Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
História da Arte I
Da arte rupestre ao neoclassicismo
2010
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados desta edição à SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
(SEAD/UECE). Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer
meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, dos autores.
EXPEDIENTE
Design instrucional
Antonio Germano Magalhães Junior
Igor Lima Rodrigues
Pedro Luiz Furquim Jeangros
Projeto gráfico
Rafael Straus Timbó Vasconcelos
Marcos Paulo Rodrigues Nobre
Coordenador Editorial
Rafael Straus Timbó Vasconcelos
Diagramação
Francisco José da Silva Saraiva
Ilustração
Marcos Paulo Rodrigues Nobre
Revisor
Pedro Lima Praxedes Filho
Capa
Emilson Pamplona Rodrigues de Castro
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Luiz Inácio Lula da Silva
MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Fernando Haddad
VICE-REITOR
Antônio de Oliveira Gomes Neto
PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO
Josefa Lineuda da Costa Murta
Unidade 1:
Arte é o que eu e você chamamos Arte ................................................................................ 9
Introdução.............................................................................................................................11
Capítulo 1 - Arte e sociabilidade ........................................................................................ 13
Capítulo 2 - Pressupostos para uma história das artes ...................................................... 15
1. A história da arte cingida à história das artes plásticas:....................................................15
2. A evolução das artes: .......................................................................................................16
3. A história da arte ocidental tomada como a história da arte universal: ...........................17
Capítulo 3 - Hipóteses sobre as origens das artes.............................................................. 19
1. A pintura mágica paleolítica ..............................................................................................19
2. Arte neolítica ....................................................................................................................20
3. Os objetos sagrados .........................................................................................................21
4. A voz encantatória ............................................................................................................22
5. A narrativa mítica ..............................................................................................................23
6. O trabalho ........................................................................................................................24
Unidade 2:
A Arte na antiguidade ........................................................................................................... 29
Capítulo 1 - A arte no antigo Oriente Médio e Próximo ..................................................... 31
1. Mesopotâmia ....................................................................................................................31
2. Egito ................................................................................................................................. 33
3. Creta..................................................................................................................................38
Capítulo 2 - Da narrativa mítica à arte do período arcaico ................................................ 41
1. Período homérico: o mito estrutura o sentido do mundo ................................................41
2. Período da Grécia arcaica: o mundo é dotado de racionalidade ......................................44
Capítulo 3 - O século de Péricles: apogeu das artes e
doutrinas estéticas da Grécia clássica ................................................................................ 56
1. A doutrina estética de Platão ............................................................................................ 57
2. A doutrina estética de Aristóteles ..................................................................................... 60
Unidade 3:
Do Helenismo ao Medievo Cristão ....................................................................................... 65
Capítulo 1 - O helenismo e o classicismo greco-romano ................................................... 67
1. O surgimento do Helenismo .............................................................................................67
2. O surgimento de Roma .....................................................................................................72
3. O sistema das artes romanas ............................................................................................ 75
4. O fim do império ...............................................................................................................79
Capítulo 2 - As artes na alta Idade Média: o bizantino, o gregoriano
e os períodos merovíngio e carolíngio ............................................................................... 80
1. A protoarte Cristã..............................................................................................................80
2. A Arte Bizantina.................................................................................................................81
3. O canto gregoriano e a música medieval .......................................................................... 84
4. A Arte da fase merovíngia e carolíngia.............................................................................. 86
Capítulo 3 - As artes na baixa Idade Média: o românico e o gótico .................................. 90
1. O Estilo Românico .............................................................................................................90
2. O Estilo Gótico...................................................................................................................93
Unidade 4:
Do Humanismo Renascentista ao Neoclassicismo Iluminista ................................................ 105
Capítulo 1 - A Renascença e o maneirismo ........................................................................ 107
1. Contexto sociohistórico da Renascença ............................................................................ 107
2. O sistema das artes renascentistas ................................................................................... 110
3. A Renascença europeia ....................................................................................................116
4. O maneirismo....................................................................................................................118
5. A música profana da modernidade renascentista.............................................................119
Capítulo 2 - O barroco e o rococó ...................................................................................... 121
1. O contexto sociohistórico do barroco ............................................................................... 121
2. O rococó ...........................................................................................................................132
Capítulo 3 - O neoclassicismo iluminista ............................................................................ 134
1. O contexto sociohistótico do neoclassicismo.................................................................... 134
2. O sistema das artes neoclássicas ...................................................................................... 137
3. O classicismo musical: tonalismo, forma-sonata e a
historicidade da consciência burguesa ................................................................................. 140
O autor
Unidade
1
Arte é o que eu e você
chamamos Arte
Objetivos:
• A amplitude das possibilidades para definir e configurar os limites do campo
artístico.
• A obra de arte como produto irrecusável de uma rede de sociabilidade.
• Os pressupostos críticos em relação a certas abordagens usualmente recorrentes
em textos sobre a história das artes.
• A natureza hipotética das origens das artes.
Introdução
A sentença que dá título a esta unidade – Arte é o que eu e você cha-
mamos arte –, é tomada aqui de empréstimo do curioso e provocativo título
do livro do crítico de arte Frederico Morais, graças a seu caráter instigante,
adensador de um leque de sentidos relevantes para a nossa História da Arte.
Dentre as dimensões constitutivas da existência humana, ou seja, as
esferas do saber (a episteme)*, do agir (a ética) e do sentir (a estética), objetos
da refl exão de uma linhagem de pensadores ocidentais (v. adiante a seção
Saiba mais), a arte é certamente a que apresenta uma riqueza e amplitude
maior de entendimento e de conceitos.
O subtítulo do livro de Morais, 801 definições sobre arte e o sistema de
arte, é um fl agrante testemunho dessa realidade. Na verdade, não se trata
de defi nições conforme o rigor teórico das chamadas “ciências duras”, como
as ciências naturais, a exemplo da lei da gravitação universal formulada por
Isaac Newton, passível de formulações matemáticas.
A palavra arte, correspondente ao termo grego techné, que, por sua
vez, dá origem ao termo técnica, deriva do latim ars, artis, termo que, no
correr dos anos, passou a constituir um certo saber, fazer e sentir. Em Re-
fl exões sobre a Arte, Alfredo Bosi, procurando elucidar a etimologia da pa-
lavra arte, afi rma: “a palavra latina ars, matriz do português arte, está na
raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes
de um todo” (BOSI, 1991, p.13). Portanto, o artista seria um articulador de
porções da realidade, agenciando-as num todo de sentido estético. Mas o
que seria mesmo a arte?
Em cursos sobre Estética e Filosofi a da Arte, antes dos alunos entra-
rem em contato com o teor das disciplinas, costumo apresentar-lhes um pe-
queno questionário com duas perguntas básicas: 1) o que cada um entende
por arte; 2) o porquê da arte (seu sentido para a existência humana).
Obtendo um resultado de extrema variedade de formulações, algu-
mas com afi nidades conceituais, outras totalmente díspares e antagônicas,
nunca completas, parece que somos remetidos à mesma situação de Santo
Agostinho, ao refl etir sobre o mistério do tempo. “O que é o tempo? Dele sei
quando nada me perguntam. Dele nada sei quando me indagam sobre sua
natureza” (AGOSTINHO, 1984, p.318). Assim também podemos nos colocar
diante da natureza da arte. Dela só se sabe quando nada dela se pergunta.
Tal situação aparenta ter sido vivenciada por Frederico Morais ao con-
fessar na orelha do seu referido livro (1998): “depois de exercer durante qua-
renta anos a crítica de arte, devo dizer que eu também não sei mais o que é
arte”. O crítico traz à cena outros pensadores e artistas que vivenciaram a
mesma situação. Mário de Andrade, por exemplo, surpreende os participan-
tes de um curso de Filosofi a e História da Arte, com a seguinte afi rmação:
HISTÓRIA DA ARTE I 11
“Devo confessar preliminarmente, que eu não sei o que é belo e nem sei o
que é arte” (op. cit. p.9). Ou então o escritor mineiro Rosário Fusco que sen-
tencia ser “a beleza a fi nalidade da arte” e, contudo, indaga de imediato: “o
que é arte, que é beleza, que é fi nalidade?” (p. 11).
Na verdade, são exemplos de expressões portadoras de afi nidades com
o sentido da maiêutica socrática *, que sempre partia de uma questão semi-
nal subjacente (sei que nada sei) para, desse patamar, dar prosseguimento
A linhagem de pensadores ao método refl exivo dialógico. Sabemos que nem Andrade nem Morais abdi-
ocidentais aqui implicita- cam do pensamento que pensa a arte: o curso de Filosofi a da Arte e o livro
mente referidos são aque- com suas 801 definições são empenhos fl agrantes da possibilidade de se
les fi lósofos que, apesar
de terem vivido em épocas pensar sobre sua natureza.
e lugares bem distintos, Por outro lado, considerando a irredutibilidade da arte a uma defi nição
se dedicaram ao estudo
dos grandes temas consti-
concisa capaz de dar conta das suas múltiplas determinidades, tendo como
tuintes da fi losofi a ociden- parâmetro o rigor das “ciências duras”, seria mais prudente e apropriado
tal: o saber, o agir e o sen- construir conceituações mais abrangentes capazes de dar conta daquelas
tir. São eles, sobretudo,
Platão, Tomás de Aquino
determinidades a partir de considerações confi gurativas das várias lingua-
e Kant. gens artísticas. E a primeira consideração a ser feita refere-se à questão de
Platão, na antiguidade sua sociabilidade constitutiva.
clássica grega, subordina
as esferas do agir (ética) e
do sentir (estética) ao co-
nhecimento do mundo su-
prassensível (a episteme).
Tributária da tradição
grega, infl etindo-a no en-
tanto para o campo da fi -
losofi a cristã em fi ns do
medievo, a Suma Teoló-
gica de Tomás de Aquino
busca cobrir o domínio da
verdade, do bem e do belo.
Já Emanuel Kant, impor-
tante pensador na elabo-
ração da doutrina fi losófi -
ca do idealismo iluminista
alemão, na modernidade
madura europeia, constroi
a famosa tríplice crítica,
no fi nal do século XVIII:
Crítica da razão pura,
onde busca estabelecer
os fundamentos das con-
dições de possibilidades
do saber, Critica da razão
prática, onde busca esta-
belecer os fundamentos
racionais das condições
de possibilidades para o
agir moral livre, e Critica
do juízo, onde busca as
condições de possibilida-
de para a construção do
juízo do gosto, ou seja, a
construção do julgamento
crítico-estético da obra de
arte.
12 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 1
Arte e sociabilidade
Dessa forma, uma obra de arte não detém um valor estético “em si”.
Seu estatuto artístico lhe é conferido por uma rede de agentes portadores de
sentidos e valores estéticos construídos socialmente.
Uma obra de arte, criada por uma individualidade, se apresenta como
um objeto singular nas suas origens e, a um só tempo, postulante de uma
dimensão social no seu destino. Assim, uma obra de arte detém uma objeti-
vidade que se inscreve num artefato particular e sinaliza para uma poten-
cial universalidade. Dessa forma, a alteridade e a sociabilidade tornam-se
traços constitutivos daquilo que denominamos arte. Para que uma determi-
nada criação, fruto da pulsão inventiva e tensamente livre da subjetividade
humana, mediante suas mais variadas formas de expressão estética, se
transforme numa obra de arte, é preciso que essa mesma criação se “aliene”
do seu criador e ganhe autonomia pela fruição de um “outro”.
Em O carteiro e o poeta, fi lme de Michael Redford (1994) sobre o exílio
do poeta chileno Pablo Neruda, na Itália, existe uma passagem bastante in-
teressante. O carteiro, ao ser recriminado por Neruda por ter se apropriado
de um de seus poemas para presentear à mulher pela qual se apaixonara,
lhe diz que “a poesia não é de quem escreve, mas de quem dela precisa”.
A nosso ver, toda obra de arte só se constitui como tal, ao se descolar
do mundo particular da subjetividade do artista e imergir na receptividade
do “outro”. Se um quadro, ao ser pintado, for ocultado, impedindo assim
sua contemplação, será apenas um quadro pintado oculto e não uma obra
de arte. São os “olhadores” que fazem dele uma pintura artística, afi rmava
o artista francês Marcel Duchamp no início do século XX (cf. COLI, 1981).
HISTÓRIA DA ARTE I 13
Vejamos dois interessantes episódios ocorridos com o pintor Pablo Pi-
casso que ilustram de forma bem expressiva a nossa refl exão. O primeiro
episódio refere-se à reação do artista ao fi nal de uma entrevista concedida a
um jornalista num bistrô parisiense. Durante toda a entrevista, o jornalista
seguia com olhos ávidos os esboços desenhados pelo pintor, sempre joga-
dos numa cesta de lixo, após cumprir a tarefa de ilustrar algum trecho da
entrevista. Finalizada a entrevista, quando o jornalista buscou recuperar
no lixo os esboços, Picasso teria fi xado um valor pelos desenhos. No lixo,
eram apenas papéis rabiscados. Na parede, para a fruição de algum olhar
A comunidade de senti- contemplante, transformavam-se em obras de arte.
dos e valores estéticos O sentido do segundo episódio, similar ao primeiro encontra-se ex-
refere-se à confl uência
da compreensão e sensi- presso no fi lme Modigliani – paixão pela vida (2004), do cineasta Mick Davis,
bilidade possível de ser quando Picasso, ao ser solicitado pelo dono do restaurante, onde comera e
detectada em determina- bebera, para assinar o desenho que o artista lhe presenteara para pagar as
das épocas, levando cria-
dores e contempladores despesas, diz: eu só estou pagando a conta e não comprando seu restaurante
(público, mecenas, etc.) a (no caso, a assinatura do artista atribuiria maior valor estético à obra).
partilhar uma certa con-
sensualidade instituída
Esta mesma refl exão pode ser estendida ao campo da arte musical,
de apreciação convergen- visto que a sociabilidade é igualmente uma condição de viabilidade para o
te das mesmas. Na época acontecer musical. A música tem uma origem particular na produção auto-
dos grandes estilos, como
o classicismo renascentis-
ral do compositor. Mantendo-se nesse estágio, como qualquer outra criação
ta, o barroco, o neoclas- com pretensões de ser obra de arte, resta incompleta. Como vimos, a efetivi-
sicismo e o romantismo, dade da arte enquanto tal se dá na contemplação. No caso da música, sua
era possível detectar esta
incompletude se supera na performance dos intérpretes (maestro, instru-
comunidade de sentidos,
o que é rompido, como mentistas e cantores) bem como na audição do público.
será visto, pelas vanguar- Portanto, a música, assim como qualquer arte conforme vimos, se faz
das artísticas no início do
século XX. na alteridade. Ela se faz na escuta do outro. Quanto a esse caráter, o pen-
sador alemão Theodor Adorno é enfático: "O sujeito que compõe não é uma
entidade individual, mas coletiva. Qualquer música, por mais individual
que o seu estilo possa ser, possui um caráter inalienável, um conteúdo co-
letivo: qualquer som sempre diz Nós" (ADORNO, 1972, p. 11).
Em síntese, a nosso ver, no enunciado subjacente ao livro de Frederico
Morais – Arte é o que eu e você chamamos arte –, esse eu e você não se reduz
a uma simples díade * stricto sensu, mas nos remete a uma comunidade de
sentidos e valores estéticos que constrói histórica e socialmente aquilo que
identifi camos como obras de arte.
14 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 2
Pressupostos para uma história das artes
HISTÓRIA DA ARTE I 15
Por isso, a despeito de suas especificidades, tais linguagens, em momentos
marcantes de sua história, chegaram a constituir grandes estilos e escolas
com afinidades conceituais estéticas, a exemplo do renascimento, do barro-
co, do neoclássico e do romantismo, como veremos mais adiante.
16 HISTÓRIA DA ARTE I
ção dos contemporâneos do espanhol Marcelino Sautuola, descobridor das
pinturas de Altamira na segunda metade do século XIX: maravilhados com
a beleza e precisão naturalista das suas formas, impossível na visão deles,
de serem criações primitivas, consideraram-nas um embuste.
Na arte musical o procedimento costuma ser o mesmo. A linguagem
tonal euro-ocidental era vista como o apanágio do desenvolvimento racional
da arte musical universal. No entanto, exposta a outras culturas musicais
consideradas, até então, inferiores ao tonalismo, a estética musical europeia
modificou-se, conforme ocorreu com o compositor francês Claude Debussy
ao se deparar com a escala de tons inteiros (hexatônica), de procedência
oriental, incorporando-a à sua obra. Além do mais, ao ver exaurida a lin-
guagem tonal cuja crise acompanha a crise da moderna razão iluminista,
o homem euro-ocidental descobre o outro, e, ao fazê-lo, o vê como grande
novidade. E essa abertura para a alteridade representou a abertura para o
múltiplo.
Algo idêntico ocorrerá também no campo das artes plásticas com Pa-
blo Picasso quando ele, conforme o próprio afirma, foi contaminado pelo
“virus” das máscaras tribais africa-
nas. Picasso sentiu-se atraído pela
arte africana, suas máscaras e es-
culturas em madeira com formas
angulosas, assimétricas, distorcidas,
não realistas, O que mais lhe cha-
mou a atenção foi sua independên-
cia com relação à arte figurativa da
tradição europeia, inspirando-lhe o
estilo cubista, consolidando, assim,
a ruptura com a hegemonia milenar
da pintura figurativa.
Para a história das artes, seria
mais apropriado se falar de transfor-
mações de gêneros e estilos. Isso não
nos impede que, por outros critérios
e parâmetros que não sejam os da
evolução valorativista, avaliemos a
qualidade e a intenção da inventiva
dos criadores de arte, caso contrá-
rio, sucumbiríamos a uma espécie
de neutralidade estética* que nos fa-
ria tornar impotentes para avaliar a
qualidade de uma obra de arte.
Máscaras Africanas
HISTÓRIA DA ARTE I 17
seus conceitos irão atravessar épocas longínquas e estender-se-ão a lugares
distantes, chegando, em certos casos, às portas do século XIX, a exemplo
do que irá ocorrer com alguns cânones de sua estética, conforme veremos
mais tarde.
A crítica à perspectiva euro-ocidental no campo da arte musical en-
contra-se expressa na apresentação de O som e o sentido, em que o autor
assevera que “habitualmente as histórias da música são histórias da zona
tonal [euro-ocidental], indo do barroco a Debussy, com breve incursão pelo
dodecafonismo...” (WISNIK, 2001, p. 10).
Não são muitas as obras voltadas para a arte que assumem delibe-
radamente os limites de suas abordagens já no seu título, a exemplo da
História da música ocidental de Grout e Palisca ou, então, em advertências
expressas já na apresentação do livro, a exemplo de Uma nova história da
música, de Otto Maria Carpeaux, que, em sua “explicação prévia” (prefácio
da 1ª edição), de imediato, nos alerta: “O presente livro trata da música
ocidental: isto é, da música europeia (inclusive naturalmente, da Europa
oriental) e das Américas” (CARPEAUX, 1958?, p.333).
O livro de Carpeaux é também apreciado por Wisnik, ao afi rmar que
aquele autor resolveu o “problema pelo avesso” ao assumir “com todas as
letras aquilo que considerou ser uma condição inevitável da nossa escuta,
a sua ocidentalidade” (WISNIK, op. cit., idem). Eis o juízo do próprio Car-
peaux, em sua explicação prévia: “em nenhuma outra civilização ocupa um
compositor a posição central de Beethoven na história da nossa civilização;
nenhuma outra civilização produziu fenômeno comparável à polifonia de
Bach” (CARPEAUX, op. cit. p.333).
Na verdade, a euro-ocidentalidade de Carpeaux tinha limites tempo-
rais, ao recusar qualquer outra experiência que escapasse do paradigma
por ele mesmo traçado para defi nir o que considerava música, dele excluin-
do por exemplo as músicas de vanguarda da sua época. Assim ele fi naliza
seu livro: “ [...] é imprevisível o futuro da música concreta e da música ele-
trônica. Só está certo que nada têm nem poderão ter em comum com aquilo
que a partir do século XIII até 1950 se chamava música. O assunto do pre-
sente livro está, portanto, encerrado” (CARPEAUX, idem, p.333)
18 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 3
Hipóteses sobre as origens das artes
HISTÓRIA DA ARTE I 19
estado de transe, teriam reproduzido suas visões com os mesmos objetivos
mágicos.
Segundo o húngaro, nossos ancestrais mais recuados, ao pintar um
animal transpassado por uma flecha, procuravam o domínio real sobre
aquele objeto, sem nenhuma pretensão, ainda, de representar estética e
abstratamente a espécie pintada. Daí o predomínio da arte mágica natura-
lista vigorar no período paleolítico superior.
2. Arte neolítica
A pintura mais estilizada, enquan-
to representação mais abstrata do retra-
tado, seria própria do período neolítico
(c. 10.000 a.C.), quando o homem da
pré-história teria tomado gosto pela for-
ma obtida. Só a partir daí é que ele teria
se entregado a uma espécie de experiên-
cia estética. A passagem para esse perí-
odo, também conhecido como idade da
pedra polida, representou uma grande
Arte Neolítica
20 HISTÓRIA DA ARTE I
evolução tecnológica, com importantes ressonâncias para as manifestações
artísticas posteriores.
O acontecimento mais relevante foi o início de atividades mais seden-
tárias como a agricultura e a domesticação de animais em grandes mana-
das. A fi xação dos agrupamentos humanos deu-se próxima aos rios, pro-
piciando o uso de terras férteis onde eram lançadas as sementes para o
plantio. Assim, o homem descobriu a atividade sedentária da agricultura
mediante o cultivo da terra. Verifi caram-se assim os primeiros aumentos
populacionais e o desenvolvimento das primeiras instituições como a famí-
lia e a divisão social do trabalho. Sedentário e construtor de suas primeiras “Para o escultor que usa-
moradias, o homem neolítico desenvolveu a técnica de tecer panos e fabricar va o método da fôrma de
cerâmica, bem como a descoberta do fogo e de suas propriedades, dando barro, o primeiro passo
consistia em fazer uma
início ao seu uso na fusão de metais, criando utensílios, instrumentos de fôrma com esse material.
trabalho, armas e objetos de arte. Nela era despejado o me-
tal já derretido em fornos.
Tais descobertas e usos repercutiram fortemente na mente do homem O ferro fundido era dei-
neolítico, com ressonâncias no campo estético. O olhar acurado e preciso xado dentro da fôrma de
necessário para a observação precisa do caçador-coletor nômade cede lugar barro até que esfriasse.
Depois do frio, a fôrma era
para a abstração e racionalização, ainda que rudimentar, do sedentário quebrada. Obtinha-se as-
homem neolítico. O estilo naturalista anterior, típico do paleolítico superior, sim, uma escultura com
transforma-se agora num estilo mais despojado e geometrizante. a confi guração, anterior-
mente dada ao barro.
Ao invés de imitações fi eis da natureza, iremos encontrar sinais e fi gu- Já o trabalho do artista
ras que mais sugerem do que reproduzem. Pesquisadores apontam tal fenô- que usava a técnica da
meno como a grande transformação da história da arte. Mas as mudanças cera perdida começava
com a construção de um
não se cingiram apenas às formas, mas repercutiram igualmente no teor modelo em cera. Esse mo-
temático das representações, voltadas agora para a vida coletiva, a exemplo delo era revestido de barro
do movimento de danças ritualísticas associadas ao trabalho grupal de aquecido. Com o calor do
barro, a cera derretia-se
plantio e colheita. e escorria por um orifício
Aos poucos a simplifi cação pictórica mais livre, ágil e leve, vai cedendo que era propositalmen-
te deixado nas peças de
lugar a uma simples insinuação de traços sugerindo formas mais abstratas. cerâmica... Obtinha-se
O “artista” neolítico também produzia artefatos de cerâmica cuja forma, assim um objeto oco.
além de seu uso prático para o dia-a-dia, revelava uma preocupação com Depois, por esse mesmo
orifício, preenchia-se o
a formalização estética que expressasse talvez sua ideia de beleza. Além
objeto com metal fundido.
disso, serviu-se de metais como matéria prima, a exemplo do ferro e bronze, Quando este estivesse en-
para produzir esculturas mediante a utilização de técnicas de uso de fôr- durecido e frio, quebrava-
mas de barro e de cera derretida (v. Anote) se o molde de barro. Den-
tro dele estava a escultura
Eis um dos pontos mais controvertidos da explicação da origem das em metal, igual à que o
artes. Que tais imagens, bem como outras fi gurações que, dezenas de mi- artista tinha moldado em
cera”. (PROENÇA, 1989,
lênios depois, iriam receber a designação de arte, teriam intenções funcio- p.15)
nais, parece não ser objeto de grandes polêmicas. O que é alvo de contro-
vérsias refere-se à intenção mais ou menos consciente, por parte de nossos
ancestrais mais recuados no tempo, de buscarem, desde suas as primeiras
expressões, formalizações estéticas que despertassem seu interesse.
Vários historiadores e arqueólogos não deixam de eliminar a hipótese
de um objetivo estético intencional desde o início. Ao pintar nas paredes das
cavernas, já existiria uma intenção estética de encantamento com a forma,
ainda que de modo bastante embrionária. Tal intenção de produção estética
já estaria, por exemplo, igualmente manifesta nos entalhes feitos em lanças
de caça, nas armas e utensílios feitos de pedra ou de cerâmica, nos ossos
dos animais abatidos, etc.
O mesmo dar-se-ia com os corpos pintados com cores fortes, enfeita-
dos adornos e pingentes, em celebrações, cerimônias e rituais dos mortos.
Para esses estudiosos, pinturas, esculturas e gravuras seriam demonstra-
HISTÓRIA DA ARTE I 21
ções irrecusáveis de protoartistas, do desejo de expressão mediante o uso
do sentimento estético como algo constitutivo e inerente à natureza huma-
na. Quaisquer que sejam as explicações e o entendimento dessas mani-
festações estéticas, a arte preservada por milênios permitiu que as grutas
pré-históricas se transformassem nos primeiros museus da humanidade.
3. Os objetos sagrados
A experiência da inscrição rupestre, espécie de ancestralidade corres-
pondente à nossa arte pictórica pelo uso da superfície das paredes e tetos
das cavernas, teria permitido a ideia de volume, ao aproveitar, como vimos,
as saliências rochosas para expressar o volume dos corpos dos animais
pintados. Porém, uma outra modalidade será criada para realizar tal in-
tento, apresentando-se como protoforma da nossa arte escultórica, em que
o volume da obra adquire uma solidez e tridimensionalidade distinta da
bidimensionalidade das inscrições rupestres.
Um dos exemplos mais expressivos dessa protoarte pode ser encontra-
do na Vênus de Willendorf. Também conhecida como Mulher de Willendorf
(encontrada na pequena vila de Willendorf, Áustria, em 1908), trata-se de
uma escultura em miniatura (apenas 11 cm), em cor ocre vermelha, talhada
em pedra calcárea no período paleolítico superior (teria sido esculpida há
25 mil anos). Diferentemente das pinturas rupestres, a estatueta não busca
uma representação realista, mas uma transfiguração da forma feminina
idealizada. O tamanho dos braços é minimo. A cabeça é coberta por rolos
de tranças, e os seios, o ventre e o sexo são extremamente volumosos. Daí
vários estudiosos lhe atribuirem uma forte relação com a ideia de fertilida-
de, fator crucial para a sobrevivência daqueles grupos.
O título de Vênus dado a essa figuração miniaturizada - com partes
opulentas de um corpo feminino, espécie de amuleto induzindo a ideia de
fertilidade - foi igualmente aplicado a outras descobertas em várias par-
te da Europa, cujas características formais eram praticamente idênticas.
Eis alguns exemplos: Vênus de Kostienki (Rússia), de
Grimaldi e Lespugue (ambas da França), de Moravany
(Eslovênia), de Dolni Vestonice (República Tcheca), de
Savignano (Itália).
Outro objeto prefigurador da arte escultória é o
totem. Trata-se de uma das formas mais arcaicas de
expressão de sociabilidade ancestral, ao propiciar a or-
ganização dos agrupamentos humanos a partir de re-
lações de parentesco. Os membros de um dado agru-
pamento tomavam a escultura de um animal, de uma
planta ou de um determinado objeto e conferiam pode-
res mágicos, o que, ao mesmo tempo, representava um
poder articulador grupal. O totem, enquanto objeto es-
culpido para outros fins, constitui-se, ele próprio, numa
obra indutora de sensações e experiência estética, por-
tanto, um exemplo bastante recuado de obra de arte. Vênus de Willendorf
4. A voz encantatória
Enquanto protoforma da nossa arte musical, a voz encantatória teria
se apresentado de diversas maneiras. No interior do tempo primordial, para
22 HISTÓRIA DA ARTE I
muitas antigas religiões, o ruído, o som, a voz, a música, a palavra (no prin-
cípio era o Verbo ... e o Verbo era Deus) eram proferições iniciáticas do tem-
po. Paul Ricoeur, coordenador de importante pesquisa da UNESCO sobre o
tempo, ressalta o lado comum de várias culturas, onde um tempo iniciático
se dá a partir de uma fala fundante. Para ele, “a fundação das coisas [se
dava] mediante uma Palavra criadora” (RICOEUR, 1975, p. 30).
Antigas teogonias e cosmogonias (narrativas míticas para explicar a
origem dos deuses e do mundo, respectivamente) apresentam um funda-
mento musical investido de caráter mítico. Marius Schneider, autor dedi-
cado ao lastro mítico das mais diferentes tradições do universo da música
modal (fora do universo da música tonal euro-ocidental), nos emoldura toda
a dimensão do tema: “toda vez que a gênese do mundo é descrita com a
precisão desejada, um elemento acústico intervém no momento decisivo da
ação”; e “a fonte de onde emana o mundo é sempre uma fonte acústica”
(apud WISNIK, 1989: p. 33 e 34, respectivamente).
Em O Som e o sentido, Wisnik assevera que “a fonte de onde emana
o mundo é sempre uma fonte acústica” (1989, p. 34). A voz criadora surge
como um som que vem do nada, que aflora do vazio. No hinduísmo, tida
como a mais musical das religiões, atribui-se à proferição da sílaba sagrada
OUM (ou AUM) o poder de ressoar a gênese, assim como a dança e os atos
festivos, investidos de profunda sacralidade e celebrados em ritos encanta-
tórios, são vistos como momentos seminais.
Devido ao poder das palavras e da música em conferir sentido às coi-
sas, portando, dotadas de um poder sobre o mundo e os homens, a voz que
comandava certas atividades ritualizadas teria adquirido, por isso, um po-
der encantatório sagrado. É a voz do xamã ou do feiticeiro.
Outra voz que teria ganhado poderes encantatórios foi a do aedo (po-
eta-cantor que entoava suas próprias criações) e do rapsodo (poeta-cantor
que entoava obras alheias), cuja função era a narração mítica (poemas re-
ligiosos e/ou épicos), a exemplo da Ilíada e da Odisseia de Homero, cuja
sabedoria sagrada partia do seu interior, daí sua figura ser associada a um
poeta cego.
Conforme apontam algumas teorias, os sentidos da comunicação en-
tre os nossos ancestrais mais “primitivos” poderiam ter sido dados pela
estreita articulação entre o canto (melodia e ritmo) e a palavra, cujo vínculo
semântico da linguagem era dado pela íntima relação entre os dois (música
e palavra). O filósofo enciclopedista Jean Jacques Rousseau, ao fundamen-
tar sua noção de música como linguagem dos sentimentos, desenvolve uma
teoria sobre a gênese da linguagem falada em Ensaio sobre a origem das
Línguas.
Para ele, teria existido no passado mítico das sociedades, uma unida-
de entre fala e música. Essa indissolubilidade permitia ao homem em estado
natural, expressar suas paixões de modo pleno. A civilização teria rompido
tal unidade. As línguas, ab origine (em suas origens mais recuadas), eram
acentuadas musicalmente e, por um perverso efeito da civilização, ficaram
desprovidas daquela melodicidade original, tornando-se aptas apenas para
expressar uma linguagem racional.
Essa mesma unidade entre a música e a palavra como forma original
de articulação de sentidos teria sido usada no canto para o comando do
trabalho. As cantigas de trabalho, quase sempre entoadas no sistema res-
ponsorial (chamada e resposta), foram uma prática universal, encontrada
em todas as culturas onde existisse o gesto comunal para a busca da so-
HISTÓRIA DA ARTE I 23
brevivência. O canto durante o trabalho serviria, a um só tempo, para im-
primir um ritmo coletivo, assim organizando e comandando o gesto comum
para torná-lo mais efi caz, bem como para minorar a fadiga de uma jornada
de trabalho.
5. A narrativa mítica
Apresentando-se como protoforma da nossa arte literária, o mito é
um sistema de narrativas que busca explicar a origem sagrada do universo
A descrição e análise das – dos deuses, do mundo, do homem e da natureza das coisas – bem como
manifestações protoartís- as razões das origens das forças sobrenaturais e/ou naturais que atuam
ticas bem como das fases sobre o mundo e os homens.
do processo de constitui-
ção das obras de arte, par- De natureza teogônica e cosmogônica, por se tratar de objeto de cren-
tindo dos objetos úteis ao ça, dotada de uma lógica fechada numa circularidade explicativa autorefe-
momento de constituição
de objetos estéticos, são rente, não propiciando portanto o lugar para a contestação e o contraditó-
aqui apresentadas de for- rio, costuma-se colocar o mito em total oposição ao logos*, a racionalidade
ma destacada e aparente- que confere sentido objetivo ao kosmos, a boa ordem.
mente linear apenas com
o objetivo didático para Porém, autores como Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclareci-
auxiliar o entendimento mento, proferem que alguns mitos já contêm, em si mesmos, certos elemen-
deste capítulo sobre as hi-
tos racionais do logos. O maior exemplo estaria no mito da Odisseia (narra-
póteses das suas origens.
Certamente suas manifes- tiva do retorno de Ulisses à ilha de Ítaca, depois da guerra de Tróia), narrado
tações teriam sido efetua- por Homero. “Nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do en-
das de forma bem mais trelaçamento do esclarecimento [procedimento da razão] e do mito do que
complexa e articuladas
entre si. a obra homérica, o texto fundamental da civilização europeia” (ADORNO/
HORKHEIMER, 1991, p. 55), noção corroborada no comentário de Olgária
Matos sobre a obra destes dois pensadores. “Tanto a mitologia quanto o
Iluminismo fi losófi co (dos séculos XVII e XVIII) e científi co encontram suas
raízes nas mesmas necessidades básicas: sobrevivência, autoconservação e
medo” (MATOS, 1989, p.141).
Na viagem de volta, Ulisses enfrenta vários obstáculos, como a deusa
Circe, o ciclope Polifemo, o canto das sereias, o mergulho no Hades (morada
dos mortos), o Lótus. Ulisses, para conseguir manter-se vivo e consciente e,
assim, retornar são e salvo à sua pátria, usa de vários artifícios, as astú-
cias da razão. Ele é capaz de ludibriar os próprios deuses, usando de meios
adequados para alcançar seus fi ns. Segundo os autores citados, em Ulisses,
ardil e razão constituem o núcleo de sua racionalidade. A Odisseia é a via
constitutiva do sujeito racional que deve rivalizar com as manifestações ad-
versas da natureza exterior e de sua própria natureza interior, a despeito de
ser ele sempre fi sicamente mais fraco em relação às forças contra as quais
deve lutar para manter-se vivo.
6. O trabalho
Manejo concreto de busca do domínio e de transformação da natureza,
o trabalho é uma atividade própria do humano, com vistas à sua sobrevi-
vência. Graças a ele, o homem efetiva sua passagem do mundo natural para
o mundo da cultura: caça, pesca, agricultura, domesticação de animais são
atividades de trabalho para a sobrevivência.
Vejamos como o trabalho teria exercido um papel fundamental para
o surgimento de objetos protoformadores de sentidos estéticos no curso da
história das artes. Em suas origens mais recuadas, todas as atividades de
trabalho visavam ao atendimento direto do consumo corrente, sem nenhu-
24 HISTÓRIA DA ARTE I
ma possibilidade de se gerar qualquer excedente. Para os defensores da ca-
rência de intencionalidade artística em fi guras e objetos criados, nessa fase
inicial em que o fruto do trabalho não propicia sobras do consumo corrente,
dar-se-ia tão somente a criação de objetos úteis, portanto destituídos de
esteticidade, em decorrência da fi nalidade de uso imediato para a sobrevi-
vência.
Nessa fase então não existiriam ainda as condições de possibilidade
para se criar, ou, ao menos, para se perceber os objetos de arte. Com o
desenvolvimento das técnicas de trabalho, provocando o aumento da pro-
dução e da produtividade, e a possibilidade de se criar um excedente que Neutralidade estética:
transcendesse as necessidades imediatas do consumo corrente, o trabalho análogo ao conceito de
permitiria que o ser humano transcendesse igualmente os limites da natu- neutralidade científi ca,
advogando a emissão ape-
reza (interna e externa), criando uma nova realidade subjetiva: o humano nas de juízos de realida-
humanizado pelo trabalho e, depois pelos objetos estetizados (o que poste- de, a neutralidade estética
riormente denominaríamos de arte). defende a impossibilidade
de emissão de juízos de
Com tal processo, os sentidos naturais humanos, como o olhar e a valor referentes às obras
escuta, serão alvos de importantes mudanças de qualidade, e agenciadores de arte, devido ao caráter
relativo de sua natureza
de outros sentidos, agora, esteticamente operados. Aqueles sentidos natu- essencialmente cultural.
rais humanizados seriam fruto concreto do processo dialógico estabelecido
entre a natureza (o mundo natural) e o homem (o mundo da cultura). Maiêutica socrática (par-
to de ideias ou parto das
Sua humanização não seria algo dado, mas conquistado. Para sua almas): a palavra maieu-
comprovação, recorrer-se-ia ao confronto do universo humano com o mun- tiké, em grego, signifi ca
do natural animal, ao se perceber que neste último inexiste qualquer frui- parto. Criado por Sócra-
tes, o método do “parto
ção estética. Para que tal fruição ocorresse seria necessária a existência de intelectual” para procurar
uma esfera de atuação psíquica que transcendesse a necessidade imediata a verdade continha dois
de sobrevivência. momentos importantes.
No primeiro, o fi lósofo
Tal necessidade lança o mundo animal diretamente sobre o objeto, levava os seus interlocu-
sem mediação de qualquer ordem, e seus sentidos facilitam sua imersão tores a reconhecer sua
própria ignorância acer-
nele. Para a contemplação estética, é preciso algo mais do que a simples ca de um dado tema; de-
satisfação da necessidade material imediata. Para que existe fruição es- pois, Sócrates os levava a
tética, é preciso que o humano transcenda o mero reino da necessidade conceber por si mesmos,
uma nova ideia sobre o
(mundo da natureza), e desfrute das coisas do reino da liberdade (mundo
tema. Essa autorrefl e-
da cultura). Para que haja a fruição estética, é preciso que o olhar contem- xão expressa o princípio
plante esteja liberado da necessidade imperiosa de lutar exclusivamente socrático de "conhece-te
pela sua sobrevivência, que o impede de se distanciar do objeto. Lembrando a ti mesmo" (inscrição do
Epistéme: ciência para a
templo de Delfos dedica-
Marx, “a formação dos cinco sentidos humanos” é obra do desenvolvimento tradição fi losófi ca grega,
do a Apolo), levando seus
saber teórico das coisas
histórico-social da humanidade, fruto da passagem do mundo da natureza discípulos ao encontro
por meio de raciocínios e
para o mundo da cultura e, por sua vez, da autocriação do próprio homem das verdades universais
conceitos universais (i.é,
que são o caminho para a
mediante o trabalho (cf. VAZQUEZ,1978, p. 84). válidos sempre em todos os
prática do bem, da virtude
tempos e lugares) e neces-
Devido ao aumento da produtividade humana pelo processo do tra- e da beleza.
sários (do que é impossível
balho, teriam surgido objetos que, para além de seu uso para consumo ser diferente do que é; o
imediato, ganharam formas que passaram a ser apreciadas: são os objetos que não pode ser de outro
modo. A epistéme se opõe
úteis estéticos, onde o artista acrescenta uma dimensão “inútil” (estetiza- à empeiria (conhecimento
ção do objeto útil), uma dimensão “supérfl ua”: “se a arte é associada a um prático que se obtém via
objeto útil ela é nele, o supérfl uo” (COLI, id. p, 89). experiência sensível) (Cf.
CHAUÍ, 2002, p. 500).
Eis aqui um passo importante para o afl orar de uma outra possibili-
dade, a criação de objetos totalmente independentes do uso prosaico do con- Díade: termo sociológico
para indicar a unidade
sumo, i.é, a criação de objetos “inúteis” ou objetos puramente estéticos, mínima de uma relação
o que irá ocorrer, sobretudo, a partir do período renascentista. social, constituída por
duas pessoas, como mãe/
Na contemporaneidade, com o vertiginoso desenvolvimento industrial,
fi lho, marido/mulher,
possibilitou-se a criação de objetos estéticos úteis, ensejando inclusive a professor/aluno. Na teo-
criação de uma modalidade de arte contemporânea, o desenho industrial ria musical, é um acorde
formado por duas notas.
HISTÓRIA DA ARTE I 25
(design), cuja expressão maior, no século XX, foi a criação da Escola de
Bauhaus (A Construção da Casa) na Alemanha, iniciativa do arquiteto Wal-
ter Gropius durante a República de Weimar (1919-33).
Conforme enfatizamos na seção Anote, a despeito da apresentação fei-
ta de forma linear e esquemática, para efeito de um melhor entendimento
das origens das artes, importa frisar que, de fato, tal linearidade não se ve-
rifi ca. Podemos dar o exemplo de uma obra criada em pleno período da arte
clássica renascentista: o Saleiro de Francisco I (1543), peça de Benvenu-
to Cellini, que fi zera “um saleiro que em
nada se assemelha aos saleiros comuns”,
Capela Sistina: edifi ca- conforme suas próprias palavras (apud,
da no interior do Palácio COLI, op. cit., p. 89). A peça é, na ver-
do Vaticano no papado
de Sisto IV, por volta de dade, uma extraordinária escultura apre-
1480, a capela era apenas sentando os deuses do mar e da terra, Ne-
um templo retangular re- tuno e Ops, sobre um pedestal ricamente
lativamente simples des-
tinado ao culto religioso ornado. Temos aqui um lídimo exemplo
mais privado do papa e da do período renascentista, acerca de uma
alta hierarquia da Igreja. , ou, como a evidência
obra estética útil, ou, como a evidência
Tornou-se mundialmente
famosa por receber, em
da “desproporção entre a função banal e
seu teto, uma das obras o trabalho artístico [...] assinala quanto
mais sublimes da arte re- fortemente o quanto a arte signifi ca su-
nascentista: os afrescos Saleiro de Francisco I de Cellini
de Michelangelo contendo
pérfl uo” (COLI, passim).
várias passagens do Ve-
lho Testamento (o mais
célebre é o da criação do
homem, Adão recebendo a
vida pelas mãos de Deus),
tarefa encomendada pelo
papa Júlio II e realizada
entre 1508 e 1512.
Esta unidade examinou a riqueza de abordagens sobre a defi nição do
Logos: no glossário que que é arte, sobretudo sua distinção em relação às defi nições concisas das
acompanha sua Introdu-
ção à História da Filosofia chamadas “ciências duras”, bem como a natureza sociohistórica dos ob-
(p. 504), Chauí aponta vá- jetos que reconhecemos como arte e as nomeamos como tal, i.é, a obra de
rios sentidos para o verbo arte enquanto objeto construído numa rede de sociabilidade. Além disso,
légein, que dá origem ao
termo grego logos: reu- foram apresentados alguns pressupostos que criticam perspectivas impli-
nir, contar, calcular, nar- citamente contidas em textos voltados ao tema, tais como: a história da
rar, nomear claramente, arte ocidental tomada como história da arte universal; a história das artes
discutir, pensar, refl etir.
Como substantivo signi-
plásticas como paradigma praticamente exclusivo da história de todas as
fi ca palavra. Teria sido o artes; as transformações estéticas e estilísticas vistas como inelutável pro-
fi lósofo Heráclito de Éfeso cesso evolutivo das artes. Examinou-se também um conjunto de hipóteses
(540-470 a. C.) que, pela
primeira vez, teria usado
sobre as origens das artes.
o termo com o sentido de
razão (ratio, para os lati-
nos)
26 HISTÓRIA DA ARTE I
4. Emita sua opinião sobre as hipóteses das origens das artes apre-
sentadas por esta unidade.
5. Levando em conta todo o conteúdo apresentado pela unidade, ela-
bore um pequeno texto a partir de uma questão problematizada for-
mulada por você mesmo, e procure respondê-la desenvolvendo uma
refl exão de forma bem pessoal.
Obras clássicas
• Homero: A Odisseia
• Platão: A República
• Santo Agostinho: As Confi ssões
Filmes
Guerra do fogo (2003): do diretor Jean-Jacques Annaud, baseado no rotei-
ro assinado por Anthony Burguess, autor do livro Laranja Mecânica, o fi lme
retrata um período da pré-história a partir do encontro de dois grupos de
homínidas: o primeiro, ainda pouco diferenciado dos primatas, não possui
o domínio da fala, comunicando-se mediante gestos e grunhidos, e desco-
nhece o fogo; o segundo, mais evoluído, possui comunicação e hábitos mais
complexos, inclusive a habilidade de fazer o fogo. O fi lme levanta algumas
hipóteses sobre a origem da linguagem.
2001 - Uma odisseia no espaço (1968): do diretor Stanley Kubrick, ba-
seado na obra fi ccional de Arthur Clarke. Um clássico da fi cção científi ca,
cobre uma extensíssima linha de tempo, que vai desde a “aurora da huma-
nidade”, quando surge um misterioso monolito negro emissor de estranhos
sinais de outra civilização que perturbam os homínidas da terra até quatro
milhões de anos depois no século XXI, quando uma equipe de astronautas
é enviada a Júpiter para investigar o enigmático monolito, na nave Disco-
very, totalmente controlada pelo computador HAL 9000. Durante a viagem
HAL, em pane, tenta assumir o controle da nave, eliminando um a um os
tripulantes.
HISTÓRIA DA ARTE I 27
CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música, Rio de Janeiro:
Ediouro, 1958?
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da Filosofia. São Paulo: Compa-
nhia Das Letras. 2002.
COLI, Jorge, O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2009.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral, 15ª edi-
ção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Tradução de
Álvaro Cabral. Martins Fontes, São Paulo, 1995.
MATOS, Olgária. “A Melancolia de Ulisses: a Dialética do Iluminismo e o
canto das sereias”. In Os Sentidos da Paixão (org. Adauto Novaes). S. Pau-
lo. Funarte/Cia. das Letras. 1989.
MORAIS, Frederico. Arte é o que eu e você chamamos arte. Rio de Janei-
ro/São Paulo: Record. 1998.
PROENÇA, Graça. História da arte. São Paulo: Ática. 1989.
RICOEUR, Paul, (org.) et al. Introduction: Les cultures et le temps. Tra-
dução de Dilmar Miranda. Paris: Payot, 1975.
VAZQUEZ, Adolfo Sanches. As ideias estéticas de Marx, São Paulo: Paz e
Terra, 1978.
WEBER, Max, Fundamentos racionais e sociológicos da música. Tradu-
ção de Leopoldo Waizbort. São Paulo: EDUSP. 1994.
WISNIK, José Miguel, O som e o sentido. São Paulo: Companhia Das Le-
tras. 2001.
História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e fo-
lheto). Edição: Grupo Cultural.
28 HISTÓRIA DA ARTE I
Unidade
2
A Arte na antiguidade
Objetivo:
• O objetivo desta unidade é examinar as manifestações artísticas da antiguidade
(como a arte mesopotâmica e egípcia), percorrendo seus períodos e obras mais
marcantes e que irão provocar importantes influxos, sobretudo na arte da antiga
Grécia, cujos os períodos arcaico e clássico irão fornecer padrões canônicos
constitutivos das artes ocidentais. A análise das diversas linguagens artísticas da
antiga Grécia, como a música, a escultura, a pintura, a arquitetura e a tragédia,
será articulada às principais doutrinas estéticas do pensamento filosófico da época.
Capítulo 1
A arte no antigo Oriente Médio e Próximo
1. Mesopotâmia
A Mesopotâmia (em grego, “entre dois rios”) encontra-se na região sul
da bacia dos rios Tigre e Eufrates. Nela, percebem-se duas regiões bem
distintas. A porção norte, fria e montanhosa, foi ocupada por assírios e
acádios. A porção sul, formada por planícies férteis de clima quente, foi ha-
bitada pelos sumérios e babilônios. O adensamento de suas várias aldeias,
com seu consequente crescimento, propiciou a criação de cidades-estado.
Por se tratar de uma região altamente produtiva, diversos povos sentiram-
se atraídos por ela ao longo de milênios, dando origem a uma sucessão de
conquistas. E, à medida que as várias ocupações iam se sucedendo, foi-se
consolidando uma impressionante riqueza cultural, sempre acolhida pelas
novas gerações de habitantes da região.
O que talvez possa explicar esse fenômeno seria o fato dos mesopo-
tâmicos, a despeito dos dialetos de cada povo, compartilharem a mesma
escrita denominada de cuneiforme, sinais gráfi cos obtidos por meio de es-
tiletes em formato de cunha, notabilizando-se, assim, pela invenção de um
dos mais antigos sistemas de escrita que se tem notícia. Os tabletes feitos
de argila e pedra, os sinetes e cilindros-selo, além de documentar todo um
processo sofi sticado e complexo de desenvolvimento da escrita, registram
igualmente aspectos da administração palacial da região mesopotâmica,
especialmente entre os assírios e os babilônicos. Graças a essa unidade
cultural, foi-nos possível identifi car o que denominamos de civilização me-
sopotâmica, na verdade, um grande encontro de diferentes culturas em cuja
HISTÓRIA DA ARTE I 31
encruzilhada se sobrepuseram e se coesionaram durante milênios, nutrin-
do-se umas das outras.
A tradição historiográfica ocidental costuma atribuir seus começos
por volta do ano de 4.000 a. C., com a chegada dos sumérios, cuja hege-
monia, como vimos, não se tornou única ou duradoura. Assim como os
sumérios, os acadianos, a partir de 2.400 a. C. e, depois, os assírios e os
babilônios foram adotando a cultura de seus predecessores.
Em 539 a. C., a região foi conquistada pelo rei Dario I, da Pérsia,
dando início a um longo e tumultuado império que iria durar até 330 a.C.
quando Alexandre Magno, rei da Macedônia, o mais célebre conquistador
da antiguidade, unifica todos os países contíguos da região, criando um
grande império que passa a integrar o mundo helênico, conhecido como o
período do Helenismo, conforme veremos adiante.
Da civilização mesopotâmica, surgiram importantes inovações como a
moeda e a roda, o sistema aritmético sexagesimal, usado tanto para simples
contagem de tijolos como para o uso rudimentar da astronomia, o Código
de Hamurabi, o correio, a irrigação artificial, o arado, a vela, os arreios dos
animais, a metalurgia do cobre e do bronze.
A arte mesopotâmica, assim como outras da época, possuía uma pre-
ponderante intenção funcional, destinada a incumbências bem precisas
como o serviço do poder e da religião. Dessa forma, serão os reis e sacerdo-
tes que irão pautar, em proveito próprio, a produção artística.
1.1. A arquitetura
Na arquitetura da Mesopotâmia, vislumbramos os primeiros traços de
monumentalidade característica da arte da antiguidade oriental. Ela irrom-
pe dos templos e palácios, principais construções na Mesopotâmia. Os su-
mérios, excelentes construtores, fincaram os alicerces da sua arquitetura.
Por ser a região escassa em rochas pedregosas e rica em argila, o tijolo foi o
material, por excelência, de suas construções.
Dispostos compactamente, os tijolos configuravam um sólido e maciço
edifício, via de regra sem janelas. A luz e o ar provinham dos pátios inter-
nos e das aberturas feitas no teto. Ao longo do dia, gigantescas portas e os
destaques dos muros provocavam um impressionante jogo de sombra e luz.
Uma típica construção da arte arquitetônica da Mesopotâmia era o zi-
gurate, espécie de torre-santuário construído de tijolos em forma piramidal.
Vários terraços eram sobrepostos uns aos outros, formando grandes degraus,
diferenciando-se da pirâmide egípcia de formato inclinado contínuo: cada
andar possuia área menor que a plataforma inferior, podendo ser retangular,
oval ou quadrada. O episódio da Torre de Babel, narrativa bíblica do livro do
Gênesis, refere-se à edificação de um imenso zigurate, cujas ilustrações cos-
tumam representar a Torre na forma de uma gigantesca espiral.
As formas retangulares e quadradas nos remetem ao formato das pi-
râmides egípcias, nos induzindo à ideia de possíveis relações entre elas e os
zigurates. Procedendo tal hipótese permanece um grande mistério se levar-
mos em conta a existência de construções piramidais escalonadas simila-
res em regiões bastante longínquas como as do planalto andino (civilização
inca), da meseta mexicana (civilização asteca) e da Ásia. Delas sabemos que
certamente possuíam uma clara função sagrada: altares, tronos, observa-
tórios astronômicos, oratórios, câmaras funerárias, tudo funcionava para
propiciar a comunicação dos homens com as entidades divinas.
32 HISTÓRIA DA ARTE I
1. 2. A escultura
Nesta arte, manifestam-se mais nitidamente os estilos dos diversos
povos constituidores da civilização mesopotâmica: os esquemáticos relevos
sumérios, o naturalismo das placas penduradas semitas e acadianas, os
suntuosos relevos em tijolos vidrados coloridos da Babilônia. Porém, o des-
taque fi ca por conta dos assírios, indiscutíveis mestres da arte escultórica
que adornavam as paredes de seus palácios com esplêndidos relevos de te-
mática variada tais como cruéis batalhas, cenas cortesãs ou caçadas com
A lei da frontalidade
animais. Tais relevos eram dotados de realismo e grande expressividade. O corpo humano egíp-
Merece ainda menção a arte escultórica do período assírio, com seus cio era sempre plastica-
mente representado com
baixos-relevos híbridos contendo o corpo de touros com cabeças de reis bar- a fi nalidade de plasmar
bados guardando as entradas dos templos. uma imagem completa,
mediante a escolha cri-
O tijolo decorativo era usado nas entradas das cidades e salas. Era
teriosa de suas partes
igualmente comum o uso da escultura monumental representando demô- mais características, para
nios guardiães, representações com fi gura animal, bem como o uso do bai- articulá-las num todo de
xo-relevo narrativo em grande escala. As fi guras humanas obedeciam ao sentido estético que ex-
pressasse modos de vida
princípio da lei da frontalidade*, costume encontrado em várias manifes- e visões de mundo de sua
tações plásticas no Oriente Próximo Antigo, conforme veremos adiante na cultura. Mas a arte egíp-
arte egípcia. Todas essas obras careciam de autoria conhecida. cia não permitia a inven-
tiva pessoal de um estilo
individualizado. Este era
o caso da aplicação de um
2. Egito cânone pétreo: a lei da
frontalidade que foi res-
Ao contrário da Mesopotâmia, o Egito, localizado ao norte da África, peitada por mais de um
milênio, em milhares de
na grande e fértil bacia hidrográfi ca do Nilo (o país seria uma “dádiva do fi guras humanas, de for-
Nilo” na expressão do historiador Heródoto), abrigou uma cultura bastante ma anônima, sem apre-
peculiar, graças a seu relativo isolamento, mantendo pouco contato com sentar qualquer alteração.
A cabeça era sempre apre-
outras civilizações em grande parte de sua história. sentada de perfi l, salvo os
A escrita e a monumentalidade das suas edifi cações, sobretudo de olhos que eram sempre re-
presentados frontalmen-
seus templos e pirâmides, constituíram-se num fundamental legado ma- te. No torso, os ombros,
terial, revelando uma complexidade organizativa e uma riqueza de realiza- o peito e o abdômen eram
ções artístico-culturais, cujo traço mais marcante foi, sem dúvida o papel igualmente apresentados
de frente. As pernas e os
que a religião ocupava na vida do seu povo. braços sempre de perfi l,
Todo o sentido da existência, seja desta ou da vida pós-morte, en- com os dedos das mãos
contrava-se contido nas diferentes expressões de sua arte religiosa. Isso e dos pés de tamanhos
sempre idênticos, sem di-
certamente explica o fato do Egito ser visto como o país das tumbas e dos ferenciar a mão direita da
templos. O desejo de ressurreição depois da morte parecia ser uma obses- esquerda, transparecem
são entre os antigos egípcios. O Além não seria mais do que um refl exo e uma imobilidade solene.
uma extensão da vida terrena. Daí a profusão de cultos aos seus mortos e
deuses.
O morto, em sua morada eterna, necessitava de provisões como ali-
mentos, bebidas, vestimentas, ferramentas, adornos e perfumes. Era ne-
cessário manter a ordem e o equilíbrio cósmico, contando com o auxílio
divino, que, graças à mediação do Faraó, outorgava paz e abundância a
esse mundo. Suas ideias religiosas eram defi nitivamente estruturantes do
sentido de suas vidas e suas artes conferiam o sentido de triunfo sobre a
morte. Daí a relevância de nossa abordagem voltada para a arte religiosa e
funerária da civilização egípcia, compreendendo, sobretudo, a arquitetura,
a escultura, o relevo e a pintura como linguagens imprescindíveis para o
entendimento da arte egípcia antiga. A lei da frontalidade: pin-
tura na câmara tumular
de Nefertari, mulher de
Ramses II.
HISTÓRIA DA ARTE I 33
2.1. A arquitetura
2.1.1. Os templos
O templo egípcio, ao contrário do uso corrente feito pelas religiões em
geral para o encontro de fiéis, era a morada da divindade, que possuía em seu
interior sua representação escultórica, alvo de um rito diário: lavada, vestida,
alimentada e objeto de oferendas, a divindade, em troca, concedia paz, pros-
peridade e abundância nas colheitas propiciadas pelas boas cheias do Nilo.
Os templos do Antigo Império (3.200 a 2.300 a.C) eram, originaria-
mente, simples e pobres, feitos de materiais perecíveis, deles restando pou-
cos vestígios arqueológicos. Não são também numerosos os do Médio Impé-
rio (2.000 a 1750 a.C.). No Novo Império (1580 a 1085 a.C.), com os faraós
reiniciando suas edificações, o Egito irá conhecer o apogeu de seu poderio
e o esplendor da arquitetura de seus templos, com o uso geral da pedra e a
monumentalidade característica de outras edificações como as pirâmides e
as estátuas. O país inteiro será inundado por templos e santuários fazendo
com que o povo convivesse à sombra de colossais construções que procla-
mavam ostensivamente a aliança entre o faraó e os deuses.
Muitas das edificações funerárias
do período conseguem integrar a impo-
nência da obra em si à sublimidade na-
tural da paisagem rochosa das encostas
egípcias, como o túmulo da rainha Hat-
shepsut, que reinou entre 1511 a 1480
a.C. Majestoso e harmonioso, o templo se
integra ao cenário rochoso que lhe serve
de fundo, constituindo um só ente esté-
tico em que o belo natural e o belo hu-
Templo de Hatshepsut mano se fundem numa só obra de arte
arquitetônica.
Dentre as magnificentes construções do período, os templos de Car-
nac e Luxor, dedicados ao deus Amon, são os que nos chegam em melhor
estado de conservação. Sua novidade reside no novo tipo de coluna, inspi-
rada em motivos retirados da natureza, como o papiro e a flor de lótus, a
exemplo da colunata do templo de Luxor, mandado construir por Amenófis
III (entre o século XIV e XII a.C.), composta de sete pares de colunas, com
cerca de 16 m de altura, cujo capitel (extremidade superior de uma coluna,
pilar ou pilastra) representa a flor de lótus.
Alcançada a maturidade de sua criação, os templos ganham novas
configurações. Primeiramente, é erguida uma sólida muralha entre o es-
paço sagrado interno e o mundo externo. No interior do recinto sagrado,
encontram-se os pilares, constituindo seu elemento mais imponente, diante
dos quais se erguem grandes obeliscos honoríficos. Segue um pátio com
pórticos. Por último, rodeado pela câmara do tesouro, pela biblioteca e pela
sala das oferendas, encontra-se o santuário central, uma pequena sala es-
cura onde reside a divindade.
A planta do templo obedece a certos recursos construtivos, como o
teto rebaixado articulado à elevação gradual do nível do solo para, assim,
dar a sensação de fechamento e convergência para a morada do deus ho-
menageado. O mesmo efeito é produzido com a redução gradual da lumino-
sidade externa, que vai da ofuscante luz que brilha absoluta na entrada à
total escuridão que reina no local mais sagrado do templo.
34 HISTÓRIA DA ARTE I
2.1.2. As mastabas
Nos primórdios do Antigo Império, as tumbas eram câmaras mortu-
árias revestidas com tijolos, construídas em grandes fossos escavados nos
terrenos arenosos do deserto e cobertas com simples construções retan-
gulares. Esse tipo de edificação recebeu o nome de mastaba (literalmente
banco, derivado do árabe), por sua aparência lembrar um grande banco de
pedra. Durante todo aquele império, essa forma foi usada nas sepulturas
das pessoas não pertencentes à classe régia, com a pretensão de reproduzir
a moradia terrestre do morto, reproduzindo o seu aspecto de morada, pois
a mastaba era, ao mesmo tempo, lugar de culto e uma morada para a eter-
nidade.
HISTÓRIA DA ARTE I 35
O costume do Antigo Império de sepultar os reis nos templos funerá-
rios situados no interior das pirâmides, como lugar por excelência de culto
ao faraó que ali repousa, é mantido no império subsequente, embora as
pirâmides passem a ser menores e mais baixas.
2.2. A escultura
Dentro do princípio de uma arte voltada para a cultura da morte e da
imortalidade do espírito, a escultura cumpria uma função muito precisa en-
tre os egípcios. Por acreditar convictamente numa vida eterna pós-morte re-
gida pelos deuses e pela figura divina do faraó, e para que o morto pudesse
viver bem no outro mundo, era imprescindível que seu corpo, morada de seu
Ka, se conservasse intacto. Portanto, mumificavam os cadáveres mediante
uma técnica de embalsamento bastante sofisticada e desenvolvida.
36 HISTÓRIA DA ARTE I
Com o esplendor do Novo Império, época de maior contato com outras
culturas, inaugura-se um tempo de unidade que se manifesta na produção
artística, na qual se observam, com nitidez, os infl uxos externos como con-
sequência da grande expansão que teve lugar durante o período.
Será, sobretudo, nos templos que verifi caremos a manifestação de
uma grande inovação: a estatuária colossal com gigantescas esculturas do
rei o qual pode aparecer de pé, sentado ou em forma de múmia. O monarca,
mediante sua estátua objeto de adoração, se apresenta como mediador entre
o homem e a divindade e cujo poder desmesurado se percebe em seu des-
comunal tamanho. Essas estátuas colossais e as esfi nges com traços reais,
pura encarnação da divindade para o homem comum, de quem recebiam
preces e oferendas, eram colocadas nos antepátios externos aos templos.
A obra mais grandiosa obra de Ramsés II (século XII a.C.), o templo
de Abu-Simbell, é um exemplar paradigmático da arte escultórica colossal
do fi nal do Novo Império: na parte externa da entrada do templo, quatro
fi guras rígidas e solenemente sentadas, com mais de 20 m de altura, repre-
sentam o poder do faraó.
No Antigo Império, encontramos um rico repertório de diferentes posi-
ções e tipos de estatuária. Algumas de pé, outras com os homens na atitude
de caminhar, enquanto as mulheres mantêm as pernas juntas, com os bra-
ços colocados habitualmente ao longo do corpo, embora às vezes um braço
se dobre sobre o peito. Também são frequentes as estátuas em posição sen- Os hipogeus
tada sobre um bloco, com os braços dobrados repousando nas pernas. São Por ocasião do Novo Im-
pério, a tumba real sofreu
desse período as estátuas de escribas, sentados sobre uma esteira ou no uma modifi cação radi-
chão com as pernas cruzadas, lendo um rolo de papiro cal: as sepulturas régias
passaram a ser túneis
As estátuas podem ser individuais, mas também podem formar gru- escavados na rocha das
pos ou casais que podem estar acompanhados dos fi lhos. No Médio Impé- encostas do deserto do
rio, a estatuária privada deixa de fi car fechada nas tumbas, destinando-se Vale dos Reis, próximo a
Tebas. A despeito da ine-
também aos templos xistência de duas tumbas
Durante o Novo Império, a escultura dos particulares procede dos iguais, elas apresentavam
traços comuns, a exemplo
templos, das casas e das tumbas, com imagens, salvo raras exceções, afas- da escadaria, um corre-
tadas da fi delidade aos retratados, pois adaptadas ao ideal do momento, dor descendente abrindo
geralmente infl uenciadas pelas estátuas régias que mostram as pessoas para diversas câmaras e,
fi nalmente, a câmara do
na fl or da idade, embelezados pela moda e com os símbolos de sua posição
sepultamento contendo
social bem visíveis. o sarcófago real. No inte-
rior da montanha tebana
alguns hipogeus possuí-
am uma profundidade de
2.3. O artesanato mobiliário mais de cem metros.
O repertório artesanal, a julgar pelo mobiliário encontrado nas tum-
A esfinge
bas, apresentava grande riqueza de peças raras: camas de madeiras nobres O enigma da esfi nge – in-
marcheteadas com outras madeiras, marfi m e apliques de metais preciosos. corporado pelos autores
Nas luxuosas cabeceiras e dosséis, encontravam-se, penduradas, fi nas cor- da tragédia ática, como
Sófocles, para expressar a
tinas como mosquiteiros, macios colchões vegetais com lençóis e colchas de dor do herói trágico Édipo
puro linho. Foram encontradas, inclusive, camas dobráveis para viagem. que mata seu próprio pai e
casa com sua própria mãe
Palanquins e cadeiras portáteis eram utilizados em percursos mais –, representa um fl agrante
longos. Para o ar livre eram utilizados guarda-sóis e tendas. Um grande testemunho do infl uxo da
número de poltronas, cadeiras, banquetas e tamboretes era encontrado nos cultura egípcia no mundo
das artes e da cultura gre-
quartos e salões. Na tumba de Kha, dignitário da XVIII Dinastia, foi encon- gas. Na narrativa mítica
trado um assento com um buraco central para seu uso como vaso sanitá- de Édipo, ele se vê frente
rio. A variada louçaria consistia em peças esculpidas em pedras, outras de a frente com a esfi nge que
lhe desafi a com o seguinte
cerâmica decorada e algumas de ouro. enigma: decifra-me ou te
devoro.
HISTÓRIA DA ARTE I 37
2.4. O relevo e a pintura
A cultura egípcia foi uma das mais antigas a produzir um conjunto
considerável de obras da arte da pintura, desenvolvido ao longo de três mi-
lênios e cuja tradição foi marcada por rígidas convenções iconográfi cas que
regulavam o uso de imagens. Por todos meios e formas, a arte do relevo e da
pintura desempenhava uma função mágica, visto que as imagens do faraó
retratado deveriam proporcionar um modo de vida pós-morte similar à des-
frutada em vida e lhe assegurar seu sustento.
A partir do Novo Império, a pintura passa a ser a arte preferida para o
interior. Já o relevo refundido é reservado para os exteriores, mais resistente
à exposição dos rigores do tempo.
O Escriba sentado
“Escultura em pedra cal- Os templos funerários das pirâmides eram adornados com cenas va-
cária pintada, com as se- riadas, como a oferenda de mantimentos para manter o faraó na vida pós-
guintes dimensões: 53,7
cm de altura, 44 cm de morte, cenas de guerra e de caça ou o faraó em companhia dos deuses. A
largura, 35 cm de profun- vitória sobre o inimigo era tema recorrente, simbolizando a supremacia do
didade. Foi encontrada faraó, como garantidor da ordem, da paz e da prosperidade.
num sepulcro de um ce-
mitério do Antigo Império No Novo Império, as tumbas são profusamente ornadas com pintu-
em Sacará [ou Saqqara, ras e relevos. O rei, acompanhado pelos deuses, é tema próprio dos pilares
mesmo local da pirâmi-
e da sala de espera. As câmaras funerárias são adornadas com imagens
de escalonada do faraó
Djoser]. Trata-se de uma e hieróglifos copiados, em folhas de papiros, dos textos escritos nos Livros
obra de autoria desconhe- do lnfra-mundo e concebidos especialmente para decorar as tumbas reais.
cida, realizada entre 2620 Ao incluir esses textos em seus sepulcros, os faraós se uniam ao ciclo
e 2350 a.C. e que retrata,
provavelmente, um es- solar para dele renascer. Surgem também cenas de batalhas, totalmente
criba ou um príncipe. Na estranhas no Antigo Império. Cenas de jogo e de dança adquirem maior
atualidade encontra-se complexidade.
no museu do Louvre, em
Paris.
Os escribas eram impor-
tantes funcionários do 2.5. O status de escriba
vasto império faraônico
porque dominavam a es- A atividade que gozava de maior pres-
crita e a leitura. Eram, tígio na alta burocracia da corte era a de
então, encarregados de
transmitir as determina- escriba, por pertencer à esfera próxima dos
ções do faraó para as mais dirigentes. O monopólio da escrita conferia
distantes regiões. Além status a quem dela usava, convertendo-o as-
disso, podiam trabalhar
na administração militar
sim em fonte de autoridade. Altos burocratas
ou com os sacerdotes. De costumavam relatar, em suas biografi as, a
certa forma contribuíram trajetória nas carreiras administrativas com
para garantir a unidade
do Egito na Antiguidade.
sucessivas ascensões devido à sua condição
A dúvida quanto à identi- de escriba, o que fazia deles serem bem pró-
fi cação da escultura com ximos do faraó e de outras esferas de poder.
um escriba é motivada
Num mundo ágrafo, o homem que escrevia,
pela qualidade da obra.
Os cuidados com os deta- lia e contava tinha a chave do poder. Os es-
lhes não eram comumen- cribas no Egito pertenciam às minorias diri-
te dedicados pelos artistas gentes. Altos personagens da corte incluíam
na representação dos fun- O Escriba sentado (Museu do
cionários da burocracia o título de escriba entre os muitos outros de
Louvre)
do Império. Assim, pode sua carreira.
ser a fi gura de um prín-
cipe em alguma atitude
própria da sua condição”.
Autoria de Graça Proença,
Editora Ática, 2001. Site:
3. Creta
www. aticaeducacional. Para melhor entender o legado cultural que a Grécia antiga nos dei-
com.br/imagens/comple- xou, devemos partir da história dos povos que gravitavam em torno do mar
mentos/hda/img/ima-
gem26.swf Egeu, dando especial atenção para sua pujante produção mercantil articu-
lada à antiga estrutura escravocrata. A região em torno do Mar Egeu com-
38 HISTÓRIA DA ARTE I
preendia uma vasta área entre a península balcânica (abarcada pela Grécia
continental e o Peloponeso) e a Ásia Menor. Foram várias as populações que
iriam formar um povo que passou a ser chamado de grego, designação dada
pelos romanos. Contudo, os próprios gregos se autodesignavam de helenos.
Trata-se de um contexto crucial para a compreensão da civilização
grega, do seu pensamento, cultura e vida material, deixando-nos um im-
pressionante sistema de artes, mas, sobretudo, a invenção, por volta do
século VII a. C., de uma forma inusitada de pensar: a filosofia.
Os primeiros registros da região partem de um período pré-helênico,
em torno do terceiro milênio a.C. (a história da ilha de Creta), com referên-
cias à sua esplêndida e rica cultura também conhecida como minóica (ter-
mo atribuido ao arqueólogo inglês Arthur Evans e originário do rei mítico
Minos), cujo apogeu se dá entre 1700 e 1450 a.C.
Os minóicos – graças à sua posição privilegiada como habitantes da
maior ilha do Mediterrâneo, no mar Egeu, cercada por vários povos do con-
tinente e exercendo um poder na região baseado no comércio marítimo (tha-
lassocracia, poder do mar em grego) –, desenvolveram uma impressionante
civilização urbana, cujo modo de vida girava em torno de grandes palácios
que eram, a um só tempo, centros administrativos, econômicos, religiosos
e políticos. O palácio de Knossos se destacou como o mais importante de
todos. Estudos de suas ruínas revelam que ele foi construído entre 1.700 e
1.500 a.C. e sua planta era bem evoluída, possuindo um pátio central cer-
cado por muitas salas, algumas delas agrupadas e ligadas umas às outras
numa ordem bem planejada.
De um modo geral, esses imensos palácios, com evidentes influxos da
arquitetura egípcia e de outras civilizações orientais, possuíam um pátio
interno, dezenas de aposentos, corredores e enormes depósitos. Seu refi-
namento e luxo levavam-nos a contar com banheiros, privadas e bueiros.
Além das colunas em policromia de tons vivos e contrastantes, as paredes,
os tetos e pisos eram ricamente decorados com vistosos afrescos, um dos
traços mais notáveis da arte cretense.
De característica marcadamente naturalista, nela se observam nu-
merosas representações de plantas e animais, com uma acentuada paixão
pelo movimento rítmico e ondulante. As figuras humanas são igualmente
constantes com patente intenção ritualística.
Enquanto Creta exerceu sua thalassocracia, a arte e cultura minóica
se espalharam pelas ilhas do Mediterrâneo e pelos povos do continente,
inclusive pela Grécia. Entretanto, o sistema palaciano minóico começa a de-
cair por volta de 1450 a.C. Depois de um breve período de pálida sobrevida
de seus tempos áureos, o palácio Knossos é incendiado em 1375 a. C. Inva-
dida e dominada pelos aqueus, povo vindo da Grécia, a civilização minóica
perde definitivamente sua posição de destaque no mar Egeu.
Com características de uma gente aguerrida, os aqueus, povo de fala
grega, chegaram ao continente cerca de sete séculos antes (por volta de
2000 a.C.), constituindo-se no curso da história, na poderosa civilização
micênica, dando claros indícios de uma intensa influência mínóica. A des-
peito disso, a arte micênica apresentou traços próprios. Pintavam seus pa-
lácios com motivos distintos daqueles escolhidos pelos artistas cretenses:
predominam cenas de guerra e de caça, bem como desfiles de carros.
Uma de suas obras de maior destaque – devido à sua monumentalida-
de, força e agressividade –, é o Portal dos Leões, construído por volta 1250
a.C. Nessa escultura colocada em cima da entrada principal da muralha
HISTÓRIA DA ARTE I 39
feita de imensos blocos de pedra, dois enormes leões parecem guardar a
cidade de Micenas.
A partir do século XII a.C., hordas dóricas invadem a Grécia conti-
nental e a larga península do Peloponeso além das ilhas do mar Egeu. Os
aqueus se vêem forçados a migrar para o leste, para a Ásia Menor, onde
fundam colônias solidamente estruturadas, dissolvendo a sociedade ali es-
tabelecida e substituindo a organização social agrária, patriarcal e tribal
por uma poderosa sociedade mercantil e artesanal baseada no comércio
marítimo, em intenso contato com outros povos do Oriente.
“Atualmente, grande parte Nas novas terras, os aqueus instituem o comércio baseado na moeda,
dos pesquisadores acredi- importante passo para a formulação do pensamento abstrato, criam o ca-
ta que foram os micênicos
que fi zeram a guerra con- lendário e desenvolvem novas técnicas de cultivo. Dessa forma, surge uma
tra Tróia, da qual temos rica classe de comerciantes que irá competir com a velha e atrasada aristo-
conhecimento por meio cracia agrária, conseguindo superá-la. São alterações profundas e irrever-
dos poemas homéricos.
Os locais descritos por
síveis que conduzem a sociedade grega a se tornar urbana e a adotar uma
Homero em seus versos cultura laicizada, ao contrário do pensamento mítico-religioso que predo-
podem ser identifi cados minava até então. As formulações anteriores vão cedendo lugar a explica-
com aqueles em que os
arqueólogos modernos en-
ções de outro tipo e natureza: explicações racionais e abstratas que serão
contraram o maior núme- denominadas filosofia.
ro de vestígios da civiliza- A Grécia (Hélade para os romanos) marcou esse período, no sentido de
ção micênica. Além disso,
os objetos da ourivesaria ter experenciado as primeiras tentativas de explicações abstratas e racio-
micênica encontram pa- nais, na medida em que defi niu um conteúdo bastante preciso: uma cosmo-
ralelo nos objetos descri- logia, ou seja, uma explicação racional sobre a origem e a ordem do mundo,
tos pelo poeta na Ilíada
e Odisseia. É o caso de o cosmos, afastando-se, pois, das explicações míticas do período anterior,
uma expressiva máscara conforme veremos mais adiante.
funerária de um príncipe
micênico, encontrada por
Seus historiadores afi rmam que essa mudança foi possível graças à pros-
Schliemann, que a consi- peridade econômica das colônias gregas do leste (Ásia Menor) e do oeste (Mag-
derou como sendo de Aga- na Grécia, ao sul da Itália) e à estrutura escravocrata que liberou das funções
menon, rei de Micenas,
que participou da guer-
de sobrevivência, setores das classes dominantes e possuidoras da riqueza.
ra de Tróia” (PROENÇA, O estímulo à fi losofi a e às artes, grande legado da civilização da Grécia
1989, p. 26).
arcaica e clássica, teria partido do poder e riqueza dos comerciantes obtidos,
sobretudo, no período micênico, tendo compensado, assim, a falta de sangue
nobre da aristocracia agrária, com o próprio prestígio desses comerciantes,
conquistado pelo patrocínio às artes e à vida intelectual. Temos, assim, na
Antiguidade, uma antecipação, por vários séculos, do mecenato que caracte-
rizou o período de opulência da sociedade renascentista.
A ideia do trabalho como desonra aparece na sociedade grega, cujos
fi lósofos não cansam de proclamar o otium cum dignitate para ter-se uma
vida livre e feliz, para cultuar-se dentre outras coisas nobres, a fi losofi a, as
artes e as letras e para ter-se o cuidado com o vigor e a beleza do corpo
pela ginástica, dança e arte militar. O trabalho cabia aos escravos, como
pena advinda de sua condição de escravo, e aos homens livres pobres, como
desonra. Para Aristóteles, ação e ócio eram necessários, mas o ócio era
superior à ação, em razão do qual existia. Afi nal, para o fi lósofo, o ócio era
nobre por ser a fi nalidade da ação.
A palavra scholé signifi ca “tempo livre” ou “lazer”, daí derivando esco-
la. Para os antigos gregos, só era possível a uma pessoa se ocupar da ativi-
dade do conhecimento, se ela estivesse liberada da obrigação do trabalho.
Assim, o otium cum dignitate denotava o sentido de se dedicar aos estudos
com dignidade. Aos fi lósofos cabia a biós theoretikós (a vida contemplativa)
em oposição à vida ativa ou prática, onde o saber autotélico era visto como
algo inservível, ou melhor, um saber que servia apenas para si próprio.
40 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 2
Da narrativa mítica à arte do período arcaico
HISTÓRIA DA ARTE I 41
o apoio dos conselhos e da assembleia. Assim, o destino da pólis passou a
depender de decisões humanas e laicizadas, fruto de uma interlocução co-
letiva de cidadãos e não de um único Rei divino.
Com tais procedimentos, estabeleceram-se as condições para os con-
ceitos de cidadania e democracia, fundamentais para o mundo grego. O
caráter humano e público das decisões, contudo só se desenvolveu plena-
mente bem mais tarde, pois, durante certo tempo as leis eram promulgadas
e exercidas por aqueles que conheciam a tradição oral e os mitos, mediante
sua interpretação.
Homero e Hesíodo são dois autores de fundamental importância para
o entendimento desse período. Obras como a Ilíada e a Odisseia de Homero
e Os trabalhos e os dias e Teogonia, de Hesíodo, além de constituírem docu-
mentos fundamentais para a compreensão histórica do período, constituem
igualmente fontes preciosas para desvendar as características do pensa-
mento então produzido.
Homero teria vivido no século IX a.C na Jônia. Seus poemas épicos
cobrem dois momentos distintos: a Ilíada é uma narrativa de guerra que
descreve o comportamento dos heróis da guerra de Tróia, que teria ocorrido
entre 1280 e1180 a.C.; a Odisseia narra uma época de paz.
A figura de Homero está revestida de uma aura de mistério. Teria ele
realmente existido? Ou teria existido mais de um Homero? Ou ele seria uma
invenção da alma artística grega? Se existiu, era realmente cego? Ou tal
condição lhe conferia um ar a mais de mistério e magia, para quem a única
visão necessária seria apenas a do interior? Os dois poemas seriam fruto de
uma compilação e teriam sido redigidos com um século de diferença, após
terem sido transmitidos pela tradição oral?
A Ilíada apresenta feitos e fatos com características da civilização mi-
cênica, como se viu. No entanto, é difícil isolar tais fatos de outros que se
situaram em épocas posteriores, como a da Odisseia provavelmente.
Hesíodo nasceu na Beócia, vivendo em fins do século VIII a.C. e início
do seguinte. Em seu poema mais conhecido, a Teogonia, Hesíodo narra a
genealogia dos deuses e do mundo. Em Os trabalhos e os dias narra a vida
no campo vinculada ao trabalho.
São patentes as diferenças entre os dois poetas, que nasceram em
épocas e lugares distintos. A obra homérica é marcada pela narrativa da
vida e do mundo, a partir de uma perspectiva aristocrática e voltada para
a nobreza. Hesíodo, ao contrário, coloca-se sempre na perspectiva das ca-
madas populares, sobretudo a dos camponeses. Homero associava a noção
de homem às virtudes próprias da aristocracia. Já a concepção de virtude
para Hesíodo estava associada ao trabalho. Apesar das diferenças, ambos
viveram um mesmo momento histórico, época em que os gregos se emanci-
pavam de arraigadas tradições e preparavam um novo modo de viver.
O que mais ressalta é a afinidade das narrativas dos dois no que se
refere à relação entre o divino e o humano. A relação deuses-homem, ex-
plicitada por ambos, possui uma dupla característica. Em primeiro lugar,
o homem é valorizado na medida em que os próprios deuses eram huma-
nizados com aparência e sentimentos antropomorfizados. Os deuses eram,
como qualquer humano, portadores de sentimentos como amor, ódio, pena,
vingança, que poderiam ser dirigidos tanto a outros seres divinos como
aos próprios humanos mortais. Em segundo lugar, ambos os poetas esta-
beleram uma dependência dos homens em relação aos deuses, vistos como
seres imortais e com amplos poderes para interferir em suas vidas. Se isso
42 HISTÓRIA DA ARTE I
submetia os homens às divindades, igualmente estruturava sentido às suas
vidas, na medida em que lhe conferiam uma razão de ser.
Outro importante aspecto nas narrativas míticas de ambos, no que
se refere à relação deuses-homem, situava-se na busca da compreensão do
cosmos e dos fenômenos da natureza. Se o cosmos é a boa ordem, busca-
ram igualmente uma organização do universo divino mediante a ordenação
dos deuses, cuja existência passava a ser vista dentro de uma certa ordem
hierárquica que, inclusive limitava seus poderes sobre a vida humana.
Ao contrário da tradição judaico-cristã que concebe o mundo criado
do nada, a tradição teogônica e cosmogônica grega buscava descrever uma
genealogia dos deuses, bem como a existência do cosmos, a boa ordem, a
partir da ordenação do caos, estado primeiro de um universo que sempre
existira antes de se tornar cosmos. A preocupação com a origem das coisas
que sempre partia de algo existente (para o grego era inconcebível a ideia
de algo ser gerado do nada, como o mundo criado por Deus conforme a
narrativa judaico-cristã), era abordada pelo mito e por meio de um estilo e
modo que lhe são bem próprios. Vejamos uma passagem típica retirada de
Hesíodo:
Mesmo admitindo que mito e logos (v. glossário) são esferas distintas,
na medida em que o mito, ao contrário do logos, não permite o discurso
dialógico do contraditório, da argumentação e contra-argumentação, o mito
abriga em seu interior, uma racionalidade, ainda que fechada em si mesma,
que busca dar sentido ao mundo e à vida daqueles que a adotam.
HISTÓRIA DA ARTE I 43
No mito, a noção de origem confunde-se com a do nascimento e a
noção de produzir com a de gerar. Busca-se o sentido da vida na medida
em que, mediante a exposição genealógica, são desvelados os gestores (pai
e mãe), o que é igualmente buscado nas teogonias (racionalidade mítica)
quando somos projetados na escala cósmica.
Mediante sucessivos nascimentos, frutos da união e/ou confronto
de forças antagônicas, fi cava estabelecida a ordem no mundo e entre os
deuses. O mundo dos deuses ordenado pela racionalidade mítica refl etia o
mundo ordenado dos homens e, por essa mesma racionalidade do mundo
ordenado dos deuses e dos mitos, estabelecia-se uma racionalidade para a
vida humana.
Segundo o estudioso francês dos mitos, Vernant, tal racionalidade
envolvia uma ambiguidade: "(...) operando sobre dois planos, o pensamento
apreende o mesmo fenômeno, por exemplo, a separação da terra das águas,
simultaneamente como fato natural no mundo visível e como geração divina
no tempo primordial" (VERNANT, 1973, p. 300)
Caberá ao período que se segue assumir a tarefa de superar a ambi-
guidade contida no mito e dar um novo caráter à elaboração desse pensa-
Séries harmônicas mento. Ele havia sido preparado pelos novos tempos trazidos pelo pensa-
Uma corda esticada vi-
brando em dada frequên- mento racional laicizado e gestado no interior da pólis, onde os cidadãos
cia provoca ressonâncias participam da vida pública, mediante as discussões da ekklesia * realizada
contínuas, mantendo re- na ágora*, e movido pelo tipo novo de pensar advindo de pessoas especiais
lações numéricas cons-
tantes entre si. Tomando
promotoras do pensamento fi losófi co.
o dó como 1º harmônico
(nota fundamental), o 2o
harmônico é o mesmo dó,
uma oitava acima; o 3o 2. Período da Grécia arcaica: o mundo é dotado de
é o sol, que compõe um
intervalo de 5ª justa com racionalidade
o 2º harmônico. O 4o é
o dó, estabelecendo com Iniciado em fi ns do século VIII e indo ao começo do século V a.C.,
o sol (3o harmônico) um para a história da Filosofi a, este período é também conhecido como pré-
intervalo de 4ª justa; o 5º
harmônico é o mi, estabe-
socrático. O mito cede lugar ao logos como forma de explicar o universo. A
lecendo um intervalo de denominação de período arcaico vem de arkhé * (origem das coisas). Deve-se
3ª justa com o dó, e as- à característica do pensamento dos primeiros fi lósofos, como Tales de Mileto
sim por diante, conforme (c. 625-548 a.C.), Anaximandro (c. 610-547 a.C.), Pitágoras de Samos (c.
se pode ver no seguinte
exemplo: 580-497 a.C.), Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a.C) Anaxímenes (c. 583-528
a.C .), que elaboraram explicações sobre a origem e a constituição do uni-
verso, identifi cando, nos elementos como água, fogo, ar, terra, bem como no
número ou no indeterminado (ápeiron), o princípio uno e originário de tudo.
2.1. A música
Interessa-nos, examinar, de perto, a originalidade do pensamento pi-
tagórico, responsável por uma inédita formulação teórica sobre a ordem do
universo baseada na música e nas relações intervalares físico-matemáticas
das séries harmônicas *.
“E de fato, tudo o que se conhece tem número. Pois é impossível pen-
sar ou conhecer algumas coisas sem aqueles” (Filolau de Crotona). Os
pitagóricos não viam o número como mero símbolo, senão como princípio
Filolau de Crotona (sé-
culo V a.C.) apud Andery constitutivo (arkhé) da estrutura do cosmos. Pelo conhecimento de suas
et alii, 2000, p. 40. Filolau relações e da harmonia cósmica, todo o universo tornava-se cognoscível.
foi um dos maiores divul-
gadores da doutrina pita-
Número e harmonia eram a condição necessária para a explicação da
górica. existência do universo. Assim, os pitagóricos concebem a música como algo
44 HISTÓRIA DA ARTE I
fundante da ordem do ser. Existe uma racionalidade arquetípica no âma-
go das coisas e do cosmos, o que era evocado a partir da teoria das séries
harmônicas. Dessa forma, os pitagóricos incorporam a música a uma cos-
mologia: eis aqui um belo exemplo da diferença entre o pensamento mítico
(período homérico) e o pensamento racional fi losófi co (período arcaico).
No primeiro período, a cosmologia se ocupa de deuses e homens que
se vêem imbricados numa complexa narrativa genealógica dos fatos de na-
tureza mítica. No segundo, os pitagóricos estabelecem uma cosmologia que
funda um princípio ordenador a partir dos sons musicais: o princípio de
que as relações intervalares são de ordem físico-matemática, ampliando
tal princípio para todo o cosmos, incluindo os astros e o mundo humano
(a pólis). Trata-se do mundo visto como ordem harmônica. A música seria
o agente regulador da harmonia cósmica, que, por sua vez, ressoaria na
ordem social.
O conceito de harmonia estendido às diferentes esferas da existência –
a ordem epistêmica, ética e estética – passa a signifi car que verdade, virtude
e beleza expressam diferentes dimensões da harmonia, contidas no belo,
bom, justo e verdadeiro ou, conforme o princípio da Paidéia (formação dos
jovens): a busca do ideal do kalós kai agathós,o belo e o bom. Esse conceito
de harmonia deriva da matriz cosmogônica expressa pelas propriedades
dos sons musicais contidos nas séries harmônicas. Na verdade, os gregos
não concebiam a música como arte, como hoje a concebemos, mas como o
que então se concebia como ciência.
2.2. O teatro
2.2.1. O drama
Outra rica herança deixada pelos gregos refere-se às artes cênicas. O
antigo teatro grego teria forte procedência nos cultos dedicados a Dioniso,
deus grego (Baco para os romanos) da festa e do prazer, da desmesura e da
embriaguês. Filho de Zeus com a princesa Sêmele, foi o único gestado com
uma mortal. Durante as celebrações em sua honra, em meio a procissões e
com o auxílio de fantasias e máscaras, eram entoados cânticos, ditirambos *,
que, mais tarde, deram formas às representações plenamente cênicas como
hoje a conhecemos mediante encenações consagradas.
A tragédia ática – certamente a maior invenção das artes cênicas da
Grécia, provavelmente surgida no século VI a.C. – teria tido suas protofi gu-
rações nos ditirambos. Lembremos que o nome tragédia vem de trágos e óde
(respectivamente bode e canto, em grego).
Os corais ditirâmbicos, em honra a Dioniso, se apresentavam num
Ditirambo do grego
local circular com um altar no centro (orkhestra, lugar de dançar). As pri- ditýrambos:
meiras representações possuíam um caráter religioso, dedicadas a Dioniso. Era uma ode entusiástica
de intenso teor apaixona-
A partir do século V a.C., na gestão de Péricles, dá-se o grande fl o- do, entoada por um coro
rescimento da cultura e das artes gregas, inclusive do teatro. Péricles teria e constituída por uma
usado esse fl orescimento para obter a opinião favorável da população vi- narrativa recitada pelo
sando à implementação de seus planos políticos. Nesse contexto, chamado corifeu, espécie de solista;
a parte coral era de res-
século de Péricles, surgem os autores trágicos: Ésquilo, Sófocles e mais tar- ponsabilidade de perso-
de Eurípides. O teatro grego se enriquecera ao incorporar novos elementos nagens vestidos de faunos
como o uso da mekhané, um artifício especial lembrando um tipo de guin- e sátiros (fi gura híbrida,
meio homem, meio bode),
daste que trazia um dos deuses por cima do palco. Daí a expressão latina acólitos do deus Dioniso,
deus ex machina, literalmente "um deus surgido da máquina", que se refere importantes fi guras nos
a um inesperado artefato artifi cial ou evento introduzido repentinamente cultos a ele dedicados.
HISTÓRIA DA ARTE I 45
para resolver uma situação ou desemaranhar uma trama. Muitas peças
terminavam com um deus sendo literalmente baixado pela mekhané, para
amarrar as pontas soltas da trama.
46 HISTÓRIA DA ARTE I
Ésquilo (c. 525 a 456 a.C.)
• Principal obra: Prometeu acorrentado.
• Trama principal: o castigo de Zeus infligido a Prometeu por ter
roubado o fogo do Olimpo e doado aos mortais.
Sófocles (c. 496 a 406 a.C.)
• Principal obra: Édipo Rei
• Tema principal: v. acima.
Eurípides (c. 484 a 406 a.C)
• Principal obra: As troianas.
• Tema principal: fim da guerra de Tróia a partir do universo fe-
minino: mulheres prisioneiras esperam o embarque para novos
lares.
Aristófanes (c. 445 a.C. a 386 a.C.) dramaturgo considerado o maior
• representante da comédia grega clássica.
• Principal obra: As rãs, obra-prima da arte da comédia.
• Tema principal: Dioniso desce ao Hades com o seu criado Xân-
tias
2.2.3. A Arquitetura
Para as representações cênicas, os gregos contavam com uma imensa
infraestrutura de espaço. Eram grandiosas edificações feitas no declive das
encostas rochosas, com excelente aproveitamento do cenário natural e com
centenas de degraus feitos de pedra para a assistência: tratava-se de uma
imensa construção circular, em forma de anfiteatro, que continha vários
espaços, cada um com funções específicas:
HISTÓRIA DA ARTE I 47
2) O theatron: o auditório propriamente dito dedicado à assistência
(theatro e theoria possuem o mesmo étimo theo com o sentido de
contemplar).
3) O eisodos: os dois acessos a cada lado da orkhéstra para o coro
entrar e sair de cena.
4) A skene: local atrás da orkhéstra, cuja função inicial era servir de
uma espécie de camarim destinado para guardar o vestuário e tam-
bém para os atores se vestirem. Depois passou a representar a fa-
chada de um palácio ou templo, sendo também palco para atuação.
5) A mechané: grua ou guindaste para elevar atores, mecanismo para
o uso do o uso do artifício do deus ex machina.
Um dos aspectos mais impressionantes do anfiteatro grego refere-se à
sua acústica. Levando em conta a distância entre o ator que representava
no espaço cênico da orkhéstra e os espectadores sentados na última fileira
da bancada de pedra que abrigava a pla-
teia em círculos concêntricos, era real-
mente espantoso o fato de que ele se fazia
ouvir de forma clara.
A bem da verdade, o ator representa-
va com máscaras (persona em latim, por
onde soava e passava a voz do intérprete),
cujo volume era ampliado devido à forma
como eram confeccionadas. Dessa forma,
além de ter a função de levar a voz para
toda a plateia, as máscaras tinham outra
função: possibilitar as pessoas de acom-
panhar a ação cênica pelas expressões
que mostravam, ora de dor, ora de alegria
bem como de compaixão, espanto ou ou-
tros sentimentos e afetos necessários à
trama encenada.
Vários desses anfiteatros, construí- Máscara teatral
dos sobretudo no período helenista, com a
difusão da cultura grega pela unificação promovida por Alexandre Magno
em vários países que integravam seu império, chegaram até hoje relativa-
mente bem conservados.
Porém, o anfiteatro que mais nos impressiona é o de Epidauro, por
sua beleza majestosa e magnitude, sua excepcional acústica, e por tudo
estar em excelente estado de conservação. Construído segundo o costume
do aproveitamento da vertente de uma montanha, com um diâmetro de 112
metros e 32 filas de assentos na parte baixa, 20 na parte central e 24 na su-
perior, seu theatron possui a capacidade para receber 14.000 espectadores.
Reza a lenda que mesmo o som de um pequeno objeto jogado ao chão
do palco era ouvido por qualquer pessoa da plateia, independente do local
da bancada do theatron.
Localizava-se também em Epidauro, no Peloponeso, às margens do
Mar Egeu, o templo de Esculápio, deus da medicina, famoso centro que
atraía doentes de várias partes da Grécia e de outros países vizinhos pro-
curando a cura. Muitas das encenações no Epidauro estariam ligadas às
atividades medicinais do culto a esse deus.
48 HISTÓRIA DA ARTE I
Teatro de Epidauro Teatro de Epidauro com encnações
contemporâneas
HISTÓRIA DA ARTE I 49
Arcos e abóbodas estão ausentes, pois o que ressaltava eram as linhas
retangulares. O núcleo do templo era fechado, formado por um ou mais
compartimentos onde era colocada a estátua da divindade homenageada.
As paredes dos templos poderiam receber desenhos, mas nada dessa arte,
como veremos adiante, foi conservado e chegou até nós. As colunas susten-
tavam um entablamento horizontal que continha um frontão. Esse conjunto
era construído segundo os modelos das ordens dórica, jônica e, posterior-
mente, a coríntia. Ao contrário desse conjunto, cujas colunas apresentavam
o fuste arredondado e liso ou com caneluras, havia edificações onde está-
tuas externas ao núcleo do templo desempenhavam o papel de sustentar o
entablamento denominadas de cariátides.
As cariátides no Erectéion.
50 HISTÓRIA DA ARTE I
O estilo coríntio prima por ser mais esbelto e adornado, Na Renas-
cença, foi apelidado de ordem feminina. Tornou-se famoso pelo seu capitel
mais alto em forma de sino invertido e ornado com motivos vegetais: folhas
de acanto, louro ou oliveira.
Os estilos dórico e jônico são mais utilizados no período arcaico bem
como no período clássico (v. Partenón) e o coríntio surge mais tarde.
Já no mundo greco-romano, as ordens derivadas das gregas sempre
apresentam aproveitamento das originárias. Assim, a ordem toscana se
aproxima mais da dórica, porém em proporções menores, com um pedestal
saliente, não existente no original, sendo constante nos primeiros edifícios
de Roma. A ordem compósita coesiona os estilos mais adornados, a exem-
plo das volutas jônicas e das folhas coríntias.
HISTÓRIA DA ARTE I 51
eretas, em rígida posição frontal e com o peso do tronco do corpo distribuído
igualmente sobre as duas pernas. Se o influxo egípcio, na estética e na técni-
ca, era patente, o mesmo não ocorria quanto à função da escultura, uma vez
que, na Grécia, onde o artista não estava submetido a convenções rígidas,
ela não tinha funções estritamente religiosas, podendo, assim, destinar as
estátuas para outras funções. Graças a isso, o estilo pôde se transformar
mais livremente. Uma das primeiras e mais nítidas dessas transformações
foi o abandono da postura rígida e forçada dos kouroi.
As estátuas de figuras humanas passaram a expressar uma nova pos-
tura: a cabeça poderá ter uma leve inclinação para um lado, abandonan-
do assim a fixidez do olhar; a posição pesada do
corpo, apoiado rígida e igualmente sobre os dois
pés, cede lugar a um corpo que descansa ape-
nas sobre uma das pernas, desfazendo o cânone
do eixo simétrico anterior, provocando, inclusive,
uma leve diferença na linha dos quadris, com um
lado um pouco mais alto.
Na busca de maior plasticidade na forma
das estátuas, o mármore revelou-se inadequado:
pesado demais, ele se quebrava sob seu próprio
peso, devido ao desequilíbrio das partes do corpo
não apoiadas. O mesmo ocorria com o peso dos
braços suspensos da estátua. A solução foi encon-
trada no uso do resistente bronze, permitindo as-
sim a busca por maior movimento plástico. a alter-
nância entre a imobilidade tensa e a flexibilidade
relaxada dos movimentos. Duas obras famosas – o
Discóbolo (lançador de disco) de Míron e o Doríforo
(lanceiro) de Policleto –, cujos originais em bronze
se perderam, restando-nos cópias romanas, são
exemplos de onde é possível verificar a imobilidade
do tronco e o movimento dos membros.
Doríforo de Policleto
52 HISTÓRIA DA ARTE I
Como forma de aproximação da estética policrômica original, a Glip-
toteca de Munique organizou, em 2004, uma exposição intitulada Bunte
Götter (Os Deuses Coloridos), com réplicas, em cores supostamente origi-
nais, de obras importantes, com resultados surpreendentes.
Pouco restou de vestígios da pintura grega, pois muita coisa se perdeu
devido à fragilidade de seus suportes. Os mais usuais eram os muros dos
templos e os vasos e outras cerâmicas. O pouco que sabemos deve-se a
fontes literárias da época sobretudo dos fi lósofos do período clássico, como
Platão e Aristóteles, pensadores que se dedicaram à refl exão das artes de sua
época, conforme veremos no capítulo a seguir. Atribui-se à cidade de Corinto,
no período Arcaico, o local das primeiras produções de vasos decorados com
silhuetas em cor preta, associadas a motivos geométricos ou vegetais.
Na Grècia clássica, Atenas tomou
a si o primeiro posto da produção e ex-
portação da arte da cerâmica, nela impri-
mindo a seguinte característica: a pintura
negra da superfície dos vasos constrata-
va fortemente com as fi guras pintadas em
dourado e mais raramente, em vermelho.
Os temas mais usuais dessas pinturas em
cerâmica eram divindades como Dioniso
ou Apolo, fi guras míticas da narrativa ho-
mérica como Aquiles, representações da
tragédia, a coroação de atletas dos jogos
Cena representando
olímpicos, músicos tocando instrumentos uma parte do coro
como o aulos, etc.
Texto 1
“Para Nietzsche, os gregos criaram a filosofia porque não teriam temi-
do o dilaceramento, a dualidade, o lado cruel e sombrio dos humanos e da
natureza. Longe de serem os homens da moderação ou da medida, seriam
as criaturas da desmedida - a hybris- e da luta sem tréguas entre os con-
trários - do agón, palavra grega que significa: batalha, luta, jogo, disputa
interminável entre os opostos. Os gregos, antes de inventarem a filosofia,
inventaram o que daria origem a ela: a tragédia.
Que é a tragédia? Culto religioso (só depois transformado em obra
teatral), a tragédia narra a morte e o renascimento do deus Dioniso e, ao
narrá-los, expõe o princípio bárbaro, cruel, desmedido, de embriaguez e pes-
simismo, de lutas subterrâneas entre poderes titânicos na batalha do sofri-
mento para fazer sair da indiferenciação caótica da matéria a individuação
organizada das formas. O princípio que guia a tragédia é a desumanidade e
a barbárie que fecundam o espírito grego, dando-lhe seu momento ou prin-
cípio dionisíaco.
Ao lado do princípio dionisíaco, oferecido pela tragédia, os gregos, afir-
ma Nietzsche, inventam um outro princípio, contrário e oposto ao primeiro,
responsável pelo surgimento da filosofia: o princípio da luminosidade, da
forma perfeita, da individuação, da medida ou moderação e da serenidade,
HISTÓRIA DA ARTE I 53
figurado por Apolo, deus da luz e da palavra, patrono da filosofia. Esse prin-
cípio é denominado por Nietzsche de apolíneo.
A antítese insuperável entre o dionisíaco e o apolíneo governaria o es-
pírito dos gregos. Somente por terem sido conquistadores cruéis, escreve
Nietzsche, senhores de escravos, dominadores de outros povos, animados
pelo espírito agonístico da luta, da disputa e do jogo, movidos pelo impulso
das desarmonias da desmedida, divididos em suas cidades em dezenas de
facções contrárias sempre em guerra, puderam colocar como ideal inalcan-
çável o apolíneo: a estatuária, a poesia lírica e épica e a filosofia exprimiriam
a busca desse ideal de luz e serenidade, contrária à realidade brutal e san-
grenta da vida grega”. (CHAUÍ, 2002, p.27)
Texto 2
Arte simbólica ou oriental: para o filósofo Hegel o simbolismo da
monumentalidade oriental é uma espécie de protohistória da arte, em que
religião e arte encontram-se “promiscuamente” enredadas. Na arte simbó-
lica “a ideia [conteúdo da obra de arte] é abstrata, não encontrou ainda a
forma absoluta; e a forma em que aparece é lhe exterior, inadequada, não
passa de matéria natural, de sensível em geral” (HEGEL, 1993, p. 49). Cor-
responde ao momento do universal abstrato. O Espírito criador aspira a infi-
nitude de modo ainda inadequado, numa abstração que impede de constituir
um sensível apropriado na finitude.
Para materializar o Universal no particular sensível, o protoartista cons-
trói figuras colossais. A arquitetura, a mais pesada das artes, é a primeira
e mais adaptada a essas concepções e atributos fantásticos do sagrado. O
sensível desmesurado subjuga o espiritual. “Na arte simbólica temos, de um
lado, a ideia abstrata, e de outro lado, as forças materiais que lhe não são
adequadas. A ideia indefinida, a ideia infinita apropria-se da forma e esta
apropriação de uma forma que lhe não convém tem todos os aspectos de
uma violência” (p. 49). A arte dessa fase “pertence à categoria do sublime,
e o sublime define-se pelo esforço de exprimir o infinito [...] A expressão não
passa de tentativa, de ensaio, que produzirá gigantes e colossos, estátuas
com mil braços, e mil corpos” (p. 50).
As fantásticas forças da natureza, ainda impenetráveis para a compre-
ensão do homem, e a elas subjugado, constituem, para Hegel, a mais arcai-
ca concepção do absoluto. Essa etapa, que Hegel denomina de panteísmo
oriental ou religião da natureza, é uma espécie de protohistória da arte. A
forma sensível se justapõe, ou melhor, se impõe arbitrária e inadequada-
mente à ideia. “O simbolismo caracteriza-se por uma diferença entre o fora
e o dentro, por uma falta de apropriação entre a ideia e a forma incumbida
de a significar, pelo que esta forma não constitui a expressão pura do es-
piritual. Uma distância afasta ainda a ideia de sua representação” (p. 50).
Arte clássica: esta sucede à arte simbólica. Momento de eticidade da
Cidade grega, onde se busca a perfeita harmonia entre os fins da individua-
lidade e da comunidade através da pólis. Essa nova concepção, que vê uma
unidade harmoniosa entre o indivíduo e a pólis, deve, de preferência, ser ex-
pressa somente na própria forma humana, e não mais por símbolos naturais,
como na etapa anterior. Aqui, existe livre adequação de forma e da ideia, do
conceito e de sua representação sensível. Nesse estádio superior da história,
as relações entre os homens e a natureza são mediadas pelo social. “Na arte
clássica, o sensível, o figurado, deixa de ser natural” (p. 51).
54 HISTÓRIA DA ARTE I
As forças supremas são as da pólis e não as da natureza, quando os
deuses não são mais forças naturais, como no simbolismo, mas têm um ca-
ráter social, fundadores que são da comunidade política. Aqui o homem se
acha em harmonia com o mundo, o sujeito se sente em sua casa, no objeto
de arte. Esse momento, que Hegel denomina as religiões da individualidade
espiritual, reveste-se de uma tensão entre o temporal e o espiritual. O sen-
sível enquanto forma, deve ser purificado, livre dos liames que o aprisionam
à miserável finitude, e, a um só tempo, a espiritualidade deve se expressar
de forma exaustiva nas figuras humanas, porém sem se identificar comple-
tamente, sem se confundir inteiramente com o sensível.
Se a arquitetura pesada representa, por excelência, a protoarte do
simbolismo, a arte clássica encontra na escultura o perfeito equilíbrio entre
a significação interna do espiritual e a forma externa sensível. Hegel enalte-
ce a estatuária grega que criou um ideal do belo e do bom (ideal grego das
formas harmoniosas do kalós kai agathos (belo e bom). “Hegel, em belas
páginas, mostra que o ‘perfil grego’ é o tipo de rosto mais distante da ani-
malidade: enquanto o corpo animal existe somente em vista de fins naturais
[...], o corpo e o rosto humanos, na escultura grega, exprimem a perfeita
harmonia do homem” (GARAUDY, 1993, p. 176)
HISTÓRIA DA ARTE I 55
Capítulo 3
O século de Péricles: apogeu das artes e
doutrinas estéticas da Grécia clássica
56 HISTÓRIA DA ARTE I
reflexão e do pensamento. Com os sofistas, grupo de filósofos educadores da
época, a filosofia dá uma reviravolta humanista: “o homem é a medida de
todas as coisas”, ensinava. na época, o sofista Protágoras de Abdera.
As explicações do período arcaico anterior, baseadas nos elementos
da natureza como princípio primeiro (arkhé) ordenador e constituidor de
sentidos do mundo e das coisas, são substituídas por temas como o conhe-
cimento, a verdade, a cidade, o poder, as leis, a justiça, a virtude, o amor, a
beleza, a arte, dentre outros.
Três grandes pensadores marcarão o período – Sócrates (suas ideias
são divulgadas pelo discípulo Platão), Platão e Aristóteles –, reponsáveis,
inclusive, pelas primeiras reflexões sobre a produção artística de seu tempo.
Em síntese, podemos dizer que, para Sócrates, o ser era a “beleza paradig-
mática”, para Platão, o ser era o eídos (que os latinos traduziram por ideia),
e para Aristóteles, o ser era um só ente constituído de conteúdo e forma.
São importantes concepções de natureza metafísica com implicações e res-
sonâncias nas respectivas formulações estéticas desses três pensadores.
A partir deles, ficarão estabelecidos certos cânones das linguagens
artísticas, que, no limite, durarão até a contemporaneidade, seja pelas suas
proposições afirmativas ainda aceitas, seja pela contestação e confronto de
seus princípios com pretensões de validade universal e eterna, conforme
veremos a seu tempo. Questões como a perdurabilidade da obra de arte, o
belo em si, a mímesis (a propriedade imitativa da obra de arte), o papel do
conhecimento intelectivo (epistêmico) e do conhecimento sensível (estético),
a harmonia são conceitos e princípios fundantes da reflexão sobre a obra de
arte inauguradas por esses filósofos.
A questão da perdurabilidade da arte pode ser vista a partir de um
duplo aspecto. Primeiramente, sua explicação pode provir de um aspecto
crucial da doutrina platônica sobre o caráter imitativo dos objetos de arte,
enquanto mímesis de ideias arquetípicas (essências) perfeitas e eternas das
coisas, cuja análise desenvolveremos abaixo.
Mas a perdurabilidade pode ainda ser igualmente explicada pelo tipo de
matéria prima usada na arquitetura e escultura gregas. Na Grécia e em vá-
rios países vizinhos, a natureza era pródiga em solos e montanhas rochosas
e em matrizes calcárias donde se extraíam blocos de mármore. Mas o que
contava mais certamente eram os metais, sobretudo o bronze fundido que
procurava imprimir nas peças um caráter eterno, oferecendo assim as con-
dições materiais objetivas para robustecer a perdurabilidade de suas obras.
HISTÓRIA DA ARTE I 57
No livro X, 595ª de A República, Sócrates-Platão tece dura crítica à
pintura, depois de condenar a “poesia de caráter mimético”. São múltiplos
os objetos como são múltiplas as cópias, porém, o eídos (ideia para os lati-
nos) desses múltiplos objetos, como a cama, é um só e é dessa ideia única
de cama que o artesão-carpinteiro copia. Já o pintor que a pinta não toma,
como modelo, a ideia de cama, mas a imagem que dela faz.
Como cópia da cópia, para Platão, a cama pintada é apenas um objeto
aparente, sem nenhuma realidade essencial. Em relação a esta, a cama do
carpinteiro teria a vantagem de estar menos afastada da ideia originária
da essência da cama porque sua cópia, pelo menos, busca representá-la na
sua tridimensionalidade concreta.
A arte mimética (estética da pura imitação), voltada para o mundo sen-
sível das aparências enganosas, estaria afastada do verdadeiro mundo das
essências, das formas estáveis e eternas. A arte imitava os objetos de um
mundo, por si, já imperfeito e mutante. Assim profere Sócrates:
58 HISTÓRIA DA ARTE I
cuja beleza, por mais que seja incompleta, é uma busca de imitação do belo
em si. Pode-se afirmar que, para Platão, o belo causava enlevo, prazer, ar-
rebatamento, deleite. Para ele, a beleza é o brilho da verdade, aforismo que
perdurou, durante muito tempo, no pensamento estético do Ocidente.
Diferentemente da episteme (scientia), via para o conhecimento autên-
tico, a arte visa ao fictício e ao ilusório. Se, em sua bela cidade (Calípolis),
Platão dispensa algumas artes e artistas, em O Banquete, traça a via da
conquista do belo incorpóreo em si, pela ascese contínua que passa pelo
belo atribuído a certos entes particulares em direção ao sublime:
HISTÓRIA DA ARTE I 59
A preferência pela cítara e a condenação da flauta, instrumentos do
deus Apolo e do deus Dioniso, respectivamente, podem também ser exami-
nadas pelas possibilidades que cada um desses instrumentos oferece às
duas ordens éticas das respectivas estéticas musicais: a lira permite o ver-
so cantado; portanto, permite a palavra, a poesia e o conceito, postulados
estéticos da arte apolínea, superior à música pura (somente instrumental)
e ao ritmo. A flauta prescinde do canto; portanto, prescinde do conceito.
Ela executa a música pura e a música rítmica, postulados estéticos da arte
dionisíaca. A noção platônica da melodia subordinada ao reino da palavra
será mantida, durante longo tempo, pela estética cristã e pelo racionalismo
ocidental, conforme será visto.
A herança pitagórica legou, para a Grécia clássica e as eras posterio-
res, a demarcação dos campos em apolíneo e dionisíaco, com tendência fa-
vorável ao primeiro, criando um cânone básico e uma hierarquia: a música
como serva da palavra, o ritmo como servo da harmonia. Nessa perspectiva,
o ritmo equilibrado jamais deve comprometer as proporções harmônicas.
Qualquer excesso, seja rítmico, melódico ou instrumental, será condenado,
por ser próprio da festa dionisíaca, prenunciando a cisão, que irá traspassar
épocas e lugares, entre a música das alturas, cívica, normativa, harmoniosa
e a música rítmica, popular, pulsante, ruidosa, extática. São dois parâme-
tros que a estética apolínea lutará tenazmente para torná-los irredutíveis
um ao outro pelo expurgo do dionisíaco.
60 HISTÓRIA DA ARTE I
no gênero trágico, a via efetiva capaz de reconstruir o equilíbrio (harmonia)
interno do espectador. Existem fortes indícios de que Aristóteles teria escrito
o Livro II da Poética, onde teria dissertado sobre a comédia, tema, inclusive,
do romance O nome da Rosa, do escritor italiano Umberto Eco.
O conceito de belo é algo recorrente na obra aristotélica, encontrável
em várias de suas obras e não apenas na Poética, onde afi rma que “o belo
está na extensão e na ordem” (1450 b 37). Eis algumas dessas passagens:
“o belo está na extensão do corpo, pois as pessoas pequenas podem ser gra-
ciosas e bem proporcionadas, mas não são belas” (Ética a Nicômaco, 1123 b
7). Ou, ainda, referindo-se ao corpo: “o belo parece ser uma certa simetria
dos membros” (Tópicos, 116 b 21-22), noções que aplicam inclusive à beleza
feminina O fi lósofo afi rma em A Retórica que uma mulher bonita e bem pro-
porcionada, porém pequena, pertence ao campo do gracioso, mas não ao do
belo, que exige, entre outras coisas, grandeza.
Ou ainda
São citações que nos fazem concluir que o conceito de belo ligado à si-
metria, à ordem e à harmonia é um postulado geral da estética aristotélica.
Portanto, o atributo de beleza é inerente aos objetos, decorre tão somente de
certa harmonia ou ordem existente entre as partes desses objetos entre si, Todas as citações deste
constituindo um todo uno. Além disso, para um objeto ser belo exigia-se parágrafo foram retiradas
ainda que tivesse certa grandeza ou imponência, mas que não comprome- da dissertação de mestra-
do de Gazoni, A Poética de
tesse os atributos de proporção e medida, o que foi evidenciado nas citações Aristóteles: tradução e co-
acima. A recorrência de Aristóteles à harmonia e à articulação proporcio- mentários. USP, 2006.
nal das partes num todo ordenado deu origem a uma célebre assertiva dos
seus seguidores, que costumam dizer que “a beleza consiste em unidade na
variedade”. O objeto belo dependente de suas propriedades expressas na or-
dem e harmonia entre suas partes, constituindo um todo belo, nada tinha a
ver com sua participação na ideia de uma beleza absoluta, como em Platão.
Segundo Aristóteles, o cosmos se originou do caos, ao ser regido pela
harmonia, conceito nascido da estética musical da escola pitagórica. En-
tretanto, vestígios do caos original debatem com o desejo incessante de or-
dem. O belo imbricado com o conceito de harmonia será um importante
legado, como veremos, para a arte renascentista, que a enxerga como uma
espécie de “conveniência sensata”, constitutiva por conhecimentos cientí-
fi cos e racionais. Em síntese, para a estética aristotélica, constitui o belo
a concordância das partes, sua harmonia, um cálculo matemático para a
composição do todo que não admitia a contradição.
Concluindo, podermos dizer que os dois grandes fi lósofos gregos, a
despeito de suas diferenças, têm em comum uma concepção objetiva do
belo, a saber, a beleza é um atibuto constitutivo do próprio objeto e jamais
uma doação de sentido estético que parte do olhar contemplante, conforme
será posteriormente tematizado pela estética racionalista da modernidade.
HISTÓRIA DA ARTE I 61
As doutrinas estéticas subsequentes são, em verdade, continuadoras,
via de regra, de modo eclético, das estéticas platônicas e aristotélicas. Da
tradição clássica grega ao fi nal do século XVIII, a beleza era vista como uma
propriedade constitutiva dos objetos belos, a exemplo de um quadro, uma
sonata, um poema, uma escultura.
62 HISTÓRIA DA ARTE I
Livros
• Ilíada e Odisseia de Homero
• A República (Livros III e X) de Platão
• A Poética de Aristóteles
Sites
Graça Proença, Editora Ática, 2001. Site:
• www.aticaeducacional.com.br/imagens/complementos/hda/
img/imagem26.swf
Filmes
A Odisséia (1997): do diretor Andrei Konchalovsky, megaprodução de Fran-
cis Ford Coppola adaptada da narrativa mítica atribuída a Homero, em que
o herói Odisseu (Ulisses) enfrenta várias vicissitudes, muitas provocadas
pela fúria dos deuses e monstros mitológicos, saindo-se sempre vitorioso,
graças às suas ardilosas estratégias e coragem, em sua viagem errática de
volta ao seu reino na ilha grega de Ítaca, onde sua fi el esposa, Penélope, o
aguarda, desde sua partida para a guerra de Tróia.
Os dois fi lmes abaixo indicados são duas obras que podem ser vistas
como abordagens distintas que representam as respectivas concepções dos
fi lósofos Platão e Aristóteles sobre arte:
Morte em Veneza: (do cineasta italiano Luchino Visconti, a partir do ro-
mance homônimo do escritor alemão Thomas Mann) o fi lme apresenta uma
nítida fi liação à estética platônica, conforme atesta a paixão do músico ale-
mão (escritor no original) Gustav von Aschenbach pelo belo adolescente po-
lonês Tadzio, ocorrida durante suas férias em Veneza no início do século xx,
tomada pela peste; o fi lme trata de uma ideia de belo que parece nos remeter
à noção da beleza em si do mundo das ideias e das formas perfeitas.
Agonia e êxtase: (do cineasta inglês Carol Reed, baseado no livro de Ir-
ving Stone) o fi lme aborda a relação tensa e confl ituosa entre Michelangelo
e o Papa Júlio II, que lhe encomenda a pintura do teto da capela Sistina.
O fi lme, em determinado, momento apresenta uma cena de nítida fi liação
aristotélica: o artista, ao ser interpelado pelo arquiteto Bramante, que o
recriminara sobre seu gesto de alisar o grande bloco de mármore, pronun-
ciando o nome do profeta Moisés quando existia apenas um bloco de pedra,
teria dito: “Moisés já está no mármore. Eu apenas o libero”. Ou seja, a ma-
téria mármore já contém, em potência, a escultura de Moisés, que a ação do
artista efetiva em ato. Este fi lme é também indicado para a Unidade IV, por
apresentar interessantes cenas e imagens da pintura e escultura renascen-
tistas, contendo em seu início, antes da parte fi ccional propriamente dita,
uma apresentação documental de várias esculturas do artista, com peque-
nas análises e situações históricas.
HISTÓRIA DA ARTE I 63
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. S. Paulo: Compa-
nhia Das Letras. 2001
CUNHA, Newton. Dicionário do SESC A Linguagem da Cultura. São Pau-
lo: Editora Perspectiva. 2003
GARAUDY, Roger. Para Conhecer o Pensamento de Hegel. Porto Alegre:
LP&M. 1993.
GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comen-
tários. Dissertação de Mestrado no Depto do Filosofi a da USP. São Paulo:
2006
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral, 15ª edi-
ção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo:
Martins Fontes. 1995.
HEGEL Estética. Lisboa: Guimarães Editores. 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia SP: Perspectiva. 1994
PESSANHA, José Américo M. “Platão: as várias faces do amor” in Os Sen-
tidos da Paixão. São Paulo: Companhia Das Letras. 1989.
PROENÇA, Graça. História da Arte. Sâo Paulo: Ática. 1989.
VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Gré-
cia Antiga. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.
WISNIK, José Miguel O Som e o sentido. S.P.: Cia Das Letras, 2001
História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e folhe-
to). Edição: Grupo Cultural.
64 HISTÓRIA DA ARTE I
Unidade
3
Do Helenismo ao
Medievo Cristão
Objetivo:
• Esta unidade busca examinar as artes de um largo período que se inicia com o
grande império de Alexandre Magno, responsável pela unidade cultural obtida em
todo seu território, denominada helenismo. Segue-se depois a análise da integração
da cultura helênica no mundo latino, constituindo o classicismo greco-romano.
Será também analisada a difusão da arte cristã, com suas diferentes linguagens e
estilos por todo o medievo europeu.
Capítulo 1
O helenismo e o classicismo greco-romano
1. O surgimento do Helenismo
A civilização grega, ao estender sua hegemonia política e econômica,
bem como sua cultura e artes a vários povos, feito sob o domínio do reino
da Macedônia, com Filipe II, e pelas conquistas de Alexandre Magno e, de-
pois, sob o domínio romano, constrói uma civilização universal, ampliando
e infl uenciando todo o Mediterrâneo, compreendendo a parte ocidental da
Ásia Menor, o mar Negro, o Oriente Próximo e Médio e o norte da Europa
continental e insular.
As trocas comerciais com o Oriente se expandiram e a posição social
derivada dos ativos fi nanceiros adquiriu grande importância, maior do que
a pertinência tradicional a famílias. Como resultado, imprimiu-se uma mo-
bilidade socioeconômica sem precedentes, trazendo consigo modifi cações
culturais inevitáveis.
Com todas essas modifi cações, estabeleceu-se, pela primeira vez, um
verdadeiro commercium litterarum et artium, um intercâmbio cientifi co, ar-
tístico e intelectual até então inimaginável. A partir daí, verifi cou-se a pri-
meira grande experiência civilizatória do multiculturalismo, a oikoumene
(termo greco-romano, cujo sentido é mundo habitado) ou "civilização co-
mum", baseada num só direito e numa só língua (a koiné, variante simpli-
fi cada do grego ático, usada, sobretudo, durante o império romano), com a
participação da latinidade romana.
Instituiu-se uma organização societária regionalmente agrupada por
corporações profi ssionais que acabou por desenvolver um pensamento cos-
mopolita que se abriu a Leste e a Oeste e que, a um só tempo, passou a
infl uenciar tais áreas intelectual e artisticamente.
Alexandre pretendeu criar um grande estado multiétnico, em que o
legado macedônico coabitaria com a herança persa e asiática. A síntese de
tal estado seria obtida sob a hegemonia do legado cultural grego, período
que passou a ser conhecido como helenismo.
Essa época é identifi cada como o 4º período da civilização grega. O
ideal de sua difusão por parte de Alexandre se efetiva na fundação de várias
cidades durante suas conquistas (além de Alexandria, capital marítima do
Egito, cerca de outras 70 cidades com esse nome são igualmente fundadas).
Da planta urbanística de cada nova cidade devia constar, via de regra, um
conjunto arquitetônico mínimo compreendendo uma ágora, uma biblioteca,
um anfi teatro, um museu e um templo.
Segundo essa periodização da civilização grega, a fi losofi a, que nas-
cera na Grécia arcaica e alcançara seu apogeu na Grécia clássica, agora
se expande para além das suas fronteiras. Ao todo, seriam seis séculos de
fi losofi a grega. Se considerarmos, no entanto, o helenismo como período de
expansão de uma fi losofi a greco-romana e das doutrinas cristãs (a patrísti-
HISTÓRIA DA ARTE I 67
ca), como querem alguns, a fi losofi a antiga se estenderia até o século VI d.C.
Assim, ao todo, seriam dez séculos de fi losofi a grega.
Já o historiador inglês Arnold Toynbee, levando em conta a força da
cultura grega desde as invasões dóricas, amplia o conceito de helenismo
para um largo período de cerca de 1.300 anos, ou seja, a civilização que se
inicia no período homérico e que vai até a derrocada do Império Romano
no século V d.C., quando tem início a Idade Média. Corresponderia, as-
sim, à civilização grega continental e peninsular nascida no mar Egeu (cf.
TOYNBEE, 1986, p. 34 ss. e CUNHA, 2003, p.157). Toynbee defende que a
"Um elemento é a confi gu- força da cultura helênica começa, então, a partir do período mítico grego
ração da história política e se mantem numa linha de tempo que transcende as lutas fratricidas do
da própria civilização he- mundo grego, perdurando, mesmo quando a Grécia se vê dominada por
lênica. Na primeira fase
da história helênica de forças externas como foi o caso do Império Romano, oferecendo inclusive a
que temos registro, vemos unidade cultural coesionada pela Paidéia grega, necessária para preservar
um contraste marcante durante muito tempo aquela hegemonia imperial até o fi nal da era antiga.
entre a unidade cultural
do mundo helênico e sua Para efeito de nossa história da arte, consideraremos o período helenísti-
desunião política. Com- co a partir dos reinados de Filipe e Alexandre, conforme a primeira periodiza-
provamos que ele estava
politicamente divido entre
ção acima descrita, indo à queda do Império Romano, no século V d.C., época
certo número de estados de grande comoção marcada pela derrocada de uma civilização responsável
soberanos e independen- por imprimir traços indeléveis na cultura ocidental, durante séculos.
tes, cujos cidadãos re-
conheciam participar da
mesma cultura, o que não
os impedia de guerrearem
uns contra os outros. No
decurso do tempo, essas
guerras fratricidas torna-
ram-se tão devastadoras
que levaram a civilização
ao desalento. Quando se
chegara a um ponto de
dissolução, conseguiu-se
a saída de uma tardia uni-
fi cação política do mundo
helênico dentro do Impé-
rio Romano. Isso trouxe
paz e ordem temporárias,
mas com o proibitivo pre-
ço de uma série de “golpes
fatais” que terminaram
com a derrubada de todas
as potências, com exceção
de um único sobrevivente Alexandre Magno (Sarcófago – Museu Arqueológico de Istambul)
vitorioso. Pela época em
que o ‘estado universal’
helênico se estabeleceu As características mais fortes da cultura helênica foram a antropo-
em Roma, o mundo he-
lênico já estava tão gra- morfi zação dos deuses do Olimpo, um pensamento fortemente marcado pelo
vemente exausto e des- humanismo e o empenho de uma vida pública regrada por conceitos morais
moralizado que se tornou e racionais em perfeito equilíbrio com a liberdade pessoal. Com a nova or-
incapaz de manter seu
estado universal para a
ganização da vida helênica, imposta por Filipe e seu fi lho Alexandre, são
perpetuidade, e o colapso proporcionadas oportunidades individuais desconhecidas da antiga orga-
do Império Romano signi- nização das cidades-Estado. As características do período clássico, como a
fi cou a dissolução da civi-
lização helênica” (TOYN-
unidade do pensamento baseado na racionalidade objetiva do cosmos, pre-
BEE, 1986, p. 54) sidida pela noção de harmonia, princípio ordenador fi ncado na concepção
cosmogônica pitagórica bem como na valorização da vida pública da pólis,
fi carão profundamente abaladas durante o helenismo.
À unidade do pensamento fi losófi co da época clássica expresso pelo
platonismo e aristotelismo, sucedeu uma série de doutrinas como o estoi-
cismo, o epicurismo, o hedonismo e o ceticismo, fi losofi as que possuíam
68 HISTÓRIA DA ARTE I
em comum, preocupações individualistas, uma vez que o poder político se
havia distanciado da prática da pólis. Daí a convivência de um ecletismo
de valores, de experimentos, de teorias, de vivências religiosas e de precei-
tos artísticos inovadores. Além das profundas inflexões ocorridas no pen-
samento filosófico, o ethos individualista irá provocar fortes ressonâncias
em outras esferas da vida dos povos helenistas. Dispersos agora em vastos
reinos e não mais em comunidades constituídas pelas cidades-Estado, os
gregos substituem os sentimentos de cidadania plasmados na vida pública
da pólis por sentimentos individualistas.
Um dos aspectos mais afetados dar-se-á, de imediato, nas plantas da
moradia, cuja arquitetura, no século V a.C., revelava simplicidade e certo
despojamento. Apenas os prédios públicos eram edificados com suntuosida-
de. A partir do período helenístico, as plantas das casas obedecerão, de pre-
ferência, o desejo de oferecer maior espaço e conforto aos seus moradores.
Essa mesma tendência irá deslizar para as atividades ligadas às artes
cênicas. O coro do teatro grego – muito valorizado na Grécia clássica por
representar a ação do povo ou ações da coletividade –, passa para o segun-
do plano. Agora, a ênfase maior será dada ao desempenho individual dos
atores. Tal alteração irá ter consequências inegáveis na infraestrutura ar-
quitetônica dos teatros. Estes, na era clássica, como vimos, eram divididos
em três grandes partes bastante distintas: o espaço circular da orkhéstra;
o theatrum, a arquibancada semicircular destinada ao público; e a skene,
espécie de camarim que depois serviu de palco para atuação. O conhecido
Teatro de Epidauro (século IV a.C.) é um exemplo típico do teatro clássico.
A valorização do ator, no correr dos anos, faz dele o personagem mais
importante para as encenações dramáticas e a arquitetura teatral teve de
acompanhar a nova realidade. A alteração mais importante se deu no pal-
co. No período áureo do teatro grego, havia na frente do palco uma fachada
chamada proscênio, onde eram apoiados os cenários. Toda a ação dramá-
tica era apresentada no espaço circular. Somente quando havia o uso do
deus ex machina, ela se dava na cobertura do proscênio.
A partir do século II a.C., com o maior destaque para a performance
do ator se apresentando mais isolado do público, sua ação ganha maior
destaque. Como consequência, a cobertura do proscênio se transforma em
piso para a atuação dos atores. Atrás do proscênio ergue-se mais um andar
em cuja fachada há grandes aberturas nas quais são fixados os painéis que
compõem os cenários. Criavam-se, assim, as condições para o surgimento
do que passou a ser conhecido como palco italiano. Com tais modificações,
a orquestra deixou de ser um espaço circular completo e o local destinado
aos espectadores aproximou-se mais do espaço cênico. A concepção do te-
atro como um espaço arquitetônico unitário, e não mais dividido em três
partes, começou a ganhar força, atingindo seu apogeu um pouco mais tar-
de, entre os romanos.
A partir do século IV a.C., a escultura helenística apresenta traços
bastante característicos, distinguindo-a do classicismo anterior. O primeiro
deles se refere ao crescente naturalismo, mediante a expressão de afetos e
sentimentos do estado de espírito do momento, e não apenas a idade e a per-
sonalidade, conforme os cânones anteriores. Outro traço refere-se à alego-
rização, sob forma humana, de conceitos como a paz, o amor, a liberdade, a
vitória etc. Um terceiro traço bastante demarcante com relação aos períodos
anteriores, tanto o arcaico como o clássico, é o nu feminino. Vejamos três
belos exemplares de Vênus deste período:
HISTÓRIA DA ARTE I 69
1) A Afrodite nua do escultor Praxíteles tornou sua obra mais famosa.
Comprada pela cidade de Cnido, ficou conhecida como Afrodite de
Cnido, cuja cópia romana encontra-se em Roma (Museu do Vatica-
no). Nela, é possível observar o estilo clássico de Policleto, presente
em O Doríforo, em que o artista opõe membros tensos e relaxados,
combinando-os com o tronco onde tais movimentos se refletem.
Porém, tal princípio, aplicado às formas arredondadas femininas,
transparece um forte toque de sensualidade.
2) Nesse mesmo século IV, o escul-
tor Lisipo cria a Afrodite de Cápua,
cuja cópia romana encontra-se no
Museu de Nápoles. A estátua repre-
senta a deusa com o tronco despido
e a parte inferior do corpo coberto
com uma túnica toda drapeada, se-
gurando um escudo onde admira a
imagem refletida de sua própria be-
leza, trabalho que irá servir de mo-
delo para outras esculturas, confor-
me veremos no exemplo a seguir.
3) No século II a.C., surge certamen-
te a mais célebre escultura do perío-
do: a Afrodite de Melos ou a Vênus de
Milo para os latinos, cuja designação
tornou-se mundialmente conhecida.
Essa obra parece culminar a síntese
das características das duas obras
anteriores, ao combinar a nudez par-
cial da Afrodite de Cápua, de Lisipo,
Vênus de Milo com o princípio de Policleto aplicado
à Afrodite de Cnido, de Praxíteles.
A busca de uma maior mobilidade nas esculturas parece demarcar o
estilo dos artistas do início do século III a.C, que aparenta querer conduzir
o olhar do observador a percorrer o entorno das obras e, assim, atingir um
tipo de contemplação de 360 graus. Um belo exemplo dessa nova tendên-
cia é a Vitória de Samotrácia. Existe a hipótese de que a escultura estaria
atada à proa de um navio líder de uma frota. As formas da figura alada de
uma mulher, personificando o desejo de vitória, induziriam tal hipótese: a
túnica agitada pelo vento, as asas abertas ligeiramente voltadas para trás
e o impressionante drapeado das vestes coladas ao corpo, são indícios con-
figuradores de uma forma feminina aérea e flutuante, dando forte sugestão
de movimento.
Outra característica da escultura do período foi a representação de
grupos de figuras, sempre mantendo a ideia de mobilidade e, a um só tem-
po, de tensão dos corpos representados. E a escultura que melhor represen-
ta esse traço é certamente a bela estátua de Laocoonte e seus filhos, esculpi-
da, provavelmente, na metade do século I a.C. O grupo de Laocoonte é uma
estátua esculpida em mármore, que retrata o sacerdote-representante de
Apolo com seus dois filhos sendo estrangulados por duas serpentes mari-
nhas, episódio dramático da Guerra de Tróia, relatado por Homero na Ilíada
e pelo poeta Virgílio na Eneida. Laocoonte teria sido o único a pressentir o
ardil de Ulisses (autor da ideia da construção do cavalo de Tróia), resistindo
70 HISTÓRIA DA ARTE I
à sua introdução para o interior das muralhas da cidade. Reza a lenda que
Poseidon, deus dos mares que favorecia os gregos, teria enviado duas ser-
pentes para calar a voz do sacerdote.
Existe muita beleza no conjunto escultórico dos corpos retorcidos ex-
pressa nos músculos retesados que buscam desesperadamente se livrar dos
anéis das serpentes, Os rostos do sacerdote e dos filhos demonstram toda a
carga de dramaticidade representando o pavor e a angústia da inutilidade
do gesto, prenunciando, assim, o desfecho fatal da morte que se avizinha.
Esta escultura teria provocado grande admiração em Michelângelo e grande
influência no seu estilo.
HISTÓRIA DA ARTE I 71
biblioteca se tornou um grande centro de comércio e fabricação de pa-
piros. Tais condições favoreceram a reunião e confluência de cientistas e
pesquisadores dos vários ramos das ciências que passam a estar ligados à
biblioteca, a exemplo do matemático Euclides de Alexandria (século IV a.C),
pioneiro no estudo da ótica e considerado gênio da geometria, cujos princí-
pios vigoravam até o início do século XX.
Além dele, a lista dos grandes frequentadores da biblioteca e do mu-
seu inclui grandes nomes das ciências e da filosofia. Eis alguns grandes
cientistas de Alexandria, cobrindo uma vasta linha de tempo, da antigui-
dade clássica à era cristã:
Aristarco de Samos (século III a.C): astrônomo, o primeiro a presumir
o sistema heliocêntrico. Usou a trigonometgria na tentativa de calcular o
tamanho do Sol e da Lua e suas respectivas distâncias.
Arquimedes (século III a.C): matemático, físico e inventor, tendo rea-
lizado diversas descobertas e os primeiros esforços científicos para calcular
o número (razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro).
É considerado um dos mais importantes cientistas da antiguidade. Na Fí-
sica, contribuiu para a fundação da hidrostática, tendo feito, entre outras
descobertas, o famoso princípio que leva o seu nome.
Cláudio Galeno (século II d.C.): filósofo e médico cujos livros sobre
a ciência da medicina tornaram-se padrão por mais de 12 séculos. Tendo
adquirido fama, tornou-se médico particular do imperador romano Marco
Aurélio. Fez várias experiências médicas, incluindo vivissecção e necropsia.
Ptolomeu (século II d.C): astrônomo cujos escritos geográficos e as-
tronômicos foram aceitos como padrão, a exemplo do sistema geocêntrico,
cujos princípios foram acatados e defendidos pela Igreja, sendo apenas con-
testados 1.400 anos depois
Hipátia (século IV e V d.C) astrônoma, matemática e filósofa, raro caso
de figura feminina dedicada às ciências para a época, tendo sido diretora
da Biblioteca de Alexandria. Morreu tragicamente, tendo sido assassinada
devido à intolerância religiosa.
2. O surgimento de Roma
O surgimento de Roma já aconteceu envolto em lendas e narrativas
míticas. Segundo a mitologia romana, Rômulo, junto com seu irmão gêmeo
Remo, seria seu fundador e seu primeiro rei. Tradicionalmente a data da
fundação de Roma é atribuída ao ano de 753 a.C. Os dois gêmeos eram
filhos do deus da guerra Marte com a vestal Reia Sílvia, descendentes de
Eneias, um troiano sobrevivente da guerra de Tróia que, depois de uma via-
gem errática pelo Mediterrâneo, teria aportado à região atual da Itália. Se-
gundo esse mito, Eneias seria o ancestral de todos os romanos. A Eneida,
poema épico de Vírgilio, narra a epopeia do herói, depois de Tróia destruída.
Encomendado pelo imperador Augusto, o poema pretende ser uma versão
latina da obra de Homero, a Ilíada e a Odisseia.
De origem obscura, os etruscos eram habitantes da antiga Etrúria,
região setentrional da península itálica, ocupando boa parte dela entre os
séculos XII e VI a.C. Mas eles não se limitaram à Etrúria e chegaram Lácio,
região onde iria se localizar a futura Roma. Portanto, o domínio da civili-
zação etrusca sobre grande parte da península itálica, inclusive a parte
romana, perdurou mais de seis séculos.
72 HISTÓRIA DA ARTE I
De forma bem sintética, podemos dizer que a arte romana, portanto,
sofreu duas fortes influências: a da arte etrusca, voltada de preferência para
a expressão mais realística da vida, e a da greco-helenística, orientada para
a expressão de um ideal de beleza, perseguido por muitos de seus artistas.
Porém, o legado artístico etrusco mais relevante deixado aos romanos
foi o uso do arco e da abóbada em suas construções, dois elementos arqui-
tetônicos desconhecidos na Grécia. Com esses dois elementos, os romanos
ampliaram os espaços internos, sem utilizar colunas, o que era próprio, por
exemplo, dos templos gregos.
Sem o uso do arco, o vão entre as colunas era delimitado pelo tama-
nho do mesmo, cujas distâncias entre elas não podiam ser muito grandes:
quanto maior era a viga, maior a tensão sobre ela. E o uso frequente de
materiais rochosos mais resistentes como a pedra não suportava grandes
tensões. Daí o uso característico das colunatas dos templos gregos, ocasio-
nando a redução do espaço de circulação. Com o uso do arco, permitiu-se
ampliar o vão entre as colunas, pois seu centro não ficava sobrecarregado,
visto que o peso encontrava-se distribuído de modo homogêneo sobre ele.
Como o arco era construído com blocos de pedra, a própria tensão desses
os fazia serem comprimidos uns contra os outros, dando ao arco maior es-
tabilidade.
HISTÓRIA DA ARTE I 73
principais, a grega e a etrusca, pronta para as suas criações independentes
e originais.
Pragmático, o Império Romano soube implantar onde chegou, sua or-
ganizarão política e econômica apoiada no conceito de urbs, a cidade la-
tina. A civilização imposta pelos romanos era composta de muitos povos,
culturas, deuses e estruturas políticas diferentes, cujo centro de comando
sediava-se em Roma, habitada por uma elite consumidora de produtos de
luxo, muitos dos quais vindo do Oriente. Mediante alianças, acordos ou
imposições pela força militar de suas legiões, Roma soube construir um im-
pério de dimensões extraordinárias. No século II a.C., era a potência máxi-
ma do Mediterrâneo, que os romanos, manifestando intenso sentimento de
pertença, chamavam de Mare Internum Nostrum. Seus limites iam do norte
da África à Europa Central e às Ilhas Britânicas, da Hispania à Pérsia.
O processo de romanização inicia-se com a urbanização dos territó-
rios anexados no ano 27 a.C., quando Otávio recebe o titulo de Augusto.
Para administrar com êxito a magnitude de seu território foi preciso encon-
trar soluções efi cazes, como o uso de novos materiais e procedimentos cons-
trutivos. Premidos pelas circunstâncias históricas, os romanos aprenderam
a ser excelentes construtores, aliando em suas edifi cações, o pragmatismo
de seus fi ns com novos valores estéticos, conforme veremos.
O Século de Augusto
Análogo ao século de Péricles, a civilização romana teve também seu
correlato com Caio Julio César Otaviano Augusto, cujo império cobriu um
período de 40 anos, marcando uma das épocas mais brilhantes da civilização
romana. Após conhecer o poeta Virgílio, o imperador passa a financiar sua
arte. Além desse, favorece também o historiador Tito Lívio, o arquiteto Vit-
rúvio e vários outros literatos, contando para a ampliação de seu patrocínio
às artes e letras com a parceria do seu ministro, Caio Mecenas.
Assim, no campo cultural, o Século de Augusto foi rico, cheio de pro-
messas criadoras, inaugurando uma época clássica para a arte europeia,
um classicismo latino que, mil anos depois, no período renascentista, ainda
dava frutos. Nessa época, foram fundadas várias bibliotecas públicas, a li-
teratura latina, anteriormente colada ao modelo grego, ganhou autonomia,
tornando-se uma das mais brilhantes da cultura ocidental. Como vimos, foi
de fundamental importância, para as artes, a sua aliança com o rico cidadão
e estadista romano Caio Mecenas. Ao administrar a grande fortuna familiar
tornou-se hábil conselheiro de Augusto César. Retirado da vida política, em-
penhou-se intensamente na proteção generosa das artes, incluindo, no seu
círculo literário, famosos homens das letras como Horácio e Virgilio. Augusto
construiu o fórum, que leva seu nome, as primeiras termas, no campo de
Marte, e vários templos, como o dedicado a Roma e a ele próprio por todo
o império. A Roma de Augusto tornou-se conhecida como “cidade de már-
more”. Ergueram-se templos à deusa Roma e a Augusto por todo o império.
O século de Augusto se notabilizou também por ter iniciado a Pax Ro-
mana ou Pax Octaviana, expressões latinas para designar a situação de re-
lativa paz do Império, iniciada quando Augusto César, em 27 a.C., declarou
o fim das guerras civis, o que nem sempre foi obtido, e que teria perdurado
74 HISTÓRIA DA ARTE I
até 180 da era cristã, sob o império de Marco Aurélio. Mas a pax que caracte-
riza o período deveu-se à neutralização das constantes investidas dos povos
do Norte, os chamados povos bárbaros, graças à ocupação das províncias
por exércitos permanentes que impunham a ordem, reprimindo pela força,
qualquer tentativa de revolta. Apesar de seu caráter violento, a pax romana
proporcionou uma época de relativa estabilidade e prosperidade, durante a
qual a civilização romana se estendeu a todo o Império, consolidando assim
o processo de romanização do mundo sob seu domínio.
Vários historiadores atribuem a este período de relativa tranquilidade
e paz – fincado em certa unidade cultural propiciada pela mesma língua (o
koiné, espécie de grego popular) e pelo mesmo sistema jurídico e adminis-
trativo, bem como pelo intenso comércio e convívio entre os vários povos –,
as condições objetivas para a difusão do protocristianismo.
3.2. O teatro
Devido ao uso de arcos e abóbadas herdado dos etruscos, foi per- “As cavidades quadradas
mitido, aos romanos, construir edifícios muito mais amplos do que os de que compõem a cúpula
infl uência grega, sobretudo quanto a seus anfi teatros, destinados a abrigar [do Panteão] vão dimi-
nuindo à medida que se
um número bem maior de pessoas graças à alteração feita na planta grega. aproxima do centro. Esse
Os construtores romanos, ao justapor fi leiras de arcos, conseguiram recurso aumenta a sensa-
ção de perspectiva e ter-
um sólido e seguro apoio para construir o auditório, uma grande arqui-
mina numa abertura de 9
bancada para receber publico. Com tal procedimento, liberaram-se das en- metros de diâmetro, per-
costas rochosas das colinas, conforme o projeto grego, tendo como conse- mitindo a entrada da luz
quência imediata a possibilidade muito mais fl exível de erigir teatros em natural que torna o am-
biente interno claro e leve,
qualquer local, independentemente de sua topografi a. apesar da monumenta-
Partindo do uso do arco e da abóbada como um dos recursos ca- lidade da construção”.
(PROENÇA, 1989, p. 40)
racterísticos de sua arquitetura, os romanos usaram ainda como suporte
HISTÓRIA DA ARTE I 75
grossos pilares. Além da pedra, empregaram com frequência o tijolo, mais
flexível e barato. Mas foi o opus caementicium, o concreto antigo, sua gran-
de descoberta, espécie de argamassa líquida de cal, areia, partes de pedra
e água, mistura que se consolidava e endurecia rapidamente, permitindo
grandes projetos. Armado o esqueleto da construção, recobriam-na em mui-
tos casos, com mármore e pedra, criando grandes espaços internos.
Como o povo romano apreciava as lutas dos gladiadores, o espetáculo
possuía boa visibilidade independente do ângulo que era usado, cuja ação
se dava numa arena, espaço circular elíptico circundado por muros radiais,
e um gigantesco auditório composto por um grande número de filas de as-
sentos, formando uma arquibancada.
O subterrâneo da arena contava com um complexo sistema de ga-
lerias, passadiços, depósitos, celas para os animais e mecanismos para
elevar, à arena, os homens e animais. Todas as cidades possuíam um an-
fiteatro, mas, com toda certeza, o mais grandioso e belo foi o Flavio (século
I d.C.), mais conhecido como o Coliseu de Roma, com uma capacidade de
aproximadamente 75.000 lugares. Nos seus alicerces foi utilizado o opus
caementicium e nos pilares e na fachada, blocos de pedra.
Externamente o edifício apresentava uma combinação de arcos entre
colunas e entablamentos, apresentando, em sentido ascendente, uma so-
breposição de ordens toscana, jônica e coríntia. As colunas eram, na ver-
dade, meias colunas, pois ficavam atadas à estrutura das arcadas, não
exercendo, portanto, a função de apoio à construção, mas apenas, de orna-
mentação.
3.3. A escultura
Inicialmente, a admiração dos romanos dirigida à arte grega não im-
pediu que, graças às suas características culturais pragmáticas, procuras-
sem caminhos estéticos diferentes. Tendo herdado o realismo da arte etrus-
ca, eles produziram esculturas que são uma representação fiel das pessoas
e não do ideal de beleza humana, conforme perseguiam os gregos.
No entanto, mediante o contato mais
frequente com esses últimos, os escultores
romanos sofreram forte influência das con-
cepções helenísticas a respeito da arte, sem
abdicar um interesse muito próprio e pecu-
liar: representar os traços individualizado-
res da pessoa retratada. Ocorreu assim uma
síntese entre a concepção artística romana e
grega, o que se pode verificar na estátua de
Augusto (c.19 a.C).
Seu autor teria se inspirado no Doríforo
de Policleto (sempre ele) como paradigma de
beleza escultórica, porém com algumas al-
terações para adaptá-la ao gosto romano. A
obra procura captar as reais feições de Au-
gusto, vestindo-o com uma couraça e uma
capa romanas. Seu olhar fixo com o braço
direito estendido como se dirigisse aos seus
súditos e sua perna esquerda levemente do-
brada lhe dão mais flexibilidade e movimento. Gaius Iulius Caesar Octavianus
Augustus
76 HISTÓRIA DA ARTE I
O estilo romano, representado pela aplicação de elementos bem de-
terminados, como nas esculturas dos imperadores, podia ser também visto
nos monumentos destinados a celebrar algum feito relevante do Império e
o realismo pragmático característico se fazia igualmente presente em sua
arte escultórica.
O interesse pelo realismo e a veracidade levou a arquitetura romana a
substituir motivos mitológicos e intemporais, tão caros aos gregos, por as-
suntos de seu tempo, quase sempre vinculados à administração do Império.
São relevos detalhistas, plenos de pormenores históricos, com personagens
reais, protagonistas dos eventos narrados A Coluna de Trajano e a Coluna de
Marco Aurélio são dois nítidos testemunhos de tal marca.
HISTÓRIA DA ARTE I 77
3.4. A pintura
Devemos atualmente o conhecimento da maior parte das pinturas ro-
manas graças às descobertas das cidades de Pompeia e Herculano, soterra-
das e conservadas debaixo dos escombros, sob a lava endurecida da erup-
ção do Vesúvio em 79 d.C. Assim foi possível o contato com a pintura
decorativa dos murais, sobretudo com a técnica do afresco*. A partir da
pesquisa desse acervo remanescente foi possível reconstruir um quadro
bastante sugestivo da fecunda e diversifi cada vida artística da Roma Anti-
ga, na virada da era cristã (período de transição da República para o Impé-
rio). Desde suas origens etruscas, Roma tinha sido uma grande consumido-
ra e produtora de arte tributária dessas origens que, por sua vez, recebera
infl uxos da arte grega arcaica.
Basílica: grande edifício Ao entrar em contato com a arte hele-
de origem helenística,
cuja arquitetura foi lar-
nista, a arte romana passou a assimilar seus
gamente difundida pelos princípios em todos os campos artísticos,
romanos, sendo mais tar- alterando-os, no entanto, para atender aos
de adaptada pelos tem- seus traços de pragmatismo realista; não foi
plos cristãos para uso de
seus cultos. Na realidade, diferente com a pintura. É por demais sabido
a basílica é uma transfor- o costume romano de copiar obras célebres,
mação da ágora colunada bem como de fazer variaçôes sobre técnicas
grega, que os romanos
cobriram, construindo, e temas gregos, conforme já analisamos. Se-
assim, um tipo de edifí- gundo vários relatos, as obras gregas eram
cio para diversos usos de altamente cobiçadas durante as conquistas Cena do cotidiano de uma famí-
caráter público, como as- lia de Pompeia (afresco)
sembleias cívicas, tribu- militares. Assim, devemos aos romanos o
nais, bem como atividades muito do que hoje sabemos sobre os estilos
comerciais e sociais. da pintura grega. Podemos contemplar afrescos dispersos em toda a área do
Mosaico: o termo mosai-
antigo império romano, mas é graças sobretudo à preservação dos numero-
co (do grego mouseîn), o sos exemplares das cidades de Pompeia e Herculano que podemos aquilitar
mesmo que deu origem a qualidade e excelência da pintura romana, cuja infl uência tornou-se bas-
à palavra música, pró-
prio das musas, refere-se
tante signifi cativa para a pintura ocidental.
a uma arte conhecida,
desde a antiguidade, no
Oriente Próximo e Médio:
sumérios, babilônicos,
egípcios e judeus recor-
reram ao mosaico para
decorar os seus templos.
A tradição ostentada no
Ocidente não se origina, As termas
porém, daqueles povos
orientais, mas sim do "As termas adquiriram uma grande importância e monumentalidade,
helenismo. Sua técnica pois o banho constituía um dos prazeres favoritos dos romanos. Eram luga-
consiste na montagem
res de encontro onde estreitar as relações sociais, nas quais, além de tomar
de pequenos fragmentos
(tesselas) de pedras se- os banhos, os romanos conversavam, passeavam, liam, ouviam conferên-
mipreciosas, cerâmica cias, descansavam, jogavam ou praticavam esporte. E nas quais se vendiam
ou vidros coloridos, már- bebidas e doces, faziam-se massagens e se podia depilar. Isto explica que
more, conchas, formando
em cada cidade houvesse uma quantidade de termas (que no caso de Roma
desenhos com motivos de
diversas naturezas, como superavam as duzentas) abertas a todos, independentemente da condição,
fi guras mitológicas, fi gu- idade ou sexo de cada um.
ras cristãs como mártires
e santos, bem como ani-
Inicialmente as salas eram aquecidas com braseiros, mas mais tarde
mais ou outros símbolos apareceu o sistema de aquecimento chamado hipocausto. Este faz circular ar
alegóricos, com o objetivo quente sob o pavimento e entre as paredes, ar que se aquece com um grande
de preencher algum tipo forno ou chaminé colocada [sic] no porão e alimentada [sic] com madeira.
de superfície, como pisos
e paredes, ou então algum Nos edifícios termais havia uma série de aposentos de diferentes ca-
objeto tridimensional. racterísticas e função, adaptados à alternância de banhos de água quente e
78 HISTÓRIA DA ARTE I
fria e a passagem por outros de ambiente morno ou temperado. Muitas eram
decoradas [sic] com pinturas ou estuques, e pavimentadas com mosaicos*.
Não existem dois edifícios termais idênticos. As plantas variam, segun-
do o circuito ou percurso previsto em cada caso. Nero, em 64 d.C., implantou
um modelo muito imitado posteriormente, de grandes dimensões (mais de
16.000 metros quadrados) e submetido a um rígido princípio simétrico com
salas duplicadas em torno de um eixo central.
Reza a tradição que a ade-
O conjunto incluía vestiários (apodyteria), salas com piscinas de água
são de Constantino à fé
quente (caldarium), morna (tepidarium) e fria (frigidarium), sauna (sudatio), cristã deu-se logo após a
além de latrinas, ginásios, salões, bibliotecas e jardins. vitória sobre o Imperador
Maxêncio, na batalha da
De tamanho colossal, com gigantescas dimensões, são uma amostra Ponte Mílvio (312), perto
dos problemas construtivos que foi capaz de resolver o arquiteto romano na de Roma; Na noite ante-
hora de abobadar grandes espaços, na distribuição e ordenação da planta e rior sonhara com uma
as instalações ou na iluminação. O exemplo mais grandioso de termas impe- cruz com a seguinte fra-
se em latim: in hoc signo
riais nos oferece o edifício mandado construir por Caracalla entre 212 e 217 vinces (“sob este símbolo
d.C." (História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea, p. 30) vencerás”). Antes da bata-
Como vimos, a arte romana revela um povo possuidor de um gran- lha, mandou pintar uma
cruz em todos os escu-
de espírito pragmático: por onde estiveram, fundaram cidades cujos nomes dos dos soldados e obteve
ou formatos se inspiravam em acampamentos militares fortificados, como uma vitória esmagadora,
Colônia, na Alemanha, e Léon, de legio (legião), na Espanha. Nas cidades que Constantino atribuiu
construídas ou conquistadas, erguiam templos, teatros, termas, aquedutos, ao Deus cristão.
mercados e basílicas,* grandes edifícios para diversas atividades governa-
mentais.
4. O fim do império
Morto Marco Aurélio, termina o longo período da pax romana. Na ver-
dade, como se viu, foi apenas um período de relativa tranquilidade no que se
refere à contenção das investidas dos bárbaros mantidos, manu militari, nos
limes (extensas muralhas fortifi cadas nas regiões fronteiriças do império).
Depois das primeiras décadas do século III, as lutas intestinas pelo controle Afresco
O afresco é uma técnica
e mando do Império se acirraram e, além disso, houve a intensifi cação da de pintura mural, cuja
pressão dos povos bárbaros, principalmente das tribos germânicas do norte preparação da superfície
que, cada vez mais, investiam a partir das suas fronteiras. A impossibili- exige grandes cuidados
na aplicação da camada
dade de manter unifi cado o imenso Império, que mais e mais se expandia,
de gesso que deve ser bem
levou o Imperador Teodósio I (395) a dividi-lo entre os dois fi lhos, o que foi lisa e fi na. É aí que o artis-
feito após sua morte: Honório fi cou com a porção ocidental, capital Roma, e ta executa sua obra. Essa
Arcádio fi cou com a porção oriental, capital Bizâncio, depois Constantino- superfície assim prepara-
da deve estar úmida para
pla, em homenagem a Constantino, o primeiro imperador a aderir ao cris- receber a tinta. Com a
tianismo . São diversas as causas atribuídas à queda do Império Romano, evaporação da água, a cor
dentre elas, as constantes guerras intestinas e as frequentes investidas dos da tinta adere ao gesso e
o gás carbônico do ar, ao
bárbaros cada mais vez difíceis de serem mantidos nas linhas dos limes. se combinar com a cal, a
Era o início do declínio do grande Império. Durante o século V, Roma foi transforma em carbonato
invadida e saqueada diversas vezes até que, em 476, perde o domínio do de cálcio, fi xando, assim,
o pigmento à parede. A
seu vasto território do Ocidente para Odroaco, chefe da tribo germânica dos pintura seca se incorpo-
hérulos, que invade a Itália e depõe Rômulo Augusto, o último soberano do ra ao reboco, tornando-a
Império Romano do Ocidente. parte constitutiva da pa-
rede. Tal técnica oferece
A intensa vida urbana do período áureo do Império, resultado, dentre difi culdades de aplicação
outras coisas, do intenso comércio entre os vários povos dominados, admi- pelo fato do artista ter que
nistrados pelo pragmatismo de um competente sistema jurídico-organiza- prever o real tônus cromá-
tico que queira fi xar, pois,
tivo, se esvazia, dando lugar a um lento, progressivo e constante processo a camada, ao secar, pode
de ruralizaçao. Para muitos historiadores, esta data marca o fi m do longo alterar substancialmente
período da Idade Antiga e o começo da Idade Méia. a tonalidade da cor pre-
tendida.
HISTÓRIA DA ARTE I 79
Capítulo 2
As artes na alta Idade Média: o bizantino, o
gregoriano e os períodos merovíngio e
carolíngio
1. A protoarte Cristã
O nascimento e a propagação da fé cristã pelo Império, como se viu,
se dá durante o período da pax romana. Cedo, Roma passara a ser a resi-
dência do primeiro papa, tornando-a também o centro da protocristanda-
de. Porém, ao contrário do pragmatismo tolerante com outras religiões, até
Constantino, o Império Romano perseguira cruelmente, em vários períodos,
o cristianismo, devido, dentre outras causas, ao combate à escravidão, cru-
cial base do Império, bem como ao questionamento da divindade da fi gura
do imperador. Contudo, a nova fé cristã passa a ser a religião ofi cial do Im-
pério Romano, em 390, com Teodósio.
Para fugir das perseguições, os primeiros cristãos refugiavam-se nas
catacumbas, cemitérios subterrâneos, onde também praticavam o culto e
pintavam símbolos da religião como o peixe (ichtys em grego), na verdade
as iniciais da expressão Iesous Christos, Theous Yous Soter, isto é, “Jesus
Cristo, Filho de Deus Salvador”. Esse sinal cifrado da pessoa de Cristo e, a
um só tempo, espécie de código de identifi cação no interior da comunidade
de fi éis foi, de fato, a primeira imagem pintada da protoarte cristã. Quando
a ocasião lhes era propícia, os fi éis pintavam cenas das Sagradas Escrituras.
No início, o culto cristão era realizado em sinagogas, junto com o culto
judaico. Conquistada a garantia de culto pelo Concílio de Niceia, em 313,
termina a perseguição aos fi éis. Com o maior afl uxo de convertidos, foram
sendo construídos cada vez mais templos cristãos, cujo estilo arquitetônico
obedecia às características do modelo das basílicas, por serem possuidoras
de maior espaço em seu interior.
A planta do espaço interno do templo tinha que ser organizado para
atender às exigências do culto. Geralmente, constava de uma nave central
bastante ampla, sem bancos, onde permaneciam os fi éis durante a cerimô-
nia. A extremidade do eixo da nave fi nalizava com uma ábside, geralmente
em forma semicircular, com o altar à sua frente.
Com o tempo a grande nave passou a ser atravessada por um tran-
septo (galeria transversal no corpo da nave) originando a planta cruciforme,
um templo no formato de uma grande cruz latina, com o transepto em di-
mensão menor que o eixo da nave. Outra planta cruciforme era baseada na
cruz grega, cujas hastes têm as mesmas dimensões, o que signifi ca que as
naves atravessadas eram exatamente iguais. Suas paredes e teto passaram
a ser ornamentadas com pinturas e mosaicos tendo em vista a transmissão
dos mistérios da fé.
Nesse período, o teor e a forma das manifestações artísticas, além de
sua clara subordinação à fé, possuíam papel crucial na propagação e edu-
cação da doutrina cristã. Se a estética cristã (se é que podemos nos referir a
esse conceito, tal era o desinteresse manifesto por parte do protocristianis-
mo pela matéria), expressava uma forte aversão às imagens e à estatuária,
pelo receio da idolatria (houve vários levantes violentos dos iconoclastas
80 HISTÓRIA DA ARTE I
promovendo a destruição de imagens), a Igreja logo percebe sua força como
forma de fixar a doutrina no seio de uma população analfabeta O recurso
das imagens passa a ser visto coma a biblia pauperum, a bíblia dos pobres,
para aqueles cristãos que não sabiam ler, muito menos sabiam latim. Tal
recurso funcionava com uma narrativa por imagens, constituindo, assim,
um dos mais cruciais elementos fundantes da arte euro-ocidental.
2. A Arte Bizantina
Constantinopla, anteriormente Bizâncio, fundada por colonos gregos
em 657 a.C e refundada em 330 por Constantino, foi o grande centro irra-
diador do primeiro grande estilo de arte cristã, a Arte Bizantina. Escolhi-
da como capital oriental do Império Romano, desde a sua divisão em 395,
graças à sua localização privilegiada, era um excelente centro comercial e
manufatureiro, por onde passavam várias rotas mercantis da Europa, Ásia
e Oriente Médio. Rebatizada como Constantinopla, deu continuidade à an-
tiga política expansionista e centralizadora de Roma, substituindo, assim, o
papel da antiga capital do Império.
Situada estrategicamente entre a Europa e a Ásia, no estreito de Bós-
foro, na confluência de várias culturas de inegável vigor, Constantinopla foi
o berço da arte bizantina que, sintetiza, em sua forma e conteúdo, influxos
estéticos de Roma, da Grécia e dos chamados Oriente Próximo e Médio, ou
seja, a arte bizantina expressa a síntese do cristianismo, do helenismo e do
orientalismo. Fortemente cristã, ostenta um ar majestoso.
A coesão de elementos dessas distintas culturas configurou um estilo
novo, rico tanto na técnica como na cor. O termo bizantino passou a desig-
nar as manifestações artísticas de todo Império do Oriente e não apenas a
arte daquela cidade. Ao contrário do teor e da forma singela da primeira arte
cristã do período das catacumbas, feita na época de uma igreja padecente,
por pessoas simples, sem maiores intenções de buscar efeitos estéticos, a
arte bizantina expressa o momento do luxo e esplendor de Constantinopla.
Assim, desde a oficialização da religião cristã, a arte assume um estilo ma-
jestoso, representando a riqueza e o poder de uma igreja triunfante.
A arte bizantina estava sob o comando dos hierarcas da Igreja, a quem
cabia, além das funções litúrgicas, organizar igualmente todo o sistema das
artes, cuja finalidade era bem clara: expressar a autoridade do Imperador,
considerado sagrado e representante divino, com poderes sagrados e tem-
porais, procurando conciliar a espiritualidade necessária para a prática do
culto com a ostentação e o luxo da realeza, típicos de longa tradição orien-
tal. Mas a expressão da linguagem artística cristã não se manifestou logo
de forma pura. Ainda durante os reinados de Constantino e Teodósio, no
século IV, era possível encontrar estátuas de deuses e figuras mitológicas
greco-romanas, nas primeiras igrejas cristãs. Foi somente no reinado de
Justiniano (527-565) que Constantinopla adota definitivamente as caracte-
rísticas de um Estado fortemente teocrático com o cristianismo já oficializa-
do como religião imperial, que acumula, nas mãos, todos os poderes.
Para isso, a arte bizantina tornou-se objeto de uma série de normas
canônicas, convertendo-se numa arte tipicamente dirigida, à imagem e se-
melhança da arte egípcia faraônica, só que voltada à exaltação dos ideais
cristãos e à glória de seus representantes, os imperadores. Assim o mo-
narca era representado com a cabeça aureolada, a exemplo do mosaico do
Imperador Justiniano (início do século VI), convenção aplicada a figuras sa-
HISTÓRIA DA ARTE I 81
gradas e aos santos canonizados, não sendo raro encontrar mosaicos onde
eles estão ladeando a Virgem Maria e o Menino Jesus.
Por outro lado, via de regra, as fi guras de Cristo e de Maria eram re-
presentadas como rei e rainha, dando, assim, a ideia de que tais fi guras
sagradas eram dotadas das mesmas características das personagens do
Império. A mesma intenção encontra-se no cortejo de santos e apóstolos que
se aproxima de Cristo e Maria com o mesmo respeito, pompa e cerimônia
exigidos dos súditos nas solenidades da corte.
Outra convenção foi a lei da frontalidade, pela qual o olhar contem-
plante podia observar a fi gura rígida do imperador e manifestar respeito e
admiração por ela. Além dessa, várias outras normas foram estabelecidas,
a exemplo da posição de cada personagem na composição total da obra,
a indicação de como deveriam ser os gestos das mãos, a posição dos pés,
o drapejado das vestes, os símbolos a serem utilizados, etc. Enfi m, tudo
já estava rigorosamente pré-determinado, restando, aos artistas, apenas a
execução da obra. Esse cânone redundou na ruptura com os padrões estéti-
cos naturalistas de períodos anteriores (clássico e helenístico), substituídos
agora por formas sempre sagradas, cujas ideias de representação divina
não poderiam ser evocadas pelos critérios antigos.
Daí, além da lei da frontalidade, havia a prática generalizada da forma
solene de apresentar as personagens, uniformes em seus gestos, trajes e ex-
pressões, bem como o uso de simbolismos diversos da percepção cotidiana.
A cor do céu, por exemplo, passou a ser constantemente dourada, sinalizan-
Cristo Pantocrátor (do gre- do para o homem mortal a busca do reino divino eternamente iluminado.
go pan + cratós, todo po-
der): na iconografi a bizan- A estatuária restringe-se apenas a imagens sagradas: o Cristo Pantocrátor
tina o Cristo Pantocrátor é (Cristo todo-poderoso), a Virgem Maria, os apóstolos, os profetas, os santos e
mostrado com sua mão di- os imperadores. Deriva daí o desprezo das artes plásticas para o corpo, con-
reita levemente inclinada,
em posição de bênção: o ceito e estética que acabam sendo disseminados para toda a arte medieval
dedo polegar encontrata- cristã que busca coibir qualquer expressão de corporidade e sensualidade,
se voltado para o próprio inclusive na música sacra gregoriana, conforme iremos ver mais adiante.
Cristo, o médio e o indica-
dor acham-se em posição
Não existe arte menos sensual que a bizantina. A fi gura humana não é
oblíqua, quase vertical, e
os demais dedos estão do- mais representada por si mesma, mas apenas como morada de um pen-
brados e fechados contra samento religioso, de uma fé. A criação mais habitual [...] é a do asceta
a palma da mão. O gesto
da mão direita indica a
magro e severo, as faces cavadas, olhos imensos, atitude dramática - elo-
dupla natureza de Cristo: quente expressão do tipo monástico. (Paul Lemerle, apud CUNHA, 2003,
a humana, manifesta nos p. 49)
dois dedos erguidos, e a
divina, indicada pelos três
outros dedos unidos nas
pontas, o que represen- Das linguagens artísticas bizantinas, quatro se destacam: os mosai-
ta a sua participação na cos (expressão máxima de luxo e suntuosidade), os ícones, os afrescos e a
Trindade como Segunda
arquitetura, cujas técnicas chegaram a um grau de extremo requinte. O
Pessoa. A mão esquerda
sustenta as Sagradas Es- mosaico já era conhecido pelos artistas egípcios, persas e romanos, mas, de
crituras. Esse gesto cos- uso preferencialmente decorativo, era destinado ao revestimento dos pisos
tuma ser repetido pelas das casas, templos ou termas, conforme vimos. O que o faz diferente é o es-
autoridades eclesiásticas,
desenhando um largo mo- tatuto de arte extremamente sofi sticada da pintura mural que os bizantinos
vimento em forma de cruz lhe atribuíram. Quanto menores os cubos de pedra ou de vidro embutidos
para abençoar os fi éis, a nas paredes, mais variados e ricos os efeitos policromáticos obtidos. Nos
exemplo da benção papal
urbi et orbe, direcionada murais assim construídos, os artistas retratavam cenas da vida de Cristo,
à cidade de Roma e ao dos profetas e dos imperadores.
mundo.
Outro resultado extremamente requintado foi obtido pela técnica da
arte iconográfi ca bizantina. Os ícones (do grego eíkon, imagem) eram pe-
quenos quadros com personagens sagradas, pintados mediante o uso da
82 HISTÓRIA DA ARTE I
encáustica, mas, sobretudo, da têmpera, aplicada
em superfícies de madeira ou metal: a primeira ca-
mada era totalmente dourada (procedimento mui-
tíssimo usado, pela associação com o considerado
maior bem existente na terra - o ouro), seguindo-se
a pintura da imagem; na sequência dava-se a reti-
rada de parte dessa camada de tinta, visando à re-
velação do traje das personagens e da auréola. Via
de regra, nos trabalhos que buscavam luxo e os-
tentação, os artistas usavam da colagem de pedras
Têmpera e encáustica:
preciosas ou semipreciosas, para, por exemplo, o “têmpera é o nome que
adorno de coroas. recebe um dos modos que
os artistas bizantinos uti-
Na região euro-ocidental, os afrescos somen- lizavam para preparar a
te iriam adquirir relevância na baixa Idade Média, tinta usada em seus íco-
a partir do século XII, quando é difundida a arte nes. Consiste em misturar
os pigmentos com clara
românica. Surgiram, na época, duas grandes esco- de ovo, para facilitar a fi -
las: a cretense, que difunde sua infl uência desde a xação das cores à super-
região da Sicília ao norte da Itália, e a macedônica, fície do objeto pintado. O
resultado é uma pintura
cujos traços de maior rigidez e simplicidade difun- Cristo Pantocrátor (Monas- brilhante e luminosa. [...]
dem-se sobretudo no Leste europeu. tério de Santa Catarina) Já a técnica da encáus-
tica foi utilizada desde a
O apogeu da arte bizantina foi alcançado gra-
Antiguidade. Os gregos
ças à riqueza obtida pelo desenvolvimento econômico e pela centralização usavam-na, p. ex., para
política do império romano oriental, principalmente a partir do reinado de colorir suas esculturas
Justiniano, apresentando as condições objetivas para que a construção de de mármore. O processo
consiste em diluir os pig-
vários edifícios suntuosos –palácios, teatros, hipódromos, termas e, sobre- mentos em cera derretida
tudo, igrejas, – de concepções arquitetônicas bastante inovadoras para a e aquecida no momento
época. A basílica Hagia Shopia (Sagrada Sabedoria, conhecida como Santa da aplicação. Ao contrá-
rio da têmpera, cujo efeito
Sofi a), erguida entre 532 e 537, é um dos maiores triunfos da nova técnica é brilhante, a pintura em
bizantina, com uma cúpula de 55 metros apoiada em quatro arcos plenos. encáustica é semifosca”.
Com tal método, a cúpula passa a poder ser situada em nível extremamente (PROENÇA, 1989, p. 52)
alto, como que querendo se fundir com a abóboda celeste, sugerindo univer-
salidade e poder absoluto.
Bizâncio, mediante sua arte, inspirou grande parte das obras do me-
dievo * cristão ocidental, a exemplo dos mosaicos e das pinturas em afres-
cos, retábulos, iluminuras e em outros tipos de miniaturas.
HISTÓRIA DA ARTE I 83
3. O canto gregoriano e a música medieval
Santo Agostinho e São Gregório Magno são as duas grandes perso-
nalidades responsáveis pela criação do canto gregoriano, a forma mais ex-
pressiva do medievo cristão, também conhecido como cantochão. Fruto dos
múltiplos atravessamentos dos cantos litúrgicos da Igreja de Bizâncio, Síria
e Palestina, nos primórdios cristãos, é inicialmente sistematizado pela tradi-
ção patrística*, cujos maiores representantes são Ambrósio e Agostinho nos
O fi lósofo latino Boécio
(480-524), responsável séculos IV e V, e consolidado no papado de Gregório Magno, no século VI.
pela ponte erigida entre a O gregoriano surge no contexto da vida monacal, a qual se confi gu-
cultura clássica antiga e
a medieval cristã, em De
rou como importante modo de vida para as primeiras comunidades cristãs,
Institutione Musica, dando para enfrentar uma Europa recém saída do desmoronamento da Antigui-
continuidade à doutrina dade clássica greco-romana. Agostinho, vivendo esse momento, expressa
pitagórica sobre a música,
profere que a razão divina
em sua obra De Civitate Dei (“Sobre a Cidade de Deus”), todo o pathos da
estabeleceu a harmonia percepção de uma cultura e civilização tragicamente ameaçadas. O imenso
universal segundo a or- Império depositário de toda a tradição da Antiguidade – cuja capital, Roma,
dem dos números, res- a cidade eterna cristã, é invadida pelo visigodo Alarico I –, está prestes a
ponsável por três grandes
tipos de música: munda- desaparecer, o que realmente irá ocorrer em 476, com a dissolução defi niti-
na (música cosmológica, va do Império Romano Ocidental.
suprassensível, portanto
inaudível), harmonia fun- Assim, recém saída da debacle do Império Romano e esfacelada por
damental que preside o um mundo dividido em vários reinos, a Europa da segunda metade do pri-
movimento e o equilíbrio meiro milênio cristão, errática e violenta, carece profundamente de uma
do cosmos, articulando o
humano com a verdade
organização de conjunto que a normatizasse, o que começa a ocorrer no
superior; humana, musica século VI. Temerosos da intensa violência que caracteriza o período, mon-
prática, sensível que esta- ges andarilhos ou eremitas se agrupam em fortalezas, espécie de pequenas
belece a harmonia entre
corpo e alma, entre sen-
unidades autárquicas economicamente viáveis, cada vez mais poderosas
sibilidade e razão, enfi m, e capazes de resistir aos servos sublevados. Isolados do entorno violento,
a música pela qual o ser espécie de ilhas de paz num mar de violência, os monges instituem a vida
humano toma consciên-
claustral que se investe de um poder normatizador da vida feudal. A pri-
cia de sua harmonia com
o mundo; instrumentalis, meira organização monacal criada é a de São Bento que, mediante o modelo
música que busca imitar claustral das Regula Sancti Benedicti para um mosteiro da Itália, em Monte
a natureza. Cassino, dita as primeiras regras de funcionamento da vida contemplativa,
generalizando-as para vários outras instituições similares.
Organizada a partir da ordem religiosa monástica, a vida mundana
passa a ser orientada por um tempo unifi cador, do qual estava carecendo.
Portanto, o tempo da vida monacal – ao ser organizado pelas horae canoni-
cae, as horas canônicas, mediante o canto gregoriano onipresente na rotina
diária da vida monástica, distribuindo-a em pequenos períodos marcados
–, passa a organizar igualmente a vida ordinária do cotidiano do medievo.
Para muitos, o gregoriano, correlato cristão da música apolínea defen-
dida pela estética pitagórico-platônica, edifi ca a grande ponte entre a mú-
sica antiga e a da Europa cristã. Expressando o “louvor sereno” a Deus, o
sentido do texto sagrado encontra sua integração a uma melodia que busca
expressar apenas religiosidade. Seu ritmo se constrói nos arcos frásicos da
palavra cantada. Negando a marcação forte de um ritmo regular, necessá-
rio, por exemplo, para as danças populares, ele afi rma uma ascese mística
que busca no ritmo frásico, a expressão de pura espiritualidade.
A ausência da pulsação rítmica corporal recalca um tempo ausente,
na medida em que a palavra cantada, na unidimensionalidade de sua mo-
nodia (canto a uma só voz desacompanhada) e sem a materialidade de um
tempo sensível regularmente marcado, procura expressar palidamente a
noção de eternidade. Este era o mesmo principio da imaterialidade da arte
bizantina que negava expressar o corpo humano, conforme vimos.
84 HISTÓRIA DA ARTE I
Modelo de prece cantada, o texto dita o ritmo e o sentido da melodia;
sua sintaxe e sua intenção linguística determinam o movimento das altu-
ras do tom. “Deve-se, sem dúvida, procurar a base do ritmo gregoriano na
estreita ligação que une as melodias ao texto latino. O canto gregoriano é,
de fato, música essencialmente vocal, ou, melhor dizendo, palavra cantada”
[grifos no original] (CARDINE, 1989, p.57). Valorizando seu lado apolíneo, o
gregoriano irá gozar, desde os primórdios do cristianismo, de um prestígio
exclusivo como via sublime da espiritualidade. A música se investe de uma
transcendência desconhecida dos antigos. A ética cívica pagã da doutrina
musical pitagórica cede lugar a uma ética transcendente cristã. A despeito
dos antigos reconhecerem o elemento sagrado na música, ela era mais apre- Patrística
ciada pelos seus efeitos catárticos purifi cadores, ao restabelecer a harmo- O pensamento fi losófi co
cristão medieval, duran-
nia do humano com a ordem cósmica e com o divino. te mil anos de existência,
Monódico, despojado de acompanhamento, sem pulsação, entoado em costuma ser tipifi cado em
dois grandes momentos: a
recto tono (cantilação), sem grandes saltos nos intervalos de uma nota a patrística (do início até o
outra, o canto gregoriano indica precedências judaicas. A Igreja protocristã, século VIII) e a escolásti-
como sabemos, viveu um grande período de indiferenciação entre ritos ju- ca (do século XI ao XIV).
Para a patrística, elabo-
daicos e cristãos. Ambas as comunidades reuniam-se nos mesmos lugares, rada junto com o cristia-
podendo ser uma sinagoga ou um templo, para participar de liturgias onde nismo nascente pelos Pais
textos sagrados (sobretudo os salmos, base para elaborações poéticas e mu- da Igreja (daí o termo),
cuja marca maior são os
sicais) e formas de canto – como a salmodia, certamente com as mesmas infl uxos da fi losofi a pla-
melodias –, eram compartilhados. Conforme o ofício, o gregoriano ganha tônica, tendo em Santo
sofi sticação em formas mais ornadas, com a exuberância melismática do Agostinho e Boécio uns
de seus maiores expoen-
Oriente. Com ele, a Igreja irá sustentar, em todo o medievo, a primazia con-
tes, a verdade devia ser
ceitual da musica mundana sobre a musica humana e a musica instrumen- buscada essencialmente
talis (v. adiante a seção saiba mais sobre o fi lósofo latino Boécio) pela revelação e pela fé.
A escolástica, marcada
Apesar de sua profunda espiritualidade, o gregoriano terá papel cru- profundamente pelo pen-
cial na música profana europeia. Os rigores da Igreja não serão sufi cientes samento aristotélico, tem
para impedir a invasão de músicas, festas e danças profanas nos lugares seus maiores represen-
tantes em Santo Anselmo,
sagrados, mediante uma economia de trocas entre as artes populares e os Santo Alberto Magno e
cantos litúrgicos já tomados por ricas polifonias em fi ns do primeiro milênio Santo Tomás de Aquino,
cristão. A primeira indicação de uma “polifonia” bastante ingênua, convi- que buscam o acesso à
verdade pela compatibili-
vendo com o gregoriano, foi a duplicação da melodia em oitavas. Em mea- dade entre fé e razão.
dos do século IX, surge a Musica Enchiriadis (de autoria incerta, era uma
espécie de tratado de música), a prova mais antiga de uma tentativa para
estabelecer regras para a polifonia primitiva ocidental. Além de descrever o
método de canto em uníssono ou em oitavas, o tratado expõe, pela primeira
vez, novos princípios cuja base essencial é a duplicação do canto em inter-
valos de quartas e quintas paralelas.
Tal prática já era de certa forma usual em alguns países europeus.
Poranto o Musica Enchiriadis surgiu em certo momento do século IX, para
descrever uma prática, da mesma forma como Guido d’Arezzo, em seus
escritos sobre notação musical, na virada do século XI, falou de algo já em
curso. Com essa prática, além do uso simultâneo das oitavas, podia-se do-
brar a melodia num duplo movimento, mediante a utilização dos intervalos
das quintas (superiores) e das quartas (inferiores) paralelas como duas pá-
lidas sombras acompanhando o corpo sonoro da vox principalis gregoriana.
Esses primeiros encontros de intervalos, a partir de uma leitura ver-
tical de melodias desenvolvidas horizontalmente, eram aceitas pela “harmo-
nia” ofi cial eclesiástica como acordes destituídos de dimensão terrena, luga-
res de dissonância e desvios harmônicos. Ainda atada ao conceito grego de
harmonia, a noção cristã refere-se a uma ordem cósmica em equilíbrio, sem
dissonâncias, criada por Deus, uma ordem parcimoniosa conforme reque-
HISTÓRIA DA ARTE I 85
ria a estética apolínea. Durante muito tempo, tais acordes representaram
o acerto ofi cial de sons justos que ressoavam recorrentemente no espaço
sagrado dos templos. Para a arquitetura da baixa Idade Média, “a ogiva e
o vazio interior das grandes catedrais góticas se refl etem nesses intervalos
paralelos” (MENDES, 1988/1989. p.9).
Com o entretecimento de notas de diferentes vozes, esboça-se, aos
poucos, o princípio do contraponto. Para cada nota (punctum) correspon-
dia uma outra que lhe contra-acompanhava (contrapunctum), colada ao
seu momento de emissão, constituindo a vox organalis. Depois, as vozes
Os modos gregos, tendo secundárias começam a fazer um desenho autônomo, não mais como no-
como início uma nota alta tas paralelas, mas através da justaposição de linhas melódicas mais livres,
em seu desenvolvimento procedimento chamado discantus. Mediante seu uso, ousou-se acompa-
escalar, realizavam um
movimento descendente. nhar em movimento contrário à vox principalis, surgindo, assim, o moteto
Os monges medievais, ao (do francês petit mot). Pouco a pouco, novas vozes são acrescidas à prin-
conservar essas matrizes cipal, tornando-se cada vez mais independentes. O repertório gregoriano
modais, invertem essa
dinâmica. Suas trajetó-
podia fornecer a vox principalis, construindo-se daí as outras vozes. Já
rias passam a ter como não se trata mais, portanto, de uma única melodia ou de um leito melódico
ponto de partida, uma principal, defi nido por vozes acompanhantes com proporções intervalares
nota grave, desenvolvendo
percursos ascendentes. O
constantes. Muitas delas entram livremente, criando novas sonoridades
que nos sugere: não teria “consonantes”.
a ascese cristã medieval
Via de regra, pelo encaixe de palavras em melodias conhecidas, as
intervertido o mundo mí-
tico grego? Não eram os sílabas das várias linhas se cruzavam sem simultaneidade. O que impor-
deuses gregos antropo- tava era a unidade musical produzida por sonoridade dessa massa vocal, a
morfi zados, com desejos, partir do canto de duas, três, quatro, até dez linhas sonoras. Importava a
paixões, iras, ciúmes e
prazeres, que desciam do valorização das vozes e da altura do som. Surgem as primeiras fi gurações
Olimpo para se regozija- da polifonia gótica, a ser vista adiante, alcançada pela justaposição das
rem nas festas dos hu- diferentes linhas melódicas, tendo como parâmetro a forma monódica do
manos, ao contrário do
mundo religioso judaico- cantochão. Gesta-se, assim, uma trama cada vez mais complexa de vozes
cristão que concebe o ho- cantadas simultaneamente, postulando novas formas de organização da
mem como criatura feita à música, conforme veremos na música da baixa Idade Média e preparando,
imagem e semelhança de
seu criador e que perde
séculos depois, o tonalismo, após o período polifônico.
a inocência e, por isso, é
expulso do paraíso? Por-
tanto um ser em perma-
nente luta para superar 4. A Arte da fase merovíngia e carolíngia
sua condição terrena, que
busca sempre ascender à Para fi nalizar este capítulo, é importante mencionar algumas fases
perfeição celestial? importantes da arte da alta Idade Média na Europa ocidental. Se a arte bi-
zantina, como se viu, soube conservar o legado helenístico, sintetizando-o
com a estética orientalista, o mesmo não ocorreu no lado ocidental. Se antes
o foco se concentrava no poder irradiador de Roma, agora o descentramento
da economia baseada no poder fundiário feudal faz afl orar outros reinos e
outros pólos descentralizados de mando que passam a marcar novos tipos
de estética e de valores da arte medieval. Desaparece a educação laica e
concentram-se os métodos e técnicas do fazer artístico nos centros religio-
sos, destinados apenas à formação do clero. O pouco da arte clássica que se
conservou se dá no interior dos mosteiros e das abadias das ordens monás-
ticas, importantes núcleos depositários dos saberes antigos.
A desagregação do mundo greco-romano provoca o despovoamento
e a decadência da vida urbana; as trocas comerciais são substituídas por
um modo de vida autárquico e de autosubsistência e por uma economia
natural, o que leva a um intenso processo de ruralização e dispersão da
população europeia, abrigada em grandes herdades rurais, muitas conquis-
tadas durante a fase de prosperidade do Império Romano, dando origem ao
sistema feudal. Agora dividido, seus antigos valores culturais civilizatórios
86 HISTÓRIA DA ARTE I
são substituídos pelos valores dos povos do norte europeu: ostrogodos, vi-
sigodos, francos, anglo-saxões, normandos, os chamados povos bárbaros.
Ganham espaço suas manifestações artísticas, caracterizadas por
uma preocupação decorativa e uma rara presença de figuras humanas. São
pequenos objetos como brincos, colares, pulseiras e coroas, que revelavam
um excelente manejo da arte da ourivesaria: o uso de metais e pedras pre-
ciosas permitia a criação de um sem-número de pequenas obras de formato
geométrico e abstrato. A arte merovíngia, termo que designa as manifesta-
ções artísticas da dinastia dos reis francos (atuais França e Alemanha),
durou do século V ao VIII. Descendentes do rei Meroveu (c. 411 - c. 458),
lendário fundador da dinastia, C1óvis I (466-511) e Clotário II (497-561),
convertidos à fé cristã, impuseram-na à antiga Gália, bem como às vizinhas
tribos germânicas. Seu advento na Gália levou a importantes mudanças no
campo das artes, como, por exemplo o desenvolvimento da ourivesaria e das
iluminuras , que fez ressurgir a tradição da decoração celta (antigo povo da
Europa centro-ocidental), base da arte merovíngia.
Conforme vimos na análise da função das imagens na biblia paupe-
rum, tudo convergia para a necessidade da evangelização. Nesse período,
existia uma nítida preferência pela estilização e pela abstração conferidas
ao tratamento temático nas expressões pictóricas e nas iluminuras de tex-
tos sagrados e uma preferência pelas formas antinaturalistas. Mais ricas e
fantasiosas ainda são as ilustrações de influência celta, cujos arabescos co-
loridos e complicados podiam, por exemplo, camuflar a face de um monge.
Visualmente, desenvolveu-se uma arte caligráfica e incorpórea, que dissol-
via o mundo objetivo exterior em filigranas entrelaçadas, aproximando-se
de signos esotéricos ou mesmo mágicos. Essas estruturas formalistas e
lineares foram introduzidas pelos povos setentrionais, como os celtas, cujo
contato com o mundo greco-romano havia sido raro.
HISTÓRIA DA ARTE I 87
Cerca de 20 anos depois, Pepino submete os lombardos, povo da Itália
setentrional de origem germânica, colocando o papado de Leão III sob sua
proteção militar. Selava-se assim a aliança irreversível do reino franco com
a Igreja, simbolizando a restauração do Império Romano do Ocidente, agora
sob a égide da cristandade. Seu filho Carlos Magno assume a coroa do reino
em 768. Desde então empenha-se na expansão dos domínios do reino: ane-
xa o norte da Itália, nas mãos dos lombardos, submete a Saxônia, a Baviera
e a Bretanha, estabelece o domínio franco sobre o nordeste da Península
Ibérica, obtém a submissão dos avaros, boêmios, morávios e croatas. Carlos
Magno faz do Império Franco a mais extensa unidade político-administrati-
va da Europa ocidental. Todas essas conquistas são feitas com o aval explí-
cito do papado, tanto assim que, na entrada do novo século IX, na missa de
800, Carlos Magno é coroado pelo papa Leão III, recebendo o título romano
de imperator et augustus do Sacro Império do Ocidente. Se o título procura
imprimir uma conotação essencialmente religiosa no sentido de expressar o
domínio sobre os que eram adeptos da religião romana, acabou assumindo
um sentido muito mais amplo, ou seja, a ressurreição do Império Romano
do Ocidente, a ponto de colocá-lo no mesmo nível de Bizâncio e do Islã.
Dá-se, então, o chamado renascimento carolíngio: a cultura e a arte
ganham especial atenção do Imperador, que atrai e protege artistas da Itália
meridional e intelectuais de várias regiões. A administração das cidades
seguiu o modelo do reino franco, baseada na divisão em condados, em que
as autoridades eclesiásticas, junto com o poder civil dos condes, exerciam
igualmente o poder condal. Procurando sempre manter o poder central,
Carlos Magno criou os missi dominici (enviados do senhor), inspetores que
fiscalizavam, in loco, a administração de condes e bispos. Mais do que isso,
o verdadeiro responsável pela manutenção dessa centralização foi o perma-
nente estado de guerra, marca do governo carolíngio.
Essa centralização política favoreceu reatar algo perdido da civiliza-
ção antiga. Nessa renascença carolíngia, escolas foram fundadas, aristo-
cratas foram estimulados a se alfabetizarem, a corte tornou-se centro de
sábios e um pouco do legado cultural antigo foi recuperado. Decidido a criar
um sistema unificado de ensino, Carlos Magno convocou teólogos da Itália,
França, Irlanda e Inglaterra. Convocou Alcuíno de York, monge inglês be-
neditino, poeta e professor, para reformas e instruir o clero e a corte de seu
reino, implantando um modelo nas escolas que seria aplicado nos estabe-
lecimentos universitários. Do ponto de vista institucional, as novas escolas
podiam ser monacais, sob a responsabilidade dos mosteiros, catedralícias,
junto à sede dos bispados e palatinas, junto às cortes.
Entre suas iniciativas, destaca-se a fundação do Palácio-escola (Aula
Palatina) de Aix-la-Chapelle. no qual procurou reviver o saber clássico nos
moldes da paidéia grega, estabelecendo um programa de estudo a partir das
sete artes liberais: o trivium ou ensino literário - gramática, retórica e lógica
(ou dialética); e o quadrivium ou ensino científico - aritmética, geometria, as-
tronomia e música. Essa organização educacional contribuiu bastante para
a renascença carolíngia. O ensino da lógica formal fez renascer o interesse
pela reflexão especulativa, donde surgiria, mais tarde, a filosofia escolástica;
e nos séculos XII e XIII, muitas das escolas fundadas nesse período, especia-
mente as escolas catedrais, ligadas aos bispados, ganharam o formato de
universidades medievais, cabendo a Carlos Magno e Alcuíno o lançamento
dos fundamentos da futura universidade de Paris. Dentre as iniciativas, me-
rece registro a busca da unidade política e cultural de seu reino, impondo,
por toda a parte, a prática do canto gregoriano, inclusive por manu militari.
88 HISTÓRIA DA ARTE I
São criadas uma academia literária
e oficinas artesanais e de artes aplica-
das onde são feitas iluminuras, relicários,
ourivesaria, joalheria ou tapeçaria, im-
portante passo para o aprendizado e re-
descoberta da Antiguidade clássica. Com
a morte de Carlos Magno, muitas dessas
atividades de ensino e prática das artes
passaram para o âmbito dos mosteiros. O
mais importante, ao contrário da estética
celta que desprezava a forma das figuras
humanas, foi a introdução, aos poucos,
dessas figuras de forma estilizada, como
personagens bíblicas, majestosa e simbo-
licamente inscritas na arte dos mosaicos,
mostrando, a um só tempo, influxo e com-
petição com a suntuosidade bizantina. A
arte carolíngia, além dos fortes influxos Os quatro evangelistas, iluminura
céltico-germânicos, buscou também se de c. 820 (Catedral de Aachen)
inspirar na cultura greco-romana, tendo,
como resultado, uma síntese entre elementos clássicos e o típico espírito
emocional e conturbado do medievo cristão. Os trabalhos realizados nas
oficinas levaram aos poucos os artistas a abandonarem o estilo ornamental
típico da estética celta e de outros povos e a resdescrobirem a tradição cul-
tural e artística da civilização greco-romana.
Na arquitetura, irão incidir, especialmente, edificações religiosas
marcadas por pinturas murais, por mosaicos e baixos-relevos, aflorando,
igualmente nesse período, o templo com cripta (sub-solo dos templos onde
se enterravam personalidades ) envolta por um deambulatório (galeria que
circunda o altar ou a cripta), o que se irá desenvolver ao longo da Idade Mé-
dia, seja no período românico, seja no gótico. Uma das mais significativas
construções do período é a Catedral de Aachen na Alemanha.
Mas somente após um longo período de maturação (cerca de dois sé-
culos e meio), começariam a surgir técnicas pictóricas mais "naturalistas",
ou seja, menos submetidas aos cânones da frontalidade oriental também
encontrada na arte bizantina. No século XI, juntamente com as imagens
ricas, severas ou hieráticas dos mosaicos, as grandes paredes da arquitetu-
ra românica viriam permitir a experiência dos afrescos. Um fato de grande
importância para a época foi o hábito de dotações por parte das famílias
nobres para as ordens monásticas, favorecendo a construção e a expansão
de mosteiros e abadias. Mais uma vez, aparece, de forma inquestionável, o
papel crucial exercido por esses centros religiosos, pois foi do seu interior
que as ideias e as atividades artísticas ressurgiram no curso do século X. A
partir de então, a arte medieval tornou-se, por excelência, a linguagem da
exaltação religiosa.
HISTÓRIA DA ARTE I 89
Capítulo 3
As artes na baixa Idade Média: o românico
e o gótico
1. O Estilo Românico
1.1. A arquitetura
A arquitetura românica é, por excelência, uma linguagem que pôde se
expressar em toda sua plenitude, tornando-se o primeiro dos estilos monu-
mentais de arquitetura medieval do Ocidente, passando a defi nir outras
artes tais como a escultura e a pintura. Alguns historadores da arte detec-
tam traços românicos já em fi ns da era carolíngia. Ele começa a se confi gu-
rar no período de grande transição entre a alta e baixa Idade Média (século
XI e XII), quando o poder feudal já apresentava sinais de fraqueza e a socie-
dade ainda presa a valores feudais não se organizara no sistema dos bur-
gos. Assim, a Igreja iria passar a exercer seu poder em diversas esferas da
vida feudal, inclusive no campo das artes, passando a encomendar pratica-
mente, sem concorrência, os trabalhos artísticos. Por quase três séculos o
estilo românico reinará absoluto até ceder lugar ao gótico.
O modelo hegemônico do templo românico baseou-se na antiga e im-
ponente basílica romana (daí a origem do nome), centro de múltiplas ati-
vidades, sobretudo as de caráter civil jurídico-administrativo, conforme já
descrevemos. Na sua adaptação para o culto cristão, o magistrado é substi-
tuído pelo sacerdote e outros ofi ciantes litúrgicos. O templo românico carac-
teriza-se por edifi cações austeras e robustas, dotadas de paredes grossas e
janelas minúsculas, por razões de ordem técnica e estética, cuja principal
função era resistir a ataques de exércitos inimigos. Visualmente, a arquite-
tura românica busca transmitir sensação de solidez e repouso, bem como
ausência de esforço ou tensão.
Além de propiciar segurança, também era
importante manter o clima de severidade e con-
trição espirituais. A alteração feita na planta
dos templos, passando da alvenaria de cascalho
para a pedra de cantaria, contribuiu visivelmen-
te para o aspecto de solidez. Os templos, alvos
de peregrinações, demandando maiores espaços
para abrigar os fi éis, passaram a adotar uma
longa forma longitudinal, com vistas a ampliar
o cumprimento da nave central, das colaterais
e do transepto. São várias as igrejas construí-
das nesse período com as dimensões e o formato
acima descritos. A basílica de Saint-Sernin em
Toulouse (parada obrigatória na França, para os
peregrinos a caminho de Santiago), e a catedral
da Compostela, alvo da peregrinação, são exem-
plares paradigmáticos desta planta. Catedral de Santiago de
Compostela
90 HISTÓRIA DA ARTE I
Uma das características mais marcantes da arquitetura românica foi
a retomada da tradição das abóbodas de berço, uma abóbada com curvatu-
ra contínua de um arco de volta perfeita, chamado arco pleno, continuado
lateralmente por espessas e maciças paredes.
Mas elas ofereciam sérios riscos:
o excesso de peso do teto de alvenaria
podia provocar ondulações ou mesmo
desabamentos. Outra desvantagem era
a pequena luminosidade resultante das
aberturas estreitas, emprestando um
aspecto bastante sombrio ao interior
das igrejas românicas, visto que a aber-
tura de vãos mais amplos era impraticá-
vel, por provocar o enfraquecimento das
paredes, concorrendo igualmente para
o risco de desabamentos.
Para evitar tais riscos, uma solu-
ção encontrada foi o uso de abóbodas de
aresta, consistindo na intersecção per-
Abóbada de berço
pendicular de duas abóbodas de berço
apoiadas em pilares relativamente mais delgados, obtendo certa leveza e
mais luminosidade interior. Tal tipo de abóboda demandava um plano qua-
drado para se apoiar, dividindo a nave central em setores também quadra-
dos, correspondendo às suas respectivas abóbodas. Daí a forma compacta-
da de muitos templos românicos.
Outra solução preparou a construção do gótico, ao se chegar à ideia
da utilização simplificada de arcos ou nervuras, depois alongados em forma
de ogivas, obtendo ainda assim mais elevadas permitiam o assentamento de
arcadas sobre as naves colaterais. De sólidas e grandes dimensões, o templo
românico era chamado de “fortaleza de Deus”.
HISTÓRIA DA ARTE I 91
hierática, bem como a apresentação de figuras de eleitos e condenados,
monstros e demônios. A estética da culpa e do castigo eterno era refor-
çada pelo aspecto sombrio do estilo românico de pouca luminosidade em
seu interior. Por outro lado, a magnificência da arquitetura românica era a
própria expressão da igreja triunfante que continuava usando a arte com
fins didáticos e evangelizadores. Continua-se a recalcar a materialidade
sensual do corpo que desaparece sob inúmeras camadas de rígidas dobras
angulosas dos mantos e túnicas. As figuras humanas se alternam com as
de animais fantasiosos, apresentando mais afinidade estética com a icono-
grafia oriental do que com o cristianismo, a despeito da temática ser sempre
religiosa com fins didáticos.
As paredes das naves eram decoradas com pinturas murais de uma
intensa policromia, mais uma marca da estética bizantina, cujas formas
aliavam traços da antiga pintura romana com as dos ícones orientais. Os
temas mais frequentes abordavam cenas das sagradas escrituras e da vida
de santos e mártires, plenas de exemplos edificantes, igualmente para fins
didáticos. Temas como vícios e virtudes eram alegorizados por representa-
ções de animais próprios do bestiário oriental. Assim como a escultura,
as figuras humanas não apresentavam qualquer plasticidade, cujos corpos
eram apenas insinuados. As linhas do rosto eram acentuadas por traços
grossos e escuros. Para o desenvolvimento desse tipo de pintura mural, os
artistas utilizavam a técnica dos afrescos.
Em escala oposta à pintura mural, mas não por isso sendo menos
importante, desenvolveu-se a arte da iluminura encontrada na decoração
de bíblias e manuscritos. Adquirindo cada vez mais sofisticação, tais ilumi-
nuras eram realizadas simultaneamente às outras formas de arte pictórica,
tanto na forma como na técnica.
Concomitante à arte pictórica, quando os recursos permitiam, usava-
se igualmente a arte do mosaico ou do vitral, buscando sempre pelos inten-
sos efeitos policromáticos. O vitral já era conhecido na época, visto que a
arte românica o trouxera de Bizâncio conseguindo aperfeiçoá-lo antes mes-
mo do esplendor gótico. O abade Suger, um dos responsáveis pela futura
arquitetura gótica, registrou não ter encontrado dificuldades para contratar
profissionais do vitral de vários lugares, para a reforma da abadia em Saint
Denis, no norte de Paris. Conforme costuma ocorrer com grandes períodos
e em vastas regiões de larga vigência de certos estilos, é possível detectar
diferenças de estéticas no curso das épocas e lugares. Assim, por exem-
plo, existiu um estilo românico a partir da reforma do mosteiro beneditino
de Cluny, na França do século XI e que se estende nos séculos seguintes
por toda a cristandade europeia, abrangendo mais de mil mosteiros. Assim
também ocorreu com um estilo românico na Itália. Devido à proximidade
com a arquitetura greco-romana, os italianos souberam construir templos
menos pesados, bem como usar de frontões e colunas à moda da antiguida-
de clássica. Um dos exemplos típicos apontados como modelo do românico
italiano é o conjunto da catedral de Pisa, com seu campanário inclinado
isolado desse conjunto, a famosa Torre de Pisa.
Para finalizar a análise do românico, não podemos deixar de mencio-
nar o desenvolvimento da ourivesaria que, assim como as demais artes do
período, revestiu-se de intenso caráter religioso voltado para o fabrico de
objetos como pequenas estátuas, relicários, cruzes, objetos litúrgicos, bem
como para decoração de altares, bíblias, paramentos religiosos e outros
objetos sagrados. Naturalmente, a realeza feudal não podia deixar de se
sentir igualmente atraída para tal forma de arte para expressar ostentação
92 HISTÓRIA DA ARTE I
e grandeza, encomendando com frequência luxuosas coroas incrustadas,
mantos decorados, bem como globos e cetros de ouro.
2. O Estilo Gótico
O abade Suger (1081-1151) foi superior da basílica de Saint-Denis (São
Dionísio), nos arredores de Paris norte, desde 1122 até sua morte. Hábil
diplomata, foi conselheiro de Luís VI e de Luís VII e Regente durante a Se-
gunda Cruzada. É considerado o primeiro mestre-de-obras da arquitetura
gótica, pelas inovações promovidas naquela basílica a partir de meados do
século XII. Leitor atento das obras do Pseudo-Dionísio, tido como grande
mestre da filosofia patrística, teria encontrado nelas “uma justificação fi-
losófica para toda a sua atitude com respeito à vida e à arte” (Panofsky) e,
por via de consequencia, para as intervenções que realizou, ao conceber o
monumento gótico como obra teológica.
Surger perseguiu o "movimento anagógico", ou seja, o movimento que
pregava a contemplação do brilho terreno, como importante via para a con-
templação da iluminação divina, a experiência estética como via da experi-
ência mística, a busca do arrebatamento do espírito, mediante a ascese da
alma ao conhecimento da verdade pela arte da luz, o que será realizado pela
doutrina estética de Tomás de Aquino, conforme veremos adiante.
Em seu entendimento stricto sensu, o termo gótico nos remete à arte
própria dos godos, termos atribuído principalmente por teóricos renascen-
tistas da arte, como Giorgio Vasari, com nítida intenção desqualificante. Da
mesma forma como designavam a Idade Média como Idade das Trevas, as-
sim também enxergavam inferioridade na arte antecessora à sua época, por
ter sido uma arte “inventada pelos godos, que, após haver arruinado os edi-
fícios antigos e matado os arquitetos nas guerras, [passaram a construir]
cobrindo as abóbodas com arcos ogivais e inundaram toda a Itália com essa
maldição de edifícios” (Vasari, apud, BRACONS, 1992, p. 3)
HISTÓRIA DA ARTE I 93
tistas, com especial destaque para os florentinos, registrando pela primeira
vez o termo gótico. Para ele, e muitos de seus conteporâneos, havia uma
clara oposição entre a arquitetura “tedesca” (germânica) ou, como proferia,
maniera del goti (à moda do estilo dos godos) e o estilo romano reencarnado
pela estética renascentista, considerada mais perfeita, uma vez que tinha
como referência o ideal de beleza da Antiguidade clássica. Para ele existia
uma clara contraposição entre o barbarismo cultural dos germânicos do
norte e a antiga arte clássica do Mediterrâneo: “Que, de agora em diante,
Deus nos livre os países daquela forma de pensar e de construir, que não
concorda em absoluto com a beleza de nossos edifícios” (apud BRACONS,
op. cit. p. 3).
94 HISTÓRIA DA ARTE I
Da organização desses profissionais proliferam as associações gre-
miais corporativas, unidades de empresários independentes que conquista-
ram o monopólio dos ofícios em áreas determinadas. Com a monetarização
da economia feudal, ocorrem os primeiros procedimentos de trocas finan-
ceiras, como letras de câmbio e outras trocas monetárias. Irrompe uma pu-
jante classe burguesa que passa a ter o controle dos governos locais. Desde
aí, a Europa continental deixa de estar recolhida sobre si mesma. Na esfera
política, a realeza irá se aliar à burguesia nascente, para consolidar seu
próprio poder, em detrimento dos senhores feudais. O deslocamento do po-
der e sua crescente concentração citadina irão também favorecer a criação
de sedes episcopais urbanas, com suas catedrais e escolas catedralícias,
como formadoras dos primeiros "catedráticos". Na França, berço da arte gó-
tica, era possível encontrar várias dessas condições, tanto do ponto de vista
material quanto espiritual. O berço e os começos da larga expansão da arte
gótica são identificados na Île-de-France, região da antiga Paris. Panofsky
enfatiza um fato bastante interessante com relação ao papel desempenhado
por estas novas instituições acadêmico-religiosas.
HISTÓRIA DA ARTE I 95
2.2. A arquitetura
O gótico irá conviver, durante certo tempo, com o românico, de cujo
estílo toma de emprétimos algumas características e formas, reaproveita-
das em novas concepções técnicas e estéticas. Muitas igrejas góticas, a
exemplo da basílica de Saint-Denis e a catedral de Strasbourg, tiveram os
dois estilos convivendo no mesmo espaço arquitetônico, visto que esses dois
monumentos góticos foram reformados, a partir de suas origens românicas.
Outra afinidade entre os dois estilos: assim como ocorreu na hegemonia da
arquitetura no românico com relação às demais artes, assim também irá
ocorrer no gótico.
Mas o que é a arte da arquitetura gótica? A despeito das afinidades
e influências, uma diferença básica entre os dois estilos ganha visibilidade
desde seus exteriores. A partir das respectivas fachadas de suas igrejas,
nota-se que, via de regra, a românica apresenta um único portal e a góti-
ca, como Saint-Denis, apresenta três portais que dão acesso direto às três
naves do interior. Analisemos mais perto a basílica de Saint-Denis devido à
sua relevância, espécie de primícias da arte gótica do mundo, tornando-se
modelo para o chamado primeiro gótico, bem como pela sua importância na
história cultural da França.
Graças aos seus laços estreitos com a realeza (Suger, como se viu, foi
conselheiro de Luís VI e Luís VII e regente durante a 2ª Cruzada), Saint-
Denis sediou, desde cedo, corpos da realeza, tornando-se a necrópole dos
soberanos da França. A partir do século VI, a maioria dos reis e rainhas foi
enterrada em seu interior: 42 reis, 32 rainhas, 63 príncipes e princesas, e
10 grandes personalidades do reino.
Em sua fachada, erguiam-se originalmente dos portais laterais, duas
torres altas (atualmente, como se pode verificar na foto acima, a torre da
direita não existe mais, danificada por um raio, no século XIX). O portal
central é constituído de vários planos que caracterizam o estilo gótico de
quase todas as igrejas construídas entre o século XII e XIV: a porta princi-
pal envolta por um arco com frisos que emolduram o tímpano*, uma grande
janela longitudinal encimada por uma forma abobadada, e outra grande
janela circular, chamada rosácea*.
Mas, a maior marca arquitetônica do gótico certamente reside na abó-
boda de nervuras. Vimos que no período românico, uma das soluções para
minimizar a pressão do arco pleno foi a técnica da abóboda de arestas,
cujas curvaturas foram aos poucos sendo alteradas com a introdução de
nervuras e formas mais alongadas, prefigurando os arcos ogivais. O efeito
estético imediato foi a possibilidade de edificação de templos maiores, com
ogivas alongadas apontando para o alto, enfatizando a sensação de verti-
calidade.
Outro recurso técnico usado em Saint-Denis foram os pilares de apoio
distribuídos de forma regular. Com tal recurso desaparecem as grossas es-
pessuras das paredes, como as do estilo românico, para apoiar sua estrutu-
ra, provocando uma sensível alteração de grande efeito estético: a criação de
espaços vazios, possibilitando a substituição das estreitas janelas do estilo
românico, pela alternância da pequena largura das paredes com áreas de
grandes vitrais policromáticos, buscando sensações extáticas, mediante a
profusão de cores e luzes dos desenhos sagrados. Com pequenas alterações,
o modelo de Saint-Denis foi seguido na construção de outros templos como
a Catedral de Notre-Dame de Chartres, vista como um dos mais belos con-
juntos escultóricos do gótico, construídos entre 1145 e 1155.
96 HISTÓRIA DA ARTE I
Outro edifício que merece igualmente nossa atenção é a catedral de
Notre Dame de Paris, cuja construção iniciou-se c. de 1160, devido á novi-
dade do arcobotante*. Com tal expediente, abriu-se uma grande possibilida-
de de uso de grandes aberturas preenchidas por belíssimos exemplares da
arte dos vitrais aplicada em janelas, rosáceas de várias dimensões ou qual-
quer outro espaço que permitia o uso dos vidros multicoloridos, articulados
em grandes armações estruturais de ferro.
A vigência do gótico, assim como o estilo românico, também se esten-
deu por vários lugares, chegando à Alemanha, cujo exemplo mais canden-
te de sua típica estética encontramos na Catedral de Elizabethkirche, em “Quando os historiado-
Marburg, Sua nave central e as naves laterais possuem a mesma altura, res traçam uma evolução
prescindindo do uso dos arcobotantes, o que marca a grande diferença do cronológica da arte góti-
ca, costumam distinguir
gótico alemão com o estilo francês do século XIII. Seu formato externo com- três grandes ciclos. Um
pacto não anulou seu aspecto de leveza, devido à verticalidade das linhas inicial durante o qual se
do contrafortes e ao rendilhado das grandes ogivas de suas esguias janelas registram avanços rumo
à confi guração de formas
preenchidas por belos vitrais. Outro edifício que desperta admiração graças góticas: um central, que
à exuberância das suas formas externas é a Catedral de Milão, cuja cons- constitui a etapa clássica
trução teve início em fi ns do século XIV, com base num projeto bastante e de expansão daquelas
formas, e um período fi -
ambicioso, o que provocou uma série de atrasos em sua construção, provo- nal, de predomínio do gos-
cada por indefi nições em sua realização. to cortesão e burguês.
Dentro dessas linhas ge-
As últimas manifestações da arquitetura gótica, dos séculos XIV e XV,
rais, criou-se uma grande
deram lugar para seu uso laico, a exemplo do palácio Ca’ d’Oro (“Casa de quantidade de subdivi-
Ouro”), residência construída em Veneza, entre 1422 e 1440. sões, terminológicas para
designar com maior ou
Entre 1446 e 1515, foi construída a capela do King’s College da Uni- menor acerto, alguns dos
versidade de Cambridge. Uma das últimas manifestações do estilo, esse momentos que balizam
exemplar do gótico inglês nos chama a atenção pela profusão de nervuras sua constante evolução.
Na arquitetura francesa,
em sua abóboda, remetendo-nos à ideia de uma série enfi leirada de grandes por exemplo, distingue-se
leques abertos. uma arte gótica primi-
tiva, um gótico clássi-
co, um gótico radiante
(rayonnant), e um gótico
2.3. A escultura flamejante (flamboyant).
Analogamente, na arqui-
A função dos trabalhos escultóricos esteve profundamente vinculada tetura inglesa assinala-se
à arte arquitetônica, como podemos presenciar durante o chamado gótico um gótico primitivo (early
primitivo e o clássico, marco resplandecente da primeira escultura gótica English), um estilo orna-
mentado (decorated style)
encontrado nas decorações das fachadas das majestosas igrejas da Île-de- e um estilo perpendicu-
France, onde culmina a renovação da escultura monumental presente no lar (perpendicular style).
último românico. A profusão decorativa da escultura das fachadas góticas, Também na arte gótica es-
panhola tem-se distingui-
com relação às igrejas românicas, já se manifesta pelo número maior de do, pelo menos, um góti-
portais de suas catedrais, encontrada nos seus tímpanos, dintéis e umbrais. co primitivo e um estilo
Ademais, a relação entre os elementos arquitetônicos e escultóricos torna-se isabelino. Coincidindo
mais orgânico e fecundo no estilo gótico. Mais uma vez parte de Saint-Denis com este último, em Por-
tugal se desenvolve o cha-
essa nova estética. Lembremos do estreito vínculo entre o abade Suger e a re- mado estilo manuelino”.
aleza francesa e o papel da sua basílica como necrópole da nobreza francesa. (BRACONS, 1992, p. 7)
Daí o desenho iconográfi co do seu projeto para realçar a imagem real. Figu-
ras de reis e rainhas bíblicas foram inseridas nas peças laterais do tríplice
pórtico, junto a outras personagens sagradas, constituindo o que passou a
ser denominado de Portal Régio. Será igualmente em Saint-Denis que apare-
cerá a estátua-coluna, i,é, uma fi gura agregada à coluna, também chamada
de fi gura adossada, elemento decorativo ou estrutural (uma estátua, p.ex.)
unido ou parcialmente agregado ao muro ou à parede.
Passado o medo do fi m dos tempos esperado na passagem do primeiro
milênio cristão, correspondendo duas etapas, os mil anos do nascimento
de Cristo e os mil anos de sua paixão e morte (1033), a estatuária gótica
HISTÓRIA DA ARTE I 97
aparenta expressar o alívio dos novos tempos. As imagens surgem mais hu-
manas, parecendo buscar uma maior aproximação com o fiel. Maria, antes
sempre presente no trono divino, é agora apresentada como mãe de Cristo,
medianeira entre Deus e os homens. E o Cristo crucificado deixa o hieratis-
mo românico para apresentar o lado humano que expressa dor e sofrimen-
to. As portadas das igrejas continuam sendo utilizadas para a narrativa
iconográfica. Nelas são concentradas esculturas dispostas didaticamente,
transformando-as numa espécie de Bíblia em imagens, uma Bíblia de pedra
para aqueles que não sabem ler, cujos sentidos das figuras representadas
acham-se relacionadas com os vitrais do ambiente interior.
Chama-nos a atenção na estatuária do período, o estilo inovador qua-
se naturalista observável, por exemplo, na plasticidade da estátua O Cava-
leiro, (c. 1235), onde o artista parece ter buscado o equilíbrio na forma dos
volumes dos corpos do cavalo e do seu montador. Para alguns, poderia se
tratar de um dos três reis magos. Para outros, tal trabalho realçaria a cul-
tura da cavalaria feudal, uma nova instituição social difundida nas cortes
europeias, onde manifesta sua liderança intelectual da época, preenchendo
o papel antes exercido quase exclusivamente por monges e mosteiros.
2.4. A pintura
Acompanhando a estética da baixa Idade Média, a pintura gótica, a
partir dos séculos XIII até o início do XV, redescobriu a possibilidade fi-
gurativa, ao incorporar a realidade e os efeitos das linguagens afins, pre-
nunciando o Renascimento. Sua principal característica será a procura do
realismo na representação das figuras, fossem elas humanas ou divinas.
Primeiramente, surgiram cenários reconhecíveis, emoldurando as fi-
guras bíblicas que passaram a ganhar uma espécie de tridimensionalidade,
ainda que fosse mantida a sobreposição de planos (figuras em diferentes
níveis), e a ausência de perspectiva geométrica, cuja fixação será um mar-
co da estética renascentista. As personagens começam a ser modeladas à
moda escultórica, dando visibilidade aos movimentos corporais ou então,
grande inovação para esses tempos de negação da materialidade corporal,
a definição menos recalcada de corpos humanos sob as roupas ou paneja-
mentos, pela identificação de volumes. Em suma, descobre que as figuras
humanas possuíam sentimentos, que linhas e pinceladas podiam se tornar
sutis e sinuosas e que a exploração das cores desempenhava um papel de
força expressiva na composição geral.
No século XIII o pintor mais conhecido e grande criador de mosaicos é
Giovanni Gualteri (c. 1240-1302), mais conhecido como Cimabue. Influen-
ciado pela arte bizantina, nele já se nota uma nítida preocupação com a
humanização dos sentimentos bem como com o naturalismo nas figuras
humanas, com o movimento das figuras sagradas como anjos e santos,
mediante a postura dos corpos e do drapeado das vestes, sem, no entanto,
realizar plenamente o efeito ilusório da profundidade espacial. Seus tra-
balhos mais importantes encontram-se na Basílica de São Francisco em
Assis, Itália.
Foi este artista que descobriu o jovem pastor Ambrogiotto Bondone, ou
simplesmente Giotto (1266–1337), de quem foi mestre durante dez anos, na
cidade de Florença. Giotto destacou-se na arte dos afrescos, que decoraram
muitas igrejas. Seu estilo característico foi a identificação da figura de san-
tos com a dos humanos de aparência bem comum.
98 HISTÓRIA DA ARTE I
Esses santos com ares humanos eram os mais importantes em sua
pintura, sempre em posição de destaque. Assim, seu estilo vai ao encontro
de uma visão humanista típica do período. Graças ao alto grau de inovação
de seu trabalho, ele é considerado como precursor da pintura renascentista,
inclusive pela prefiguração da perspectiva em suas obras. Giotto procurou
adotar a linguagem visual dos escultores, procurando obter volume e altura
realista nas figuras em suas obras. Comparando suas obras com as do seu
mestre, elas são muito mais naturalistas, sendo por isso considerado o pio-
neiro da tridimensionalidade na pintura europeia.
Outro suporte pictórico do gótico, além dos grandes murais, foram os
retábulos que, dentre outras, podiam ser peças de pintura de teor religioso,
normalmente colocados atrás dos altares. Os retábulos eram classificados
segundo o número de painéis: dípticos (dois), trípticos (três) e polípticos (vá-
rios painéis). Os grandes mestres desta arte foram os pintores flamengos,
os irmãos Jan (1390-1441) e Hubert van Eyck (1366-1426), produzida nos
Países Baixos. Deles é o famoso políptico, o retábulo do Cordeiro Místico,
obra realizada entre 1426 e 1432, portanto terminada por Jan van Eyck.
Nele é possível vislumbrar a arte da ilustração do manuscrito (a ser vista
adiante), graças à preocupação detalhista das vestes, dos adornos da ca-
beça e elementos da natureza. Seus estilos marcam a abertura da pintura
para o mundo exterior, prenúncios que suas obras inaugurariam a fase
renascentista da pintura flamenga. Jan Van Eyck iria ainda se notabilizar
por outros quadros, onde evidencia sua preocupação pelo realismo e rique-
za de detalhes, a exemplo do célebre Casal Arnolfini (1434) e Nossa Senhora
do Chanceler Rolini (1436).
No primeiro, o artista chega a um nível de riqueza de detalhes, como
o interior dos aposentos e as vestes de um rico casal do século XV. Giovan-
ni Arnolfini era um rico negociante italiano que havia se estabelecido em
Bruges, com sua esposa. Além das minúcias sobre o casal, a riqueza de
detalhes do ambiente encontra-se ainda retratada no reflexo do espelho ao
fundo, apresentando uma visão completa de todo ambiente. Notam-se ainda
dois pequenos detalhes que compõem a cena prosaica do cotidiano do casal
emprestando mais naturalidade à cena: o par de sandálias deixado com
aparente descuido e o pequeno cão entre eles.
O que chama mais a atenção no segundo quadro é o trabalho perspec-
tivado do artista, deixando documentada uma paisagem urbana, quando a
cidade, com seus prédios, pontes e torres, já passara a ser o centro da vida
social da época. Outro dado prenunciador dos tempos e da arte renascentis-
tas encontra-se na preocupação autoral do artista ao deixar assinalada em
suas obras a seguinte inscrição: “Jan van Eyck esteve aqui”. Giotto e Jan
van Eyck sinalizam em suas obras as mudanças estéticas que virão com os
novos tempos.
Além dos grandes murais, a pintura gótica foi igualmente constituída
de trabalhos de menores proporções. Assim, numa escala oposta aos gran-
des afrescos e retábulos, desenvolveu-se também uma arte em miniaturas
de extremo capricho e preciosismo – as iluminuras, os manuscritos ilumi-
nados ou miniaturas em forma de saltério (livro de salmos), breviários e
livros de horas, para leitura das horae canonicae.
HISTÓRIA DA ARTE I 99
2.5. A música gótica
Se o gregoriano continua sendo a música da esfera religiosa das ba-
sílicas, abadias e catedrais, a música profana continua sua busca de au-
tonomia com relação ao sagrado. Vimos que a música do período românico
prepara a polifonia gótica, graças ao discanto dos motetos e ao contrapon-
to. Na polifonia, o pensamento musical se exercita pelo entretecimento da
textura musical feita por vozes atuantes em momentos defasados: uma voz
pode estar no início, enquanto outra, no mesmo instante, estar no meio do
canto, e uma terceira terminando a frase. Polifonia vocal, politextualidade
e plurilinguismo tornam-se traços identificadores de um gênero que ganha
grande prestígio em fins da Idade Média.
Sobrepostas ao canto litúrgico, as vozes acrescidas eram portadoras
de falas distintas (o antigo/o novo, o letrado/o popular, o sagrado/o profano,
o latim/o vernáculo, o puro/o pornográfico) entretecendo a simultaneidade
de textos em línguas diferentes. Podia ser uma canção popular erótica, uma
melodia trovadoresca e o gregoriano fundidos num mesmo canto. O que
mais contava era a textura dessa massa sonora entretecida por múltiplas
vozes e não a inteligibilidade das partes, ensejando claramente novas expe-
riências de simultaneidade musical.
Os motetos trazem um problema com relação à medida temporal. A
prosódia musical, que no gregoriano monódico era resolvida pelo ritmo da
frase, se torna bastante problemática quando aparece a necessidade de sin-
cronizar canto e acompanhamento. O período entre o final do século XII e
até inícios do XIV, chamado de Ars antiqua, introduz na vida musical da
época o cantus mensurabilis.
Aqui, é impossível evitar a menção do aflorar do compasso concomi-
tante ao relógio mecânico, no início do século XIV. Seu uso pela Ars novae
musicae, foi longamente preparado, desde as primeiras sistematizações da
notação musical (c. ano 1000) feitas pelo monge italiano Guido d’Arezzo
(992-1050) simplificando a confusa notação neumática, até a reforma da
Ars antiqua feita por Franco de Colonia (c. 1215 - c. 1270), em Ars cantus
mensurabilis (c. 1260) sobre a notação medida da música. O cantus men-
surabilis, polifonia com duração de sons com valores de referência entre
as notas, estabelecidos a partir de um sistema de medidas regulado por
relações numéricas, opunha-se ao conceito de cantus planus do gregoriano,
cuja rítmica uniforme e livre não era susceptível de medição.
As inovações do período da Ars nova (c. de 1320 a 1380) obtiveram
sucesso em vários terrenos, interessando-nos o destaque do moteto com o
uso da isorritmia, – não só na isoperiodicidade, mas também na igualdade
dos valores das notas. Vemos assim que o mesmo princípio racionalizador
do tempo único, manifesto pelo relógio mecânico, encontra-se presente na
equalização do tempo musical, manifesto pelo compasso.
Uma nova mentalidade furtivamente se infiltra na vida moderna dos
negócios, trazida pela ação mercantil, introduzindo uma nova forma de
temporalidade, com a distinção entre o tempo cíclico e o linear que, de
modo geral, iria distinguir as sociedades pré-modernas não-capitalistas e
sociedades modernas capitalistas, pondo fim à Idade Média, momento em
que começa a se generalizar no mundo euro-ocidental o tempo linear.
As inovações técnicas da Ars nova são decisivas para robustecer a mú-
sica profana, com especial destaque, como vimos ao tempus mensurabilis.
Através dele, “controla-se o avanço simultâneo das partes, ao mesmo tempo
que a compatibilidade rítmica entre elas (que já não obedecem mais nem à
Filme
O nome da Rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud, baseado no romance
homônimo (1980) de Umberto Eco, apresenta a vida monástica da baixa
Idade Média, envolvida em polêmicas religiosas, teológicas e fi losófi cas (o
protagonista é baseado no frade franciscano e fi lósofo inglês Guilherme de
Ockham), tendo como pano de fundo a fi gura de Aristóteles, inclusive sobre
a existência e o teor de um possível livro II de sua Poética dedicado à Co-
Site
• www.aticaeducacional.com.br/imagens/complementos/hda/
img/imagem26.swf.
4
Do Humanismo Renascentista
ao Neoclassicismo Iluminista
Objetivos:
• Esta unidade visa estudar o período compreendido entre os séculos XV e XVIII, a
grande época em que as artes ocidentais logram conquistar certa autonomia em
relação às instâncias da tradição medieval cristã que determinavam os conteúdos e
as formas das obras de arte. A unidade visa ainda estudar os grandes estilos, como
o renascentista, o maneirista, o barroco, o rococó e o neoclacissista, enfatizando a
vida e a obra dos principais realizadores das linguagens artísticas do período.
Capítulo 1
A Renascença e o maneirismo
2.3. A escultura
Assim como na pintura, a escultura ganhará traços similares, quan-
do não idênticos. Busca fixar movimentos sutis e dinâmicos, exprimir o
naturalismo dos afetos e dos estados de espírito, explorar o ideal de beleza
pela nudez e pela sensualidade, algo também detectável na pintura. Tem-se
aqui a grande síntese (ou seria uma das grandes contradições íntimas da
Renascença) do espírito da época: a Renascença “não vê salvação da arte
fora do paganismo [leia-se fora do classicismo greco-romano] nem da alma
fora do cristianismo [leia-se Contra-reforma]” (BAZIN, 1989, p.33).
3. A Renascença europeia
Assim como o gótico, que se irradia pela Europa a partir da França,
o mesmo ocorre com a Renascença, que se espraia no continente a partir
da Itália. Vários países europeus aderem ao princípio da revitalização da
cultura greco-romana depois de superar, de forma sintética, o choque entre
estéticas nacionais e concepções italianas. Dentre as várias linguagens, a
pintura foi a que melhor refletiu tal síntese. Na Alemanha e nos Países Bai-
xos, artistas como Hieronymus Bosch (1450-1516) e Albrecht Dürer (1471-
1528) conseguem conciliar o gótico com a nova pintura italiana.
Bosch tornou célebre, com seu estilo inconfundível, o tríptico Jardins
das delícias (c.1500), cujo painel central é ladeado por dois painéis repre-
sentando o Paraíso (à esquerda) e O inferno musical (à direita). A força de
sua fantasia livre com suas formas oníricas é vista como prenunciadora
do surrealismo, séculos antes de sua irrupção. Uma das qualidades mais
famosas de seu estilo era a forma de representar a maldade humana. No
painel sobre o inferno, por exemplo, “amontoam-se horrores sobre horro-
res, labaredas e tormentos de toda espécie, e todos os tipos de demônios
pavorosos, meio animais, meio humanos ou meio máquinas, que flagelam
e castigam por toda a eternidade as pobres almas pecadoras” (GOMBRICH,
1989, p. 276).
O alemão Dürer, talvez o mais realista dos artistas de sua época,
concebe sua pintura como a arte da representação fiel do que pretende
expressar. Procurando refletir sua terra e seu tempo, dedicava-se a pintar
de preferência pessoas simples do povo com seus trajes típicos, bem como
soldados e camponeses. Além de excelente gravurista e desenhista, foi um
grande retratista, expressando sempre os traços psicológicos do retratado.
4. O maneirismo
Derivado do termo italiano maniera ("maneira") e usado com intenções
positivas por Vasari, ele próprio visto como representante desse novo estilo,
o maneirismo seria sinônimo de graça, leveza, estabilidade e sofisticação,
fruto do estilo pessoal do artista que, no limite, transforma-se num capri-
cho idiossincrático como em Michelangelo, que se permitia buscar cons-
tante e incansavelmente novas formas de expressão. Depois, o maneirismo
sofre uma grande inflexão passando a conotar artificialidade e virtuosismo
excessivo. A expressão “à maneira de” deixou de retratar a inventiva do ar-
tista, para se referir ao modelo que se imitava, isto é, “à maneira” de outrem
O historiador Gombrich (1989) vê no maneirismo um tempo de “crise
da arte”. Poderíamos buscar as causas da crise nos fatos ocorridos na Euro-
pa, algumas já analisadas como a perda da primazia de Roma e a quebra da
unidade da cristandade, com o movimento reformista (Lutero, Calvino, John
Knox, Zwingle, Henrique VIII), abalando a instituição, sólido esteio para a
inspiração e as encomendas dos artistas. O abalo foi tal que precisou de uma
ordem religiosa (a Companhia de Jesus), fundada em 1534, para combater
os reformados, e de um grande conclave (Concílio de Trento, de 1545 a 1564).
convocado pelo papa Clemente XIV, para reparar os estragos feitos.
O contexto sociohistórico do novo estilo, além da esfera religiosa, foi
também marcado por profundas mudanças na economia, política e cultu-
ra. Os permanentes conflitos da Itália com a França, Alemanha e Espanha
provocaram uma radical mudança no equilíbrio de forças do continente,
culminando no Saque de Roma de 1527: oito dias de terror e devastação,
provocando a diáspora de artistas e intelectuais para fora da Itália. No pla-
no econômico, a Itália já vinha perdendo primazia no quadro do capitalismo
mercantil, com o deslocamento das rotas de comércio para o Atlântico, que-
brando de vez seu monopólio das linhas do Mediterrâneo, o que irá trazer
também consequências para o campo das artes e da cultura, considerando
o papel, há anos, desempenhado pelos burgueses italianos.
Gombrich assinala que, depois de 1520 (leia-se após Da Vinci, Miche-
langelo e Rafael, quando as artes da Renascença atingiram os limites de
sua perfeição e glória), era muito difícil à nova geração impor seu próprio
1.1. A pintura
Entre os pintores italianos, destacam-se Tintoretto (1518-1594) e Ca-
ravaggio (1573-1610). Tintoretto produziu muito, logrando expressar uma
temática variada como motivos religiosos, mitológicos, além de retratos. Por
sua energia na arte de pintar, era conhecido como I1 Furioso e sua utiliza-
ção dramática dos efeitos da luz fez dele um dos maiores representantes do
barroco italiano. O que justamente impressiona em seu vigoroso estilo é o
2.3. A escultura
Ao contrário do volume e da sinuosidade das espirais barrocas, a es-
cultura retorna às formas graciosas e leves, realçando contornos e gestos
suaves, cuja sobriedade idealiza expressões que exploram, de preferência,
a polidez das superfícies do mármore branco. A temática mitológica dá re-
levo ao gosto pelo nu para melhor idealizar as proporções humanas, como
Texto 1
“Quattrocento e Cinquecento: duas ênfases. A arte do Quattrocento
ainda conviveu com o período anterior do gótico ‘internacional’, mas soube
produzir dessemelhanças ou particularidades regionais relativamente des-
tacadas. Cada cidade desenvolveu, sob os auspícios de seus ricos mercado-
res e novos burgueses, um estilo inerente às suas próprias corporações de
ofícios. A influência e a riqueza dessas associações foi bastante forte para
impor os interesses de seus membros, tanto na aceitação e na instrução dos
aprendizes e oficiais, na obediência às concepções dos mestres locais, como
na ‘reserva de mercado’ para seus trabalhos. Em consequência, o Renasci-
mento evoluiu de maneira a mostrar uma diversidade formal e temática mui-
to mais abrangente do que a época medieval, em grande parte fruto desse
incipiente ‘nacionalismo’ das cidades.
O século seguinte - o Cinquecento - constituiu o ápice da Renascença,
em sua poética ou concepção clássicas. Durante o seu transcorrer, o esta-
tuto e o consumo das artes se modificaram profundamente. A economia,
então decisivamente mercantil e financeira, estimulou o aparecimento de
uma sociedade urbana, composta, em linhas gerais, de uma classe média
de comerciantes e de artesãos e dos estamentos das cortes principescas,
incluindo-se os seus banqueiros. Estes últimos diferiam de seus congêneres
medievais tanto pela origem da riqueza quanto por seus princípios éticos e
políticos. Os antigos [...] haviam estabelecido ideais de heroísmo, de amor
cortês e abstrato e de moralidade mais rígida. Os novos passaram a aceitar
em seus círculos os endinheirados recentes, os aventureiros de várias ori-
gens, os humanistas plebeus e os artistas, com reputação ou sem nome.
Tornaram-se intelectualizados, eruditos, mais refinados, sensualistas e mo-
ralmente dúbios, dado o indispensável utilitarismo da época”. (CUNHA, 2003.
pp. 447-448)
Texto 2
“A heroína é a Loucura, alegoria que se dirige ao público fazendo seu
próprio elogio [...]. Ela conduz a ronda com competência, não esquecendo
nenhum figurante. Aparecem diante do público os caçadores, os arquitetos,
os alquimistas, os jogadores, os devotos, os nobres, os negociantes, os gra-
máticos, os poetas, o retores, os jurisconsultos, os filósofos, os monges, os
bispos, os papas, os reis, os militares, cada um mais louco do que o outro,
mais convencido de sua própria importância, confundindo seus desejos com
a realidade, todos iludidos pelo amor de si mesmo, pela Philautia [o amante
de si próprio], dama de companhia da Loucura.
Texto 3
Em resumo, eis os principais traços da festa barroca: participação po-
pular, pela participação de irmandades; vestimentas luxuosas bordadas em
ouro, prata e pedrarias preciosas; animais, sobretudo cavalos, ricamente
ajaezados; carros alegóricos com efeitos especiais ilusionistas, com figuras
representando mitos pagãos, nativos e santos ou virtudes cristãs, onde as fi-
guras pagãs ou indígenas encontram-se submetidas à fé católica; pessoas de
prestígio (civis, militares e religiosas) em “destaque”, vestidas com pompa e
cerimônia para reafirmar sua superioridade no interior da sociedade colonial;
caminhos a serem percorridos pela procissão, ricamente enfeitados com lu-
minárias, flores, lagos artificiais; casas com testadas recém-pintadas, com
sacadas ornadas com panejamento luxuoso (“colchas de Pequim ou China”);
representantes das etnias formadoras da população nacional, como negros e
índios, ricamente vestidos, representando o “outro” do colonizador, submeti-
dos à sua fé e lei; máscaras coloridas e coreografias policrômicas de danças
profanas; uso da música onde a sonoridade esfuziante de vozes e instru-
mentos, articulada aos efeitos audiovisuais, busca reforçar a idéia de poder
e riqueza a serviço da fé e da lei; requintados espetáculos pirotécnicos das
“máquinas de fogo”, fabricadas por jesuítas que as conheceram no Oriente
por ocasião da catequese (Japão, Macau, Goa) (MIRANDA, 2001, p. 104s).
Dilmar S. Miranda
Doutor pela Universidade de São Paulo, área de concentração em So-
ciologia da Música, é professor associado do curso de Filosofi a do Instituto
de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, sendo responsável pe-
las disciplinas Estética e Filosofi a da arte. Possui vários ensaios publicados
sobre Filosofi a da Música como Razão, sentidos e estética musical, Natureza
e linguagem musical e Tristão e Isolda: o anúncio dionisíaco da dissolução do
pacto tonal. Lançou em 2009 o livro Nós a música popular brasileira.