios tukano, que habitam a Amazô- complexos de nosso com-
portamento artístico ou
nia colombiana, região situada entre os rios Vaupés, Apaporis, Pira-Paraná estético.”
e outros, onde é frequente o uso de plantas alucinógenas com fi ns diversos.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 59
O antropólogo Gerardo Reichel Dolmatoff, em seu livro “O Xamã e o
Jaguar”, publicado no México em 1978, estudou detidamente o signifi cado
do uso de tais narcóticos, especialmente quanto às visões que provocam,
bem como a aparição das mesmas na arte, particularmente na ornamen-
tação de objetos e habitações. Em sua investigação dos signifi cados simbó-
licos de tais visões alucinógenas, enquanto imagens de um mundo social
e religioso no qual os tukano estão imersos, Reichel-Dolmatoff, para que
alcançasse uma percepção e uma compreensão bem mais próxima para um
homem moderno, participou de uma cerimônia de ingestão de iajé, a planta
utilizada no caso.
Ver Franch, José Alcina: Durante os rituais de iajé, os tukano têm acesso a visões chamadas,
Arte y Antropologia. Ma- pelos cientistas, de fosfenos. Imagens subjetivas surgem na mente dos in-
drid, Alianza Editorial,
1982. p. 30.
divíduos independentemente de toda fonte luminosa externa, consequência
da autoiluminação do sentido da visão. No cerimonial do iajé, esses fosfe-
nos são como que induzidos e aparecem em grande abundância, proporcio-
nando um “coito espiritual”, na expressão dos tukano, ou uma “comunhão
espiritual”, no modo de dizer dos sacerdotes. Segundo Reichel-Dolmatoff,
entre os tukano, os desenhos realistas de animais ou habitações são exce-
ções, sendo seu estilo artístico composto de desenhos baseados em fosfenos
induzidos pelo iajé. A maioria de seus elementos, se os relacionarmos com
a vida social e o imaginário tukano, gira em torno das relações sexuais e
de parentesco e recomenda a exogamia, relembrando essa lei ao indivíduo
tendo em vista o cuidado imprescindível com a preservação do seu povo.
Suas expressões estão gravadas em malocas, tamboretes, vasilhas, mara-
cás, tambores etc., assim como também em suas próprias máscaras rituais.
60 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Esse simbolismo daí gerado, que alcança certo nível de abstração e
que se identifi ca com o sobrenatural, produz um sistema de ideogramas
geométricos. Ernest Theodore Kirby aventa, inclusive, a hipótese de que
essas formas ideogramáticas das máscaras/fi gurinos tenham uma ligação
com a segunda fase do transe em que os mitos de origem do povo tukano
são revisitados em fi guras maiores e não bem defi nidas. Tais fi guras, ini-
cialmente amorfas, passam, durante o transe, por mutações, metamorfo-
seando-se, seguidas vezes, em homens, animais e seres fantásticos, quase
sempre sob formas aterrorizantes. A ausência de traços precisos nas más-
caras (suas “neutralidades”) possibilita essas mutações latentes, propicia-
das no decorrer do transe.
As máscaras tukano, assim como as de muitos outros povos amerín-
dios, que incluem além das máscaras propriamente ditas, coberturas de
corpo inteiro ou, pelo menos, de parte dele, parecem relacionar-se não aos
seres reais, mas aos seus espíritos e aos seres sobrenaturais. Isso fi ca evi-
dente na utilização de motivos neutros e geométricos, absolutamente não
realistas, na representação dos animais e seres fantásticos. Geralmente
feitas de tecidos vegetais, cascas de árvores ou de frutos, as máscaras
tukano não possuem aberturas para os olhos e suas formas privilegiam
mais a superfície que o volume, superfície onde se inscreve o ser represen-
tado através de um simbolismo mínimo – uma mancha para identifi car o
jaguar, por exemplo.
O fato de as máscaras tukano não possuírem aberturas para os olhos
é por demais signifi cativo. Ernest Theodore Kirby liga essa característica ao
fato de a comunicação, durante os rituais, estabelecer-se com os deuses de
modo introspectivo: o xamã volta-se para o interior de seu próprio espírito.
Destaque:
É interessante verifi car que acontece o mesmo fato de as máscaras ri-
tuais não possuírem abertura para os olhos em muitos dos ritos populares
do Nordeste brasileiro, entre eles o Candomblé, a Umbanda (onde Omulu é
representado com a fi lha de santo cobrindo o rosto com seus longos cabe- Ver artigo “Masques
los), e os trajes dos Pankararu (de Brejo dos Padres, em Pernambuco), por D’Amérique du Sud: la
Transformation Homme/
exemplo. Do mesmo modo, as narrativas míticas encenadas durante os ritos Animal”, in Le Masque:
e mesmo por ocasião dos folguedos no Nordeste brasileiro (a exemplo do que du Rite au Théâtre. Paris,
ocorre entre os tukano da Amazônia) são tidas, enquanto de autoria anô- Editions du CNRS, 1988.
p. 45.
nima, como de procedência divina e consideradas narrativas de fatos que
aconteceram “na origem dos tempos”, como veremos mais adiante.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 61
Pankararu - Aparece também uma cobertura corporal, desta vez dos índios Pankararu,
de Brejo dos Padres, Pernambuco, numa cerimônia-ritual Praiá; a máscara facial
aparece com uma pequena abertura para os olhos.
62 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Em seguida, ainda na introdução, a Unidade critica a concepção se-
gundo a qual o desenvolvimento mental do homem dar-se-ia em função
tão somente de responder a questões de subsistência material. Continua
a critica, pondo em discussão o conceito de arte primitiva por seu caráter
excessivamente genérico, além de valorativo, já que reúne, sob um único ró-
tulo, desde a arte do Paleolítico, de até 30.000 anos atrás, até a arte contem-
porânea de pintores ditos naifs. Termina relativizando a divisão entre arte
pré-histórica e arte histórica e chamando a atenção para a necessidade de
se incluir, nessa última, além das artes gregas e ocidentais como um todo,
as artes das grandes civilizações orientais e ameríndias.
Sob o título ‘O Enigma das Catedrais de Pedra’, a seção seguinte co-
meça por constatar o encanto que as pinturas rupestres das cavernas do
Paleolítico exercem sobre o homem contemporâneo e que, certamente, con-
tinuarão a exercer sobre as gerações futuras. Em seguida, localiza essas
pinturas concentradas em uma região que vai do sudeste da França ao
norte da Espanha, embora elas também apareçam na Rodésia, no Peru, no
Alasca, na Califórnia etc.
Aparecem gravadas em imensas galerias subterrâneas, ligadas ao
solo por estreitos labirintos, que se constituem em verdadeiras catedrais
de pedras, ricamente ornadas com magníficas pinturas de cenas de caças
ou de cerimônias rituais, além de figuras isoladas de animais em pleno
movimento, numa arte só comparável em virtuosismo e leveza à do natu-
ralismo impressionista moderno. De acordo com estudos arqueológicos, tal
arte, tomada por alguns como primitiva, decorreu de um longo processo de
aprendizagem e maturação artística, transcorrido ao longo de dezenas de
milhares de anos.
Observando fenômenos como esse, se pode deduzir ser a arte uma
forma de expressão inata ao ser humano, sendo encontrada de maneira ru-
dimentar até entre os animais. Há relatos de brincadeiras e jogos corporais
dentre os chimpanzés que em muito se assemelham a danças encontradas
dentre povos que vivem imersos na natureza, como os pigmeus do Golfo de
Bengala, na Ásia.
Estudar a relação entre homens e natureza e entre homens e animais,
particularmente em sociedades caçadoras como a dos pigmeus de Bengala,
através de seus ritos, nos ajuda a compreender as origens da arte. Esse tipo
de estudo mostra-nos como as pinturas rupestres, mais que um exercício de
caça, retratam relações espirituais que se passam numa dimensão mítica,
em espaços de encantamento.
As pinturas rupestres do Paleolítico são imagens do sobrenatural
imersas em catedrais-templos para a prática de ritos anímicos, movidos por
xamãs no diálogo com os deuses. A grandiosidade desses espaços situa a
arte dos pintores rupestres no contexto da busca do humano pelo divino.
No item sob o subtítulo ‘Um Lento Caminho Para a Abstração’, a abor-
dagem se detém no período de transição do Paleolítico para o Neolítico, ou
seja, de uma lenta transição do naturalismo para um estilo que tende a
um geometrismo abstrato. Enquanto no sul da França e norte da Espanha
ainda predominava uma tendência ao naturalismo, no leste da Espanha
caminhava-se para o expressionismo, a exemplo do que acontecia tanto no
Oriente Próximo, quanto no norte da África. Em comum a esses povos, ha-
via o fato de serem civilizações agrárias.
De certa maneira, fica evidente que, nas sociedades agrárias, mais
sedentárias e com organizações sociais mais ordenadas e hierarquizadas
ANTROPOLOGIA DA ARTE 63
verticalmente, havia uma tendência para o expressionismo e para o ge-
ometrismo abstrato, enquanto nas sociedades caçadoras, predominava o
naturalismo. Outra evidência parece ser uma tendência ao individualismo
nas sociedades caçadoras, onde a criatividade e a iniciativa individuais pre-
valeciam, contrastando com uma inclinação à construção coletiva e com a
divisão social do trabalho, nas sociedades agrárias.
Em vez de retratar um determinado ser, animal ou indivíduo humano,
se passava a retratar seres genéricos. O grupo, e não mais o indivíduo, era
o grande autor da obra de arte. A mulher e seu corpo, por ser fonte da vida,
por deter o mistério do nascimento, passavam a ser alguns dos temas prefe-
ridos por aquela arte. Surgiu o artesanato e a domesticação dos animais.
Segundo alguns teóricos, entre eles Arnold Hauser, no Neolítico Supe-
rior, os homens não mais procuravam, com sua arte, imitar a natureza, mas
criar uma imagem artística a ela correspondente. Segundo essa concepção,
só no Neolítico os homens teriam percebido uma dimensão espiritual na
realidade, passando da magia ao animismo. Entretanto, como o capítulo já
mostrou em seu início ao falar das pinturas rupestres do Paleolítico, não
apenas essa dimensão espiritual, como a criação de uma imagem artísti-
ca da realidade já estava presente na arte das grandes cavernas paleolíti-
cas. Admite-se, todavia, que o naturalismo em arte, no que diz respeito ao
Neolítico, estaria ligado preferencialmente aos povos de organização social
menos rígida, enquanto o formalismo geométrico se relacionaria principal-
mente a sociedades mais hierarquizadas.
O subtítulo ‘Um Abstracionismo Mágico’ trata do relato de uma expe-
riência dos índios tukano, que habitam a Amazônia colombiana. Começa
afi rmando que a arte nasceu, continua nascendo e nascerá em todo tempo
e lugar. Depois, usa o relato do antropólogo Gerardo Reichel Dolmatoff sobre
uma experiência dos tukano para mostrar que não há uma relação neces-
sária entre abstracionismo e racionalidade.
Segundo esse relato, em seus rituais sagrados, os tukano, utilizando
alucinógenos, chegam à percepção de sinais abstratos que, depois, organizam
de forma sistemática. Com esse verdadeiro “alfabeto” de sinais, traduzidos
em desenhos, ornam não apenas seus objetos rituais, mas também malocas,
vasilhas, máscaras, tamboretes etc. Ditos sinais são uma espécie de ideogra-
mas geométricos obtidos em transes, desenvolvidos em danças mascaradas.
Nessas danças, os tukano utilizam coberturas de corpo inteiro, com
máscaras faciais neutras sem aberturas para os olhos, de modo absoluta-
mente não realista. A falta de abertura para os olhos denota relações intros-
pectivas com os espíritos dos animais mimetizados, o que revela, portanto,
procedimentos não racionais. Com isso, fi ca evidente que, pelo menos no
caso tukano, não há uma relação necessária entre abstracionismo geomé-
trico e racionalidade.
64 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Vitalino, Chico da Silva, Noza e Nino
Foram artistas populares nordestinos que viveram e produziram no sé-
culo passado, tendo se notabilizado e feito nome internacionalmente, mercê
da excelência de seus trabalhos. Vitalino era mestre e escultor em cerâmica.
Pernambucano, nasceu e viveu em Caruaru, onde produziu toda sua obra e
fez escola. Chico da Silva, maranhense de nascimento, dedicou-se à pintura,
tendo vivido grande parte de sua vida no bairro do Pirambu, em Fortaleza,
onde produziu a maior parte de sua obra e formou grande número de dis-
cípulos. Noza foi santeiro e escultor em madeira na cidade de Juazeiro do
Norte sob orientação do Padre Cícero, ficando afamado entre os romeiros
e devotos daquele santo popular. Nino foi escultor e criador em madeira de
Juazeiro do Norte, que trabalhou temas diversos sempre ligados à natureza
e à vida popular sob uma ótica onírica e muito pessoal.
Joseph Campbell
Considerado um dos maiores mitólogos de todos os tempos, nasceu no
dia 26 de março de 1904, na cidade de Nova York, Estados Unidos. O seu
interesse pela mitologia foi despertado na primeira infância quando seu pai
o levou para ver um espetáculo de Búfallo Bill denominado Wild West Show e
para visitar o Museu de História Natural de Nova York, onde as estacas totê-
micas e as máscaras dos índios fascinaram-lhe. Para Campbell, a riqueza dos
mitos não está em elucidar ou revelar algum tipo de significado para a vida,
mas o de ser um registro simbólico da própria experiência de estar vivo. O
mito capta a vida no seu eterno fluir. Joseph Campbell morreu em Honolulu,
Havaí, em 30 de outubro de 1987.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 65
Segue uma lista de suas obras publicadas em português:
EXTENSÃO INTERIOR DO ESPAÇO EXTERIOR - A metáfora como Mito
e Religião. Rio de Janeiro:Campus, 1991 - 168 p.Contém o delineamento da
interpretação que Joseph Campbell tem da mitologia e da religião.
HERÓI DE MIL FACES São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995 - 414 p.
Nessa obra, a mais conhecida e difundida de Campbell, o autor procura elu-
cidar a figura do herói: Apolo, Wotan Buda e numerosos outros protagonistas
da religião, dos contos de fada de uma mesma história. O relacionamento en-
tre os seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos sonhos pela
moderna Psicologia Profunda é o pponto de partida oferecida por Campbell.
IMAGEM MÍTICA (A) Campinas, SP: Papirus, 1994 - 506 p. Profunda
análise da unicidade da existência e da espiritualidade humanas, evidencia-
da, sobretudo, por meio do estudo comparativo da imagística onírica e da
mitologia do oriente e do ocidente.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia primitiva São Paulo: Palas Athe-
na, 1992 - 418 p. É o primeiro volume, de uma série de quatro, daquela
que é a obra monumental de Joseph Campbell. Contém uma abordagem dos
mitos dos povos primitivos.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia oriental São Paulo: Palas Athe-
na, 1994 - 447 p. Estudo da mitologia oriental, sobretudo dos mitos que se
desenvolveram no Egito, China, Tibete e Japão. É o segundo volume de uma
série de quatro.
PARA VIVER OS MITOS São Paulo: Cultrix, 1997 - 217 p. Joseph Camp-
bell mostra a permanência, na moderna sociedade tecnológica, da influência
dos mitos que motivaram as sociedades pré-científicas.
PODER DO MITO (O) com Bill Moyers São Paulo: Palas Athena, 1990 -
242 p. Contém o texto de uma conversação entre Bill Moyers e Joseph Cam-
pbell do qual foi extraída a minisérie do mesmo nome de seis horas da Public
Broadcasting System, rede de TV educativa dos Estados Unidos. Esse livro
apresenta uma visão ampla e profunda sobre a questão do mito.
TODOS OS NOMES DA DEUSA Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tem-
pos, 1997 - 204 p. Essa é a última obra escrita por Joseph Campbell. O tra-
balho conta com a colaboração de Riane Eisler, Marija Gimbutas e Charles
Musès e aborda o tema da Grande Mãe, arquétipo que configura o princípio
feminino doador e nutridor da vida.
TRANSFORMAÇÕES DO MITO (AS) São Paulo: Cultrix, 1992 - 246 p.
Coletânea de treze palestras proferidas por Campbell quase no final de sua
vida, abordando, dentre outros, temas como as origens do homem e do mito,
o mito dos índios americanos, deusas e deuses no período neolítico, o Egito,
o Êxodo e Osíres.
VÔO DO PÁSSARO SELVAGEM - Ensaios sobre a universalidade dos
mitos Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 - 284 p. Uma interpre-
tação de Campbell sobre a universalidade dos mitos e sobre o mistério da
mitologia e a sua importância frente aos desafios com os quais se defronta
a sociedade contemporânea.
66 ANTROPOLOGIA DA ARTE
• Representa um grupo exogâmico
Ponto vermelho: “nossa gente”
Ponto azul: “outra gente”
• Relação recíproca entre dois ou mais unidades exogâmicas.
• Linha de descendência, fecundidade e continuidade social.
• Representa o incesto e as mulheres que alguém não pode tomar
como esposas. Também concha de caracol e signo de yusupari.
• Representa a exogamia. Também duas nasas juntas vistas de cima
> órgãos femininos “devoradores”; os peixes que entram nelas são
elementos masculinos.
• Representa a Via Láctea.
• Representa o Arco Íris, em alguns contextos mitológicos se relaciona
com a vagina celestial.
• Representa o Sol. Se há vários círculos concêntricos ou os raios vão
até dentro: órgão feminino.
• Representam: tamboretes de madeira dos homens pintados de lis-
tras vermelhas; e simbolizam estabilidade e bom juízo.
• Representa o útero feminino.
• Representa uma porta de entrada ao útero. Também; os céus. Trans-
missão de um estado de consciência a outro no processo alucinóge-
no. Representa um marco que rodeia o espaço vazio; a protuberân-
cia superior representa o clitóris.
• Representa gotas de sêmen; a descendência da vida mesma.
• Caixa de ornamentos plumários; em algum contexto mitológico: são
elementos femininos ou uterinos.
• Representa o milho ou a vegetação em geral.
• Representa marcas de cabaça.
• Representa portacigarros de madeira empregados nos rituais em
que se reafirma a aliança entre unidades exogâmicas.
Leitura
• Strauss, Claude Lévi. Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1993
Filme
• O Poder do Mito – Joseph Campbell. Narrado por Bill Moyers. Public
Broadcasting System
ANTROPOLOGIA DA ARTE 67
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Primitiva. São Paulo,
Palas Athena, 1992.
CHILDE, V. Gordon. A Evolução Cultural do Homem; Rio de Janeiro, Zahar,
2a. ed., 1971.
FRANCHA, José Alcina: Arte y Antropologia. Madrid. Alianza Editorial, 1982.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo, Mestre
Jou, 1972.
KÖHLER,Wolfgang: The Mentality of Apes. Nova York, Humanities Press,
1927. 2ª.ed.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Paris, Editions du CNRS, 1988.
Textes et études réunis et presentes par Odette Aslan et Denis Bablet.
68 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Unidade
4
Arte, Magia e Máscara
Objetivos:
• Discutir a relação entre arte e rito a partir do estudo do mito e da magia, detendo-
se especialmente na análise das máscaras rituais.
Capítulo 1
Pensamento Selvagem e Magia
Nesse sentido, o pensamento selvagem diferencia-se da ciência porque, en- No sentido empregado por
quanto esta trabalha com diferentes níveis de determinismos, o pensamen- Lévi-Strauss, de homem
to selvagem postula um determinismo global e integral. Entretanto, essa que vive imerso na natu-
reza, que se vê como parte
busca de uma ordem nas coisas é não apenas comum à magia (enquanto dela.
lógica do pensamento selvagem) e à ciência moderna, como é também uma
expressão antecipatória da primeira sobre a segunda. Essa busca em estabe-
lecer alguma espécie de
Disso não se pode concluir, no entanto, que o pensamento selvagem, ordenamento também é
como a magia, tenha gerado uma espécie de pré-ciência, no sentido de uma comum à arte.
ciência atrasada ou rudimentar.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 71
Como muito bem observou Claude Lévi-Strauss,
Não apenas por sua natureza, essas antecipações podem às vezes ser co-
roadas de êxito; elas também podem antecipar duplamente; em relação
à própria ciência e aos métodos e resultados que a ciência só assimilará
num estádio avançado de seu desenvolvimento, se é verdade que o ho-
mem enfrentou primeiro o mais difícil, ou seja, a sistematização no plano
dos dados sensíveis, aos quais a ciência voltou as costas por muito tempo
e que apenas começa a reintegrar em sua perspectiva. (LÉVI-STRAUSS,
1989, p. 27).
72 ANTROPOLOGIA DA ARTE
tórios que viriam a, no futuro, alimentar diversas ciências, como a astro-
nomia, a física, a medicina, a botânica, a química, a matemática etc. Nas
grandes civilizações orientais e até mesmo na Europa, pelo menos até o
Renascimento, magia e ciência coexistiram como conhecimentos válidos no
corpo e na mente dos mesmos sábios. Assim é que alquimistas eram tam-
bém químicos, e astrólogos, astrofísicos. “As matemáticas por certo muito
deveram às pesquisas sobre os quadrados mágicos ou sobre as proprieda-
des dos nomes e das fi guras.” (MAUSS, 1974, p. 171).
O princípio mais geral observado na natureza pelos alquimistas, se-
gundo Mauss (1974), é o de que “um é o todo, e o todo é um” (MAUSS, 1974,
p. 102), no sentido de que o todo está na menor parte de um e de que essa
menor parte contém o todo. A partir desse princípio, o mundo é concebido
como um ser único, como um grande ser vivo, que é composto de partes
indissociavelmente ligadas e no qual tudo se assemelha e se toca. Desse
princípio mais geral, derivam todas as demais leis da magia.
O conjunto de suas variações pode ser sintetizado em três leis princi-
pais, nomeadas pelos antropólogos como leis da magia simpática, estando
subentendido no termo simpatia, o termo antipatia, como seu contrário.
São elas: a lei da contiguidade ou do contato; a lei da similaridade, da seme-
lhança ou similitude; e a lei do contraste ou do contrário. Cabe observar que
essas leis correspondem a leis da percepção estética e funcionam tanto na
arte quanto na comunicação de um modo geral, sendo que, na magia, elas,
não se limitando ao campo dito subjetivo, aplicam-se ao campo dos fatos Há o costume entre os
romeiros que vão aos
considerados pela ciência como objetivos. santuários de Canindé
Pela lei da contiguidade ou do contágio, os seres (pessoas ou coisas) e Juazeiro do Norte, no
Ceará, de passarem por
colocados em contato permanecem unidos, mesmo depois de separados. Fortaleza em seus trans-
Não apenas cada parte de uma pessoa (ou de uma coisa), mas também portes (antigamente ca-
toda e qualquer coisa ou pessoa que com esta entrou em contato, mesmo minhões ‘paus-de-arara’ e
atualmente ônibus ‘semi-
depois de separada dela, permanece a ela ligada. Uma mecha de cabelo,
-leitos’) para conhecer o
um pedaço de unha, uma gota de suor, mas também um retalho de roupa, mar. Geralmente fazem
uma pegada, uma impressão digital, uma cadeira onde ela sentou-se, uma uma parada à beira-mar,
pessoa muito chegada, um fi lho, um cônjuge, um parente próximo, tudo molham os pés nas ondas
que alcançam o começo
está a ela ligado. Agindo sobre qualquer um desses elementos se está agindo da praia e enchem muitas
sobre ela, porque é também algo dela, de sua ânima, de sua energia, da es- garrafas com água salga-
sência de seu ser. Nem mesmo precisa ser muito íntimo ou de contato muito da. Voltam contentes por
levarem consigo uma lem-
frequente, basta haver sido tocado por ela, ter entrado em contato com ela: brança do mar e poderem
restos de comida, um copo usado ou coisas semelhantes. mostrá-la aos parentes e
amigos que fi caram.
Pela lei da similaridade ou similitude, o semelhante evoca e produz o
semelhante, atua sobre e cura o semelhante. Do mesmo modo que, na se-
miótica, o ícone está para o objeto representado, assim como o índice está
para o seu referente, na magia simpática, “a imagem está para a coisa como
a parte está para o todo” (MAUSS, 1974, p. 97)
Nos processos mágicos, muitas vezes, as leis da contiguidade e da
similitude se fundem e atuam concomitantemente através de metáforas e
imagens outras, as mais diversas. Assim é que o mar pode ser representado
por uma garrafa contendo água salgada, a chuva por um “pau de chuva”, o
amor por um laço etc.
"Pau de chuva"
Pela lei da contrariedade, o contrário atua sobre o contrário, ou seja, Trata-se de um grande
se o semelhante atrai o semelhante, afasta seu contrário. Daí tem-se a sim- cilindro de bambu ocado
patia e a antipatia como noções complementares. O “pau de chuva” chama contendo sementes que,
quando virado vertical-
a chuva e afugenta a seca. Porém, se o caso é afastar a chuva, tem-se que mente, produz um som
trabalhar com seu contrário, isto é, com algo que represente a seca. O que semelhante ao da chuva.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 73
difere é o ponto de partida, que, nesse caso, não é atrair a chuva, mas afu-
gentá-la. Então, o mais aconselhável talvez seja usar o elemento fogo, quem
sabe uma fogueira, para evocar o sol, por exemplo.
Depois de descrever o que ele chamou de leis ou princípios da magia
simpática, Mauss (1974), como Frazer já havia feito anteriormente em O Ramo
de Ouro (FRAZER, 1982, p. 34), as qualifi ca como “uma série de formas va-
zias, ocas, de resto sempre mal formuladas, da lei da causalidade” (MAUSS,
1974, p. 105). Reconhece, entretanto, logo em seguida, que os mágicos, em
razão de suas observações e especulações sobre as propriedades concretas
de diferentes elementos da natureza, assim como acerca das relações de cau-
salidade entre eles, chegaram a estabelecer rudimentos de leis científi cas.
74 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 2
O Mana
ANTROPOLOGIA DA ARTE 75
seja, que é carismático, imantado, no caso, impregnado de mana. Em outro
sentido se pode dizer que alguém age com mana, ou seja “manamente”, do
mesmo modo como se diz que alguém age magicamente. Finalmente, se
pode referir ao mana de um objeto ou de alguém, assim como ao ato de um
pajé ou xamã impregnar de mana (“manar’)” determinado ser ou objeto.
Mesmo sendo propriedade do objeto, o mana o transcende, dele des-
prega-se. Seguindo os princípios da magia simpática, o mana transfere-se
de ser a ser, de objeto a objeto, de ser a objeto, de objeto a ser, acumula-se,
esvai-se, por contagio, por similitude, por contraste. O mana manifesta-se
materialmente. Toma forma, é visto, ouvido, sentido, tocado. Desprende-se
das coisas feito chama, feito vento, feito nuvem.
Os Huron da América do Norte, que nomeiam o mana como orenda,
o concebem como poder místico, inerente a tudo o que existe na natureza
e além dela.
Os fenômenos naturais, como o temporal, são produzidos pelo orenda
dos espíritos desses fenômenos. Caçador feliz é aquele cujo orenda ven-
ceu o orenda da caça. O orenda dos animais de difícil apreensão é con-
siderado inteligente e maligno. Vêem-se por toda parte, entre os Huron,
as lutas dos orenda, como se vêem, na Melanésia, as lutas dos mana.
Também o orenda é distinto das coisas às quais se liga – e a tal ponto que
pode ser exalado e lançado: o espírito fazedor de tempestades lança seu
orenda representado pelas nuvens (MAUSS, 1974, p. 142).
Esse carisma, essa energia mágica, esse fl uido místico, que na Mela-
nésia se chama mana e os Huron chamam orenda, não pode ser confundido
com alma ou espírito individual, muito menos com força, vigor ou poder
material. É antes uma potencialidade que se manifesta no som que os seres
emitem: no berro dos bichos, no sopro do vento, no farfalhar das árvores,
no marulho da água, no canto dos pássaros e dos xamãs e nas preces dos
sacerdotes. É ele que se manifesta como força nos encantados, nos amule-
tos, nos fetiches, nos talismãs, nos mascotes, nas mezinhas, nos ex-votos,
nos remédios etc.
Diferentemente de outras ideias que presidem o funcionamento lógi-
co da magia simpática, como os princípios do contágio, da similitude e do
contraditório, o mana não é uma categoria do entendimento individual. Ten-
do seu funcionamento condicionado pelo coletivo, sua existência pressupõe
uma crença partilhada socialmente. Melhor dizendo, enquanto os princípios
lógicos sistematizados pelos mágicos podem ser perfeitamente aplicados ao
Ver MAUSS p. 148.
homem moderno, no terreno da comunicação de massas, como já foi mos-
Para os mágicos, esses trado anteriormente, a crença na força mágica (no mana) fi ca cada vez mais
são princípios gerais que restrita a setores da sociedade em que a racionalidade moderna não moldou
se referem ao conjunto da
natureza e não apenas às completamente. Daí que, como afi rma Marcel Mauss, tudo leva a crer que a
leis do pensamento hu- associação de ideias por contágio, similitude e contradição seja algo ineren-
mano. te à espécie humana, como a noção de tempo e espaço, por exemplo.
A noção de mana, porém, faz das associações naturais de ideias pre-
ceitos imperativos, que implicam consequências práticas necessárias e ob-
jetivas. A crença na objetividade dos preceitos gerados por tais associações
de ideias, para torná-los efi cazes, necessita do compartilhamento comuni-
tário, ou seja, que elas sejam reproduzidas na mente do conjunto dos indi-
víduos envolvidos nos rituais de magia. Nesse sentido, se pode dizer que a
magia só existe no coletivo, em sociedade, que ela só tem lugar em culturas
onde a massa dos indivíduos compartilha seu modo de ver o mundo.
Nos rituais mágicos, a comunidade inteira atua, não havendo ofi ciante
único ou protagonistas exclusivos, nem separação atores/espectadores, pal-
76 ANTROPOLOGIA DA ARTE
co/plateia. Neles, toda a comunidade participa ativamente, atua como um
bloco único, por assim dizer, como um só indivíduo, na forma de um grande
corpo social. Referindo-se à dança com sabres das mulheres dayak, uma tri-
bo marítima da Nova Guiné, na ocasião em que os homens se ausentam para
a caça, a pesca ou a guerra, Marcel Mauss nos dá uma magnífi ca descrição:
Anima-se todo o corpo social num só movimento. Não há mais indiví-
duos, que, por assim dizer, são as peças de uma máquina, ou ainda,
os raios de uma roda, uma ronda mágica, dançante e cantante, seria a
imagem ideal, talvez primitiva, mas que com certeza se reproduz ainda
agora nos lugares citados e ainda alhures. Este movimento rítmico, uni-
forme e contínuo, é a expressão imediata de um estado mental em que a
consciência de cada um é monopolizada por um só sentimento, uma só
idéia alucinante – a da fi nalidade comum. Todos os corpos têm o mes-
mo balanço, todos os rostos têm a mesma máscara, todas as vozes têm
o mesmo tom, sem contar a profundeza da impressão produzida pela
cadência, pela música e pelo canto. Vendo em todas essas fi guras a ima-
gem do desejo comum, ouvindo de todas essas bocas a prova da certeza
comum, cada um sente-se, sem resistência possível, aderir à convicção
de todos. Confundidos no transporte de sua dança, na febre de sua agi-
tação, formam um só corpo e uma só alma (MAUSS, 1974, p. 161).
Para que a tribo tenha êxito na guerra, tanto a coragem dos homens
nas armas, quanto o empenho das mulheres na dança são imprescindíveis.
Como imprescindível é que ambos, homens e mulheres, acreditem nos seus
ritos e acreditem na crença de uns nos outros. Só então, a passagem do mana
gerado pela dança das mulheres efetiva-se no corpo dos guerreiros dayak.
Destaque
Atualmente, mesmo em sociedades ditas modernas, como a brasileira,
ocorrem fenômenos semelhantes. Tome-se, por exemplo, o que acontece no
mundo do futebol, durante as Copas do Mundo, quando dezenas de milhões
de brasileiros formam “aquela corrente prá frente”, torcendo freneticamente
pela seleção canarinha, em frente à televisão, acreditando (mesmo incons-
cientemente, tal o fervor com que o fazem) estar contribuindo para o desem-
penho dos atletas como se estivessem presentes ao local dos jogos.
Essa não observância do espaço tridimensional, em que a distância
não impede sua transmissão imediata, coloca o mana e o mundo da magia
em uma dimensão da realidade separada, oculta, por assim dizer, desta-
cada das que costumeiramente percebemos. Sem deslocar-se de todo do
mundo natural, constitui-se, entretanto, como que uma quarta dimensão
do espaço, que se superpõe ao mundo real, unido a ele e, contudo, dele
apartado. Penetrar essa dimensão invisível do real requer poderes e saberes
raros e complexos, que incluem acervos de gestos, palavras e procedimen-
tos, entendimento de princípios e conceitos, assim como de atos formais, co-
nhecimentos completos de substâncias e de conexões entre seres e objetos,
enfi m, o domínio do ofício da magia.
78 ANTROPOLOGIA DA ARTE
são espíritos de animais, ou de entidades particulares, que dão nome aos
terreiros. Cabe aqui o exemplo dos homens-animais e, particularmente, do
homem-jaguar, entre os Tukano do alto Amazonas, em que o espírito daque-
le animal funciona como um auxiliar dos pajés, ou ainda o caso do espírito
do cangaceiro Pai Francisco – ex-membro do grupo de Lampião, que tem
função idêntica no terreiro de Umbanda, por nome Rei do Cangaço, no bair-
ro Presidente Kennedy, em Fortaleza –, que funciona como entidade auxiliar
da Mãe de Santo Maria Linduína Souza, a Linduína do Cangaço.
O rito mágico exige, de seu oficiante, uma série de preparativos, cui-
dados e ritos preliminares que, algumas vezes, podem se estender às suas
famílias e aos seus grupos sociais, assim como à pessoa ou ao grupo de
pessoas objeto do rito, se for o caso. Há prescrições no sentido comporta-
mental, como a observação da castidade, do isolamento e do jejum, assim
como relativas a pequenos ritos, como o de ungir-se ou o de fazer abluções
prévias, ou ainda em relação ao visual adequado, incluindo trajes, pinturas,
máscaras, coberturas de cabeça etc. Além disso, e mais importante ainda,
é preciso manter-se concentrado e circunspecto: presente na fé.
Destaque
No ano de 2003, pude acompanhar os preparativos do terreiro de um-
banda Pai do Cangaço, citado acima, para os rituais da Festa de Iemanjá,
na Praia do Futuro, em Fortaleza. A Filha de Santo escolhida para incorpo-
rar a entidade, na semana anterior à festa, observou um período de retiro,
jejum e abstinência sexual. Para o ritual do dia, vestiu-se de acordo com o
figurino de Iemanjá, sendo acompanhada de um séquito de meninas traja-
das de branco com pequenas grinaldas na testa, ao modelo dos trajes católi-
cos de anjos ou de 1ª comunhão. Durante toda a cerimônia, ela manteve-se
absolutamente concentrada e em posições correspondentes ao imaginário
da entidade, embora os rituais tenham se prolongado durante muitas horas
seguidas sob a luz ardente do sol, à beira-mar.
O mágico executa seu rito, recorrendo a uma performance absoluta-
mente estudada. Seus gestos são bruscos, suas palavras cortantes, há uma
tensão que perpassa todo o seu corpo. Muda o ritmo usual da fala, joga com
as palavras, usa códigos incompreensíveis. Mostra certo nervosismo, pode
cair em transes nervosos, crises de histeria, estados catalépticos, êxtases,
provocados ou não. Parece estar fora de si e transitar, num estado anormal,
por uma outra dimensão do real.
Ao mesmo tempo, ao executar seus procedimentos, o mágico demons-
tra uma habilidade manual extraordinária e completo domínio sobre si
mesmo. Sua movimentação é extremamente formal e refinada, repleta de
preciosismo. Ele trabalha com os mais diferentes materiais: madeira, metal,
barro, cera, mel, gesso, papel mascado, plástico etc. Esculpe, modela, pinta,
desenha, borda, tricota, tece, grava, marcheteia. Manipula essências, mezi-
nhas, raízes etc. Fabrica manipanços, escapulários, talismãs, amuletos etc.
Durante sua performance, o corpo do mágico permanece imantado.
De seus movimentos, de seus gestos (sejam os mais largos, ou os mínimos,
como o piscar de olhos), de seus próprios pensamentos, emanam eflúvios
que contagiam o mundo da natureza e dos espíritos. Seus poderes especiais
o fazem infenso à lei da gravidade; por isso, pode elevar-se no ar, deslizar
sobre o chão, flutuar, transportar-se para onde queira. Tem, ainda, o poder
da ubiquidade: é capaz de dilatar seu próprio corpo e de realizar movimen-
tos impossíveis para os outros.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 79
A ubiquidade do mágico se exerce a partir do deslocamento de sua
alma. Acredita-se, ainda hoje, nas sociedades animistas, que as almas dos
mágicos deixam seus corpos, durante o sonho, e passeiam sob formas de
moscas ou de borboletas. Um dos sinais reconhecíveis desse deslocamen-
to é o de uma mosca sobrevoar-lhe a boca enquanto dorme. Mas a alma
do mágico pode também deixar seu corpo durante uma sessão espírita e
deslocar-se para agir fi sicamente, como um duplo. Marcel Mauss (1974) cita
o exemplo de um feiticeiro dayak que se transportava para procurar seus
De acordo com Marcel
Mauss, acreditava-se que remédios. Só aparentemente ele continuava presente na sessão; os assisten-
isso acontecia inclusive tes o viam, mas, de fato, ele estava ausente de corpo e alma.
com as almas vulgares
(Ver MAUSS, 1974, p. Especialmente em sua forma xamânica, a magia inclui o estado de
64). Mas, ao contrário das possessão. O feiticeiro cede seu corpo, anulando sua individualidade, à
outras almas, no caso do incorporação de uma personalidade, de certa maneira, a ele estranha. O
mágico, a alma se solta ao
seu comando.
mágico é como que possuído por uma entidade. Entretanto, as entidades
a serem incorporadas, quase sempre arquetípicas de algum modo (mesmo
Ver MAUSS p. 65. que de maneira embrionária), subjazem no inconsciente do indivíduo. Cabe
Penso também no dom de
ao xamã, por processos extáticos, extraí-las e ampliá-las, dando-lhes forma
ubiquidade de que se fala com seu próprio corpo: ação, voz, gesto, movimento, expressão facial etc.
sobre certos santos católi-
Cada mágico, cada xamã, cada médium, cada pai ou mãe de santo
cos como Santo Antônio e
São Francisco. têm suas entidades, seus espíritos, seus orixás, que incorporam e que, de
algum modo, trazem dentro de si e são capazes de exteriorizar. Se eles são
Claro que há inúmeros possuídos, conhecem o espírito que os possui. Se a incorporação acontece
casos de falseamento, si-
mulações, charlatanismo em transe, ela se realiza de modo controlado, provocado, consciente. De al-
etc. guma maneira, dominam o processo de sua própria possessão, dirigem de
dentro seu processo, tornam mais lentos ou aceleram os passos da dança,
diminuem ou apressam o ritmo da música, alternam a coreografi a, usam
o fumo, a bebida, o perfume etc. “Em suma, a qualidade de ser possuído
é uma qualidade profi ssional do mágico não apenas mítica, mas física e é
uma ciência da qual os mágicos têm sido desde muito tempo os depositá-
rios” (MAUSS, 1974, p. 69).
Em sua atuação, o mágico trabalha com o corpo e o espírito altera-
dos, seus gestos são solenes, sua voz aparece modifi cada, soa como se não
saísse dele, sua linguagem não parece humana, assemelhando-se a um
código cifrado por deuses. Trabalha com toda concentração. Em nenhuma
hipótese, pode ser interrompido, sob pena de quebrar-se a magia.
Os processos extáticos nos transes xamânicos, em todo caso, envol-
vem não apenas o mágico, mas o conjunto dos circunstantes. Desenvolvem-
se em ritos nos quais participam não apenas o feiticeiro e seus clientes,
mas quase sempre toda uma coletividade. A música contínua e repetitiva,
os mantras cantados, as defumações, a coreografi a circular, os fl uidos di-
versos, entre outras técnicas, levam o grupo dos circunstantes a comungar
uma atmosfera espiritual e fi siológica única.
Durante o rito mágico, ofi ciante e coro, sacerdote e fi éis, feiticeiro e co-
munidade formam um corpo único. Mas embora ele, mágico, possa sozinho
alcançar o transe e desejar, de fato, obter o resultado mágico pretendido por
mais difícil que se apresente, sua força, seu mana, seu poder mágico, acaso
ele hesite, duvide ou fraqueje, sustenta-se no coletivo, na ânsia da comuni-
dade para conseguir o objetivo projetado.
De certa maneira, a atuação do mágico situa-se entre o dirigir e o ser
dirigido pela coletividade. Durante o rito, ele conduz e é conduzido do êxtase
à catarse, do estado de exaltação absoluta ao de serenidade, do descomedi-
mento ao equilíbrio, pelo apaziguamento das paixões. Em torno do mágico,
todo o grupo coloca-se em movimento, movido por uma vontade única.
80 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Trata-se de todo um meio social que se emociona só porque num de seus
setores realiza-se um ato mágico. Forma-se em volta desse ato um cír-
culo de espectadores apaixonados, que o espetáculo imobiliza, absorve e
hipnotiza, que, tanto quanto espectadores, sentem-se também atores da
comédia mágica, como o coro no antigo drama (MAUSS, 1974, p. 160).
ANTROPOLOGIA DA ARTE 81
Capítulo 4
Máscaras Rituais
82 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Mais adiante, veremos
que esse alheamento nun-
ca é completo.
Máscaras Waurá MT
ANTROPOLOGIA DA ARTE 83
Como é costume entre os povos de cultura anímica, os Tukano da
fronteira Brasil/Colômbia acreditam que animais e humanos compartilham
uma mesma natureza espiritual. Por isso, os animais podem trocar suas
peles e couros por formas humanas e viver entre os homens em suas al-
deias. Do mesmo modo, através de máscaras-vestimentas, que figurem ani-
mais, pode ser feita a passagem inversa. Essa metamorfose, homem/ani-
mal, acontece durante danças cerimoniais em que são utilizadas máscaras
em estilo geométrico.
Enquanto a máscara neutra faz com que, tão somente, a partir da
performance de seu portador, se possa identificar a entidade nela incorpora-
da, a máscara geométrica traz inscritos em si os motivos de sua figuração.
Entre os Tukano, como vimos anteriormente, essas inscrições aparecem
numa espécie de código abstrato. Em suas máscaras, geralmente figurações
de animais, tais inscrições costumam aparecer em torno da boca. Buscam,
desse modo, indicar que o som advindo da máscara é a voz do espírito do
animal por ela figurado.
84 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Cabe aqui tratar, mesmo que de passagem, de uma questão frequente-
mente discutida em relação às máscaras: sua condição ou não de disfarce.
Ou seja, em que medida a máscara é um meio de ocultamento ou de revela-
ção? Há quem diferencie máscara de disfarce, como Elie Konigson (1988) ao
tratar da máscara do demônio na cena da Idade Média. Para ele, a máscara
propriamente dita é, ela mesma, um objeto mágico, dotado de poder mágico,
que substitui a entidade que figura, sendo, ela própria, a entidade e não seu
disfarce. Dá, como exemplo, “a efígie real - que substitui o rei morto du-
rante o breve interregno que separa sua queda, seus funerais, e a ascensão
do novo rei ao trono – marcando a continuidade do poder real para além da
morte dos reis. Nesse caso é uma máscara ritual ao mesmo tempo religiosa
e social e em alguns casos um disfarce” (KONIGSON, 1988, p. 103).
Para Konigson (1988), todas as outras máscaras – entre as quais
inclui as máscaras neutras, as de animais, as grotescas, as de “homens
selvagens” e as do diabo – não seriam máscaras propriamente ditas, mas
disfarces. Isso é porque, tais “máscaras” não estariam ligadas, por laços
especiais, a ritos codificados, a interditos ou a seus portadores.
Entretanto, como já vimos, se tal observação tem pertinência aplicada
à cena medieval europeia, perde o propósito quando o foco se concentra nas
sociedades aborígenes da América do Sul. Nessas sociedades, as máscaras
rituais são disfarces e máscaras a um só tempo: disfarces, porque meios de
apagamento da identidade de seus portadores e porque formas encantadas
dos deuses, ou seja, elas ainda não são os deuses propriamente, mas seus
disfarces; máscaras, porque identidades que tomam corpo durante os ritos,
receptáculos de entidades metafísicas, ou seja, elas mesmas são objetos
sagrados, carregados de poderes mágicos.
Isso fica claro entre os astecas, para quem “os disfarces se chamam
nahualli (...), derivação lingüística de nahual, termo que significa feiticeiro-
transformador” (KIRBY, 1988, p. 47). Quando em seus rituais se quer rea-
firmar uma presença humana interior, a máscara é posta de lado; usa-se a
pintura de rosto. O mesmo procedimento aparece também entre os xamãs
siberianos, que utilizam com frequência o recurso de banhar com fuligem
ou cobrir o rosto com os cabelos.
O mágico, ao apagar sua própria personalidade através da máscara,
para personificar um deus, joga um papel, como o ator teatral. Entretanto,
não o faz arbitrariamente, já que incorpora um arquétipo coletivo, uma en-
tidade concebida pela tradição. Dentro desses limites, ao construir seu per-
sonagem, ele exerce sua liberdade criativa no âmbito do sistema simbólico
de uma determinada cultura.
Na Grécia clássica – para alguns autores, é onde, pela primeira vez
no Ocidente, o teatro se destaca do rito – a figuração canônica dos deuses
tem por modelo imagens antropomórficas ligadas a ideais de perfeição do
corpo humano, beleza, juventude, força, equilíbrio, proporcionalidade etc.
Entretanto, não apenas Dioniso, o deus das metamorfoses, como outras
potências divinas, entre elas, Górgona e Ártemis, figuram ou operam atra-
vés de máscaras.
Não por acaso, dessas máscaras rituais, especialmente da máscara de
Dioniso, surge a máscara teatral, tão estreitamente ligadas, entre os gregos,
quanto o são o teatro e o rito, por ocasião dos grandes concursos dramáti-
cos de Atenas. Tais concursos, como se sabe, que aconteciam por ocasião
das festas em louvor a Dioniso, tinham caráter de cerimônias sagradas e
faziam parte das celebrações de seu culto. Exatamente de suas encenações
ANTROPOLOGIA DA ARTE 85
rituais, surge, nas palavras de Jean Pierre Vernant e Françoise Frontisi
Ducroux, “un genre littéraire où le masque n’est qu’un accessoire, peut-
être secondaire, destiné à résoudre des problèmes d’expressivité tragique...
” (VERNANT; DUCROUX, 1988, p. 19), no caso o teatro em sua forma grega,
digo eu. Daí, para esses autores, haver a necessidade e a possibilidade de
distinguir máscara teatral de máscara ritual: a máscara do herói trágico
(Édipo, Agamenon etc.), que o ator usa para reviver fi ccionalmente os fatos
do passado, e a máscara de Dioniso (por exemplo), que o sacerdote usa para
incorporar essa entidade divina em transe extático.
Vernant e Ducroux (1988), no estudo sobre as máscaras gregas, traba-
lham ancorados em divindades – Górgona, Ártemis e Dioniso – que mantêm
relações distintas com elas. Começam por uma entidade, no caso a Górgo-
na, ela mesma é mascarada e atua através de máscaras. Passam a Ártemis,
uma deusa que, sem fi gurar com máscara, opera em seus cultos, reitera-
damente, através dela. Por fi m, chegam a Dioniso, a divindade da máscara
por excelência. No confronto entre essas divindades e suas relações com as
máscaras, surgem diferenças e aproximações que nos ajudam a esclarecer
algumas velhas questões e lançar novas dúvidas sobre o lugar da máscara,
não apenas no âmbito religioso da Grécia antiga, como também, e em certa
medida, no universo do rito e da arte de um modo mais amplo.
Górgona apresenta-se como uma máscara feminina de feições mons-
truosas. Trata-se de um ser terrível e amedrontador, embora em sua versão
grotesca – quando o terror aparece misturado ao sexo – torne-se risível.
Jean Pierre Vernant, um dos maiores especialistas franceses em cultura
grega, assim descreve sua carantonha:
A cabeça, larga, arredondada, evoca uma face leonina, os olhos são en-
carquilhados, o olhar fi xo e penetrante, a cabeleira tratada como crina
de animal ou eriçada de serpentes, as orelhas aumentadas, deformadas,
por vezes semelhantes às do boi, o crânio pode levar cornos, a boca,
aberta num ricto, alonga-se com presas de fera ou defesas de javali, a
língua, projetada para diante, avoluma-se no exterior, o queixo é peludo
ou barbudo, a pele por vezes sulcada por rugas profundas (VERNANT,
1991, p. 70).
86 ANTROPOLOGIA DA ARTE
No curso da devoção a Ártemis, através de mascaradas e jogos rituais,
jovens e crianças gregas, especialmente em Esparta, mas também em Ate-
nas, eram instruídos a viver as mais diversas e contrastantes atitudes e sen-
sações. Sob a proteção da deusa, com a ajuda de máscaras e travestimentos,
eram levados a mimar os mais diferentes personagens (reis e mendigos, ti-
ranos e escravos, virgens e prostitutas, velhos e bebês etc.), atitudes (doçura
feminina, ferocidade bestial, pudor e obscenidade, vigor guerreiro e debili-
dade senil, descaramento e sinceridade etc.) e inversões (homens vestidos de
mulher ou de animais e vice-versa, jovens fantasiados de velhos e vice-versa,
servos disfarçados de reis e vice-versa, padres trajados de bêbados e vice-
versa, empregados fazendo patrões e vice-versa etc.). A cada máscara figu-
rada correspondia uma nova experiência de vida, quase sempre de excesso,
de transgressão. Por esse meio, os jovens aprendizes tomavam contato com
toda sorte de comportamentos marginais e sensações estranhas. Exercita-
vam o descomedimento e a alteridade, conhecendo a subversão, para mais
valorizar a regra à qual eles deveriam obedecer dali em diante.
No culto a Ártemis, portanto, a máscara aparece como um instrumen-
to educativo no processo de formação do jovem como cidadão. Ela, a más-
cara, como que apressa essa formação, fazendo com que a experiência de
vida do jovem se enriqueça e dando mais rapidez ao seu amadurecimento,
ao permitir que ele viva muitas vidas, em um curto período de tempo, no
papel de múltiplos personagens.
Se com Ártemis, o jovem experimenta o descomedimento para apren-
der o comedimento, com Dioniso, parece acontecer exatamente o contrário: o
adulto equilibrado, perfeitamente integrado à ordem social, experimenta a im-
previsibilidade e o exagero. Dioniso é o deus das metamorfoses e dos travesti-
mentos, que introduz a dimensão sobrenatural na vida cotidiana através de sua
máscara de aparência ambígua: homem-mulher, deus-humano; é um ser de olhar
estranho e enigmático.
O culto a Dioniso acontece sob a luz do sol, em plena natureza: esse
é seu templo, seu chão sagrado. Através de sua máscara, o homem se deixa
possuir pelo deus, torna-se outro, experimenta a alteridade e penetra as
vias do divino. O ator que porta a máscara dionisíaca abandona os limites
da natureza ordinária e irrompe a dimensão do extraordinário, o plano do
invisível no qual ficção e realidade se fundem.
Por meio das máscaras, o homem grego experimenta a possibilidade
de tornar-se outro, ou ainda, de deixar de ser ele, como é o caso de Górgona,
que, com seu olhar paralisante, destrói suas vítimas pelo terror. Como é o
caso, também, de Dioniso, embora em sentido contrário: o transe leva o pos-
suído a um estado de prazer e gozo além dos limites da realidade aparente.
Nos dois exemplos de alteridade radical, ou seja, de abandono do próprio eu
individual, o transporte se dá em direção vertical: para baixo no referente a
Górgona e para cima no referente a Dioniso.
Quanto a Ártemis, o deslocamento se dá no plano vertical, tanto no
tempo quanto no espaço, já que os jovens sob sua orientação experimentam
máscaras que os levam do espaço urbano das sociedades, então considera-
das civilizadas, às margens da selvageria. Mas, em seu culto, esse mundo
selvagem, do qual Ártemis é tão íntima e que a aproximaria de Górgona –
uma potência em estado bruto –, é, pelo contrário, motivo de rejeição. Isso
se dá porque, Ártemis prefere tê-lo à distância e sob controle, conduzindo
metodicamente os jovens, no curso de rituais aparentemente transgressi-
vos, até uma completa integração na vida civil. A máscara de Dioniso, pelo
ANTROPOLOGIA DA ARTE 87
contrário, ao retirar o cidadão da vida familiar e levá-lo à possessão, incita
à indiferença às regras, à abolição das proibições, à inversão dos valores, à
instauração da dúvida e à desintegração dos quadros sociais.
Como veremos adiante, esses três tipos de máscaras, a máscara ater-
rorizante ao modo de Górgona, a máscara carnavalesca de Ártemis (fi camos
devendo a explicação) e a máscara dionisíaca de possessão, encontram cor-
respondências e ressignifi cações em máscaras de períodos posteriores e de
KONIGSON, Elie. Le Mas- outras regiões do globo. A máscara aterrorizante comum nos ritos das so-
que Du Démon: Phantas- ciedades arcaicas, que tem na Górgona seu exemplo mais completo entre as
mes et Métamorphoses divindades da Grécia clássica, aparece com destaque na Europa Medieval
sur la Scène Médiévale. In
LE MASQUE: DU RITE AU e se estende até o Renascimento, nas encenações dos chamados mistérios,
THÉÂTRE. Textes et Étu- através da fi guração do demônio.
des Réunis et Presentes
par Odette Aslan et Denis
Elie Konigson publicou um interessante artigo, em 1988, sobre esse
Bablet. Paris, Editions du assunto, onde se pode perceber a correspondência da máscara do demônio
CNRS, 1988. com as máscaras dos ritos mágicos dos povos selvagens. Informa ele que,
no espaço de encenação dos chamados mistérios medievais, levados a cabo
pela Igreja católica, o Inferno está comumente situado a Oeste ou à esquer-
da e só raramente ao Norte. Constitui uma espécie de máscara-cenário, na
forma de uma grande goela articulada que abre e fecha: a Garganta do In-
ferno, onde agem, não por acaso, os únicos personagens mascarados sobre
a cena, os próprios demônios.
Ao contrário dos demais personagens – santos, anjos e o próprio Deus –
que atuam vestidos e com os rostos descobertos, os demônios fi guram
mascarados e nus. Além disso, enquanto os demais personagens, sempre
apresentados sob aparência humana (inclusive Deus e os anjos), aparecem
É interessante notar que, segundo uma ordem histórica e/ou alegórica, os diabos surgem em cena
na cena medieval, além
do demônio, outro perso- aleatoriamente, de modo deliberadamente caótico, sob aspecto animalesco.
nagem que aparece cos- Nos mistérios medievais, a máscara diabólica é uma máscara de cor-
tumeiramente nu é o “ho-
mem selvagem”. po inteiro – facial, corporal e manual inclusive –, já que o demônio usa o
tridente e outros instrumentos de tortura. Trata-se de um antifi gurino ou
de um fi gurino de outra natureza, de uma natureza infernal, do mesmo
modo que o Inferno, com sua garganta, está fora da Terra e da esfera celeste,
assim como a música se opõe ao ruído e ao alarido diabólico dos demônios.
Na máscara medieval, o diabo tem garras de mamífero ou de ave de
rapina, focinho com aspecto ora canino ora de um javali, cabeça com tra-
ços indefi nidos – não se sabendo se de urso, se de lobo –, chifres, ferrões,
e trombas. A isso, se some, pelo resto do corpo, escamas, caudas, asas de
morcego ou o que se queira colocar. Em todo caso, deve parecer um mons-
tro apavorante como uma Górgona, o terror em seu estado bruto, feito uma
Ver KONIGSON pp. 108 a força da natureza.
111.
A fi guração da máscara do demônio nos mistérios medievais pro-
curava, assim, associar a ela elementos ligados a ritos de magia pratica-
Ernest Theodore Kirby
dos por povos tidos como pagãos e/ou heréticos, assim como a fi gura da
nos informa sobre o uso
de máscaras com essa mulher e do “homem selvagem”. Possuía, em sua função aterrorizante,
função entre os índios da a fi nalidade de afastar os fi éis da tentação de continuar executando ou
América do Sul e cita o aderir a tais práticas heterodoxas, chamar os “incivilizados” à ordem e as
exemplo dos Chamacoco
de Araucan, no Chaco, mulheres à submissão.
onde é costume, entre os
homens, encapuzarem
suas cabeças dentro de
sacos, durante os rituais,
para amedrontarem as
mulheres. (KIRBY, 1988,
p. 41)
88 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Assim como o artista, o mágico observa a realidade a partir de suas
formas exteriores e através de sua sensibilidade. Daí haver a aproximação
entre arte e magia, assim como a necessidade de estudar o funcionamento
das leis do pensamento mágico para a compreensão do fenômeno estético.
Considerado como uma forma de conhecimento ou percepção do real, o
chamado pensamento mágico ou selvagem responde a uma necessidade
humana de dar signifi cado ao universo e sentido à existência. Diferencia-
-se da ciência porque não admite a falta de sentido, o acaso, e postula um
determinismo global e integral na natureza.
Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de uma forma ru-
dimentar de conhecimento ou de uma pré-ciência, porém de outro modo de
abordar a realidade, mais ligado ao concreto e a partir da intuição sensível.
Sendo, portanto, movida, quase sempre, por sentimentos estéticos, a magia
é muito próxima da arte. Trata-se, pois, de um conhecimento atento às for-
mas, às cores, aos cheiros, aos sons, enfi m, a tudo que pode ser percebido
por nossos sentidos e intuído por nossa imaginação.
Atento à observação da realidade desde seu todo até seus mínimos
detalhes, o homem “selvagem” busca ordenar seus elementos, estabele-
cendo correspondências, comparações, contrastes, ligações de diferentes
naturezas. Prova, experimenta, deduz, faz analogias; daí tira conclusões
iniciais, volta a experimentar, num processo empírico sempre renovado.
Chega a princípios muito amplos e genéricos, que os teóricos chamaram
leis da magia simpática.
Segundo Marcel Mauss (1974), toda a magia parte de um princípio mais
geral que afi rma: “um é o todo, e o todo é um” (p.102). Daí se desdobra em três
leis básicas: a lei da contiguidade ou do contágio, segundo a qual os seres que
entram em contato permanecem unidos; a lei da similaridade ou similitude,
segundo a qual o semelhante produz o semelhante; e a lei da contrariedade
ou do contrário, de acordo com a qual o contrário afasta o contrário.
Com base nesse princípio geral e nessas leis básicas, os mágicos pro-
duziram todo um conjunto de saberes sistemáticos, que sobreviveram na
Europa como válidos por toda a Idade Média até, pelo menos, o Renasci-
mento e que alimentaram ciências diversas como a física, a química, a ma-
temática, a medicina e a astronomia.
Um dos elementos básicos na constituição do pensamento mágico é
a noção de mana, uma espécie de propriedade especial ou poder mágico de
que são dotados os xamãs ou magos.
Esse poder é privilégio de determinados seres, pessoas, animais ou
objetos e pode ser transferido, acumulado, transportado, ou seja, manipula-
do através de técnicas e procedimentos ditos mágicos. Tais procedimentos,
no entanto, nunca se dão fora da coletividade, porque implicam a crença
comunitária. Exigem a participação do grupo e incluem a cumplicidade do
corpo social para que tenham êxito.
O mágico é sempre alguém especial dentro da comunidade. Recebe
a atribuição seja por herança ou por distinções especiais (de ofício, de
casta, por sinais físicos, por características psicológicas ou étnicas etc.).
Poucas vezes torna-se mágico (ou xamã) por iniciativa voluntária. Passa,
obrigatoriamente, por um processo de iniciação e dele é exigido um com-
portamento místico e exemplar.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 89
Trabalha como um profi ssional especializado, detentor de um saber,
que inclui conhecimentos teóricos e técnicos, além de habilidades. Executa
seus ritos com meticuloso apuro, cercado de um aparato numeroso de ins-
trumentos e materiais vários. Desenvolve poderes especiais sobre o próprio
corpo e sobre a atenção dos circunstantes. Trabalha com o corpo e com o
espírito alterado. Usa auxiliares espirituais e envolve o conjunto dos cir-
cunstantes em seus transes.
Para sua comunicação com o mundo dos espíritos, mágicos e xamãs
utilizam, ainda, o recurso das máscaras nos rituais de renovação da vida
comunitária, tanto no plano interno, quanto na comunicação com a na-
tureza ou com outras dimensões do universo. Geralmente, as celebrações
mascaradas relacionam-se com ritos agrários, de iniciação ou de morte,
quando não diretamente com a encenação dos mitos de origem do universo.
Nesse último caso, as máscaras rituais procuram expressar o conjunto de
elementos cosmogônicos de determinada sociedade. Já nos demais, princi-
palmente nos ritos de iniciação, o xamã tem por ponto de partida a máscara
neutra, sem abertura de olhos nem traços de identifi cação, que trabalha
pelo apagamento do indivíduo. Faz-se morrer o portador da máscara, para
dar lugar a um novo personagem.
No passo seguinte à máscara neutra, aparece a máscara geométrica,
na fi guração dos chamados homens-animais. Essas máscaras confi guram
os animais por elas incorporados através de traçados geométricos simpli-
fi cados, num simbolismo quase abstrato. Nesse caso, a máscara passa da
condição anterior de ocultamento (máscara neutra) para a de revelação.
Na Grécia antiga, durante o período clássico, podia-se distinguir, en-
tre outros, basicamente, três tipos de máscaras: a máscara aterrorizante
de Górgona, as máscaras educativas ou “carnavalizadas” de Ártemis e a
máscara embriagadora de Dioniso.
Cada uma delas tinha funções e jogava papéis diferenciados na so-
ciedade, produzindo sensações e proporcionando experiências diversas ao
indivíduo e ao corpo social. Se as máscaras operadas por Ártemis trabalha-
vam pela maturação dos indivíduos e pelo estabelecimento da ordem social,
se a máscara de Dioniso propiciava a liberação da libido e dos afetos, a más-
cara de Górgona reprimia o desejo de transgressão e impunha a autoridade
pelo terror. O mesmo acontecia com a máscara do demônio nos mistérios
medievais, quando a Igreja manipulou, pelo medo, a crença dos fi éis e impôs
suas verdades sob a ameaça do fogo dos Infernos.
90 ANTROPOLOGIA DA ARTE
MÁSCARAS RITUAIS PANKARARU
No interior do Nordeste brasileiro, mais precisamente na localidade
de Brejo dos Padres, município de Tacarutu, sertões de Pernambuco, po-
demos encontrar um exemplo notável do uso de máscaras rituais. Trata-se
das máscaras praiás dos índios pankararu, pertencentes ao grupo cultural
lingüístico dos kariri, originários de Curral dos Bois (hoje Santo Antônio da
Glória), na Bahia, depois aldeados pelos padres oratorianos no lugar onde
Ver PINTO p. 299.
habitam até hoje.
As máscaras praiás são coberturas de corpo inteiro e se compõem de
cinco partes: 1) O tunã, tecida em fibra de caroá ou ouricuri, ocultando intei-
ramente o rosto e cobrindo a cabeça, contendo apenas dois pequenos furos
no lugar dos olhos e com os fios soltos a partir do pescoço, caindo sobre os
ombros até os joelhos. 2) O saiote, feito com a mesma fibra do tunã, preso
na cintura e estendendo-se até as canelas. 3) O cocar de penas de peru,
em forma esférica, como um grande sol, fixo no alto do tunã. 4) O penacho
de plumas atado a uma pequena vara fixa no alto do tunã. 5) A cinta, uma
pequena túnica de tecido, geralmente chita estampada ou pano bordado com
uma cruz ou outro símbolo, que se coloca sobre as costas do tunã.
Completando o traje ritual praiá, os pankararu portam o maracá, feito
de coité e adornado com penas, o bordão de compasso, igualmente enfeitado
de penas, e a gaita de marcação.
Entre os pankararu, as máscaras acima descritas são de uso exclusivo
dos dançarinos mascarados da tribo, os praiás, uma espécie de sociedade
secreta de caráter hereditário, formada por membros das velhas famílias
fundadoras da comunidade. Tem por função ocultar a identidade de seus
portadores e preservar o caráter secreto do grupo. Segundo testemunho dos
mais antigos, após suas danças cerimoniais, os praiás recolhiam-se às suas
choças e permaneciam nelas reclusos. Hoje, eles já aparecem em feiras e
romarias, embora se mostrem comumente arredios e procurem manter dis-
tância de grandes aglomerados.
Durante seus rituais, e por via das máscaras, os praiás incorporam
espíritos ancestrais que acreditam encantados nas cachoeiras de Itaparica e
Paulo Afonso, situadas não muito distantes de Brejo dos Padres. Muitas ve-
zes são surpreendidos lançando longas baforadas de fumo em suas direções.
Os praiás participam e muitas vezes protagonizam com exclusividade
os principais ritos e cerimoniais pankararu. O mais importante desses rituais
é a Dança dos Praiás. Sua execução é puxada por uma cantadeira que entoa
loas durante horas seguidas, em tom melancólico e lamentoso, acompanha-
da pelo toque dos maracás sacudidos pelos praiás, que respondem ao canto
soltando sons que se assemelham a uivos guturais e longos gemidos.
Envergando seus trajes rituais e movidos por esse ambiente sonoro,
os praiás dançam em passos curtos e rápidos, às vezes arrastados e presos
ao solo, às vezes de modo brusco e aos pulos, batendo com força no chão.
Seguem mudando a direção, ora para um lado, ora para o outro, em fileiras
ou em pares, em roda ou formando ziguezagues e SS, inclinando-se ora para
a esquerda, ora para a direita, em um movimento contínuo e imprevisível,
puxado pelos guias de uma fila e de outra. Em certos momentos, os dança-
rinos dividem-se em grupos e, de braços colados, adiantam-se em carreira
ANTROPOLOGIA DA ARTE 91
até a cantadeira, freando repentinamente junto a ela, conseguindo um forte
efeito de suspense.
A iniciação de novos membros no grupo desses “protetores mágicos da
aldeia” (PINTO p. 300) se dá por um rito que eles chamam de “Festa do Me-
nino no Rancho”, por meio do qual, as crianças não apenas são iniciadas nos
segredos dos praiás, como se tornam intermediários entre eles e o restante
da comunidade. Isto porque, quando os praiás estão reunidos em seu reduto
sagrado, que chamam rancho ou poró, não podem ser vistos por pessoas
fora do grupo. Sendo assim, fica a cargo da criança em iniciação trazer-lhes o
que necessitam: água, fogo, fumo etc., ficando a ela vedado revelar qualquer
fato ou detalhe do que se passa no rancho, sob ameaça de dormir em uma
cama coberta com urtigas.
Para a “Festa do Menino no Rancho”, levanta-se primeiramente um
rancho, e nele se faz entrar o pré-adolescente a ser iniciado. O menino traz o
corpo pintado de tauá branco, leva a tiracolo rolos de fumo e tem na cabeça
um capacete de ouricuri. Na entrada do rancho, se coloca a guarda do me-
nino, sentinelas e padrinhos armados de cacetes. Do outro lado, se postam
os praiás, guerreiros sagrados, igualmente armados, que buscam a posse do
menino. O combate acontece do modo ritual, mas com grande vigor. Termina
com a destruição do rancho e com a conquista do menino pelos praiás que,
em meio a grande alegria, cantando e dançando, levam o menino à presença
de uma menina da mesma idade.
Entre os pankararu, o tuxaua é eleito democraticamente pela comuni-
dade. Quando alcança a decrepitude, é substituído. Ainda assim, sua opinião
é levada em conta, notadamente em questões relativas ao sagrado. O mes-
mo ocorre com as velhas cachimbeiras da tribo, espécies de pajés que, até
atingirem idades muito avançadas, encarregam-se da cura dos enfermos, e
ainda de outros procedimentos mágicos, como “tirar o atraso” das pessoas
e “atrair a chuva”. Nessas práticas, o fumo costumeiramente joga um papel
importante, ajudando a exorcizar malefícios e imunizar espíritos.
Na Festa do Ajucá, como é chamada entre os pankararu o culto da jure-
ma, se fazem presentes, além dos praiás, o tuxaua, os guerreiros e as velhas
cantadeiras. A cerimônia acontece em local afastado, dentro de um bosque
sombreado, em terreiro previamente forrado com esteiras de ouricuri. No cen-
tro do terreiro se coloca uma laje, com numerosas raízes de jurema em cima.
Depois de raspadas e lavadas, as raízes de jurema são colocadas den-
tro de uma grande vasilha de coité cheia d’água. A vasilha, em seguida, é
agitada até formar uma densa escuma, estando pronta para ser bebida. Em
meio a cantos e falas sagradas, o tuxaua, tirando baforadas de seu cachim-
bo, inicia o ritual de sagração da bebida. Em seguida, seu cachimbo passa de
mão em mão, entre os presentes, que fazem o mesmo.
Terminada a benzedura do ajucá, o tuxaua ajoelha-se e bebe o primeiro
gole, no que é imitado pelos demais. Circunspectos e concentrados, todos
provam do filtro mágico que lhes proporcionará comunicar-se com os encan-
tados, em sonhos e visões.
O que restar do sumo da raiz da jurema é colocado em um buraco pro-
fundo aberto no chão.
Os pankararu de Brejo dos Padres podem ser observados costumei-
ramente nas grandes romarias do Juazeiro do Norte, no Ceará, e de Santa
Brígida, na Bahia. Costumam estabelecer sincretismos e correspondências
entre seus encantados, entidades afro-brasileiras e santos do catolicismo
popular, como Padre Cícero, Conselheiro Pedro Batista e Mãe Dodô. Daí,
muitas vezes, realizarem peregrinações a santuários católicos junto com ir-
mandades cristãs, especialmente com as de Nossa Senhora da Boa Morte
e de São Gonçalo, que tem sedes tanto em Santa Brígida (BA), quando na
Estrada Velho do Horto, em Juazeiro do Norte.
92 ANTROPOLOGIA DA ARTE
As máscaras dos praiás, como vimos, embora com pequenas abertu-
ras para os olhos (demasiadamente pequenas, por sinal), possuem todas as
características das máscaras-vestimentas neutras, que procura criar o ano-
nimato e transportar seus portadores à dimensão do invisível, no caso a de
seus ancestrais “encantados”.
Marcel Mauss
Sociólogo e antropólogo francês nascido em Épinal, França, cuja obra
foi marcante na sociologia e na antropologia social contemporânea e consi-
derado como o pai da antropologia francesa. Sobrinho de Émile Durkheim e
nascido quatorze anos mais tarde e na mesma cidade, estudou com o tio e
foi seu assistente e tornou-se professor de religião primitiva (1902) na École
Pratique des Hautes Études, em Paris. Fundou o Instituto de Etnologia da
Universidade de Paris (1925) e também lecionou no Collège de France (1931-
1939). Sucedeu o tio como editor da revista L’Année Sociologique (1898-
1913), onde publicou um de seus primeiros trabalhos, com Henri Hubert, Es-
sai sur la nature et la fonction du sacrifice (1899) e também Essai sur le don:
forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques (1925), sua obra
mais conhecida. Escreveu também numerosos artigos para periódicos espe-
cializados, especialmente os produzidos e publicados em colaboração com
Henri Hubert (1899-1905), que reuniu em Mélanges d’histoire des religions
(1909). Os trabalhos mais importantes do autor, que morreu em Paris, apa-
recem no livro Sociologie et antropologie (1960). Entre outros trabalhos de
sua autoria, ganharam notoriedade La sociologie: objet et méthode (1901),
Esquisse d’une théorie générale de la magie (1902), Essai sur le don (1924),
Sociologie et anthropologie (1950).
É interessante...
...verificar, como já iniciamos em capítulo anterior, a ligação dessas leis
com os tipos de signos, com relação ao referente, na semiótica. Enquanto
a lei da contiguidade diz respeito ao índice, ou seja, à representação por
contato porque o signo foi afetado pelo objeto através do contato, a lei da
similaridade diz respeito ao ícone, ou seja, à representação por semelhança,
pela relação de semelhança do signo com o objeto representado. Na propa-
ganda, assim como na arte, essas analogias ou associações de ideias são
costumeiramente empregadas do mesmo modo como o são nos rituais das
religiões populares.
Para dar um exemplo da propaganda, podemos ficar com os famosos
cartazes de peças de carros ao lado de moças seminuas pregados nas portas
de oficinas. Não há outra relação entre as peças e as garotas na propaganda
senão a de contiguidade, mas a proximidade entre ambas acaba por associar
uma a outra na percepção do mecânico. Se o objeto a ser vendido fosse um
violão, a lei da similaridade entre o objeto da propaganda e o corpo da garota
reforçaria a analogia.
Nos rituais do catolicismo popular, há o exemplo clássico do romeiro
que leva um ex-voto e o coloca aos pés da estátua de seu santo protetor.
Por similaridade, ele manda esculpir a expressão de sua doença na madeira
ou em outro material qualquer. Por esse mecanismo, a “energia negativa”
(o mana) de sua enfermidade é transferida para o ex-voto (como se chama
à escultura). Em seguida, ele leva o ex-voto e o deposita ao pé da imagem
de seu santo de devoção, ou seja, ele o leva a um lugar carregado da “boa
energia” do seu santo, que neutraliza, por contágio, a “energia negativa” do
ex-voto colocado aos seus pés. Curado o ex-voto, por contágio, está curado
o doente, por similaridade.
ANTROPOLOGIA DA ARTE 93
Bricoleur
É um termo francês que designa, ordinariamente, alguém que é afeito
a fazer trabalhos manuais por conta própria, fabricar objetos ou fazer pe-
quenos consertos em casa, a partir de um acervo de recursos e ferramentas
caseiros. Antropólogos franceses, entre eles Lévi-Strauss, usam o termo bri-
coleur para nomear o modo de operar do mágico que utiliza materiais já ela-
borados e fragmentários. Executa tarefas diversificadas. Tem seu repertório
de instrumentos e materiais pré-estabelecidos. Seu universo instrumental é
fechado. O conjunto de seus meios não é definido pelo projeto. Arranja-se
sempre com meios limitados. Usa um estoque de meios cumulativos. Pensa:
“Isto sempre pode servir”. Cada elemento de seu estoque representa um
conjunto de relações e possibilidades. Como o bricoleur, tem atitude retros-
pectiva, voltando-se para seu estoque. Verifica as respostas possíveis que o
conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ex.: uma tábua de carvalho
pode servir como calço, pode ser utilizada numa janela etc. As possibilidades
são limitadas pelo tipo de peças que ele tem no seu acervo. Ele volta-se para
uma coleção de resíduos de obras humanas ao operar seu projeto.
94 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Unidade
5
A Arte Tradicional Popular
Objetivos:
• Verificar a transformação da produção estética ritual em produção artística como
ofício unindo estética e utilidade, em sua produção.
• Tratar mais detidamente da arte do canto, da palavra e da narração oral.
• Debater as transformações pelas quais passa a arte tradicional popular.
Capítulo 1
O Belo e o Útil
ANTROPOLOGIA DA ARTE 97
Além dessas funções, as esculturas em marfi m, enquanto bens cole-
tivos de clãs e linhagens familiares, funcionam como símbolos agregadores,
unindo indivíduos e gerações, e prestam-se como instrumentos comemo-
rativos que exaltam os méritos de seus membros falecidos. Nesse sentido,
adquirem uma função funerária e são colocados nos túmulos de seus donos
como sinal de respeito e veneração, além de amuleto para atrair e apaziguar
o espírito do morto.
Na arte tradicional popular, a qualidade estética de um objeto depen-
de de uma série de variantes. Seria difícil enumerar todas; porém, algumas
delas são inegáveis. A primeira, por certo, é a utilidade do objeto criado, sua
fi nalidade. Ou seja, obra bem feita é aquela que cumpre o objetivo a que se
propôs. Depois, aparecem outras, como a matéria prima empregada – onde
entra a infl uência do meio-ambiente –, a tecnologia e habilidade técnica de
quem a manipula, o meio social e cultural local, o estilo da corporação, isto
é, do agrupamento de artífi ces formado pelo mestre e seus aprendizes e, por
fi m, o talento e o estilo individuais de cada artista.
O fato de que, nas sociedades tradicionais, os objetos artísticos quase
nunca são produzidos para a pura contemplação não signifi ca um desprezo
pelo prazer estético.
Pelo contrário, signifi ca a introdução do prazer estético nos objetos
Lega
Povo africano que habita
de uso cotidiano. Basta ver o capricho com que um guerreiro tukano orna
o sudeste do Congo, na a ponta de sua fl echa ou como um artista lega esculpe um corpo feminino
África Central. em sua colher.
Colher lega
98 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Embora o mestre exerça um papel preponderante na determinação
do estilo de uma tradição por ele fundada, daí o dito “fazer escola”, seus
aprendizes não se furtam da marca individual. Tal é o caso, por exemplo,
da escola de ceramistas de Caruaru, que teve Vitalino como mestre, e da es-
cola de pintores do Pirambu, cujo mestre foi Chico da Silva. Ambos fi zeram
escola e tiveram inúmeros discípulos que assinavam como o mestre, porém
guardavam particularidades inconfundíveis no estilo.
O caso de Chico da Silva é exemplar. Sua arte fez escola no Piram-
Caruaru
bu entre os anos 60 e 70 do século passado. Chico trabalhava com muitos Cidade de Pernambuco.
aprendizes que seguiam, em grandes linhas, o estilo do mestre. Para aten-
der à grande demanda de obras, Chico obrigava- se, muitas vezes, a apenas Pirambu
Bairro de Fortaleza.
assinar as telas produzidas em guache. Com o tempo e com a indisposição
do mestre por motivo de saúde, os próprios discípulos começaram a assinar,
eles mesmos, a marca do atelier, ou seja, a assinatura ‘Chico da Silva’. A
escola era a mesma: no quadro estava registrada a sua marca, mas, para
quem conhecia, o estilo de cada artista era inconfundível. Além do próprio
Chico, destacavam-se Claudionor, Ivan de Assis e Raimundo Neto, que in-
troduziu o fundo preto nas pinturas.
Tela de Claudionor
ANTROPOLOGIA DA ARTE 99
Destaque
A escolha de Chico da Silva em trabalhar coletivamente, ao modo das
corporações medievais, bateu de frente com o mercado capitalista das artes
plásticas, para o qual não importa a qualidade estética da obra, mas a co-
tação do autor no mercado. Acusado de vulgarizar suas próprias obras e de
ajudar na falsifi cação das mesmas através de antigos aprendizes e discípu-
los, foi abandonado por mecenas e admiradores. Vítima de cirrose hepática
e tuberculose crônica, encerrou sua carreira artística prematuramente em
1976, vindo a falecer em 1985.
No caso, os discípulos de Chico da Silva assinavam com o nome do
mestre não por terem anuladas suas individualidades, mas por uma exi-
gência de valorização do mercado capitalista. Cada um deles tinha um es-
tilo marcante, que faziam questão de afi rmar. Não havia uma preocupação
em imitar o mestre, em “falsifi car” um quadro ou até mesmo a assinatura.
Ex-voto ou Milagre é uma Pelo contrário, a preocupação com a autoria, bem como com o valor
peça em madeira ou ou-
tro material que o devoto
estético do objeto, é marcante nas tradições populares. No fi nal da década
coloca no altar do santo, de 70 do século passado, pude testemunhar um fato elucidativo nesse senti-
por motivo de promessa do. Em visita à ofi cina de Noza, famoso mestre santeiro do Juazeiro do Norte
feita e graça alcançada,
como representação do
já falecido, presenciei a demanda de um ex-voto por parte de um romeiro
mal sofrido. acometido de grave enfermidade. Embora Noza explicasse que a encomenda
sairia cara para alguém visivelmente pobre como o romeiro e que já estava
sobrecarregado de trabalhos, o outro insistia. Argumentava ter sido Noza o
primeiro a esculpir uma imagem do Padre Cícero, ser exímio artífi ce e só ele
poder esculpir o ex-voto capaz de representar o milagre de sua saúde.
Os ex-votos, assim como objetos outros manipulados pelos mágicos,
xamãs ou pajés, não são denominados como objetos artísticos por seus
usuários originais, mesmo quando possuem qualidades estéticas evidentes,
senão pelos que os ressignifi cam. Entretanto, de modo algum, isso pode ser
entendido como ausência de interesse estético por parte das comunidades
tradicionais. Em muitos casos, mesmo entre povos ágrafos, as questões re-
lativas ao belo e à arte têm tratamento explícito. Em sua dissertação para
obtenção do título de Mestre em Arqueologia, sob o título Imagens e Pala-
vras: Suas Correspondências na Arte Africana, Maria Corina Rocha recorre
a Farris Thompson, para quem “entre os iorubas existe não só um compor-
tamento voltado para a crítica da arte como também um vocabulário muito
preciso. Ou seja, não se pode afi rmar que inexistem meios de expressar
valores estéticos entre os povos africanos produtores de arte, ainda que
esses sejam peculiares a eles, como os nossos meios revelam a nossa visão
ocidental da cultura e do mundo” (ROCHA, 2007, p. 60).
É preciso lembrar, porém, que o valor estético de determinado objeto,
numa sociedade tradicional, nunca está dissociado de seu valor simbólico,
ou seja, do prestígio de seu dono, dos rituais e fatos outros em que esteve
presente, das divindades às quais está ligado, das lembranças que des-
perta etc. Do mesmo modo, se a forma do objeto pertence ao artista, seu
signifi cado é dado pela comunidade a partir do contexto de uso do mesmo,
isto é, a sua inserção em determinada situação cênica, que pode envolver
o canto, a fala, a música instrumental e a performance corporal em suas
diferentes modalidades. Há como que um hiato entre a criação do objeto
pelo artista e sua utilização pela comunidade, que, reiteradamente, o res-
signifi ca: um ex-voto tanto pode virar brinquedo infantil quanto Menino
Deus na Lapinha; um pote transforma-se em uma urna funerária; algui-
dar, em jarro de fl ores etc.
O griot não é apenas aquele que fala, mas também o que escuta a pa-
lavra, quem a acolhe e armazena. Por isso, é o grande depositário das tradições
orais de sua gente, desde os mitos fundadores, passando pelos contos iniciáticos,
até os provérbios e anedotas, assim como o cancioneiro, enfim, toda a memória
constituída pelo povo. Seu ofício é recolher e fazer circular esse acervo oral,
participando de eventos, batismos, casamentos, funerais, festas familiares ou co-
letivas, fazendo aconselhamentos em famílias ou em encontros individuais. Por
isso, o griot está sempre em viagem. Ele é mestre de uma escola nômade, que vai
à casa do aluno com ele trocar saberes. Sua pedagogia é a do conto, da dança e da
música. Sua arte, a da palavra dita de viva voz e corpo inteiro.
A vida de um griot é feita de travessias, encontros, histórias ouvidas e
histórias contadas. Os anos de existência se somam como anos de sabedo-
ria. Por isso, quando na velhice o saber já lhe pesa sobre os ombros, torna-
se urgente que mais se empenhe na transmissão do que aprendeu. É neces-
sário que seu legado passe ao filho como um novelo sem fim de palavras,
em que uma puxa a outra, ou como um mar de saberes, onde alguém pode
se aventurar de barco para pescar o que precisa para alimentar o espírito.
A mochila de um griot é leve. Ele é do tempo em que só a me-
mória se guardava. Uma memória feita de palavras faladas e cantadas: palavras
que são sopros, emanações do espírito, precisando, por isso, ser tratadas com
simplicidade e delicadeza, tanto na arte de contar histórias, quanto no empenho
em estabelecer conciliação e concórdia entre iguais e diferentes. A memória que
traz consigo, o griot sabe não ser sua apenas, mas um bem coletivo, herdado de
uma cadeia ancestral. Sua missão é ampliá-la e partilhá-la sempre mais. Assim se
explica sua avidez pelas viagens e pelos encontros, pelas falas trocadas.
Sedutor por natureza, o griot tem o poder de fazer calar seu interlo-
cutor e ser ouvido, mas dessa magia não abusa, pois saber ouvir também é
uma arte. Saída de sua boca, a palavra do griot pode fazer o mundo entrar
pela porta das casas que visita, mas pelos ouvidos pode receber outros
mundos em seu coração. Nesse sentido, o griot tem sede do desconheci-
do. Na África, por costume se recebe bem o estrangeiro. Diz-se, inclusive,
que todo estrangeiro é rico, porque traz consigo algo que se desconhece.
Por isso, tem direito a boa acolhida, hospedagem e alimentação. Em troca,
pede-se que conte tudo que sabe acerca de si mesmo e de seu povo.
Isaac Bernat, em seu estudo sobre os griots, destaca a importância
que eles dão ao conhecimento do outro, ao saber dar atenção ao outro, querendo
enfatizar que o griot, ao contrário do que se possa pensar, não é apenas um emis-
sor contínuo, mas um receptor atento. A propósito dessa questão, Bernat reproduz
uma fala de Sotigui Kouyaté:
Na África acreditamos que o pior mal é a ignorância. Isto é, não saber o
que se passa com os outros. Temos provérbios que nos ensinam a não nos
perdermos no olhar dos outros. Olhar, olhar bem para nos encontrarmos
no olhar do outro. Desta maneira, veremos que há mais coisas que nos
aproximam do que coisas que nos afastam. Assim podemos encontrar
nas outras pessoas todas as nossas qualidades, e caminhar em direção
ao melhor de nós mesmos. (BERNAT, 2008, p.36)
Saltimbancos e jograis pareciam bem mais próximos do pensamento Origem provável da pala-
vra ‘saltimbanco’.
popular. Sempre em busca de artimanhas para burlar a vigilância das
autoridades, subiam, de surpresa, sobre bancas de feira ou saltavam sobre
um banco qualquer (Ver FO, 1998, p. 135) e apresentavam seus números.
Sozinhos, interpretavam dúzias de personagens ao mesmo tempo, inclusive
diálogos entre vários. Em suas comédias grotescas, sátiras e tiradas bufas,
denunciavam a ladroagem dos latifundiários, o roubo dos comerciantes, a
corrupção dos padres e bispos, a hipocrisia dos luteranos. Se não bastassem
as cenas, distribuíam panfl etos aos presentes com caricaturas e diabrites
contra os ricos e bem postos.
Pelos impressos, porém, logo eram presos e faziam encher de provas
contra eles os arquivos das delegacias e dos tribunais. Por isso, aprenderam
a usar, com sutileza, as infl exões da voz e as variações dos gestos corporais.
Assim, puderam mostrar, nas entrelinhas, através de ironias e insinuações,
as vigarices não só dos policiais, médicos, advogados, padres e mercadores,
como faziam os atores da Commedia dell’Arte, mas também da alta nobreza.
O riso, a troça, a gargalhada, a risada, enfi m, sempre foi o grande
recurso do povo contra o poder instituído, seja ele qual for. Mete medo nos
poderosos e por eles é considerado perigoso; logo, tratam de combatê-lo,
porque denota astúcia, imaginação, perspicácia, capacidade de distancia-
mento crítico, de livre raciocínio e afastamento de qualquer pensamento
fechado, de qualquer ideia cega.
Nordeste brasileiro
Região de forte tradição oral, o Nordeste brasileiro é berço de grandes
mestres da fala e contadores de história, que pouco ficam a dever na arte de
narrar aos griots africanos. Para citar aqui apenas alguns exemplos fico com
os de: Joaquim Fernandes de Souza, conhecido como Seu Quinca, um senhor
de 85 anos de idade, que mora em Cachoeira do Fogo, povoado localizado
no Município de Independência, Estado do Ceará; e o de Luiza Tereza dos
Santos, falecida aos 74 anos de idade em Natal, cuja memória guardava mais
de 300 contos, e mereceu livro organizado pelo folclorista Altimar Pimentel e
publicado pela editora Thesaurus. (Ver recomendações bibliográficas)
Filmes
• VALDEMAR DOS PASSARINHOS – Documentário. Direção Rosem-
berg Cariry, Cariri Filmes
• O CEGO QUE VIU O MAR – Documentário sobre Pedro Oliveira,
Direção Rosemberg Cariry, Cariry Filmes.