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Oswald Barroso

Antropologia da Arte

2ª Edição
2011
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SISTEMA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL


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COORDENADORA DO CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES PLÁSTICAS


Lucila Pereira da Silva Basile

COORDENADORA DE TUTORIA E DOCÊNCIA DA LICENCIATURA EM ARTES PLÁSTICAS


Inez Beatriz de Castro Martins
Sumário
Apresentação ....................................................................................................................... 7

Unidade 01
Introdução............................................................................................................................ 9
Capítulo 1 - Para uma Crítica da Modernidade .................................................................. 11
Capítulo 2 - Premissas para um Novo Projeto Civilizatório ................................................ 15
Capítulo 3 - O Artista Como Xamã...................................................................................... 19

Unidade 02
Sobre a Origem do Homem................................................................................................... 27
Capítulo 1 - A Tese Modernista ......................................................................................... 29
Capítulo 2 - As Dificuldades em Provar a Superioridade do Homem Moderno ................. 31
Capítulo 3 - Novas Descobertas da Ciência ....................................................................... 36

Unidade 03
As Origens da Arte ................................................................................................................ 45
Capítulo 1 - Reparos e Advertências ................................................................................. 47
Capitulo 2 - O Enigma das Catedrais de Pedra ................................................................... 49

Unidade 04
Arte, Magia e Máscara.......................................................................................................... 69
Capítulo 1 - Pensamento Selvagem e Magia ...................................................................... 71
Capítulo 2 - O Mana ........................................................................................................... 75
Capítulo 3 - O Mágico e sua Peformance ........................................................................... 78
Capítulo 4 - Máscaras Rituais ............................................................................................. 82

Unidade 05
A Arte Tradicional Popular .................................................................................................... 95
Capítulo 1 - O Belo e o Útil ................................................................................................ 97
Capítulo 2 - Arte como Ofício ............................................................................................. 102
Capítulo 3 - Mestres do Canto e da Palavra ...................................................................... 105
Capítulo 4 - A arte de Narrar ............................................................................................. 109
A Arte do Gato Maravilhoso .......................................................................................................... 110
Capítulo 5 - O Imaginário Popular e seus Disfarces .......................................................... 118

Dados do Autor .................................................................................................................... 132


Este é um livro diferente dos costumeiros manuais didáticos. Propõe-se a mar-
car um ponto de ruptura com visões e há muito estabelecidas sobre a arte e a cultura
nos meios acadêmicos e revisitar antigas percepções recuperadas pelo pensamento
conteporâneo. Busca colocar-se na atual discussão acerca da responsabilidade do ser
humano com o destino do Planeta, bem como da necessidade da reintegração da arte
na vida e do reencantamento do mundo.
Para tal, parte de uma crítica do pensamento moderno e de seu projeto de civili-
zação, confrontando autores e argumentos, instigando no leitor uma atitude ao mesmo
tempo curiosa e questionadora. Em seguida, sob esse mesmo ponto de vista crítico,
revê teses sobre as origens do homem e da arte, evitando os costumeiros enfoques que
pecam tanto pelo antropocentrismo, quando pelo eurocentrismo.
A partir de então, o livro procura estabelecer as premissas para a discussão
dos fundamentos antropológicos da arte. Vai buscar tais fundamentos na lógica do
pensamento mágico ou anímico, que se assenta na percepção sensível do mundo e na
intuição, como móvel da criatividade, em contato constante com o pensamento racio-
nal abstrato. Estabelece como próprio da arte, a primazia da capacidade extática, e do
inconsciente sobre o consciente no processo criativo; e a participação indispensável do
consciente no processo construtivo, assim como no diálogo necessário entre ambos.
O livro mostra, em seguida, arte e magia como sinônimos de encantamento, par-
tilhando uma mesma origem ritual, numa orquestração de linguagens múltiplas, onde
não há separação entre protagonista e espectadores, espetáculo e vida. Tornar belo o
mundo, renovar a vida em beleza, é inclinação da natureza humana, como é dos pás-
saros encher as manhãs com seus cantos.
O livro revela o segredo dos mágicos e xamãs, mostra o como de seus procedi-
mentos e o porquê de seus poderes. Entra pelo universo enigmático das máscaras, das
danças, dos tambores, das encenações e dos transes rituais. Transporta-se através de
continentes e mares, atravessa eras e chega aos griots, artífi ces e mestres do ofício, aos
contadores de romances, trovadores e saltimbancos. Vai mais adiante e adentra ao rico
cenário da cultura popular brasileira. Caminha por entre as festas, folguedos, saberes
e fazeres tradicionais de nossa gente.
Em todas as unidades, como em todos os capítulos, trabalha interrogando, abrin-
do pistas, acrescentando informações e levantando novas questões. Nesse sentido, fun-
ciona também como uma introdução, uma abertura para estudos mais aprofundados
e como um guia para futuras pesquisas.

O Autor
Unidade

1
Introdução

Objetivos:
• Buscar assentar as bases para um debate sobre a Antropologia da Arte, a partir de
uma crítica da modernidade e da tentativa de estabelecer algumas premissas para
um novo projeto civilizatório que incorpore um olhar diferente sobre a arte.
Capítulo 1
Para uma Crítica da Modernidade

Descobertas recentes (ou não tão recentes) no campo da ciência têm


implicado em modifi cações profundas no pensamento humano, de modo
geral, e no pensamento acadêmico, de maneira particular. Especialmente,
no campo da física, estas descobertas têm mostrado de modo radical as
limitações das leis da física mecânica, assim como de toda uma ciência
baseada no racionalismo positivista, hegemônico no universo acadêmico
ocidental há pelo menos três séculos.
Mostrando que o mundo real é constituído basicamente de vácuo,
ou seja, de um imenso espaço vazio (vazio que paradoxalmente é absolu-
tamente preenchido por fl uxos de energia e mutações), onde minúsculas
partículas e ondas vibráteis se deixam por vezes perceber, a física quânti-
ca revoluciona o entendimento humano não apenas sobre a matéria, como
sobre a própria natureza do real. O mundo material, tido até então como
concreto e objetivo, ou seja, com existência alheia à nossa subjetividade,
revela-se absolutamente dependente da percepção do sujeito que com ele
entra em contato. Em outras palavras, a realidade que percebemos é a
um só tempo, a realidade que, a nós, se deixa perceber, e a realidade que
conseguimos perceber.
Neste sentido, a realidade como é percebida pelos humanos, em gran-
de parte, é resultado de nossa subjetividade, não apenas de nossa formação
étnica e de nossa capacidade imaginativa (muito mais do que supúnha-
mos), como de nossos equipamentos de percepção (o corpo humano e todas
as suas extensões). Sendo assim, torna-se inconcebível a separação, que
até muito recentemente se fazia (e que muitos ainda fazem até hoje) entre
mundo objetivo e mundo subjetivo, porque o que percebemos é nossa sub-
jetividade projetada no mundo. A física subatômica mostra inclusive que
nossa percepção modifi ca o que é percebido, ou seja, ao percebermos algo já
o estamos modifi cando. De acordo com esse ponto de vista, uma percepção
absolutamente distanciada, absolutamente neutra, de qualquer realidade é
não apenas impossível, como falaciosa. Para os seres humanos, a realidade
só existe na forma como nós a percebemos, ou seja, a partir de uma percep-
ção que nos é própria, isto é, sedimentada em nosso corpo e construída na
coletividade como espécie, em sua existência no tempo e no espaço.
Do mesmo modo, avanços recentes (ou não tão recentes) no campo
da ecologia profunda, apontam na direção de um retorno da humanidade
à natureza, assim como no sentido de um reencantamento do mundo. A
separação radical entre natureza e cultura, operada pelo pensamento mo-
derno, perde seu fundamento e mostra-se perniciosa, pois se alimenta da
noção de que a natureza existe para servir ao homem, assim como de que
este está autorizado a servir-se da natureza, mesmo que em prejuízo desta.
A raiz desse pensamento está, possivelmente, na separação operada
pelas religiões monoteístas (ver Cristianismo, Islamismo e Judaísmo entre
outras) entre Deus e natureza. Ao contrário das religiões panteístas, que

ANTROPOLOGIA DA ARTE 11
concebiam (e concebem) a natureza, nela incluindo o ser humano, como
emanação de Deus (que por sua vez se multiplicam em inúmeros deuses
particulares) , essas religiões colocam Deus fora e acima da natureza,
numa dimensão apartada desta. Já a modernidade, com seu materialismo
positivista, substituindo Deus pelos homens, desloca a espécie humana
da natureza, a colocando como senhora desta. Se a primeira operação, de
retirada de Deus da natureza, a dessacraliza, a segunda abre caminho
para sua destruição.
Nas religiões monoteístas, o ser humano separa-se de Deus pelo peca-
do, ou seja, opera-se uma queda (não apenas do homem como do restante
dos seres) na qual o paraíso terrestre transforma-se num “vale de lágri-
Ver série de DVDs: His- mas”. Com o “pecado original”, tanto o homem quanto a natureza perdem
tória das Religiões, episó-
seu caráter sagrado, apartando-se de Deus. Aparece uma natureza decaí-
dios sobre o cristianismo,
o judaísmo e o islamismo. da, sendo o homem redimido pela purgação do pecado e pelo perdão divino.
Pegar referências nas su- Mas como a natureza permanece fora de Deus, só com a morte surge a
gestões de DVDs. possibilidade do homem se reintegrar ao sagrado.
Ao eleger a racionalidade como atributo que coloca os humanos acima
dos demais seres, deles apartado por uma qualidade superior, a modernida-
de substitui Deus pelo Homem. Despreza o que nos homens seria comum a
outros seres e erige a razão como medida de superioridade e de afastamen-
to destes da natureza. Ainda mais, separa o cérebro do restante do corpo
humano e defi ne o letramento como instância da grande cultura. No docu-
mentário cinematográfi co de Victor Lopes, Vidas em Português, o grande
escritor José Saramago, criticando o empobrecimento da língua falada e es-
crita, afi rma estar havendo uma involução. Explica que estamos perdendo,
com a pobreza vocabular crescente, a complexidade da expressão humana
dantes alcançada, inclusive para falar de sentimentos. Brincou dizendo que
desse modo vamos voltar aos tempos primitivos, declarando nosso amor por
alguém através de um grunhido, como faziam os homens então.
Parece-me que aí está um bom exemplo do humanismo moderno, que
vê na complexifi cação da língua o índice por excelência do desenvolvimento
humano. Ora, o equívoco é facilmente demonstrado. Em primeiro lugar,
os homens ditos primitivos não expressavam seus sentimentos apenas por
grunhidos, porém com o corpo todo, de modo talvez tão complexo quanto
nós. Em segundo lugar, não se pode ligar complexidade com evolução obri-
gatoriamente. Muitas sociedades altamente complexas, como a egípcia, por
exemplo, eram marcadas por estruturas bem mais autoritárias que as da
maioria das sociedades ditas primitivas. E em terceiro lugar, se na moder-
nidade ocidental houve um hiperdesenvolvimento da racionalidade nas lín-
guas humanas, isto se deu em detrimento dos outros meios de expressão e
comunicação. O homem moderno, hipervalorizando o pensamento cerebral,
atrofi ou os outros recursos corporais de percepção e comunicação. Ou seja,
se ganhou complexidade no letramento e no vocabulário lingüístico, perdeu
na expressividade do corpo e na sutileza da percepção sensorial. O que se
vê agora, com o crescimento dos multimeios de comunicação, é a recupe-
ração de muitos recursos da expressividade humana, embora em prejuízo
da riqueza vocabular, não poucas vezes. Talvez o que se constate é a busca
do reequilíbrio perdido, com a modernidade, entre os diferentes recursos
corporais no campo da percepção e da comunicação.
Ver livro: As Conseqüên- Como decorrência desse modo de pensar, a modernidade desenvolve
cias da Modernidade, de
Anthony Giddens. Pegar um projeto civilizatório antropocêntrico, convencido de que a natureza exis-
referências nas sugestões te para servir ao homem. Outra não é a substância do humanismo moderno
de leitura. e da racionalidade positivista da ciência ocidental, ideologia que norteou

12 ANTROPOLOGIA DA ARTE
todo o projeto civilizatório da modernidade. Pelo menos, desde o fi m do renas-
cimento até os dias atuais, esta tem sido a “religião” hegemônica no Ocidente.
Tanto em sua forma capitalista quanto em sua forma dita socialista, a
civilização moderna assenta seu projeto na economia e na política, pilares
a serviço dos quais se estabelece seu projeto de desenvolvimento humano e
cultural. Submetida a lógicas econômicas, a espiritualidade se mercantili-
za, serve ao mundo do trabalho e da produção. Como outras instâncias da
cultura, a arte se desenvolve atrelada à economia, num campo de disputas
intestinas, movido a interesses monetários e políticos. Em nome de um co-
nhecimento dito científi co, experimental e empírico, o saber popular é desa- O Fórum Sociail Mundial
(FSM) é uma mobilização
creditado, condena-se a magia e o mito, elegendo a objetividade da ciência
“altermundialista”, orga-
como critério único da verdade. As grandes religiões se institucionalizam nizada por movimentos
em hierarquias rígidas e autoritárias, adequando-se às conveniências do sociais de diferentes con-
capital, enquanto a religiosidade do povo é tratada como fonte de ignorância tinentes, com o objetivo
de propor formas civiliza-
e alienação. A lógica pragmática considera supérfl ua qualquer possibilida- tórias alternativas para
de de transcendência e o mundo se desencanta. Concebe-se a história de uma transformação social
maneira evolucionista, como uma sucessão de etapas, hierarquizadas no no Planeta. Tem como
dístico: Um outro mundo
tempo, onde o passado é o atraso e o futuro o progresso, indo do selvagem é possível. Proposto como
ao civilizado, da natureza à cultura, do primitivo ao moderno, do animal um contraponto ao Fó-
ao humano, da magia à ciência etc., e em que cada época representa uma rum Econômico Mundial
de Davos, na Suiça, em
superação melhorada da anterior. data coincidente (de janei-
Muitos sociólogos e cientistas políticos falam de uma pós-moderni- ro), atualmente realiza-se
em datas diferentes, uma
dade, que na verdade é um prolongamento e exacerbação da modernidade, vez por ano. Trata-se de
caracterizada por uma globalização a partir do mercado, pelo fi m da alter- um espaço aberto e de-
nativa socialista a um capitalismo neoliberal, pela ausência de projetos po- mocrático, alternativo à
globalização capitalista
líticos diferenciados e pela penetração do capital em espaços ainda intoca-
e ao “pensamento único
dos da atividade cultural. O resultado dessa globalização, midiatizada pelo neo-liberal”, que reúne
mercado com a utilização de uma desenvolvida tecnologia digital, além de dezenas de milhares de
facilitar a formação de grandes redes internacionais de criminalidade (como representantes dos mais
diferentes movimentos
a pedofi lia e o tráfi co de drogas), foi um crescente processo de homogenei- sociais, assim como de
zação cultural, apagando diferenças na conformação de uma indústria de grandes personalidades
comunicação de massas em âmbito mundial. e líderanças planetárias.
Com uma participação em
Como reação a esse estado de coisas, se propõe, em primeira instância, crescimento (de 10.000
uma atitude que mais parece de adaptação. Neste sentido, fala-se em inves- pessoas, na primeira, a
120.000, de 150 países,
timentos na criatividade, em novos avanços na substituição do homem pela na última edição), os fó-
máquina, em tecnologias que dispensam uma mão de obra numerosa, na runs tiveram início em
priorização de projetos voltados à indústria cultural e ao turismo, na econo- 2001. Os três primeiros
foram em Porto Alegre
mia da cultura, na arte direcionada para projetos sociais, que combatam a (Rio Grande do Sul), o
violência e desviem os jovens das drogas e da criminalidade. Seguindo este quarto em Bombaim (Ín-
parâmetro, os projetos culturais e artísticos passam a ser avaliados por um dia), o quinto em Porto
Alegre, o sexto em três ci-
viés econômico e social, que inclui a educação para o trabalho, o combate a
dades: Caracas (Venezue-
mazelas sociais (como o tráfego de drogas, a violência marginal etc.) e a ge- la), Karachi (Paquistão)
ração de emprego e renda. O resultado é que conseguem retirar os jovens do e Bamako(Mali), o sexto
ócio, porém, em contrapartida, quase sempre, também do sono e do sonho. em Nairóbi (África), o sé-
timo foi descentralizado e
Para outra corrente de pensamento, que inclui desde físicos, ecologis- o nono em Belém do Pará.
tas, fi lósofos, teólogos, artistas, até movimentos sociais (como os Fóruns So- Entre outras, são discuti-
dos, nas edições do FSM,
ciais Mundiais, o Green Peace, os movimentos ecológicos, a Via Campesina, temas como sustentabi-
o MST etc.), estes fenômenos políticos e econômicos, assim como estas ino- lidade ambiental, aids,
vações no capitalismo, longe de apontar para uma nova era civilizatória, si- paz e confl ito, juventude,
situação das mulheres,
naliza o estertor da modernidade, abalada por crises econômico-fi nanceiras migrações e perseguições,
cada vez mais agudas e pela perspectiva de grandes catástrofes ecológicas. dívida externa, os sem-
-terras e a privatização de
Para esses militantes-pensadores trata-se de inaugurar um novo pro-
bens comuns etc.
jeto civilizatório para a humanidade, que faça a crítica, pelo menos, dos

ANTROPOLOGIA DA ARTE 13
últimos quatro séculos de modernidade. As mudanças exigidas no compor-
tamento humano são radicais e implicam retomadas de caminhos há muito
abandonados pelo Ocidente. O eixo dessa mudança de paradigmas inclui,
pelo menos, em primeira instância, cinco grandes questões, ou seja: o re-
encantamento do mundo, a recolocação dos seres humanos na natureza, a
quebra de barreiras entre natureza, cultura e sociedade, a relativização do
saber científi co e a recuperação do saber tradicional, e o rompimento com
toda e qualquer idéia evolucionista valorativa. Como conseqüência, exige
um projeto que seja planetário, isto é, parta da idéia da Terra como um
grande ser vivo, que precisa ser preservado e renovado.

1. Ao seu ver, quais as principais contribuições da modernidade para o


desenvolvimento social?
2. Em que sentido a modernidade pode ser considerada antropocêntrica?
3. Em que medida a modernidade contribuiu para o desprezo do homem
pela natureza?

14 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 2
Premissas para um Novo Projeto Civilizatório

O processo de hominização data de pelo menos 20 milhões de anos,


sendo que o homo sapiens, espécie a qual nós pertencemos, tem sua origem
há cerca de 40.000 a 45.000 anos. Descobertas arqueológicas mostram
que muitas linhagens hominíneas surgiram e desapareceram ao longo dos
tempos, assim como muitas delas coexistiram em um mesmo espaço du-
rante milhões de anos. Algumas dessas espécies, inclusive, apresentavam
capacidade craniana superior à do homo sapiens. É possível, mesmo, que
muitas dessas espécies hajam desaparecido devido à excessiva especializa-
ção e adaptação ao meio em que viviam, o que as tornou inaptas à sobrevi-
vência com o advento de mutações ecológicas ou simplesmente climáticas.
(KI-Zerbo, 1972, pp. 52 a 60)
Estas observações valem para relativizar a importância, no trajeto da
humanidade, do que a ciência chama de tempos históricos, notadamente
quando eles são circunscritos aos períodos e civilizações que utilizavam e
utilizam a escrita. Quando, hoje, se observa sobrevivências de certas cons-
truções do paleolítico e do neolítico, nos surpreende a qualidade da técnica e
da engenharia nelas contidas. Deste modo, mostra-se despropositado redu-
zir a história a três ou quatro mil anos, para daí concluir por um processo
em progressão da humanidade. No mínimo, ao se proceder assim, atrofi a-se
a ótica do observador na apreciação do périplo humano, amesquinhando a
perspectiva de seu julgamento.
Ao se alargar a abrangência da história dos povos e civilizações, fe-
nômenos como a retirada de Deus da natureza, assim como a posterior re-
tirada dos seres humanos do seu âmbito, mostram-se surpreendentemente
recentes. Até o advento das grandes religiões monoteístas contemporâneas,
no caso o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, a idéia de uma natureza
separada de Deus era inconcebível. Na grande maioria das religiões, não
apenas a natureza é manifestação inseparável do divino, como cada um
de seus elementos corresponde a um deus em particular. Embora a noção
de transcendência esteja presente na concepção de Deus dessas religiões,
sendo Ele um grande espírito que perpassa todas as coisas, esta entidade
geral nunca se descola de todo da dimensão real do universo. Isto é, apa-
reça com o nome de Zeus, Espírito Santo (no catolicismo popular), Brahma
ou Oxalá, Deus é imanência, ou seja, vida que toma forma em tudo o que
existe. Assim, para essas religiões, a separação entre sagrado e profano é
inconcebível, o universo é sagrado e encantado, isto é, tem alma, que pode
se manifestar, enquanto matéria, de diferentes formas, conforme a percep-
ção de quem o observa.
Estas noções de realidade, comum a muitas religiões, entre as quais
as religiões nativas da África e das Américas, assim como a maioria das
religiões orientais (entre elas o hinduísmo, o budismo e o taoísmo), segundo
foi demonstrado por Fritjof Capra (ver O Tao da Física e Ponto de Mutação)
de certa maneira é recuperada pela Física Quântica, como veremos ao longo

ANTROPOLOGIA DA ARTE 15
deste livro. Uma primeira grande percepção é que no Cosmos tudo é vivo
e que a diferenciação entre seres animados e inanimados é impertinente.
Uma segunda é que no Planeta, concebido como um imenso ser vivo, tudo
está ligado, formando um único ecossistema, em que cada ser tem parte na
preservação e renovação do todo.
Sendo assim, advoga-se para os seres humanos, uma cosmovisão, que
os traga de volta à natureza, para que contribuam com sua recuperação e
enriquecimento, exercendo a função que lhes cabe, enquanto consciência
do Planeta. Ao mesmo tempo, que reponha Deus na Terra, reencantando
o mundo, e desautorizando qualquer pretensão humana de valer-se da na-
tureza a seu bel prazer. Esta virada ontológica não apenas descredencia a
pretensão de que a natureza existe para servir aos homens, como a ressacra-
liza, exigindo em relação a ela o respeito que se exige para com os deuses.
Entendendo a espécie humana como parte da natureza (e não desta-
cada dela, como o fez a racionalidade moderna), o resultado de seu fazer, em
conseqüência, também é natureza, ou mais precisamente, natureza produ-
zida por homens e mulheres. Portanto, um novo projeto civilizatório só terá
conseqüências benéfi cas ao Planeta se conceber a cultura como um prolon-
gamento da natureza ou, melhor dizendo, uma parte desta.
Seguindo a mesma linha de pensamento, as sociedades humanas,
assim como as sociedades animais (sendo a humana também uma socie-
dade animal), são como grandes ecossistemas. Tanto quanto as abelhas ou
as formigas, os lagos ou as bacias fl uviais, as sociedades humanas podem
jogar um papel na renovação ou destruição do Planeta, papel diferenciado
na qualidade, pois tendo a capacidade de mediar sua relação com a Terra,
os seres humanos têm uma maior responsabilidade na sua preservação.
Surpreendente é que muitas noções só alcançadas agora pelas ciên-
cias ocidentais, como algumas acima mencionadas, já eram corriqueiras
Acupuntura é um ramo
para muitas civilizações ditas primitivas, em várias épocas históricas e es-
da Medicina tradicional paços geográfi cos. Do mesmo modo, descobertas recentes da farmacologia,
chinesa, que consiste da botânica e da medicina, para citar apenas alguns campos da ciência,
num método terapêutico
reafi rmam conhecimentos há muito dominados pelo saber popular.
de aplicações de agulhas
ou outros tipos de estí- Sabe-se que, mesmo na Europa Ocidental, pelo menos até o Renas-
mulo, em determinados cimento, magia e ciência eram saberes compartilhados por sábios e po-
pontos do corpo.Além
de agulhas, são também pulares. Copérnico e Galileu, por exemplo, eram astrônomos e astrólogos,
utilizados o aqueximento química e alquimia dialogavam enquanto saberes válidos, ou seja, magia
promoido por moxa, um e ciência, longe de serem excludentes, eram consideradas conhecimentos
bastão de artemísia em
brasa, que é aproxima- complementares. Na grande maioria das civilizações, o mesmo diálogo
do da pele para aquecer acontecia e até hoje acontece no Oriente, onde a medicina científi ca convive
o ponto de acupuntura. com saberes de fundamentação mágica, como a acupuntura, a iridologia, o
Shiatsu é um processo
de harmonização do cor-
shiatsu e os estudos ungueais. Enquanto isto, no Ocidente, práticas como a
po físico e emocional que, homeopatia, largamente difundidas, que utilizam procedimentos fundados
por meio de massagens, na magia simpática, só recentemente passaram a ser reconhecidas como
ativa linhas de energia
e desbloqueia tensões,
procedimentos válidos pelos cursos de medicina. Enquanto no Ocidente a
corporais promovendo o medicina caminhava para a fragmentação do corpo humano, para a espe-
seu equilíbrio e ativando cialização profi ssional, e para o desenvolvimento de procedimentos cirúr-
seu potencial de energia.
gicos, no Oriente se insistia em tratar o corpo humano de modo integral,
Baseia-se numa visão psi-
cossomática das funções e procurando conhecê-lo a partir de sinais exteriores em seu estado vivo.
sistemas corporais, votan- Com o avanço do capitalismo industrial na Europa e das ciências di-
do-se para a compreensão
e unifi cação do indivíduo, tas exatas, como a física mecânica e a matemática, o pensamento racional
integrando sua psique ao ganhou precedência sobre outras lógicas e formas de apreensão do mundo.
seu corpo e suas emoções O fazer torna-se mais importante que o saber e o positivismo cartesiano
à sua estrutura física.
mostra-se bem mais apropriado, que todos os saberes tradicionais, ao de-

16 ANTROPOLOGIA DA ARTE
senvolvimento tecnológico e produtivo. O pragmatismo ganha terreno inclu-
sive entre as religiões, sendo inegável a influência do pensamento racional
na reforma protestante e na contra-reforma católica. Os saberes tradicio-
nais são estigmatizados como heréticos e supersticiosos. Bruxas e magos
são queimados. Quando tolerados, os saberes tradicionais são estigmati-
zados como inferiores e abandonados às camadas pobres da população. A
ciência passa a ser a fonte única da verdade e a comprovação empírica a
instância de legitimação da mesma.
Alguns séculos depois, paradoxalmente, descobertas científicas e
avanços tecnológicos, realizados no próprio Ocidente, alargam a consciência
humana da percepção de seus limites, ou seja, da reduzida capacidade de
perceber a realidade em seus diversos aspectos e dimensões, bem como da
impossibilidade do pensamento racional (por si só) explicar o sentido da vida.
Nessa direção contribuíram enormemente não apenas revelações da física
quântica, como a cibernética e a tecnologia desenvolvida através de com-
putadores, que ao lado de uma linguagem digital (absolutamente simbólica
e convencional), desenvolveu uma linguagem analógica, mais próxima da
comunicação artística e do pensamento mágico (pela utilização de ícones).
Tendo como referência o conjunto de percepções dos seres que com-
põem a paisagem natural (sejam minerais, vegetais ou animais), sabe-se
hoje que os humanos só conseguem perceber cerca de um por cento de seu
entorno, chegando a três por cento se contarmos com o auxílio de nossas
extensões tecnológicas. Desse modo, a pretensão não apenas de encontrar
verdades objetivas fica comprometida, como até mesmo de uma suposta su-
premacia dos humanos sobre os demais seres.
A idéia de uma evolução do homem e das sociedades por ele criadas,
mesmo que de modo fragmentário, cíclico ou descontínuo, em direção ao
progresso e ao aperfeiçoamento, perde consistência. O mesmo acontece com
a tese utópica das religiões monoteístas e das ideologias materialistas de um
paraíso no final dos tempos. Ganha terreno a percepção de que não há uma
ligação obrigatória entre desenvolvimento tecnológico, crescimento econô-
mico e bem estar social. As relações entre tendências humanas opostas,
como competição e cooperação, violência e pacifismo, egoísmo e generosida-
de, individualismo e coletivismo, já foram mais equilibradas em sociedades
distribuídas desigualmente por diferentes épocas e espaços. Nada nos diz
que este equilíbrio, quando obtido, não será sempre precário e temporário.
Nas religiões, em que não se configurou a queda do homem pelo
pecado e sua retirada da natureza, a utopia, o paraíso e a eternidade, a
transcendência, enfim, não são alcançadas após a morte, mas em momen-
tos especiais durante a vida, em lampejos de encantamento, onde a essên-
cia divina nos homens se manifesta. Momentos em que os deuses tomam
a forma humana, incorporados a partir de máscaras, que definem novas
dimensões do ser. Nessas culturas, a eternidade nos é contemporânea,
assim como o paraíso utópico (seja celeste ou terrestre), já que realidades
reveladas no encontro do grande espírito, que faz dos seres humanos parte
de Deus e da natureza.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 17
1. Qual a diferença entre religião, fi losofi a e ciência?
2. Em que princípios estaria assentado um novo projeto civilizatório para
a humanidade?
3. Por que se diz que ao ser humano é impossível uma apreensão objetiva
da realidade?

18 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 3
O Artista Como Xamã

O grande poeta cearense, Patativa do Assaré, cujo centenário de nas-


cimento foi comemorado em março de 2009, costumava dizer que não fazia
meio de vida de sua arte, porque ela era um dom divino, um privilégio que
Deus lhe havia concedido. Além de sua face de poeta cidadão, defensor dos
pobres e oprimidos, Patativa notabilizou-se por sua ligação com a natureza,
sendo conhecido como poeta pássaro. Poeta pássaro não apenas porque
se tinha como uma força da natureza, como porque cantar era a sua vida.
Quem o conheceu sabe, que o poeta pouco conversava e falava em prosa.
Criava poemas a propósito de tudo. Se não os declamava de improviso, ru-
minava seus versos por algum tempo, para depois torná-los públicos, quase
sempre de viva voz, embora registrasse alguns deles, em escrita, para pos-
terior publicação.
Patativa vivia em estado permanente de criação. No início, como ele
mesmo revelou, buscava os versos. Por último, estes já vinham a ele pron-
tos, inclusive em sonhos. Isto porque à facilidade natural, de quem se criou
num ambiente em que poesia e poeta eram valorizados, Patativa acrescen-
tou o hábito desenvolvido ao longo da vida, na forma de técnicas xamânicas,
ou seja, de fazer brotar a inspiração. Assim, estivesse na roça, em casa, ou
em uma entrevista na televisão, Patativa tinha o corpo ligado: se estava na
roça, via “um verso em cada ganho, um poema em cada fl or”, se estava em
um escritório, a poesia aparecia entre livros, papéis e canetas.
Destaque
O poeta de Assaré, assim como o mestre de ofício e o artífi ce em geral,
nas comunidades tradicionais (incluindo aí os brincantes – poetas, canto-
res, atores, dançarinos, bonequeiros etc.), trabalham por hábitos incorpo-
rados. Mesmo quando não há encomendas, ou quando não há previsão de
apresentações, eles estão em permanente exercício da arte. Caso típico é o
de algumas “artesãs”, extraordinárias artistas do bordado, como as labi-
rinteiras das praias cearenses, que trabalham permanentemente na elabo-
ração demorada de peças refi nadas e complexas, como enxovais de noivas,
para venderem no fi nal a atravessadores por preços insignifi cantes, frente
ao labor que desenvolvem. Elas explicam que assim procedem “por distra-
ção” e porque é o que sabem fazer. Assemelham-se, no caso, a aranhas te-
cendo suas teias infi nitamente, como a dar sentido às suas vidas.
O artista no cotidiano cria com o corpo todo. “Recebe o santo”, che-
gam-lhe as formas artísticas. Ele é ao mesmo tempo um ausente da reali-
dade e o mais presente nela. Vive numa dimensão outra, a da poesia. Está
ligadíssimo ao seu entorno, mas numa dimensão que não é a da vida vulgar,
a da concorrência, do comércio, ele vive, como se diz, nas nuvens. Porém
este nas nuvens quer dizer, em nuvens que lhe estão próximas, que baixam Sobre o assunto, ver livro:
sobre ele, que tomam seu entorno. Melhor dizendo, nuvens que dele brotam, KEOWN, Damien - O Bu-
porque os deuses que possuem o artista, já estavam neles. No momento da dismo. Lisboa: Temas e
Debates, 2002.
incorporação se expandem, tomam todo o tempo e espaço do seu corpo.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 19
O estado de nirvana, no budismo, é obtido por uma busca de alhea-
mento não só do entorno (em sua dimensão cotidiana), como de si mesmo.
No taoísmo (particularmente) se distingue três tipos de estágios no desen-
volvimento humano: o dos homens e mulheres prisioneiros de seus egos, em
que o poder e a riqueza, o rancor e a ambição (entre outras tendências des-
trutivas) dominam seus corpos; o dos homens e mulheres que conseguiram
controlar suas paixões egoístas, desenvolvendo sentimentos altruístas, de
generosidade, solidariedade e compaixão, obtendo equilíbrio e serenidade; e
o terceiro estágio, o dos budas, daqueles que, ultrapassando o bem e o mal,
se estabelecem na transcendência. Diz-se que muitos monges budistas já
poderiam dar este terceiro passo, mas optam por ficarem no segundo, com
o fim de ajudar na evolução dos que lhes cercam.
Usando esta referência, o artista seria um ser híbrido, com um pé na
transcendência e outro no cotidiano, ou melhor, com os sentidos nas pai-
xões, o cérebro na razão, mas com todo o corpo no transe. Ele pode ter um
acervo menor ou maior de informações, gerando uma arte mais ou menos
complexa; ele pode ter mais ou menos recursos técnicos (com formação aca-
dêmica ou não), porém lhe é indispensável a qualidade do insight e a frequ-
ência da inspiração. Talvez um corpo formado por vivências múltiplas, que
podem ou não incluir leituras, sonhe um delírio mais informado. Também
é possível que ao processo criativo seja necessário certo controle racional,
entretanto cabe ao artista ultrapassar a racionalidade, trabalhar com o ini-
maginável, muito mais do que com o imaginável.
No ano de 1996, o Sepultura, grupo mineiro de thrash metal, com pro-
jeção internacional, desenvolveu um diálogo musical com os índios xavante
do leste do Mato Grosso, que resultou na gravação da faixa Itsári, do seu
álbum Roots, lançado então. Durante as trocas culturais, chamou a atenção
dos índios não apenas a música barulhenta de Igor Cavalera e seus parcei-
ros, mas o modo estudado e minucioso como eles trabalhavam cada número.
Sereburã Xavante, o autor da canção gravada no álbum do Sepultu-
ra, explicou como os xavantes criam suas músicas. “– A gente se prepara
para ter o sonho desejado, colocando um tipo de pauzinho no furo da ore-
lha. Cada pauzinho puxa determinado tipo de sonho.”, disse Suptó Xavante
traduzindo as palavras de Sereburã ditas na língua lá deles. E completou:
“- A gente se concentra no sonho para poder revelar a música que vem nele.
Essa agora foi o canto da madrugada, veio do pauzinho que ele está usando.
Os adultos cantam em cada casa quando está amanhecendo.”
Suptó Xavante conta que a canção Itsári, gravada no álbum do Se-
pultura, foi escolhida pelo grupo mineiro entre os muitos cantos rituais
mostrados pelos xavantes, quando em visita à sua aldeia no Mato Grosso.
Itsári é uma canção de cura, para recuperar aqueles que estão à beira da
morte. “- No show, nós cantamos para curar a platéia”, disse Suptó. (Este di-
álogo foi retirado da série de DVDs: Música do Brasil – Disco 3, Música para
Índios, Bloco: Sepultura e Xavantes, Roteiro e Pesquisa: Hermano Vianna,
Direção: Belisário Franca. Produção: Giros Produções e Produções Abril;
Realização: Abril Entretenimento.)
Destaque
Sepultura: Banda de thrash metal formada em 1984, em Belo Hori-
zonte e mais popular nos Estados Unidos do que no Brasil, canta apenas em
inglês. O primeiro disco, “Bestial Devastation”, dividido com a também ban-
da mineira Overdose, foi lançado em 1985 por um selo independente, segui-
do por “Morbid Visions” no ano seguinte. Com a entrada de Andreas Kisser
na guitarra gravaram “Schizophrenia”, que os projetou internacionalmente.

20 ANTROPOLOGIA DA ARTE
No ano seguinte assinaram contrato com a gravadora americana Roadrun-
ner e passaram a se dedicar a conquistar o mercado externo. “Beneath the Re-
mains”, lançado em 1989, foi aclamado pela crítica especializada e fez com que a
banda se tornasse mais conhecida no Brasil e no resto do mundo, fora dos EUA.
Em 1996 vieram ao Brasil pesquisar e gravar sons e ritmos das tribos indí-
genas para lançar “Roots”. No mesmo ano, a saída do vocalista e líder Max
Cavalera causou contratempos, pois a banda decidiu não se desfazer e teve
que procurar um vocalista substituto, que acabou sendo Derrick Green, ofi-
cialmente parte da banda desde junho de 1998. A formação do grupo ficou
assim: Derrick Green, substituto de Max Cavalera, voz e guitarra; Igor Cava-
lera, bateria; Paulo Jr., baixo; Andreas Kisser, substituto de Jairo T, guitarra.
“Against”, lançado em 1998, foi o primeiro CD do grupo depois da saí-
da do antigo vocalista. O álbum traz algumas experimentações interes-
santes, como a percussão do grupo japonês Kodo. Contudo, a obra re-
flete ainda um período conturbado para a banda. Talvez por isso, não
tenha sido muito bem aceito pelos fãs e pela crítica especializada.
Em 2002, sai o duplo ao vivo “Under a Pale Grey Sky”. O disco é um re-
gistro de um dos shows da turnê do álbum “Roots”, gravado em 1996,
ainda com Max Cavalera nos vocais. Somente no seguinte, chegava às lo-
jas o inédito “Roorback”. Considerado melhor que os anteriores “Against”
e “Nation”, o disco deixou claro a intenção da banda de voltar às raízes.
Ainda em 2003, o Sepultura participou do festival Kaiser Mu-
sic e teve a honra de dividir o palco com um dos grandes no-
mes da história do Rock Mundial, o Deep Purple. Em 2004, o gru-
po volta a fazer turnês internacionais, ao lado da banda Motörhead.
O último trabalho do Sepultura, “Live In São Paulo” foi lançado em CD e
DVD, em 2005. Trata-se do primeiro show gravado desde o vídeo Under
Siege - Live in Barcelona, de 1992. Músicas como “Troops of Doom”, “Sepul-
nation”, “Territory”, “Choke”, “Arise” e “Escape to the Void” são alguns dos
destaques deste álbum duplo, que contou com várias participações espe-
ciais, incluindo Zé do Caixão, João Gordo e B-Negão.
Alguns artistas e teóricos falam do transe criador como um movimen-
to em direção aos deuses, outros falam de um movimento dos deuses em
direção ao artista. Muitos ainda relacionam estes dois movimentos como
complementares. Talvez seja mais apropriado se referir a um só movimen-
to, o do artista cedendo espaço para os deuses que carrega dentro de si,
fazendo desencantar os arquétipos (na forma de figuras e seres em geral)
nele ocultos em estados muitas vezes incipientes. Cabe, então, ao artista a
“iluminação”, seguida por sua dilatação, por seu preenchimento com ges-
tos, traços, palavras e outras elaborações estéticas, construindo e dando
acabamento consciente ao que foi esboçado intuitivamente.
Em “O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (Ver: Mircea
Eliade, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, São Paulo; Martins
Fontes, 2002. p. 16), Mircea Eliade descreve o desenvolvimento dos xamãs,
como a aquisição de um acervo de técnicas apreendidas e de experiências
vivenciais, que são aproveitadas na execução dos ritos, eles mesmos uma
sequência de procedimentos rigorosamente ordenados e prescritos. (7) Re-
cursos, como as máscaras, fazem partir o processo “mediúnico” do exterior,
ou seja, partem da máscara e evoluem no sentido da contaminação comple-
ta do corpo. Iniciam-se por processos técnicos e conscientes e caminham no
sentido da iluminação. Já outros, iniciam com a suspensão de qualquer ra-
cionalidade na busca do transe e, a partir dele, completam-se com técnicas
e outros procedimentos dirigidos pela consciência. Nos dois casos, contudo,
a construção de um estado criativo define a diferença do fazer artístico.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 21
Certa feita, falando a cientistas, Einstein afi rmou que o segredo da
criatividade está em dormir bem e abrir a mente às possibilidades infi nitas.
Depois perguntou sobre o que seria de um homem sem sonhos. Se dito a
cientistas isto é pertinente, quanto mais se dito a artistas!
Cabe acrescentar, no caso da arte, que seu processo construtivo, dife-
rentemente da ciência, muito mais do que com uma lógica racional positiva,
trabalha com técnicas e lógicas próprias do pensamento mítico-mágico, ou
anímico. Esta forma de pensar, por correspondências, contraposições, com-
plementações, proximidades e distanciamentos, é comum tanto à estética,
quanto à magia, e preside o trabalho do artista em seus procedimentos
criativos, como veremos adiante.
Portanto, na qualidade de xamã, o artista é aquele que opera prodí-
gios. Usa o próprio corpo e os mais diferentes recursos, para abrir as vias do
encantamento. Seu fazer suspende o tempo ordinário e estabelece o espaço
do maravilhoso. Sua arte instaura uma dimensão que sendo imaginária
não se opõe ao real. Funda um território que se instala entre o visível e o
invisível, o céu e a terra, o aqui e o além, a matéria e o espírito. Trafega nos
limites do real e do irreal, da história e da fi cção, estabelecendo paralelos,
correspondências, abrindo confl itos, fazendo ligações. Trabalha para além
da verdade e da objetividade, no campo do imponderável e da poesia. Inau-
gura lógicas a cada nova criação, lógicas múltiplas através das quais tudo
pode ganhar vida. Lógicas absolutamente rigorosas, que guardam a mais
estreita coerência, e que, por isso mesmo, podem fl uir do realismo mais or-
todoxo à fantasia mais delirante.

A introdução começa com uma crítica da modernidade feita a partir


de descobertas recentes das ciências, especialmente da física quântica e da
arqueologia que parecem recuperar conhecimentos antigos assentados em
mitologias e religiosidades anímicas, principalmente do Oriente. Questiona
alguns princípios que dão base ao pensamento moderno, como a separa-
ção entre subjetividade e objetividade, Homem e natureza (vista como uma
decorrência da separação entre Deus e natureza), corpo e mente, espírito
e matéria, natureza e cultura, assim como toda idéia de evolução ligada a
progresso e hierarquia. Mostra o propósito das teses antropocêntricas de
privilegiar no ser humano o pensamento abstrato racional e o uso da lin-
guagem digital escrita, como prova de superioridade do homem moderno
urbano ocidental sobre os povos ditos primitivos, assim como da ciência
sobre outras formas de conhecimento, como a magia e o animismo (e a arte,
como conseqüência).
Em seguida, sob o título, “Premissas para um novo projeto civiliza-
tório”, é proposta uma antropologia não antropocêntrica, que veja o Ho-
mem como parte da natureza e, como tal, junto com os outros seres que a
compõem, responsável pela sua preservação e renovação. Ao mesmo tempo,
propõe um reencantamento do mundo, que rompa com a visão escatológica
de uma utopia ou um paraíso adiado para o fi nal dos tempos, recolocando
o prazer no presente.
O último item da introdução, intitulado: “O artista como xamã”, pro-
cura tirar conseqüências dessas idéias para o campo da arte. A principal

22 ANTROPOLOGIA DA ARTE
delas é que a criação artística se dá numa relação entre intuição e razão,
inconsciente e consciente, implicando um empenho de corpo inteiro do ar-
tista, no qual, sua capacidade de transcender os próprios limites racionais,
joga o papel principal.

1. No trabalho do artista, qual a relação entre intuição e racionalidade?


2. O dom criativo no ser humano pode ser desenvolvido?
3. Em que sentido se pode dizer que o artista é um sedutor?

René Descartes
Filósofo, fisiologista e matemático francês (1596-1650). Foi contempo-
râneo de Galileu e Pascal, tendo trabalhado, como eles, sob a pressão reli-
giosa da Inquisição. Escreveu cinco livros sobre filosofia e ciência: O Mundo
(sobre o universo físico), Discurso sobre o Método de Bem Conduzir sua Ra-
zão e procurar a Verdade nas Ciências (seu trabalho mais conhecido), Medi-
tações (sobre epistemologia), Princípios de Filosofia (particularmente acerca
da física) e As Paixões da Alma (sobre fisiologia e psicologia). Sua frase mais
conhecida, Cogito, ergue Sun (Penso, logo existo) é considerada a síntese do
chamado racionalismo positivista ou cartesiano (numa referência ao próprio
Descartes), procedimento lógico fundador da metodologia científica moder-
na. Segundo Descartes, o raciocínio é a operação mental, discursiva e lógi-
ca, que usa proposições para extrair conclusões relativas à verdade. Os filó-
sofos racionalistas, entre eles, Leibniz e Descartes, utilizaram a matemática
como instrumento da razão para explicar a realidade. O método cartesiano,
proposto para a ciência, baseia-se na Geometria e pode ser resumido em
quatro procedimentos: 1) Só acolher algo como verdadeiro, quando sobre tal
coisa não reste nenhuma dúvida. 2) Dividir cada dúvida no maior numero de
partes possíveis e em tantas partes necessárias para melhor resolvê-las. 3)
Ordenar o raciocínio de modo a começar pelos objetos mais simples e mais
fáceis de conhecer, até alcançar, pouco a pouco, os mais complexos, numa
ordem crescente de dificuldades. 4) Desenvolver acerca dos objetos obser-
vados enumerações tão completas e revisões tão gerais, com a certeza de
nada omitir. No campo da política, o racionalismo inaugurou o pensamento
liberal, que busca caminhos de planejamento lógicos e ordenados para a ob-
tenção do bem coletivo, através de soluções técnicas e racionais, acima de
quais quer outros interesses, sejam de classe ou de simples grupos sociais.

Fórum Social Mundial (FSM)


É uma mobilização “altermundialista”, organizada por movimentos so-
ciais de diferentes continentes, com o objetivo de propor formas civilizató-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 23
rias alternativas para uma transformação social no Planeta. Tem como dís-
tico: Um outro mundo é possível. Proposto como um contraponto ao Fórum
Econômico Mundial de Davos, na Suiça, em data coincidente (de janeiro),
atualmente realiza-se em datas diferentes, uma vez por ano. Trata-se de
um espaço aberto e democrático, alternativo à globalização capitalista e ao
“pensamento único neo-liberal”, que reúne dezenas de milhares de repre-
sentantes dos mais diferentes movimentos sociais, assim como de grandes
personalidades e líderanças planetárias. Com uma participação em cresci-
mento (de 10.000 pessoas, na primeira, a 120.000, de 150 países, na última
edição), os fóruns tiveram início em 2001. Os três primeiros foram em Porto
Alegre (Rio Grande do Sul), o quarto em Bombaim (Índia), o quinto em Porto
Alegre, o sexto em três cidades: Caracas (Venezuela), Karachi (Paquistão) e
Bamako(Mali), o sexto em Nairóbi (África), o sétimo foi descentralizado e o
nono em Belém do Pará. Entre outras, são discutidos, nas edições do FSM,
temas como sustentabilidade ambiental, aids, paz e conflito, juventude, situ-
ação das mulheres, migrações e perseguições, dívida externa, os sem-terras
e a privatização de bens comuns etc.

MIrcea Eliade (1907-1986)


Historiador e romancista romeno, considerado um dos mais importan-
tes historiadores e filósofos das religiões na contemporaneidade. Escreveu,
entre outros o livro O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, Londres:
Routledge & Kegan Paul, 1964,.um longo trabalho sobre o estudo do Xama-
nismo, um detalhado e valiosa fonte de informação sobre estes fenômenos,
publicado no Brasil, em 2002, pela Martins Fontes. Escreveu também O Mito
do Eterno Retorno, publicado em 1954, com o sub-título: “A filosofia da His-
tória”. Neste último livro, Eliade cria a distinção entre a humanidade religiosa
e não-religiosa, com base na percepção do tempo como heterogênio e ho-
mogêneo respectivamente.Defende que a percepção do tempo como homo-
gêneo, linear, e irepetível é uma forma moderna de não-religião da huma-
nidade. O homem arcaico, ou a humanidade religiosa (homo religiosus), em
comparação, percebe o tempo como heterogênio; isto é, divide-o em tempo
profano(linear), e tempo sagrado (ciclico e reatualizável). Por meio de mitos
e rituais que permitem o acesso a este tempo sagrado, a humanidade religio-
sa proteje-se contra o ‘terror da historia’ (uma condição de impotência diante
os dados historicos registrados no tempo, uma forma de existência aflitiva).
No processo de estabelecimento desta distinção, Eliade não esquece que a
humanidade não-religiosa é um fenômeno muito raro. Mitos e illud tempus
estão ainda em operação, embora dissimulados no mundo da moderna hu-
manidade, e Eliade claramente olha a tentativa de restringir o tempo real ao
tempo histórico linear como um caminho que leva a humanidade ao deses-
pero ou à fé cristã como única salvação. Pois o relativismo, existencialismo
e historicismo modernos não são capazes de criar mecanismos para fazer
com que a humanidade suporte os sofrimentos causados pela consciência da
“história”, consciencia dos “acontecimentos” sem um sentido transhistórico
escatológico, cíclico ou arquetípico.

ALBERT EINSTEIN
É autor, entre outras, das seguintes frases: “O tempo é relativo e não
pode ser medido exatamente do mesmo modo e por toda a parte.” “A menor
distância entre dois pontos não é uma linha reta.” “A religião do futuro será

24 ANTROPOLOGIA DA ARTE
cósmica e transcenderá um Deus pessoal, evitando os dogmas e a teologia.”
“A religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa
científica.” “A imaginação é mais importante que a ciência, porque a ciência
é limitada, ao passo que a imaginação abrange o mundo inteiro.” “Minha
religião consiste numa admiração humilde ao Espírito Superior e Iluminado
que se revela a si mesmo nos mínimos pormenores, que estamos aptos a
captar com nossas fracas e irrelevantes mentes. A profunda certeza de um
Poder Superior que se revela no Universo, difícil de ser compreendido, forma
a minha idéia de Deus.” “A mais bela experiência que podemos ter é a do
mistério. É a emoção fundamental existente na origem da verdadeira arte
e ciência. Aquele que não a conhece e não pode se maravilhar com ela está
praticamente morto e seus olhos estão ofuscados.” “O Universo é finito, ci-
líndrico e ilimitado.” “A massa de um corpo é uma medida do seu conteúdo
de energia.” “A leitura após certa idade distrai excessivamente o espírito
humano das suas reflexões criadoras. Todo o homem que lê demais e usa o
cérebro de menos adquire a preguiça de pensar.”

ANTROPOLOGIA DA ARTE 25
Unidade

2
Sobre a Origem do Homem

Objetivos:
• Questionar as teses que reivindicam a superioridade do homem ocidental moderno
sobre os demais, bem como as que destacam a linguagem abstrata e a lógica
racional-científica, como critérios dessa superioridade, em detrimento da linguagem
artística e do pensamento criativo.
Capítulo 1
A Tese Modernista

Até pouco mais de 60 anos, antropólogos e cientistas, de modo geral,


acreditavam que a condição humana havia sido inaugurada pela palavra
e mais precisamente pela palavra escrita em alfabeto digital. Daí, de certo
modo, a freqüência com que era atribuída à Grécia a origem de muitas
artes e ciências, como a fi losofi a, a matemática, a música e o teatro, por
exemplo. Isto porque, teria sido a Grécia o lócus precursor da racionali-
dade moderna. Daí também a conclusão pela superioridade do homem
urbano ocidental e europeu de modo particular, portador privilegiado do
Ernst Cassirer (1874-
pensamento lógico-científi co. 1945) foi um fi lósofo ju-
O livro do fi lósofo alemão Ernst Cassirer, Antropologia Filosófi ca, pu- daico-alemão. Ensinou
nas universidades de
blicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1944, dois anos antes de Hamburgo (Alemanha),
sua morte, é talvez uma das sínteses mais bem articuladas do pensamento Gotemburgo (Suécia) e
moderno sobre a origem e a natureza do homem. De certa maneira ele re- Yale (Estados Unidos).
Um dos mais importantes
presenta uma atualização e um desdobramento de outro livro de sua auto- da tradição neokantiana,
ria: Filosofi a das Formas Simbólicas, publicado em alemão, 25 anos antes. desenvolveu uma Filoso-
Em Antropologia Filosófi ca, Cassirer começa distinguindo o homem, fi a da Cultura como uma
teoria dos símbolos. Ex-
entre os animais e, especialmente, dos animais ditos superiores, pela ra- pandiu o campo da crítica
cionalidade. Cita Descartes: “penso logo existo”, mas acha insufi ciente, pois kantiana a todas as for-
para ele há muitas formas de pensar. E a racionalidade que caracteriza o mas da atividade huma-
na. As categorias a partir
homem é especial, um modo de raciocinar que se afi rma pelo uso do símbo- das quais Kant pensa o
lo. Defi ne assim o homem como um animal simbólico, sendo este atributo, o fato científi co são, para
traço fundador da civilização humana. Por isto segue o caminho da lingua- Cassirer, um aspecto par-
ticular de formas simbóli-
gem, mas logo diferencia a linguagem conceitual da linguagem emocional, cas que revelam também
a linguagem lógica da linguagem poética. Desqualifi ca a linguagem emocio- o fato mítico, estético e
nal por esta ser partilhada com os animais “superiores”, citando a propósi- social. Entre seus princi-
pais livros estão, Filosofi a
to o exemplo dos chimpanzés, para afi rmar a superioridade da linguagem das Formas Simbólicas,
proposicional, no caso exclusivo do homem. publicado em 1929, pela
primeira vez, e Filosofi a
Ainda no primeiro capítulo, intitulado: A Crise do Conhecimento do do Iluminismo, publicado
Homem Sobre Si Mesmo, Cassirer refere-se à linguagem animal como res- em 1932.
trita ao uso de sinais. Sendo parte do mundo físico do ser, apresenta-se, ela
também, como um ser físico e substancial, na qualidade de operadora do
fazer. Só o homem chega ao estágio da utilização de símbolos, criações men-
tais que possuem fundamentalmente o valor funcional de designadores.
Já no segundo capítulo, que tem por título, Uma Chave Para a Natu-
reza do Homem: O Símbolo, depois de se referir ao caso patológico de Hel-
len Keller, surda-muda que se tornou célebre, como protagonista de expe-
riências desenvolvidas nos Estados Unidos, no fi nal do século 19, Cassirer
considera a invenção da palavra, não apenas a descoberta de um conjunto
de símbolos ou de sinais mecânicos, mas também a de um instrumento
inteiramente novo do pensamento. Arrisca a afi rmação de que: “O caso de
Helen Keller, que atingiu um altíssimo grau de desenvolvimento mental e de
cultura intelectual, mostra-nos de maneira clara e irrefutável que, na cons-
trução de seu mundo humano, o ser humano não depende da qualidade de

ANTROPOLOGIA DA ARTE 29
seu material sensível.” (CASSIRER pp. 65 e 66) Considera, ele, o caso citado,
como evidência de uma relativa autonomia do cérebro humano em relação
ao restante do corpo.
Em seguida, argumenta com evidências das limitações do pensamen-
to mítico, tanto no homem primitivo quanto no contemporâneo, afi rmando
que nele, o símbolo ainda não se despregou de seu referente, ou seja: “ain-
da é considerado propriedade da coisa”. Exemplifi ca, dizendo que o nome
de um deus ainda é parte deste mesmo deus e não seu representante, daí
porque os ritos têm que ser executados sempre da mesma maneira. Já o
pensamento simbólico pressupõe uma operação relacional, ou seja, uma
capacidade de designar abstrações, no caso, pontos comuns entre seres
diferentes. Pressupõe, portanto, distinguir relações, ou melhor, o ato inte-
lectual de chegar a generalizações a partir do estabelecimento de relações
entre particularidades.
Cassirer, porém, considera que nem todo pensamento relacional pres-
supõe um pensamento simbólico, ou seja, a recíproca não é verdadeira. Para
ele, o pensamento relacional está presente até mesmo nos mais simples atos
de percepção. Entretanto, o pensamento relacional próprio do homem vai
mais longe, e nisto ele se diferencia dos outros animais, pois só ele é capaz
de isolar relações, para produzir abstrações.
Outro índice de diferenciação do homem com relação ao mundo ani-
mal, para Cassirer, foi a descoberta do espaço e do tempo abstratos, o que
inicialmente teria se dado na Grécia de maneira mais completa. Mesmo os
animais ditos superiores, segundo ele, só são capazes de conceber espaço e
tempo orgânicos, ou seja, ligados à realidade sensível. Já o espaço matemá-
tico, concebido pelo homem (e aqui ele pede a ajuda de Isaac Newton) é pu-
ramente abstrato. Neste sentido, precisaríamos abandonar nossas relações
com o sensível para atingirmos uma “verdade real”, científi ca ou fi losófi ca,
diferenciando-se assim do pensamento anímico, que não se separa do sen-
sível e, pelo contrário, trabalha com ele.
Só abandonando, então, as concepções, afetivas e concretas, de tempo
e espaço do homem primitivo, podemos chegar ao tempo e ao espaço esque-
mático, homogêneo, universal, puramente imaginário, do homem moderno.

1. Segundo as principais correntes da ciência moderna, que atributo dife-


rencia o Homem dos demais seres da natureza?
2. Segundo Cassirer, o homem primitivo era capaz de abstração?
3. Em que sentido a ciência moderna fala do Homem como um animal
simbólico?

30 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 2
As Dificuldades em Provar a Superioridade do
Homem Moderno

Em sua argumentação, Cassirer, no entanto, enfrenta muitas difi cul-


dades. Derrapa inúmeras vezes em contradições e sutilezas, que parecem
indicar mais que um achado, um esforço em provar uma hipótese previa-
mente estabelecida, a da superioridade do homem moderno, no caso, ociden-
tal e urbano. Neste sentido, a primeira ordem de questões se estabelece na
difi culdade em lidar com experiências demonstrativas da inteligência ani-
mal, particularmente dos animais ditos por ele “superiores” (primatas), já
que dos animais menores (e por isso inferiores?), Cassirer pouco se ocupa.
Começa por reconhecer que os animais ditos superiores usam vários
tipos de sinais, mas que estes seriam apenas operadores e que carecem da
qualidade de designadores.
Destaque: Então, seria o caso de se perguntar: mas a ciência tam-
bém não é por excelência operadora? A matemática e a física mecânica,
principalmente, saberes emblemáticos da modernidade, não estão voltadas
prioritariamente para resolver problemas, muito mais que para designar ou
explicar o mundo? Seus êxitos maiores não se deram na esfera da manipu-
lação do mundo?
Cassirer refere-se, inclusive, a várias experiências científi cas compro-
batórias de que os animais “superiores” (no caso os grandes símios) são
capazes de ter visões mentais e que respondem não somente a estímulos
imediatos. Admite que “nem todas as ações animais são governadas pela
presença de um estímulo imediato. O animal é capaz de toda a sorte de
rodeios em suas reações. Pode aprender não só a usar instrumentos, mas
também a inventá-los para seus propósitos. Por isto, alguns psicobiologis-
tas não duvidam em falar de uma imaginação criadora ou construtiva dos
animais.” (CASSIRER p. 61) Ainda assim, conclui que estes atos de inteli-
gência e imaginação animal se resumem a iniciativas de adaptação ao meio
ambiente e têm caráter exclusivamente prático. Deste modo, não alcançam
o simbolismo, atributo diferencial do homem. David Hume (1711-1776)
fi lósofo e historiador es-
Para Cassirer, os animais são até mesmo capazes de, no processo de cocês. Juntamente com
percepção de seu entorno relacionar elementos isolados, partes desse entor- Adam Smith e Thomas
no. Portanto, são capazes de uma consciência relacional, até porque o mais Reid, entre outros, foi
uma das fi guras mais im-
simples ato de percepção já implica um processo de relacionamento entre o portantes do iluminismo
que é percebido. Experimentos científi cos, desenvolvidos por uma certa Sra. escocês. É visto por vezes
Kohts, obrigaram Cassirer a admitir que os animais ditos superiores sejam como o terceiro e o mais
radical dos chamados em-
capazes de isolar fatores perceptivos, isto é, de isolar uma qualidade parti- piristas britânicos, depois
cular de uma situação experimental e de reagir de acordo com ela. Assim é de John Locke e George
que esses animais se mostraram capazes de separar a cor, do tamanho e da Berkeley. A infl uente fi lo-
sofi a de Hume é famosa
forma, ou a forma, do tamanho e da cor, de determinados objetos. Diz ele, pelo seu profundo cepti-
literalmente: “Em algumas experiências, levadas a efeito pela Sra. Kohts, cismo, apesar de muitos
um chimpanzé foi capaz de selecionar, de uma coleção de objetos extrema- especialistas preferirem
destacar a sua componen-
mente variados quanto às suas qualidades visuais, os que tinham alguma te naturalista.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 31
qualidade em comum; conseguia, por exemplo, reunir todos os objetos de
determinada cor e colocá-los numa caixa.” (CASSIRER p. 71)
O fi lósofo alemão, entretanto, considerou o processo utilizado no ex-
perimento, raro, imperfeito e rudimentar, embora reconhecesse que o feito
daquele chimpanzé evidenciava o que Hume considerava “distinção da ra-
zão”. Resolve o problema dizendo que, mesmo aqueles animais, por ele con-
siderados superiores, não podem se desenvolver porque não possuem um
sistema de símbolos, já que só o homem é capaz de isolar relações e produzir
abstrações, para constituir um sistema de símbolos. Vai adiante, liga a lin-
guagem à capacidade de refl exão, dizendo que esta consiste “em discernir,
na correnteza dos fenômenos sensoriais, que fl utuam como massa indiscri-
minada, certos elementos fi xos a fi m de isolá-los e concentrar a atenção so-
bre eles”. (CASSIRER p. 71) Ora, mas esta mesma capacidade fi cou provada
no experimento da Sra. Kots, por ele mesmo citado, com os chimpanzés!
A Teoria Restrita (ou Es- No capítulo seguinte, em que Cassirer afi rma a superioridade con-
pecial) da Relatividade ceitual do tempo e do espaço abstratos, retilíneos e progressivos, próprios
(abreviadamente, TRR), da matemática e da física modernas, o fi lósofo alemão é forçado a reco-
publicada pela primeira
vez por Albert Einstein em nhecer que não apenas as tribos primitivas são dotadas de uma excep-
1905, descreve a física do cional percepção de espaço, como até mesmo os animais (diferentemente
movimento na ausência das crianças, que precisam aprender) possuem noções inatas de tempo e
de campos gravitacionais.
Antes, a maior parte dos
espaço. Mostra-se intrigado com a orientação espacial das abelhas, formi-
físicos pensava que a me- gas e aves de arribação, sem encontrar uma explicação plausível para seus
cânica clássica de Isaac comportamentos. Recusa-se, em todo caso, a aceitar que aqueles animais
Newton, baseada na cha-
mada relatividade de Ga-
se guiem por processos ideacionais, atribuindo tal capacidade “a impulsos
lileu (origem das equações corpóreos de um gênero especial”. (CASSIRER p. 76) Concluindo que eles
matemáticas conhecidas “não possuem imagem mental nem idéia de espaço”, (IDEM p. 76) nem têm
como transformações
uma prospecção das relações espaciais, arranja de todo modo um jeito de
de Galileu) descrevia os
conceitos de velocidade desqualifi car a percepção espacial excepcional daqueles animais, defi nindo
e força para todos os ob- de saída e sem discussão, a percepção racional mecânica como a mais alta
servadores (ou sistemas na escala das percepções espaciais.
de referência). No entan-
to, Hendrik Lorentz e ou- Já que, em relação à percepção orgânica do espaço, como ele entende,
tros, comprovaram que as o homem mostra-se inferior aos animais, Cassirer afi rma sua posição hie-
equações de Maxwell, que
governam o electromagne- rárquica mais baixa. Parece também não levar em consideração as desco-
tismo, não se comportam bertas de Einstein sobre a relatividade do tempo e do espaço, percepção que
de acordo com a transfor- de certa maneira já era observada no pensamento dito selvagem. Ou seja,
mação de Galileu quando
o sistema de referência
o homem primitivo sabia que a teoria na prática é outra. Isto é, que dois
muda (por exemplo, quan- períodos de tempo ou duas medidas de espaço, matematicamente iguais, no
do se considera o mesmo mundo sensível são percebidos diferentemente. Como diz o povo: “há tardes
problema físico a partir
do ponto de vista de dois
(ou caminhos) que parecem nunca acabar”.
observadores com movi- Cassirer admite, inclusive, que “as tribos primitivas são habitualmen-
mento uniforme um em
te dotadas de uma percepção extraordinariamente aguda de espaço. Um
relação ao outro). A noção
de variação das leis da nativo destas tribos tem capacidade de notar todos os pormenores mais
física no que diz respeito sutis do seu meio, é extremamente sensível a toda e qualquer mudança na
aos observadores é a que posição dos objetos comuns ao seu redor. Até em circunstâncias difi cílimas
dá nome à teoria, à qual
se apõe o qualifi cativo de é capaz de encontrar seu caminho”. (CASSIRER p. 80)
especial ou restrita por Ainda assim, Cassirer encontra argumentos para desqualifi car esta
cingir-se apenas aos sis-
temas em que não se têm capacidade perceptiva. Diz que a familiaridade do selvagem com o curso de
em conta os campos gra- um rio, por exemplo, está longe de alcançar um conhecimento abstrato e
vitacionais. Uma generali- teórico porque, enquanto o conhecimento do primitivo é “apenas apresen-
zação desta teoria é a Teo-
ria Geral da Relatividade,
tação”, o conhecimento do homem moderno “inclui e pressupõe representa-
publicada igualmente por ção”. (CASSIRER p. 81)
Einstein em 1915, in-
cluindo os ditos campos.

32 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Destaque: Aqui estabelecemos um parêntesis para fazer um paralelo
com a arte que, segundo o pensamento moderno, se diferenciaria do rito.
Isto, porque, enquanto o rito é presentifi cação, a arte seria representação.
Daí decorreria a superioridade da arte moderna sobre a arte primitiva, ain-
da presa ao animismo (e como tal ao rito). O mesmo aconteceria com os
folguedos e outras criações da chamada arte tradicional popular (com os
Aqui estabelecemos um
ex-votos, por exemplo) que, como veremos em capítulos seguintes, é uma arte de parêntesis para fazer um
presentificação, a vivência de outra dimensão da realidade (no caso a dimensão paralelo com a arte que, se-
gundo o pensamento mo-
artística) e não uma suspensão ou representação da vida. derno, se diferenciaria do
rito. Isto, porque, enquanto
A segunda ordem de questões, que evidenciam a difi culdade de Cas- o rito é presentifi cação, a
sirer em afi rmar a superioridade do homem moderno, decorre de sua visão arte seria representação.
limitada do mito e, junto com ele, do pensamento mágico e anímico. Sobre Daí decorreria a superiori-
o tema, ele parece concordar com Edward L. Thorndike que, citado por ele, dade da arte moderna so-
bre a arte primitiva, ainda
usa o termo “mito”, como sinônimo de ilusão ou inverdade. (CASSIRER p. 61) presa ao animismo (e como
No capítulo em que trata do tempo e espaço, o autor de Antropologia tal ao rito). O mesmo acon-
teceria com os folguedos e
Filosófi ca afi rma que a capacidade humana de generalizar parece ter origem outras criações da chama-
na astronomia babilônica. (Ver CASSIRER p. 85) De acordo com ele e segun- da arte tradicional popu-
do muitos outros estudiosos, na Babilônia, provavelmente, teriam surgido lar (com os ex-votos, por
exemplo) que, como vere-
todas as concepções mitológicas, religiosas e científi cas da humanidade. Fo- mos em capítulos seguin-
ram os babilônicos, por exemplo, que descobriram a álgebra simbólica, mes- tes, é uma arte de presenti-
mo que, de acordo com Cassirer, de maneira muito simples e rudimentar. fi cação, a vivência de outra
dimensão da realidade (no
O fi lósofo alemão admite que na primitiva astronomia babilônica caso a dimensão artística)
predomine ainda uma interpretação mítica do universo, embora já ultra- e não uma suspensão ou
representação da vida.
passasse à esfera do espaço concreto e corpóreo primitivo. Tal astronomia
“transporta o espaço, por assim dizer, da terra para o céu”, diz ele. Neste
sentido, a astronomia teria surgido da astrologia, como algo a ela superior,
num processo evolutivo. Isto porque, enquanto a astrologia ligava os acon-
tecimentos humanos às ocorrências celestes, a astronomia fez o espaço ce-
leste se emancipar do humano, transformando-se em espaço teórico.
O descolamento da astronomia em relação à astrologia, ocorrido no
Renascimento, teria se marcado no momento da ruptura entre o espaço geo-
Robert M. Yerkes (1876-
métrico e o espaço mítico-mágico, o primeiro ocupando o lugar do segundo. 1956) estudou psicologia
Cassirer precisa melhor seu pensamento ao afi rmar, referindo-se a esta comparada em Harvard,
precedência do mito, que “a forma falsa e errônea de pensamento simbólico tendo desenvolvido testes
de inteligência e aptidão
foi a primeira a preparar o terreno para um novo e verdadeiro simbolismo, com soldados america-
o da ciência moderna”. (CASSIRER p. 85) nos durante a Primeira
Guerra Mundial. Depois,
Aqui cabe outro reparo às posições de Cassirer. Como veremos em
transferiu-se para a Uni-
capítulos posteriores, na visão mítica do universo, tanto entre povos primi- versidade de Yale, onde
tivos, quanto em comunidades contemporâneas, mesmo se mantendo preso dedicou-se ao estudo do
ao concreto e ao sensível, o espírito humano, assim como de outros seres, é comportamento animal.
Ajudou a criar a Anthro-
passível de transcendência, indo, para usar a imagem de Cassirer, da terra poid Experiment Station
ao céu, do concreto ao abstrato, sendo o mundo sensível, uma manifestação of Yale University, que
do mundo espiritual. Além do mais, ao contrário do que julgavam os pen- depois tomaria, em sua
homenagem, o nome de
sadores modernos, o pensamento mítico tem se mostrado não uma forma Yerkes Laboratories of
rudimentar e anterior maneira do pensamento científi co, mas outra forma Primate Biology. Tran-
de pensar o mundo, outro procedimento racional, tão válido (e para a arte ferido para Atlanta, em
1965, sob a denominação
muito mais) quanto a lógica da ciência moderna. Uma argumentação mais de Yerkes Primate Center,
consistente neste sentido, porém, deixaremos para capítulos seguintes. transformou-se no prin-
cipal centro de pesquisas
No capítulo dedicado por ele à memória, Cassirer continua sua busca sobre primatas no mundo.
em provar a superioridade do homem moderno. Começa por reconhecer que Seus testes de inteligência
os animais têm memória, são capazes de lembrar e até sonham. Cita Robert e aptidão com soldados,
M. Yerkes, para quem os animais são capazes de acumular experiências, reforçaram tendências ra-
cista da época.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 33
antecipar, esperar, imaginar e, baseados nessa consciência, preparar-se
para acontecimentos futuros. Cassirer admite ainda, que os animais ditos
superiores podem “resolver problemas e, de modo geral, adaptar-se a situa-
ções ambientais com a ajuda de processos simbólicos análogos aos nossos
símbolos verbais, e na dependência de associações que funcionam como si-
nais”. (CASSIRER p. 89) Porém, apesar das provas apresentadas por Yerkes,
Cassirer insiste na sua tese, dizendo: “O que importa neste caso não é tanto
o fato da existência de processos ideacionais em homens e animais, mas a
forma destes processos.” (CASSIRER p. 89)
Nosso filósofo da antropologia pede a ajuda de diferentes autores, en-
tre eles Bergson e Goethe, para concluir que os animais não têm memória,
porque, segundo ele, a verdadeira memória “é um fenômeno muito mais
profundo e complexo (...) significa interpenetração de todos os elementos de
nossa vida passada”. (CASSIRER p. 90) Volta ao argumento do símbolo, di-
zendo que só há recordação verdadeira, se houver imaginação, ficção, o que
para ele (citando Goethe) está ligado à poética e, só então, ao simbolismo.
Assim, Cassirer chega à poética, mas ainda reduzida ao simbolismo. Em
sua poética não estão incluídas a criação intuitiva, a revelação do invisível,
a expressão dos sonhos, enfim.
Prosseguindo, Cassirer afirma que as ações instintivas dos animais,
mesmo quando dirigidas para um futuro, o são para um futuro tão remoto
que suas conseqüências não podem ser notadas pelo animal que as execu-
ta. Admite que os animais ditos superiores sejam capazes de antecipar fatos
futuros, mas deixa de observar, por exemplo, o trabalho minucioso e cole-
tivo de inúmeros pequenos animais, capazes de atividades antecipatórias,
por exemplo, de preparação para mudanças climáticas, como os insetos do
semi-árido prevendo a aproximação das chuvas.
Mais adiante, Cassirer procura corrigir Kant, para quem intuições e
conceitos são condições fundamentais do conhecimento, decorrendo daí a
necessidade do ser humano de trabalhar a partir de imagens, para chegar
a conceitos. Afirma não se tratar propriamente de imagens simplesmente,
mas de símbolos, de imagens simbólicas.
Embora reconheça que as grandes descobertas científicas foram ini-
cialmente hipotéticas (e eu diria, intuitivas), Cassirer apega-se à matemáti-
ca como o “orgulho da razão humana”. (CASSIRER p. 102) Argumenta que
a matemática foi incompreendida, tendo muitos dos seus conceitos se mos-
trados obscuros e equivocados, até que tomou um rumo claro e distinto,
quando se entendeu ser ela não uma teoria das coisas, mas de símbolos. Só
a partir daquele momento, os conceitos matemáticos fundamentais pude-
ram migrar para outros campos do conhecimento, como os das chamadas
ciências humanas e da ética, em particular. Só então, segundo Cassirer,
teríamos chegado a uma compreensão da verdadeira natureza humana que,
por meio do pensamento simbólico, “supera a inércia natural do homem,
conferindo-lhe nova capacidade, a de arquitetar constantemente seu uni-
verso humano”. (CASSIRER p. 105)

34 ANTROPOLOGIA DA ARTE
1. Para você, onde a argumentação de Cassirer sobre a superioridade do
homem moderno não foi convincente?
2. Em que sentido o homem moderno pode ser considerado diferente ou
superior ao homem tradicional, segundo Cassirer?
3. Que consequências teve para o desenvolvimento da humanidade o antro-
pocentrismo do pensamento moderno?

ANTROPOLOGIA DA ARTE 35
Capítulo 3
Novas Descobertas da Ciência

O livro de Walter Alves Neves e Luís Beethoven Pilá, “O Povo de Luzia”,


publicado no ano de 2008, em São Paulo (Neves, Walter Alves. O Povo de
Luzia: em busca dos primeiros americanos/ Walter Alves Neves, Luís Be-
ethoven Pilo. – São Paulo: Globo, 2008.), que trata da busca dos primeiros
homens e mulheres americanos, traz informações sobre descobertas recen-
tes de biólogos e paleontólogos que confi rmam a máxima de que as verda-
des científi cas são sempre provisórias. Confi rma e desenvolve, não apenas
afi rmações adiantadas na introdução do presente trabalho, como acrescen-
ta dados sobre novos achados que, de certa maneira, retifi cam pontos até
então tidos como pacífi cos, entre os estudiosos das origens do Homem. Tais
descobertas datam das duas últimas décadas ou, pelo menos, só muito re-
centemente tiveram seus dados e conseqüências divulgados.
Segundo aqueles autores, fi ca evidenciado que se existe sentido em
se falar em evolução, este conceito de modo nenhum, pelo menos no campo
da biologia (e eu diria, em outros campos também), está ligado à idéia de
progresso. Dizem eles: “Evoluir na biologia não é melhorar. É apenas mu-
dar, mantendo-se adaptado. (...) Não existem espécies piores ou melhores.
Existem espécies mais ou menos adaptadas a uma situação ambiental es-
pecífi ca. Mudadas as demandas ambientais, o quadro pode se alterar com-
pletamente.” (NEVES 2008 p. 26)
Nem mesmo, evolução está ligada a complexifi cação e aperfeiçoa-
mento, idéia comprovada por eles, entre outros argumentos, citando o fato
de que os microorganismos (seres extremamente simples) representam um
terço da biomassa do nosso planeta. Por outro lado, longe de aproximar-se
da perfeição, a seleção natural, ao trabalhar no sentido da adaptação ao
meio ambiente, introduz “remendos possíveis” nos seres, ou seja, resolve
um problema e cria novos, porque “mexendo-se positivamente em uma ca-
racterística, várias outras podem ser desastrosamente afetadas.” (NEVES
p. 28) Como exemplo, posso citar as difi culdades dos bípedes com suas
colunas vertebrais, constituídas ao modelo dos quadrúpedes. Adaptando-
se para alcançar com as mãos planos mais altos, mas mantendo basica-
mente a mesma estrutura de vértebras, os bípedes tiveram suas colunas
vertebrais fragilizadas.
Estas descobertas recentes também implicaram modifi cações nos cál-
culos sobre a origem e a presença dos hominíneos no mundo. Segundo se
sabe atualmente, nas regiões tropicais da Terra, data de aproximadamente
60 milhões de anos, a existência dos primatas. Já os antropóides, tronco ao
qual estamos ligados, que antes supúnhamos terem surgido em torno de 35
milhões de anos, sabe-se terem aparecido entre 50 e 55 milhões de anos.
Entretanto, os hominíneos, grupo que engloba os homens contemporâneos,
considerados primatas completos, portanto bípedes, teriam surgido há cerca
de apenas sete milhões de anos. Esta é a datação das camadas geológicas do
Chade, onde foi encontrado o fóssil do Sahelanthropus tchadensis, considera-
do o bípede mais antigo conhecido pela ciência. (Ver NEVES 2008 p. 36)

36 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Vale acrescentar, que estudos do DNA mostram diferenças inexpressi-
vas, em termos de genes, entre os grandes símios e os hominíneos, mesmo
quando estes são representados pelo homem contemporâneo. Calcula-se
que temos uma identidade genética entre 95% a 98% com os chimpanzés,
estando muito mais próximos deles, do que eles, por exemplo, em relação a
outros grandes símios, como o gorila e o orangotango.

Gráfico retirado do livro História da Africa Negra - Vol. I Zerbo, Joseph.


Mira-sintra, publicações Europa-Américana, 2a ED. Em português, 1972, p. 52.

Outro dado sobre os primeiros hominíneos, só percebido muito recen-


temente, é que eles, apesar de bípedes, ainda conservam no esqueleto várias
características arborícolas: eram baixos (entre 1 metro e 1,40 metros), ti-
nham os braços relativamente mais alongados e os dedos levemente curvos.
Aproximavam-se dos grandes símios atuais, quanto à capacidade craniana
(entre 400 e 500 m³). Assim como os chimpanzés eram basicamente ve-
getarianos, alimentando-se secundariamente de pequenos animais, como
insetos, lagartos e roedores.
Com a savanização da África, por volta de 2,5 milhões de anos atrás,
duas diferentes linhagens de hominíneos se destacaram: os megadônticos
(hominíneos vegetarianos) e os hominíneos carnívoros, que apenas suple-
mentavam sua alimentação com recursos vegetais. Os megadônticos, en-
tretanto, que conviveram por muito tempo na África, em sítios ecológicos
distintos, extinguiram-se em torno de um milhão de anos depois.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 37
Tendo por base estudos sobre os macacos, espécie na qual há uma
correlação entre o tamanho do cérebro e tamanho do grupo, se supõe “que o
crescimento inicial do nosso cérebro por volta de dois milhões de anos tenha
ocorrido como resposta a demandas de interações sociais cada vez mais
complexas”. (NEVES p. 42) Há estudiosos, entretanto, que vêm no aumento
do cérebro do Homo erectus não um maior poder cognitivo, mas apenas uma
ocorrência correspondente ao crescimento do corpo como um todo.
Tendo surgido na África por volta de dois milhões de anos, os homi-
níneos começaram imediatamente a se expandir para outros continentes,
primeiro para o Oriente Médio e para a Europa e, em seguida, para outras
regiões da Ásia, só por fim tendo chegado até a Austrália e à América. Po-
rém, só em torno de 800.000 anos, também na África, surgiram os primei-
ros grandes cérebros, com cerca de 1.2000 cm³. Outro achado importante
foi a descoberta de grandes lanças de madeira, encontradas a pouco mais
de 10 anos na Alemanha, datadas de mais de 400 mil anos atrás.
Os heidelbergensis, espécie da qual descendem tanto os neandertais
quanto os sapiens, que viviam no Norte da Europa Ocidental, há 300 mil
anos, já apresentavam uma morfologia craniana muito próxima à nossa,
com a face afastando-se do neurocrânio e projetando-se para frente. Um
dos seus descendentes diretos, o Homo de neandertal, surgido por volta de
200 a 250 mil anos, como o Homo sapiens, possuía uma capacidade crania-
na ainda maior que a nossa, medindo cerca de 1.500 cm³.
Os neandertais tinham ossos mais grossos e fortes que nós, cer-
tamente como adaptação a trabalhos pesados e exaustivos, nos quais,
inclusive, usavam a boca. Conviveram com o Homo sapiens por muitos mi-
lhares de anos, em muitas regiões, tendo se extinguido, provavelmente, há
cerca de apenas 29 mil anos, com a expansão de nossa espécie no Oriente
Médio e na Europa, por volta de 40 mil anos atrás. Fica evidente, portanto,
que nessas regiões, sapiens e neandertais coexistiram, pelo menos, por
mais de 10 mil anos.
A descoberta mais surpreendente, entretanto, talvez seja a de que o
homem contemporâneo, que se pensava datar de somente 40 a 45 mil anos,
teve sua conformação física definida já por volta de 200 mil anos. Isto ficou
evidente após a descoberta, entre as décadas de 1960 e 1970, de fósseis na
Etiópia, cujos estudos só tiveram seus resultados divulgados de forma mais
sistemática, só muito recentemente.
O comportamento desses sapiens, porém, correspondia ao do Homo
neandertalis, com a diferença de que enquanto a forma atarracada destes,
favorecendo a manutenção do calor corporal, o adaptava aos climas frios,
a dos Homo sapiens, com seu perfil longilíneo, facilitando a perda do calor,
contribuía para sua adaptação às zonas mais tropicais da África. Não por
acaso, os tipos longos e esbeltos (tome-se como modelo os atletas quenianos e
tanzânianos, que vemos nas olimpíadas), concentram-se nos povos tropicais.
Entretanto, se anatomicamente, o homem contemporâneo já tinha de-
finido sua configuração há mais de 200 mil anos, do ponto de vista compor-
tamental e tecnológico, ele só veio se diferenciar dos neandertais há pouco
mais de 40 mil anos. Entre as características comuns a sapiens e neander-
tais, considerados os primeiros 150 mil anos de existência de ambos, estão
a coleta e a caça pouco seletiva, a utilização de um pequeno repertório de
pedras lascadas como ferramentas e a ausência de rituais mortuários.
A mudança tecnológica e comportamental do Homo sapiens verifica-
da a partir do Paleolítico Superior (há cerca de 45 mil anos), entre outras
evidências, incluiu a utilização de ossos, dentes e chifres na fabricação de

38 ANTROPOLOGIA DA ARTE
objetos utilitários e rituais, sepultamentos acompanhados de uma comple-
xa ritualização, ou seja, evidências de um rápido desenvolvimento criativo e
expressivo, além de noções de transcendência (no caso dos sepultamentos).
Aqui cabe um parêntesis, para uma crítica aos autores de “O Povo de
Luzia”. Walter Neves e Luís Piló ligam essa mudança de comportamento hu-
mana ao que chamam capacidade de abstração simbólica, como Cassirer.
(NEVES p. 54) Decerto, como eles afi rmam, desenvolveu-se uma capacidade
de representação, porém, muito menos ligada ao símbolo, que ao ícone. Até
porque, de 10 a 15 mil anos depois, aparecem as extraordinárias pinturas
rupestres, executadas no interior de imensas cavernas, que tanto estamos
acostumados a admirar. Charles Sanders Peirce
(1839-1914) fi lósofo, fí-
Ora, segundo a semiótica de Charles Pierce, os signos, de acordo com sico, astrônomo e mate-
o modo como representam o objeto ou referente, podem ser de três ordens: mático americano. Foi o
o índice, o ícone e o símbolo. (Ver ECO 1973, p. 52) Enquanto o índice re- fundador do pragmatismo
e da semiótica.. No campo
presenta seu objeto pelo contado, ou seja, é afetado por ele (a fumaça, por das ciências humanas es-
exemplo); o ícone representa seu objeto por semelhança (uma fotografi a, por tudou linguística, fi lologia
exemplo), o símbolo o faz por pura convenção (os algarismos arábicos, por e história, contribuindo,
ainda, na área da psico-
exemplo). Ao detectarem cheiros característicos, por exemplo, assim como logia experimental. Sua
outros indícios para se orientarem, os animais, certamente, reconhecem (e semiótica, ou teoria geral
mesmo usam, por ex., para marcar terreno) este tipo de signo, ou seja, o ín- dos signos, pretende ser
uma fi losofi a científi ca da
dice. Ao emitir sinais para seu formigueiro ou colméia, por exemplo, formi- linguagem.
gas e abelhas produzem símbolos. O mesmo acontece com outros animais,
embora se diga que esta emissão “não é deliberada, mas inata”, o que só é
verdade sob certo ponto de vista, já que acontece apenas sob determinadas
condições, não sendo, a emissão desses signos, nunca absolutamente me-
cânica ou previsível.
O caso da produção de ícones, por parte de outros animais (que não os
humanos), é mais controvertido, registrando-se somente o caso da mimesis,
em que insetos e outros pequenos animais, assemelhando-se a outros seres
(geralmente vegetais ou minerais) do meio em que vivem, se disfarçam para
confundir seus caçadores.
Parece-me, então, que o desenvolvimento da representação através de
ícones foi o motor da grande virada no comportamento humano do Pale-
olítico Superior. Isto porque, os sistemas simbólicos desenvolvidos poste-
riormente pelo Homo sapiens o foram feitos a partir e como desdobramento
das representações icônicas, tanto no campo da linguagem oral e escrita,
quanto nos demais procedimentos rituais.
Sabendo-se que o ícone é o signo por excelência da arte, tanto que
nela o símbolo aparece como um auxiliar expressivo (na literatura artística,
por exemplo, onde mais que a palavra é fundamental a imagética por ela
construída), se pode afi rmar que esta virada (do Paleolítico Superior) antes
de ser uma virada em direção à racionalidade, foi uma mudança em direção
à poesia. Uso poesia, aqui, em seu sentido amplo, como um fenômeno de
encantamento produzido pela arte, (o que veremos adiante) seja literária,
visual, performática ou musical.
Mais surpreendentes foram os resultados de escavações recentes, que
ainda estão acontecendo em Blombos e Katanda, África do Sul. Nelas fo-
ram encontrados diversos objetos reveladores da vida humana há 80 mil
anos atrás. Entre esses objetos, incluem-se um pequeno bastão de hematita
(pigmento mineral), fi namente decorado, além de um colar de conchas de
moluscos, o que indica uma prática artística bem anterior aos presumíveis
40 mil anos da alegada virada comportamental do Paleolítico Superior.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 39
As razões possíveis dessa mutação comportamental (criativa, como
denominam os autores de O Povo de Luzia) ainda são desconhecidas. Se-
gundo alguns paleontólogos “é possível que o último grande passo na
evolução hominínea tenha se restringido apenas a modificações neuro-
lógicas internas, impossíveis de ser detectadas e interpretadas com base
nos ossos.” (NEVES p. 56)
Descobertas também surpreendentes foram feitas acerca da relação
do Homo sapiens, com o Homo neandertalis e outros hominíneos. Sabe-se
que a primeira incursão dos sapiens para fora da África foi em direção ao
Oriente Médio, onde conviveram com os neandertais sem entrecruzamentos
mútuos aparentes. Quando os sapiens chegaram àquela região da Ásia, há
38 mil anos, ela estava ocupada densamente pelos neandertais que desde
muito antes e por cerca de 60 mil anos reagiram à sua invasão. Por certo,
esta longa convivência de homínineos com características físicas e com-
portamentais semelhantes (inclusive em matéria de tecnologia de guerra)
resultou não apenas em destruição mútua, como em alguma colaboração.
Provavelmente, este quadro mudou com a chamada Revolução Criati-
va do Paleolítico Superior (ver NEVES p. 58), dotando os sapiens de armas
mais eficientes, capazes de fazer frente com vantagens em relação aos ne-
andertais. Tanto é que aqueles foram capazes de atravessar a Europa em
apenas seis mil anos e ocupar toda a Península Ibérica já por volta de 32
mil anos, enquanto os neandertais foram reduzindo-se rapidamente, até se-
rem dados como extintos há cerca de 29 mil anos. Os autores de O Povo de
Luzia levantam, inclusive, a possibilidade do homem moderno (os sapiens)
terem substituído outras espécies de hominíneos, além dos neandertais,
que encontraram pelo caminho.
O fato de a África apresentar a maior taxa de diversidade genética
entre os humanos atuais corrobora não apenas para afirmar a origem do
homem moderno naquele continente, como o fato de que ele tenha vivido ali
por mais tempo. Porém, o resultado de algumas pesquisas recentes traba-
lha em sentido contrário à crença anterior de que a origem do Homo sapiens
corresponderia a um evento de especiação, ou seja, que ele pertenceria a
uma espécie diferente, incapaz de entrecruzar com outros hominíneos.
Cálculos matemáticos mais precisos aplicados ao estudo da diversida-
de do DNA humano, feitos nos últimos três anos, desautorizam a hipótese,
até agora aceita, de que o conjunto dos homens contemporâneos descenda
de um ancestral comum, surgido na África há 150 ou 200 mil anos. Embora
a maioria da população humana tenha origem, provavelmente, do mesmo
ancestral africano, o certo é que algumas de suas linhagens têm ascendên-
cia muito mais antiga em linhagens não representadas na África. Esta des-
coberta legitima a hipótese de que tenhamos trocado material gênico com
outros hominíneos, fora do território africano.
Há pouco mais de dois anos, na Romênia, foi descoberto um crânio de
cerca de 36 mil anos, com características típicas do homem moderno, mas
com alguns traços provavelmente de neandertais, o que reforça a hipótese
levantada no parágrafo anterior. Ou seja, há evidências, cada vez mais nu-
merosas, de que não somos uma espécie nova e superior, mas tão somente
uma raça de heidelbergensis (Homo eretus) ou talvez uma subespécie de
macacos, que tenha aprendido a sonhar acordado.
O fato é que muitas hipóteses têm sido levantadas para esta súbi-
ta mudança comportamental do Homo sapiens. Há quem a atribua a mu-
danças de hábitos alimentares ao lado da domesticação de animais para o
trabalho, como o professor norte-americano Jared Diamond, que dedicou

40 ANTROPOLOGIA DA ARTE
parte de sua vida a explicar a origem das desigualdades no desenvolvimento
humano, ligada a esses fatores em diferentes continentes. (Ver A Evolução
da Humanidade – Armas, Germes e Aço, DVD produzido pela National Ge-
ographic Society, episódio: Saindo do Jardim do Éden.)
Segundo aquele antropólogo, o pouco desenvolvimento tecnológico dos
papuas da Nova Guiné deu-se por motivo de um isolamento geográfi co e con-
fi nação em uma grande ilha onde não existiam animais passíveis de domes-
ticação, com possibilidades de serem utilizados como força de trabalho pelo
Homem, assim como onde não existiam vegetais com capacidade nutricional
considerável, como o trigo e o arroz, por exemplo. O único animal apropriado
para a criação era o porco, que não se presta como auxiliar em trabalhos pe-
sados (diferentemente do elefante, do camelo, do cavalo, do jumento, da lha-
ma etc.), assim como os papuas não conheciam o trigo, o arroz etc., cuja car-
ga de nutrientes compensa um trabalho duro e prolongado nas plantações.
Só a ausência desses fatores, fazendo com que os habitantes da Nova
Guiné consumissem a maior parte de seu tempo na obtenção de alimentos
para a subsistência básica, já implica um atrofi amento de suas possibilida-
des criativas, segundo o professor Jared Diamond. De outra parte, alguns
estudiosos atribuem esta mudança comportamental do Homo sapiens à
criação de circunstâncias de tempo e segurança, que o possibilitou dormir
mais profundamente (e consequentemente, sonhar com mais desenvoltura).
Outros, já atribuem esta mudança de comportamento humano à conjuga-
ção de uma série de circunstâncias fortuitas, o que me leva a pensar na
possibilidade de também os chimpanzés, por exemplo, ou outros símios
superiores, conhecerem mudanças comportamentais no futuro.
De resto, muitas são as hipóteses ou, empregando outro termo, as
intuições acerca do que determinou esta virada comportamental do Homo
sapiens. Para fundamentar cada uma dessas hipóteses foram reunidas
uma série de indícios e até provas racionais, mesmo porque para toda boa
intuição, como para todo bom sonho, sempre se pode criar uma justifi cati-
va, construir uma argumentação e fazê-la de acordo com a ciência, embora
para tal sejamos, muitas vezes, obrigados a rever as regras científi cas. Se
no atual estágio de conhecimento do Homem sobre sua origem, não se pode
concluir ser sua capacidade poética o atributo de diferenciação entre ele e
os outros animais, por certo não é absurdo levantar a hipótese de o Homem
ter em seu dom de perceber e criar poesia, sua qualidade, talvez, mais rara.
Mesmo que esse privilégio não o autorize a reivindicar supremacia sobre os
demais seres da natureza.

A segunda unidade tem por tema a origem do homem. Toma como


principais referências dois livros: Antropologia Filosófi ca, de Ernst Cassirer,
e O Povo de Luzia, de Walter Neves e Luís Piló. Na primeira parte, busca
caracterizar o pensamento moderno sobre a origem e a natureza do ser
humano, a partir do livro de Cassirer. Mostra como seu raciocínio parte da
premissa de superioridade do homem moderno ocidental sobre, não apenas
os outros animais, como sobre o homem de outras épocas e geografi as, para
fundamentar um pensamento eurocêntrico. Na parte seguinte, são apresen-
tadas evidências das difi culdades de Cassirer em comprovar suas teorias.
A partir de descobertas científi cas, muitas delas citadas pelo próprio Cas-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 41
sirer, põe em dúvida a propalada superioridade do homem moderno diante
das evidências da inteligência animal e do conhecimento mítico-anímico do
saber popular tradicional.
Por último, tendo como referência os dados apresentados pelo livro de
Walter Neves e Luís Piló, informa as descobertas mais recentes da paleonto-
logia sobre o processo de hominização e procura tirar conseqüência delas.
Tais descobertas evidenciam as origens humanas e da arte em épocas bem
anteriores às que, até pouco tempo, se imaginava. Assim como, comprovam
um parentesco, do Homo sapiens, muito mais próximo aos grandes símios
e aos demais hominíneos do que se tinha até recentemente por certo. Mos-
tra que não há relação comprovada entre inteligência animal e tamanho do
cérebro, assim como entre pensamento simbólico racional e superioridade
intelectiva. Afi rma a evolução não como um contínuo aperfeiçoamento dos
seres, mas como resultado de um processo adaptativo desligado da idéia de
progresso ou desenvolvimento. Enfi m, destaca a importância da intuição
poética não apenas na origem da arte, como na do próprio ser humano.

1. Na sua opinião, o que teria determinado a modifi cação comportamental


do Homo sapiens, 40 mil anos atrás?
2. O que para você é novidade nestas novas descobertas da arqueologia e
da paleontologia?
3. Que lugar o ser humano ocuparia na tarefa de renovação da vida e pre-
servação do Planeta?

A Teoria Restrita (ou Especial) da Relatividade (abreviadamente, TRR)


Publicada pela primeira vez por Albert Einstein em 1905, descreve a
física do movimento na ausência de campos gravitacionais. Antes, a maior
parte dos físicos pensava que a mecânica clássica de Isaac Newton, baseada
na chamada relatividade de Galileu (origem das equações matemáticas co-
nhecidas como transformações de Galileu) descrevia os conceitos de veloci-
dade e força para todos os observadores (ou sistemas de referência). No en-
tanto, Hendrik Lorentz e outros, comprovaram que as equações de Maxwell,
que governam o electromagnetismo, não se comportam de acordo com a
transformação de Galileu quando o sistema de referência muda (por exem-
plo, quando se considera o mesmo problema físico a partir do ponto de vista
de dois observadores com movimento uniforme um em relação ao outro). A
noção de variação das leis da física no que diz respeito aos observadores é
a que dá nome à teoria, à qual se apõe o qualificativo de especial ou restrita
por cingir-se apenas aos sistemas em que não se têm em conta os campos
gravitacionais. Uma generalização desta teoria é a Teoria Geral da Relativi-
dade, publicada igualmente por Einstein em 1915, incluindo os ditos campos.

42 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Robert M. Yerkes (1876-1956)
Estudou psicologia comparada em Harvard, tendo desenvolvido testes
de inteligência e aptidão com soldados americanos durante a Primeira Guer-
ra Mundial. Depois, transferiu-se para a Universidade de Yale, onde dedicou-
se ao estudo do comportamento animal. Ajudou a criar a Anthropoid Expe-
riment Station of Yale University, que depois tomaria, em sua homenagem,
o nome de Yerkes Laboratories of Primate Biology. Tranferido para Atlanta,
em 1965, sob a denominação de Yerkes Primate Center, transformou-se no
principal centro de pesquisas sobre primatas no mundo. Seus testes de in-
teligência e aptidão com soldados, reforçaram tendências racista da época.

Emanuel Kant (1724-1804)


Filósofo alemão, foi um dos mais importantes filósofos da era moder-
na, tendo vivido exclusivamente em Königsberg (atualmente Kaliningrado,
então pertencente à Prussia), onde nasceu e morreu, onde foi professor se-
cundário e universitário de ciências naturais. Kant é famoso sobretudo pela
elaboração do denominado idealismo transcendental: todos nós trazemos
formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a ex-
periência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de
determinar. Sua filosofia da natureza e da natureza humana é historicamente
uma das mais determinantes fontes do relativismo conceptual que dominou
a vida intelectual do século XX. Kant foi um respeitado e competente profes-
sor universitário durante quase toda a vida. Por volta de 1770, com 46 anos,
Kant leu a obra do filósofo escocês David Hume,. sentindo-se profundamente
inquietado. Achava o argumento de Hume irrefutável, mas as conclusões
inaceitáveis. Então, dez anos depois, em 1781, publicou "Crítica da Razão
Pura", talvez sua obra mais importante. Neste livro, ele desenvolveu a noção
de um argumento transcendental para mostrar que, em suma, apesar de não
podermos saber necessariamente verdades sobre o mundo "como ele é em
si", estamos forçados a percepcionar e a pensar acerca do mundo de certas
formas: podemos saber com certeza um grande número de coisas sobre "o
mundo como ele nos aparece". Por exemplo, que cada evento estará causal-
mente conectado com outros, que aparições no espaço e no tempo obede-
cem a leis da geometria, da aritmética, da física,etc.

Leituras
• CAPRA, Fritjof: O Tao da Física, um paralelo entre a Física Moderna
e o Misticismo
Oriental. São Paulo, Cutrix, 1983.
O Ponto de Mutação, a Ciência, a Sociedade e a Cultura emergente.
São Paulo, Cultrix, 1982.
A Teia da Vida: uma nova compreensão científi ca dos sistemas vivos.
São Paulo : Cultrix, 2006.
GIDDENS, Anthony: As Conseqüências da Modernidade. São Paulo,
Editora UNESP, 1991.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 43
Filmes
• A Evolução da Humanidade – Armas Germes e Aço. 1ª. parte: Sain-
do do Jardim do Éden. National Geographic Society. O vídeo docu-
mentário apresenta a teoria de Jared Diamond sobre a origem das
desigualdades no desenvolvimento humano.
• História das Religiões (Religions of the World). Série de três DVDs,
de 4hs. de duração cada, produzida pela Libertty Internationl En-
tertainment Inc., com narração de Ben Kinglen, produção da série
de Clley Coleman e direção de Gene Smith. O DVD traça uma histó-
ria das mais importantes religiões, evidenciando as diferentes ma-
neiras que elas encontram para dar signifi cado ao mundo e à vida
humana. Além de pontos de divergência, há pontos de convergência,
que ajudam a clarear nossa compreensão relativa à natureza não só
de Deus como do Homem.

CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosófi ca. São Paulo, Mestre Jou, 1977.
ECO, Umberto. O Signo. Lisboa, Editorial Presença, 1973.
ICLE, Gilberto. O Ator Como Xamã: confi gurações da consciência no sujeito
extracotidiano. São Paulo Perspectiva, 2006.
NEVES, Walter Alves. O Povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos
/ Walter Alves Neves Luís Beethoven Piló, - São Paulo, Globo, 2008.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Mira-Sintra, Publicações Eu-
ropa-América, 2ª. ed. em português, 1972 (data da 1ª. ed. em francês).

44 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Unidade

3
As Origens da Arte

Objetivos:
• Investigar a arte nos seus primórdios, assim como acompanhá-la em sua trajetória
inicial no tempo e no espaço.
Capítulo 1
Reparos e Advertências

Inicialmente, cabem alguns reparos ou advertências. O primeiro repa-


ro diz respeito às chamadas idades arqueológicas, particularmente no que
se refere aos períodos Paleolítico e Neolítico, que deverão ser aqui tratados,
ou, em outras palavras, às chamadas Idades da Pedra Lascada e da Pedra
Polida. Ao contrário do que pensa o sendo comum, esses períodos se distri-
buíram de modo desigual no mundo e, mesmo no interior dos continentes,
algumas vezes de maneira bastante acentuada, ou seja, com datações e
durações díspares.
Em seu livro “A Evolução Cultural do Homem”, V. Gordon Childe nos
chama atenção para o fato ao afi rmar que
...a Velha Idade da Pedra, pelo menos no sentido econômico (...) dura até
hoje na Áustria central e na América ártica. A revolução neolítica deu iní-
cio à Nova Idade da Pedra no Egito e Mesopotâmia há aproximadamente
sete mil anos. Na Grã-Bretanha ou Alemanha, seus efeitos são perceptí-
veis primeiro três e meio milênios depois, digamos em cerca de 2.500 a.C.
Nessa época, a Nova Idade da Pedra já se consolidara na Grã-Bretanha,
enquanto Egito e Mesopotâmia já haviam ingressado, aproximadamente
mil anos antes, na Idade do Bronze. A Nova Idade da Pedra não terminou,
na Dinamarca, antes de 1.500 a.C. Na Nova Zelândia, não havia acabado
quando o Capitão Cook desembarcou; os maoris ainda usavam ferra-
mentas de pedra polida e praticavam uma economia neolítica, quando
a Inglaterra já estava nas vascas da Revolução Industrial. A economia
australiana era, então, ainda ‘paleolítica’. (CHILDE, 1971, p. 58)

O segundo reparo ou advertência relaciona-se com o primeiro, ou


seja, o fato de ainda hoje existirem populações vivendo em estágios tecno-
lógicos e com organizações econômicas semelhantes às da chamada Idade
da Pedra Polida ou mesmo da Pedra Lascada não signifi ca que elas tenham
uma vida espiritual ou mesmo uma organização social semelhante a das
populações que viveram dez ou 20 mil anos atrás. Muitas vezes, podemos
encontrar correspondências de formas tecnológicas e, até mesmo, artísticas
entre povos que viveram e vivem em habitats e estágios de desenvolvimento
econômico semelhantes. Ir além disso, porém, é não apenas arriscado, como
de certa forma preconceituoso, o que acontece, por exemplo, ao se supor que
comunidades isoladas do interior de Goiás pensem à semelhança do que se
pensava no século XVIII, em Portugal, ou que os índios do Amazonas, ainda
não contatados pelos ditos “civilizados”, tenham uma mentalidade parecida
com a dos homens do Neolítico europeu. Por que esses povos, no caso dos
índios amazonenses – mesmo usando equipamentos simples e levando uma
vida simples, em contato com a natureza, que satisfaz plenamente suas as-
pirações materiais – teriam deixado estancar, num determinado ponto, sua
vida espiritual? O desenvolvimento mental do homem estaria em função tão
somente de responder a questões de subsistência material?
Respondendo negativamente a essas perguntas, soa sem propósito
querer compreender a vida e o pensamento de comunidades, cuja arte co-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 47
nhecemos por meio de achados arqueológicos, através do estudo de comu-
nidades contemporâneas que, supostamente, vivem em condições próximas
às daquelas. Ou seja, estudar uma comunidade de louceiras do Ipu ou de
Viçosa do Ceará (ou mesmo uma comunidade do Xingu), a maneira como
funciona na atualidade, pouco nos pode dizer sobre a arte dos tabajara 500
anos atrás, antes da presença europeia (a não ser acerca de determinadas
técnicas ou estilos das pinturas, porém certamente pouco sobre o signifi ca-
do ou o sentido delas).
Vitalino, Chico da Silva,
Noza e Nino foram artis- O terceiro reparo vai junto com uma crítica e tem como alvo o concei-
tas populares nordestinos to de arte primitiva. Esse conceito, assim como o de arte pré-histórica, leva
que viveram e produziram
no século passado, ten- embutido uma ideia evolucionista de progresso que tem como ápice o Oci-
do se notabilizado e feito dente urbano moderno, particularmente as megalópoles contemporâneas
nome internacionalmente, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A ideia de atraso, nessa con-
mercê da excelência de
seus trabalhos. Vitalino
cepção evolucionista, coincide com tudo que se afasta do Ocidente urbano
era mestre e escultor em moderno, tanto no tempo quanto no espaço. Além disso, sob o rótulo de arte
cerâmica. Pernambucano, primitiva, reúnem-se desde as pinturas rupestres do Paleolítico, passando
nasceu e viveu em Caru-
aru, onde produziu toda
pela arte das grandes civilizações antigas (orientais ou americanas, como
sua obra e fez escola. Chi- as indiana, chinesa, asteca, inca e maia), até as pinturas ou esculturas
co da Silva, maranhense de artistas populares brasileiros falecidos há pouco tempo como Vitalino,
de nascimento, dedicou- Chico da Silva, Noza e Nino. Quanto à divisão entre artes pré-históricas e
-se à pintura, tendo vivido
grande parte de sua vida históricas, no sentido de artes de povos que usam e não usam a escrita,
no bairro do Pirambu, em mesmo que se admita tal divisão, é preciso levar em conta o que postula
Fortaleza, onde produ- José Alcina Franch:
ziu a maior parte de sua
obra e formou grande nú- “dentro da primeira destas categorias temos que incluir, evidentemente,
mero de discípulos. Noza
a arte ocidental, porém ainda a arte de civilizações tais que, possuindo
foi santeiro e escultor em
madeira na cidade de Ju- algum gênero de escrita, tenham produzido documentos que comple-
azeiro do Norte sob orien- tem nosso conhecimento de tais artes, em relação com a biografi a dos
tação do Padre Cícero, artistas, ou em relação com outros pormenores ou aspectos diferentes:
fi cando afamado entre os China, Japão, Índia e outras civilizações antigas se acham neste caso.
romeiros e devotos daque- Dentro das artes pré-históricas há que incluir a totalidade daquelas que
le santo popular. Nino foi correspondem a povos que não chegaram a dispor de um código escrito,
escultor e criador em ma- e por conseguinte não podem oferecer documentos que sirvam de base
deira de Juazeiro do Nor-
para escrever a história artística ou que a complementem de maneira
te, que trabalhou temas
diversos sempre ligados à substancial. Daí que consideremos por igual à arte “parietal” do sul da
natureza e à vida popular França e norte da Espanha, ou a arte norte-africana ou sahariana, ou
sob uma ótica onírica e a de povos agricultores ou criadores de todos os continentes: a arte da
muito pessoal. cultura Jomem no longínquo Oriente, ou a da cultura Hohokam no sudo-
este dos Estados Unidos, ou a da cultura de Malkata, na desembocadura
do Danúbio. Todas elas, pelo fato de não poderem dispor de documentos
escritos, são pré-históricas, o que implica uma maneira diversa de tratar
os dados, mais que uma situação cronológica, que, evidentemente, não
é similar nos exemplos mencionados, ou nem sequer uma identidade ou
homologação cultural, o que tampouco se dá nos casos mencionados”.
(FRANCHA, 1982, pp. 25-26)

1. Há uma relação necessária entre antiguidade e maior rusticidade na


história da arte?
2. Podemos falar de arte primitiva de um modo geral?
3. A arte pré-histórica, mais rudimentar, seria aquela que precede a arte
histórica, mais sofi sticada?

48 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capitulo 2
O Enigma das Catedrais de Pedra

Os conjuntos de pinturas rupestres encontrados em grutas e caver-


nas do Paleolítico superior (última etapa da Idade da Pedra Lascada, que
data aproximadamente de 30.000 a 10.000 anos a.C) são talvez os mais
antigos monumentos artísticos do homem chegados até nós. Ainda hoje,
o arrojo de suas execuções e a beleza de suas formas nos encantam e nos
desafi am a imaginação, assim como encantarão e desafi arão o imaginário
das futuras gerações.
Trata-se de uma arte tão surpreendentemente bela e executada com
tal maestria que questiona todas as teorias relativas não apenas à evolução
da arte como à evolução do homem, já que produzida em um período consi-
derado a infância da humanidade. Suas manifestações conhecidas pelo ho-
mem moderno se encontram em grutas e cavernas concentradas especial-
mente em uma região que vai do sudoeste da França ao norte da Espanha
(grutas ou cavernas de Lascaux, Trois-Frères, Font-de-Gaume, Dordonha,
Ariège, entre outras, na França; grutas ou cavernas de Altamira e Trés
Cuevas, na Espanha, entre outras), mas também no Alasca, na Rodésia, no
Peru, na Califórnia etc.
Tais pinturas estão gravadas em verdadeiras catedrais de pedras, es-
paços imensos, ocultos sob o solo, ligados à fl or do chão por estreitos la-
birintos de difícil acesso, através dos quais não penetra a luz natural. Em
seus interiores, de maneiras diferentes, fi guras de animais, solitárias ou em
grupos, imóveis ou em movimento, separadas ou em cenas de caça compar-
tilhadas com homens, aparecem em profusão, em ordens não defi nidas e,
muitas vezes, superpostas. São desenhos executados com admirável nível
de exatidão e virtuosismo, fi xando gestos e movimentos, com toda comple-
xidade e dinâmica, desde seus traços mais destacados até suas mais imper-
ceptíveis minúcias.

Lascaux

ANTROPOLOGIA DA ARTE 49
Arnold Hauser, em sua conhecida obra “História Social da Literatu-
ra e da Arte”, nos chama a atenção para o fato de não existir qualquer
aproximação entre essas pinturas rupestres do Paleolítico Superior e a arte
infantil ou mesmo as manifestações artísticas da maioria dos povos ditos
“primitivos” contemporâneos. Segundo ele,
os desenhos das crianças e as manifestações artísticas dos atuais povos
primitivos são racionais e não sensoriais: revelam o que a criança e o
artista primitivo conhecem, não o que no momento vêem; dão-nos uma
concepção teórica e sintética do objeto, e não uma sua representação óti-
ca e orgânica. Eles consideram simultaneamente a perspectiva de frente
e de perfil do objeto que representam, e por vezes até a perspectiva vista
de um ângulo superior; nada omitem do que consideram, por conheci-
mento, fazer parte do objeto; aumentam a escala do que é importante
biológica e praticamente; mas desprezam tudo, por mais impressivo que
em si seja, desde que não desempenhe papel direto no conjunto do objeto.
(HAUSER, 1972, pp. 13-14)

Já os artistas das cavernas paleolíticas trabalhavam com a mimeses,


ou seja, com a busca da semelhança mais completa. Eles reproduziam a
imagem viva do animal em plena natureza, como aparecia em suas ima-
ginações, porque lhe conheciam minuciosamente (já que eram caçadores).
Dominavam completamente as ideias de perspectiva e de sombreamento,
de proporcionalidade, de movimento e de cromatismo, chegando às cam-
biantes mais delicadas.
Para Arnold Hauser, o naturalismo da arte paleolítica alcançou uma
impressão visual que talvez só encontre paralelo no impressionismo de um
Degas ou de um Toulouse-Lautrec e alcançou uma unidade de percepção
visual só atingida pela arte moderna após um século de controvérsias. É
interessante observar que as pinturas rupestres paleolíticas, ao contrário
das impressionistas, eram produzidas longe de seus modelos, distante mes-
mo da natureza onde elas comumente encontravam-se, como dissemos, em
cavernas iluminadas pela luz de tochas, com os artistas em posições quase
sempre incômodas (muitas vezes deitados ou em pé sobre os ombros de
companheiros para alcançar alturas maiores).
Tal exuberância artística, entretanto, não se deu sem que antes um
longo caminho houvesse sido percorrido. O próprio Hauser fala de
uma arte que, partindo da fidelidade linear à natureza, e na qual as for-
mas individuais estão ainda exteriorizadas rígida e laboriosamente, se
encaminha para uma técnica muito mais ágil e sugestiva, quase impres-
sionista. Trata-se de um processo que revela como se foi aperfeiçoando
a compreensão acerca da maneira de dar a impressão ótima final numa
forma progressivamente mais pictórica, instantânea e aparentemente es-
pontânea. (HAUSER, 1972, p. 13)

Também para V. Gordon Childe, a arte das cavernas do Paleolítico Su-


perior representa a maturação de um longo processo. Segundo ele, os caça-
dores daquele período entalhavam figuras em pedra ou marfim, modelavam
animais em barro, decoravam armas com representações e desenhos formais,
executavam baixos relevos nas paredes das cavernas, além de pintarem ce-
nas nos seus tetos. No início, porém, apenas esboçavam perfis, traçando-os
com o dedo no barro ou os desenhando a carvão, sem tentativas de pers-
pectiva ou detalhes. Só depois apareceram o sombreamento e a perspectiva.
Outra evidência desse aprendizado são os esboços, em pequenos blocos de
pedra soltos, encontrados nas cavernas, feitos como preparo para as grandes
obras-primas gravadas nas paredes das mesmas. (Ver CHILDE, 1971, p. 72.)

50 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Porém, é Joseph Campbell, em seu enciclopédico livro “As Máscaras
de Deus”, quem vai mais longe na narrativa dos passos que levaram os ar-
tistas às obras magistrais das pinturas rupestres do Paleolítico Superior.
Inclui, na trajetória da origem da arte e do próprio homem, observações so-
bre o comportamento deste “ser, tão próximo de nós”, o chimpanzé. Trata-se
de dois relatos extraídos do livro “A Mentalidade dos Macacos”, de autoria do
Dr. Wolfgang Köhler, por ele citado. O primeiro relato diz respeito à afeição
que alguns chimpanzés adquirem por certos objetos que passam a carregar
consigo como espécies de brinquedos ou amuletos. Até aqui, não há nada
de extraordinário, porque, até mesmo entre cachorros e outros animais do-
mésticos, podemos nos surpreender com fatos semelhantes Segundo Köhler, dois
chimpanzés, um chamado
O segundo relato diz respeito à descrição de uma dança desenvolvida Tschengo e outro Grande,
pelos chimpanzés, inicialmente por um deles e logo seguida por todo o grupo, inventaram uma brinca-
que implica não apenas num ritmo, mas numa complexa coreografi a. En- deira, em que giravam ve-
zes seguidas, que logo foi
cantado com a “alegria de viver” dessa brincadeira dos chimpanzés, Köhler imitada por outros.
conclui: “Parece-me extraordinário, que pudesse surgir de modo espontâneo,
entre os chimpanzés, algo que sugere tão fortemente a dança de algumas tri-
bos primitivas” (KÖHLER, 1927, p. 95). De fato, ao reproduzir uma narrativa
de Radcliffe-Brown sobre uma dança dos pigmeus do arquipélago de Anda-
man no Golfo de Bengala, Ásia, observada no século passado, Joseph Camp-
bell mostra a notável coincidência, não apenas de ritmo como até mesmo de
alguns movimentos, com a dança dos macacos relatada por Köhler.
Destaque: Segundo Köhler, dois chimpanzés, um chamado Tschengo
e outro Grande, inventaram uma brincadeira, em que giravam vezes segui-
das, que logo foi imitada por outros.
Qualquer jogo a dois era capaz de acabar nessa brincadeira de “pião”, que
parecia expressar o clímax de uma amistosa joie de vivre. A semelhança
com a dança humana tornou-se mesmo impressionante quando as voltas
eram rápidas ou quando Tschengo, por exemplo, estendia os braços hori-
zontalmente enquanto girava. Tschengo e Chica – cuja atividade preferida
durante o ano de 1916 era esse “rodopio” – por vezes combinavam com as
rotações um movimento para a frente e assim giravam lentamente em vol-
ta de seus próprios eixos e pela área que lhes era destinada.Todo o grupo
de chimpanzés, às vezes, unia-se em padrões de movimento mais elabo-
rados. Por exemplo, dois lutavam e caíam perto de um poste, logo seus
movimentos se tornavam mais regulares e tendiam a descrever um círcu-
lo tendo o poste como centro. Um por um, o resto do grupo aproxima-se,
junta-se aos dois e, fi nalmente, marcham todos de maneira ordenada
em volta do poste. O caráter de seus movimentos muda; eles não andam
mais, trotam, e como regra, dando ênfase especial a um pé, enquanto o
outro pisa levemente, desenvolvendo assim algo próximo de um ritmo e
tendendo a ‘manter o compasso’ entre si... (CAMPBELL, 1992, p. 292)

Depois de estabelecer essa relação, Campbell descreve o arquipélago


de Andaman como um museu vivo e afi rma encontrar-se ali uma situação
representativa do “nível elementar da ordem da vida humana: a força da
sabedoria dos mais velhos; o tato, a benevolência e a competência dos in-
divíduos socialmente orientados, e as experiências interiores e profundas
dos ‘de mente sensível’”. (CAMPBELL, 992, p. 298). Ao discorrer longamente
sobre a vida dos andamaneses, Campbell mostra uma mitologia e, por con-
sequência, uma arte, nas quais os animais jogam um papel fundamental.
Há não apenas uma estreita relação entre homem e animal, mas um movi-
mento de metamorfose constante entre ambos.
Assim é que os animais provedores de alimentos para os homens são
representados como tendo sido homens originalmente; náufragos de uma ca-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 51
noa viram tartarugas; homens viram porcos e porcos transformam-se em
pequenos seres fantásticos; animais mortos tornam-se “pais das matas” com
poderes sobrenaturais. Para se protegerem dos poderes dos animais, princi-
palmente daqueles que foram mortos pelos homens e que servem de alimento
para ele, ritos são encenados e ornamentações cerimoniais são produzidas.
Outras ocasiões nas quais os homens não podem prescindir da pro-
teção dos ritos, entre os andamaneses, se dão por ocasião do nascimento,
do casamento e da morte, bem como nos processos de iniciação dos jovens
para a vida adulta ou, até mesmo, em ocasiões fortuitas, como, por exem-
plo, no caso de um homem matar alguém, ele precisa ser ornado e protegido
cerimonialmente. “Em todas essas ocasiões, os indivíduos envolvidos são pro-
tegidos dos poderes desencadeados naqueles momentos por vários tipos de
ornamentação cerimonial – tinta vermelha, argila branca, desenhos incisados
(escarificados), fibras vegetais decorativas, conchas etc. – bem como por dan-
ças e prantos cerimoniais e a recitação de mitos.” (CAMPBELL, 1992. p. 301.)
Tais observações sobre as relações entre homens e animais no arqui-
pélago de Andaman podem nos ajudar a compreender o sentido das figuras
pintadas nas cavernas do Paleolítico Superior, ainda mais se as juntarmos
a outras sobre o significado das próprias cavernas para os povos daquela
época. Isso se dá porque, naquele período, as cavernas eram comumente
consideradas espaços de encantamento, isto é, de magia animal e de ritos
humanos. Além disso, eram tidas como um outro mundo, um reino de re-
banhos subterrâneos, um mundo oculto de onde procediam e para o qual
retornariam os rebanhos do mundo superior. Eram como uma réplica do
mundo noturno, da esfera das trevas na qual os animais são como estrelas
de um céu notívago mortas pelo sol e renascidas com o anoitecer. Faziam
parte da cosmovisão de um universo que ainda não perdera seu encanto.
Eram, portanto, o locus privilegiado onde tinham origem “as mitologias dos
mestres animais e do xamanismo, a jornada para o outro mundo por meio
de cerimônia de sepultamento, os ritos de passagem dos homens, o renas-
cimento e a dança mascarada (que) inspiraram as liturgias dessa época
brilhante.” (CAMPBELL, 1992. p. 305.)

Lascaux

52 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Além das pinturas rupestres, eram abundantes, nesse período, as es-
tatuetas de osso, marfim e pedra, representando a figura feminina e, curio-
samente, nas paredes das cavernas, as marcas de garras de ursos, sempre
próximas aos locais em que eram executadas as pinturas de animais, como
a indicar a propriedade dessa vizinhança. Não muito longe dali, para além
das garras do “mestre urso”, aparecem ainda contornos de mãos humanas.
Na caverna de Altamira, os touros são estrelas que cintilam no teto
para serem mortos pelas lanças do sol, que persegue os rebanhos do céu
noturno até o anoitecer seguinte. Em Lascaux, o bisão é o mestre animal
que morre voluntariamente, sacrificado na caça sacramental celebrada pelo
xamã, que, em Trois Frère, aparece em sua dança ritual. Trata-se, portan-
to, não somente de um ensaio para a caça, através da aplicação de técnicas
da magia, mas da constituição de uma via, ou mesmo, de uma dimensão
intermediária entre a vida cotidiana e o sobrenatural, a dimensão do en-
cantamento, como vermos adiante, possibilitadora do diálogo entre ambas.

Altamira

Em sua apreciação sobre a natureza dessas cavernas-templo, Joseph


Campbell as distingue de simples santuários, os quais, segundo ele, carac-
terizam-se por serem pequenos lugares para encontros com o divino ou para
a prática da magia. Já um templo é a projeção, no espaço terreno, da dimen-
são transcendente, um lugar ao mesmo tempo interior e cósmico, onde ha-
bita o grande espírito e suas manifestações. De acordo com Campbell, essas
cavernas-templos foram as primeiras grandes catedrais concebidas e criadas
pelos humanos, “como imagens do sobrenatural”, na forma de um grande
vazio interior, no qual os sentidos de tempo e de espaço desaparecem para
abrir caminho à “jornada visionária do profeta”. (CAMPBELL, 1992. p. 322)

ANTROPOLOGIA DA ARTE 53
As pinturas rupestres das cavernas paleolíticas estão cercadas por
uma arquitetura de pedras que sugere um ritual complexo e minucioso,
cheio de mistérios e percalços. Os estreitos e intrincados labirintos subter-
râneos que dão acesso a muitas delas, a sequência de salas, a disposição de
fi guras e, algumas vezes, a presença de baixo-relevos e de esculturas pa-
recem propor vias de elevação espiritual. Para Campbell, a “localização do
xamã na cripta de Lascaux, a forma enfatizada do xamã dançarino de Trois
Frères e a expressão plástica dos dois bisões de Tuc d’Audoubert dizem
muito sobre o grau de sensibilidade estética dos artistas dessas cavernas,
que eram homens muito mais grandiosos do que mágicos primitivos invo-
cando animais. Eles eram mistagogos, conjurando as mentes dos homens”
(CAMPBELL, 1992. pp. 322-323), como que orientadores dos espíritos pelos
caminhos místicos do universo.
Para o autor de “As Máscaras de Deus”, a partir das cavernas locali-
zadas entre o sul da França e norte da Espanha, originaram-se os espaços
mágicos para a manifestação de Deus, reproduzidos pelos grandes templos
e pelas grandes catedrais, sejam do Oriente, sejam do Ocidente. A grandio-
sidade desses espaços – nos quais a mente, deslocando-se do corpo, fl utua
no céu interior do templo para, em seguida, desprender-se no além cósmi-
co – situa a arte dos pintores rupestres no contexto da busca humana pelo
divino, enquanto via de transcendência e superação da morte.

1. As pinturas rupestres estavam incluídas entre as técnicas de magia de


uma sociedade de caçadores?
2. Qual o sentido de criar imensas obras de arte enterradas em cavernas
de difícil acesso?
3. Os animais são capazes de brincar, jogar e dançar? Os animais são ca-
pazes de criar obras de arte?

Um lento caminho para a abstração


Enquanto no Sul da França e no Norte da Espanha os pintores tra-
balhavam com o que depois iria se chamar um quase impressionismo, logo
em seguida (e estamos a cerca de 10.000 anos a.C.), no Leste da Espanha
os pintores inclinavam-se ao que se pode classifi car de uma tendência ao
expressionismo. Isso se deu porque os últimos buscavam dar expressão aos
gestos e movimentos de maneira mais intensa e enfática. Para tal, modifi -
cavam formas anatômicas, proporções de membros e outras partes do cor-
po, deslocavam articulações, suprimiam detalhes, evidenciando outros, de
modo a sugerir fi guras vivas e em plena ação. Ao mesmo tempo, esses dese-
nhos parecem sugerir não determinados seres, mas seres genéricos, ou seja,
não aquele determinado animal, aquele determinado bisão, mas um exem-
plar da espécie, um bisão genérico, para além de peculiaridades individuais.

54 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Castellón

Aproximamo-nos do Neolítico e essa nova pintura, a pintura relativa a


esse período, se estende do Leste da Espanha em direção ao Norte da África
e de lá ao Oriente, passa pela Tunísia, avança até o Nilo, o Jordão, a Mesopo-
tâmia, a Índia e o Ceilão. Estende-se por regiões equatorianas, dominadas
pelas mulheres, nas quais as populações caçavam com bumerangues, cla-
vas e arcos, pescavam com arpões, coletavam frutas, raízes, enfeitavam-se
com braceletes e cintos feitos de contas de casca de ovos, penas, sementes e
conchas perfuradas. Eram civilizações em que os homens enfeitavam seus
órgãos genitais e as mulheres vestiam longas saias coloridas
Dentre esses povos – ao lado de uma diversificação tecnológica e mí-
tica, tanto no que diz respeito à prática da caça, quanto às performances
rituais, aparece uma pintura que, saindo das cavernas, irrompe na luz do
dia. Sua arte se expressa em cenas de intenso movimento, repletas de figu-
ras ativas, homens portando arco e flecha, inúmeros animais – entre eles
cães de caça, danças, ritos, sacrifícios, enfim, um mundo animado e cheio
de vida. Aparecem também manadas de elefantes, girafas, rinocerontes e
avestruzes, além de macacos, felinos, carneiros, gazelas, homens com cabe-
ças de burro e chacais, leões, touros gigantes e carneiros sagrados.
Nessas pinturas, há uma presença marcante das mulheres, geralmen-
te com corpos sensuais, amplos quadris, grossas coxas, longas pernas, cin-
turas finíssimas e poses elegantes, quase eróticas. Porém, o que nas pintu-
ras mais se destaca é a presença do coletivo. O grupo, e não mais o xamã,
é, agora, o “cavalo” do poder sagrado.
Avançamos pelo Neolítico e então, além dos caçadores, aparecem tam-
bém os pastores e uma agricultura, a princípio, mais ou menos nômade.
Há uma maior sedimentação das comunidades e, dentre os temas míticos,
além do da morte, aparece o do nascimento. O poder de dar a vida não é
menos misterioso que o poder da morte. Daí a importância crescente da
mulher no período.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 55
Pintura na cova do civil, Barranco de Valtorta (Castellón).

A casa do mistério da vida é o corpo da mulher e o nascimento tem a


ver tanto com o leite materno, quanto com o ciclo menstrual e com sua re-
lação com os ciclos lunares. A magia da luz tem sua fonte no próprio corpo
feminino. Por isso, ele prescinde, ao contrário do corpo masculino, de fan-
tasias mágicas, porque ele é fonte de sua própria magia. Daí a iconografia
da deusa nua, dando ênfase ao poder do corpo da mulher em si mesmo.
Em torno do ano 6.000 a.C., limiares do Neolítico, começaram a se de-
senvolver as artes artesanais, dentre elas a cerâmica, a tecelagem, o tran-
çado, a carpintaria e a construção de casas. Animais foram domesticados
tanto como reserva para o suprimento alimentar, quanto para o auxílio no
transporte. Os instrumentos de trabalho se diversificam; surgem diversos
tipos de machados, arados, enxadas, botes, enxós, raspadeiras etc.
Para a arte, a descoberta da queima do barro foi, particularmente,
importante, porque significou a possibilidade de gravar pinturas em vasos,
potes, máscaras e outros objetos, utilitários ou lúdicos, moldados em uma
cerâmica mais consistente. Além disso, a própria argila era material dos
mais apropriados para a criação artística. Nas palavras de V. Gordon Childe:
O caráter construtivo da arte da cerâmica reagiu sobre o pensamen-
to humano. Fazer um pote era um exemplo supremo da criação pelo
homem. A argila era perfeitamente plástica: o homem podia modelá-la
à sua vontade. Ao fazer uma ferramenta de pedra ou osso, ele estava
sempre limitado pelo tamanho e forma do material original; podia, ape-
nas, tirar algumas lascas desse material. Nenhuma dessas limitações
restringe a atividade do ceramista. Ele dá à cerâmica a forma desejada,
faz-lhe acréscimos sem ter dúvidas quanto à resistência das junções. Ao
pensar na ‘criação’, a atividade livre do ceramista ‘fazendo a forma onde
não havia forma’ ocorre constantemente à mente do homem. (CHILDE,
1971, pp. 99-100)

56 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Destaque:
Para mostrar a importância da descoberta da técnica da queima do
barro pelo homem, vale aqui revelar alguns detalhes do ofício como é hoje
praticado por nossos artesãos. Digo artesãos, porque a queima geralmente
fica por conta dos homens, devido ao forte calor envolvido. Há segredos,
herdados dos indígenas, como, por exemplo, o de que na lua nova ou quarto
crescente não é aconselhável queimar louça, porque ela racha. Se a queima
é feita ao rés do chão, a louça é colocada em círculos concêntricos e mo-
vimentada, ora aproximada, ora afastada do fogo, durante cerca de cinco
minutos. Se no forno, colocam-se as peças maiores primeiro, depois as me-
nores, botando fogo devagar, de acordo com a necessidade. Qualquer deslize
faz as peças racharem. Cobrem-se as peças com cacos de barro, fechando
bem as aberturas, de modo a não deixar sair o calor. O fogo vai sendo atea-
do aos poucos na lenha colocada, em partes iguais, dos dois lados, na parte
de baixo do forno. Nesse trabalho, se passam mais de duas horas, até che-
gar a um ponto em que a artesã testa a temperatura, despejando um copo
d’água. Se chiar, está no ponto de levantar o fogo com toda a força. Quando
as peças estão da cor de brasa, é sinal que estão prontas. O ritual completo
da queima dura de quatro a cinco horas. Só depois de queimadas, as peças
são pintadas com motivos geométricos, desenhos ou leves arabescos em
toar branco ou vermelho.

Forno em atividade durante a queima da louça de barro,


na localidade de Alegria, no município do Ipu.

Avançamos, agora, para o Neolítico Superior (entre 4.500 e 3.500 a.C.)


e há uma tendência crescente, no campo da arte, para a criação de formas
abstratas geometricamente organizadas, ao lado de uma também crescente
organização geométrica do espaço social e de especialização na atividade
comunitária. Procura-se criar não mais imagens à semelhança dos seres
e objetos, porém imagens correspondentes, signos icônicos (como vimos no
primeiro capítulo desse livro) que, aos poucos, vão se simplificando pela
estilização, perdendo particularidades e detalhes e assumindo feições mais
gerais. Em outras palavras, há um deslocamento do concreto ao abstrato.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 57
Arnold Hauser procura explicar a passagem de uma arte “naturalista”
para uma arte próxima ao expressionismo, tendendo ao geometrismo e ao
abstracionismo, comparando-a à passagem correspondente, no campo artís-
tico, da magia ao animismo. Para ele, o homem do Paleolítico “encontrava-se
totalmente dominado pelo medo da morte e da fome, preocupava-se em se
defender contra os assaltos dos inimigos e das necessidades materiais, con-
tra o sofrimento e a morte, por meio de práticas mágicas, mas não estabele-
cia relação alguma entre a boa e a má fortuna que o acompanhava, e qual-
Arnold Hauser
Nasceu na Hungria em quer poder situado para além dos acontecimentos.” (HAUSER 1972, p. 25)
1892, estudou história Em outras palavras, a concepção mágica, própria do Paleolítico, se-
da arte e da literatura
nas universidades de Bu- gundo Hauser, seria monista, ou seja, a realidade se estenderia por uma
dapeste, Viena, Berlim e só e única dimensão, por um todo contínuo e coerente. Isso se dava porque
Paris. Em Paris, seu pro- o caçador, nômade e acossado por perigos e inquietações, não desfrutaria
fessor foi Henri Bergson,
que o infl uenciou profun-
da tranquilidade necessária para a aventura espiritual da transcendência.
damente. Após a Primeira Essa possibilidade só viria a aparecer no Neolítico, com o início da seden-
Grande Guerra, Hauser tarização da vida comunitária, proporcionada pelo pastoreio e pela agricul-
passou dois anos na Itá-
lia fazendo um trabalho
tura. Só então, os humanos teriam se apercebido de uma outra dimensão
de pesquisa sobre história da realidade, a dimensão divina, onde transitariam as almas dos animais e
da arte clássica e italia- das plantas, dos deuses e dos homens, de todos os seres, enfi m.
na. Em 1921, mudou-se
para Berlim, onde desen- Para Hauser, por trás da estilização geométrica da arte neolítica está
volveu sua visão de que essa concepção dualista de mundo própria do animismo, ou seja, a visão
os problemas da arte e da de uma realidade dividida entre o mundo concreto dos seres naturais e o
literatura são problemas
fundamentalmente socio- mundo abstrato das ideias, dos conceitos e das representações. Para ele,
lógicos. Três anos mais nesse momento teria início o processo de racionalização e intelectualização
tarde, estabeleceu-se em da arte. Em suas palavras, houve
Viena e, no ano de 1938,
mudou-se para Londres, a substituição das representações das formas concretas por sinais e
onde começou as pesqui-
símbolos, abstrações e abreviaturas, tipos gerais e sinais convencionais;
sas para sua grande obra:
A Historia Social da Arte,
a supressão das experiências fenomênicas diretas substituindo-as por
cujo trabalho consumiu conceitos e interpretações, por acentuações e exageros, distorções e des-
dez anos de intensa de- naturalizações. A obra de arte deixa de ser a representação pura de obje-
dicação. No início dos tos materiais e converte-se na tradução de uma idéia não somente uma
anos 1950, foi professor reminiscência, mas também uma visão. (HAUSER, 1972, p. 27)
visitante na Universida-
de de Brandeis nos Esta-
dos Unidos e, a partir de
Ora, o que já foi observado antes sobre a pintura rupestre do Paleolí-
1951, se tornou professor tico põe em questão esse raciocínio de Hauser. As pinturas “naturalistas”
de História da Arte na das grandes cavernas, como fi cou demonstrado, não apenas implicam um
Universidade de Leeds.
desenvolvimento intelectual e espiritual bastante avançado, como se dis-
tanciam, em muito, dos desenhos infantis e, até mesmo, dos desenhos dos
povos ditos “primitivos” contemporâneos. Ao contrário, as “simplifi cações”
acentuadas por Hauser estão presentes inclusive nos desenhos infantis e
não há nada que indique uma ligação entre naturalismo e irracionalidade
ou abstracionismo e racionalidade. Prova são os diferentes estilos que se
sucedem através da geografi a e das épocas históricas, indo de um extremo
ao outro, sem que haja qualquer relação valorativa entre a intensidade inte-
lectual de uma ou outra arte. No mundo contemporâneo, por exemplo, em
uma mesma cidade, costumam coexistir teatros que vão do mais extremo
realismo psicológico até a ritualização mais codifi cada. Para não falar no
campo das artes plásticas, no qual o paisagismo impressionista pode suce-
der, numa galeria de exposições, o mais ousado abstracionismo cromático.
Feito esse reparo, é possível admitir, como Hauser, que, em relação
ao Neolítico, o estilo naturalista se ligaria preferencialmente a povos com
organização social menos rígida, onde a iniciativa individual tem lugar mais
proeminente. Apareceria em sociedades menos hierarquizadas, menos or-
denadas, com estruturas mais fl exíveis e tendentes à anarquia, nas quais a

58 ANTROPOLOGIA DA ARTE
cultura está menos sedimentada e as tradições têm menos força de coerção.
Já o formalismo geométrico fl oresceria mais abundantemente em socieda-
des com instituições mais estáveis, com uma organização social mais uni-
forme e com uma religião mais fortemente estabelecida.
Joseph Campbell parece compartilhar de opinião semelhante ao as-
sociar o abstracionismo geometricamente organizado a um novo estilo de
vida nas aldeias, onde surge a diferenciação individual. Observa ele que,
nas sociedades caçadoras, as únicas diferenciações pareciam ser pelo sexo.
Nelas, cada indivíduo dominava, praticamente, todo o saber da comunida-
de. Já nas comunidades maiores e mais diferenciadas do Neolítico Superior,
aparece uma tendência à especialização e, consequentemente, à profi ssio-
nalização tanto no campo das artes como dos ofícios.

1. Para você, a arte é uma imitação da natureza ou a criação de uma outra


natureza?
2. Você conhece e sabe descrever o trabalho artístico de alguma louceira,
tecelã ou trançadeira de seu município?
3. Qual seria a diferença entre o naturalismo e o abstracionismo no campo
das artes?

Um abstracionismo mágico
De certa maneira, não seria sem propósito dizer que a arte nasceu,
nasce e continuará nascendo em todo tempo e lugar onde esteja presente o
ser humano. Do mesmo modo, de alguma maneira, não soa absurdo afi r-
mar que todas as épocas nos são contemporâneas, ou seja, passado e fu-
turo como realidade têm sua existência no presente e, ainda mais, existem
tão somente no presente; porquanto, passado e futuro existem apenas como
fi cção, enquanto construções de nossa imaginação.
Digo isso para introduzir algumas observações sobre a arte das socie-
dades que José Alcina Franch classifi ca como “etnográfi cas”, ou seja, socie-
dades contemporâneas ágrafas e, eu diria, que vivem em padrões tecnológi- “A importância destas
cos, em certa medida, correspondentes aos do Neolítico Superior. Segundo culturas e, por conse-
Alcina Franch: guinte, de sua arte, não
reside no fato de que se-
La importancia de estas culturas y, por consiguiente, de su arte, no re- jam “primitivas” e de que
side en el hecho de que sean ‘primitivas’ y de que de esa manera ilustren dessa maneira ilustrem
as etapas antigas de nos-
las etapas antiguas de nuestra propia evolución o los momentos antiguos
sa própria evolução ou os
de la historia humana; sino en que, por ser más sencillas que nuestra momentos antigos da his-
civilización – al menos relativamente -, se prestan mejor a ser analizadas tória humana; senão em
con vistas a comprender los mecanismos siempre mucho más complejos que, por ser mais simples
de nuestro comportamiento artístico o estético. (FRANCH, 1982, p.28) que nossa civilização – ao
menos relativamente - , se
prestam melhor a serem
Faço essa abertura para justifi car, na discussão acerca das relações analisadas com vistas a
entre abstracionismo e racionalismo nas artes, a inclusão de um relato so- compreender os mecanis-
bre uma experiência artística bastante reveladora. Trata-se das pinturas mos sempre muito mais
resultantes de ritos praticados pelos índios tukano, que habitam a Amazô- complexos de nosso com-
portamento artístico ou
nia colombiana, região situada entre os rios Vaupés, Apaporis, Pira-Paraná estético.”
e outros, onde é frequente o uso de plantas alucinógenas com fi ns diversos.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 59
O antropólogo Gerardo Reichel Dolmatoff, em seu livro “O Xamã e o
Jaguar”, publicado no México em 1978, estudou detidamente o signifi cado
do uso de tais narcóticos, especialmente quanto às visões que provocam,
bem como a aparição das mesmas na arte, particularmente na ornamen-
tação de objetos e habitações. Em sua investigação dos signifi cados simbó-
licos de tais visões alucinógenas, enquanto imagens de um mundo social
e religioso no qual os tukano estão imersos, Reichel-Dolmatoff, para que
alcançasse uma percepção e uma compreensão bem mais próxima para um
homem moderno, participou de uma cerimônia de ingestão de iajé, a planta
utilizada no caso.
Ver Franch, José Alcina: Durante os rituais de iajé, os tukano têm acesso a visões chamadas,
Arte y Antropologia. Ma- pelos cientistas, de fosfenos. Imagens subjetivas surgem na mente dos in-
drid, Alianza Editorial,
1982. p. 30.
divíduos independentemente de toda fonte luminosa externa, consequência
da autoiluminação do sentido da visão. No cerimonial do iajé, esses fosfe-
nos são como que induzidos e aparecem em grande abundância, proporcio-
nando um “coito espiritual”, na expressão dos tukano, ou uma “comunhão
espiritual”, no modo de dizer dos sacerdotes. Segundo Reichel-Dolmatoff,
entre os tukano, os desenhos realistas de animais ou habitações são exce-
ções, sendo seu estilo artístico composto de desenhos baseados em fosfenos
induzidos pelo iajé. A maioria de seus elementos, se os relacionarmos com
a vida social e o imaginário tukano, gira em torno das relações sexuais e
de parentesco e recomenda a exogamia, relembrando essa lei ao indivíduo
tendo em vista o cuidado imprescindível com a preservação do seu povo.
Suas expressões estão gravadas em malocas, tamboretes, vasilhas, mara-
cás, tambores etc., assim como também em suas próprias máscaras rituais.

Alfabeto Tukano - retirado do livro Arte y Antropololgia de José Alcina Franch, da


Editora Alianza Forma, p. 32.

60 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Esse simbolismo daí gerado, que alcança certo nível de abstração e
que se identifi ca com o sobrenatural, produz um sistema de ideogramas
geométricos. Ernest Theodore Kirby aventa, inclusive, a hipótese de que
essas formas ideogramáticas das máscaras/fi gurinos tenham uma ligação
com a segunda fase do transe em que os mitos de origem do povo tukano
são revisitados em fi guras maiores e não bem defi nidas. Tais fi guras, ini-
cialmente amorfas, passam, durante o transe, por mutações, metamorfo-
seando-se, seguidas vezes, em homens, animais e seres fantásticos, quase
sempre sob formas aterrorizantes. A ausência de traços precisos nas más-
caras (suas “neutralidades”) possibilita essas mutações latentes, propicia-
das no decorrer do transe.
As máscaras tukano, assim como as de muitos outros povos amerín-
dios, que incluem além das máscaras propriamente ditas, coberturas de
corpo inteiro ou, pelo menos, de parte dele, parecem relacionar-se não aos
seres reais, mas aos seus espíritos e aos seres sobrenaturais. Isso fi ca evi-
dente na utilização de motivos neutros e geométricos, absolutamente não
realistas, na representação dos animais e seres fantásticos. Geralmente
feitas de tecidos vegetais, cascas de árvores ou de frutos, as máscaras
tukano não possuem aberturas para os olhos e suas formas privilegiam
mais a superfície que o volume, superfície onde se inscreve o ser represen-
tado através de um simbolismo mínimo – uma mancha para identifi car o
jaguar, por exemplo.
O fato de as máscaras tukano não possuírem aberturas para os olhos
é por demais signifi cativo. Ernest Theodore Kirby liga essa característica ao
fato de a comunicação, durante os rituais, estabelecer-se com os deuses de
modo introspectivo: o xamã volta-se para o interior de seu próprio espírito.
Destaque:
É interessante verifi car que acontece o mesmo fato de as máscaras ri-
tuais não possuírem abertura para os olhos em muitos dos ritos populares
do Nordeste brasileiro, entre eles o Candomblé, a Umbanda (onde Omulu é
representado com a fi lha de santo cobrindo o rosto com seus longos cabe- Ver artigo “Masques
los), e os trajes dos Pankararu (de Brejo dos Padres, em Pernambuco), por D’Amérique du Sud: la
Transformation Homme/
exemplo. Do mesmo modo, as narrativas míticas encenadas durante os ritos Animal”, in Le Masque:
e mesmo por ocasião dos folguedos no Nordeste brasileiro (a exemplo do que du Rite au Théâtre. Paris,
ocorre entre os tukano da Amazônia) são tidas, enquanto de autoria anô- Editions du CNRS, 1988.
p. 45.
nima, como de procedência divina e consideradas narrativas de fatos que
aconteceram “na origem dos tempos”, como veremos mais adiante.

Ver artigo citado acima,


página 42.

Omulu Candomblé - De uma religião afro-brasileira, o Candomblé, em que numa cobertura


corporal, a máscara facial aparece sem abertura para os olhos.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 61
Pankararu - Aparece também uma cobertura corporal, desta vez dos índios Pankararu,
de Brejo dos Padres, Pernambuco, numa cerimônia-ritual Praiá; a máscara facial
aparece com uma pequena abertura para os olhos.

Dessa maneira, ao mimetizarem na dança os movimentos de um ani-


mal, do jaguar, por exemplo, os xamãs (e eles podem ser diversos) ganham
poder sobre o espírito desse animal, prevenindo os males resultantes de
possíveis feitiçarias que ele possa enviar aos homens durante uma caça.
Diferentemente do que se possa pensar, não se trata de ganhar poder sobre
o corpo do animal, mas sobre sua alma, isto é, sobre sua ânima.
No mesmo sentido, e espero ter mostrado isso, o processo pelo qual se
originam os desenhos ornamentais tukano parece tornar evidente, ao con-
trário do que argumentava Hauser, que a abstração na arte ou, pelo menos,
uma tendência abstracionista, pode resultar de procedimentos não racio-
nais. (Uso racional, aqui, no sentido de uma racionalidade baseada numa
lógica científi ca matemática depois defi nida pelo positivismo.) No caso dos
tukano, como veremos adiante, o abstracionismo geométrico surge de pro-
cedimentos rituais-anímicos, referenciados numa cultura em que o pensa-
mento mítico é largamente hegemônico.

A unidade é aberta com uma pequena introdução em que são feitas


algumas críticas e estabelecidos alguns reparos. O primeiro deles volta a
atenção para os chamados períodos arqueológicos (Paleolíticos, Neolíticos
etc.) ou idades arqueológicas (da Pedra Lascada, da Pedra Polida etc.), para
dizer que eles se distribuem de maneira desigual no espaço e no tempo, com
datações e durações bastante díspares. Em alguns continentes e mesmo
em algumas regiões dentro desses continentes, como em vastos territórios
dentro da Amazônia, por exemplo, o Neolítico nos chega até hoje. Porém, se
isso ocorre do ponto de vista tecnológico ou mesmo econômico, não signifi ca
ou não se pode esperar que, no campo espiritual, essas populações conser-
vem valores e pensamentos semelhantes aos de comunidades que viveram
milhares de anos atrás.

62 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Em seguida, ainda na introdução, a Unidade critica a concepção se-
gundo a qual o desenvolvimento mental do homem dar-se-ia em função
tão somente de responder a questões de subsistência material. Continua
a critica, pondo em discussão o conceito de arte primitiva por seu caráter
excessivamente genérico, além de valorativo, já que reúne, sob um único ró-
tulo, desde a arte do Paleolítico, de até 30.000 anos atrás, até a arte contem-
porânea de pintores ditos naifs. Termina relativizando a divisão entre arte
pré-histórica e arte histórica e chamando a atenção para a necessidade de
se incluir, nessa última, além das artes gregas e ocidentais como um todo,
as artes das grandes civilizações orientais e ameríndias.
Sob o título ‘O Enigma das Catedrais de Pedra’, a seção seguinte co-
meça por constatar o encanto que as pinturas rupestres das cavernas do
Paleolítico exercem sobre o homem contemporâneo e que, certamente, con-
tinuarão a exercer sobre as gerações futuras. Em seguida, localiza essas
pinturas concentradas em uma região que vai do sudeste da França ao
norte da Espanha, embora elas também apareçam na Rodésia, no Peru, no
Alasca, na Califórnia etc.
Aparecem gravadas em imensas galerias subterrâneas, ligadas ao
solo por estreitos labirintos, que se constituem em verdadeiras catedrais
de pedras, ricamente ornadas com magníficas pinturas de cenas de caças
ou de cerimônias rituais, além de figuras isoladas de animais em pleno
movimento, numa arte só comparável em virtuosismo e leveza à do natu-
ralismo impressionista moderno. De acordo com estudos arqueológicos, tal
arte, tomada por alguns como primitiva, decorreu de um longo processo de
aprendizagem e maturação artística, transcorrido ao longo de dezenas de
milhares de anos.
Observando fenômenos como esse, se pode deduzir ser a arte uma
forma de expressão inata ao ser humano, sendo encontrada de maneira ru-
dimentar até entre os animais. Há relatos de brincadeiras e jogos corporais
dentre os chimpanzés que em muito se assemelham a danças encontradas
dentre povos que vivem imersos na natureza, como os pigmeus do Golfo de
Bengala, na Ásia.
Estudar a relação entre homens e natureza e entre homens e animais,
particularmente em sociedades caçadoras como a dos pigmeus de Bengala,
através de seus ritos, nos ajuda a compreender as origens da arte. Esse tipo
de estudo mostra-nos como as pinturas rupestres, mais que um exercício de
caça, retratam relações espirituais que se passam numa dimensão mítica,
em espaços de encantamento.
As pinturas rupestres do Paleolítico são imagens do sobrenatural
imersas em catedrais-templos para a prática de ritos anímicos, movidos por
xamãs no diálogo com os deuses. A grandiosidade desses espaços situa a
arte dos pintores rupestres no contexto da busca do humano pelo divino.
No item sob o subtítulo ‘Um Lento Caminho Para a Abstração’, a abor-
dagem se detém no período de transição do Paleolítico para o Neolítico, ou
seja, de uma lenta transição do naturalismo para um estilo que tende a
um geometrismo abstrato. Enquanto no sul da França e norte da Espanha
ainda predominava uma tendência ao naturalismo, no leste da Espanha
caminhava-se para o expressionismo, a exemplo do que acontecia tanto no
Oriente Próximo, quanto no norte da África. Em comum a esses povos, ha-
via o fato de serem civilizações agrárias.
De certa maneira, fica evidente que, nas sociedades agrárias, mais
sedentárias e com organizações sociais mais ordenadas e hierarquizadas

ANTROPOLOGIA DA ARTE 63
verticalmente, havia uma tendência para o expressionismo e para o ge-
ometrismo abstrato, enquanto nas sociedades caçadoras, predominava o
naturalismo. Outra evidência parece ser uma tendência ao individualismo
nas sociedades caçadoras, onde a criatividade e a iniciativa individuais pre-
valeciam, contrastando com uma inclinação à construção coletiva e com a
divisão social do trabalho, nas sociedades agrárias.
Em vez de retratar um determinado ser, animal ou indivíduo humano,
se passava a retratar seres genéricos. O grupo, e não mais o indivíduo, era
o grande autor da obra de arte. A mulher e seu corpo, por ser fonte da vida,
por deter o mistério do nascimento, passavam a ser alguns dos temas prefe-
ridos por aquela arte. Surgiu o artesanato e a domesticação dos animais.
Segundo alguns teóricos, entre eles Arnold Hauser, no Neolítico Supe-
rior, os homens não mais procuravam, com sua arte, imitar a natureza, mas
criar uma imagem artística a ela correspondente. Segundo essa concepção,
só no Neolítico os homens teriam percebido uma dimensão espiritual na
realidade, passando da magia ao animismo. Entretanto, como o capítulo já
mostrou em seu início ao falar das pinturas rupestres do Paleolítico, não
apenas essa dimensão espiritual, como a criação de uma imagem artísti-
ca da realidade já estava presente na arte das grandes cavernas paleolíti-
cas. Admite-se, todavia, que o naturalismo em arte, no que diz respeito ao
Neolítico, estaria ligado preferencialmente aos povos de organização social
menos rígida, enquanto o formalismo geométrico se relacionaria principal-
mente a sociedades mais hierarquizadas.
O subtítulo ‘Um Abstracionismo Mágico’ trata do relato de uma expe-
riência dos índios tukano, que habitam a Amazônia colombiana. Começa
afi rmando que a arte nasceu, continua nascendo e nascerá em todo tempo
e lugar. Depois, usa o relato do antropólogo Gerardo Reichel Dolmatoff sobre
uma experiência dos tukano para mostrar que não há uma relação neces-
sária entre abstracionismo e racionalidade.
Segundo esse relato, em seus rituais sagrados, os tukano, utilizando
alucinógenos, chegam à percepção de sinais abstratos que, depois, organizam
de forma sistemática. Com esse verdadeiro “alfabeto” de sinais, traduzidos
em desenhos, ornam não apenas seus objetos rituais, mas também malocas,
vasilhas, máscaras, tamboretes etc. Ditos sinais são uma espécie de ideogra-
mas geométricos obtidos em transes, desenvolvidos em danças mascaradas.
Nessas danças, os tukano utilizam coberturas de corpo inteiro, com
máscaras faciais neutras sem aberturas para os olhos, de modo absoluta-
mente não realista. A falta de abertura para os olhos denota relações intros-
pectivas com os espíritos dos animais mimetizados, o que revela, portanto,
procedimentos não racionais. Com isso, fi ca evidente que, pelo menos no
caso tukano, não há uma relação necessária entre abstracionismo geomé-
trico e racionalidade.

1. Qual é o papel do delírio e do sonho na criação artística?


2. Qual é o papel da intuição e da racionalidade na construção artística?
3. Para você, existe alguma relação entre abstracionismo e racionalidade,
naturalismo e irracionalidade?

64 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Vitalino, Chico da Silva, Noza e Nino
Foram artistas populares nordestinos que viveram e produziram no sé-
culo passado, tendo se notabilizado e feito nome internacionalmente, mercê
da excelência de seus trabalhos. Vitalino era mestre e escultor em cerâmica.
Pernambucano, nasceu e viveu em Caruaru, onde produziu toda sua obra e
fez escola. Chico da Silva, maranhense de nascimento, dedicou-se à pintura,
tendo vivido grande parte de sua vida no bairro do Pirambu, em Fortaleza,
onde produziu a maior parte de sua obra e formou grande número de dis-
cípulos. Noza foi santeiro e escultor em madeira na cidade de Juazeiro do
Norte sob orientação do Padre Cícero, ficando afamado entre os romeiros
e devotos daquele santo popular. Nino foi escultor e criador em madeira de
Juazeiro do Norte, que trabalhou temas diversos sempre ligados à natureza
e à vida popular sob uma ótica onírica e muito pessoal.

Francha, 1982, pp. 25-26


“dentro da primeira destas categorias há que incluir, evidentemente, a
arte ocidental, porém ainda a arte de civilizações tais que, possuindo algum
gênero de escrita, tenham produzido documentos que completem nosso co-
nhecimento de tais artes, em relação com a biografia dos artistas, ou em
relação com outros pormenores ou aspectos diferentes: China, Japão, Índia
e outras civilizações antigas se acham neste caso. Dentro das artes pré-his-
tóricas há que incluir a totalidade daquelas que correspondem a povos que
não chegaram a dispor de um código escrito, e por conseguinte não podem
oferecer documentos que sirvam de base para escrever a história artísti-
ca ou a complementem de maneira substancial. Daí que consideremos por
igual à arte “parietal” do sul da França e norte da Espanha, ou a arte norte-
africana ou sahariana, ou a de povos agricultores ou criadores de todos os
continentes: a arte da cultura Jomom no longínquo Oriente, ou a da cultura
Hohokam no sudoeste dos Estados Unidos, ou a da cultura de Malkata, na
desembocadura do Danúbio. Todas elas, pelo fato de não poderem dispor de
documentos escritos, são pré-históricas, o que implica uma maneira diversa
de tratar os dados, mais que uma situação cronológica, que, evidentemente,
não é similar nos exemplos mencionados, ou nem sequer uma identidade ou
homologação cultural, o que tampouco se dá nos casos mencionados.”

Joseph Campbell
Considerado um dos maiores mitólogos de todos os tempos, nasceu no
dia 26 de março de 1904, na cidade de Nova York, Estados Unidos. O seu
interesse pela mitologia foi despertado na primeira infância quando seu pai
o levou para ver um espetáculo de Búfallo Bill denominado Wild West Show e
para visitar o Museu de História Natural de Nova York, onde as estacas totê-
micas e as máscaras dos índios fascinaram-lhe. Para Campbell, a riqueza dos
mitos não está em elucidar ou revelar algum tipo de significado para a vida,
mas o de ser um registro simbólico da própria experiência de estar vivo. O
mito capta a vida no seu eterno fluir. Joseph Campbell morreu em Honolulu,
Havaí, em 30 de outubro de 1987.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 65
Segue uma lista de suas obras publicadas em português:
EXTENSÃO INTERIOR DO ESPAÇO EXTERIOR - A metáfora como Mito
e Religião. Rio de Janeiro:Campus, 1991 - 168 p.Contém o delineamento da
interpretação que Joseph Campbell tem da mitologia e da religião.
HERÓI DE MIL FACES São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995 - 414 p.
Nessa obra, a mais conhecida e difundida de Campbell, o autor procura elu-
cidar a figura do herói: Apolo, Wotan Buda e numerosos outros protagonistas
da religião, dos contos de fada de uma mesma história. O relacionamento en-
tre os seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos sonhos pela
moderna Psicologia Profunda é o pponto de partida oferecida por Campbell.
IMAGEM MÍTICA (A) Campinas, SP: Papirus, 1994 - 506 p. Profunda
análise da unicidade da existência e da espiritualidade humanas, evidencia-
da, sobretudo, por meio do estudo comparativo da imagística onírica e da
mitologia do oriente e do ocidente.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia primitiva São Paulo: Palas Athe-
na, 1992 - 418 p. É o primeiro volume, de uma série de quatro, daquela
que é a obra monumental de Joseph Campbell. Contém uma abordagem dos
mitos dos povos primitivos.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia oriental São Paulo: Palas Athe-
na, 1994 - 447 p. Estudo da mitologia oriental, sobretudo dos mitos que se
desenvolveram no Egito, China, Tibete e Japão. É o segundo volume de uma
série de quatro.
PARA VIVER OS MITOS São Paulo: Cultrix, 1997 - 217 p. Joseph Camp-
bell mostra a permanência, na moderna sociedade tecnológica, da influência
dos mitos que motivaram as sociedades pré-científicas.
PODER DO MITO (O) com Bill Moyers São Paulo: Palas Athena, 1990 -
242 p. Contém o texto de uma conversação entre Bill Moyers e Joseph Cam-
pbell do qual foi extraída a minisérie do mesmo nome de seis horas da Public
Broadcasting System, rede de TV educativa dos Estados Unidos. Esse livro
apresenta uma visão ampla e profunda sobre a questão do mito.
TODOS OS NOMES DA DEUSA Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tem-
pos, 1997 - 204 p. Essa é a última obra escrita por Joseph Campbell. O tra-
balho conta com a colaboração de Riane Eisler, Marija Gimbutas e Charles
Musès e aborda o tema da Grande Mãe, arquétipo que configura o princípio
feminino doador e nutridor da vida.
TRANSFORMAÇÕES DO MITO (AS) São Paulo: Cultrix, 1992 - 246 p.
Coletânea de treze palestras proferidas por Campbell quase no final de sua
vida, abordando, dentre outros, temas como as origens do homem e do mito,
o mito dos índios americanos, deusas e deuses no período neolítico, o Egito,
o Êxodo e Osíres.
VÔO DO PÁSSARO SELVAGEM - Ensaios sobre a universalidade dos
mitos Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 - 284 p. Uma interpre-
tação de Campbell sobre a universalidade dos mitos e sobre o mistério da
mitologia e a sua importância frente aos desafios com os quais se defronta
a sociedade contemporânea.

Alfabeto Tukano - Tradução das legendas


• Vashú (árvore do óleo ou Havea paucíflora, var. coriácea) representa
o órgão viril pela carne gelatinosa do fruto ou o latex da árvore tem
conotação seminal em muitos mitos; árvore “macho”.
• Órgão feminino com um ponto central: fecundação.
• De várias cores: a Canoa.
Anaconda do mito da Criação.

66 ANTROPOLOGIA DA ARTE
• Representa um grupo exogâmico
Ponto vermelho: “nossa gente”
Ponto azul: “outra gente”
• Relação recíproca entre dois ou mais unidades exogâmicas.
• Linha de descendência, fecundidade e continuidade social.
• Representa o incesto e as mulheres que alguém não pode tomar
como esposas. Também concha de caracol e signo de yusupari.
• Representa a exogamia. Também duas nasas juntas vistas de cima
> órgãos femininos “devoradores”; os peixes que entram nelas são
elementos masculinos.
• Representa a Via Láctea.
• Representa o Arco Íris, em alguns contextos mitológicos se relaciona
com a vagina celestial.
• Representa o Sol. Se há vários círculos concêntricos ou os raios vão
até dentro: órgão feminino.
• Representam: tamboretes de madeira dos homens pintados de lis-
tras vermelhas; e simbolizam estabilidade e bom juízo.
• Representa o útero feminino.
• Representa uma porta de entrada ao útero. Também; os céus. Trans-
missão de um estado de consciência a outro no processo alucinóge-
no. Representa um marco que rodeia o espaço vazio; a protuberân-
cia superior representa o clitóris.
• Representa gotas de sêmen; a descendência da vida mesma.
• Caixa de ornamentos plumários; em algum contexto mitológico: são
elementos femininos ou uterinos.
• Representa o milho ou a vegetação em geral.
• Representa marcas de cabaça.
• Representa portacigarros de madeira empregados nos rituais em
que se reafirma a aliança entre unidades exogâmicas.

Leitura
• Strauss, Claude Lévi. Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1993

Filme
• O Poder do Mito – Joseph Campbell. Narrado por Bill Moyers. Public
Broadcasting System

ANTROPOLOGIA DA ARTE 67
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Primitiva. São Paulo,
Palas Athena, 1992.
CHILDE, V. Gordon. A Evolução Cultural do Homem; Rio de Janeiro, Zahar,
2a. ed., 1971.
FRANCHA, José Alcina: Arte y Antropologia. Madrid. Alianza Editorial, 1982.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo, Mestre
Jou, 1972.
KÖHLER,Wolfgang: The Mentality of Apes. Nova York, Humanities Press,
1927. 2ª.ed.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Paris, Editions du CNRS, 1988.
Textes et études réunis et presentes par Odette Aslan et Denis Bablet.

68 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Unidade

4
Arte, Magia e Máscara

Objetivos:
• Discutir a relação entre arte e rito a partir do estudo do mito e da magia, detendo-
se especialmente na análise das máscaras rituais.
Capítulo 1
Pensamento Selvagem e Magia

Uma observação mais detida sobre a lógica do pensamento selvagem e


da magia justifi ca-se aqui, não apenas porque as origens da arte estão liga-
das aos rituais do Paleolítico Superior e do Neolítico, como também porque
a magia observa o mundo a partir de suas formas exteriores, ou seja, de
sua estética, portanto, com o instrumento da sensibilidade. Nesse sentido, a
visão do mágico, bem como a do xamã, ou seja, o modo como eles abordam
o mundo, se aproxima da maneira de ver do artista, já que este também
trabalha a partir do sensível.
Considerada por muitos como uma forma de conhecimento pré-cien-
tífi co, ou uma ciência do concreto, a magia, no dizer de Marcel Mauss, ou o
pensamento selvagem, segundo Lévi-Straus, se apresenta limitações no ter-
reno da manipulação técnica da natureza, mostra-se absolutamente ante-
cipatória às modernas teorias da comunicação no plano da associação das
ideias. Confi gura-se, como veremos, numa lógica estética; por isso, pode ser
perfeitamente aplicada ao estudo das formas artísticas.
Desde sua origem, o homem sempre teve sua curiosidade atraída pe-
los mistérios da natureza, seja pela magnitude de seus espaços, seja pela
inesgotabilidade de seus elementos, seja pela infi nitude de suas formas,
seja por fatos outros que nos desafi am a razão. Desorientado nos confi ns
de um mundo, a primeira vista incompreensível e caótico, observando o
comportamento do universo, o homem buscou apreender nele, alguns di-
recionamentos. Para tal, fez ligações entre seus diversos elementos, com-
parou, aproximou, distanciou, engendrou relações, para, afi nal, chegar a,
nele, surpreender determinadas ordenações. Daí estabeleceu signifi cados e
alcançou sentidos para a existência não apenas do mundo, como também
de si mesmo. Dessa maneira, viver tomava razão e o ser humano podia estar Ver LÉVI-STRAUSS, Clau-
em paz com seus espíritos. de - O Pensamento Selva-
gem, Campinas (SP), Papí-
O homem selvagem, não por acaso, concebe o universo como dotado rus, 1989, p.25)
de uma ordem, onde “cada coisa sagrada deve estar em seu lugar” (LÉVI-
STRAUSS, 1989, p. 25), sob pena de que todo o universo seja destruído. Ver LÉVI-STRAUSS p. 26.

Nesse sentido, o pensamento selvagem diferencia-se da ciência porque, en- No sentido empregado por
quanto esta trabalha com diferentes níveis de determinismos, o pensamen- Lévi-Strauss, de homem
to selvagem postula um determinismo global e integral. Entretanto, essa que vive imerso na natu-
reza, que se vê como parte
busca de uma ordem nas coisas é não apenas comum à magia (enquanto dela.
lógica do pensamento selvagem) e à ciência moderna, como é também uma
expressão antecipatória da primeira sobre a segunda. Essa busca em estabe-
lecer alguma espécie de
Disso não se pode concluir, no entanto, que o pensamento selvagem, ordenamento também é
como a magia, tenha gerado uma espécie de pré-ciência, no sentido de uma comum à arte.
ciência atrasada ou rudimentar.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 71
Como muito bem observou Claude Lévi-Strauss,
Não apenas por sua natureza, essas antecipações podem às vezes ser co-
roadas de êxito; elas também podem antecipar duplamente; em relação
à própria ciência e aos métodos e resultados que a ciência só assimilará
num estádio avançado de seu desenvolvimento, se é verdade que o ho-
mem enfrentou primeiro o mais difícil, ou seja, a sistematização no plano
dos dados sensíveis, aos quais a ciência voltou as costas por muito tempo
e que apenas começa a reintegrar em sua perspectiva. (LÉVI-STRAUSS,
1989, p. 27).

O pensamento mágico é muito mais outra forma de abordar a realida-


de e de construir conhecimento. Liga-se à ciência como um correspondente
e está, em certo sentido, muito mais próximo da arte. Tanto quanto a ciên-
cia, o pensamento mágico foi constituído a partir de milhares de anos de
observações minuciosas e de experimentações metódicas, incontáveis vezes
repetidas, resultando de um longo processo de acumulação de saberes.
Ciência e pensamento mágico (ou mítico, como veremos adiante) são
duas formas diferentes de abordagem da realidade pelo ser humano, e não
dois estágios evolutivos do conhecimento. Diferem entre si porque, enquan-
to a magia aborda a natureza a partir da intuição sensível, com a ajuda da
imaginação, a ciência se aproxima dela de modo deslocado. Em sua busca
de conhecer a realidade, o mágico move-se por sentimentos estéticos. Ele
pressupõe que características externas dos seres, como forma, cor ou chei-
ro, correspondam a propriedades interiores desses mesmos seres. A partir
de critérios assim estabelecidos, o homem dito primitivo define classifica-
ções, hierarquias e ordenamentos.
É preciso afastar definitivamente a ideia de que os ritos, e os mitos
dos quais os ritos derivam, assim como as técnicas da magia, sejam fabu-
lações e procedimentos alheios à realidade. Pelo contrário, são processos de
conhecimento do mundo real e de intervenção no mundo real; são maneiras
de perceber e pensar o sensível, no plano do sensível, de especular sobre o
existente a partir de como ele se apresenta aos nossos sentidos, entendendo
o mundo sensível como expressão do mundo espiritual, esferas de um mes-
mo universo, diferentes, porém, indissociáveis.
Em seu livro Sociologia e Antropologia, Marcel Mauss refere-se à ma-
gia como uma “gigantesca variação do tema do princípio de casualidade”
(MAUSS, 1974, p. 93), desenvolvida através de raciocínios analógicos. Para
esse antropólogo, o pensamento mítico como que se desdobrou em dois se-
guimentos: um em direção ao animismo e à religião e outro em direção à
magia, às técnicas e aos saberes práticos, que foram responsáveis por inú-
meras contribuições às ciências modernas. Segundo ele,
...certas técnicas de finalidades complexas e de ação incerta, métodos
delicados, como a farmácia, a medicina, a cirurgia, a metalurgia, a es-
maltação (as duas últimas são as herdeiras da alquimia) não poderiam
ter vivido se a magia não lhes tivesse oferecido apoio e, para fazê-las
perdurar, não as tivesse, em suma, quase absorvido. Encontramo-nos
no direito de dizer que a medicina, a farmácia, a alquimia, a astrologia
desenvolveram-se na magia, ao redor de um núcleo, ao máximo reduzi-
do, de descobertas técnicas. (MAUSS, 1974, p. 169).

Enquanto, nas sociedades ditas primitivas, os sacerdotes envereda-


vam em problemas metafísicos, os mágicos tinham sua atenção chamada
pelo concreto, dedicando-se a conhecer a natureza. Depressa organizaram
índices dos mais diferentes seres e fenômenos, gerando os primeiros reper-

72 ANTROPOLOGIA DA ARTE
tórios que viriam a, no futuro, alimentar diversas ciências, como a astro-
nomia, a física, a medicina, a botânica, a química, a matemática etc. Nas
grandes civilizações orientais e até mesmo na Europa, pelo menos até o
Renascimento, magia e ciência coexistiram como conhecimentos válidos no
corpo e na mente dos mesmos sábios. Assim é que alquimistas eram tam-
bém químicos, e astrólogos, astrofísicos. “As matemáticas por certo muito
deveram às pesquisas sobre os quadrados mágicos ou sobre as proprieda-
des dos nomes e das fi guras.” (MAUSS, 1974, p. 171).
O princípio mais geral observado na natureza pelos alquimistas, se-
gundo Mauss (1974), é o de que “um é o todo, e o todo é um” (MAUSS, 1974,
p. 102), no sentido de que o todo está na menor parte de um e de que essa
menor parte contém o todo. A partir desse princípio, o mundo é concebido
como um ser único, como um grande ser vivo, que é composto de partes
indissociavelmente ligadas e no qual tudo se assemelha e se toca. Desse
princípio mais geral, derivam todas as demais leis da magia.
O conjunto de suas variações pode ser sintetizado em três leis princi-
pais, nomeadas pelos antropólogos como leis da magia simpática, estando
subentendido no termo simpatia, o termo antipatia, como seu contrário.
São elas: a lei da contiguidade ou do contato; a lei da similaridade, da seme-
lhança ou similitude; e a lei do contraste ou do contrário. Cabe observar que
essas leis correspondem a leis da percepção estética e funcionam tanto na
arte quanto na comunicação de um modo geral, sendo que, na magia, elas,
não se limitando ao campo dito subjetivo, aplicam-se ao campo dos fatos Há o costume entre os
romeiros que vão aos
considerados pela ciência como objetivos. santuários de Canindé
Pela lei da contiguidade ou do contágio, os seres (pessoas ou coisas) e Juazeiro do Norte, no
Ceará, de passarem por
colocados em contato permanecem unidos, mesmo depois de separados. Fortaleza em seus trans-
Não apenas cada parte de uma pessoa (ou de uma coisa), mas também portes (antigamente ca-
toda e qualquer coisa ou pessoa que com esta entrou em contato, mesmo minhões ‘paus-de-arara’ e
atualmente ônibus ‘semi-
depois de separada dela, permanece a ela ligada. Uma mecha de cabelo,
-leitos’) para conhecer o
um pedaço de unha, uma gota de suor, mas também um retalho de roupa, mar. Geralmente fazem
uma pegada, uma impressão digital, uma cadeira onde ela sentou-se, uma uma parada à beira-mar,
pessoa muito chegada, um fi lho, um cônjuge, um parente próximo, tudo molham os pés nas ondas
que alcançam o começo
está a ela ligado. Agindo sobre qualquer um desses elementos se está agindo da praia e enchem muitas
sobre ela, porque é também algo dela, de sua ânima, de sua energia, da es- garrafas com água salga-
sência de seu ser. Nem mesmo precisa ser muito íntimo ou de contato muito da. Voltam contentes por
levarem consigo uma lem-
frequente, basta haver sido tocado por ela, ter entrado em contato com ela: brança do mar e poderem
restos de comida, um copo usado ou coisas semelhantes. mostrá-la aos parentes e
amigos que fi caram.
Pela lei da similaridade ou similitude, o semelhante evoca e produz o
semelhante, atua sobre e cura o semelhante. Do mesmo modo que, na se-
miótica, o ícone está para o objeto representado, assim como o índice está
para o seu referente, na magia simpática, “a imagem está para a coisa como
a parte está para o todo” (MAUSS, 1974, p. 97)
Nos processos mágicos, muitas vezes, as leis da contiguidade e da
similitude se fundem e atuam concomitantemente através de metáforas e
imagens outras, as mais diversas. Assim é que o mar pode ser representado
por uma garrafa contendo água salgada, a chuva por um “pau de chuva”, o
amor por um laço etc.
"Pau de chuva"
Pela lei da contrariedade, o contrário atua sobre o contrário, ou seja, Trata-se de um grande
se o semelhante atrai o semelhante, afasta seu contrário. Daí tem-se a sim- cilindro de bambu ocado
patia e a antipatia como noções complementares. O “pau de chuva” chama contendo sementes que,
quando virado vertical-
a chuva e afugenta a seca. Porém, se o caso é afastar a chuva, tem-se que mente, produz um som
trabalhar com seu contrário, isto é, com algo que represente a seca. O que semelhante ao da chuva.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 73
difere é o ponto de partida, que, nesse caso, não é atrair a chuva, mas afu-
gentá-la. Então, o mais aconselhável talvez seja usar o elemento fogo, quem
sabe uma fogueira, para evocar o sol, por exemplo.
Depois de descrever o que ele chamou de leis ou princípios da magia
simpática, Mauss (1974), como Frazer já havia feito anteriormente em O Ramo
de Ouro (FRAZER, 1982, p. 34), as qualifi ca como “uma série de formas va-
zias, ocas, de resto sempre mal formuladas, da lei da causalidade” (MAUSS,
1974, p. 105). Reconhece, entretanto, logo em seguida, que os mágicos, em
razão de suas observações e especulações sobre as propriedades concretas
de diferentes elementos da natureza, assim como acerca das relações de cau-
salidade entre eles, chegaram a estabelecer rudimentos de leis científi cas.

1. O que faz parecer e o que faz diferenciar a magia e a ciência?


2. O que aproxima e o que distancia a magia da arte?

74 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Capítulo 2
O Mana

A magia, sempre e de alguma maneira, está ligada ao coletivo. En-


quanto encenação de mitos, ela refere-se à reprodução de narrativas asso-
ciadas às origens sociais dos grupos nos quais acontece. A uma primeira
vista, trabalha pela manutenção da ordem coletiva original, embora de modo
sempre renovado. Entretanto, por uma série de acontecimentos “extraor-
dinários”, essa ordem “natural” das coisas é alterada – comportamentos
mudam, catástrofes acontecem, ciclos naturais se alteram, seres anormais
aparecem, produzem- se rupturas –, o que os mágicos procuram atribuir a
uma força excepcional, produzida ela também por seres excepcionais. Ver LÉVI-STRAUSS, Clau-
de - O Pensamento Selva-
Essa força excepcional, que os mágicos dizem ter um poder mágico, gem, Campinas (SP), Pa-
uma magia, aparece entre os mais diversos povos com diferentes designa- pírus, 1989. Páginas 142
ções. Na Polinésia, toma o nome de mana; no norte da Indochina, de deng; a 145.
em Madagascar, de hasina; entre os iroqueses da América do Norte, de
Mana
orenda; entre os algonquin também da América do Norte, de manitu; na Me- A palavra será usada da-
lanésia, de kramât; no México e na América Central, de naual; na Austrália, qui em diante como uma
de boolya; na Nova Gales do Sul, de koochie etc. denominação geral in-
cluindo todas as suas
A qualidade ou propriedade mágica, seja de um objeto (natural ou equivalentes.
artifi cial) ou de um ser vivo (vegetal, animal ou mesmo de uma pessoa),
advém, geralmente, de características aparentemente fortuitas, raras ou
paradoxais, como o de vegetais com formas humanas. No caso de objetos,
pode-se exemplifi car com aqueles de formatos inusitados ou descobertos
fora dos locais costumeiros, meteoritos, pedras furadas, fósseis de animais
pré-históricos etc. No caso de pessoas, são exemplos: defi cientes físicos ou
mentais, gêmeos, bebês nascidos precocemente, crianças que falaram antes
do tempo ou que tinham comportamentos outros estranhos na barriga da
mãe, mulheres ou homens que alcançam idades muito avançadas etc.
Na concepção anímica do pensamento mágico, em que a natureza é
manifestação do divino e cada ser é dotado de alma, o mana é especialmen-
te uma força espiritual, embora não possa ser confundido com o espírito de
modo geral. Isso porque, se ele está presente nos homens e nas mulheres,
mas também entre os bichos e as plantas e mesmo nos minerais, ele está
desigualmente distribuído. Entre os mortos, têm mana apenas os espíritos
dos chefes de clãs ou daqueles indivíduos nos quais, em vida ou por mi-
lagre após a morte, o mana manifestou-se. Os demais, mesmo dotados de
espírito, não possuem mana e “se perdem na multidão das sombras vãs”
(MAUSS, 1974, p. 139). Paradoxalmente, ele pode estar ligado a uma pedra
que tenha um formato especial ou a um objeto pertencente a alguém dota-
do de poderes mágicos.
No mundo da magia, o mana tem um sentido polivalente, porque ele
não apenas designa a força, como também o estado e a ação mágica de
algo ou de alguém. Ou seja, o termo pode funcionar tanto como adjetivo,
quanto como substantivo ou verbo. Pode-se dizer que certa pessoa ou certo
objeto tem mana, no sentido em que dizemos que alguém tem carisma, ou

ANTROPOLOGIA DA ARTE 75
seja, que é carismático, imantado, no caso, impregnado de mana. Em outro
sentido se pode dizer que alguém age com mana, ou seja “manamente”, do
mesmo modo como se diz que alguém age magicamente. Finalmente, se
pode referir ao mana de um objeto ou de alguém, assim como ao ato de um
pajé ou xamã impregnar de mana (“manar’)” determinado ser ou objeto.
Mesmo sendo propriedade do objeto, o mana o transcende, dele des-
prega-se. Seguindo os princípios da magia simpática, o mana transfere-se
de ser a ser, de objeto a objeto, de ser a objeto, de objeto a ser, acumula-se,
esvai-se, por contagio, por similitude, por contraste. O mana manifesta-se
materialmente. Toma forma, é visto, ouvido, sentido, tocado. Desprende-se
das coisas feito chama, feito vento, feito nuvem.
Os Huron da América do Norte, que nomeiam o mana como orenda,
o concebem como poder místico, inerente a tudo o que existe na natureza
e além dela.
Os fenômenos naturais, como o temporal, são produzidos pelo orenda
dos espíritos desses fenômenos. Caçador feliz é aquele cujo orenda ven-
ceu o orenda da caça. O orenda dos animais de difícil apreensão é con-
siderado inteligente e maligno. Vêem-se por toda parte, entre os Huron,
as lutas dos orenda, como se vêem, na Melanésia, as lutas dos mana.
Também o orenda é distinto das coisas às quais se liga – e a tal ponto que
pode ser exalado e lançado: o espírito fazedor de tempestades lança seu
orenda representado pelas nuvens (MAUSS, 1974, p. 142).

Esse carisma, essa energia mágica, esse fl uido místico, que na Mela-
nésia se chama mana e os Huron chamam orenda, não pode ser confundido
com alma ou espírito individual, muito menos com força, vigor ou poder
material. É antes uma potencialidade que se manifesta no som que os seres
emitem: no berro dos bichos, no sopro do vento, no farfalhar das árvores,
no marulho da água, no canto dos pássaros e dos xamãs e nas preces dos
sacerdotes. É ele que se manifesta como força nos encantados, nos amule-
tos, nos fetiches, nos talismãs, nos mascotes, nas mezinhas, nos ex-votos,
nos remédios etc.
Diferentemente de outras ideias que presidem o funcionamento lógi-
co da magia simpática, como os princípios do contágio, da similitude e do
contraditório, o mana não é uma categoria do entendimento individual. Ten-
do seu funcionamento condicionado pelo coletivo, sua existência pressupõe
uma crença partilhada socialmente. Melhor dizendo, enquanto os princípios
lógicos sistematizados pelos mágicos podem ser perfeitamente aplicados ao
Ver MAUSS p. 148.
homem moderno, no terreno da comunicação de massas, como já foi mos-
Para os mágicos, esses trado anteriormente, a crença na força mágica (no mana) fi ca cada vez mais
são princípios gerais que restrita a setores da sociedade em que a racionalidade moderna não moldou
se referem ao conjunto da
natureza e não apenas às completamente. Daí que, como afi rma Marcel Mauss, tudo leva a crer que a
leis do pensamento hu- associação de ideias por contágio, similitude e contradição seja algo ineren-
mano. te à espécie humana, como a noção de tempo e espaço, por exemplo.
A noção de mana, porém, faz das associações naturais de ideias pre-
ceitos imperativos, que implicam consequências práticas necessárias e ob-
jetivas. A crença na objetividade dos preceitos gerados por tais associações
de ideias, para torná-los efi cazes, necessita do compartilhamento comuni-
tário, ou seja, que elas sejam reproduzidas na mente do conjunto dos indi-
víduos envolvidos nos rituais de magia. Nesse sentido, se pode dizer que a
magia só existe no coletivo, em sociedade, que ela só tem lugar em culturas
onde a massa dos indivíduos compartilha seu modo de ver o mundo.
Nos rituais mágicos, a comunidade inteira atua, não havendo ofi ciante
único ou protagonistas exclusivos, nem separação atores/espectadores, pal-

76 ANTROPOLOGIA DA ARTE
co/plateia. Neles, toda a comunidade participa ativamente, atua como um
bloco único, por assim dizer, como um só indivíduo, na forma de um grande
corpo social. Referindo-se à dança com sabres das mulheres dayak, uma tri-
bo marítima da Nova Guiné, na ocasião em que os homens se ausentam para
a caça, a pesca ou a guerra, Marcel Mauss nos dá uma magnífi ca descrição:
Anima-se todo o corpo social num só movimento. Não há mais indiví-
duos, que, por assim dizer, são as peças de uma máquina, ou ainda,
os raios de uma roda, uma ronda mágica, dançante e cantante, seria a
imagem ideal, talvez primitiva, mas que com certeza se reproduz ainda
agora nos lugares citados e ainda alhures. Este movimento rítmico, uni-
forme e contínuo, é a expressão imediata de um estado mental em que a
consciência de cada um é monopolizada por um só sentimento, uma só
idéia alucinante – a da fi nalidade comum. Todos os corpos têm o mes-
mo balanço, todos os rostos têm a mesma máscara, todas as vozes têm
o mesmo tom, sem contar a profundeza da impressão produzida pela
cadência, pela música e pelo canto. Vendo em todas essas fi guras a ima-
gem do desejo comum, ouvindo de todas essas bocas a prova da certeza
comum, cada um sente-se, sem resistência possível, aderir à convicção
de todos. Confundidos no transporte de sua dança, na febre de sua agi-
tação, formam um só corpo e uma só alma (MAUSS, 1974, p. 161).

Para que a tribo tenha êxito na guerra, tanto a coragem dos homens
nas armas, quanto o empenho das mulheres na dança são imprescindíveis.
Como imprescindível é que ambos, homens e mulheres, acreditem nos seus
ritos e acreditem na crença de uns nos outros. Só então, a passagem do mana
gerado pela dança das mulheres efetiva-se no corpo dos guerreiros dayak.
Destaque
Atualmente, mesmo em sociedades ditas modernas, como a brasileira,
ocorrem fenômenos semelhantes. Tome-se, por exemplo, o que acontece no
mundo do futebol, durante as Copas do Mundo, quando dezenas de milhões
de brasileiros formam “aquela corrente prá frente”, torcendo freneticamente
pela seleção canarinha, em frente à televisão, acreditando (mesmo incons-
cientemente, tal o fervor com que o fazem) estar contribuindo para o desem-
penho dos atletas como se estivessem presentes ao local dos jogos.
Essa não observância do espaço tridimensional, em que a distância
não impede sua transmissão imediata, coloca o mana e o mundo da magia
em uma dimensão da realidade separada, oculta, por assim dizer, desta-
cada das que costumeiramente percebemos. Sem deslocar-se de todo do
mundo natural, constitui-se, entretanto, como que uma quarta dimensão
do espaço, que se superpõe ao mundo real, unido a ele e, contudo, dele
apartado. Penetrar essa dimensão invisível do real requer poderes e saberes
raros e complexos, que incluem acervos de gestos, palavras e procedimen-
tos, entendimento de princípios e conceitos, assim como de atos formais, co-
nhecimentos completos de substâncias e de conexões entre seres e objetos,
enfi m, o domínio do ofício da magia.

1. Segundo a concepção anímica do mundo, como se explicam as mutações


na ordem natural do universo?
2. Por que se diz que a noção de mana não é uma categoria do entendimen-
to individual?
ANTROPOLOGIA DA ARTE 77
Capítulo 3
O Mágico e sua Peformance

O mágico é sempre alguém especial dentro da comunidade, alguém


particularmente vocacionado para viver experiências místicas. Pode ser dis-
tinguido por certos atributos ou sinais. Em certos casos, a magia aparece
como atributo de famílias inteiras detentoras de determinados segredos e
receitas, assim como de castas completas, no caso da Índia, onde a dos ksa-
triya detinha o privilégio.
Particularmente inclinadas à magia são fi guras consideradas estra-
Ver MAUSS p. 56. nhas ou excêntricas, que chamam a atenção por defeitos físicos ou ha-
bilidades raras, causando temor, piedade ou repugnância, como aleijados
Ver ELIADE 1976, p. 25.
em geral, corcundas, cegos ou, ao contrário, ventríloquos, malabaristas,
“não se trata, de maneira acrobatas, farsantes etc. Em muitas sociedades, a magia aparece associada
nenhuma, de alucinações a profi ssões que guardam com ela alguma correspondência, como a do mé-
e sua fabulação se atém a
modelos tradicionais coe- dico, a do ator, a do coveiro, a do ferreiro, a do pastor, a do barbeiro, sendo,
rentes, bem articulados e nesse caso, o poder mágico atributo da corporação, mais que do sujeito. Em
de um conteúdo teórico direção semelhante, são considerados como presumivelmente mágicos, gru-
assombrosamente rico.”
pos errantes que cruzam povos sedentários, como ciganos e mercadores.
Na Sibéria, assim como ao norte do Oriente asiático, onde tomam o
nome de xamãs, os mágicos são recrutados tanto por transmissão heredi-
tária de saberes, quanto por vocação espontânea. Embora alguns se tornem
mágicos por vontade própria ou por designação de seus clãs, são conside-
rados, nesses casos, mais frágeis do que aqueles que recebem o ofício por
herança ou por chamamento dos deuses.
De todo modo, para serem reconhecidos como verdadeiros xamãs, os
candidatos carecem passar por um processo de iniciação que inclui um
duplo aprendizado: um primeiro de natureza extática, no qual procura de-
senvolver a capacidade mediúnica e imaginativa (transes, sonhos, delírios,
danças, jejuns prolongados etc.) e um segundo de natureza tradicional, no
qual são aprendidos técnicas de magia, ritos, nomes e atributos dos espí-
ritos, códigos secretos, mitologia e genealogia do clã, alquimia, astrologia e
demais saberes ocultos.
Referindo-se aos sonhos xamânicos experimentados durante os pro-
cessos de iniciação, Mircea Eliade é enfático: “no se trata, em ningún caso,
de alucinaciones y esta afabulación se atienen a modelos tradicionales co-
herentes, bien articulados y de un contenido teórico asombrosamente rico”
(ELIADE, 1976, p. 30).
Está claro, portanto, que, embora inclinado a viver experiências mís-
ticas, o mágico é um profi ssional que detém um saber técnico; ele é senhor
de um ofício, de instrumentos de trabalho, de um acervo de utensílios, de
preceitos, de receitas e de ritos. A esse acervo, ele recorre nas mais dife-
rentes situações, para solucionar os mais diversos problemas com que se
depara durante sua lida, como um bricoler. No seu ofício, o mágico pode
lançar mão de colaboradores, de espíritos auxiliares, que em muitos casos

78 ANTROPOLOGIA DA ARTE
são espíritos de animais, ou de entidades particulares, que dão nome aos
terreiros. Cabe aqui o exemplo dos homens-animais e, particularmente, do
homem-jaguar, entre os Tukano do alto Amazonas, em que o espírito daque-
le animal funciona como um auxiliar dos pajés, ou ainda o caso do espírito
do cangaceiro Pai Francisco – ex-membro do grupo de Lampião, que tem
função idêntica no terreiro de Umbanda, por nome Rei do Cangaço, no bair-
ro Presidente Kennedy, em Fortaleza –, que funciona como entidade auxiliar
da Mãe de Santo Maria Linduína Souza, a Linduína do Cangaço.
O rito mágico exige, de seu oficiante, uma série de preparativos, cui-
dados e ritos preliminares que, algumas vezes, podem se estender às suas
famílias e aos seus grupos sociais, assim como à pessoa ou ao grupo de
pessoas objeto do rito, se for o caso. Há prescrições no sentido comporta-
mental, como a observação da castidade, do isolamento e do jejum, assim
como relativas a pequenos ritos, como o de ungir-se ou o de fazer abluções
prévias, ou ainda em relação ao visual adequado, incluindo trajes, pinturas,
máscaras, coberturas de cabeça etc. Além disso, e mais importante ainda,
é preciso manter-se concentrado e circunspecto: presente na fé.
Destaque
No ano de 2003, pude acompanhar os preparativos do terreiro de um-
banda Pai do Cangaço, citado acima, para os rituais da Festa de Iemanjá,
na Praia do Futuro, em Fortaleza. A Filha de Santo escolhida para incorpo-
rar a entidade, na semana anterior à festa, observou um período de retiro,
jejum e abstinência sexual. Para o ritual do dia, vestiu-se de acordo com o
figurino de Iemanjá, sendo acompanhada de um séquito de meninas traja-
das de branco com pequenas grinaldas na testa, ao modelo dos trajes católi-
cos de anjos ou de 1ª comunhão. Durante toda a cerimônia, ela manteve-se
absolutamente concentrada e em posições correspondentes ao imaginário
da entidade, embora os rituais tenham se prolongado durante muitas horas
seguidas sob a luz ardente do sol, à beira-mar.
O mágico executa seu rito, recorrendo a uma performance absoluta-
mente estudada. Seus gestos são bruscos, suas palavras cortantes, há uma
tensão que perpassa todo o seu corpo. Muda o ritmo usual da fala, joga com
as palavras, usa códigos incompreensíveis. Mostra certo nervosismo, pode
cair em transes nervosos, crises de histeria, estados catalépticos, êxtases,
provocados ou não. Parece estar fora de si e transitar, num estado anormal,
por uma outra dimensão do real.
Ao mesmo tempo, ao executar seus procedimentos, o mágico demons-
tra uma habilidade manual extraordinária e completo domínio sobre si
mesmo. Sua movimentação é extremamente formal e refinada, repleta de
preciosismo. Ele trabalha com os mais diferentes materiais: madeira, metal,
barro, cera, mel, gesso, papel mascado, plástico etc. Esculpe, modela, pinta,
desenha, borda, tricota, tece, grava, marcheteia. Manipula essências, mezi-
nhas, raízes etc. Fabrica manipanços, escapulários, talismãs, amuletos etc.
Durante sua performance, o corpo do mágico permanece imantado.
De seus movimentos, de seus gestos (sejam os mais largos, ou os mínimos,
como o piscar de olhos), de seus próprios pensamentos, emanam eflúvios
que contagiam o mundo da natureza e dos espíritos. Seus poderes especiais
o fazem infenso à lei da gravidade; por isso, pode elevar-se no ar, deslizar
sobre o chão, flutuar, transportar-se para onde queira. Tem, ainda, o poder
da ubiquidade: é capaz de dilatar seu próprio corpo e de realizar movimen-
tos impossíveis para os outros.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 79
A ubiquidade do mágico se exerce a partir do deslocamento de sua
alma. Acredita-se, ainda hoje, nas sociedades animistas, que as almas dos
mágicos deixam seus corpos, durante o sonho, e passeiam sob formas de
moscas ou de borboletas. Um dos sinais reconhecíveis desse deslocamen-
to é o de uma mosca sobrevoar-lhe a boca enquanto dorme. Mas a alma
do mágico pode também deixar seu corpo durante uma sessão espírita e
deslocar-se para agir fi sicamente, como um duplo. Marcel Mauss (1974) cita
o exemplo de um feiticeiro dayak que se transportava para procurar seus
De acordo com Marcel
Mauss, acreditava-se que remédios. Só aparentemente ele continuava presente na sessão; os assisten-
isso acontecia inclusive tes o viam, mas, de fato, ele estava ausente de corpo e alma.
com as almas vulgares
(Ver MAUSS, 1974, p. Especialmente em sua forma xamânica, a magia inclui o estado de
64). Mas, ao contrário das possessão. O feiticeiro cede seu corpo, anulando sua individualidade, à
outras almas, no caso do incorporação de uma personalidade, de certa maneira, a ele estranha. O
mágico, a alma se solta ao
seu comando.
mágico é como que possuído por uma entidade. Entretanto, as entidades
a serem incorporadas, quase sempre arquetípicas de algum modo (mesmo
Ver MAUSS p. 65. que de maneira embrionária), subjazem no inconsciente do indivíduo. Cabe
Penso também no dom de
ao xamã, por processos extáticos, extraí-las e ampliá-las, dando-lhes forma
ubiquidade de que se fala com seu próprio corpo: ação, voz, gesto, movimento, expressão facial etc.
sobre certos santos católi-
Cada mágico, cada xamã, cada médium, cada pai ou mãe de santo
cos como Santo Antônio e
São Francisco. têm suas entidades, seus espíritos, seus orixás, que incorporam e que, de
algum modo, trazem dentro de si e são capazes de exteriorizar. Se eles são
Claro que há inúmeros possuídos, conhecem o espírito que os possui. Se a incorporação acontece
casos de falseamento, si-
mulações, charlatanismo em transe, ela se realiza de modo controlado, provocado, consciente. De al-
etc. guma maneira, dominam o processo de sua própria possessão, dirigem de
dentro seu processo, tornam mais lentos ou aceleram os passos da dança,
diminuem ou apressam o ritmo da música, alternam a coreografi a, usam
o fumo, a bebida, o perfume etc. “Em suma, a qualidade de ser possuído
é uma qualidade profi ssional do mágico não apenas mítica, mas física e é
uma ciência da qual os mágicos têm sido desde muito tempo os depositá-
rios” (MAUSS, 1974, p. 69).
Em sua atuação, o mágico trabalha com o corpo e o espírito altera-
dos, seus gestos são solenes, sua voz aparece modifi cada, soa como se não
saísse dele, sua linguagem não parece humana, assemelhando-se a um
código cifrado por deuses. Trabalha com toda concentração. Em nenhuma
hipótese, pode ser interrompido, sob pena de quebrar-se a magia.
Os processos extáticos nos transes xamânicos, em todo caso, envol-
vem não apenas o mágico, mas o conjunto dos circunstantes. Desenvolvem-
se em ritos nos quais participam não apenas o feiticeiro e seus clientes,
mas quase sempre toda uma coletividade. A música contínua e repetitiva,
os mantras cantados, as defumações, a coreografi a circular, os fl uidos di-
versos, entre outras técnicas, levam o grupo dos circunstantes a comungar
uma atmosfera espiritual e fi siológica única.
Durante o rito mágico, ofi ciante e coro, sacerdote e fi éis, feiticeiro e co-
munidade formam um corpo único. Mas embora ele, mágico, possa sozinho
alcançar o transe e desejar, de fato, obter o resultado mágico pretendido por
mais difícil que se apresente, sua força, seu mana, seu poder mágico, acaso
ele hesite, duvide ou fraqueje, sustenta-se no coletivo, na ânsia da comuni-
dade para conseguir o objetivo projetado.
De certa maneira, a atuação do mágico situa-se entre o dirigir e o ser
dirigido pela coletividade. Durante o rito, ele conduz e é conduzido do êxtase
à catarse, do estado de exaltação absoluta ao de serenidade, do descomedi-
mento ao equilíbrio, pelo apaziguamento das paixões. Em torno do mágico,
todo o grupo coloca-se em movimento, movido por uma vontade única.

80 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Trata-se de todo um meio social que se emociona só porque num de seus
setores realiza-se um ato mágico. Forma-se em volta desse ato um cír-
culo de espectadores apaixonados, que o espetáculo imobiliza, absorve e
hipnotiza, que, tanto quanto espectadores, sentem-se também atores da
comédia mágica, como o coro no antigo drama (MAUSS, 1974, p. 160).

1. Nas sociedades tradicionais, qualquer indivíduo pode ser um mágico (ou


um xamã)?
2. O mágico é um ilusionista, ou seja, suas técnicas estão voltadas para
iludir os sentidos dos circunstantes? Ou, de fato, através de rituais extá-
ticos coletivos, ele consegue proezas de outro modo inconcebíveis?

ANTROPOLOGIA DA ARTE 81
Capítulo 4
Máscaras Rituais

As mascaradas, enquanto ritos coletivos, ligam-se, costumeiramen-


te, à renovação da vida comunitária: não apenas aos laços da comunidade
consigo mesma, mas dela com a natureza e com o universo. Até hoje, nas
sociedades tradicionais africanas e ameríndias, o uso ritual das máscaras
está relacionado aos ritos agrários, de morte e de iniciação, quando não di-
retamente à encenação dos mitos de origem do universo.
Uma das primeiras funções da máscara é a de apagamento do indiví-
duo. Nos rituais de iniciação da África Ocidental, entre os Komo e os Nama
Koro, as danças mascaradas relembram que “o adolescente deve morrer na
sua condição anterior para nascer na sua condição de adulto” (DIETER-
LEN, 1988, p. 28). Elas funcionam como uma via de comunicação entre a
vida e a morte, um ponto de ruptura da ordem cósmica, uma abertura entre
planos diferentes da realidade.
As máscaras rituais quase nunca se restringem a um adereço de ros-
to, aparecendo na forma de coberturas de corpo inteiro. Nos ritos de reno-
vação cósmica, geralmente, elas não representam uma entidade única, mas
procuram expressar o conjunto de elementos que estão incluídos no mito
fundador do universo de uma determinada sociedade. Germaine Dieterlen,
em pesquisa desenvolvida na África Ocidental, antigo reino de Bambara,
região do atual Mali, margens do Rio Níger, faz uma constatação muito re-
veladora nesse sentido:
Nas grandes sociedades de iniciação Bambara, quando um iniciado fala
da “cabeça de Komo”, ele entende, com isso, um conjunto que constitui
a máscara propriamente dita: a cabeça que toma emprestado seus ele-
A citação tão extensa mentos morfológicos ao crânio estreito da velha hiena, associado ao co-
justifi ca-se, como o leitor
nhecimento profundo, à boca (goela) do crocodilo, que carrega o primeiro
verá, porque, mais adian-
te, estabelecerei uma
ser por entre a maré no arco da criação, e aos cornos do antílope que
correspondência entre simbolizam, por suas extremidades pontudas, o brilho inicial da criação;
essa máscara bambara a túnica feita de bandas de algodão sobre as quais são fi xadas as plu-
e a máscara do Jaraguá, mas de abutre carregadas de 266 signos da criação; as patas de elefante,
tal qual aparece nos Bois fi xadas à cabeleira do dançador simbolizando os pilares, as vigas ou os
e Reisados brasileiros. esteios do universo; o apito em ferro ou em couro evocando, por seu grito
Trata-se, como verão os estridente, o sopro inicial da criação; o estilete de taumaturgia [magia],
leitores, no caso da más-
instrumento por excelência das execuções rituais etc. Enfi m, a cabeça
cara do Jaraguá, de uma
ressignifi cação cômica de
de Komo, dito komo ku, designa igualmente o portador de todos esses
uma antiga máscara ritual objetos e a dança que esse portador efetua. (DIETERLEN, 1988, p. 27)

De um modo mais geral, porém, como dissemos anteriormente,


elas estão voltadas para a anulação do indivíduo. Trata-se, num primeiro
momento, de máscaras neutras, quase sempre sem abertura de olhos ou
traços de identifi cação, cujos invólucros ocultam o corpo dos portadores.
Em regiões do mundo tão distantes como a Sibéria, a América do Sul e a
África, máscaras de diferentes materiais – até mesmo uma franja espessa de
cabelos ou uma cortina de fitas sobre o rosto – anulam a visão do xamã.

82 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Mais adiante, veremos
que esse alheamento nun-
ca é completo.

Tanto é que, muitas vezes,


quando não utiliza a más-
cara, o mágico lança mão
do recurso da ventriloquia
para causar essa mesma
sensação.

Ver KIRBY p. 49.

Máscaras Waurá MT

Por meio dessas máscaras, procura-se apagar a visão humana, trans-


portando os atores do rito à dimensão do invisível. Nesse plano, eles se
olham apenas a si mesmos, tornando-se invisíveis uns aos outros. É daí
que, por ocasião dos transes coletivos, dançam e cantam durante toda a
noite, evitando se colocarem de frente uns aos outros e se olharem nos
olhos. Isso porque, embora eles, os xamãs, estejam ali durante os rituais, o
estão numa espécie de presença ausente, em uma dimensão outra que não
a dos mortais. Encontram-se, no caso, voltados para dentro de si próprios,
não tomando conhecimento do que acontece no mundo em volta.
Em princípio, trata-se de máscaras sem traços identifi cadores, con-
cebidas para evidenciar o anonimato de seu portador, pois fazem com que
sua voz não pareça vir de parte alguma. Compreende-se que assim seja,
porque os mitos são narrativas de autoria anônima e coletiva, comumente
concebidas como de origem divina.
Essa ausência de traços das máscaras, aqui chamadas de ‘neutras’,
entretanto, está longe de se constituir numa inexpressividade ou até mesmo
num vazio no sentido literal. Pelo contrário, constitui-se muito mais numa
potência, numa disponibilidade total para a incorporação de signifi cados,
numa base para toda expressividade possível.
O uso de máscaras-vestimentas, confeccionadas com materiais os
mais diversos retirados da natureza e trabalhados posteriormente (pluma-
gens, peles, couros, ossos, dentes etc. animais; sementes, madeira, fi bras,
folhas e tecidos vegetais; pedras, conchas etc. minerais) é comum entre
os índios brasileiros. Para os Chamacoco e os Bororo da Amazônia, assim
como para os Tapiripe e os Caraja do Brasil Central, essas ‘coberturas de
corpo todo’, sem traços ou abertura de olhos, têm a função de criar anoni-
mato. Elas são utilizadas no curso de ritos durante os quais são invocados
espíritos vários dos animais, assim como (no caso dos Tapiripe) dos “hós-
pedes maus da fl oresta e [d]os fantasmas dos mortos que restam na terra
dentro das vilas abandonadas até que sejam transformados em animais”
(KIRBY, 1988, p. 42).

ANTROPOLOGIA DA ARTE 83
Como é costume entre os povos de cultura anímica, os Tukano da
fronteira Brasil/Colômbia acreditam que animais e humanos compartilham
uma mesma natureza espiritual. Por isso, os animais podem trocar suas
peles e couros por formas humanas e viver entre os homens em suas al-
deias. Do mesmo modo, através de máscaras-vestimentas, que figurem ani-
mais, pode ser feita a passagem inversa. Essa metamorfose, homem/ani-
mal, acontece durante danças cerimoniais em que são utilizadas máscaras
em estilo geométrico.
Enquanto a máscara neutra faz com que, tão somente, a partir da
performance de seu portador, se possa identificar a entidade nela incorpora-
da, a máscara geométrica traz inscritos em si os motivos de sua figuração.
Entre os Tukano, como vimos anteriormente, essas inscrições aparecem
numa espécie de código abstrato. Em suas máscaras, geralmente figurações
de animais, tais inscrições costumam aparecer em torno da boca. Buscam,
desse modo, indicar que o som advindo da máscara é a voz do espírito do
animal por ela figurado.

Máscara Baule, Costa do Marfim

Distanciando-se da mimese naturalista, o geometrismo acentua a


superfície das máscaras e, praticamente, anula seus volumes, além de reduzir
a identificação do espírito manifestado a traços mínimos. No caso dos Tukano,
são conhecidos os homens-jaguar, figurados por máscaras em que o animal é
identificado por traços resultantes de um sofisticado processo de simplificação e
abstração de sua figura.

84 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Cabe aqui tratar, mesmo que de passagem, de uma questão frequente-
mente discutida em relação às máscaras: sua condição ou não de disfarce.
Ou seja, em que medida a máscara é um meio de ocultamento ou de revela-
ção? Há quem diferencie máscara de disfarce, como Elie Konigson (1988) ao
tratar da máscara do demônio na cena da Idade Média. Para ele, a máscara
propriamente dita é, ela mesma, um objeto mágico, dotado de poder mágico,
que substitui a entidade que figura, sendo, ela própria, a entidade e não seu
disfarce. Dá, como exemplo, “a efígie real - que substitui o rei morto du-
rante o breve interregno que separa sua queda, seus funerais, e a ascensão
do novo rei ao trono – marcando a continuidade do poder real para além da
morte dos reis. Nesse caso é uma máscara ritual ao mesmo tempo religiosa
e social e em alguns casos um disfarce” (KONIGSON, 1988, p. 103).
Para Konigson (1988), todas as outras máscaras – entre as quais
inclui as máscaras neutras, as de animais, as grotescas, as de “homens
selvagens” e as do diabo – não seriam máscaras propriamente ditas, mas
disfarces. Isso é porque, tais “máscaras” não estariam ligadas, por laços
especiais, a ritos codificados, a interditos ou a seus portadores.
Entretanto, como já vimos, se tal observação tem pertinência aplicada
à cena medieval europeia, perde o propósito quando o foco se concentra nas
sociedades aborígenes da América do Sul. Nessas sociedades, as máscaras
rituais são disfarces e máscaras a um só tempo: disfarces, porque meios de
apagamento da identidade de seus portadores e porque formas encantadas
dos deuses, ou seja, elas ainda não são os deuses propriamente, mas seus
disfarces; máscaras, porque identidades que tomam corpo durante os ritos,
receptáculos de entidades metafísicas, ou seja, elas mesmas são objetos
sagrados, carregados de poderes mágicos.
Isso fica claro entre os astecas, para quem “os disfarces se chamam
nahualli (...), derivação lingüística de nahual, termo que significa feiticeiro-
transformador” (KIRBY, 1988, p. 47). Quando em seus rituais se quer rea-
firmar uma presença humana interior, a máscara é posta de lado; usa-se a
pintura de rosto. O mesmo procedimento aparece também entre os xamãs
siberianos, que utilizam com frequência o recurso de banhar com fuligem
ou cobrir o rosto com os cabelos.
O mágico, ao apagar sua própria personalidade através da máscara,
para personificar um deus, joga um papel, como o ator teatral. Entretanto,
não o faz arbitrariamente, já que incorpora um arquétipo coletivo, uma en-
tidade concebida pela tradição. Dentro desses limites, ao construir seu per-
sonagem, ele exerce sua liberdade criativa no âmbito do sistema simbólico
de uma determinada cultura.
Na Grécia clássica – para alguns autores, é onde, pela primeira vez
no Ocidente, o teatro se destaca do rito – a figuração canônica dos deuses
tem por modelo imagens antropomórficas ligadas a ideais de perfeição do
corpo humano, beleza, juventude, força, equilíbrio, proporcionalidade etc.
Entretanto, não apenas Dioniso, o deus das metamorfoses, como outras
potências divinas, entre elas, Górgona e Ártemis, figuram ou operam atra-
vés de máscaras.
Não por acaso, dessas máscaras rituais, especialmente da máscara de
Dioniso, surge a máscara teatral, tão estreitamente ligadas, entre os gregos,
quanto o são o teatro e o rito, por ocasião dos grandes concursos dramáti-
cos de Atenas. Tais concursos, como se sabe, que aconteciam por ocasião
das festas em louvor a Dioniso, tinham caráter de cerimônias sagradas e
faziam parte das celebrações de seu culto. Exatamente de suas encenações

ANTROPOLOGIA DA ARTE 85
rituais, surge, nas palavras de Jean Pierre Vernant e Françoise Frontisi
Ducroux, “un genre littéraire où le masque n’est qu’un accessoire, peut-
être secondaire, destiné à résoudre des problèmes d’expressivité tragique...
” (VERNANT; DUCROUX, 1988, p. 19), no caso o teatro em sua forma grega,
digo eu. Daí, para esses autores, haver a necessidade e a possibilidade de
distinguir máscara teatral de máscara ritual: a máscara do herói trágico
(Édipo, Agamenon etc.), que o ator usa para reviver fi ccionalmente os fatos
do passado, e a máscara de Dioniso (por exemplo), que o sacerdote usa para
incorporar essa entidade divina em transe extático.
Vernant e Ducroux (1988), no estudo sobre as máscaras gregas, traba-
lham ancorados em divindades – Górgona, Ártemis e Dioniso – que mantêm
relações distintas com elas. Começam por uma entidade, no caso a Górgo-
na, ela mesma é mascarada e atua através de máscaras. Passam a Ártemis,
uma deusa que, sem fi gurar com máscara, opera em seus cultos, reitera-
damente, através dela. Por fi m, chegam a Dioniso, a divindade da máscara
por excelência. No confronto entre essas divindades e suas relações com as
máscaras, surgem diferenças e aproximações que nos ajudam a esclarecer
algumas velhas questões e lançar novas dúvidas sobre o lugar da máscara,
não apenas no âmbito religioso da Grécia antiga, como também, e em certa
medida, no universo do rito e da arte de um modo mais amplo.
Górgona apresenta-se como uma máscara feminina de feições mons-
truosas. Trata-se de um ser terrível e amedrontador, embora em sua versão
grotesca – quando o terror aparece misturado ao sexo – torne-se risível.
Jean Pierre Vernant, um dos maiores especialistas franceses em cultura
grega, assim descreve sua carantonha:
A cabeça, larga, arredondada, evoca uma face leonina, os olhos são en-
carquilhados, o olhar fi xo e penetrante, a cabeleira tratada como crina
de animal ou eriçada de serpentes, as orelhas aumentadas, deformadas,
por vezes semelhantes às do boi, o crânio pode levar cornos, a boca,
aberta num ricto, alonga-se com presas de fera ou defesas de javali, a
língua, projetada para diante, avoluma-se no exterior, o queixo é peludo
ou barbudo, a pele por vezes sulcada por rugas profundas (VERNANT,
1991, p. 70).

Os poderes mágicos de Górgona se fi xam nos olhos. Em uma de suas


versões, como no caso de Medusa, a máscara de Górgona tem o poder de
petrifi car quem ousa mirar-lhe nos olhos. Ela é a personifi cação da ira e do
terror em estado bruto, primário e sobrenatural. Está associada ao pavor
Um gênero literário onde
a máscara não é mais
que paralisa e gela o coração dos inimigos. Por isso, sua efígie está gravada
que um acessório, talvez em bronze na armadura e no escudo dos guerreiros e é seu grito terrifi cante
secundário, destinado a que eles lançam, junto com o som estridente da trombeta, na hora do ataque.
resolver problemas de ex-
pressividade trágica...
Mas ela também afugenta os espíritos malfazejos. É por isso que sua más-
cara é fi xada em locais públicos e privados, como nas ofi cinas dos artesãos,
sobre as fontes, na entrada das residências (mas também em ânforas, jarros
e objetos de cerâmica em geral) ou nos adornos da égide de Atena, montando
guarda com seus olhos de pupilas sempre acesas a esconjurar o perigo. As-
sim como acontece com Dioniso, sua fi guração se dá na forma de máscara.
Ártemis, como sabemos, é a virgem caçadora, a arqueira infalível que
atinge, com suas flechas certeiras, os mais ferozes animais da floresta. Ela é a di-
vindade do mundo selvagem, senhora das feras e das transfigurações. Mas é tam-
bém a instrutora dos jovens na arte da caça e nos caminhos da civilidade, assim
como é a condutora das jovens mulheres na busca da beleza e da sabedoria. Nessa
qualidade, ela opera entre o mundo selvagem e o civilizado, ajudando a passagem
dos jovens de um universo ao outro, conduzindo sua iniciação à vida adulta.

86 ANTROPOLOGIA DA ARTE
No curso da devoção a Ártemis, através de mascaradas e jogos rituais,
jovens e crianças gregas, especialmente em Esparta, mas também em Ate-
nas, eram instruídos a viver as mais diversas e contrastantes atitudes e sen-
sações. Sob a proteção da deusa, com a ajuda de máscaras e travestimentos,
eram levados a mimar os mais diferentes personagens (reis e mendigos, ti-
ranos e escravos, virgens e prostitutas, velhos e bebês etc.), atitudes (doçura
feminina, ferocidade bestial, pudor e obscenidade, vigor guerreiro e debili-
dade senil, descaramento e sinceridade etc.) e inversões (homens vestidos de
mulher ou de animais e vice-versa, jovens fantasiados de velhos e vice-versa,
servos disfarçados de reis e vice-versa, padres trajados de bêbados e vice-
versa, empregados fazendo patrões e vice-versa etc.). A cada máscara figu-
rada correspondia uma nova experiência de vida, quase sempre de excesso,
de transgressão. Por esse meio, os jovens aprendizes tomavam contato com
toda sorte de comportamentos marginais e sensações estranhas. Exercita-
vam o descomedimento e a alteridade, conhecendo a subversão, para mais
valorizar a regra à qual eles deveriam obedecer dali em diante.
No culto a Ártemis, portanto, a máscara aparece como um instrumen-
to educativo no processo de formação do jovem como cidadão. Ela, a más-
cara, como que apressa essa formação, fazendo com que a experiência de
vida do jovem se enriqueça e dando mais rapidez ao seu amadurecimento,
ao permitir que ele viva muitas vidas, em um curto período de tempo, no
papel de múltiplos personagens.
Se com Ártemis, o jovem experimenta o descomedimento para apren-
der o comedimento, com Dioniso, parece acontecer exatamente o contrário: o
adulto equilibrado, perfeitamente integrado à ordem social, experimenta a im-
previsibilidade e o exagero. Dioniso é o deus das metamorfoses e dos travesti-
mentos, que introduz a dimensão sobrenatural na vida cotidiana através de sua
máscara de aparência ambígua: homem-mulher, deus-humano; é um ser de olhar
estranho e enigmático.
O culto a Dioniso acontece sob a luz do sol, em plena natureza: esse
é seu templo, seu chão sagrado. Através de sua máscara, o homem se deixa
possuir pelo deus, torna-se outro, experimenta a alteridade e penetra as
vias do divino. O ator que porta a máscara dionisíaca abandona os limites
da natureza ordinária e irrompe a dimensão do extraordinário, o plano do
invisível no qual ficção e realidade se fundem.
Por meio das máscaras, o homem grego experimenta a possibilidade
de tornar-se outro, ou ainda, de deixar de ser ele, como é o caso de Górgona,
que, com seu olhar paralisante, destrói suas vítimas pelo terror. Como é o
caso, também, de Dioniso, embora em sentido contrário: o transe leva o pos-
suído a um estado de prazer e gozo além dos limites da realidade aparente.
Nos dois exemplos de alteridade radical, ou seja, de abandono do próprio eu
individual, o transporte se dá em direção vertical: para baixo no referente a
Górgona e para cima no referente a Dioniso.
Quanto a Ártemis, o deslocamento se dá no plano vertical, tanto no
tempo quanto no espaço, já que os jovens sob sua orientação experimentam
máscaras que os levam do espaço urbano das sociedades, então considera-
das civilizadas, às margens da selvageria. Mas, em seu culto, esse mundo
selvagem, do qual Ártemis é tão íntima e que a aproximaria de Górgona –
uma potência em estado bruto –, é, pelo contrário, motivo de rejeição. Isso
se dá porque, Ártemis prefere tê-lo à distância e sob controle, conduzindo
metodicamente os jovens, no curso de rituais aparentemente transgressi-
vos, até uma completa integração na vida civil. A máscara de Dioniso, pelo

ANTROPOLOGIA DA ARTE 87
contrário, ao retirar o cidadão da vida familiar e levá-lo à possessão, incita
à indiferença às regras, à abolição das proibições, à inversão dos valores, à
instauração da dúvida e à desintegração dos quadros sociais.
Como veremos adiante, esses três tipos de máscaras, a máscara ater-
rorizante ao modo de Górgona, a máscara carnavalesca de Ártemis (fi camos
devendo a explicação) e a máscara dionisíaca de possessão, encontram cor-
respondências e ressignifi cações em máscaras de períodos posteriores e de
KONIGSON, Elie. Le Mas- outras regiões do globo. A máscara aterrorizante comum nos ritos das so-
que Du Démon: Phantas- ciedades arcaicas, que tem na Górgona seu exemplo mais completo entre as
mes et Métamorphoses divindades da Grécia clássica, aparece com destaque na Europa Medieval
sur la Scène Médiévale. In
LE MASQUE: DU RITE AU e se estende até o Renascimento, nas encenações dos chamados mistérios,
THÉÂTRE. Textes et Étu- através da fi guração do demônio.
des Réunis et Presentes
par Odette Aslan et Denis
Elie Konigson publicou um interessante artigo, em 1988, sobre esse
Bablet. Paris, Editions du assunto, onde se pode perceber a correspondência da máscara do demônio
CNRS, 1988. com as máscaras dos ritos mágicos dos povos selvagens. Informa ele que,
no espaço de encenação dos chamados mistérios medievais, levados a cabo
pela Igreja católica, o Inferno está comumente situado a Oeste ou à esquer-
da e só raramente ao Norte. Constitui uma espécie de máscara-cenário, na
forma de uma grande goela articulada que abre e fecha: a Garganta do In-
ferno, onde agem, não por acaso, os únicos personagens mascarados sobre
a cena, os próprios demônios.
Ao contrário dos demais personagens – santos, anjos e o próprio Deus –
que atuam vestidos e com os rostos descobertos, os demônios fi guram
mascarados e nus. Além disso, enquanto os demais personagens, sempre
apresentados sob aparência humana (inclusive Deus e os anjos), aparecem
É interessante notar que, segundo uma ordem histórica e/ou alegórica, os diabos surgem em cena
na cena medieval, além
do demônio, outro perso- aleatoriamente, de modo deliberadamente caótico, sob aspecto animalesco.
nagem que aparece cos- Nos mistérios medievais, a máscara diabólica é uma máscara de cor-
tumeiramente nu é o “ho-
mem selvagem”. po inteiro – facial, corporal e manual inclusive –, já que o demônio usa o
tridente e outros instrumentos de tortura. Trata-se de um antifi gurino ou
de um fi gurino de outra natureza, de uma natureza infernal, do mesmo
modo que o Inferno, com sua garganta, está fora da Terra e da esfera celeste,
assim como a música se opõe ao ruído e ao alarido diabólico dos demônios.
Na máscara medieval, o diabo tem garras de mamífero ou de ave de
rapina, focinho com aspecto ora canino ora de um javali, cabeça com tra-
ços indefi nidos – não se sabendo se de urso, se de lobo –, chifres, ferrões,
e trombas. A isso, se some, pelo resto do corpo, escamas, caudas, asas de
morcego ou o que se queira colocar. Em todo caso, deve parecer um mons-
tro apavorante como uma Górgona, o terror em seu estado bruto, feito uma
Ver KONIGSON pp. 108 a força da natureza.
111.
A fi guração da máscara do demônio nos mistérios medievais pro-
curava, assim, associar a ela elementos ligados a ritos de magia pratica-
Ernest Theodore Kirby
dos por povos tidos como pagãos e/ou heréticos, assim como a fi gura da
nos informa sobre o uso
de máscaras com essa mulher e do “homem selvagem”. Possuía, em sua função aterrorizante,
função entre os índios da a fi nalidade de afastar os fi éis da tentação de continuar executando ou
América do Sul e cita o aderir a tais práticas heterodoxas, chamar os “incivilizados” à ordem e as
exemplo dos Chamacoco
de Araucan, no Chaco, mulheres à submissão.
onde é costume, entre os
homens, encapuzarem
suas cabeças dentro de
sacos, durante os rituais,
para amedrontarem as
mulheres. (KIRBY, 1988,
p. 41)

88 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Assim como o artista, o mágico observa a realidade a partir de suas
formas exteriores e através de sua sensibilidade. Daí haver a aproximação
entre arte e magia, assim como a necessidade de estudar o funcionamento
das leis do pensamento mágico para a compreensão do fenômeno estético.
Considerado como uma forma de conhecimento ou percepção do real, o
chamado pensamento mágico ou selvagem responde a uma necessidade
humana de dar signifi cado ao universo e sentido à existência. Diferencia-
-se da ciência porque não admite a falta de sentido, o acaso, e postula um
determinismo global e integral na natureza.
Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de uma forma ru-
dimentar de conhecimento ou de uma pré-ciência, porém de outro modo de
abordar a realidade, mais ligado ao concreto e a partir da intuição sensível.
Sendo, portanto, movida, quase sempre, por sentimentos estéticos, a magia
é muito próxima da arte. Trata-se, pois, de um conhecimento atento às for-
mas, às cores, aos cheiros, aos sons, enfi m, a tudo que pode ser percebido
por nossos sentidos e intuído por nossa imaginação.
Atento à observação da realidade desde seu todo até seus mínimos
detalhes, o homem “selvagem” busca ordenar seus elementos, estabele-
cendo correspondências, comparações, contrastes, ligações de diferentes
naturezas. Prova, experimenta, deduz, faz analogias; daí tira conclusões
iniciais, volta a experimentar, num processo empírico sempre renovado.
Chega a princípios muito amplos e genéricos, que os teóricos chamaram
leis da magia simpática.
Segundo Marcel Mauss (1974), toda a magia parte de um princípio mais
geral que afi rma: “um é o todo, e o todo é um” (p.102). Daí se desdobra em três
leis básicas: a lei da contiguidade ou do contágio, segundo a qual os seres que
entram em contato permanecem unidos; a lei da similaridade ou similitude,
segundo a qual o semelhante produz o semelhante; e a lei da contrariedade
ou do contrário, de acordo com a qual o contrário afasta o contrário.
Com base nesse princípio geral e nessas leis básicas, os mágicos pro-
duziram todo um conjunto de saberes sistemáticos, que sobreviveram na
Europa como válidos por toda a Idade Média até, pelo menos, o Renasci-
mento e que alimentaram ciências diversas como a física, a química, a ma-
temática, a medicina e a astronomia.
Um dos elementos básicos na constituição do pensamento mágico é
a noção de mana, uma espécie de propriedade especial ou poder mágico de
que são dotados os xamãs ou magos.
Esse poder é privilégio de determinados seres, pessoas, animais ou
objetos e pode ser transferido, acumulado, transportado, ou seja, manipula-
do através de técnicas e procedimentos ditos mágicos. Tais procedimentos,
no entanto, nunca se dão fora da coletividade, porque implicam a crença
comunitária. Exigem a participação do grupo e incluem a cumplicidade do
corpo social para que tenham êxito.
O mágico é sempre alguém especial dentro da comunidade. Recebe
a atribuição seja por herança ou por distinções especiais (de ofício, de
casta, por sinais físicos, por características psicológicas ou étnicas etc.).
Poucas vezes torna-se mágico (ou xamã) por iniciativa voluntária. Passa,
obrigatoriamente, por um processo de iniciação e dele é exigido um com-
portamento místico e exemplar.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 89
Trabalha como um profi ssional especializado, detentor de um saber,
que inclui conhecimentos teóricos e técnicos, além de habilidades. Executa
seus ritos com meticuloso apuro, cercado de um aparato numeroso de ins-
trumentos e materiais vários. Desenvolve poderes especiais sobre o próprio
corpo e sobre a atenção dos circunstantes. Trabalha com o corpo e com o
espírito alterado. Usa auxiliares espirituais e envolve o conjunto dos cir-
cunstantes em seus transes.
Para sua comunicação com o mundo dos espíritos, mágicos e xamãs
utilizam, ainda, o recurso das máscaras nos rituais de renovação da vida
comunitária, tanto no plano interno, quanto na comunicação com a na-
tureza ou com outras dimensões do universo. Geralmente, as celebrações
mascaradas relacionam-se com ritos agrários, de iniciação ou de morte,
quando não diretamente com a encenação dos mitos de origem do universo.
Nesse último caso, as máscaras rituais procuram expressar o conjunto de
elementos cosmogônicos de determinada sociedade. Já nos demais, princi-
palmente nos ritos de iniciação, o xamã tem por ponto de partida a máscara
neutra, sem abertura de olhos nem traços de identifi cação, que trabalha
pelo apagamento do indivíduo. Faz-se morrer o portador da máscara, para
dar lugar a um novo personagem.
No passo seguinte à máscara neutra, aparece a máscara geométrica,
na fi guração dos chamados homens-animais. Essas máscaras confi guram
os animais por elas incorporados através de traçados geométricos simpli-
fi cados, num simbolismo quase abstrato. Nesse caso, a máscara passa da
condição anterior de ocultamento (máscara neutra) para a de revelação.
Na Grécia antiga, durante o período clássico, podia-se distinguir, en-
tre outros, basicamente, três tipos de máscaras: a máscara aterrorizante
de Górgona, as máscaras educativas ou “carnavalizadas” de Ártemis e a
máscara embriagadora de Dioniso.
Cada uma delas tinha funções e jogava papéis diferenciados na so-
ciedade, produzindo sensações e proporcionando experiências diversas ao
indivíduo e ao corpo social. Se as máscaras operadas por Ártemis trabalha-
vam pela maturação dos indivíduos e pelo estabelecimento da ordem social,
se a máscara de Dioniso propiciava a liberação da libido e dos afetos, a más-
cara de Górgona reprimia o desejo de transgressão e impunha a autoridade
pelo terror. O mesmo acontecia com a máscara do demônio nos mistérios
medievais, quando a Igreja manipulou, pelo medo, a crença dos fi éis e impôs
suas verdades sob a ameaça do fogo dos Infernos.

1. Para você, a principal função da máscara é ocultar ou revelar?


2. Pode se estabelecer alguma diferença entre disfarce e máscara? Qual?
3. Diz-se que a máscara é um meio de comunicação com os espíritos. Como
se dá esse processo?

90 ANTROPOLOGIA DA ARTE
MÁSCARAS RITUAIS PANKARARU
No interior do Nordeste brasileiro, mais precisamente na localidade
de Brejo dos Padres, município de Tacarutu, sertões de Pernambuco, po-
demos encontrar um exemplo notável do uso de máscaras rituais. Trata-se
das máscaras praiás dos índios pankararu, pertencentes ao grupo cultural
lingüístico dos kariri, originários de Curral dos Bois (hoje Santo Antônio da
Glória), na Bahia, depois aldeados pelos padres oratorianos no lugar onde
Ver PINTO p. 299.
habitam até hoje.
As máscaras praiás são coberturas de corpo inteiro e se compõem de
cinco partes: 1) O tunã, tecida em fibra de caroá ou ouricuri, ocultando intei-
ramente o rosto e cobrindo a cabeça, contendo apenas dois pequenos furos
no lugar dos olhos e com os fios soltos a partir do pescoço, caindo sobre os
ombros até os joelhos. 2) O saiote, feito com a mesma fibra do tunã, preso
na cintura e estendendo-se até as canelas. 3) O cocar de penas de peru,
em forma esférica, como um grande sol, fixo no alto do tunã. 4) O penacho
de plumas atado a uma pequena vara fixa no alto do tunã. 5) A cinta, uma
pequena túnica de tecido, geralmente chita estampada ou pano bordado com
uma cruz ou outro símbolo, que se coloca sobre as costas do tunã.
Completando o traje ritual praiá, os pankararu portam o maracá, feito
de coité e adornado com penas, o bordão de compasso, igualmente enfeitado
de penas, e a gaita de marcação.
Entre os pankararu, as máscaras acima descritas são de uso exclusivo
dos dançarinos mascarados da tribo, os praiás, uma espécie de sociedade
secreta de caráter hereditário, formada por membros das velhas famílias
fundadoras da comunidade. Tem por função ocultar a identidade de seus
portadores e preservar o caráter secreto do grupo. Segundo testemunho dos
mais antigos, após suas danças cerimoniais, os praiás recolhiam-se às suas
choças e permaneciam nelas reclusos. Hoje, eles já aparecem em feiras e
romarias, embora se mostrem comumente arredios e procurem manter dis-
tância de grandes aglomerados.
Durante seus rituais, e por via das máscaras, os praiás incorporam
espíritos ancestrais que acreditam encantados nas cachoeiras de Itaparica e
Paulo Afonso, situadas não muito distantes de Brejo dos Padres. Muitas ve-
zes são surpreendidos lançando longas baforadas de fumo em suas direções.
Os praiás participam e muitas vezes protagonizam com exclusividade
os principais ritos e cerimoniais pankararu. O mais importante desses rituais
é a Dança dos Praiás. Sua execução é puxada por uma cantadeira que entoa
loas durante horas seguidas, em tom melancólico e lamentoso, acompanha-
da pelo toque dos maracás sacudidos pelos praiás, que respondem ao canto
soltando sons que se assemelham a uivos guturais e longos gemidos.
Envergando seus trajes rituais e movidos por esse ambiente sonoro,
os praiás dançam em passos curtos e rápidos, às vezes arrastados e presos
ao solo, às vezes de modo brusco e aos pulos, batendo com força no chão.
Seguem mudando a direção, ora para um lado, ora para o outro, em fileiras
ou em pares, em roda ou formando ziguezagues e SS, inclinando-se ora para
a esquerda, ora para a direita, em um movimento contínuo e imprevisível,
puxado pelos guias de uma fila e de outra. Em certos momentos, os dança-
rinos dividem-se em grupos e, de braços colados, adiantam-se em carreira

ANTROPOLOGIA DA ARTE 91
até a cantadeira, freando repentinamente junto a ela, conseguindo um forte
efeito de suspense.
A iniciação de novos membros no grupo desses “protetores mágicos da
aldeia” (PINTO p. 300) se dá por um rito que eles chamam de “Festa do Me-
nino no Rancho”, por meio do qual, as crianças não apenas são iniciadas nos
segredos dos praiás, como se tornam intermediários entre eles e o restante
da comunidade. Isto porque, quando os praiás estão reunidos em seu reduto
sagrado, que chamam rancho ou poró, não podem ser vistos por pessoas
fora do grupo. Sendo assim, fica a cargo da criança em iniciação trazer-lhes o
que necessitam: água, fogo, fumo etc., ficando a ela vedado revelar qualquer
fato ou detalhe do que se passa no rancho, sob ameaça de dormir em uma
cama coberta com urtigas.
Para a “Festa do Menino no Rancho”, levanta-se primeiramente um
rancho, e nele se faz entrar o pré-adolescente a ser iniciado. O menino traz o
corpo pintado de tauá branco, leva a tiracolo rolos de fumo e tem na cabeça
um capacete de ouricuri. Na entrada do rancho, se coloca a guarda do me-
nino, sentinelas e padrinhos armados de cacetes. Do outro lado, se postam
os praiás, guerreiros sagrados, igualmente armados, que buscam a posse do
menino. O combate acontece do modo ritual, mas com grande vigor. Termina
com a destruição do rancho e com a conquista do menino pelos praiás que,
em meio a grande alegria, cantando e dançando, levam o menino à presença
de uma menina da mesma idade.
Entre os pankararu, o tuxaua é eleito democraticamente pela comuni-
dade. Quando alcança a decrepitude, é substituído. Ainda assim, sua opinião
é levada em conta, notadamente em questões relativas ao sagrado. O mes-
mo ocorre com as velhas cachimbeiras da tribo, espécies de pajés que, até
atingirem idades muito avançadas, encarregam-se da cura dos enfermos, e
ainda de outros procedimentos mágicos, como “tirar o atraso” das pessoas
e “atrair a chuva”. Nessas práticas, o fumo costumeiramente joga um papel
importante, ajudando a exorcizar malefícios e imunizar espíritos.
Na Festa do Ajucá, como é chamada entre os pankararu o culto da jure-
ma, se fazem presentes, além dos praiás, o tuxaua, os guerreiros e as velhas
cantadeiras. A cerimônia acontece em local afastado, dentro de um bosque
sombreado, em terreiro previamente forrado com esteiras de ouricuri. No cen-
tro do terreiro se coloca uma laje, com numerosas raízes de jurema em cima.
Depois de raspadas e lavadas, as raízes de jurema são colocadas den-
tro de uma grande vasilha de coité cheia d’água. A vasilha, em seguida, é
agitada até formar uma densa escuma, estando pronta para ser bebida. Em
meio a cantos e falas sagradas, o tuxaua, tirando baforadas de seu cachim-
bo, inicia o ritual de sagração da bebida. Em seguida, seu cachimbo passa de
mão em mão, entre os presentes, que fazem o mesmo.
Terminada a benzedura do ajucá, o tuxaua ajoelha-se e bebe o primeiro
gole, no que é imitado pelos demais. Circunspectos e concentrados, todos
provam do filtro mágico que lhes proporcionará comunicar-se com os encan-
tados, em sonhos e visões.
O que restar do sumo da raiz da jurema é colocado em um buraco pro-
fundo aberto no chão.
Os pankararu de Brejo dos Padres podem ser observados costumei-
ramente nas grandes romarias do Juazeiro do Norte, no Ceará, e de Santa
Brígida, na Bahia. Costumam estabelecer sincretismos e correspondências
entre seus encantados, entidades afro-brasileiras e santos do catolicismo
popular, como Padre Cícero, Conselheiro Pedro Batista e Mãe Dodô. Daí,
muitas vezes, realizarem peregrinações a santuários católicos junto com ir-
mandades cristãs, especialmente com as de Nossa Senhora da Boa Morte
e de São Gonçalo, que tem sedes tanto em Santa Brígida (BA), quando na
Estrada Velho do Horto, em Juazeiro do Norte.

92 ANTROPOLOGIA DA ARTE
As máscaras dos praiás, como vimos, embora com pequenas abertu-
ras para os olhos (demasiadamente pequenas, por sinal), possuem todas as
características das máscaras-vestimentas neutras, que procura criar o ano-
nimato e transportar seus portadores à dimensão do invisível, no caso a de
seus ancestrais “encantados”.

Marcel Mauss
Sociólogo e antropólogo francês nascido em Épinal, França, cuja obra
foi marcante na sociologia e na antropologia social contemporânea e consi-
derado como o pai da antropologia francesa. Sobrinho de Émile Durkheim e
nascido quatorze anos mais tarde e na mesma cidade, estudou com o tio e
foi seu assistente e tornou-se professor de religião primitiva (1902) na École
Pratique des Hautes Études, em Paris. Fundou o Instituto de Etnologia da
Universidade de Paris (1925) e também lecionou no Collège de France (1931-
1939). Sucedeu o tio como editor da revista L’Année Sociologique (1898-
1913), onde publicou um de seus primeiros trabalhos, com Henri Hubert, Es-
sai sur la nature et la fonction du sacrifice (1899) e também Essai sur le don:
forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques (1925), sua obra
mais conhecida. Escreveu também numerosos artigos para periódicos espe-
cializados, especialmente os produzidos e publicados em colaboração com
Henri Hubert (1899-1905), que reuniu em Mélanges d’histoire des religions
(1909). Os trabalhos mais importantes do autor, que morreu em Paris, apa-
recem no livro Sociologie et antropologie (1960). Entre outros trabalhos de
sua autoria, ganharam notoriedade La sociologie: objet et méthode (1901),
Esquisse d’une théorie générale de la magie (1902), Essai sur le don (1924),
Sociologie et anthropologie (1950).

É interessante...
...verificar, como já iniciamos em capítulo anterior, a ligação dessas leis
com os tipos de signos, com relação ao referente, na semiótica. Enquanto
a lei da contiguidade diz respeito ao índice, ou seja, à representação por
contato porque o signo foi afetado pelo objeto através do contato, a lei da
similaridade diz respeito ao ícone, ou seja, à representação por semelhança,
pela relação de semelhança do signo com o objeto representado. Na propa-
ganda, assim como na arte, essas analogias ou associações de ideias são
costumeiramente empregadas do mesmo modo como o são nos rituais das
religiões populares.
Para dar um exemplo da propaganda, podemos ficar com os famosos
cartazes de peças de carros ao lado de moças seminuas pregados nas portas
de oficinas. Não há outra relação entre as peças e as garotas na propaganda
senão a de contiguidade, mas a proximidade entre ambas acaba por associar
uma a outra na percepção do mecânico. Se o objeto a ser vendido fosse um
violão, a lei da similaridade entre o objeto da propaganda e o corpo da garota
reforçaria a analogia.
Nos rituais do catolicismo popular, há o exemplo clássico do romeiro
que leva um ex-voto e o coloca aos pés da estátua de seu santo protetor.
Por similaridade, ele manda esculpir a expressão de sua doença na madeira
ou em outro material qualquer. Por esse mecanismo, a “energia negativa”
(o mana) de sua enfermidade é transferida para o ex-voto (como se chama
à escultura). Em seguida, ele leva o ex-voto e o deposita ao pé da imagem
de seu santo de devoção, ou seja, ele o leva a um lugar carregado da “boa
energia” do seu santo, que neutraliza, por contágio, a “energia negativa” do
ex-voto colocado aos seus pés. Curado o ex-voto, por contágio, está curado
o doente, por similaridade.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 93
Bricoleur
É um termo francês que designa, ordinariamente, alguém que é afeito
a fazer trabalhos manuais por conta própria, fabricar objetos ou fazer pe-
quenos consertos em casa, a partir de um acervo de recursos e ferramentas
caseiros. Antropólogos franceses, entre eles Lévi-Strauss, usam o termo bri-
coleur para nomear o modo de operar do mágico que utiliza materiais já ela-
borados e fragmentários. Executa tarefas diversificadas. Tem seu repertório
de instrumentos e materiais pré-estabelecidos. Seu universo instrumental é
fechado. O conjunto de seus meios não é definido pelo projeto. Arranja-se
sempre com meios limitados. Usa um estoque de meios cumulativos. Pensa:
“Isto sempre pode servir”. Cada elemento de seu estoque representa um
conjunto de relações e possibilidades. Como o bricoleur, tem atitude retros-
pectiva, voltando-se para seu estoque. Verifica as respostas possíveis que o
conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ex.: uma tábua de carvalho
pode servir como calço, pode ser utilizada numa janela etc. As possibilidades
são limitadas pelo tipo de peças que ele tem no seu acervo. Ele volta-se para
uma coleção de resíduos de obras humanas ao operar seu projeto.

MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de


Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss, tradução de Lamberto Puccinelli,.
São Paulo, EPU, 1974. (VOLUME I)
ELIADE, Mircea. El Chamanismo y las Técnicas Arcaicas del Extasis. Mé-
xico, Fondo de Cultura Económica, 1976.
FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro, Zahar Editores
(edição do texto: Mary Douglas, Resumido por Sbine MacCormack), 1982.
LÉVI-STRAUSS, Claude - O Pensamento Selvagem, Campinas (SP), Papí-
rus, 1989.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Textes et Études Réunis et Presentes
par Odette Aslan et Denis Bablet. Paris, Editions du CNRS, 1988.
Do qual constam, entre outros, os seguintes artigos, citados no texto:
DUCROUX, Françoise Frontisi- et Jean-Pierre VERNANT. Divinités Au Mas-
que Dans La Grèce Ancienne
DIETERLEN, Germaine. Masques: Sociétés Traditionnelles d’Afrique Oc-
cidentale.
KIRBY, Ernest-Théodore. Masques d`Amérique du Sud – La Transformation
Homme/Animal
PATUREAU, Mirella Nedelco. Jeux Masqués et Théatre Paysan em Roumanie.
KONIGSON, Elie. Le Masque Du Démon: Phantasmes et Métamorphoses
sur la Scène Médiévale.
PINTO, Estevão. As Máscaras-de-Dansa dos Pancararu de Tacaratu, in So-
ciété des Américanistes, Année 1952, Volume 41, Numero 2, pp. 295 – 304.
VERNANT, Jean-Pierre. Figuras, Ídolos, Máscaras. Tradução de Telma Cos-
ta.Lisboa, Editorial Teorema, 1991.

94 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Unidade

5
A Arte Tradicional Popular

Objetivos:
• Verificar a transformação da produção estética ritual em produção artística como
ofício unindo estética e utilidade, em sua produção.
• Tratar mais detidamente da arte do canto, da palavra e da narração oral.
• Debater as transformações pelas quais passa a arte tradicional popular.
Capítulo 1
O Belo e o Útil

Nas sociedades tradicionais, a estética está intrinsecamente vincula-


da ao cotidiano dos grupos humanos, não havendo separação entre o belo,
o útil e o bom. Arte, trabalho e religião estão indissoluvelmente ligados. As
manifestações artísticas nos diversos campos, sejam pinturas, esculturas,
cantos, narrativas ou performances corporais, relacionam-se, de algum
modo, a cerimônias e rituais religiosos e sociais. As obras de arte perdem o
sentido se separadas do contexto em que se inscrevem, ou seja, do conjunto
de crenças e rituais, assim como do estilo e das técnicas das diferentes et-
nias que as conceberam.
Mais do que motivo de contemplação, os objetos artísticos são criados
para serem manipulados, durante os ritos, pelo mágico ou xamã. Nas ce-
rimônias de iniciação ou renovação, muitos deles guardam caráter secreto
e ligam-se aos seus donos de tal maneira que, quando de suas mortes, são
colocados junto com eles em suas sepulturas. Estudando a arte africana,
especialmente na África Central, alguns antropólogos chegaram a defi nir
algumas das funções desses objetos (SYLLA, 1988, pp. 127 -129). Entre ou-
tras, as seguintes funções foram defi nidas:
• Função mágico-religiosa: Os objetos de arte servem como canal de
comunicação entre o mundo visível e o invisível, entre a dimensão
material e espiritual da realidade, funcionando como suportes para
captar, transmitir ou afastar fl uxos de energia benéfi cos ou maléfi -
cos que transitam na coletividade.
• Função terapêutica: os objetos e outras manifestações artísticas,
durante os ritos, cerimônias e outras práticas sociais, podem con-
tribuir para a manutenção do equilíbrio psicológico dos indivíduos
e da coletividade.
• Função pedagógica: os objetos e práticas artísticas são úteis para
o processo de aquisição e transmissão de conhecimentos nos siste-
mas de iniciação, nos rituais de passagem, nas associações e socie-
dades secretas, assim como nas demais formas de aprendizagem
conduzidas pelos mais velhos.
• Função social: as manifestações artísticas, além de meios de di-
versão, expressam as relações sociais. Os objetos, particularmente
os de natureza estética, traduzem o imaginário social e transmi-
tem seus valores.
• Função política: Os objetos como cetros, armas, assentos, instru-
mentos musicais etc representam, simbolicamente, a hierarquia so-
cial. Por exemplo, entre os legas, povo que vive na África Central
– ao sudeste do Congo –, algumas fi guras de marfi m simbolizam
não apenas o posto mais elevado na hierarquia de poder de sua as-
sociação secreta – bwami, como até mesmo o grau, a ocupação e a
especialização de cada um dos seus membros.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 97
Além dessas funções, as esculturas em marfi m, enquanto bens cole-
tivos de clãs e linhagens familiares, funcionam como símbolos agregadores,
unindo indivíduos e gerações, e prestam-se como instrumentos comemo-
rativos que exaltam os méritos de seus membros falecidos. Nesse sentido,
adquirem uma função funerária e são colocados nos túmulos de seus donos
como sinal de respeito e veneração, além de amuleto para atrair e apaziguar
o espírito do morto.
Na arte tradicional popular, a qualidade estética de um objeto depen-
de de uma série de variantes. Seria difícil enumerar todas; porém, algumas
delas são inegáveis. A primeira, por certo, é a utilidade do objeto criado, sua
fi nalidade. Ou seja, obra bem feita é aquela que cumpre o objetivo a que se
propôs. Depois, aparecem outras, como a matéria prima empregada – onde
entra a infl uência do meio-ambiente –, a tecnologia e habilidade técnica de
quem a manipula, o meio social e cultural local, o estilo da corporação, isto
é, do agrupamento de artífi ces formado pelo mestre e seus aprendizes e, por
fi m, o talento e o estilo individuais de cada artista.
O fato de que, nas sociedades tradicionais, os objetos artísticos quase
nunca são produzidos para a pura contemplação não signifi ca um desprezo
pelo prazer estético.
Pelo contrário, signifi ca a introdução do prazer estético nos objetos
Lega
Povo africano que habita
de uso cotidiano. Basta ver o capricho com que um guerreiro tukano orna
o sudeste do Congo, na a ponta de sua fl echa ou como um artista lega esculpe um corpo feminino
África Central. em sua colher.

Colher lega

A divisão entre arte (fine arts) e artesanato (crafts), estabelecida pelo


capitalismo, a partir da Europa Ocidental, pretendeu “libertar” a arte de
seu valor utilitário. Deixando a confecção de objetos úteis ao artesanato,
proclamou a “arte pela arte”, ou seja, a arte sem interesse outro senão a
pura contemplação. Ao fi nal de algumas décadas, essa concepção mostrou
sua impossibilidade já que a arte como expressão da subjetividade humana
não pode deixar de refl etir interesses sociais, até mesmo o interesse mer-
cantil de obter dividendos.
Engana-se quem considera irrelevante a autoria das obras de arte pro-
duzidas nas sociedades tradicionais, bem como nas comunidades ou seg-
mentos tradicionais que vivem no interior de sociedades modernas. Mesmo
quando produzindo em grupo, dentro de “escolas” específi cas, o indivíduo
não se apaga no seio da coletividade.

98 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Embora o mestre exerça um papel preponderante na determinação
do estilo de uma tradição por ele fundada, daí o dito “fazer escola”, seus
aprendizes não se furtam da marca individual. Tal é o caso, por exemplo,
da escola de ceramistas de Caruaru, que teve Vitalino como mestre, e da es-
cola de pintores do Pirambu, cujo mestre foi Chico da Silva. Ambos fi zeram
escola e tiveram inúmeros discípulos que assinavam como o mestre, porém
guardavam particularidades inconfundíveis no estilo.
O caso de Chico da Silva é exemplar. Sua arte fez escola no Piram-
Caruaru
bu entre os anos 60 e 70 do século passado. Chico trabalhava com muitos Cidade de Pernambuco.
aprendizes que seguiam, em grandes linhas, o estilo do mestre. Para aten-
der à grande demanda de obras, Chico obrigava- se, muitas vezes, a apenas Pirambu
Bairro de Fortaleza.
assinar as telas produzidas em guache. Com o tempo e com a indisposição
do mestre por motivo de saúde, os próprios discípulos começaram a assinar,
eles mesmos, a marca do atelier, ou seja, a assinatura ‘Chico da Silva’. A
escola era a mesma: no quadro estava registrada a sua marca, mas, para
quem conhecia, o estilo de cada artista era inconfundível. Além do próprio
Chico, destacavam-se Claudionor, Ivan de Assis e Raimundo Neto, que in-
troduziu o fundo preto nas pinturas.

Tela de Chico da Silva

Tela de Claudionor

ANTROPOLOGIA DA ARTE 99
Destaque
A escolha de Chico da Silva em trabalhar coletivamente, ao modo das
corporações medievais, bateu de frente com o mercado capitalista das artes
plásticas, para o qual não importa a qualidade estética da obra, mas a co-
tação do autor no mercado. Acusado de vulgarizar suas próprias obras e de
ajudar na falsifi cação das mesmas através de antigos aprendizes e discípu-
los, foi abandonado por mecenas e admiradores. Vítima de cirrose hepática
e tuberculose crônica, encerrou sua carreira artística prematuramente em
1976, vindo a falecer em 1985.
No caso, os discípulos de Chico da Silva assinavam com o nome do
mestre não por terem anuladas suas individualidades, mas por uma exi-
gência de valorização do mercado capitalista. Cada um deles tinha um es-
tilo marcante, que faziam questão de afi rmar. Não havia uma preocupação
em imitar o mestre, em “falsifi car” um quadro ou até mesmo a assinatura.
Ex-voto ou Milagre é uma Pelo contrário, a preocupação com a autoria, bem como com o valor
peça em madeira ou ou-
tro material que o devoto
estético do objeto, é marcante nas tradições populares. No fi nal da década
coloca no altar do santo, de 70 do século passado, pude testemunhar um fato elucidativo nesse senti-
por motivo de promessa do. Em visita à ofi cina de Noza, famoso mestre santeiro do Juazeiro do Norte
feita e graça alcançada,
como representação do
já falecido, presenciei a demanda de um ex-voto por parte de um romeiro
mal sofrido. acometido de grave enfermidade. Embora Noza explicasse que a encomenda
sairia cara para alguém visivelmente pobre como o romeiro e que já estava
sobrecarregado de trabalhos, o outro insistia. Argumentava ter sido Noza o
primeiro a esculpir uma imagem do Padre Cícero, ser exímio artífi ce e só ele
poder esculpir o ex-voto capaz de representar o milagre de sua saúde.
Os ex-votos, assim como objetos outros manipulados pelos mágicos,
xamãs ou pajés, não são denominados como objetos artísticos por seus
usuários originais, mesmo quando possuem qualidades estéticas evidentes,
senão pelos que os ressignifi cam. Entretanto, de modo algum, isso pode ser
entendido como ausência de interesse estético por parte das comunidades
tradicionais. Em muitos casos, mesmo entre povos ágrafos, as questões re-
lativas ao belo e à arte têm tratamento explícito. Em sua dissertação para
obtenção do título de Mestre em Arqueologia, sob o título Imagens e Pala-
vras: Suas Correspondências na Arte Africana, Maria Corina Rocha recorre
a Farris Thompson, para quem “entre os iorubas existe não só um compor-
tamento voltado para a crítica da arte como também um vocabulário muito
preciso. Ou seja, não se pode afi rmar que inexistem meios de expressar
valores estéticos entre os povos africanos produtores de arte, ainda que
esses sejam peculiares a eles, como os nossos meios revelam a nossa visão
ocidental da cultura e do mundo” (ROCHA, 2007, p. 60).
É preciso lembrar, porém, que o valor estético de determinado objeto,
numa sociedade tradicional, nunca está dissociado de seu valor simbólico,
ou seja, do prestígio de seu dono, dos rituais e fatos outros em que esteve
presente, das divindades às quais está ligado, das lembranças que des-
perta etc. Do mesmo modo, se a forma do objeto pertence ao artista, seu
signifi cado é dado pela comunidade a partir do contexto de uso do mesmo,
isto é, a sua inserção em determinada situação cênica, que pode envolver
o canto, a fala, a música instrumental e a performance corporal em suas
diferentes modalidades. Há como que um hiato entre a criação do objeto
pelo artista e sua utilização pela comunidade, que, reiteradamente, o res-
signifi ca: um ex-voto tanto pode virar brinquedo infantil quanto Menino
Deus na Lapinha; um pote transforma-se em uma urna funerária; algui-
dar, em jarro de fl ores etc.

100 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Em pesquisa desenvolvida em regiões do Congo, próximas à Gâmbia
e à Angola, nos anos 60 do século passado, com o objetivo, dentre outros,
de saber se os tshokwe, povo nativo do lugar, faziam distinção entre o que
é arte e o que não é, Daniel Crowley observou que eles estabeleciam uma
ligação entre saber como fazer bem um objeto e saber como fazê-lo belo (RO-
CHA, 2007 p. 94). Ao fi nal de seu trabalho, o pesquisador norte-americano
conclui com uma lista de 19 itens por ele considerados como “expressões
de valor estético”, entre os quais constavam: máscaras e esculturas de ma-
deira, objetos de uso doméstico em cerâmica ou fi bra, objetos de metal com
função utilitária ou decorativa, instrumentos musicais, vestimentas de fi -
bra, narrativas orais, cânticos, contos, lendas, provérbios, músicas, danças
e ritos em geral (ROCHA, 2007, p. 94).
Na maior parte das vezes, esses objetos de valor estético estão ligados
a ritos de iniciação ou passagem, na condição de objetos sagrados. Funcio-
nam, quase sempre, como expressão de conceitos, valores e referências na
narrativa da história de seu povo, afi rmando a presença da arte em momen-
tos cruciais da vida dos grupos sociais e do indivíduo, exatamente quando
se processam nela mudanças fundamentais.
Durante os ritos de iniciação nas sociedades tradicionais, ao se pre-
pararem para a vida adulta, os jovens são iniciados nas diferentes lingua-
gens artísticas dentre outros conhecimentos. Esse aprendizado inclui o con-
junto das artes – o canto, a dança, a música instrumental, a narrativa oral,
a pintura corporal, a escultura, a confecção de máscaras etc. – o conheci-
mento minucioso do meio-ambiente, sua diversidade de matérias-primas,
bem como as técnicas de manipulação de cada uma delas. Dessa maneira,
o jovem não apenas aprende o valor e o signifi cado de cada uma daquelas
expressões artísticas, de cada um daqueles objetos sagrados, mas também
como assenhorear-se deles, como produzi-los.

1. Como se dá a relação entre arte e artesanato nas sociedades tradicionais?


2. Como se expressa a preocupação estética nas sociedades tradicionais?

ANTROPOLOGIA DA ARTE 101


Capítulo 2
Arte como Ofício

Na África Ocidental, antigo Império Mandinga, atuais Mali, Guiné


e Burkina Faso, o povo malinca vivia dividido em três castas. A primeira
era a dos nobres e a terceira a dos escravos. Entre as duas, situavam-se os
ñàmàkálá, casta que reunia os griots (mestres da palavra), ferreiros, tece-
lões, artífi ces do couro e da madeira. Ser um ñàmàkálá era condição her-
dada por nascimento e para toda a vida. Como forma de assegurar a trans-
missão e a manutenção dos segredos de ofício, os casamentos só podiam se
ñàmàkálá realizar entre pessoas da mesma casta. Os ñàmàkálá, considerados como
Palavra que signifi ca força pessoas com poderes especiais, eram temidos e respeitados, não podiam ser
oculta contida em todas escravizados e recebiam dos nobres deferências especiais, como presentes,
as coisas.
consideração e sustento (BERNAT, 2008, p. 65).
Cada ofício constituía-se numa forma de poder oculto e, entre eles,
havia uma hierarquia determinada pelo tipo de conhecimento e iniciação
exigidos. O ferreiro ocupava o posto mais alto na escala, seguido pelo tece-
lão, pelo trabalhador de madeira e de couro, todos superiores ao griot. No
interior de cada ofício, havia subdivisões, muitas das quais perduram ainda
hoje. Entre os ferreiros, por exemplo, ocupa o posto primeiro o ferreiro de
mina ou de altoforno, para virem, em sequência, o ferreiro de ferro negro e
o ferreiro de metais preciosos.
O ferreiro, não por acaso, é considerado como o primeiro fi lho da ter-
ra, como o mestre do fogo e senhor das transmutações.
Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador
Maa Ngala ensinou entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso, a
forja é chamada de Fan, o mesmo nome do ovo primordial, de onde sur-
giu todo o universo e que foi a primeira forja sagrada. Os elementos da
forja estão ligados a um simbolismo sexual, sendo esta a expressão, ou
o refl exo, de um processo cósmico de criação. Desse modo, os dois foles
redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, são comparados aos tes-
tículos masculinos. O ar com que são enchidos é a substância da vida
enviada, através de uma espécie de tubo, que representa o falo, para a
fornalha da forja, que representa a matriz onde age o fogo transformador
(HAMPÂTÉ BÂ, 1980, p. 197 apud BERNAT, 2008, p. 65).

Em toda a África Ocidental, a metalurgia é arte por demais respeita-


da mercê dos conhecimentos e mistérios que a cerca. Seu exercício é rito
executado em recinto igualmente sagrado, cerimônia cercada de interditos e
prescrições, durante a qual, apenas homens circuncidados e a esposa mais
antiga do mestre ferreiro se podem fazer presentes na ferraria, sob pena da
forja não funcionar.
Nas culturas tradicionais, em que o ferro é de uso antigo, costuma
acontecer de ele ser considerado metal celeste, porque de origem meteoríti-
ca, carregado, portanto, de potência sagrada. Seu poder mágico passa ao
ferreiro e às ferramentas por ele produzidas. Com as mãos, o ferreiro forja
tanto instrumentos capazes de tornar a terra prolífi ca, quanto armas de

102 ANTROPOLOGIA DA ARTE


destruição. Daí seu poder sobre a vida e a morte, sua habilidade sobre-
humana e sua condição, ao mesmo tempo, divina e demoníaca.
Na África Ocidental, na antiga sociedade malinca, o ofício do tecelão,
o segundo na lista de importância na casta dos ñàmàkálá, está ligado à
palavra criadora que se distribui no tempo e no espaço. A faixa de pano em
torno do abdome do tecelão simboliza o passado e o rolo de fio a ser tecido
representa o mistério do futuro. A performance do tecelão mimetiza os ges-
tos da criação. As palavras por ele pronunciadas tornam-se o próprio canto
da vida. O movimento que seus pés imprimem ao tear traduz o ritmo mesmo
da vida. Desse modo, o ofício do tecelão liga-se diretamente à força criativa
do canto em ação (Ver em BERNAT, 2008, p. 65).
É importante observar que, no caso das sociedades tradicionais afri-
canas (assim como nas sociedades tradicionais de modo geral), não há se-
paração entre ofício e vida, assim como entre trabalho e espiritualidade,
ou arte e utilidade. Na produção artística, o artífice está integralmente, de
corpo e alma, ou melhor, de corpo inteiro. O aprendizado pelo qual ele pas-
sa quando da sua iniciação é dado por vivências seguidas que abrangem
a totalidade do ser. Para cada ofício, forma-se um homem particular, um
artífice (ou um artista, por que não?) dotado de um saber especial (oculto),
de uma ética e de uma estética, repassados por tradição, através de um
processo prático/teórico que adentra o plano do sagrado. Por esse caminho,
o aprendiz é levado a encarar sua arte não apenas como um trabalho útil,
mas principalmente como algo que dá sentido à sua vida, que deve ser exer-
cido de maneira íntegra, honesta e superior, na condição de missão divina.
Concepção semelhante a essa, da arte como ofício e missão divina, foi
posta em prática na cidade cearense do Juazeiro do Norte, pelo Padre Cíce-
ro Romão Batista, entre seus seguidores, quando lá viveu de 1872 a 1934.
Como pároco e líder religioso, o Padrinho Cícero (forma como os romeiros
lhe chamavam) fez da cidade um centro de peregrinações do povo pobre
do Nordeste brasileiro. Recebia, em sua casa, não apenas os moradores da
cidade, mas também todos os que lá buscavam abrigo, encaminhando a to-
dos. Sob o lema ‘trabalho e oração’, havendo um oratório e uma oficina em
cada casa, encaminhava a todos para um ofício.
Tais ofícios cobriam um arco amplo de atividades, desde a de cuidar
do gado, passando pela de plantar roça, até a ocupação de professora pri-
mária. Entretanto, como o município praticamente não tinha zona rural, os
ofícios, na maioria das vezes, exigiam habilidades manuais e as artes mais
recorrentes eram as dos ferreiros, funileiros, latoeiros, santeiros, tecelões,
xilógrafos, sapateiros, seleiros, cesteiros, carpinteiros, marceneiros, oleiros,
ourives, das louceiras, trançadeiras, rendeiras e outras do gênero. Mas não
faltavam os vocacionados para artes outras, além do trabalho braçal: os
que ganhavam como obrigação brincar reisado, encenar pastoril, acompa-
nhar romaria tocando em banda cabaçal, cantar bendito em irmandade de
penitente, cumprir jornada em dança de São Gonçalo, tornar-se cantadora
de bendito e incelença, escrever romances para cordel, enfim fazer do ofício
uma arte e da arte uma missão sagrada seguida por toda vida e prossegui-
da pelo filho, porque passada a cada nova geração através dos tempos.
Muitos desses romeiros tornaram-se mestres em seus ofícios e, jun-
tamente com suas famílias, constituíram oficinas que funcionavam como
irmandades, em torno das quais se somavam inúmeros agregados. Fizeram
escola e definiram estilos diferenciados, ao modo das corporações da Euro-
pa Medieval, sem que, no entanto, fosse apagada a marca da individualida-
de. Exemplos são: o santeiro Noza, os poetas cordelistas Damásio de Paula e

ANTROPOLOGIA DA ARTE 103


João de Cristo Rei, o tipógrafo José Bernardo da Silva, os mestres de reisado
Zuza Cordeiro e Olimpo Boneca, o cantor e rabequeiro Cego Oliveira, a can-
tadeira Maria dos Benditos e a louceira Ciça do Barro Cru, entre outros.
Tanto as artes de ofício prosperaram em Juazeiro do Norte que, por
muitas décadas, inúmeras ruas centrais da cidade eram nomeadas por ofí-
cios: Rua dos Ourives, Rua dos Alfaiates, Rua dos Ferreiros etc. Ainda hoje,
a marca dessa tradição é notável na cidade, que vive essencialmente das
artes ditas artesanais e do pequeno comércio.

1. Em sua opinião, entender a arte como ofício implica sua desvalorização?


2. Em que implica ter a arte como missão, além de profi ssão?

104 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Capítulo 3
Mestres do Canto e da Palavra

Essa dedicação especial a uma determinada linguagem artística –


por meio de uma iniciação e de um aprendizado sistemáticos, implicando
em obrigações que ultrapassam o plano do trabalho e da sociabilidade co-
tidiana para entrar no território do sagrado –, chega até a contemporanei-
dade entre os povos indígenas brasileiros. Myriam Martins Álvares fez um
estudo sobre os Maxakali, povo que vive no nordeste de Minas Gerais em
várias aldeias espalhadas ao longo dos afl uentes do rio Umburanas, em
que estuda o comportamento dos Yãmiy, seres cantores “donos dos cantos
e das belas palavras” (ÁLVARES, 2006, p. 297), espíritos do além que vol-
tam ao mundo dos vivos para, através dos mestres cantores, cantarem e
dançarem para os humanos.
Segundo os Maxakali, após a morte, a alma dos humanos, assim
como o espírito dos animais, especialmente os dos pássaros, se transfor-
mam em cantos ou em yãmîy: o espírito cantor ou o mestre criador de can-
tos que mora no além, mas que volta ao mundo dos mortais para cantar e
dançar com eles. Para que isso aconteça, os yãmîy precisam ser chamados
pelos mortais. De princípio, todos os homens possuem essa capacidade;
porém, alguns se tornam especialistas nos rituais de chamar e controlar o
trânsito dos yãmîy.
Entre os Maxakali, os cantos são elo, movimento e expansão, via que
une as diferentes dimensões da realidade, o mundo visível e o mundo invi-
sível, a esfera dos viventes e a esfera onde habitam os yãmîy. “Por isso, os
cantos são chamados – transporte e passagem -, são caminhos através dos
quais os Maxakali e os yãmîy comunicam-se” (ALVARES, 2006, p. 301).
Essa comunhão espiritual, propiciada pelo canto dos yãmîy, se estabelece
de modo pleno e coletivo. Por se ter como dom natural, seu canto é próximo
ao dos pássaros e é sempre antecedido e fi nalizado por trinados e assovios
de aves. É sempre um canto em grupo. Um yãmîy nunca canta só.
Cabe ainda observar que, entre os Maxakali, os cantos constituem-
se em veículos não apenas de comunicação com os espíritos da natureza e
dos antepassados, mas também de referência às diversas facetas das rela-
ções humanas: políticas, sociais, familiares e de trabalho. Por isso, possuir
yãmîy é parte da formação para a vida adulta. Implica um longo processo
de aprendizado, iniciado na infância através de uma sequência de ritos e da
obtenção de conhecimentos que se intensifi ca na adolescência e se estende
por toda a vida, só se concluindo com a morte.
Todo esse processo de constituição do indivíduo tem como veículo a
música e o próprio ato de cantar. Por força do canto (do sopro divino) se
nasce, por um processo de cânticos sucessivos se amadurece e, no fi nal da
vida, se passa para a dimensão do além pela via da transformação do espí-
rito em canto. Na forma de yãmîy, se volta para estar entre os vivos. Na pele
de um mestre criador de cantos, se é recebido por pajés e xamãs através de
sonhos ou mesmo em vigília, para com eles cantar e dançar.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 105


Em seu artigo, Myriam Álvares refere-se à prática, comum entre os
Maxakali e também entre os Pataxó e os Krenak de Minas Gerais, de “rece-
ber”, por meio de sonhos ou diretamente, o canto dos espíritos que, em se-
guida, são tornados coletivos. Cita, inclusive, dois mestres cantores, Walde-
mar Krenad e Kanátio Pataxó, particularmente especializados no trabalho
de “receber” cantos: “esse trabalho exigia que ele se afastasse do convívio
com os outros, ficasse próximo à natureza ou em sonhos” (ÁLVARES, 2006,
p. 300). Ao contrário de outras culturas, nas quais os xamãs ou os mágicos
vão ao mundo dos espíritos para comunicar-se com eles, entre os indígenas
do nordeste de Minas Gerais, são os espíritos que viajam até os homens, que
só precisam estar receptivos para recebê-los.
Entre os povos bantos da África Ocidental, como já foi dito neste ca-
pítulo, no interior da casta dos ñàmàkálá, formada por mestres de artes e
ofícios, aparecem os griots, igualmente mestres, mas da fala e do canto. Sua
arte é a da palavra. A base de sua formação se dá em torno do canto e da
música, que animam a poesia lírica e a narrativa épica. Os griots são os de-
positários da memória de seu povo, da história dos reis e das comunidades
às quais pertencem. São eles os encarregados de colher, acumular e fazer
essa memória circular, de fazer dela algo vivo e em permanente renovação.
Os griots podem ser divididos em três tipos: os músicos, os embai-
xadores e os historiadores, genealogistas e poetas. Os músicos compõem,
tocam instrumentos e cantam tanto músicas antigas, quanto novas de sua
autoria. Os embaixadores, também chamados cortesãos, mediam diálogos
entre as grandes famílias, notadamente as de nobres. Os historiadores, po-
etas e genealogistas são grandes viajantes e, além das ocupações antes
mencionadas, são exímios contadores de histórias.
Nas sociedades africanas, os griots, como mestres da palavra, pos-
suem uma posição independente de relativa liberdade de opinião, podendo
emitir juízos muitas vezes nem aos nobres permitidos. Suas falas são temi-
das, porque flutuam do elogio à crítica. Como porta-vozes de notícias e reca-
dos, podem semear desavença e mentira na mesma medida que concórdia e
conciliação. No interior de uma sociedade, a atuação de um griot tanto pode
contribuir com a paz quanto fomentar a guerra. Mestre na arte de seduzir,
ele pode trazer o bem ou o mal. Diz-se, por isso, que ele tem duas línguas.
Mas o verdadeiro griot deve saber escolher a palavra certa, a palavra escla-
recedora que propicie o entendimento no intrincado dos conflitos humanos.
Os africanos costumam comparar o trabalho do griot ao de alguém
que ajuda a fazer circular o sangue pelo corpo humano. No caso, o sangue
é a palavra. Os griots a ajudam a circular pelo corpo social, de modo a que
esse permaneça sadio, sem que adoeça pela exacerbação dos conflitos.
Entre os outros de sua casta, ele é o único a não ter um ofício manual ou
desempenhar uma atividade prática; entretanto, sua fraqueza no terreno
material é compensada pelo domínio no campo da palavra e da memória.
A mente de um griot será sempre a grande enciclopédia de saberes da
história de sua gente, de suas lutas e amores, de seus hinos guerreiros e
canções apaixonadas.
Sotigui Kouyaté, griot do antigo Império Mandinga da África Ociden-
tal, assim se define:
Eu sou griot. Sou eu, Djeli Mamadou Kouyaté, filho de Bintou Kouyaté e
de Kjeli Kedian Kouyaté, mestres na arte de falar. Desde tempos imemo-
riais os Kouyaté estão a serviço dos príncipes Keita do Mandinga: nós so-
mos os sacos de palavras, nós somos os sacos que guardam os segredos
muitas vezes seculares. A arte de falar não tem segredo para nós: sem

106 ANTROPOLOGIA DA ARTE


nós os nomes dos reis cairiam no esquecimento, nós somos a memória
dos homens, pela palavra damos vida aos fatos e gestos dos reis perante
as novas gerações (BERNAT, 2008, p. 58). (Colocar aqui
Foto de Sotigui Kouyaté)

O griot não é apenas aquele que fala, mas também o que escuta a pa-
lavra, quem a acolhe e armazena. Por isso, é o grande depositário das tradições
orais de sua gente, desde os mitos fundadores, passando pelos contos iniciáticos,
até os provérbios e anedotas, assim como o cancioneiro, enfim, toda a memória
constituída pelo povo. Seu ofício é recolher e fazer circular esse acervo oral,
participando de eventos, batismos, casamentos, funerais, festas familiares ou co-
letivas, fazendo aconselhamentos em famílias ou em encontros individuais. Por
isso, o griot está sempre em viagem. Ele é mestre de uma escola nômade, que vai
à casa do aluno com ele trocar saberes. Sua pedagogia é a do conto, da dança e da
música. Sua arte, a da palavra dita de viva voz e corpo inteiro.
A vida de um griot é feita de travessias, encontros, histórias ouvidas e
histórias contadas. Os anos de existência se somam como anos de sabedo-
ria. Por isso, quando na velhice o saber já lhe pesa sobre os ombros, torna-
se urgente que mais se empenhe na transmissão do que aprendeu. É neces-
sário que seu legado passe ao filho como um novelo sem fim de palavras,
em que uma puxa a outra, ou como um mar de saberes, onde alguém pode
se aventurar de barco para pescar o que precisa para alimentar o espírito.
A mochila de um griot é leve. Ele é do tempo em que só a me-
mória se guardava. Uma memória feita de palavras faladas e cantadas: palavras
que são sopros, emanações do espírito, precisando, por isso, ser tratadas com
simplicidade e delicadeza, tanto na arte de contar histórias, quanto no empenho
em estabelecer conciliação e concórdia entre iguais e diferentes. A memória que
traz consigo, o griot sabe não ser sua apenas, mas um bem coletivo, herdado de
uma cadeia ancestral. Sua missão é ampliá-la e partilhá-la sempre mais. Assim se
explica sua avidez pelas viagens e pelos encontros, pelas falas trocadas.
Sedutor por natureza, o griot tem o poder de fazer calar seu interlo-
cutor e ser ouvido, mas dessa magia não abusa, pois saber ouvir também é
uma arte. Saída de sua boca, a palavra do griot pode fazer o mundo entrar
pela porta das casas que visita, mas pelos ouvidos pode receber outros
mundos em seu coração. Nesse sentido, o griot tem sede do desconheci-
do. Na África, por costume se recebe bem o estrangeiro. Diz-se, inclusive,
que todo estrangeiro é rico, porque traz consigo algo que se desconhece.
Por isso, tem direito a boa acolhida, hospedagem e alimentação. Em troca,
pede-se que conte tudo que sabe acerca de si mesmo e de seu povo.
Isaac Bernat, em seu estudo sobre os griots, destaca a importância
que eles dão ao conhecimento do outro, ao saber dar atenção ao outro, querendo
enfatizar que o griot, ao contrário do que se possa pensar, não é apenas um emis-
sor contínuo, mas um receptor atento. A propósito dessa questão, Bernat reproduz
uma fala de Sotigui Kouyaté:
Na África acreditamos que o pior mal é a ignorância. Isto é, não saber o
que se passa com os outros. Temos provérbios que nos ensinam a não nos
perdermos no olhar dos outros. Olhar, olhar bem para nos encontrarmos
no olhar do outro. Desta maneira, veremos que há mais coisas que nos
aproximam do que coisas que nos afastam. Assim podemos encontrar
nas outras pessoas todas as nossas qualidades, e caminhar em direção
ao melhor de nós mesmos. (BERNAT, 2008, p.36)

ANTROPOLOGIA DA ARTE 107


1. De sua convivência, você conhece alguém que pode ser comparado a um
griot ou que tenha o dom de receber um yãmîy?
2. Qual o tipo social ou artístico cuja função no interior da cultura brasi-
leira, na sua opinião, mais se aproxima do griot?

108 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Capítulo 4
A arte de Narrar

Quando nos debruçamos na pesquisa e no estudo dos griots e de


outros contadores de histórias, acabamos convencidos de que o teatro tem
entre suas origens e manifestações, a arte de narrar. Isso fi ca bem evidente
tanto na África Ocidental, quando um griot se põe a contar uma história
num quintal qualquer, quanto numa feira do Nordeste brasileiro, quando
um mascate atrai o público com a narrativa de uma missa cômica ou outro
fato picaresco qualquer antes de apresentar a excelência de seus produtos.
O griot, particularmente, é um ator que faz da palavra o centro de sua
atuação. Em sua boca, a palavra adquire poderes mágicos, contém mana,
para usarmos um termo explicitado em capítulo anterior. Por via de sua
fala, o invisível se manifesta. Soam as palavras dos espíritos. O que se ouve
é a voz da grande tradição, seus ensinamentos. Ao alcance dos homens, é
colocado um saber múltiplo que inclui a religião, a arte, a natureza, a his-
tória, o corpo, o riso e o jogo.
Em povos de culturas eminentemente orais, como as africanas, o te-
atro afl ora a cada instante do cotidiano. Os fatos circulam pelas falas e se
transmitem aos ouvidos. Para que haja teatro, só basta que alguém escute
um narrador e, entre eles, se trave uma relação dialógica. Formam-se rodas
em torno de quem tem a palavra. Ali está o ator e seu público. Basta que um
mascate, numa feira, admita discutir o preço de um produto e que o cliente A propósito, quando os
barganhe na compra. críticos classifi cavam as
obras de Gabriel Garcia
Em suas narrativas, os griots falam de um mundo em que as me- Marquez dentro do rea-
tamorfoses homem/animal são frequentes. No imaginário de seus contos, lismo fantástico, ele cos-
animais se comportam como homens e vice-versa, não apenas como recur- tumava protestar dizendo
que elas apenas são rea-
so estilístico ou para efeito didático, mas porque muitos povos africanos listas; o fantástico é par-
acreditam na metamorfose homem/bicho, ou seja, que homens podem se te da realidade do mundo
encantar em bichos, assim como animais podem se encantar em humanos. por ele retratado.

Daí o maravilhoso flui, com realismo, de suas narrativas.


Os contos tradicionais africanos são divertimentos, ou melhor, (a)diver-
timentos sobre a vida e o comportamento em sociedade, que repassam, com
sabedoria, o legado ético das antigas gerações. Sua pedagogia evita moralis-
mos repressivos e imposições intimidantes, trabalhando através de jogos me-
tafóricos e correspondências alegóricas, uma didática sutil e bem humorada
muito ao gosto das crianças, embora voltada para todas as idades.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 109


A Arte do Gato Maravilhoso
Era uma vez um mestre de esgrima que se chamava Shoken. Era um
homem maravilhoso, de uma gentileza rara. Ele gostava de todo mundo,
de todo o gênero humano e, sobretudo, da natureza. No entanto, ele não
gostava dos ratos. Ora, na sua casa, um grande rato causava desordem.
Mesmo em pleno dia, ele corria por toda parte. Um dia, o dono da casa o
trancou no seu quarto e disse ao seu gato doméstico para apanhá-lo. Mas o
rato saltou no pescoço do gato e o mordeu tão cruelmente que ele escapou
miando muito alto.
Em seguida, Shoken trouxe vários gatos da vizinhança, famosos pela
suagrande valentia, e os fez entrar no quarto. O rato estava sentado, enco-
lhido sobre si mesmo num canto e, no momento em que um dos gatos se
aproximou, o rato saltou sobre ele e o fez fugir. O rato tinha um ar tão feroz
que nenhum dos gatos ousava se aproximar dele novamente. Então, o dono
da casa fi cou com raiva e correu ele mesmo atrás do rato para matá-lo. Mas
este evitava todos os golpes do sábio mestre de esgrima, que quebrou por-
tas, shojis, karamis e outros objetos, enquanto o rato escapulia rapidamen-
te pelo ar como um relâmpago, esquivando-se de cada um dos movimentos
do esgrimista. Enfi m, pulando no seu rosto, o rato o mordeu. Finalmente,
ofegante e pingando de suor, Shoken chamou seu serviçal e lhe disse: “Pa-
rece que, há seis ou sete Cho (medida de distância) daqui, vive o gato mais
valente do mundo. Vá e traga-o”
Dito e feito. O serviçal trouxe o gato em questão, que era, de fato,
uma gata que não parecia muito diferente dos outros gatos; ela não tinha
o ar nem particularmente inteligente, nem particularmente perigoso. As-
sim, o mestre de esgrima não fi cou, a princípio, particularmente confi ante.
No entanto, ele abriu a porta e a fez entrar. Calma e silenciosa, como se
não esperasse nada de especial, a gata avançou dentro do cômodo. O rato
teve um sobressalto e não se mexeu mais. A gata, com toda simplicidade,
se aproximou lentamente dele, o pegou pelo focinho e o levou para fora. E
durante a noite, os gatos que tinham apanhado se reuniram na casa de
Shoken. Respeitosamente, eles ofereceram, à velha gata, o lugar de honra,
ajoelharam-se na sua frente e disseram modestamente: “- Nós todos temos
a reputação de sermos valentes. Nós treinamos nesse caminho e afi amos
nossas garras a fi m de vencermos qualquer rato ou até mesmo as lontras ou
as doninhas. Jamais poderíamos acreditar que existisse um rato tão forte.
Por qual arte você conseguiu vencê-lo tão facilmente? Não faça disso um
segredo, conte para nós.”
Então a velha gata riu e disse: “– Vocês, jovens gatos, mesmo sendo
valentes, ignoram o verdadeiro caminho. É por isso que vocês deixam de
ser bem sucedidos quando se encontram diante de alguma coisa que vocês
não têm a menor ideia. Mas, primeiro, me digam como vocês treinaram?”
Então um gato preto se aproximou e disse: “– Eu venho de uma linhagem
célebre em capturas de ratos. Assim, eu decidi prosseguir nesse caminho.
Eu sei saltar sobre altos biombos de dois metros. Eu sei entrar num bura-
co minúsculo onde só um rato pode se enfi ar. Desde criança, eu pratiquei
todas as artes acrobáticas. Mesmo acordando, quando eu não estou ainda

110 ANTROPOLOGIA DA ARTE


totalmente presente, no momento em que encontro meu espírito e eu vejo
um rato correr sobre uma viga, de um salto, PLIF, eu o apanho. Mas este
rato era o mais forte que já encontrei e eu fui submetido ao mais espantoso
fracasso de toda a minha vida. Eu tenho vergonha disso.”
Então a velha gata disse: “Pobrezinho, isso no que você se exercitou
não é propriamente nada além de uma técnica, uma arte puramente física.
Quando os antigos ensinavam a técnica, para eles era apenas uma das for-
mas do caminho. A técnica deles era simples, mas havia, no seu seio, uma
grande sabedoria. O mundo hoje em dia se ocupa unicamente de técnica.
Com certeza, muitas coisas foram inventadas dessa forma, de acordo com
a receita: ‘Com a condição de fazer isto ou aquilo, obtemos isto ou aquilo.’
Mas o que se obtém? Nada além da habilidade. Abandonando o caminho
tradicional, instauramos, com uso da inteligência até o excesso, a compe-
tição dentro da técnica e agora avançamos mais. É sempre assim: ou só
pensamos na técnica ou só nos servimos da nossa inteligência. É claro que
a técnica é uma das funções do espírito, mas se ela não tem raiz no cami-
nho e se ela visa somente uma habilidade, ela se torna o germe do falso e o
resultado é nefasto. Portanto, recolha-se e exercite-se daqui para frente no
caminho justo.”
Então, um grande gato malhado se aproximou e disse: “- É, eu penso
que unicamente o espírito é que conta na arte cavalheiresca. Assim, desde
sempre eu me exercitei nesse poder. Agora, me parece, meu espírito está
duro como o aço e livre, cheio do espírito que preenche terra e céu. Assim
que eu percebo o inimigo, logo esse espírito todo poderoso o fascina e, por
antecedência, a vitória é minha. Então, aí somente eu me aproximo sem
refletir, assim como a situação exige. Eu me oriento de acordo com o som do
meu adversário. Eu fascino o rato de acordo com o meu querer: à direita, à
esquerda, eu apreendo cada um dos seus movimentos. Oh! Quanto à téc-
nica como tal, eu não me preocupo. Ela se faz por ela mesma: um rato que
corre sobre uma viga, eu o fixo e PAF! Assim que ele cai, ele é meu. Mas,
aqui, este rato misterioso chegou sem forma e se foi sem deixar traços. O
que é? Eu o ignoro.”
Então, a velha gata disse: “Só porque você se deu ao trabalho, não é
nada além de uma força psíquica e não sai nada de bom que mereça o nome
de bom. Estar consciente do poder do qual você quer se servir para vencer
é suficiente para agir contra a sua vitória. O seu EU entra em jogo. Mas se
o EU do outro é mais forte que o seu EU, o que vai acontecer a você? Se
você quer vencer o seu inimigo unicamente pela sua força superior, ele vai
se opor com a dele. Você imagina ser o único forte e crê que todos os outros
são fracos? Mas como se comportar se existe alguma coisa que não se pode
vencer, com a melhor boa vontade, por sua própria força, seja ela superior?
Eis a questão: a força espiritual que você sente em você ‘dura como o aço,
livre e preenchendo terra e céu’ não é a grande Potência ela mesma, mas
apenas seu reflexo. E assim o teu próprio espírito é a sombra do grande
Espírito. Diz o ditado: ‘Um rato encurralado morde até mesmo o gato.’ O
inimigo diante da morte não depende de nada. Ele esquece sua vida, ele
esquece toda a necessidade. Ele se esquece dele mesmo e está livre para
vencer ou fracassar. Ele só visa preservar a sua existência. É assim que a
sua vontade é forte como o aço. Então, como vencer uma força espiritual que
nós mesmos nos atribuímos?”
Então, um gato cinza mais idoso se inclinou e disse: “- Sim, na ver-
dade, é da forma como você diz. Por maior que seja a potência psíquica, ela
tem em si uma forma. Mas tudo que tem uma forma, mesmo que seja sutil

ANTROPOLOGIA DA ARTE 111


é atingível. É por isso que, há muito tempo, eu passei a exercitar a minha
alma (a potência do coração). Não sou eu que exerço essa potência que arra-
sa o outro espiritualmente (o ‘eu’ como o segundo gato). Eu também já não
brigo mais (como o primeiro gato). Eu me concilio com aquele que está na
minha frente, eu me torno um com ele e não me oponho de forma nenhu-
ma. Quando o outro é mais forte que eu, eu cedo e me abandono, digamos
assim, à sua vontade. De certa forma, a minha arte consiste em apanhar
um jorro de cascalhos com uma rede maleável. O rato que quer me atacar,
por mais forte que seja, não encontra nada onde se apoiar, nada de onde ele
possa se lançar. Ora, este rato não jogou o jogo; ele chegou, ele partiu, sem
poder ser pego como uma divindade. Eu nunca vi algo parecido.”
Então a velha gata respondeu: “Isso que você chama de conciliação
não procede do Ser da grande Natureza. É uma conciliação desejada, arti-
ficial. Uma astúcia. Conscientemente, você não pode escapar, dessa forma,
da agressividade do inimigo. Mas se você pensar bem, ainda que furtiva-
mente, ele percebe a sua intenção. Ora, se dentro de tal disposição você
se mostra conciliador, o seu espírito pronto para o ataque se confunde. A
sua percepção e a sua ação são perturbados desde o seu interior. Tudo que
você começa a fazer com uma intenção consciente entrava a vibração ori-
ginal da grande Natureza, atrapalha o aparecimento da sua fonte secreta
e perturba o curso do seu movimento espontâneo. De onde viria, então,
essa eficácia milagrosa? É unicamente não pensando em nada, não que-
rendo nada e não fazendo nada, mas se abandonando no teu movimento
com a vibração do ser, que você não teria mais nenhuma forma atingível.
Só uma coisa importa: que a menor suspeita de consciência de si não entre
em jogo. Senão, tudo está perdido. Se pensarmos no objetivo, mesmo de
uma forma fugidia, tudo se torna artificial. Somente se você está no estado
onde você é livre da consciência do eu, somente se você age sem agir, sem
astúcia, abandonando toda a intenção, treinando a não intencionalidade
e deixando o ser atuar, então somente aí é que você está no verdadeiro
caminho. Esse caminho é inesgotável.”
E, depois, a velha gata acrescentou: “Você não deve acreditar que o
que eu acabo de vos dizer seja o que há de mais elevado. Não faz muito
tempo, num vilarejo vizinho ao meu vivia, um gato doméstico. Durante os
dias ele dormia. Nada nele transparecia alguma coisa que se assemelhasse
a uma força espiritual. Ele estava lá estendido como um pedaço de madeira.
Ninguém jamais o tinha visto pegando um rato. Ora, lá onde dormia e vivia,
assim como nas redondezas, não havia ratos. Onde ele aparecia e se deitava
não havia mais nenhum rato.
Um dia, eu o visitei e perguntei como se podia interpretar esse fato.
Eu não recebi nenhuma resposta. Três vezes ainda, eu coloquei a minha
questão. Ele se calou. Não era que ele não queria responder, mas que ele não
sabia o que responder.
Então eu soube: ‘aquele que sabe alguma coisa, não sabe que sabe’.
Esse gato doméstico tinha se esquecido dele mesmo e tinha, ao mesmo
tempo, esquecido todas as coisas em volta dele: ele tinha se tornado ‘nada’
e tinha alcançado o mais alto degrau da não intencionalidade. E nós pode-
mos dizer que ele havia encontrado o divino Caminho do cavalheiro: vencer
sem matar. Eu estou muito longe atrás dele.” (Conto tradicional africano,
recolhido por Isaac Bernat, ver BERNAT, 2008, p. 288)

112 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Muitos dos contos tradicionais africanos são de conhecimento público
geral. Esse fato, porém, não impede que eles possam ser contados e reconta-
dos inúmeras vezes por diferentes griots. Importa o enredo; porém, importa
muito mais o modo como o ato de contar é desenvolvido pelo contador. A
ação de contar uma história implica três instâncias: a dos personagens da
história que está sendo narrada; a do narrador da história, que não deixa de
ser também um personagem; e uma terceira instância, a da pessoa mesma
do contador de história, no caso o ator que, através do seu corpo, possibilita
a entrada de cada um dos personagens em cena.
Ao colocar-se no lugar do narrador, o contador o faz por inteiro, com
todos os recursos de seu corpo. Como narrador, ele desenvolve a história,
situando-a no tempo e no espaço, estabelece sua progressão e a mudança
de cenários. Ao se deslocar para o corpo de cada um dos personagens, o
contador o faz de maneira a não deixar dúvidas, de forma inconfundível e
marcante. Ao notar alguma dificuldade da plateia, ele pode se comunicar
diretamente com ela, combinar gestos e sinais, trocar comentários, tornan-
do-a cúmplice não apenas da maneira como a história está sendo contada,
mas de seu próprio enredo. Uma velha história contada por um novo con-
tador pode se tornar uma nova história, se esse novo contador introduzir
uma nova maneira de contar a velha história, porque uma nova maneira de
contar uma velha história sempre a transforma em uma nova história. Ou
seja, um novo olhar torna o já conhecido algo inusitado.
O fundamental é que a história seja entendida pela plateia. Na África
Ocidental, entre os malinca, há a figura do námúnamulá (‘respondedor’ em
maninca), alguém encarregado de observar se a recepção dos ouvintes está
justa e de responder: naamu (é verdade, eu escuto). Isto quando não acontece
de a própria plateia responder, ela mesma, cantando refrões ou intervindo das
maneiras mais diversas durante as narrativas.
Daí haver a preocupação do contador de história de, com simplicidade
e segurança, iniciar por situar a plateia no tempo e no espaço da ação. Sua
fala, seu gesto e até mesmo seu olhar devem ser de tal modo naturais, que
não desviem a atenção da plateia para si. O bom narrador sabe como focar
o pensamento do público na história contada e, sem impor sua visão, deixar
que a imaginação de cada espectador construa sua imagem dos aconteci-
mentos. Para isso, evita fechar o sentido de sua performance, não colocando
uma intenção em cada fala ou um significado em cada gesto, com demasia-
da técnica, sem dar abertura às diferentes subjetividades dos receptores.
Em outras palavras, o bom fabulador é o que sabe colocar-se em segundo
plano para dar lugar à fábula. Ou seja, o contador tem que se apagar para
que o conto brilhe.
Ao mesmo tempo, o griot, como todo bom contador de histórias, está
sempre atento ao tempo presente, ao que se passa em torno, a cada reação
do público. Do público, ele se alimenta para renovar a história, trazê-la de
um tempo e de um espaço quase sempre distante para o presente e o local
e fazê-la viva e útil, experiência prática, ação vivida. Só assim, sua palavra
soa sólida, pedra, contundente, carne viva, como algo nascido de uma vi-
vência, feito para experimentar novas vivências.
O griot fala sem eloquência, sem afetação, num tom de diálogo com
a plateia. Na sua figura, está presente o narrador da história, ele mesmo
um personagem (como foi dito acima) e o contador de histórias (o griot). O
griot alterna esses dois papeis de modo sutil e com simplicidade, a vista da
plateia, sem nenhum subterfúgio. Se o compromisso maior de um griot é a

ANTROPOLOGIA DA ARTE 113


transmissão de conhecimentos, sua primeira preocupação é com a clareza
na emissão de sua mensagem.
Para que as mesmas velhas histórias continuem vivas, seu referencial
é o público. Em sua performance, mais que contar para a plateia, ele deve
contar com a plateia, num jogo de parceria, de cumplicidade (Ver BERNAT,
2008, p. 256). Entretanto, é preciso evitar algumas armadilhas, tanto a de
se perturbar com aquele ouvinte sonolento, como a de se deixar seduzir pelo
riso fácil ou pelo enternecimento excessivo daquele espectador que busca
monopolizar a atenção do narrador para si. É preciso não perder a atenção
(dada) ao conjunto.
Finalmente, outro elemento é fundamental para uma boa narração:
a empatia entre o contador e a história a ser contada. Ou seja, embora se
tratando de contos tradicionais, passados em épocas e lugares distantes
ou imaginados, o contador deve dominá-los de tal modo que os faça seus,
tornando-se senhor de todos os seus mistérios e detalhes. Só conhecendo
as inúmeras possibilidades de interpretação e a multiplicidade de caminhos
que o narrador pode percorrer em sua fabulação, o contador de histórias
poderá tirar do conto o maior proveito possível em sua performance junto à
plateia. Nesse sentido, o contador de história é uma via pela qual as velhas
histórias atualizam-se, um canal através do qual a tradição se renova e o
verbo se faz carne.
Diz-se sempre que o bom ator é aquele que atua com o corpo todo. Por
consequência, o bom contador de histórias é aquele que narra com o corpo
inteiro. No caso da Commedia dell’Arte, por exemplo, como veremos adiante,
o ator, com o auxílio da máscara, utiliza ao máximo o gestus corporal em
seu trabalho narrativo. No caso do griot, assim como dos bons contadores
africanos, de modo geral, o contrário parece ser verdadeiro. Seu instrumen-
to narrativo concentra-se na fala. Simplesmente, ele senta-se e, com gestos
mínimos, debulha sua história, envolvendo toda uma roda de ouvintes com
sua narrativa. Tal capacidade de empatia, no entanto, só é conseguida por
contadores com muita experiência. Em todo caso, deve haver uma adequa-
ção entre a expressão oral e a postura corporal do contador, assim como
entre a maneira de apresentação do conto e a disposição do público.
Essa capacidade de sedução, essa “autoridade” sobre o público, para
ser melhor entendida, pode ser exemplificada pela performance de dois ar-
tistas geniais, contadores de histórias, espécies de griots brasileiros, guar-
dadas as diferenças. Um é Valdemar dos Passarinhos, artista potiguar, ha-
bitante de Mossoró, que se apresenta imitando pássaros, fazendo outros
números e contando pequenas histórias nas feiras do Rio Grande do Norte.
Ao contrário de muitas tradições orientais, em que o ator emprega o máxi-
mo de energia para o menor gesto, Valdemar dos Passarinhos, na simpli-
cidade de sua atuação, parece empregar a menor energia possível até nos
gestos mais amplos. Atua por costume, através de hábitos incorporados por
anos de atuação, tal a facilidade como se apresenta perante o público. Não
poderia ser diferente porque, sua performance numa roda de feira, por ve-
zes, dura horas seguida, tornando desaconselhável, para um homem de sua
idade, tanto dispêndio de energia.
Exemplo mais apropriado ainda é o do notável poeta Patativa do As-
saré, falecido há poucos anos, capaz de guardar toda a sua extensa obra
de memória. Grande parte da obra de Patativa é composta de pequenos ro-
mances populares, histórias de trancoso, fábulas exemplares, versos líricos
e narrativas épicas, poemas por ele criados ao modo dos trovadores, corde-
listas e cegos de feira (ele próprio, quase inteiramente cego). Testemunhei,

114 ANTROPOLOGIA DA ARTE


inúmeras vezes, o fascínio de suas narrativas, cantadas ou faladas, sobre
seus ouvintes. Pouco ele gesticulava e, com a idade avançada, sua voz, por
vezes, parecia vacilar. Porém, seguia em frente, com a mesma coerência no
estilo, na cadência, na pontuação, nas infl exões, no modo de dizer; enfi m,
encantava a todos.
No fi nal da década de 1980, Patativa foi convidado pelo cantor e com-
positor Raimundo Fagner, de quem se tornara parceiro, para se apresentar
com ele em um grande show de rock ao ar livre na praia de Santos. Fagner,
que havia a pouco conhecido Patativa e dele se encantara, queria apresen-
tar o bardo de Assaré ao grande público do Rio e de São Paulo. Na hora
de chamá-lo ao palco, entretanto, temeu pela sorte do seu convidado. Isso
porque, o público, formado por uma multidão de jovens barulhentos afi cio-
nados do rock, como era de se esperar, mostrava-se mais disposto a cantar
e a pular que a ouvir.
Para surpresa de Fagner, porém, deu-se exatamente o contrário.
Aquele velhinho, baixo, raquítico, sotaque de matuto, voz pouco potente,
não se intimidou. Falou para aquela multidão como já conhecesse a todos.
Falou sem pressa. Contou suas histórias, disse seus poemas, cantou suas
canções: “Seu doutor, me dê licença pra minha história contar. Hoje eu tô
em terra estranha, é bem triste o meu penar....” A multidão foi calando, sos-
segando. Fez-se silêncio absoluto. Ao fi nal de cada número, havia aplausos
inúmeros. Entre astros famosos e festejados, Patativa foi a estrela da noite.
É importante notar que, na poesia de Patativa, assim como na literatu-
ra de cordel, a escrita é só uma parada provisória da voz. Na verdade, Patati-
va, assim como os poetas de cordel o fazem, criava seus versos de memória,
servindo-se da métrica e da rima como auxiliares para a memorização tanto
no processo de criação quanto no de difusão. Apenas pela necessidade de
publicação, os versos são registrados pela escrita. No caso de Patativa, sabe-
se que muito de sua poesia nunca foi transposta para o papel. Daí a pro- Em disco tendo por nome
priedade de se incluir a obra de Patativa do Assaré, assim como a chamada Nordeste: Cordel, Repen-
te e Canção, lançado em
literatura de cordel do Nordeste brasileiro, no rol da literatura oral. 1975 pela Tapecar, junto
Contadores de histórias, ou melhor, cantadores de romances, griots com fi lme documentário
produzido pela Embrafi l-
cantores (para usar a designação africana) foram também alguns cegos cearen- me.
ses, como o Cego Heleno e, entre os mais famosos, Cego Oliveira e Cego Aderal-
do. Os três tinham em comum cantarem acompanhados de rabecas. Os dois pri-
meiros eram pedintes de feira e viveram no Cariri, mais particularmente entre o
Crato e Juazeiro do Norte. Cantavam benditos, incelenças, baiões, cocos e outros
ritmos; porém, a preferência recaía sobre um repertório vasto de romances tradi-
cionais em rimas que depois foram fixadas em literatura de cordel. Cego Oliveira,
a quem ouvi inúmeras vezes, era dono de uma voz possante e expressiva; quase
sempre, cantava acompanhado de seu filho, também cego. Costumava vender
folhetos de cordel, principalmente romances, sendo o seu preferido, o Romance
de João de Calais. Vendia ainda folhas soltas contendo canções de amor, entre as
quais uma intitulada Na Porta dos Cabarés, que foi posteriormente gravada em
disco por Tânia Quaresma. Já o Cego Aderaldo, morador de Quixadá, fez nome
no Brasil como cantador, mercê sua voz operística e suas qualidades excepcio-
nais no repente e na canção.
A ligação dos cegos à narrativa cantada dos romanceiros é tradição
muito antiga e largamente cultivada. Não apenas entre os gregos, em cuja
história/mitologia aparecem as fi guras marcantes de Homero e Tirésias,
mas também entre outros povos, ao cego é ampliado o poder da voz, em con-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 115


trapartida à perda da visão. Na Europa Medieval, os primeiros dos “canto-
res de gesta” a se especializarem na transmissão do romanceiro tradicional
foram os jograis cegos. Segundo Paul Zumthor,
essa especialização dos cegos constituiu um fato etnológico marcante,
que se pode observar, ainda em nossos dias, em todo o Terceiro Mundo.
Sem dúvida, numa sociedade em que nenhuma instituição assegura nem
o cuidado nem a reinserção do cego, a solução mais óbvia de seu proble-
ma é a mendicância, e o canto pode ser o meio (ZUMTHOR, 1993, p. 58).

Na Europa Medieval, o romanceiro era cantado, isto é, a publicação


de seus textos fazia-se pela voz dos artistas populares (jograis, saltimban-
cos, cantores, recitadores, atores, contadores de história etc.), no sentido de
que eles os tornavam públicos. Geralmente o recitador era também cantor
e músico. Ele cantava a história e se acompanhava. O mesmo passou a
acontecer no Nordeste brasileiro a partir do século XIX, com os cantadores.
Inicialmente, eles não eram apenas repentistas que se batiam em desa-
fios; também cantavam canções e narravam romances épicos ou líricos,
acompanhando-se de rabecas ou violas. Viajavam em animais, aos pares
ou sozinhos, arranchando-se nas fazendas, onde se apresentavam para o
povo das cercanias. Cantavam também nas feiras, mercados e, especial-
mente, durante as festas religiosas. Quase sempre, como bons improvisadores, não
decoravam as histórias que contavam, mas as recriavam a cada apresentação, adaptando-as
aos fatos e costumes locais.
Destaque
Em sua Antologia Ilustrada dos Cantadores, Francisco Linhares e Ota-
cílio Batista abrem o rol de ilustrações com uma foto de Fabião das Queima-
das tendo nas mãos sua rabeca. Fabião foi um cantador negro, nascido no
Rio Grande do Norte e criado na Paraíba, em lugar por nome Queimadas.
Fabião mereceu essa distinção dos autores da antologia, por ter comprado a
liberdade de sua mãe, uma escrava, com o ganho de suas cantorias.

Fabião das Queimadas

Além dos cegos de feira e cantadores, circula, nas praças e feiras do


Nordeste brasileiro, a figura do folheteiro, nome dado a quem vende o folheto
de cordel. O folheteiro, geralmente, expõe seus folhetos em um vistoso mos-

116 ANTROPOLOGIA DA ARTE


truário e, por último, com o auxílio de um microfone ligado a uma caixa de
som, faz a leitura de seus cordéis. Lucas Evangelista, cearense de Crateús,
também autor de muitos folhetos, é um dos folheteiros mais famosos em
atividade. Por força de seu ofício, viajou por quase todo o Brasil, do Sudeste
à Amazônia, embora principalmente pelo Nordeste. Em conversa que tive-
mos, em 2005, ele me contou que, na década de 1950, muitas vezes, chegou
a vender centenas de exemplares de um mesmo romance após uma só lida.
Fato semelhante foi testemunhado pelo folheteiro Antonio ‘Sola Crua’, na
década de 1940, que vendeu 300 exemplares de “A Louca do Jardim” na
Praça da Estação, em Fortaleza, depois de apenas uma leitura (BARROSO,
1982, p. 92).
Por fi m, com referência à arte de narrar, cabe dizer que tanto o conto
quanto a canção trabalhada pela oralidade tendem a se adequar não ape-
nas ao espaço da transmissão direta, ao vivo, quase sempre numa roda
de feira ou praça, a céu aberto, como também ao fi ltro operado pelo gosto
popular. A circunstância de uma roda de feira, principalmente, com os ou-
vintes quase sempre em pé e de passagem, não tolera narrativas de longa
duração nem enredos muito complexos. Em vista disso, é frequente, por
parte dos narradores, a recorrência à redundância, à compactação e até
à simplifi cação dos enredos, quando não apelam a variações de histórias
já conhecidas do público. Em grande parte dos casos, a curiosidade dos
ouvintes não é pelo enredo, mas sim por como o fi o do enredo será desenro-
lado daquela feita. Quanto ao gosto popular, ele retém o que é essencial na
história e na canção; o mais é perdido no processo de transmissão. Como
enfatiza Peter Burke:
Daí o estilo lacônico, a transição abrupta de um episódio para outro, ou
a simples justaposição de duas imagens sem comentários. Esse estilo
elíptico é uma das características estéticas mais atraentes das canções
e estórias tradicionais, e resulta não tanto de decisões individuais, mas
do desgaste provocado pela transmissão oral, uma forma negativa, de
‘criação coletiva’. Por tudo isso, ouvir uma canção ou uma estória tradi-
cional não é tanto ouvir a voz de um indivíduo, por talentoso que seja,
mas ouvir a voz da tradição que fala através dele (BURKE, 1989, p. 170).

1. Qual a função do conto no interior da cultura africana?


2. Quais as principais qualidades de um bom contador de história?
3. Que relação o contador de história deve estabelecer com a plateia?
4. Como o uso da máscara pode interferir na gestualidade corporal do ator?

ANTROPOLOGIA DA ARTE 117


Capítulo 5
O Imaginário Popular e seus Disfarces

Na Europa Medieval, assim como na África Ocidental, entre as artes


de ofício como a do pedreiro, a do ferreiro, a do tecelão etc., listava-se a do
ator, ou melhor, a do comediante profi ssional. Acerca da questão, Dário Fo
afi rma : “Antes de tudo, Commedia dell’Arte signifi ca uma comédia ence-
nada por atores profi ssionais, associados mediante um estatuto próprio de
leis e regras, através do qual os cômicos se comprometiam a proteger-se e
respeitar-se reciprocamente” (FO, 1998, p. 20). Organizados em corpora-
ções, sob a proteção dos reis, esses artistas defendiam-se não apenas das
imposições dos grandes comerciantes, como da prepotência dos nobres e da
alta hierarquia da Igreja. Além disso, defendiam privilégios de exclusivida-
de para atuação no interior dos muros das cidades, contra saltimbancos,
jograis e outros artistas de menor cotação.
Tratava-se de companhias ambulantes formadas por atores profi s-
sionais de várias nacionalidades, cujo eixo de atuação procedia principal-
mente da Itália e França, mas se estendia pelos países vizinhos. Traba-
lhavam com vasto repertório, o que permitia às companhias assentarem
praça durante meses num mesmo lugar, sem repetir espetáculo. Tomavam
por base um argumento, espécie de roteiro, que partia de determinadas si-
tuações dramáticas alicerçadas em personagens típicos, em torno do qual
o elenco, respaldado por um rico acervo de diálogos, gestos, movimentos,
tiradas e outras fórmulas cênicas, improvisava a ação necessária ao de-
senvolvimento do enredo.
No repertório, havia peças para todos os gostos: comédias, dramas e
farsas. A grande experiência dos atores tornava desnecessário o trabalho
de ensaiar e decorar textos. A cada novo espetáculo, o poeta da companhia
reunia o elenco, distribuía os personagens, relembrava o enredo e, em se-
Isso acontecia porque guida, pregava, nos bastidores, a escala das entradas de cena, bem como
tratava-se de atores de o conteúdo de cada uma delas. O importante era colocar bem a situação
diferentes nacionalidades
dramática de abertura e saber conduzi-la até o fi nal.
que quase sempre não do-
minavam as línguas das Os atores da Commedia dell’Arte, ao contrário dos griots africanos,
cidades em que se apre- usavam ao máximo a gestualidade corporal, pelo fato de atuarem masca-
sentavam. O grammelot
era uma espécie de imi- rados, bem como por falarem, na maioria dos casos, em grammelot, uma
tação da língua local, um espécie de língua falsa inventada por eles, que imita a língua da plateia por
fazer de conta que esta- meio de uma paródia macaqueada, o que possibilitava os atores se fazerem
vam falando determinada
língua. entender mesmo quando não conheciam a língua do lugar. Essa gestualida-
de corporal dos atores da Commedia dell’Arte é feita a partir da máscara de
cada um de seus personagens típicos, cuja movimentação toma por referên-
cia a forma de comportar-se de animais domésticos, daí a alcunha recebida
por esses adereços: “máscaras de quintal”.

118 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Na Commedia dell’Arte portar uma máscara implica a incorporação
do personagem que a ela corresponde de modo integral, tanto no aspecto
físico quanto no psicológico. Seguindo esse preceito, a aparência e o com-
portamento do Capitano deve variar entre os de um cão perdigueiro, os
de um mastim napolitano e os de um homem. Já a performance do ator,
que porte a máscara do Pantalone, obriga-se a mimetizar os movimentos
entrecortados de um galo e ter uma aparência que lembre algo entre um
galo, um peru e uma galinha. Já a máscara do Arlecchino pede do ator um
comportamento entre o do gato e o do macaco, com gestos pequenos e su-
aves acompanhados de grandes e enérgicos saltos. O Dottore é o porco e o
Brighella associa o cão com o gato.
É importante observar a ligação entre esses animais de quintal e os
personagens da Commedia dell’Arte, membros da baixa corte à época, ser-
vos e subordinados em geral. Em seus espetáculos, apenas a alta nobreza
não aparecia com máscaras, nem era criticada, fi cando subentendido que,
para essas companhias, somente a alta corte era humana. Nas palavras de
Dario Fo, aprendemos que
aqui [na Commedia dell’Arte] se mostra claramente a dominação de uma
classe: só não eram ridicularizados os detentores do poder absoluto, os
demais, como, por exemplo, os nobres decaídos e miseráveis, os médi-
cos ou os vendeiros, eram tratados como vulgares, impostores e embus-
teiros. Os nobres poderosos, os grandes mercadores e banqueiros nem
sequer eram citados: os que se atreviam a fazê-lo se arriscavam a ser
expelidos para fora da cidade com os ossos quebrados. Portanto, a iro-
nia só era permitida em relação aos personagens e profi ssões odiosos à
burguesia capitalista nascente, que, naquele tempo, estava gerindo toda
a cultura, inclusive o teatro. É essa a classe que solicita aos cômicos o
desenvolvimento de temas particulares e as variações sobre o próprio
tema (FO, 1998, p. 40).

Saltimbancos e jograis pareciam bem mais próximos do pensamento Origem provável da pala-
vra ‘saltimbanco’.
popular. Sempre em busca de artimanhas para burlar a vigilância das
autoridades, subiam, de surpresa, sobre bancas de feira ou saltavam sobre
um banco qualquer (Ver FO, 1998, p. 135) e apresentavam seus números.
Sozinhos, interpretavam dúzias de personagens ao mesmo tempo, inclusive
diálogos entre vários. Em suas comédias grotescas, sátiras e tiradas bufas,
denunciavam a ladroagem dos latifundiários, o roubo dos comerciantes, a
corrupção dos padres e bispos, a hipocrisia dos luteranos. Se não bastassem
as cenas, distribuíam panfl etos aos presentes com caricaturas e diabrites
contra os ricos e bem postos.
Pelos impressos, porém, logo eram presos e faziam encher de provas
contra eles os arquivos das delegacias e dos tribunais. Por isso, aprenderam
a usar, com sutileza, as infl exões da voz e as variações dos gestos corporais.
Assim, puderam mostrar, nas entrelinhas, através de ironias e insinuações,
as vigarices não só dos policiais, médicos, advogados, padres e mercadores,
como faziam os atores da Commedia dell’Arte, mas também da alta nobreza.
O riso, a troça, a gargalhada, a risada, enfi m, sempre foi o grande
recurso do povo contra o poder instituído, seja ele qual for. Mete medo nos
poderosos e por eles é considerado perigoso; logo, tratam de combatê-lo,
porque denota astúcia, imaginação, perspicácia, capacidade de distancia-
mento crítico, de livre raciocínio e afastamento de qualquer pensamento
fechado, de qualquer ideia cega.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 119


Mikhail Bakhtin, em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento, mostra como, na Europa, a festa popular foi o grande reduto
da comédia grotesca, quando a ordem do mundo era invertida pelo riso, pelo
menos até o Século XIV. Nos carnavais e outras festas populares, mesmo
naquelas que faziam parte do calendário religioso, pobres diabos – corcun-
das, mendigos e outros tipos considerados párias sociais – eram coroados
reis, monarcas do desgoverno. Prostitutas eram feitas rainhas e levadas
em cortejo pela cidade. Pobres e ricos, por alguns dias, misturavam-se nas
ruas. Vivia-se um mundo de igualdade e liberdade, prazer e liberalidade,
em antecipação à quaresma que se seguiria.
Até o Renascimento, elite e povo compartilhavam uma mesma cultu-
ra. Com a modernidade, entretanto, a partir mais precisamente da reforma
protestante e da contrareforma católica, a elite não apenas abandonou a
cultura popular, como passou a perseguí-la. Amparando-se numa lógica
racional positivista, pretensamente científi ca, como já vimos nos primeiros
capítulos desse livro, passou a condenar o ponto de vista mágico/anímico
da cultura popular como herético e supersticioso.
O livro de Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna, é pródigo
em descrever os ataques das igrejas cristãs contra as manifestações da
cultura popular.
Os reformadores objetavam particularmente contra certas formas de re-
ligião popular, como as peças de milagres ou mistérios, sermões popu-
lares e, acima de tudo, festas religiosas como os dias de santos e pere-
grinações. Também objetavam contra inúmeros itens da cultura popular
secular. Uma lista abrangente atingiria proporções enormes, e mesmo
uma lista curta teria de incluir atores, baladas, açulamentos de ursos,
touradas, jogos de cartas, livretos populares, charivari, charlatães, dan-
ças, dados, adivinhações, feiras, contos folclóricos, leituras da sorte, ma-
gia, máscaras, menestréis, bonecos, tavernas e feitiçaria. Um número
considerável desses itens criticados associava-se ao Carnaval, de modo
que não surpreende que os reformadores concentrassem suas investidas
contra ele. Além disso, proibiam - ou queimavam - livros, destruíam ima-
gens, fechavam teatros, picavam mastros de Maio e dissolviam ‘abadias
Febo de desgoverno’ (BURKE, 1989, p. 232).
Deus romano equivalente
a Apolo.
Acunhadas de pagãs, as manifestações da cultura popular tradicio-
Flora nal eram, de costume, taxadas pelos teólogos reformadores como coisas do
Deusa romana da prima-
vera.
diabo. Viam-se demônios por toda parte: em invocações a Febo às vésperas
de Reis, em festas de Flora nos jogos de Maio, em deuses gregos na noite de
Proibir danças São João. Aliás, demônios eram todos os deuses pagãos. Chegou-se a proi-
e queimar rabecas
bir danças e queimar rabecas. Denúncia de escândalo maior recaiu contra
O que não era de se ad-
mirar, pela quantidade de os skomorokhi, cujos homens se vestiam de mulher e cujas mulheres se
protagonistas da cultura vestiam de homens, além de terem ursos para seduzir os incautos.
mágica popular queima-
das nas fogueiras da San- Protestantes e católicos estavam em acordo quanto ao caráter de-
ta Inquisição. moníaco das manifestações da cultura mágico-popular. Mas enquanto os
primeiros intentavam a eliminação pura e simples de suas práticas, os ca-
tólicos optaram por buscar sua modifi cação através da retirada de seu ‘pa-
ganismo’ e da sua ‘licenciosidade’.
Em muitos países e regiões da Europa, houve resistência a essas re-
formas e Burke cita, como exemplo, sublevações camponesas ocorridas em
Toscana entre 1788 e 1791, que obrigaram a renúncia de um bispo (Ver
BURKE, 1989, p. 260). Em algumas regiões da própria Europa, distantes
dos centros de controle das instituições eclesiásticas, esse catolicismo ‘pré-
-Reforma’, ou seja, ainda prenhe de elementos mágicos e anímicos, perdu-
rou por longo tempo ou nunca desapareceu de todo.

120 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Com o fi nal do Renascimento, a partir da Europa e se estendendo ao
mundo colonizado pelos europeus, houve como que um processo de ‘cris-
tianização’ da cultura popular tradicional. Na esfera do catolicismo, por
iniciativa de diversas irmandades e padres seculares, mas, principalmente,
por iniciativa dos jesuítas, aconteceu uma política de adaptação deliberada
do calendário festivo católico aos ciclos festivos ditos pagãos. Assim é que a
festa pagã do Solstício do Inverno foi ressignifi cada como o Natal e a festa
do Solstício de Verão, como a festa do nascimento de São João Batista.
Se esse esforço adaptativo, ou melhor, se essa apropriação das festas
populares, com seus ritos e folguedos, foi feita pela Igreja em sua catequese,
em sentido contrário movimentaram-se os sujeitos das culturas populares.
Como forma de fazer sobreviver seus deuses, criaram correspondências com
os santos católicos. Assim é que Nossa Senhora da Conceição corresponde
a Iemanjá, Iansã, a Santa Bárbara, São Jorge, a Ogum etc. Para continuar
coroando seus reis negros nos autos dos reisados, fi zeram de Baltazar, um
dos Reis Magos que vão a Belém, o Rei de Congo e assim por diante.
O caso das Folias de Reis é exemplar. Segundo Câmara Cascudo
(1998, p.69), elas teriam origem nas Kalendas Januari, cultos agrários de
fertilidade, que incluíam danças mascaradas para espantar maus espíritos,
algo próximo aos nossos Caretas. Além disso, de acordo com Curt Sachs, as
folias eram “uma dança de procedência portuguesa, relacionada aos ritos
de fecundidade - um antigo ritual no qual homens mascarados e vestidos
de mulher atiravam-se em transe no chão, como se estivessem possuídos”
(SACHS, 1944, 64 apud MONTEIRO, 2004, p. 37).
Adaptando-se ao ciclo natalino, as Janeiras transformaram-se em
grupos de Tirações de Reis, que ainda hoje no Brasil saem de porta em
porta, cantando e pedindo prendas. Já dos autos europeus natalinos, sur-
gidos no interior das igrejas e abadias entre os séculos X e XIII, que depois
passaram a ser encenados nas praças e ruas, derivaram uma série de fol-
guedos, bailados e danças dramáticas espalhados pelas mais diferentes
regiões brasileiras.
Dentre todos, destacam-se os Pastoris ou Lapinhas e, especialmente
os Reisados que, no Brasil, apresentam-se com inúmeras variantes de acor-
do com cada região. Caracterizam-se como folguedos do ciclo natalino que
giram em torno da fi gura do Rei e do nascimento do Menino Deus. Entre
outras denominações, aparecem como: Folia de Reis, Reisado de Congo,
Congada, Reisado de Caretas, Boi de Reis, Reisado de Caretas, Reisado de
Bailes, Cavalo Marinho, Moçambique etc. No Ceará, ganha os nomes de
Reisado de Congo, Reisado de Careta, Reisado de Baile, Reisado de Couro,
Reisado de Caboclo e Boi.
Em todos esses Reisados, são numerosos e evidentes não apenas tra-
ços europeus pré-cristãos, como de culturas afrobrasileiras e indígenas.
Nas Folias de Reis fl uminenses, os desenhos gravados nos trajes dos palha-
ços são pontos visuais de orixás, assim como a performance corporal des- Ver livro BARROSO,
Oswald. Reis de Congo:
sas fi guras marca uma referência africana direta. Nos Reisados de Congos Teatro Popular Tradicio-
nordestinos, tão abundantes no Cariri cearense, a infl uência cultural dos nal. Fortaleza-CE: MinC/
negros é tão acentuada que se torna redundante citá-la. Cabe destacar, Flacso/MIS, 1996.
porém, a fi gura do Mandu, entidade africana que consta entre seus entre-
meios e aparece também nas Folias de Reis do Sudeste brasileiro.
É interessante notar que algumas das características que Monteiro
(2004) anota como provenientes da cultura ioruba na sua tese sobre o pa-
lhaço das Folias de Reis, também encontradas nos Reisados de Caretas do
sertão cearense, bem poderiam ser atribuídas como de origem ibéricas, por-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 121


que encontradas, por exemplo, nas mascaradas desenvolvidas pelos Care-
tos ou Chocalheiros do Sul de Portugal e Norte da Espanha. Senão vejamos
os traços comuns entre as Folias de Reis e as mascaradas portuguesas e es-
panholas: o uso do bastão ou cacete, assim como da máscara; o desenvolvi-
mento por jornadas através das casas e santuários; o pedido de dinheiro no
círculo de adeptos e associados numa forma de economia de escambo; o uso
do verso em improviso e da memória narrada; a performance gestual qua-
se acrobática da fi gura a partir do centro da roda, permitindo a interação
Caretos ou Chocalheiros
Refi ro-me às festas de in- constante do mascarado com o público; a irreverência, as traquinagens, o
verno que têm lugar na re- jogo e a brincadeira, relembrando antigos ritos em que se invocava espíritos
gião da Galícia e em Bra- ancestrais, anunciando a relatividade dos poderes terrenos e a duplicidade
gança, principalmente.
do mundo (Ver MONTEIRO, 2004, p. 49).
Nas festas e folguedos populares brasileiros, operou-se, no geral, um
duplo movimento. Um primeiro aconteceu no sentido de estabelecer corres-
pondências entre elementos das religiões afrobrasileiras e ameríndias com o
catolicismo, apresentando as manifestações das primeiras sob uma aparên-
cia cristã, num processo que usualmente se chama de sincretismo religioso.
Um segundo movimento se desenvolveu com a transformação de antigos
mitos, ritos e outros procedimentos mágicos em contos, romances, festas,
folguedos, jogos, brincadeiras, danças etc. Por essa dupla via, operou-se
como que um mascaramento da cultura tradicional popular, ou melhor, da
cultura mágico/anímica primitiva, que, se por um lado permitiu sua so-
brevivência, por outro, comprometeu muito da sua complexidade e riqueza,
principalmente nas regiões onde as elites procuraram imprimir, à cultura,
uma feição moderna e racional/positivista no seu todo.
No Nordeste brasileiro e no Ceará, particularmente, esse processo,
longe de se completar, encontrou forte resistência em tradições populares
profundamente arraigadas em uma população praticamente abandonada
pelas elites: daí as nítidas marcas pré-cristãs em seu catolicismo, notada-
mente nos seus rituais de peregrinação, e, consequentemente, a recorrência
constante ao riso e à comédia de modo geral em suas festas e folguedos,
mesmo quando de motivação religiosa como os Reisados, as Quadrilhas
Juninas, os Pastoris e as Malhações de Judas.
Na passagem do rito à festa, quase sempre vem junto outro movimen-
to igualmente importante, ou seja, a passagem do aterrorizante ao grotesco,
do medo ao riso. Digo melhor, exemplifi cando. Os espíritos sombrios da
fl oresta, que na Europa Medieval eram representados, entre outras fi guras,
pelo Homem Selvagem, entidade aterrorizante mascarada de corpo inteiro
com folhas e outros tecidos vegetais, já aparecem, nas tradições popula-
res brasileiras, como o ‘Camarada Folharal’, fi gura alegre e brincalhona,
assídua frequentadora dos Sábados de Aleluia da Festa dos Caretas de Jardim
(cidade do Cariri cearense) e dos Reisados de Caretas nordestinos. Os mascara-
dos com voz mudada e máscara neutra, que nos ritos, como vimos nos capítulos
anteriores desse livro, tinham a função de apagar seus portadores, transformam-
se, nos carnavais populares, em duplos cômicos das entidades anímicas com o
nome de papangus. Testam seu anonimato indagando: - Você sabe quem sou eu?
Os crânios nus e as carcaças de animais são enfeitados e coloridos festivamente:
o terror sagrado e a solenidade fúnebre ganham paródias grotescas nas festas e
nos folguedos populares.
Exemplo particularmente interessante é o do Jaraguá, fi gura dos Bois
e Reisados nordestinos. Ele tem, por base inicial, uma longa vara de madei-
ra tendo numa das extremidades, atada, uma caveira de cavalo ou jumento

122 ANTROPOLOGIA DA ARTE


que, acionada por um cabo, bate incessantemente estalando a queixada. É
conduzido, em seu interior, por um brincante que vem coberto por um teci-
do. Sua canção de chamada diz: Estava debaixo de um arvoredo/ ao meio-
dia estava descansando./ Ouvi um canto tão saudoso,/ só me parece um
passarim cantando.// Ó que bicho feio, Virgem Mãe de Deus, é o Jaraguá, ó
maninha,/ vem pegar Mateus. / Vem com a boca aberta, ó maninha,/ pra
pegar Mateus.// Chegou, chegou,/ lá chegou meu Jaraguá./ O bichinho é
bonitinho,/ ele sabe vadiar./ Brinca bem, meu Jaraguá/ brinca bem, meu
Jaraguá./ O bichinho é bonitinho,/ ele sabe vadiar.
O Jaraguá, como acontece também com o Babau, por ser representa-
do por um crânio nu (no caso de jumento, burro ou cavalo), está ligado ini-
cialmente à morte. Sua aparição ritual é acompanhada pelo apito do mes-
tre, assemelhando-se a um grito agudo, e pelo soar seco da batida dos seus
dentes. Não se sabe exatamente o que ele é. Sua ação, além de rodopiar,
é agarrar alguém pelo braço, fazendo medo principalmente às mulheres e
crianças. Para soltar sua presa, é preciso que receba uma prenda em troca,
seja em forma de dinheiro ou de alimento.
Em muitos Reisados, porém, como denota sua própria peça de cha-
mada, o Jaraguá toma a forma de sua paródia alegre e transforma-se num
pássaro ou até numa girafa (talvez por causa de seu pescoço comprido).
Sua queixada ganha cobertura colorida e seu corpo, tecido estampado com
flores. Outras vezes, sua cabeça, confeccionada em madeira, tem crina e
bico de pássaro. Traz na boca um lenço ou uma espada para trocar por uma
prenda com a assistência. Já não é o bicho feio de que fala a segunda estrofe
da peça de entrada, mas o ‘passarim’ a que se refere a primeira.
A lista de elementos oriundos dos ritos mágicos nos folguedos popula-
res é praticamente inesgotável. Para ficar somente nos reisados cearenses,
poderia citar, ainda, o Urubu, que aparece nos Bois e Reisados de Careta
por ocasião da morte do Boi. Ele desempenha papel importante no episódio
da morte e ressurreição do Boi, assim como o abutre, ao lado da hiena, nos
ritos que explicam a origem do universo entre os povos Bambara e Malinké
da África Ocidental (Ver DIETERLEN, 1988, p. 27). De certo modo, a fre-
quência como as figuras de animais aparecem nos folguedos populares,
fazendo solos ou formando dupla com personagens humanos, também tem
relação direta com a crença antiga das metamorfoses homem/animal e ani-
mal/homem. Essa transformação fica mais evidente no último dia do ciclo
de apresentações dos Bois do litoral cearense, que coincide com o dia 20 de
janeiro, dia de São Sebastião. Nessa data, se faz a Matança dos Bichos e o
Boi é sacrificado. No momento da sua morte, o detalhe mais significativo é
que sua imagem se funde à de São Sebastião, também amarrado e morto
junto a um mourão.
Exemplos de outras figuras de animais ou entidades mágicas oriun-
das de ritos populares carnavalizados que migraram para os Reisados e/ou
outros folguedos populares são o Bode (e outros animais de chifre), oriundo
das mascaradas de Ano Novo medievais da Europa (PATUREAU, 1988, p.
62), o casal de Velhos Caretas, os Cazumbas dos Bois maranhenses, os Ma-
teus e Catirinas dos Cavalos Marinhos e Reisados de Congos, os Palhaços
das Folias de Reis, os Demônios das Quilombadas etc. Muitas dessas figu-
ras eram, originalmente, espíritos obscuros das florestas e de outros ermos
desconhecidos; alguns eram incorporados por meio de máscaras aterrori-
zantes que, por muito tempo, encheram de medo a noite dos homens e, par-
ticularmente, das mulheres e crianças. Pelo brinquedo e pelo riso, a festa
popular, através dos séculos, teve o trabalho de exorcizar esses fantasmas.
Fez deles figuras risíveis e simpáticas, babaus que já não privam as crian-

ANTROPOLOGIA DA ARTE 123


cinhas do sono. Mas se neles desaparece a função ritual, especialmente
para as figuras cômicas, Velhos e Velhas, Palhaços, Cazumbas, Mateus e
Catirinas, Diabos e Demônios, cabe agora, a eles, a tarefa da sátira social.
Mirella Patureau, em artigo sob o título ‘Jogos Mascarados e Teatro
Camponês na Romênia’, analisa o processo de transformação dos ritos pri-
mitivos em manifestações cênicas. Mostra como entidades anímicas indefi-
nidas, criadas pelo inconsciente humano e incorporadas através de másca-
ras, ganharam, no teatro camponês da Romênia, a partir do riso e da festa,
rosto e procedimentos humanos. Vale a citação mais longa:
Porém esse teatro que reabilita uma ordem e consagra uma moral é le-
vado a delimitar seu espaço. Agora, depois de muito tempo, os anjos,
os diabos, os animais demoníacos ou somente bizarros são apagados
para dar lugar aos humanos, à afirmação do meio social e cultural. Os
fantasmas são civilizados em proveito de formas mais restauradoras da
ordem. Porém as máscaras, signos do além, imagens turvas do incons-
ciente primitivo, estão prontas a surgir cada vez que o equilíbrio e o
sentido da vida moderna são postas em questão. As máscaras dos cor-
tejos comunitários continuam a delimitar um espaço de liberdade, de
anarquia, de extracotidiano. Elas funcionam nesse sentido como uma
válvula de escape social da violência e do descontentamento e parecem
então inofensivas e convenientes. Mas as máscaras oferecem também a
chance de outro discurso. Elas abrem fendas – sem perigo permanente,
sem consciência aplicada – na fortaleza de um discurso oficial afirmado
como única religião possível e tolerável (PATUREAU, 1988, p. 68).

A propósito, cabe referência a fato ocorrido ultimamente com os Rei-


sados de Congo no Juazeiro do Norte. Costumeiramente, a figura do De-
mônio aparece apenas em um dos entremeios do Reisado, naquele em que
o Anjo Maldito disputa a Alma com São Miguel, cena inclusive toda canta-
da e oriunda, talvez, da catequese jesuítica. Também, de costume, durante
as Quilombadas, encontro e batalha entre dois Reisados precedido por
cortejo pelas ruas da cidade, o dito Demônio, com seu chicote e tridente
quando era o caso, vinha na frente do cortejo como uma espécie de baliza.
Até aqui, tudo está normal.
De cerca de cinco a sete anos para cá, porém, à frente desses cortejos,
houve um aumento não apenas no número desses Demônios, como também
no de Ursos, que, nos Reisados de Congos, fazem um entremeio com o Italia-
no. Munidos de longos chicotes e tridentes, esses Demônios e Ursos, ocultos
sob máscaras de corpo inteiro, escuras e assustadoras, saem em grande nú-
mero pelas ruas, fazendo piruetas e dando carreiras, não apenas amedron-
tando as pessoas, como até praticando arruaças e pequenos furtos. Tal fato
levou as autoridades policiais a proibir, por tempo indeterminado, a prática
das Quilombadas com a presença dos Demônios e dos mascarados em geral.

Urso Juazeiro do Norte


124 ANTROPOLOGIA DA ARTE
Nas sociedades tradicionais, a arte faz parte do cotidiano, estando
a estética intrinsecamente ligada à ética e a beleza, à utilidade dos obje-
tos. Nessas sociedades, os objetos artísticos desempenham, entre outras,
funções mágico-religiosas, terapêuticas, pedagógicas, sociais e políticas.
Constituem-se enquanto bens coletivos de clãs e familiares. Embora se-
jam produzidos com grande preocupação estética, nunca o são para a pura
contemplação. A divisão estabelecida pelo capitalismo, a partir da Europa
Ocidental, entre arte (para a pura contemplação) e artesanato (com fi ns
utilitários) se mostrou equivocada, pois tudo o que é produzido pelo ser hu-
mano não pode deixar de refl etir interesses sociais.
Ainda nas comunidades tradicionais, o talento individual não de dis-
solve na coletividade. O mestre faz escola, mas cada discípulo encontra a
marca diferencial de seu talento. Muitas padronizações aparecem, não em
decorrência de uma possível tendência imitativa do aprendiz, mas de distor-
ções provocadas pelo mercado capitalista de arte que valoriza a assinatura
em detrimento da qualidade da obra.
Nas comunidades tradicionais, se a forma estética do objeto é dada
pelo artista, seu valor simbólico é dado pela coletividade. É a coletividade
que signifi ca e ressignifi ca o objeto a partir de seu contexto de uso. É ela,
inclusive, que decide se determinado objeto ou determinada manifestação
cultural tem valor estético ou não.
Na África, assim como na Europa, as artes apareceram inicialmen-
te como ofícios. Os artistas formavam uma casta intermediária entre os
nobres e os escravos. Encabeçavam esses ofícios os ferreiros; logo após
vinham os tecelões e os artífi ces de outras artes práticas. Só por último,
vinham os griots, mestres do canto e da palavra. Esses ofícios eram exer-
cidos, no caso da África, não apenas como uma profi ssão, mas como uma
missão de vida. É importante anotar que concepção semelhante foi adota-
da no Juazeiro do Norte ao tempo do Padre Cícero, sob o lema: “em cada
casa um oratório e uma ofi cina”.
Os índios Maxakali, do nordeste de Minas Gerais, acreditam que,
após a morte, a alma dos homens e dos animais, especialmente dos pássa-
ros, se transforma em yãmiy, um espírito cantor que volta ao mundo para
cantar e dançar com os mortais. Por isso, é preciso que se esteja pronto
para recebê-lo. Através dos yãmiy, se tem acesso aos conhecimentos sobre
as duas dimensões da vida: o aqui e o além.
Na África Ocidental, os mestres da fala e do canto são os griots. Eles
podem ser divididos em três tipos: os músicos, os embaixadores e os his-
toriadores, genealogistas e poetas. Eles são os encarregados de acumular,
guardar e fazer circular a memória de seus povos. Por isso, estão sempre
viajando, aprendendo e ensinando. O bom griot é aquele que domina a arte
de ouvir e contar histórias. Para tal, deve fazer da palavra o centro de sua
atuação. Ele deve se ocultar perante a plateia para que o conto apareça.
Na África, os contos funcionam como ricas fontes de ensinamentos:
através deles é repassada a sabedoria e o legado ético de gerações.
Como bom narrador de histórias, o griot está sempre atento ao pú-
blico: não conta para ele; conta com ele. Sua fala é simples, direta, viva,
sem afetação. Deixa livre a imaginação do ouvinte. Conhece cada nuança

ANTROPOLOGIA DA ARTE 125


do enredo e tira partido disso, explorando uma nova possibilidade a cada
narração que faz do mesmo conto.
No Nordeste brasileiro, onde a tradição oral também é muito viva,
como na África, há uma grande quantidade de bons narradores. São nossos
contadores de história, que como os griots, o fazem com a máxima discri-
ção. Quase sempre, simplesmente sentam-se numa cadeira e debulham a
sequência de fatos. Outras vezes o fazem numa roda de feira. Há também
os cegos que cantam romances acompanhados por violas ou rabecas. Todos
são herdeiros de tradições muito antigas que remontam à Grécia clássica ou
à África medieval.
Toda essa cultura popular alicerçada numa cosmovisão ao mesmo
tempo mágica, mítica e anímica perdurou inclusive na Europa em toda a
sua pujança, pelo menos até o Renascimento. Sua força aparecia especial-
mente nos carnavais populares, através do riso grotesco, na sátira dos jo-
grais e saltimbancos, bem como, em certa medida, no teatro mascarado da
Commedia dell’Arte. Antigos ritos e entidades aterrorizantes passaram por
um processo de carnavalização, que resultou na transformação de entida-
des míticas em fi guras de folguedos e brincadeiras populares.
Com o advento da Reforma protestante, assim como da Contra-refor-
ma católica, essa cultura passou a ser combatida como pagã e licenciosa,
quando não diretamente demoníaca. Processou-se, a partir daí, um movi-
mento de mascaramento ou de cristianização dessa cultura ou, ainda, de
sincretização dessa cultura com o catolicismo, como alguns preferem con-
siderar. Por outro lado, muitos deuses e entidades outras da cultura mágica
popular e mesmo das religiões mítico/populares sobreviveram, com seus
ritos e procedimentos, sob rótulos diversos.

1. Que diferença se estabelece entre o estilo narrativo dos griots e da Com-


media dell’Arte?
2. Marque a diferença entre a arte dos jograis e saltimbancos e a da Com-
media dell’Arte.
3. Como se deu o processo de “cristianização” da cultura popular na Euro-
pa a partir do Renascimento?
4. Cite algumas estratégias de sobrevivência das culturas populares no
Ocidente.

126 ANTROPOLOGIA DA ARTE


Vitalino Pereira dos Santos
Mestre Vitalino, nasceu no Sítio dos Pintos, Caruaru, no dia 10 de Julho
de 1909, filho de Marcelino Pereira dos Santos e Josefa da Conceição. A ce-
râmica figurativa sempre o fascinou. Tanto que Vitalino, aos 6 anos, fez seu
primeiro trabalho. Dedicou-se também à arte musical e aprendeu a tocar pí-
fano. Foi músico e brincante de bandas de pífanos ou zabumbas, como eram
chamadas. Mas a confecção de bonecos de barro, que vendia na feira, era
seu trabalho permanente. A fama chegou em 1945, depois do encontro com
Augusto Rodrigues, desenhista famoso e colecionador. Jornais e revistas de
todo o país passaram a dar atenção à arte da cerâmica popular. Em 1947,
seus trabalhos foram expostos no Rio e, em 1955, integraram a exposição
“Artes Primitivas e Modernas do Brasil”, que fez grande sucesso na Suíça.
Revistas internacionais, então, se ocuparam do Mestre Vitalino. Sua maior
exposição, “A Noite de Caruaru”, ocorreu no Rio em 1960, promovida pelo
Jornal de Letras. Famoso e reconhecido como um dos maiores artistas po-
pulares do Brasil, Mestre Vitalino faleceu no Alto do Moura, Caruaru, no dia
20 de Janeiro de 1963.

Francisco Domingos da Silva


Nasceu na localidade de Alto Tejo, estado do Acre, em 1910. Foi pintor,
desenhista, sapateiro e ajudante de marinheiro. Mudou-se para Fortaleza,
indo morar no bairro de Pirambu aos 10 anos. Perdeu o pai alguns anos de-
pois e começou a fazer todo tipo de serviço (consertava sapatos e guarda-
chuvas, fazia fogareiros de lata para vender, entre outras coisas) para ajudar
no seu sustento e de sua família.
Nos intervalos de suas caminhadas a procura de trabalho, parava em
frente aos muros e paredes das casas dos pescadores e fazia desenhos com
carvão, giz e lascas de tijolos, colorindo-os com folhas.
Semi-analfabeto e autodidata, ele pintava sem regras, mas com incrí-
vel habilidade. Foram esses painéis que chamaram a atenção do artista e
crítico suíço Jean-Pierre Chabloz, que passou a procurá-lo pela cidade. Pelos
moradores da Praia Formosa, Chico era chamado de “indiozinho débil men-
tal”. Chabloz perguntou para alguns habitantes quem era o autor daqueles
desenhos, mas a constante resposta que ouvia era: - “É um cara meio louco.
Um caboclo que veio não se sabe de onde; se diverte rabiscando os muros e
desaparece, sem deixar endereço”.
Chabloz não encontrou Chico facilmente, pois este, ao saber que um
estrangeiro alto e forte estava a sua procura, fugiu, achando que o suíço
fosse um dos donos das casas de muros recém ornados por ele. Após o
encontro, Chabloz ficou admirado com a simplicidade do artista e passou a
incentivá-lo na pintura à guache; além de fornecer todos os materiais para a
produção dos trabalhos, Chabloz comprou mais de 40 obras prontas levan-
do-as a diversas exposições (como o Salão Cearense de Pintura e o Salão de
Abril de 1943).
Chico da Silva foi estimulado por Chabloz a desenhar e pintar cada vez
mais. Essa amizade e confiança mútua foi o suficiente para tornar as obras
de da Silva, peças de qualidade para o mundo das artes.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 127


Por ter sido criado, desde menino, frente às exuberantes paisagens da
amazônia, com cores e formas exóticas, a genialidade de Francisco da Silva
floresceu, resultando em pinturas primitivistas (pinturas Naifs) e sedutoras
para os olhos dos artistas, críticos e pesquisadores do Brasil e da Europa.
Pintor de lendas, folclore nacional, cotidiano e seres fantásticos, Chico
seduz o observador por sua originalidade, pela diversidade de cores e formas
e pela genialidade nas pinturas primitivistas. Com seu talento e a influência
de Chabloz, Francisco da Silva conseguiu reconhecimento no cenário artísti-
co mundial.
Nos últimos anos, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará conse-
guiu reunir vários trabalhos do artista que pertenciam a Chabloz. Um deles
tem exposição permanente no Museu de Arte da UFC e outros fazem parte
de acervos de museus e pinacotecas do mundo.
Em 1945, na companhia de Chabloz, Antônio Bandeira, Inimá de Paula
e outros artistas, expôs na Galeria Askanasy (Rio de Janeiro).
Chico da Silva não foi influenciado por nenhuma escola ou grupo espe-
cífico. Na verdade, ele criou um estilo novo. Fundou uma escola no bairro de
Pirambu (onde cresceu) formada por seguidores de suas obras.
Pela supervalorização de seus trabalhos, quis produzir cada vez mais
obras recorrendo a ajudantes para desenhar, deixando, para ele, somente a
assinatura. Uma pesquisa estimou que 90% dos quadros posteriores a 1972
eram falsos. Tal acontecimento cercou o artista de aproveitadores que ven-
diam essas falsificações em qualquer lugar por pequenos preços.
Mesmo havendo questionamento de suas obras no merca-
do de arte, foi convidado a participar da Bienal de Veneza em 1966,
onde recebeu Menção Honrosa). Três anos depois, Chabloz cor-
tou relação com Chico, afirmando mais tarde, em uma entrevis-
ta para um jornal, que estava insatisfeito com a qualidade do artista.
Na década de 70, além de lutar contra a falta de crédito de suas obras, en-
frentou a perda da esposa e seus próprios problemas de saúde. Se recupe-
rou fisicamente, mas não conseguiu sua recuperação artística. Faleceu em
Fortaleza no dia 6 de dezembro de 1985.

Inocêncio Medeiros da Costa


Conhecido como Mestre Noza, Inocêncio Medeiros da Costa ou Ino-
cêncio da Costa Nick, nasceu em Taquaritinga do Norte, Pernambuco, em
setembro de 1897.
Mudou-se para Juazeiro do Norte, no Ceará, em 1912, aonde chegou
como romeiro, após caminhar cerca de 600km desde o município de Quipa-
pá, PE, local onde foi criado. Exerceu diversas atividades, entre as quais a de
soldado de polícia, funcionário da Rede Viação Cearense e funileiro.
A partir de 1930, tornou-se conhecido como imaginário (escultor de
imagens) e xilógrafo. Sua primeira escultura foi um São Sebastião e sua pri-
meira xilogravura, uma capa de cordel encomendada por José Bernardo da
Silva para ilustrar o folheto, de José Pacheco, A propaganda de um matuto
com um balaio de maxixe.
Entre as décadas de 1960 e 1970, trabalhou para o Juizado de Menores
no Cine Eldorado, em Juazeiro do Norte, função que lhe possibilitou con-
seguir uma aposentadoria. Recebia também gratificações da Prefeitura de
Juazeiro e do Governo do Estado do Ceará.
No seu ateliê, localizado em um pequeno sobrado na Rua Santo An-
tonio, 265, em Juazeiro do Norte, Mestre Noza trabalhava com duas moças
chamadas Zefa (Josefa Francisca da Silva) e Loura (Íris Dália Medeiros), que

128 ANTROPOLOGIA DA ARTE


o auxiliavam na confecção das imagens e também no artesanato de cabos de
revólver em madeira.
Aproveitando a ideia de um amigo, resolveu esculpir uma imagem do
Padre Cícero. Segundo ele, levou a peça para apreciação do próprio Padre,
que achou graça e perguntou: “Eu sou assim?”. A partir daí, fez milhares de
imagens do Padim Cícero por encomenda. Só para um comerciante do mer-
cado de Juazeiro, disse ter feito mais de duas mil imagens.
Usava, preferencialmente, a madeira da imburana (árvore comum na
caatinga) e seus instrumentos de trabalho resumiam-se em canivetes, ser-
ras, machadinhas, formões, limas e furadeiras.
Contava muitas histórias e uma delas é que por pouco não havia en-
trado para o bando de Lampião, numa de suas passagens pela cidade. Não o
fez por medo do que pudesse acontecer no futuro, mas chegou a tomar uma
cervejinha junto com os cabras do famoso cangaceiro.
Em 1963, Sérvulo Esmeraldo, um artista do Crato, de projeção inter-
nacional, lhe deu uma série de gravuras da Via Sacra e lhe encomendou as
matrizes em madeira. Ficou muito satisfeito com o resultado do trabalho de
Mestre Noza e resolveu levá-las para a França, numa viagem que fez em
1965. Conseguiu produzir uma edição especial da Via Sacra de Noza com
apenas 22 exemplares impressos à mão e lançá-la em Paris; onde todas as
peças foram vendidas. O sucesso foi tanto que produziu uma nova edição de
mil exemplares, que também se esgotaran rapidamente.
A partir daí, as encomendas para o Mestre Noza aumentaram muito e
o artista passou a ser objeto de estudo em várias universidades, inclusive
europeias. Participou de diversas exposições com obras de escultura e xilo-
gravura no Crato, no Recife, no Rio de Janeiro e em Paris.
É autor também de alguns rótulos de cachaça e foi sempre considerado
o grande artista popular do Cariri.
Suas obras mais conhecidas são: a Via Sacra, uma coleção de 15 gra-
vuras, cuja primeira edição foi publicada em Paris (1965) pelo editor Robert
Morel, com apresentação de Sérvulo Esmeraldo; Os doze apóstolos (13 pran-
chas); e A vida de Lampião (22 pranchas).
         É autor de inúmeras xilogravuras para ilustrar capas de folhetos
de cordel, além de milhares de estatuetas do Padre Cícero e de diversos
santos, espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Segundo ele, em matéria de
imagens, além do Padre Cícero, gostava muito de fazer as de São Francisco
e Santo Antônio.
         Doente, Mestre Noza foi morar em São Paulo, onde faleceu no dia
21 de dezembro de 1983, vítima de uma parada cárdio-respiratória.
Fonte: GASPAR, Lúcia. Mestre Noza. Pesquisa Escolar On-Line,
Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em:
< http://www.fundaj.gov.br >. Acesso em:26 set. 2009.

Nordeste brasileiro
Região de forte tradição oral, o Nordeste brasileiro é berço de grandes
mestres da fala e contadores de história, que pouco ficam a dever na arte de
narrar aos griots africanos. Para citar aqui apenas alguns exemplos fico com
os de: Joaquim Fernandes de Souza, conhecido como Seu Quinca, um senhor
de 85 anos de idade, que mora em Cachoeira do Fogo, povoado localizado
no Município de Independência, Estado do Ceará; e o de Luiza Tereza dos
Santos, falecida aos 74 anos de idade em Natal, cuja memória guardava mais
de 300 contos, e mereceu livro organizado pelo folclorista Altimar Pimentel e
publicado pela editora Thesaurus. (Ver recomendações bibliográficas)

ANTROPOLOGIA DA ARTE 129


Aderaldo Ferreira de Araújo
O Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do
Crato — CE. Logo após seu nascimento, mudou-se para Quixadá, no mesmo
estado. Aos cinco anos, começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não
conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias
depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e
trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi
depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recor-
rer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom
para cantar e improvisar. Ganhou uma viola, a qual aprendeu a tocar. Mais
tarde, começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia
estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho, começou a andar
pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes
do Piauí e Pernambuco. Com o tempo, sua fama foi aumentando. Em 1914,
deu-se a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois
disso, voltou para Quixadá, mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida
no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quan-
do resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro, onde o próprio
Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois,
foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos
— de ter um revólver do cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um
gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão, apre-
sentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que
queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a
ideia de apresentar vídeos, que também deu certo, mas não o realizava tan-
to. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma
bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente, o seu traquejo de trovador
não servia para o comércio e, depois de algum tempo, fechou a bodega com
um prejuízo considerável.
Em 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desa-
fios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes e conseguira ser
reconhecido em todo lugar, cantara para muitas pessoas, inclusive muitas
importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em
que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as
disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma.
Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava
ter uma vida de chefe de família, pois criou 24 meninos.
(Texto extraído do livro “Eu sou o Cego Aderaldo”,
prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora — São Paulo, 1994)

Filmes
• VALDEMAR DOS PASSARINHOS – Documentário. Direção Rosem-
berg Cariry, Cariri Filmes
• O CEGO QUE VIU O MAR – Documentário sobre Pedro Oliveira,
Direção Rosemberg Cariry, Cariry Filmes.

130 ANTROPOLOGIA DA ARTE


ÁLVARES, Myriam Martins; Yãmîy – o canto e pessoa maxakali – in Músicas
africanas e indígenas no Brasil / Rosângela Pereira de Tugny, Ruben Cai-
xeira de Queiroz (Organizadores). – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento:
O Contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi, 2ª edição,
São Paulo: Hucitec/Edunb, 1993.
BARROSO, Oswald e CARIRY, Rosemberg: Cultura Insubmissa, Fortaleza,
Nação Cariri Editora, 1982.
BERNAT, Isaac Garson. O Olhar do Griot Sobre o Ofício do Ator: Refl exões
a Partir dos Encontros com Sotigui Kouyaté. Tese submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO – Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, para obtenção do grau de
Doutor, Abril de 2008.
BURKE, Peter - Cultura Popular na Idade Moderna; tradução de Denise Bot-
tmann, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
CÂMARA CASCUDO, Luis da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª edição.
Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1998.
FO, Dario. Manual Mínimo do Ator / Dario Fo; Franca Rame (organização);
Lucas Baldovino, Carlos David Szak (tradução), - São Paulo: Editora SENAC
São Paulo, 1998.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Vie et enseignement de Tierno Bokar. Paris: Edi-
tions du Seul, 1980 b.
LINHARES, Francisco e BATISTA, Otacílio: Antologia Ilustrada dos Canta-
dores. Fortaleza, Edições UFC, 1982.
MONTEIRO, Ausonia Bernardes, Tese submetida ao Programa de Pós-Gra-
duação em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito
parcial para obtenção do grau de Doutor, sob a orientação do Professor Dr.
José Luiz Ligiéro Coelho. RIO DE JANEIRO, 2004.
ROCHA, Maria Corina. Imagens e Palavras: Suas Correspondências na Arte
Africana. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ar-
queologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo, para obtenção do Título de Mestre em Arqueologia. São Paulo, USP,
2007. Orientador: Profa. Dra. Marte Heloísa Leuba Salum.
SACHS, Curt. História Universal de la Danza. Buenos Aires: Centurion,
1944.
SYLLA, Abdou. Création et Imitation Dans l’Árt Africain Traditionnel: elé-
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Ch, A. Diop, 1988.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz – A Literatura Medieval. Tradução: Amalio
Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul – Introdução à Poesia Oral, trad. Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo, Hucitec, 1997.

ANTROPOLOGIA DA ARTE 131


Oswald Barroso
Possui graduação em Bacharel em Comunicação Social pela Univer-
sidade Federal do Ceará (1986), especialização em Form. Nac. de Resp. por
Estrut. e Proj. Art. e Cul pela Association Nat. Pour La Form. Et Information
Artistique Et Culturelle (1990), mestrado em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará (1997) e doutorado em Sociologia pela Universidade Fede-
ral do Ceará (2007). Atualmente é Professor da Universidade Estadual do
Ceará e Redator do Fundação de Teleducação do Ceará. Tem experiência na
área de Antropologia. Atuando principalmente nos seguintes temas: Reisa-
do, Teatro Popular Tradicional.

132 ANTROPOLOGIA DA ARTE

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