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Dilmar Santos de Miranda

História da Arte I
Da arte rupestre ao neoclassicismo

2010
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COORDENADORA DE TUTORIA E DOCÊNCIA DO CURSO DE ARTES PLÁSTICAS


Inez Beatriz de Castro Martins
Apresentação ....................................................................................................................... 7

Unidade 1:
Arte é o que eu e você chamamos Arte ................................................................................ 9
Introdução.............................................................................................................................11
Capítulo 1 - Arte e sociabilidade ........................................................................................ 13
Capítulo 2 - Pressupostos para uma história das artes ...................................................... 15
1. A história da arte cingida à história das artes plásticas:....................................................15
2. A evolução das artes: .......................................................................................................16
3. A história da arte ocidental tomada como a história da arte universal: ...........................17
Capítulo 3 - Hipóteses sobre as origens das artes.............................................................. 19
1. A pintura mágica paleolítica ..............................................................................................19
2. Arte neolítica ....................................................................................................................20
3. Os objetos sagrados .........................................................................................................21
4. A voz encantatória ............................................................................................................22
5. A narrativa mítica ..............................................................................................................23
6. O trabalho ........................................................................................................................24

Unidade 2:
A Arte na antiguidade ........................................................................................................... 29
Capítulo 1 - A arte no antigo Oriente Médio e Próximo ..................................................... 31
1. Mesopotâmia ....................................................................................................................31
2. Egito ................................................................................................................................. 33
3. Creta..................................................................................................................................38
Capítulo 2 - Da narrativa mítica à arte do período arcaico ................................................ 41
1. Período homérico: o mito estrutura o sentido do mundo ................................................41
2. Período da Grécia arcaica: o mundo é dotado de racionalidade ......................................44
Capítulo 3 - O século de Péricles: apogeu das artes e
doutrinas estéticas da Grécia clássica ................................................................................ 56
1. A doutrina estética de Platão ............................................................................................ 57
2. A doutrina estética de Aristóteles ..................................................................................... 60

Unidade 3:
Do Helenismo ao Medievo Cristão ....................................................................................... 65
Capítulo 1 - O helenismo e o classicismo greco-romano ................................................... 67
1. O surgimento do Helenismo .............................................................................................67
2. O surgimento de Roma .....................................................................................................72
3. O sistema das artes romanas ............................................................................................ 75
4. O fim do império ...............................................................................................................79
Capítulo 2 - As artes na alta Idade Média: o bizantino, o gregoriano
e os períodos merovíngio e carolíngio ............................................................................... 80
1. A protoarte Cristã..............................................................................................................80
2. A Arte Bizantina.................................................................................................................81
3. O canto gregoriano e a música medieval .......................................................................... 84
4. A Arte da fase merovíngia e carolíngia.............................................................................. 86
Capítulo 3 - As artes na baixa Idade Média: o românico e o gótico .................................. 90
1. O Estilo Românico .............................................................................................................90
2. O Estilo Gótico...................................................................................................................93

Unidade 4:
Do Humanismo Renascentista ao Neoclassicismo Iluminista ................................................ 105
Capítulo 1 - A Renascença e o maneirismo ........................................................................ 107
1. Contexto sociohistórico da Renascença ............................................................................ 107
2. O sistema das artes renascentistas ................................................................................... 110
3. A Renascença europeia ....................................................................................................116
4. O maneirismo....................................................................................................................118
5. A música profana da modernidade renascentista.............................................................119
Capítulo 2 - O barroco e o rococó ...................................................................................... 121
1. O contexto sociohistórico do barroco ............................................................................... 121
2. O rococó ...........................................................................................................................132
Capítulo 3 - O neoclassicismo iluminista ............................................................................ 134
1. O contexto sociohistótico do neoclassicismo.................................................................... 134
2. O sistema das artes neoclássicas ...................................................................................... 137
3. O classicismo musical: tonalismo, forma-sonata e a
historicidade da consciência burguesa ................................................................................. 140

Dados do Autor .................................................................................................................... 147


Este livro percorre uma grande linha de tempo da história das artes ocidentais.
Ele se inicia na chamada pré-história, quando as primeiras manifestações dos povos
caçadores nos legaram impressionantes fi guras que adornavam as paredes de suas
cavernas, esculpiam objetos e dançavam para espantar os espíritos que tanto temiam.
Tais manifestações passaram a ser vistas como as primeiras fi gurações e experiências
estéticas de nossos ancestrais.
Desde então, a humanidade passou a contar com um espantoso, diversifi cado e
belíssimo acervo de linguagens artísticas, que nos vem encantando, cuja análise, para
efeito deste livro, detém-se na outra ponta que conclui aquela grande linha de tempo: o
período neoclássico, quase às portas da nossa contemporaneidade. Preenchendo esse
grande trajeto, sucederam-se outros períodos que marcaram a história das artes oci-
dentais como a antiguidade clássica, o helenismo, o medievo cristão e seus diversos
estilos como o bizantino, o românico e o gótico, a modernidade renascentista, o manei-
rismo, o barroco e o rococó.
Para evitar armadilhas dissimuladas nesse grande percurso, como, por exemplo,
tomar a história das artes plásticas como a história da arte em geral, procuramos
articular a análise das obras perpetuadas na materialidade das rochas, bronzes, cerâ-
micas e telas, com outras linguagens, como a música, a jardinagem, eventualmente o
teatro e a literatura, mediante a busca de suas afi nidades estéticas expressas no inte-
rior do contexto sociohistórico que ilumina e entretece as vias do entendimento dessas
linguagens.
Todos nós nascemos, biológica e espiritualmente, incompletos. A humanidade de
cada um de nós se constrói na história. E as artes, de forma manifesta e clara ou la-
tente e tortuosa, parecem nos conduzir a este grande termo: superar as incompletudes
e insufi ciências de nossa humanidade, nos tornando cada vez mais humanos. E essa
História da Arte I procura narrar um pouco dessa construção e desse desafi o.

O autor
Unidade

1
Arte é o que eu e você
chamamos Arte

Objetivos:
• A amplitude das possibilidades para definir e configurar os limites do campo
artístico.
• A obra de arte como produto irrecusável de uma rede de sociabilidade.
• Os pressupostos críticos em relação a certas abordagens usualmente recorrentes
em textos sobre a história das artes.
• A natureza hipotética das origens das artes.
Introdução
A sentença que dá título a esta unidade – Arte é o que eu e você cha-
mamos arte –, é tomada aqui de empréstimo do curioso e provocativo título
do livro do crítico de arte Frederico Morais, graças a seu caráter instigante,
adensador de um leque de sentidos relevantes para a nossa História da Arte.
Dentre as dimensões constitutivas da existência humana, ou seja, as
esferas do saber (a episteme)*, do agir (a ética) e do sentir (a estética), objetos
da refl exão de uma linhagem de pensadores ocidentais (v. adiante a seção
Saiba mais), a arte é certamente a que apresenta uma riqueza e amplitude
maior de entendimento e de conceitos.
O subtítulo do livro de Morais, 801 definições sobre arte e o sistema de
arte, é um fl agrante testemunho dessa realidade. Na verdade, não se trata
de defi nições conforme o rigor teórico das chamadas “ciências duras”, como
as ciências naturais, a exemplo da lei da gravitação universal formulada por
Isaac Newton, passível de formulações matemáticas.
A palavra arte, correspondente ao termo grego techné, que, por sua
vez, dá origem ao termo técnica, deriva do latim ars, artis, termo que, no
correr dos anos, passou a constituir um certo saber, fazer e sentir. Em Re-
fl exões sobre a Arte, Alfredo Bosi, procurando elucidar a etimologia da pa-
lavra arte, afi rma: “a palavra latina ars, matriz do português arte, está na
raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes
de um todo” (BOSI, 1991, p.13). Portanto, o artista seria um articulador de
porções da realidade, agenciando-as num todo de sentido estético. Mas o
que seria mesmo a arte?
Em cursos sobre Estética e Filosofi a da Arte, antes dos alunos entra-
rem em contato com o teor das disciplinas, costumo apresentar-lhes um pe-
queno questionário com duas perguntas básicas: 1) o que cada um entende
por arte; 2) o porquê da arte (seu sentido para a existência humana).
Obtendo um resultado de extrema variedade de formulações, algu-
mas com afi nidades conceituais, outras totalmente díspares e antagônicas,
nunca completas, parece que somos remetidos à mesma situação de Santo
Agostinho, ao refl etir sobre o mistério do tempo. “O que é o tempo? Dele sei
quando nada me perguntam. Dele nada sei quando me indagam sobre sua
natureza” (AGOSTINHO, 1984, p.318). Assim também podemos nos colocar
diante da natureza da arte. Dela só se sabe quando nada dela se pergunta.
Tal situação aparenta ter sido vivenciada por Frederico Morais ao con-
fessar na orelha do seu referido livro (1998): “depois de exercer durante qua-
renta anos a crítica de arte, devo dizer que eu também não sei mais o que é
arte”. O crítico traz à cena outros pensadores e artistas que vivenciaram a
mesma situação. Mário de Andrade, por exemplo, surpreende os participan-
tes de um curso de Filosofi a e História da Arte, com a seguinte afi rmação:

HISTÓRIA DA ARTE I 11
“Devo confessar preliminarmente, que eu não sei o que é belo e nem sei o
que é arte” (op. cit. p.9). Ou então o escritor mineiro Rosário Fusco que sen-
tencia ser “a beleza a fi nalidade da arte” e, contudo, indaga de imediato: “o
que é arte, que é beleza, que é fi nalidade?” (p. 11).
Na verdade, são exemplos de expressões portadoras de afi nidades com
o sentido da maiêutica socrática *, que sempre partia de uma questão semi-
nal subjacente (sei que nada sei) para, desse patamar, dar prosseguimento
A linhagem de pensadores ao método refl exivo dialógico. Sabemos que nem Andrade nem Morais abdi-
ocidentais aqui implicita- cam do pensamento que pensa a arte: o curso de Filosofi a da Arte e o livro
mente referidos são aque- com suas 801 definições são empenhos fl agrantes da possibilidade de se
les fi lósofos que, apesar
de terem vivido em épocas pensar sobre sua natureza.
e lugares bem distintos, Por outro lado, considerando a irredutibilidade da arte a uma defi nição
se dedicaram ao estudo
dos grandes temas consti-
concisa capaz de dar conta das suas múltiplas determinidades, tendo como
tuintes da fi losofi a ociden- parâmetro o rigor das “ciências duras”, seria mais prudente e apropriado
tal: o saber, o agir e o sen- construir conceituações mais abrangentes capazes de dar conta daquelas
tir. São eles, sobretudo,
Platão, Tomás de Aquino
determinidades a partir de considerações confi gurativas das várias lingua-
e Kant. gens artísticas. E a primeira consideração a ser feita refere-se à questão de
Platão, na antiguidade sua sociabilidade constitutiva.
clássica grega, subordina
as esferas do agir (ética) e
do sentir (estética) ao co-
nhecimento do mundo su-
prassensível (a episteme).
Tributária da tradição
grega, infl etindo-a no en-
tanto para o campo da fi -
losofi a cristã em fi ns do
medievo, a Suma Teoló-
gica de Tomás de Aquino
busca cobrir o domínio da
verdade, do bem e do belo.
Já Emanuel Kant, impor-
tante pensador na elabo-
ração da doutrina fi losófi -
ca do idealismo iluminista
alemão, na modernidade
madura europeia, constroi
a famosa tríplice crítica,
no fi nal do século XVIII:
Crítica da razão pura,
onde busca estabelecer
os fundamentos das con-
dições de possibilidades
do saber, Critica da razão
prática, onde busca esta-
belecer os fundamentos
racionais das condições
de possibilidades para o
agir moral livre, e Critica
do juízo, onde busca as
condições de possibilida-
de para a construção do
juízo do gosto, ou seja, a
construção do julgamento
crítico-estético da obra de
arte.

12 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 1
Arte e sociabilidade

O professor de História da Arte Jorge Coli, ao se referir a obras por-


tadoras de valores estéticos que transcendem tempo e espaço, desenvolve,
no capítulo intitulado Arte para nós, uma refl exão bastante próxima à que
faremos, ao mencionar um tipo de noção que, a priori, atribui a tais obras
uma “‘essência’ artística, um valor ‘em si’, intrínseco e imanente, que lhes
garantiria o ‘ser’ obra de arte, ser perene, uma das manifestações ‘superio-
res’ da natureza humana” (COLI, 1981, p. 21/22). Mas logo o professor nos
alerta:
A noção de arte que hoje possuímos, [...] não teria sentido para o artesão
artista que esculpia os portais românicos ou fabricava os vitrais góticos.
Nem para o escultor que realizava Apolo no mármore ou Poseidon no
bronze. Nem para o pintor que decorava as paredes da gruta de Altamira
ou Lascaux. Desse modo, o “em si” da obra de arte, ao qual nos referi-
mos, nâo é uma imanência, é uma projeção. Somos nós que enunciamos
o “em si”da arte, aquilo que nos objetos é, para nós, arte. (COLI, op. cit.
p. 22)

Dessa forma, uma obra de arte não detém um valor estético “em si”.
Seu estatuto artístico lhe é conferido por uma rede de agentes portadores de
sentidos e valores estéticos construídos socialmente.
Uma obra de arte, criada por uma individualidade, se apresenta como
um objeto singular nas suas origens e, a um só tempo, postulante de uma
dimensão social no seu destino. Assim, uma obra de arte detém uma objeti-
vidade que se inscreve num artefato particular e sinaliza para uma poten-
cial universalidade. Dessa forma, a alteridade e a sociabilidade tornam-se
traços constitutivos daquilo que denominamos arte. Para que uma determi-
nada criação, fruto da pulsão inventiva e tensamente livre da subjetividade
humana, mediante suas mais variadas formas de expressão estética, se
transforme numa obra de arte, é preciso que essa mesma criação se “aliene”
do seu criador e ganhe autonomia pela fruição de um “outro”.
Em O carteiro e o poeta, fi lme de Michael Redford (1994) sobre o exílio
do poeta chileno Pablo Neruda, na Itália, existe uma passagem bastante in-
teressante. O carteiro, ao ser recriminado por Neruda por ter se apropriado
de um de seus poemas para presentear à mulher pela qual se apaixonara,
lhe diz que “a poesia não é de quem escreve, mas de quem dela precisa”.
A nosso ver, toda obra de arte só se constitui como tal, ao se descolar
do mundo particular da subjetividade do artista e imergir na receptividade
do “outro”. Se um quadro, ao ser pintado, for ocultado, impedindo assim
sua contemplação, será apenas um quadro pintado oculto e não uma obra
de arte. São os “olhadores” que fazem dele uma pintura artística, afi rmava
o artista francês Marcel Duchamp no início do século XX (cf. COLI, 1981).

HISTÓRIA DA ARTE I 13
Vejamos dois interessantes episódios ocorridos com o pintor Pablo Pi-
casso que ilustram de forma bem expressiva a nossa refl exão. O primeiro
episódio refere-se à reação do artista ao fi nal de uma entrevista concedida a
um jornalista num bistrô parisiense. Durante toda a entrevista, o jornalista
seguia com olhos ávidos os esboços desenhados pelo pintor, sempre joga-
dos numa cesta de lixo, após cumprir a tarefa de ilustrar algum trecho da
entrevista. Finalizada a entrevista, quando o jornalista buscou recuperar
no lixo os esboços, Picasso teria fi xado um valor pelos desenhos. No lixo,
eram apenas papéis rabiscados. Na parede, para a fruição de algum olhar
A comunidade de senti- contemplante, transformavam-se em obras de arte.
dos e valores estéticos O sentido do segundo episódio, similar ao primeiro encontra-se ex-
refere-se à confl uência
da compreensão e sensi- presso no fi lme Modigliani – paixão pela vida (2004), do cineasta Mick Davis,
bilidade possível de ser quando Picasso, ao ser solicitado pelo dono do restaurante, onde comera e
detectada em determina- bebera, para assinar o desenho que o artista lhe presenteara para pagar as
das épocas, levando cria-
dores e contempladores despesas, diz: eu só estou pagando a conta e não comprando seu restaurante
(público, mecenas, etc.) a (no caso, a assinatura do artista atribuiria maior valor estético à obra).
partilhar uma certa con-
sensualidade instituída
Esta mesma refl exão pode ser estendida ao campo da arte musical,
de apreciação convergen- visto que a sociabilidade é igualmente uma condição de viabilidade para o
te das mesmas. Na época acontecer musical. A música tem uma origem particular na produção auto-
dos grandes estilos, como
o classicismo renascentis-
ral do compositor. Mantendo-se nesse estágio, como qualquer outra criação
ta, o barroco, o neoclas- com pretensões de ser obra de arte, resta incompleta. Como vimos, a efetivi-
sicismo e o romantismo, dade da arte enquanto tal se dá na contemplação. No caso da música, sua
era possível detectar esta
incompletude se supera na performance dos intérpretes (maestro, instru-
comunidade de sentidos,
o que é rompido, como mentistas e cantores) bem como na audição do público.
será visto, pelas vanguar- Portanto, a música, assim como qualquer arte conforme vimos, se faz
das artísticas no início do
século XX. na alteridade. Ela se faz na escuta do outro. Quanto a esse caráter, o pen-
sador alemão Theodor Adorno é enfático: "O sujeito que compõe não é uma
entidade individual, mas coletiva. Qualquer música, por mais individual
que o seu estilo possa ser, possui um caráter inalienável, um conteúdo co-
letivo: qualquer som sempre diz Nós" (ADORNO, 1972, p. 11).
Em síntese, a nosso ver, no enunciado subjacente ao livro de Frederico
Morais – Arte é o que eu e você chamamos arte –, esse eu e você não se reduz
a uma simples díade * stricto sensu, mas nos remete a uma comunidade de
sentidos e valores estéticos que constrói histórica e socialmente aquilo que
identifi camos como obras de arte.

14 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 2
Pressupostos para uma história das artes

A abordagem da história da arte exige a consideração de alguns pres-


supostos críticos de algumas de suas noções recorrentes:

1. A história da arte cingida à história das artes


plásticas
Autores que se ocupam da historia da arte, via de regra, costumam
apresentar uma tendência que poderíamos denominar de reducionista, ao
apresentar como foco quase exclusivo de sua abordagem, a história das
artes plásticas (arquitetura, escultura e pintura), centrada principalmente
nesta última.
Tal abordagem é compreensível, pois, desde “a aurora da humanida-
de”, tais modalidades de expressão artística possuem inúmeros registros
físicos como fi guras fi xadas em paredes e tetos de cavernas, templos, tú-
mulos e diversas outras edifi cações que nos permitem visualizar estilos,
formas e conteúdos segundo épocas e lugares, algo totalmente impensável
quando se trata, por exemplo, da música.
Considerada por muitos pensadores como a mais abstrata das lingua-
gens artísticas, a música é uma arte totalmente incorpórea, que se realiza
no tempo, ou seja, só existe enquanto se faz, sendo, portanto, totalmente
incapturável na sua imaterialidade temporal. Ao contrário das artes plásti-
cas, a arte musical, até o momento de suas primeiras notações gráfi cas na
passagem do segundo milênio cristão, só era passível de hipóteses e especu-
lações a partir de seu registro visual em algum suporte material como vasos
e túmulos, ou via a descrição literária como as normas da cultura musical
antiga, a exemplo das contidas no livro III de A República de Platão.
Mesmo delimitados por essa contingência histórica, estaremos aten-
tos para não reduzir nossa história da arte apenas ao campo das artes
plásticas. Na medida do possível, será estabelecido um constante diálogo
entre as várias linguagens, a exemplo das artes cênicas, da arte musical e
outras linguagens. Quanto à literatura, apenas em casos especiais iremos
nos referir a ela. Devido à especifi cidade de suas propriedades estéticas
com relação às demais linguagens, dela faremos apenas menções pontuais
quando necessárias para explicitar aspectos analíticos da história das de-
mais artes.
Partimos do princípio de que a arte é uma linguagem e, como tal,
ela não se reduz a um mero meio de comunicação entre os homens, mas é
principalmente um poderoso instrumento de estruturação de sentidos do
mundo. Daí a importância de se vincular a diversidade dessas linguagens
a uma perspectiva comum de busca de expressão e compreensão da vida.

HISTÓRIA DA ARTE I 15
Por isso, a despeito de suas especificidades, tais linguagens, em momentos
marcantes de sua história, chegaram a constituir grandes estilos e escolas
com afinidades conceituais estéticas, a exemplo do renascimento, do barro-
co, do neoclássico e do romantismo, como veremos mais adiante.

2. A evolução das artes


Nenhuma noção de linha evolutiva estará pressuposta na análise da
nossa história da arte. A ideia de evolução pode eventualmente conotar uma
concepção de progresso. Sua adoção no campo das artes é bastante com-
plicada. Herança da concepção iluminista dos séculos XVIII e XIX, subjaz,
a essa noção evolucionista, a ideia de um processo valorativo incontornável
em que algo se movimenta, necessariamente, de um ponto para outro que
lhe é superior: de um menor para um maior, de um algo menos qualificado
para algo melhor, de um menos para um mais.
Esse “algo mais” pode ser visto como “mais qualidade”, mais arte, forma
mais perfeita, mais desenvolvimento estético, mais finesse, recaindo assim
numa atitude valorativista mediante a qual o evoluído torna-se necessaria-
mente superior ao que lhe antecede. Podemos, por outro lado, adotar a noção
de evolução e progresso dos meios e instrumentos técnicos utilizados pelas
diversas artes, o que não necessariamente implicaria evolução e progresso
dessas mesmas artes. O sociólogo alemão Max Weber, em Os fundamentos
racionais e sociológicos da música, ao analisar o processo de racionalização
da música euro-ocidental, cujo apogeu se dá na criação da linguagem tonal,
alerta justamente para o uso crítico do conceito de progresso.

A separação plena das esferas de valor em relação ao empírico evidencia


de modo característico que o emprego de uma técnica determinada não
tão “progressiva” diz muito pouco acerca do valor estético da obra de
arte. Obras de arte com uma técnica tão “primitiva” - p.ex. quadros sem
qualquer conhecimento de perspectiva - podem ser absolutamente iguais
às obras mais perfeitas, criadas sobre a base de uma técnica mais racio-
nal, desde que se pressuponha que o querer artístico limitou-se àquelas
formações que são adequadas àquela técnica primitiva. A criação de no-
vos meios técnicos significa inicialmente apenas diferenciação crescente
e fornece apenas a possibilidade de um “enriquecimento” crescente da
arte no sentido do aumento do valor. De fato não raras vezes ela tem tido
o efeito inverso do “empobrecimento” do sentimento formal. (WEBER,
1995, p. 51, nota 51)

Ariano Suassuna costuma apresentar em suas Aulas-espetáculo, re-


produções representativas de duas épocas situadas na extremidade de uma
extensa linha de tempo - uma reprodução de pintura rupestre e de uma
pintura de Pablo Picasso -, perguntando qual seria a mais bela ou a melhor.
Os pintores da arte rupestre, do chamado período pré-histórico, que
detinham um nível de informação e técnicas infinitamente inferiores a de um
artista contemporâneo, seriam inferiores a um Picasso? Esse mesmo ques-
tionamento poderia ser aplicado às diversas linguagens artísticas existentes.
Enquanto o homem euro-ocidental permaneceu fechado em seu círculo de
ferro, atado à ideia da superioridade cultural e artística da sua civilização,
modelo e meta para as demais, o que foi reforçado pelo projeto iluminista, ele
foi incapaz de assimilar outras culturas e artes. Isso talvez explique a rea-

16 HISTÓRIA DA ARTE I
ção dos contemporâneos do espanhol Marcelino Sautuola, descobridor das
pinturas de Altamira na segunda metade do século XIX: maravilhados com
a beleza e precisão naturalista das suas formas, impossível na visão deles,
de serem criações primitivas, consideraram-nas um embuste.
Na arte musical o procedimento costuma ser o mesmo. A linguagem
tonal euro-ocidental era vista como o apanágio do desenvolvimento racional
da arte musical universal. No entanto, exposta a outras culturas musicais
consideradas, até então, inferiores ao tonalismo, a estética musical europeia
modificou-se, conforme ocorreu com o compositor francês Claude Debussy
ao se deparar com a escala de tons inteiros (hexatônica), de procedência
oriental, incorporando-a à sua obra. Além do mais, ao ver exaurida a lin-
guagem tonal cuja crise acompanha a crise da moderna razão iluminista,
o homem euro-ocidental descobre o outro, e, ao fazê-lo, o vê como grande
novidade. E essa abertura para a alteridade representou a abertura para o
múltiplo.
Algo idêntico ocorrerá também no campo das artes plásticas com Pa-
blo Picasso quando ele, conforme o próprio afirma, foi contaminado pelo
“virus” das máscaras tribais africa-
nas. Picasso sentiu-se atraído pela
arte africana, suas máscaras e es-
culturas em madeira com formas
angulosas, assimétricas, distorcidas,
não realistas, O que mais lhe cha-
mou a atenção foi sua independên-
cia com relação à arte figurativa da
tradição europeia, inspirando-lhe o
estilo cubista, consolidando, assim,
a ruptura com a hegemonia milenar
da pintura figurativa.
Para a história das artes, seria
mais apropriado se falar de transfor-
mações de gêneros e estilos. Isso não
nos impede que, por outros critérios
e parâmetros que não sejam os da
evolução valorativista, avaliemos a
qualidade e a intenção da inventiva
dos criadores de arte, caso contrá-
rio, sucumbiríamos a uma espécie
de neutralidade estética* que nos fa-
ria tornar impotentes para avaliar a
qualidade de uma obra de arte.
Máscaras Africanas

3. A história da arte ocidental tomada como a


história da arte universal
Mesmo que façamos eventualmente referência à arte de outros povos
e continentes, estaremos cingidos à história da arte ocidental, não a toman-
do como uma história universal das expressões artísticas da humanidade,
juízo recorrente em determinadas abordagens.
Somos reconhecidamente herdeiros da cultura grega, incluindo nes-
sa concepção a ciência, a filosofia e a arte, cujo vigor e perdurabilidade de

HISTÓRIA DA ARTE I 17
seus conceitos irão atravessar épocas longínquas e estender-se-ão a lugares
distantes, chegando, em certos casos, às portas do século XIX, a exemplo
do que irá ocorrer com alguns cânones de sua estética, conforme veremos
mais tarde.
A crítica à perspectiva euro-ocidental no campo da arte musical en-
contra-se expressa na apresentação de O som e o sentido, em que o autor
assevera que “habitualmente as histórias da música são histórias da zona
tonal [euro-ocidental], indo do barroco a Debussy, com breve incursão pelo
dodecafonismo...” (WISNIK, 2001, p. 10).
Não são muitas as obras voltadas para a arte que assumem delibe-
radamente os limites de suas abordagens já no seu título, a exemplo da
História da música ocidental de Grout e Palisca ou, então, em advertências
expressas já na apresentação do livro, a exemplo de Uma nova história da
música, de Otto Maria Carpeaux, que, em sua “explicação prévia” (prefácio
da 1ª edição), de imediato, nos alerta: “O presente livro trata da música
ocidental: isto é, da música europeia (inclusive naturalmente, da Europa
oriental) e das Américas” (CARPEAUX, 1958?, p.333).
O livro de Carpeaux é também apreciado por Wisnik, ao afi rmar que
aquele autor resolveu o “problema pelo avesso” ao assumir “com todas as
letras aquilo que considerou ser uma condição inevitável da nossa escuta,
a sua ocidentalidade” (WISNIK, op. cit., idem). Eis o juízo do próprio Car-
peaux, em sua explicação prévia: “em nenhuma outra civilização ocupa um
compositor a posição central de Beethoven na história da nossa civilização;
nenhuma outra civilização produziu fenômeno comparável à polifonia de
Bach” (CARPEAUX, op. cit. p.333).
Na verdade, a euro-ocidentalidade de Carpeaux tinha limites tempo-
rais, ao recusar qualquer outra experiência que escapasse do paradigma
por ele mesmo traçado para defi nir o que considerava música, dele excluin-
do por exemplo as músicas de vanguarda da sua época. Assim ele fi naliza
seu livro: “ [...] é imprevisível o futuro da música concreta e da música ele-
trônica. Só está certo que nada têm nem poderão ter em comum com aquilo
que a partir do século XIII até 1950 se chamava música. O assunto do pre-
sente livro está, portanto, encerrado” (CARPEAUX, idem, p.333)

18 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 3
Hipóteses sobre as origens das artes

Podemos nos enganar ao pensarmos os começos das coisas como gê-


nesis, pois sempre é possível encontrar algo anterior que pode desmontar
esses pretensos começos. O pensador francês Michel Foucault, inspirado
no fi lósofo Nietzsche, costumava aludir aos começos sempre cinzentos das
coisas. E como tudo que envolve o mundo das artes, o entendimento de suas
origens é seguramente um dos temas menos consensuais e mais polêmicos.
Daí adotarmos, neste capítulo, o caráter hipotético dos começos das artes,
alertados pelo pensamento de Foucault. Eis algumas hipóteses das origens
das artes:

1. A pintura mágica paleolítica


O ser humano, desde os tempos mais recuados, vivendo em hordas
nômades na busca de alimentos mediante a coleta e a caça, ao enfrentar
os desafi os da natureza, buscava inapelavelmente seu domínio, procuran-
do superá-la, mediante o empenho tenaz na luta pela sua sobrevivência e
auto-conservação. E uma forma desse domínio estaria nas representações
pictóricas de caráter mágico, feitas nas paredes de abrigos e cavernas, seu
primeiro habitat seguro, lugares que ofereciam proteção contra as intempé-
ries da natureza.
Assim, encontraríamos um dos testemunhos concretos das primeiras
experiências do fazer artístico, nas mais antigas inscrições rupestres do
período paleolítico superior (c. 40.000 a.C.) gravadas em tetos e paredes de
cavernas, utilizando-se, quando possível, das protuberâncias arredonda-
das das rochas para passar a ideia de volume ao corpo do animal pintado.
São por demais conhecidos os exemplos europeus: as cavernas de
Lascaux e Chauvet (França), e Altamira (Espanha), considerada por muitos
como a capela Sistina* da pré-história, devido à riqueza de pinturas em seu
teto. Chauvet, descoberta em 1994, apresentava um extraordinário estado
de conservação. Nesses sítios arqueológicos, encontramos um impressio-
nante acervo visual de nossos antepassados, apresentando pinturas com
inconfessável intenção de reprodução naturalista, com o máximo de realis-
mo possível.
Para historiadores como o húngaro Arnold Hauser em História social
da arte e da literatura, a expressão fi el de grandes animais selvagens - bi-
sontes, cavalos, cervos entre outros, - era resultado da observação acurada
do pintor, que também era caçador. A preocupação com a reprodução mais
fi el possível signifi caria sucesso no seu intento. Assim esse gesto da “magia
propiciatória” estava destinada a garantir o êxito do caçador.
Diferentemente da hipótese de Hauser, que atribui, como acabamos
de ver, a autoria das gravuras rupestres a caçadores-pintores, outra hipó-
tese as identifi ca como obra de xamãs que, na escuridão das cavernas e em

HISTÓRIA DA ARTE I 19
estado de transe, teriam reproduzido suas visões com os mesmos objetivos
mágicos.
Segundo o húngaro, nossos ancestrais mais recuados, ao pintar um
animal transpassado por uma flecha, procuravam o domínio real sobre
aquele objeto, sem nenhuma pretensão, ainda, de representar estética e
abstratamente a espécie pintada. Daí o predomínio da arte mágica natura-
lista vigorar no período paleolítico superior.

Pintura rupestre de Lascaux

Nossos ancestrais acreditariam, dentro da esfera mágica em que


se encontravam imersos, que o duplo pintado de um determinado animal
transpassado por uma flecha representaria sucesso na sua captura. Na
medida em que conseguiam seu intento, essa relação mágica com a pintura
naturalista sairia fortalecida. Assim os primeiros objetos de arte não pos-
suiriam uma intenção estética de adornar suas vidas, mas a intenção de
controlar as forças fossem elas naturais ou sobrenaturais, a fim de obter
êxito na caça.
Dentre as cavernas francesas, chamam-nos atenção as pinturas ru-
pestres diferenciadas de Les Trois-Frères, na região dos Pirineus. Suas pin-
turas apresentam figuras híbridas – metade humanas, metade animais,
a exemplo do bisonte-humanóide. O sentido desse hibridismo residiria na
busca mágica de poderes sobre o animal representado, na medida em que
porções de seu corpo são fundidos à figura humana do xamã em danças
ritualísticas de encantamento.

2. Arte neolítica
A pintura mais estilizada, enquan-
to representação mais abstrata do retra-
tado, seria própria do período neolítico
(c. 10.000 a.C.), quando o homem da
pré-história teria tomado gosto pela for-
ma obtida. Só a partir daí é que ele teria
se entregado a uma espécie de experiên-
cia estética. A passagem para esse perí-
odo, também conhecido como idade da
pedra polida, representou uma grande
Arte Neolítica

20 HISTÓRIA DA ARTE I
evolução tecnológica, com importantes ressonâncias para as manifestações
artísticas posteriores.
O acontecimento mais relevante foi o início de atividades mais seden-
tárias como a agricultura e a domesticação de animais em grandes mana-
das. A fi xação dos agrupamentos humanos deu-se próxima aos rios, pro-
piciando o uso de terras férteis onde eram lançadas as sementes para o
plantio. Assim, o homem descobriu a atividade sedentária da agricultura
mediante o cultivo da terra. Verifi caram-se assim os primeiros aumentos
populacionais e o desenvolvimento das primeiras instituições como a famí-
lia e a divisão social do trabalho. Sedentário e construtor de suas primeiras “Para o escultor que usa-
moradias, o homem neolítico desenvolveu a técnica de tecer panos e fabricar va o método da fôrma de
cerâmica, bem como a descoberta do fogo e de suas propriedades, dando barro, o primeiro passo
consistia em fazer uma
início ao seu uso na fusão de metais, criando utensílios, instrumentos de fôrma com esse material.
trabalho, armas e objetos de arte. Nela era despejado o me-
tal já derretido em fornos.
Tais descobertas e usos repercutiram fortemente na mente do homem O ferro fundido era dei-
neolítico, com ressonâncias no campo estético. O olhar acurado e preciso xado dentro da fôrma de
necessário para a observação precisa do caçador-coletor nômade cede lugar barro até que esfriasse.
Depois do frio, a fôrma era
para a abstração e racionalização, ainda que rudimentar, do sedentário quebrada. Obtinha-se as-
homem neolítico. O estilo naturalista anterior, típico do paleolítico superior, sim, uma escultura com
transforma-se agora num estilo mais despojado e geometrizante. a confi guração, anterior-
mente dada ao barro.
Ao invés de imitações fi eis da natureza, iremos encontrar sinais e fi gu- Já o trabalho do artista
ras que mais sugerem do que reproduzem. Pesquisadores apontam tal fenô- que usava a técnica da
meno como a grande transformação da história da arte. Mas as mudanças cera perdida começava
com a construção de um
não se cingiram apenas às formas, mas repercutiram igualmente no teor modelo em cera. Esse mo-
temático das representações, voltadas agora para a vida coletiva, a exemplo delo era revestido de barro
do movimento de danças ritualísticas associadas ao trabalho grupal de aquecido. Com o calor do
barro, a cera derretia-se
plantio e colheita. e escorria por um orifício
Aos poucos a simplifi cação pictórica mais livre, ágil e leve, vai cedendo que era propositalmen-
te deixado nas peças de
lugar a uma simples insinuação de traços sugerindo formas mais abstratas. cerâmica... Obtinha-se
O “artista” neolítico também produzia artefatos de cerâmica cuja forma, assim um objeto oco.
além de seu uso prático para o dia-a-dia, revelava uma preocupação com Depois, por esse mesmo
orifício, preenchia-se o
a formalização estética que expressasse talvez sua ideia de beleza. Além
objeto com metal fundido.
disso, serviu-se de metais como matéria prima, a exemplo do ferro e bronze, Quando este estivesse en-
para produzir esculturas mediante a utilização de técnicas de uso de fôr- durecido e frio, quebrava-
mas de barro e de cera derretida (v. Anote) se o molde de barro. Den-
tro dele estava a escultura
Eis um dos pontos mais controvertidos da explicação da origem das em metal, igual à que o
artes. Que tais imagens, bem como outras fi gurações que, dezenas de mi- artista tinha moldado em
cera”. (PROENÇA, 1989,
lênios depois, iriam receber a designação de arte, teriam intenções funcio- p.15)
nais, parece não ser objeto de grandes polêmicas. O que é alvo de contro-
vérsias refere-se à intenção mais ou menos consciente, por parte de nossos
ancestrais mais recuados no tempo, de buscarem, desde suas as primeiras
expressões, formalizações estéticas que despertassem seu interesse.
Vários historiadores e arqueólogos não deixam de eliminar a hipótese
de um objetivo estético intencional desde o início. Ao pintar nas paredes das
cavernas, já existiria uma intenção estética de encantamento com a forma,
ainda que de modo bastante embrionária. Tal intenção de produção estética
já estaria, por exemplo, igualmente manifesta nos entalhes feitos em lanças
de caça, nas armas e utensílios feitos de pedra ou de cerâmica, nos ossos
dos animais abatidos, etc.
O mesmo dar-se-ia com os corpos pintados com cores fortes, enfeita-
dos adornos e pingentes, em celebrações, cerimônias e rituais dos mortos.
Para esses estudiosos, pinturas, esculturas e gravuras seriam demonstra-

HISTÓRIA DA ARTE I 21
ções irrecusáveis de protoartistas, do desejo de expressão mediante o uso
do sentimento estético como algo constitutivo e inerente à natureza huma-
na. Quaisquer que sejam as explicações e o entendimento dessas mani-
festações estéticas, a arte preservada por milênios permitiu que as grutas
pré-históricas se transformassem nos primeiros museus da humanidade.

3. Os objetos sagrados
A experiência da inscrição rupestre, espécie de ancestralidade corres-
pondente à nossa arte pictórica pelo uso da superfície das paredes e tetos
das cavernas, teria permitido a ideia de volume, ao aproveitar, como vimos,
as saliências rochosas para expressar o volume dos corpos dos animais
pintados. Porém, uma outra modalidade será criada para realizar tal in-
tento, apresentando-se como protoforma da nossa arte escultórica, em que
o volume da obra adquire uma solidez e tridimensionalidade distinta da
bidimensionalidade das inscrições rupestres.
Um dos exemplos mais expressivos dessa protoarte pode ser encontra-
do na Vênus de Willendorf. Também conhecida como Mulher de Willendorf
(encontrada na pequena vila de Willendorf, Áustria, em 1908), trata-se de
uma escultura em miniatura (apenas 11 cm), em cor ocre vermelha, talhada
em pedra calcárea no período paleolítico superior (teria sido esculpida há
25 mil anos). Diferentemente das pinturas rupestres, a estatueta não busca
uma representação realista, mas uma transfiguração da forma feminina
idealizada. O tamanho dos braços é minimo. A cabeça é coberta por rolos
de tranças, e os seios, o ventre e o sexo são extremamente volumosos. Daí
vários estudiosos lhe atribuirem uma forte relação com a ideia de fertilida-
de, fator crucial para a sobrevivência daqueles grupos.
O título de Vênus dado a essa figuração miniaturizada - com partes
opulentas de um corpo feminino, espécie de amuleto induzindo a ideia de
fertilidade - foi igualmente aplicado a outras descobertas em várias par-
te da Europa, cujas características formais eram praticamente idênticas.
Eis alguns exemplos: Vênus de Kostienki (Rússia), de
Grimaldi e Lespugue (ambas da França), de Moravany
(Eslovênia), de Dolni Vestonice (República Tcheca), de
Savignano (Itália).
Outro objeto prefigurador da arte escultória é o
totem. Trata-se de uma das formas mais arcaicas de
expressão de sociabilidade ancestral, ao propiciar a or-
ganização dos agrupamentos humanos a partir de re-
lações de parentesco. Os membros de um dado agru-
pamento tomavam a escultura de um animal, de uma
planta ou de um determinado objeto e conferiam pode-
res mágicos, o que, ao mesmo tempo, representava um
poder articulador grupal. O totem, enquanto objeto es-
culpido para outros fins, constitui-se, ele próprio, numa
obra indutora de sensações e experiência estética, por-
tanto, um exemplo bastante recuado de obra de arte. Vênus de Willendorf

4. A voz encantatória
Enquanto protoforma da nossa arte musical, a voz encantatória teria
se apresentado de diversas maneiras. No interior do tempo primordial, para

22 HISTÓRIA DA ARTE I
muitas antigas religiões, o ruído, o som, a voz, a música, a palavra (no prin-
cípio era o Verbo ... e o Verbo era Deus) eram proferições iniciáticas do tem-
po. Paul Ricoeur, coordenador de importante pesquisa da UNESCO sobre o
tempo, ressalta o lado comum de várias culturas, onde um tempo iniciático
se dá a partir de uma fala fundante. Para ele, “a fundação das coisas [se
dava] mediante uma Palavra criadora” (RICOEUR, 1975, p. 30).
Antigas teogonias e cosmogonias (narrativas míticas para explicar a
origem dos deuses e do mundo, respectivamente) apresentam um funda-
mento musical investido de caráter mítico. Marius Schneider, autor dedi-
cado ao lastro mítico das mais diferentes tradições do universo da música
modal (fora do universo da música tonal euro-ocidental), nos emoldura toda
a dimensão do tema: “toda vez que a gênese do mundo é descrita com a
precisão desejada, um elemento acústico intervém no momento decisivo da
ação”; e “a fonte de onde emana o mundo é sempre uma fonte acústica”
(apud WISNIK, 1989: p. 33 e 34, respectivamente).
Em O Som e o sentido, Wisnik assevera que “a fonte de onde emana
o mundo é sempre uma fonte acústica” (1989, p. 34). A voz criadora surge
como um som que vem do nada, que aflora do vazio. No hinduísmo, tida
como a mais musical das religiões, atribui-se à proferição da sílaba sagrada
OUM (ou AUM) o poder de ressoar a gênese, assim como a dança e os atos
festivos, investidos de profunda sacralidade e celebrados em ritos encanta-
tórios, são vistos como momentos seminais.
Devido ao poder das palavras e da música em conferir sentido às coi-
sas, portando, dotadas de um poder sobre o mundo e os homens, a voz que
comandava certas atividades ritualizadas teria adquirido, por isso, um po-
der encantatório sagrado. É a voz do xamã ou do feiticeiro.
Outra voz que teria ganhado poderes encantatórios foi a do aedo (po-
eta-cantor que entoava suas próprias criações) e do rapsodo (poeta-cantor
que entoava obras alheias), cuja função era a narração mítica (poemas re-
ligiosos e/ou épicos), a exemplo da Ilíada e da Odisseia de Homero, cuja
sabedoria sagrada partia do seu interior, daí sua figura ser associada a um
poeta cego.
Conforme apontam algumas teorias, os sentidos da comunicação en-
tre os nossos ancestrais mais “primitivos” poderiam ter sido dados pela
estreita articulação entre o canto (melodia e ritmo) e a palavra, cujo vínculo
semântico da linguagem era dado pela íntima relação entre os dois (música
e palavra). O filósofo enciclopedista Jean Jacques Rousseau, ao fundamen-
tar sua noção de música como linguagem dos sentimentos, desenvolve uma
teoria sobre a gênese da linguagem falada em Ensaio sobre a origem das
Línguas.
Para ele, teria existido no passado mítico das sociedades, uma unida-
de entre fala e música. Essa indissolubilidade permitia ao homem em estado
natural, expressar suas paixões de modo pleno. A civilização teria rompido
tal unidade. As línguas, ab origine (em suas origens mais recuadas), eram
acentuadas musicalmente e, por um perverso efeito da civilização, ficaram
desprovidas daquela melodicidade original, tornando-se aptas apenas para
expressar uma linguagem racional.
Essa mesma unidade entre a música e a palavra como forma original
de articulação de sentidos teria sido usada no canto para o comando do
trabalho. As cantigas de trabalho, quase sempre entoadas no sistema res-
ponsorial (chamada e resposta), foram uma prática universal, encontrada
em todas as culturas onde existisse o gesto comunal para a busca da so-

HISTÓRIA DA ARTE I 23
brevivência. O canto durante o trabalho serviria, a um só tempo, para im-
primir um ritmo coletivo, assim organizando e comandando o gesto comum
para torná-lo mais efi caz, bem como para minorar a fadiga de uma jornada
de trabalho.

5. A narrativa mítica
Apresentando-se como protoforma da nossa arte literária, o mito é
um sistema de narrativas que busca explicar a origem sagrada do universo
A descrição e análise das – dos deuses, do mundo, do homem e da natureza das coisas – bem como
manifestações protoartís- as razões das origens das forças sobrenaturais e/ou naturais que atuam
ticas bem como das fases sobre o mundo e os homens.
do processo de constitui-
ção das obras de arte, par- De natureza teogônica e cosmogônica, por se tratar de objeto de cren-
tindo dos objetos úteis ao ça, dotada de uma lógica fechada numa circularidade explicativa autorefe-
momento de constituição
de objetos estéticos, são rente, não propiciando portanto o lugar para a contestação e o contraditó-
aqui apresentadas de for- rio, costuma-se colocar o mito em total oposição ao logos*, a racionalidade
ma destacada e aparente- que confere sentido objetivo ao kosmos, a boa ordem.
mente linear apenas com
o objetivo didático para Porém, autores como Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclareci-
auxiliar o entendimento mento, proferem que alguns mitos já contêm, em si mesmos, certos elemen-
deste capítulo sobre as hi-
tos racionais do logos. O maior exemplo estaria no mito da Odisseia (narra-
póteses das suas origens.
Certamente suas manifes- tiva do retorno de Ulisses à ilha de Ítaca, depois da guerra de Tróia), narrado
tações teriam sido efetua- por Homero. “Nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do en-
das de forma bem mais trelaçamento do esclarecimento [procedimento da razão] e do mito do que
complexa e articuladas
entre si. a obra homérica, o texto fundamental da civilização europeia” (ADORNO/
HORKHEIMER, 1991, p. 55), noção corroborada no comentário de Olgária
Matos sobre a obra destes dois pensadores. “Tanto a mitologia quanto o
Iluminismo fi losófi co (dos séculos XVII e XVIII) e científi co encontram suas
raízes nas mesmas necessidades básicas: sobrevivência, autoconservação e
medo” (MATOS, 1989, p.141).
Na viagem de volta, Ulisses enfrenta vários obstáculos, como a deusa
Circe, o ciclope Polifemo, o canto das sereias, o mergulho no Hades (morada
dos mortos), o Lótus. Ulisses, para conseguir manter-se vivo e consciente e,
assim, retornar são e salvo à sua pátria, usa de vários artifícios, as astú-
cias da razão. Ele é capaz de ludibriar os próprios deuses, usando de meios
adequados para alcançar seus fi ns. Segundo os autores citados, em Ulisses,
ardil e razão constituem o núcleo de sua racionalidade. A Odisseia é a via
constitutiva do sujeito racional que deve rivalizar com as manifestações ad-
versas da natureza exterior e de sua própria natureza interior, a despeito de
ser ele sempre fi sicamente mais fraco em relação às forças contra as quais
deve lutar para manter-se vivo.

6. O trabalho
Manejo concreto de busca do domínio e de transformação da natureza,
o trabalho é uma atividade própria do humano, com vistas à sua sobrevi-
vência. Graças a ele, o homem efetiva sua passagem do mundo natural para
o mundo da cultura: caça, pesca, agricultura, domesticação de animais são
atividades de trabalho para a sobrevivência.
Vejamos como o trabalho teria exercido um papel fundamental para
o surgimento de objetos protoformadores de sentidos estéticos no curso da
história das artes. Em suas origens mais recuadas, todas as atividades de
trabalho visavam ao atendimento direto do consumo corrente, sem nenhu-

24 HISTÓRIA DA ARTE I
ma possibilidade de se gerar qualquer excedente. Para os defensores da ca-
rência de intencionalidade artística em fi guras e objetos criados, nessa fase
inicial em que o fruto do trabalho não propicia sobras do consumo corrente,
dar-se-ia tão somente a criação de objetos úteis, portanto destituídos de
esteticidade, em decorrência da fi nalidade de uso imediato para a sobrevi-
vência.
Nessa fase então não existiriam ainda as condições de possibilidade
para se criar, ou, ao menos, para se perceber os objetos de arte. Com o
desenvolvimento das técnicas de trabalho, provocando o aumento da pro-
dução e da produtividade, e a possibilidade de se criar um excedente que Neutralidade estética:
transcendesse as necessidades imediatas do consumo corrente, o trabalho análogo ao conceito de
permitiria que o ser humano transcendesse igualmente os limites da natu- neutralidade científi ca,
advogando a emissão ape-
reza (interna e externa), criando uma nova realidade subjetiva: o humano nas de juízos de realida-
humanizado pelo trabalho e, depois pelos objetos estetizados (o que poste- de, a neutralidade estética
riormente denominaríamos de arte). defende a impossibilidade
de emissão de juízos de
Com tal processo, os sentidos naturais humanos, como o olhar e a valor referentes às obras
escuta, serão alvos de importantes mudanças de qualidade, e agenciadores de arte, devido ao caráter
relativo de sua natureza
de outros sentidos, agora, esteticamente operados. Aqueles sentidos natu- essencialmente cultural.
rais humanizados seriam fruto concreto do processo dialógico estabelecido
entre a natureza (o mundo natural) e o homem (o mundo da cultura). Maiêutica socrática (par-
to de ideias ou parto das
Sua humanização não seria algo dado, mas conquistado. Para sua almas): a palavra maieu-
comprovação, recorrer-se-ia ao confronto do universo humano com o mun- tiké, em grego, signifi ca
do natural animal, ao se perceber que neste último inexiste qualquer frui- parto. Criado por Sócra-
tes, o método do “parto
ção estética. Para que tal fruição ocorresse seria necessária a existência de intelectual” para procurar
uma esfera de atuação psíquica que transcendesse a necessidade imediata a verdade continha dois
de sobrevivência. momentos importantes.
No primeiro, o fi lósofo
Tal necessidade lança o mundo animal diretamente sobre o objeto, levava os seus interlocu-
sem mediação de qualquer ordem, e seus sentidos facilitam sua imersão tores a reconhecer sua
própria ignorância acer-
nele. Para a contemplação estética, é preciso algo mais do que a simples ca de um dado tema; de-
satisfação da necessidade material imediata. Para que existe fruição es- pois, Sócrates os levava a
tética, é preciso que o humano transcenda o mero reino da necessidade conceber por si mesmos,
uma nova ideia sobre o
(mundo da natureza), e desfrute das coisas do reino da liberdade (mundo
tema. Essa autorrefl e-
da cultura). Para que haja a fruição estética, é preciso que o olhar contem- xão expressa o princípio
plante esteja liberado da necessidade imperiosa de lutar exclusivamente socrático de "conhece-te
pela sua sobrevivência, que o impede de se distanciar do objeto. Lembrando a ti mesmo" (inscrição do
Epistéme: ciência para a
templo de Delfos dedica-
Marx, “a formação dos cinco sentidos humanos” é obra do desenvolvimento tradição fi losófi ca grega,
do a Apolo), levando seus
saber teórico das coisas
histórico-social da humanidade, fruto da passagem do mundo da natureza discípulos ao encontro
por meio de raciocínios e
para o mundo da cultura e, por sua vez, da autocriação do próprio homem das verdades universais
conceitos universais (i.é,
que são o caminho para a
mediante o trabalho (cf. VAZQUEZ,1978, p. 84). válidos sempre em todos os
prática do bem, da virtude
tempos e lugares) e neces-
Devido ao aumento da produtividade humana pelo processo do tra- e da beleza.
sários (do que é impossível
balho, teriam surgido objetos que, para além de seu uso para consumo ser diferente do que é; o
imediato, ganharam formas que passaram a ser apreciadas: são os objetos que não pode ser de outro
modo. A epistéme se opõe
úteis estéticos, onde o artista acrescenta uma dimensão “inútil” (estetiza- à empeiria (conhecimento
ção do objeto útil), uma dimensão “supérfl ua”: “se a arte é associada a um prático que se obtém via
objeto útil ela é nele, o supérfl uo” (COLI, id. p, 89). experiência sensível) (Cf.
CHAUÍ, 2002, p. 500).
Eis aqui um passo importante para o afl orar de uma outra possibili-
dade, a criação de objetos totalmente independentes do uso prosaico do con- Díade: termo sociológico
para indicar a unidade
sumo, i.é, a criação de objetos “inúteis” ou objetos puramente estéticos, mínima de uma relação
o que irá ocorrer, sobretudo, a partir do período renascentista. social, constituída por
duas pessoas, como mãe/
Na contemporaneidade, com o vertiginoso desenvolvimento industrial,
fi lho, marido/mulher,
possibilitou-se a criação de objetos estéticos úteis, ensejando inclusive a professor/aluno. Na teo-
criação de uma modalidade de arte contemporânea, o desenho industrial ria musical, é um acorde
formado por duas notas.

HISTÓRIA DA ARTE I 25
(design), cuja expressão maior, no século XX, foi a criação da Escola de
Bauhaus (A Construção da Casa) na Alemanha, iniciativa do arquiteto Wal-
ter Gropius durante a República de Weimar (1919-33).
Conforme enfatizamos na seção Anote, a despeito da apresentação fei-
ta de forma linear e esquemática, para efeito de um melhor entendimento
das origens das artes, importa frisar que, de fato, tal linearidade não se ve-
rifi ca. Podemos dar o exemplo de uma obra criada em pleno período da arte
clássica renascentista: o Saleiro de Francisco I (1543), peça de Benvenu-
to Cellini, que fi zera “um saleiro que em
nada se assemelha aos saleiros comuns”,
Capela Sistina: edifi ca- conforme suas próprias palavras (apud,
da no interior do Palácio COLI, op. cit., p. 89). A peça é, na ver-
do Vaticano no papado
de Sisto IV, por volta de dade, uma extraordinária escultura apre-
1480, a capela era apenas sentando os deuses do mar e da terra, Ne-
um templo retangular re- tuno e Ops, sobre um pedestal ricamente
lativamente simples des-
tinado ao culto religioso ornado. Temos aqui um lídimo exemplo
mais privado do papa e da do período renascentista, acerca de uma
alta hierarquia da Igreja. , ou, como a evidência
obra estética útil, ou, como a evidência
Tornou-se mundialmente
famosa por receber, em
da “desproporção entre a função banal e
seu teto, uma das obras o trabalho artístico [...] assinala quanto
mais sublimes da arte re- fortemente o quanto a arte signifi ca su-
nascentista: os afrescos Saleiro de Francisco I de Cellini
de Michelangelo contendo
pérfl uo” (COLI, passim).
várias passagens do Ve-
lho Testamento (o mais
célebre é o da criação do
homem, Adão recebendo a
vida pelas mãos de Deus),
tarefa encomendada pelo
papa Júlio II e realizada
entre 1508 e 1512.
Esta unidade examinou a riqueza de abordagens sobre a defi nição do
Logos: no glossário que que é arte, sobretudo sua distinção em relação às defi nições concisas das
acompanha sua Introdu-
ção à História da Filosofia chamadas “ciências duras”, bem como a natureza sociohistórica dos ob-
(p. 504), Chauí aponta vá- jetos que reconhecemos como arte e as nomeamos como tal, i.é, a obra de
rios sentidos para o verbo arte enquanto objeto construído numa rede de sociabilidade. Além disso,
légein, que dá origem ao
termo grego logos: reu- foram apresentados alguns pressupostos que criticam perspectivas impli-
nir, contar, calcular, nar- citamente contidas em textos voltados ao tema, tais como: a história da
rar, nomear claramente, arte ocidental tomada como história da arte universal; a história das artes
discutir, pensar, refl etir.
Como substantivo signi-
plásticas como paradigma praticamente exclusivo da história de todas as
fi ca palavra. Teria sido o artes; as transformações estéticas e estilísticas vistas como inelutável pro-
fi lósofo Heráclito de Éfeso cesso evolutivo das artes. Examinou-se também um conjunto de hipóteses
(540-470 a. C.) que, pela
primeira vez, teria usado
sobre as origens das artes.
o termo com o sentido de
razão (ratio, para os lati-
nos)

1. Formule sua própria concepção sobre a arte.


2. Considerando a universalidade da expressão artística, justifi que sua
presença na existência humana.
3. Considerando o caráter relativo das abordagens sobre os pressupostos
críticos em relação a determinadas perspectivas recorrentes sobre a his-
tória das artes, emita sua opinião sobre as mesmas.

26 HISTÓRIA DA ARTE I
4. Emita sua opinião sobre as hipóteses das origens das artes apre-
sentadas por esta unidade.
5. Levando em conta todo o conteúdo apresentado pela unidade, ela-
bore um pequeno texto a partir de uma questão problematizada for-
mulada por você mesmo, e procure respondê-la desenvolvendo uma
refl exão de forma bem pessoal.

Obras clássicas
• Homero: A Odisseia
• Platão: A República
• Santo Agostinho: As Confi ssões

Filmes
Guerra do fogo (2003): do diretor Jean-Jacques Annaud, baseado no rotei-
ro assinado por Anthony Burguess, autor do livro Laranja Mecânica, o fi lme
retrata um período da pré-história a partir do encontro de dois grupos de
homínidas: o primeiro, ainda pouco diferenciado dos primatas, não possui
o domínio da fala, comunicando-se mediante gestos e grunhidos, e desco-
nhece o fogo; o segundo, mais evoluído, possui comunicação e hábitos mais
complexos, inclusive a habilidade de fazer o fogo. O fi lme levanta algumas
hipóteses sobre a origem da linguagem.
2001 - Uma odisseia no espaço (1968): do diretor Stanley Kubrick, ba-
seado na obra fi ccional de Arthur Clarke. Um clássico da fi cção científi ca,
cobre uma extensíssima linha de tempo, que vai desde a “aurora da huma-
nidade”, quando surge um misterioso monolito negro emissor de estranhos
sinais de outra civilização que perturbam os homínidas da terra até quatro
milhões de anos depois no século XXI, quando uma equipe de astronautas
é enviada a Júpiter para investigar o enigmático monolito, na nave Disco-
very, totalmente controlada pelo computador HAL 9000. Durante a viagem
HAL, em pane, tenta assumir o controle da nave, eliminando um a um os
tripulantes.

ADORNO, Theodor “Réfl exions en vue d'une sociologie de la musique”. In


Musique en jeu, no.7. Tradução de Dilmar Miranda. Paris: Seuil. 1972
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. Ática. São Paulo, 1991.

HISTÓRIA DA ARTE I 27
CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música, Rio de Janeiro:
Ediouro, 1958?
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da Filosofia. São Paulo: Compa-
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COLI, Jorge, O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2009.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral, 15ª edi-
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História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e fo-
lheto). Edição: Grupo Cultural.

28 HISTÓRIA DA ARTE I
Unidade

2
A Arte na antiguidade

Objetivo:
• O objetivo desta unidade é examinar as manifestações artísticas da antiguidade
(como a arte mesopotâmica e egípcia), percorrendo seus períodos e obras mais
marcantes e que irão provocar importantes influxos, sobretudo na arte da antiga
Grécia, cujos os períodos arcaico e clássico irão fornecer padrões canônicos
constitutivos das artes ocidentais. A análise das diversas linguagens artísticas da
antiga Grécia, como a música, a escultura, a pintura, a arquitetura e a tragédia,
será articulada às principais doutrinas estéticas do pensamento filosófico da época.
Capítulo 1
A arte no antigo Oriente Médio e Próximo

As contínuas e profundas mudanças climáticas, acarretando redução


dos recursos naturais para a subsistência dos povos nômades do paleolí-
tico, a exemplo do esgotamento da caça, bem como o aumento de sua po-
pulação, foram importantes fatores para obrigá-los a buscar novos modos
de vida como o sedentarismo, encontrando condições ideais para tal nas
margens férteis dos rios.
Conforme vimos na unidade anterior, a fi xação em solos propícios
passou a ser uma necessidade imperiosa para aqueles povos, mediante o
manejo de práticas produtivas coletivas, como a agricultura e a domestica-
ção de animais, além das atividades pesqueiras, realizadas todas por um
rudimentar sistema de divisão social do trabalho baseada no critério da
idade e do sexo.
Como consequência, aos poucos, foram sendo nucleados, nas bacias
férteis de grandes rios no imediato período pós-neolítico, grandes agrupa-
mentos que se transformaram em expressivos aldeamentos urbanos, desta-
cando-se dentre esses, duas grandes primeiras civilizações, a mesopotâmi-
ca e a egípicia, cuja arte e cultura deixaram legados indeléveis à civilização
e cultura euro-ocidentais.

1. Mesopotâmia
A Mesopotâmia (em grego, “entre dois rios”) encontra-se na região sul
da bacia dos rios Tigre e Eufrates. Nela, percebem-se duas regiões bem
distintas. A porção norte, fria e montanhosa, foi ocupada por assírios e
acádios. A porção sul, formada por planícies férteis de clima quente, foi ha-
bitada pelos sumérios e babilônios. O adensamento de suas várias aldeias,
com seu consequente crescimento, propiciou a criação de cidades-estado.
Por se tratar de uma região altamente produtiva, diversos povos sentiram-
se atraídos por ela ao longo de milênios, dando origem a uma sucessão de
conquistas. E, à medida que as várias ocupações iam se sucedendo, foi-se
consolidando uma impressionante riqueza cultural, sempre acolhida pelas
novas gerações de habitantes da região.
O que talvez possa explicar esse fenômeno seria o fato dos mesopo-
tâmicos, a despeito dos dialetos de cada povo, compartilharem a mesma
escrita denominada de cuneiforme, sinais gráfi cos obtidos por meio de es-
tiletes em formato de cunha, notabilizando-se, assim, pela invenção de um
dos mais antigos sistemas de escrita que se tem notícia. Os tabletes feitos
de argila e pedra, os sinetes e cilindros-selo, além de documentar todo um
processo sofi sticado e complexo de desenvolvimento da escrita, registram
igualmente aspectos da administração palacial da região mesopotâmica,
especialmente entre os assírios e os babilônicos. Graças a essa unidade
cultural, foi-nos possível identifi car o que denominamos de civilização me-
sopotâmica, na verdade, um grande encontro de diferentes culturas em cuja

HISTÓRIA DA ARTE I 31
encruzilhada se sobrepuseram e se coesionaram durante milênios, nutrin-
do-se umas das outras.
A tradição historiográfica ocidental costuma atribuir seus começos
por volta do ano de 4.000 a. C., com a chegada dos sumérios, cuja hege-
monia, como vimos, não se tornou única ou duradoura. Assim como os
sumérios, os acadianos, a partir de 2.400 a. C. e, depois, os assírios e os
babilônios foram adotando a cultura de seus predecessores.
Em 539 a. C., a região foi conquistada pelo rei Dario I, da Pérsia,
dando início a um longo e tumultuado império que iria durar até 330 a.C.
quando Alexandre Magno, rei da Macedônia, o mais célebre conquistador
da antiguidade, unifica todos os países contíguos da região, criando um
grande império que passa a integrar o mundo helênico, conhecido como o
período do Helenismo, conforme veremos adiante.
Da civilização mesopotâmica, surgiram importantes inovações como a
moeda e a roda, o sistema aritmético sexagesimal, usado tanto para simples
contagem de tijolos como para o uso rudimentar da astronomia, o Código
de Hamurabi, o correio, a irrigação artificial, o arado, a vela, os arreios dos
animais, a metalurgia do cobre e do bronze.
A arte mesopotâmica, assim como outras da época, possuía uma pre-
ponderante intenção funcional, destinada a incumbências bem precisas
como o serviço do poder e da religião. Dessa forma, serão os reis e sacerdo-
tes que irão pautar, em proveito próprio, a produção artística.

1.1. A arquitetura
Na arquitetura da Mesopotâmia, vislumbramos os primeiros traços de
monumentalidade característica da arte da antiguidade oriental. Ela irrom-
pe dos templos e palácios, principais construções na Mesopotâmia. Os su-
mérios, excelentes construtores, fincaram os alicerces da sua arquitetura.
Por ser a região escassa em rochas pedregosas e rica em argila, o tijolo foi o
material, por excelência, de suas construções.
Dispostos compactamente, os tijolos configuravam um sólido e maciço
edifício, via de regra sem janelas. A luz e o ar provinham dos pátios inter-
nos e das aberturas feitas no teto. Ao longo do dia, gigantescas portas e os
destaques dos muros provocavam um impressionante jogo de sombra e luz.
Uma típica construção da arte arquitetônica da Mesopotâmia era o zi-
gurate, espécie de torre-santuário construído de tijolos em forma piramidal.
Vários terraços eram sobrepostos uns aos outros, formando grandes degraus,
diferenciando-se da pirâmide egípcia de formato inclinado contínuo: cada
andar possuia área menor que a plataforma inferior, podendo ser retangular,
oval ou quadrada. O episódio da Torre de Babel, narrativa bíblica do livro do
Gênesis, refere-se à edificação de um imenso zigurate, cujas ilustrações cos-
tumam representar a Torre na forma de uma gigantesca espiral.
As formas retangulares e quadradas nos remetem ao formato das pi-
râmides egípcias, nos induzindo à ideia de possíveis relações entre elas e os
zigurates. Procedendo tal hipótese permanece um grande mistério se levar-
mos em conta a existência de construções piramidais escalonadas simila-
res em regiões bastante longínquas como as do planalto andino (civilização
inca), da meseta mexicana (civilização asteca) e da Ásia. Delas sabemos que
certamente possuíam uma clara função sagrada: altares, tronos, observa-
tórios astronômicos, oratórios, câmaras funerárias, tudo funcionava para
propiciar a comunicação dos homens com as entidades divinas.

32 HISTÓRIA DA ARTE I
1. 2. A escultura
Nesta arte, manifestam-se mais nitidamente os estilos dos diversos
povos constituidores da civilização mesopotâmica: os esquemáticos relevos
sumérios, o naturalismo das placas penduradas semitas e acadianas, os
suntuosos relevos em tijolos vidrados coloridos da Babilônia. Porém, o des-
taque fi ca por conta dos assírios, indiscutíveis mestres da arte escultórica
que adornavam as paredes de seus palácios com esplêndidos relevos de te-
mática variada tais como cruéis batalhas, cenas cortesãs ou caçadas com
A lei da frontalidade
animais. Tais relevos eram dotados de realismo e grande expressividade. O corpo humano egíp-
Merece ainda menção a arte escultórica do período assírio, com seus cio era sempre plastica-
mente representado com
baixos-relevos híbridos contendo o corpo de touros com cabeças de reis bar- a fi nalidade de plasmar
bados guardando as entradas dos templos. uma imagem completa,
mediante a escolha cri-
O tijolo decorativo era usado nas entradas das cidades e salas. Era
teriosa de suas partes
igualmente comum o uso da escultura monumental representando demô- mais características, para
nios guardiães, representações com fi gura animal, bem como o uso do bai- articulá-las num todo de
xo-relevo narrativo em grande escala. As fi guras humanas obedeciam ao sentido estético que ex-
pressasse modos de vida
princípio da lei da frontalidade*, costume encontrado em várias manifes- e visões de mundo de sua
tações plásticas no Oriente Próximo Antigo, conforme veremos adiante na cultura. Mas a arte egíp-
arte egípcia. Todas essas obras careciam de autoria conhecida. cia não permitia a inven-
tiva pessoal de um estilo
individualizado. Este era
o caso da aplicação de um
2. Egito cânone pétreo: a lei da
frontalidade que foi res-
Ao contrário da Mesopotâmia, o Egito, localizado ao norte da África, peitada por mais de um
milênio, em milhares de
na grande e fértil bacia hidrográfi ca do Nilo (o país seria uma “dádiva do fi guras humanas, de for-
Nilo” na expressão do historiador Heródoto), abrigou uma cultura bastante ma anônima, sem apre-
peculiar, graças a seu relativo isolamento, mantendo pouco contato com sentar qualquer alteração.
A cabeça era sempre apre-
outras civilizações em grande parte de sua história. sentada de perfi l, salvo os
A escrita e a monumentalidade das suas edifi cações, sobretudo de olhos que eram sempre re-
presentados frontalmen-
seus templos e pirâmides, constituíram-se num fundamental legado ma- te. No torso, os ombros,
terial, revelando uma complexidade organizativa e uma riqueza de realiza- o peito e o abdômen eram
ções artístico-culturais, cujo traço mais marcante foi, sem dúvida o papel igualmente apresentados
de frente. As pernas e os
que a religião ocupava na vida do seu povo. braços sempre de perfi l,
Todo o sentido da existência, seja desta ou da vida pós-morte, en- com os dedos das mãos
contrava-se contido nas diferentes expressões de sua arte religiosa. Isso e dos pés de tamanhos
sempre idênticos, sem di-
certamente explica o fato do Egito ser visto como o país das tumbas e dos ferenciar a mão direita da
templos. O desejo de ressurreição depois da morte parecia ser uma obses- esquerda, transparecem
são entre os antigos egípcios. O Além não seria mais do que um refl exo e uma imobilidade solene.
uma extensão da vida terrena. Daí a profusão de cultos aos seus mortos e
deuses.
O morto, em sua morada eterna, necessitava de provisões como ali-
mentos, bebidas, vestimentas, ferramentas, adornos e perfumes. Era ne-
cessário manter a ordem e o equilíbrio cósmico, contando com o auxílio
divino, que, graças à mediação do Faraó, outorgava paz e abundância a
esse mundo. Suas ideias religiosas eram defi nitivamente estruturantes do
sentido de suas vidas e suas artes conferiam o sentido de triunfo sobre a
morte. Daí a relevância de nossa abordagem voltada para a arte religiosa e
funerária da civilização egípcia, compreendendo, sobretudo, a arquitetura,
a escultura, o relevo e a pintura como linguagens imprescindíveis para o
entendimento da arte egípcia antiga. A lei da frontalidade: pin-
tura na câmara tumular
de Nefertari, mulher de
Ramses II.

HISTÓRIA DA ARTE I 33
2.1. A arquitetura
2.1.1. Os templos
O templo egípcio, ao contrário do uso corrente feito pelas religiões em
geral para o encontro de fiéis, era a morada da divindade, que possuía em seu
interior sua representação escultórica, alvo de um rito diário: lavada, vestida,
alimentada e objeto de oferendas, a divindade, em troca, concedia paz, pros-
peridade e abundância nas colheitas propiciadas pelas boas cheias do Nilo.
Os templos do Antigo Império (3.200 a 2.300 a.C) eram, originaria-
mente, simples e pobres, feitos de materiais perecíveis, deles restando pou-
cos vestígios arqueológicos. Não são também numerosos os do Médio Impé-
rio (2.000 a 1750 a.C.). No Novo Império (1580 a 1085 a.C.), com os faraós
reiniciando suas edificações, o Egito irá conhecer o apogeu de seu poderio
e o esplendor da arquitetura de seus templos, com o uso geral da pedra e a
monumentalidade característica de outras edificações como as pirâmides e
as estátuas. O país inteiro será inundado por templos e santuários fazendo
com que o povo convivesse à sombra de colossais construções que procla-
mavam ostensivamente a aliança entre o faraó e os deuses.
Muitas das edificações funerárias
do período conseguem integrar a impo-
nência da obra em si à sublimidade na-
tural da paisagem rochosa das encostas
egípcias, como o túmulo da rainha Hat-
shepsut, que reinou entre 1511 a 1480
a.C. Majestoso e harmonioso, o templo se
integra ao cenário rochoso que lhe serve
de fundo, constituindo um só ente esté-
tico em que o belo natural e o belo hu-
Templo de Hatshepsut mano se fundem numa só obra de arte
arquitetônica.
Dentre as magnificentes construções do período, os templos de Car-
nac e Luxor, dedicados ao deus Amon, são os que nos chegam em melhor
estado de conservação. Sua novidade reside no novo tipo de coluna, inspi-
rada em motivos retirados da natureza, como o papiro e a flor de lótus, a
exemplo da colunata do templo de Luxor, mandado construir por Amenófis
III (entre o século XIV e XII a.C.), composta de sete pares de colunas, com
cerca de 16 m de altura, cujo capitel (extremidade superior de uma coluna,
pilar ou pilastra) representa a flor de lótus.
Alcançada a maturidade de sua criação, os templos ganham novas
configurações. Primeiramente, é erguida uma sólida muralha entre o es-
paço sagrado interno e o mundo externo. No interior do recinto sagrado,
encontram-se os pilares, constituindo seu elemento mais imponente, diante
dos quais se erguem grandes obeliscos honoríficos. Segue um pátio com
pórticos. Por último, rodeado pela câmara do tesouro, pela biblioteca e pela
sala das oferendas, encontra-se o santuário central, uma pequena sala es-
cura onde reside a divindade.
A planta do templo obedece a certos recursos construtivos, como o
teto rebaixado articulado à elevação gradual do nível do solo para, assim,
dar a sensação de fechamento e convergência para a morada do deus ho-
menageado. O mesmo efeito é produzido com a redução gradual da lumino-
sidade externa, que vai da ofuscante luz que brilha absoluta na entrada à
total escuridão que reina no local mais sagrado do templo.

34 HISTÓRIA DA ARTE I
2.1.2. As mastabas
Nos primórdios do Antigo Império, as tumbas eram câmaras mortu-
árias revestidas com tijolos, construídas em grandes fossos escavados nos
terrenos arenosos do deserto e cobertas com simples construções retan-
gulares. Esse tipo de edificação recebeu o nome de mastaba (literalmente
banco, derivado do árabe), por sua aparência lembrar um grande banco de
pedra. Durante todo aquele império, essa forma foi usada nas sepulturas
das pessoas não pertencentes à classe régia, com a pretensão de reproduzir
a moradia terrestre do morto, reproduzindo o seu aspecto de morada, pois
a mastaba era, ao mesmo tempo, lugar de culto e uma morada para a eter-
nidade.

2.1.3. A pirâmide: a escalonada e a clássica


As pirâmides, certamente o símbolo maior da arquitetura do antigo
Egito, antes do seu formato de laterais continuamente inclinadas da base
ao seu vértice, partiram do formato da pirâmide escalonada de Saqqara,
a tumba do faraó Djoser, construída por volta de 2.800 a. C. Trata-se da
primeira edificação egípcia em verdadeira escala monumental, totalmente
construída em pedra, com seis enormes degraus. Caso excepcional, conhe-
cemos o nome do autor: o arquiteto Imhotep, chanceler do faraó Djoser.
Atingindo uma altura de 62,5 metros, ela se ergue no interior de um recinto
retangular que mede 278 por 545 metros, rodeado por uma grossa muralha
de pedra.
A partir da IV dinastia do Antigo Império, a pirâmide ganha seu for-
mato pelo qual passou a ser mundialmente conhecida, uma gigantesca e
suntuosa tumba régia cujo sepulcro era colocado no interior da construção,
buscando assim proclamar a perfeita união do faraó com o símbolo místico
do sol.
Entretanto, dentre todas
as pirâmides, destacam-se as
três mais célebres localizadas
no deserto de Gizé: as Pirâmi-
des de Quéops, Quéfren e Mi-
querinos. A Pirâmide de Qué-
ops é a maior delas, colossal
monumento de 230 metros de
lado e 146 de altura, com uma
superfície de 54.300 metros
quadrados. Foi construída
pelo impressionante ajuste de
imensos e pesados blocos de
pedra, durante um período de
mais de vinte anos. A Pirâmi- As três pirâmides do deserto de Gizé
de de Quéfren ainda conserva
o revestimento original de calcário na sua cúspide (ponta alongada em seu
vértice). A Pirâmide de Miquerinos, menor em dimensão, possui duas câma-
ras funerárias e três pirâmides subsidiárias.
Junto à pirâmide de Quéfren, encontra-se a célebre esfinge* cujo rosto
é o do próprio faraó Quéfren, obra gigantesca com 20 metros de altura e 74
metros de cumprimento, em forma de leão andrógino; a ação do vento e do
tempo, ao longo dos séculos, lhe conferiu uma aura de magia e mistério.

HISTÓRIA DA ARTE I 35
O costume do Antigo Império de sepultar os reis nos templos funerá-
rios situados no interior das pirâmides, como lugar por excelência de culto
ao faraó que ali repousa, é mantido no império subsequente, embora as
pirâmides passem a ser menores e mais baixas.

2.2. A escultura
Dentro do princípio de uma arte voltada para a cultura da morte e da
imortalidade do espírito, a escultura cumpria uma função muito precisa en-
tre os egípcios. Por acreditar convictamente numa vida eterna pós-morte re-
gida pelos deuses e pela figura divina do faraó, e para que o morto pudesse
viver bem no outro mundo, era imprescindível que seu corpo, morada de seu
Ka, se conservasse intacto. Portanto, mumificavam os cadáveres mediante
uma técnica de embalsamento bastante sofisticada e desenvolvida.

Máscara funerária de Busto de Nerfertiti


Tutankhamon

A finalidade precípua das estátuas dos particulares (não pertencentes


aos estratos régios) era a de substituir o morto e receber as oferendas. As
esculturas representavam a morada do Ka, espécie do duplo do corpo ou
energia vital do indivíduo, criado junto com a criação do corpo físico. Por
isso, além da mumificação do corpo físico, as estátuas exerciam um papel
fundamental como representação do Ka. Depois da morte, o Ka habitava
no corpo mumificado ou nas estátuas que o representavam, necessitando
de comida e de bebida para continuar a existir, sendo por isso necessário
que os vivos realizassem oferendas.
Contando com a perícia e o esforço de uma legião anônima de artesãos
e artífices, era lavrada uma imagem idealizada da pessoa falecida, ainda
jovem, viçosa e vigorosa, com a coluna reta e o olhar fixo para frente, sem
qualquer sinal de emoção (estilo que irá influenciar as primeiras esculturas
gregas – os kouroi, conforme veremos adiante), e com a inscrição do seu
nome e títulos, o que dotava a estátua de uma personalidade concreta.

36 HISTÓRIA DA ARTE I
Com o esplendor do Novo Império, época de maior contato com outras
culturas, inaugura-se um tempo de unidade que se manifesta na produção
artística, na qual se observam, com nitidez, os infl uxos externos como con-
sequência da grande expansão que teve lugar durante o período.
Será, sobretudo, nos templos que verifi caremos a manifestação de
uma grande inovação: a estatuária colossal com gigantescas esculturas do
rei o qual pode aparecer de pé, sentado ou em forma de múmia. O monarca,
mediante sua estátua objeto de adoração, se apresenta como mediador entre
o homem e a divindade e cujo poder desmesurado se percebe em seu des-
comunal tamanho. Essas estátuas colossais e as esfi nges com traços reais,
pura encarnação da divindade para o homem comum, de quem recebiam
preces e oferendas, eram colocadas nos antepátios externos aos templos.
A obra mais grandiosa obra de Ramsés II (século XII a.C.), o templo
de Abu-Simbell, é um exemplar paradigmático da arte escultórica colossal
do fi nal do Novo Império: na parte externa da entrada do templo, quatro
fi guras rígidas e solenemente sentadas, com mais de 20 m de altura, repre-
sentam o poder do faraó.
No Antigo Império, encontramos um rico repertório de diferentes posi-
ções e tipos de estatuária. Algumas de pé, outras com os homens na atitude
de caminhar, enquanto as mulheres mantêm as pernas juntas, com os bra-
ços colocados habitualmente ao longo do corpo, embora às vezes um braço
se dobre sobre o peito. Também são frequentes as estátuas em posição sen- Os hipogeus
tada sobre um bloco, com os braços dobrados repousando nas pernas. São Por ocasião do Novo Im-
pério, a tumba real sofreu
desse período as estátuas de escribas, sentados sobre uma esteira ou no uma modifi cação radi-
chão com as pernas cruzadas, lendo um rolo de papiro cal: as sepulturas régias
passaram a ser túneis
As estátuas podem ser individuais, mas também podem formar gru- escavados na rocha das
pos ou casais que podem estar acompanhados dos fi lhos. No Médio Impé- encostas do deserto do
rio, a estatuária privada deixa de fi car fechada nas tumbas, destinando-se Vale dos Reis, próximo a
Tebas. A despeito da ine-
também aos templos xistência de duas tumbas
Durante o Novo Império, a escultura dos particulares procede dos iguais, elas apresentavam
traços comuns, a exemplo
templos, das casas e das tumbas, com imagens, salvo raras exceções, afas- da escadaria, um corre-
tadas da fi delidade aos retratados, pois adaptadas ao ideal do momento, dor descendente abrindo
geralmente infl uenciadas pelas estátuas régias que mostram as pessoas para diversas câmaras e,
fi nalmente, a câmara do
na fl or da idade, embelezados pela moda e com os símbolos de sua posição
sepultamento contendo
social bem visíveis. o sarcófago real. No inte-
rior da montanha tebana
alguns hipogeus possuí-
am uma profundidade de
2.3. O artesanato mobiliário mais de cem metros.
O repertório artesanal, a julgar pelo mobiliário encontrado nas tum-
A esfinge
bas, apresentava grande riqueza de peças raras: camas de madeiras nobres O enigma da esfi nge – in-
marcheteadas com outras madeiras, marfi m e apliques de metais preciosos. corporado pelos autores
Nas luxuosas cabeceiras e dosséis, encontravam-se, penduradas, fi nas cor- da tragédia ática, como
Sófocles, para expressar a
tinas como mosquiteiros, macios colchões vegetais com lençóis e colchas de dor do herói trágico Édipo
puro linho. Foram encontradas, inclusive, camas dobráveis para viagem. que mata seu próprio pai e
casa com sua própria mãe
Palanquins e cadeiras portáteis eram utilizados em percursos mais –, representa um fl agrante
longos. Para o ar livre eram utilizados guarda-sóis e tendas. Um grande testemunho do infl uxo da
número de poltronas, cadeiras, banquetas e tamboretes era encontrado nos cultura egípcia no mundo
das artes e da cultura gre-
quartos e salões. Na tumba de Kha, dignitário da XVIII Dinastia, foi encon- gas. Na narrativa mítica
trado um assento com um buraco central para seu uso como vaso sanitá- de Édipo, ele se vê frente
rio. A variada louçaria consistia em peças esculpidas em pedras, outras de a frente com a esfi nge que
lhe desafi a com o seguinte
cerâmica decorada e algumas de ouro. enigma: decifra-me ou te
devoro.

HISTÓRIA DA ARTE I 37
2.4. O relevo e a pintura
A cultura egípcia foi uma das mais antigas a produzir um conjunto
considerável de obras da arte da pintura, desenvolvido ao longo de três mi-
lênios e cuja tradição foi marcada por rígidas convenções iconográfi cas que
regulavam o uso de imagens. Por todos meios e formas, a arte do relevo e da
pintura desempenhava uma função mágica, visto que as imagens do faraó
retratado deveriam proporcionar um modo de vida pós-morte similar à des-
frutada em vida e lhe assegurar seu sustento.
A partir do Novo Império, a pintura passa a ser a arte preferida para o
interior. Já o relevo refundido é reservado para os exteriores, mais resistente
à exposição dos rigores do tempo.
O Escriba sentado
“Escultura em pedra cal- Os templos funerários das pirâmides eram adornados com cenas va-
cária pintada, com as se- riadas, como a oferenda de mantimentos para manter o faraó na vida pós-
guintes dimensões: 53,7
cm de altura, 44 cm de morte, cenas de guerra e de caça ou o faraó em companhia dos deuses. A
largura, 35 cm de profun- vitória sobre o inimigo era tema recorrente, simbolizando a supremacia do
didade. Foi encontrada faraó, como garantidor da ordem, da paz e da prosperidade.
num sepulcro de um ce-
mitério do Antigo Império No Novo Império, as tumbas são profusamente ornadas com pintu-
em Sacará [ou Saqqara, ras e relevos. O rei, acompanhado pelos deuses, é tema próprio dos pilares
mesmo local da pirâmi-
e da sala de espera. As câmaras funerárias são adornadas com imagens
de escalonada do faraó
Djoser]. Trata-se de uma e hieróglifos copiados, em folhas de papiros, dos textos escritos nos Livros
obra de autoria desconhe- do lnfra-mundo e concebidos especialmente para decorar as tumbas reais.
cida, realizada entre 2620 Ao incluir esses textos em seus sepulcros, os faraós se uniam ao ciclo
e 2350 a.C. e que retrata,
provavelmente, um es- solar para dele renascer. Surgem também cenas de batalhas, totalmente
criba ou um príncipe. Na estranhas no Antigo Império. Cenas de jogo e de dança adquirem maior
atualidade encontra-se complexidade.
no museu do Louvre, em
Paris.
Os escribas eram impor-
tantes funcionários do 2.5. O status de escriba
vasto império faraônico
porque dominavam a es- A atividade que gozava de maior pres-
crita e a leitura. Eram, tígio na alta burocracia da corte era a de
então, encarregados de
transmitir as determina- escriba, por pertencer à esfera próxima dos
ções do faraó para as mais dirigentes. O monopólio da escrita conferia
distantes regiões. Além status a quem dela usava, convertendo-o as-
disso, podiam trabalhar
na administração militar
sim em fonte de autoridade. Altos burocratas
ou com os sacerdotes. De costumavam relatar, em suas biografi as, a
certa forma contribuíram trajetória nas carreiras administrativas com
para garantir a unidade
do Egito na Antiguidade.
sucessivas ascensões devido à sua condição
A dúvida quanto à identi- de escriba, o que fazia deles serem bem pró-
fi cação da escultura com ximos do faraó e de outras esferas de poder.
um escriba é motivada
Num mundo ágrafo, o homem que escrevia,
pela qualidade da obra.
Os cuidados com os deta- lia e contava tinha a chave do poder. Os es-
lhes não eram comumen- cribas no Egito pertenciam às minorias diri-
te dedicados pelos artistas gentes. Altos personagens da corte incluíam
na representação dos fun- O Escriba sentado (Museu do
cionários da burocracia o título de escriba entre os muitos outros de
Louvre)
do Império. Assim, pode sua carreira.
ser a fi gura de um prín-
cipe em alguma atitude
própria da sua condição”.
Autoria de Graça Proença,
Editora Ática, 2001. Site:
3. Creta
www. aticaeducacional. Para melhor entender o legado cultural que a Grécia antiga nos dei-
com.br/imagens/comple- xou, devemos partir da história dos povos que gravitavam em torno do mar
mentos/hda/img/ima-
gem26.swf Egeu, dando especial atenção para sua pujante produção mercantil articu-
lada à antiga estrutura escravocrata. A região em torno do Mar Egeu com-

38 HISTÓRIA DA ARTE I
preendia uma vasta área entre a península balcânica (abarcada pela Grécia
continental e o Peloponeso) e a Ásia Menor. Foram várias as populações que
iriam formar um povo que passou a ser chamado de grego, designação dada
pelos romanos. Contudo, os próprios gregos se autodesignavam de helenos.
Trata-se de um contexto crucial para a compreensão da civilização
grega, do seu pensamento, cultura e vida material, deixando-nos um im-
pressionante sistema de artes, mas, sobretudo, a invenção, por volta do
século VII a. C., de uma forma inusitada de pensar: a filosofia.
Os primeiros registros da região partem de um período pré-helênico,
em torno do terceiro milênio a.C. (a história da ilha de Creta), com referên-
cias à sua esplêndida e rica cultura também conhecida como minóica (ter-
mo atribuido ao arqueólogo inglês Arthur Evans e originário do rei mítico
Minos), cujo apogeu se dá entre 1700 e 1450 a.C.
Os minóicos – graças à sua posição privilegiada como habitantes da
maior ilha do Mediterrâneo, no mar Egeu, cercada por vários povos do con-
tinente e exercendo um poder na região baseado no comércio marítimo (tha-
lassocracia, poder do mar em grego) –, desenvolveram uma impressionante
civilização urbana, cujo modo de vida girava em torno de grandes palácios
que eram, a um só tempo, centros administrativos, econômicos, religiosos
e políticos. O palácio de Knossos se destacou como o mais importante de
todos. Estudos de suas ruínas revelam que ele foi construído entre 1.700 e
1.500 a.C. e sua planta era bem evoluída, possuindo um pátio central cer-
cado por muitas salas, algumas delas agrupadas e ligadas umas às outras
numa ordem bem planejada.
De um modo geral, esses imensos palácios, com evidentes influxos da
arquitetura egípcia e de outras civilizações orientais, possuíam um pátio
interno, dezenas de aposentos, corredores e enormes depósitos. Seu refi-
namento e luxo levavam-nos a contar com banheiros, privadas e bueiros.
Além das colunas em policromia de tons vivos e contrastantes, as paredes,
os tetos e pisos eram ricamente decorados com vistosos afrescos, um dos
traços mais notáveis da arte cretense.
De característica marcadamente naturalista, nela se observam nu-
merosas representações de plantas e animais, com uma acentuada paixão
pelo movimento rítmico e ondulante. As figuras humanas são igualmente
constantes com patente intenção ritualística.
Enquanto Creta exerceu sua thalassocracia, a arte e cultura minóica
se espalharam pelas ilhas do Mediterrâneo e pelos povos do continente,
inclusive pela Grécia. Entretanto, o sistema palaciano minóico começa a de-
cair por volta de 1450 a.C. Depois de um breve período de pálida sobrevida
de seus tempos áureos, o palácio Knossos é incendiado em 1375 a. C. Inva-
dida e dominada pelos aqueus, povo vindo da Grécia, a civilização minóica
perde definitivamente sua posição de destaque no mar Egeu.
Com características de uma gente aguerrida, os aqueus, povo de fala
grega, chegaram ao continente cerca de sete séculos antes (por volta de
2000 a.C.), constituindo-se no curso da história, na poderosa civilização
micênica, dando claros indícios de uma intensa influência mínóica. A des-
peito disso, a arte micênica apresentou traços próprios. Pintavam seus pa-
lácios com motivos distintos daqueles escolhidos pelos artistas cretenses:
predominam cenas de guerra e de caça, bem como desfiles de carros.
Uma de suas obras de maior destaque – devido à sua monumentalida-
de, força e agressividade –, é o Portal dos Leões, construído por volta 1250
a.C. Nessa escultura colocada em cima da entrada principal da muralha

HISTÓRIA DA ARTE I 39
feita de imensos blocos de pedra, dois enormes leões parecem guardar a
cidade de Micenas.
A partir do século XII a.C., hordas dóricas invadem a Grécia conti-
nental e a larga península do Peloponeso além das ilhas do mar Egeu. Os
aqueus se vêem forçados a migrar para o leste, para a Ásia Menor, onde
fundam colônias solidamente estruturadas, dissolvendo a sociedade ali es-
tabelecida e substituindo a organização social agrária, patriarcal e tribal
por uma poderosa sociedade mercantil e artesanal baseada no comércio
marítimo, em intenso contato com outros povos do Oriente.
“Atualmente, grande parte Nas novas terras, os aqueus instituem o comércio baseado na moeda,
dos pesquisadores acredi- importante passo para a formulação do pensamento abstrato, criam o ca-
ta que foram os micênicos
que fi zeram a guerra con- lendário e desenvolvem novas técnicas de cultivo. Dessa forma, surge uma
tra Tróia, da qual temos rica classe de comerciantes que irá competir com a velha e atrasada aristo-
conhecimento por meio cracia agrária, conseguindo superá-la. São alterações profundas e irrever-
dos poemas homéricos.
Os locais descritos por
síveis que conduzem a sociedade grega a se tornar urbana e a adotar uma
Homero em seus versos cultura laicizada, ao contrário do pensamento mítico-religioso que predo-
podem ser identifi cados minava até então. As formulações anteriores vão cedendo lugar a explica-
com aqueles em que os
arqueólogos modernos en-
ções de outro tipo e natureza: explicações racionais e abstratas que serão
contraram o maior núme- denominadas filosofia.
ro de vestígios da civiliza- A Grécia (Hélade para os romanos) marcou esse período, no sentido de
ção micênica. Além disso,
os objetos da ourivesaria ter experenciado as primeiras tentativas de explicações abstratas e racio-
micênica encontram pa- nais, na medida em que defi niu um conteúdo bastante preciso: uma cosmo-
ralelo nos objetos descri- logia, ou seja, uma explicação racional sobre a origem e a ordem do mundo,
tos pelo poeta na Ilíada
e Odisseia. É o caso de o cosmos, afastando-se, pois, das explicações míticas do período anterior,
uma expressiva máscara conforme veremos mais adiante.
funerária de um príncipe
micênico, encontrada por
Seus historiadores afi rmam que essa mudança foi possível graças à pros-
Schliemann, que a consi- peridade econômica das colônias gregas do leste (Ásia Menor) e do oeste (Mag-
derou como sendo de Aga- na Grécia, ao sul da Itália) e à estrutura escravocrata que liberou das funções
menon, rei de Micenas,
que participou da guer-
de sobrevivência, setores das classes dominantes e possuidoras da riqueza.
ra de Tróia” (PROENÇA, O estímulo à fi losofi a e às artes, grande legado da civilização da Grécia
1989, p. 26).
arcaica e clássica, teria partido do poder e riqueza dos comerciantes obtidos,
sobretudo, no período micênico, tendo compensado, assim, a falta de sangue
nobre da aristocracia agrária, com o próprio prestígio desses comerciantes,
conquistado pelo patrocínio às artes e à vida intelectual. Temos, assim, na
Antiguidade, uma antecipação, por vários séculos, do mecenato que caracte-
rizou o período de opulência da sociedade renascentista.
A ideia do trabalho como desonra aparece na sociedade grega, cujos
fi lósofos não cansam de proclamar o otium cum dignitate para ter-se uma
vida livre e feliz, para cultuar-se dentre outras coisas nobres, a fi losofi a, as
artes e as letras e para ter-se o cuidado com o vigor e a beleza do corpo
pela ginástica, dança e arte militar. O trabalho cabia aos escravos, como
pena advinda de sua condição de escravo, e aos homens livres pobres, como
desonra. Para Aristóteles, ação e ócio eram necessários, mas o ócio era
superior à ação, em razão do qual existia. Afi nal, para o fi lósofo, o ócio era
nobre por ser a fi nalidade da ação.
A palavra scholé signifi ca “tempo livre” ou “lazer”, daí derivando esco-
la. Para os antigos gregos, só era possível a uma pessoa se ocupar da ativi-
dade do conhecimento, se ela estivesse liberada da obrigação do trabalho.
Assim, o otium cum dignitate denotava o sentido de se dedicar aos estudos
com dignidade. Aos fi lósofos cabia a biós theoretikós (a vida contemplativa)
em oposição à vida ativa ou prática, onde o saber autotélico era visto como
algo inservível, ou melhor, um saber que servia apenas para si próprio.

40 HISTÓRIA DA ARTE I
Capítulo 2
Da narrativa mítica à arte do período arcaico

Para a análise da Antiguidade grega, a historiografi a tradicional cos-


tuma destacar quatro grandes períodos: homérico, também conhecido como
período mítico (século XII ao século VIII a.C.), arcaico (séculos VII e VI a.C.),
clássico (séculos V e IV a.C.) e helenístico (século IV ao século lI a.C.)
O impressionante legado artístico da antiga Grécia compreende esses
quatro períodos, cada qual com suas especifi cidades estilísticas. Porém, a
análise das diferentes linguagens e estilos necessita, muitas vezes, que não
seja feita de forma linear e estanque, usando, para isso, a recorrência de
modelos de obras de arte de épocas diferentes por meio de recuos, avanços
e abordagens simultâneas desses diferentes períodos.

1. Período homérico: o mito estrutura o sentido do


mundo
Por um largo período, a sociedade grega era constituída por um con-
junto de tribos cujo rei-chefe era escolhido entre os chefes das várias tri-
bos, elevado a tal posição por apresentar a melhor genealogia. As decisões
econômicas, políticas e militares eram tomadas pelos conselhos compostos
pelos chefes das tribos cujas decisões mais importantes deviam ainda ser
submetidas a uma assembleia que não contava com a efetiva participação
do povo que a elas comparecia. Na verdade, seus membros apenas referen-
davam as decisões régias previamente tomadas
Entre os séculos IX e VIII a.C. afl orou a pólis, marcante invenção da
civilização grega, que a fará se notabilizar de todas as demais. Na verdade,
as póleis, ou cidades-Estado, eram constituídas pela cidade em si e pelo seu
entorno, com as terras que garantiam a produção de alimentos. Tratava-se
de unidades econômicas, políticas e culturais independentes entre si. Essa
nova forma de organização política, além das transformações na vida social
dos gregos, provocou igualmente alterações fundamentais em suas menta-
lidades, hábitos e ideias.
Dentre elas podemos destacar duas. A primeira diz respeito ao res-
surgimento da escrita, por volta do século IX a.C. Diferentemente da sua
função na civilização micênica, quando seu uso se restringia aos escribas e
ao aparelho administrativo, a escrita ressurge com uma função muito mais
pública, ao divulgar aspectos da vida social e política dos gregos. Tornara-
se pública por atender ao interesse comum, garantindo o que hoje denomi-
namos de processos transparentes e abertos, ao contrário dos interesses
exclusivos da estrutura cortesã à qual atendia anteriormente.
A outra alteração refere-se ao papel do rei que deixava de ter o coman-
do absoluto das decisões de natureza política, religiosa, econômica ou mili-
tar. Elas passaram para a alçada absolutamente individual dos cidadãos da
pólis, após um processo de ampla discussão, tendo que contar depois com

HISTÓRIA DA ARTE I 41
o apoio dos conselhos e da assembleia. Assim, o destino da pólis passou a
depender de decisões humanas e laicizadas, fruto de uma interlocução co-
letiva de cidadãos e não de um único Rei divino.
Com tais procedimentos, estabeleceram-se as condições para os con-
ceitos de cidadania e democracia, fundamentais para o mundo grego. O
caráter humano e público das decisões, contudo só se desenvolveu plena-
mente bem mais tarde, pois, durante certo tempo as leis eram promulgadas
e exercidas por aqueles que conheciam a tradição oral e os mitos, mediante
sua interpretação.
Homero e Hesíodo são dois autores de fundamental importância para
o entendimento desse período. Obras como a Ilíada e a Odisseia de Homero
e Os trabalhos e os dias e Teogonia, de Hesíodo, além de constituírem docu-
mentos fundamentais para a compreensão histórica do período, constituem
igualmente fontes preciosas para desvendar as características do pensa-
mento então produzido.
Homero teria vivido no século IX a.C na Jônia. Seus poemas épicos
cobrem dois momentos distintos: a Ilíada é uma narrativa de guerra que
descreve o comportamento dos heróis da guerra de Tróia, que teria ocorrido
entre 1280 e1180 a.C.; a Odisseia narra uma época de paz.
A figura de Homero está revestida de uma aura de mistério. Teria ele
realmente existido? Ou teria existido mais de um Homero? Ou ele seria uma
invenção da alma artística grega? Se existiu, era realmente cego? Ou tal
condição lhe conferia um ar a mais de mistério e magia, para quem a única
visão necessária seria apenas a do interior? Os dois poemas seriam fruto de
uma compilação e teriam sido redigidos com um século de diferença, após
terem sido transmitidos pela tradição oral?
A Ilíada apresenta feitos e fatos com características da civilização mi-
cênica, como se viu. No entanto, é difícil isolar tais fatos de outros que se
situaram em épocas posteriores, como a da Odisseia provavelmente.
Hesíodo nasceu na Beócia, vivendo em fins do século VIII a.C. e início
do seguinte. Em seu poema mais conhecido, a Teogonia, Hesíodo narra a
genealogia dos deuses e do mundo. Em Os trabalhos e os dias narra a vida
no campo vinculada ao trabalho.
São patentes as diferenças entre os dois poetas, que nasceram em
épocas e lugares distintos. A obra homérica é marcada pela narrativa da
vida e do mundo, a partir de uma perspectiva aristocrática e voltada para
a nobreza. Hesíodo, ao contrário, coloca-se sempre na perspectiva das ca-
madas populares, sobretudo a dos camponeses. Homero associava a noção
de homem às virtudes próprias da aristocracia. Já a concepção de virtude
para Hesíodo estava associada ao trabalho. Apesar das diferenças, ambos
viveram um mesmo momento histórico, época em que os gregos se emanci-
pavam de arraigadas tradições e preparavam um novo modo de viver.
O que mais ressalta é a afinidade das narrativas dos dois no que se
refere à relação entre o divino e o humano. A relação deuses-homem, ex-
plicitada por ambos, possui uma dupla característica. Em primeiro lugar,
o homem é valorizado na medida em que os próprios deuses eram huma-
nizados com aparência e sentimentos antropomorfizados. Os deuses eram,
como qualquer humano, portadores de sentimentos como amor, ódio, pena,
vingança, que poderiam ser dirigidos tanto a outros seres divinos como
aos próprios humanos mortais. Em segundo lugar, ambos os poetas esta-
beleram uma dependência dos homens em relação aos deuses, vistos como
seres imortais e com amplos poderes para interferir em suas vidas. Se isso

42 HISTÓRIA DA ARTE I
submetia os homens às divindades, igualmente estruturava sentido às suas
vidas, na medida em que lhe conferiam uma razão de ser.
Outro importante aspecto nas narrativas míticas de ambos, no que
se refere à relação deuses-homem, situava-se na busca da compreensão do
cosmos e dos fenômenos da natureza. Se o cosmos é a boa ordem, busca-
ram igualmente uma organização do universo divino mediante a ordenação
dos deuses, cuja existência passava a ser vista dentro de uma certa ordem
hierárquica que, inclusive limitava seus poderes sobre a vida humana.
Ao contrário da tradição judaico-cristã que concebe o mundo criado
do nada, a tradição teogônica e cosmogônica grega buscava descrever uma
genealogia dos deuses, bem como a existência do cosmos, a boa ordem, a
partir da ordenação do caos, estado primeiro de um universo que sempre
existira antes de se tornar cosmos. A preocupação com a origem das coisas
que sempre partia de algo existente (para o grego era inconcebível a ideia
de algo ser gerado do nada, como o mundo criado por Deus conforme a
narrativa judaico-cristã), era abordada pelo mito e por meio de um estilo e
modo que lhe são bem próprios. Vejamos uma passagem típica retirada de
Hesíodo:

Em verdade, no princípio houve Caos, mas depois veio Gaia (Terra) de


amplos seios, base segura para sempre oferecida a todos os seres vivos,
[para todos os Imortais, donos dos cimos do Olimpo nevado, e o Tártaro
(Abismo) brumoso, no fundo da Terra de grandes sulcos] e Eros, o mais
belo entre os deuses imortais, o persuasivo que, no coração de todos deu-
ses e homens, transtorna o juízo e o prudente pensamento.
De Caos nasceram Érebo (treva) e a negra Noite. E da Noite, por sua vez,
saíram Éter e Dia [que ela concebeu e deu à luz unida por amor a seu
irmão Érebo]. Gaia logo deu à luz um ser igual a ela própria, capaz de
cobri-la inteiramente - Urano (Céu constelado) que devia oferecer aos
deuses bemaventurados uma base segura para sempre. Ela pôs também
no mundo os altos Montes, agradável morada das Ninfas, habitantes de
montanhas e vales. Ela deu à luz também a Ponto (Mal) de furiosas on-
das, sem a ajuda do terno amor.
(...)
Todos os que nasceram de Gaia e Urano, os filhos mais terríveis - o seu
pai lhes tinha ódio desde o nascimento. Logo que nasciam, em lugar de
os deixar sair para a luz, Urano escondia todos no seio da Terra e, en-
quanto ele se deleitava com esta má ação, a imensa Gaia gemia, sufocada
nas suas entranhas por seu fardo. Ela imagina então uma artimanha
cruel: produz uma espécie de metal duro e brilhante. Dele faz uma foice
grande, depois confia seu plano a seus filhos. Para excitar sua coragem,
lhes diz, com o coração cheio de aflição: "Filhos saídos de mim e de um
pai cruel, escutai meus conselhos e nós nos vingaremos de suas malda-
des, pois, mesmo sendo vosso pai, ele foi o primeiro a maquinar atos in-
fames". (Hesíodo, Teogonia, 116-132,153-210, apud ANDERY et al., p.30)

Mesmo admitindo que mito e logos (v. glossário) são esferas distintas,
na medida em que o mito, ao contrário do logos, não permite o discurso
dialógico do contraditório, da argumentação e contra-argumentação, o mito
abriga em seu interior, uma racionalidade, ainda que fechada em si mesma,
que busca dar sentido ao mundo e à vida daqueles que a adotam.

HISTÓRIA DA ARTE I 43
No mito, a noção de origem confunde-se com a do nascimento e a
noção de produzir com a de gerar. Busca-se o sentido da vida na medida
em que, mediante a exposição genealógica, são desvelados os gestores (pai
e mãe), o que é igualmente buscado nas teogonias (racionalidade mítica)
quando somos projetados na escala cósmica.
Mediante sucessivos nascimentos, frutos da união e/ou confronto
de forças antagônicas, fi cava estabelecida a ordem no mundo e entre os
deuses. O mundo dos deuses ordenado pela racionalidade mítica refl etia o
mundo ordenado dos homens e, por essa mesma racionalidade do mundo
ordenado dos deuses e dos mitos, estabelecia-se uma racionalidade para a
vida humana.
Segundo o estudioso francês dos mitos, Vernant, tal racionalidade
envolvia uma ambiguidade: "(...) operando sobre dois planos, o pensamento
apreende o mesmo fenômeno, por exemplo, a separação da terra das águas,
simultaneamente como fato natural no mundo visível e como geração divina
no tempo primordial" (VERNANT, 1973, p. 300)
Caberá ao período que se segue assumir a tarefa de superar a ambi-
guidade contida no mito e dar um novo caráter à elaboração desse pensa-
Séries harmônicas mento. Ele havia sido preparado pelos novos tempos trazidos pelo pensa-
Uma corda esticada vi-
brando em dada frequên- mento racional laicizado e gestado no interior da pólis, onde os cidadãos
cia provoca ressonâncias participam da vida pública, mediante as discussões da ekklesia * realizada
contínuas, mantendo re- na ágora*, e movido pelo tipo novo de pensar advindo de pessoas especiais
lações numéricas cons-
tantes entre si. Tomando
promotoras do pensamento fi losófi co.
o dó como 1º harmônico
(nota fundamental), o 2o
harmônico é o mesmo dó,
uma oitava acima; o 3o 2. Período da Grécia arcaica: o mundo é dotado de
é o sol, que compõe um
intervalo de 5ª justa com racionalidade
o 2º harmônico. O 4o é
o dó, estabelecendo com Iniciado em fi ns do século VIII e indo ao começo do século V a.C.,
o sol (3o harmônico) um para a história da Filosofi a, este período é também conhecido como pré-
intervalo de 4ª justa; o 5º
harmônico é o mi, estabe-
socrático. O mito cede lugar ao logos como forma de explicar o universo. A
lecendo um intervalo de denominação de período arcaico vem de arkhé * (origem das coisas). Deve-se
3ª justa com o dó, e as- à característica do pensamento dos primeiros fi lósofos, como Tales de Mileto
sim por diante, conforme (c. 625-548 a.C.), Anaximandro (c. 610-547 a.C.), Pitágoras de Samos (c.
se pode ver no seguinte
exemplo: 580-497 a.C.), Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a.C) Anaxímenes (c. 583-528
a.C .), que elaboraram explicações sobre a origem e a constituição do uni-
verso, identifi cando, nos elementos como água, fogo, ar, terra, bem como no
número ou no indeterminado (ápeiron), o princípio uno e originário de tudo.

2.1. A música
Interessa-nos, examinar, de perto, a originalidade do pensamento pi-
tagórico, responsável por uma inédita formulação teórica sobre a ordem do
universo baseada na música e nas relações intervalares físico-matemáticas
das séries harmônicas *.
“E de fato, tudo o que se conhece tem número. Pois é impossível pen-
sar ou conhecer algumas coisas sem aqueles” (Filolau de Crotona). Os
pitagóricos não viam o número como mero símbolo, senão como princípio
Filolau de Crotona (sé-
culo V a.C.) apud Andery constitutivo (arkhé) da estrutura do cosmos. Pelo conhecimento de suas
et alii, 2000, p. 40. Filolau relações e da harmonia cósmica, todo o universo tornava-se cognoscível.
foi um dos maiores divul-
gadores da doutrina pita-
Número e harmonia eram a condição necessária para a explicação da
górica. existência do universo. Assim, os pitagóricos concebem a música como algo

44 HISTÓRIA DA ARTE I
fundante da ordem do ser. Existe uma racionalidade arquetípica no âma-
go das coisas e do cosmos, o que era evocado a partir da teoria das séries
harmônicas. Dessa forma, os pitagóricos incorporam a música a uma cos-
mologia: eis aqui um belo exemplo da diferença entre o pensamento mítico
(período homérico) e o pensamento racional fi losófi co (período arcaico).
No primeiro período, a cosmologia se ocupa de deuses e homens que
se vêem imbricados numa complexa narrativa genealógica dos fatos de na-
tureza mítica. No segundo, os pitagóricos estabelecem uma cosmologia que
funda um princípio ordenador a partir dos sons musicais: o princípio de
que as relações intervalares são de ordem físico-matemática, ampliando
tal princípio para todo o cosmos, incluindo os astros e o mundo humano
(a pólis). Trata-se do mundo visto como ordem harmônica. A música seria
o agente regulador da harmonia cósmica, que, por sua vez, ressoaria na
ordem social.
O conceito de harmonia estendido às diferentes esferas da existência –
a ordem epistêmica, ética e estética – passa a signifi car que verdade, virtude
e beleza expressam diferentes dimensões da harmonia, contidas no belo,
bom, justo e verdadeiro ou, conforme o princípio da Paidéia (formação dos
jovens): a busca do ideal do kalós kai agathós,o belo e o bom. Esse conceito
de harmonia deriva da matriz cosmogônica expressa pelas propriedades
dos sons musicais contidos nas séries harmônicas. Na verdade, os gregos
não concebiam a música como arte, como hoje a concebemos, mas como o
que então se concebia como ciência.

2.2. O teatro
2.2.1. O drama
Outra rica herança deixada pelos gregos refere-se às artes cênicas. O
antigo teatro grego teria forte procedência nos cultos dedicados a Dioniso,
deus grego (Baco para os romanos) da festa e do prazer, da desmesura e da
embriaguês. Filho de Zeus com a princesa Sêmele, foi o único gestado com
uma mortal. Durante as celebrações em sua honra, em meio a procissões e
com o auxílio de fantasias e máscaras, eram entoados cânticos, ditirambos *,
que, mais tarde, deram formas às representações plenamente cênicas como
hoje a conhecemos mediante encenações consagradas.
A tragédia ática – certamente a maior invenção das artes cênicas da
Grécia, provavelmente surgida no século VI a.C. – teria tido suas protofi gu-
rações nos ditirambos. Lembremos que o nome tragédia vem de trágos e óde
(respectivamente bode e canto, em grego).
Os corais ditirâmbicos, em honra a Dioniso, se apresentavam num
Ditirambo do grego
local circular com um altar no centro (orkhestra, lugar de dançar). As pri- ditýrambos:
meiras representações possuíam um caráter religioso, dedicadas a Dioniso. Era uma ode entusiástica
de intenso teor apaixona-
A partir do século V a.C., na gestão de Péricles, dá-se o grande fl o- do, entoada por um coro
rescimento da cultura e das artes gregas, inclusive do teatro. Péricles teria e constituída por uma
usado esse fl orescimento para obter a opinião favorável da população vi- narrativa recitada pelo
sando à implementação de seus planos políticos. Nesse contexto, chamado corifeu, espécie de solista;
a parte coral era de res-
século de Péricles, surgem os autores trágicos: Ésquilo, Sófocles e mais tar- ponsabilidade de perso-
de Eurípides. O teatro grego se enriquecera ao incorporar novos elementos nagens vestidos de faunos
como o uso da mekhané, um artifício especial lembrando um tipo de guin- e sátiros (fi gura híbrida,
meio homem, meio bode),
daste que trazia um dos deuses por cima do palco. Daí a expressão latina acólitos do deus Dioniso,
deus ex machina, literalmente "um deus surgido da máquina", que se refere importantes fi guras nos
a um inesperado artefato artifi cial ou evento introduzido repentinamente cultos a ele dedicados.

HISTÓRIA DA ARTE I 45
para resolver uma situação ou desemaranhar uma trama. Muitas peças
terminavam com um deus sendo literalmente baixado pela mekhané, para
amarrar as pontas soltas da trama.

Teatro de Dioniso em reconstituição do século XIX

Um típico exemplar da estrutura dramática do período áureo da tragé-


dia pode ser assim descrito: a trama gira em torno das vicissitudes do herói,
apresentado como um vencedor no esplendor da vida e que se vê, de repente,
vítima de um golpe de infortúnio inesperado que o arrasta para a desgraça,
o que provoca um sofrimento insuportável, ao levar o herói ao esquecimento
e à perda de sua glória. Em Édipo Rei de Sófocles, obra-prima da arte trági-
ca que ilustra a impotência humana diante do destino, o herói torna-se rei
de Tebas, casando-se com a própria mãe Jocasta, recém viúva do rei Laio, o
pai que matara. Seu destino sofre uma volta de 180º graus quando descobre
a verdadeira história.
Ao conteúdo trágico da trama subjaz uma noção de justiça do direito
na Grécia Arcaica. Pelo instituto da vendeta (vingança de sangue), de uso
nas antigas culturas do Mediterrâneo, graças ao legado das sociedades or-
ganizadas por relações de parentesco, cabia a reparação da ofensa pela
família ofendida. É patente a alteração dessa noção na Grécia Clássica,
quando irrompe na trama trágica um novo direito, sobretudo em Eurípides.
Este era visto por Nietzsche como autor decadente por substituir os elemen-
tos estéticos de intensidade patética (do grego páthos: paixão, sentimento
intenso) típicos da tragédia ática, por tramas racionais.
Se Eurípides retoma temas utilizados por seus antecessores, por outro
lado, inspira-se no pensamento filosófico socrático-platônico de seu tempo,
noções advindas da consolidação da pólis: um novo direito, guiado por mo-
delos racionais de investigação da verdade.
Eis um quadro sintético dos três maiores autores trágicos, com o
acréscimo de um comediógrafo, uma vez que a comédia é outro gênero im-
portante do grande teatro grego, porém visto como gênero menor por filóso-
fos do período clássico como Platão e Aristóteles.

46 HISTÓRIA DA ARTE I
Ésquilo (c. 525 a 456 a.C.)
• Principal obra: Prometeu acorrentado.
• Trama principal: o castigo de Zeus infligido a Prometeu por ter
roubado o fogo do Olimpo e doado aos mortais.
Sófocles (c. 496 a 406 a.C.)
• Principal obra: Édipo Rei
• Tema principal: v. acima.
Eurípides (c. 484 a 406 a.C)
• Principal obra: As troianas.
• Tema principal: fim da guerra de Tróia a partir do universo fe-
minino: mulheres prisioneiras esperam o embarque para novos
lares.
Aristófanes (c. 445 a.C. a 386 a.C.) dramaturgo considerado o maior
• representante da comédia grega clássica.
• Principal obra: As rãs, obra-prima da arte da comédia.
• Tema principal: Dioniso desce ao Hades com o seu criado Xân-
tias

2.2.3. A Arquitetura
Para as representações cênicas, os gregos contavam com uma imensa
infraestrutura de espaço. Eram grandiosas edificações feitas no declive das
encostas rochosas, com excelente aproveitamento do cenário natural e com
centenas de degraus feitos de pedra para a assistência: tratava-se de uma
imensa construção circular, em forma de anfiteatro, que continha vários
espaços, cada um com funções específicas:

1) A orkhéstra: espaço cênico em cujo centro ficava a thymele, um


altar dedicado a Dioniso. Era uma área circular em terra batida
ou com lajes de pedra, situada no centro das bancadas, onde o coro
cantava e dançava e os atores realizavam sua interpretação.

HISTÓRIA DA ARTE I 47
2) O theatron: o auditório propriamente dito dedicado à assistência
(theatro e theoria possuem o mesmo étimo theo com o sentido de
contemplar).
3) O eisodos: os dois acessos a cada lado da orkhéstra para o coro
entrar e sair de cena.
4) A skene: local atrás da orkhéstra, cuja função inicial era servir de
uma espécie de camarim destinado para guardar o vestuário e tam-
bém para os atores se vestirem. Depois passou a representar a fa-
chada de um palácio ou templo, sendo também palco para atuação.
5) A mechané: grua ou guindaste para elevar atores, mecanismo para
o uso do o uso do artifício do deus ex machina.
Um dos aspectos mais impressionantes do anfiteatro grego refere-se à
sua acústica. Levando em conta a distância entre o ator que representava
no espaço cênico da orkhéstra e os espectadores sentados na última fileira
da bancada de pedra que abrigava a pla-
teia em círculos concêntricos, era real-
mente espantoso o fato de que ele se fazia
ouvir de forma clara.
A bem da verdade, o ator representa-
va com máscaras (persona em latim, por
onde soava e passava a voz do intérprete),
cujo volume era ampliado devido à forma
como eram confeccionadas. Dessa forma,
além de ter a função de levar a voz para
toda a plateia, as máscaras tinham outra
função: possibilitar as pessoas de acom-
panhar a ação cênica pelas expressões
que mostravam, ora de dor, ora de alegria
bem como de compaixão, espanto ou ou-
tros sentimentos e afetos necessários à
trama encenada.
Vários desses anfiteatros, construí- Máscara teatral
dos sobretudo no período helenista, com a
difusão da cultura grega pela unificação promovida por Alexandre Magno
em vários países que integravam seu império, chegaram até hoje relativa-
mente bem conservados.
Porém, o anfiteatro que mais nos impressiona é o de Epidauro, por
sua beleza majestosa e magnitude, sua excepcional acústica, e por tudo
estar em excelente estado de conservação. Construído segundo o costume
do aproveitamento da vertente de uma montanha, com um diâmetro de 112
metros e 32 filas de assentos na parte baixa, 20 na parte central e 24 na su-
perior, seu theatron possui a capacidade para receber 14.000 espectadores.
Reza a lenda que mesmo o som de um pequeno objeto jogado ao chão
do palco era ouvido por qualquer pessoa da plateia, independente do local
da bancada do theatron.
Localizava-se também em Epidauro, no Peloponeso, às margens do
Mar Egeu, o templo de Esculápio, deus da medicina, famoso centro que
atraía doentes de várias partes da Grécia e de outros países vizinhos pro-
curando a cura. Muitas das encenações no Epidauro estariam ligadas às
atividades medicinais do culto a esse deus.

48 HISTÓRIA DA ARTE I
Teatro de Epidauro Teatro de Epidauro com encnações
contemporâneas

2.3. Arquitetura e escultura


Junto com as edificações dos teatros, a arquitetura grega notabilizou-
se, igualmente, pelos seus templos. O surgimento de uma edificação voltada
para o culto independente em relação ao restante de outros compartimentos
é um dos traços mais destacáveis da arquitetura grega.
Seus primeiros templos foram edificados no século VII a.C., sob forte
infuxo das plantas das casas micênicas que apresentavam um comparti-
mento central envolto por colunas, em forma de cabana de madeira, pedras
ou tijolos de argila.
Os templos com colunas de pedras só foram construídos depois do
século VI, com a missão de proporcionar uma residência ao deus homena-
geado, representado por sua estátua, com a comunidade reunida em torno
dos altares erigidos para a execução dos sacrifícios.
Ao contrario da monumentalidade típica da arquitetura oriental, o
templo grego caracterizava-se pela multiplicidade de suas formas e simpli-
cidade de seu sistema construtivo, constituindo-se numa das mais grandio-
sas edificações da arquitetura religiosa (v. texto complementar sobre a arte
simbólica e a arte clássica na concepção da estética do filósofo Hegel)
A planta nuclear do templo era formada pelo pronau. Todo esse núcleo
era envolto por uma série de colunas chamada peristilo. Com variações mí-
nimas de uma região a outra, a planta arquitetônica dos templos contava
com três compartimentos: uma sala central retangular – nãos - de maior di-
mensão (onde ficava a imagem do deus), precedida de um pórtico – pronau -,
e seguida de um aposento posterior - opistodomo.
A colunata exterior podia possuir algumas fileiras de colunas na fren-
te ou atrás do templo ou rodeá-lo completamente, formando o peristilo men-
cionado. Em cidades muito prósperas, o peristilo podia contar com duas
séries de colunas em torno do núcleo do templo. Sua função era suportar
o peso da cobertura de duas águas, construída normalmente em madeira.
O templo erguia-se solidamente sobre uma base de pedra, o estereobato, o
degrau mais elevado de um lance de três.
Do telhado inclinado em duas águas, configurava-se, no pórtico de
entrada e nos fundos, um espaço triangular sobre a cornija (parte superior
do entablamento onde se encaixa o telhado), nas partes que se opunham
em seu comprimento. Esse espaço, denominado de frontão, era ornado com
esculturas de figuras divinas, animais, cenas da vida cotidiana.

HISTÓRIA DA ARTE I 49
Arcos e abóbodas estão ausentes, pois o que ressaltava eram as linhas
retangulares. O núcleo do templo era fechado, formado por um ou mais
compartimentos onde era colocada a estátua da divindade homenageada.
As paredes dos templos poderiam receber desenhos, mas nada dessa arte,
como veremos adiante, foi conservado e chegou até nós. As colunas susten-
tavam um entablamento horizontal que continha um frontão. Esse conjunto
era construído segundo os modelos das ordens dórica, jônica e, posterior-
mente, a coríntia. Ao contrário desse conjunto, cujas colunas apresentavam
o fuste arredondado e liso ou com caneluras, havia edificações onde está-
tuas externas ao núcleo do templo desempenhavam o papel de sustentar o
entablamento denominadas de cariátides.

As cariátides no Erectéion.

2.3.1. As ordens arquitetônicas gregas


A expressão ordem serve para identificar estilos arquitetônicos gre-
gos. As suas formas estéticas são configuradas mediante desenhos lógicos
e proporções matematicamente calculadas com a finalidade de transmitir
equilíbrio, harmonia e proporção. Espécie de cânones da arquitetura, cada
estilo estabelece a regularidade de suas disposições plásticas bem como as
normas de proporcionalidade de suas edificações, que ganharam consis-
tência no curso dos distintos períodos da história da arte grega, do período
arcaico ao helenismo e nos períodos posteriores que receberam influência e
características clássicas, a exemplo do período renascentista e neoclássico,
conforme veremos mais adiante.
As principais ordens são a dórica, a jônica e a coríntia. As ordens
romanas, também chamadas ordens latinas (a toscana e a compósita), são
adaptações posteriores.
O estilo dórico, mais simples e despojado, tem procedência egípcia. Na
Grécia adquiriu traços próprios. O ornamento mais evidente desse estilo
severo é identificado nas caneluras do fuste (corpo da coluna).
O jônico, estilo acrescido ao dórico original, surgiu na Jônia, uma das
colônias gregas da Ásia Menor. Sua principal diferença em relação ao estilo
dórico encontra-se no capitel (parte superior da coluna), com volutas ou es-
pirais, e, no fuste, com caneluras mais profundas. Com maior preocupação
com efeitos decorativos, podia ter seu capital ornado por duas volutas.

50 HISTÓRIA DA ARTE I
O estilo coríntio prima por ser mais esbelto e adornado, Na Renas-
cença, foi apelidado de ordem feminina. Tornou-se famoso pelo seu capitel
mais alto em forma de sino invertido e ornado com motivos vegetais: folhas
de acanto, louro ou oliveira.
Os estilos dórico e jônico são mais utilizados no período arcaico bem
como no período clássico (v. Partenón) e o coríntio surge mais tarde.
Já no mundo greco-romano, as ordens derivadas das gregas sempre
apresentam aproveitamento das originárias. Assim, a ordem toscana se
aproxima mais da dórica, porém em proporções menores, com um pedestal
saliente, não existente no original, sendo constante nos primeiros edifícios
de Roma. A ordem compósita coesiona os estilos mais adornados, a exem-
plo das volutas jônicas e das folhas coríntias.

As três ordens gregas: dórica, jônica e coríntia

2.3.2. Transformações de estilos da escultura grega


A arte escultórica grega oscila entre a autonomia
das peças e a função de complemento estético em edifícios
públicos laicos ou religiosos, se é que se pode fazer tal
distinção numa sociedade onde as relações entre estado,
sociedade e culto encontravam-se estreitamente imbrica-
das. Segundo historiadores da arte, os gregos começaram
a esculpir grandes figuras de homens em torno do final do
século VII a.C., usando o mármore. Era nítido o resultado
não somente estético, transpirando influências do Egito,
como também a técnica de esculpir em grandes blocos.
Mas, se os egípcios buscavam figurações mais realistas, a
concepção grega era a própria representação idealizada da
figura humana, buscando nela o belo em si mesmo.
Ambos, o grego e o egípcio de suas épocas, apreciavam
a simetria natural do corpo humano. Encontramos tal sime-
tria nos kouroi (plural de kouros, homem jovem em grego),
famosas estátuas do período das figuras masculinas nuas, Kouros

HISTÓRIA DA ARTE I 51
eretas, em rígida posição frontal e com o peso do tronco do corpo distribuído
igualmente sobre as duas pernas. Se o influxo egípcio, na estética e na técni-
ca, era patente, o mesmo não ocorria quanto à função da escultura, uma vez
que, na Grécia, onde o artista não estava submetido a convenções rígidas,
ela não tinha funções estritamente religiosas, podendo, assim, destinar as
estátuas para outras funções. Graças a isso, o estilo pôde se transformar
mais livremente. Uma das primeiras e mais nítidas dessas transformações
foi o abandono da postura rígida e forçada dos kouroi.
As estátuas de figuras humanas passaram a expressar uma nova pos-
tura: a cabeça poderá ter uma leve inclinação para um lado, abandonan-
do assim a fixidez do olhar; a posição pesada do
corpo, apoiado rígida e igualmente sobre os dois
pés, cede lugar a um corpo que descansa ape-
nas sobre uma das pernas, desfazendo o cânone
do eixo simétrico anterior, provocando, inclusive,
uma leve diferença na linha dos quadris, com um
lado um pouco mais alto.
Na busca de maior plasticidade na forma
das estátuas, o mármore revelou-se inadequado:
pesado demais, ele se quebrava sob seu próprio
peso, devido ao desequilíbrio das partes do corpo
não apoiadas. O mesmo ocorria com o peso dos
braços suspensos da estátua. A solução foi encon-
trada no uso do resistente bronze, permitindo as-
sim a busca por maior movimento plástico. a alter-
nância entre a imobilidade tensa e a flexibilidade
relaxada dos movimentos. Duas obras famosas – o
Discóbolo (lançador de disco) de Míron e o Doríforo
(lanceiro) de Policleto –, cujos originais em bronze
se perderam, restando-nos cópias romanas, são
exemplos de onde é possível verificar a imobilidade
do tronco e o movimento dos membros.
Doríforo de Policleto

2.4. Características das artes gregas


O sentido de arte para os gregos sempre apresentou um indelével traço
de arte pública, pois cabia à pólis o patrocínio das obras, como templos, tea-
tros, praças, fontes, etc., bem como das artes cênicas, a exemplo das comé-
dias e tragédias. Mesmo quando encomendadas por particulares, a exemplo
de peças de escultura, as obras de arte adquiriam um caráter público pela
sua exposição para além da esfera do privado.
Nas artes plásticas, era evidente a combinação do naturalismo com a
idealização do belo na figura humana, expressa nos detalhes dos corpos,
como, por exemplo, o vigor dos músculos, o movimento das pernas, tendo
como contraponto a sobriedade do estilo, no limite do severo e do despoja-
do. Ao contrário do que se supôs durante muito tempo, foi possível, com as
pesquisas mais recentes, concluir que as superfícies das obras de escultura
e arquitetura gregas recebiam acabamentos em policromia, como forma de
realce decorativo da estatuária e das edificações.
Alguns artistas famosos como Praxíteles deixaram registrado que
suas obras só se encontravam acabadas depois de recobertas com pinturas,
dando-lhes portanto uma aparência final bem diversa do que hoje é apre-
sentado nos museus espalhados pelo mundo afora.

52 HISTÓRIA DA ARTE I
Como forma de aproximação da estética policrômica original, a Glip-
toteca de Munique organizou, em 2004, uma exposição intitulada Bunte
Götter (Os Deuses Coloridos), com réplicas, em cores supostamente origi-
nais, de obras importantes, com resultados surpreendentes.
Pouco restou de vestígios da pintura grega, pois muita coisa se perdeu
devido à fragilidade de seus suportes. Os mais usuais eram os muros dos
templos e os vasos e outras cerâmicas. O pouco que sabemos deve-se a
fontes literárias da época sobretudo dos fi lósofos do período clássico, como
Platão e Aristóteles, pensadores que se dedicaram à refl exão das artes de sua
época, conforme veremos no capítulo a seguir. Atribui-se à cidade de Corinto,
no período Arcaico, o local das primeiras produções de vasos decorados com
silhuetas em cor preta, associadas a motivos geométricos ou vegetais.
Na Grècia clássica, Atenas tomou
a si o primeiro posto da produção e ex-
portação da arte da cerâmica, nela impri-
mindo a seguinte característica: a pintura
negra da superfície dos vasos constrata-
va fortemente com as fi guras pintadas em
dourado e mais raramente, em vermelho.
Os temas mais usuais dessas pinturas em
cerâmica eram divindades como Dioniso
ou Apolo, fi guras míticas da narrativa ho-
mérica como Aquiles, representações da
tragédia, a coroação de atletas dos jogos
Cena representando
olímpicos, músicos tocando instrumentos uma parte do coro
como o aulos, etc.

Texto 1
“Para Nietzsche, os gregos criaram a filosofia porque não teriam temi-
do o dilaceramento, a dualidade, o lado cruel e sombrio dos humanos e da
natureza. Longe de serem os homens da moderação ou da medida, seriam
as criaturas da desmedida - a hybris- e da luta sem tréguas entre os con-
trários - do agón, palavra grega que significa: batalha, luta, jogo, disputa
interminável entre os opostos. Os gregos, antes de inventarem a filosofia,
inventaram o que daria origem a ela: a tragédia.
Que é a tragédia? Culto religioso (só depois transformado em obra
teatral), a tragédia narra a morte e o renascimento do deus Dioniso e, ao
narrá-los, expõe o princípio bárbaro, cruel, desmedido, de embriaguez e pes-
simismo, de lutas subterrâneas entre poderes titânicos na batalha do sofri-
mento para fazer sair da indiferenciação caótica da matéria a individuação
organizada das formas. O princípio que guia a tragédia é a desumanidade e
a barbárie que fecundam o espírito grego, dando-lhe seu momento ou prin-
cípio dionisíaco.
Ao lado do princípio dionisíaco, oferecido pela tragédia, os gregos, afir-
ma Nietzsche, inventam um outro princípio, contrário e oposto ao primeiro,
responsável pelo surgimento da filosofia: o princípio da luminosidade, da
forma perfeita, da individuação, da medida ou moderação e da serenidade,

HISTÓRIA DA ARTE I 53
figurado por Apolo, deus da luz e da palavra, patrono da filosofia. Esse prin-
cípio é denominado por Nietzsche de apolíneo.
A antítese insuperável entre o dionisíaco e o apolíneo governaria o es-
pírito dos gregos. Somente por terem sido conquistadores cruéis, escreve
Nietzsche, senhores de escravos, dominadores de outros povos, animados
pelo espírito agonístico da luta, da disputa e do jogo, movidos pelo impulso
das desarmonias da desmedida, divididos em suas cidades em dezenas de
facções contrárias sempre em guerra, puderam colocar como ideal inalcan-
çável o apolíneo: a estatuária, a poesia lírica e épica e a filosofia exprimiriam
a busca desse ideal de luz e serenidade, contrária à realidade brutal e san-
grenta da vida grega”. (CHAUÍ, 2002, p.27)

Texto 2
Arte simbólica ou oriental: para o filósofo Hegel o simbolismo da
monumentalidade oriental é uma espécie de protohistória da arte, em que
religião e arte encontram-se “promiscuamente” enredadas. Na arte simbó-
lica “a ideia [conteúdo da obra de arte] é abstrata, não encontrou ainda a
forma absoluta; e a forma em que aparece é lhe exterior, inadequada, não
passa de matéria natural, de sensível em geral” (HEGEL, 1993, p. 49). Cor-
responde ao momento do universal abstrato. O Espírito criador aspira a infi-
nitude de modo ainda inadequado, numa abstração que impede de constituir
um sensível apropriado na finitude.
Para materializar o Universal no particular sensível, o protoartista cons-
trói figuras colossais. A arquitetura, a mais pesada das artes, é a primeira
e mais adaptada a essas concepções e atributos fantásticos do sagrado. O
sensível desmesurado subjuga o espiritual. “Na arte simbólica temos, de um
lado, a ideia abstrata, e de outro lado, as forças materiais que lhe não são
adequadas. A ideia indefinida, a ideia infinita apropria-se da forma e esta
apropriação de uma forma que lhe não convém tem todos os aspectos de
uma violência” (p. 49). A arte dessa fase “pertence à categoria do sublime,
e o sublime define-se pelo esforço de exprimir o infinito [...] A expressão não
passa de tentativa, de ensaio, que produzirá gigantes e colossos, estátuas
com mil braços, e mil corpos” (p. 50).
As fantásticas forças da natureza, ainda impenetráveis para a compre-
ensão do homem, e a elas subjugado, constituem, para Hegel, a mais arcai-
ca concepção do absoluto. Essa etapa, que Hegel denomina de panteísmo
oriental ou religião da natureza, é uma espécie de protohistória da arte. A
forma sensível se justapõe, ou melhor, se impõe arbitrária e inadequada-
mente à ideia. “O simbolismo caracteriza-se por uma diferença entre o fora
e o dentro, por uma falta de apropriação entre a ideia e a forma incumbida
de a significar, pelo que esta forma não constitui a expressão pura do es-
piritual. Uma distância afasta ainda a ideia de sua representação” (p. 50).
Arte clássica: esta sucede à arte simbólica. Momento de eticidade da
Cidade grega, onde se busca a perfeita harmonia entre os fins da individua-
lidade e da comunidade através da pólis. Essa nova concepção, que vê uma
unidade harmoniosa entre o indivíduo e a pólis, deve, de preferência, ser ex-
pressa somente na própria forma humana, e não mais por símbolos naturais,
como na etapa anterior. Aqui, existe livre adequação de forma e da ideia, do
conceito e de sua representação sensível. Nesse estádio superior da história,
as relações entre os homens e a natureza são mediadas pelo social. “Na arte
clássica, o sensível, o figurado, deixa de ser natural” (p. 51).

54 HISTÓRIA DA ARTE I
As forças supremas são as da pólis e não as da natureza, quando os
deuses não são mais forças naturais, como no simbolismo, mas têm um ca-
ráter social, fundadores que são da comunidade política. Aqui o homem se
acha em harmonia com o mundo, o sujeito se sente em sua casa, no objeto
de arte. Esse momento, que Hegel denomina as religiões da individualidade
espiritual, reveste-se de uma tensão entre o temporal e o espiritual. O sen-
sível enquanto forma, deve ser purificado, livre dos liames que o aprisionam
à miserável finitude, e, a um só tempo, a espiritualidade deve se expressar
de forma exaustiva nas figuras humanas, porém sem se identificar comple-
tamente, sem se confundir inteiramente com o sensível.
Se a arquitetura pesada representa, por excelência, a protoarte do
simbolismo, a arte clássica encontra na escultura o perfeito equilíbrio entre
a significação interna do espiritual e a forma externa sensível. Hegel enalte-
ce a estatuária grega que criou um ideal do belo e do bom (ideal grego das
formas harmoniosas do kalós kai agathos (belo e bom). “Hegel, em belas
páginas, mostra que o ‘perfil grego’ é o tipo de rosto mais distante da ani-
malidade: enquanto o corpo animal existe somente em vista de fins naturais
[...], o corpo e o rosto humanos, na escultura grega, exprimem a perfeita
harmonia do homem” (GARAUDY, 1993, p. 176)

HISTÓRIA DA ARTE I 55
Capítulo 3
O século de Péricles: apogeu das artes e
doutrinas estéticas da Grécia clássica

O momento fulgurante da arte clássica grega, compreendido entre os


séculos V e IV a.C., corresponde o período marcado por grandes interven-
ções políticas. Primeiro com as reformas de Clístenes e, mais tarde, com o
governo de Péricles, Atenas se coloca à frente de toda a Grécia, desenvol-
vendo a democracia e surgindo como império marítimo. Dá-se o grande
fl orescimento da cultura e das artes gregas, inclusive das artes cênicas
conforme foi visto. Péricles foi um governante ateniense que soube se cercar
de importantes personalidades, sobretudo de artistas e fi lósofos. Assim, sob
a hegemonia de Atenas, a Grécia como um todo iria conhecer uma época de
intenso esplendor no campo da fi losofi a, da ciência e das artes, momento
único da sua história.
Daí, a designação “o século de Péricles”, ou então "o século de ouro
ateniense", cujo governo na verdade cobriu pouco mais de trinta anos (de
461 a 429 a.C.). Sob seu comando, Atenas, destruída e saqueada pelas tro-
pas persas durante as Guerras Médicas, a partir de 443 a.C., é objeto de
uma extraordinária recuperação, tendo sido reconstruída, sobretudo, sua
bela arquitetura.
O Partenón, templo situado na acrópole de Atenas e dedicado à deusa
Atena, tendo em todo seu redor a majestosa colunata com elementos dóri-
cos e jônicos e esculturas do artista Fídias, é certamente o monumento que
melhor simboliza o esplendor da arte desse período.

O Partenón na Acrópole de Atenas

Ainda no século V a.C., ocorreu uma grande infl exão no teor e na


natureza da fi losofi a. Esta se eticiza e o homem é trazido para o centro da

56 HISTÓRIA DA ARTE I
reflexão e do pensamento. Com os sofistas, grupo de filósofos educadores da
época, a filosofia dá uma reviravolta humanista: “o homem é a medida de
todas as coisas”, ensinava. na época, o sofista Protágoras de Abdera.
As explicações do período arcaico anterior, baseadas nos elementos
da natureza como princípio primeiro (arkhé) ordenador e constituidor de
sentidos do mundo e das coisas, são substituídas por temas como o conhe-
cimento, a verdade, a cidade, o poder, as leis, a justiça, a virtude, o amor, a
beleza, a arte, dentre outros.
Três grandes pensadores marcarão o período – Sócrates (suas ideias
são divulgadas pelo discípulo Platão), Platão e Aristóteles –, reponsáveis,
inclusive, pelas primeiras reflexões sobre a produção artística de seu tempo.
Em síntese, podemos dizer que, para Sócrates, o ser era a “beleza paradig-
mática”, para Platão, o ser era o eídos (que os latinos traduziram por ideia),
e para Aristóteles, o ser era um só ente constituído de conteúdo e forma.
São importantes concepções de natureza metafísica com implicações e res-
sonâncias nas respectivas formulações estéticas desses três pensadores.
A partir deles, ficarão estabelecidos certos cânones das linguagens
artísticas, que, no limite, durarão até a contemporaneidade, seja pelas suas
proposições afirmativas ainda aceitas, seja pela contestação e confronto de
seus princípios com pretensões de validade universal e eterna, conforme
veremos a seu tempo. Questões como a perdurabilidade da obra de arte, o
belo em si, a mímesis (a propriedade imitativa da obra de arte), o papel do
conhecimento intelectivo (epistêmico) e do conhecimento sensível (estético),
a harmonia são conceitos e princípios fundantes da reflexão sobre a obra de
arte inauguradas por esses filósofos.
A questão da perdurabilidade da arte pode ser vista a partir de um
duplo aspecto. Primeiramente, sua explicação pode provir de um aspecto
crucial da doutrina platônica sobre o caráter imitativo dos objetos de arte,
enquanto mímesis de ideias arquetípicas (essências) perfeitas e eternas das
coisas, cuja análise desenvolveremos abaixo.
Mas a perdurabilidade pode ainda ser igualmente explicada pelo tipo de
matéria prima usada na arquitetura e escultura gregas. Na Grécia e em vá-
rios países vizinhos, a natureza era pródiga em solos e montanhas rochosas
e em matrizes calcárias donde se extraíam blocos de mármore. Mas o que
contava mais certamente eram os metais, sobretudo o bronze fundido que
procurava imprimir nas peças um caráter eterno, oferecendo assim as con-
dições materiais objetivas para robustecer a perdurabilidade de suas obras.

1. A doutrina estética de Platão


O pensamento platônico concebe a realidade cindida em dois mundos,
com seus respectivos tipos de conhecimento. Ao mundo das formas e das
ideias, conhecido como o mundo suprassensível, correspondia o conheci-
mento intelectivo (esfera da episteme). Ao mundo das aparências e das ativi-
dades concretas, mundo das coisas, correspondia o conhecimento dos fatos
e objetos sensíveis (estética).
Para essa doutrina, o verdadeiro mundo reside no suprassensível, o
mundo ideal onde residem as formas essenciais eternas de tudo que exis-
te no mundo sensível. Cada objeto deste era cópia imperfeita das formas
essenciais do mundo das ideias. Se o mundo sensível era cópia daquele
mundo ideal, o mundo dos objetos artísticos, espécie de uma realidade em
terceiro grau, estaria ainda mais afastado do mundo ideal.

HISTÓRIA DA ARTE I 57
No livro X, 595ª de A República, Sócrates-Platão tece dura crítica à
pintura, depois de condenar a “poesia de caráter mimético”. São múltiplos
os objetos como são múltiplas as cópias, porém, o eídos (ideia para os lati-
nos) desses múltiplos objetos, como a cama, é um só e é dessa ideia única
de cama que o artesão-carpinteiro copia. Já o pintor que a pinta não toma,
como modelo, a ideia de cama, mas a imagem que dela faz.
Como cópia da cópia, para Platão, a cama pintada é apenas um objeto
aparente, sem nenhuma realidade essencial. Em relação a esta, a cama do
carpinteiro teria a vantagem de estar menos afastada da ideia originária
da essência da cama porque sua cópia, pelo menos, busca representá-la na
sua tridimensionalidade concreta.
A arte mimética (estética da pura imitação), voltada para o mundo sen-
sível das aparências enganosas, estaria afastada do verdadeiro mundo das
essências, das formas estáveis e eternas. A arte imitava os objetos de um
mundo, por si, já imperfeito e mutante. Assim profere Sócrates:

Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à


sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por
se exibir juntamente com os seus poemas, prosternávamo-nos diante
dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-
íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie, nem sequer é
lícito que existam, e mandá-lo-íamos embora para outra cidade. (Platão,
398a, Livro III de A República)

Devido precisamente ao seu caráter mimético, a arte é manifestada-


mente desprezada por Platão. Por provocar reações emotivas imediatas, a
arte torna-se um estorvo para a progressão do homem para atingir o ser (a
essência) e sua verdade. A universalidade da essência do belo em si, uno e
eterno, contrasta fortemente com a particularidade da obra de arte concre-
ta, sujeita às vicissitudes do tempo e do devir. Daí, Platão defender que a
particularidade sensível não era portadora em si mesma de um autêntico
valor estético. Esse valor era conferido à obra de arte pela participação na
ideia do belo e não pela virtude da criação artística.
Para a doutrina platônica, o objeto belo é o que participa do belo ideal,
do belo em si, que é absoluto, único, verdadeiro, existente desde sempre no
mundo das ideias essenciais. A beleza de um ser do mundo sensível depen-
de de sua maior ou menor participação (representatio ou imitatio, termos
latinos equivalentes ao conceito grego de mímesis) na beleza absoluta.
O ideal grego do belo e bom (kalós kai agathós) apontava para dife-
rentes níveis referentes à ideia de belo, o que tinha tudo a ver com as três
ordens da existência humana objeto da especulação filosófica. Em primeiro
lugar, vinha o belo da vida contemplativa (biós theoretikós da ordem epis-
têmica) e, depois, sua concepção se fundia à ideia de bom (da ordem ética).
No último plano, situava-se o belo utilitário e, portanto, inferior, por estar
subordinado ao mundo sensível e imperfeito das coisas (da ordem estética).
Para o pensamento platônico, a eternidade da alma humana a faz ina-
pelavelmente atraída pela beleza, sua pátria natural de origem. Exilada no
mundo sensível, ela sente sempre saudade do outro. Por ser eterna, a alma
aprisionada ao corpo já experimentara a beleza do mundo das essências
puras, de natureza divina, já contemplara a verdade, o bem, o belo.
Platão acha-se dilacerado entre a admiração entusiasta do belo em
si eterno e uno, meta ideal do amor ao belo e o desprezo da arte mimética,

58 HISTÓRIA DA ARTE I
cuja beleza, por mais que seja incompleta, é uma busca de imitação do belo
em si. Pode-se afirmar que, para Platão, o belo causava enlevo, prazer, ar-
rebatamento, deleite. Para ele, a beleza é o brilho da verdade, aforismo que
perdurou, durante muito tempo, no pensamento estético do Ocidente.
Diferentemente da episteme (scientia), via para o conhecimento autên-
tico, a arte visa ao fictício e ao ilusório. Se, em sua bela cidade (Calípolis),
Platão dispensa algumas artes e artistas, em O Banquete, traça a via da
conquista do belo incorpóreo em si, pela ascese contínua que passa pelo
belo atribuído a certos entes particulares em direção ao sublime:

Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do


correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que
estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proce-
der corretamente nos caminhos do amor ou por ele se deixar conduzir:
em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre,
como que servindo-se de degraus, de um para dois e de dois para todos
os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios e para as belas
ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é
senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo (O Ban-
quete, 211b-c).

À medida que o sensível se liberta, a alma vai adquirindo o saber in-


telectível (epistéme) – passa dos belos corpos para as belas ações, das belas
almas aos belos conceitos. Assim, a beleza universal se desvela. O belo em
si é o belo absoluto. Dá-se, portanto, uma ascese gradativa e contínua: “do
amor aos belos corpos passa-se ao amor a realidades menos corpóreas – os
ofícios – para chegar à inteligibilidade das ciências; [...] atinge-se o cume: a
contemplação do Absoluto enquanto beleza” (PESSANHA, 1989, p.97s).
Com relação à música, Platão adere à concepção pitagórica que a vê
como expressão da ordem cósmica. A doutrina da música como agente re-
gulador da harmonia cósmica, que, por sua vez, ressoaria na ordem social,
será aceita em A República, ao contrário, como vimos, das artes miméticas.
A música, por ser fundante da ordem do cosmos, portanto, ligada ao mundo
essencial das formas, sendo mais ciência do que arte, era dotada de uma
essência racional capaz de revelar a harmonia racional do mundo e da vida
humana. A grande descoberta da filosofia grega arcaica, com continuidade
no período clássico consistiu na revelação de propriedades musicais ambi-
valentes, em que os modos musicais expressavam a cultura e o comporta-
mento (ethos) de cada povo. O modo dórico, por exemplo, é visto por Platão
como o mais elevado e capaz de levar à temperança, ao heroísmo altivo, à
soberana aceitação da adversidade, em contraposição aos modos mixolídio,
lídio, jônico e frígio, considerados modos moles e propiciadores da indolên-
cia (Livro III de A República).
Platão pensa o ethos musical, junto com a ginástica e a aritmética,
como importante elemento moldador do caráter. A música é a mais capaz de
proporcionar a noção e vivência de ritmo. Este, junto à harmonia, ao pene-
trar fundo na mente do cidadão, cria as condições para a gestação do belo,
do bom e do verdadeiro. Platão também defende a superioridade dos instru-
mentos mono-harmônicos como a lira e a cítara (instrumentos apolíneos),
e condena a flauta, os instrumentos de muitas harmonias e cordas como a
harpa e o aulos (instrumento dionisíaco). O arrebatamento contido no aulos
é condenado como música rítmica a serviço de uma celebração dionisíaca.

HISTÓRIA DA ARTE I 59
A preferência pela cítara e a condenação da flauta, instrumentos do
deus Apolo e do deus Dioniso, respectivamente, podem também ser exami-
nadas pelas possibilidades que cada um desses instrumentos oferece às
duas ordens éticas das respectivas estéticas musicais: a lira permite o ver-
so cantado; portanto, permite a palavra, a poesia e o conceito, postulados
estéticos da arte apolínea, superior à música pura (somente instrumental)
e ao ritmo. A flauta prescinde do canto; portanto, prescinde do conceito.
Ela executa a música pura e a música rítmica, postulados estéticos da arte
dionisíaca. A noção platônica da melodia subordinada ao reino da palavra
será mantida, durante longo tempo, pela estética cristã e pelo racionalismo
ocidental, conforme será visto.
A herança pitagórica legou, para a Grécia clássica e as eras posterio-
res, a demarcação dos campos em apolíneo e dionisíaco, com tendência fa-
vorável ao primeiro, criando um cânone básico e uma hierarquia: a música
como serva da palavra, o ritmo como servo da harmonia. Nessa perspectiva,
o ritmo equilibrado jamais deve comprometer as proporções harmônicas.
Qualquer excesso, seja rítmico, melódico ou instrumental, será condenado,
por ser próprio da festa dionisíaca, prenunciando a cisão, que irá traspassar
épocas e lugares, entre a música das alturas, cívica, normativa, harmoniosa
e a música rítmica, popular, pulsante, ruidosa, extática. São dois parâme-
tros que a estética apolínea lutará tenazmente para torná-los irredutíveis
um ao outro pelo expurgo do dionisíaco.

2. A doutrina estética de Aristóteles


Aristóteles supera a dicotomia entre
forma e conteúdo, entre o belo em si e a
bela obra. A matéria, da qual o artista ex-
trairá uma forma, já contém, em potência,
aquilo que no momento do ato a transfor-
mará: o objeto de arte (v. comentários so-
bre os filmes Agonia e êxtase e Morte em
Veneza no final desta unidade).
Não existem dois mundos distintos,
um subordinado ao outro, como queria
Platão. Ao contrário, Aristóteles vê, na
obra de arte concreta, a unidade indisso-
ciável entre forma e matéria (hilemorfis-
mo), cuja estética mimética aceitava sem
desqualificativos. Para ele, a obra de arte,
por sua liberdade criadora e ficcional, não
sendo, portanto, serva do evento particu-
lar, é representação do universal, diferen-
Platão e Aristóteles
ciando-se da história que é representação
do particular, de algo efetivamente ocorrido. Para ele, a arte estaria mais
próxima da filosofia. Igualmente contrário a Platão, cuja reflexão sobre a
arte encontra-se subordinada à episteme, a uma espécie de teoria do conhe-
cimento e, portanto, a um pensamento realizado de forma oblíqua, Aristóte-
les se dedica, de forma mais direta, à reflexão sobre a arte, quando analisa
a tragédia, confrontando-a com a epopeia e a comédia, no livro Poética.
Nesse livro, Aristóteles assume a defesa da emoção estética presente na
tragédia, contida na doutrina da kátharsis: processo de purgação e purifica-
ção de intensos e violentos sentimentos, como terror e piedade, que encontra

60 HISTÓRIA DA ARTE I
no gênero trágico, a via efetiva capaz de reconstruir o equilíbrio (harmonia)
interno do espectador. Existem fortes indícios de que Aristóteles teria escrito
o Livro II da Poética, onde teria dissertado sobre a comédia, tema, inclusive,
do romance O nome da Rosa, do escritor italiano Umberto Eco.
O conceito de belo é algo recorrente na obra aristotélica, encontrável
em várias de suas obras e não apenas na Poética, onde afi rma que “o belo
está na extensão e na ordem” (1450 b 37). Eis algumas dessas passagens:
“o belo está na extensão do corpo, pois as pessoas pequenas podem ser gra-
ciosas e bem proporcionadas, mas não são belas” (Ética a Nicômaco, 1123 b
7). Ou, ainda, referindo-se ao corpo: “o belo parece ser uma certa simetria
dos membros” (Tópicos, 116 b 21-22), noções que aplicam inclusive à beleza
feminina O fi lósofo afi rma em A Retórica que uma mulher bonita e bem pro-
porcionada, porém pequena, pertence ao campo do gracioso, mas não ao do
belo, que exige, entre outras coisas, grandeza.
Ou ainda

aqueles que sustentam que as ciências matemáticas nada dizem a res-


peito do belo ou do bom, enganam-se, pois elas discorrem a respeito
deles e os demonstram no mais alto grau. Pois, ainda que não nomeiem
seus efeitos e princípios ao demonstrá-los, disso não se segue que não
discorram a respeito deles. As principais espécies do belo são a ordem
a simetria (summetria), e a defi nição (to horismenon) o que, nas ciências
matemáticas, é demonstrado no mais alto grau (Aristóteles, Metafísica,
apud GAZONI, 2006, p. 11).

São citações que nos fazem concluir que o conceito de belo ligado à si-
metria, à ordem e à harmonia é um postulado geral da estética aristotélica.
Portanto, o atributo de beleza é inerente aos objetos, decorre tão somente de
certa harmonia ou ordem existente entre as partes desses objetos entre si, Todas as citações deste
constituindo um todo uno. Além disso, para um objeto ser belo exigia-se parágrafo foram retiradas
ainda que tivesse certa grandeza ou imponência, mas que não comprome- da dissertação de mestra-
do de Gazoni, A Poética de
tesse os atributos de proporção e medida, o que foi evidenciado nas citações Aristóteles: tradução e co-
acima. A recorrência de Aristóteles à harmonia e à articulação proporcio- mentários. USP, 2006.
nal das partes num todo ordenado deu origem a uma célebre assertiva dos
seus seguidores, que costumam dizer que “a beleza consiste em unidade na
variedade”. O objeto belo dependente de suas propriedades expressas na or-
dem e harmonia entre suas partes, constituindo um todo belo, nada tinha a
ver com sua participação na ideia de uma beleza absoluta, como em Platão.
Segundo Aristóteles, o cosmos se originou do caos, ao ser regido pela
harmonia, conceito nascido da estética musical da escola pitagórica. En-
tretanto, vestígios do caos original debatem com o desejo incessante de or-
dem. O belo imbricado com o conceito de harmonia será um importante
legado, como veremos, para a arte renascentista, que a enxerga como uma
espécie de “conveniência sensata”, constitutiva por conhecimentos cientí-
fi cos e racionais. Em síntese, para a estética aristotélica, constitui o belo
a concordância das partes, sua harmonia, um cálculo matemático para a
composição do todo que não admitia a contradição.
Concluindo, podermos dizer que os dois grandes fi lósofos gregos, a
despeito de suas diferenças, têm em comum uma concepção objetiva do
belo, a saber, a beleza é um atibuto constitutivo do próprio objeto e jamais
uma doação de sentido estético que parte do olhar contemplante, conforme
será posteriormente tematizado pela estética racionalista da modernidade.

HISTÓRIA DA ARTE I 61
As doutrinas estéticas subsequentes são, em verdade, continuadoras,
via de regra, de modo eclético, das estéticas platônicas e aristotélicas. Da
tradição clássica grega ao fi nal do século XVIII, a beleza era vista como uma
propriedade constitutiva dos objetos belos, a exemplo de um quadro, uma
sonata, um poema, uma escultura.

Ekklésia: principal as-


sembleia popular da de- Esta unidade examinou as manifestações artísticas de um largo perí-
mocracia direta de Ate- odo histórico iniciado com as primeiras organizações civilizatórias se-
nas, com a participação
dos cidadãos (atenienses dentárias, às margens dos vales férteis da Mesopotâmia e do Egito, que
do sexo masculino acima propiciam a emergência de obras de arte, como a arquitetura de tem-
de 18 anos), para delibe- plos, pirâmides e câmaras funerárias, a escultura, a pintura e o mobili-
rar sobre diferentes as-
suntos como a legislação ário decorativo, cujos estilos, no curso do tempo, provocarão infl uências
sobre a guerra ou a paz, e sofrer expressivas modifi cações, mormente as realizadas pela arte da
julgamento de pessoas, antiga Grécia, cujo apogeu dar-se-á no chamado “século de Péricles”. A
nomeação de magistra-
dos, dentre outros. A ekk-
análise sóciohistórica da arte grega apresentou-se articulada às dou-
lésia foi instituída por Só- trinas estéticas dos principais pensadores da fi losofi a grega, a exemplo
lon, em 594 a.C., e suas da cosmologia pitagórica sobre a música, a teoria socrático-platônica e
reuniões ocorriam inicial-
mente uma vez por mês
aristotélica sobre a arte, de um modo geral, e sobre o belo, de um modo
sendo, posteriormente, particular, enfatizando algumas de suas principais diferenças.
realizadas com maior fre-
quência.

Ágora: praça aberta, prin-


cipal espaço público da
pólis para múltiplas ati-
vidades como as reuniões
da ekklésia, mercados e
feiras livres, tribunais. A
ágora tornou-se a repre-
sentação, por excelência, 1. Levando em conta as manifestações artísticas dos povos nômades
do espaço público para o (v. Unidade 1), analise a importância que se pode atribuir ao papel
exercício da democracia exercido pelos vales úmidos das primeiras civilizações sedentárias
direta grega. Sua insti-
tuição estendeu-se poste-
na realização artística dos povos antigos.
riormente para o mundo
greco-romano.
2. Apresente os principais argumentos que buscam explicar o surgi-
mento do pensamento fi losófi co na antiga Grécia.
Arkhé: palavra com dois
sentidos básicos: 1) o que 3. Elabore um quadro comparativo entre o pensamento mítico do cha-
está na frente de tudo e mado período homérico e a fi losofi a do período arcaico (pré-socrático),
que, por isso, é o come- e suas repercussões para o quadro das artes das respectivas épocas.
ço, o princípio de tudo; 2)
o que está à frente e que, 4. Apresente os principais aspectos da tragédia grega, levando em con-
por isso, tem o poder so-
bre todo o restante. No
ta a análise crítica do fi lósofo Nietzsche.
primeiro sentido, o ter-
5. Analise o chamado “século de Péricles”, levando em conta as dife-
mo signifi ca fundamento,
princípio e origem, causa rentes formas de manifestação da cultura, das artes e da fi losofi a do
primeira, o que está no período em questão.
começo de modo absolu-
to, ponto de partida. No 6. Levando em conta todo o conteúdo apresentado pela unidade, bem
segundo sentido o termo como o teor dos fi lmes abaixo indicados, elabore um pequeno texto
signifi ca comando, poder,
autoridade, dando, assim,
a partir de uma questão problematizada formulada por você mesmo,
origem a palavras como e procure respondê-la desenvolvendo uma refl exão de forma bem
monarquia (poder de um) pessoal.
e oligarquia (poder de
poucos). (v. CHAUÍ, 2001,
p. 496/497)

62 HISTÓRIA DA ARTE I
Livros
• Ilíada e Odisseia de Homero
• A República (Livros III e X) de Platão
• A Poética de Aristóteles

Sites
Graça Proença, Editora Ática, 2001. Site:
• www.aticaeducacional.com.br/imagens/complementos/hda/
img/imagem26.swf

Filmes
A Odisséia (1997): do diretor Andrei Konchalovsky, megaprodução de Fran-
cis Ford Coppola adaptada da narrativa mítica atribuída a Homero, em que
o herói Odisseu (Ulisses) enfrenta várias vicissitudes, muitas provocadas
pela fúria dos deuses e monstros mitológicos, saindo-se sempre vitorioso,
graças às suas ardilosas estratégias e coragem, em sua viagem errática de
volta ao seu reino na ilha grega de Ítaca, onde sua fi el esposa, Penélope, o
aguarda, desde sua partida para a guerra de Tróia.
Os dois fi lmes abaixo indicados são duas obras que podem ser vistas
como abordagens distintas que representam as respectivas concepções dos
fi lósofos Platão e Aristóteles sobre arte:
Morte em Veneza: (do cineasta italiano Luchino Visconti, a partir do ro-
mance homônimo do escritor alemão Thomas Mann) o fi lme apresenta uma
nítida fi liação à estética platônica, conforme atesta a paixão do músico ale-
mão (escritor no original) Gustav von Aschenbach pelo belo adolescente po-
lonês Tadzio, ocorrida durante suas férias em Veneza no início do século xx,
tomada pela peste; o fi lme trata de uma ideia de belo que parece nos remeter
à noção da beleza em si do mundo das ideias e das formas perfeitas.

Agonia e êxtase: (do cineasta inglês Carol Reed, baseado no livro de Ir-
ving Stone) o fi lme aborda a relação tensa e confl ituosa entre Michelangelo
e o Papa Júlio II, que lhe encomenda a pintura do teto da capela Sistina.
O fi lme, em determinado, momento apresenta uma cena de nítida fi liação
aristotélica: o artista, ao ser interpelado pelo arquiteto Bramante, que o
recriminara sobre seu gesto de alisar o grande bloco de mármore, pronun-
ciando o nome do profeta Moisés quando existia apenas um bloco de pedra,
teria dito: “Moisés já está no mármore. Eu apenas o libero”. Ou seja, a ma-
téria mármore já contém, em potência, a escultura de Moisés, que a ação do
artista efetiva em ato. Este fi lme é também indicado para a Unidade IV, por
apresentar interessantes cenas e imagens da pintura e escultura renascen-
tistas, contendo em seu início, antes da parte fi ccional propriamente dita,
uma apresentação documental de várias esculturas do artista, com peque-
nas análises e situações históricas.

HISTÓRIA DA ARTE I 63
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. S. Paulo: Compa-
nhia Das Letras. 2001
CUNHA, Newton. Dicionário do SESC A Linguagem da Cultura. São Pau-
lo: Editora Perspectiva. 2003
GARAUDY, Roger. Para Conhecer o Pensamento de Hegel. Porto Alegre:
LP&M. 1993.
GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comen-
tários. Dissertação de Mestrado no Depto do Filosofi a da USP. São Paulo:
2006
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral, 15ª edi-
ção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo:
Martins Fontes. 1995.
HEGEL Estética. Lisboa: Guimarães Editores. 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia SP: Perspectiva. 1994
PESSANHA, José Américo M. “Platão: as várias faces do amor” in Os Sen-
tidos da Paixão. São Paulo: Companhia Das Letras. 1989.
PROENÇA, Graça. História da Arte. Sâo Paulo: Ática. 1989.
VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Gré-
cia Antiga. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.
WISNIK, José Miguel O Som e o sentido. S.P.: Cia Das Letras, 2001
História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e folhe-
to). Edição: Grupo Cultural.

64 HISTÓRIA DA ARTE I
Unidade

3
Do Helenismo ao
Medievo Cristão

Objetivo:
• Esta unidade busca examinar as artes de um largo período que se inicia com o
grande império de Alexandre Magno, responsável pela unidade cultural obtida em
todo seu território, denominada helenismo. Segue-se depois a análise da integração
da cultura helênica no mundo latino, constituindo o classicismo greco-romano.
Será também analisada a difusão da arte cristã, com suas diferentes linguagens e
estilos por todo o medievo europeu.
Capítulo 1
O helenismo e o classicismo greco-romano

1. O surgimento do Helenismo
A civilização grega, ao estender sua hegemonia política e econômica,
bem como sua cultura e artes a vários povos, feito sob o domínio do reino
da Macedônia, com Filipe II, e pelas conquistas de Alexandre Magno e, de-
pois, sob o domínio romano, constrói uma civilização universal, ampliando
e infl uenciando todo o Mediterrâneo, compreendendo a parte ocidental da
Ásia Menor, o mar Negro, o Oriente Próximo e Médio e o norte da Europa
continental e insular.
As trocas comerciais com o Oriente se expandiram e a posição social
derivada dos ativos fi nanceiros adquiriu grande importância, maior do que
a pertinência tradicional a famílias. Como resultado, imprimiu-se uma mo-
bilidade socioeconômica sem precedentes, trazendo consigo modifi cações
culturais inevitáveis.
Com todas essas modifi cações, estabeleceu-se, pela primeira vez, um
verdadeiro commercium litterarum et artium, um intercâmbio cientifi co, ar-
tístico e intelectual até então inimaginável. A partir daí, verifi cou-se a pri-
meira grande experiência civilizatória do multiculturalismo, a oikoumene
(termo greco-romano, cujo sentido é mundo habitado) ou "civilização co-
mum", baseada num só direito e numa só língua (a koiné, variante simpli-
fi cada do grego ático, usada, sobretudo, durante o império romano), com a
participação da latinidade romana.
Instituiu-se uma organização societária regionalmente agrupada por
corporações profi ssionais que acabou por desenvolver um pensamento cos-
mopolita que se abriu a Leste e a Oeste e que, a um só tempo, passou a
infl uenciar tais áreas intelectual e artisticamente.
Alexandre pretendeu criar um grande estado multiétnico, em que o
legado macedônico coabitaria com a herança persa e asiática. A síntese de
tal estado seria obtida sob a hegemonia do legado cultural grego, período
que passou a ser conhecido como helenismo.
Essa época é identifi cada como o 4º período da civilização grega. O
ideal de sua difusão por parte de Alexandre se efetiva na fundação de várias
cidades durante suas conquistas (além de Alexandria, capital marítima do
Egito, cerca de outras 70 cidades com esse nome são igualmente fundadas).
Da planta urbanística de cada nova cidade devia constar, via de regra, um
conjunto arquitetônico mínimo compreendendo uma ágora, uma biblioteca,
um anfi teatro, um museu e um templo.
Segundo essa periodização da civilização grega, a fi losofi a, que nas-
cera na Grécia arcaica e alcançara seu apogeu na Grécia clássica, agora
se expande para além das suas fronteiras. Ao todo, seriam seis séculos de
fi losofi a grega. Se considerarmos, no entanto, o helenismo como período de
expansão de uma fi losofi a greco-romana e das doutrinas cristãs (a patrísti-

HISTÓRIA DA ARTE I 67
ca), como querem alguns, a fi losofi a antiga se estenderia até o século VI d.C.
Assim, ao todo, seriam dez séculos de fi losofi a grega.
Já o historiador inglês Arnold Toynbee, levando em conta a força da
cultura grega desde as invasões dóricas, amplia o conceito de helenismo
para um largo período de cerca de 1.300 anos, ou seja, a civilização que se
inicia no período homérico e que vai até a derrocada do Império Romano
no século V d.C., quando tem início a Idade Média. Corresponderia, as-
sim, à civilização grega continental e peninsular nascida no mar Egeu (cf.
TOYNBEE, 1986, p. 34 ss. e CUNHA, 2003, p.157). Toynbee defende que a
"Um elemento é a confi gu- força da cultura helênica começa, então, a partir do período mítico grego
ração da história política e se mantem numa linha de tempo que transcende as lutas fratricidas do
da própria civilização he- mundo grego, perdurando, mesmo quando a Grécia se vê dominada por
lênica. Na primeira fase
da história helênica de forças externas como foi o caso do Império Romano, oferecendo inclusive a
que temos registro, vemos unidade cultural coesionada pela Paidéia grega, necessária para preservar
um contraste marcante durante muito tempo aquela hegemonia imperial até o fi nal da era antiga.
entre a unidade cultural
do mundo helênico e sua Para efeito de nossa história da arte, consideraremos o período helenísti-
desunião política. Com- co a partir dos reinados de Filipe e Alexandre, conforme a primeira periodiza-
provamos que ele estava
politicamente divido entre
ção acima descrita, indo à queda do Império Romano, no século V d.C., época
certo número de estados de grande comoção marcada pela derrocada de uma civilização responsável
soberanos e independen- por imprimir traços indeléveis na cultura ocidental, durante séculos.
tes, cujos cidadãos re-
conheciam participar da
mesma cultura, o que não
os impedia de guerrearem
uns contra os outros. No
decurso do tempo, essas
guerras fratricidas torna-
ram-se tão devastadoras
que levaram a civilização
ao desalento. Quando se
chegara a um ponto de
dissolução, conseguiu-se
a saída de uma tardia uni-
fi cação política do mundo
helênico dentro do Impé-
rio Romano. Isso trouxe
paz e ordem temporárias,
mas com o proibitivo pre-
ço de uma série de “golpes
fatais” que terminaram
com a derrubada de todas
as potências, com exceção
de um único sobrevivente Alexandre Magno (Sarcófago – Museu Arqueológico de Istambul)
vitorioso. Pela época em
que o ‘estado universal’
helênico se estabeleceu As características mais fortes da cultura helênica foram a antropo-
em Roma, o mundo he-
lênico já estava tão gra- morfi zação dos deuses do Olimpo, um pensamento fortemente marcado pelo
vemente exausto e des- humanismo e o empenho de uma vida pública regrada por conceitos morais
moralizado que se tornou e racionais em perfeito equilíbrio com a liberdade pessoal. Com a nova or-
incapaz de manter seu
estado universal para a
ganização da vida helênica, imposta por Filipe e seu fi lho Alexandre, são
perpetuidade, e o colapso proporcionadas oportunidades individuais desconhecidas da antiga orga-
do Império Romano signi- nização das cidades-Estado. As características do período clássico, como a
fi cou a dissolução da civi-
lização helênica” (TOYN-
unidade do pensamento baseado na racionalidade objetiva do cosmos, pre-
BEE, 1986, p. 54) sidida pela noção de harmonia, princípio ordenador fi ncado na concepção
cosmogônica pitagórica bem como na valorização da vida pública da pólis,
fi carão profundamente abaladas durante o helenismo.
À unidade do pensamento fi losófi co da época clássica expresso pelo
platonismo e aristotelismo, sucedeu uma série de doutrinas como o estoi-
cismo, o epicurismo, o hedonismo e o ceticismo, fi losofi as que possuíam

68 HISTÓRIA DA ARTE I
em comum, preocupações individualistas, uma vez que o poder político se
havia distanciado da prática da pólis. Daí a convivência de um ecletismo
de valores, de experimentos, de teorias, de vivências religiosas e de precei-
tos artísticos inovadores. Além das profundas inflexões ocorridas no pen-
samento filosófico, o ethos individualista irá provocar fortes ressonâncias
em outras esferas da vida dos povos helenistas. Dispersos agora em vastos
reinos e não mais em comunidades constituídas pelas cidades-Estado, os
gregos substituem os sentimentos de cidadania plasmados na vida pública
da pólis por sentimentos individualistas.
Um dos aspectos mais afetados dar-se-á, de imediato, nas plantas da
moradia, cuja arquitetura, no século V a.C., revelava simplicidade e certo
despojamento. Apenas os prédios públicos eram edificados com suntuosida-
de. A partir do período helenístico, as plantas das casas obedecerão, de pre-
ferência, o desejo de oferecer maior espaço e conforto aos seus moradores.
Essa mesma tendência irá deslizar para as atividades ligadas às artes
cênicas. O coro do teatro grego – muito valorizado na Grécia clássica por
representar a ação do povo ou ações da coletividade –, passa para o segun-
do plano. Agora, a ênfase maior será dada ao desempenho individual dos
atores. Tal alteração irá ter consequências inegáveis na infraestrutura ar-
quitetônica dos teatros. Estes, na era clássica, como vimos, eram divididos
em três grandes partes bastante distintas: o espaço circular da orkhéstra;
o theatrum, a arquibancada semicircular destinada ao público; e a skene,
espécie de camarim que depois serviu de palco para atuação. O conhecido
Teatro de Epidauro (século IV a.C.) é um exemplo típico do teatro clássico.
A valorização do ator, no correr dos anos, faz dele o personagem mais
importante para as encenações dramáticas e a arquitetura teatral teve de
acompanhar a nova realidade. A alteração mais importante se deu no pal-
co. No período áureo do teatro grego, havia na frente do palco uma fachada
chamada proscênio, onde eram apoiados os cenários. Toda a ação dramá-
tica era apresentada no espaço circular. Somente quando havia o uso do
deus ex machina, ela se dava na cobertura do proscênio.
A partir do século II a.C., com o maior destaque para a performance
do ator se apresentando mais isolado do público, sua ação ganha maior
destaque. Como consequência, a cobertura do proscênio se transforma em
piso para a atuação dos atores. Atrás do proscênio ergue-se mais um andar
em cuja fachada há grandes aberturas nas quais são fixados os painéis que
compõem os cenários. Criavam-se, assim, as condições para o surgimento
do que passou a ser conhecido como palco italiano. Com tais modificações,
a orquestra deixou de ser um espaço circular completo e o local destinado
aos espectadores aproximou-se mais do espaço cênico. A concepção do te-
atro como um espaço arquitetônico unitário, e não mais dividido em três
partes, começou a ganhar força, atingindo seu apogeu um pouco mais tar-
de, entre os romanos.
A partir do século IV a.C., a escultura helenística apresenta traços
bastante característicos, distinguindo-a do classicismo anterior. O primeiro
deles se refere ao crescente naturalismo, mediante a expressão de afetos e
sentimentos do estado de espírito do momento, e não apenas a idade e a per-
sonalidade, conforme os cânones anteriores. Outro traço refere-se à alego-
rização, sob forma humana, de conceitos como a paz, o amor, a liberdade, a
vitória etc. Um terceiro traço bastante demarcante com relação aos períodos
anteriores, tanto o arcaico como o clássico, é o nu feminino. Vejamos três
belos exemplares de Vênus deste período:

HISTÓRIA DA ARTE I 69
1) A Afrodite nua do escultor Praxíteles tornou sua obra mais famosa.
Comprada pela cidade de Cnido, ficou conhecida como Afrodite de
Cnido, cuja cópia romana encontra-se em Roma (Museu do Vatica-
no). Nela, é possível observar o estilo clássico de Policleto, presente
em O Doríforo, em que o artista opõe membros tensos e relaxados,
combinando-os com o tronco onde tais movimentos se refletem.
Porém, tal princípio, aplicado às formas arredondadas femininas,
transparece um forte toque de sensualidade.
2) Nesse mesmo século IV, o escul-
tor Lisipo cria a Afrodite de Cápua,
cuja cópia romana encontra-se no
Museu de Nápoles. A estátua repre-
senta a deusa com o tronco despido
e a parte inferior do corpo coberto
com uma túnica toda drapeada, se-
gurando um escudo onde admira a
imagem refletida de sua própria be-
leza, trabalho que irá servir de mo-
delo para outras esculturas, confor-
me veremos no exemplo a seguir.
3) No século II a.C., surge certamen-
te a mais célebre escultura do perío-
do: a Afrodite de Melos ou a Vênus de
Milo para os latinos, cuja designação
tornou-se mundialmente conhecida.
Essa obra parece culminar a síntese
das características das duas obras
anteriores, ao combinar a nudez par-
cial da Afrodite de Cápua, de Lisipo,
Vênus de Milo com o princípio de Policleto aplicado
à Afrodite de Cnido, de Praxíteles.
A busca de uma maior mobilidade nas esculturas parece demarcar o
estilo dos artistas do início do século III a.C, que aparenta querer conduzir
o olhar do observador a percorrer o entorno das obras e, assim, atingir um
tipo de contemplação de 360 graus. Um belo exemplo dessa nova tendên-
cia é a Vitória de Samotrácia. Existe a hipótese de que a escultura estaria
atada à proa de um navio líder de uma frota. As formas da figura alada de
uma mulher, personificando o desejo de vitória, induziriam tal hipótese: a
túnica agitada pelo vento, as asas abertas ligeiramente voltadas para trás
e o impressionante drapeado das vestes coladas ao corpo, são indícios con-
figuradores de uma forma feminina aérea e flutuante, dando forte sugestão
de movimento.
Outra característica da escultura do período foi a representação de
grupos de figuras, sempre mantendo a ideia de mobilidade e, a um só tem-
po, de tensão dos corpos representados. E a escultura que melhor represen-
ta esse traço é certamente a bela estátua de Laocoonte e seus filhos, esculpi-
da, provavelmente, na metade do século I a.C. O grupo de Laocoonte é uma
estátua esculpida em mármore, que retrata o sacerdote-representante de
Apolo com seus dois filhos sendo estrangulados por duas serpentes mari-
nhas, episódio dramático da Guerra de Tróia, relatado por Homero na Ilíada
e pelo poeta Virgílio na Eneida. Laocoonte teria sido o único a pressentir o
ardil de Ulisses (autor da ideia da construção do cavalo de Tróia), resistindo

70 HISTÓRIA DA ARTE I
à sua introdução para o interior das muralhas da cidade. Reza a lenda que
Poseidon, deus dos mares que favorecia os gregos, teria enviado duas ser-
pentes para calar a voz do sacerdote.
Existe muita beleza no conjunto escultórico dos corpos retorcidos ex-
pressa nos músculos retesados que buscam desesperadamente se livrar dos
anéis das serpentes, Os rostos do sacerdote e dos filhos demonstram toda a
carga de dramaticidade representando o pavor e a angústia da inutilidade
do gesto, prenunciando, assim, o desfecho fatal da morte que se avizinha.
Esta escultura teria provocado grande admiração em Michelângelo e grande
influência no seu estilo.

Estátua de Laocoonte e seus filhos (Vaticano)

O helenismo se caracteriza também pela importância adquirida pe-


las ciências, cuja natureza sofre uma importante inflexão na medida que
se descola do corpus das doutrinas filosóficas da antiguidade clássica. As
ciências afloram como matéria autônoma. Embora pensadores gregos conti-
nuassem concentrados na filosofia, seus pares alexandrinos enfatizavam as
pesquisas de caráter científico em áreas como a matemática, a astronomia,
a geometria, etc.
Nessa empreitada, destaca-se o rei Ptolomeu II Filadelfo (308 a 246
a.C.), que não poupa despesas para construir um museu, um zoológico e
um impressionante conjunto de edificações acadêmicas, onde eram conce-
didas privacidade e liberdade aos intelectuais dedicados à pesquisa. Nesse
contexto é criada, no interior do museu, a maior biblioteca da antiguidade,
a ”Biblioteca de Alexandria”, que reunia obras de todo o mundo antigo: to-
dos os textos e documentos da época deveriam ter uma cópia na biblioteca.
Como a biblioteca sofreu muitos reveses, inclusive vários incêndios,
perdeu-se muito de seu acervo, não sendo possível determiná-lo com pre-
cisão, mas calcula-se que teria chegado a cerca de um milhão de volumes.
A instituição tinha como principal objetivo preservar e divulgar a cultura
da antiguidade. Continha, inclusive, muitos livros advindos de Atenas. A

HISTÓRIA DA ARTE I 71
biblioteca se tornou um grande centro de comércio e fabricação de pa-
piros. Tais condições favoreceram a reunião e confluência de cientistas e
pesquisadores dos vários ramos das ciências que passam a estar ligados à
biblioteca, a exemplo do matemático Euclides de Alexandria (século IV a.C),
pioneiro no estudo da ótica e considerado gênio da geometria, cujos princí-
pios vigoravam até o início do século XX.
Além dele, a lista dos grandes frequentadores da biblioteca e do mu-
seu inclui grandes nomes das ciências e da filosofia. Eis alguns grandes
cientistas de Alexandria, cobrindo uma vasta linha de tempo, da antigui-
dade clássica à era cristã:
Aristarco de Samos (século III a.C): astrônomo, o primeiro a presumir
o sistema heliocêntrico. Usou a trigonometgria na tentativa de calcular o
tamanho do Sol e da Lua e suas respectivas distâncias.
Arquimedes (século III a.C): matemático, físico e inventor, tendo rea-
lizado diversas descobertas e os primeiros esforços científicos para calcular
o número (razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro).
É considerado um dos mais importantes cientistas da antiguidade. Na Fí-
sica, contribuiu para a fundação da hidrostática, tendo feito, entre outras
descobertas, o famoso princípio que leva o seu nome.
Cláudio Galeno (século II d.C.): filósofo e médico cujos livros sobre
a ciência da medicina tornaram-se padrão por mais de 12 séculos. Tendo
adquirido fama, tornou-se médico particular do imperador romano Marco
Aurélio. Fez várias experiências médicas, incluindo vivissecção e necropsia.
Ptolomeu (século II d.C): astrônomo cujos escritos geográficos e as-
tronômicos foram aceitos como padrão, a exemplo do sistema geocêntrico,
cujos princípios foram acatados e defendidos pela Igreja, sendo apenas con-
testados 1.400 anos depois
Hipátia (século IV e V d.C) astrônoma, matemática e filósofa, raro caso
de figura feminina dedicada às ciências para a época, tendo sido diretora
da Biblioteca de Alexandria. Morreu tragicamente, tendo sido assassinada
devido à intolerância religiosa.

2. O surgimento de Roma
O surgimento de Roma já aconteceu envolto em lendas e narrativas
míticas. Segundo a mitologia romana, Rômulo, junto com seu irmão gêmeo
Remo, seria seu fundador e seu primeiro rei. Tradicionalmente a data da
fundação de Roma é atribuída ao ano de 753 a.C. Os dois gêmeos eram
filhos do deus da guerra Marte com a vestal Reia Sílvia, descendentes de
Eneias, um troiano sobrevivente da guerra de Tróia que, depois de uma via-
gem errática pelo Mediterrâneo, teria aportado à região atual da Itália. Se-
gundo esse mito, Eneias seria o ancestral de todos os romanos. A Eneida,
poema épico de Vírgilio, narra a epopeia do herói, depois de Tróia destruída.
Encomendado pelo imperador Augusto, o poema pretende ser uma versão
latina da obra de Homero, a Ilíada e a Odisseia.
De origem obscura, os etruscos eram habitantes da antiga Etrúria,
região setentrional da península itálica, ocupando boa parte dela entre os
séculos XII e VI a.C. Mas eles não se limitaram à Etrúria e chegaram Lácio,
região onde iria se localizar a futura Roma. Portanto, o domínio da civili-
zação etrusca sobre grande parte da península itálica, inclusive a parte
romana, perdurou mais de seis séculos.

72 HISTÓRIA DA ARTE I
De forma bem sintética, podemos dizer que a arte romana, portanto,
sofreu duas fortes influências: a da arte etrusca, voltada de preferência para
a expressão mais realística da vida, e a da greco-helenística, orientada para
a expressão de um ideal de beleza, perseguido por muitos de seus artistas.
Porém, o legado artístico etrusco mais relevante deixado aos romanos
foi o uso do arco e da abóbada em suas construções, dois elementos arqui-
tetônicos desconhecidos na Grécia. Com esses dois elementos, os romanos
ampliaram os espaços internos, sem utilizar colunas, o que era próprio, por
exemplo, dos templos gregos.
Sem o uso do arco, o vão entre as colunas era delimitado pelo tama-
nho do mesmo, cujas distâncias entre elas não podiam ser muito grandes:
quanto maior era a viga, maior a tensão sobre ela. E o uso frequente de
materiais rochosos mais resistentes como a pedra não suportava grandes
tensões. Daí o uso característico das colunatas dos templos gregos, ocasio-
nando a redução do espaço de circulação. Com o uso do arco, permitiu-se
ampliar o vão entre as colunas, pois seu centro não ficava sobrecarregado,
visto que o peso encontrava-se distribuído de modo homogêneo sobre ele.
Como o arco era construído com blocos de pedra, a própria tensão desses
os fazia serem comprimidos uns contra os outros, dando ao arco maior es-
tabilidade.

Os Esposos de Cerveteri Sarcófago em terracota (arte etrusca)

Examinemos a civilização romana, que nos legou uma cultura decisi-


va para a formação do que passou a ser conhecido como mundo ocidental.
Até o século VII a.C., Roma era apenas uma modesta cidade do Lácio. No
século IV a.C. começa sua expansão territorial, contando para isso fortes
interesses comerciais, um sólido sistema republicano e um exército bem
disciplinado.
Ao conquistar povos do Oriente, inclusive as cidades helenizadas, os
romanos tomam contato com a arte e cultura gregas, causando neles uma
admiração sem limites. Nascia, assim, o que passou a ser largamente co-
nhecido como a civilização greco-romana. Na verdade, a despeito de certo
senso comum de ver a civilização romana como mera imitadora da cultura
grega, Roma não se limitou a imitar, mas soube coesionar as influências
do Mediterrâneo (a grega, a etrusca, a egípcia e a do Oriente Próximo) para
recriar um estilo original e cosmopolita. Historiadores da arte consideram
o final do primeiro século d. C. a libertação de Roma das duas influências

HISTÓRIA DA ARTE I 73
principais, a grega e a etrusca, pronta para as suas criações independentes
e originais.
Pragmático, o Império Romano soube implantar onde chegou, sua or-
ganizarão política e econômica apoiada no conceito de urbs, a cidade la-
tina. A civilização imposta pelos romanos era composta de muitos povos,
culturas, deuses e estruturas políticas diferentes, cujo centro de comando
sediava-se em Roma, habitada por uma elite consumidora de produtos de
luxo, muitos dos quais vindo do Oriente. Mediante alianças, acordos ou
imposições pela força militar de suas legiões, Roma soube construir um im-
pério de dimensões extraordinárias. No século II a.C., era a potência máxi-
ma do Mediterrâneo, que os romanos, manifestando intenso sentimento de
pertença, chamavam de Mare Internum Nostrum. Seus limites iam do norte
da África à Europa Central e às Ilhas Britânicas, da Hispania à Pérsia.
O processo de romanização inicia-se com a urbanização dos territó-
rios anexados no ano 27 a.C., quando Otávio recebe o titulo de Augusto.
Para administrar com êxito a magnitude de seu território foi preciso encon-
trar soluções efi cazes, como o uso de novos materiais e procedimentos cons-
trutivos. Premidos pelas circunstâncias históricas, os romanos aprenderam
a ser excelentes construtores, aliando em suas edifi cações, o pragmatismo
de seus fi ns com novos valores estéticos, conforme veremos.

O Século de Augusto
Análogo ao século de Péricles, a civilização romana teve também seu
correlato com Caio Julio César Otaviano Augusto, cujo império cobriu um
período de 40 anos, marcando uma das épocas mais brilhantes da civilização
romana. Após conhecer o poeta Virgílio, o imperador passa a financiar sua
arte. Além desse, favorece também o historiador Tito Lívio, o arquiteto Vit-
rúvio e vários outros literatos, contando para a ampliação de seu patrocínio
às artes e letras com a parceria do seu ministro, Caio Mecenas.
Assim, no campo cultural, o Século de Augusto foi rico, cheio de pro-
messas criadoras, inaugurando uma época clássica para a arte europeia,
um classicismo latino que, mil anos depois, no período renascentista, ainda
dava frutos. Nessa época, foram fundadas várias bibliotecas públicas, a li-
teratura latina, anteriormente colada ao modelo grego, ganhou autonomia,
tornando-se uma das mais brilhantes da cultura ocidental. Como vimos, foi
de fundamental importância, para as artes, a sua aliança com o rico cidadão
e estadista romano Caio Mecenas. Ao administrar a grande fortuna familiar
tornou-se hábil conselheiro de Augusto César. Retirado da vida política, em-
penhou-se intensamente na proteção generosa das artes, incluindo, no seu
círculo literário, famosos homens das letras como Horácio e Virgilio. Augusto
construiu o fórum, que leva seu nome, as primeiras termas, no campo de
Marte, e vários templos, como o dedicado a Roma e a ele próprio por todo
o império. A Roma de Augusto tornou-se conhecida como “cidade de már-
more”. Ergueram-se templos à deusa Roma e a Augusto por todo o império.
O século de Augusto se notabilizou também por ter iniciado a Pax Ro-
mana ou Pax Octaviana, expressões latinas para designar a situação de re-
lativa paz do Império, iniciada quando Augusto César, em 27 a.C., declarou
o fim das guerras civis, o que nem sempre foi obtido, e que teria perdurado

74 HISTÓRIA DA ARTE I
até 180 da era cristã, sob o império de Marco Aurélio. Mas a pax que caracte-
riza o período deveu-se à neutralização das constantes investidas dos povos
do Norte, os chamados povos bárbaros, graças à ocupação das províncias
por exércitos permanentes que impunham a ordem, reprimindo pela força,
qualquer tentativa de revolta. Apesar de seu caráter violento, a pax romana
proporcionou uma época de relativa estabilidade e prosperidade, durante a
qual a civilização romana se estendeu a todo o Império, consolidando assim
o processo de romanização do mundo sob seu domínio.
Vários historiadores atribuem a este período de relativa tranquilidade
e paz – fincado em certa unidade cultural propiciada pela mesma língua (o
koiné, espécie de grego popular) e pelo mesmo sistema jurídico e adminis-
trativo, bem como pelo intenso comércio e convívio entre os vários povos –,
as condições objetivas para a difusão do protocristianismo.

3. O sistema das artes romanas


3.1. Os templos
A construção dos templos romanos costumava se dá num plano mais
elevado, cujo acesso era alcançado depois de se vencer uma escadaria dian-
te do seu lado frontal principal, fazendo com que essa parte se distinguisse
das laterais e do fundo da construção. Com isso, estabelecia-se claramente
sua diferença em relação aos templos gregos que se preocupavam em fazer
da frente, fundo e laterais, partes equivalentes, duas a duas, em sua arqui-
tetura. Existe outra distinção marcante na concepção arquitetônica das
duas civilizações: enquanto a grega edifi cava templos para sua contempla-
ção externa, a romana preocupava-se mais com seus espaços interiores. O
Panteão, construído no reinado do Imperador Adriano (117-138 d.C.), é um
fl agrante exemplo dessa característica. Marcos Agripa, genro de Otávio Au-
gusto, teria iniciado sua construção em 27 a.C.
O pragmatismo romano levou não apenas à tolerância da diversidade
de culto, mas chegou a edifi car um templo onde se pudesse encontrar es-
tátuas de suas divindades. O Panteão (do grego pántheon, todos os deuses)
possui uma planta circular fechada por uma cúpula, criando um local iso-
lado do exterior, propicia um clima de recolhimento para o culto. Conside-
rado como o maior monumento representativo da arquitetura greco-romana
que chegou intacto até nossos dias, passou a ser um templo cristão a partir
do século VI.

3.2. O teatro
Devido ao uso de arcos e abóbadas herdado dos etruscos, foi per- “As cavidades quadradas
mitido, aos romanos, construir edifícios muito mais amplos do que os de que compõem a cúpula
infl uência grega, sobretudo quanto a seus anfi teatros, destinados a abrigar [do Panteão] vão dimi-
nuindo à medida que se
um número bem maior de pessoas graças à alteração feita na planta grega. aproxima do centro. Esse
Os construtores romanos, ao justapor fi leiras de arcos, conseguiram recurso aumenta a sensa-
ção de perspectiva e ter-
um sólido e seguro apoio para construir o auditório, uma grande arqui-
mina numa abertura de 9
bancada para receber publico. Com tal procedimento, liberaram-se das en- metros de diâmetro, per-
costas rochosas das colinas, conforme o projeto grego, tendo como conse- mitindo a entrada da luz
quência imediata a possibilidade muito mais fl exível de erigir teatros em natural que torna o am-
biente interno claro e leve,
qualquer local, independentemente de sua topografi a. apesar da monumenta-
Partindo do uso do arco e da abóbada como um dos recursos ca- lidade da construção”.
(PROENÇA, 1989, p. 40)
racterísticos de sua arquitetura, os romanos usaram ainda como suporte

HISTÓRIA DA ARTE I 75
grossos pilares. Além da pedra, empregaram com frequência o tijolo, mais
flexível e barato. Mas foi o opus caementicium, o concreto antigo, sua gran-
de descoberta, espécie de argamassa líquida de cal, areia, partes de pedra
e água, mistura que se consolidava e endurecia rapidamente, permitindo
grandes projetos. Armado o esqueleto da construção, recobriam-na em mui-
tos casos, com mármore e pedra, criando grandes espaços internos.
Como o povo romano apreciava as lutas dos gladiadores, o espetáculo
possuía boa visibilidade independente do ângulo que era usado, cuja ação
se dava numa arena, espaço circular elíptico circundado por muros radiais,
e um gigantesco auditório composto por um grande número de filas de as-
sentos, formando uma arquibancada.
O subterrâneo da arena contava com um complexo sistema de ga-
lerias, passadiços, depósitos, celas para os animais e mecanismos para
elevar, à arena, os homens e animais. Todas as cidades possuíam um an-
fiteatro, mas, com toda certeza, o mais grandioso e belo foi o Flavio (século
I d.C.), mais conhecido como o Coliseu de Roma, com uma capacidade de
aproximadamente 75.000 lugares. Nos seus alicerces foi utilizado o opus
caementicium e nos pilares e na fachada, blocos de pedra.
Externamente o edifício apresentava uma combinação de arcos entre
colunas e entablamentos, apresentando, em sentido ascendente, uma so-
breposição de ordens toscana, jônica e coríntia. As colunas eram, na ver-
dade, meias colunas, pois ficavam atadas à estrutura das arcadas, não
exercendo, portanto, a função de apoio à construção, mas apenas, de orna-
mentação.

3.3. A escultura
Inicialmente, a admiração dos romanos dirigida à arte grega não im-
pediu que, graças às suas características culturais pragmáticas, procuras-
sem caminhos estéticos diferentes. Tendo herdado o realismo da arte etrus-
ca, eles produziram esculturas que são uma representação fiel das pessoas
e não do ideal de beleza humana, conforme perseguiam os gregos.
No entanto, mediante o contato mais
frequente com esses últimos, os escultores
romanos sofreram forte influência das con-
cepções helenísticas a respeito da arte, sem
abdicar um interesse muito próprio e pecu-
liar: representar os traços individualizado-
res da pessoa retratada. Ocorreu assim uma
síntese entre a concepção artística romana e
grega, o que se pode verificar na estátua de
Augusto (c.19 a.C).
Seu autor teria se inspirado no Doríforo
de Policleto (sempre ele) como paradigma de
beleza escultórica, porém com algumas al-
terações para adaptá-la ao gosto romano. A
obra procura captar as reais feições de Au-
gusto, vestindo-o com uma couraça e uma
capa romanas. Seu olhar fixo com o braço
direito estendido como se dirigisse aos seus
súditos e sua perna esquerda levemente do-
brada lhe dão mais flexibilidade e movimento. Gaius Iulius Caesar Octavianus
Augustus

76 HISTÓRIA DA ARTE I
O estilo romano, representado pela aplicação de elementos bem de-
terminados, como nas esculturas dos imperadores, podia ser também visto
nos monumentos destinados a celebrar algum feito relevante do Império e
o realismo pragmático característico se fazia igualmente presente em sua
arte escultórica.
O interesse pelo realismo e a veracidade levou a arquitetura romana a
substituir motivos mitológicos e intemporais, tão caros aos gregos, por as-
suntos de seu tempo, quase sempre vinculados à administração do Império.
São relevos detalhistas, plenos de pormenores históricos, com personagens
reais, protagonistas dos eventos narrados A Coluna de Trajano e a Coluna de
Marco Aurélio são dois nítidos testemunhos de tal marca.

Detalhe da coluna de Trajano (114 d.C.)

Projetada por Apolodoro de Damasco, um dos maiores arquitetos do


Império Romano, a Coluna de Trajano narra a campanha do Imperador ro-
mano e de seu exército contra os povos da Dácia (região da Europa centro-
oriental, às margens do mar Negro), com a clara intenção propagandística
do Imperador. Ao longo da coluna, sua figura aparece mais de 60 vezes,
sempre numa escala ligeiramente superior a dos demais personagens, glo-
rificando sua capacidade militar. O grande número de figuras esculpidas
em relevo faz dessa obra monumental do auge da arte imperial romana,
um importante documento histórico em pedra, contendo um expressivo
valor artístico: batalhas, pilhagens e acampamentos militares apresentam
cerca de 2.500 figuras individualizadas, expressadas em grande realismo.
A Coluna de Marco Aurélio, produzida para celebrar o êxito da sua campa-
nha no norte europeu, mostra todo o realismo do relevo romano expresso
na agressividade dos soldados massacrando sem piedade os adversários já
derrotados e caídos ao chão.

HISTÓRIA DA ARTE I 77
3.4. A pintura
Devemos atualmente o conhecimento da maior parte das pinturas ro-
manas graças às descobertas das cidades de Pompeia e Herculano, soterra-
das e conservadas debaixo dos escombros, sob a lava endurecida da erup-
ção do Vesúvio em 79 d.C. Assim foi possível o contato com a pintura
decorativa dos murais, sobretudo com a técnica do afresco*. A partir da
pesquisa desse acervo remanescente foi possível reconstruir um quadro
bastante sugestivo da fecunda e diversifi cada vida artística da Roma Anti-
ga, na virada da era cristã (período de transição da República para o Impé-
rio). Desde suas origens etruscas, Roma tinha sido uma grande consumido-
ra e produtora de arte tributária dessas origens que, por sua vez, recebera
infl uxos da arte grega arcaica.
Basílica: grande edifício Ao entrar em contato com a arte hele-
de origem helenística,
cuja arquitetura foi lar-
nista, a arte romana passou a assimilar seus
gamente difundida pelos princípios em todos os campos artísticos,
romanos, sendo mais tar- alterando-os, no entanto, para atender aos
de adaptada pelos tem- seus traços de pragmatismo realista; não foi
plos cristãos para uso de
seus cultos. Na realidade, diferente com a pintura. É por demais sabido
a basílica é uma transfor- o costume romano de copiar obras célebres,
mação da ágora colunada bem como de fazer variaçôes sobre técnicas
grega, que os romanos
cobriram, construindo, e temas gregos, conforme já analisamos. Se-
assim, um tipo de edifí- gundo vários relatos, as obras gregas eram
cio para diversos usos de altamente cobiçadas durante as conquistas Cena do cotidiano de uma famí-
caráter público, como as- lia de Pompeia (afresco)
sembleias cívicas, tribu- militares. Assim, devemos aos romanos o
nais, bem como atividades muito do que hoje sabemos sobre os estilos
comerciais e sociais. da pintura grega. Podemos contemplar afrescos dispersos em toda a área do
Mosaico: o termo mosai-
antigo império romano, mas é graças sobretudo à preservação dos numero-
co (do grego mouseîn), o sos exemplares das cidades de Pompeia e Herculano que podemos aquilitar
mesmo que deu origem a qualidade e excelência da pintura romana, cuja infl uência tornou-se bas-
à palavra música, pró-
prio das musas, refere-se
tante signifi cativa para a pintura ocidental.
a uma arte conhecida,
desde a antiguidade, no
Oriente Próximo e Médio:
sumérios, babilônicos,
egípcios e judeus recor-
reram ao mosaico para
decorar os seus templos.
A tradição ostentada no
Ocidente não se origina, As termas
porém, daqueles povos
orientais, mas sim do "As termas adquiriram uma grande importância e monumentalidade,
helenismo. Sua técnica pois o banho constituía um dos prazeres favoritos dos romanos. Eram luga-
consiste na montagem
res de encontro onde estreitar as relações sociais, nas quais, além de tomar
de pequenos fragmentos
(tesselas) de pedras se- os banhos, os romanos conversavam, passeavam, liam, ouviam conferên-
mipreciosas, cerâmica cias, descansavam, jogavam ou praticavam esporte. E nas quais se vendiam
ou vidros coloridos, már- bebidas e doces, faziam-se massagens e se podia depilar. Isto explica que
more, conchas, formando
em cada cidade houvesse uma quantidade de termas (que no caso de Roma
desenhos com motivos de
diversas naturezas, como superavam as duzentas) abertas a todos, independentemente da condição,
fi guras mitológicas, fi gu- idade ou sexo de cada um.
ras cristãs como mártires
e santos, bem como ani-
Inicialmente as salas eram aquecidas com braseiros, mas mais tarde
mais ou outros símbolos apareceu o sistema de aquecimento chamado hipocausto. Este faz circular ar
alegóricos, com o objetivo quente sob o pavimento e entre as paredes, ar que se aquece com um grande
de preencher algum tipo forno ou chaminé colocada [sic] no porão e alimentada [sic] com madeira.
de superfície, como pisos
e paredes, ou então algum Nos edifícios termais havia uma série de aposentos de diferentes ca-
objeto tridimensional. racterísticas e função, adaptados à alternância de banhos de água quente e

78 HISTÓRIA DA ARTE I
fria e a passagem por outros de ambiente morno ou temperado. Muitas eram
decoradas [sic] com pinturas ou estuques, e pavimentadas com mosaicos*.
Não existem dois edifícios termais idênticos. As plantas variam, segun-
do o circuito ou percurso previsto em cada caso. Nero, em 64 d.C., implantou
um modelo muito imitado posteriormente, de grandes dimensões (mais de
16.000 metros quadrados) e submetido a um rígido princípio simétrico com
salas duplicadas em torno de um eixo central.
Reza a tradição que a ade-
O conjunto incluía vestiários (apodyteria), salas com piscinas de água
são de Constantino à fé
quente (caldarium), morna (tepidarium) e fria (frigidarium), sauna (sudatio), cristã deu-se logo após a
além de latrinas, ginásios, salões, bibliotecas e jardins. vitória sobre o Imperador
Maxêncio, na batalha da
De tamanho colossal, com gigantescas dimensões, são uma amostra Ponte Mílvio (312), perto
dos problemas construtivos que foi capaz de resolver o arquiteto romano na de Roma; Na noite ante-
hora de abobadar grandes espaços, na distribuição e ordenação da planta e rior sonhara com uma
as instalações ou na iluminação. O exemplo mais grandioso de termas impe- cruz com a seguinte fra-
se em latim: in hoc signo
riais nos oferece o edifício mandado construir por Caracalla entre 212 e 217 vinces (“sob este símbolo
d.C." (História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea, p. 30) vencerás”). Antes da bata-
Como vimos, a arte romana revela um povo possuidor de um gran- lha, mandou pintar uma
cruz em todos os escu-
de espírito pragmático: por onde estiveram, fundaram cidades cujos nomes dos dos soldados e obteve
ou formatos se inspiravam em acampamentos militares fortificados, como uma vitória esmagadora,
Colônia, na Alemanha, e Léon, de legio (legião), na Espanha. Nas cidades que Constantino atribuiu
construídas ou conquistadas, erguiam templos, teatros, termas, aquedutos, ao Deus cristão.
mercados e basílicas,* grandes edifícios para diversas atividades governa-
mentais.

4. O fim do império
Morto Marco Aurélio, termina o longo período da pax romana. Na ver-
dade, como se viu, foi apenas um período de relativa tranquilidade no que se
refere à contenção das investidas dos bárbaros mantidos, manu militari, nos
limes (extensas muralhas fortifi cadas nas regiões fronteiriças do império).
Depois das primeiras décadas do século III, as lutas intestinas pelo controle Afresco
O afresco é uma técnica
e mando do Império se acirraram e, além disso, houve a intensifi cação da de pintura mural, cuja
pressão dos povos bárbaros, principalmente das tribos germânicas do norte preparação da superfície
que, cada vez mais, investiam a partir das suas fronteiras. A impossibili- exige grandes cuidados
na aplicação da camada
dade de manter unifi cado o imenso Império, que mais e mais se expandia,
de gesso que deve ser bem
levou o Imperador Teodósio I (395) a dividi-lo entre os dois fi lhos, o que foi lisa e fi na. É aí que o artis-
feito após sua morte: Honório fi cou com a porção ocidental, capital Roma, e ta executa sua obra. Essa
Arcádio fi cou com a porção oriental, capital Bizâncio, depois Constantino- superfície assim prepara-
da deve estar úmida para
pla, em homenagem a Constantino, o primeiro imperador a aderir ao cris- receber a tinta. Com a
tianismo . São diversas as causas atribuídas à queda do Império Romano, evaporação da água, a cor
dentre elas, as constantes guerras intestinas e as frequentes investidas dos da tinta adere ao gesso e
o gás carbônico do ar, ao
bárbaros cada mais vez difíceis de serem mantidos nas linhas dos limes. se combinar com a cal, a
Era o início do declínio do grande Império. Durante o século V, Roma foi transforma em carbonato
invadida e saqueada diversas vezes até que, em 476, perde o domínio do de cálcio, fi xando, assim,
o pigmento à parede. A
seu vasto território do Ocidente para Odroaco, chefe da tribo germânica dos pintura seca se incorpo-
hérulos, que invade a Itália e depõe Rômulo Augusto, o último soberano do ra ao reboco, tornando-a
Império Romano do Ocidente. parte constitutiva da pa-
rede. Tal técnica oferece
A intensa vida urbana do período áureo do Império, resultado, dentre difi culdades de aplicação
outras coisas, do intenso comércio entre os vários povos dominados, admi- pelo fato do artista ter que
nistrados pelo pragmatismo de um competente sistema jurídico-organiza- prever o real tônus cromá-
tico que queira fi xar, pois,
tivo, se esvazia, dando lugar a um lento, progressivo e constante processo a camada, ao secar, pode
de ruralizaçao. Para muitos historiadores, esta data marca o fi m do longo alterar substancialmente
período da Idade Antiga e o começo da Idade Méia. a tonalidade da cor pre-
tendida.

HISTÓRIA DA ARTE I 79
Capítulo 2
As artes na alta Idade Média: o bizantino, o
gregoriano e os períodos merovíngio e
carolíngio

1. A protoarte Cristã
O nascimento e a propagação da fé cristã pelo Império, como se viu,
se dá durante o período da pax romana. Cedo, Roma passara a ser a resi-
dência do primeiro papa, tornando-a também o centro da protocristanda-
de. Porém, ao contrário do pragmatismo tolerante com outras religiões, até
Constantino, o Império Romano perseguira cruelmente, em vários períodos,
o cristianismo, devido, dentre outras causas, ao combate à escravidão, cru-
cial base do Império, bem como ao questionamento da divindade da fi gura
do imperador. Contudo, a nova fé cristã passa a ser a religião ofi cial do Im-
pério Romano, em 390, com Teodósio.
Para fugir das perseguições, os primeiros cristãos refugiavam-se nas
catacumbas, cemitérios subterrâneos, onde também praticavam o culto e
pintavam símbolos da religião como o peixe (ichtys em grego), na verdade
as iniciais da expressão Iesous Christos, Theous Yous Soter, isto é, “Jesus
Cristo, Filho de Deus Salvador”. Esse sinal cifrado da pessoa de Cristo e, a
um só tempo, espécie de código de identifi cação no interior da comunidade
de fi éis foi, de fato, a primeira imagem pintada da protoarte cristã. Quando
a ocasião lhes era propícia, os fi éis pintavam cenas das Sagradas Escrituras.
No início, o culto cristão era realizado em sinagogas, junto com o culto
judaico. Conquistada a garantia de culto pelo Concílio de Niceia, em 313,
termina a perseguição aos fi éis. Com o maior afl uxo de convertidos, foram
sendo construídos cada vez mais templos cristãos, cujo estilo arquitetônico
obedecia às características do modelo das basílicas, por serem possuidoras
de maior espaço em seu interior.
A planta do espaço interno do templo tinha que ser organizado para
atender às exigências do culto. Geralmente, constava de uma nave central
bastante ampla, sem bancos, onde permaneciam os fi éis durante a cerimô-
nia. A extremidade do eixo da nave fi nalizava com uma ábside, geralmente
em forma semicircular, com o altar à sua frente.
Com o tempo a grande nave passou a ser atravessada por um tran-
septo (galeria transversal no corpo da nave) originando a planta cruciforme,
um templo no formato de uma grande cruz latina, com o transepto em di-
mensão menor que o eixo da nave. Outra planta cruciforme era baseada na
cruz grega, cujas hastes têm as mesmas dimensões, o que signifi ca que as
naves atravessadas eram exatamente iguais. Suas paredes e teto passaram
a ser ornamentadas com pinturas e mosaicos tendo em vista a transmissão
dos mistérios da fé.
Nesse período, o teor e a forma das manifestações artísticas, além de
sua clara subordinação à fé, possuíam papel crucial na propagação e edu-
cação da doutrina cristã. Se a estética cristã (se é que podemos nos referir a
esse conceito, tal era o desinteresse manifesto por parte do protocristianis-
mo pela matéria), expressava uma forte aversão às imagens e à estatuária,
pelo receio da idolatria (houve vários levantes violentos dos iconoclastas

80 HISTÓRIA DA ARTE I
promovendo a destruição de imagens), a Igreja logo percebe sua força como
forma de fixar a doutrina no seio de uma população analfabeta O recurso
das imagens passa a ser visto coma a biblia pauperum, a bíblia dos pobres,
para aqueles cristãos que não sabiam ler, muito menos sabiam latim. Tal
recurso funcionava com uma narrativa por imagens, constituindo, assim,
um dos mais cruciais elementos fundantes da arte euro-ocidental.

2. A Arte Bizantina
Constantinopla, anteriormente Bizâncio, fundada por colonos gregos
em 657 a.C e refundada em 330 por Constantino, foi o grande centro irra-
diador do primeiro grande estilo de arte cristã, a Arte Bizantina. Escolhi-
da como capital oriental do Império Romano, desde a sua divisão em 395,
graças à sua localização privilegiada, era um excelente centro comercial e
manufatureiro, por onde passavam várias rotas mercantis da Europa, Ásia
e Oriente Médio. Rebatizada como Constantinopla, deu continuidade à an-
tiga política expansionista e centralizadora de Roma, substituindo, assim, o
papel da antiga capital do Império.
Situada estrategicamente entre a Europa e a Ásia, no estreito de Bós-
foro, na confluência de várias culturas de inegável vigor, Constantinopla foi
o berço da arte bizantina que, sintetiza, em sua forma e conteúdo, influxos
estéticos de Roma, da Grécia e dos chamados Oriente Próximo e Médio, ou
seja, a arte bizantina expressa a síntese do cristianismo, do helenismo e do
orientalismo. Fortemente cristã, ostenta um ar majestoso.
A coesão de elementos dessas distintas culturas configurou um estilo
novo, rico tanto na técnica como na cor. O termo bizantino passou a desig-
nar as manifestações artísticas de todo Império do Oriente e não apenas a
arte daquela cidade. Ao contrário do teor e da forma singela da primeira arte
cristã do período das catacumbas, feita na época de uma igreja padecente,
por pessoas simples, sem maiores intenções de buscar efeitos estéticos, a
arte bizantina expressa o momento do luxo e esplendor de Constantinopla.
Assim, desde a oficialização da religião cristã, a arte assume um estilo ma-
jestoso, representando a riqueza e o poder de uma igreja triunfante.
A arte bizantina estava sob o comando dos hierarcas da Igreja, a quem
cabia, além das funções litúrgicas, organizar igualmente todo o sistema das
artes, cuja finalidade era bem clara: expressar a autoridade do Imperador,
considerado sagrado e representante divino, com poderes sagrados e tem-
porais, procurando conciliar a espiritualidade necessária para a prática do
culto com a ostentação e o luxo da realeza, típicos de longa tradição orien-
tal. Mas a expressão da linguagem artística cristã não se manifestou logo
de forma pura. Ainda durante os reinados de Constantino e Teodósio, no
século IV, era possível encontrar estátuas de deuses e figuras mitológicas
greco-romanas, nas primeiras igrejas cristãs. Foi somente no reinado de
Justiniano (527-565) que Constantinopla adota definitivamente as caracte-
rísticas de um Estado fortemente teocrático com o cristianismo já oficializa-
do como religião imperial, que acumula, nas mãos, todos os poderes.
Para isso, a arte bizantina tornou-se objeto de uma série de normas
canônicas, convertendo-se numa arte tipicamente dirigida, à imagem e se-
melhança da arte egípcia faraônica, só que voltada à exaltação dos ideais
cristãos e à glória de seus representantes, os imperadores. Assim o mo-
narca era representado com a cabeça aureolada, a exemplo do mosaico do
Imperador Justiniano (início do século VI), convenção aplicada a figuras sa-

HISTÓRIA DA ARTE I 81
gradas e aos santos canonizados, não sendo raro encontrar mosaicos onde
eles estão ladeando a Virgem Maria e o Menino Jesus.
Por outro lado, via de regra, as fi guras de Cristo e de Maria eram re-
presentadas como rei e rainha, dando, assim, a ideia de que tais fi guras
sagradas eram dotadas das mesmas características das personagens do
Império. A mesma intenção encontra-se no cortejo de santos e apóstolos que
se aproxima de Cristo e Maria com o mesmo respeito, pompa e cerimônia
exigidos dos súditos nas solenidades da corte.
Outra convenção foi a lei da frontalidade, pela qual o olhar contem-
plante podia observar a fi gura rígida do imperador e manifestar respeito e
admiração por ela. Além dessa, várias outras normas foram estabelecidas,
a exemplo da posição de cada personagem na composição total da obra,
a indicação de como deveriam ser os gestos das mãos, a posição dos pés,
o drapejado das vestes, os símbolos a serem utilizados, etc. Enfi m, tudo
já estava rigorosamente pré-determinado, restando, aos artistas, apenas a
execução da obra. Esse cânone redundou na ruptura com os padrões estéti-
cos naturalistas de períodos anteriores (clássico e helenístico), substituídos
agora por formas sempre sagradas, cujas ideias de representação divina
não poderiam ser evocadas pelos critérios antigos.
Daí, além da lei da frontalidade, havia a prática generalizada da forma
solene de apresentar as personagens, uniformes em seus gestos, trajes e ex-
pressões, bem como o uso de simbolismos diversos da percepção cotidiana.
A cor do céu, por exemplo, passou a ser constantemente dourada, sinalizan-
Cristo Pantocrátor (do gre- do para o homem mortal a busca do reino divino eternamente iluminado.
go pan + cratós, todo po-
der): na iconografi a bizan- A estatuária restringe-se apenas a imagens sagradas: o Cristo Pantocrátor
tina o Cristo Pantocrátor é (Cristo todo-poderoso), a Virgem Maria, os apóstolos, os profetas, os santos e
mostrado com sua mão di- os imperadores. Deriva daí o desprezo das artes plásticas para o corpo, con-
reita levemente inclinada,
em posição de bênção: o ceito e estética que acabam sendo disseminados para toda a arte medieval
dedo polegar encontrata- cristã que busca coibir qualquer expressão de corporidade e sensualidade,
se voltado para o próprio inclusive na música sacra gregoriana, conforme iremos ver mais adiante.
Cristo, o médio e o indica-
dor acham-se em posição
Não existe arte menos sensual que a bizantina. A fi gura humana não é
oblíqua, quase vertical, e
os demais dedos estão do- mais representada por si mesma, mas apenas como morada de um pen-
brados e fechados contra samento religioso, de uma fé. A criação mais habitual [...] é a do asceta
a palma da mão. O gesto
da mão direita indica a
magro e severo, as faces cavadas, olhos imensos, atitude dramática - elo-
dupla natureza de Cristo: quente expressão do tipo monástico. (Paul Lemerle, apud CUNHA, 2003,
a humana, manifesta nos p. 49)
dois dedos erguidos, e a
divina, indicada pelos três
outros dedos unidos nas
pontas, o que represen- Das linguagens artísticas bizantinas, quatro se destacam: os mosai-
ta a sua participação na cos (expressão máxima de luxo e suntuosidade), os ícones, os afrescos e a
Trindade como Segunda
arquitetura, cujas técnicas chegaram a um grau de extremo requinte. O
Pessoa. A mão esquerda
sustenta as Sagradas Es- mosaico já era conhecido pelos artistas egípcios, persas e romanos, mas, de
crituras. Esse gesto cos- uso preferencialmente decorativo, era destinado ao revestimento dos pisos
tuma ser repetido pelas das casas, templos ou termas, conforme vimos. O que o faz diferente é o es-
autoridades eclesiásticas,
desenhando um largo mo- tatuto de arte extremamente sofi sticada da pintura mural que os bizantinos
vimento em forma de cruz lhe atribuíram. Quanto menores os cubos de pedra ou de vidro embutidos
para abençoar os fi éis, a nas paredes, mais variados e ricos os efeitos policromáticos obtidos. Nos
exemplo da benção papal
urbi et orbe, direcionada murais assim construídos, os artistas retratavam cenas da vida de Cristo,
à cidade de Roma e ao dos profetas e dos imperadores.
mundo.
Outro resultado extremamente requintado foi obtido pela técnica da
arte iconográfi ca bizantina. Os ícones (do grego eíkon, imagem) eram pe-
quenos quadros com personagens sagradas, pintados mediante o uso da

82 HISTÓRIA DA ARTE I
encáustica, mas, sobretudo, da têmpera, aplicada
em superfícies de madeira ou metal: a primeira ca-
mada era totalmente dourada (procedimento mui-
tíssimo usado, pela associação com o considerado
maior bem existente na terra - o ouro), seguindo-se
a pintura da imagem; na sequência dava-se a reti-
rada de parte dessa camada de tinta, visando à re-
velação do traje das personagens e da auréola. Via
de regra, nos trabalhos que buscavam luxo e os-
tentação, os artistas usavam da colagem de pedras
Têmpera e encáustica:
preciosas ou semipreciosas, para, por exemplo, o “têmpera é o nome que
adorno de coroas. recebe um dos modos que
os artistas bizantinos uti-
Na região euro-ocidental, os afrescos somen- lizavam para preparar a
te iriam adquirir relevância na baixa Idade Média, tinta usada em seus íco-
a partir do século XII, quando é difundida a arte nes. Consiste em misturar
os pigmentos com clara
românica. Surgiram, na época, duas grandes esco- de ovo, para facilitar a fi -
las: a cretense, que difunde sua infl uência desde a xação das cores à super-
região da Sicília ao norte da Itália, e a macedônica, fície do objeto pintado. O
resultado é uma pintura
cujos traços de maior rigidez e simplicidade difun- Cristo Pantocrátor (Monas- brilhante e luminosa. [...]
dem-se sobretudo no Leste europeu. tério de Santa Catarina) Já a técnica da encáus-
tica foi utilizada desde a
O apogeu da arte bizantina foi alcançado gra-
Antiguidade. Os gregos
ças à riqueza obtida pelo desenvolvimento econômico e pela centralização usavam-na, p. ex., para
política do império romano oriental, principalmente a partir do reinado de colorir suas esculturas
Justiniano, apresentando as condições objetivas para que a construção de de mármore. O processo
consiste em diluir os pig-
vários edifícios suntuosos –palácios, teatros, hipódromos, termas e, sobre- mentos em cera derretida
tudo, igrejas, – de concepções arquitetônicas bastante inovadoras para a e aquecida no momento
época. A basílica Hagia Shopia (Sagrada Sabedoria, conhecida como Santa da aplicação. Ao contrá-
rio da têmpera, cujo efeito
Sofi a), erguida entre 532 e 537, é um dos maiores triunfos da nova técnica é brilhante, a pintura em
bizantina, com uma cúpula de 55 metros apoiada em quatro arcos plenos. encáustica é semifosca”.
Com tal método, a cúpula passa a poder ser situada em nível extremamente (PROENÇA, 1989, p. 52)
alto, como que querendo se fundir com a abóboda celeste, sugerindo univer-
salidade e poder absoluto.
Bizâncio, mediante sua arte, inspirou grande parte das obras do me-
dievo * cristão ocidental, a exemplo dos mosaicos e das pinturas em afres-
cos, retábulos, iluminuras e em outros tipos de miniaturas.

Medievo: do latim me-


dium aevum, termo atri-
buído a pensadores da
modernidade europeia
para designar, segundo
eles, o período intermedi-
ário de pouca criatividade
entre dois pólos de extre-
ma inventiva (era clássica
greco-romana e a renas-
centista).

Interior da Igreja de Santa Sofia

HISTÓRIA DA ARTE I 83
3. O canto gregoriano e a música medieval
Santo Agostinho e São Gregório Magno são as duas grandes perso-
nalidades responsáveis pela criação do canto gregoriano, a forma mais ex-
pressiva do medievo cristão, também conhecido como cantochão. Fruto dos
múltiplos atravessamentos dos cantos litúrgicos da Igreja de Bizâncio, Síria
e Palestina, nos primórdios cristãos, é inicialmente sistematizado pela tradi-
ção patrística*, cujos maiores representantes são Ambrósio e Agostinho nos
O fi lósofo latino Boécio
(480-524), responsável séculos IV e V, e consolidado no papado de Gregório Magno, no século VI.
pela ponte erigida entre a O gregoriano surge no contexto da vida monacal, a qual se confi gu-
cultura clássica antiga e
a medieval cristã, em De
rou como importante modo de vida para as primeiras comunidades cristãs,
Institutione Musica, dando para enfrentar uma Europa recém saída do desmoronamento da Antigui-
continuidade à doutrina dade clássica greco-romana. Agostinho, vivendo esse momento, expressa
pitagórica sobre a música,
profere que a razão divina
em sua obra De Civitate Dei (“Sobre a Cidade de Deus”), todo o pathos da
estabeleceu a harmonia percepção de uma cultura e civilização tragicamente ameaçadas. O imenso
universal segundo a or- Império depositário de toda a tradição da Antiguidade – cuja capital, Roma,
dem dos números, res- a cidade eterna cristã, é invadida pelo visigodo Alarico I –, está prestes a
ponsável por três grandes
tipos de música: munda- desaparecer, o que realmente irá ocorrer em 476, com a dissolução defi niti-
na (música cosmológica, va do Império Romano Ocidental.
suprassensível, portanto
inaudível), harmonia fun- Assim, recém saída da debacle do Império Romano e esfacelada por
damental que preside o um mundo dividido em vários reinos, a Europa da segunda metade do pri-
movimento e o equilíbrio meiro milênio cristão, errática e violenta, carece profundamente de uma
do cosmos, articulando o
humano com a verdade
organização de conjunto que a normatizasse, o que começa a ocorrer no
superior; humana, musica século VI. Temerosos da intensa violência que caracteriza o período, mon-
prática, sensível que esta- ges andarilhos ou eremitas se agrupam em fortalezas, espécie de pequenas
belece a harmonia entre
corpo e alma, entre sen-
unidades autárquicas economicamente viáveis, cada vez mais poderosas
sibilidade e razão, enfi m, e capazes de resistir aos servos sublevados. Isolados do entorno violento,
a música pela qual o ser espécie de ilhas de paz num mar de violência, os monges instituem a vida
humano toma consciên-
claustral que se investe de um poder normatizador da vida feudal. A pri-
cia de sua harmonia com
o mundo; instrumentalis, meira organização monacal criada é a de São Bento que, mediante o modelo
música que busca imitar claustral das Regula Sancti Benedicti para um mosteiro da Itália, em Monte
a natureza. Cassino, dita as primeiras regras de funcionamento da vida contemplativa,
generalizando-as para vários outras instituições similares.
Organizada a partir da ordem religiosa monástica, a vida mundana
passa a ser orientada por um tempo unifi cador, do qual estava carecendo.
Portanto, o tempo da vida monacal – ao ser organizado pelas horae canoni-
cae, as horas canônicas, mediante o canto gregoriano onipresente na rotina
diária da vida monástica, distribuindo-a em pequenos períodos marcados
–, passa a organizar igualmente a vida ordinária do cotidiano do medievo.
Para muitos, o gregoriano, correlato cristão da música apolínea defen-
dida pela estética pitagórico-platônica, edifi ca a grande ponte entre a mú-
sica antiga e a da Europa cristã. Expressando o “louvor sereno” a Deus, o
sentido do texto sagrado encontra sua integração a uma melodia que busca
expressar apenas religiosidade. Seu ritmo se constrói nos arcos frásicos da
palavra cantada. Negando a marcação forte de um ritmo regular, necessá-
rio, por exemplo, para as danças populares, ele afi rma uma ascese mística
que busca no ritmo frásico, a expressão de pura espiritualidade.
A ausência da pulsação rítmica corporal recalca um tempo ausente,
na medida em que a palavra cantada, na unidimensionalidade de sua mo-
nodia (canto a uma só voz desacompanhada) e sem a materialidade de um
tempo sensível regularmente marcado, procura expressar palidamente a
noção de eternidade. Este era o mesmo principio da imaterialidade da arte
bizantina que negava expressar o corpo humano, conforme vimos.

84 HISTÓRIA DA ARTE I
Modelo de prece cantada, o texto dita o ritmo e o sentido da melodia;
sua sintaxe e sua intenção linguística determinam o movimento das altu-
ras do tom. “Deve-se, sem dúvida, procurar a base do ritmo gregoriano na
estreita ligação que une as melodias ao texto latino. O canto gregoriano é,
de fato, música essencialmente vocal, ou, melhor dizendo, palavra cantada”
[grifos no original] (CARDINE, 1989, p.57). Valorizando seu lado apolíneo, o
gregoriano irá gozar, desde os primórdios do cristianismo, de um prestígio
exclusivo como via sublime da espiritualidade. A música se investe de uma
transcendência desconhecida dos antigos. A ética cívica pagã da doutrina
musical pitagórica cede lugar a uma ética transcendente cristã. A despeito
dos antigos reconhecerem o elemento sagrado na música, ela era mais apre- Patrística
ciada pelos seus efeitos catárticos purifi cadores, ao restabelecer a harmo- O pensamento fi losófi co
cristão medieval, duran-
nia do humano com a ordem cósmica e com o divino. te mil anos de existência,
Monódico, despojado de acompanhamento, sem pulsação, entoado em costuma ser tipifi cado em
dois grandes momentos: a
recto tono (cantilação), sem grandes saltos nos intervalos de uma nota a patrística (do início até o
outra, o canto gregoriano indica precedências judaicas. A Igreja protocristã, século VIII) e a escolásti-
como sabemos, viveu um grande período de indiferenciação entre ritos ju- ca (do século XI ao XIV).
Para a patrística, elabo-
daicos e cristãos. Ambas as comunidades reuniam-se nos mesmos lugares, rada junto com o cristia-
podendo ser uma sinagoga ou um templo, para participar de liturgias onde nismo nascente pelos Pais
textos sagrados (sobretudo os salmos, base para elaborações poéticas e mu- da Igreja (daí o termo),
cuja marca maior são os
sicais) e formas de canto – como a salmodia, certamente com as mesmas infl uxos da fi losofi a pla-
melodias –, eram compartilhados. Conforme o ofício, o gregoriano ganha tônica, tendo em Santo
sofi sticação em formas mais ornadas, com a exuberância melismática do Agostinho e Boécio uns
de seus maiores expoen-
Oriente. Com ele, a Igreja irá sustentar, em todo o medievo, a primazia con-
tes, a verdade devia ser
ceitual da musica mundana sobre a musica humana e a musica instrumen- buscada essencialmente
talis (v. adiante a seção saiba mais sobre o fi lósofo latino Boécio) pela revelação e pela fé.
A escolástica, marcada
Apesar de sua profunda espiritualidade, o gregoriano terá papel cru- profundamente pelo pen-
cial na música profana europeia. Os rigores da Igreja não serão sufi cientes samento aristotélico, tem
para impedir a invasão de músicas, festas e danças profanas nos lugares seus maiores represen-
tantes em Santo Anselmo,
sagrados, mediante uma economia de trocas entre as artes populares e os Santo Alberto Magno e
cantos litúrgicos já tomados por ricas polifonias em fi ns do primeiro milênio Santo Tomás de Aquino,
cristão. A primeira indicação de uma “polifonia” bastante ingênua, convi- que buscam o acesso à
verdade pela compatibili-
vendo com o gregoriano, foi a duplicação da melodia em oitavas. Em mea- dade entre fé e razão.
dos do século IX, surge a Musica Enchiriadis (de autoria incerta, era uma
espécie de tratado de música), a prova mais antiga de uma tentativa para
estabelecer regras para a polifonia primitiva ocidental. Além de descrever o
método de canto em uníssono ou em oitavas, o tratado expõe, pela primeira
vez, novos princípios cuja base essencial é a duplicação do canto em inter-
valos de quartas e quintas paralelas.
Tal prática já era de certa forma usual em alguns países europeus.
Poranto o Musica Enchiriadis surgiu em certo momento do século IX, para
descrever uma prática, da mesma forma como Guido d’Arezzo, em seus
escritos sobre notação musical, na virada do século XI, falou de algo já em
curso. Com essa prática, além do uso simultâneo das oitavas, podia-se do-
brar a melodia num duplo movimento, mediante a utilização dos intervalos
das quintas (superiores) e das quartas (inferiores) paralelas como duas pá-
lidas sombras acompanhando o corpo sonoro da vox principalis gregoriana.
Esses primeiros encontros de intervalos, a partir de uma leitura ver-
tical de melodias desenvolvidas horizontalmente, eram aceitas pela “harmo-
nia” ofi cial eclesiástica como acordes destituídos de dimensão terrena, luga-
res de dissonância e desvios harmônicos. Ainda atada ao conceito grego de
harmonia, a noção cristã refere-se a uma ordem cósmica em equilíbrio, sem
dissonâncias, criada por Deus, uma ordem parcimoniosa conforme reque-

HISTÓRIA DA ARTE I 85
ria a estética apolínea. Durante muito tempo, tais acordes representaram
o acerto ofi cial de sons justos que ressoavam recorrentemente no espaço
sagrado dos templos. Para a arquitetura da baixa Idade Média, “a ogiva e
o vazio interior das grandes catedrais góticas se refl etem nesses intervalos
paralelos” (MENDES, 1988/1989. p.9).
Com o entretecimento de notas de diferentes vozes, esboça-se, aos
poucos, o princípio do contraponto. Para cada nota (punctum) correspon-
dia uma outra que lhe contra-acompanhava (contrapunctum), colada ao
seu momento de emissão, constituindo a vox organalis. Depois, as vozes
Os modos gregos, tendo secundárias começam a fazer um desenho autônomo, não mais como no-
como início uma nota alta tas paralelas, mas através da justaposição de linhas melódicas mais livres,
em seu desenvolvimento procedimento chamado discantus. Mediante seu uso, ousou-se acompa-
escalar, realizavam um
movimento descendente. nhar em movimento contrário à vox principalis, surgindo, assim, o moteto
Os monges medievais, ao (do francês petit mot). Pouco a pouco, novas vozes são acrescidas à prin-
conservar essas matrizes cipal, tornando-se cada vez mais independentes. O repertório gregoriano
modais, invertem essa
dinâmica. Suas trajetó-
podia fornecer a vox principalis, construindo-se daí as outras vozes. Já
rias passam a ter como não se trata mais, portanto, de uma única melodia ou de um leito melódico
ponto de partida, uma principal, defi nido por vozes acompanhantes com proporções intervalares
nota grave, desenvolvendo
percursos ascendentes. O
constantes. Muitas delas entram livremente, criando novas sonoridades
que nos sugere: não teria “consonantes”.
a ascese cristã medieval
Via de regra, pelo encaixe de palavras em melodias conhecidas, as
intervertido o mundo mí-
tico grego? Não eram os sílabas das várias linhas se cruzavam sem simultaneidade. O que impor-
deuses gregos antropo- tava era a unidade musical produzida por sonoridade dessa massa vocal, a
morfi zados, com desejos, partir do canto de duas, três, quatro, até dez linhas sonoras. Importava a
paixões, iras, ciúmes e
prazeres, que desciam do valorização das vozes e da altura do som. Surgem as primeiras fi gurações
Olimpo para se regozija- da polifonia gótica, a ser vista adiante, alcançada pela justaposição das
rem nas festas dos hu- diferentes linhas melódicas, tendo como parâmetro a forma monódica do
manos, ao contrário do
mundo religioso judaico- cantochão. Gesta-se, assim, uma trama cada vez mais complexa de vozes
cristão que concebe o ho- cantadas simultaneamente, postulando novas formas de organização da
mem como criatura feita à música, conforme veremos na música da baixa Idade Média e preparando,
imagem e semelhança de
seu criador e que perde
séculos depois, o tonalismo, após o período polifônico.
a inocência e, por isso, é
expulso do paraíso? Por-
tanto um ser em perma-
nente luta para superar 4. A Arte da fase merovíngia e carolíngia
sua condição terrena, que
busca sempre ascender à Para fi nalizar este capítulo, é importante mencionar algumas fases
perfeição celestial? importantes da arte da alta Idade Média na Europa ocidental. Se a arte bi-
zantina, como se viu, soube conservar o legado helenístico, sintetizando-o
com a estética orientalista, o mesmo não ocorreu no lado ocidental. Se antes
o foco se concentrava no poder irradiador de Roma, agora o descentramento
da economia baseada no poder fundiário feudal faz afl orar outros reinos e
outros pólos descentralizados de mando que passam a marcar novos tipos
de estética e de valores da arte medieval. Desaparece a educação laica e
concentram-se os métodos e técnicas do fazer artístico nos centros religio-
sos, destinados apenas à formação do clero. O pouco da arte clássica que se
conservou se dá no interior dos mosteiros e das abadias das ordens monás-
ticas, importantes núcleos depositários dos saberes antigos.
A desagregação do mundo greco-romano provoca o despovoamento
e a decadência da vida urbana; as trocas comerciais são substituídas por
um modo de vida autárquico e de autosubsistência e por uma economia
natural, o que leva a um intenso processo de ruralização e dispersão da
população europeia, abrigada em grandes herdades rurais, muitas conquis-
tadas durante a fase de prosperidade do Império Romano, dando origem ao
sistema feudal. Agora dividido, seus antigos valores culturais civilizatórios

86 HISTÓRIA DA ARTE I
são substituídos pelos valores dos povos do norte europeu: ostrogodos, vi-
sigodos, francos, anglo-saxões, normandos, os chamados povos bárbaros.
Ganham espaço suas manifestações artísticas, caracterizadas por
uma preocupação decorativa e uma rara presença de figuras humanas. São
pequenos objetos como brincos, colares, pulseiras e coroas, que revelavam
um excelente manejo da arte da ourivesaria: o uso de metais e pedras pre-
ciosas permitia a criação de um sem-número de pequenas obras de formato
geométrico e abstrato. A arte merovíngia, termo que designa as manifesta-
ções artísticas da dinastia dos reis francos (atuais França e Alemanha),
durou do século V ao VIII. Descendentes do rei Meroveu (c. 411 - c. 458),
lendário fundador da dinastia, C1óvis I (466-511) e Clotário II (497-561),
convertidos à fé cristã, impuseram-na à antiga Gália, bem como às vizinhas
tribos germânicas. Seu advento na Gália levou a importantes mudanças no
campo das artes, como, por exemplo o desenvolvimento da ourivesaria e das
iluminuras , que fez ressurgir a tradição da decoração celta (antigo povo da
Europa centro-ocidental), base da arte merovíngia.
Conforme vimos na análise da função das imagens na biblia paupe-
rum, tudo convergia para a necessidade da evangelização. Nesse período,
existia uma nítida preferência pela estilização e pela abstração conferidas
ao tratamento temático nas expressões pictóricas e nas iluminuras de tex-
tos sagrados e uma preferência pelas formas antinaturalistas. Mais ricas e
fantasiosas ainda são as ilustrações de influência celta, cujos arabescos co-
loridos e complicados podiam, por exemplo, camuflar a face de um monge.
Visualmente, desenvolveu-se uma arte caligráfica e incorpórea, que dissol-
via o mundo objetivo exterior em filigranas entrelaçadas, aproximando-se
de signos esotéricos ou mesmo mágicos. Essas estruturas formalistas e
lineares foram introduzidas pelos povos setentrionais, como os celtas, cujo
contato com o mundo greco-romano havia sido raro.

Arte celta: detalhe do caldeirão de Gundestrup

Tal situação perdurou até um primeiro e tímido renascimento artístico


ocorrido na segunda metade do século VIII, com o poder imperial da dinas-
tia carolíngia. Com a união do rei franco Pepino, o Breve, com o papado de
Estévão II, em 751, pavimentou-se o caminho para a ideia da restauração de
um novo Império Romano. Tudo parece ter começado com a vitória infrin-
gida aos árabes pelo seu pai Carlos Martel, na batalha de Poitiers em 732.
Pelo significado que a ameaça dos “infiéis” representava para a cristandade,
essa vitória consolida a aliança entre o reino franco e a Igreja Católica.

HISTÓRIA DA ARTE I 87
Cerca de 20 anos depois, Pepino submete os lombardos, povo da Itália
setentrional de origem germânica, colocando o papado de Leão III sob sua
proteção militar. Selava-se assim a aliança irreversível do reino franco com
a Igreja, simbolizando a restauração do Império Romano do Ocidente, agora
sob a égide da cristandade. Seu filho Carlos Magno assume a coroa do reino
em 768. Desde então empenha-se na expansão dos domínios do reino: ane-
xa o norte da Itália, nas mãos dos lombardos, submete a Saxônia, a Baviera
e a Bretanha, estabelece o domínio franco sobre o nordeste da Península
Ibérica, obtém a submissão dos avaros, boêmios, morávios e croatas. Carlos
Magno faz do Império Franco a mais extensa unidade político-administrati-
va da Europa ocidental. Todas essas conquistas são feitas com o aval explí-
cito do papado, tanto assim que, na entrada do novo século IX, na missa de
800, Carlos Magno é coroado pelo papa Leão III, recebendo o título romano
de imperator et augustus do Sacro Império do Ocidente. Se o título procura
imprimir uma conotação essencialmente religiosa no sentido de expressar o
domínio sobre os que eram adeptos da religião romana, acabou assumindo
um sentido muito mais amplo, ou seja, a ressurreição do Império Romano
do Ocidente, a ponto de colocá-lo no mesmo nível de Bizâncio e do Islã.
Dá-se, então, o chamado renascimento carolíngio: a cultura e a arte
ganham especial atenção do Imperador, que atrai e protege artistas da Itália
meridional e intelectuais de várias regiões. A administração das cidades
seguiu o modelo do reino franco, baseada na divisão em condados, em que
as autoridades eclesiásticas, junto com o poder civil dos condes, exerciam
igualmente o poder condal. Procurando sempre manter o poder central,
Carlos Magno criou os missi dominici (enviados do senhor), inspetores que
fiscalizavam, in loco, a administração de condes e bispos. Mais do que isso,
o verdadeiro responsável pela manutenção dessa centralização foi o perma-
nente estado de guerra, marca do governo carolíngio.
Essa centralização política favoreceu reatar algo perdido da civiliza-
ção antiga. Nessa renascença carolíngia, escolas foram fundadas, aristo-
cratas foram estimulados a se alfabetizarem, a corte tornou-se centro de
sábios e um pouco do legado cultural antigo foi recuperado. Decidido a criar
um sistema unificado de ensino, Carlos Magno convocou teólogos da Itália,
França, Irlanda e Inglaterra. Convocou Alcuíno de York, monge inglês be-
neditino, poeta e professor, para reformas e instruir o clero e a corte de seu
reino, implantando um modelo nas escolas que seria aplicado nos estabe-
lecimentos universitários. Do ponto de vista institucional, as novas escolas
podiam ser monacais, sob a responsabilidade dos mosteiros, catedralícias,
junto à sede dos bispados e palatinas, junto às cortes.
Entre suas iniciativas, destaca-se a fundação do Palácio-escola (Aula
Palatina) de Aix-la-Chapelle. no qual procurou reviver o saber clássico nos
moldes da paidéia grega, estabelecendo um programa de estudo a partir das
sete artes liberais: o trivium ou ensino literário - gramática, retórica e lógica
(ou dialética); e o quadrivium ou ensino científico - aritmética, geometria, as-
tronomia e música. Essa organização educacional contribuiu bastante para
a renascença carolíngia. O ensino da lógica formal fez renascer o interesse
pela reflexão especulativa, donde surgiria, mais tarde, a filosofia escolástica;
e nos séculos XII e XIII, muitas das escolas fundadas nesse período, especia-
mente as escolas catedrais, ligadas aos bispados, ganharam o formato de
universidades medievais, cabendo a Carlos Magno e Alcuíno o lançamento
dos fundamentos da futura universidade de Paris. Dentre as iniciativas, me-
rece registro a busca da unidade política e cultural de seu reino, impondo,
por toda a parte, a prática do canto gregoriano, inclusive por manu militari.

88 HISTÓRIA DA ARTE I
São criadas uma academia literária
e oficinas artesanais e de artes aplica-
das onde são feitas iluminuras, relicários,
ourivesaria, joalheria ou tapeçaria, im-
portante passo para o aprendizado e re-
descoberta da Antiguidade clássica. Com
a morte de Carlos Magno, muitas dessas
atividades de ensino e prática das artes
passaram para o âmbito dos mosteiros. O
mais importante, ao contrário da estética
celta que desprezava a forma das figuras
humanas, foi a introdução, aos poucos,
dessas figuras de forma estilizada, como
personagens bíblicas, majestosa e simbo-
licamente inscritas na arte dos mosaicos,
mostrando, a um só tempo, influxo e com-
petição com a suntuosidade bizantina. A
arte carolíngia, além dos fortes influxos Os quatro evangelistas, iluminura
céltico-germânicos, buscou também se de c. 820 (Catedral de Aachen)
inspirar na cultura greco-romana, tendo,
como resultado, uma síntese entre elementos clássicos e o típico espírito
emocional e conturbado do medievo cristão. Os trabalhos realizados nas
oficinas levaram aos poucos os artistas a abandonarem o estilo ornamental
típico da estética celta e de outros povos e a resdescrobirem a tradição cul-
tural e artística da civilização greco-romana.
Na arquitetura, irão incidir, especialmente, edificações religiosas
marcadas por pinturas murais, por mosaicos e baixos-relevos, aflorando,
igualmente nesse período, o templo com cripta (sub-solo dos templos onde
se enterravam personalidades ) envolta por um deambulatório (galeria que
circunda o altar ou a cripta), o que se irá desenvolver ao longo da Idade Mé-
dia, seja no período românico, seja no gótico. Uma das mais significativas
construções do período é a Catedral de Aachen na Alemanha.
Mas somente após um longo período de maturação (cerca de dois sé-
culos e meio), começariam a surgir técnicas pictóricas mais "naturalistas",
ou seja, menos submetidas aos cânones da frontalidade oriental também
encontrada na arte bizantina. No século XI, juntamente com as imagens
ricas, severas ou hieráticas dos mosaicos, as grandes paredes da arquitetu-
ra românica viriam permitir a experiência dos afrescos. Um fato de grande
importância para a época foi o hábito de dotações por parte das famílias
nobres para as ordens monásticas, favorecendo a construção e a expansão
de mosteiros e abadias. Mais uma vez, aparece, de forma inquestionável, o
papel crucial exercido por esses centros religiosos, pois foi do seu interior
que as ideias e as atividades artísticas ressurgiram no curso do século X. A
partir de então, a arte medieval tornou-se, por excelência, a linguagem da
exaltação religiosa.

HISTÓRIA DA ARTE I 89
Capítulo 3
As artes na baixa Idade Média: o românico
e o gótico

1. O Estilo Românico
1.1. A arquitetura
A arquitetura românica é, por excelência, uma linguagem que pôde se
expressar em toda sua plenitude, tornando-se o primeiro dos estilos monu-
mentais de arquitetura medieval do Ocidente, passando a defi nir outras
artes tais como a escultura e a pintura. Alguns historadores da arte detec-
tam traços românicos já em fi ns da era carolíngia. Ele começa a se confi gu-
rar no período de grande transição entre a alta e baixa Idade Média (século
XI e XII), quando o poder feudal já apresentava sinais de fraqueza e a socie-
dade ainda presa a valores feudais não se organizara no sistema dos bur-
gos. Assim, a Igreja iria passar a exercer seu poder em diversas esferas da
vida feudal, inclusive no campo das artes, passando a encomendar pratica-
mente, sem concorrência, os trabalhos artísticos. Por quase três séculos o
estilo românico reinará absoluto até ceder lugar ao gótico.
O modelo hegemônico do templo românico baseou-se na antiga e im-
ponente basílica romana (daí a origem do nome), centro de múltiplas ati-
vidades, sobretudo as de caráter civil jurídico-administrativo, conforme já
descrevemos. Na sua adaptação para o culto cristão, o magistrado é substi-
tuído pelo sacerdote e outros ofi ciantes litúrgicos. O templo românico carac-
teriza-se por edifi cações austeras e robustas, dotadas de paredes grossas e
janelas minúsculas, por razões de ordem técnica e estética, cuja principal
função era resistir a ataques de exércitos inimigos. Visualmente, a arquite-
tura românica busca transmitir sensação de solidez e repouso, bem como
ausência de esforço ou tensão.
Além de propiciar segurança, também era
importante manter o clima de severidade e con-
trição espirituais. A alteração feita na planta
dos templos, passando da alvenaria de cascalho
para a pedra de cantaria, contribuiu visivelmen-
te para o aspecto de solidez. Os templos, alvos
de peregrinações, demandando maiores espaços
para abrigar os fi éis, passaram a adotar uma
longa forma longitudinal, com vistas a ampliar
o cumprimento da nave central, das colaterais
e do transepto. São várias as igrejas construí-
das nesse período com as dimensões e o formato
acima descritos. A basílica de Saint-Sernin em
Toulouse (parada obrigatória na França, para os
peregrinos a caminho de Santiago), e a catedral
da Compostela, alvo da peregrinação, são exem-
plares paradigmáticos desta planta. Catedral de Santiago de
Compostela

90 HISTÓRIA DA ARTE I
Uma das características mais marcantes da arquitetura românica foi
a retomada da tradição das abóbodas de berço, uma abóbada com curvatu-
ra contínua de um arco de volta perfeita, chamado arco pleno, continuado
lateralmente por espessas e maciças paredes.
Mas elas ofereciam sérios riscos:
o excesso de peso do teto de alvenaria
podia provocar ondulações ou mesmo
desabamentos. Outra desvantagem era
a pequena luminosidade resultante das
aberturas estreitas, emprestando um
aspecto bastante sombrio ao interior
das igrejas românicas, visto que a aber-
tura de vãos mais amplos era impraticá-
vel, por provocar o enfraquecimento das
paredes, concorrendo igualmente para
o risco de desabamentos.
Para evitar tais riscos, uma solu-
ção encontrada foi o uso de abóbodas de
aresta, consistindo na intersecção per-
Abóbada de berço
pendicular de duas abóbodas de berço
apoiadas em pilares relativamente mais delgados, obtendo certa leveza e
mais luminosidade interior. Tal tipo de abóboda demandava um plano qua-
drado para se apoiar, dividindo a nave central em setores também quadra-
dos, correspondendo às suas respectivas abóbodas. Daí a forma compacta-
da de muitos templos românicos.
Outra solução preparou a construção do gótico, ao se chegar à ideia
da utilização simplificada de arcos ou nervuras, depois alongados em forma
de ogivas, obtendo ainda assim mais elevadas permitiam o assentamento de
arcadas sobre as naves colaterais. De sólidas e grandes dimensões, o templo
românico era chamado de “fortaleza de Deus”.

1.2. A escultura e a pintura


Conforme sabemos, a escultura românica, assim como a pintura, en-
contrava-se subordinada à arquitetura monacal, marcada por um estilo
severo e pesado, afastada de qualquer intenção mimética da realidade. A co-
esão com as formas bizantinas com as greco-romanas clássicas obtém uma
estatuária de cunho ornamental. Assim, são esculpidos relevos e estátuas-
coluna para adornar pórticos, arcadas e paredes. As figuras geralmente
aglomeradas e entrelaçadas, com o tempo tornaram-se estátuas soltas, ga-
nhando, assim, autonomia e tridimensionalidade em 360o.
Mediante o ressurgimento da es-
cultura figurativa, como elemento deco-
rativo de fachadas e portais, com repre-
sentações de Cristo, cenas da vida dos
mártires e santos, visões escatológicas,
a igreja passava a ideia de um Deus juiz
severo e punidor. Cabia ao artista o di-
datismo escultórico de evocar ou recor-
dar expressivamente as verdades da fé.
Um dos assuntos preferidos era o Juí-
zo Final, com a imagem de Cristo juiz, Estátuas românicas
sempre representado de forma rígida e

HISTÓRIA DA ARTE I 91
hierática, bem como a apresentação de figuras de eleitos e condenados,
monstros e demônios. A estética da culpa e do castigo eterno era refor-
çada pelo aspecto sombrio do estilo românico de pouca luminosidade em
seu interior. Por outro lado, a magnificência da arquitetura românica era a
própria expressão da igreja triunfante que continuava usando a arte com
fins didáticos e evangelizadores. Continua-se a recalcar a materialidade
sensual do corpo que desaparece sob inúmeras camadas de rígidas dobras
angulosas dos mantos e túnicas. As figuras humanas se alternam com as
de animais fantasiosos, apresentando mais afinidade estética com a icono-
grafia oriental do que com o cristianismo, a despeito da temática ser sempre
religiosa com fins didáticos.
As paredes das naves eram decoradas com pinturas murais de uma
intensa policromia, mais uma marca da estética bizantina, cujas formas
aliavam traços da antiga pintura romana com as dos ícones orientais. Os
temas mais frequentes abordavam cenas das sagradas escrituras e da vida
de santos e mártires, plenas de exemplos edificantes, igualmente para fins
didáticos. Temas como vícios e virtudes eram alegorizados por representa-
ções de animais próprios do bestiário oriental. Assim como a escultura,
as figuras humanas não apresentavam qualquer plasticidade, cujos corpos
eram apenas insinuados. As linhas do rosto eram acentuadas por traços
grossos e escuros. Para o desenvolvimento desse tipo de pintura mural, os
artistas utilizavam a técnica dos afrescos.
Em escala oposta à pintura mural, mas não por isso sendo menos
importante, desenvolveu-se a arte da iluminura encontrada na decoração
de bíblias e manuscritos. Adquirindo cada vez mais sofisticação, tais ilumi-
nuras eram realizadas simultaneamente às outras formas de arte pictórica,
tanto na forma como na técnica.
Concomitante à arte pictórica, quando os recursos permitiam, usava-
se igualmente a arte do mosaico ou do vitral, buscando sempre pelos inten-
sos efeitos policromáticos. O vitral já era conhecido na época, visto que a
arte românica o trouxera de Bizâncio conseguindo aperfeiçoá-lo antes mes-
mo do esplendor gótico. O abade Suger, um dos responsáveis pela futura
arquitetura gótica, registrou não ter encontrado dificuldades para contratar
profissionais do vitral de vários lugares, para a reforma da abadia em Saint
Denis, no norte de Paris. Conforme costuma ocorrer com grandes períodos
e em vastas regiões de larga vigência de certos estilos, é possível detectar
diferenças de estéticas no curso das épocas e lugares. Assim, por exem-
plo, existiu um estilo românico a partir da reforma do mosteiro beneditino
de Cluny, na França do século XI e que se estende nos séculos seguintes
por toda a cristandade europeia, abrangendo mais de mil mosteiros. Assim
também ocorreu com um estilo românico na Itália. Devido à proximidade
com a arquitetura greco-romana, os italianos souberam construir templos
menos pesados, bem como usar de frontões e colunas à moda da antiguida-
de clássica. Um dos exemplos típicos apontados como modelo do românico
italiano é o conjunto da catedral de Pisa, com seu campanário inclinado
isolado desse conjunto, a famosa Torre de Pisa.
Para finalizar a análise do românico, não podemos deixar de mencio-
nar o desenvolvimento da ourivesaria que, assim como as demais artes do
período, revestiu-se de intenso caráter religioso voltado para o fabrico de
objetos como pequenas estátuas, relicários, cruzes, objetos litúrgicos, bem
como para decoração de altares, bíblias, paramentos religiosos e outros
objetos sagrados. Naturalmente, a realeza feudal não podia deixar de se
sentir igualmente atraída para tal forma de arte para expressar ostentação

92 HISTÓRIA DA ARTE I
e grandeza, encomendando com frequência luxuosas coroas incrustadas,
mantos decorados, bem como globos e cetros de ouro.

2. O Estilo Gótico
O abade Suger (1081-1151) foi superior da basílica de Saint-Denis (São
Dionísio), nos arredores de Paris norte, desde 1122 até sua morte. Hábil
diplomata, foi conselheiro de Luís VI e de Luís VII e Regente durante a Se-
gunda Cruzada. É considerado o primeiro mestre-de-obras da arquitetura
gótica, pelas inovações promovidas naquela basílica a partir de meados do
século XII. Leitor atento das obras do Pseudo-Dionísio, tido como grande
mestre da filosofia patrística, teria encontrado nelas “uma justificação fi-
losófica para toda a sua atitude com respeito à vida e à arte” (Panofsky) e,
por via de consequencia, para as intervenções que realizou, ao conceber o
monumento gótico como obra teológica.
Surger perseguiu o "movimento anagógico", ou seja, o movimento que
pregava a contemplação do brilho terreno, como importante via para a con-
templação da iluminação divina, a experiência estética como via da experi-
ência mística, a busca do arrebatamento do espírito, mediante a ascese da
alma ao conhecimento da verdade pela arte da luz, o que será realizado pela
doutrina estética de Tomás de Aquino, conforme veremos adiante.
Em seu entendimento stricto sensu, o termo gótico nos remete à arte
própria dos godos, termos atribuído principalmente por teóricos renascen-
tistas da arte, como Giorgio Vasari, com nítida intenção desqualificante. Da
mesma forma como designavam a Idade Média como Idade das Trevas, as-
sim também enxergavam inferioridade na arte antecessora à sua época, por
ter sido uma arte “inventada pelos godos, que, após haver arruinado os edi-
fícios antigos e matado os arquitetos nas guerras, [passaram a construir]
cobrindo as abóbodas com arcos ogivais e inundaram toda a Itália com essa
maldição de edifícios” (Vasari, apud, BRACONS, 1992, p. 3)

Basílica de Saint-Denis Interior da basílica de


Saint-Denis

O pintor e arquiteto italiano Vasari se notabilizou por ter sido o pri-


meiro historiador da arte, ao publicar em 1550, Le Vite de' più Eccellenti Pit-
tori, Scultori e Architettori, “A vida dos mais excelentes pintores, escultores
e arquitetos”, onde registrou a biografia dos principais artistas renascen-

HISTÓRIA DA ARTE I 93
tistas, com especial destaque para os florentinos, registrando pela primeira
vez o termo gótico. Para ele, e muitos de seus conteporâneos, havia uma
clara oposição entre a arquitetura “tedesca” (germânica) ou, como proferia,
maniera del goti (à moda do estilo dos godos) e o estilo romano reencarnado
pela estética renascentista, considerada mais perfeita, uma vez que tinha
como referência o ideal de beleza da Antiguidade clássica. Para ele existia
uma clara contraposição entre o barbarismo cultural dos germânicos do
norte e a antiga arte clássica do Mediterrâneo: “Que, de agora em diante,
Deus nos livre os países daquela forma de pensar e de construir, que não
concorda em absoluto com a beleza de nossos edifícios” (apud BRACONS,
op. cit. p. 3).

2.1. Contexto histórico do gótico


As inovações da estética gótica, substituindo a românica, foram fruto
de condições históricas, a partir do concurso de um conjunto de fatores da
esfera econômica, política e sócio-cultural, provocando certa expansão na
Europa ocidental, período que vários historiadores denominaram de “renas-
cimento do século XII". Um grande fator para tal expansão foi o crescimento
populacional aliado ao aperfeiçoamento das áreas de cultivo dos solos, gra-
ças à melhoria das técnicas introduzidas pela ordem monástica de Cluny,
aumentando a produção e a produtividade do campo, além das melhorias
das condições e técnicas de sua comercialização, o que iria também benefi-
ciar produtos advindos de outros locais. Tais melhorias ensejaram além da
maior produção de alimentos, a da indústria têxtil.
Outro grande fator que irá refletir na mentalidade universalista da
época foi dado pelas peregrinações e pelo movimento cristão das cruzadas
em busca da libertação da Terra Santa e do Santo Sepulcro nas mãos dos
“infiéis” sarracenos, índice maior do desejo de expansão e conquista. A par
disso, no campo espiritual dá-se a reforma da ordem de Cister (fundada por
um grupo de monges descontentes com os rumos da ordem de Cluny), que
passa a desempenhar um papel fundamental na história medieval.
Graças à sua organização e autoridade, impõe sua influência a toda
Europa cristã, incluindo nesse universo de hegemonia, a valorização das
terras. Os cisterciences promovem a restauração das regras de S. Bento,
o ascetismo, o rigor litúrgico e elege, em certa medida, o trabalho como
valor fundamental, dando como fruto um excelente patrimônio técnico, ar-
tístico e arquitetônico. No contexto do desenvolvimento citadino, as escolas
catedralícias, criadas na era carolíngia, ganham primazia com relação às
escolas monacais, tornando-se então focos de criação e difusão culturais.
São condições iniciadas no século XII que processam o adensamento
de uma nova mentalidade e realidade no campo das artes e da cultura,
culminando, no século XIII, um período de esplendor medieval. Na esfera
política, a monarquia solidifica seu prestígio. A par disso, dá-se o início,
de forma ainda bem embrionária, a noção de estados, cuja consolidação
dar-se-á séculos depois. O período é igualmente caracterizado por grande
prosperidade econômica, a partir da indústria têxtil, grande propulsora de
riqueza, contando para isso, com as rotas e centros de troca comercial no
auge de suas atividades. O campo conta com um grande competidor, a ci-
dade. A migração dos servos das glebas favorece o processo de criação de
burgos, portanto a criação de um novo modo de vida urbano. Um desses re-
sultados é a formação de oficinas internamente hierarquizadas de artistas/
artesãos, que passam a prestar serviços ao clero e à realeza.

94 HISTÓRIA DA ARTE I
Da organização desses profissionais proliferam as associações gre-
miais corporativas, unidades de empresários independentes que conquista-
ram o monopólio dos ofícios em áreas determinadas. Com a monetarização
da economia feudal, ocorrem os primeiros procedimentos de trocas finan-
ceiras, como letras de câmbio e outras trocas monetárias. Irrompe uma pu-
jante classe burguesa que passa a ter o controle dos governos locais. Desde
aí, a Europa continental deixa de estar recolhida sobre si mesma. Na esfera
política, a realeza irá se aliar à burguesia nascente, para consolidar seu
próprio poder, em detrimento dos senhores feudais. O deslocamento do po-
der e sua crescente concentração citadina irão também favorecer a criação
de sedes episcopais urbanas, com suas catedrais e escolas catedralícias,
como formadoras dos primeiros "catedráticos". Na França, berço da arte gó-
tica, era possível encontrar várias dessas condições, tanto do ponto de vista
material quanto espiritual. O berço e os começos da larga expansão da arte
gótica são identificados na Île-de-France, região da antiga Paris. Panofsky
enfatiza um fato bastante interessante com relação ao papel desempenhado
por estas novas instituições acadêmico-religiosas.

A educação espiritual deslocou-se das escolas monásticas para institui-


ções mais urbanas que rurais, de caráter mais cosmopolita e, por assim
dizer, apenas semi-escolásticas, a saber: as escolas das catedrais, as
universidades e as studia das novas ordens mendicantes [...] E da mesma
forma como a escolástica fomentada pela erudição beneditina, e levada
ao auge pelos dominicanos e franciscanos, o estilo gótico foi fomentado
nos mosteiros e introduzido pela (catedral de) Saint Denis, e atingiu seu
apogeu nas igrejas das grandes cidades. É significativo o fato de que os
nomes mais conhecidos da história da arquitetura no período românico
provenham de abadias beneditinas; os do apogeu gótico, de catedrais;
e os do gótico tardio, de igrejas paroquiais. (apud CUNHA, 2003, p. 57)

No curso do período gótico cristianizam-se alguns elementos fundan-


tes da estética clássica pagã: o princípio da proporcionalidade das partes,
numa ordenação harmônica e unitária com o todo. Será Tomás de Aquino
que irá sistematizar na Suma Teológica, o estatuto das qualidades consti-
tutivas da beleza: a integridade, a justa proporção e a claridade (claritas). A
claritas estabelece um vínculo entre a sensibilidade estética voltada para o
belo e um fato visual, ou uma afabilidade do olhar (quod visum placet), na
verdade, uma espécie de recalcado gozo estético visual. Aquino atribui, à
produção artística, um elemento agenciador da recta ratio. Assim, a experi-
ência estética liga-se à atividade racional, ao hábito especulativo, parecendo
querer promover o encontro da unidade escolástica da razão com a fé (a
ratio theologica) (cf. Suma Teológica, I).
Para Tomás de Aquino "os sentidos exultam ante coisas bem propor-
cionadas, já que estas se lhes assemelham; pois também os sentidos são
uma espécie de razão, assim como qualquer força cognitiva" (apud CUNHA,
op. cit., idem). Quando o Abade Suger empreendeu a reforma do templo
românico de Saint Denis, ofereceu o primeiro modelo da estética gótica: a
luminosidade da claritas tomista, em sua efetividade real e sígnica, como
plena revelação da fé, “presença inteligível de Deus e enlevo sensível para o
crente” (CUNHA, passim). Assim, a estética medieval cristã aprofundou a
“estética da proporção” e a “estética da luz” nas artes plásticas. Se a esté-
tica da proporção valorizava a composição unificada do múltiplo, a estética
da luz é vista como o “esplendor da forma” (cf. MORAIS, 1990, p. 280).

HISTÓRIA DA ARTE I 95
2.2. A arquitetura
O gótico irá conviver, durante certo tempo, com o românico, de cujo
estílo toma de emprétimos algumas características e formas, reaproveita-
das em novas concepções técnicas e estéticas. Muitas igrejas góticas, a
exemplo da basílica de Saint-Denis e a catedral de Strasbourg, tiveram os
dois estilos convivendo no mesmo espaço arquitetônico, visto que esses dois
monumentos góticos foram reformados, a partir de suas origens românicas.
Outra afinidade entre os dois estilos: assim como ocorreu na hegemonia da
arquitetura no românico com relação às demais artes, assim também irá
ocorrer no gótico.
Mas o que é a arte da arquitetura gótica? A despeito das afinidades
e influências, uma diferença básica entre os dois estilos ganha visibilidade
desde seus exteriores. A partir das respectivas fachadas de suas igrejas,
nota-se que, via de regra, a românica apresenta um único portal e a góti-
ca, como Saint-Denis, apresenta três portais que dão acesso direto às três
naves do interior. Analisemos mais perto a basílica de Saint-Denis devido à
sua relevância, espécie de primícias da arte gótica do mundo, tornando-se
modelo para o chamado primeiro gótico, bem como pela sua importância na
história cultural da França.
Graças aos seus laços estreitos com a realeza (Suger, como se viu, foi
conselheiro de Luís VI e Luís VII e regente durante a 2ª Cruzada), Saint-
Denis sediou, desde cedo, corpos da realeza, tornando-se a necrópole dos
soberanos da França. A partir do século VI, a maioria dos reis e rainhas foi
enterrada em seu interior: 42 reis, 32 rainhas, 63 príncipes e princesas, e
10 grandes personalidades do reino.
Em sua fachada, erguiam-se originalmente dos portais laterais, duas
torres altas (atualmente, como se pode verificar na foto acima, a torre da
direita não existe mais, danificada por um raio, no século XIX). O portal
central é constituído de vários planos que caracterizam o estilo gótico de
quase todas as igrejas construídas entre o século XII e XIV: a porta princi-
pal envolta por um arco com frisos que emolduram o tímpano*, uma grande
janela longitudinal encimada por uma forma abobadada, e outra grande
janela circular, chamada rosácea*.
Mas, a maior marca arquitetônica do gótico certamente reside na abó-
boda de nervuras. Vimos que no período românico, uma das soluções para
minimizar a pressão do arco pleno foi a técnica da abóboda de arestas,
cujas curvaturas foram aos poucos sendo alteradas com a introdução de
nervuras e formas mais alongadas, prefigurando os arcos ogivais. O efeito
estético imediato foi a possibilidade de edificação de templos maiores, com
ogivas alongadas apontando para o alto, enfatizando a sensação de verti-
calidade.
Outro recurso técnico usado em Saint-Denis foram os pilares de apoio
distribuídos de forma regular. Com tal recurso desaparecem as grossas es-
pessuras das paredes, como as do estilo românico, para apoiar sua estrutu-
ra, provocando uma sensível alteração de grande efeito estético: a criação de
espaços vazios, possibilitando a substituição das estreitas janelas do estilo
românico, pela alternância da pequena largura das paredes com áreas de
grandes vitrais policromáticos, buscando sensações extáticas, mediante a
profusão de cores e luzes dos desenhos sagrados. Com pequenas alterações,
o modelo de Saint-Denis foi seguido na construção de outros templos como
a Catedral de Notre-Dame de Chartres, vista como um dos mais belos con-
juntos escultóricos do gótico, construídos entre 1145 e 1155.

96 HISTÓRIA DA ARTE I
Outro edifício que merece igualmente nossa atenção é a catedral de
Notre Dame de Paris, cuja construção iniciou-se c. de 1160, devido á novi-
dade do arcobotante*. Com tal expediente, abriu-se uma grande possibilida-
de de uso de grandes aberturas preenchidas por belíssimos exemplares da
arte dos vitrais aplicada em janelas, rosáceas de várias dimensões ou qual-
quer outro espaço que permitia o uso dos vidros multicoloridos, articulados
em grandes armações estruturais de ferro.
A vigência do gótico, assim como o estilo românico, também se esten-
deu por vários lugares, chegando à Alemanha, cujo exemplo mais canden-
te de sua típica estética encontramos na Catedral de Elizabethkirche, em “Quando os historiado-
Marburg, Sua nave central e as naves laterais possuem a mesma altura, res traçam uma evolução
prescindindo do uso dos arcobotantes, o que marca a grande diferença do cronológica da arte góti-
ca, costumam distinguir
gótico alemão com o estilo francês do século XIII. Seu formato externo com- três grandes ciclos. Um
pacto não anulou seu aspecto de leveza, devido à verticalidade das linhas inicial durante o qual se
do contrafortes e ao rendilhado das grandes ogivas de suas esguias janelas registram avanços rumo
à confi guração de formas
preenchidas por belos vitrais. Outro edifício que desperta admiração graças góticas: um central, que
à exuberância das suas formas externas é a Catedral de Milão, cuja cons- constitui a etapa clássica
trução teve início em fi ns do século XIV, com base num projeto bastante e de expansão daquelas
formas, e um período fi -
ambicioso, o que provocou uma série de atrasos em sua construção, provo- nal, de predomínio do gos-
cada por indefi nições em sua realização. to cortesão e burguês.
Dentro dessas linhas ge-
As últimas manifestações da arquitetura gótica, dos séculos XIV e XV,
rais, criou-se uma grande
deram lugar para seu uso laico, a exemplo do palácio Ca’ d’Oro (“Casa de quantidade de subdivi-
Ouro”), residência construída em Veneza, entre 1422 e 1440. sões, terminológicas para
designar com maior ou
Entre 1446 e 1515, foi construída a capela do King’s College da Uni- menor acerto, alguns dos
versidade de Cambridge. Uma das últimas manifestações do estilo, esse momentos que balizam
exemplar do gótico inglês nos chama a atenção pela profusão de nervuras sua constante evolução.
Na arquitetura francesa,
em sua abóboda, remetendo-nos à ideia de uma série enfi leirada de grandes por exemplo, distingue-se
leques abertos. uma arte gótica primi-
tiva, um gótico clássi-
co, um gótico radiante
(rayonnant), e um gótico
2.3. A escultura flamejante (flamboyant).
Analogamente, na arqui-
A função dos trabalhos escultóricos esteve profundamente vinculada tetura inglesa assinala-se
à arte arquitetônica, como podemos presenciar durante o chamado gótico um gótico primitivo (early
primitivo e o clássico, marco resplandecente da primeira escultura gótica English), um estilo orna-
mentado (decorated style)
encontrado nas decorações das fachadas das majestosas igrejas da Île-de- e um estilo perpendicu-
France, onde culmina a renovação da escultura monumental presente no lar (perpendicular style).
último românico. A profusão decorativa da escultura das fachadas góticas, Também na arte gótica es-
panhola tem-se distingui-
com relação às igrejas românicas, já se manifesta pelo número maior de do, pelo menos, um góti-
portais de suas catedrais, encontrada nos seus tímpanos, dintéis e umbrais. co primitivo e um estilo
Ademais, a relação entre os elementos arquitetônicos e escultóricos torna-se isabelino. Coincidindo
mais orgânico e fecundo no estilo gótico. Mais uma vez parte de Saint-Denis com este último, em Por-
tugal se desenvolve o cha-
essa nova estética. Lembremos do estreito vínculo entre o abade Suger e a re- mado estilo manuelino”.
aleza francesa e o papel da sua basílica como necrópole da nobreza francesa. (BRACONS, 1992, p. 7)
Daí o desenho iconográfi co do seu projeto para realçar a imagem real. Figu-
ras de reis e rainhas bíblicas foram inseridas nas peças laterais do tríplice
pórtico, junto a outras personagens sagradas, constituindo o que passou a
ser denominado de Portal Régio. Será igualmente em Saint-Denis que apare-
cerá a estátua-coluna, i,é, uma fi gura agregada à coluna, também chamada
de fi gura adossada, elemento decorativo ou estrutural (uma estátua, p.ex.)
unido ou parcialmente agregado ao muro ou à parede.
Passado o medo do fi m dos tempos esperado na passagem do primeiro
milênio cristão, correspondendo duas etapas, os mil anos do nascimento
de Cristo e os mil anos de sua paixão e morte (1033), a estatuária gótica

HISTÓRIA DA ARTE I 97
aparenta expressar o alívio dos novos tempos. As imagens surgem mais hu-
manas, parecendo buscar uma maior aproximação com o fiel. Maria, antes
sempre presente no trono divino, é agora apresentada como mãe de Cristo,
medianeira entre Deus e os homens. E o Cristo crucificado deixa o hieratis-
mo românico para apresentar o lado humano que expressa dor e sofrimen-
to. As portadas das igrejas continuam sendo utilizadas para a narrativa
iconográfica. Nelas são concentradas esculturas dispostas didaticamente,
transformando-as numa espécie de Bíblia em imagens, uma Bíblia de pedra
para aqueles que não sabem ler, cujos sentidos das figuras representadas
acham-se relacionadas com os vitrais do ambiente interior.
Chama-nos a atenção na estatuária do período, o estilo inovador qua-
se naturalista observável, por exemplo, na plasticidade da estátua O Cava-
leiro, (c. 1235), onde o artista parece ter buscado o equilíbrio na forma dos
volumes dos corpos do cavalo e do seu montador. Para alguns, poderia se
tratar de um dos três reis magos. Para outros, tal trabalho realçaria a cul-
tura da cavalaria feudal, uma nova instituição social difundida nas cortes
europeias, onde manifesta sua liderança intelectual da época, preenchendo
o papel antes exercido quase exclusivamente por monges e mosteiros.

2.4. A pintura
Acompanhando a estética da baixa Idade Média, a pintura gótica, a
partir dos séculos XIII até o início do XV, redescobriu a possibilidade fi-
gurativa, ao incorporar a realidade e os efeitos das linguagens afins, pre-
nunciando o Renascimento. Sua principal característica será a procura do
realismo na representação das figuras, fossem elas humanas ou divinas.
Primeiramente, surgiram cenários reconhecíveis, emoldurando as fi-
guras bíblicas que passaram a ganhar uma espécie de tridimensionalidade,
ainda que fosse mantida a sobreposição de planos (figuras em diferentes
níveis), e a ausência de perspectiva geométrica, cuja fixação será um mar-
co da estética renascentista. As personagens começam a ser modeladas à
moda escultórica, dando visibilidade aos movimentos corporais ou então,
grande inovação para esses tempos de negação da materialidade corporal,
a definição menos recalcada de corpos humanos sob as roupas ou paneja-
mentos, pela identificação de volumes. Em suma, descobre que as figuras
humanas possuíam sentimentos, que linhas e pinceladas podiam se tornar
sutis e sinuosas e que a exploração das cores desempenhava um papel de
força expressiva na composição geral.
No século XIII o pintor mais conhecido e grande criador de mosaicos é
Giovanni Gualteri (c. 1240-1302), mais conhecido como Cimabue. Influen-
ciado pela arte bizantina, nele já se nota uma nítida preocupação com a
humanização dos sentimentos bem como com o naturalismo nas figuras
humanas, com o movimento das figuras sagradas como anjos e santos,
mediante a postura dos corpos e do drapeado das vestes, sem, no entanto,
realizar plenamente o efeito ilusório da profundidade espacial. Seus tra-
balhos mais importantes encontram-se na Basílica de São Francisco em
Assis, Itália.
Foi este artista que descobriu o jovem pastor Ambrogiotto Bondone, ou
simplesmente Giotto (1266–1337), de quem foi mestre durante dez anos, na
cidade de Florença. Giotto destacou-se na arte dos afrescos, que decoraram
muitas igrejas. Seu estilo característico foi a identificação da figura de san-
tos com a dos humanos de aparência bem comum.

98 HISTÓRIA DA ARTE I
Esses santos com ares humanos eram os mais importantes em sua
pintura, sempre em posição de destaque. Assim, seu estilo vai ao encontro
de uma visão humanista típica do período. Graças ao alto grau de inovação
de seu trabalho, ele é considerado como precursor da pintura renascentista,
inclusive pela prefiguração da perspectiva em suas obras. Giotto procurou
adotar a linguagem visual dos escultores, procurando obter volume e altura
realista nas figuras em suas obras. Comparando suas obras com as do seu
mestre, elas são muito mais naturalistas, sendo por isso considerado o pio-
neiro da tridimensionalidade na pintura europeia.
Outro suporte pictórico do gótico, além dos grandes murais, foram os
retábulos que, dentre outras, podiam ser peças de pintura de teor religioso,
normalmente colocados atrás dos altares. Os retábulos eram classificados
segundo o número de painéis: dípticos (dois), trípticos (três) e polípticos (vá-
rios painéis). Os grandes mestres desta arte foram os pintores flamengos,
os irmãos Jan (1390-1441) e Hubert van Eyck (1366-1426), produzida nos
Países Baixos. Deles é o famoso políptico, o retábulo do Cordeiro Místico,
obra realizada entre 1426 e 1432, portanto terminada por Jan van Eyck.
Nele é possível vislumbrar a arte da ilustração do manuscrito (a ser vista
adiante), graças à preocupação detalhista das vestes, dos adornos da ca-
beça e elementos da natureza. Seus estilos marcam a abertura da pintura
para o mundo exterior, prenúncios que suas obras inaugurariam a fase
renascentista da pintura flamenga. Jan Van Eyck iria ainda se notabilizar
por outros quadros, onde evidencia sua preocupação pelo realismo e rique-
za de detalhes, a exemplo do célebre Casal Arnolfini (1434) e Nossa Senhora
do Chanceler Rolini (1436).
No primeiro, o artista chega a um nível de riqueza de detalhes, como
o interior dos aposentos e as vestes de um rico casal do século XV. Giovan-
ni Arnolfini era um rico negociante italiano que havia se estabelecido em
Bruges, com sua esposa. Além das minúcias sobre o casal, a riqueza de
detalhes do ambiente encontra-se ainda retratada no reflexo do espelho ao
fundo, apresentando uma visão completa de todo ambiente. Notam-se ainda
dois pequenos detalhes que compõem a cena prosaica do cotidiano do casal
emprestando mais naturalidade à cena: o par de sandálias deixado com
aparente descuido e o pequeno cão entre eles.
O que chama mais a atenção no segundo quadro é o trabalho perspec-
tivado do artista, deixando documentada uma paisagem urbana, quando a
cidade, com seus prédios, pontes e torres, já passara a ser o centro da vida
social da época. Outro dado prenunciador dos tempos e da arte renascentis-
tas encontra-se na preocupação autoral do artista ao deixar assinalada em
suas obras a seguinte inscrição: “Jan van Eyck esteve aqui”. Giotto e Jan
van Eyck sinalizam em suas obras as mudanças estéticas que virão com os
novos tempos.
Além dos grandes murais, a pintura gótica foi igualmente constituída
de trabalhos de menores proporções. Assim, numa escala oposta aos gran-
des afrescos e retábulos, desenvolveu-se também uma arte em miniaturas
de extremo capricho e preciosismo – as iluminuras, os manuscritos ilumi-
nados ou miniaturas em forma de saltério (livro de salmos), breviários e
livros de horas, para leitura das horae canonicae.

HISTÓRIA DA ARTE I 99
2.5. A música gótica
Se o gregoriano continua sendo a música da esfera religiosa das ba-
sílicas, abadias e catedrais, a música profana continua sua busca de au-
tonomia com relação ao sagrado. Vimos que a música do período românico
prepara a polifonia gótica, graças ao discanto dos motetos e ao contrapon-
to. Na polifonia, o pensamento musical se exercita pelo entretecimento da
textura musical feita por vozes atuantes em momentos defasados: uma voz
pode estar no início, enquanto outra, no mesmo instante, estar no meio do
canto, e uma terceira terminando a frase. Polifonia vocal, politextualidade
e plurilinguismo tornam-se traços identificadores de um gênero que ganha
grande prestígio em fins da Idade Média.
Sobrepostas ao canto litúrgico, as vozes acrescidas eram portadoras
de falas distintas (o antigo/o novo, o letrado/o popular, o sagrado/o profano,
o latim/o vernáculo, o puro/o pornográfico) entretecendo a simultaneidade
de textos em línguas diferentes. Podia ser uma canção popular erótica, uma
melodia trovadoresca e o gregoriano fundidos num mesmo canto. O que
mais contava era a textura dessa massa sonora entretecida por múltiplas
vozes e não a inteligibilidade das partes, ensejando claramente novas expe-
riências de simultaneidade musical.
Os motetos trazem um problema com relação à medida temporal. A
prosódia musical, que no gregoriano monódico era resolvida pelo ritmo da
frase, se torna bastante problemática quando aparece a necessidade de sin-
cronizar canto e acompanhamento. O período entre o final do século XII e
até inícios do XIV, chamado de Ars antiqua, introduz na vida musical da
época o cantus mensurabilis.
Aqui, é impossível evitar a menção do aflorar do compasso concomi-
tante ao relógio mecânico, no início do século XIV. Seu uso pela Ars novae
musicae, foi longamente preparado, desde as primeiras sistematizações da
notação musical (c. ano 1000) feitas pelo monge italiano Guido d’Arezzo
(992-1050) simplificando a confusa notação neumática, até a reforma da
Ars antiqua feita por Franco de Colonia (c. 1215 - c. 1270), em Ars cantus
mensurabilis (c. 1260) sobre a notação medida da música. O cantus men-
surabilis, polifonia com duração de sons com valores de referência entre
as notas, estabelecidos a partir de um sistema de medidas regulado por
relações numéricas, opunha-se ao conceito de cantus planus do gregoriano,
cuja rítmica uniforme e livre não era susceptível de medição.
As inovações do período da Ars nova (c. de 1320 a 1380) obtiveram
sucesso em vários terrenos, interessando-nos o destaque do moteto com o
uso da isorritmia, – não só na isoperiodicidade, mas também na igualdade
dos valores das notas. Vemos assim que o mesmo princípio racionalizador
do tempo único, manifesto pelo relógio mecânico, encontra-se presente na
equalização do tempo musical, manifesto pelo compasso.
Uma nova mentalidade furtivamente se infiltra na vida moderna dos
negócios, trazida pela ação mercantil, introduzindo uma nova forma de
temporalidade, com a distinção entre o tempo cíclico e o linear que, de
modo geral, iria distinguir as sociedades pré-modernas não-capitalistas e
sociedades modernas capitalistas, pondo fim à Idade Média, momento em
que começa a se generalizar no mundo euro-ocidental o tempo linear.
As inovações técnicas da Ars nova são decisivas para robustecer a mú-
sica profana, com especial destaque, como vimos ao tempus mensurabilis.
Através dele, “controla-se o avanço simultâneo das partes, ao mesmo tempo
que a compatibilidade rítmica entre elas (que já não obedecem mais nem à

100 HISTÓRIA DA ARTE I


rítmica frásica [...] do cantochão, nem à rítmica pulsante e coreográfica das
danças populares)”. (WISNIK, 1989, p.14)
Essa noção, ainda que tosca, de medida temporal contrária à tradição
do cantochão, recebe forte resistência da Igreja que depois acata e elege o
compasso ternário como tempus perfectum, por se constituir forte signo do
mistério da Santíssima Trindade. O “pecaminoso” quaternário será adotado
pela Ars nova, mais sintonizada com o novo espírito de um mundo que se
desprende da tutela do sagrado e se seculariza.
Vive-se o momento da ruptura crucial do medievo, passagem do reg-
num Dei para o regnum hominis, prenhe de tensões, de um mundo urbano
que se anuncia e de mentalidades que se ajustam aos novos tempos. As
tensões de uma sociedade feudal agônica buscam na polifonia seu ajuste
sígnico ideal. Os temas cada vez mais afastados das motivações religiosas
se profanizam. A Ars nova acirra os ânimos da tradição. A Igreja, toman-
do conhecimento da polifonia, trava uma guerra santa contra os riscos da
“concupiscência da escuta”, provocada por uma arte que se afasta mais e
mais, do fim sublime da música a serviço da palavra sagrada, conforme
queria a liturgia gregoriana. Assim, a Igreja, dois séculos antes do Concílio
de Trento, já sentia uma música que ia aos poucos se libertando de sua
tutela, tornando-se uma arte laicizada, não mais subalterna à palavra can-
tada a serviço de Deus. “Uma arte que iria proporcionar, no próprio seio da
igreja, [em seus ofícios], prazeres intelectuais aliados aos prazeres dos sen-
tidos, dispersando com isso a atenção dos fiéis e desviando-os dos mistérios
divinos” (FERRAND, 1997, p.197).
O papa João XXII percebe os alcances das novidades dessas técnicas
musicais: a mistura de textos sacros e profanos, a fragmentação do canto,
a dispersão das melodias em células rítmicas breves, e sobretudo as altera-
ções dos modos gregorianos, com deslizamentos de semitons, levando-o a
condenar a polifonia sacra. Em 1324, o Papa promulga um decreto, Docta
Santorum Patrum, síntese perfeita do pensamento estético de uma Igreja
ainda apegada à tradição, atônita face aos novos rumos da arte e da cultu-
ra. A citação abaixo é um manifesto explícito da consciência papal dotada
de uma extraordinária compreensão dos fenômenos que estavam em curso.
na vida musical europeia. Queixa o papa de certos adeptos da Ars nova:

“Enquanto dedicam toda a sua atenção a medir o tempo, estão empe-


nhados em fazer as notas de uma nova maneira, preferem compor seus
próprios cantos em lugar de cantar os antigos, dividem as peças eclesi-
ásticas em semibreves e mínimas [sic]; estraçalham o canto com notas
de curta duração, despedaçam as melodias com soluços, poluem-nas
com discantes e chegam ao ponto de entulhá-las com vozes superiores
em língua vulgar. [Desprezando os princípios do antifonário e do gradu-
al], correm sem fazer uma pausa para repousar, inebriam os ouvidos em
lugar de acalmá-los, mimam por gestos o que fazem ouvir. Assim, [...] a
lascívia [...] é exibida às escâncaras” (apud FERRAND, idem.p.197)

Manifesto papal de valor inestimável, onde se destaca um ponto fun-


damental sobre a nova estética, totalmente estranho ao cantochão: a conde-
nação do cantus mensurabilis. Através de uma análise interna dos cânones
da Ars nova, o papa percebe que a introdução da medição do tempo musi-
cal, com o uso de notas com unidades de tempo menores, “em semibreves
e mínimas”, através de motivos musicais mais curtos e rítmicos, propiciava
a dança lasciva. O uso “pecaminoso” do quaternário ou sua subdivisão

HISTÓRIA DA ARTE I 101


binária, com notas de tempo menor, permite pequenos trechos rítmico-me-
lódicos, repetidos com mais frequência para, além de permitir sua memo-
rização, propiciar ritmos mais rápidos e dançantes. A Ars nova rítmica, ao
agenciar uma estética corporal laica, é a antítese da monodia de pura espi-
ritualidade do cantochão.
O binarismo do canto popular, ao dividir o tempo em dois momentos
fortes, recusa aquela temporalidade contida na unidimensionalidade da mo-
nodia atemporal do gregoriano, até então expressão de um mundo mergulha-
do na onidimensionalidade do eterno, demarcando agora um mundo urbano
Tímpano e moderno cindido entre o sagrado e o profano, entre o espírito e a carne.
Espaço escultórico com- O longo e tortuoso percurso das mudanças que ainda se processa no
preendido entre o dintel
(verga superior dos por- campo dos modos gregos, implica vários ajustes. No recolhimento claustral,
tais paralela ao piso) que os monges deles retiram o sistema musical da cristandade, reduzindo e
lhe serve de base, e o arco “cristianizando” os modos pagãos, alterando os tons iniciais (o dórico antes
do portal.
em mi, agora parte em ré), e invertendo seus pontos de partida, passan-
Rosâcea do a chamar de “modos eclesiásticos”. No processo de ajustes, o tonalismo
Grande janela circular insinua-se no interior da polifonia medieval. Aos poucos substitui o sistema
profusamente ornada com
a arte dos vitrais. Sua
antigo.
melhor forma de contem- A Ars nova foge do controle da Igreja, implicando, por via obliqua, a
plação se dá a partir do dissolução dos modos eclesiásticos, pelas alterações designadas de músi-
interior do templo gótico,
sobretudo em dias enso- ca ficta (música falsa), pavimentando o caminho do tonalismo. Em outros
larados graças ao efeito termos, desloca-se o eixo do desenvolvimento musical ensejando cruciais
impactante da luminosi- alterações no terreno da música secular. Ademais, gêneros profanos como
dade profusa, realçando o
contraste policrômico dos baladas, rondós, canções trovadorescas, sofrem tratamento polifônico,
seus vidros. mantendo viva a tradição secular da canção popular, invadindo cada vez
mais os espaços sagrados, transformando-os em lugares de expressão mu-
Arcobotante
Sólida estrutura no for-
sical de um povo que, aos poucos, também se afasta da tutela clerical.
mato de semi-arco, cons- Nesse intrincado percurso de acordos e rearranjos, muitos passados
truída no exterior da
igreja para neutralizar a
ao largo, fi cou pendente uma questão milenar: a resolução de uma relação
pressão das paredes das intervalar que sempre desafi ou a estética da tradição - o trítono. Para ela, o
abóbadas, descarregan- estatuto ontológico da música representa, através de suas relações matemá-
do-a para os contrafortes.
ticas, a própria ordem do cosmos, ideia mantida durante longo tempo pela
estética cristã, na noção da música mundana.
Desprendem-se daí várias relações de sons: os modos apolíneos e dio-
nisíacos, as séries harmônicas, as consonâncias e dissonâncias. Despren-
dem-se igualmente, interditos e critérios eletivos e o trítono, ou diabulus in
musica (sua análise será feita na próxima unidade ao tratarmos do sistema
tonal) desfruta o posto de honra das interdições. Como se sabe, para a Igre-
ja medieval, a música era, mais do que tudo, uma metafísica. Para Boécio,
por exemplo, foi devido a uma razão divina que se instaurou a harmonia
no cosmos e no mundo dos homens, segundo a ordem dos números. “No
princípio de tudo está, portanto, o número. E a música, segundo Boécio,
outra coisa não é senão a ciência dos números que governam o mundo”.
(FERRAND, 1997, p.127)
Assim, a mentalidade medieval, conforme vimos, parte do princípio
de que tudo é governado pela harmonia das relações numéricas, expressão
da harmonia divina. As justas proporções consonantes, as ciências como
a matemática, a astronomia, a geometria (disciplinas que, com a música,
formarão o quadrivium), os princípios da moral, da política e da economia,
tudo deve expressar a ordem transcendente do mundo invisível, harmonia
do belo divino, realizada na harmonia do visível. Para tal pensamento, as
ressonâncias das séries harmônicas são dotadas de grande estabilidade,
correspondendo com um universo harmonioso criado pela razão divina.

102 HISTÓRIA DA ARTE I


Esta unidade buscou examinar o período que segue a dissolução da pó-
lis grega, cuja civilização, exposta ao contato de vários povos integrantes
do império de Alexandre Magno, logrou costurar uma expressiva unidade
cultural conhecida como helenismo, destacando-se, posteriormente, sua
difusão no mundo latino constituindo um extraordinário resultado civili-
zatório: o classicismo greco-romano que perde força com a quebra da uni-
dade do Império Romano, ensejando sua divisão em duas partes: o Império
do Ocidente, capital Roma e o Império do Oriente, capital Constantinopla.
Foi também analisada a arte cristã, responsável pela constituição de uma
estética que marcou linguagens e estilos das artes ocidentais, como o can-
to gregoriano, os estilos bizantino, românico e gótico presentes na arquite-
tura, escultura e pintura do período milenar do medievo europeu.

1. Destaque as razões e a importância do helenismo para a constitui-


ção do classicismo greco-romano bem como para a difusão do cris-
tianismo.
2. Analise os principais feitos de Alexandre Magno responsáveis pela
unidade cultural do período do helenismo.
3. Aponte e analise as principais diferenças entre os estilos arquitetô-
nicos da arte clássica grega, greco-romana, bizantina, românica e
gótica.
4. “A estética cristã medieval procurou negar a materialidade e a sen-
sualidade do corpo, em suas diversas linguagens artísticas”. Expli-
que onde e como este princípio se efetivava.
5. Elabore um pequeno texto a partir de uma questão problematizado-
ra formulada por você mesmo, e procure respondê-la desenvolvendo
uma refl exão bem pessoal.

Filme
O nome da Rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud, baseado no romance
homônimo (1980) de Umberto Eco, apresenta a vida monástica da baixa
Idade Média, envolvida em polêmicas religiosas, teológicas e fi losófi cas (o
protagonista é baseado no frade franciscano e fi lósofo inglês Guilherme de
Ockham), tendo como pano de fundo a fi gura de Aristóteles, inclusive sobre
a existência e o teor de um possível livro II de sua Poética dedicado à Co-

HISTÓRIA DA ARTE I 103


média, protagonizadas por beneditinos, defensores do rigor e austeridade
do claustro, e franciscanos, defensores de uma vida religiosa que sinaliza
para os novos tempos. Tudo se encontra ambientado numa antiga abadia
medieval, cuja trama é marcada por mortes misteriosas de monges, tendo
como pano de fundo a marcação do tempo pelas horae canonicae e o canto
gregoriano.

Site
• www.aticaeducacional.com.br/imagens/complementos/hda/
img/imagem26.swf.

ATTALI, Jacques. Bruits essai sur l’économie politique de la musique.


Tradução de Dilmar Miranda Paris: PUF, 1977.
BRACONS, José. Saber ver a arte gótica, São Paulo: Martins Fontes, 1992.
CARDINI, D. Eugène. Primeiro Ano de Canto Gregoriano e Semiologia
Gregoriana. S. Paulo: Attar Editorial/Palas Athena. 1989.
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História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e folhe-
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104 HISTÓRIA DA ARTE I


Unidade

4
Do Humanismo Renascentista
ao Neoclassicismo Iluminista

Objetivos:
• Esta unidade visa estudar o período compreendido entre os séculos XV e XVIII, a
grande época em que as artes ocidentais logram conquistar certa autonomia em
relação às instâncias da tradição medieval cristã que determinavam os conteúdos e
as formas das obras de arte. A unidade visa ainda estudar os grandes estilos, como
o renascentista, o maneirista, o barroco, o rococó e o neoclacissista, enfatizando a
vida e a obra dos principais realizadores das linguagens artísticas do período.
Capítulo 1
A Renascença e o maneirismo

O termo Renascença ou Renascimento surge pela primeira vez com


Giorgio Vasari em sua Vite, para se referir ao novo ciclo que começa após Ci-
mabue e Giotto, a “restaurazione delle arti e per dire meglio rinascità” (apud
BAZIN, 1989, p. 33). O termo é comumente usado para identifi car o período
da cultura europeia compreendido entre o século XIV (alguns historiadores
recuam ao fi nal do século XIII) e meados do século XVII, largo período em
que houve grande interesse pela retomada dos valores éticos, estéticos e
fi losófi cos da cultura grega, vista como autêntica fonte da beleza e do saber.
Como o termo conota a desqualifi cação do medievo, feita por Vasari e outros
contemporâneos, opondo-o à cultura que renasce sobre bases antigas, ou-
tros pensadores procuram enfatizar mais a retomada dos studia humanita-
tis, compreendendo a gramática, a retórica, a dialética e a língua neolatina
clássica, preferindo, assim, falar de Humanismo (v. FAGIALO, 1992, p. 63 e
BYINGTON, 2009, p.7). E o artista humanista seria aquele capaz de tradu-
zir plasticamente essa nova idade da história da humanidade ocidental que
passa a ser conhecida como moderna.

1. Contexto sociohistórico da Renascença


O ar da cidade liberta! Esse provérbio alemão do “Renascimento do
século XII” adensa, com propriedade, todo o sentido da modernidade renas-
centista que está por vir. A cultura citadina compreendia um conjunto de
posturas trazido pela retomada do comércio (desbaratado desde o desmo-
ronamento do Império Romano Ocidental), bem como pelo movimento das
cruzadas, fazendo com que o mundo europeu entrasse em contato direto
com outras culturas. Tudo isso concorreu para preparar o que fi cou conhe-
cimento como revolução comercial, iniciada em fi ns do medievo, fortalecida
na alvorada dos tempos modernos e consolidada com as grandes viagens e
descobertas de países que se tornaram presas coloniais dos europeus, em
plena era moderna. Após séculos de vida rural dispersa, com o reaqueci-
mento do mundo dos negócios, a Europa se urbaniza e a cidade torna-se o
centro das trocas comerciais, adquirindo uma autonomia que era a própria
antítese dos feudos rurais, o que estimula a desagregação deles e a tran-
sição para o modo de produção capitalista. No próprio seio da economia
agrária de subsistência, voltada substancialmente para o consumo imedia-
to, irá irromper outra economia mais vigorosa. O enfraquecimento do poder
feudal (inclusive o da Igreja, a maior proprietária fundiária de então), o
fortalecimento da realeza, aliada à nova classe urbana burguesa conforme
a conveniência de seus interesses, tudo concorre para urdir uma nova men-
talidade. O europeu moderno parecia estar ciente de viver um novo tempo
de celebração do homem e da história.
Além das grandes alterações advindas da nova economia mercantil
urbana, com os efeitos conhecidos, dois fatos aparentemente isolados, mas

HISTÓRIA DA ARTE I 107


de relevância crucial quando articulados, concorreram também para o ad-
vento dos tempos modernos: a invenção da imprensa e a Reforma Protes-
tante. Johannes Gutenberg (1390-1468) inventou a imprensa móvel, aper-
feiçoando os blocos de impressão. Sua grande contribuição foi introduzir
tipos de impressão individuais móveis de chumbo fundido, mais resistentes
e reutilizáveis, diferentes dos de madeira. Associada ao uso de tinta a óleo,
sua invenção deu enorme versatilidade à feitura de livros e outros impres-
sos, permitindo sua massifi cação. Na cidade de Mogúncia, associado a um
comerciante, Gutenberg imprimiu a primeira Bíblia (de 1450 a 1455).

Exemplar da Bíblia de Gutenberg (Biblioteca do Congresso em Washington D.C.)

Martinho Lutero (1483-1546), teólogo agostiniano, foi responsável,


com suas ideias, pela Reforma Protestante. Em 1517, ele fi xa as 95 Teses na
porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, estopim para romper com a Igreja
Romana, contra a qual tinha, como questão maior, o tráfi co das indulgên-
cias, isto é, a obtenção do perdão dos pecados autorizado por Leão X por
troca pecuniária para construir a nova basílica de S. Pedro em Roma. A
tradução impressa das Teses para o alemão foi logo distribuída: em duas
semanas, por toda a Alemanha e, em dois meses, por toda a Europa. Foi
o primeiro evento da História em que a imprensa teve um papel decisivo.
Lutero também traduziu a Bíblia para o alemão sem a prévia autorização
da Igreja católica, algo inconcebível na época. Mesmo não tendo sido o pri-
meiro a fazê-lo, sua tradução superou as demais graças à sua qualidade e,
Exegese: do grego exe- sobretudo, à sua ampla divulgação pelo sistema da imprensa móvel de Gu-
gesis, é a interpretação tenberg. Isso concorreu defi nitivamente para retirar, de Roma, o monopólio
profunda do texto bíblico,
da exegese* da Bíblia, bem como para dissolver a unidade da Cristandade,
senso estendido a textos
jurídicos ou literários. obtida ao longo de mais de mil anos mediante muito empenho doutrinário
Portanto, o termo exegese e catequético, o que foi decisivo também para a secularização da cultura e
foi a denominação confe- dos costumes, tão cara ao espírito humanista da época.
rida à interpretação das
Sagradas Escrituras nos Se a civilização feudal se manteve relativamente cingida aos estreitos
primórdios da era cristã. domínios senhoriais sob a tutela da Igreja, a Renascença faz um movimen-
A exegese bíblica aplica-se
à pretensão de interpretar to totalmente inverso. Na verdade, durante todo o medievo, a vida monacal
corretamente os textos do preservou algo da cultura antiga, tendo contado, ainda, com momentos de
Velho e Novo Testamen- revigoramento do contato com a arte clássica, como se deu, como vimos, na
tos.
era carolíngia e no “Renascimento” do século XII. Porém, algo bem distinto,
e muito mais extenso e profundo irá ocorrer: o humanismo renascentista
provocará uma grande infl exão na mentalidade europeia com a laicização
dos costumes e da cultura, fazendo irromper uma grande mudança nos ru-

108 HISTÓRIA DA ARTE I


mos da arte, cuja forma e conteúdo se dessacralizam, o que deslocou o eixo
teocêntrico da tradição feudal para a secularização antropocêntrica.
O uso do cavalete e da tinta a óleo faz a arte descobrir alternativas de
expressão pictórica para além do ambiente sagrado dos templos, deixando
de tê-lo como suporte básico para a técnica dos afrescos, laicizando formas
estéticas e conteúdos. Como se viu, a pintura, até então, se inspirava prati-
camente em motivos religiosos, confi gurando teores espiritualizados, enfa-
tizando cores, tons e climas evocativos para a contemplação mística, mas, O moderno homem bur-
sobretudo, era carente de perspectiva, visto que se pintava para o olhar guês, desde a proto-Re-
contemplante divino, fruto do teocentrismo vigente. nascença, passa por um
constante ciclo de racio-
A fi xação da perspectiva (ciência da ótica), instituída como princípio nalizações: racionaliza a
canônico da Renascença, e a geometrização do espaço plástico, procedi- pintura pelo uso reitera-
do dos planos perspecti-
mentos tributados aos arquitetos Filippo Brunelleschi (1377-1446) e Leon vados em profundidade,
Battista Alberti (1404-1472) como referência do ponto de ruptura com as com vistas à sua fruição
artes do medievo, confere uma irrecusável visibilidade para representar o por um olhar contemplan-
te humano; racionaliza a
deslocamento do olhar divino, imã contemplativo da tradição, para a visão arquitetura, mediante a
antropocêntrica do homem moderno. As normas da perspectiva projetam elaboração de maquetes e
a modernidade para as dimensões da profundidade e da história. Antônio plantas antes das edifi ca-
ções; racionaliza os espa-
Manetti, em A vida de Brunelleschi assim a descreve:
ços das conquistas, pelo
traçado de mapas carto-
gráfi cos em “escala”, pro-
jetando no papel grandes
Aquilo que os pintores atualmente chamam perspectiva (prospectiva)... distâncias a serem percor-
é aquela parte da ciência da Perspectiva que se voltou a reduzir ou am- ridas, postulação crucial
do capitalismo nascente.
pliar sistematicamente, conforme aquilo que o olho percebe, os objetos Racionaliza, sobretudo, o
que estão respectivamente afastados ou próximos – que se trata de cons- tempo, tornando-o obje-
tivo e linear, mediante o
truções, planícies, montanhas e paisagens de todo tipo – e de fi guras e
uso do relógio mecânico,
de outros objetos em todos os lugares pelo tamanho que parecem ter de premido pela necessidade
uma certa distância correspondendo ao seu maior ou menor distancia- da medição do tempo do
trabalho.
mento (apud BAXANDALL, 1991, p. 200).

Artes plásticas, música, literatura, deixam a inspiração quase exclu-


siva do mundo religioso para se dedicaram ao registro da pulsão inventiva
subjetiva do artista, mesmo que disso ainda não se tivesse plena consciência.
Em suma, o empenho humanista, ao ver o homem como centro e medida do
mundo, se direcionou para a laicização do pensamento fi losófi co-científi co,
abrigando investigações inovadoras, além de reafi rmar o papel do individuo,
preparando o espírito do artista para se ver, ele próprio, como autor, algo
pressentido por Jan van Eyck em fi ns do medievo, conforme veremos.
O ideal humanista e o novo espírito científi co se inscreviam nas mais
diferentes formalizações estéticas. Operando ora no espaço arquitetônico,
ora nas linhas e cores do espaço pictórico, ora no volume escultórico, ora
nos textos literários, ora nas criações musicais, o novo artista procura ex-
pressar os maiores valores renascentistas: o racionalismo e a dignidade do
homem como centro e medida do mundo. A estética humanista, mesmo se
inspirando no ideal da estética clássica grega, dela difere ao assumir certa
feição sensual e hedonista.
Mesmo não sendo nossa intenção analisar a história da literatura, é
irrecusável o registro dos novos valores do mundo das letras do período,
pois a literatura foi, certamente, a arte que melhor expressou os ideais do
humanismo dos novos tempos, por se mostrar mais cosmopolita e acom-
panhar, desde seu epicentro, a crise religiosa provocada pelas igrejas re-
formadas, bem como assistir aos primeiros ensaios do poder absoluto que

HISTÓRIA DA ARTE I 109


irá caracterizar, por alguns séculos, o sistema político de vários países
europeus. Ademais, é impossível ficarmos indiferentes ao mundo das letras,
arte diretamente afetada pela difusão massiva do sistema de impressão in-
ventada por Gutenberg.
Na retomada do pensamento e dos conceitos da antiguidade clássica,
Platão e Aristóteles são os filósofos mais revisitados pelo leitor renascentis-
ta. No Quattrocento, de Aristóteles é retomada sua tradição poética (no sen-
tido de póiesis enquanto criação estética), presente no Livro I da Poética. O
autor mais importante dessa linhagem é o artista Leon Battista Alberti com
suas obras De Statua (1434), De Pictura (1435) e De Re Aedificatoria (1452).
Surge também o famoso Trattato della Pitura de Leonardo da Vinci, (iniciado
por volta de 1498 com a 1ª edição impressa em 1651), na realidade um con-
junto de escritos e esboços onde expõe, dentre outras coisas, as normas da
perspectiva fincadas em princípios matemáticos e geométricos.
No Cinquecento, de Platão é retomado o ideal utópico de A República, ao
se buscar construir uma sociedade ideal num lugar imaginário. Integram
essa linhagem de autores utópicos os ingleses Thomas Morus (1478-1535)
com Utopia (um lugar outro não existente) e Francis Bacon (1561-1626) com
Nova Atlântida, e o italiano Tommaso Campanella (1568 -1639) com Cida-
de do Sol. No entanto, o autor que melhor encarna o ideal humanista é o
holandês Erasmo de Roterdam (1467-1536), sobretudo em sua obra-prima
Elogio à loucura, dedicada ao amigo Thomas Morus
Mesmo não rompendo com Roma, a crítica à Igreja Católica feita por
Erasmo leva-o, no início, a se aproximar de Lutero, com quem mantém
diálogo até seu rompimento em 1525. O humanismo de Erasmo buscava
dar uma interpretação cristã à sabedoria antiga, insistindo numa espiritu-
alidade universal baseada na liberdade de expressão, ao contrário do que
pregava a Reforma que condenava as “contaminações pagãs”.
Em tom provocador, Erasmo faz da loucura uma personagem muito
conhecida, mas pouco discutida. Indignada com a falta de elogios, ela re-
solve elogiar a si própria e mostrar o quão se encontra presente na vida das
pessoas. Assuntos como a cultura clássica, a religião, a paz e a sociedade
preenchem o imaginário temático do autor, sendo cada um sempre usado
como objeto sobre a reflexão da loucura. Mas, dentre aqueles, sobressai o
tema da razão, aparentemente o “outro” da loucura. O Elogio é uma sátira
contra a estultícia humana (do latim stultitia, tolice), apresentada nas mais
variadas formas.

2. O sistema das artes renascentistas


2.1. A arquitetura
Diferente dos ideais arquitetônicos anteriores, ora preocupados com
adaptações de templos pagãos (as basílicas protocristâs), ora com desenhos
geométricos (estilo bizantino), ora com grandes espaços para acolher pere-
grinos (estilo românico), ora com a verticalidade das ogivas (estilo gótico), o
ideal construtivo da Renascença se expressou nas representações racionais
organizadas em "proporções justas" entre as partes que compunham o todo
edificado, cuja marca principal foi perseguir uma ordem e disciplina que
transpusessem o ideal de infinitude das catedrais góticas. A matematização
do espaço arquitetônico é flagrada, por exemplo, nas relações estabelecidas
entre as partes do templo para que o olhar observante pudesse captar a lei
que as organiza, não importando de que ponto se observa.

110 HISTÓRIA DA ARTE I


Brunelleschi, o arquiteto que melhor encarna o modelo de tal concep-
ção, é o exemplo do artista renascentista: pintor, escultor, arquiteto, ma-
temático, geômetra, conhecedor do poeta Dante Alighieri, autor da Divina
Comédia. Ele realizou extraordinários trabalhos que integram o acervo ar-
quitetônico da Renascença, como a cúpula da catedral de Florença (iniciada
em 1420), conhecida como a igreja de Santa Maria del Fiore.
A partir dele, contando com a colaboração de Battista Alberti, foram
retomadas as ordens gregas (coluna dórica, jônica e coríntia), as cornijas,
os frontões, além dos arcos romanos, agora integrados ao espaço matema-
tizado da estética renascentista. Antigas formas clássicas foram revividas
com o mesmo “tom” de sobriedade, emprestando às fachadas cristãs uma
confi guração curiosamente pagã. Um exemplo é a igreja de Santo Andrea,
em Mântua, que recupera a estética do antigo império, presente na fachada
do edifício, a qual foi concebida como um gigantesco arco triunfal à maneira
romana.
Um belo exemplo de edifício cumpridor dos cânones para atingir os
objetivos da arquitetura renascentista é a capela Pazzi (1429-1443) em Flo-
rença, de dimensões pequenas comparadas às edifi cações góticas. Cons-
truída dentro dos princípios científi cos precisos das regras da geometria, a
capela de Brunelleschi obteve a concretização da harmonia e da regulari-
dade arquitetônicas perseguidas pelo ideal renascentista do Quattrocento. O Homem do
Renascimento,
Agnes Heller

2.2. A pintura "Durante o Renascimento,


os conceitos de medida e
Consolidam-se na pintura renascentista, princípios que haviam surgi- de beleza pressupunham
do entre os artistas do período gótico tardio: o traço perspectivado, o uso do um ao outro. Efetivamen-
claro-escuro e o naturalismo. Naturalismo, proporção e simetria se constitu- te, a temeridade e a imo-
deração podiam parecer
íram nas vias de acesso à beleza, levando os artistas a perscrutar, cientifi - muitas vezes fascinantes
camente, o traço anatômico dos corpos e a forma dos objetos, incorporando e ser alvo de simpatias
em suas obras um realismo insuperável. Modelos clássicos antigos renas- e, todavia, nunca eram
vistas como 'belas', mas
cem e se adaptam a novas postulações e gostos estéticos. sim como 'grandes' [...]. A
O ideal de beleza revive a fi guração grega, agora integrada a uma har- imoderação atraia, mas,
simultaneamente, repe-
monia de composição ditada matematicamente, evitando desproporções e
lia. Provocava o prazer,
excesso de traços. Com a perspectiva linear, escalonam-se os objetos repre- mas também o medo, en-
sentados em razão das distâncias ou dos segmentos geométricos tendentes quanto a beleza só atraia
ao "ponto de fuga" central ou pouco acima do espaço pictórico. O efeito é e suscitava o prazer: de
fato, a beleza era o obje-
imediato, estabelecendo a ilusão de profundidade, noção que desliza para to do amor [...]. O estéti-
a linearidade do tempo histórico moderno, mantendo-se por vários séculos. co e o utilitário uniam-se
neste conceito de medi-
Quanto à temática, embora o teor sagrado se mantenha, cenas bí- da. Ter temperança, viver
blicas acabam por ganhar certo ar coetâneo. A par disso, renascem perso- com moderação, respei-
nagens míticas pagãs. O prosaismo da vida moderna da classe burguesa tar a medida justa - tudo
isto era não só bom e belo
ganha proeminência, fazendo a arte de então se ocupar com minúcias tais para o homem, como ain-
como afetos (dor, ironia, alegria, paixão) ou pormenores fi gurados (rosto, da útil. Esta unidade era
pés, mãos, objetos paisagísticos, vestimentas). particularmente natural
em Florença [...]. Era
Vejamos, de forma pontual, alguns pintores sugeridos como mais re- um hábito social que, no
presentativos do período renascentista, com seus estilos e trabalhos. entanto, estava longe de
ser 'natural' ou apenas
Fra Angelico (1387-1455): a despeito da infl uência de Masaccio (v. abai- um costume tornado ha-
xo) em certo momento de sua vida, o artista, por sua condição de religioso bitual; era sempre uma
dominicano, perseguiu a conciliação entre o terreno sensível e o sagrado norma. Constituía uma
das normas concretas de
suprassensível, imbricando o religioso sagrado com impressionantes traços comportamento da época"
de realismo humano. Por isso, alguns historiadores incluem seu estilo na (apud CUNHA, op.cit.p.
intersecção entre o período do gótico tardio e a primeira Renascença. 546)

HISTÓRIA DA ARTE I 111


As paredes do claustro, as salas e as celas do convento São Marcos, em Flo-
rença, constituem uma impressionante galeria de sua obra, para a Anuncia-
ção (1433-34), onde notamos evidentes a perspectiva e traços de realismo.
Paolo Ucello (1397-1475) destaca-se por sua maestria nas pinturas em
perspectiva e pela impressão de
relevo que deu à pintura, recor-
rendo para isso ao chiaroescuro.
Ucello era obcecado pela pers-
pectiva que usava cientificamen-
te aliada ao imaginário fantás-
tico do medievo para criar uma
sensação de profundidade em
suas obras e não para narrar
histórias, como pode-se observar
no quadro São Jorge e o Dragão
(c. 1455).
Masaccio (1401-1428): a
despeito de sua curtíssima vida, Anunciação de Fra Angelico
teve, em apenas pouco mais de
dez anos de atividade artística febril, tempo suficiente para expressar sua
habilidade que consistia na pintura como imitação da realidade, parecendo
buscar uma cópia fiel dos objetos retratados tais como aparentam ser. Es-
tabeleceu os princípios básicos da pintura renascentista, e é tido, portanto,
como um dos primeiros a fazer uso científico da perspectiva e da luz, de
modo a dar ilusão de tridimensionalidade. Mesmo jovem irradiou influxos
para artistas mais velhos, a exemplo de Fra Angelico, como vimos. Uma de
suas obras mais representativas é a Madona com o Menino (1426).
Piero della Francesca (entre 1410/20-1492): era pintor e matemático
do Quattrocento, o que explica sua busca quase obsessiva pela composição
da beleza geométrica e pela perspectiva. Para ele, a pintura não devia nar-
rar eventos, mas criar figurações geometrizadas, a exemplo de sua Ressur-
reição de Jesus, grupo de figuras em formato piramidal, cuja base são os
soldados que dormem próximo ao túmulo e cujo o ápice é a cabeça de Cris-
to ressuscitado.
Piero della Francesca primou também pela criatividade em relação ao
passado medieval, apresentando temas
novos e técnicas inovadoras como o uso
da tela e da pintura a óleo, o retrato, o
nu, e, sobretudo, a criação do volume.
Trabalhou na decoração do Palácio Du-
cal de Urbino, ao norte da Itália, cujos
titulares, o casal Frederico de Monte-
feltro e a esposa, Battista Sforza, foram
retratados no famoso díptico, objeto de
estudos de Picasso, Braque e outros ar-
tistas cubistas, fruto da construção geo-
métrica dos rostos retratados.
Nesse díptico, é nitida a intenção
do artista em reduzir as figuras às for-
mas geometrizadas, apresentando um
dado bem interessante: apesar de cada
A Ressurreição de Cristo de Piero della
uma se encontrar isolada no painel do
Francesca díptico, a mesma paisagem, ao fundo,

112 HISTÓRIA DA ARTE I


empresta unidade à cena. Pintadas de perfi l, as fi guras conseguem passar
a ilusão de volume e relevo pretendida pelo artista.

2.2.1. Os três gênios do Cinquecento


Certamente os artistas que melhor expressaram o esplendor da pintu-
ra da época, vista como o ápice do classicismo, são os três gênios da plasti-
cidade renascentista: Leonardo da Vinci (1452-1519), Michelangelo Buonar-
rotti (1475-1564) e Rafael Sanzio (1483-1520)
O polímata Da Vinci, considerado arquétipo do homo universalis, con-
ceito cultuado “pelos humanistas italianos, segundo os quais quem possui
uma virtude, possui todas” (BYINGTON, id. P. 37), encarna o gênio do mo-
derno humanismo, talvez o artista mais cônscio do momento em que se vi-
via. Era um momento de nítida distinção entre as artes mecânicas e libe-
rais: sua noção de que a arte é coisa mental é, certamente, a formulação
mais precisa do papel da subjetividade autoral do artista renascentista.
Atuando em várias áreas do saber, foi mate-
mático, escultor, pintor, desenhista, músico,
urbanista, inventor, arquiteto, botânico, etc.
Dedicou-se aos estudos de anatomia, pers-
pectiva, proporções e ótica. Legou-nos diver-
sas obras primas como a Última Ceia – onde Sfumato: o termo é oriun-
compõe o espaço pictórico de forma harmo- do do italiano sfumare (va-
porizar) e seu signifi cado
niosa, distribuindo geometricamente os diz respeito à técnica de
apóstolos (dois grupos de três de cada lado), gerar gradientes num de-
tendo Cristo como o centro axial da composi- senho ou numa pintura,
ção irradiando linhas perspectivadas –, e a procurando suavizar ou
esbater os contornos da
pintura mais conhecida de todos os tempos, pintura, obtendo-se tran-
a Monalisa, cujo sorriso enigmático dá realce sições nuançadas da luz à
ao sfumato *, técnica bastante usada e por sombra ou vice-versa. Ob-
servando a Monalisa, não
isso, bem difundida por Da Vinci. se percebe as pinceladas e
Detalhe do rosto da Monalisa variações bruscas de tons
Se Michelangelo não apresenta a ver- (técnica do sfumato) devido ao uso do sfumato.
satilidade exuberante de Da Vinci, foi genial
principalmente em duas linguagens, sem desconsiderar a arquitetura as-
sumida na fase madura: a escultura e a pintura. Por isso, foi chamado
por Giorgio Vasari de O divino. Foi discípulo do pintor fl orentino Domenico
Ghirlandaio, celebrado mestre de uma excepcional geração de artistas. O
trabalho mais famoso de Michelangelo, como pintor, são os afrescos do teto
da capela Sistina (entre 1508 e 1512), feito no tumultuado papado do pon-
tífi ce guerreiro Júlio II. Desse majestoso painel de pura expressão de subli-
midade da arte renascentista, ressalta a cena da criação do homem, quando
Deus, representado por
um vigoroso corpo an-
tropomorfi zado, envolto
numa corte de anjos,
estende a mão para,
num simples toque,
doar a vida a Adão, re-
presentado por um jo-
vem de corpo nu, forte
e harmonioso, apanágio
do ideal de beleza da
Renascença. E Deus criou o homem (Capela Sistina, Vaticano)

HISTÓRIA DA ARTE I 113


Mais jovem e de existência mais curta (37 anos), isso não impediu que
Rafael, nos seus traços de puro equilíbrio e simetria, se mostrasse como o
melhor tradutor do ideal de beleza clássica. Seu estilo procura compor ce-
nários sem excesso de detalhes e decoração. Por sugestão do arquiteto Bra-
mante, seu amigo e responsável pelo projeto de restauro do Vaticano, Júlio
II o chama quando tinha apenas 25 anos. Durante 12 anos, foi responsável
por grandiosos projetos. Seu mais importante afresco no Vaticano é a Esco-
la de Atenas (Causarum cognitio ou “Conhecimento das causas”, no original),
síntese cartográfica e alegórica da filosofia antiga, que mostra um grupo de
filósofos de várias épocas ao redor das figuras de Aristóteles e Platão, ilus-
trando a continuidade do pensamento grego.
Demonstrando afinidades com a Última Ceia de Da Vinci, quanto à
organização do espaço pictórico, o eixo central da Escola são as figuras dos
dois filósofos, cujo entorno é composto por grupos de outros filósofos, alguns
os ladeando, outros em planos inferiores, alguns sentados. Platão (com o
rosto de Da Vinci), apontando para o alto, segura o diálogo socrático Timeu,
sendo, assim, identificado com o ideal do mundo suprassensível. Aristóteles
segura a Ética a Nicômaco com a mão na horizontal, expressando o mundo
sensível. A composição é rematada com um conjunto sequenciado de arcos
que vai graduando a profundidade em planos perspectivados, percepção
ainda reforçada pelas figuras geometrizadas no chão da Escola.

Escola de Atenas de Rafael

2.3. A escultura
Assim como na pintura, a escultura ganhará traços similares, quan-
do não idênticos. Busca fixar movimentos sutis e dinâmicos, exprimir o
naturalismo dos afetos e dos estados de espírito, explorar o ideal de beleza
pela nudez e pela sensualidade, algo também detectável na pintura. Tem-se
aqui a grande síntese (ou seria uma das grandes contradições íntimas da
Renascença) do espírito da época: a Renascença “não vê salvação da arte
fora do paganismo [leia-se fora do classicismo greco-romano] nem da alma
fora do cristianismo [leia-se Contra-reforma]” (BAZIN, 1989, p.33).

114 HISTÓRIA DA ARTE I


Uma análise sumariada da época pode ser representada pela obra
de Michelangelo, tido como o maior escultor renascentista. Um dos moti-
vos do constante conflito com Júlio II foi este tê-lo contratado como pintor
para decorar o teto da capela Sistina, quando o grande desejo do artista
era terminar de esculpir o profeta Moisés, para ser colocado na tumba do
papa. Conta a lenda que, ao ver terminado seu Moisés, impressionado com
o resultado estético de seu realismo em mármore, teria golpeado o joelho do
profeta e proferido: “Perché non parli?”/ “ Por que não fala?”
No Davi (1501-1504), Michelangelo expressa a dignidade humana me-
diante um realismo anatômico impressionante. Ao contrário da narrativa
mítica, não se trata de um menino que derrota o gigante Golias com uma
pedra atirada de uma funda, mas de um esbelto jovem adulto que, na digni-
dade de sua nudez contida em 5,17m de mármore de Carrara, apresenta um
corpo contendo a expressão de alguém prestes a realizar uma ação heróica.
Sua expressão corporal nos conduz, inapelavelmente. a ver afinidades com
outra obra recorrente em vários momentos da história da escultura, o Dorí-
foro de Policleto, porém com uma diferença: a força interna que transparece,
conforme assinala O.T. Araújo (apud PROENÇA, op.cit., p. 91) referindo-se
aos traços da cabeça da estátua.
O [heróico] Davi de Michelangelo tem uma expressão desconhecida até
então. Contém uma espécie de força interior que não aparece no hu-
manismo idealizado dos gregos. [...] Possui um tipo de consciência que
surge com o Renascimento em sua plenitude: a capacidade de enfrentar
os desafios da existência. Não é apenas contra Golias que este Davi se
rebela e batalha. É contra todas as adversidades que podem ameaçar o
ser humano

A Pietà de Michelangelo (1498-99) tem 174 centímetros por 195 cen-


tímetros. Ao contrário do pathos de outras esculturas do gênero, sempre
mostrando Maria como Mater dolorosa, Michelangelo a representa muito
jovem e com uma nobre resignação, cuja expressão facial é idealizada, con-
trastando com a angústia usual que os artistas, até então, lhe imprimiam.
O esmero requintado da modelação do conjunto da obra, representado pelo
registro realista do drapeado das vestes e das saliências dos músculos e
veias, bem como o tratamento da superfície do mármore, polido como um
marfim, conferem à obra a reputação de ser uma das mais belas obra-
primas de todos os tempos. Nota-se a harmonia da composição obtida pela
horizontalidade do corpo de Cristo com a verticalidade da figura de Maria.
Trata-se de um trabalho escultórico organizado segundo um esquema em
forma piramidal, de uso corrente entre os artistas renascentistas.
Michelangelo tinha então 23 anos. Devido à sua pouca idade e por
muitos desacreditarem de sua autoria, o artista colocou sua assinatura na
faixa que atravessa o peito de Maria: Michael Angelus. Bonarotus. Flo-
rent. Facieba(t), i.e, “Miguel Angelo Buonarotus de Florença fez.”

HISTÓRIA DA ARTE I 115


Pietà de Michelangelo

3. A Renascença europeia
Assim como o gótico, que se irradia pela Europa a partir da França,
o mesmo ocorre com a Renascença, que se espraia no continente a partir
da Itália. Vários países europeus aderem ao princípio da revitalização da
cultura greco-romana depois de superar, de forma sintética, o choque entre
estéticas nacionais e concepções italianas. Dentre as várias linguagens, a
pintura foi a que melhor refletiu tal síntese. Na Alemanha e nos Países Bai-
xos, artistas como Hieronymus Bosch (1450-1516) e Albrecht Dürer (1471-
1528) conseguem conciliar o gótico com a nova pintura italiana.
Bosch tornou célebre, com seu estilo inconfundível, o tríptico Jardins
das delícias (c.1500), cujo painel central é ladeado por dois painéis repre-
sentando o Paraíso (à esquerda) e O inferno musical (à direita). A força de
sua fantasia livre com suas formas oníricas é vista como prenunciadora
do surrealismo, séculos antes de sua irrupção. Uma das qualidades mais
famosas de seu estilo era a forma de representar a maldade humana. No
painel sobre o inferno, por exemplo, “amontoam-se horrores sobre horro-
res, labaredas e tormentos de toda espécie, e todos os tipos de demônios
pavorosos, meio animais, meio humanos ou meio máquinas, que flagelam
e castigam por toda a eternidade as pobres almas pecadoras” (GOMBRICH,
1989, p. 276).
O alemão Dürer, talvez o mais realista dos artistas de sua época,
concebe sua pintura como a arte da representação fiel do que pretende
expressar. Procurando refletir sua terra e seu tempo, dedicava-se a pintar
de preferência pessoas simples do povo com seus trajes típicos, bem como
soldados e camponeses. Além de excelente gravurista e desenhista, foi um
grande retratista, expressando sempre os traços psicológicos do retratado.

116 HISTÓRIA DA ARTE I


Utilizou, obstinadamente, os estudos sobre matemática e geometria
em suas criações, como a famosa gravura Melancolia. O que nos chama a
atenção nessa gravura é, justamente, esses dois aspectos de sua formação
contidos no poliedro e no quadrado mágico. O poliedro parece formado por
dois triângulos equiláteros, além de seis pentágonos. Porém, o mais curioso
na gravura é o quadrado mágico situado no canto superior direito da gravu-
ra. O quadrado é formado por quatro linhas e quatro colunas, contendo um
arranjo de números inteiros de tal forma que a soma desses números, em
cada linha e coluna, ou mesmo nas duas diagonais do quadrado, será sem-
pre idêntica, i.e., 34 e os dois números do meio da linha inferior fornecem a
data da gravura: 1514, sinalizada pela ponta da asa do anjo.
Porém, o artista que parece melhor en-
carnar a síntese acima referida é Pieter Brue-
gel, o Velho (1525/30-1569). Oriundo dos Paí-
ses Baixos, ele viveu na Antuérpia, importante
entreposto dos começos da Europa moderna.
Inicialmente influenciado por Bosch, encon-
trou cedo seu estilo, cuja inventiva voltou pre-
ferencialmente para retratar costumes, festas
e folguedos da vida simples das pequenas cida-
des rurais ainda marcadas pelo medievo. Sou-
be como ninguém utilizar uma grande quanti-
dade de figuras humanas em seus quadros. A
força transgressora da festa popular pode ser
visualizada em Combate entre o Carnaval e a
Quaresma (1559), retrato de um pequeno vila-
rejo medieval em pleno mundo renascentista.
Sobre esse quadro, existe uma sugesti- Melancolia de Albrecht Dürer
va análise de Jacques Attali, ao apontar a pre-
sença de vários pares contrastantes na obra: festa/penitência, violência/
harmonia, ordem/desordem, luz/trevas. Na dobra histórica dos dois tempos
– o medievo e o moderno –, confrontam-se dois campos, duas concepções
de mundo profano, vendo-se nessa cena de conflito entre a ordem sagrada
e a festa popular transgressora, a simulação de todas as ordens pensá-
veis. O quadro, espécie de cartografia plástica desse confronto, expressa
a estratégia de dois mundos antagônicos: para o povo, a festa do carnaval
representa a felicidade tolerada pelo riso concedido enquanto se espera o
sofrimento sagrado anunciado pelo tempo da Quaresma; para os ricos, a
penitência representa a austeridade a ser suportada pela promessa da bem-
aventurança eterna. Bruegel anuncia o embate entre duas sociabilidades
fundamentais, a Norma e/ou a Festa, decantadas do nicho de duas épocas
que se tensionam: o mundo feudal rural e o urbano moderno. Os pobres,
escondidos atrás de máscaras, festejam em torno de um rito derrisório. Os
ricos, expressando o sentimento da Quaresma, se afligem e penitenciam,
dando esmolas aos mendigos instalados na porta da Igreja. Contrapõe-se
ao drama da penitência, a procissão do Carnaval, onde se vê a figura trá-
gica e inquietante de um músico desfigurado pela máscara que se junta a
jogadores de dados. Attali (1977) arremata a sua análise assim: “Harmonia
e Dissonância, Ordem e Desordem. Neste confronto simbólico entre a misé-
ria alegre e o poder austero, entre a infelicidade transformada em festa e a
riqueza maquiada em penitência [...], Bruegel nos faz não somente ver, mas
compreender o mundo" (p. 39).

HISTÓRIA DA ARTE I 117


Combate entre o Carnaval e a Quaresma

4. O maneirismo
Derivado do termo italiano maniera ("maneira") e usado com intenções
positivas por Vasari, ele próprio visto como representante desse novo estilo,
o maneirismo seria sinônimo de graça, leveza, estabilidade e sofisticação,
fruto do estilo pessoal do artista que, no limite, transforma-se num capri-
cho idiossincrático como em Michelangelo, que se permitia buscar cons-
tante e incansavelmente novas formas de expressão. Depois, o maneirismo
sofre uma grande inflexão passando a conotar artificialidade e virtuosismo
excessivo. A expressão “à maneira de” deixou de retratar a inventiva do ar-
tista, para se referir ao modelo que se imitava, isto é, “à maneira” de outrem
O historiador Gombrich (1989) vê no maneirismo um tempo de “crise
da arte”. Poderíamos buscar as causas da crise nos fatos ocorridos na Euro-
pa, algumas já analisadas como a perda da primazia de Roma e a quebra da
unidade da cristandade, com o movimento reformista (Lutero, Calvino, John
Knox, Zwingle, Henrique VIII), abalando a instituição, sólido esteio para a
inspiração e as encomendas dos artistas. O abalo foi tal que precisou de uma
ordem religiosa (a Companhia de Jesus), fundada em 1534, para combater
os reformados, e de um grande conclave (Concílio de Trento, de 1545 a 1564).
convocado pelo papa Clemente XIV, para reparar os estragos feitos.
O contexto sociohistórico do novo estilo, além da esfera religiosa, foi
também marcado por profundas mudanças na economia, política e cultu-
ra. Os permanentes conflitos da Itália com a França, Alemanha e Espanha
provocaram uma radical mudança no equilíbrio de forças do continente,
culminando no Saque de Roma de 1527: oito dias de terror e devastação,
provocando a diáspora de artistas e intelectuais para fora da Itália. No pla-
no econômico, a Itália já vinha perdendo primazia no quadro do capitalismo
mercantil, com o deslocamento das rotas de comércio para o Atlântico, que-
brando de vez seu monopólio das linhas do Mediterrâneo, o que irá trazer
também consequências para o campo das artes e da cultura, considerando
o papel, há anos, desempenhado pelos burgueses italianos.
Gombrich assinala que, depois de 1520 (leia-se após Da Vinci, Miche-
langelo e Rafael, quando as artes da Renascença atingiram os limites de
sua perfeição e glória), era muito difícil à nova geração impor seu próprio

118 HISTÓRIA DA ARTE I


estilo. Daí se poder dizer que subjaz ao maneirismo um desejo inconscien-
te de superação por parte da nova geração. A partir de então passou a ser
considerado como a fase fi nal do ciclo renascentista. A longa vida de Miche-
langelo propiciou-lhe a possibilidade de experienciar diferentes etapas da
vida artística de sua época. Por isso, alguns autores vêem a sua última fase
como a mais vigorosa, mística e monumental servindo de paradigma para
o estilo maneirista. Pelo seu aspecto impreciso e ambivalente, por se tratar
de um período de transição entre o ápice da Renascença e o afl orar de um
novo estilo, o barroco, várias noções do maneirismo sofrem igualmente de
ambiguidades e imprecisões quando não contraditórias, algumas se con-
fundindo com o próprio estilo barroco.

5. A música profana da modernidade renascentista


Vimos que o fi nal do medievo imerge na polifonia gótica, cujo emara-
nhado de vozes superpostas demandava menor atenção às palavras. A mú-
sica polifônica, transformada pelos mestres fl amengos, ganha estruturas
mais requintadas e complexas: a missa e o moteto, gêneros hegemônicos
na época, executados a capela *, permitiam a multiplicação de vozes autô-
nomas, cuja sofi sticação foi bastante ajudada pelo cantus mensurabilis. Os
motetos abandonam os excessos da “bricolagem” da Ars gotica, baseando-
se, agora, num único texto. As várias vozes, insubmissas à voz gregoriana,
se entretecem e engendram seu movimento a partir do livre diálogo, antes
subjacente ao cantochão. A voz grave tenor (do latim tenere, sustentar) des-
loca-se para regiões mais agudas. As vozes fl uem em campos distintos de A capela: do italiano a
cappella, termo que se re-
tessituras, fi xando, depois da Reforma, o padrão do coral luterano a quatro fere à música vocal sem
vozes. acompanhamento instru-
mental, conforme o costu-
O contraponto polifônico enseja um permanente encontro das diferen- me do protocristianismo e
tes notas ressoadas em cada frase melódica, gerando novos encontros sono- que foi mantido na mono-
ros. Assim, caminha-se para a verticalização da harmonia, encontros nem dia gregoriana.
sempre consonantes para a escuta da época, postulando novos acordos.
A trama de consonâncias e dissonâncias vai, aos poucos, indicando um
acerto “vertical” intervalar das notas, com vistas às resoluções de tensões e
repousos. Por essa simultaneidade de sons, chega-se à harmonia moderna
do sistema tonal que irá culminar no francês Jean-Philippe Rameau e no
alemão Jean Sebastian Bach.
Com a horizontalidade do canto permitindo uma leitura vertical, o
trabalho composicional passa a ser feito “compasso por compasso, abran-
gendo ao mesmo tempo todas as vozes. A concepção linear, embora persis-
ta, entra num equilíbrio com a concepção vertical” (Fubini, apud WISNIK,
1989, p.116). A autonomização do discurso musical, investido dessa nova
estética composicional, torna-se uma tendência explícita da nova música.
Essa cresce e se diversifi ca extraordinariamente numa infi nidade de gêne-
ros e estilos, com o uso de novos instrumentos (metais e cordas), ensejando
um fato novo que irá provocar polêmicas diversas: a música instrumental,
um dos grandes fenômenos culturais do Renascimento.
A imprensa também irá ajudar na divulgação de coletâneas musicais,
estimulando o aprendizado e o conhecimento de autores e de composições
sagradas e profanas da Renascença, sobressaindo dentre elas, o madri-
gal, espécie de síntese da polifonia fl amenga e da poesia culta ou cortesã
com a musicalidade dos italianos. Músicos e professores provenientes das
mais variadas regiões, sobretudo do norte da França e dos Países Baixos,
conhecidos como "mestres franco-fl amengos", ou simplesmente clérigos, fre-

HISTÓRIA DA ARTE I 119


quentam um ambiente entregue ao divertimento cortesão, requintado e cos-
mopolita, tornando-se profi ssionais inteiramente dedicados à arte musical,
cujo predomínio se estendeu por toda a Europa.
Roma reage à tendência a uma escuta prazerosa da massa sonora
obtida pelo encontro contrapontístico de várias vozes sem maiores preocupa-
ções com o texto. O Concílio de Trento tenta coibir os excessos da polifonia
renascentista, com seus motetos e discantos profanamente carnavalizados,
grave ameaça à espiritualidade, e reafi rma o gregoriano como a música ofi -
cial da liturgia católica. A total proscrição da polifonia do seio da Igreja só foi
Palestrina é a grande re- evitada graças à intervenção do italiano Palestrina. “A música palestriniana
ferência da polifonia vo- é clara, calma, transparente, sem cair em excessos de número de partes.
cal. Seu tempo pode ser Os próprios Papas tiveram de se inclinar perante a força de uma tal arte.
considerado como a era
de ouro do canto coral a Graças a ela foi salva a música da Igreja romana” (HERZFELD, op. cit. 54).
capela. Ele compõe tanto
peças religiosas como as
missas, quanto profanas
como motetos e madri-
gais, utilizando-se muitas
vezes de paráfrases grego-
rianas.

120 HISTÓRIA DA ARTE I


Capítulo 2
O barroco e o rococó

1. O contexto sociohistórico do barroco


O abalo sofrido pela Reforma fez a Igreja Católica se reunir, durante
anos, em Trento, Itália, onde a cúpula eclesiástica reafi rma sua doutrina
como a expressão mais pura e legítima da herança cristã. Apesar da mo-
tivação religiosa inicial, gerando uma cisão no interior da cristandade, as
ressonâncias da Reforma ultrapassaram o campo da fé. Com a noção de
estados nacionais já em curso desde o medievo tardio, a dissolução do po-
der de Roma, inclusive em assuntos terrenos, deu ensejo para a realeza se
libertar de seu jugo, com a criação de Igrejas nacionais, fugindo, assim, do
conceito de uma Igreja universal (católica). Importa notar o episódio de Hen-
rique VIII que, não obtendo a licença papal para se divorciar de Catarina de
Aragão, rompe com Roma para fundar a Igreja Anglicana, mostrando, sem
nenhum pudor, o desejo de uma Igreja nacional.
Ao retomar os rumos da pureza doutrinal, a Igreja tridentina conta
ainda com o valioso apoio da recém fundada Companhia de Jesus, uma
das últimas ordens criadas no século XVI, em plena era moderna europeia.
Estruturada segundo o modelo castrense pelo ex-militar Inácio de Loiola,
onde a virtude maior era a prática da obediência ao papa, a nova ordem ga-
nha grande prestígio na Igreja. Liberados da vida claustral contemplativa,
os jesuítas defi nem sua missão evangelizadora em duas pontas de atuação:
de um lado, a educação dos fi lhos da nobreza e burguesia europeias para
sustar o avanço das Igrejas reformadas; de outro, a evangelização dos gen-
tios nos vários países, alvos da ação colonizadora europeia
Assim, encerradas as atividades conciliares, contando com a atuação
dos jesuítas, Roma recupera em grande parte o prestígio abalado, inclusive
ditando estética e construindo templos. Estavam criadas as condições fa-
voráveis para o barroco. Weisbach, em El Barroco, arte de la Contrareforma
afi rma que a Igreja Tridentina, além de retomar a religião tradicional, rea-
fi rmando seus dogmas, também estabelece diretrizes estéticas para a sua
produção artística, surgindo daí o barroco (v. SIQUEIRA,1993, p.9). Assim,
o estilo é visto como a estética da Contra-reforma.
Contudo, se, no início, o barroco tinha intenções de glorifi car a Igreja
romana, assim como ocorreu em outras épocas com outros estilos, existiu
igualmente um barroco civil com intenções laicas e de glorifi cação do poder
profano, sobretudo dos monarcas absolutistas. O papa, reis e príncipes des-
cobrem o poder do barroco para “dominar pela emoção”. Eugenio D’Ors, em
O Barroco, enxergando uma metafísica trans-histórica no estilo, capaz de
se materializar em determinados períodos, sem negar a afi nidade estético-
ideológica com a Contra-reforma, não nega a possibilidade do uso do novo
estilo pela Igreja reformada, como veremos mais adiante.
Mas o que seria efetivamente o barroco e em que época se inicia? A
origem do termo é incerta. Duas correntes atribuem procedências distintas

HISTÓRIA DA ARTE I 121


à sua etimologia: uma aponta para um tipo de silogismo intrincado da es-
colástica medieval contendo uma argumentação tortuosa ou falsa, subver-
tendo as regras da lógica; outra defende que a origem seria iberoespanhola,
vinda da palavra barrueco, que, na arte da joalheria, significa pérola de
figuração irregular e imperfeita, um tipo comum de pérola do Oceano Índi-
co, comercializada pelos portugueses e destinada à sua possessão em Goa.
Distintos nas procedências, os sentidos das respectivas versões con-
vergem na conotação pejorativa de estranheza, distorção e exagero, no limi-
te, na noção de decadência. Comparado ao período que lhe precede, foi-lhe
imputada a causa da dissolução das formas clássicas reconquistadas pela
Renascença. A historiadora de arte Sônia Siqueira resenha algumas con-
cepções sobre o barroco de autores do período neoclássico, sempre conotan-
do sentidos desqualificantes: “barroco se diz assim ao figurado como irre-
gular, bizarro, desigual” (Dictionnaire de Trevoux de 1743); “barroco, o que
não está segundo as regras de proporções mas de capricho” (Dictionnaire
portatif de peinture, sculpture et gravure, 1757); “barroco e il superlativo del
bizarro, l’excesso del ridicolo” (SIQUEIRA, op. cit.p. 2).
Quanto ao tempo de sua vigência os períodos são ainda mais incertos.
Existe a tendência de certa historiografia que costuma analisar e datar os
estilos da arte como se eles se sucedessem linearmente no tempo: o arco
românico, que é sucedido pela ogiva gótica, que, por sua vez, é superada
pelo construtivismo geométrico da
Renascença, começando na Itália e
depois se espraiando pelo resto da
Europa. E o estilo que o sucede é
usualmente chamado de barroco (v.
GOMBRICH, 1989 p.301). Temos,
aqui, um problema, se considerar-
mos que tal periodização justaporia
no mesmo período dois estilos, visto
que o maneirismo estaria inserido
no barroco.
Outro problema: a fase do úl-
timo Michelangelo, onde ele apre-
sentaria traços maneiristas, é tam-
bém apontada como precursora do
barroco, haja vista a profusão exa-
cerbada de formas e cores em seu
afresco O Juízo Final (1534-1541),
pintado atrás do altar-mor da Ca-
pela Sistina. O historiador Heinrich
Wölfflin (2005) chega a fazer refe-
rência ao fato de Michelangelo ser Juízo Final de Michelangelo
conhecido como “pai do barroco”.
Desse emaranhado “barroco” de noções e períodos, algo é decantado,
sobretudo após historiadores da arte como Jacob Burckhardt, que, mesmo
sendo crítico do estilo, não o vê como algo menor; Burckhardt, pelo con-
trário, o valorizou na medida que o elegeu como foco de seu estudo, tendo
sido seguido pelo seu discípulo Heinrich Wölfflin, que, em sua famosa obra
Renascença e Barroco, adota um enfoque valorativo, cuja análise é tomada
por uma exaustiva abordagem, buscando suas ricas transformações estilís-
ticas, sempre cotejadas com o classicismo renascentista.

122 HISTÓRIA DA ARTE I


Segue um quadro sintético onde Wölfflin (2005) apresenta um interes-
sante e sugestivo cotejo entre os dois estilos, levando em conta a conquista
científica do estudo da perspectiva dos renascentistas:
1) O classicismo é linear por privilegiar a linha que delimita, com
nitidez, os objetos, suas formas e volumes; o barroco é pictórico,
pois nele os limites lineares não são precisos e os objetos não estão
mais delimitados entre si, mas se imbricam.
2) O classicismo usa planos cuja construção se faz em sucessivos
planos precisos, contando com a ajuda de um desenho rigoroso; o
barroco usa a profundidade, sem fatiar os planos por etapa, pois
nosso olhar circula sem repouso e sem percepção de seus limites.
3) O classicismo tem formas fechadas cujas construções possuem
eixos estáveis, claros, verticais e horizontais; o barroco expressa
formas abertas, obedecendo o princípio da diagonalidade e, a um
só tempo, ultrapassando seus limites físicos.
4) O classicismo valoriza a multiplicidade, com a unidade do todo
sendo dada pela articulação harmoniosa das partes; o barroco va-
loriza a unidade com a abolição da autonomia das partes.
5) O classicismo expressa uma clareza absoluta pela claridade
homogênea presente em suas composições, cujas partes, via de re-
gra, são iluminadas pela mesma intensidade; o barroco expressa
uma luminosidade relativa cujo traço mais característico é o jogo
de luz do chiaroescuro, emprestando às suas formas uma intensa
dramaticidade.
Enfim, surgem abordagens crítico-analíticas que ultrapassam as
apreciações desqualificadoras, buscando, inclusive, explicações nas alte-
rações provocadas pelo desenvolvimento da ciência moderna, o que faz o
homem europeu adotar uma nova Weltanshauung (visão de mundo).

No Renascimento o artista voltara-se para a análise e interpretação da


Natureza, para a valorização do Homem, seu corpo e sentidos. Mas a
partir do momento em que os homens da ciência [Galileu], se propuse-
ram a decodificar e compreender a linguagem da natureza, estava supe-
rada para as linguagens artísticas, a doutrina que dominara os séculos
XV e XVI. Era natural que surgisse na arte uma nova forma de represen-
tação. (SILVA, 2005, p.14)

Expurgados os aspectos desqualificantes, desvela-se uma estética que


se expressa nos excessos, no jogo de pares antinômicos, na desmesura dio-
nisíaca ou na harmonia apolínea, fazendo coexistirem os dualismos, sem
hierarquias ou exclusão do outro de si: vício/virtude; sagrado/profano; ra-
zão/sensibilidade, masculino/feminino, lunar/solar, etc...

1.1. A pintura
Entre os pintores italianos, destacam-se Tintoretto (1518-1594) e Ca-
ravaggio (1573-1610). Tintoretto produziu muito, logrando expressar uma
temática variada como motivos religiosos, mitológicos, além de retratos. Por
sua energia na arte de pintar, era conhecido como I1 Furioso e sua utiliza-
ção dramática dos efeitos da luz fez dele um dos maiores representantes do
barroco italiano. O que justamente impressiona em seu vigoroso estilo é o

HISTÓRIA DA ARTE I 123


uso intensivo da luz/cor como realiza na pintura Cristo em casa de Marta e
Maria, onde os corpos das figuras são mais expressivos do que seus rostos,
graças àquele jogo de cor/luz. Para ele, o primeiro contato visual com um
quadro deveria ser para a contemplação do seu conjunto, para, depois, se
deter nos detalhes.
Caravaggio não se sentia atraí-
do pela beleza clássica da Renascença.
Ele, ao contrário, se inspirava nas pes-
soas comuns das ruas de Roma, como
músicos das feiras, vendedores ou ci-
ganos, para retratar o aspecto munda-
no de eventos bíblicos. Um outro traço
marcante de sua pintura foi a dimensão
e o impacto que deu aos seus quadros,
ao usar um fundo sempre raso e obs-
curo. O artista não usava a luz de for-
ma tradicional, isto é, a luminosidade
refletida pelo sol, mas a compunha a
partir de seu próprio arbítrio para real-
çar alguma cena e, assim, atrair o olhar
contemplante. Com esse efeito plástico,
fazia os corpos ganharem volume.
Entre os espanhóis, nos chamam
a atenção El Greco (1541-1614) e Ve-
lasquez (1599-1660). O nome El Greco
sintetiza três origens étnico-culturais.
O El é espanhol, o Greco é italiano, que
significa o Grego, indicando sua origem Cristo em casa de Marta e Maria (1578)
greco-cretense. Talvez tal síntese expli-
que a dificuldade de reduzir a maniera desse artista a um só estilo. Ele é
tido como um artista tão singular que não é considerado como pertencen-
te a nenhuma das escolas convencionais. Mesmo vivendo em plena época
do chamado barroco espanhol, seus conhecidos traços verticalizados de
figuras tortuosamente alongadas, prenunciando segundo alguns o expres-
sionismo, parecem nos remeter, de preferência, a uma estética que busca
recuperar a espiritualidade dos ícones bizantinos.
Velasquez pintava figuras da aristocracia espanhola, fruto das enco-
mendas do mecenato que o protegia, como o Conde-duque de Olivares, mas
deixava, igualmente, sua inventiva fruir entre tipos populares da Espanha,
como A Velha Lavadeira e O Aguadeiro de Sevilha. Como Caravaggio, sabia
usar, com maestria, o jogo de sombra e luz, mas, de modo distinto, procura-
va estabelecer um clima mais intimista nas cenas pintadas.
Do barroco flamengo, destacam-se dois nomes: Rubens (1577-1640)
e Rembrant (1606-1669). Uma das características da pintura dos Países
Baixos é o uso intenso de cores quentes como um dos recursos mais im-
portante e os quadros de Rubens são a prova cabal dessa escola. O artista
sabe, como ninguém, contrastar as cores quentes – o vermelho, o verde e
o amarelo – sobretudo das vestes das personagens, contrapondo-as com a
luminosidade da tez pálida de suas peles. Além disso, Rubens se notabili-
zou pela habilidade de representar corpos contorcidos cujas vestes tinham
drapeados e dobras que davam a ideia de intenso movimento.
Ao contrário de outros barroquistas que enfatizam o contraste de luz
e sombra, pelo jogo chiaroescuro, Rembrant se destaca pelo uso nuança-

124 HISTÓRIA DA ARTE I


do dos extremos da luminosidade. Seu quadro mais famoso é a Lição de
anatomia do doutor Tulp. Nele, o artista foca toda a luz na fi gura central
do cadáver objeto de dissecação. O fundo encontra-se na penumbra e as
fi guras no entorno da fi gura central recebem níveis diferenciados de lumi-
nosidade cuja intenção maior é mostra concentração e interesse pela aula
de anatomia.

1.2. A escultura e a arquitetura


O escultórico barroco não prima pelas nuances, mas, ao contrário do
equilíbrio entre o sensível e o intelectivo na Renascença, prima pela exal-
tação dos sentidos. As formas são estetizadas em expressivos movimentos.
O linear renascentista cede lugar às formas côncavas e convexas, às linhas
curvas de suas fi guras, aos drapejamentos de suas vestes. Predomina o
gosto pelo dourado. Rostos, corpos e gestos desvelam fortes emoções, sen-
do, no limite, violentas e atingindo, portanto, uma dramaticidade até então
desconhecida.
O escultor (também arquiteto, urbanista e pintor) mais representativo
do barroco italiano é Bernini (1598-1680) e sua obra mais expressiva é o
baldaquino* (1624-1633) encomendado pelo papa Urbano VIII para a Basíli-
ca de S. Pedro no Vaticano. Nessa obra, toda em bronze dourado, o artista
esculpiu as quatro colunas do baldaquino de 29 metros de altura, majesto-
samente retorcidas e decoradas com motivos fl orais.
No entanto, a arte que melhor procurou traduzir a glória da fé e o
esplendor da Igreja Romana triunfante – em suma, a estética da ostentatio
barroca (ostentação barroca) –, foi a arquitetura, cujo clímax irrompe na
Praça de São Pedro (1657-1666) com sua majestosa dupla colunata coberta,
projeto do arquiteto Bernini, sobre a qual se assenta uma cornija que serve
de base para 162 estátuas, medindo cada 2,70 m de altura.
Merece ainda destaque, pelo seu teor simbólico, a Igreja de Jesus ou Baldaquino: elemento
Il Gesù, considerada “modelo para toda arquitetura eclesiástica barroca” escultórico-arquitetônico
(WÖLFFLIN, 1989, p.32) e destinada à Companhia de Jesus, esteio doutri- no formato de um dossel
que serve de cobertura
nário e evangelizador da igreja tridentina para combater a Reforma. A de- para resguardar um an-
cisão de sua construção se deu em 1550, para substituir a pequena igreja dor, leito, trono ou então
contígua ao edifício da ordem. Em 1568, o arquiteto Jacopo Vignola recebeu para resguardar um altar,
como o imenso baldaqui-
o encargo de iniciar o trabalho. Sua ideia inovadora consistiu em articular no da Basílica de S. Pedro.
a nave da basílica medieval com o desenho de um edifício típico da alta
Renascença, criando um domo sobre o cruzamento e dando à edifi cação
uma confi guração cruciforme, o que a tornou modelo de futuras igrejas
barrocas. Na fachada de 1575 de Giacomo della Porta convivem dois estilos:
a Renascença e o barroco.
Conforme se viu, a Igreja reformada igualmente utilizou-se do estilo,
o que pode ser observado nas obras de reconstrução de Londres, devastada
pelo incêndio de 1666 , a cargo do arquiteto Christopher Wren (1732-1823).
Um exemplo é a Catedral de São Paulo. Como as autoridades anglicanas não
aceitaram uma cúpula barroca em estilo italiano, semelhante à Basílica de
São Pedro, Wren propôs um campanário que foi aceito. Posteriormente, o
arquiteto conseguiu erguer a cúpula que desejava sobre o ponto de interse-
ção da catedral no formato de cruz grega. É uma cúpula cujo tamanho só é
ultrapassado pela inspiradora Basílica de São Pedro.
Sabemos, porém, que nem só da glória sagrada viveu o barroco, pois
os monarcas absolutistas, como Luís XIV, o rei sol, cujo poder julgava ser de

HISTÓRIA DA ARTE I 125


origem divina, usaram também palácios suntuosos barrocos para ostentar
luxo e riqueza. Na França, mais do que em outro país, devido à dinastia dos
Bourbons, a arte barroca esteve totalmente a serviço da realeza. Diversas
edificações testemunham tal estética, em sua imensa maioria de autoria
de Jules Hardouin-Mansart (1646-1708), artista tido como o grande mestre
do barroco francês, cujo trabalho se destinou a expressar a grandeza de
Luís XIV, a quem serviu como arquiteto-chefe. Ele é autor de uma série de
edificações: aumentou o castelo real de Saint-Germain-en-Laye, projetou a
Orangerie, o grande Trianon, a Ponte Royal, a capela real dedicada a São
Luís, chamada Igreja do Domo, anexa aos Inválidos, a praça Vendôme den-
tre tantas.
Mas o apogeu de sua arte é o Palácio de Versalhes, sede da monarquia
absoluta a partir de 1682. Se a Praça São Pedro representa o paroxismo da
ostentatio barroca da Igreja Romana, Versalhes é o correlato profano para o
poder absoluto francês. Após a morte de Louis Le Vau (1612-1670), arqui-
teto que, em 1669, havia iniciado a renovação do antigo palacete que servia
de pavilhão de caça para Luís XIII, o sucessor Luís XIV encomenda a Man-
sart um grandioso projeto digno de seu “poder de origem divina”. Assim, o
arquiteto, a partir de 1678, transforma o palácio na edificação esplendorosa
que o fez famoso, desenhando todas as extensões e reconstruções indicadas
pelo rei, como a construção das alas sul e norte, a capela real e o célebre
salão dos espelhos, decorado por Charles Le Brun, seu colaborador.
O projeto arquitetônico-urbanístico é um perfeito exemplo de concep-
ção integrada (cada artista cria em função do todo) entre cidade, palácio e
jardins, com a participação de profissionais talentosos (Mansart, Le Vau
e o paisagista André Le Nôtre, responsável pelo jardim de Versalhes). Eles
criam um protótipo da arte aristocrática barroca de rigorosa simetria e
suntuosidade extraordinária. O palácio parece querer dominar a natureza
com a simetria dos seus jardins circundantes.
A partir de um exacerbado rigor formal e de abundância de elemen-
tos d’água, os jardins apresentam um desenho geométrico ordenado que
busca uma simetria perfeita, ao configurar grandes eixos e avenidas que
se entrecruzam em ângulos retos e formar amplas aleias radiais emoldura-
das por centenas de fontes e extensões que aparentam se perder no infini-
to. Expressão sígnica do centralismo absoluto, Versalhes, com sua estética
grandiosa e teatral própria do barroco, tornou-se o cenário ideal para a os-
tentação da vida cortesã, modelo imitado à exaustão pelas cortes européias.
Versalhes nos lança à reflexão sobre uma arte pouco abordada na sua
história: a paisagem inventada, isto é, a arte da jardinagem. Como toda
linguagem artística, a jardinagem encerra igualmente uma dimensão de es-
truturação de sentidos e de visão do mundo, a partir de suas configurações
estéticas. Se levarmos em conta o imaginário mítico do Gênesis narrando o
ideal de um jardim edênico ou a narrativa lendária dos jardins suspensos
da Babilônia, a natureza sempre constituiu um tema e, igualmente, um ob-
jeto de intervenção artística. A natureza se faz presente na linguagem artís-
tica enquanto pintura de paisagens e de jardins ou, então, pela intervenção
humana direta que procura transformar o belo natural no belo humano,
na estrita concepção da arte, segundo Hegel. Nesse domínio de expressão
artística, o jardim não seria uma simples representação da natureza, mas a
própria natureza sofrendo diretamente uma intervenção estética humana.
Para Fagiolo, as formas estéticas de representação da natureza na
história “sempre [tiveram], conforme os séculos, um valor de fundo (na Ida-
de Média) e uma afirmação absoluta (no século XVIII, por exemplo)” (1992,

126 HISTÓRIA DA ARTE I


p. 115). Testemunhos iconográficos medievais mostram, por exemplo, que
plantas frutíferas e ervas medicinais estiveram presentes na estrutura mo-
nástica. Fagiolo pontua a importância que a natureza passou a ter para a
arte a partir do medievo, quando ela aparece esquematizada como signo do
“paraíso celestial” (p.115). Ao mesmo tempo, ela atrai a atenção dos artistas
da Renascença quando o seu enfoque sofre importante inflexão: passa a ser
percebida por meio do espaço pictórico, sendo um elemento, a um só tempo,
organizador e organizado pela perspectiva. A paisagem parece natural pelo
artifício permanente desses expedientes de organização.
Na Renascença e períodos subsequentes, o jardim italiano passa a
exercer grandes influxos no paisagismo europeu, caracterizado no início
por formas racionais, com árvores de pequeno porte. Num segundo mo-
mento, quando passaram a predominar as massas vegetais de maior porte
e volumes mais expressivos, o arquiteto Battista Alberti, em De Re Aaedifi-
catoria, estabelece bases teóricas para os jardins italianos. Porém, a jardi-
nagem vinculada principalmente aos espaços aristocráticos dos palácios,
só se destacou a partir do século XVII com os jardins barrocos de André
Le Nôtre.
Os jardins franceses planejados por arquitetos urbanistas, conforme
o caso paradigmático de Versalhes, passaram a ser identificados pela sua
forma de expressar o domínio humano sobre a natureza, prevalecendo a ra-
cionalização do espaço paisagístico pela geometria e uniformidade simétri-
ca, com a perspectiva acentuando a ideia de monumentalidade, referência
para o paisagismo de várias partes do mundo.
No século XVIII, com as concepções de pensadores e artistas em prol
da natureza, o destaque foi o jardim inglês - geralmente criado por pintores
-, que, ao se contrapor aos rígidos e simétricos padrões franceses, valorizou
a paisagem nativa fruto de uma vegetação sem podas geométricas, ao real-
çar os elementos sinuosos, conservando acidentes naturais de caminhos e
relevos, combinados com extensões relvadas e compostos ainda por floridos
canteiros de pequeno porte. Essa nova linguagem trouxe outro modo de
pensar e intervir na natureza para o paisagismo posterior.

1.3. A música, a ópera e o teatro barroco


A música renascentista da virada do séc. XVII, desenvolvida basica-
mente sob a égide do contraponto coral polifônico, provoca uma mudança
decisiva: a inserção do solo vocal e da melodia acompanhada conhecida
como homofonia. Para isso, dois importantes eventos foram decisivos para
definir os novos rumos musicais: a invenção da harmonia e do melodrama,
mais conhecido como ópera, descendente direto da cantata barroca. A har-
monia e o melodrama nascem ao mesmo tempo, uma em função do outro,
pois o melodrama postula um acompanhamento musical que favorece a
sucessão temporal dos diálogos e da ação dramática da ópera, o que era
impossível com a algaravia dos contrapontos de influência gótica com a so-
breposição paralela de dezenas de vozes simultâneas.
A complexidade intrincada do contraponto apresentava grandes difi-
culdades para a compreensão do texto da ópera (no início era recitativo e,
depois, transformou-se em ária). E o que se pretendia era justamente dar
realce ao canto individualizado, de maior evidência dramática ou repre-
sentativa. Tal revolução musical demandou um canto expressivo e lírico. A
melodia torna-se autônoma do coro polifônico. Vimos que a percepção ver-
tical do encontro de sons das vozes da polifonia foi, aos poucos, ensejando

HISTÓRIA DA ARTE I 127


a descoberta da harmonia quando entrou, em cena, um acompanhamento
instrumental permanente, em registros graves: o chamado baixo-contínuo.
As primeiras incursões na construção da homofonia foram realizadas com
obras ainda polifônicas, a exemplo dos madrigais renascentistas, transpon-
do-se as vozes acompanhantes para instrumentos harmônicos.
Descendem diretamente do madrigal, o oratório, a cantata e a ópera
barroca, cujo uso refi nado do texto aguça as possibilidades dramáticas da
música. Na Florença setecencista, um grande passo para a confi guração das
cantatas foi a exploração da monodia da voz solista que se autonomiza em
relação aos madrigais, passando a ser acompanhada pelo baixo-contínuo,
instrumento musical de registro mais grave, conforme vimos no parágrafo
anterior. A monodia acompanhada entrelaça-se com o madrigal, que apa-
rece pela primeira vez em Monteverdi (1606), importante compositor para
o afl orar das cantatas, cujo termo é registrado pela primeira vez em 1589.
Já na primeira metade do século XVII, a cantata estava plenamente
consolidada. O gênero prenuncia a ópera, por se constituir numa versão
mais simples ao realizar um autêntico drama musical condensado: peque-
nas cenas dramáticas articuladas em ambientes modestos, onde se pode
apreciar o desenrolar de um espetáculo pleno de teatralidade.
Alguns dos músicos barrocos são Cláudio Monteverdi, Alessandro
Castrato, plural castrati: Scarlatti e Antonio Vivaldi (italianos), Heinrich Schutz, Johann S. Bach e
inusitada voz masculina
obtida pela extração dos Georg F. Handel (alemães), Marc A. Charpentier (francês) e Jean-Baptiste
testículos do menino an- Lully (francoitaliano) que, ao cair nas boas graças de Luís XIV, introduz
tes da puberdade para na ópera francesa, formas dançantes como o ballet e o minueto. Handel se
manter sua voz em apa-
rente registro feminino notabiliza como autor de óperas destinadas à performance dos castrati *.
(soprano, contralto ou, No absolutismo, as óperas eram encenadas nos palácios e sua monta-
então, contra-tenor), em
voga na Renascença para
gem obedecia, rigorosamente, a uma perspectiva nobre, ou seja, os cenários
substituir a voz feminina eram montados a partir de um eixo que unia, em linha reta, o camarote
nos corais sacros, rapi- central do príncipe com o fundo do palco. Depois foram construídos outros
damente absorvida pela
ópera desde Monteverdi,
teatros, democratizando-se sua disposição cênica para uma visão multifo-
a fi m de explorar uma cal (v. MAMMÌ, 1999, p.2).
característica da estética Se o melodrama gozou de prestígio junto ao público, recebe a censura
barroca, a ambivalência
de sentidos antagônicos de certa esfera da cultura ofi cial. O alvo de fato não é o melodrama, mas a
–masculino/ feminino – música. Para os racionalistas, a música nada acrescenta à tragédia moder-
convivendo num mesmo na; pelo contrário, transforma-a “num espetáculo confuso e inverossímil,
intérprete.
em cuja cena, movem-se personagens de modo ridículo e artifi cial, e mor-
rem cantando” (citado por FUBINI, 1971, p.14-15).
No debate setecentista sobre a ópera, assiste-se à grande querelle des
boufons ou a grande disputa de duas escolas: a francesa mais elaborada e
racional e a italiana mais melódica e expressiva. Na França, as facções em
luta se dividiam entre os progressistas amantes da ópera italiana, que, no
teatro construído após a reforma cênica, sentavam-se à esquerda do cama-
rote da rainha (coin de la reine), e os conservadores partidários da ópera
francesa, que se sentavam à direita do rei (coin du roi).
Subjaz à grande querelle, a velha questão referente à disputa entre
razão versus sensibilidade, retomada, agora, sob nova forma: o texto (libre-
to), voltado para o intelecto e a razão, versus a música, destituída de força
semântica, voltada de preferência, aos sentidos. Os enciclopedistas tomarão
partido na disputa, iniciando-se uma infl exão importante, sendo Rousse-
au, dissidente do racionalismo vigente, um importante marco de referência
desse processo, por ter sido, certamente, o maior teórico dos bufonistas,
como eram conhecidos os defensores da música italiana. Ele ama a ópera

128 HISTÓRIA DA ARTE I


da Itália, por sua naturalidade expressa numa grande simplicidade meló-
dica; aborrece-lhe a música francesa, por avaliá-la artificial; despreza a
polifonia contrapontística da música instrumental, por achá-la irracional e
antinatural.
Esse tipo de juízo já havia sido feito, na Alemanha, pelos pares de
Bach a respeito de sua obra, antecipando o juízo do enciclopedista francês
no que se refere ao contraponto, porém com uma grande diferença. O ra-
cionalismo alemão condenara o contraponto “pomposo”, pesado e artificial
do barroco tardio de Bach em nome da reta razão. Rousseau condena o
artificialismo do contraponto em nome da espontaneidade dos sentimentos.
A grande querelle até então restrita à França chega à Itália com mais
vigor graças aos teóricos da reforma do melodrama: primeiro, entre o valor
da poesia e da melodia; após, entre música vocal e instrumental. Preocu-
pados com o processo de autonomização da melodia em relação ao texto,
visível na ópera italiana, seus adversários atacam violentamente a música
instrumental e aqueles que colocam música e poesia em pé de igualdade, o
que, no fundo, favorecia a autonomia musical. Assim, buscavam preservar
as prerrogativas da poesia contra o que ajuízam ser uma prepotência inva-
siva da música.
Nesse debate, quatro teóricos da crítica musical ganham destaque: os
italianos Francesco Algarotti e Vincenzo Manfredini e os jesuítas espanhóis
Esteban de Arteaga e Antonio Eximeno. Arteaga avalia a excelência da
ópera pelo libreto. Reforça a idéia de superfluidade da melodia, espécie de
ornamento gratuito do texto. Combate o impulso autonomizante da música
instrumental, por corromper seu objetivo original de suporte da poesia. O
ensaísta italiano de ópera Francesco Algarotti, porta voz da reforma inspi-
rada no racionalismo, retorna ao velho princípio da supremacia da poesia,
definindo o papel auxiliar da melodia ao texto, só ganhando expressão, se
acompanhada pela palavra.
Eximeno e Manfredini são vozes dissidentes. Apesar da formação ma-
temática, ou justo por sua causa, o rousseauriano Eximeno defende a auto-
nomia da música, fundada no prazer auditivo. Em Da origem e das regras
musicais (1774), rejeita a associação feita, desde os gregos, entre música e
matemática, considerando aquela como uma verdadeira linguagem “autô-
noma”. Ao distinguir os dois mundos constitutivos da música (os sons e as
regras das relações físico-matemáticas), Exímeno nega autoridade a tais
regras para ditar o belo musical. Para se compor bem basta se entregar à
natureza e se deixar levar pelas sensações que se pretende criar através da
música. De que servem números e fórmulas que proíbem um salto interva-
lar, quando isto pode ser um som agradável? Para ele, as regras musicais se
fundam no prazer auditivo.
Partindo da idéia ilustrada de progresso, enquanto lei inexorável da
história e um dos critérios mais recorrentes de julgamento das artes, além
da elegância, racionalidade e prazer sensorial, Manfredini, não transige na
defesa da música, sobretudo a instrumental. E a música não podia contra-
riá-la. Assim, ela não cessaria de alcançar novos cumes em suas possibili-
dades expressivas. Graças a essa lei da história, polemiza com Arteaga, ao
proferir que a emancipação da música e da poesia seria um efeito ineliminá-
vel do progresso de ambas, legando-nos, assim, obras extraordinárias (para
aprofundar a grande querelle v. FUBINI, 1977 e MIRANDA, 2005 e 2007).
A Alemanha passa ao largo da grande querelle. Lá, a discussão situa-
va-se, como vimos acima, no valor do contraponto barroco. Nessa disputa,
a obra de Bach é o ponto de referência. O objeto de discussão é, sobretudo,

HISTÓRIA DA ARTE I 129


o estilo da música instrumental, isto é, da superioridade do contraponto
barroco sobre a melodia e vice-versa. Ao contrário do ocorreu em outras
plagas, é notório que, na Alemanha, a música instrumental encontrara um
terreno fértil ao ser aceita pelos teóricos como um fato indiscutível. Assim,
a polêmica fi cou quase que circunscrita ao âmbito da música sem cotejos
com a poesia, sendo os próprios músicos os protagonistas desse embate. Por
outro lado, o nascimento da crítica musical, fato de incontestável importân-
cia para a vida musical europeia do século XVIII, será responsável por uma
célebre polêmica entre Bach e J. A. Scheibe.
A visão do segundo, expressa na revista O Músico Crítico (1737), asses-
tando uma apreciação negativa às composições do mestre alemão, tornou-
se exemplar, pois fi xou os termos da disputa e aclarou bastante os motivos
que fi zeram incompreensível a arte de Bach para o precoce racionalismo es-
Transubstanciação: mis- clarecido alemão. Para esse, o contraponto de Bach tornou-se o mais claro
tério de fé da doutrina ca- exemplo daquele excesso do barroco tardio, gerador de artifícios contrários
tólica que afi rma a trans-
formação, pelo ritual da à razão e à natureza. Seu pensamento prefi gura as ideias do enciclopedis-
eucaristia, da substância mo francês ao antecipar temas como a música entendida como gracejo ga-
da água e do vinho em lante e mundano, e a arte vista como sinônimo de artifício.
verdadeiro corpo e sangue
de Cristo.

1.4. O Barroco no Brasil


Como vimos, o Concílio de Trento reafi rma os dogmas essenciais da
doutrina, como o mistério da transubstanciação *, e defi ne o calendário
romano, ao disciplinarizar as festas sacras e laicas (“particulares”), expli-
citando o investimento evangelizador em comemorações festivas das datas
principais da vida de Cristo, de Maria e dos santos e o papel destes como
mediadores na hierofania * cristã. Existia uma inumerável lista de festas sa-
cras e profanas, além das já defi nidas pelo calendário romano. Destacam-se
o Te Deum, a procissão de Corpus Christi e as Entradas, costume profano
festivo do medievo em ocasiões especiais de visitas solenes de reis, autorida-
des eclesiásticas ou de altos dignitários. Tratava-se de cerimônias públicas,
de crescente relevância a partir do século XVI nos rituais festivos das cortes
Hierofania: manifestação
europeias, com novidades a cada festa. “Com a centralização precoce de
do sagrado mediante o jovens Estados absolutistas, como Portugal, [as entradas] serviram à cris-
uso do mundo profano e, talização de ideias absolutistas, por meio da aclamação dos ofi ciantes mais
no catolicismo, a manifes-
próximos do poder” (DEL PRIORE, 1994, p. 14).
tação do sagrado median-
te pessoas santifi cadas. Assim, no período pós-tridentino, cresce o prestígio das procissões, o
A hierofania se diferencia “templo em marcha”, como a de Corpus Christi, cuja espetacularização re-
da epifania ou teofania,
onde o sagrado se revela presenta o “teatro da religião” da estética barroca da Contra-reforma (v. MI-
diretamente, a exemplo RANDA, 2001), resposta suntuosa e triunfante de uma fé que reafi rma três
de Deus, ao se manifestar princípios negados pela Reforma: o primado das obras como via da reden-
a Moisés, e Cristo, ao se
manifestar para os Reis ção mediante ricos donativos, o mistério da transubstanciação e o uso de
Magos (festa da epifania). imagens da hagiografi a como sistema simbólico de efi cácia evangelizadora.
Vão longe os tempos protocristãos quando Agostinho zelava pela pre-
servação do louvor sereno a Deus, evitando os desvios dos “prazeres do
ouvido” do gregoriano. Agora, temos o tempo do cristianismo barroco, com
toda a sua exuberância sonoro-visual. É dentro desse quadro e espírito que
devemos analisar o barroco brasileiro. Na esfera ofi cial, a estética barroca
colonial é fruto da aliança canhestra entre o projeto colonizador, represen-
tado pela aliança do Estado absolutista luso (portanto sintonizado com a
política dos tempos modernos) e a Igreja tridentina (portanto sintonizada
com a doutrina contra-reformista do período pré-moderno).

130 HISTÓRIA DA ARTE I


O barroquismo luso se dá como forma de compensação da perda do
trono para a coroa espanhola, (1580-1640), “maior pesadelo da história por-
tuguesa” (SEVCENKO, 1998, p. 59), e como recompensa pela sua restau-
ração obtida por uma guerra vitoriosa seguida pela coroação de D. João
IV. A perda da independência foi vista como um castigo e a coroação como
benção divina. A partir daí, a descoberta, ainda no final do mesmo século
XVII, de fontes aparentemente inesgotáveis de riqueza, em forma de ouro,
prata e pedraria preciosa, representava o signo maior de um povo bafejado
pela generosidade divina. A “opulência das riquezas” seria claro índice des-
sa generosidade para com os lusos, como povo eleito de Deus. “Mas chegara
a salvação, [...]. Era preciso agradecer confirmando a Fé e saudando o Rei.
Portugal foi tomado de uma euforia epidêmica. Festas, procissões e celebra-
ções irrompiam por toda parte. Esse foi o momento inaugural do Barroco”
(SEVCENKO, op. cit. p. 59).
Os negócios terrenos encontravam-se subordinados a uma instância
sobrenatural, pensamento típico da mentalidade setecentista levada ao pa-
roxismo nessa época metalista, com o perturbador achado das minas no
Brasil. Para os moradores da colônia, a festa barroca, usando de sua força
alegórica e persuasiva, devia estabelecer formas lúdicas de sociabilidade,
articulando seus participantes com o Estado Moderno ou com a Igreja, me-
diante os elementos sígnicos do poder temporal e espiritual.
Templos suntuosos ricamente ornados em ouro, magnificência festiva
e litúrgica –, tudo isso seria, para os colonizadores da sociedade mineira,
a exteriorização do esplendor do ritual católico, tão comum à época; seria
a contrapartida dos fiéis mediante uma “ostensiva manifestação do íntimo
e grato sentimento de uma população privilegiada” (ÁVILA, 1994. p. 51).
Duvignaud sugere que a miragem barroca no Brasil seria devedora de uma
equação estética curiosa entre “a vida das formas e a descoberta do ouro
do continente americano” (DUVIGNAUD, op.cit. p. 23). A sensação de rique-
zas inesgotáveis numa terra edênica, extorquidas mediante o sofrimento
secular da escravaria, teria ensejado a aplicação do espírito tridentino da
doutrina das obras efetivada pelas doações em ouro, prata e pedras valio-
sas para a glória do invisível, consolidando, assim, a imagem de uma Igreja
plasticamente vistosa e fulgurante.
Assim, plasma-se a estética da “exuberância das formas” da estatu-
ária e da iconografia sagrada como meio legítimo para a propagação da fé,
contrapondo-se às condenações da Igreja reformada. Daí, as igrejas de Ouro
Preto, S. José Del Rei, Mariana, etc. O fastígio do barroco mineiro ganha
extrema visibilidade em três grandes eventos da “efusão barroca”: o Triunfo
Eucarístico (1733), o Áureo Trono Episcopal (1748), e os fatos ocorridos por
ocasião da administração de d. Luís da Cunha Meneses, governador da ca-
pitania das Gerais(1783-88), retratados no poema satírico Cartas Chilenas
de Tomás Antônio Gonzaga.
Contudo, não só nas Gerais vivia o imaginário da pompa sacra da
ostentatio barroca. É bem conhecido o fausto dourado das igrejas barrocas
de Salvador. A mesma ostentatio barroca nos é relatada por Montes (1998,
p.377) numa festa ocorrida trinta anos após o Triunfo Eucarístico, no re-
côncavo baiano: as Faustíssimas Festas de Santo Amaro da Purificação,
pelos Augustíssimos Desponsórios da Sereníssima Senhora D. MARIA Prin-
ceza do Brasil Com o Sereníssimo Senhor D. PEDRO Infante de Portugal [sic].
A mineira é uma festa devota, a baiana, uma festa cívica, mas ambas parti-
lham do terreno comum da cultura barroca que integra as duas, a despeito
de aparentemente separadas no tempo e no espaço.

HISTÓRIA DA ARTE I 131


2. O rococó
O termo se origina de rocaille, concha em francês. Tido por uns como
uma derivação natural do barroco e por outros como expressão de sua for-
ma decadente, o rococó é um estilo inicialmente francês, espécie de varia-
ção "profana" do barroco, quando esse se libera da temática sagrada e se
volta para arquitetura palatina. Alguns o identifi cam como o estilo preferido
de Luís XV, que simplifi ca externamente as linhas barrocas para se dedicar
à suntuosidade dos interiores dos compartimentos palacianos. Tal imputa-
ção tinha sua razão de ser, visto que, após a morte de Luís XIV em 1715,
fi ndando um longo reinado, grande parte imerso na suntuosidade de Versa-
lhes, a corte retorna à Paris, exposta agora a constante contato com a nova
burguesia rica e bem sucedida, como comerciantes e fi nancistas à frente do
mundo dos negócios. Não pertencendo à aristocracia de berço, o burguês
fidalgo*, procurando prestígio e status junto ao mundo cortesão, não media
esforços para nele ingressar, fi nanciando e protegendo as artes. No fundo,
os artistas procuram satisfazer o gosto dessa nova classe. Assim, assevera
Hauser: “o rococó não é uma arte régia, como era o barroco, mas a arte de
uma aristocracia e de uma alta burguesia” (1995, p. 526).
O rococó faz a mediação estética de
duas épocas: o barroco tardio do do ilumi-
nismo precoce (1ª metade do século XVIII)
e o neoclassicismo do ilumismo maduro
Burguês fidalgo: termo (fi ns do século XVIII). Seu estilo era usado
consagrado pelo autor
Moliére (Jean-Baptiste Po- em diversas formas decorativas de inte-
quelin, 1622-1673), gra- riores aristocráticos das edifi caçôes pari-
ças à personagem-título sienses, cujos elementos assim se carac-
de sua comédia satírica
Le bourgeois gentillhom-
terizam: linguagem alegorizada, linhas
me (do barroco francês) curvas, delicadas e fl uídas, texturas sua-
estreada em Paris em ves, tons dourados e pastéis como o rosa
1670, contendo dois eixos
temáticos: os desejos da
e o verde-claro, ludicidade mundana em
burguesia em ingressar retratos e festas galantes, elegância corte-
no mundo cortesão e a to- sã, no limite, fútil.
tal falta de conhecimento
e cultura desses postu- Eis dois exemplos de artistas da
lantes à aristocracia. O pintura rococó francesa: Antoine Watte-
protagonista, um rico pa- au (1684-1721) – mesmo tendo nascido
deiro, para conseguir seu
intento, contrata vários
O balanço de Fragonard em Flandres, é tido como mestre do estilo
professores (de música, francês, cuja marca é a temática de cenas
dança, artes marciais e amorosas substituindo as religiosas e históricas. Jean-Honoré Fragonard
fi losofi a), que se engalfi -
nham entre si para tirar (1732-1806) – seu quadro O balanço (1768) é paradigmático pelo sentido
melhor partido da situa- adensado em sua plasticidade que expressa cenas graciosas revelando valo-
ção. res de uma sociedade mais voltada para o prazer do que para os problemas
da vida real.

2.1. A arquitetura e a escultura rococó


Os edifícios rococós traem a mesma marca da pintura mais voltada
para o decorativo dos interiores, com as paredes repletas de quadros com
aquele tônus das pinturas já descritas, com cores claras e suaves. Já as fa-
chadas dos prédios podem conter, sincreticamente, comedidas formas bar-
rocas ou, então, o estilo clássico renascentista. Francês nas origens, o roco-
có irá também se difundir para outros países europeus, realizando uma
trajetória inversa à do barroco, pois, se este teve, nas origens, motivações

132 HISTÓRIA DA ARTE I


religiosas, nascendo em ambientes sacros e depois se laicizou para revestir
a estética aristocrática, o rococó, de nítida origem cortesâ, acabará por re-
vestir templos religiosos, a exemplo da Igreja dos Catorze Santos na Baviera.
Por ser um estilo mais voltado para o deco-
rativo dos interiores, a escultura rococó ganha re-
levância, cujo traço abandona as linhas do barro-
co e adquire dimensões menores. Eventualmente
usa o mármore, preferindo o gesso, a madeira e o
estuque (espécie de argamassa obtida pela mis-
tura de pó de mármore, cal fina, gesso e areia)
que aceita cores suaves para os motivos decora-
tivos. Na França, o melhor escultor do rococó é
Jean-Baptiste Pigalle (1714–1785), e a obra mais
representativa que exemplifica a sua simplicida-
de é A pequena menina com o pássaro e a maçã
(1784), estatueta em mármore branco (43cm x
33cm) onde o artista, com maestria, tira partido
da textura e cor da pedra para expressar a can-
Fillete à l’oiseau et à la
dura quase translúcida da criança retratada. pomme

HISTÓRIA DA ARTE I 133


Capítulo 3
O neoclassicismo iluminista

1. O contexto sociohistórico do neoclassicismo


O Setecentos mostrou um dinamismo inédito para um mesmo século,
ao abrigar valores estéticos bastante díspares, às vezes, inteiramente an-
tagônicos e de difícil delimitação para o observador pouco afeito ao mundo
das artes. Em menos de cem anos, tivemos o barroco tardio, também cha-
mado por alguns historiadores de barroco-classicista, o rococó, o neoclas-
sicismo, também tido como academicismo, o classicismo musical, além das
manifestações vigorosas do movimento alemão Sturm und Drang/ “tempes-
tade e ímpeto", espécie de movimento romântico avant la lettre.
Em que contexto tal dinamismo ocorre? No transcurso do século
XVIII, ocorrem diversas ações indutoras de desenvolvimento científi co, de
descobertas e inventos, da fi losofi a iluminista, enfi m, de mudanças radicais
em vários campos, constituindo uma época de grandes realizações, com
duas classes (aristocratas e burgueses) no seu domínio. Ademais, dois mo-
vimentos de grande magnitude articulados entre si, um de domínio socioe-
conômico e outro cultural, promovem uma forte infl exão na vida europeia,
com nítidas ressonâncias nas artes. Os movimentos propulsores de mu-
danças radicais na vida europeia poderiam ser sintetizados em duas gran-
des Revoluções: a Industrial, expressando o uso de conquistas científi cas
no sistema de produção, alterando o sistema da grande manufatura para
o fabril industrial, e a Francesa, espécie de ajuste de contas da burguesia
com o poder, visto que já o detinha em outras esferas da economia européia.
Esse período fechou o ciclo de precário equilíbrio entre a aristocracia e
a burguesia, o que se dava mediante uma espécie de compromisso fi rmado
entre as partes para mesclar seus respectivos valores de vida. A sensibili-
dade desse compromisso soube inscrever tais valores numa arte complexa,
ambivalente e contraditória que vai, como se viu, das últimas manifesta-
ções barroco-rococós ao estilo racional neoclássico e aos primeiros sinais
do romantismo ainda por vir. O neoclassicismo encontrava-se, num certo
momento, apoiado tanto pela aristocracia como pela burguesia. Decorre daí
a coexistência de artistas, por vezes antagônicos, pertencentes a diversas
escolas e estéticas, cujas criações expressavam ideologias incompatíveis,
desde os que defendiam a manutenção da velha ordem do ancien régime aos
que proclamavam o ideal libertário e igualitário da Revolução Francesa.
Porém, o mecenato, ao mudar de mãos, passando para a gestão da
burguesia ascendente, cuja aparente sobriedade moral demandava uma
arte séria condizente com o novo modo de vida, opõe-se ao caráter capri-
choso e frívolo da aristocracia barroco-rococó em busca de um ideal ético-
estético respaldado no pensamento fi losófi co que se forja na época. Estamos
em plena época em que reinava um espírito otimista sustentado na racio-
nalidade e no cientifi cismo, cuja expressão fi losófi ca hegemônica cabia aos
pensadores iluministas, sobretudo aos de linhagem kantiana.

134 HISTÓRIA DA ARTE I


O alemão Emanuel Kant (1724-1804), arguta personalidade “antena-
da” com os novos tempos advindos das transformações nos vários campos
do conhecimento e agir humanos, como a ciência, a cultura e os ideais da
Enciclopédia francesa, demonstra uma fé inabalável no progresso humano
e se mostra otimista sobre a capacidade da humanidade abandonar sua
menoridade tutelada pelo medo, tradição ou superstição, para adotar a ra-
zão como critério único para guiar seu saber, agir e sentir, reflexão contida
na sua obra, sobretudo na famosa tríplice crítica (v. seção Saiba mais, na
Introdução deste livro). Sua máxima de vida era sapere aude (ouse saber).
Para ele, a humanidade, ao atingir sua maioridade – a era da razão –, sa-
beria equilibrar sua formação social coletiva com seu agir moral a partir de
critérios racionais sem prejuízos para sua liberdade individual. A razão, e
somente ela, deveria ser a instância capaz de guiar todas as condutas hu-
manas, seu saber, agir e sentir, enfim, todas as suas ações e criações.
É importante atentarmos para um fenômeno que surgira no pensa-
mento que antecede o iluminismo kantiano: a crítica. Tal procedimento,
impensável no momento hegemônico do cartesianismo, toma conta da cena
intelectual europeia desde o início do século XVIII. Impensável, se conside-
rarmos as diferenças entre a modernidade precoce (razão clássica cartesia-
na), incapaz do uso da razão para refletir sobre seus próprios limites, e a
modernidade madura (razão iluminista kantiana), possivelmente capaz de
estabelecer os limites e as condições de possibilidades da própria razão em
suas diferentes esferas, conforme tematiza a tríplice crítica de Kant.
No século XVII, preparando a crítica setecentista, predominam obras
de caráter poético em seu senso aristotélico, isto é, como sistematizações
canônicas que acabavam por se transformar em normas prescritivas dos
fazeres artísticos. Naquele contexto, o belo, por exemplo, seria uma moda-
lidade do verdadeiro, conforme afirma Nicole Boileau em sua Art Poétique
(1674), ao estabelecer a razão como a suprema instância para julgar o mé-
rito e a virtude de uma obra de arte: rien n’est beau que le vrais, ou “nada
pode ser belo, senão o verdadeiro” (apud BRAS, 1990, p.16).
A partir do século XVIII, o termo crítica toma vulto como flagran-
te índice do processo de autonomização que atinge tanto a arte como o
pensamento que dela se ocupa, a estética, se espraiando em várias obras,
revelando, assim, uma nova postura intelectual dos pensadores da época,
sobretudo os iluministas. Eis alguns exemplos: Réflexions sur la critique,
de Antoine Houdar de la Motte (1672-1731); Dissertation critique sur L'Iliade
d'Homère, de Jean Terrasson (1670-1750); Réflexions critiques sur la poésie
et sur la peinture, de Jean-Baptiste Dubos, o Abade Du Bos (1670-1742).
Nesse século, o crítico de arte começa a se profissionalizar.
É flagrante a aversão iluminista aos velhos estilos, ao ditar uma esté-
tica apoiada na simplicidade e no despojamento, princípios norteadores da
nova estética elaborada principalmente pelo teórico Johann Joachim Win-
ckelmann. Assim, difunde-se o ideal de comedimento, equilíbrio e serenida-
de, expresso no sentimento de domínio tanto da natureza externa (objetiva)
quanto interna (pessoal). As paixões não deviam ser expurgadas, porém
comedidas e vividas com serenidade. Aos poucos, a estética plasmada no
seio da nova classe burguesa assume o comando da produção intelectual e
dos meios de difusão das atividades artísticas.
Além disso, viviam-se momentos de euforia com as descobertas ar-
queológicas nas cidades de Herculano (1738) e Pompéia (1748) na Itália,
soterradas sob as cinzas do Vesúvio, bem como em Paestum, com extraordi-
nários sítios arqueológicos no sul da península, e em Atenas, o que fez cres-

HISTÓRIA DA ARTE I 135


cer o deslumbramento pelas artes clássicas e a sua recuperação, o que é
sentido pelo interesse de pessoas que entram em contato, in loco, com esses
testemunhos diretos da cultura antiga. As viagens à Grécia, motivadas por
vários fatores, eram constantes. As imagens das descobertas arqueológicas
passam a ser difundidas e conhecidas por intelectuais e artistas que, vendo
nas artes clássicas a estética adequada para o seu tempo, fornecem o apoio
teórico e prático para a volta ao classicismo, porém com uma importante al-
teração: aquela concepção da arte clássica que consiste num ideal de beleza
eterno e imutável não mais se sustenta. Agora, tais princípios deveriam ser
adaptados à realidade moderna da nova sociedade urbano-industrial.
Se não havia uniformidade quanto ao caráter formal da estética des-
se classicismo renovado, daí o termo neoclassicismo, que logo conta com
o apoio das academias de arte, daí também o termo academicismo, numa
coisa havia unidade: a aversão às velhas formas representadas pelo bar-
roco e pelo rococó. Para isso, contribuiu fortemente o pensamento estético
do alemão Winckelmann que, juntamente com seu discípulo Anton Mengs,
fornece o grande esteio teórico para o retorno às concepções clássicas. Em
suas obras, Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na
escultura (1755) e História da arte antiga (1764), Winckelmann estabelece
os princípios da "nobre simplicidade" e da "serena grandeza", sobre os quais
estudara em Roma. Seu discípulo Mengs, tido como garoto-prodígio da pin-
tura, fixa-se, jovem, também em Roma, onde trabalha e frequenta o círculo
intelectual de seu mestre. Mais tarde, viajando para a Espanha para deco-
rar palácios de Madri e de Aranjuez, Mengs escreve as Considerações sobre
a beleza e o Gosto na pintura, obras logo traduzidas e difundidas, cujas
ideias ganham respaldo nos círculos acadêmicos e artísticos da Europa.
Importa também fazer aqui o registro do livro AEsthetica (1750) do
berlinense Alexander Baumgarten que usa o termo estética pela primeira
vez com o sentido de ciência das sensações, como teoria do belo. “A Estéti-
ca (como teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte do
análogon da razão) é a ciência do conhecimento sensitivo” (BAUMGARTEN
1993, p. 95). A irrupção dessa obra é um índice seguro da autonomia de
um tipo de saber dedicado à arte, em forma de disciplina independente de
outras esferas, como a filosofia, a gnoseologia ou mesmo a ética, o que faz
manifestar uma forte tendência quanto ao seu processo de autonomização,
o que já vinha ocorrendo desde a Renascença florentina do século XV.
Todas essas obras irão jogar um papel de grande importância prepa-
rando o caminho para uma discussão que ganha corpo na época: a reflexão
sobre se a arte ultrapassa os limites do problema da forma estética para
atingir a questão do “sentimento”, com a agenda da reflexão artística inva-
dida por vários tratados sobre a “estética do gosto”. Intelectuais e críticos se
veem mergulhados em intermináveis polêmicas sobre temas como a questão
do gosto, do sublime, do gênio e da sensibilidade.
A autora Mirabent (1991) apresenta duas obras que atestam tal cli-
ma da época: Ensaio sobre o gosto (1756) e Ensaio sobre a pintura (1765) do
enciclopedista Diderot. O tema da sublimidade artística, uma das matérias
mais importantes devido à questão da subjetividade também em voga na
época, é foco da reflexão de Edmund Burke na sua proposta que contempla
dois tipos de categoria de beleza: a que é objetivamente bela por si mesma
pela sua delicadeza e fatores de atração e de prazer e a beleza do sublime,
conceito construído a partir de afetos e sentimentos vagos e indefiníveis
vinculados a fortes sensações de terror ou medo, provocadas por elementos
ilimitados como a visão de um mar revolto, uma tempestade, a perspectiva

136 HISTÓRIA DA ARTE I


de infinitude céu, etc. O tema da sublimidade não foi indiferente a Kant,
que dele trata em sua terceira crítica (1791) dedicada à faculdade de julgar.
Envoltos nessa atmosfera de vigor intelectual típico, de intensa refle-
xão crítico-estética, os artistas encontram um modelo a seguir, constituindo
um novo estilo que logo se difunde pelo Velho e Novo Mundos. Consequên-
cia, sobretudo, das Revoluções Americana e Francesa, as novas classes do-
minantes adotam o neoclassicismo como estilo oficial inspirado no ideal da
democracia grega, articulado ao da república romana.
O neoclassicismo exposto nas artes plásticas e adaptado às condições
sugeridas pelos novos tempos, revaloriza os modelos greco-latinos, expur-
gando, como vimos, os traços formais barroco-rococós considerados des-
mesurados e avessos ao ideal de beleza perseguido. Nos primeiros anos do
século XIX, quando parecia entrar em declínio graças aos pronunciamentos
já manifestos no século anterior sobre a estética romântica, o neoclassicismo
ganha sobrevida oficial com Napoleão, por ver nele a expressão sígnica ideal
para glorificar seu império expansionista, uma espécie de Roma rediviva.

2. O sistema das artes neoclássicas


2.1. A arquitetura
Na França, a partir da metade do século
XVIII, começam a surgir edificações com tendên-
cias a uma maior clareza formal clássica com
influxos greco-romanos e renascentistas. No
caso do influxo renascentista, ele se apoia niti-
damente no arquiteto Andrea Palladio, constru-
tor e teórico do sec. XVI, que estudara e medira
as ruínas clássicas e que passa a ser referência
para diversos arquitetos de várias procedências.
Um caso exemplar é a Igreja de Santa Geneviève
(1764-1781) em Paris (transformada após a Re-
volução de 1789 em Panteon Nacional de cele-
Panteon Nacional Francês
bridades francesas), projeto do arquiteto Jacques
Germain-Soufflot (1713-1780), que passara sete
anos na Itália, onde adquiriu sólidos conhecimentos sobre a arquitetura
clássica. A colunata recupera o papel que teve na antiguidade e uma enor-
me cúpula, à imagem e semelhança da Basílica de São Pedro, irrompe do
centro do edifício no formato de uma cruz grega. A fachada é coroada com
um frontão sustentado por colunas coríntias. Soufflot julgou ser essencial
a integração do edifício com seu entorno urbano, o que é obtido com uma
avenida que se projeta à sua frente, construindo uma perspectiva para uma
excelente fruição de suas formas.
A variante neoclássica bonapartista tem no Arco do Triunfo do Carros-
sel (1806-1808) um exemplo da arquitetura propagandística e monumental
a serviço do poder napoleônico no seu projeto de renovação de Paris, tendo
sido construído para celebrar suas vitórias e calcado no arco do imperador
romano Séptimo Severo. Erguido a oeste do Louvre, o Carrossel limita,
numa de suas extremidades, o gigantesco eixo da expressão de poder – La
voie triomphale – que prossegue na alameda central do Jardin des Tuileries,
eleva-se no imenso obelisco da Place de la Concorde, prolonga-se pela Ave-
nue Champs Elisées e atinge seu ponto culminante com a monumentalidade
do Arco do Triunfo da Etoile, erguido em homenagem a Napoleão, continu-

HISTÓRIA DA ARTE I 137


ando no lado oposto, pela Avenue Grande Armée e a atual Avenue Charles
de Gaulle, até findar, na outra extremidade, na Place de La Defense, onde
se ergue um arco contemporâneo, encomendado por François Mitterand em
1989, em homenagem ao bi-centenário da Revolução Francesa.
Outro exemplo do estilo napoleônico é a Igreja da Madeleine (1806), de
Pierre Vignon (1763-1828) que se eleva sobre um pódio, rodeada por colunas
coríntias encimadas por um frontão repleto de estátuas à maneira do Parte-
nón. A partir daí, a construção das novas igrejas passam a seguir os rígidos
e severos cânones do mundo clássico, com uma arquitetura imitativa dos
seus edifícios, fazendo-as possuir o aspecto de um templo grego.
O neoclassicismo alemão também consagra marcantes traços greco-
romanos como se pode perceber na Porta de Brandemburgo (1789-1794),
de Karl Gothard Langhans (1732-1808), autêntica construção de caráter
helenista. É visível a intenção do arquiteto em transladar para Berlim, os
propileus, aqueles pórticos monumentais da entrada dos templos gregos da
acrópole ateniense, transformando sua versão alemã num majestoso arco
de triunfo romano dotado de imponentes colunas dóricas apoiando um pa-
vimento retangular que serve de base para um conjunto escultórico de Got-
tfried Shadow (1764-1850), formado por uma quadriga em bronze conduzi-
da pela deusa da paz Eirene.
Na Inglaterra, apresenta-se uma linhagem palladiana com a parti-
cipação de John Soane (1752-1837) que constroi uma country house (um
palacete com colunas dóricas) e o Banco da Inglaterra (1792), e John Nash
(1752-1835), com seus notáveis exemplos arquitetônicos, como as fachadas
da Regent Street (1811), para uma Londres que se urbanizava a olhos vistos,
e a reforma e ampliação do Palácio de Buckingham (1825-35) antes de ser
a residência oficial da coroa, o que ocorreu com a rainha Vitória em 1837.
A corrente palladiana também se faz presente na Rússia de Catarina
II, que convida o arquiteto italiano Giacomo Quarenghi (1744-1817) para
construir vários edifícios em São Petersburgo, como o Ermitage e a Aca-
demia de Ciências. Na Espanha, o destaque fica com Juan de Villanueva
(1738-1811), claro expoente do neoclassicismo espanhol de inspiração ar-
queológica, cujo projeto para o monumental Museu do Prado revela grande
pureza e racionalidade expressas na claridade e nas formas funcionais não
ornadas.
Após a independência, os Estados Unidos importam o estilo via palla-
dianos ingleses e franceses e pela gestão de Thomas Jefferson, um aficio-
nado pela arte romana. São exemplos os projetos de sua casa, a Villa de
Monticello, e o State Capitol Building, ambos na Virgínia e idealizados por
ele mesmo. No Capitólio de Washington, projetado por Charles Bulfinch e W.
Thornton (1827), uniram-se colunas coríntias e arcos romanos no pórtico
central em vários níveis, uma imponente escadaria e uma enorme cúpula
renascentista para que se obtivesse, a um só tempo, elegância e majestade,
tornando-o um dos prédios públicos de maior grandiosidade do mundo.
Outros exemplos da arquitetura neoclássica nas Américas podem ser
encontrados na Argentina, como a Catedral de Buenos Ayres, expressa na
nave, domo e fachada composta por uma colunata e frontão do século XVIII
e XIX; e no Brasil, onde o estilo foi trazido, tardiamente, em 1816, pela
Missão Artística Francesa, cujo expoente foi Auguste H. Victor Grandjean
de Montigny (1776-1850), e sua obra mais representativa foi sua residência
na Gávea, que depois se tornou a sede da reitoria da Pontíficia Universida-
de Católica do Rio de Janeiro, adaptando a estética neoclássica ao clima
tropical.

138 HISTÓRIA DA ARTE I


2.2. A pintura
Winckelmann e Mengs foram fundamentais na definição dos rumos
da pintura neoclássica, que teve como modelo os mesmos princípios ditados
para a escultura. O idealismo pictórico teve a nítida marca de uma visão
intelectualista, submetida a cânones agora subordinados ao princípio da
simplicidade, serenidade e grandeza, embora sem grandes aversões, por
exemplo, aos contrastes do claro-escuro. Mas a clareza luminosa da cena,
bem como a linearidade, a nitidez e o apuro dos contornos das formas ga-
nharam força, apoiados marcadamente em exemplos renascentistas como
Rafael, pelo equilíbrio de suas composições e pela harmonia do colorido.
Os temas podiam ser variados – mitos clássicos, religiosos, profanos, his-
tóricos, cenas prosaicas, retratos –, porém havia uma unidade estética na
busca menos pela verdade mais pelo verossímel.
Jacques-Louis David (1748-1825) e Jean-Auguste Dominique Ingres
(1780-1867) foram certamente duas personalidades centrais da pintura ne-
oclássica francesa. O parisiense David foi considerado o pintor da Revolu-
ção, porém, depois, adere ao bonapartismo, tendo se transformado no pin-
tor oficial do império napoleônico (“premier peintre de Napoleon” / “primeiro
pintor de Napoleão) e em cujo estilo transparece quase sempre o elogio de
virtudes cívicas. Fatos históricos ligados à vida de Napoleão foram por ele
registrados a exemplo de sua coroação e o quadro Bonaparte atravessando
os Alpes (1801). Mas David foi também detentor, a um só tempo, de um vi-
brante realismo e de um intenso páthos, como o quadro A morte de Marat
(1793), dedicado ao amigo e militante da Revolução Francesa. Diz-se do
quadro que se trata de um tema religioso em que o Cristo morto é subs-
tituido pelo corpo inerte do amigo, pendido sobre uma banheira em plena
luminosidade em contraste com o fundo escuro da composição.
Ingres conserva a tendência neoclássica do seu mestre David, cujo
ateliê frequentou com certa assiduidade. Sua temática é variada, compre-
endo assuntos mitológicos e paisagens, mas, sobretudo, retratos e nus, seus
trabalhos mais admirados. O retrato de Louis François Berlin (1832), exímio
modelo pictórico de uma persona para expressar a fisionomia de um mem-
bro da classe burguesa da época, deixa transparecer o gosto pelo poder e a
fé inabalável na individualidade, em cores discretas e contornos precisos. O
esmero técnico de Ingres nos nus se sobressai na célebre tela Banhista de
Valpinçon (1808), onde evidencia o domínio dos tons claros, quase transpa-
rentes para a representação da pele.
Foi discípulo de Ingres o pintor e desenhista Jean-Baptiste Debret
(1768-1848), bastante conhecido entre nós por ter participado da Missão
Artística Francesa (1816), iniciativa de d. João VI, fundando em seu reinado,
a Academia de Artes e Ofícios. Debret nos deixou vários quadros que regis-
tram a vida e os costumes do Brasil Colônia. Em seu livro Viagem pitoresca
e histórica ao Brasil, documenta aspectos da natureza e a vida da sociedade
brasileira da primeira metade do século XIX.

2.3. A escultura
Ao contrário do volume e da sinuosidade das espirais barrocas, a es-
cultura retorna às formas graciosas e leves, realçando contornos e gestos
suaves, cuja sobriedade idealiza expressões que exploram, de preferência,
a polidez das superfícies do mármore branco. A temática mitológica dá re-
levo ao gosto pelo nu para melhor idealizar as proporções humanas, como

HISTÓRIA DA ARTE I 139


se pode observar na grande quantidade de trabalhos de um dos escultores
mais celebrados do neoclassicismo, o italiano Antonio Canova (1756-1822),
a exemplo de Eros e Psique (1793). Ele também se dedica a bustos e tumbas
papais, conseguindo, ao mesmo tempo, a realização de uma intenção de
monumentalidade e tranquilidade, como em Clemente XIV (1783-87) e Cle-
mente XIII (1792). Na segunda, a morte costumeiramente representada por
um esqueleto, como no barroco, é substituída pela beleza plena de um anjo.
O neoclassicismo escultórico do francês Jean-Antoine Houdon (1741-
1828) dá preferência temática a celebridades como os enciclopedistas Di-
derot, Rousseau e Voltaire, sendo o último o mais marcante, graças à sen-
sibilidade do escultor em captar a força interior do filósofo, estampada em
sua expressão corporal e facial. Houdon trabalhou também nas estátuas de
Benjamin Franklin, Molière, George Washington, Thomas Jefferson, Louis
XVI, destronado pela Revolução, Robert Fulton e Napoleão Bonaparte.

3. O classicismo musical: tonalismo, forma-sonata e


a historicidade da consciência burguesa
Apesar de afinidades conceituais da arte musical com o iluminismo
vigente, existe uma distinção entre o neoclassicismo plástico que se nutre
nos mananciais antigos e renascentistas, e o classicismo musical. Autores
como Adorno apontam a linguagem tonal que se consolida nesse período,
como o coroamento do processo de desnaturação e racionalização do ma-
terial sonoro, iniciado na antiguidade mítica (período homérico), passando
pelo pitagorismo e seus seguidores, ganhando força no medievo com a cria-
ção da notação musical feita por Guido d’Arezzo e com o cantus mensurabi-
lis da Ars nova e, mais tarde, com a polifonia contrapontística do gótico ao
barroco, até chegar ao temperamento igual promovido por Bach, conforme
veremos a seguir.
Dessa forma, a linguagem musical euro-ocidental expressaria um
continuum de racionalização da natureza sonoro-musical, cujo apogeu dar-
se-ia nos séculos XVII e XVIII. Isso foi possível graças à articulação de
dois grandes eventos: o estabelecimento do idioma tonal e a instituição do
temperamento igual. O responsável pelo primeiro foi Jean-Philippe Rame-
au (Tratado da harmonia reduzida a seu princípio natural), hierarquizando
o encontro e a progressão de sons simultâneos (acordes); e o segundo foi
Johann Sebastian Bach (O Cravo bem temperado ou Prelúdios e Fugas em
todas as tonalidades maiores e menores), estabelecendo o temperamento
igual que disciplina o universo sonoro, unificando as várias propostas de
temperamentos existentes então, procedimento indispensável para a con-
solidação da racionalização tonal. O temperamento igual permitiu a afi-
nação uniforme dos instrumentos, equalizando, rigorosamente, todos os
12 semitons da escala cromática, considerados desiguais em outros tipos
de temperamento. A equalização de sons acusticamente diferenciados é ob-
tida pela anulação arbitrária dessas pequenas diferenças, estabelecendo,
por exemplo, a igualdade entre o dó sustenido e o ré bemol (procedimento
chamado de enarmonia, ou seja, nomes diferentes para uma mesma altura
obtida de forma convencional) e dividindo a escala em 12 semitons exata-
mente iguais.
O temperamento igual pôs ordem a um certo caos reinante na música
barroca, onde a complexidade crescente dos encontros acórdicos (sons de
alturas diferentes ) colidia, cada vez mais, com a falta de um critério geral

140 HISTÓRIA DA ARTE I


de afinação, o que produzia distorções no encontro dos instrumentos e fazia
chocar cordas e vozes com teclados, impedindo, assim, o desenvolvimento
das modulações e, consequentemente, a sua aplicação na linguagem tonal.
Bach explorou no Cravo, as 24 possibilidades modulatórias, nos seus 24
prelúdios e fugas, da escala cromática, nos modos maior e menor.
Sem o temperamento igual, cada vez que se quisesse modular, ou in-
terrompia-se a música para afinar novamente o instrumento, como o cravo,
ou então cada mudança de tonalidade fazia com que o desenvolvimento me-
lódico-harmônico soasse estranho ao centro tônico visado. A plasticidade
da escala tonal passa a oferecer inúmeras possibilidades de modulação, que
consiste na mudança de tons a partir de uma lógica sequencial, buscando-
se proximidades harmônicas e a resolução da progressão tensão/repouso.
A difusão da escala temperada provoca um grande deslumbramento
nos compositores com a harmonia. “Toda a moderna música acórdico-har-
mônica não é concebível sem o temperamento e suas consequências. Só o
temperamento proporcionou-lhe a liberdade plena” (WEBER, 1995:133). A
fixação do sistema tonal permite a irrupção das grandes formas da música
ocidental, tendo na forma-sonata a mais completa tradução de uma forma
estético-musical que expressa a mentalidade da moderna época burguesa.
Ela passou a expressar, no sentido da sua progressão harmônica, a consci-
ência do homem moderno acerca do seu tempo, um tempo cumpridor de um
fim necessário. O classicismo musical estabiliza o centro tonal em regiões
harmônicas bem estabelecidas. Com Haydn, Mozart e um Beethoven viven-
do entre a interseção do classicismo e o romantismo, a arte da modulação
na forma-sonata constituir-se-á no recurso com maior densidade estética,
permitindo a consolidação do tonalismo como sistema.
Em sessenta anos (era da criação dos três gênios “vienenses”), a for-
ma-sonata conhece seu apogeu, cujo mérito maior é sua extraordinária fle-
xibilidade que permite o aproveitamento de um grande repertório de ideias
musicais em vários tipos de combinação. Ela tem sua dinâmica baseada
numa progressão harmônica precisa: a partir de um campo tonal definido
pela tônica, essa se investe de poderes diretivos sobre as demais notas, de-
finindo pólos harmônicos em conflito. Esta é a ideia base da forma-sonata:
a possibilidade de um continuum constante de conflitos de duas tonali-
dades para novas regiões harmônicas, onde cada tensão posta e reposta
vislumbra uma resolução no seu devir. Na verdade, tal conflito obtido pelo
confronto de tonalidades diferentes, a exemplo da tônica com a dominante,
era também obtido pelo embate de temas distintos.
Sumariamente, podemos apresentar o seguinte grande arco modula-
tório da forma-sonata: parte-se do tema na região da tônica e seu desenvol-
vimento se dá na região da dominante, com o retorno final na tônica, tendo
a região da subdominante como modulação de passagem. A forma-sonata
– presente geralmente no primeiro movimento dos gêneros como a sinfonia,
o concerto, o trio e o quarteto de cordas, ou a sonata propriamente dita –,
estrutura-se obedecendo ao esquema tripartite A, B, A’ (exposição, desen-
volvimento e re-exposição).
A modulação irá igualmente permitir o insurgir de temas, verdadeiras
“personagens” com um discurso musical próprio autonomizado dos textos
da poesia e dos libretos das óperas, sendo capaz de trabalhar suas formas e
linguagem sem precisar de referência direta à realidade exterior. Essa con-
cepção encontra-se expressa, de maneira incisiva, por Friedrich Schlegel na
revista Athenaeum (1799):

HISTÓRIA DA ARTE I 141


Músicos falam a respeito das ideias (= temas) [...] e, com frequência, nos
damos conta de que há mais ideias em suas músicas do que aquilo que
se fala a seu respeito.[..] Mas a música instrumental pura não cria, ela
mesma, seu próprio texto? E não é seu tema desenvolvido, confirmado,
variado, e contrastado, da mesma maneira que o objeto de meditação
numa filosofia de ideias? (apud ROSEN, 2000, p.120).

É este o grande projeto reclamado pelo homem moderno: a consciência


de um sujeito autônomo constituidor de sentido; no caso da arte musical,
o homem como articulador das partes de uma composição num todo de
sentido estético, procurando, a exemplo da forma-sonata, organizar uma
sequência “lógica”, portanto racional, dos eventos enquanto formalização
estética, por excelência, dos elementos da razão. O arco da sonata amplifica
o que a cadência tonal faz no nível do desenvolvimento repouso-tensão-re-
pouso. O racionalismo das Luzes, que se opunha ao “obscurantismo barro-
co”, necessita de síntese, requisito para uma continuidade essencial, onde a
forma-sonata representará sua expressão mais adequada.
Ampliando cada vez mais a lógica evolutivo-progressiva da forma-so-
nata, a consciência de pensadores e artistas da época sobre suas possibi-
lidades ético-estéticas irá fazer dela a forma-sígnica ideal da consciência
iluminista traduzida na crença inabalável na ideia de progresso e felicidade,
como um telos necessário da moderna civilização burguesa. A ideia basilar
do ethos iluminista repousa no pressuposto do progresso permanente e ne-
cessário, de uma racionalidade que, passo a passo, ilumina as sombras do
erro e da ignorância. A época da forma-sonata dá-se basicamente no tem-
po de um capitalismo urbano-industrial portador de maiores conflitos, que
se auto-atribui poderes e capacidade para resolvê-los, confiante no sentido
moderno da história como progresso, conforme os ideais do projeto civiliza-
tório de linhagem kantiana.
O dinamismo tonal direcionado para a forma-sonata expressa um lí-
dimo exemplar de como a música inscreve, claramente, a autoconsciência
de uma classe dominante acerca de seu tempo ou, dito de outro modo, como
as classes dominantes se escutam, através da música dominante do seu
tempo, fazendo da forma-sonata o signo mais acabado de uma formaliza-
ção estético-musical pela qual tais classes se expressam. A lógica estética
contém, portanto, os elementos da lógica do moderno mundo burguês. O
dinamismo contínuo de tensão/repouso foi a grande contribuição da tona-
lidade para a vida musical moderna. Nessa trama, podem-se envolver todos
os sons da escala numa rede de encadeamentos tanto melódicos quanto
harmônicos. A cadência tonal não evita a tensão. Ao contrário, exacerba
cada vez mais os estados de conflito, através da “forma em desenvolvimen-
to” de um continuum de tensões em sua trama temática (v. CHASIN, 1999,
p.143). A sequência cadencial incorpora a tensão, traço constitutivo da pró-
pria estética musical moderna com vistas à sua resolução. O sistema tonal,
enquanto formalização estético-musical de formas de sociabilidade do novo
mundo burguês, se constitui assumindo o conflito, visto que este pode ser
solucionado dentro do horizonte do seu próprio código, da mesma forma
como o novo mundo burguês busca, dentro de seus próprios limites, a reso-
lução das tensões provocadas pelo seu próprio dinamismo.

142 HISTÓRIA DA ARTE I


O artista-gênio e também pensador mais consciente desse novo tempo
advindo no rastro revolucionário do mundo burguês e o mais bem sucedido
no uso da forma-sonata, como signo ideal para expressá-lo, foi o compositor
Beethoven. Ele se encontrava em sintonia com o pensamento ilustrado, isto
é, criticava sem limites a vida de seu tempo e desejava como todos os ilumi-
nistas, a imposição do mundo burguês.

Como humanista, Beethoven acreditava que a solução dos problemas e


confl itos humano-sociais vividos então encontraria resposta na própria
sociedade burguesa [...] Filho de uma época que confi ava nos ideais da
revolução e não poderia idear ou perspectivar para além deles. Signifi ca
que não admitiria ou mesmo reconheceria uma superação das contradi-
ções da vida a não ser na e pela própria organicidade burguesa (CHASIN,
op. cit., p. 147).

Enfi m, assim como o balanço de tensões/repouso característico da


forma-sonata expressava a perspectiva teleológica do tonalismo, assim tam-
bém as modernas formas de sociabilidade de um novo tempo burguês acre-
ditavam convictamente nas possibilidades de uma evolução inexorável da
sociedade, ainda que prenhe de tensões e confl itos. E a arte musical, atra-
vés da forma-sonata, reivindicava ser portadora de uma história de sentidos
e vetores estéticos na perspectiva necessitarista da temporalidade evolutiva
e progressiva da moderna sociabilidade burguesa.

Assumindo uma postura crítica ao sentido subjacente à noção de Renas-


cença, que via a Idade Média como a “idade das trevas”, esta unidade
analisou o processo de constituição das artes ocidentais, a partir da mo-
dernidade precoce, dando ênfase ao seu processo de autonomização em
relação à estética cristã medieval que as constrangia em seu teor e forma.
Cobrindo quatro séculos dos grandes estilos – do renascentismo ao neo-
classicismo –, a unidade buscou analisar de forma articulada, as diversas
linguagens do período, visto que elas, em grande parte, expressaram soli-
dariamente afi nidades estéticas em suas manifestações artísticas.

1. Opine sobre a visão renascentista em relação à Idade Média vista


como idade das trevas.
2. Disserte sobre as diferenças entre a antiguidade clássica e a estética
humanista renascentista, em que pese a afi rmação que essa última
retomou os ideais artísticos da cultura greco-romana.
3. Elabore um quadro comparativo, confrontando as principais caracte-
rísticas dos grandes estilos que marcaram as artes ocidentais da era
moderna.

HISTÓRIA DA ARTE I 143


4. Analise o contexto sócio-histórico em que se deu o surgimento do
barroco no Brasil, levando ainda em conta seus principais traços
característicos.
5. Elabore um pequeno texto que contenha uma questão problemati-
zadora que leve em conta fatores responsáveis pela constituição dos
novos tempos e suas conseqüências nas mais diversas esferas da
vida européia moderna.

Texto 1
“Quattrocento e Cinquecento: duas ênfases. A arte do Quattrocento
ainda conviveu com o período anterior do gótico ‘internacional’, mas soube
produzir dessemelhanças ou particularidades regionais relativamente des-
tacadas. Cada cidade desenvolveu, sob os auspícios de seus ricos mercado-
res e novos burgueses, um estilo inerente às suas próprias corporações de
ofícios. A influência e a riqueza dessas associações foi bastante forte para
impor os interesses de seus membros, tanto na aceitação e na instrução dos
aprendizes e oficiais, na obediência às concepções dos mestres locais, como
na ‘reserva de mercado’ para seus trabalhos. Em consequência, o Renasci-
mento evoluiu de maneira a mostrar uma diversidade formal e temática mui-
to mais abrangente do que a época medieval, em grande parte fruto desse
incipiente ‘nacionalismo’ das cidades.
O século seguinte - o Cinquecento - constituiu o ápice da Renascença,
em sua poética ou concepção clássicas. Durante o seu transcorrer, o esta-
tuto e o consumo das artes se modificaram profundamente. A economia,
então decisivamente mercantil e financeira, estimulou o aparecimento de
uma sociedade urbana, composta, em linhas gerais, de uma classe média
de comerciantes e de artesãos e dos estamentos das cortes principescas,
incluindo-se os seus banqueiros. Estes últimos diferiam de seus congêneres
medievais tanto pela origem da riqueza quanto por seus princípios éticos e
políticos. Os antigos [...] haviam estabelecido ideais de heroísmo, de amor
cortês e abstrato e de moralidade mais rígida. Os novos passaram a aceitar
em seus círculos os endinheirados recentes, os aventureiros de várias ori-
gens, os humanistas plebeus e os artistas, com reputação ou sem nome.
Tornaram-se intelectualizados, eruditos, mais refinados, sensualistas e mo-
ralmente dúbios, dado o indispensável utilitarismo da época”. (CUNHA, 2003.
pp. 447-448)

Texto 2
“A heroína é a Loucura, alegoria que se dirige ao público fazendo seu
próprio elogio [...]. Ela conduz a ronda com competência, não esquecendo
nenhum figurante. Aparecem diante do público os caçadores, os arquitetos,
os alquimistas, os jogadores, os devotos, os nobres, os negociantes, os gra-
máticos, os poetas, o retores, os jurisconsultos, os filósofos, os monges, os
bispos, os papas, os reis, os militares, cada um mais louco do que o outro,
mais convencido de sua própria importância, confundindo seus desejos com
a realidade, todos iludidos pelo amor de si mesmo, pela Philautia [o amante
de si próprio], dama de companhia da Loucura.

144 HISTÓRIA DA ARTE I


Mas a leitura se complica e se torna mais fascinante quando descobri-
mos que a loucura não é apenas criticada, mas exaltada. Superficialmente,
a oradora elogia todas as manifestações da loucura, mas [...] é um elogio
irônico, confundindo-se com a sátira, e em outros parece ser uma verdadeira
apologia. A distinção é tão fina que muitas vezes é difícil perceber a diferen-
ça. Mas a própria loucura nos dá uma pista, quando nos diz que há dois tipos
de insanidade (insanitas), uma vomitada pelo inferno e responsável pela
sede de ouro e pelo amor da guerra, e outra, amável, inspirada pela heroína.
Podemos supor, portanto, que há também dois tipos de stultitia, uma loucura
sábia e uma loucura louca”. (ROUANET, 1992, p. 295)

Texto 3
Em resumo, eis os principais traços da festa barroca: participação po-
pular, pela participação de irmandades; vestimentas luxuosas bordadas em
ouro, prata e pedrarias preciosas; animais, sobretudo cavalos, ricamente
ajaezados; carros alegóricos com efeitos especiais ilusionistas, com figuras
representando mitos pagãos, nativos e santos ou virtudes cristãs, onde as fi-
guras pagãs ou indígenas encontram-se submetidas à fé católica; pessoas de
prestígio (civis, militares e religiosas) em “destaque”, vestidas com pompa e
cerimônia para reafirmar sua superioridade no interior da sociedade colonial;
caminhos a serem percorridos pela procissão, ricamente enfeitados com lu-
minárias, flores, lagos artificiais; casas com testadas recém-pintadas, com
sacadas ornadas com panejamento luxuoso (“colchas de Pequim ou China”);
representantes das etnias formadoras da população nacional, como negros e
índios, ricamente vestidos, representando o “outro” do colonizador, submeti-
dos à sua fé e lei; máscaras coloridas e coreografias policrômicas de danças
profanas; uso da música onde a sonoridade esfuziante de vozes e instru-
mentos, articulada aos efeitos audiovisuais, busca reforçar a idéia de poder
e riqueza a serviço da fé e da lei; requintados espetáculos pirotécnicos das
“máquinas de fogo”, fabricadas por jesuítas que as conheceram no Oriente
por ocasião da catequese (Japão, Macau, Goa) (MIRANDA, 2001, p. 104s).

Agonia e êxtase: v. referências do filme na unidade II.


O grego: fi lme de Luciano Salce (1966) sobre o artista Doménikos Theo-
tokópoulos, mais conhecido como El Greco (1541-1614), pintor, escultor e
arquiteto cretense, que desenvolveu a maior parte de sua carreira artística
na cidade de Toledo, Espanha, onde, inclusive, existe tem um museu dedi-
cado à sua obra.

HISTÓRIA DA ARTE I 145


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Dilmar S. Miranda
Doutor pela Universidade de São Paulo, área de concentração em So-
ciologia da Música, é professor associado do curso de Filosofi a do Instituto
de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, sendo responsável pe-
las disciplinas Estética e Filosofi a da arte. Possui vários ensaios publicados
sobre Filosofi a da Música como Razão, sentidos e estética musical, Natureza
e linguagem musical e Tristão e Isolda: o anúncio dionisíaco da dissolução do
pacto tonal. Lançou em 2009 o livro Nós a música popular brasileira.

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