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ISSN 1516-0793

Cadernos da
Pós-Graduação
Instituto de Artes/UNICAMP Ano 9 - Volume 9 - No 1 - 2007

1
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

CADERNOS da PÓS-GRADUAÇÃO. Instituto de Artes/


UNICAMP, Campinas, SP – Brasil, 1997 – 1998 – 1999 – 2000 –
2001 – 2002 – 2005 – 2006 – 2007

1997, v. 1 (n. 1, n. 2)
1998, v. 2 (n. 1, n. 2)
1999, v. 3 (n. 1, n. 2)
2000, v. 4 (n. 1, n. 2)
2001, v. 5 (n. 1, n. 2)
2002, v. 6 (n. 1, n. 2)
2005, v. 7 (n. 1)
2006, v. 8 (n. 1, n. 2)
2007, v. 9 (n. 1, n. 2)

1. Pós-Graduação. 2. Artes. 3. Multimeios. 4. Música. 5. Artes


Plásticas. 6. Artes Cênicas. 7. Dança.

INSS 1516-0793

2
Cadernos da
Pós-Graduação
Universidade Estadual de Campinas

Reitor
Prof. Dr. José Tadeu Jorge
Pró-Reitora de Pós-Graduação
Profa. Dra. Teresa Dib Zambon Atvars

Instituto de Artes
Diretora
Profa. Dra. Sara Pereira Lopes
Diretora Associada
Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto

Pós-Graduação
Profa. Dra. Denise Hortência Lopes Garcia – Coordenadora
Prof. Dr. Emerson Luis de Biaggi – Coordenador – SubCPG-Música
Profa. Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida – Coordenadora – SubCPG-Artes
Prof. Dr. Etienne Ghislain Samain – Coordenador – SubCPG-Multimeios

Conselho Editorial
Ana Mae Barbosa, USP
Antonio Fernando da Conceição Passos, UNICAMP
Denise Hortência Lopes Garcia, UNICAMP
Gilberto dos Santos Prado, USP
Inaicyra Falcão dos Santos, UNICAMP
Karen O’Rourke, Univ. Paris I-Sorbonne
Lia Robatto, UFBA
Sara Pereira Lopes, UNICAMP

Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica


Ivaldo Pessoa – ivaldo@iar.unicamp.br

Revisão
Magali Cordeiro

Capa
Cortesia: André Burnier

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Cadernos da
Pós-Graduação - Índice
Editorial ..................................................................................................................... 9

Artes
Corpo Ilusório: a espetacularidade corporal do praticante de meditação ..... 13
Daniel Reis Plá
Inaicyra Falcão dos Santos

Processos Criativos, Processos de Individuação: uma abordagem


hipertextual ............................................................................................................ 19
Vera Cristina Marcellino
Elisabeth Bauch Zimmermann

Performance Art enquanto abordagem sensorial de investigação do


corpo simultaneamente à experiência do sentido interior .............................. 25
Vera Cristina Marcellino
Elisabeth Bauch Zimmermann

A Produção Plástica e a Psiquiatria .................................................................... 33


José Otávio Motta Pompeu e Silva
Lucia Reily

Critérios de legitimação utilizados pela crítica de arte brasileira frente


aos trabalhos plásticos de pacientes psiquiátricos: o estado patológico
do sujeito criador ................................................................................................... 37
Tatiana Fecchio Gonçalves
Lúcia Reily

Corpos em Trânsito: um relato intercultural através da análise Laban em


Movimento .............................................................................................................. 45
Ciane Fernandes

O Contorno e a Criação: uma questão metodológica para a pesquisa em


dança ....................................................................................................................... 55
Flávio Soares Alves
Marília Vieira Soares

Encarnando o Verbo .............................................................................................. 63


Sara Pereira Lopes

5
O Acontecimento da Voz ....................................................................................... 69
Márcia Cristina Baltazar
Sara Pereira Lopes

Os Estúdios Teatrais e a Cultura do Ator ............................................................. 73


Camilo Scandolara
Maria Lúcia Levy Candeias

O Conceito de Organicidade na Interpretação Realista:


uma investigação de seus elementos e fundamentos ....................................... 81
Martha Dias da Cruz Leite
Eusébio Lobo da Silva

A Performance do Ator como Teatralidade no Cinema .................................... 91


Andréa Stelzer
Walder Gervásio Virgulino de Souza

Expressionismo e Contemporaneidade .............................................................. 99


Fábio de Bittencourt
Luise Weiss

Notas sobre uma Estética Goetheana ................................................................ 105


Cláudio de Souza Castro Filho
Maria Lúcia Levy Candeias

Teatro na Estante e Teatro no Palco: considerações sobre a língua viva


do Teatro Popular ................................................................................................. 111
Neyde Veneziano

Performer, Brincante... Máscara Ritual de Si mesmo ...................................... 117


Luciana Lyra
Regina Muller
Graziela Rodrigues

Outros Olhares sob Ouro Preto: pesquisa de campo ou o contato com o


“objeto” ................................................................................................................ 123
Carolina Romano
Marília Vieira Soares

O Global e o Tribal: o corpo na sociedade contemporânea e nas


sociedades indígenas brasileiras ....................................................................... 131
Rafael Franco Coelho
Regina Muller

Antônio Parreiras: a trajetória de um pintor através da crítica de sua


época ..................................................................................................................... 139
Liandra Motta
Paulo Mugayar Kühl

6
A Representação do Universo Caipira: fator de renovação na
produção de Almeida Júnior. ............................................................................. 145
Paula Giovana Lopes Andrietta Frias
Paulo Mugayar Kühl

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: algumas aproximações ..................... 151


Daniela Pinotti Maluf
Maria de Fátima Morethy Couto

Entre o Museu e a Praça, o legado de Lygia Clark e Hélio Oiticica .............. 159
Marcia Moraes
Maria de Fátima Morethy Couto

A Pesquisa Iconológica nas Artes: o legado da Escola de Warburg ............. 169


Ana Tagliari
Haroldo Gallo

O Arts and Crafts e a Arquitetura Orgânica de Frank Lloyd Wright ............... 177
Ana Tagliari
Haroldo Gallo

A Cor na Obra de Gastão Manoel Henrique ..................................................... 185


Márcia Elisa de Paiva Gregato
Marco Antonio Alves do Valle

Dança dos Brasis: o corpo índio-espetáculo na arena do Esporte ................. 191


Graziela Rodrigues
Regina Muller

Colóquio: Convergências na Arte Contemporânea


Apresentação .............................................................................................. 203

Problemas da crítica e da curadoria no panorama recente da


Arte Brasileira ...................................................................................................... 205
Agnaldo Farias

Os excitáveis ou “l’art d’apprivoiser” ............................................................... 213


André Parente

A “mensagem do meio”: Pop Art e fotografia* ................................................ 219


Annateresa Fabris

Notas sobre arte e política .................................................................................. 225


Celso Favaretto

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instituto de artes

O Corpo da Arte ................................................................................................... 231


Daniela Bezerra
Maria Beatriz de Medeiros

Arte e novas mídias ............................................................................................. 235


Lucia Santaella

A História da Arte: revisão e novas perspectivas ............................................. 245


Maria Lúcia Bastos Kern

Curadoria da exposição Cinético_Digital ......................................................... 255


Mônica Tavares
Suzete Venturelli

Arte e crítica no Brasil. Desdobramentos de um processo vivido .................. 259


Mônica Zielinsky

Godard Curador ................................................................................................... 265


Nelson Aguilar

Imagens do corpo perfeito. O sacrifício da carne pela pureza digital .......... 271
Paula Sibilia

Alguns efeitos de plasticidade a partir da crítica em rede ............................. 281


Ricardo Basbaum

Troca-troca: arte e história como transversalidade ......................................... 291


Sheila Cabo Geraldo

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instituto de artes

Editorial

Em seu nono número, o Cadernos da Pós-Graduação do Instituto de Artes


reafirma sua vocação interdisciplinar, a qual reflete a multiplicidade de experiências
profissionais dos docentes e alunos dos programas de Pós-Graduação do Instituto
de Artes da Unicamp. Reúne vários artigos que são resultados de pesquisas aqui
empreendidas, em nível de mestrado e doutorado, e que tratam de temas tão diver-
sos como a leitura musical em Braille, a improvisação e interpretação no choro bra-
sileiro, o trabalho vocal do ator, a representação do universo caipira nas artes visuais
brasileiras ou ainda o papel da fotografia na arte contemporânea. Assume assim seu
papel acadêmico, trazendo à tona reflexões inéditas e leituras diferenciadas do fenô-
meno estético e artístico, que buscam integrar teoria e prática.
Ressalte-se, contudo, nosso interesse e constante preocupação em acolher
trabalhos de pesquisadores de outras instituições, nacionais e estrangeiras, que te-
nham como foco de interesse o fazer artístico e seus processos de produção, difu-
são e interpretação. Dentro desse espírito, destacamos a publicação, nesse núme-
ro, dos artigos de Andréa Stelzer, Ciane Fernandes, Egle Müller Spinelli e Rita de
Cássia Fucci Amato, assim como a edição de um dossiê inteiramente dedicado às
conferências proferidas no Colóquio Convergências na Arte Contemporânea, reali-
zado no auditório do Instituto de Artes em junho de 2006 e que contou com a partici-
pação de artistas e docentes de reconhecida competência em sua área de atuação.
Esperamos, com isso, contribuir para a ampliação e aprofundamento do de-
bate na área de artes e para a criação de possíveis diálogos a partir de uma pluralidade
de vozes.

Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto


Depto. de Artes Plásticas - Instituto de Artes - UNICAMP.
E-mail: mfmcouto@iar.unicamp.br

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instituto de artes

Artes

11
12
instituto de artes

Corpo Ilusório: a espetacularidade corporal do praticante de


meditação

Daniel Reis Plá


Inaicyra Falcão dos Santos

Resumo:
O presente artigo tem como origem parte da dissertação de mestrado defendida pelo autor no ano
de 2006. O tema da pesquisa era o estudo das relações entre o corpo espetacular do ator e o do praticante
do Rito de Tara Vermelha, prática meditativa ligada ao budismo tibetano. O que se pretende apresentar é
uma análise do corpo espetacular do praticante de meditação, sob a perspectiva do observador, elencando
os princípios que fundamentam a construção da espetacularidade corporal no contexto das práticas medi-
tativas estudadas durante o processo investigativo desenvolvido entre os anos de 2003 e 2006.

A prática meditativa, esteja ela inserida 1. BOA POSTURA


em rituais complexos com uso de instrumen-
tos, cantos, movimentos, ou realizada de for- A primeira coisa que se pede a um pra-
ma mais simples, apenas sentando na almo- ticante de meditação é o cuidado com a pos-
fada, exige a construção de um corpo cujas tura. Isto se fundamenta no fato de que a for-
qualidades o diferenciam do cotidiano. Este é ma de se portar fisicamente influencia direta-
fruto de um treinamento psicofísico que visa mente os estados psíquicos, podendo contri-
encarnar uma verdade apresentada pela tra- buir ou não para o bom andamento da medita-
dição. ção. Neste texto o termo “postura” será ampli-
ado de forma a abranger todos os aspectos
Durante a observação das práticas,
que podem ser percebidos diretamente pela
percebeu-se que alguns praticantes possuíam
visão daquele que observa, incluindo movimen-
uma presença que os destacava dos outros,
tos e utilização de objetos.
uma qualidade sutil, não diretamente obser-
vável, que fazia com que seus movimentos, Conseguir uma “boa postura” envolve
gestos e posturas fossem agradáveis de se diversos fatores como o desenvolvimento de
olhar. Notou-se que esta “luminosidade” esta- uma consciência corporal global, reconheci-
va ligada aos processos de controle e desen- mento e controle das áreas de tensão e rela-
volvimento da atenção, os quais se fundamen- xamento do corpo, flexibilidade, equilíbrio fun-
tavam em princípios e procedimentos preci- damentado na relação entre eixo e base cor-
sos. porais, precisão, consciência e controle da
respiração, este último não ocorrendo sempre.
Estes, apesar de poderem ser estuda-
Estes fatores agem em dois níveis. Primeiro,
dos separadamente, justificam sua existência
no que se refere aos aspectos mecânicos e
somente na relação entre eles, atuando uns
funcionais, como por exemplo: permitir que se
sobre os outros de forma não hierárquica.

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cadernos da pós-graduação

possa ficar confortável em uma posição imó- ve, onde estão localizados os órgãos, no en-
vel por um período mais ou menos longo; con- tanto não o percebemos enquanto sensação.
tribuir para se alcançar os níveis de atenção Neste ponto podemos dividir as sensações
necessários ao ato de meditar; sincronizar entre as superficiais e as internas. As primei-
matéria e energia e realizar com eficiência as ras referem-se ao nível da pele e dos senti-
ações exigidas para o andamento da prática. dos, e as segundas ao conjunto de músculos
O segundo nível é o simbólico. Ao to- e ossos.
mar para si os modelos dados pela tradição, Perceber ao nível da pele indica que
aquele que medita torna carne o que antes era reconhecemos o lugar do corpo no espaço, o
conceito. Esculpe com seus músculos e os- desenho que ele produz, as sensações refe-
sos a representação dos ideais propostos pelo rentes ao seu intercâmbio com o ambiente:
conhecimento ancestral. calor, frio, conforto, desconforto, o que o toca,
onde e como, etc.
Já a percepção a partir das estruturas
1.1. Atenção ao corpo ósseas e das cadeias musculares torna cons-
Ao se falar em meditação é difícil ciente as forças que mantêm o corpo parado
dissociar os aspectos fisiológicos dos cogni- ou em movimento, os espaços, os tremores,
tivos. Colocar-se em determinada postura, re- os pulsares, e todo um fluxo de sensações que
alizando ou não gestos e sonoridades rituais compõe a corporeidade do indivíduo.
pressupõe a co-dependência dos processos Reconhecer estas sensações permite
do corpo, da fala e da mente, ou seja, implica que sejam vistas as relações entre aquilo que
em uma unidade na qual cada componente é fisiológico e o que é psíquico. O corpo é vis-
atua sobre o outro de forma interdependente. to como uma estrutura densa, mas também
O primeiro ponto que deve ser desen- como uma entidade em fluxo, diferente a cada
volvido pelo praticante é a percepção de seu vez que é observada. Além disso, este apren-
corpo, esta consciência mostrando-se como dizado permite que as dificuldades iniciais re-
a base para a criação consciente do corpo lativas a ter uma postura adequada vão sendo
espetacular. Este conhecimento é ligado aos superadas.
sentidos menos que aos conceitos. Assim, o Pode-se inferir disto que o reconheci-
praticante assume posições e realiza ações mento do próprio corpo assume três funções.
de forma consciente, sabendo como sua co- A primeira, a superação da visão dual e rígida
luna está posicionada em um determinado sobre o corpo, evidenciando suas ligações
momento, que posição o seu corpo ocupa no com os impulsos, sentimentos e pensamen-
espaço, quais são as áreas de tensão e rela- tos, bem como seu constante devir com a re-
xamento, qual é o ritmo de sua respiração, etc. alidade mutante; a segunda, educativa, ao in-
O procedimento usado para desenvol- dicar dificuldades permitindo, assim, superá-
ver tal percepção corporal consiste no obser- las; e por fim, a terceira, conscientizar o indiví-
var o corpo, porém com um olhar voltado para duo a respeito de uma inteligência e de um
dentro, reconhecê-lo a partir da sensação. O querer que vem do corpo, não ligado ao pen-
Venerável Sujiva1, monge da tradição Therava- samento racional.
da do budismo, afirma que em geral somos No contexto tradicional budista a cons-
conscientes da aparência do corpo, o vemos ciência corporal é desenvolvida a partir de pro-
ao nível do conceito, sua forma, para que ser- cedimentos estruturados ao longo dos sécu-

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instituto de artes

los pelos monges e professores. Esta cons- relacionados aos movimentos e as posições
cientização age como meio para controlar a do corpo. Um corpo enrijecido não pode apren-
atenção, mas também é vista como um fim, der, não há espaço para novas possibilidades.
constituindo-se em uma técnica meditativa por Esta qualidade está profundamente associa-
si. O corpo então se torna caminho para o ob- da ao estado de tensão/relaxamento do cor-
jetivo maior, a iluminação. po.
O trabalho corporal exige paciência e
vontade. Muitas vezes se está lidando com
1.2. Entre o segurar e o soltar hábitos antigos, que “engessaram” o corpo em
Sujiva2 afirma que a atenção-consciên- um tipo de configuração. Flexibilizar então se
cia é impossível em um corpo tenso. Equa- mostra como uma reestruturação, na qual pa-
cionar a tensão e o relaxamento é importante drões firmemente enraizados são relaxados,
no processo de perceber o próprio corpo. As acrescentando novas informações àquelas já
áreas excessivamente tensas não permitem possuídas pela estrutura corpórea.
que o indivíduo perceba a si mesmo de ma-
neira global, uma vez que a dor e o enrijeci-
1.4. Entre o céu e a terra
mento característicos destas áreas monopoli-
zam a atenção. Um corpo tenso é inconscien- O próximo ponto importante é a rela-
te, se percebe aos blocos e não detalha- ção eixo/base. Para realizar a postura de for-
damente. ma correta é necessário manter a parte inferi-
Além disso, o controle dos níveis de ten- or do corpo (da cintura para baixo) firmemente
são corporal é importante uma vez que um apoiada, enquanto a parte superior se man-
corpo muito relaxado impossibilita uma “boa tém equilibrada sobre a base formada pela
postura” tanto quanto o desnecessariamente bacia e pelos joelhos. Neste processo a colu-
tenso. É importante que se tencione somente na ereta é fundamental, sendo um dos pon-
os músculos necessários em um nível ade- tos-chave para a realização de uma boa práti-
quado à manutenção da posição, ou realiza- ca.
ção do movimento de forma precisa. Aqui o principal é manter a verticalidade
A postura, o gesto ou o movimento sur- da coluna de forma relaxada. Isto só é possí-
ge então do ato de superar os impedimentos vel através da posição da bacia e da cabeça
para sua realização, implicando menos em em relação à coluna, bem como do firme apoio
uma busca de algo, e mais em um permitir-se dos joelhos e nádegas no solo. Além de facili-
realizar. A forma surge de maneira delicada, tar a posição da coluna, uma boa base permi-
do jogo entre tensão e relaxamento. te que se possa manter o equilíbrio durante a
prática.
A suave tensão entre a base, que se
1.3. Flexibilidade direciona para o solo, e o tronco e cabeça, que
A flexibilidade é essencial para a reali- se direcionam para o céu, contribui para a
zação de determinadas posturas de medita- manutenção de um estado alerta, porém rela-
ção. xado. Ao mesmo tempo a verticalização da
coluna, o alinhamento dos ombros e da cabe-
Tornar músculos e articulações mais
ça, o encaixe do quadril, contribuem ativamente
flexíveis contribui para a superação de hábitos
para o redimensionamento do corpo, abrindo

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cadernos da pós-graduação

espaços, produzindo um jogo de tensões dife- Em algumas práticas a respiração é tra-


renciado do habitual. balhada enquanto voz, através da recitação de
mantras e orações. Nelas o foco passa de uma
fala centrada no sentido das palavras para um
1.5. Precisão falar que tem por finalidade afetar concreta-
mente o indivíduo. Este tipo de fala tem por
Desenvolver uma boa postura de me-
base as sonoridades e vibrações, e não mais
ditação implica também em assumir uma de-
o conceito. Isto exige que o praticante assuma
terminada gestualidade, algumas vezes mo-
o controle do ato respiratório de forma a aten-
ver-se de uma maneira específica, utilizar ob-
der às demandas propostas pelo ritual da me-
jetos no momento correto, segurando-os da
ditação.
forma tradicional, usar a voz em um tom pre-
ciso, ou seguindo um padrão rítmico estabele- Em outros tipos de técnicas meditati-
cido há milênios. É um exercício da atenção, vas, na meditação andando, por exemplo, o
uma vez que cada gesto abrange o corpo em movimento é associado ao processo de inspi-
sua totalidade, e cada movimento envolve o rar e expirar, permitindo que o mover-se surja
cuidado com o desenho formado pelo gesto a partir do respirar.
(tanto do gesto em si, quanto o realizado pela Ao estudar diferentes procedimentos
sua trajetória no espaço). utilizados nas práticas meditativas no que se
Tudo isso implica em precisão e con- refere ao ato de respirar, percebe-se que o
trole por parte do praticante. Por precisão en- ponto comum a todas as técnicas estudadas
tende-se o rigor, a capacidade de retornar de é a sincronização entre corpo, mente e senti-
forma exata ao desenho que o corpo produz mento através da respiração, que assume o
no espaço. Já o controle pressupõe uma téc- papel de ponte entre o interno e o externo.
nica psicofísica, que prepare o corpo de forma
que ele responda adequadamente ao querer
2. ATENÇÃO-CONSCIÊNCIA
do indivíduo.
Através do controle e precisão o prati- O trabalho sobre a atenção-consciên-
cante canaliza seus impulsos e atenção, tor- cia é o ponto focal da meditação. Todas as
na-se um habitante de si mesmo, consciente ações servem ao objetivo principal de aprimo-
de seu corpo-mente em ação. rar a atenção de forma a tornar o indivíduo cons-
ciente de seus processos bio-psíquicos, de
seus automatismos, de sua abordagem con-
1.6. Respiração ceitual da vida em detrimento da experiencial.
A partir disto ele, indivíduo, pode ir além da
A respiração é vista como um impor-
mecanicidade alcançando um estado altamen-
tante meio para o controle da atenção, sendo
te consciente.
essencial na meditação.
Ao realizar-se o estudo das técnicas
Nas tradições estudadas não existe o
de meditação foi possível detectar princípios
controle da respiração, mas sim um observar
que se ligavam diretamente ao controle do flu-
consciente. Através da contemplação da ins-
xo de pensamentos e sentimentos. Assim
piração e da expiração as relações entre os
como aqueles ligados à construção de uma
aspectos cognitivo-emocionais e fisiológicos
“boa postura”, estes têm um papel fundamen-
tornam-se evidentes.

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instituto de artes

tal na construção do corpo espetacular do pra- sujeito se fundam, passando a existir somen-
ticante. te um agir que testemunha a si mesmo.

2.1. Focalização da atenção 2.3. O testemunho

Durante a meditação é esperado que o A condição de testemunho, ou contem-


praticante dê atenção para um ponto de cada plação, se caracteriza por ser uma presença
vez. Na experiência cotidiana, em geral, se age consciente, um espaço de consciência no qual
distraídamente. Come-se vendo TV, dirige-se a ação, o movimento, o pensamento, o senti-
o carro pensando na discussão ocorrida há mento, o ambiente, enfim, tudo, é percebido
horas atrás, são infinitos os exemplos para sob um prisma além das limitações propos-
demonstrar o quão pouco se está no momen- tas pelo pensamento discursivo. Exemplifican-
to presente na maioria das vezes. do a relação entre contemplar e absorver-se
Através do cuidado em manter a pos- Grotowski4 cita uma parábola hindu:
tura, em tocar determinado objeto em um ponto
específico, em falar uma frase seguindo um “C’è la vita e c’è il testimone. E se c’è il testimone,
ritmo predeterminado, entre outras coisas, a c’è all’erta. Vi è nelle Upanisad un esempio a
meditação busca acostumar a mente sempre questo propósito. Si dà l’immagine dell’uomo che
divagante a habitar o corpo: como escreve è nella sua totalità, e quest’immagine dell’uomo
nella sua totalitá sono due uccelli, non uno solo.
Sogyal Rimpoche3 é necessário trazer a men-
Su di un albero c’è un uccello que agisce, che
te de volta para sua casa. Neste sentido focar
beca i chicchi, e c’è l’altro che non si muove ma
a mente significa trazê-la para o momento pre- guarda. Il primo è la vita e il secondo è il
sente, estabelecendo uma relação com o ins- testimone.” 5
tante e lugar. Porém esta relação não é a co-
mum, de acomodação ao ambiente a partir de
uma adaptação inconsciente. Antes, é um pro- 2.4. Objetividade
cesso de contemplação e absorção. Por este termo entende-se um modo
de experimentar a realidade a partir de suas
qualidades de tempo, espaço e causalidade.
2.2. Absorção consciente
Neste sentido a respiração é observada en-
A absorção de que se fala aqui é a mes- quanto movimento e sensação, os objetos são
ma do jogador durante uma partida, ele se tor- vistos enquanto forma e função. No momento
na tão absorto no que faz que a relação sujei- da meditação o significado dos gestos,
to-objeto torna-se irrelevante, o que passa a vestimentas e instrumentos está implícito, mas
existir é o jogo e não mais um eu que joga. Ao não é fruto de racionalização durante a ação.
mesmo tempo, esta absorção não chega ao No momento do agir, o que se busca é uma
nível da distração, antes é consciente, pois as relação baseada na experiência e não no con-
regras e demandas do jogo precisam ser res- ceito ou nos sentimentos.
peitadas.
Assim como um jogador, aquele que
Conclusão
medita necessita absorver-se nos atos que
compõem sua atividade, sendo porém cons- Partindo do texto acima pode-se enten-
ciente desta absorção. O ideal é que ação e der que a construção da espetacularidade cor-

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cadernos da pós-graduação

poral no contexto das práticas meditativas,


Referências Bibliográficas
envolve a utilização de procedimentos técni-
cos, os quais agem no nível do corpo e no da
GROTOWSKI, Jerzy. Tecniche Originarie Dell’Attore. Tradu-
atenção-consciência. A condição espetacular ção Luisa Tinti. Roma: Universitá di Roma, 1982.
surgindo da união desses dois campos de PLÁ, Daniel Reis. Impulso e Manifestação: Relações entre o
manifestação. corpo espetacular do ator e o do praticante do rito de Tara.
2006. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes,
Estes procedimentos baseiam-se em Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
princípios precisos, o trabalho sobre eles per- RIMPOCHE, Sogyal. O Pequeno livro da Meditação. Tradução
mitindo o redimensionamento do corpo do pra- Vera Dias de Andrade Renoldi; São Paulo: Best Seller, 1994.
ticante, produzindo uma presença que permi- SUJIVA. Essentials of Insight Meditation Pratice: A Pragmatic
te atribuir a ele uma condição espetacular, se- Approach to Vipassana. Malaysia: Buddhist Wisdom Centre,
2000.
parada da cotidiana. Estes princípios, como
observado no decorrer da pesquisa de
mestrado já mencionada, possuem estreita
relação com o trabalho do ator, podendo su-
gerir procedimentos eficazes para a constru-
ção do corpo não-cotidiano do artista cênico.

Daniel Reis Plá, Mestre em Artes e Doutorando em Artes pelo


Instituto de Artes – UNICAMP.
E-mail: dreispla@yahoo.com

Orientadora Mestrado: Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos San-


tos, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de
Artes – UNICAMP.
E-mail: inaicyra@iar.unicamp.br

Orientadora Doutorado: Profa. Dra. Sara Pereira Lopes,


Docente junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes
– UNICAMP.
E-mail: slopes@iar.unicamp.br

Notas

1. SUJIVA, 2000.
2. Idem, p. 50.

3. RIMPOCHE, 1994, p. 17.

4. GROTOWSKI, 1982, p. 29.

5. “Existe a vida e existe o testemunho. E se há testemunho, há


atenção. Existe no Upanishad um exemplo a este respeito.
Ali se dá a imagem do homem em sua plenitude, e esta
imagem é a de dois pássaros, não um só. Sobre uma árvore
existe um pássaro que age, que come e chilreia, e existe o
outro que não se move, mas observa. O primeiro é a vida e
o segundo é a testemunha”. (Tradução minha).

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instituto de artes

Processos Criativos, Processos de Individuação: uma


abordagem hipertextual

Vera Cristina Marcellino


Elisabeth Bauch Zimmermann
Resumo:
Diante da investigação do processo criativo em performance, identificamos a similaridade do con-
ceito de hipertexto e as descobertas sobre si mesmo que podem acentuar o processo de individuação.
Conjugadas na linguagem da performance art, apontaram para a necessidade de uma investigação mais
aprofundada sobre o entrelaçamento dessas três vertentes: psicologia analítica, hipertextualidade e
performance gestual, a dança.
O resultado dessa pesquisa indicou as sobreposições de significados corpóreos, psíquicos como
ampliação da possibilidade criativa.

No pensamento de Carl Gustav Jung a valor é confirmado pela experiência pessoal ou


dimensão da identidade pessoal e transpes- pelos efeitos e realizações das atividades psí-
soal (ego e Self), a dimensão da experiência quicas, tais como: pensar, imaginar, criar e
coletiva (vivências arquetipícas), e, especifica- muitas outras atividades que a psique realiza.
mente, a dinâmica da função transcenden- Em outras palavras: o Eu é que dá valor às
te1 nessa relação, fundamentaram a presente experiências vivenciadas. Sintetizando, uma
pesquisa sobre criação em performance art. descrição possível desse sistema psíquico em
Como descreve Zimmermann2, Indivi- movimento contínuo, é que, há avanço e re-
duação, em si, é um processo natural de ama- cuo de valores significativos entre o conscien-
durecimento inerente à Psique de todo ser te e o inconsciente, um alimentando o outro
humano. Seu objetivo é a inteireza, ou seja, a indefinidamente. Esse movimento de avanço
realização da personalidade original (potenci- e recuo é natural da psique, que é dinâmica.
al) do indivíduo. É o caminho da plenitude, em Para a criação em arte, a vivência sim-
direção ao cerne e sentido último de nosso ser bólica, a experiência carregada de sentido
psíquico: o Si-mesmo ou Self. pode ser mais importante, dependendo do tipo
A Psique é um sistema movido por ener- de arte que se produz. O interesse numa obra
gia em moto perpetuo. A energia psíquica é de arte em que o sujeito se apresenta, focali-
entendida como energia vital, um conceito za-se na vivência simbólica referindo-se ao
mais amplo do que a energia psíquica em si. sentido, ou seja, o reconhecimento e valoriza-
É concebida como a totalidade da força que ção pelo Eu de determinada experiência.
anima todas as formas e atividades do siste- Transposto nessa pesquisa, a busca do
ma psíquico. Ela determina a intensidade do Self (a totalidade do ser, a individuação)
processo psíquico e seu valor psicológico. O correspondeu à busca da construção de um

19
cadernos da pós-graduação

corpo vivo, que dança, um corpo, que precisa tentativa de reconstruí-las no movimento e
antes ser esqueleto, encontrar uma base, um partindo de vivências sensoriais, investigativas
centro, sua essência - ainda que seja em chei- e reflexivas sobre o movimento cru/bruto3, não
ro, olfato, num pequeno movimento. burilado, não codificado, gerado em pré-impro-
Observamos que o conceito de proces- visação, pretendemos dilatar essas forças
so de individuação que C. G. Jung propõe ao (subjetivas e do movimento), para ampliar pos-
longo de sua obra traz semelhanças com o sibilidades coreodramáticas.4
processo do corpo em criação. Procuramos Para tanto, consideramos essencial
descrever e destacar a unidade corpo-psique gerar um ambiente orgânico próprio à escuta
indissociável especialmente na dança. Consi- do si-mesmo-corpo, à escuta de si-mesmo-
deramos que em ambos os contextos – cria- psique: ou seja, o laboratório de improvisação.
ção/individuação - o processo não advém de O espaço protegido, Temenos.
um insight milagroso, pelo contrário, são Ao investigar o próprio processo cria-
vivenciais, e autodefiníveis: trata-se de proces- dor identificamos a similaridade com o
sos. hipertexto e as descobertas sobre si mesmo
Seja o criativo ou o individuar-se, é um que acentuam o processo de individuação.
processo dinâmico e, como processo, suben- Conjugadas na linguagem da performance
tende-se o passar de um estágio a outro, im- apontaram para a necessidade de uma inves-
plica em transformação como se vê na obra tigação mais aprofundada sobre o entrelaça-
artística e na busca do Self: é a busca cons- mento dessas três vertentes.
tante e incessante de sublimação. Esse foi o foco de nosso trabalho: in-
Ainda que um recorte, uma interpreta- vestigar o que antecede e permeia à externação
ção ou tradução delimitaria com desvantagem da obra. Identificamos que é algo de nós, mais
um universo vivencial, verificamos que a dan- profundo, onipresente e que a performance,
ça se apresenta como dinâmica de símbolos como unidade, é transcendente5, dado sua
que se atualizam e se alimentam do processo própria natureza de integrar opostos, de objeti-
que os gera, numa interdependência e simul- var o subjetivo. Prescinde de qualquer tradu-
taneidade de criatividade-produção-processo- ção ou representação, posto que é vivência.
concreto-simbólico, num continum de elabo- Prescinde, nesse momento, do imaginário,
ração e reflexão debruçadas no corpo em posto que é sensação.
movimento. Nosso objetivo final foi apresentar uma
Tomamos como impossível descartar síntese de opostos, consistindo basicamente
o criador-criatura: o próprio artista, o dançari- em integrar aspectos sombrios aos luminosos,
no “corpo-ser em processo”. Inquirimos exaus- ou inconscientes aos conscientes.
tivamente a atuação no momento criativo do Nesse paralelo traçado, focamos a si-
corpo-si-mesmo-psique, neologismo que apre- multaneidade de conteúdos de dança e con-
sentamos para designar a unidade entre cor- teúdos psíquicos que emergem do movimen-
po e psique como Self que dança, investiga- to quando investigado. Identificamos uma com-
mos o encontro da medula do movimento, preensão da arte como fruto de dimensões
medula do inconsciente. arquetípicas além das pessoais, não limitan-
Mergulhando em forças interiores que do assim, a arte a uma expressão apenas in-
propositadamente fugissem ao controle, numa dividual.

20
instituto de artes

A questão da simultaneidade de con- temporânea, trazem similaridades com o con-


teúdos nos remeteram ao contexto de hiper- ceito de hipertexto. Encontrando a liberdade de
texto para contextualizar esse saber parado- investigação e de experimentação para
xal e a hiper-realidade na qual, nós artistas, aprofundar experiências intensas, identificamos
trabalhamos: uma realidade hipertextual em materiais configurados como um labirinto in-
significados e expressões. terligado de informações que nos amparou di-
A hiper-realidade pode transformar o ante do desconhecido, seja o desconhecido
processo em algo criativo a ser delimitado sob do inconsciente, seja da expressão que esse
o risco de escorregar num abismo sombrio do conteúdo inconsciente encontra para atualizar-
inconsciente e beirar a não recuperação do se como arte.
caminho de volta à elaboração consciente. No De forma pragmática, pode-se definir
entanto, a performance art contemporânea tem hipertexto como um texto organizado de for-
desafiado limites, não apenas corpóreos, es- ma não linear ou não seqüencial. Souza Filho6
téticos, significantes, mas também limites psí- destaca como característica marcante do
quicos. hipertexto, eventos aninhados no tempo atra-
Pressupondo a arte como totalidade, e vés de elos sincronizados espacial e tempo-
entidade autônoma como alma que se expan- ralmente, contando com a possibilidade e fle-
de em possibilidades dinâmicas e complexas, xibilidade de representar referências arbitrári-
entendemos que a arte, numa linguagem poé- as entre partes quaisquer de um documento e
tica, tem sua própria psique desprendida da pontos de “ancoragem” como marcas para que
psique do artista como entidade e, portanto, o navegante não se perca. Segundo Levy7 “Os
dialoga e sofre interferências do meio. Assim, itens de informação não são ligados linearmen-
não a reduzimos a uma expressão do incons- te, cada um deles, ou a maioria, estende suas
ciente, pois não basta só expressar; isso é conexões em estrela. Navegar em um hiper-
uma parte, mas não é só. Há a elaboração sim- texto significa, portanto desenhar um percur-
bólica e de integração; a questão deste estu- so em uma rede que pode ser tão complicada
do foi tentar identificar como isso ocorre. O que quanto possível. Porque cada nó [link] pode,
acrescenta transforma, para não virar massifi- por sua vez, conter uma rede inteira”.
cação e ser algo único? O autor supracitado aponta ainda não
A extensão da definição de performance apenas às possibilidades de associações,
é muito vasta, exige recortes, e, como o inte- mas também a de dissociação e à metamor-
resse maior foi apenas a mediação entre in- fose perpétua de sentidos. Seria uma rede de
consciente e consciente apresentando-se interfaces.
plasticamente, pretendemos falar da individua- Ratificamos, portanto, a validade da
ção abordando estados alterados de percep- polissemia, associando ou não os links
ção; de alteridades corporais e de consciên- circundantes, trazendo então a possibilidade
cia. de percepção única e de inteireza a cada
fruidor, no nosso contexto o fruidor de si-mes-
mo.
Polissemias: o hipertexto, a performance
e o inconsciente. A performance contemporânea captou
essas características de justaposição de per-
Também observamos em vários auto- cepções e informações, sincronizações tem-
res, que, ao conceituarem a performance con- po-espaciais, de topos e dimensões e a com-

21
cadernos da pós-graduação

plexidade da hipermídia para tornar acessível so ao abismo”. Pressupõe-se que essa ana-
a imaterialidade. E que essas dimensões in- logia demonstra, ainda que grosseiramente, a
terfiram e sofram interferência no momento da grandiosidade da totalidade humana, nunca
apresentação ao público. Dentro da mente tudo captada ou expressa de maneira racional, se-
pode estar ocorrendo sincrônica e simultane- não através de grandes obras de arte.
amente: emoções, sensações, sentimentos, Estabelecendo a analogia hipertexto -
intuições.8 Ou, poderíamos dizer de outra for- processo de individuação, e considerando a
ma: somos naturalmente multimídia. apropriação das práticas estéticas contempo-
Usando como exemplo a web em que râneas da hiperlingüagem, aponta-se que
dados novos (sites, novos links) podem ser performance, hipertexto e o processo de indivi-
inseridos e alterados, causando constante duação são três campos abertos e comple-
modificação, associando à performance art, a xos que têm em comum a não linearidade, a
arbitrariedade, a possibilidade de escolha; sobreposição e a interação dinâmica de seus
como característica de interatividade aponta elementos; é quando o indivíduo se põe em
obviamente à obra aberta. No contexto da busca de arquétipos ou símbolos da totalida-
performance art, ao work in process. de, pelo elemento da unidade na multiplicidade
Como conclusão, apontamos para a (unitas multiplex). 10 É possível constituir o
possibilidade de que o encaminhamento do hipertexto como princípio ordenador desse pro-
processo de criação na performance pode tor- cesso multifocal e complexo. É o caminho do
nar mais consciente a vivência de ampliação devir, de qualidades emergentes. Multifoco
psíquica do indivíduo, através de seu contato ordenador inerente ao sentido buscado e à in-
com dimensões profundas, comungadas com teireza não tangível do ser humano como iden-
a manifestação artística. tificamos em Cohen11: “o mistério da criação,
o desempenho carregado de subjetividades”,
a totalidade humana como vivência sutil no
Estabelecendo links
corpo.
Procurando estabelecer uma analogia As analogias interessaram para esta-
com o paradigma do hipertexto e da hipermídia, belecer uma lógica ordenadora para o que,
quando adentramos essa navegação rumo ao sem pré-definições, ocorre intuitivamente an-
desconhecido, ao inconsciente, e quando abor- tes, durante e após os processos criativos da
damos o tema performance e o conceito de performance.
individuação, o Eu da consciência seria a ân- Ainda que a individuação seja definida
cora para que o performer não se perca. como um processo longo e profundo que
Acessar a inteireza de forma coesa, reconhe- despenda vivências e experiências ao longo
cer que os monstros e mitos estão cada qual de anos; e seja bastante próprio da performan-
em seu “link” específico dentro de nós, é am- ce o instantâneo, o fugaz, vale lembrar a qua-
pliar as possibilidades de integração de nos- lidade e intensidade desses processos, dificil-
sos aspectos subjetivos e as respectivas ex- mente mensuráveis, e que tanto a psique quan-
pressões desses aspectos, ainda que para to o topos da performance não são restritos
tanto, nos permitamos o descontrole, o fascí- pelo espaço-tempo. No caso de ambas, ir além
nio, a desmedida, talvez como Nietzsche9 pro- do espaço e tempo cotidianos é bastante flu-
põe: “toda a concepção do poeta nada mais é ente, não importando tanto aonde se chega,
senão aquela imagem luminosa que a nature- mas o fluxo desse percurso.
za saneadora nos antepõe após um olhar nos-

22
instituto de artes

As analogias nesse momento foram lítica, é a interferência e a simultaneidade de


indicadores da proximidade entre duas experi- seus elementos, é um “não” à fragmentação,
ências fundamentais à humanidade: tomar à cisão, ao reducionismo. Mas, é possível ema-
conhecimento de si mesmo e habilitar-se a ranhar e sobrepor unidades ou mesmo seg-
expressar esse reconhecimento já que nos mentos que pela interação ganham sentidos e
consideramos pré-dispostos à arte. ampliam seus significados iniciais, confluindo
O caráter processual de ambas apon- polissemia e nos remetendo a símbolos de
ta para a possibilidade de serem vistas como experiência mística.
obras abertas que transbordam para além da
realidade do indivíduo e atingem dimensões Imaterialidade do corpo, o moto perpétuo
imensuráveis resvalando e, em casos excep-
cionais, falando por vias sub liminares, atin- A matéria que nos desafia é a matéria
gindo a totalidade do ser. Transmutando sutil, ou a imaterialidade; é a apresentação do
vivências psíquicas na dimensão do corpo: não visível; é a abstração desses conceitos
somos seres humanos em processo. para ordenar e satisfazer nossa necessidade
Somos nós, obras abertas. de explicar a liberdade do caótico.
Ainda estabelecendo analogias e abrin- Estabelecendo links entre as três uni-
do possibilidades investigativas, também ob- dades citadas como suportes imateriais do
servamos que tanto a realidade hipertextual processo criativo aqui proposto, é possível
quanto a performance contemporânea são desenvolver algumas postulações poéticas
combinações únicas de informações, movi- para nutrir a performance da obra que estamos
mento, palavras, imagens, sensações, senti- gerando, levando em consideração o Eu de
dos que garantem a unicidade de sua formali- cada um.
zação artística a cada vez que se manifestam. O corpo em movimento, num estado
O hipertexto e a experiência de tornar- não cotidiano, através de técnicas de sensibi-
se único são processos dinâmicos que criam lização, consagra-se como entidade intensa
sobreposições de suas diversas modalidades da unidade, totalidade mítica, circunscreven-
expressivas provocando tanto a percepção de do símbolos e signos na produção criativa.
inteireza, da totalidade concomitantemente Torna-se espaço de articulação hipermidiática
entre seus aspectos sutis e amplos, quanto e hipertextual de subjetividades. A habilidade
de suas unidades pontuais. maior da performance é manter a individuali-
dade experienciando o grupo num estado de
Isso só é possível porque a arte em si
presença consciente que permeia simultane-
mesma pode carregar toda carga de espiritua-
amente a subjetividade e a poética coletiva.
lidade, consciência, beleza, plenitude e anseios
Isso é possível pelo acesso a si mesmo-cor-
da humanidade. Essas articulações não reve-
po, a si mesmo-psique.
lam nada de novo, tudo já é assim desde sem-
pre. Se pretendermos realizar essa articula- Em laboratórios performáticos, o indi-
ção agora, é para esbarrar nos limites da cria- víduo adquire um estado sensível e dilatado de
ção e investigar as fronteiras que o artista pode atenção sensorial disposto a ir e vir do con-
afrontar. creto para o subjetivo e do subjetivo para o
concreto indefinidamente. Desconstruindo có-
Enfim, o que há em comum entre
digos, num estado de pré-improvisação, man-
performance contemporânea, hipertexto e o
tém-se um constante diálogo entre a dimen-
processo de individuação da teoria psicoana-
são consciente e a do simbólico. É essa habi-

23
cadernos da pós-graduação

lidade de ir e vir que nos distingue das perso- Referências Bibliográficas

nalidades borderlines, ou outro tipo de perso-


COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo:
nalidade ameaçada de perder seu equilíbrio
Ed. Perspectiva – USP, 1989.
consciente. Passando pelo individual o
DAMÁSIO, Antonio R.. O Erro De Descartes – Emoção, Ra-
performer acessa links para o arquetípico. O zão e O Cérebro Humano. São Paulo: Ed. Companhia das
que nos remeteu a uma associação imediata: Letras, 1994.
o processo de individuação se entrelaça ao JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes,
processo criativo, ambos processos que se 2a. ed., 1979.

desenvolvem através de um moto perpetuo. LEVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. O futuro do


pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1993.

LOPES, Joana. Coreodramaturgia: a dramaturgia do movimen-


Vera Cristina Marcellino, Mestre em Artes pelo Instituto de to. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998.
Artes – UNICAMP.
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Pernambuco: Ed.
E-mail: timarcelli@iar.unicamp.br
Bertrand Brasil, 1996.
Orientadora: Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann, Do- NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia, Helenismo
cente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed.,
– UNICAMP. 1999.
E-mail: zimmandrade@terra.com.br
SOUZA FILHO, Guido Lemos de. Sincronismo na modelagem
e execução de apresentações de documentos multimídia.
Notas Tese de Doutorado: Departamento de Informática. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1997.

1. É a função que produz os símbolos – síntese que ultrapas- ZIMMERMANN, Elizabeth Bauch. Integração dos processos
sam a divisão existente entre dois argumentos conscientes interiores no desenvolvimento da personalidade. Tese de
em conflito. Surge um terceiro elemento, criativo e novo. Mestrado: Faculdade de Ciências Médicas. UNICAMP, 1992.

2. ZIMMERMANN, 1992.

3. Estamos nos referindo a um movimento investigado como


“original”, desprovido (supostamente) de códigos pré-esta-
belecidos, apesar de inevitavelmente esses códigos esta-
rem inscritos nos corpos de todos nós.

4. LOPES, 1998. Conceito definido como dramaturgia do movi-


mento.

5. JUNG, 1979, pp. 84, 85. Conceito Junguiano.

6. SOUZA FILHO, 1997.

7. LEVY, 1993.
8. DAMÁSIO, 1994.

9. NIETZSCHE, 1999, p. 64.

10. MORIN, 1996, p. 55.

11. COHEN, 1989.

24
instituto de artes

Performance Art enquanto abordagem sensorial de


investigação do corpo simultaneamente à experiência do
sentido interior

Vera Cristina Marcellino


Elisabeth Bauch Zimmermann

Resumo:
Contextualizamos as práticas e filosofias que envolveram o nascimento e desenvolvimento da
performance art e elaboramos seu desdobramento como apresentação de (S)si mesmo, ressaltando como
mídia o próprio corpo do artista, não enquanto instrumento, mas, enquanto modo de existência.

A performance

Pós-moderna1 e revolucionária por na- Historicamente, no caso da dança, des-


tureza, a performance contemporânea teve tacamos, o espírito revolucionário de início de
sua evolução advinda da modernidade. Talvez século, tendo como precursoras Loie Füller e
não importe a forma como a arte se manifes- Isadora Duncan, que enfatizam o movimento
te, seu impulso inicial parece ser sempre o por si próprio como experiência fundamental
mesmo e tão antigo quanto a humanidade: para a expressão individual do artista, uma vez
parece ser sempre a mesma vontade huma- que o movimento de cada criador só poderia
na de superar-se a si mesmo e encontrar-se surgir de seu próprio corpo e individualidade.3
na obra, comungando com outros as suas Também não é possível ignorar o Tea-
necessidades, vulnerabilidades e sonhos. E a tro da Crueldade de Antonin Artaud que res-
obra surpreende seu criador, ultrapassa-o e ele salta à sua maneira de ver o drama como pos-
pode então, descobrir-se no outro, em outros sibilidade de nos conectarmos com nossa
sonhos, com outras necessidades. sensibilidade, angústias, urgências interiores.
Segundo Eliana Rodrigues2 o pós-mo- Artaud influenciou o trabalho de Peter Brook,
dernismo tomou como prerrogativa básica a Jersy Grotowski, Tatsumi Hijikata no Butô, en-
pluralidade e abandonou completamente qual- tre muitos outros.4
quer unicidade. Precisamente por essa razão O espírito da modernidade (não apenas
seu debate manteve-se problemático, no en- na arte e reforçado na pós-modernidade) re-
tanto, a autora aponta que o debate é rico e força a visão de que o diferencial nas diversas
continua a provocar questões fundamentais manifestações está no indivíduo. Esse espíri-
para o entendimento da arte. São os questio- to de liberdade expandiu todas as possibilida-
na-mentos que nos mobilizam, as incertezas des da arte.
são desafios que estimulam os performers.

25
cadernos da pós-graduação

Como nos aponta Renato Cohen5, a mergulham em tanques cheios d’água e lan-
busca do desenvolvimento pessoal é um dos çam bruscamente filés de carne numa bata-
princípios centrais da arte da performance, lha caótica7.
nela o performer se expõe como pessoa, ele Como podemos identificar em Auslan-
não é um personagem; ficção e realidade brin- der8, não há limites para os excessos, para o
cam numa linguagem dialética, nela, qualquer surrealismo, o grotesco, o violento o inu-sitado,
convencionalismo pode ser rompido. Sua pro- incluindo temas feministas, multicul-turais, de
dução é por natureza voltada ao imagético, não sexualidade e de alteração da própria imagem
verbal, tendo como suporte temas existenci- cujo exemplo extremo, como crítica à obses-
ais e processos de construção mais irracio- são feminina à industria estética/cosmética,
nais. Na performance há espaço para a im- são as performances da francesa multimídia
provisação, mas são extensamente elabora- Orlan, que se submete a uma série de cirurgi-
das, em seu princípio rompe convenções, for- as plásticas alterando a própria imagem e, uti-
mas e estéticas. Tendendo à multilinguagem. lizando o set cirúrgico como parte da perfor-
Nos anos 60 vários artistas buscaram mance, inclui textos, música, dança, figurino
conceituar essas tendências de multilingua- médico. Apenas com anestesia local ela su-
gem. “Joseh Beuys as chamou de Aktion, pervisiona e dirige e transmite on line.
priorizando a ação; Wolf Vostell de de-collage, Na dança destacaria os orientais San
prevalecendo a fusão. Claes Oldemburg usa Kai Juk9, Min Tanaka10. E Saburo Teshigawara
pela primeira vez o termo performance, valori- que desenvolve um trabalho meditativo e si-
zando a atuação”.6 lencioso dentro de um cubo com paredes bran-
Na dança isso se daria na transferên- cas; sua performance é pontuada por trechos
cia da coreografia para o processo de criação de música techno.
que passa a ser aparente como a improvisa- Para completar a versatilidade dessas
ção na dança do norte americano Steve Paxton expressões, coletamos na obra de Huxley and
que desenvolveu a contact improvisation, téc- Witts11 que há ainda Elizabeth Compte, rebel-
nica de improvisação que influenciou a cria- de extremamente oposta ao teatro comercial
ção e processos de inúmeros bailarinos em Norte Americano, que trabalha essencialmen-
diversos continentes, incluindo bailarinos bra- te com temas como a fragmentação e
sileiros. desconstrução da narrativa de forma similar a
Outros exemplos chegam a ser violen- Bob Wilson, com quem Renato Cohen teve
tos como Stuart Brisley - Moments of Decision/ contato; ela participou do grupo de Richard
indecision, 1975 - uma catarse individual como Schechner entre 1967 e 1980.
um agressivo protesto público contra a políti- Seria uma gafe não comentar as brasi-
ca da guerra fria, performance realizada na leiras que não só atuam na vanguarda da arte
Alemanha, Grã Bretanha e Áustria; ele pinta o contemporânea quanto estão inseridas no
corpo de preto e branco e carimba as paredes ambiente universitário, instigando reflexões e
com esse corpo pintado e nu. E La Fura dels debates, publicando e atuando no ensino e na
baus, - suz/o/suz, 1991 - usa barris de óleo, produção artística; são elas: Rosangella Leote
cilindros de gás, caixa registradora, máquina do grupo Sciarts, da PUC-SP, e Maria Beatriz
de lavar roupas como produtores de ruído para de Medeiros, do Corpos Informáticos, da UnB.
um explosivo trabalho no qual os performers Ambas contribuem para uma conceituação da
são suspensos por armações presas ao teto; performance art que aproxima a vertente de

26
instituto de artes

seus trabalhos ao próprio conceito de hiper- çar, a cantar. O gesto significativo, não o gesto
texto em que a participação do “espectador” é comum, é para nós a unidade elementar de ex-
fator de interação e transmutação da obra. pressão. Procurando a quintessência dos sím-
bolos pela eliminação daqueles elementos do
Nos anos 90 a performance é uma im- comportamento que obscurecem o impulso puro.
portante referência, não apenas na história da Se a situação é brutal, se nos desnudamos e
arte, mas também em muitas das últimas tra- atingimos uma camada extraordinariamente re-
jetórias da cultura contemporânea, seja na fi- côndita, expondo-a, a máscara da vida [diária]
losofia, na fotografia, na arquitetura, na antro- se rompe e cai.” 15
pologia ou na midialogia, seja a performance
autobiográfica, monólogo, ritual, pessoal ou na A essência desse método que busca o
dança teatro, os artistas unem a psicologia à gesto significativo, a quintessência dos sím-
percepção, o conceito à prática, o pensamen- bolos, essa ousadia, casa-se perfeitamente e
to à ação; evocam a participação ativa, uma
contribui para inaugurar os novos conceitos de
colaboração física na construção de idéias.12
arte que vão se apresentando ao longo da pós-
modernidade que se instaura no séc. XX.
Resgatar o arcaico no contemporâneo No prefácio de Em busca de um teatro
pobre Peter Brook aponta:
É fundamental a nova forma de pensar
o teatro que se consolida no período dos anos “Ninguém investigou a natureza e a ciência de
60 e 70 a partir do trabalho de Jerzy Grotowski seus processos (teatrais) mental, físico-emocio-
e de Peter Brook para demonstrar o nais tão profunda e completamente quanto
envolvimento do artista na obra de arte13, apre- Grotowski. O trabalho dessa natureza só é livre
senta: se baseado na confiança, e a confiança para
existir não pode ser traída. O trabalho é essenci-
Nosso método não é dedutivo, não se
almente não verbal. Ele está criando uma forma
baseia em uma coleção de habilidades. Tudo de culto... É um relacionamento unindo o privado
está concentrado no amadurecimento do ator, e o público, o íntimo e a multidão, o secreto e o
que é expresso por uma tensão levada ao ex- aberto, o vulgar e o mágico.
tremo, por um completo despojamento, Seu trabalho nos deixa um desafio diariamen-
desnudamento do que há de mais íntimo – tudo te.” 16
isso sem o menor traço de egoísmo ou de auto
satisfação. O ator faz uma total doação de si- É Peter Brook também quem nos apre-
mesmo. Esta é uma técnica do transe e de senta as bases para elaborarmos conceitos
integração de todos os poderes corporais e como o da linguagem performática que pre-
psíquicos do ator, os quais emergem do mais tendemos utilizar, fundamentada nos extremos
intimo do seu ser e do seu instinto, explodindo da experiência interior. Assim, a expressão
numa espécie de transiluminação14. dramática torna-se apenas conseqüência des-
Jerzy Grotowski apresenta seu méto- sa vivência como exercício de favorecer a flu-
do resgatando a essência dos ritos que envol- ência entre o invisível e este invisível que con-
ve o indivíduo por completo, o que definirá como tém todos os impulsos escondidos do homem,
teatro pobre: atualizar-se na obra.
Nas entrelinhas de sua obra Peter Brook
“O homem, num elevado estado espiritual usa nos apresenta vários conceitos que se conso-
símbolos articulados ritmicamente, começa a dan- lidam na performance contemporânea e que

27
cadernos da pós-graduação

igualmente nos nutrem e complementam apon- ampararam diante do desconhecido, fosse o


tando-nos que teatro vivo é redescoberta. O desconhecido do inconsciente, ou da expres-
teatro sagrado trabalha com o invisível e este são que esse conteúdo inconsciente encontra
invisível contém todos os impulsos escondi- para atualizar-se como arte.
dos do homem.17
Esses aspectos mais intensos encon-
tram liberdade na linguagem da performance Skenos
que Renato Cohen18 descreve como arte da Do grego: skénos: o corpo humano,
experimentação; arte que resgata a liberdade enquanto alma que aí habita temporariamen-
da criação, sendo uma arte de transcendência, te. De certa forma, o “tabernáculo da alma”, o
não é, na sua essência, uma arte de fruição, é invólucro da Psyché (Psique). A raiz gerou,
uma arte de intervenção, transformadora em igualmente, a palavra skénoma que significa,
vários sentidos. Podemos chamá-la de trans- também, o corpo humano.20
formadora de idéias, do público, do próprio
O que nos interessa nesses eventos é
performer ou da experiência e vivência de arte.
que o corpo humano torna-se uma forte mídia
Havendo assim, uma evolução da represen-
da arte. Ainda baseados em Cohen, nessas
tação, para a apresentação.
práticas estéticas, não só o próprio corpo do
Ainda é esse autor quem define a lin- artista, sua história, suas peculiaridades são
guagem da performance que abordamos em fonte e suporte para a sua arte; o inconsciente
nossa investigação e experimento como pro- em todos os contextos e dimensões alimenta
dução inaugural e, pelas artes de fronteira in- a criação e as possibilidades de mediação. O
corpora códigos artísticos que utilizam narra- momento da criação é valorizado e pode ser
tivas superpostas a partir de emissões estendido ao momento da apresentação. A
polifônicas e polissêmicas, na ordem da obra aberta é legitimada, o work in process é
sincronicidade e da pluralidade, operando nes- uma estética que surge dessas práticas.
sa trama, linguagens que transitam pelo texto,
Veremos também em Medeiros21 que
imagem, pelas emissões subliminares, pelo
há eficácia nesses procedimentos quando há
texto/partitura possibilitando a fruição e
interação reconfigurada das partes artista-
cognições ambivalentes. Nessa operação cri-
obra-público – as interfaces da performance -
ativa, constitutiva de novas linguagens e nar-
ressaltando o aspecto único e não reprodutível
rativas, são incorporados procedimentos
da ação corporal. Considera que a linguagem
axiomáticos do happening e da performance
artística performance, modifica o conceito de
como o uso do work in process, a absorção
arte e redimensiona o teatro por envolver ele-
do “erro” e do acaso, da caoticidade e das vi-
mentos estéticos novos como o corpo do ar-
cissitudes cotidianas, da produção mutante
tista sendo objeto da arte, a efemeridade da
que carrega o efêmero élan vital subvertendo
ação, a participação, não só intelectual e
a representação e o apriorismo próprios do
emocional, mas física do público que ela cha-
contexto teatral.19
ma de interator. Assim, como cita Medeiros22,
Encontrando a liberdade de investiga- toda “obra aberta, como quer Umberto Eco
ção e de experimentação para aprofundar ex- seria performance”, reflexão interessante, pois
periências intensas, coletamos em cada au- expande o campo da performance e valoriza a
tor o material que nos configura um labirinto participação intelectual do espectador como
interligado de informações, elementos que nos parte da obra, enquanto elemento estético da

28
instituto de artes

obra de arte. São as dimensões somáticas, diante do público, mas o que Philip Auslander25
físicas, cognitivas, emocionais e espirituais que considera é que a ação demonstra o self. Ou
estão se reconfigurando. É o conceito mesmo seja, a performance permite simplesmente que
de dimensão que está, aqui, sendo questiona- ele (o ator) seja ele mesmo. Estaremos con-
do. siderando Self, como um encontro maior que
O corpo em movimento enquanto mídia o reconhecimento de si mesmo, seria um en-
da performance, através de arranjos de movi- contro único e integrado com aspectos pro-
mentação, diferentes estados de corporali- fundos.
dade, diferentes percepções de espacialidade, Levantando várias possibilidades, espe-
dramatizações de universos simbólicos, um ramos tornar clara nossa proposta para en-
processo que, ao se atualizar, denuncia sem- contrar na liberdade, a luz. Na sobreposição
pre um estado inacabado, ainda que traga um não o fragmento, mas a integração; ou ape-
senso de plenitude e um estado de devir si- nas a oportunidade de que cada um seja
multâneos; torna-se elementar considerar que Si-mesmo.
a individuação acontece no corpo, não que este
seja instrumento, ou tabernáculo, mas é a en-
tidade única e existencial daquilo que somos. Intérpretes de nós mesmos
É a totalidade na unidade. Esse é o topos23 que
pretendemos atingir. Intérpretes de nós mesmos, estamos
sempre em performance, sempre em proces-
Ao articular o corpo, às emoções, às
so de nos individuarmos. Nosso corpo e nos-
imagens, ao som, ao mesmo tempo em que o
sa arte vão revelando aos poucos tudo aquilo
movimento é buscado em sua forma mais
em que estamos nos tornando. Sem códigos
crua, ele borbulha complexo, transbordando
que reduzam ou rotulem, queremos o mítico,
elementos que se alimentam mutuamente.
não a massa.
Identificamos que apresentar os desa-
A hipermídia, não o mass media.
fios e enunciar imagens interiores na gestua-
lidade, o mítico e o arcaico se fundem no con-
temporâneo, indicando que memória corporal
Pré-improvisação
e memória psíquica não se restringem ao tem-
po factual, mas sim vivenciam o tempo mítico O momento que antecede a improvisa-
trazendo em si seus registros arquetípicos, e ção é geralmente uma preparação do corpo e
ancestrais manifestos em formas pós-moder- da alma para que haja uma aproximação mais
nas ou mesmo atemporais. estreita entre ambos, tão estreita que a expe-
riência simbólica ocorra no corpo e o corpo,
ampliado em sua sensibilidade, percebe-se e
Just be your self24 existe como alma. A esse momento de prepa-
ração, chamamos de pré-improvisação.
A questão do self ou Self é a problemá-
tica central da performance. A concepção dos Trata-se de gerar um ambiente de fluxo
diferentes diretores podem divergir. Ora con- de conteúdos a serem conscientemente evo-
siderando o self (consciência, ego) do ator cados, inconscientemente vivenciados e es-
como o logos da performance, ora que o self teticamente manifestos que o chamamos de
do ator procede do grupo e de sua presença espaço sagrado, ou temenos.

29
cadernos da pós-graduação

Determinamos que a pré-improvisação belecemos uma relação desses processos,


seria um mergulho em forças interiores que apontando suas interfaces.
fujam ao controle, numa tentativa de trazê-las Nossa pesquisa pretendeu demonstrar
objetivadas no movimento. Não pretendendo, que é a si mesmo que o performer gestual
obviamente com essa objetivação qualquer tra- apresenta ou representa, interpreta ou inter-
dução ou manipulação dessas forças, mas pela, e que isso ocorre corporalmente,. Como
apenas amplificá-las no movimento. nos ressalta Sandra Rey: “A arte e a vida,
Considerando a experiência sensível do mantendo-se aos seus olhos indissociáveis,
movimento uma oportunidade para a elabora- fazem com que o discurso da obra e a história
ção interna e dessa elaboração desenvolver o pessoal do artista encontrem-se sempre es-
conhecimento das próprias habilidades e a treitamente imbricados”.26
expansão de um estado de consciência, que,
por sua vez, amplia o repertório expressivo do
artista. Vera Cristina Marcellino, Mestre em Artes pelo Instituto de
É nesse aspecto que abordamos a ima- Artes – UNICAMP.
E-mail: vera.marcellino@gmail.com
gem: o corpo pode vivenciar conteúdos sim-
bólicos e psíquicos. O encaminhamento do Orientadora: Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann, Do-
cente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Ar-
processo de criação na performance torna tes – UNICAMP.
consciente a vivência de ampliação psíquica E-mail: zimmandrade@terra.com.br
do indivíduo, através de seu contato com di-
mensões profundas, comungadas com a ma-
nifestação artística. Notas
O desafio do performer é então, reali-
zar essa transposição, repetindo: apresentan- 1. Ou “hipermoderna” como defende Gilles Lipovetsky (PERES,
2004, p. 5-6.), que propõe a pós-modernidade como uma
do sua síntese de opostos, que é basicamen- exacerbação da modernidade portanto “hipermodernidade”.
te, integrar seus aspectos sombrios (incons-
2. RODRIGUES, 2000, p. 32.
cientes) aos seus aspectos luminosos, não
3. MEDEIROS, 2000, p. 125.
como contrário de sombrio, mas transcenden-
4. HUXLEY and WITTS, 1996, pp. 25, 26.
te e renovador.
5. COHEN, 1989.

6. Idem, p. 46.
Instante 7. GOLDBERG, 1998, pp. 53 e 72.

8. AUSLANDER, 1997.
Segundo os apontamentos levantados,
fomos construindo e tornando consistente uma 9. GOLDBERG, op. cit, p. 160.

percepção de que, pelo momentâneo que car- 10. Idem, p. 161.


rega diversos elementos, pode-se atingir ex- 11. HUXLEY, op. cit., p. 235.
periências profundas que são dinâmicas e 12. GOLDBERG, op. cit., pp. 9, 10.
apontam para o único e total, ou seja: a per- 13. GROTOWSKI, 1971, p. 2.
cepção do Self. A possibilidade de Individuação.
14. Palavra no texto original do tradutor.
Sem um olhar hierarquizado de que 15. GROTOWSKI, op. cit.
uma grandeza (performance) depende ou ins-
16. Idem.
pira a outra (processo de individuação). Esta-

30
instituto de artes

17. Ibidem, p. 49.


18. COHEN, op. cit., p. 46.

19. Idem, 1996, p. 67.

20. MEDEIROS, op. cit.

21. Idem, p. 32.


22. Ibidem.

23. A palavra topos será utilizada em substituição a espaço ou


lugar, no contexto que COHEN, op. cit., p. 116, a utiliza, como
um espaço filosófico, psicológico, espaço de relações, um
espaço próprio da arte.

24. AUSLANDER, op. cit.

25. AUSLANDER, op. cit., pp. 29, 30.


26. BRITES, 2002, p. 123.

Referências Bibliográficas

AUSLANDER, Philip. From acting to performance – essays in


modernism and postmodernism. London and New York:
Routledge, 1997.

BRITES, Blanca e TESSLER, Elida (organizadoras). Porto Ale-


gre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2002.

BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis, RJ: Ed. Vo-


zes, 1970.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo:


Ed. Perspectiva-USP, 1989.

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre . Trad.


Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Ed. Brás, 1971.
GOLDBERG, Roselee. Performance – Live art since the 60s.
Foreword by Laurie Anderson. London: Ed. Thames and
Hudson, Britsh Library, 1998.
HUXLEY, Michael and WITTS, Noel. The twentieth-century
performance Reader. London: Routledege, 1996.
MEDEIROS, Maria Beatriz de. Bordas rarefeitas da linguagem
artística performance suas possibilidades em meios
tecnológicos. Brasília: Revista Transe, 2000.
PERES, Marco Flamínio. O Caos Organizado – Gilles Lipovetsky,
entrevista ao caderno MAIS!, Folha de São Paulo, 14 mar.
2004.

RODRIGUES, Eliana. “Dança e pós modernidade”, in Temas


em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São
Paulo: Annablume, 1ª ed., 2000.

31
32
instituto de artes

A Produção Plástica e a Psiquiatria

José Otávio Motta Pompeu e Silva


Lucia Reily

Resumo:
Este artigo faz parte da dissertação de mestrado A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir
Mavignier encontram as Imagens do Inconsciente, defendida pelo autor no Programa de Pós-Graduação
em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP, com orientação da Profª. Drª. Lucia Reily. Desde o século XIX
a produção plástica dos alienados despertou interesse em psiquiatras e artistas da época. Neste artigo é
feita uma breve revisão bibliográfica sobre a relação entre arte e produção plástica de alienados até a
primeira metade do século XX, na Europa e no Brasil.

Desde o século XIX, a psiquiatria se in- XX. Esta inovação alavancou uma sucessão
teressava pela produção plástica dos aliena- de movimentos e de novos interesses dentro
dos; em diversos manicômios ou hospitais do campo da arte e também da psicologia.
psiquiátricos promoveram-se suas produções, O termo Zeitgeist foi definido pelo pen-
colecionaram-nas e estudaram-nas. Segundo sador Johann Wofgang von Goethe como um
MacGregor, surgiram as primeiras coleções de conjunto de opiniões que dominam um mo-
que se tem notícias: a do Bethlem Mental mento específico da história e que, sem que
Asylum de Londres e do Crichton Royal Hos- nós nos apercebamos, determinam o pensa-
pital da Escócia, ambas no início do século XIX. mento de todos os que vivem num determina-
No final do século XIX, começam a surgir obras do contexto2. Este termo, presente também na
de psiquiatras, como o livro Genio e Follia es- historiografia, manteve a grafia e foi incorpora-
crito por Lombroso, em 1882, analisando a do a diversas línguas como o inglês, o francês
relação entre a criação artística e a doença e o português; nesta última encontramos no
mental. No hospital de Heildelberg, sob a dire- Dicionário Houaiss a significação para o vocá-
ção de Kraepelin, inicia-se uma importante bulo Zeitgeist de espírito de uma época deter-
coleção de obras configuradas por doentes minada; característica genérica de um perío-
mentais1. Entre os psiquiatras que se interes- do específico.
saram pela arte dos insanos também pode-
O interesse pelo primitivismo também
mos citar: Mohr, Simon, e Prinzhorn.
foi marcante por volta de 1900 e transformou
Talvez o ponto mais importante que o pensamento intelectual e estético da época.
marcou o Zeitgeist, espírito desta época, foi o Vários artistas viajaram para terras distantes
início dos estudos de Freud sobre o inconsci- e foram influenciados por novas culturas, no-
ente, ainda no século XIX. O advento da psica- vas formas de ver o mundo e de produzir plas-
nálise mudou a forma de fazer arte no século ticamente. Picasso ficou fascinado com a arte

33
cadernos da pós-graduação

tribal. Kandinsky ficou maravilhado com o que


hoje chamamos de arte naïf. Paul Klee estu-
dou a arte das crianças. A obra de Prinzhorn
Bildnerei der Geisteskranken reflete estes en-
contros ao justapor e comparar a obra de pa-
cientes psiquiátricos com a produção de cri-
anças, artistas naïf, arte primitiva e a obra de
expressionistas. Este livro chegou às mãos de
vários artistas como Paul Klee, Max Ernst, Paul
Eluard, Jean Arp, André Breton, Jean Dubuf-
fet.3
Dubuffet cunhou do termo l’Art Brut e
afirmava que arte bruta não era só a arte dos
insanos e sim uma arte espontânea, inventi- Fig. 2: Auguste Natterer, The Miraculous Shepherd, c. 1919.
Lápis e guachê, sobre papel cartão com aquarela. Prinzhorn
va, que foge dos padrões culturais e do mun- Col. , Heidelberg. Fonte: Peiry, 2001, p. 28
do das artes, feita por pessoas visionárias.
Nessa mesma época os surrealistas,
Paul Klee confirma este processo de
convencidos de que o inconsciente poderia
diálogo entre a produção plástica de sua épo-
enriquecer o processo de criação artística, cri-
ca com a produção plástica de loucos:
avam várias estratégias de produção plástica
a partir da livre associação. Marx Ernst usou o
automatismo na criação de duas técnicas, a “Na opinião dos médicos, minhas pinturas são,
basicamente o trabalho de um doente. Certa-
colagem e a frotagem e foi diretamente influ-
mente você conhece o excelente livro de
enciado pelo trabalho de August Natterer, pu-
Prinzhorn, Bildnerei der Geisteskranken. Nós
blicado no livro de Prinzhorn que Ernest usou mesmos conseguimos nos convencer disso.
como inspiração para fazer seu Oedipus que Veja: ali está Klee no seu melhor! E aqui e ali
foi capa de uma edição especial da revista também! Veja esses temas religiosos: existe uma
Cahiers d´art em 1937.4 profundidade e um poder de expressão que eu
jamais conseguirei atingir. Arte verdadeiramen-
te sublime. Uma visão puramente espiritual...
Crianças, os loucos, e os primitivos preservaram
- ou redescobriram - a habilidade de enxergar. E
o que eles vêem, e as formas que utilizam para
mim são as mais valiosas confirmações.” 5

Nise da Silveira 6 classifica o livro


BILDNEREI DER GEISTESKRANKEN, de
Prinzhorn como monumental e comenta: “que
uma pulsão criadora, uma necessidade de
expressão instintiva, sobrevive à desintegra-
ção da personalidade”.
No livro The discovery of the art of the
insane, o autor MacGregor realiza uma inves-
Fig. 1: Marx Ernst, Oedipus, para uma edição especial de
Cahiers d´art, 1937. Collage tigação histórica e cultural sobre a produção

34
instituto de artes

artística do doente mental, afirmando que as A primeira referência de que se tem


manifestações plásticas dessa população não notícia no Brasil do termo psicanálise foi de
acontecem num vácuo, e sim em determina- Juliano Moreira no ano de 1899, nos primórdios
dos contexto e momento históricos. “Sua pro- da aplicação desta técnica psicológica no
dução pode ser identificada ou ignorada, valo- mundo. O interesse pela produção plástica
rizada ou desprezada, conforme as concep- dos alienados surgiu com Osório César, em
ções correntes sobre o que é arte e o que é 1923, quando ele iniciou seu trabalho como
loucura.” 7 estudante interno do Hospital do Juqueri, em
Valorizada pelos artistas contemporâ- Franco da Rocha, São Paulo. No ano de 1925,
neos, a produção plástica dos insanos foi utili- o paraibano Osório Thaumaturgo César reali-
zada pela máquina de propaganda do regime zou o primeiro estudo sistemático sobre arte
nazista na Alemanha para difundir o conceito e loucura no país: A Arte Primitiva dos Aliena-
de eugenia e de degenerência das pessoas dos. No seu estudo de 1929: A Expressão Ar-
acometidas por algum tipo de doença mental.8 tística nos Alienados, prefaciado pelo intelec-
Joseph Goebbels organizou em 1937 a expo- tual Cândido Motta Filho, César realiza um
sição Entartete Kunst (Arte Degenerada) que estudo psicanalítico de desenhos, pinturas,
foi inaugurada em Munique e percorreu nove esculturas e poesias de pacientes do Hospital
outras cidades na Alemanha e na Áustria.9 do Juqueri; além de um histórico de outros
estudos sobre a expressão plástica dos alie-
nados.10 Também afirma que a arte para ser
genial tem que ser livre.
O alagoano Arthur Ramos, colega de
turma de Nise da Silveira, defende em 1926 a
tese Primitivo e Loucura11, onde tece algumas
relações entre a arte, o pensamento primitivo
e a alienação mental, utilizando escritos de
Freud e Jung.
Constam outras experiências isoladas
como a de Ulisses Pernambucano e posteri-
Fig. 3: Cartaz comparando obras de arte com doentes –
Exposição Arte Degenerada ormente em 1946 nasce o interesse da psi-
quiatra Nise da Silveira pela obra desenvolvida
no ateliê de pintura do Centro Psiquiátrico Na-
cional que deu origem ao Museu de Imagens
do Inconsciente em 1952 e que hoje tem mais
de 300 mil obras tombadas pelo Conselho do
Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro.
Antes disso, em 1917, ocorreu uma
polêmica entre Monteiro Lobato e Anita Malfatti.
Lobato em artigo intitulado Paranóia ou Mistifi-
cação?, compara os trabalhos apresentados
por Anita Malfatti com a produção de internos
de hospitais psiquiátricos. E vai além: afirma
que as obras de Malfatti não eram tão since-
Fig. 4: Fila de entrada para exposição Arte Degenerada. ras quanto as obras produzidas no interior dos

35
cadernos da pós-graduação

hospícios. Esta afirmação indica o conheci- FERRAZ, M. H. C. T. Arte e Loucura: limites do imprevisível.
São Paulo: Lemos Editorial, 1998.
mento do escritor paulista sobre os modernos
MACGREGOR, J. M. The discovery of the art of the insane.
estudos psiquiátricos da produção plástica dos
Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1989.
alienados.12
MELLO, L. C. In: MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO. Imagens
do Inconsciente: catálogo. São Paulo: Associação Brasil
500 anos artes visuais, 2000.

José Otávio Motta Pompeu e Silva, Terapeuta Ocupacional, MELO JUNIOR, W. Ninguém vai sozinho ao paraíso: o percur-
Mestre e Doutorando em Artes pelo Instituto de Artes – so de Nise da Silveira na psiquiatria no Brasil. Tese de Dou-
UNICAMP. torado em Psicologia – Instituto de Psicologia da Universida-
E-mail: jotavios@terra.com.br de Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, 2005.
PEIRY, Lucienne. Art Brut. Paris: Flammarion, 2001.
Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Reily, docente credenciada
junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de REILY, Lúcia. Armazém de imagens: ensaio sobre a produção
Artes – UNICAMP. Arte-Educadora e Doutora em Psicologia. artística de pessoas com deficiência. Campinas, SP: Papirus,
Docente junto a FCM – Faculdade de Ciências Médicas – 2001.
UNICAMP.
SILVEIRA, Nise. Mundo das Imagens. São Paulo: Editora Ática,
E-mail: lureily@terra.com.br
1992.

Notas

1. MELLO, L. C., 2000, p. 35.

2. BROZEK, 2002. pp. 103-109.


3. PEIRY, 2001, pp. 12-13.

4. Idem, pp. 31-32.

5. Idem, p. 30 – tradução nossa.

6. SILVEIRA, 1992. p. 88.


7. MACGREGOR, apud REILY, 2001, p. 37.

8. BEIGUELMAN, 1997.

9. PEIRY, op. cit., p. 33.

10. FERRAZ, 1998, p. 46.


11. MELO JUNIOR, 2005, p. 55.

12. FERRAZ, op. cit., p. 37.

Referências Bibliográficas

BEIGUELMAN, B. Genética, Ética e Estado. Jornal Brasileiro


de Genética, Campinas, v. 20, n. 3, set. 1997. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=
S0100-84551997000300027&lng=en&nrm=iso> Acesso em:
19 maio 2006.

BROZEK, J.; MASSIMI, M. (ed.). (2002) Curso de Introdução à


Historiografia da Psicologia: Apontamentos para um curso
breve - parte segunda: Da Descrição à interpretação. Dis-
ponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/arti-
gos02/brozek02.htm>. Acesso em: 25 fev 2004.

36
instituto de artes

Critérios de legitimação utilizados pela crítica de arte brasileira


frente aos trabalhos plásticos de pacientes psiquiátricos: o
estado patológico do sujeito criador

Tatiana Fecchio Gonçalves


Lúcia Reily

Resumo:
Nos textos da crítica de arte brasileira, analisados entre os anos de 1933 a 2003, aparece a
referência aos trabalhos de pacientes psiquiátricos de pelo menos duas formas. Uma delas caracterizando
formalmente esta produção e a outra argumentando mais explicitamente sobre a legitimação ou não deste
conjunto de trabalhos no campo da Arte Erudita. Foi desta segunda forma que foram retirados os critérios
aqui apresentados, através da categorização dos argumentos da crítica contidos em textos e catálogos
deste período, embora a caracterização mais genérica seja de interesse e complementar a esta.

A produção de trabalhos plásticos por ções, que elaboram metodologias e programas


pacientes psiquiátricos, independentemente da de atuação em oficinas de artes em hospitais
técnica utilizada, é propiciada de diferentes psiquiátricos ou hospitais-dia ou mesmo em
formas e seu fomento é função da Instituição clínicas numa abordagem arteterapêutica.
e do período no qual se inscreve. Este artigo, resultado parcial da Pes-
A bibliografia existente, relativa a estas quisa de Mestrado concluída em 2004, junto
produções, é variada e apresenta diversas ao Programa de Pós-Graduação em Artes do
abordagens. Algumas intencionam a interpre- Instituto de Artes - UNICAMP, intenciona, dife-
tação dos significados destas produções so- rentemente das abordagens descritas acima,
bre diversos pontos de vista. Há publicações entender de que forma a crítica de arte contri-
que abordam a questão de forma terapêutica, buiu para estabelecer parâmetros e critérios
outras que abordam a relação entre a vida do que fazem com que um trabalho realizado por
paciente e sua produção construindo relações pacientes psiquiátricos seja, em determinados
biográficas ou que se debruçam sobre elemen- momentos da história atual brasileira, incluído
tos plásticos ou subjetivos das próprias pro- ou não no sistema erudito de Arte, legitimado
duções. Algumas pesquisas se trabalharão ou não, neste sentido, como trabalho artístico
com discussões mais específicas em estudos e não apenas expressivo.
de caso, processos mentais dos pacientes ou Não se encontrará aqui a questão da
documentação histórica. Existem ainda traba- subjetividade destes sujeitos, da desrazão,
lhos que comentam e discutem propostas de nem a discussão sobre a relação entre arte e
atividades adotadas em determinadas institui- loucura; tampouco discussões sobre resulta-

37
cadernos da pós-graduação

dos clínicos das atividades plásticas. Serão 2. Critérios relacionados à questão da sub-
tratados diretamente os argumentos de sujei- jetividade e do inconsciente;
tos específicos –, socialmente reconhecidos 3. Critérios relacionados à questão da in-
como proferidores de conceitos sobre a Arte, tenção de se estar fazendo arte;
os Críticos e Curadores – em textos que apro- 4. Critérios advindos do confrontamento
ximam ou distinguem trabalhos plásticos tidos, ou da relação com a arte oficial;
na própria História da Arte inicialmente como 5. Critérios advindos da relação de recep-
Informais a um outro grupo tido como Erudito. ção dos trabalhos e
Na verdade, abordará o limiar entre o que é ou 6. Critérios advindos de características in-
não é considerado Arte, implicando inevitavel- trínsecas destes trabalhos.1
mente em quem profere este discurso e de
que forma o conduz.
1. CRITÉRIOS RELACIONADOS AO
ESTADO PATOLÓGICO DO SUJEITO
No Brasil, a primeira exposição na qual
CRIADOR
se encontram expostos trabalhos de pacien-
tes psiquiátricos se deu no ano de 1933 com a
Exposição, “Semana dos Loucos e das Crian- Este critério se constitui de quatro ter-
ças” no Clube dos Artistas Modernos – CAM, mos de argumentação:
São Paulo, e que foi organizada por Flávio de 1. Não é arte pois deixa transparecer o es-
Carvalho. A partir desta, diversas outras expo- tado doentio do sujeito criador;
sições aconteceram, ora em espaços não le- 2. Não é arte, pois o sujeito criador não te-
gitimados de Arte, como os Hospitais Psiquiá- ria intenção, consciência da sociedade
tricos, ora em espaços denominados oficiais, na qual vive, sendo deficiente de inteli-
como Galerias ou Museus. Independentemen- gência e razão;
te, há por traz destas exposições sempre um 3. É arte pois, como toda a obra de arte,
sujeito, crítico ou curador que fundamenta, jus- advém de impulsos interiores (para to-
tifica e apresenta tais eventos e cujas falas con- dos perene ou momentaneamente exis-
tém inevitavelmente critérios que legitimam ou tentes);
não as produções em questão, de diversas 4. É arte, independentemente do estado
maneiras. patológico do sujeito criador, e não arte
Foi a partir da leitura desta crítica en- patológica.
volvida diretamente nas exposições nas quais
estavam presentes trabalhos plásticos de pa- Propositalmente foi evitada a repetição
cientes psiquiátricos – em textos, livros, jor- das citações hierarquizando sua classificação
nais e catálogos – que se identificou e se em função da contundência e clareza do ar-
categorizou os critérios utilizados para a gumento ou pela exclusividade deste. A apre-
legitimação desta produção. Ao todo foram sentação dos argumentos foi feita respeitan-
identificadas seis categorias de argumentos, do-se a cronologia das fontes.
sendo que neste artigo se abordará a primeira
delas. • Não é arte pois deixa transparecer
o estado doentio do sujeito criador, sendo
1. Critérios relacionados ao ESTADO PA- obras casuais, inconscientes.
TOLÓGICO DO SUJEITO CRIADOR;

38
instituto de artes

Este tipo de argumentação foi encon- Num outro trecho deste mesmo Jornal
trado na fala de Campofiorito depois da expo- escreve:
sição de 1949 na qual foram expostos os tra-
balhos dos internos do Hospital D. Pedro II, no “o artista não é um trabalhador inconsciente sem
Salão da Câmara dos Vereadores. A esta ex- saber por que nem para que, como um tolo, sem
posição seguiu-se um grande debate entre consciência da sociedade em que vive, nem
Mário Pedrosa (jornal: Correio da Manhã) e tampouco criatura capaz de conscientemente
Quirino Campofiorito (jornal: Diário da Tarde). aceitar o ridículo entre os seres semelhantes.” 4

Campofiorito entendia que esta exposi-


ção poderia apenas “ter valor como ‘expres- Subentendendo, portanto, que o traba-
são científica’: observando-se os trabalhos lho de um paciente psiquiátrico seria o de um
expostos salta-lhe à vista o estado doentio que tolo, entendendo-se por isto provavelmente a
se acha inscrito na superfície dos mesmos.” 2 inadequação social, inconsciente dos motivos
Assim por uma caracterização determinada pelos quais produz e que aceitaria o papel de
que seria nitidamente patológica já se teria para ser um ‘ridículo’ na sociedade. Provavelmente
ele configurado motivo suficiente de desmere- aqui Campofiorito nomeie de ‘ridículo’ o com-
cimento dos trabalhos. portamento não adequado destes sujeitos no
convívio social. De qualquer forma interpreta
A este estado descrito de patologia se
que a consideração dos trabalhos por estes
acresceriam outros como a casualidade, o
realizadores, como Arte, só se justifica por um
improviso, a falta de inteligência e a desrazão;
afrouxamento dos critérios para ele tidos como
todos confluindo para a impossibilidade de
os de qualidade, como o uso da inteligência e
caracterização destes trabalhos como arte.
da razão.
Em O Jornal, Campofiorito escreveu:

“A nossa opinião sobre estes desenhos e essas • Não é arte, pois o sujeito criador
pinturas é de que são medíocres demonstrações não teria intenção, consciência da socie-
artísticas e trazem as fraquezas de obras casu- dade na qual vive, sendo deficiente de in-
ais, improvisações inconsistentes, deficientes teligência e razão.
todas dessas condições de inteligência e razão
que deve marcar a criação artística. Se usarmos
dessa franqueza quando nos referimos à produ- Este argumento foi encontrado em uma
ção de muitos artistas profissionais, isto é, indi- publicação de Campofiorito, num texto publi-
víduos absolutamente conscientes do que fazem cado em O Jornal de 1949 quando, referindo-
e para que fazem, o mesmo devemos fazer nes- se à questão da aproximação da Arte Moder-
se caso de uma mostra de trabalhos de enfer- na à espontaneidade e força expressiva reco-
mos mentais, recolhidos desde a infância a um nhecida na infância e na loucura – fato que já
hospital de alienados, e que só há muito pouco deveria ter estado em questão quando da ex-
tempo foram levados a desenhar e pintar apenas
posição promovida por Flávio de Carvalho em
por necessidade terapêutica. E com maior razão
1933 –, comenta:
essa franqueza se impõe quando desejam mui-
tos dar a essa exposição o valor de uma excep-
cional exibição de obras de arte. De excepcional “Há em Kandinsky e Paul Klee, por exemplo, uma
aí só existe o resultado obtido com o definido disposição de afrontar o ridículo para obter uma
tratamento terapêutico, que positivamente repre- posição puramente anárquica e não construtiva.
senta um humano benefício para essas infelizes São adultos que se revestem de semelhanças
criaturas.” 3 ou semeblantes infantis, ou talvez (por que não

39
cadernos da pós-graduação

ter a coragem de dizê-lo?) semelhanças ou sem- “...tivemos uma demonstração experimental psí-
blantes de esquizofrênicos. Hoje que vemos o quico-estética da mais alta importância. Era difí-
que nos mostram os enfermos de Engenho de cil dizer que aquelas produções eram de doen-
Dentro, podemos com segurança encontrar-lhes tes mentais. Pode-se, evidentemente, encontrar
semelhança.” 5 nelas, como aliás em toda obra, em toda criação
humana, manifestações provenientes de almas
conturbadas, perene ou momentaneamente, de
Num outro trecho: impulsos interiores que a técnica psiquiátrica
geralmente identifica como pertencentes à cons-
“há muito já avançamos nas experiências da arte tituição psíquica do esquizofrênico.” 7
moderna para acreditarmos que do artista não
se deva exigir também condições de inteligência
e de raciocínio condizente com o grau de civili- Mas porque seria difícil dizer que aque-
zação de seus semelhantes.” 6 les trabalhos seriam de doentes mentais? Pa-
rece que o que se esperaria da produção plás-
tica de um sujeito internado não seria, para
Reforçando assim, a questão do diálo-
Mário Pedrosa, trabalhos comparáveis aos de
go intencional, inteligente e adequado à socie-
artistas. Nesta primeira fala aparentemente
dade e ao período histórico no qual este sujei-
desqualifica os sujeitos. Porém, prossegue
to artista vive, valorizando claramente a pre-
justificando tal fato com o argumento de que
sença da razão, da consciência e da intenção
há nos trabalhos manifestações de impulsos
de fato. Mesmo em obras abstratas a explora-
interiores, e que estes existem em toda a obra
ção formal é entendida, por Campofiorito, me-
ou criação, equiparando neste sentido os su-
nos como uma nova maneira de configuração
jeitos internos a artistas sãos. Assim autoriza
do que uma aproximação ‘anárquica’; ou seja,
esta expressão retirando por semelhança es-
no fundo parece não considerar a opção
tética a lacuna que haveria entre a produção
abstracionista conseqüente. Sendo os artistas
patológica e não-patológica. Toda a produção
citados ‘adultos que se revestem’, eles não o
pode ser, perene ou momentaneamente, ‘pa-
são verdadeiramente, ou seja, a diferença
tológica’. O elemento de análise para consta-
retorna mais ao estado do sujeito do que de
tação da força do trabalho foi exatamente o
fato à configuração dos trabalhos e neste sen-
próprio trabalho.
tido à razão, à consciência e à intenção.

• É arte independentemente do es-


• É arte pois, como toda a obra de
tado patológico do sujeito criador e não
arte, advém de impulsos interiores (para
arte patológica (a questão da sanidade ou
todos perene ou momentaneamente exis-
insanidade mental implicando ou não na
tentes).
possibilidade ou impossibilidade de reali-
zar uma obra de arte).
Sobre a exposição de 1949 com os tra-
balhos dos internos do Hospital D. Pedro II,
Embora não faça parte da crítica brasi-
Mário Pedrosa comenta sobre a possibilidade
leira, Jean Dubuffet, artista francês que definiu
de um sujeito criador ter um estado mental di-
o conceito de Arte Bruta, apresentará alguns
ferenciado, no sentido de patológico, e isto não
argumentos que serão recorrentemente cita-
implicar na depreciação de sua capacidade
dos pela crítica brasileira. Assim, considera-
produtiva,
mos expor alguns destes discursos para me-

40
instituto de artes

lhor compreensão e contextualização do mo- É interessante perceber esta adjetiva-


vimento na crítica nacional. ção de ‘patológico’ aderida ao trabalho plásti-
Dubuffet irá comentar sobre o interes- co, pois seria de se esperar que fosse refe-
se a respeito da expressão plástica em estu- rente ao sujeito. Uma expressão nunca é em
do que é pejorativamente adjetivada, por ou- si patológica, pois a patologia não reside no
tros diversos sujeitos, como patológica: trabalho, no máximo o rótulo recai sobre o su-
jeito criador. A utilização desta transposição
“todo um domínio da instauração humana, quase sem ressalvas denota esta indiferen-
diversificada no uso de materiais e técnicas ab- ciação.
solutamente distintas da arte apoiada nas nor- Em Arte, necessidade vital, texto ela-
mas consagradas pela história da arte e
borado a partir de conferência de Mário
monopolizadora das atenções dos museus de
Pedrosa, publicada por ocasião do encerra-
arte, tomava aos poucos lugar ao sol, mas não
raro acoimada de ‘arte patológica.” 8 mento da exposição de pintura organizada pelo
Centro Psiquiátrico Nacional, sob os cuidados
Em um outro depoimento Dubuffet pon- da Associação dos Artistas Brasileiros na ABI,
tua como absurda a diferenciação entre arte em março de 1947 no Correio da Manhã, Má-
patológica ou sadia. A arte existiria indepen- rio Pedrosa comenta que “Normalidade e anor-
dentemente da condição patológica do sujeito malidade psíquica são termos convencionais,
criador: da ciência quantitativa. Sobretudo no domínio
da arte, elas deixam de ter qualquer prevalência
decisiva.” 11
“Quanto ao resto, e de todo modo, a noção de
uma arte patológica, que se opõe a uma arte sã Somando-se à fala de Dubuffet, temos,
e lícita, parece-nos de todo sem fundamento; não além do questionamento de normalidade, o
somente em virtude daquilo que uma definição questionamento sobre a efetividade desta clas-
de normalidade apresenta de arbitrário e ocio- sificação do sujeito diante do seu potencial ar-
so.” 9 tístico, como sendo independentes e deixan-
do de ter, neste sentido último, prevalência. No
Num outro trecho completa: campo das artes são outras as questões de
maior interesse, como a imaginação e a ca-
“fazem rir as acusações feitas a algumas obras pacidade de apreensão e autenticidade. Con-
de serem demasiado imprevistas ou imaginati- sidera que:
vas e sua conseqüente relegação ao departamen-
to de uma arte patológica. O melhor, o mais co-
erente, seria dizer, para terminar, que não impor- “Do ponto de vista dos sentidos e da imagina-
ta onde surja, existe sempre em todos os casos ção, uma criança retardada ou um adolescente
patológicos.” 10 mentalmente enfermo é, em geral, bastante nor-
mal; é por isso que se tornam possíveis de sua
parte manifestações e realizações artísticas au-
Assim, além de questionar a própria tênticas.” 12
definição de normalidade, não vincula carac-
terísticas como uma imaginatividade e imprevi-
Osório César também se colocará a
sibilidade exageradas, a um tipo de expressão
respeito desta questão. Em 1954, citado nas
inerente ao estado de patológico do sujeito cri-
crônicas de Quirino Silva e Angel Nieto Vicente,
ador, nem desqualifica por estes mesmos
escreve:
motivos.

41
cadernos da pós-graduação

“É um erro classificar a obra de arte criada pelo tários anteriores de que para a citada exposi-
doente mental, de arte degenerada ou patológi- ção foram, conforme disse, selecionados pa-
ca. Na expressão artística do doente, descortina- cientes-artistas. Mas é exatamente neste mo-
mos um mundo calmo, ingênuo, rico de colorido, mento que surge a verdadeira questão: o su-
do qual a doença não participa como degeneres-
jeito que seleciona os trabalhos que vão para
cência. É, pois, uma clamorosa injustiça clas-
uma exposição retém o critério do que é, den-
sificá-la como tal. O Panorama artístico do do-
ente mental tem a mesma ampliação, a mesma tre toda a produção analisada, considerado
beleza, daquele do homem chamado normal.” 13 arte. É na seleção deste sujeito, no seu olhar,
intelecto e emoções, que está embutido o que
daquela diversidade deva ser visto e entendi-
Um outro tipo de argumentação que li-
do como tal.
bera a vinculação entre doença a uma expres-
são indigna de ser considerada arte é o utiliza- Argumento muito parecido é encontra-
do no texto de Thomas Josué, pesquisador
do por Maria Heloisa Ferraz, em 1998, no ca-
brasileiro que redigiu dissertação de Mestrado
tálogo da exposição Juquery, encontros com
intitulada Caminhos da expressão: criação,
a Arte, no qual participou como curadora. Diz
que para a mostra são selecionados os traba- loucura e transcendência defendida em 1997,
lhos de “vinte pacientes-artistas”14, o que im- em Porto Alegre, RS. Na sua dissertação re-
plica na existência de pacientes não artistas. toma a questão levantada por Dubuffet sobre
considerar sem fundamento a distinção entre
Ainda comenta:
uma arte patológica que se oporia a uma arte
sã e lícita:
“Se muitos artistas modernos buscaram na ex-
pressão dos psicóticos elementos para a própria
criação artística (Paul Klee, Max Ernst), e ou- “Essa afirmativa, nos faz andar, sobre caminhos
tros vislumbraram a riqueza de suas produções insólitos acerca do que compreendemos como
(Picasso, Flávio de Carvalho, Dubuffet), sem con- arte patológica e arte saudável. Leva-nos a refle-
tar aqueles cujas expressões manifestam esta- tir, se de fato, existe uma distinção precisa da
dos depressivos ou de delírio (Miro – auto retra- criação plástica de um artista integrado no siste-
tos dos anos 30/40 – Van Gogh), por que não ma das artes e supostamente considerado como
considerar a possibilidade de que algumas pes- são, e de uma artista ou produtor, à margem deste
soas, com sofrimento mental ou não, possam sistema denominado insano.” 16
ser verdadeiros artistas e suas obras represen-
tações culturais consideradas pela socieda-
Continua argumentando a favor de uma
de?” 15
visão transpatológica, “dimensão criadora que
não pode ser reduzida a um fenômeno de na-
A autora constrói, em relação à discus- tureza meramente patológico”17, da expressão
são da patologia, uma argumentação retórica: plástica. Para defender este argumento anali-
se existem sujeitos artistas que apresentaram sa os trabalhos plásticos de três pacientes por
patologias psíquicas, por que então um paci- ele estudados, “ acometidos de sofrimento
ente psiquiátrico não poderia ser também um mental”18, no Ateliê de expressão do Serviço
artista? Se as produções desses são consi- Municipal de Saúde Mental de Novo Hambur-
deradas pela sociedade, por que os trabalhos go/RS, entre os anos de 1990 e 1994.
daqueles também não o seriam? Neste ponto Sobre as expressões plásticas em si
quase chega a utilizar a patologia como ele- destes pacientes, comenta que “encontramos
mento de legitimação, não fossem os comen- nelas, uma complexidade formal capaz de

42
instituto de artes

estabelecer paralelos com a produção de ar- e formal: “Esta expressão criadora do ‘louco’,
tistas modernos contemporâneos, levando- nos remete a reconhecer [...] experiências de
nos ao seguinte questionamento: qual das ex- relevância expressiva, constituídas de estru-
pressões plásticas é doente e qual é sã?” 19 turas formais de qualidade incontestável.” 21
O fato de serem parecidas com obras O crítico de arte, Agnaldo Farias, em
de artistas modernos implica em dois desdo- entrevista por nós realizada em 2004, refere-
bramentos cabíveis neste raciocínio. Ou os se a esta questão da importância do elemento
pacientes fizeram arte e não são loucos, ou sanidade e insanidade no campo da arte, refe-
os artistas têm um quê de loucura. No texto rindo-se ao trabalho de Arthur Bispo do Rosá-
apresentado anteriormente, já temos a fala de rio:
Dubuffet questionando a questão da normali-
dade ou sanidade e desvinculando esta como “E ficou difícil você marcar a linha de quem é
não-condição no sujeito criador. Mas, e a ou- louco e quem não é. Mesmo porque até aonde
tra questão, o paciente deixaria de ser louco, isto interessa para justificar ou não a qualidade
de ter esta experiência no seu repertório pes- de um trabalho. O trabalho dele é bom porque
soal, apenas por apresentar um trabalho se- em razão de suas particularidades. O fato dele
melhante a uma obra modernista? Há a ser louco fala-nos da condição psíquica dele, um
problema que ele tinha e que, ainda que marque
fragilização do argumento da complexidade
profundamente o trabalho, não deve ser tido na
formal dos trabalhos quando Silva coloca a
conta de algo que rebaixa seus predicados esté-
produção plástica do paciente psiquiátrico em ticos.”
semelhança, ou em função, da sanidade ou
não de outros artistas. O elemento carac-
terizador dos trabalhos como arte não seria Neste sentido, a questão da loucura
nem a questão da sanidade, nem a semelhan- passa a ser vista como uma contingência da
ça entre as obras de pacientes e artistas do história do sujeito criador.
sistema erudito de arte. A questão central se-
ria, na verdade o elemento formal destes tra- Assim, dentro do critério analisado re-
balhos. ferente à patologia do sujeito criador é possí-
vel identificar, ao longo tempo, uma significati-
“Se dirigirmos a questão, sob a ótica formal, pou- va mudança de argumentos, passando a ser,
co restará do patológico como argumento sus- o estado patológico, de claramente limitador
tentável diante de criações elaboradas por indiví- de qualquer possibilidade artística para uma
duos denominados de ‘loucos’, que representam contingência de sujeitos que possuem em
qualidades formais comparáveis às produções dos suas vidas a história da patologia. Esta argu-
artistas da oficialidade...” 20
mentação de forma intensa se relacionará com
outros critérios de legitimação identificados,
Novamente afere-se à obra uma força como a questão da subjetividade e do incons-
plástica passível de ser apreendida por uma ciente, a questão da intenção de se estar fa-
análise formalista, mas o autor peca novamen- zendo arte e aos critérios advindos de carac-
te ao vincular este fato à semelhança a outros terísticas intrínsecas destes trabalhos, como
trabalhos aceitos no sistema erudito da arte. se pode identificar na íntegra desta pesquisa.
Neste outro trecho, sim, há a valoriza-
ção do trabalho pelo seu conteúdo expressivo

43
cadernos da pós-graduação

Tatiana Fecchio Gonçalves, Mestre e Doutoranda em Artes Referências Bibliográficas


pelo Instituto de Artes – UNICAMP. Especialista em Arteterapia
FCM/UNICAMP, Coordenadora do Curso de Extensão Lato Sensu
em Arteterapia da Universidade São Marcos/ Campus Paulínia ARANTES, O. B. F. (org.). PEDROSA, Mário. Forma e Percep-
e São Paulo, licenciada em Educação Artística/UNICAMP. ção Estética. São Paulo: EDUSP, 1996.
E-mail: tati_goncalves@uol.com.br
CAMPOFIORITO, Q. “A arte dos Esquizofrênicos”. In: FRAYZE-
O presente trabalho faz parte dos resultados obtidos na reali- PEREIRA, João A. Olho D’água arte e loucura em exposi-
zação da Dissertação de Mestrado ‘A Legitimação de Traba- ção. São Paulo: Escuta, 1995. Publicado originalmente na
lhos Plásticos de Pacientes Psiquiátricos: Eixo Rio-São Pau- imprensa em O Jornal, 22 de dezembro de 1949.
lo’/ UNICAMP 2004. CESAR, Osório. A Expressão Artística nos Alienados: Contri-
buição para os estudos dos Symbolos na Arte. São Paulo:
Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Reily, docente credenciada Officinas Graphicas do Hospital de Juqyeri, 1929.
junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de
Artes – UNICAMP. Arte-Educadora e Doutora em Psicologia. FERRAZ, Maria Heloisa Corrêa de Toledo. Arte e loucura -
Docente junto a FCM – Faculdade de Ciências Médicas – limites do imprevisível. São Paulo: Lemos, 1998.
UNICAMP. FERRAZ, Maria Heloisa de Toledo (curadora), Catálogo Juquery,
E-mail: lureily@terra.com.br encontros com a arte – Juquery Cem Anos, São Paulo, 1989.
FRAYZE-PEREIRA, João A. Olho D’água arte e loucura em
exposição. São Paulo: Escuta, 1995.

Notas PEDROSA, Mário. Arte, forma e personalidade. São Paulo:


Kaiós, 1979.

1. Para acesso aos demais Critérios acessar SBU Unicamp, ZANINI, Walter (curador Geral). Catálogo Arte incomum - XVI
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000343472 Bienal de São Paulo, Fundação Bienal São Paulo, Catálogo
Outubro/Dezembro, Volume III. São Paulo: FUNARTE, 1981.
2. FRAYZE-PEREIRA,1995, p. 39.
3. CAMPOFIORITO, p. 7.

4. Idem.

5. Ibidem.

6. Ibidem, p. 9.
7. PEDROSA, 1979, p. 106.

8. ZANINI, 1981, p. 7.

9. Idem, p. 34.

10. Ibidem, p. 35.


11. ARANTES, 1996, p. 54.

12. Idem.

13. FERRAZ, 1998, p. 13.

14. FERRAZ, 1989, p. 8.


15. Idem, p. 9.

16. SILVA, 1997, p. 102.

17. Idem.

18. Ibidem, p. 12.


19. Ibidem, p. 103.

20. Ibidem, p. 112.

21. Ibidem, p. 118.

44
instituto de artes

Corpos em Trânsito: um relato intercultural através da


análise Laban em Movimento

Ciane Fernandes

Resumo:
Através de uma análise dinâmica, o artigo conecta espetáculos, apresentações musicais, exposi-
ções, arquitetura, cinema, publicidade, aulas de dança e o cotidiano (trânsito, transporte, supermercado,
idiomas, etc.) em uma metrópole multicultural (Berlim). O Sistema Laban/Bartenieff atravessa todas estas
instâncias, impregnando o discurso escrito com a natureza interrelacional do movimento corporal, presente
tanto nas diferentes tradições culturais quanto na contemporaneidade cênica e cotidiana.

ACERTOU!!! A divindade indiana da dança é 04 de setembro. “Ick liebe dir fuer sem-
SHIVA (Fig. 1). pre” (“Eu te amo para sempre,” misturando
Você acaba de ganhar dois ingressos para as- alemão berlinense e português) está pintado
sistir ao espetáculo de dança clássica Indiana em letras garrafais em um viaduto caindo aos
que vai acontecer hoje à noite no Staatliche
pedaços na Rua York de Berlim. Uma peruana
Museen-Dahlem, aqui em Berlim. Parece que
me ajuda a encontrar a estação de metrô. Uma
cada movimento significa alguma coisa. Mesmo
que você não entenda nada, não faz mal: é bele- chilena me ajuda a comprar o bilhete. Uma
za pura! (Estação de Rádio Multikulti, Berlim, colombiana me ajuda a achar o caminho da
novembro de 2001) estação até o Instituto. Um venezuelano é meu
colega de carteira durante quarto horas de aula
de alemão. O almoço é em companhia de ou-
tro colega de classe, um mexicano. An
Englishman in New York, An American in Pa-
ris, e apenas mais uma latina em Berlim. No
Brasil, nossas temperaturas estáveis não per-
mitem a queda das folhas no outono, mas não
têm ajudado nossa economia. “Você está sem-
pre andando e caindo. A cada passo, você cai
para frente um pouco”, canta Laurie Anderson
em seu show esgotado na Hochschule der
Kuenste dia 18 de outubro. Junto com outros
fãs, pude escutar parte do show pelos auto-
falantes do saguão, antes que os seguranças
nos mandassem embora. Enquanto a tempe-
ratura cai drasticamente durante a noite, Berlim
Fig. 1: Shiva. vai ficando coberta de folhas laranjadas. Meus

45
cadernos da pós-graduação

dedos azulados se aquecem fazendo mudras


indianos neste cenário de Barba Azul de Pina
Bausch (Fig. 2).

Fig. 3.

tyam movem-se a partir de uma rotação pro-


funda na coxo-femural, ao invés de simples-
mente flexionando os joelhos. Em direção à
Fig. 2: foto de Francesco Carbone.
boquinha da garrafa, na dança de rua da Bahia,
a pélvis desce mais e mais fundo para o chão.
Meus cabelos brancos eu venho tingindo de Na dança indiana clássica, ela permanence
henna Indiana. Corra Lola (e Ciane) Corra. estável, mas a imagem usada é a de que afun-
15 de setembro. “Zug nach Rathaus da também. E Ramesh fala com veemência
Steglitz: Einsteigen bitte!” (“Metrô para Rathaus enquanto suamos muito: “Tiefer, tiefer gehen!”
Steglitz: Entre, por favor!”). Ao meio-dia de (“Mais fundo, vão mais fundo!”) E é justamen-
sábado, as pessoas andam pelas ruas de bi- te esta imagem de enraizamento, com o cóc-
cicleta ao imponente som de vários sinos de cix caindo para baixo enquanto a cabeça cai
igrejas, sobreposto ao de um helicóptero. Tal- para cima (Laban/Bartenieff) que permite a
vez como boa brasileira, estou atrasada para estabilização da pélvis enquanto alternamos
minha aula de dança clássica sul-indiana no com rapidez os movimentos de uma perna e
sudoeste berlinense. Segundo minha mestra outra. Sino alemão, quadril brasileiro, ritmo in-
de Bharatanatyam , Rajyashree Ramesh diano: “Tah tai taaaahm – pausa. Tah tai
(Fig. 3), a pelvis é o centro de energia para taaaahm – Knie beugen (joelhos flexionados),
todo e qualquer movimento, por isso devemos Fuss hoch (pés altos), Ellbogen hoch (cotove-
mantê-la perfeitamente imóvel ao dançarmos. los altos), Armen fest (braços firmes)”!!! “Jetzt
Pela mesmíssima razão, nós brasilei- machen wir die Nattadavu, Hände im Tripataka
ros movemos principalmente a pelvis, e o res- (Agora fazemos o exercício Nattadavu, gesto
to do corpo segue. Como na Rotação Gradu- das mãos: Tripataka)”.
al, um dos Princípios Corporais do Sistema Bharatanatyam e alemão têm algo em
Laban/Bartenieff, as pernas em Bharatana- comum: no começo do primeiro semestre, a

46
instituto de artes

sala é cheia de alunos, que vão saindo gradu- tro” difuso de energia. Ou seja, estrangeiros
almente até o final do semestre, e a cada se- se sentem “nativos”, e “nativos” europeus se
mestre o número de estudantes é tão menor sentem estrangeiros no seu próprio país.
que mal se consegue juntar uma turma. A co- Demorei um ano, quando morei em
nexão entre sânscrito e alemão, que acontece Nova York nos anos de 1990, para aprender o
alí a cada aula, é um bom exercício para mi- ritmo da salsa sem cair no ritmo do samba.
nha comunicação nada-verbal. Este é um tru- Agora, graças ao ritmo sincopado da salsa,
que para tornar alemão um idioma fácil e fami- espero conseguir aprender com os indianos.
liar: encontrar algo ainda mais estranho e dis- Além disso, tenho conseguido aumentar mi-
tante, que reforce a estética da forma pura, nha difícil sensação de enraizamento através
puríssima. dos tão famosos sapatos ortopédicos alemães,
15:00hs. Enquanto almoço em um res- que fazem mais sucesso no Brasil, onde cus-
taurante iraniano, repasso na memória cada tam uma fortuna e servem de modelo para
exercício da aula de dança indiana, agora sob outros mais acessíveis e bem mais elegan-
o pomposo fundo musical do Bolero de Ravel. tes. Após dez anos de ajuda desta fábrica ale-
O suco de laranja feito na hora finalmente me mã de sapato, posso bater com mais força no
faz sentir em casa. O climax do Bolero acon- chão, usando toda a sola dos pés e criando
tece quando um iraniano me pergunta algo em sons, como exigido em Bharatanatyam. Esta
alemão, e eu o olho com a expressão facial n. foi a contribuição alemã para meus esforços
4 de Bharatanatyam (Adbhutha: admiração). contemporâneos em aprender a tradição indi-
Enquanto minhas mãos seguram os talheres ana.
com cuidado no gesto indiano Kataka-mukha, Pelo pouco que sei de alemão, parece
sinto falta de um pouco de significado centro- que sempre temos que pensar se uma frase
americano: onde estaria o “avocado”? se refere a algo estável (acontecendo em um
Meu experimento mais recente é encai- lugar específico) ou a algo dinâmico (indo para
xar passos de dança clássica Indiana no ritmo algum lugar). Porisso, ao construir uma frase,
da salsa. Isso já tinha dado certo no samba, sempre nos perguntamos “wo” (“onde” – caso
numa festa brasileira no bairro internacional de estável, dativo) ou “wohin” (“para onde” – caso
Kreuzberg: Em uma organização corporal dinâmico, acusativo), antes que façamos qual-
homóloga (superior/inferior), dancei samba da quer conjugação de artigos, pronomes, nomes,
cintura para baixo, enquanto realizava movi- enfim, antes que ousemos abrir a boca e co-
mentos de dança indiana com a parte de cima meter erros inevitáveis. Como posso dividir
do corpo. Isto produziu algumas faces n. 4, e minha compreensão em “movimento” e “não-
outras n. 9 (Shantam / tranquilidade), ou me- movimento” se, segundo Rudolf von Laban,
lhor, inexpressivas mesmo. Tenho reparado o ambos estão sempre presentes em todos os
talento norte-europeu para esta face (ainda) lugares e coisas?! E como posso, como uma
não classificada no repertório indiano, e que é (ainda) boa brasileira, deixar o verbo, a ação,
quase impossível para mim. O efeito interes- para o final da minha frase, da minha linha
sante de uma festa brasileira aqui fora é a mis- (tridimensional) de pensamento, como se faz
tura de duas tendências: brasileiros subita- em alemão?! Brasileiros não poderiam nunca
mente tão orgulhosos de saber sambar “per- fazer isso, porque a regra é ser interrompido
feitamente”, e não-brasileiros interpretando antes de terminar a frase, como um bom sinal
este ritmo, vibrando diferentes partes do cor- de interação. Se queremos nos comunicar
po em algo que poderíamos chamar de “cen- verbalmente, a última coisa que faremos é

47
cadernos da pós-graduação

deixar o mais importante para o final!! Além do, fazemos o que poderia ser chamado de
disso, prefiro que a forma gere o significado, e Escalas Espaciais Laban com os olhos. Com
não o contrário. Eu penso ao mesmo tempo – o corpo na posição Sthanaka (pernas juntas e
e talvez até depois – de falar. É impossível or- retas, pés paralelos, mãos na cintura, pesco-
ganizar todas as declinações de uma frase ço longo), movemos os olhos para o alto, para
conforme algo que vem depois de tudo!! o centro (olhando para frente), para baixo, de
Sábado à noite, Rádio Multikulti. Estou volta ao centro, para a esquerda, centro, para
ligada nas Drogas Genéticas, programa com a direita, e para o centro (Escala Dimensional
duas horas de música techno indiana, como do Octaedro); depois para a direita alta, para a
se Gandhi de repente fosse DJ de música ele- esquerda baixa, para a esquerda alta, para a
trônica. “Takajini Takajani Takajunu Tarakthaka direita baixa, e de volta ao centro (Plano Verti-
Taraktum Taka... tu tchi tum tu tchi tum...” Na cal do Icosaedro). Só então percebi quão pou-
festa de abertura do Festival Ásio-Pacífico, um co uso meu olho esquerdo.
DJ mistura música de ciganos da Índia e do Em Rainbow Melodies ( Melodias de
Oriente Médio com sons eletrônicos, enquan- Arco-Íris), no Staatliche Museen-Dahlem, a
to um video mostra a vida cotidiana daqueles mestra Rajyashree Ramesh e suas dançari-
povos, limpando animais domesticados, cozi- nas (em sua maioria não-indianas) flutuam pelo
nhando e dançando numa paisagem seca e espaço com perfeição rítmica em delicadas
quente. Na pista de dança, rasta-faris loiros, nuances faciais e gestos manuais. A obra de
vestidos com várias camadas de roupas de dança clássica indiana conecta as notas da
inverno coloridas e soltas, dançam com movi- música clássica indiana a divindades hindús à
mentos fragmentados e simultâneos de dife- estória de cada planeta do sistema solar,
rentes partes do corpo. Em um clube techno, interagindo com imagens abstratas projetadas
numa pequena sala no subsolo, de teto baixo em todo o espaço do teatro, visíveis principal-
e luz cor-de-rosa cintilante, garotos performam mente no palco. Como na Harmonia Espacial
movimentos (propositalmente?) descoorde- de Laban, percursos conectam o micro e o
nados, com o tal difuso “centro” de energia, ao macrocosmo, desde a relação entre compo-
som ensurdecedor de batidas eletrônicas. Três sições bioquímicas até o espaço tridimensional
pessoas japonesas me chamam para ir para ao redor do corpo e os planetas. Em perfeita
um clube de salsa, e se intimidam com meus técnica indiana clássica, Rajyashree Ramesh
beijinhos em suas bochechas solitárias. A descreve Escalas Circulares completas (es-
Cinesfera brasileira é ainda menor que essa calas do Icosaedro semelhantes aos anéis de
salinha no subsolo, ou que aquelas câmeras Saturno, mas ao redor do corpo), ou desliza
japonesas alugadas para dormir por algumas de modo surpreendente ao longo de uma das
horas, onde só cabe uma pessoa deitada. diagonais do Cubo, descendo até sua direita-
08 de novembro. Congresso de Dança embaixo-atrás. E como já havia me avisado o
na Akademie der Kuenste. Gabriele Wittmann locutor da rádio Multikulti, a empatia com que
apresenta sua palestra intitulada: Dançar Não Ramesh descreve personagens e estórias
é Escrever. Completemos esta idéia inicial: cativa a mim e a tantos outros espectadores,
Dançar não é apenas escrever, uma vez que talvez ainda mais estrangeiros.
também é compreender, caminhar, conversar, Segunda-feira, 17:00hs. Eu perco o
assistir, analisar, e ler. Com qual olho, prefe- trem de propósito e fico olhando para o alto,
rencialmente, você está lendo essas palavras? admirando os 180 graus de arco-íris na esta-
Em outra aula de Bharatanatyam num sába- ção Savigny-platz, enquanto outros correm

48
instituto de artes

olhando para a frente. “Zug nach Flughafen guranças fecharam todas as possibilidades de
Berlin-Schoenefeld: Zurueckbleiben, bitte!” se atravessar de um lado para outro do portão,
(“Trem para o aeroporto Berlim-Schoenefeld: e fiquei presa do lado ocidental (justo eu que
Por favor, mantenha distância!”). Em outro adoro o oriente). Enquanto um coral afro-ame-
trem, continuo minha observação em movi- ricano cantava um blues num pequeno palco
mento. Os olhos das pessoas fazem a dança à frente, à minha esquerda cinco operários
do medo, evitando-se reciprocamente enquan- trabalhavam numa construção subterrânea,
to dois músicos sobrepõem seus sons aos numa perfeita forma de dança funcional, e
dos anúncios mecânicos: “Próxima estação: maquinárias gigantes flutuavam distantes no
Lehrter Stadtbahnhof,” próxima ao centro polí- céu (Fig. 5).
tico da cidade. O trem flutua sobre uma Berlim
desconstruída, com seus cabos expostos e
blocos de cimento concreto da mesma cor do
céu. Márcia Strazzacappa certa vez me con-
tou que decidiu voltar da França para o Brasil
quando sua filha, de três anos, apontou uma
blusa cinza na vitrine e disse: “Mamãe, quero
aquela cor-de-céu”.
Os prédios caem, as folhas caem, pes-
soas caem, mas o muro (entre as pessoas)
ainda está esperando por uma declinação gra-
matical mais acusativa, dinâmica.
Fig. 5.

O Portão de Brandenburgo tem esta-


do coberto desde que cheguei aqui, no come-
ço de setembro. No plástico enorme, vemos
impressa a imagem do portão com um clima
de eterno verão, com dois turistas posando à
frente com suas mochilas.
É interessante comparar os supermer-
cados em diferentes regiões da cidade. Cada
um tem produtos, preços e organização com-
pletamente diferentes dos outros. O excesso
de quantidade de carne de porco provoca mi-
Fig. 4. nha face n. 7 (Bibatsia / nojo), desafiada pela
peça Gelage fuer Langschweine (Festa para
Em meados de setembro, muita gente se jun- um Grande Porco), direção de Helena Wald-
tou no Portão de Brandenburgo (Fig. 4), em mann, apresentada no Podewill em meados
uma demonstração contra a palavra mais fa- de Novembro. Guiados por dois estrangeiros,
lada no rádio: terrorismo (um exercício cons- entramos no palco após caminharmos por
tante em poesia minimalista e a única parte cada passagem e escada do prédio, com
compreensível de reportagens alemãs, pouquíssima luz, casualmente assistindo à
croatas, turcas, húngaras, russas, chinesas, paisagem de prédios em desconstrução pe-
e outras ainda piores que Labanotação). Se- las janelas. No palco, tiramos nossos casa-

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cadernos da pós-graduação

cos de inverno e deslizamos em cadeiras ro- dente e oriente. Representando os EUA e Eu-
lantes até a platéia, que de fato é organizada ropa está a loiríssima Elke Czischek falando
conforme um grande banquete. Sentamos ao de modo bem sexy, especialmente ao produ-
redor de duas mesas longas, ao lado de des- zir sons de porco. Já Adnan Maral, com seu
conhecidos que, durante a performance, se- estereótipo terrorista, representa os estrangei-
rão colegas de jantar. ros imigrantes, e atua com total carisma.
Nos supermercados, desconhecidos No natal berlinense, Papai Noel também
passam rápida e diretamente por mim, empur- é um estrangeiro. Mas primeiro ele tem que
rando seus carrinhos, enquanto eu fico ali ho- mostrar seu visto e passar num teste de ale-
ras a fio, tentando entender os ingredientes de mão. Tempos difíceis!! Todos os anos, em
uma variedade imensa de produtos, sem dici- dezembro, uma empresa contrata Papai Noéis
onário. Existe até um creme de chocolate e para entregarem presentes nos endereços de
nozes para passar no pão, chamado “Sam- seus clientes. É um free-lancer que rende al-
ba”. Tento inutilmente cheirar ou apertar o que gum dinheiro para os estrangeiros, especial-
não consigo entender (quase tudo), mas as mente os estudantes. Afinal, quem é que quer
embalagens impecavelmente impermeáveis andar pelo frio entregando pacotes para des-
são como o plástico ao redor do Portão de conhecidos?! Que decepção: Papai Noel não
Brandenburgo, ou como as intermináveis ca- é de verdade! E, de repente, uma surpresa (li-
madas de roupas que temos que usar e ainda teralmente) grande: o Grande Porco, esqueci-
assim congelamos como carne de porco. do na escura parte do palco durante nosso
Num contraste coreográfico, corpos nús banquete terrorista não é parte do cenário, ele
são insistentemente expostos em imensos é real!! Tentando escapar do insistente
posters, às vezes giratórios ou ambulantes, por cameraman, nosso big star – no caso, pig star
toda a cidade, em prédios, caminhões, – gira vagarosamente e nos mostra a parte
outdoors e, obviamente, estações de metrô. posterior de seu “centro” de energia pélvica.
Esta pop arte de mercado de carne também é Como ele, a diretora Helena Waldmann e vári-
comum no Brasil, mas se derrete no contexto os dos meus novos amigos (colegas de ban-
de peles reais super expostas. Além disso, as quete) também vão virar de costas em breve
partes enfatizadas são diferentes, coerentes e fugir do frio, indo para o tal sonho paradisíaco,
com os respectivos centros de energia a saber: a Bahia.
(“pélvico” no Brasil e “difuso” na Alemanha). “Naechste Station: Amrumer Strasse”
Curiosamente, os tempêros nos super- (“Próxima estação: Rua Amrumer”). Caminho
mercados são organizados de acordo com a até a Auslaender-Behoerde, um prédio que
origem: francês, chinês, indiano, grego, mexi- mais parece uma grande caixa cinza como
cano, italiano. Os estrangeiros gerenciam a uma prisão em uma paisagem gélida. Ali, es-
maioria dos restaurantes, e podemos assistir trangeiros recebem seus vistos para ficar na
àquelas mãos ágeis preparando comidas exó- Alemanha, ou uma notificação para deixarem
ticas que dominam outras nacionalidades eco- o país em 24 horas.
nomicamente dominantes em suas entranhas. Também somos avisados em cima da
Esta luta de poder é um dos jogos sutis de hora de que temos que deixar o quarto que alu-
Langschweine. Comemos carne de porco e gamos. Morei em quatro lugares diferentes em
bebemos água mineral enquanto assistimos duas semanas, carregando malas e sacolas
a imagens cliché de uma ilha paradisíaca, e entre baldeações intermináveis de metrô e pré-
um casal representa uma disputa entre oci- dios em eterna reconstrução e renovação.

50
instituto de artes

Dança (e turismo) funcional: procurar aparta- ções são particularmente atraentes e me aju-
mentos por toda a cidade me ajudou a com- dam a conectar essas peças de dança estran-
preender as intersecções entre diferentes li- geira. Berlim é uma corrente significante sub-
nhas de metrô, multicoloridas como as peles terrânea: pessoas de diferentes raças, roupas,
das incontáveis pessoas que passam de um costumes, alfabetos, idiomas, entrelaçando-se
lado para outro nessa cidade subterrânea. como gens ao longo de túneis e escadas abaixo
Em um clube africano sexta-feira à noi- de ruas ordenadas e frias. Este cenário inspi-
te, todos os casais são de estrangeiros ne- rou-me a criar o solo Uebergang – Una Latina
gros e nativos brancos; mais ou menos como en Berlin (2002), onde sobreponho gestos, fi-
no carnaval baiano, mas na composição opos- gurinos, idiomas e imagens de vários locais e
ta (estrangeiros brancos e nativos negros). “No culturas (Fig. 6).
pensamento indiano, nada nunca é totalmente A obra de dança-teatro foi apresentada
branco ou preto, sim ou não”, diz Ramesh também em espaços públicos, como no an-
abrindo um sorriso sutil (face n.1: Shringara / dar subterrâneo do Mercado Modelo de Salva-
amor) e balançando sua cabeça levemente em dor (Fig. 7).
um gesto indecifrável entre sim e não. Resis-
tência brasileira: Não posso nunca respeitar o
sinal de tráfego ao atravessar a rua, e acabo
cometendo infração de pedestre e provocan-
do faces n. 8 – Raudra / Raiva.
Minha palavra favorita em alemão é
“Uebergang” (transferência, transição, balde-
ação) e “uebersetzen” (traduzir; literalmente:
sentar por cima). As preposições e conjun-

Fig. 7: foto de Marcos MC.

Mapas genético-geográficos: Meu Self-


Unfound (Ser-NãoEncontrado) procura pelo
Self-Unfinished (Self-Inacabado) do coreógra-
fo francês Xavier Le Roy, numa vila chamada
Braunschweig. Por cerca de uma hora, este
Ph.D. em biologia molecular desfaz e refaz o
tempo e o corpo em detalhes microscópicos
Fig. 6: foto de Artur Ikishima. sob lentes macroscópicas.

51
cadernos da pós-graduação

Meu mapa de Berlim está cansado de


ser dobrado e redobrado e reaberto o dia todo,
e rasgou em dois pedaços: Não mais ociden-
te e oriente (estes já estão integrados no meu
corpo de conhecimento Laban- Bharatana-
tyam), mas norte e sul – duas cidades, acima
e abaixo do chão; dois corpos, acima e abaixo
da pélvis; dois horários e estações distintas,
acima e abaixo do equador. Penso no calor que
deve estar fazendo na Bahia enquanto ando
(supostamente sendo carregada, mas de fato)
carregando pesadas botas impermeáveis para
a neve.
Em uma das aulas de canto clássico
indiano, praticamos o Jantai Varisaigal com
notas duplas: “Na filosofia Indiana, tudo vem
em pares, até mesmo as células”, diz Rajya-
shree Ramesh. Enquanto praticamos o está-
vel ciclo rítmico Aditala (8 tempos) com nossa
mão direita, ela nos pergunta sobre passos de
Bharatanatyam, e nós tentamos não mudar o
Fig. 8.
ritmo básico (tala). Fala e gesto, pensamento
e movimento, não são uma coisa só, mas não
as estações Zoologischer Garten e Tiergarten,
são separados: são ações simultâneas, autô-
podemos ver a imagem das Asas do Desejo
nomas e independentes.
da Siegessaeule (Fig. 9).
No Altes Museum, esculturas chinesas
do Buda do século VI estão expostas sem al-
gumas partes de seus corpos – dedos, per-
nas, braços, cabeças (Fig. 8). Desafiando a
gramática e a arquitetura alemãs, aqui se mos-
tra o movimento do não-movimento, a perfei-
ção da imperfeição: em um prédio clássico e
pomposo, ideogramas mutilados fazem
mudras variados e misteriosos para corpos em
trânsito também estrangeiros e fragmentados.
Um Buda sem a cabeça me esclarece a difi-
culdade de minha face n. 9 (Shantam / tranquili-
dade): “Der Kopf ist verloren” (“a cabeça está Fig. 9: foto de Euler Paixão
perdida”) avisa a legenda ao pé da estátua. No
vôo para o Rio de Janeiro, uma das imagens No topo deste mo(nu)mento, flutuamos
projetadas do Brasil enfatiza apenas o torso e ao centro do cruzamento de cinco avenidas,
topo das pernas de uma mulher de biquini. Uma como no encontro de cinco arestas numa das
legenda redundante diria “Algo além da cabe- esquinas do Icosaedro nas Escalas de Laban
ça está perdido”. No coração de Berlim, entre (Fig. 10).

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instituto de artes

Fig. 10.

04 de fevereiro. “Flug nach Salvador da


Bahia” (“Vôo para Salvador da Bahia”): apa-
guem seus cigarros e não prestem atenção
na posição das cadeiras, pois não irão conse-
guir sentar em pleno carnaval. A cidade está
tão cheia de estrangeiros que sou apenas mais
um Estranho no Ninho. No carnaval brasileiro,
como na última cena de Langschweine, sons
cada vez mais fortes de gargalhadas conta-
minam a platéia participante em faces n. 5
(Hasia / Risada). Da Ásia até a América do
Sul, através da Europa e África, a dança-tea-
tro recompõe uma passarela “co-movente” de
diferenças em destaque.

Ciane Fernandes, Professora do Programa de Pós-Gradua-


ção em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia -
UFBA; pesquisadora associada do Laban/Bartenieff Institute
of Movement Studies. PhD em Artes e Humanidades para Intér-
pretes das Artes Cênicas pela New York University.

E-mail: cianef@gmail.com

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54
instituto de artes

O Contorno e a Criação: uma questão metodológica para a


pesquisa em dança

Flávio Soares Alves


Marília Vieira Soares

Resumo:
Toda pesquisa é um esforço duplo: ao mesmo tempo em que se abre às relações de investigação
– dando ânimo ao estímulo motivador da pesquisa – é também o esforço em dar contorno a experiência,
como prerrogativa metodológica. Assim a pesquisa é, ao mesmo tempo contorno e criação. Todavia, a
análise dicotômica vicia nosso olhar, na medida em que prioriza o investimento analítico, como recurso para
a prelazia da síntese. A experiência do corpo, no entanto, não se dobra a falácia da síntese, pois é uma
experiência dinâmica. Surge aí o engodo sobre o qual todo pesquisador deve se defrontar para dar curso
aos rumos de pesquisa. Para tanto, é preciso ver nas entrelinhas da investigação e encontrar o corpo e não
o que dele se especula. Eis aí o campo onde reina a pesquisa em dança, trabalho este derivado da
dissertação de Mestrado do autor.

Introdução

Quando o corpo dança e se entrega à da ação, que nos foi herdada pelo cartesia-
plenitude desta experiência, é como se o mo- nismo, mas a experiência insiste em apontar
vimento corporal entrasse em ebulição. O fer- esta atuação outra, forjada. Quando, por exem-
vor, borbulhando por entre a combinação de plo, somos chamados a expressar verbalmen-
movimentos desperta no corpo sensações ine- te o que sentimos na atuação da dança, falam
fáveis que arrebatam a ação motora, dando- mais nossos olhos reticentes e nossas inter-
lhe luminosidade. Aberto a esta intensidade, lá jeições vacilantes do que nossas proposições
onde era no instante mesmo, e que é, aqui, só mais eloqüentes. Que efeitos são estes que
opaca lembrança do que foi, não me encontrei nos acometem de tal modo que confundem a
em mim, mas num estado alterado da percep- voz da razão? A dança nos embevedece...
ção, no qual estranhava a mim mesmo, sedu- Quem dança mesmo?
zido por este estranho desconhecido em mim. Questão capciosa acomete o sujeito
Como, senão nesta estranha agitação, pode- ávido pela unidade do saber e pela providên-
ria experimentar novas maneiras de ser e de cia de conhecimento. Todavia, a solução des-
reinventar o corpo? A dança é o processo des- te questionamento é deveras insolúvel, quan-
ta agitação. do na efusão da dança, o corpo atua na sus-
É deveras equívoco pensar nesta atua- pensão do sujeito cartesiano, portanto, fora do
ção, se considerarmos a lógica do sujeito uni- alcance de sua manipulação analítica.
ficado, senhor no comando do pensamento e

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cadernos da pós-graduação

Pode parecer insensato tomar como O Contorno


insolúvel, assim de pronto, a questão que deu
origem a este trabalho. A precoce conclusão, O pensamento ocidental distorceu a vi-
porém, tem o propósito de amainar, desde já, são do corpo, interpretando-o num mal-enten-
minhas expectativas mais otimistas, quanto à dido que esconde a índole corporal sob um dis-
satisfação daquele que em mim indaga. Afi- parate metafísico mais preocupado com sin-
nal, quem indaga em mim senão eu mesmo? tomas de determinados corpos, do que com o
valor existencial destes corpos. Esta visão
Se esta questão surgiu em mim, e te-
sobre o corpo tem origem na concepção do
nho certeza de que sou eu mesmo, então há
corpo platônico, na qual, há uma distinção en-
uma injunção aí, que fratura a certeza do eu,
tre corpo e alma, como requisito necessário
visto que, algo foge a este contorno afirmativo
para que haja pensamento.
que define o sujeito, e insiste em retornar ques-
tionando a si próprio. Revela-se aqui o engodo O corpo é visto como um estorvo para
que resume o sujeito a seus próprios limites, a prática do pensamento. Desta forma, o pen-
para garantir a certeza de ser, e que mantém samento deve ser deliberadamente estrutu-
o questionamento deste contorno, apontando- rado, para que a razão possa alçar seus do-
o como arbitrário – daí a impossibilidade de mínios sobre as vontades individuais, con-
dissolver a questão. trolando-as.1

Eis o âmago deste trabalho: verificar o Assim, o corpo é visto destituído de sua
contorno que tenta dar conta da experiência potencialidade afirmativa, pois sobre sua von-
do corpo, tomando-o como um esforço tade individual, pesa uma vontade reguladora
especulativo produzido sob a perspectiva ra- que reduz a experiência a uma ilusão. O ho-
cional, que suspende a experiência, tomando- mem pensa sua condição de ser nos domíni-
a como objeto. Sob esta perspectiva dicotô- os desta ilusão e, através deste ponto de vis-
mica, lá onde a razão não alcança, reina ta, convenciona a verdade do ser: só ser na
intocável, a experiência em si. É aí que o cor- consciência do pensamento.
po se encontra em meio à espontaneidade e a A consciência é a faculdade do saber e
criação. É aí, portanto, que reina o universo da do entendimento, na qual se assenta o conhe-
dança. cimento. Ela organiza o pensamento fazendo-
O artista e o espectador percebem este o operar em detrimento das vontades individu-
momento no ato em que a dança está sendo, ais. Assim, é possível instalar no corpo um
já para o pesquisador – quando imerso numa pensamento que o toma como mero operador
perspectiva epistemológica – resta trabalhar de funções não próprias do corpo, mas nele
com os indícios de uma experiência primeira instaladas, como se os sentidos da existência
que, fatalmente cai nas rédeas da percepção pudessem se resumir à ação de um corpo
racional. Todavia, não antes de deixar seu bri- operacional alienado de si mesmo.
lho, seu arrebatamento. Como encarar este O corpo assim verificado se resume a
furtivo campo de verificação sem cair nas que- uma máquina. Foi René Descartes (1596-
relas da análise determinista e sistêmica? Este 1650) quem estendeu a concepção mecânica
texto quer mostrar uma possibilidade – dentre de universo físico, de Galileu Galilei, para o
as infinitas ainda não desbravadas – para se comportamento humano, instalando sobre o
alcançar este estranho universo de verificação. corpo, a figura do sujeito universal. Descartes

56
instituto de artes

enquadra a dualismo platônico sob as rédeas se fecha em si mesma para garantir sua
da ciência moderna, distinguindo corpo – ob- univocidade.
jeto da natureza (res extensa) – e uma subs- Descartando qualquer equívoco, o ho-
tância imaterial da mente pensante que anima mem estrutura logicamente suas bases do
o sujeito. A mente, segundo Descartes é “si- saber, e sobre elas edifica um pensamento que
nônimo de consciência, de alma e definidora se instala no sujeito para tentar subjugá-lo, aos
do eu, dá expressão à essência humana, da toques imperativos desta suprema ilusão do
qual o corpo está ‘excluído’.” 2 pensamento desencarnado.
Estendendo sua concepção de sujeito
para o âmbito das ciências, Descartes indaga
Trilhas para se encontrar a criação
sobre o que é possível saber, uma vez instala-
da definitivamente a fratura cartesiana na óti- A noção de subjetividade humana
ca do pensamento. Assim, distingue-se o pos- legada pelo cogito cartesiano dominou o pen-
sível saber – circunscrito no limites da repre- samento ocidental e atravessou ilesa e sobe-
sentação – do que não se pode reduzir no cam- rana por alguns séculos. A identidade do su-
po do conhecimento.3 jeito racional fundou a modernidade científica
Esta distinção considera o saber na e filosófica e esteve subjacente, até recente-
existência de um Eu unívoco que sabe que é mente, as principais teorias sociais e políticas
no movimento do pensamento: “Penso, logo ocidentais. “É ele, ainda, que está no centro
existo”, a partir daí, Descartes pergunta sobre da própria idéia moderna de educação.” 5
os limites deste sujeito do saber, segregado Entretanto, desde o final do século XIX,
de plena sabedoria, pois o pensamento racio- esta primazia passou a ser sumariamente
nal não alcança o que a ele se mostra equívo- questionada. Nas diversas áreas da humani-
co, indeterminado e que, por isto, é posto fora dade e das ciências, alardeia-se à morte do
de qualquer discussão racional.4 sujeito universal.6 A subjetividade humana tor-
A existência de uma alteridade no “Eu” nou-se uma construção em ruínas.7
que constitui, neste “Eu” mesmo, um “Tu” fra- Anunciando esta demolição, surge Carl
turado, em oposição à univocidade do “Eu” é Marx sob a égide da humanização, pela urgên-
uma exigência cartesiana: o sujeito deve sa- cia do desalojamento do cogito cartesiano.
ber que não compreende a infinitude – resguar- Marx descreve a trajetória histórica, na qual o
dada na segunda pessoa deste “Eu” fraturado homem foi gradativamente se separando das
– para poder ser um sujeito do saber. Assim, é condições objetivas de trabalho – aquelas que
possível lidar com as funções que operam na satisfaziam diretamente as vontades do cor-
faculdade do entendimento, convencionando- po. Neste percurso, o homem teve que renun-
se que não existe entre elas uma indetermi- ciar a seus desejos, em função da reprodu-
nação. ção do capital, assim ele alienou-se de seu
O conhecimento se depara com sua próprio corpo, para dar conta de uma vida so-
própria finitude, pois verifica que os saberes cial que fazia dele mais um, agregado a um
podem até convergir, mas somados não são organismo maior que o subjugava. A noção de
mais, se não outra coisa, neste mesmo cam- homem foi se tornando genérica, desumana.
po onde é possível saber. Neste sistema a fa- Com isto, do corpo, só importa o que dele se
culdade do entendimento humano convenciona faz função.
a verdade universal, numa circunscrição que

57
cadernos da pós-graduação

Todavia, o homem forja vida em meio a É aí que as prerrogativas freudianas se


esta “imposição de vida”, produzindo para si tornam inadequadas para a verificação do sím-
outras determinações, não só a despeito das bolo artístico. Isto acontece porque, o parale-
determinações impostas, mas em favor de lismo freudiano nos aproxima da relação entre
suas próprias vontades. Ao se confrontar com estados internos e movimentos expressivos.
o real, o homem negocia com este real posto, Esta relação, no entanto, não se restringe a
com a apresentação de um pressuposto, mor- uma dimensão pessoal. Entre o “Eu” e o “Tu”,
tal e limitado: o corpo. diria Jung, uma terceira dimensão relacional
Este primeiro levante contra a subjeti- se evidencia em meio à criação, dando origem
vidade alienada, anunciado por Marx em seu ao símbolo artístico.
materialismo dialético, não foi único, depois Para além do Eu e do Tu que reservam
dele prosseguiu uma incansável demolição do a perspectiva sob o foco da dimensão pesso-
cogito cartesiano, causando um estrago irre- al – o que reforça uma relação de causalidade
mediável e irreversível na pretensa unidade do entre o ato e um suposto referente em proje-
sujeito. ção na atuação – Jung nos alerta para a
Sigmund Freud resgata o sujeito carte- irredutibilidade de uma terceira dimensão que
siano e instala uma outra discussão sobre a atravessa o Eu e o Tu, sobrepondo sua deter-
dualidade que o constitui, ao verificar que, na minação. Esta dimensão traz a luz o universo
suspensão de um “Eu” pensante (que anun- dos arquétipos e conecta a atuação ao nível
cia: “Penso logo existo”), se apresenta um de um milenar inconsciente coletivo. Mediante
“Outro”, estranho e inconcebível que constitui tal ampliação da síntese corporal, o homem
o “Eu” nos interstícios desta unidade possível desloca sua percepção para uma direção
de se inscrever enquanto ser. É neste prospectiva. Visto daí, já não interessa o “por-
enquadramento que Freud introduz o conceito que” do movimento, mas sim o “para que”, num
de sujeito do inconsciente, para mostrar que encaminhamento sempre à diante da experi-
também há pensamento, sem a presença de ência vivida, na busca por sua transformação.
um Eu que cogita.8 Assim, o Tu, como segunda pessoa
O que nos interessa em Freud é o acha- constitutiva de um Eu que delibera, não com-
do do sujeito inconsciente e a noção de corpo porta plenamente algo que não admite redu-
pulsional, que desestabiliza o status do “Eu”, ção no contorno de um avesso reprimido, daí
surpreendendo-o com sinais estranhos a seus a projeção desta terceira dimensão que apon-
domínios restritivos. ta para o infinito, e que só tange a dimensão
pessoal como uma potência arquetípica, que
Através deste novo viés de conhecimen-
inspira o corpo a dar curso a seu movimento,
to, Freud retoma a questão da representação
não num paralelo consigo mesmo, mas em
abordada por Descartes, inserindo a dimen-
direção ao encontro de uma dimensão místi-
são do inconsciente (em efetuação na lingua-
ca.
gem) na determinação desta representação.
Freud, no entanto, fecha esta nova realidade A tensão entre forças opostas, portan-
na ordem do sintoma9, na medida em que bus- to, visto sob esta perspectiva, só é justamente
ca, nas suas análises, baseadas na verifica- verificada se desta tensão irromper esponta-
ção do referente, uma relação causal entre o neamente uma terceira dimensão conciliado-
físico e o psíquico – paralelismo psicofísico. ra. Só aí que o corpo criativo se ilumina e dá
curso ao símbolo artístico.

58
instituto de artes

A tensão por si só não faz nada, toda- A Física Moderna desloca seu campo
via ela é um começo. É o símbolo que lhe atra- de observação, ao perceber que nem tudo no
vessa e este não se faz sem movimento. Não mundo obedece às leis clássicas (referindo-
seria este caminho “entre” a tensão e o movi- se ao comportamento dos elétrons), não obe-
mento a chave para o entendimento da natu- decem, sequer, a um tipo clássico de lei – isto
reza do processo criativo? é, uma lei que rege o movimento dos objetos
É fato que só se alcança esta natureza reais.14
nas vias insólitas de uma consciência altera- Um deslocamento semelhante aconte-
da. É aí que a atuação se desprende da pers- ceu no campo das ciências humanas com a
pectiva cartesiana, para dar vazão ao corpo descoberta do “sujeito do inconsciente”. A partir
criativo. Neste enquadramento, observamos a daí, o homem ganha uma nova perspectiva de
dança em sua dimensão fantástica, só tangí- verificação de si. É aí que podemos deslocar
vel na atuação em si. Só então é possível de- a verificação da dança e encontrar um campo
bruçar sobre a dança e seu processo criativo, de análise fundado em prerrogativas não
ciente de que, sob este olhar, é possível trilhar deterministas, atentas à relação em si, autora
uma outra cena de sentidos, forjada do da criação, e não aos efeitos dela decorren-
enquadramento cartesiano. tes.
Em suma, o conhecimento nos apre-
Emendando os pontos senta as diversas maneiras como as ciências
humanas contornam a noção de ser, dando
A ciência moderna inaugurou uma fase uma forma especular ao que se designa ex-
onde o mundo parecia não ter outra escolha a periência humana. A dança, como uma expe-
não ser deixar-se levar pelas trilhas do racio- riência humana, por excelência, não foge à
nalismo cartesiano. Neste enquadramento não eminência deste contorno, é aí, portanto que
cabe o que foge à dimensão da razão especu- devemos ter cuidado e dar voz a uma pesqui-
lativa. Um grande exemplo deste âmbito analí- sa atenta as querelas da lógica racional. Só
tico é o engenhoso pensamento de Isaac então daremos o devido valor à experiência da
Newton (1643-1727). Graças a Newton, o ho- criação, tomando-a não como um objeto de
mem descobriu as leis que a natureza fala e pesquisa, mas como um atuante determinante
obedece. As leis de Newton reproduzem as dos próprios rumos da pesquisa. Um rumo por
leis da natureza com uma exatidão inexo- vir, na medida em que o pesquisador mergu-
rável. 10 Sob os trilhos deste pensamento lha na experiência de criação.
logicamente estruturado11, as medidas entre Sob este olhar o objeto se confunde com
uma causa e os efeitos por ela desencadea- o próprio pesquisador, ambos se constituem
dos podem ser mensurados. no movimento da pesquisa. É aí que o artista
Todavia, as certezas clássicas foram tem um grande trunfo: o seu próprio corpo,
abaladas, depois que Max Planck (1858-1947) como campo laboratorial, no qual as relações
isolou o fenômeno do quantum , e Albert de pesquisa vão sendo tecidas.
Einstein (1879-1955) apresentou ao mundo O artista consegue um diálogo bastan-
suas Teorias da Relatividade Especial e Ge- te fecundo entre as ciências e a arte, quando
ral12, abrindo caminho para a formulação da mergulha na análise de suas próprias criações.
Quântica por Niels Henryk Böhr (1885-1962), É aí que seu eixo epistemológico vai sendo tra-
entre outros.13 çado, não como efeito do que se apresentou

59
cadernos da pós-graduação

na experiência, mas como extensão da pró- de acordo com as demandas da experimenta-


pria criação experimentada, como traços ção. Assim, a pesquisa só se justifica neste
constitutivos de algo ainda em formação. movimento dinâmico. Sua apresentação ins-
É por isto que se deve ter cuidado na pira a novos investimentos de pesquisa, mas
prévia determinação dos caminhos da pesqui- outros, não mais estes mesmos já desbrava-
sa. Quando algo instiga a pesquisa, só temos dos.
deste estímulo um breve auscultar. Como pre- Surge aí a essência intangível da pró-
ver sua eminência se sua apresentação foge pria pesquisa: um processo investigativo por
aos limites do conhecimento? O próprio apon- vir em meio às negociações entre pesquisa-
tamento da pesquisa já indica tal injunção, afi- dor e seu desejo de pesquisa. Só se faz pes-
nal, não haveria pesquisa se o que se quer quisa, portanto, neste movimento relacional
pesquisar já fosse conhecido. que forja outros caminhos – contornos – em
A pesquisa é sempre um movimento à meio a seu poder de criação. Este poder po-
diante, na busca por um conhecimento. Pode- tencial só é verificado nas entrelinhas do qua-
mos traçar indícios, hipóteses, assumir um dro sistêmico e determinista posto.
campo metodológico instituído, enfim, apontar Tal como o deslocamento da física
traços mínimos sobre os quais a análise vai quântica sobre a clássica, é preciso ver a ex-
sendo destrinchada, afinal de contas pesquisar periência corporal com outros olhos e extrair
é traçar um contorno, mas o itinerário da pes- daí, uma outra dimensão de investigação. Aten-
quisa foge a um controle mais incisivo sobre o ta às relações e aos corpos atuantes e não ao
que é de fato experimentado pelo corpo, e é que deles se especula, como efeito de uma
exatamente aí que a criação se evidencia, ali- análise dicotômica. É aí que a pesquisa em
mentando o próprio curso da pesquisa. dança encontra sua inesgotável fonte de inves-
Levando a investigação nas vias da ex- tigação.
perimentação15, tal como Nietzsche fez com
sua filosofia, assumindo a falência da deter-
minação com o desdobramento de uma res- Flávio Soares Alves, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes
posta, que figura não mais que uma possibili- – UNICAMP. É coreógrafo e pesquisador interessado na análi-
se do processo criativo na sua relação com a experiência
dade translúcida – daí o eterno retorno da pes- corporal.
quisa ao âmbito do processo – é possível olhar E-mail: flavio_salves@hotmail.com
para a pesquisa de movimento e perceber aí Orientadora: Profa. Dra. Marília Vieira Soares, Docente junto
também um discurso metodológico. Ao pes- ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP.
quisador, cabe escutar este discurso no diálo- É diretora do grupo “Ar Cênico”, no qual desenvolve trabalhos
criativos a partir da Técnica Energética.
go entre a arte e a ciência, tecendo o perfil de E-mail: mvsoares@iar.unicamp.br
sua pesquisa mediante sua motivação (o estí-
mulo à pesquisa apontado no projeto), sua pro-
Notas
jeção (o que foi transformado em meio ao
movimento da pesquisa) e sua produção (o 1. Cf. Aurélio Guerra Neto. In: LINS, D. GADELHA, S. 2002, pp.
que se constituiu como efeito no discurso da 19-20.
pesquisa). 2. SANTAELLA, 2004, p. 15.
Sob esta dinâmica de pesquisa, a in- 3. GAUFEY, 1996, p. 22.
vestigação estará aberta a uma via metodo- 4. Idem, pp. 22-23.
lógica prospectiva, ou seja, uma via mutante 5. SANTAELLA, op. cit., p. 14.

60
instituto de artes

6. Idem, p. 15. KATZ, H. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo .


Tese de Doutorado. São Paulo: PUC-SP, 1994.
7. Ibidem, p. 16.
LINS, D; GADELHA, S. Que pode o corpo? Rio de Janeiro:
8. GAUFEY, op. cit., p. 11.
Relumé Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Des-
9. JUNG, 1991, pp. 58-59. O sintoma é da ordem do perverso, porto, 2002.
é algo que vem à luz quando deveria estar oculto. O sintoma
SANTAELLA, Luís. Corpo e Comunicação: sintoma da cultu-
revela um comportamento doentio no sujeito, e que deve ser
ra. São Paulo: Paulus, 2004.
reprimido, devido a sua incompatibilidade moral com o cons-
ciente.
10. Idem, p. 49.

11. Ibidem, p. 49.

12. SOARES, 2000, pp. 18-19. Einstein observa que os pro-


cessos clássicos de apreensão de um fenômeno físico se
sustentam na separação entre o espaço e o tempo, criando
assim uma falsa noção de continuidade ao se verificar o
movimento da matéria. Esta separação torna relativa a rela-
ção entre ambas, pois, ao pensar em coisas espaciais é
preciso considerar que cada observador, dependendo da
perspectiva que confere esta coisa no espaço, tem um tem-
po e um movimento, dado na sua perspectiva de observa-
ção, de maneira que, a coisa no espaço parece de uma
forma relativa, sua aparência é produto de um olhar situado
num espaço e num tempo. Quando as observações variam
no espaço e no tempo, as formas (as medições) também se
alteram, daí a relatividade. Conceber uma forma absoluta só
é possível na relação indissociável do espaço-tempo.
HERBERT, 1989, p. 53. Einstein alterou profundamente nos-
sas idéias comuns de tempo e espaço, noções tão profun-
damente incrustadas na experiência humana que pareciam
inquestionáveis, quando expostas ao olhar pragmático e
reducionista da física clássica.

13. KATZ, 1994, p. 8.

14. HERBERT, 1989, p. 51.

15. Aurélio Guerra Neto. In: LINS, D.; GADELHA, S. 2002, p. 34.
Para Nietzsche, o pesquisador deve ser como um
“experimentador” que se põe à prova em vários domínios,
sem certeza e sem segurança, para ver até onde pode ir.
Como um navegador que avança num mar desconhecido, o
que faz confundir sua trajetória com os rumos de sua pró-
pria vida.

Referências Bibliográficas

ALVES, Fábio Soares. Face a ecaF: quando ´Tu´ Dança. Cam-


pinas, SP: Dissertação de Mestrado - Instituto de Artes -
UNICAMP, 2006.
GAUFEY. G. L. L´Incomplétude du symbolique: de René Des-
cartes à Jacques Lacan. Paris: EPEL, 1996.
HERBERT, N. A realidade quântica: nos confins da nova físi-
ca. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
JUNG, Gustav Carl. O Espírito da Arte e na Ciência. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1991.

61
62
instituto de artes

Encarnando o Verbo

Sara Pereira Lopes

Resumo:
A função poética da voz encontra um percurso, em sua construção, na identificação, reconheci-
mento e experimentação dos componentes corporais da voz e da palavra. Este texto nomeia alguns destes
componentes e propõe seu exercício na busca pela vocalidade poética.

O trabalho do intérprete compõe uma das artes de transmissão oral, cabe à voz res-
inscrição do poético no corpo. Esta inscrição tabelecer esta ligação, não para retomar um
se refere ao significante que marca o corpo, modo antigo e incompreensível de falar, mas
que o desenha, que o põe em movimento, que para revelar as energias sonoras que formam
o produz e que, gravado no corpo, como voz e o discurso e reverberam em sentidos não-ver-
movimento, deixa-se ler, dando-se ao olhar, e bais inesperados.
ouvir, como sons que compõem uma musica- A construção da vocalidade começa
lidade. Por essa inscrição, o espectador é con- pelo reconhecimento das respostas sensori-
duzido e tomado pelo corpo do intérprete que ais, sensuais, emocionais e físicas contidas
deve prestar-se menos ao que o texto supos- nas vogais e consoantes que constituem as
tamente pode significar, mas principalmente ao palavras.
que é estimulado e posto em movimento dian-
A beleza de uma vogal não reside na
te de sua escuta dos significantes do texto e
correção de sua pronúncia, de acordo com um
da inscrição destes no seu corpo.
modelo arbitrário; está na sua musicalidade
Na voz, há um potencial inato para uma intrínseca, sua sensualidade, seu movimento
vasta escala de tons, harmonias e texturas. gerador interno, seu tom étnico, sua expres-
Sua articulação, num discurso claro, respon- sividade. Compostas por vibrações da voz
de a um pensamento claro e ao desejo de co- humana, as vogais são moldadas por altera-
municar. Assim, à voz configurada - e não ini- ções sutis no formato dos canais por onde flu-
bida - pelo pensamento cabe revelar - e não em essas vibrações. Como os canais se es-
descrever - os impulsos e processos internos treitam ou se alargam, as vibrações também
da palavra significante para que se faça ouvir mudam sua forma - emissão1 e altura2 - para
aquele que fala, e não apenas sua voz. criar, na entoação3, os elementos fundamen-
O condicionamento social e o desen- tais da música da fala. Quando a entoação da
volvimento da tecnologia da comunicação cau- vogal se funde com as inflexões do pensamen-
sam interferência direta na conexão das pala- to, o resultado é a harmonização de uma
vras com o aparato sensorial do corpo. Como multiplicidade de aspectos.
elemento de representação, na configuração

63
cadernos da pós-graduação

As vogais podem ser vistas como o seu significado. Para a voz isto quer dizer: res-
componente emocional da construção das tabelecer a ligação da fala com o corpo, per-
palavras e as consoantes como seu compo- mitindo que os sentidos sejam informados pelo
nente intelectual. As vogais pedem o canal gosto, toque, cor e sonoridade das palavras,
aberto da respiração até a boca. As consoan- que o som aja fisicamente, que o conteúdo fí-
tes são formadas por oposição de partes da sico, sensorial, sensual e emocional das vo-
boca à passagem do ar, criando explosões, gais e consoantes seja experimentado. O en-
reverberações, zunidos e liqüescências por contro daquele que diz com os significantes
meio da respiração e da vibração. Por sua que organizam o texto é sensual: constitui um
conexão direta e ininterrupta com a respiração, prazer por meio da pronúncia e do saborear
as vogais podem se ligar diretamente à emo- das palavras que, como materialidade corpó-
ção, desde que o impulso inicial do ar esteja rea, chegam ao corpo do espectador pelo ou-
ancorado no diafragma. O plexo solar - primeiro vido e pelo olho.
centro nervoso receptor e transmissor emoci- Para Roland Barthes a escritura vocal
onal - entrelaça-se às fibras do diafragma. A não é a fala e consiste no que Artaud reco-
emoção, o desejo, e o impulso criativo estão mendava:
intrinsecamente ligados ao sistema nervoso
central. As consoantes fornecem uma experi- “a escritura em voz alta não é expressiva..., ela
ência sensorial traduzida em estados de espí- pertence... à significância; é transportada, não
rito, modulando e canalizando as vogais em pelas inflexões dramáticas, pelas entonações
percursos que fazem de suas emoções, sen- maliciosas, os acentos complacentes, mas pelo
tido. O som das consoantes comunica-se mais grão da voz, que é um misto erótico de timbre e
externamente, através do corpo, dando origem de linguagem, e pode portanto ser por sua vez,
a estados de espírito e efeitos, mais que emo- tal como a dicção, a matéria de uma arte: a arte
ções. As vibrações das consoantes trabalham de conduzir o próprio corpo... Com respeito aos
sons da língua, a escritura em voz alta não é
através dos ossos, dos músculos, da pele,
fonológica, mas fonética; seu objetivo não é a
para sua percepção. As vogais tem acesso
clareza das mensagens, o teatro das emoções;
direto ao plexo solar. o que ela procura (numa perspectiva de fruição)
Consciente ou inconscientemente, um são os incidentes pulsionais, a linguagem
bom compositor de textos utiliza sons inter- atapetada de pele, um texto onde se possa ouvir
nos às palavras para transmitir impressões e o grão da garganta, a pátina das consoantes, a
acentuar sentidos. E não o faz apenas atra- voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia
vés das imagens que cria mas, também, atra- da carne profunda: a articulação do corpo, da lín-
gua, não a do sentido, da linguagem.” 4
vés dos sons das palavras com os quais cons-
trói as imagens.
As vogais e consoantes são agentes As informações sonoras, contidas nas
sensoriais do discurso. Elas comunicam in- vogais e consoantes, vão se justapor na for-
formações nas ondas sonoras, transmitem mação das palavras, estabelecendo o poético
sentidos não-verbais de quem fala para quem do discurso, a criação de alguém que assume
ouve. Entrar no tom de um texto, para poder uma nova relação simbólica com o mundo.
comunicá-lo totalmente, significa tornar-se Nele, as energias da linguagem se desenvol-
permeável à sensação das vogais e consoan- vem em circuitos que são, ao mesmo tempo,
tes, à anatomia das palavras tanto quanto ao introvertidos e extrovertidos.

64
instituto de artes

O desenvolvimento da capacidade de ção e ser experienciados nas centrais e termi-


falar poeticamente depende, pois, da consci- nações nervosas dos sistemas sensorial e
ência de como as palavras devem ser ditas. emocional; o sentido experienciado da palavra,
É fácil afirmar ter ouvido e, portanto, então, pode ser encaminhado aos canais das
entendido as palavras. É o que se faz o tempo vibrações pelos articuladores de desejo que
todo. As palavras são um hábito; o pensamento são as vogais e consoantes. A palavra, na pá-
segue parâmetros. Uma experiência diferen- gina, ganha sentido na imaginação; seu senti-
ciada e mais profunda deve se livrar da audi- do torna-se imaginação experienciada no cor-
ção e seu significado, parar de ter a audição po; o sentido experienciado transforma-se na
como garantia de saber o que se ouve e, por- palavra falada.
tanto, entender o que é dito. A imaginação está ligada à criação de
O poético permite que o intérprete pos- imagens, concretas ou não. Uma imagem, no
sa suspender o nível do significado para tra- pensamento, pode ser pura e simplesmente
balhar no nível do significante que, por não contemplada com os olhos da mente; ou pode
constituir um sentido preestabelecido, afeta o envolver, provocando impressões, emoções,
corpo em sua materialidade sonora. despertando reações: experienciar é diferente
de apreciar. Um diz respeito a pensar sobre;
Essa perspectiva considera o prazer
outro significa apenas pensar. Se tratadas
provocado pela inscrição do poético no corpo.
como signos puros, as imagens geram um
Corpo que, então, mostra-se como resultado
discurso vazio; experienciadas, criam uma
de uma dada rede organizada de significantes
ação interna a ser revelada, de modo direto e
que o produz. Trata-se de entender o poético
transparente, pelas palavras. Assim, aquilo que
como aquilo que, por se sustentar no jogo de
deu origem à linguagem vai dotar as emoções
significantes traz, por isso mesmo, a possibi-
de um sentido inteligente se, apenas, se falar.
lidade de rupturas, de surpresas, de criação,
de novo e de exploração dos sons de uma lín- Intrínsecas às palavras, as imagens
gua no que esta, em sua ordem – e (diz!)ordem revelam a linguagem como uma arte ao mes-
– autoriza e desautoriza em termos de jogos mo tempo figurativa e abstrata, guiando mais
metafóricos e metonímicos. diretamente, com menos justificativas, à emo-
ção do que a lógica racional. Quando concre-
Quando as palavras são vistas, sabo-
tas, a visualização é facilitada; quando abstra-
readas, sentidas, tocadas, elas criam profun-
tas, pedem um pouco mais de empenho do
didade e rompem os padrões estabelecidos
imaginário na formação do olhar. Introduzir a
do pensamento; despertam emoções, memó-
visão ao sentido da palavra permite a emer-
rias, associações e detonam a imaginação;
gência e a multiplicação das imagens. Inde-
trazem vida. A necessidade de algo concreto
pendente de sua categoria, qualquer palavra é
nas palavras associa-se à paixão do proces-
passível de associação e conexão com as
so criativo do artista: as palavras devem ser
emoções ou os sentidos, variando seu grau
as coisas, devem ser os sentidos, devem ser
de intensidade de acordo com seu conteúdo,
as emoções para poderem revelar a profundi-
revelando o emocional e o racional que há na
dade da condição humana.
linguagem. Todas acordam modos de ser, esta-
Transferir a palavra, da página impres-
dos de espírito, sensações, emoções. Todas
sa, para o nível sensorial, constitui um proces-
são passíveis de representação: re-apresen-
so artesanal: o caráter e a função autônomos
tam o despertar interno da condição humana,
de cada palavra devem criar vida na imagina-
integrando um imaginário.

65
cadernos da pós-graduação

Explorar vogais, consoantes e suas ‘coreografia’ mas permitam que as mudanças


combinações dá acesso a sensações e ener- de energia alterem suas qualidades - ritmo,
gias do som e abre a possibilidade de organi- volume, tom, direção -, impedindo que ganhe
zar o caos sonoro ao propor alguma coisa que um sentido literal ou seja transposta para um
pode ser ouvida, vista, trocada entre pessoas. contexto familiar. A palavra física serve para
As coisas se organizam pelo estabelecimento guiar a uma comunicação não referencial.
de relações e pela proposta de uma certa pro- A mesma atitude pode ser tomada em
gressão dos elementos. Assim é possível ver relação a palavras já existentes. Uma seqüên-
como os elementos afetam uns aos outros e cia que tenha início com onomatopéias deve,
como podem ser usados em combinações a princípio, ignorar seu significado. É na ela-
complexas, a partir da escolha de possibilida- boração de suas formas, no corpo, que se
des. construirá uma imagem, ou sentido, formado
As vogais, por exemplo, têm relação pela coleção de sons. Este sentido físico, que
com o espaço. É possível projetá-las e fazê- se soma às vibrações do som, provoca sen-
las moverem-se. Cada uma delas tem quali- sações, associações, movimento. As palavras
dade e formas diferentes no corpo, bem como com imagens concretas, anatomizadas, ins-
senso de direção no espaço. A esta explora- piradas para o centro do corpo, geram sensa-
ção devem se juntar as consoantes, que vão ções que vão encontrar o som, moldado pela
alterar a textura e propor a sintaxe. boca, como se precisassem daquelas formas
Experimentar as possibilidades de arti- específicas para se expressar, fazendo-as
culação, mesmo que fora dos limites do uso servirem à imagem. As sensações se mani-
comum dos sons, dá liberdade e conduz à festam por meio da palavra que pode contê-
compreensão da fisicidade presente na cons- las.
trução da mecânica da palavra. Se as possibi- O mesmo se dá com as palavras de
lidades de articulação forem vistas como for- imagem abstrata, de ação e de ligação. Na
mas, é possível esculpir o som numa seqüên- construção de uma seqüência, o que se exer-
cia de movimentos, ou coreografar os movi- cita é a condição de deixar que uma imagem
mentos da boca construindo um móbile de siga a outra, deixando as sensações fluírem
som. de imagem para imagem. O objetivo é permitir
É possível criar uma ‘palavra’ por meio que as palavras, conectadas ao corpo, via ima-
de processos físicos, mais do que através de ginário, alterem a voz criando sentidos para
um conceito intelectual sobreposto a uma co- além dos significados. As imagens guiam mais
leção de sílabas. O objetivo é abrir, no sistema diretamente, com menos justificativas, à emo-
nervoso, tantos canais quanto seja possível, ção do que a lógica racional.
que respondam a uma palavra quando ela é Essa conexão profunda e instintiva das
recebida ou concebida pelo corpo. Enquanto palavras com o sensorial encaminha para uma
a boca molda fisicamente as vibrações, o cor- compreensão mais total do texto, tornando a
po é contaminado por um movimento próprio, fala mais apta a revelar do que descrever o
interno, que se manifesta até o exterior. O re- conteúdo interno da expressão: a palavra, de
sultado que se ouve, nesse momento, deve símbolo, torna-se feita carne.
ignorar o retorno mental em favor da consci- Na relação com um texto é preciso en-
ência física. Esta palavra pode ser usada como carar os sentidos acumulados que as palavras
base para improvisações que mantenham a acabam por constituir em suas várias combi-

66
instituto de artes

nações. Uma categoria de palavras liga-se a A abordagem do texto, já escrito ou im-


outra, estabelecendo relações e criando o dra- provisado, pode trabalhar fixando temas e
ma da linguagem na geração de novas ima- estruturas e experimentar sobre os ritmos, al-
gens. Falar, nesse caso, demonstra as rela- ternando sentidos ao alterar palavras e ou re-
ções entre emoção, impulso instintivo, resposta lações entre elas.
sensorial, ação física e vocal. Este quadro de As formas tornam-se menos abstratas
trabalho é complementado por uma inteligên- e arbitrárias, tornando possível expressões
cia racional que molda tudo isso em formas verbais e físicas originadas mais diretamente
que constituem sentidos e significados. Este nas emoções, por meio dos sons.
pensamento não deve estar sufocado pela
A voz cria ligação entre várias coisas
emoção, nem disfarçado por defesas, nem
que vêm do corpo, enquanto ele dá sentido à
confundido por impulsos anárquicos.
produção verbal.
Desenvolver e experienciar o percurso
de respostas palavra-imagem-emoção pede a
modificação de hábitos arraigados. No caso
Sara Pereira Lopes, Docente junto ao Depto. de Artes Cêni-
da leitura, o hábito preexistente é, provavelmen- cas do Instituto de Artes – UNICAMP.
te, linear: ler rapidamente as linhas impressas E-mail: slopes@iar.unicamp.br

para saber, ao final, quais as informações que


contêm. Isto não é errado. Mas não é tudo.
Deixar de lado o interesse pelos resultados faz Notas

parte do processo.
1. A emissão caracteriza uma voz e uma fala pois diz respei-
A leitura em voz alta, feita da forma ha- to à forma dada ao som pelo trabalho da musculatura dos
bitual, segue um padrão: palavra impressa - órgãos fonadores (palato mole, língua, lábios), definindo o
que se pode chamar de postura vocal.
olho - lobo frontal - pensamento sobre - fala
sobre. Modificar este hábito pede um novo 2. A altura, juntamente com a duração e a intensidade, é
um dos parâmetros do som.
modelo: palavra impressa - olho - imagem -
3. A entoação é a curva melódica criada pela fala, garantia de
respiração - sensação - experiência/memória/ seus sentidos.
emoção - som - palavra falada. O corpo torna-
4. BARTHES, 2004, pp. 85-86.
se mais sensível às sutilezas dos impulsos do
pensamento/respiração/som quando o olhar
físico e o mental tornam-se um só. A matéria Referências Bibliográficas
densa do corpo refina-se na matéria sutil das
ondas de som e pensamento e as palavras BARTHES, Roland. O Grão da Voz. São Paulo: Martins Fontes,
ganham um estado físico mais sólido, tornam- 2004.
se sensorialmente familiares, criando sua pró- LINKLATER, Kristin. Freeing the Natural Voice. New York: Drama
pria reserva de associações, memórias, me- Book Publishers, 1976.

lodia e ritmo. Esta reserva garante vida, cará- MURCE, Newton. O ator, a vocalidade poética e uma escritura
no corpo. Monografia. Campinas, 2002.
ter e independência às palavras, enquanto
constroem um sentido geral que será revela- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
do com um significado mais profundo do que
___________. Introduction à la Poésie Orale. Paris: Édition
aquele alcançado pelo esforço puramente in- du Seuil, 1983.
telectual.

67
68
instituto de artes

O Acontecimento da Voz

Márcia Cristina Baltazar


Sara Pereira Lopes

Resumo:
A intenção deste artigo é fazer um paralelo entre o pensamento de Paul Zumthor e o de Gilles
Deleuze onde ambos concebem a voz ou a linguagem (esta aqui entendida como fala) como acontecimen-
to, onde o corpo fala e a voz gesticula na duração do instante do ato vocal. As obras aqui tratadas são
Introdução à Poesia Oral, de Paul Zumthor, e Lógica do Sentido, de Gilles Deleuze.

OS AUTORES

Paul Zumthor, medievalista contempo- “(...) Ora, a voz é querer dizer e vontade de exis-
râneo, impulsionou os estudos sobre a poéti- tência, lugar de uma ausência que, nela, se trans-
ca da oralidade, entendendo a oralidade como forma em presença; (...).” 1
um campo para além da antropologia e funda-
“(...) A voz não traz a linguagem: a linguagem
mentada na materialidade da voz em presen-
nela transita, sem deixar traço. (...) A voz se diz
ça. Por isso, preferiu o termo vocalidade ao de
enquanto diz; em si ela é pura exigência. Seu
oralidade e dedicou-se ao estudo da voz en- uso oferece um prazer, alegria de emanação que,
quanto poética. sem cessar, a voz aspira a reatualizar no fluxo
Deleuze, filósofo também contemporâ- lingüístico que ela manifesta e que, por sua vez
neo, junto com outros pensadores e fundamen- a parasita.” 2
tado noutros (Espinosa, Nietzsche, Foucault,
entre outros), pensou a imanência, a diferen- “O sopro da voz é criador.” 3
ça, o espaço-tempo fronteiriço entre o virtual e
o real, o devir enquanto eterno devir-outro. Seu O autor, em toda sua obra, desenvolve
pensamento se constrói em torno do relacional, a tese da poesia da voz como fugaz. Fugaz
de um espaço-tempo impessoal constituído não em termos históricos, por ser esquecida
pelo acontecimento do encontro. ou modificada com o tempo-espaço, embora
isso também ocorra e seja conceituado como
A VOZ E A FALA a “movência” da poesia oral. Mas fugaz, sim,
devido à própria natureza da voz, sua concre-
Paul Zumthor, inicia seu livro Introdução tude, materialidade ou fisicidade (a “voz é uma
à Poesia Oral (1997) com um capítulo sobre a coisa”).4
voz enquanto presença. A voz é enquanto é. A voz é expressão
concretizada em presença do emissor e do

69
cadernos da pós-graduação

ouvinte, ou seja, só se concretiza enquanto des atinentes a estes corpos para entrar com
expressão na relação. Por isso, a dicotomia eles em uma nova relação, a de designação e
da voz: por um lado a sua materialidade e exprimir este poder de falar e ser falado. (...) A
exterioridade enquanto som, por outro, sua expressão se funda no acontecimento como en-
tidade do exprimível ou do expresso. O que torna
expressão (e interioridade) pelo universo dos
a linguagem possível é o acontecimento, enquan-
signos, indo, o som vocalizado, “de interior a
to não se confunde, nem com o estado daquele
interior e liga, sem outra mediação, duas exis- que a pronuncia, nem com o estado de coisas
tências”.5 designado pela proposição.” 7
Por outra via, mas em confluência com
o pensamento de Zumthor, Deleuze analisa a “Quando se diz que o som se torna independen-
linguagem como possível apenas no aconte- te, pretende-se dizer que deixa de ser uma qua-
lidade específica atinente aos corpos, ruído ou
cimento.
grito, para designar agora qualidades, manifes-
Para Deleuze, a linguagem é capaz de tar corpos, significar sujeitos e predicados. Jus-
realizar uma síntese (“síntese disjuntiva”) do tamente, o som não toma um valor convencional
antes e do depois que surgem com a atualiza- na designação _ e um valor costumeiro na mani-
ção do acontecimento, pois a linguagem é um festação, um valor artificial na significação_ se-
acontecimento enquanto acontecimento. En- não porque leva sua independência à superfície
quanto se fala, se cria o falável-falado. de uma mais alta instância: a expressividade.” 8

“A efetuação nos corpos (encarnação ou atuali- Como Deleuze, Zumthor desenvolve


zação do acontecimento) gera apenas a suces- seu pensamento sobre a poética da oralidade
são de dois estados de coisas, antes-depois, referindo-se ao território-tempo da imanência,
segundo o princípio da disjunção exclusiva, ao ao instante de seu acontecimento, à expres-
passo que a linguagem recolhe a diferença des-
sividade, ao poético e ao momento de distin-
ses estados de coisas, o puro instante de sua
ção/conjunção profundidade-superfície.
disjunção (Aion): ocorre realizar a síntese
disjuntiva do acontecimento, e é essa diferença
que faz sentido.” 6 “Toda palavra poética (passe ou não pela escrita)
emerge de um lugar interior e incerto, que bem
ou mal, se nomeia por metáforas: fonte, fundo,
Mas, para Deleuze, a linguagem não eu, vida... Ela nada designa, propriamente falan-
pertence apenas ao universo dos signos, ali- do. Um acontecimento se produz, de modo qua-
ás, ela só é acontecimento por pertencer tam- se aleatório, (o próprio rito não é mais que uma
bém ao mundo. Os sons (do universo do mun- apropriação do acaso), num espírito humano,
do) e os signos (do universo da linguagem) só sobre os lábios, sob a mão, e eis que se dilui
acontecem e têm sentido porque se dão num uma nova ordem, revela-se outra, abre-se um sis-
instante de ainda-futuro e já-passado. tema, e interrompe-se a entropia universal. Lu-
gar e tempo onde, num excesso de existência,
um indivíduo encontra a história e, de maneira
“(...) Há sempre alguém que começa a falar; aque- dissimulada, parcial, progressiva, modifica as
le que fala é o manifestante; aquilo que se fala é regras de sua própria língua.” 9
o designado; o que se diz são as significações.
O acontecimento não é nada disto: ele não fala “(...) Em torno do poema que se faz, turbilhona
mais do que dele se fala ou do que se o diz. (...) uma nebulosa mal extraída do caos. Súbito, um
É sempre de corpos e de suas misturas que fa- ritmo surge, revestido de trapos de verbo, vertigi-
lamos, mas os sons cessaram de ser qualida- noso, vertical, jato de luz: tudo aí se revela e se

70
instituto de artes

forma. Tudo: simultaneamente o que fala, aquilo “A performance configura uma experiência, mas
de que se fala e a quem se fala.” 10 ao mesmo tempo é a própria experiência. En-
quanto ela dura, suspende a ação do julgamen-
to. O texto que se propõe, no ponto de conver-
Assim, para esses autores pouco im- gência dos elementos desse espetáculo vivido,
porta a subjetividade dos que falam e dos que não provoca a interpretação. A voz que o pronun-
ouvem, mas a confluência de forças tempo- cia não se projeta nele (como o faria a fala na
espaciais que atuam no ato da fala e configu- escrita): ela se faz, no texto e com o texto, toda-
ram um momento criador. presente; entretanto, não mais que a voz, ele não
se fecha.” 14

O CORPO QUE FALA “Portanto, o texto poético oral leva necessaria-


mente o ouvinte a se identificar com o mensagei-
Adiante em sua obra aqui tratada,
ro das palavras sentidas em comum, ou até com
Zumthor analisa a relação entre os corpos no
as próprias palavras. (...) a performance unifica e
ato da poesia oral, em sua materialidade. Para une. Essa é sua função permanente.” 15
tal empreitada, parte para um estudo de uma
“fenomenologia da recepção”11, embora sem-
pre retorne ao acontecimento da voz enquan- Zumthor, também caracteriza o ato da
to tal. performance poética como aquele que requer
algum grau de formalização e uma tomada de
Assim, o pensamento de Zumthor so-
responsabilidade de seus atores (intérprete e
bre os atores e as circunstâncias de tempo e
ouvinte). Além disso, a performance requer
espaço onde ocorrem as relações da oralidade
competência.
poética, ou se quisermos, o seu estudo sobre
a fenomenologia da poesia oral, ilumina a ques-
“Performance implica competência. Além de um
tão da voz não só do ponto de vista de uma
saber-fazer e de um saber-dizer, a performance
expressão em devir, mas também a questão
manifesta um saber-ser no tempo e no espaço.
da voz enquanto um fenômeno da poesia. O que quer que, por meios lingüísticos, o texto
Como já dissemos, o autor não trata da dito ou cantado evoque, a performance lhe im-
pessoalidade das relações, mas de papéis e põe um referente global que é da ordem do cor-
funções no discurso da poesia oral. “O em- po. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar;
prego do eu importa pouco. A função espeta- a voz o proclama (...). A voz aceita beatificamente
cular da performance torna bastante ambíguo sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo
se colore na língua, nada mais nela é neutro, as
esse pronome, porque se dilui, na consciên-
palavras escorrem, carregadas de intenções, de
cia do ouvinte, seu valor referencial.” 12
odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou
Dessa forma, o autor formula, então, aquilo com que o homem os representa). A poe-
seu conceito de performance. sia não mais se liga às categorias do fazer, mas
às do processo ...” 16
“A performance é a ação complexa pela qual uma
mensagem poética é simultaneamente, aqui e Portanto, “a oralidade não se reduz à
agora, transmitida e percebida. Locutor, destina-
ação da voz”17, ela implica na integração do
tário e circunstâncias (...) se encontram concre-
corpo.
tamente confrontados, indiscutíveis.” 13

“O gesto gera no espaço a forma externa do


E pelo ponto de vista da recepção: poema.” 18

71
cadernos da pós-graduação

Assim, Zumthor pensa a unicidade da Notas

voz e do corpo na performance poética, e no-


1. ZUMTHOR, 1997, p. 11.
vamente seu pensamento se encontra com o
de Deleuze, que considera toda criação artís- 2. Idem, p. 13.

tica como uma reflexão do raciocínio (opera- 3. Ibidem, p. 12.


ção da linguagem) no corpo e do corpo no ra- 4. Ibidem, p. 11.
ciocínio. 5. Ibidem, p. 15. “A enunciação da palavra ganha em si mesma
valor de ato simbólico: graças à voz ela é exibição e dom,
Especificamente com relação ao tea-
agressão, conquista e esperança de consumação do outro;
tro, o ator em ato, criando o momento poético interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisi-
teatral, necessariamente reflete no palco um camente o objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de
interior a interior e liga, sem outra mediação, duas existênci-
corpo-linguagem, sem dualismos entre gesto as.”
e voz, entre mímica e raciocínio, mas antes,
6. ZOURABICHVILI, 2004, p. 16.
explicitando suas mesclas.
7. DELEUZE, 2003, p. 187. “Da linguagem”.
Citando Zumthor, ao falar do teatro
8. Idem, p. 191. “Da oralidade”.
performático (segundo o seu conceito de
9. ZUMTHOR, op. cit., p. 167, grifo nosso.
performance) que envolve gesto e voz:
10. Idem, p. 167.

“’Polifonia de informação’, como dizia Roland 11. Ibidem, p. 155.

Barthes, o teatro aparece como uma escritura 12. Ibidem, p. 243.


do corpo: integrando a voz portadora de lingua- 13. Ibidem, p. 33.
gem a um grafismo traçado pela presença de um
14. Ibidem, p. 247.
ser em toda a intensidade do que o torna huma-
15. Ibidem, p. 247.
no. Nisto, ele constitui o modelo absoluto de toda
poesia oral.” 19 16. Ibidem, p. 157.

17. Ibidem, p. 203.

Enfim, na arte enquanto acontecimen- 18. Ibidem, p. 207.

to, assim como na voz, toda distinção entre 19. Ibidem, p. 58.

raciocínio e ação, linguagem e gesto, mente e


corpo, profundidade e superfície se dilui, pois
o devir, como o compreende Deleuze, ou, o Referências Bibliográficas

poético, como compreende Zumthor, põe to-


DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva,
das essas forças em conexão.
4a. ed, 2003.
Quanto à voz em presença ou à fala, ZOURABICHVILI. François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de
esta só se manifesta enquanto acontecimen- Janeiro: Relume-Dumará, 2004.
to, e só é acontecimento porque conflui espíri- ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Trad. Jerusa Pires
to e matéria ou corpo e mente. Ferreira. São Paulo: Hucitec/Educ,1997.

Márcia Cristina Baltazar, Doutoranda em Artes, Instituto de


Artes – UNICAMP.
E-mail: marciabalta@yahoo.com.br.

Orientadora: Profa. Dra. Sara Pereira Lopes, Docente junto


ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes – UNICAMP.
E-mail: slopes@iar.ubnicamp.br

72
instituto de artes

Os Estúdios Teatrais e a Cultura do Ator

Camilo Scandolara
Maria Lúcia Levy Candeias

Resumo:
Este artigo sintetiza parte da dissertação de mestrado “Os estúdios do Teatro de Arte de Moscou
e a formação da pedagogia teatral no século XX”, defendida pelo autor. O artigo aponta algumas das influên-
cias das pesquisas realizadas por Stanislávski, Sulerjítski e Vakhtângov no contexto dos estúdios teatrais
formados junto ao Teatro de Arte de Moscou na tradição teatral ocidental do século XX.

Uma das principais realizações do sé- teatrais do século passado. O gesto de


culo XX teatral foi a afirmação absoluta da ne- Stanislávski de fundar o Estúdio é visto por
cessidade de existência de espaços de desen- Mollica como uma “reação do artesão às im-
volvimento e sistematização de pedagogias de posições da indústria do teatro, do ator à inva-
formação de ator. Voltados a este fim, forma- são do diretor, do homem à instrumentalizaçao
ram-se núcleos, na maioria das vezes afasta- cada vez mais condicionante da atividade cri-
dos do teatro comercial, nos quais se desen- ativa.” 1
volveram experimentos que alteraram definiti- Mollica refere-se a Stanislávski como
vamente a visão ocidental de formação do ator. um “criador de possibilidades de teatro”.2 Para
No início deste processo podem ser coloca- isto considera sua atuação dentro do Primeiro
dos o Primeiro Estúdio do Teatro de Arte de Estúdio, onde se buscava dar um caráter de
Moscou – TAM, e a École du Vieux Colombier, investigação constante ao fazer teatral, fugin-
de Jacques Copeau. Seus desdobramentos do da repetição de fórmulas. Este caráter de
cronologicamente mais próximos podem ser investigação e de criação de possibilidades de
analisados por meio dos trabalhos do Teatro teatro é uma característica determinante do
Laboratório de Jerzy Grotowski e do Odin trabalho dos estúdios, núcleos e laboratórios
Teatret, de Eugenio Barba, dentre outros. citados acima, bem como de outros formados
Os estúdios são vistos por Fabio ao longo do século XX.
Mollica como manifestações da insatisfação A pedagogia teatral anterior era basea-
dos renovadores do teatro do século XX em da em procedimentos externos transformados
relação às instituições. Franco Ruffini afirma em códigos para expressão de sentimentos.
que os estúdios foram uma invenção de Resultava numa representação convencional
Stanislávski, a partir do Primeiro Estúdio do de estados de ânimo e de imagens. A experi-
TAM, fundado em 1912. Para Mollica este es- ência do Teatro Estúdio de 1905 já havia mos-
túdio é um exemplo do processo de fuga do trado a Stanislávski que qualquer tentativa de
teatro que caracterizou muitos movimentos renovação cênica dependia, necessariamen-

73
cadernos da pós-graduação

te, da reconsideração da pedagogia teatral, da cas (organização do espaço, postura no am-


estruturação de um projeto eficaz de forma- biente de trabalho), até a concepção estética
ção de um novo tipo de atores. Esta busca se do espetáculo e a estruturação de metodo-
deu, principalmente, no contexto dos vários logias para a transmissão da experiência ad-
estúdios fundados em torno da companhia quirida. Utilizando a expressão de Mollica, tra-
principal do TAM. ta-se de um contínuo processo de invenção
As experimentações ali realizadas e que do teatro. Não são reproduzidos procedimen-
confluíram no “sistema” não foram realizações tos consagrados. Temos aqui o estabelecimen-
solitárias de Stanislávski. Os principais estú- to de uma real abordagem experimental do te-
dios caracterizam-se como projetos de expe- atro, ou seja, de um fazer que gera seus pró-
rimentação levados a cabo em estreita cola- prios e inéditos/exclusivos processos de acor-
boração com outros artistas-pedagogos. No do com uma lógica que é gerada organicamen-
período que se estende de 1909 a 1922 os te pelo próprio desenvolver da pesquisa.
mais destacados colaboradores de Stanis- Esta busca por uma nova maneira de
lávski na exegese e experimentação dos prin- fazer teatro tinha sua primeira e talvez mais
cípios do “sistema” foram Leopold Sulerjítski e significativa expressão na atividade pedagógi-
Evguiêni Vakhtângov. Seria mais adequado, ca. A prática pedagógica não era vista como
portanto, pensar no sistema como conseqü- uma aplicação de fórmulas de atuação con-
ência de um amplo contexto de experimenta- sagradas, mas sim como uma jornada criati-
ção prática da arte do ator, coordenado por va em direção à estruturação de um corpo de
Stanislávski, mas alimentado e experimenta- procedimentos que pudesse ser visto como
do por diversos atores e pedagogos reunidos uma real e concreta arte do ator. A estética do
em torno ao TAM. Com suas atividades no Pri- espetáculo, o resultado artístico, não surgia
meiro Estúdio e nos demais estúdios nos quais como produto da mente criativa de um
desenvolveram suas subseqüentes pesquisas encenador excepcionalmente dotado, mas
os três mestres russos instituem um modelo como resultado de um processo cotidiano de
de espaço de pesquisa e sistematização de experimentação realizado por professores/di-
procedimentos voltados à formação do ator que retores e alunos/atores.
exerceu enorme influência no teatro do século Fabrizio Cruciani qualifica a pedagogia
XX. desenvolvida nos estúdios como ato criativo.
As realizações dos estúdios, sem dú- Afirma que a busca realizada neles por pro-
vida, influenciaram a estética do espetáculo fessores e alunos era a de invenção de instru-
teatral no século XX. No entanto, sua principal mentos da própria criatividade e não a de uma
contribuição reside na busca obstinada por mera formação de quadros de atores e direto-
uma nova forma de se fazer teatro, de com- res para os teatros instituídos. A pedagogia
preender o ofício do ator. A este é reservado o teatral é vista, portanto, como um espaço de
papel de dar um novo significado ao fazer tea- invenção de um novo e revitalizado fazer tea-
tral modificando as bases éticas e operativas tral. O processo de formação é um processo
por meio de seu próprio posicionamento fren- investigativo e criativo, pois busca estabelecer
te ao seu ofício. novos paradigmas para a atividade criativa do
Dentro dos estúdios opera-se uma ator. Trata-se de um processo vivo, que
reformulação completa do universo teatral. In- rechaça a imitação dos modelos de atuação
venta-se uma maneira de se fazer teatro em institucionalizados e fossilizados. Cruciani diz:
sua totalidade, desde as bases mais prosai-

74
instituto de artes

“A procura de leis pelos professores-diretores é de limites entre o trabalho técnico especifica-


mais uma necessidade de fazer do que uma ne- mente teatral e o trabalho de aprimoramento
cessidade teórica do saber. A pedagogia como do humano. Esta é uma característica presen-
um ato criativo é uma realização da necessidade te em muitos dos experimentos pedagógicos
de criar uma cultura teatral, uma dimensão do
do século XX, como ressalta Marco de Marinis.
teatro cujos espetáculos somente satisfazem
Os escritos de Copeau, as práticas de Laban,
parcialmente, e que a imaginação traduz em ten-
são vital. É por isso que o teatro, nas primeiras a condução do Primeiro Estúdio por Sulerjítski
décadas do século, existiu primariamente por in- são exemplos da ligação entre o projeto de for-
termédio da pedagogia [...] e porque a pedago- mação de um novo ator e o projeto de forma-
gia deve ser vista como uma linha direta na con- ção de um novo, e melhorado, ser humano.
tinuidade da maioria das experiências teatrais Nesta perspectiva, o trabalho sobre si mesmo
significantes da época.” 3 não pode ser visto como um acúmulo de habi-
lidades e truques do ofício, mas, pelo contrá-
Para Cruciani esta “... apaixonada pro- rio, como um processo de auto-revelação, de
cura, frenética e insatisfeita, pela verdade em fuga dos clichês para reencontrar o contato
situação pedagógica” realizada nos estúdios com a autenticidade da vida. Esta abordagem
do TAM funda uma cultura teatral que será do treinamento encontraria eco no trabalho que
extremamente significativa na fundação das Grotowski iria desenvolver durante as décadas
escolas de teatro posteriores.4 de 60 e 70.
Encontrar uma nova maneira de fazer As relações entre o grupo e a individua-
teatro ou reencontrar um sentido para o ofício lidade dos participantes são fatores decisivos
era, portanto, um anseio que encontrava sua nos aportes estéticos e pedagógicos de cada
expressão inicial na atividade pedagógica. coletividade teatral. Neste sentido é exemplar
Reformar o teatro dar-lhe sólidas bases artís- o funcionamento do Primeiro Estúdio e sua
ticas, significava, inicialmente, criar uma ver- abordagem particular dos ensinamentos de
dadeira pedagogia teatral pensada sobre ba- Stanislávski mediada, principalmente, pela
ses sólidas e operativas. Esta constatação inquietude do espírito artístico de Vakhtângov.
aparece de maneira clara nas práticas e nos Esta aparente insubmissão do Primeiro Estú-
escritos de todos os grandes reformadores te- dio é manifestação da necessidade de desen-
atrais do início do século XX. volver os procedimentos organicamente, res-
peitando individualidades e aproveitando o
Cabe ressaltar que esta especial impor-
material humano disponível. Isto só confirma
tância dada à atividade pedagógica também é
o que Stanislávski, e posteriormente Grotowski,
resultante de um ideal mais amplo: reformar,
afirmaram a respeito da impossibilidade de se
renovar o homem e a sociedade. À tentativa
chegar a um sistema possível de ser aplicado
de reconstruir o teatro e de redefinir a função
como uma receita infalível para se chegar à
do ator relaciona-se um ideal utópico de
criatividade em diferentes grupos e contextos.
reformulação e aprimoramento das relações
Os estúdios, por meio da aparente rebeldia de
humanas e das estruturas sociais. Rompem-
Vakhtângov e de outros atores-diretores, de-
se as fronteiras do que se entendia por espe-
monstraram a afirmação de Sulerjítski de que
cificamente teatral para buscar reencontrar um
é impossível separar rigidamente procedimen-
sentido para um fazer teatral esvaziado.
tos técnicos daquilo que de essencial reside
Em relação ao trabalho do ator, esta no humano.
questão se reflete na dificuldade de definição

75
cadernos da pós-graduação

A experiência dos Estúdios do TAM tam- Nas cartas de Stanislávski e nos rela-
bém demonstra que a coesão em torno de uma tos de Minha Vida na Arte é possível observar
proposta comum não implica na eliminação das que o foco de suas inquietações vai progres-
individualidades. Ao Primeiro Estúdio estava sivamente distanciando-se das questões for-
integrado um forte grupo de jovens atores que, mais do espetáculo em favor de um aprofun-
aos poucos foram desenvolvendo seus esti- damento em problemas relativos ao ofício do
los e suas concepções sem uma subordina- ator. Um dos pilares do pensamento teatral de
ção servil aos caminhos então traçados por Stanislávski é o de que o saber do ator é um
Stanislávski. Talvez esta visão da formação saber prático, adquirido de modo ativo. Por-
teatral não como uma reprodução de procedi- tanto, tanto a construção deste saber, quanto
mentos, mas como uma constante busca a sua transmissão só podem se dar por meio
centrada em um sólido núcleo de princípios da auto-exploração por parte do ator de proce-
norteadores seja uma das principais e menos dimentos práticos que lhe guiem no caminho
assimiladas contribuições dos Estúdios à pe- de um domínio cada vez mais complexo e pro-
dagogia do século XX. fundo de seu ofício. Fica clara, assim, a ne-
O surgimento dos estúdios também cessidade do trabalho sobre si mesmo, do
marca o surgimento da figura do diretor- exercício, do treinamento. Para Ruffini, o apa-
pedagogo, que não se limita a ter uma função recimento dos exercícios como parte consti-
de gerador de uma interpretação cênica da tuinte do trabalho do ator foi uma revolução do
obra dramatúrgica. Passa a ser um pesquisa- teatro do século XX, já que tradicionalmente o
dor da pedagogia e de propostas estéticas em trabalho do ator limitava-se ao ensaio e ao es-
estreita colaboração com os participantes do petáculo.7
núcleo. Para Mollica a perspectiva do surgi- Os estúdios foram, por excelência, os
mento desta nova abordagem do trabalho do locais de surgimento e desenvolvimento dos
diretor foi criada por Stanislávski ao fundar seus exercícios. São, portanto, fundamentais para
estúdios. Ele vê, neste momento, a possibili- compreendermos o surgimento de uma nova
dade de estabelecimento de um corte historio- dimensão do trabalho do ator, que sem dúvi-
gráfico entre as figuras de diretor-intérprete e da, revolucionou também a maneira de se pen-
diretor-pedagogo.5 sar o fazer teatral. O sentido do ofício, aquilo
Marco de Marinis propõe que se inverta que permite a alguém se intitular ator passa a
a relação normalmente estabelecida entre en- não mais residir, ou pelo menos não mais so-
cenação e pedagogia e que se passe a “... mente, na apresentação de espetáculos pú-
pensar a pedagogia teatral como um ponto de blicos. Afirma-se pela primeira vez de manei-
chegada da encenação no século XX, o resul- ra explícita a necessidade de uma prática coti-
tado da transformação de diretor-demiurgo em diana de exercícios como base para o traba-
diretor-maiêuta, [...] ou diretor-pedagogo.” 6 lho criativo do ator. E, principalmente, este es-
Marinis observa esta transformação em qua- paço do exercício, do trabalho cotidiano passa
se todos os grandes homens de teatro do sé- a ser visto como o espaço de construção da
culo XX, geralmente quando se envolveram identidade profissional e artística do ator. Este
mais profundamente no trabalho teatral práti- novo enfoque teve profunda influência sobre o
co e, em particular, no trabalho com o ator. Na desenvolvimento da prática e da teoria teatral
trajetória de Stanislávski esta mudança tem do século XX.
como sintoma e como catalisador o trabalho Colocando-se como espaços de cria-
realizado dentro dos estúdios. ção de uma nova maneira de fazer teatro, os

76
instituto de artes

estúdios rompem os limites do que até então Nos programas e nas práticas dos es-
se compreendia como teatro, expandem as túdios é evidente a busca por conhecimentos
fronteiras do trabalho do ator e do diretor- e procedimentos extrateatrais. Elementos de
pedagogo e absorvem elementos extrateatrais. práticas esportivas, de outras áreas da cria-
Isto também pode ser visto como uma respos- ção artística e até mesmo da ciência são “em-
ta teatral às rápidas transformações pelas prestados” e recontextualizados para fazer
quais passava a sociedade da época. com que o teatro deixasse de ser um objeto
A propósito, ao tecer comentário sobre decorativo e conseguisse acompanhar, ou
as pesquisas dos renovadores do teatro do mesmo provocar as mudanças da sociedade.
início do século XX, Cruciani diz: “... o novo Para Pradier, este caráter transdisciplinar é
teatro não era nascido do teatro e no teatro, imprescindível para o desenvolvimento do sa-
mas pela recuperação da complexidade cul- ber teatral:
tural, social e humana do teatro, como uma
forma de comunicação expressiva e como um “... o saber não progride sobretudo dentro de uma
meio para a realização do homem.” 8 disciplina. As grandes idéias nascem no lado de
fora ou nas fronteiras [...]. A intelligenza do tea-
Para Marco de Marinis isto também
tro deve nutrir-se de desviações exteriores ao
implica numa profunda ressignificação da vi- teatro, do mesmo modo que uma cultura não
são sobre a possibilidade de relação do teatro sobrevive a não ser através de contaminações,
com o contexto sócio-cultural. O esforço pe- empréstimos e erros.” 10
dagógico de transformação também busca
afastar o teatro da limitação de ser uma mera
Evidentemente o que motiva a forma-
atividade de entretenimento. O teatro passa a
ção dos estúdios é a insatisfação com os
ser visto como produção de saber, como um
modelos de formação instituídos. A necessi-
instrumento cognitivo. Reconstruí-lo também
dade de fundar novos ambientes pedagógicos
significa redescobrir meios para torná-lo, ou
é um resultado da incapacidade das escolas
fazer com que ele voltasse a ser, um instru-
e teatros tradicionais em dar uma formação
mento eficaz para a compreensão do homem
ao ator que não fosse uma mera reprodução
e do mundo. Marinis diz:
de padrões fixados e de truques do ofício. Para
Cruciani, na base da formação dos estúdios
“[O teatro do século XX] é um teatro que se dila-
está uma “tentativa de dar sentido e dignidade
ta, que transborda materialmente e metaforica-
ao teatro”, que tem como ponto de partida a
mente de seus espaços tradicionais e, ao fazê-
lo, transmuta e se regenera, tanto nos proces- “luta contra as instituições teatrais de seu tem-
sos materiais e criativos quanto nos princípios po, seu conservadorismo vagaroso e a luta
estéticos, seja nas formas artísticas e expressi- contra o desinteresse da profissão teatral.” 11
vas seja – sobretudo – nos pressupostos e na Odette Aslan ressalta o processo de
finalidade do próprio operar. Partindo do horizon- isolamento, de afastamento do centro da pro-
te tradicional [...] do divertimento e da evasão
dução teatral da época para poder gerar no-
[...], o Novecentos Teatral tende a desenvolver
vos procedimentos e novas visões do fazer
sólidas ambições pedagógico-ético-político-espi-
rituais, chegando [...] a fazer do ator e do grupo
teatral. Esta é uma característica que marca a
criativo os modelos ideais respectivamente para organização dos estúdios e núcleos: fechar-
o homem e para a comunidade do futuro...” 9 se em núcleo, criar procedimentos sólidos e,
somente então, dividir o conquistado.

77
cadernos da pós-graduação

A partir destas experiências não se pode ções com o acontecido. Neste sentido o teatro
mais ver a pedagogia teatral como a reprodu- não é efêmero, como não o é o operar dos ho-
ção de procedimentos arraigados em hábitos mens: o teatro é uma categoria de longa dura-
do ofício consagrados por uma tradição ligada ção que vai além do evento presente do espetá-
culo.” 13
ao entretenimento. Ao proporem e desenvol-
verem abordagens sistematizadas do ofício do
ator, os diretores-pedagogos do século XX Nesta perspectiva podemos considerar
estabeleceram uma tradição com a qual qual- a pedagogia do ator como um elemento cen-
quer proposta atual tem a obrigação de dialo- tral da cultura teatral do século XX. Fabio Mollica
gar. Os processos de formação do ator de- acredita que a maneira como esta foi tratada
vem ser encarados como processos de des- no Primeiro Estúdio possa ser ainda hoje um
coberta e criação, mas devem manter uma estímulo para novos caminhos de pesquisa:
constante relação com esta tradição. Cruciani
diz: “Se, por um lado, uma escola (como o te- “Investigar o Primeiro Estúdio significa lançar luz
atro) é um compromisso com o que já existe, sobre um momento essencial da cultura teatral
por outro é um lugar onde as utopias se tor- do Novecentos. Isto porque a sua prática e o seu
nam realidades, onde as tensões que susten- mito foram um estímulo, nas mais diversas situ-
tam o ato teatral assumem formas e são colo- ações culturais, para aqueles homens que se
colocaram na busca de um modo diferente de
cadas em teste.” 12
pensar e produzir teatro.” 14
Portanto, o movimento de formação dos
estúdios teatrais, tendo o Primeiro Estúdio do
TAM como seu deflagrador e ícone, dá início Mollica observa nos vários estúdios e
ao processo de sistematização de uma tradi- laboratórios do século XX uma continuidade
ção da arte do ator no Ocidente. Tradição esta com as experiências de Stanislávski, Sulerjítski
que é compreendida não como a aquisição e Vakhtângov, que não estão ligadas às for-
passiva de fórmulas, mas como um contínuo mas do espetáculo, mas sim ao “modo de
processo de criação de procedimentos gera- colocar-se em relação ao trabalho do ator, à
dos pelo questionamento a respeito do senti- pesquisa de fontes criativas, à definição de uma
do do fazer teatral. ética de trabalho, à vontade de pensar e criar
teatro organicamente em relação às exigênci-
É uma tradição que deve ser buscada,
as do grupo antes que às do mercado.”15 No-
sobretudo, nesta dimensão da criação teatral
vamente vemos a pedagogia colocada como
que não está diretamente ligada à produção
um processo de criação, de descoberta de
de espetáculos e que, por esta razão, muitas
concepções acerca do fazer teatral e não
vezes foi subvalorizada pela historiografia tea-
como uma mera aquisição de um repertório
tral. Para Cruciani a continuidade das experi-
técnico. Os estúdios e laboratórios são mani-
ências teatrais se dá, principalmente pelos
festações desta nova visão de teatro. Uma vi-
modos de operar que elas produzem e não
são que passou a se manifestar não somente
pelas obras, das quais só permanecem teste-
por meio dos espetáculos, mas principalmen-
munhos e registros parciais ou setoriais.
te por meio da “criação pedagógica”.
Trata-se da tentativa do estabelecimen-
“Os modos de operar existem na permanência
dos homens de teatro e dos espectadores, na to de uma tradição para o trabalho do ator oci-
civilização que produzem e da qual fazem parte, dental; do estabelecimento de um saber tea-
na tradição enquanto sistema ativo de criar rela- tral que transcende, ou antecede a dimensão

78
instituto de artes

do espetáculo. Para Fabrizio Cruciani as es- Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Levy Candeias, Docen-
te junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes –
colas, ateliês, laboratórios e centros foram os UNICAMP. Autora do livro Duas tábuas e uma paixão: o teatro
espaços teatrais onde a criatividade teatral se que eu vi. Editora Imprensa Oficial.
expressou com o mais elevado grau de deter- E-mail: mlcandeias@terra.com.br

minação.
Ocorre uma expansão dos limites do
Notas
trabalho do ator que se manifesta, por exem-
plo, na invenção do trabalho laboratorial e na 1. MOLLICA, 1989, p. 12.
transformação do caráter do processo de en-
2. Idem, p. 11.
saios. Estes passam a ser não mais somente
3. BARBA e SAVARESE, 1995, p. 28.
o momento da atualização cênica de um tex-
4. Idem, p. 27.
to, mas tornam-se um real espaço de investi-
gação, de produção de um saber cênico 5. MOLLICA, op. cit., pp. 217-218.

centrado no ator a partir da manipulação dos 6. MARINIS, 2000, p. 57.


elementos que são específicos de seu traba- 7. RUFFINI, 1996, p. 80.
lho. Esta investigação abrange desde os ele- 8. BARBA, op. cit., p. 28.
mentos éticos que baseiam o trabalho cotidia- 9. MARINIS, op. cit., p. 12.
no do ator, até os elementos ligados à eficácia
10. PRADIER, 1992, p.160.
de sua ação sobre a percepção do especta-
11. BARBA, op. cit., p. 27.
dor.
12. Idem, p. 26.
Com isto a pedagogia adquire um valor
13. CRUCIANI, 1992, p. 47.
inédito. O processo de formação passa a ser
14. MOLLICA, op. cit., p. 12.
visto não como um processo de aquisição de
um repertório, mas como espaço de projeção 15. Idem, p. 12.

de um fazer teatral renovado. Ao conceber a


pedagogia como criação e não como reprodu-
ção de fórmulas os diretores-pedagogos do Referências Bibliográficas

início do século XX redimensionaram a noção


ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Perspectiva,
de escola de teatro. Se não há sistema a ser 2003.
reproduzido, se não há validade em reprodu-
BARBA, Eugênio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator:
zir procedimentos, é preciso manter uma cons- Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Editora da
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E-mail: camiloscan@hotmail.com In: GUCCINI, Gerardo; VALENTI, Cristina (Org.). Tecniche delle
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79
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TAKEDA, Cristiane Layher. O cotidiano de uma lenda: Cartas


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80
instituto de artes

O Conceito de Organicidade na Interpretação Realista: uma


investigação de seus elementos e fundamentos

Martha Dias da Cruz Leite


Eusébio Lobo da Silva
Resumo:
Este artigo promove uma reflexão sobre a problemática da organicidade do ponto de vista da inter-
pretação realista. Partindo do uso comum que a palavra organicidade adquire nos meios artísticos, como
uma qualidade relativa à “vida” de uma cena, espontaneidade, naturalidade e fluidez de uma representação,
buscamos investigar alguns dos principais elementos e fundamentos aferentes de organicidade à represen-
tação realista. Para operar tal análise, fizemos uso do processo de montagem da peça “Intersecções:
peças curtas de Harold Pinter”, encenada pelo professor Marcelo Lazzaratto com alunos do último ano do
curso de Artes Cênicas da UNICAMP do ano de 2005. Os resultados a seguir apresentados foram frutos de
uma observação intensa do processo de montagem e minha participação como Auxiliar Didático de Profes-
sor, na posição de assistente de direção, o que tornou possível implantar, além da diretriz investigativa de
observação, uma diretriz experimental, a partir de exercícios e laboratórios de criação e investigação efetuados
com os alunos.

INTRODUÇÃO

Antes de darmos início a nossas con- nica e organicidade podem ser conceitos pró-
siderações sobre a organicidade na interpre- ximos na medida em que ambos têm como
tação realista, cabe aqui argumentar e definir alvo principal a “vida” que emana da represen-
o que conceituamos como organicidade. tação do ator.
Em teatro ou dança comumente se Burnier1 se refere à palavra organici-
utiliza a palavra orgânico para aferir um certo dade como a verdade teatral em termos de
grau de qualidade expressiva que uma cena ações físicas, ou seja, um estado satisfatório
ou performance artística pode adquirir. Geral- de expressividade cênica por parte do ator no
mente chamamos de orgânico a representa- que diz respeito à execução de ações físicas.
ção que ou tem o mérito de trazer em si sen- Relaciona organicidade com a palavra órgão,
sações de fluidez e autenticidade, ou quais- termo que dá uma idéia de tudo aquilo que é
quer características que nos faça sentir a cena orgânico, por fazer alusão a tudo aquilo que
como natural e dotada de uma verdade artísti- diz respeito aos órgãos e seres organizados.
ca imanente à sua realização. A partir daí, po- Partindo desta idéia, ele conclui que
demos inferir que, falando de organicidade chegar a um estado de organicidade na exe-
estamos também resvalando na questão da cução das ações físicas significa “desenvol-
verdade cênica, e, sendo assim, verdade cê- ver um conjunto complexo de ligações e

81
cadernos da pós-graduação

interligações internas à ação física ou a uma que alguns atores, apesar de executarem o tra-
seqüência de ações2”. Também difere os dois balho com precisão, não conseguiam reproduzir
tipos distintos que esta palavra pode adquirir o mesmo fenômeno.“ 4
quando usada em relação ao ato cênico:
organicidade como um fluxo de energia que A partir dai, Bonfitto conclui que deveri-
alimenta a ação responsável pela vida que am existir alguns componentes “invisíveis” que
emana do ator (que ele denomina de organici- estariam sob o desenho e o percurso cinético
dade interna real e viva) e, nesse caso, refe- daquelas ações, e divide em dois níveis
rente a uma impressão de “natural”3 que essa constitutivos a execução de tais ações: o nível
coerência de organização interna gera; e estrutural (elementos que podem ser reprodu-
organicidade no sentido de uma impressão de zidos visualmente no espaço, ou seja, movi-
artificial naturalidade que emana do ator e é mentos) e a qualidade de energia (modo como
percebida pelo público como se fosse um flu- uma ação é realizada). Portanto, o kata, ape-
xo coerente da linha de força de uma ação físi- sar de ser uma estrutura codificada e rígida,
ca ou de uma seqüência de ações. Neste teria, então, um espaço para a interpretação
caso, está se referindo ao primeiro tipo de do ator, ou seja, um mesmo movimento exe-
organicidade, ou seja, ao fluxo de energia que cutado pode suscitar sensações diferentes
alimenta a dá “vida” às ações do ator. dependendo do “como” ele é executado, ou
Do ponto de vista de quem assiste ao seja, dependendo da qualidade de energia que
ato cênico e percebe, na posição de um ob- se coloca pelo ator na execução.
servador, a organicidade presente ou não nas Desta forma, podemos dizer que
ações, Bonfitto apresenta importantes consi- organicidade, neste caso, também se refere a
derações. A partir de uma experiência pesso- esta percepção sensível de uma qualidade de
al prática em um curso de dança Kabuki, o energia calculada para o que é necessário a
pesquisador traça uma reflexão a este respei- uma cena. Neste ponto, a questão que surge
to, e verifica que o kata- grupos de movimen- é: quais os elementos que o ator utiliza para
tos considerados a célula da linguagem Kabuki controlar esse fluxo de energia? Bonfitto es-
- não se reduzem simplesmente a uma forma creve que os elementos que determinam um
pronta a ser copiada, mas sim possuí um algo fluxo de energia são as variações rítmicas,
diferente em sua execução para que sua efi- impulsos (início da ação) e contra-impulso
cácia em termos cênicos seja atingida: (passagem de uma ação a outra ou o fim da
ação).5 Ou seja, quando presenciava seu mes-
“Em muitos momentos, enquanto observava o tre Kabuki executando as ações, o que fazia
mestre que nos mostrava as ações que deveri- com que ele percebesse diferenças entre
am ser aprendidas, revivia certas sensações ex- ações aparentemente iguais era o nível de qua-
perimentadas quando vi pela primeira vez um lidade de energia através de seus elementos
espetáculo Kabuki. Os gestos, as ações tinham
constituintes: variação rítmica, impulso e con-
um quê de especificidade não decodificável. A
tra-impulso.
formalização das ações, seus percursos cinéti-
cos, muitas vezes não se diferenciava daquela Apesar da riqueza das contribuições
presente nos códigos, digamos, cotidianos. E, destes dois pesquisadores abordados para a
no entanto, a sua percepção era diferente, con- problemática da organicidade, tal questão ain-
tinha algo específico. Nos momentos em que as da se encontra em aberto, pois se faz neces-
ações eram executadas individualmente sem a sário perguntar sobre qual linguagem de inter-
utilização da música, buscava compreender por pretação se está trabalhando quando se pro-

82
instituto de artes

cura encontrar os elementos constitutivos de investigação sobre os fundamentos da inter-


organicidade em uma representação. A ques- pretação do ator realista.
tão colocada é: seria a organicidade um con- Em seus últimos anos de vida, Stanis-
ceito absoluto em termos de verdade cênica, lavsky teve como o carro chefe de suas pes-
ou seja, estar orgânico é a mesma coisa em quisas o Método das Ações Físicas. Nele, o
qualquer linguagem de representação? Burnier diretor russo vê a necessidade de elementos
quando fala em organicidade trabalha com exteriores (as ações físicas) para funcionar
uma técnica de representação baseada em como catalisador de elementos interiores (sen-
codificações de ações físicas, e seu conceito timentos e emoções) para que as ações ex-
de organicidade está ligado a esta forma de ternas não se tornem puramente mecânicas
representação. Seria o caso, então, de questi- e sem “vida”. Para isso, o ator deve acreditar
onar se em uma outra linguagem de interpre- sinceramente nas ações físicas executadas,
tação - como a interpretação realista, por para que estas possam funcionar como iscas
exemplo - estar orgânico baseia-se nos mes- para o sentimento interior. Desta forma, a
mos elementos presentes em uma interpreta- organicidade depende da verdade física orgâ-
ção baseada em codificação e re-codificação nica com que o ator executa suas ações, e
de ações. Talvez, não seja o caso de nos ques- aponta como um ponto importante neste as-
tionarmos sobre o que é organicidade, mas pecto os impulsos. Stanislavsky define como
sim, perguntar o que é ser orgânico em cada impulso um ímpeto interior que, quando satis-
linguagem de interpretação adotada. Partindo feito, leva à ação, e afirma que se o ator con-
do pressuposto de que a forma e o conteúdo segue recuperar o impulso originário da ação,
de uma cena caminham juntos, supomos por- sua ação exterior será rica em verdade.6 Por-
tanto, que a organicidade tem de estar em fun- tanto, assim como em técnicas codificadas
ção de uma determinada proposta de trabalho (lembrando a definição de organicidade por
e da linguagem de interpretação com a qual Burnier), um dos caminhos para a organici-
se trabalha. O objetivo de se montar tal peça dade em uma interpretação realista também
era fazer com que os alunos vivenciassem um se dá pela recuperação do impulso originário
percurso de montagem baseado na interpre- da ação.
tação realista, de forma que foi possível a mim,
Stanislavsky, entretanto, frisa a neces-
durante este processo, investigar sobre quais
sidade de uma completa união entre a vida fí-
elementos repousam a idéia de organicidade
sica e a vida espiritual do personagem.7 En-
em uma interpretação realista. A partir de tal
tendemos por vida espiritual todo o complexo
participação, pude chegar às conclusões a
conjunto de processos mentais interiores que
seguir apresentadas.
darão ao ator material para compor sua repre-
sentação. Propomos, para tanto, uma análise
O CONCEITO DE ORGANICIDADE NA de alguns dos elementos interiores que com-
INTERPRETAÇÃO REALISTA: ALGUNS põe a vida espiritual de um personagem que,
DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS de certa forma, podem ter responsabilidade
OBSERVADOS pela organicidade do ator em uma interpreta-
ção realista. Os elementos aqui selecionados
Para falar sobre interpretação realista, foram: a lógica da personagem, a capacidade
é mais do que necessário recorrermos, inici- do ator em estabelecer o jogo teatral e o pen-
almente, as idéias de Konstantin Stanislavsky, samento da personagem. Tal seleção se deu
cujo trabalho foi o marco mais expressivo de a partir do que ocorreu no processo de monta-

83
cadernos da pós-graduação

gem analisado e, então, houve uma escolha Gênese da Personagem – individuali-


dos principais pontos que, neste processo, zação, humanização x tipificação: Conjunto de
pareceram contribuir para a questão da respostas a perguntas que se faz sobre o pas-
organicidade. sado da personagem e que, dependendo da
resposta, a energia do ator em cena é diferen-
te (ritmo interno, corpo, humor, etc). Estas
A lógica da personagem
perguntas geram a humanização do persona-
Pode-se dizer que a lógica da persona- gem. No processo de humanização o impor-
gem é o conhecimento que o ator tem sobre tante é descobrir pequenos detalhes que cal-
sua personagem e sobre as possibilidades de cam a realidade da personagem, e não subli-
ações e reações desta nas situações previs- nhar demais suas características principais,
tas na peça. Este conhecimento é importante como ocorre na personagem-tipo.
para o ator na medida em que, quando ele com-
preende absolutamente o que faz e diz em Circunstâncias Propostas: Contexto o
cena, ele está muito mais apropriado de seu qual está inserida a ação da personagem em
papel e, conseqüentemente, mais orgânico. cena (quem ela é, onde ela está e o que ela
Viu-se, no processo de montagem com está fazendo). “Durante cada segundo que
os alunos que a aplicação de alguns concei- estivermos no palco, a cada momento do de-
tos de Stanislavsky leva o ator a um domínio senrolar da ação da peça, temos de estar côns-
vasto da lógica de pensamento de sua perso- cios; ou das circunstâncias externas que nos
nagem. O professor/diretor propôs uma etapa cercam (...) ou de uma cadeia interior de cir-
de trabalho em que tais conceitos foram estu- cunstâncias que foram imaginadas por nós
dados e experimentados na prática. São eles: mesmos, a fim de ilustrarmos nossos pa-
péis.” 9
Instalação: Instaurar, climatizar, organi-
zar; tempo que se dá antes da ação cênica Mágico “SE”: Significa se colocar em
propriamente começar para que o ator se ins- situação, ou seja, fé cênica. Aceitar as circuns-
tale e instale o espectador na peça. Stanis- tâncias propostas da personagem como sen-
lavsky define instalação como entrar nas cir- do suas. Stanislavsky escreve que o “se” tem
cunstâncias propostas. Isto significa que o um poder que os sentido captam e que pro-
ator deve entra em cena com sua energia car- duz no ator um estímulo instantâneo de acei-
regada de elementos acumulados provenien- tar a suposição de uma situação como reali-
te das informações que ele tem a respeito da dade. O “se” “desperta uma atividade interior
personagem (passado da personagem, o que e real e o faz com recursos naturais.” 10
aconteceu a ela antes da cena, etc). “Estado
de prontidão do sujeito para a execução de
Objetivos – Vontade – Contra-vontade:
uma ação adequada, (...) mobilização coorde-
Para Stanislavsky, toda ação deve ter um ob-
nada de toda a energia física que possibilita a
jetivo11. Objetivo é o propósito de uma ação ou
satisfação de uma determinada necessidade
o que a personagem deseja alcançar em cena.
dentro de uma determinada situação”, ou seja,
As escolhas dos objetivos para a personagem
é uma ação proveniente do mundo subjetivo
definem as escolhas da cena, e estas opções
do artista.8
têm de estar em função do superobjetivo. A

84
instituto de artes

vontade e contra-vontade são, respectivamen- Tempo-Ritmo: Kusnet15 coloca que o


te, o que a personagem quer e o que a perso- ritmo existe em todas as atividades humanas,
nagem não quer, e estão ligados à questões inclusive na prosa em teatro. O ator, por sua
inconscientes; elas dão o “como” ao objetivo. vez, deve saber encontrar o tempo-ritmo ade-
quado à sua cena e/ou ação. Entretanto, du-
rante o processo de montagem da peça
Superobjetivo: Propósito básico da
“Intersecções: peças curtas de Harold Pinter”,
peça, ou seja, o aspecto humano abordado que
este conceito foi trabalhado não em termo de
serve de rumo para todas as ações da peça.
ritmo musical, mas sim no sentido de intensi-
“Toda a corrente dos objetivos individuais,
dade, ou seja, a pulsação interna do ator em
menores, todos os pensamentos, sentimen-
relação à atividade externa onde ela se reflete.
tos e ações do ator devem convergir para a
execução do superobjetivo.” 12
Círculos de Atenção: Pode ser definido
como a linha de interesse pela qual a perso-
Curva da Personagem: Transformação
nagem trafega; maneira pela qual o ator joga
pela qual passa a personagem ao longo da
com as coisas que existem em cena e que
peça. Esta é a base do trabalho realista, pois
desperta a atenção do personagem. Setor de
através dela presenciamos a revelação do
grande ou pequena dimensão que delimita a
personagem.
atenção do ator. O ator seleciona, através de
sua atenção cênica, detalhes da visualização
Monólogo Interior/ Subtexto: O monó- que possam mais facilmente exercitar sua
logo interior ou subtexto revela o pensamento imaginação e impulsioná-lo para ação.16
da personagem, ou seja, o caminho mental que
ela faz e que tem de ser revelado ao especta-
Todos estes conceitos estudados con-
dor através de ações. Os pensamentos da
vergem para uma série de procedimentos que
personagem se tornam “monólogos interiores”
dão ao ator um conhecimento profundo sobre
quando o ator transformá-los em falas men-
sua personagem e sobre a situação a qual ela
tais. Subtexto ou monólogo interior é, portan-
está inserida.
to, tudo aquilo que o ator estabelece como
pensamento antes, depois e durante as fa- Durante a montagem da peça perce-
las. 13 bia-se que a lógica de cada personagem foi
sendo descoberta pelos alunos ao longo do
processo, e muitas vezes por vias não racio-
Adaptação: Stanislavsky define como
nais. Cito como exemplo um exercício feito,
“tanto os meios humanos internos quanto ex-
que consistia em colocar a personagem da
ternos, que as pessoas usam para se ajusta-
peça de cada um em outras cinco situações
rem umas as outras, numa variedade de rela-
dadas: sair atrasado de casa, escolher fruta
ções e, também, como auxílio para afetar um
no supermercado, atender um telefone que era
objeto”.14 Está ligada à imprevisibilidade. São
engano, verificar que cobraram sua conta er-
ajustamentos interiores, conscientes ou in-
rada, preparar um sanduíche. A partir daí, veri-
conscientes, a uma situação nova. A adapta-
ficava-se, pela prática, o que cada persona-
ção dá o frescor à cena, pois só se adapta
gem tem em comum nas diferentes situações.
quando se surpreende, revigora. A cena é um
Uma sugestão dada durante a execução do
processo de adaptação do personagem a ou-
exercício foi a de eleger um movimento corpo-
tro.

85
cadernos da pós-graduação

ral (sutil ou não) que se repete nas cinco situ- o tempo todo pensando sobre elas e em como
ações. Segundo relatos dos próprios alunos, deveriam aplicá-las na cena. Então, a reação
em uma discussão sobre o exercício após seu espontânea ficava prejudicada. Isso demons-
término, foi que este possibilitou “disparado- tra que nesta hora o pensamento era do ator e
res”, isto é, espécie de insight que pode vir de não da personagem. Com isto, vimos que exis-
um comando físico ou de uma frase dita, em te a necessidade de ensaio e tempo para que
que a lógica da personagem começa a fazer o ator “absorva” as informações de tal forma
sentido. Ou seja, a lógica da personagem foi que ele não precise ficar pensando nelas o tem-
sendo descoberta desta vez por uma via práti- po todo e consiga, ao mesmo tempo em que
ca sensorial. Outro comentário interessante foi age de acordo com elas, concentrar-se no jogo
o de que a repetição destas cinco situações entre os atores e raciocinar de acordo com a
pelos alunos ajudava neste processo, pois nas lógica da personagem. Para que isso aconte-
primeiras vezes era difícil improvisar as falas ça, todas essas informações têm de ser in-
dentro da lógica da personagem, mas com a corporadas pelo ator, ou seja, estarem presen-
repetição os alunos iam fazendo links de pen- tes em sua memória operacional17, feita de
samentos e, conseqüentemente, iam enten- imagens prontas para serem ativadas no mo-
dendo coisas do texto que não eram percebi- mento que for necessário, sem que o pensa-
das antes. mento do ator precise ficar se ocupando o tem-
Outro ponto importante a respeito da po todo com elas.
lógica da personagem é que existe um cami-
nho a ser percorrido a cada vez que o ator vai A importância do jogo teatral para a
acumulando material para descobrir esta lógi- organicidade
ca, até o momento em que este material pas-
sa a fazer parte da atuação de maneira orgâ- No caso exposto acima, vimos que a
nica. Durante o semestre, foi feito o seguinte lógica da personagem, quando não bem incor-
exercício com os alunos: dar uma situação porada pelos atores, pode prejudicar o jogo
proposta (ex: uma filha vai contar ao pai que teatral, pois, neste caso, o ator está em cena
está grávida), depois, rechear com perguntas ainda “pensando” no que fazer ao invés de re-
sobre a situação e sobre as personagens de agir ao outro ator. Este é um outro elemento
forma a individualizar a situação (ex: como é a interior do ator importante para a organicidade,
situação financeira desta família? Quais são pois se o jogo não acontece a “vida” da cena
os valores deste pai em relação a ter uma filha fica prejudicada, porque se o ator não reage
solteira grávida? Este pai sabia que ela manti- verdadeiramente aos estímulos recebidos,
nha relações sexuais? Ela deseja ter este fi- suas ações se tornam vazias e mecânicas.
lho? etc.). Uma cena sem jogo não é interessante e um
Como resultado, os alunos apresenta- ator que só reproduz mecanicamente suas
ram dificuldades em saber externalizar em reações sem estar aberto aos estímulos da-
ações todas as informações sobre as perso- dos não pode ser “vivo” em cena. Ele pode até
nagens. Não sabiam “o que fazer” com todo ter uma forte presença cênica obtida através
aquele conteúdo mental. Alguns chegaram a de uma atuação com bastante energia, mas a
dizer que todas essas informações atrapalha- cena como um todo não se sustenta, e isso
vam a improvisação porque limitavam algumas com o tempo prejudicará a apreciação do es-
reações, e também porque acabavam ficando pectador.

86
instituto de artes

O problema do ator não conseguir jo- Mais uma vez, verificou-se a necessi-
gar com o outro, de não conseguir estabele- dade do ator ter sua mente livre para que o
cer uma relação verdadeira com seu parceiro pensamento da personagem se manifeste e a
em cena e sentir suas reações espontâneas atuação se torne orgânica.
prejudicadas pode acontecer quando o ator
ainda não conseguiu incorporar a lógica da
O pensamento da personagem
personagem, pois, neste caso, sua mente está
ocupada tentando processar todas as informa- Mas para onde fluem os pensamentos
ções a respeito desta personagem. Sua aten- do ator no momento da cena? Como ele con-
ção, portanto, se encontra voltada mais para segue alcançar um estado em que seu pen-
este processamento de informações do que samento se abre para uma outra lógica que
para uma “abertura” do espírito do ator aos não a de sua própria identidade e também para
estímulos dado pelos outros atores no momen- uma relação com o outro ator que, apesar de
to presente. tudo combinado (texto, marcações de cena),
Entretanto, o jogo também pode ser tem de estar acontecendo como se fosse pela
prejudicado até mesmo em uma cena consi- primeira vez? Ou seja, o que o ator faz consi-
derada já “pronta” (uma cena, portanto, em que go mesmo quando em sua mente o que o toma
os atores já possuem um certo domínio da ló- são os pensamentos da personagem, mas ao
gica da personagem) se o pensamento do ator mesmo tempo ele não só não perde a consci-
encontrar-se ocupado com alguma preocupa- ência de cada ato seu como também os
ção alheia aos elementos necessários ao jogo direciona e controla?
teatral. Um exemplo disto foi com a cena Primeiramente, é necessário descon-
intitulada ”Esse é o seu problema”. O dia da siderar esta separação entre ator e persona-
estréia estava perto e havia uma preocupação gem, pois a partir do momento em que o ator
geral com o tempo de duração da peça, que é o seu corpo e a personagem é este mesmo
até então estava com mais de duas horas e corpo, ator e personagens não são entidades
meia, o que foi julgado um pouco longo demais. diferentes que habitam o mesmo invólucro fí-
Em um determinado ensaio, quando chegou o sico. Desta forma, podemos colocar o perso-
momento desta cena, tínhamos a impressão nagem não como uma entidade a qual damos
que o jogo não estava acontecendo. Uma cena vida, mas sim como uma resultante construída
que era boa agora não estava mais funcionan- a partir de uma série de detalhes que o ator
do (e segundo depoimentos das próprias atri- executa, e que o público lê como uma perso-
zes elas também sentiram isto). Após algu- nagem. Adotamos, para tanto, a argumenta-
mas conversas foi visto que a preocupação ção de Oida para a nossa definição de perso-
constante em fazer com que a cena não de- nagem:
morasse muito, fez com que as atrizes desvi-
assem a atenção que deveriam dar ao jogo de “No teatro é impossível tentar analisar Hamlet,
ação e reação entre elas, para uma preocupa- porque é impossível analisar o personagem to-
ção do tipo “temos que fazer a cena rapida- talmente. Por Exemplo: “Ser ou não ser eis a
mente, pois a peça tem de ter um tempo de questão”. Você pode dizer “ser ou não ser” pre-
duração menor”. Esta preocupação tomou guiçosamente ou você pode simplesmente falar
conta do pensamento das atrizes e, então, o alto, você sempre fala a partir da emoção. É a
jogo não acontecia e a organicidade na inter- sua emoção que comanda quando se diz com
alegria “Ser ou não ser”, e também é quando você
pretação das atrizes se perdeu.
fala “Ofélia” com raiva. São esses tipos de deta-

87
cadernos da pós-graduação

lhes. Mais tarde as pessoas podem pensar que de ser e, por ainda estarem presentes, não
Hamlet tem uma personalidade muito interessan- deixam o ator reagir a nenhuma outra sensa-
te, outras pensarão que você tem uma persona- ção ou sentimento: “Por exemplo, se estiver-
lidade muito boa. (..) As pessoas irão pegar as mos dominado pela raiva, é impossível que
informações na sua atitude. (...) De um certo
surja espontaneamente qualquer outra emo-
modo o ator não precisa saber o que o persona-
ção; nada poderá mudar. Então precisamos
gem é, mas precisa saber que ‘aqui eu irei levan-
tar’, ‘aqui eu irei gritar’, ‘aqui eu quero chorar’. O jogar fora a raiva para poder criar um espaço
ator não pode fazer um estado, ou uma idéia, ou vazio em nossa mente”.20 Oida completa di-
uma concepção. O ator provavelmente pode fa- zendo que uma vez que o ator tenha aberto
zer os detalhes.” 18 este espaço, ele terá a liberdade de reagir e
de responder ao que vier no aqui - agora.
Abordando a questão do personagem O pensamento da personagem, portan-
por este aspecto, podemos inferir que “pensar to, não se trata apenas de um processo inter-
como o personagem” é o mesmo que agir con- no do ator, e sim envolve todos os demais ele-
forme uma série de detalhes logicamente mentos do espetáculo, principalmente os estí-
construídos e encadeados, e que dão a sen- mulos dados pelo demais atores e pelo públi-
sação no espectador de uma determinada co, pois “pensar” em cena como o persona-
personalidade. Mas este estado só se concre- gem trata-se também de reagir a cada instan-
tiza quando o ator não desvia sua atenção do te de acordo com o que é dado ao ator pelo
que é essencial à cena para coisas que dizem ambiente externo. A forma como ele reage, por
respeito a outras preocupações, como por sua vez, tem haver com a lógica da persona-
exemplo, o caso relatado anteriormente, em gem que, se estiver muito bem dominada por
que as ações das atrizes eram executadas parte do ator, levará a uma liberdade de rea-
tendo como base uma preocupação em ace- ções com a qual ele poderá jogar, mas sem
lerar o tempo da cena, e não a elementos pro- perder o contexto e a coerência de sua perso-
venientes do jogo de ação e reação que deve- nagem.
ria ter sido estabelecido. O pensamento da
personagem antes de tudo é uma concentra- CONSIDERAÇÕES FINAIS
ção e atenção total por parte do ator aos ele-
mentos realmente pertinentes à cena e ao jogo Em suma, o pensamento da persona-
teatral. gem é um elemento que pode ser considera-
Um conceito importante em relação à do como um dos principais responsáveis pela
vida interior do ator e que podemos utilizar nes- organicidade na interpretação realista. Duran-
ta nossa análise sobre o pensamento da per- te o processo de montagem da peça foi visto
sonagem é o que Oida19 chama de espaço que, em uma interpretação realista, o pensa-
vazio mental. Ele baseia o fundamento deste mento da personagem tende estar presente
conceito no fato de que o ambiente externo está para que a ação seja orgânica, ou seja, o es-
sempre em constante mudança, então o ator pectador tem de “perceber no olho da perso-
deve ser capaz de reagir, a cada momento, nagem o seu pensamento”, ou então temos a
conforme o que vem em sua direção. Estar sensação de que ele, apesar de executar
vazio interiormente não significa sentir abso- ações e dizer um texto, parece vazio, suas
lutamente nada ou um estado rígido de tran- falas são mecânicas e não possuem conexão
qüilidade, mas sim, não estar preso a emo- umas com as outras. Organicidade na inter-
ções turbulentas que já perderam sua razão pretação realista está ligada ao pensamento

88
instituto de artes

da personagem. A verdade das reações vem Orientador: Prof. Dr. Eusébio Lobo da Silva, Docente junto ao
Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP.
do que a pessoa está pensando naquele mo- E-mail: elobosilva@yahoo.com.br
mento daquela situação. Neste ponto de nos-
sas argumentações, lógica da personagem,
jogo teatral e pensamento da personagem se NOTAS
articulam, pois é o pensamento da persona-
gem bem definido e processado que permite 1. BURNIER, 2001, p. 53.
o jogo teatral - que sempre ocorre dentro dos 2. Idem, p. 53.
limites da lógica da personagem - já que a re- 3. É importante ressaltar que esse “natural” não tem nada
ação de um personagem em uma peça realis- haver com algo próximo do realismo e não artificial, mas sim
ta se encontra na revelação ao público de seu com uma impressão de “natural” que, por serem orgânicos,
esse comportamento traz.
pensamento diante de uma situação.
4. BONFITTO, 2002, p. 121.
Para falarmos de organicidade em uma
5. Idem, p. 92.
interpretação realista chegamos, portanto, no
6. STANISLAVSKY, 1990.
que poderíamos chamar de uma técnica do
pensamento: a capacidade do ator de conse- 7. Idem.

guir dominar o discurso da personagem de 8. KUSNET, 1987, p. 54.

maneira tão profunda (as circunstâncias da- 9. STANISLAVISKY, 1998, p. 86.


das, seu passado, suas tendências, etc) que 10. Idem, p. 69.
ele acaba conseguindo processar o pensamen- 11. Ibidem, p. 27.
to de forma diferente a cada apresentação, 12. Ibidem, p. 281.
mas sem perder o contexto e lógica desta per-
13. KUSNET, 1987, p. 71.
sonagem. Tal técnica permite até mesmo ao
14. STANISLAVISKY, 1998, p. 236.
ator mudar certas intenções e inflexões do tex-
to em cada apresentação, sem deixar de lado 15. KUSNET, op. cit., p. 87.

a lógica e os objetivos desta personagem. Isto 16. Idem, p. 49.

em termos de “vida” da cena e, portanto, de 17. DAMÁSIO, A. O Mistério da Consciência . Trad. Laura
Baldovino, Carlos David Szlak. São Paulo: Ed. Senac, 1999.
organicidade (já que, como foi dito, organici-
O termo memória operacional é definido pelo neurologista
dade e verdade cênica são conceitos próxi- Antônio Damásio e consiste na capacidade de reter na men-
mos) talvez seja o mais importante, pois per- te as imagens que definem o objeto para o organismo, para
que estas imagens possam ser manipuladas de maneira
mite ao ator criar um espaço em que suas re- inteligente toda vez que for necessário. Esta memória tem
ações podem ocorrer de formas inúmeras, paralelos com a chamada “memória corporal”.
apesar das ações de seu personagens serem 18. Trecho de entrevista feita com o ator Yoshi Oida, em 2001,
sempre as mesmas. Desta forma, o ator não por Martha Leite e Matteo Bonfitto.
precisa cristalizar uma forma de representar 19. OIDA, 2001.
e, portanto, pode reagir verdadeiramente aos 20. Idem, p. 72.
estímulos recebidos em cena, tanto do públi-
co quanto dos outros atores, a cada momento
do espetáculo. Referências Bibliográficas

BONFITTO, M. O Ator Compositor: as ações físicas como


eixo. São Paulo: Perspectiva, 2002.
Martha Dias da Cruz Leite, Mestre em Artes pelo Instituto de
Artes – UNICAMP. BURNIER, Luís Otávio. A Arte do Ato da técnica à representa-
E-mail: mdiasleite@gmail.com ção. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.

89
cadernos da pós-graduação

DAMÁSIO, A. O Mistério da Consciência . Trad. Laura


Baldovino, Carlos David Szlak. São Paulo: Ed. SENAC, 1999.

KUSNET, E. Ator e Método. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Instituto


Nacional de Artes Cênicas, 1987.

OIDA, Y. Um Ator Errante. Tradução Marcelo Gomes São Pau-


lo: Beca Produções Culturais, 1999.

___________. O Ator Invisível. Tradução Marcelo Gomes.São


Paulo: Beca Produções Culturais, 2001.
STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

___________. A Criação do Papel. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1990.

___________. A preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira, 1999.

90
instituto de artes

A Performance do Ator como Teatralidade no Cinema

Andréa Stelzer
Walder Gervásio Virgulino de Souza

Resumo:
A teatralidade pode ser abordada de várias formas tanto no cinema como no teatro, mas existe um
elemento principal – a performance do ator como artista da obra. Esse não se contenta apenas com a
representação realista do seu papel, ou com a produção de uma ilusão; cópia imperfeita de outra imagem
que ali não está. O ator-artista cria, a cada instante, uma ação poética em cena, uma ação única que gera
um acontecimento também único. E isso só se dá quando ele passa a ser o criador de um vocabulário de
movimentos e imagens, como uma partitura corporal pela qual a ação é vista e pensada. Como no teatro, é
também importante a criação do ator no cinema, e imprescindível a presença do diretor que harmoniza a
estética do filme e cria sua originalidade. Este artigo procura então responder as seguintes questões: a
teatralidade advinda do domínio do movimento dos atores é uma arte do passado? A construção da
gestualidade do ator foi sublimada pela tecnologia do cinema? Ou pode ser retomada como um recurso de
originalidade do filme?

INTRODUÇÃO

A redescoberta da importância dos ceptíveis os movimentos das linhas e das cores,


mecanismos corpóreos concretos no movi- mostrando-se mais sugestivo do que o naturalis-
mento do ator faz com que suas ações sejam mo;
expressivas e tornem-se fator de autenticida- - o desenho dos movimentos, que diz algo di-
ferente, contrário ou em substituição às palavras,
de longe dos clichês do corpo cotidiano. Afi-
manifestando sentimentos ocultos, e penetran-
nal, o público espera ver o jogo e a invenção
do mais seguramente no domínio do indizível. Ou
em cena. É arte o ator ser ele mesmo em seja: a não coincidência entre gestos e palavras
cena? Como mostrar ao público as mil facetas funda a verdade das relações com a teatralidade,
do personagem? aquela que permite atuar o diálogo interior; e
Conforme afirma a pesquisadora fran- - a artificialidade, que faz nascer a impressão
cesa Picon-Vallin1, ao citar Meyerhold, diretor mais intensa da vida, partindo da dilatação da
de teatro russo, o ator produz teatralidade nas energia do ator na cena”.
suas imagens a partir de três princípios:
A teatralidade, como elemento da
- “o estatismo, que revela – em sua imobilidade – performance do ator, se refere ao seu desem-
a essência dinâmica do teatro, a ação do gesto penho na interpretação de uma obra. Portan-
que, ao contrário do ir-e-vir cotidiano, torna per- to, é um modo de realização que não implica

91
cadernos da pós-graduação

na autoria da obra em sua totalidade. A pre- velmente ameaçado diante da inclinação do


sença corporal do artista é parte integrante da cinema para o espetacular, redescobriu uma
obra. A arte da performance submete o dis- aproximação direta e real levando a limites
curso corporal a uma decodificação que entra extremos o elo com a imaginação da platéia.
em conflito com as imagens do corpo norma- Entretanto, o cinema permaneceu acorrentado
tizado. Nesse sentido, a atuação sai do cam- àquilo que nos mostra a realidade da imagem.
po da representação e mostra o confronto do Ou será que ele não pode ser feito de uma
artista com o próprio corpo, passando a criar forma artificial, abstrata e, portanto, teatral?
uma situação autêntica. Peter Brook4 afirma que, para se fazer
2
Segundo Walter Benjamin , com a teatro, é preciso apenas o ator, o espectador e
emergência dos meios de comunicação de o espaço vazio. Daí, podemos concluir que o
massa, entra em jogo o processo de destrui- corpo do ator é espetacular, pois desperta uma
ção da aura da obra de arte devido à sua série de emoções no espectador. Hoje, atra-
reprodutibilidade técnica. Na reprodução me- vés de uma simples expressão do ator, pode-
cânica da obra em série, o contexto do espec- se perceber o que se passa: algo significativo
tador ganhou primeiro plano e a autenticidade ou pré-expressivo. E tal percepção acontece,
deixou de ser um critério aplicável à arte. mesmo através da imobilidade do ator, como
A performance do ator no cinema é no filme Boulevard do Crime, em que emoções
exemplar em relação ao novo modo de produ- indescritíveis parecem percorrer silenciosa-
ção artística mediado pelo desenvolvimento mente o rosto branco de giz do mímico, inter-
tecnológico: a separação entre o corpo e as pretado por Barrault.
imagens do corpo. Do posicionamento da Sabemos que o cinema nasceu com
câmera à edição do filme, baseado em cortes as feiras de atrações, e uma das primeiras
e montagem de seqüências, tudo na produ- formas de encenação a que teve acesso foi o
ção cinematográfica parece concorrer para a “vaudeville”, performances de atores, mímicos,
dissociação da continuidade da performance acrobatas, dançarinos e “clowns” presentes
do ator mediatizada pela imagem. nessas feiras e em praças. O prazer que era
Pode-se dizer que no teatro moderno a proposto então pelo cinema nas situações de
performance do ator foi mediatizada pela figu- espetacularidade apresentadas não demanda-
ra do encenador, pois sua atuação se tornou va narrativas complicadas, pelo contrário, es-
parte integrante da linguagem do espetáculo, sas eram praticamente suspensas. E o afeto
e elemento vital na sua articulação. Além dis- viria de uma maneira mais perceptiva e me-
so, a autenticidade do personagem se mos- nos intelectual ou emotiva. Cabe então a per-
trou inseparável da performance do ator, gunta: pode a performance do ator, no cine-
mantidas – ambas – pela presença dos es- ma, redescobrir a teatralidade? Ou essa seria
pectadores. Nesse sentido, a relação ator-per- uma linguagem privativa do diretor?
sonagem-público no teatro é vista por Benja- Ouve-se muito falar que os cineastas
min como reduto da irreprodutibilidade técnica não buscam a performance dos atores como
da obra e de sua autenticidade. fator principal na realização de sua obra. As
Segundo Susan Sontag3, o verdadeiro imagens e a tecnologia cinematográfica subs-
contraste entre o teatro e o cinema é que o tituiriam, portanto, a interpretação dos atores.
teatro demanda artificialidade enquanto o ci- Sendo assim, uma representação realista do
nema é cometido pela realidade. O teatro visi- personagem bastaria, pois a linguagem do ci-

92
instituto de artes

nema ou a sua realidade poética se daria muito ao invés de simplesmente feito. Dessa manei-
mais pelo movimento dos enquadramentos, ra, tais performances passaram a assumir um
pela seleção das imagens e pela montagem status semi-autônomo na narrativa, como frag-
do diretor. Já o teatro buscaria a presença viva mentos que provocavam prazer por si-só; tor-
e urgente do ator, e seus gestos, imobilidades naram-se, pois, fontes de fascinação separa-
e movimentos participariam do próprio proces- das da função da trama.
so de montagem e plasticidade da cena. O ator Pode-se concluir que a performance no
– essência do teatro –, por suas ações e por cinema não é então um gênero hermético.
seu processo de criação, provocaria assim a Marcada por uma estrutura narrativa mais
aproximação do espectador, na tentativa de aberta e mais expansiva, ela permite ao es-
leitura dos signos corporais. Mas, até que pon- pectador perceber uma exposição narrativa
to, atitudes e gestos do ator também marcam dos atores que saem de suas personagens
suas personagens no cinema? para uma artificialidade e uma desconstrução
Henry Jenkins e Kristina Brunovska da prática significativa. Dessa forma, torna-se
Karnick, em seu Classical Hollywood Come- interessante perceber como a performance do
dy5, afirmam que o ator considerado virtuoso ator pode coexistir com a narrativa do filme.
desenvolvia um vocabulário de gestos e tru-
ques performativos que constituíam uma
1. Charles Chaplin – Luzes da Cidade
potencialidade expressiva individual no entre-
tenimento da comédia muda. Tais atores sabi- Charles Chaplin, ator, diretor e perfor-
am mostrar emoções pelos gestos de modo mer, nos anos 20 e 30, foi o primeiro a levar a
mais eloqüente que a maioria das linguagens, teatralidade para o cinema como modelo do
fazendo os espectadores descobrirem a bele- domínio do movimento. Ele é um precursor do
za da gestualidade muito acima do alcance das modernismo que, ao assumir o cinema, não
palavras. larga sua arte de ator de teatro – leva-a para
Os atores cômicos, particularmente, seus filmes. Preocupado com as limitações
pela sua excessiva e espetacular atuação, ti- do cinema mudo, passou um tempo desen-
ravam muitas vantagens no espaço provido volvendo uma base realista nas narrativas de
pelo sistema clássico narrativo. No meio da seus filmes antes de abrir as possibilidades
história, eles colocavam movimentos “interes- para uma performance estilizada, que lhe per-
santes”, capazes de transformar personagens mitiria uma alternância entre a comédia e o
em performers, através da adoção de identi- patético. Assim, ele “negociou” com as com-
dades alternadas, mentiras, exageros e más- petitivas demandas entre duas estéticas: a
caras, que testavam suas habilidades como espetacular, do “vaudeville”, propulsora de rup-
atores e instigavam nos espectadores uma turas na narrativa (levando as imagens para
consciência diferente das identidades sociais um plano fora da realidade, como fugas atra-
e pessoais. vés do onírico ou da fantasia); e a do verdadei-
As estrelas da comédia desenvolviam ro melodrama sugerido, por exemplo, no con-
maneiras de falar e de se mover, expressão flito da cena final com a garota das flores em
facial e gestos excêntricos, que exploravam o Luzes da cidade.
aspecto não representativo da performance. Em Luzes da cidade, Chaplin inclui na
Ou seja: ao envolverem movimentos altamen- performance do seu personagem – o Vagabun-
te estilizados, chamavam atenção para o do – o bastão do palhaço, a pantomima, a sua
modo como o ato estava sendo performado, hábil coordenação motora, o melodrama e a

93
cadernos da pós-graduação

bém o cinema como meio de mostrar o pró-


prio teatro, sem que um anule o outro. Encon-
tra-se ali o drama do espetáculo da pantomi-
ma, uma arte de imagem em movimento cria-
da quando não era permitido falar no teatro, e
quando um mimo ainda não era considerado
um ator, justamente por não ter o domínio da
palavra. A performance da mímica, apresen-
tada pelo ator Jean Louis Barrault faz parte da
Fig. 1: Charles Chaplin narrativa do filme, como na cena em que
Baptiste vê Lemaitre seduzindo sua amada nos
graça. Seu personagem é um mímico da bastidores e pára de repente a sua atuação no
alma; a expressão corporal é a forma que ele palco. Nesse momento, a realidade da ficção
encontrou para falar. Sobrevivente, num plano confunde-se com sua performance no teatro;
diferente das outras personagens, se mantém há uma transposição mútua; uma como que
afastado de suas vidas e realidades. Sem en- prolonga e continua na outra. O rosto de
dereço, nem família, é julgado pela sua apa- Barrault, congelado e em silêncio, tem uma
rência, e interage com o mundo apenas pelas expressão que é um misto contraditório de
suas ações. sentimentos em um precioso momento.
A sua aparência exterior contrapõe-se
à sua beleza interior, criando contraste entre o
conteúdo e a forma, e subordinando o psicolo-
gismo ao corpo grotesco, como indica
Meyerhold6. É assim que a inverossimilhança
consciente e a dissonância de seus gestos
suplantam o cotidiano. E é assim também que
a sua performance quebra o clichê do melo-
drama e torna-o original e emocionante, como
na já citada cena em que a cega com a visão
então restaurada, toca suas mãos, o reconhe- Fig. 2
ce pelo tato e o aceita tal como é. Os senti-
mentos contraditórios de rejeição e aceitação, Marcel Carré, diretor do filme, soube se
de medo e ternura são vistos pela expres- controlar para não filmar simplesmente um
sividade de seu olhar e gestos. grande espetáculo teatral. Devido à sua preci-
Dessa forma, sua performance cami- sa pontuação, as performances atorais
nha nos limites do trágico e do cômico, de- agigantam-se, mas sem exageros. Pelo seu
senvolvendo todo o seu potencial expressivo reconhecimento do talento de Barrault, não só
de atuação que até hoje nos emociona. no drama, mas também como virtuose da mí-
mica, é possível que o filme tenha sido conce-
bido já com base na versatilidade desse ator.
2. Jean-Louis Barrault - Boulevard do
Crime O filme é uma metáfora em que o mun-
do é um palco com homens e mulheres, que
O filme Boulevard do Crime não abor- são atores. As personagens da pantomima no
da somente a performance atoral, mas tam- teatro são Pierrô, Arlequim e Columbina, eter-

94
instituto de artes

nas figuras da “Comédia dell’Arte” que – no fil-


me – atravessam da ficção para uma mesma
situação na “vida real”. Trata-se, pois, de um
filme cuja atmosfera é teatral, cujas persona-
gens do teatro confundem-se com as perso-
nagens do cinema, e todas fornecem uma vi-
são artística da época.

3. Mastroianni e Fellini – La Dolce Vita


Fig. 3
Em se tratando da teatralidade no cine-
ma, não se pode esquecer de Fellini e o poder
metafórico de suas imagens. Aproximando o Neste filme, também através de perso-
fantástico à vida de suas personagens, ele nos nagens carnavalescas, a teatralidade é
faz perceber o próprio cotidiano como espetá- enfocada, como na cena do palhaço com dan-
culo, do mesmo modo que o espetáculo – sob çarinas que imitam animais, no restaurante fre-
sua direção – tende a extravasar sobre o real. qüentado por famosos e empresários. É uma
Desse modo, pela teatralidade, identificam-se característica em Fellini mostrar uma condi-
as personagens aos próprios atores. Mas- ção de naturalidade no estranho do ser huma-
troianni, por exemplo, foi um ator que, através no; uma relação de impessoalidade para com
da expressividade singular, mostrou o cami- o bizarro da humanidade. De modo que ho-
nho para a teatralidade encenada por Fellini. mem e ator não mais parecem se opor, assim
No filme La Dolce Vita, rodado em 1959, como a arte e a realidade, que então se fun-
em Roma, pode-se observar a identificação dem. Talvez o que tanto nos afeta em seus
dos dois Marcellos, o ator e o personagem, filmes seja a transformação do aspecto con-
que – juntos – fluem no interior de um homem traditório da vida das personagens em algo
vistoso, sonhador e desesperado, preso na espetacular, ou a percepção do elemento hu-
armadilha de uma vida sem sentido. Seu olhar mano como teatral.
“blasé” encaixa-se perfeitamente no persona-
gem mulherengo que se deixa envolver pelo 4. Almodóvar – Má Educação
mundo da fantasia, da sedução e do “glamour”,
despertados com a chegada da estrela ameri- As fortes características de personali-
cana na cidade, pela qual se apaixona. A cena dade nas personagens de Almodóvar aproxi-
em que Marcello a persegue pela cidade, na ma-as do melodrama teatral e demandam do
madrugada, até a Fontana di Trevi, é o ápice ator uma performance “sem vergonha” de se
do filme. Durante essa seqüência, insistente- expor no mundo dos desejos, das frustrações,
mente, ele tenta uma aproximação com a atriz, do lado obscuro X do ser humano. Almodóvar
sempre interrompida por ela de uma forma sempre procurou filmar com graça e naturali-
banal. O exterior, nesse contexto, mostra-se dade as mais absurdas situações de suas
como um elemento ao mesmo tempo de se- personagens, misturando o ordinário com o
dução e de frustração, atuando sobre as per- extraordinário em suas cenas. As persona-
sonagens, forçando a sua aceitação do belo gens exageram os sentimentos apresentados
da vida, que é também contraditório. até o seu limite, e tal obsessão se mostra

95
cadernos da pós-graduação

numa mistura balanceada de comédia e dra- CONCLUSÃO


ma, na alegria de viver por trás do ridículo da
existência. Assim como em Almodóvar, a realiza-
ção de Chaplin, Barrault e Fellini estão de acor-
Os temas principais dos seus filmes
do com o que afirma Brook7. Segundo ele, para
são desejo, família e religião experimentados
se fazer teatro, é preciso que se dê uma rela-
por suas personagens de uma forma fora dos
ção autêntica do ator com o espectador. Quan-
padrões considerados normais pela socieda-
to ao cinema, é preciso ainda mais. O olhar da
de, o que as torna críticas (ou em crise) em
câmera precisa fazer com que cada imagem
relação às regras da tradição. O melodrama
signifique de forma autônoma e produza emo-
em seus filmes se baseia sempre na teatra-
ções que possam surpreender os espectado-
lidade dos gestos, da postura e do comporta-
res.
mento assumidos no corpo do ator, definindo
a narrativa pelas fortes imagens que então se É assim que o cinema quebra a lineari-
criam. dade da narrativa e visualiza novas possibili-
dades de coexistência com a linguagem tea-
No filme Má Educação, o protagonista
tral. A teatralidade – inerente na performance
possui um forte desejo de ser outro, como fuga
do ator – talvez seja mesmo a química de su-
à realidade, tornando-se ator ou travesti. Para
cesso dos grandes cineastas: do cinema mudo
isso, ele age em cena através do seu corpo
até os dias atuais.
como espetacularidade, como na cena em que
o ator Gael Garcia faz uma performance ao
som de “Ne me quite pas”. Deslizando por
Andréa Stelzer, Mestranda em Teatro na Universidade do Rio
sobre o seu vestido justo, a câmera explora a
de Janeiro – UNIRIO. Atriz na Cia. Amok (Mímica Corporal Dra-
artificialidade intencional do corpo do ator como mática) e professora da rede municipal.
contradição tragicômica do personagem. E-mail: andréa.stelzer@bol.com.br

Orientador: Prof. Dr. Walder G. Virgulino de Souza, Docente


junto ao Depto. de Teatro da UNIRIO.
E-mail: walderdesouza@yahoo.com.br

Notas

1. PICON-VALLIN, 2006, p. 20.


2. BENJAMIN, 2000, pp. 67-113 (Tradução nossa).

3. SONTAG, 2001, pp. 99-100.

4. BROOK, 2002.

Fig. 3 5. JENKINS, 1995, p. 149.


6. PICON-VALLIN, op. cit., p. 35.

O filme converte-se então numa crôni- 7. BROOK, op. cit., p. 12.

ca do universo do cinema, tematizando, ques-


tionando e chocando os conceitos morais. Na Referências Bibliográficas
ambigüidade, de várias formas presente na
performance do ator, reside a força do filme BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica. São Paulo: Brasiliense, 1985.
de Almodóvar.

96
instituto de artes

___________. “L’ouvre d’art à l’éte de sa reproductibilité


technique”. In: Euvres completes, tome III. Paris: Gallimar,
folio essais, 2000.

BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Bra-


sileira, 2002.

CALIL, Ricardo. “Almodóvar reencontra Almodóvar”. In: Re-


vista Bravo . Junho 2006. Disponível no site http://
www.bravonline.com.br/noticias.php?id=2218.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense,
2005.

JENKINS, Henry e KARNICK, Kristina Brunovska. Classical


Hollywood Comedy. New York, Routledge, 1995.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva,
2005.

PICON-VALLIN, Béatrice. A arte do teatro entre tradição e van-


guarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Rio de Janei-
ro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006.

SONTAG, Susan. Styles of radical will. New York: Vintage,


2001.

97
98
instituto de artes

Expressionismo e Contemporaneidade

Fábio de Bittencourt
Luise Weiss

Resumo:
Este artigo trata do Expressionismo na contemporaneidade, ao relacionar alguns de seus aspectos
à produção do autor, a qual pode ser descrita por características como a desconstrução espacial, ênfase na
deformação das figuras, expressividade técnica e liberdade temática enfatizando o cotidiano, concernentes
à poética expressionista .

Abordar o Expressionismo, a partir de sionismo Abstrato, a partir da década de 50 e


seu surgimento na Europa, poderia ser enten- Neo-Expressionismo, da década de 80 até a
dido como uma tarefa no campo da História atualidade [Novos Selvagens, Bad-Painting,
da Arte, contextualizando-se manifestações de Transvanguarda ou Nova Figuração]. De uma
um ponto de vista historiográfico e linear, tan- maneira ou outra, já tomamos como pressu-
tas vezes já cumprida por autores competen- posto que se pode falar numa contempo-
tes e obras clássicas da literatura em ques- raneidade do Expressionismo na qual situo
tão. minha formação como artista e minha produ-
Pretende-se aqui, por outro lado, tecer ção.
considerações de outra ordem, isto é, situar e Uma nascente importante da corrente
analisar um contexto que diz respeito a minha expressionista na Europa foi a obra do norue-
formação e produção artística, demonstrando, guês Edward Munch, com uma poética inti-
desse modo, a contemporaneidade de corren- mista. Ainda ligado a correntes impressio-
tes de ordem “expressionista”, ao apontar nas nistas, revelou uma grande influência na for-
obras de alguns de seus participantes, carac- mação do expressionismo germânico, expon-
terísticas comuns ao meu trabalho. do e indo morar na Alemanha, ainda no final
Antes de mais nada, segundo Cardinal1, do século XIX. O começo da escola moderna
no prefácio de seu livro “O Expressionismo”, alemã, isolada e distinta da escola parisiense,
este seria um movimento trans-histórico, está na arte de Munch, segundo Read.2
atemporal. Por outro lado, pode-se afirmar que Em Berlim, expondo e participando ati-
o “expressionismo” se desdobra em três prin- vamente dos movimentos, influiu na formação
cipais momentos: Expressionismo Histórico, do grupo “Die Brücke”, em 1905. As caracte-
até a década de 20, com os grupos “A Ponte” rísticas essenciais da poética expressionista
[Die Brücke] formado por Kirchner e seus se- estão assim colocadas na declaração de
guidores, e “O Cavaleiro Azul” [De Blaüe Maillard sobre este grupo:
Reiter], encabeçado por Kandinsky; Expres-

99
cadernos da pós-graduação

“...Todos estes artistas são inquietos, de sensi- Reforçando, Argan6 coloca que os ar-
bilidade doentia, atormentados de obsessões tistas do grupo “A Ponte” resgatam as origens
religiosas, sexuais, políticas e morais. Paisagens do Romantismo frente a sua realidade e defi-
e nus dramáticos, composições místicas e visi- ne a condição do artista como fecundo ou
onárias, cenas rurais e urbanas, de circo, de café-
emergente, anti-burguesa, recusando as lin-
concerto, de gente suspeita, tais os temas prin-
guagens já constituídas, justificando a sua ru-
cipais. As cores puras brilham em ácidos estri-
dentes, cercados de contornos abruptos nos deza técnica e temática.
quais se traduz a influência da arte negra e das Devo ressaltar em minha formação ar-
madeiras gravadas primitivas. Através das varie- tística a importância da obra do artista russo,
dades dos meios pintura, escultura, gravura em radicado no Brasil, Lasar Segall pois, desde a
madeira, litografia, água-forte, cartazes, impres- minha infância, a partir dos meus oito anos fre-
são em pano, etc.” 3
qüentei as dependências do Museu Lasar
Segall, próximo a minha residência em São
Para Lopera4, é na obra de Picasso, Paulo, capital. Desde então tive um aprendi-
“Les Demoiselles D’Avignon”, que se encon- zado através da apreciação de suas obras
tra o germe do expressionismo, um conjunto expostas e posteriormente vim a estudar, fa-
justificável de fatores que iniciam a poética zendo os cursos de desenho artístico e mo-
expressionista, como a exacerbação de reali- delagem no atelier do museu. Destaco a liga-
dades existentes ou até, como afirma este ção direta deste expoente do expressionismo
autor, mulheres nuas e esquálidas que no Brasil com as primeiras correntes expres-
“... eram uma forma de realismo emocional tão sionistas, citando seus próprios comentários,
neurótico como se deseje, mas da extirpe dos a seguir:
realismos”. Argan5, analisando a obra citada
acima, observa a contribuição de Picasso na “Minhas melhores e mais preciosas horas, po-
fundação de uma nova abordagem temática rém, vivi-as em meu miserável quartinho dum
com relação a realidade do artista e ao aspec- bairro popular de Berlim, em que, inflamado pela
to sócio-cultural, presente nas obras dos possibilidade de pintar sem fórmulas e restrições
expressionistas. asfixiantes, tentava encontrar minha própria ex-
pressão artística.”
A partir de então, vê-se uma avalanche “[...] Foi nessa época crítica que tomei contato
de obras modernistas com características di- com alguns jovens pintores que pertenciam a
tas “expressivas” e de início centro minha aten- Secessão de Max Liebermann como também a
ção no grupo “Die Brücke” [A ponte]. Observo de Lovis Corinth. Juntei-me a eles. Meus qua-
já nesta formação aspectos emergentes que dros foram aceitos na Secessão, ganhei o prê-
são fundamentais para a descrição de meus mio Liebermann.” 7
trabalhos: o universo temático de caráter so-
cial e cotidiano, a predominância da gestuali- Em seu livro “A forma difícil”, o historia-
dade através de fortes e decisivas pinceladas dor Naves comenta a relação de Segall com o
na constituição de uma fatura acidental e co- expressionismo germânico, afirmando o as-
loração instintiva e uma composição truncada; pecto incisivo do expressionismo na realida-
lotando de elementos o espaço pictórico a fim de:
de causar uma atmosfera conflitante, tensa e
sinuosa que contextualize o sujeito represen-
“Para o expressionismo - sobretudo o germânico
tado. -, a arte era muito mais do que um aspecto da
atividade humana. Em última análise, ela circuns-

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instituto de artes

crevia o único momento em que a subjetividade tade artística que subordina a própria razão, é
podia dar provas da sua potência e integridade, característica essencial do expressionismo.”[...]
num mundo em que os limites impostos pelos “incluem-se todos os grandes artistas, todos os
processos objetivos praticamente anulavam qual- que contaram o seu drama, com toda a força de
quer autonomia do sujeito. Mesmo que o resul- vontade artística. Nele situa-se Goeldi, não por
tado final desse ato de rebeldia testemunhasse influências de seus contatos com os expressio-
acima de tudo a incapacidade da arte para con- nistas germânicos, mas por seu temperamen-
verter o real a sua dinâmica, restavam os indíci- to.” 10
os de um empenho desmesurado para manter
viva a possibilidade de uma nova existência.” 8
No segundo momento do expressio-
nismo, a partir da década de 40, na América e
Com relação a minha formação, cabe na Alemanha do pós-guerra ressalto a impor-
lembrar a importância da obra de Oswaldo tância de dois artistas, basicamente figurati-
Goeldi, notando o rigor de seu trabalho e seu vos que trabalharam uma poética intimista,
esforço no sentido de apurar uma linguagem reanimando preocupações dos primeiros
própria através de seus desenhos e gravuras. expressionistas, enfrentando a problemática da
De uma maneira direta e poética, Goeldi nos expressão em grandes pinturas figurativas,
fala de seu cotidiano, transformando a paisa- com relação a sua realidade. São eles Philip
gem do Rio de Janeiro em um lugar sombrio e Guston e Markus Lüpertz. Ambos trabalharam
claustrofóbico, repleto de seres abandonados com um universo temático voltado para a figu-
e ameaçadores, numa paisagem noturna e ra humana, seja simbolizando ou expressan-
marginalizante. do esse universo íntimo do sujeito [artista] fren-
Suas intenções expressivas e técnicas, te a sua realidade espelhada no universo par-
enquanto a conformar uma forte poética, que ticular do ateliê, nos objetos, na rua, na paisa-
viria depois a se assemelhar com a dos gem, ou num universo lírico, limiar entre estas
“expressionistas”, são relatadas por Reis: realidades figurativas e simbólicas. Esta es-
colha foi fortemente direcionada em virtude de
[...] “O domínio da técnica, a ponto de, através manifestações ocorridas nas décadas de 80
dela e com os próprios dados da realidade, recri- e 90 em torno da pintura, as quais acompa-
ar o mundo subjetivo, lírico ou trágico, com força nhei pessoalmente, que fizeram parte do meu
comunicativa comovedora, é a transcendente cotidiano e da minha formação artística. No de-
aspiração do artista, aspiração dramática que lhe correr destas décadas, identifiquei pressupos-
inflige cruciante labor. Mais padecem essa tortu- tos importantes, citados a seguir, na obra des-
ra os artistas de aguda sensibilidade, donos da
tes dois artistas, que serviram como paradig-
vida interior exuberante, original e por isso mes-
mas na análise das produções pictóricas da
mo, tirânica. Cada trabalho realizado é uma
súmula de esforços despendidos para que a cor- época. Em entrevista, Guston descreve seu
respondência entre a emoção e sua representa- processo de criação, através da escolha do
ção plástica se torne intrínseca.” 9 seu campo temático, restrito e cotidiano, liga-
do ao dia a dia, mais especificamente a sua
relação com seu universo íntimo, no caso, o
Afirmando a ligação de Goeldi com as
próprio ateliê, e da ligação com a tradição da
raízes do expressionismo, Reis lembra que:
pintura, citando alguns importantes pintores da
Historia da arte como Matisse e Bonnard por
[...] “A obsessão de que a obra de arte seja a Hopkins11.
representação dos impulsos subjetivos, da von-

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cadernos da pós-graduação

Além da questão temática, pode-se ver O artista alemão Markus Lüpertz me


na obra de Guston, a tensão entre a lingua- despertou interesse desde 1992, quando pude
gem abstracionista e a figuração, pois no pro- acompanhar através de um vídeo13 uma amos-
cesso de construção, emergem imagens do tra significativa do seu processo de trabalho.
que ele chamaria de “sujeira colorida”, tal como, Neste vídeo, vê-se nitidamente o procedimen-
usando sua própria metáfora, o “Golem”, figu- to particular adotado pelo artista na concep-
ra da mitologia germânica, que surge do bar- ção e construção de suas pinturas que ser-
ro. Objetos retirados do dia a dia, pintados em vem de paradigma para cercar algumas ba-
pequenas telas são recompostos em forma- ses ou princípios que a meu ver coincidem com
tos maiores, num movimento de permutação proposições contidas em algumas de minhas
e metamorfose, como por exemplo, blocos de obras. Considero importante ressaltar a apre-
prédios de uma paisagem urbana se transfor- ciação deste artista em ação no vídeo citado,
mando nas duas partes de um livro por Storr12. visto acompanhar visualmente com detalhes
Assim, as imagens criam uma dualidade, si- a confecção da fatura da pintura e a gestua-
tuando-se entre o campo abstrato e o figurati- lidade requerida no fazer de suas obras.
vo. Lüpertz é um artista vigoroso, em ação,
Storr chama atenção, entretanto, para age de maneira enérgica, intensa e usando de
o cuidado em se atribuir à obra de Guston ca- uma ampla gestualidade na construção de
racterísticas do que se veio a conhecer como suas pinturas. Sua medida é a intuição, é ela
neo- expressionismo pois isso poderia ignorar que guia suas ações e escolhas quanto a op-
complexidades de sua arte. Apesar do conteú- ções temáticas e colorísticas.
do biográfico, ele não estava preocupado com Assim como outros pintores expressio-
a auto-expressão nem estava apenas reagin- nistas, ele se atira num embate com a maté-
do contra o formalismo crescente no abstra- ria, a tela é um espaço onde o artista esta in-
cionismo que predominou os anos 60/70. Ele serido, sua dinâmica é tomada por ações
era convicto, por exemplo, segundo este au- repetitivas onde ele arremete incansavelmen-
tor, da importância de um Mondrian e outros te com grandes pinceladas e esguichos de tin-
abstracionistas nos quais identificava uma tas na obtenção de um descanso do olhar. O
“idéia fixa”. Os limites entre o representacional gesto, a sua gestualidade é de suma impor-
e o abstrato são tênues em sua obra pois a tância nesta realização. Zweite assinala que
questão para ele não era escolher entre um e “o gesto de realização triunfa sobre o motivo,
outro mas em como manter a identidade do mas sem o extinguir totalmente, sem o desfi-
autor e preservar o momento - o instante na gurar absolutamente. Embora Lüpertz pinte no
construção da obra - contra a tendência do estilo concreto[objetivo temático] ele tem mais
enrijecimento de fórmulas. interesse no próprio pintar do que no motivo
Na Bienal Internacional de São Paulo, representado pela própria pintura”14 e reforça
nas edições de 1981 e 1983, respectivamen- dizendo “[...] Especialmente as pinceladas rá-
te, pude apreciar “in loco” as obras de Philip pidas e largas cobrem todos os pormenores e
Guston e Markus Lüpertz, apenas para citar, coagem o material heterogêneo numa forma
estes precursores do ressurgimento da pintu- total que aparece como natural, anulando a fi-
ra nos anos 90, entre outros. Observo que por xação e o conteúdo dos elementos individuais
serem suas poéticas construídas nas déca- sem os extinguir totalmente. [...]”15
das de 60 a 80 são estas as fontes deste mo- No desenvolvimento da obra de Lüpertz
vimento. percebemos uma atitude notavelmente ines-

102
instituto de artes

perada e oscilante com relação a aspectos temporânea através do seu maior evento ar-
temáticos. Suas grandes telas gestuais mui- tístico que é a Bienal Internacional de São Paulo
tas vezes são iniciadas com uma atitude ab- onde, a partir da sua XVI edição, no ano de
solutamente abstrata e informal, chegam a 1981, recebe os primeiros representantes des-
conformar uma realidade figurativa, ainda que ta nova geração de pintores destacando-se,
crua. E velada, camuflada, na constituição de entre eles, o canadense Philip Guston. Em sua
uma rica matéria pictórica, até que, como num edição seguinte, a Bienal apresentaria obras
embarque seguro, resolvem-se em formas significativas dos artistas alemães Markus
biomórficas ou zoomórficas reunindo univer- Lüpertz e A.R. Penk.
sos distintos como objetos e figuras [huma- Outras Bienais de extrema importância
nas ou não], objetos e paisagens ou figuras e foram a XVII e XVIII edições nos anos de 1985
paisagens. e 1987, respectivamente, reunindo, em 85,
Neste sentido, observamos a abertura grande parte da produção emergente européia
temática e processual na obra de Lüpertz, na concepção de um grande corredor de pin-
quando permite esta rica variação em torno de turas de artistas internacionais. Apresentavam-
temas e as adequações técnicas possíveis no se, lado a lado, na chamada “A grande tela”,
processo de conformação da obra. estrangeiros, em sua maioria europeus, e bra-
Segundo o historiador Klaus Honnef16, sileiros. Pude apreciar obras representativas
esta nova geração de artistas que surge no de pintores como: Walter Dahn, Helmut
final da década de 70, mesmo alguns que já Middendorf, Jorg Immendorff, Georg Dokoupil,
tinham sua produção madura em andamento Peter Bommels, Rainer Fetting, Martin Kippen-
desde a década anterior, como é o caso de berger, Sandro Chia, Enzo Guchi, Salomé e
Markus Lüpertz, George Baselitz, Anselm Martin Disler entre outros. Em 87, a XVIII Bienal
Kiefer e A. R. Penk, na Alemanha e Francisco apresentaria uma mostra individual importan-
Clemente, Enzo Guchi e Sandro Chia, na Itá- te com grandes telas de Anselm Kieffer, ale-
lia, encabeçam toda uma lista de artistas eu- mão, um dos pintores mais representativos da
ropeus, especialmente italo-gêrmanicos. nova pintura alemã pela especificidade da sua
obra.
Esta nova geração apresentava em
suas obras, em grande parte pinturas de gran- Estes acontecimentos repercutiram for-
de formato, telas maiores que a escala huma- temente em minha produção, permitindo, a
na, na sua maioria ultrapassando em suas di- partir de então, maior aprimoramento técnico
mensões a faixa de 2 metros, no sentido des- e expressivo na linguagem que se desenvol-
te suporte potencializar valores expressivos e via.
gestuais da imagem representada. Com estas considerações e relatos
Com o aumento da produção de obras sobre a obra de expressionistas em diferen-
pictóricas, produtos artísticos facilmente ad- tes épocas de um movimento trans-histórico
quiridos pelo mercado, aconteceu uma gran- e atemporal, tentei situar a minha própria tra-
de expansão do mercado de arte e conseqüen- jetória e produção, contribuindo para uma re-
temente a proliferação de galerias pelo mundo flexão sobre a coexistência de diversas cor-
a fim de comercializar a nova produção, tão rentes artísticas no cenário contemporâneo
divulgada pela mídia mundial a partir da déca- das artes plásticas e sobre processos de for-
da de 80. Neste momento, o Brasil também mação do artista neste campo.
vai receber as influências desta produção con-

103
cadernos da pós-graduação

Fábio De Bittencourt, Mestre em Artes – Instituto de Artes – NAVES, Rodrigo. A forma difícil. São Paulo: Editora Ática, 1996.
UNICAMP. Artista plástico,arte-educador e performer. Ministra
___________. Goeldi - Espaços da arte brasileira. São Pau-
oficinas pela Secretaria Estadual de Cultura- Oficinas Regio-
lo: Cosac & Naify, 1999.
nais de Cultura Carlos Gomes-Limeira,SP. Ministra cursos de
arte no Espaço Cultural Alquimia,Campinas-SP. READ, Herbert. A arte de agora agora. São Paulo: Perspectiva,
E-mail: fabiodebittencourt@hotmail.com 1972.

Orientadora: Profa. Dra. Luise Weiss, Docente junto ao Depto. REIS Júnior, José Maria dos. Goeldi . Rio de Janeiro: Civiliza-
de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. ção Brasileira, 1966.
E-mail: luisew@terra.com.br SEGALL, Lasar. Textos, Depoimentos e exposições. São Pau-
lo: Museu Lasar Segall, 1993.

STORR, Robert. Philip Guston. New York: Cross River, 1986.


Notas ZWEIT, Armin. Markus Lüpertz. São Paulo: Bienal de São Pau-
lo, 1983.
1. CARDINAL,1984, p. 9.

2. READ, 1972, p. 57. Catálogos e Textos

3. MAILLARD, 1967, p. 53. “A Participação dos Estados Unidos da América na XVI Bienal
Internacional de São Paulo”. São Paulo: Philip Guston, 1981.
4. LOPERA, 1996, p. 104.
Catálogo Geral: XVI Bienal Internacional de São Paulo, vol. I.
5. ARGAN, 1992, p. 424. Bienal. São Paulo, 1981.
6. Idem, pp. 227-228. Markus Lüpertz. Kunstsammlung. Nordhein-Westfalen. 1996.
7. LIEBERMANN,1993, p. 13. Oswaldo Goeldi. Galeria Thomas Cohn. São Paulo, 1999.
8. NAVES, 1996, p. 218.
9. REIS, 1966, p. 33.

10. Idem.

11. HOPKINS, 1981, p. 7.


12. STORR, 1986, p. 66.

13. Vídeo:Inter Nationes, 1983.

14. ZWEITE, 1983, p. 7.

15. Idem.
16. HONNEF, 1992, pp. 24-25.

Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia


das Letras, 1992.
CARDINAL, Roger. O Expressionismo. São Paulo: Editora Jor-
ge Zahar,1984.

HONNEF, Klaus. Arte Contemporânea. Colônia: Taschen, 1992.

HOPKINS, Henry T.- “Phillip Guston-Uma recordação”. In: A Par-


ticipação dos Estados Unidos da América na XVI Bienal
Internacional de São Paulo. São Paulo, 1981.
LOPERA, Jose Alvarez . Picasso Modern Master Thyssen,
Madri, 1996.

MAILLARD, Robert. Dicionário da Pintura Moderna. São Pau-


lo: Edimax, 1967.

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instituto de artes

Notas sobre uma Estética Goetheana

Cláudio de Souza Castro Filho


Maria Lúcia Levy Candeias

Resumo:
O texto aborda algumas das principais diretrizes estéticas que perpassam a obra, tanto literária
como teórico-filosófica, de Johann Wolfgang von Goethe. Não se trata de delimitar conceitos norteadores
da produção goetheana, mas de identificar a manifestação de idéias, próprias da escrita de Goethe, que
apontam para o conflito entre romantismo e neoclassicismo. Do lado romântico, temos um Goethe que se
deixa levar pelas aspirações subjetivas, tal como vemos em Werther. Já do lado neoclássico, temos um
Goethe influenciado pelo pensamento de Winckelmann, inspirado nas ruínas greco-romanas e numa rela-
ção salutar entre o homem e a natureza.

Um conflito primordial marca a obra de evocada em tantas modalidades artísticas: a


Johann Wolfgang von Goethe. Ser ou não ser paisagem poética dá-se, assim, em relação à
romântico – ou, ser ou não ser neoclássico –, literatura, à música, à pintura, ao teatro de
eis a questão. Ser romântico, no caso, signifi- Goethe. Há, portanto, uma equivalência, em
ca ser fiel aos ideais do Sturm und Drang termos de formulação de belas imagens, en-
[Tempestade e Ímpeto], grupo pré-romântico tre a construção plástica e a construção literá-
do qual Goethe é um dos fundadores e que ria, que comparecem, ambas, como formas
tem em Os Sofrimentos do Jovem Werther possíveis de poetização da natureza. Mas a
sua mais legítima expressão. Ser neoclássico, poesia é, para Goethe, a mais imagética das
por sua vez, significa acreditar na idéia de que artes literárias, equivalendo à pintura no que
uma legítima modernidade só pode fazer sen- se refere a uma especial relação com a natu-
tido se balizada na resignificação, em tempo reza. O poeta compreende tal relação tanto
presente, das ruínas da antigüidade. A re- pelo viés artístico como pelo viés científico, já
presentificação do ambiente clássico greco- que, em última instância, o homem, ao produ-
romano no contexto do século XVIII encontra zir toda sorte de saberes, estabelece com a
no pensamento de Winckelmann seu mais natura uma relação de espelhamento e
ilustre representante. integração: a moderna finalidade do sujeito
Em ambos os casos, pode-se pensar conhecedor é a harmonia com a natureza.
num Goethe que dialoga com a idéia de Há na idéia romântica (ou hegeliana) de
transcendência, ligada a uma paisagem poéti- transcendência um interessante contra-senso
ca. Cabe destacar que a idéia de paisagem, no que diz respeito a uma intuição de Deus à
em Goethe, suplanta a noção de pintura de qual a arte pode nos convocar. Existe, em tal
paisagem e abarca a imagética paisagística pensamento, uma nítida perspectiva de

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cadernos da pós-graduação

transcendência no nível religioso, já que a arte Percebe-se, no decorrer do século XVIII


pode proporcionar uma união espiritual com o e na passagem para o XIX, uma forte tendên-
absoluto. No entanto, tal experiência dá-se por cia humanista no pensamento ocidental,
um caminho subjetivo, por uma experiência marcada pela formulação e pela crescente afir-
fenomenológica do sujeito, que flui romantica- mação da noção de sujeito. Tal tendência, ao
mente a obra. Curiosamente, a divindade ab- que parece, deve-se a uma herança renas-
soluta que se pode extrair, por intuição, da obra, centista e iluminista que, em decorrência de
não se encontra num movimento transcenden- uma crise do sagrado (ascensão burguesa,
te de ordem metafísica – para além da physis reforma protestante etc.), põe o homem no
–, mas reside num mergulho subjetivo. Se o centro do universo. Hegel, por exemplo, exclui
homem é feito à imagem e semelhança de do pensamento estético o belo proveniente do
Deus, é no próprio homem que se encontrará mundo natural, reservando na nova ciência fi-
a centelha divina, intuindo-se a existência losófica espaço exclusivo para o belo artísti-
fenomênica de Deus. co. A vantagem do último frente ao primeiro
Se não se pode falar, numa perspecti- está precisamente no fato de que a arte é pro-
va romântica (seguindo os passos de Hegel), dução do gênio humano, e somente por aquilo
de uma transcendência puramente religiosa ou que o homem efetivamente produz podem ser
exclusivamente subjetiva, tampouco se pode percebidos os traços do absoluto. Tal tendên-
afirmar, de forma categórica, que há no mode- cia humanista, fortemente impregnada na
lo neoclássico de Winckelmann uma objetivi- metafísica hegeliana, está também em Goethe
dade plena. Trata-se de um classicismo roman- e Winckelmann, já que a arte neoclássica deve
tizado, já que pressupõe, por intermédio da cristalizar o movimento do mundo antigo, dan-
fruição de uma paisagem idealizada, uma con- do um passo para além da natureza. O belo
ciliação do homem em sua relação com o artístico supera, pois, o belo natural.
mundo. Winckelmann acredita que a partir do No centro do indissolúvel embate entre
contato com as ruínas da antigüidade greco- o Goethe romântico e o clássico enfrentam-
romana (ele refere-se, precisamente, às pai- se, assim, os termos ‘sentimental’ e ‘naïf’. Ao
sagens mediterrâneas da Itália, entendidas romper com os ideais veiculados em seu
como Magna Grécia) se pode experienciar uma Werther, o poeta critica o elemento sentimen-
revivificação do espírito grego, marcado por tal do romantismo, por enxergar nele nada além
uma harmonia do homem com a natureza de um desmedido e tempestuoso conflito, que
circundante. acarreta a impossibilidade de relação do su-
Um dos mais significativos legados do jeito com o mundo. Especialmente nos anos
romantismo sem dúvida diz respeito à substi- 1810, o Goethe neoclássico mostrar-se-á in-
tuição da retórica pela nascente estética, fe- fluenciado pelo pensamento de Winckelmann,
nômeno que redefine o lugar da arte no cam- do qual se origina a preferência por uma arte
po do pensamento. Nessa nova configuração, ingênua (naïf) como possibilidade de concilia-
o discurso dá vez à aferição; a obra deixa de ção do homem com a natureza, fundindo-se
suscitar meramente uma reflexão de cunho ambos numa mesma substância.
teórico e passa a englobar suas potencialida- É nesse sentido que a idéia de uma
des afetivas, sendo percebida como deflagra- paisagem poética (relacionada à pintura, mas
dora de um fenômeno estético, de uma rela- também à poesia, à música, ao teatro...) será
ção sensível entre sujeito e objeto. preponderante para compreender alguns as-

106
instituto de artes

pectos dessa ambígua relação que Goethe guida, superpor planos que se colocam à fren-
constrói, ao longo e no centro de sua obra, com te uns dos outros. Hackert, segundo a crença
romantismo, de um lado, e neoclassicismo, de goetheana, avança em relação à chamada ‘pin-
outro. Winckelmann compreende a paisagem tura de vista’, já que ultrapassa o registro cien-
mediterrânea – não apenas em sua configura- tífico da paisagem em favor de uma síntese
ção geomorfológica, mas especialmente em que deve aglutinar os elementos meramente
seus aspectos climáticos – como determinante necessários para a compreensão de uma lei
para o desenvolvimento da antiga arte grega. essencial, que rege tanto aquele circunscrito
A paisagem agradável e o clima ameno em universo quanto a natureza como um todo.
relação ao norte europeu apresentam-se como Segundo Goethe1, é pelo conhecimento legíti-
fatores favoráveis a uma relação harmônica mo, empírico, vivencial, do fenômeno natural
do homem com o ambiente ao redor. Em con- que se dá a ciência, isto é, a compreensão
seqüência, será também agradavelmente flui- das leis essenciais que impulsionam o fluxo
da a relação entre o artista e a paisagem, o fenomênico das coisas naturais.
que gerará uma arte elevada, capaz de imitar Como se vê, é tênue o limite que sepa-
idealmente a natureza. O artista deve usufruir ra arte e ciência no pensamento de Goethe.
do ambiente natural em que trabalha, deixan- Se, em relação à ciência, é preciso conhecer
do-se influenciar pela atmosfera local, possi- a fundo o fenômeno e sua história (por inter-
bilitando que sua arte manifeste sinteticamen- médio de um contato estreito com a nature-
te o espírito favorável da natureza circundante. za), no que tange à arte, o poeta pressupõe
A passagem do século XVIII para o XIX uma relação sensual com a matéria, ainda que
marca, na história da arte, uma recolocação mediada pela razão. É a partir de um delicado
do status da pintura de paisagem. Até então, contato com o particular, portanto, que se po-
somente as naturezas-mortas conseguiam derá, na arte, alcançar uma totalidade.
ser menos privilegiadas numa escala temática O neoplatonismo hegeliano já pode ser
de valor atribuído à pintura. Assim, as pinturas visto em Goethe no que ambos vislumbram
históricas, os retratos e as cotidianas pinturas como possibilidade de transcendência huma-
de gênero eram considerados estilos mais na por intermédio da arte. Afinal de contas, é
afins aos grandes artistas. Com os pintores no mais estreito contato com natureza,
românticos tal hierarquia passa a ser revista e transmutando em arte tal fenômeno, que o
a pintura de paisagem desponta como princi- homem poderá encontrar um mecanismo de
pal veículo pictórico do período. É pela repre- elevar-se; ambos ultrapassam, assim, o regis-
sentação da paisagem, então, que os pintores tro iluminista de Lessing, para o qual a arte é
da época imprimirão à tela seus mergulhos vista praticamente como pura linguagem. A
subjetivos, suas intuições de Deus, as sutile- síntese, em Goethe, pode ser compreendida
zas ou a síntese do meio natural que lhes ser- à semelhança de um processo alquímico, o
viu de inspiração. qual se dá pela fusão de elementos aparente-
Goethe vê em Jacob Philipp Hackert um mente díspares.
dos mais interessantes artistas da época, pois Em Fausto, por exemplo, mostram-se
enxerga em seus quadros a instauração de um nítidas as influências que os escritos alquí-
nicho cósmico propiciado pelo próprio método micos do século XVII exerceram sobre a es-
de composição do pintor. Trata-se de uma uni- crita goetheana. Quando decide abandonar a
dade ideal que se dá pelo fato de o artista pri- clausura de sua biblioteca gótica (abandonan-
meiro traçar a linha do horizonte e, só em se- do também a fé nas categorias eruditas do

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cadernos da pós-graduação

saber) para experienciar a verdade sensual da cena, um nicho poético rico em imagens
vida mundana, Fausto (a personagem) é oníricas. Se, como vimos, para o poeta, a po-
conduzida por Mefistófeles à Hexenküxe [Co- esia equivale imageticamente à pintura, pode-
zinha da Bruxa], onde sorverá uma poção ca- mos equiparar a Noite de Valpúrguia aos mais
paz de lhe fazer rejuvenescer. Tal experiência célebres quadros de Pieter Bruegel ou de
funde, assim, aspectos místicos – marcados Hieronymus Bosch. Trata-se de uma fuga da
pela atmosfera cerimoniosa da cena – com realidade que, contrastivamente, abrirá os
elementos científicos – já que a Bruxa elabora olhos de Fausto para o sofrimento de Gretchen,
todo um procedimento (um método) para pre- que comparecerá na cena como uma espécie
parar e servir a poção. No entanto, ao abordar de imagem espectral, sintetizando, num mes-
Fausto procurando observar os já expostos mo momento, os múltiplos crimes e expiações.
contrastes entre elementos neoclássicos e As imagens sacrificiais da Noite de
aspectos românticos, o fragmento em que se Valpúrguia são inúmeras e, embora o tom de
encontrará com maior reverberação tal gama fantasia com que são imaginadas (isto é, tor-
de tensões será, sem dúvida, a clássica nadas imagem) aproximem a cena dos ideais
Walpurgisnacht [Noite de Valpúrguia]. A primei- românticos de transcendência, é preciso ver
ra versão conhecida de Fausto data mais ou na composição da cena ecos do projeto clás-
menos de 1775 e foi apresentada por Goethe sico goetheano de constituir uma arte legitima-
como Urfaust [Fausto Original ou Pré-Fausto]. mente alemã. Tal legitimidade é pensada, no
Será apenas na terceira fase de confecção da Goethe neoclássico, não ainda no âmbito de
obra, entre 1797 e 1808, que a Noite de uma unificação nacional, mas na esfera de uma
Valpúrguia se mostrará. Embora a Walpurgis- síntese da cultura européia, que abarca tanto
nacht vá, futuramente, ganhar novos contor- elementos nórdicos como heranças mediter-
nos e desdobramentos no Segundo Fausto, a râneas. O elemento mediterrâneo, na Walpur-
cena à qual aqui nos referimos é, com preci- gisnacht, talvez esteja, basicamente, na pró-
são, a apresentada por Goethe no Faust I [Pri- pria estrutura épica (de fundo homérico) da
meiro Fausto]. cena, aliada a seu conteúdo trágico-sacrificial,
A Noite de Valpúrguia, dentro da estru- que parece rememorar, em alguma medida,
tura épica do texto como um todo, marca um as Dionisíacas gregas. Já o elemento germâni-
significativo episódio da Gretchentragödie [Tra- co encontra-se, certamente, na tradicional ce-
gédia de Gretchen]. Fausto abandonou lebração popular que inspira a escrita da cena.
Gretchen após os consecutivos assassinatos Até os dias de hoje, a ocasião é anualmente
da mãe e do irmão dela, este por uma apu- celebrada, com música e vinho, nos vilarejos
nhalada de Fausto, aquela por veneno servido alemães da região montanhosa de Schierke e
pela própria jovem. Além disso, Gretchen está Elend. Diz a tradição que as meninas que,
grávida de Fausto, é condenada à guilhotina nessa noite, nascem com o cordão umbilical
pelo matricídio e, já na prisão, enlouquece. envolto no pescoço, são, na verdade, bruxas!
Como culminância de seu suplício, ela, no pró- Goethe parece lançar mão dessa imagem para
prio cárcere, dá à luz o bebê, mas o mata, afo- descrever, em sua Noite de Valpúrguia, a mi-
gando-o com o leite materno ao sufocá-lo jun- ragem que convoca Fausto à lembrança do
to ao seio. Simultaneamente a tão doloroso sofrimento de Margarida:
percurso, a Noite de Valpúrguia marca a radi-
cal alienação de Fausto frente ao padecimen- “Não posso desse olhar libertar-me um momen-
to da amante. Goethe constrói, na peculiar to! / É pouco natural; no pescoço adornada / Traz

108
instituto de artes

um fino cordão de cor avermelhada, / Tão fino Fausto, agora romântico da cabeça aos pés,
quanto o fio de lâmina aguçada!” 2 depara-se diante de um suntuoso abismo:

Mas, é importante verificar, em dois “Como fulge indeciso! Abismo! Coisa estranha! /
exemplos distintos, como a noção de paisa- Um clarão muito tênue, ao longe, lembra a auro-
gem poética (isto é, de configuração imagética ra / E dos despenhadeiros na profunda entranha
/ Reflete-se e rebrilha ardente a toda hora. / Aqui
da paisagem na poesia, tal como se fosse
afloram brumas, ali há exalações, / Surgem cha-
numa pintura) pode ser utilizada para mencio-
mas do fumo, ardentes fluorescências, / Corta o
nar o contraste entre classicismo e romantis- ar um filete de luz em evoluções, / Que brota
mo na Noite de Valpúrguia, compreendida aqui como fonte a iluminar distâncias. / Aqui se es-
como síntese cênica da estética goetheana. tende ao largo em tantas direções, / Quais vei-
Analisemos primeiro a paisagem neoclássica, as, às centenas, a cortar campina, / Mais além
descrita na escalada do próprio Fausto, que num recanto o curso enfim se afina, / Unem-se
se dirige às montanhas de Harz: novamente em lentas convulsões. / Raios brilham
no infinito, / São poalha de luz. / Olha além! No
alto espaço onde afinal reluz, / E rubro se incen-
“Quem dera que pudesse essa estrada encurtar!
deia um muro de granito.” 4
/ Deslizar pelo campo em meio aos arvoredos /
E subir nos rochedos / De onde brotam nascen-
tes que sussurram eternas! / Esse imenso pra- Se, antes, numa paisagem marcada
zer inspiram tais paragens.” 3 pela presença da água como elemento
vivificador do quadro, relacionamos a paisa-
Talvez se possa equiparar a descrição gem poética goetheana à paisagem pictórica
fáustica da paisagem, nesse caso, à pintura de Ruysdael, desta vez, diante de um abismo
ideal que Goethe festeja na obra de Ruysdael, marcado pela romântica imensidão que reduz
em ensaio datado de 1816. Utilizando-se de à pequenez a visão humana, não há como não
tema recorrente na pintura da época, o quadro nos reportarmos à imagética de Friedrich e de
O Convento , de Ruysdael, analisado por seu quadro Le voyageur au-dessus de la mer
Goethe, representa a ruína de uma antiga cons- de mages, pintado por volta de 1818.
trução. Há grande destaque, na composição, Talvez o quadro de Friedrich seja uma
para a paisagem natural em que se insere a das imagens que com maior eficácia sintetize
ruína e, em tal contexto, Goethe destaca o equi- a poética romântica de representação da pai-
líbrio com que o pintor apresenta signos de sagem. Trata-se de compreender o ambiente
destruição, mas também de vida, na poetiza- retratado não exatamente com uma fidelidade
ção pictórica do ambiente. A paisagem é insu- científica, naturalista, mas como um espaço
flada de vida quando irrigada por fontes que idílico a partir do qual se buscará um movimen-
jorram, por riachos que correm, por pântanos to de transcendência por meio do mergulho na
que se espraiam. Assim, na Noite de Valpúr- natureza; esse mergulho transcendental, por
guia, é o brotar das nascentes que inspirará sua vez, parece obedecer a dois sentidos opos-
primaveril prazer a Fausto, em absoluto con- tos, mas também complementares. De um
traste com o padecimento de Margarida na- lado, é pela vastidão do abismo, pela sensa-
queles mesmos instantes. Mais à frente, pou- ção de infinitude diante da paisagem, que se
co antes de uma tempestuosa ventania se alcança uma intuição de Deus, tal qual acredi-
abater sobre o caminho das montanhas, ta Hegel ser a finalidade última do belo artísti-

109
cadernos da pós-graduação

co. De outro, a presença da figura humana, Notas

que nos dá as costas (ou que nos inclui, ob-


1. GOETHE, 1996.
servadores, como parte integrante do quadro),
faz da pequenez do homem diante da nature- 2. ___________. 1976, p. 218.

za monumental ponto de partida para um mer- 3. Idem, p. 201.


gulho subjetivo. Atravessar o abismo com a 4. Ibidem, pp. 204-205.
intensidade máxima do olhar – percebendo,
ainda, a sonoridade de seus silêncios, o hálito
de sua ventania, o percurso veloz do grito que Referências Bibliográficas
ecoa – é, também, percorrer o abismo que nos
conduz à mancha escura que nos faz huma- ECO, U. História da Beleza. Tradução Eliana Aguiar. Rio de
nos. Quando se desvenda como sujeito, o ho- Janeiro: Record, 2004.
mem descobre-se profundamente solitário, GOETHE, J. W. Fausto. Tradução Sílvio Meira. São Paulo: Abril
impelindo-se assim ao mergulho circunspecto Cultural, 1976.

que o induz a buscar em si mesmo um senti- ___________. Doutrina das Cores. Tradução Marco Gianotti.
São Paulo: Nova Alexandria, 1996.
do para a compreensão do mistério.
___________. Escritos Sobre Arte. Tradução Marco Aurélio
Goethe, o neoclássico, empenhou-se Werle. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.
com militância na crítica de um romantismo
HADDOCK LOBO, R. “A Estética de Hegel e o Ideal Romântico
que configura na experiência subjetiva uma do Amor”. In: FRANCO, I. F. (org.) O que nos faz pensar: arte
reflexão apaixonada sobre as coisas do mun- e filosofia (Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-
Rio). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003.
do em suas potencialidades transcendentais.
Ao fim da vida, concluindo Fausto (depois de HEGEL, G. W. E. Estética. Tradução Orlando Vitorino. Lisboa:
Guimarães, 1993.
seis décadas de incessante trabalho), o poeta
WINCKELMANN, J. J. Reflexões Sobre a Arte Antiga. Tradu-
revê suas posições relativas a um classicismo ção Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movi-
à maneira de Winckelmann. Na revisão final mento / UFRGS, 1975.
de Fausto, então, rearticula-se o hemisfério
romântico do autor, que parece agregar um
classicismo não tão conservador como o de
outrora, mas consciente de sua raiz românti-
ca, posto que pressupõe uma recolocação do
homem no mundo, por meio de uma profunda
integração com a natureza. O sujeito, embora
se articulando positivamente com a natureza,
está profundamente só em sua singular visão
de mundo – eis a paisagem poética de uma
possível estética goetheana.

Cláudio de Souza Castro Filho, Mestre em Artes pelo Insti-


tuto de Artes – UNICAMP.
E-mail: claudioscf@ig.com.br

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Levy Candeias, Docen-


te junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes –
UNICAMP.
E-mail: mlcandeias@globo.com

110
instituto de artes

Teatro na Estante e Teatro no Palco: considerações sobre a


língua viva do Teatro Popular

Neyde Veneziano

Resumo:
Este artigo discute as relações entre literatura dramática e teatro popular, considerando este último
como oriundo da tradição oral.
Puxando o fio do teatro popular, criado diretamente sobre a cena e com o pacto do público, exami-
na-se a questão relativa, especificamente, à fala enquanto meio de comunicação no cotidiano em oposição
à fala de personagens (aquela trabalhada pelo autor-dramaturgo).
Tomando como exemplo a elasticidade dramatúrgica do circo-teatro no Brasil e passando pelo
teatro de convenções e pelo teatro ligeiro, este artigo chega ao emblemático Dario Fo que, ao nutrir-se da
tradição oral, fez sua obra merecer o Prêmio Nobel de Literatura.

Recentemente assisti, em uma certa Todos conheciam os roteiros dos espetácu-


cidade do interior paulista, a um espetáculo de los, as seqüências das cenas. Mas, de acor-
uma tradicional companhia de circo-teatro. do com a realidade e com os fatos locais, muita
Estavam levando, a cada noite, um drama (ou coisa ia sendo mudada. Pois no circo-teatro,
comédia) diferente. Como na boa tradição cir- uma sessão nunca é igual à outra. E em cada
cense, os atores fizeram, primeiro, uma pes- cidade, a mesma história resulta num espetá-
quisa sobre a cidade. Informaram-se sobre a culo totalmente diferente. Este é um procedi-
história, sobre a política, sobre os comercian- mento normal, oriundo do teatro de conven-
tes, sobre os fatos recentes. Procuraram sa- ções, que é próprio de todo o teatro mambem-
ber se havia, ali, algum “palacete de rico” (por- be, próprio da estética popular, que é oriunda
que se houvesse, pela lógica popular, haveria da Commedia dell’Arte, que é oriunda das
alguém que explorou os pobres). O drama a Atelanas e que, talvez, tenha vindo dos mimos
que assisti não foi lido, nem analisado, nem gregos e das comédias de Mégara.
decorado. Foi transmitido oralmente. Nenhum O circo e seus remotos ancestrais es-
dos atores sabia o nome do autor. Denomina- tiveram sempre ligados à cultura popular e à
va-se “Índia”, o tal drama. No final, mostraram- arte de fazer rir. A rigor, é muito difícil precisar
me outros trechos de uma peça que se cha- a data e origem dos espetáculos em recintos
mava “A mulher que veio de Londres”. E cada fechados ou abertos, que marcaram o surgi-
um dos componentes do elenco sabia o seu mento do gênero. A vontade de divertir foi in-
“papel”, que é muito mais do que um persona- ventando, durante séculos, feiras populares,
gem. É uma função dramática: “o vilão”, “o barracas exibindo fenômenos, habilidades ex-
galã”, “a dama-galã”, “a caricata”, “o tonto”. travagantes, truques mágicos e malabarismos.

111
cadernos da pós-graduação

O circo, cujas remotas raízes estão nos es- Também a comédia e, em geral, aquilo que se
petáculos populares dos gregos e dos roma- chama de teatro profano, teve na sua ascen-
nos, apossou-se das criações de palhaços da dência características do sagrado, ainda que
comédia popular e da Commedia dell’Arte. este sagrado pertencesse ao mundo ritualís-
Alguns poucos trabalhos universitários tico das religiões pagãs. Este teatro profano
já abordaram, de forma tangencial, a questão de origem sagrada sobreviveu durante todo o
da arte da encenação e da interpretação no período de perseguições ao teatro, profis-
circo brasileiro. Fora dos meios acadêmicos, sionalizou-se nas ruas de Veneza e se insta-
porém, é muito comum encontrarmos artigos, lou nas elegantes salas de nossos dias. A
entrevistas, crônicas, depoimentos (mesmo oralidade geradora destas manifestações, sob
fora do país), cujos discursos nos fazem crer todas as suas formas, determinou uma estéti-
que existe um jeito brasileiro de fazer circo (prin- ca popular e um jeito de representar direta e
cipalmente o circo-teatro), uma forma de in- exclusivamente para o público.
terpretação que traduz um tipo determinado de O espírito classificador dos gregos já
caráter. E que este jeito brasileiro estaria com- qualificava a tragédia como forma literária das
binado a uma certa descontração capaz de mais apreciadas. Sobre a natureza literária da
proporcionar um terreno fértil para a criativi- dramaturgia, perguntas, no entanto, continu-
dade e a espontaneidade. Nada poderia se am desafiando o Ocidente pensante: Haverá
apresentar de forma menos científica ou me- mesmo, diferenças significativas entre drama-
nos rigorosa. Um tenaz preconceito acredita turgia popular e dramaturgia elitista? Literatu-
que a espontaneidade e a criatividade não se ra dramática é somente aquela que exige o
misturariam a técnicas e procedimentos, se exercício solitário “em gabinete” ou também
colocados no mesmo cadinho. se cria literatura diretamente sobre a cena? E
Ao se estudarem o circo, as bufonarias o público? É criador ou, apenas, espectador?
e os diversos meios de expressão populares, As questões deslizam, umas sobre as outras.
têm-se estudado as formas e os conteúdos, Desde Aristóteles, especialistas se
sem um mergulho nos processos de elabora- ocuparam do caso. Estudos e pesquisas, des-
ção. Pensam-se nos enunciados, não nas for- velaram as técnicas dramatúrgicas. Todos fo-
mas de enunciação. ram unânimes: dramaturgia se apóia sobretu-
Falta, também, um estudo mais apro- do na “ação dramática”1 e também nos confli-
fundado do chamado “teatro de convenções” tos, na superação dos obstáculos, na mani-
e de como ele chegou até nós. Certamente, a pulação das situações. Há arquiteturas muito
Commedia dell’Arte plasmou uma estrutura claras para os diversos sub-gêneros da litera-
que se tornou rígida para o teatro francês e tura dramática. Trata-se de estruturas que des-
que, mais tarde, retornaria afrancesada para cendem da tragédia ou da comédia nova ou
a Itália como “teatro de convenções” no qual do drama romântico. No arcabouço de cada
espera-se a “tirada” do capocomico, a esper- gênero há o lugar certo para que um velho tio
teza da “primeira atriz”, a gag do “bufão”, tudo (ou médico da família, ou advogado do casal)
como manda o figurino do teatro all’improviso. entre para dar um conselho como porta-voz
do autor, por exemplo. Há também o espaço
Todas as formas dramáticas reconhe-
ideal que para casais enamorados atinjam
cem, como primeira e unitária origem, o rito:
seus objetivos, criados brejeiros compliquem
nasceram com os momentos essenciais e
a vida de seus patrões, heróis incorruptíveis
mais significativos das cerimônias religiosas.
vençam as dificuldades2. No clássico edifício

112
instituto de artes

dramático, há princípios como “nós”, “compli- servação de nossos processos criativos e à


cações”, “desfecho”. Maleáveis e flexíveis aos recuperação de uma estética anterior, como
tempos, estas construções se adaptaram aos determinante da atual, dificultou de início o en-
estilos, às escolas, aos pensamentos filosófi- tendimento desta cena que parecia anêmica,
cos e estéticos de cada período. sem tessitura. Que parecia contrafação.
Numa classificação mais exclusiva, é Os textos abordados apontavam para
apropriado lembrar que, independente de épo- um perfil peculiar do teatro no país delineando
cas ou estilos, o gênero dramático comporta gêneros que se casaram com ritmos, assun-
as três posturas que lhe são condizentes: o tos e fala brasileiros. Este perfil, calcado em
dramático-épico (teatro narrativo), o dramáti- técnicas codificadas durante longo tempo, de-
co lírico (em que a poesia compete com a notava haver procedimentos próprios e um sis-
ação) e o dramático-dramático, ou seja, aque- tema de códigos através dos quais tipos bra-
le em que se trata, exclusivamente, do aqui e sileiros falavam e agiam em cena, comprome-
agora. tidos com as platéias de seu tempo.
Hoje, estuda-se, também, a dramatur- Através de ajustes e combinações,
gia do ator, a dramaturgia do espetáculo e até chegamos aos procedimentos da construção
o teatro da não-dramaturgia. Não nos cabe aqui da cena, da construção dos personagens-tipo
a discussão destas terminologias3. Voltemos, e a uma conseqüente fala brasileira.
portanto, ao teatro brasileiro e verifiquemos À tradição do teatro de texto da cultura
como e em que medida, aqueles atores que européia, paralelamente, inscrevia-se a
improvisam, estariam ou não, com suas “fa- dramaturgia do ator brasileiro que tinha a ver
las” , fazendo literatura dramática. com a construção da sua parte no espetácu-
Pesquisar o espetáculo ou o passado lo, com todo o seu processo criativo como in-
da cena brasileira é trabalhar em ausência, térprete de tipos e com uma grande dose de
pois o objeto de estudo não pode ser recom- improvisação com a qual ele personalizava a
posto. Há problemas encontrados pelo artista, técnica.
enquanto representa, que dificilmente poderão Quanto à dramaturgia propriamente dita,
ser compreendidos distantes da experiência a par das estruturas importadas, revelaram-
concreta. se estruturas peculiares, inoculadas pelos nos-
O centro de minhas pesquisas anterio- sos ritmos (ritmos estes que podem ser mu-
res constituiu-se no levantamento das conven- sicais, ou de falar, de caminhar, de viver) e
ções e dos procedimentos dramatúrgicos do determinadas pela natureza transgressora do
teatro de revista brasileiro, tomando este gê- riso carnavalesco. Chegamos a um formato
nero como emblemático. Busquei as estrutu- brasileiro de teatro diferente e único. Da
ras importadas e as comparei aos modelos transmigração e das combinações entre o
brasileiros. Verifiquei significativas diferenças. material fornecido pelos atores e as influênci-
A partir daí, desviei o olhar para o lado espeta- as estrangeiras, germinou o modelo nacional.
cular desse nosso passado teatral. Do comprometimento entre estruturas
Tornar orgânica a dialética entre dois e cena, entre atores e seu público, verificou-
pólos, dramaturgia e cena contemporânea, a se uma dramaturgia pensada como texto de
fim de que se possam nutrir um do outro, trans- representação, por vezes fragmentada entre
formou-se em uma constante preocupação. A texto falado e musicado, pois escrever para
aplicação de metodologias importadas à ob- teatro era, também, escrever para uma deter-

113
cadernos da pós-graduação

minada companhia submetida a uma hierar- nominado espetáculo chama-se “texto espe-
quia (a do teatro de convenções), com atores tacular”.
treinados para o improviso e especializados Dentre as tantas partes que compõem
na construção de tipos, bem ao contrário da o espetáculo teatral (a direção, o espaço cê-
atividade isolada que é a dramaturgia de gabi- nico, a cenografia, os figurinos, a sonoplastia,
nete. a iluminação), nenhuma é mais ou menos
Personagens construídos por atores importante. É no ator, entretanto, que reside a
que elegiam um certo jeito de falar, um certo essência do teatro. Ele é o centro das aten-
modo de mover-se, um modo de caminhar, ções e o espetáculo só se realiza quando um
uma certa qualidade de energia, um claro tipo ator, no palco, torna presente (re-apresenta >
capaz de manter consistência e reconheci- representa) um papel que já existe (pois foi
mento em diferentes contextos entrelaçaram- criado no passado). Dramaturgia, portanto, é
se para se tornarem textura: texto. texto dramático. Não é teatro enquanto o texto
Texto que abria espaços para improvi- não tiver sido encenado. E ao ator compete,
sações e se utilizava destes tipos, mais más- ao interpretar, dizer este texto.
caras do que propriamente personagens, os Seja na estética popular, da qual nos
quais podem ser tomados como uma pré-par- ocupamos acima, seja trabalhando sobre tex-
titura, elástica. No outro extremo, como fruto tos que comportam uma dramaturgia mais rí-
de trabalho “pensante” e não vivenciado, esta- gida e menos elástica, será, sobretudo, da fala
ria o “grande” personagem , tradição do teatro do ator que surgirão, diante do público, as si-
de texto da cultura clássica tradicional. tuações que vão impulsionar a ação.
Esta dramaturgia brasileira, do autor e Em dramaturgia as parte do diálogo di-
do ator ou para o ator, tem a ver não só com a tas por cada um dos personagens são deno-
tradição popular daquele que conhece as leis minadas “falas”. Em cena, os atores também
do jogo, mas também com a construção das “falam”. É natural, portanto, que a dramaturgia,
diversas partes do espetáculo, como um con- na construção das “falas” se aposse dos dis-
junto polifônico de vozes independentes a ser- positivos próprios da oralidade.
viço de uma única obra: o espetáculo. Em períodos “preciosísticos”, conse-
Ao examinar os conteúdos destas pe- qüentes do Renascimento e da sublimação das
ças verifiquei como estes conteúdos foram artes, o dramaturgo, então considerado “poe-
codificados e estetizados pelos atores e lidos ta”, recusava a linguagem cotidiana. Reprodu-
pela platéia de seu tempo. Detive-me, não só zir a simplicidade do dia a dia seria banalizar a
na forma dramatúrgica, mas nos elementos arte, fazer um teatro menor. Ao mesmo tem-
que delinearam o perfil deste gênero popular po, nas ruas, o povo continuava cantando, con-
de teatro no país, repleto de tipos brasileiros, tinuava esbravejando em ritmo grosseiro ou
ritmos brasileiros e, sobretudo, com a fala bra- dizendo em acentos adocicados, coisas igual-
sileira. mente importantes àquelas que mereceriam
Já são conhecidas as diferenças entre destaque na cena dos nobres e prestigiados.
as expressões técnicas “texto” e “texto espe- O povo sabe dizer coisas profundas e com-
tacular”. Contudo, cabe aqui recordar que ao plexas com grande simplicidade.
conjunto de todos os elementos previsíveis que O teatro do povo, aquele que sobrevi-
entram na composição do objeto de arte de- via pela mão do ator, opunha-se declarada-

114
instituto de artes

mente ao teatro de elite. Este, sim, era consi- do teatro brasileiro. São desta geração Gastão
derado “literatura”. Este sim era sublime. E ao Tojeiro, Abadie Faria Rosa, Armando Gonzaga,
sublime não era permitido “roubar” as coisas Cláudio de Souza. Autores que criaram comé-
do povo. E a dramaturgia-literatura caminhou dias “de encomenda” para um determinado
paralela àquela das praças, das estalagens, elenco, pautado pela experimentada estrutura
dos tablados montados ao ar livre. O poeta (fei- organizacional, com capocomico, primeira
to dramaturgo) buscava a “fala” ideal, a beleza atriz, soubrette, ingênua, galã. Esta drama-
da expressão. Diseurs e diseuses foram con- turgia abria espaços para os improvisos, para
sagrados nas cenas que mereceram título de as “tiradas”, para os “cacos” somente permiti-
obra artística. Não caberia aqui uma exposi- dos aos primeiros atores e proprietários da
ção retrospectiva da história teatral. A trajetó- companhia teatral. Copiando as estruturas das
ria estética desta arte desvela o “faz e desfaz” ruas, este teatro estava, novamente, enges-
de regras, manifestos, leis, vanguardas. sado. Procurava a “fala bela” ao mesmo tem-
Se pudéssemos rotular a arte da dra- po em que a desalentava.
maturgia, organizá-la em gavetas, veríamos O teatro moderno é moderno porque foi
que as gavetas da arte popular mostravam-se capaz de olhar o popular e redefinir seus mo-
repletas de linguagem viva, de falas verdadei- delos. Hoje, desmanchou-se a linha que divi-
ras, de brincadeiras e de jogos que não eram dia a estética erudita daquela popular. Inflacio-
considerados material artístico nem científico. nou-se a literatura com as falas do povo. À
Enquanto isso, do outro lado do armário, pra- compreensão de Nelson Rodrigues quando
teleiras roubavam, aos poucos, para a pom- uma vizinha reproduz o som brasileiro com
posa arte dramática, falas e situações da “Obrigada, ouviu?” responde o metaplasmo de
dramaturgia feita e pensada diretamente so- Carlos Alberto Soffredini: “Bregada, viu?” Um
bre a cena. som de fala brasileira que se instala na litera-
Molière e Goldoni foram os autores tura pelas mãos de hábeis dramaturgos.
paradigmáticos destes honrados “furtos”. Volto a Dario Fo e ressalto que ele é
Molière roubou a arte das ruas, experimentou casado com Franca Rame, uma figlia d’arte.
as técnicas da Commedia dell’Arte e fez delas Ser figlio d’arte, na Itália, significa ter nobres
uma grande literatura. antepassados. Significa pertencer a uma
Goldoni, o advogado veneziano, refor- famiglia d’arte, uma família que pode se orgu-
mou o teatro italiano à procura do “verdadei- lhar de descender, diretamente, da Commedia
ro”. Tomou as estruturas da Commedia dell’Arte, organizada com intérpretes de tipos-
dell’Arte, matou as máscaras e fixou-se na fixos. Há, ainda, algumas famiglie d’arte pre-
verossimilhança. Por máscara, Goldoni enten- servando vivas as tradições. A Famiglia Rame
deu “tipo fixo” e preocupou-se em lhes dar uni- é uma delas. Na boa tradição do teatro
dade psicológica. Não tratou os Enamorados itinerante, quando chegam a uma cidade, os
como “tipos fixos”, mas como “caracteres” (não atores fazem uma pesquisa. Informam-se
arquetípicos) semelhantes ao ser humano, in- sobre a história, sobre a política, sobre os co-
dividualizados em detalhes. Plasmou-se o merciantes, sobre os fatos recentes. Procu-
modelo do “teatro de convenções”, um teatro ram saber se há algum castelo (porque se
popular que subia aos palcos tradicionais, ago- houver, pela lógica popular, há alguém explo-
ra não mais propriedade exclusiva das ruas. E rando os pobres). O drama que apresentam
vieram os chamados “dramaturgos profissio- não foi escrito. Foi transmitido oralmente. Nem
nais”. Nesta lógica inscreveu-se grande parte foi decorado. Cada um dos atores conhece

115
cadernos da pós-graduação

uma infinidade de diálogos apropriados que, 4. Declaração de um crítico americano não identificado, no
vídeo A Nobel for two (acervo da Companhia Fo e Rame).
naturalmente, variam para cada ocasião e, prin-
cipalmente, conhece perfeitamente os assun-
tos e mecanismos da dramaturgia feita por
Referências Bibliográficas
aqueles que conhecem jogos de encaixe e
DUCHARTRE, Pierre Louis. La commedia dell’arte. Paris: Librairie
equívocos, travestimentos e reviravoltas, aber- Théâtrale, 1955.
tura e desfecho, frases e gestos convencio-
FAVA, Antonio. La maschera comica nella commedia dell’arte.
nais que advertem os outros intérpretes sobre Milão: Endromeda Editrice, 1999.
mudanças de situações ou sobre a aproxima- ___________. Dario Fo, Teatro. Organizado por Franca Rame.
ção de um final de quadro, de ato ou de espe- Turimo: Einaudi, 2000. 1242 p. il. (Collana Millenni).
táculo. MELDOLESI, Claudio e TAVIANI, Ferdinando. Teatro e spettacolo
Muitos perguntam porque Dario ganhou nel primo ottocento. Roma: Bari/Laterza, 1995.

o Nobel de Literatura uma vez que Dario é, PANDOLFI, Vito. Regia e registi nel teatro moderno. Bolonha:
Universale Capelli, 1973.
antes de tudo, um ator. Um crítico americano
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva,
respondeu: “Talvez porque ele tenha encontra-
1999. Trad. Jacob Guinsburg e Maria Lúcia Pereira.
do a forma de injetar a energia do ator na lin-
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
guagem escrita.” 4
TAVIANI, Ferdinando. La commedia dell’arte e la società
Volto ao pequeno circo-teatro que vi em barocca: la fascinazione del teatro. Roma: Bulzoni, 1991.
Araraquara... VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil: dramaturgia
e convenções. Campinas. Pontes, Editora da UNICAMP, 1991.
___________. Não adianta chorar: teatro de revista brasilei-
ro... Oba! Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
Profa. Dra. Neyde Veneziano, credenciada junto ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNICAMP. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz: a “literatura” medieval. São
Além dos livros citados nas referências Bibliográficas, é auto- Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ra de: A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação (Editora
Cónex) e Teatro de Revista em São Paulo (Imprensa Oficial do ___________. Performance, recepção, leitura. São Paulo:
Estado, Coleção Aplauso, 2006). EDUC, 2000. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
www.neydeveneziano.com.br
E-mail: nveneziano@iron.com.br

Notas

1. Ação dramática, a meu ver, é uma expressão redundante, já


que drama quer dizer ação.
2. A Commedia dell’Arte tinha 4 tipos-fixos principais: o “Ve-
lho” (nos subtipos Magnífico e Dottore), representando a
condição, definitiva e irreversível, da velhice, do “ser velho”;
os “Enamorados” (homem e mulher, nas variantes ingênuo e
aventuroso) representam a condição de “quem ama” e de-
vem lutar para merecerem, enfim, coroarem o seu sonho,
“projeto de amor”; O “Servo” (no desdobramento de 1o e 2o
e na versão feminina Servetta) representa, entre a função
dramática ambivalente de fazer-e-desfazer, a eterna “luta
pela sobrevivência” e o “Capitão” (o covarde com máscara
de valente) representando o conflito interior entre “ser e
parecer”. Cada um desses personagens tinha o seu projeto
muito claro.

3. PAVIS, 1999.

116
instituto de artes

Performer, Brincante... Máscara Ritual de Si mesmo

Luciana Lyra
Regina Muller
Graziela Rodrigues
Resumo:
Este artigo traz uma breve explanação sobre a ressonância entre a Arte da Performance e o Cavalo
Marinho (Bumba-meu-boi pernambucano), identificada por intermédio da atuação dos mediadores destas
duas expressões cênicas, ou seja, o performer e o brincante, que sob a égide de suas máscaras rituais,
transformam-se em portais da experiência da cena, atualizando sua própria história e de seus antepassa-
dos.

Na linguagem teatral, a mediação é Nesta fase, grandes teorias sobre o tra-


estabelecida pela figura do ator, que é de capi- balho do ator foram desenvolvidas. Dentre as
tal importância para que o fenômeno da ence- instauradoras deste estado de renovação es-
nação aconteça. Pelo ator são reproduzidas tão as investidas do encenador russo Constan-
as grandes questões ontológicas do teatro. tin Stanislavski com enfoque sobre a emoção
Questões essas referentes à arte como um do ator e a teoria do teatro épico, que visava
todo e que dizem respeito, principalmente, às ao surgimento de um novo ator por meio de
máscaras de atuação. um trabalho de interpretação calcado, princi-
Com o recuo no tempo, entretanto, per- palmente, no efeito que Bertolt Brecht chama-
cebe-se que, até fins do século XIX, o objeto ria de distanciamento.
artístico principal na arte do teatro era o texto, O francês, Antonin Artaud, também se
funcionando como principal veículo da expres- distinguiu no contexto da atuação, fazendo
são, no estabelecimento do elo entre o público apologias a um ator/vítima sacrificial de um rito,
e os atores em cena. que trabalha no exercício de sua musculatura
A partir deste período, artistas incomo- afetiva, influindo, decisivamente, nas experiên-
dados com a centralização no objeto textual, cias de Jerzy Grotowski no Teatro-laboratório,
vão implementar uma série de embates, a qual que conclamava uma espécie de artista des-
desembocou, no século XX, num campo de vendado, um ator santo, personagem dele
gradativa permissibilidade ao agente da cena, mesmo .
que passou a descobrir, verdadeiramente, a Entre os anos 60 e 70, o movimento de
riqueza e a variedade dos recursos e dos mei- contracultura vem absorver inúmeras das pro-
os de que ele poderia dispor, fomentados por posições dos renovadores da cena, impulsio-
técnicas e vivências na seara da atuação. nando toda uma geração de artistas na dis-

117
cadernos da pós-graduação

cussão da função do ator e do rompimento É neste plano transcendente que se


com os limites das convenções. estabelece o encontro entre performer e públi-
Grupos como o Living Theatre e o co na performance, caracterizando-se pela
Théâtre du Soleil, além de encenadores como fugacidade, pela realização do relacionamen-
Tadeuz Kantor e Peter Brook, por exemplo, to vivo no instante-presente e funcionando o
aderiram a uma espécie de enfoque no ator artista como uma espécie de “médium”, de
como primordial conduto da experiência cêni- catalisador de energias no espaço e tempo
ca. simultâneos.
Esta migração do foco na arte teatral Em conjunção com o performer, o pú-
vai estabelecer um campo para a criação au- blico manifesta o rito, saindo de uma posição
tônoma do ator e favorecer o surgimento de de espectador, apreciador de uma estética
diferentes linguagens voltadas ao trabalho do para tomar parte em uma relação mítica, de
artista no desenvolvimento de suas pulsões comunhão. Naturalmente, o jogo direto, fren-
estéticas e ideológicas. te-a-frente com público, comum a linguagem
da performance, exige do performer maior des-
No contexto da performance, entendi-
treza na desenvoltura de sua Arte, tendo em
da enquanto uma destas linguagens de reno-
vista que não se deve sustentar em conven-
vação, o trabalho do mediador é redimensio-
ções mortas e ilusionistas, típicas da cena tra-
nado, como já se aponta no ator do teatro con-
dicional do Teatro.
temporâneo. O performer, diferentemente do
ator de teatro convencional, que representa ou Não tendo o ilusionismo onde se apoi-
“vive” um personagem restrito a uma drama- ar, leia-se uma personagem para mostrar, o
turgia pré-estabelecida, atua num espaço mais performer, como afirma Renato Cohen, mos-
aberto ao jogo, ao improviso, à espontaneida- tra-se dentro de um vocabulário pessoal, a
de, ao risco, à própria vida. partir de suas próprias particularidades, esta-
belecendo relações com personas ou figuras,
Desta perspectiva, pode-se perceber
denominação que o próprio Cohen dá em lu-
que se distanciando das artes convencionais,
gar de personagem, como no teatro convenci-
onde há o privilégio do esteticismo e dos con-
onal.1
teúdos externos à realidade do intérprete com
o público, a Arte de Performance eleva a pri- Na atuação em performance, a busca
meiro plano a relação do atuante com a vida, da persona se dá a partir do próprio performer,
com o espectador e a própria arte, ressaltan- não de uma dramaturgia pré-concebida. É um
do suas características primevas de naturali- processo radical, comumente impulsionado
dade e espontaneidade, em contraposição ao por um movimento de “extrojeção” do atuante,
estado sistematizado e ensaiado da arte- porque liberta o ego para a definição de roteiro
estabelecida. ou do tema para representação de partes de
si mesmo, sua visão de mundo, sua pessoa.
A incorporação dos atos cotidianos, de
vida, das emissões pessoais do artista na É natural assim, que sendo valorizados
performance adquire força de ato ritual, por- o histrionismo e a extrojeção, o performer par-
tanto ato modificador. Os atos cotidianos e as ta, durante o processo, mais da forma do que
relações de vida na cena performática são do conteúdo, ou seja, pelo caminho do
ritualizados, promovendo a revelação de sua significante desemboca-se no significado.
face não-realista, de transcendência. Na performance, como visto, é o pró-
prio artista o cerne do processo e não uma

118
instituto de artes

personagem, só que o artista trabalha sob o to mais “jogo de cintura” ou pelo menos um trei-
que podemos chamar de máscara ritual , namento diverso do teatro ilusionista. O proces-
metamorfoseando-a nas diferentes personas so se assemelha ao de outros espetáculos como
ou figuras, numa espécie de auto-representa- o circo, o cabaret e o music-hall.” 4
ção.
Como presença corpórea, o performer, Estas manifestações, mesmo antes
sob o amparo desta máscara ritual, é portal das investidas contemporâneas no artista en-
da experiência cênica e no comando da cria- quanto cerne do processo, já tinham no medi-
ção / atuação da cena, atualiza sua própria his- ador, o veículo insubstituível da vivência estéti-
tória e de seus antepassados. No dizer de ca, artística-ritual.
Renato Cohen, torna-se “Um porta-voz do No Cavalo Marinho, como forma de te-
mundo oralizado e memorial.” 2 atro de linhagem absolutamente popular e de
caráter ritualístico, também a personificação
Sobre a máscara ritual, enfatiza Cohen: das figuras pelos brincantes parece não equi-
valer à encarnação de uma máscara ficcional
ou à representação de um personagem.
“... quando um performer está em cena, ele está
compondo algo, ele está trabalhando sobre sua O Cavalo Marinho é a denominação
“máscara ritual” que é diferente de sua pessoa pernambucana para o espetáculo de Bumba-
do dia-a-dia. Nesse sentido, não é lícito falar que meu-boi. No entender do pesquisador Marco
o performer é aquele que “faz a si mesmo” em Camarotti, esta manifestação pode ser defini-
detrimento do representar a personagem. De fato, da como uma das espécies de Teatro do Povo
existe uma ruptura com a representação, (...), do Nordeste5, já que além de conjugar dança
mas este “fazer a si mesmo” poderia ser melhor e música, possui uma estrutura dramática
conceituado por representar algo ( a nível de sim-
definida.
bolizar) em cima de si mesmo.” 3
De acordo com numerosos especialis-
tas, o Bumba é a mais original, a mais com-
No que tange a atuação sob a citada plexa das manifestações do povo brasileiro,
máscara ritual, a Arte da Performance aproxi- sendo encontrado em todo território nacional,
ma-se, sobremaneira, de formas espetacula- com ênfase, porém, nas regiões Norte e Nor-
res de linhagem popular, como o circo e os deste, em zona de pescadores e na faixa lito-
espetáculos do povo, também de ritos tribais rânea da cana-de-açúcar.
ou performances rituais.
No passado, o Bumba era um auto
Sobre a similitude destas atuações, diz hierático que fazia parte dos Reisados, nome
Cohen: dado a um grupo variado de representações
folclóricas nas quais o canto e a dança são
“A performance tem também uma característica predominantes. Em algum momento, houve
de espetáculo, de show. E isso a difere do tea- uma separação destes reisados em relação
tro. Esse movimento de “vaivém” faz com que o
ao auto, tornando-se este, uma manifestação
performer tenha que conduzir o ritual-espetáculo
independente no Nordeste e em outras regi-
e “segurar” o público, sem estar ao mesmo tem-
po “suportado” pelas convenções do teatro ilusi- ões do país.
onista. É um confronto cara-a-cara com o públi- O Cavalo Marinho não utiliza palcos ou
co (às vezes acentuado pelo uso de espaços di- praticáveis, é representado no chão, sempre
ferentes como ruas, praças, etc.) que exige mui- ao ar livre, com a platéia de pé, formando um

119
cadernos da pós-graduação

círculo ao redor dos atores. Sobre essa afir- Como, do ponto de vista material o es-
mativa, discorre Leite: petáculo de Cavalo Marinho é pobre em re-
cursos, seu poder maior de atração também
“O Bumba é um espetáculo do ar e da terra; dos são as habilidades histriônicas dos brincantes
espaços abertos; da circularidade e fronteiras e tudo aquilo que esse teatro pode dizer aos
arbitradas por seus participantes (públicos e ato- seus espectadores acerca deles mesmos.7
res). Manifesta-se em todo o Brasil e seu nome, No Cavalo Marinho, a atuação é palco
assuntos, formas, cores, personagens ou figu-
de experiências, de tomada de consciência
ras recebem denominações diferentes de acor-
para a vida e das relações sociais dos
do com o chão onde se desenvolve. A denomina-
ção mais antiga e usual é Bumba-meu-Boi, brincantes em suas comunidades. Neste es-
Bumba ou simplesmente Boi.” 6 petáculo, também o sentido da atuação é acen-
tuado, em detrimento da representação, sen-
do esta estreita fronteira da representação e a
Durante o espetáculo, observa-se a
atuação, o limite tênue entre a vida e a arte.
busca por uma total comunhão dos assisten-
O processo de atuação do brincante do
tes com os brincantes, por meio da integração
das linguagens artísticas e da interferência di-
Cavalo Marinho, desta perspectiva, está cal-
reta no decorrer da narrativa. cado na ritualização das idiossincrasias do
atuante, no desenvolvimento de suas habilida-
O momento da brincadeira é assim, um
des pessoais e sociais, em detrimento da in-
instante de partilha entre espectadores e atu-
terpretação de qualquer papel. Ao referir-se a
antes, valendo, neste contexto, vivências do
Guariba8, Hermilo Borba Filho define a idéia de
cotidiano dos brincantes, do público, além das
brincante:
próprias figuras, nome dado às personagens
do espetáculo, que se situam nas categorias
“... Poeta do corpo que constrói figuras ainda não
de: humanas, animais e sobrenaturais ou fan-
desempenhadas, poeta dos pés alados nos mo-
tásticas. vimentos da dança da qual ele mesmo é coreó-
Podemos encontrar mais de quarenta grafo de puro instinto artístico popular, poeta da
figuras diferentes no Cavalo Marinho, dentre máscara que faz com os seus olhos, a sua boca,
eles: o Capitão; Catirina; Mateus; Bastião; o o seu riso ou o seu grito, encarnando a dor, a
Mestre Ambrósio; a Pastorinha; a Burrinha; D. raiva, a alegria, o deboche para delírio dos es-
Joana; o Babau; o Jaguará; a Ema; o Mané pectadores que com ele participam do espetá-
culo. Um poeta, sim senhor, representante de
Gostoso; o Mané Pequenino; o morto-carre-
todo esse povo que morre de fome, que morre de
gando-o-vivo, entre outros que se sucedem nos
tudo, mas de onde nascem a música, o canto, a
diversos e fragmentados episódios da brinca- dança e a escultura como acintes.” 9
deira.
Como antes apontado, no Cavalo Ma-
Com essa afirmativa, Borba Filho não
rinho, não há precisamente uma personifica-
só poetiza a mola mestra do espetáculo do
ção, mas sucessivas metamorfoses, estando
Cavalo Marinho, mas revela a amplitude de
aberto ao brincante sair de sua máscara,
suas possibilidades no terreno da atuação. O
reassumindo facilmente sua própria persona-
brincante apresenta-se, assim, como um cri-
lidade para, em seguida, retomá-la da mesma
ador, animador cultural, agente de transforma-
maneira, sem nenhum prejuízo para o espetá-
ções, e, principalmente, um artista hábil nos
culo ou para o seu relacionamento com a pla-
téia.

120
instituto de artes

diferentes níveis de interação com a vida e com lidade artística ou social para, em seguida, re-
a arte na cristalização de mitologias. tomar as figuras da mesma maneira. Sobre a
Estes níveis de interação têm seus li- máscara discorre Bakhtin:
mites borrados, mas podem ser pontualmen-
te identificados na relação dos brincantes com “... A máscara traduz a alegria das alternâncias
o público. Peter Harrop, segundo Camarotti, e das reencarnações , a alegre relatividade, a
destrincha estes níveis: alegre negação das identidades e do sentido
único, a negação da coincidência estúpida con-
sigo mesmo; a máscara é a expressão das trans-
“(1) a interação entre o público e o ator-como- ferências, das metamorfoses, das violações das
ele-mesmo, como é o caso de um personagem fronteiras naturais, da ridicularização, dos apeli-
que, após ter sido morto, prefere sentar em uma
dos; a máscara encarna o princípio do jogo da
cadeira ou ajoelhar-se nela, por ficar mais fácil vida, está baseada numa peculiar inter-relação
para levantar depois, ou que conversa informal- da realidade e da imagem, característica das for-
mente ou bebe com seus conhecidos, enquanto
mas mais antigas dos ritos e espetáculos. O
se encontra temporariamente sem envolvimento complexo simbolismo das máscaras é inesgotá-
com a ação, ou mesmo quando um ator, por meio vel...” 11
de um sinal, indica a outro que ele deve apressar
a representação; (2) a interação entre o público
e o ator-como-ator, a qual permite que um ator Tendo em vista este contexto de inter-
saia de seu personagem e passe a contar pia- relações onde a atuação sob a máscara ritual
das ou a fazer troça de alguém entre os especta- é procedimento convergente, confirma-se o
dores, bem como capitalize qualquer erro que território de ressonância entre a Arte de
aconteça; (3) a interação entre o público e o ator-
Performance e o Cavalo Marinho, principal-
como-personagem, a qual é inevitável, porque,
mente, no que tange aos seus mediadores,
por definição, é comum a todas as formas dra-
máticas”.10
que, ao atuarem tornam-se agenciadores de
si mesmos e de suas conjunções memoriais.

Podemos perceber pela classificação


de Harrop, no tocante ao teatro do povo, que
Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra, Mestre e Dou-
ao botar as figuras, o brincante não é o perso- toranda em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP.
nagem, mas não não o personagem. Também E-mail: lucianalyra@gmail.com
não é ele mesmo, mas não não ele mesmo. É
Orientadora: Profa. Dra. Regina A. Polo Muller, credenciada
um corpo que se multiplica na subjetividade, junto ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes –
tornando-se ponto de passagem de diferentes UNICAMP.
E-mail: muller@iar.unicamp.br
estados e energias.
Nos interstícios entre o brincante e as Co-Orientadora: Profa. Dra. Graziela Estela Fonseca
Rodrigues, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do
figuras, o corpo do atuante adentra em cons- Instituto de Artes – UNICAMP.
tantes fluxos e metamorfoses, gerando-se aí E-mail: graziela@iar.unicamp.br
a possibilidade de uma ação social para a
mudança, no locus alternado entre o eu e as
alteridades. Notas

Assim, sob a égide da máscara ritual,


1. COHEN, 1989, pp. 93-100.
o brincante transita no terreno da atuação,
2. COHEN, 2002.
reassumindo facilmente sua própria persona-

121
cadernos da pós-graduação

3. COHEN, 1989, p. 58.


4. Idem, p. 98.

5. CAMAROTTI, 2003. Termo utilizado pelo pesquisador Marco


Camarotti para designar os espetáculos do povo com estru-
tura dramática definida, quais sejam: o Mamulengo, a
Chegança, o Pastoril e o Bumba-meu-boi.

6. LEITE, 2003, p. 127.

7. CAMAROTTI, 1999, p. 55.


8. Guariba era um dos brincantes do Cavalo Marinho de mes-
tre Antônio Pereira, muito atuante entre as décadas de 50 e
70, em Recife-PE.

9. BORBA FILHO, 2000, p. 188.


10. CAMAROTTI, 1999, p. 208.

11. BAKHTIN, 1993, p. 35.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no


renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC. Brasília. Editora da
Universidade de Brasília, 1993.
BORBA FILHO, Hermilo. Louvações, encantamentos e outras
crônicas. Recife, Bagaço; Palmares: Fundação Casas da
Cultura Hermilo Borba Filho, 2000.
CAMAROTTI, Marco. Resistência e voz: o teatro do povo do
Nordeste, Recife-PE, Editora da UFPE, 1999.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de
um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspec-
tiva, 1989.

___________. Performance e contemporaneidade. In: Anais


do Colóquio Paul Zumthor – Oralidade em tempo & espaço.
São Paulo: EDUC – FAPESP, 2002.

LEITE, João Denys de Araújo. Um teatro da morte: transfigura-


ção poética do bumba-meu-boi e desvelamento sociocul-
tural na dramaturgia de Joaquim Cardozo. Recife: Funda-
ção de Cultura da Cidade do Recife, 2003.

122
instituto de artes

Outros Olhares sob Ouro Preto: pesquisa de campo ou o


contato com o “objeto”

Carolina Romano
Marília Vieira Soares

Resumo:
O presente artigo aborda a relação com o campo de pesquisa, seus desafios, suas limitações e o
contato com o objeto de campo. Consideramos algumas maneiras de realizar esta pesquisa de acordo com
aspectos do ponto de vista da antropologia e estabelecemos o recorte escolhido, focalizada em artes .

A arte, ao longo da modernidade, se forma, têm, de fato, genealogia e propósito com-


apropriou do que a ciência da antropologia de- pletamente independentes no modo como se
nominou como “pesquisa de campo”. Os an- encaixam em uma configuração característica das
tropólogos utilizam instrumentos, que aqui cha- práticas artísticas. É com esses casos e essas
arenas de produção artística, uma vez identifica-
mamos de concretos para realizar tais pes-
dos, entendidos e respeitados como paralelos,
quisas; lançam mão de elementos da etnogra-
mas separados da voga do mimetismo (mesmo
fia para coletar dados e elaborar discussões que cuidadoso) de práticas antropológicas, que
acerca do objeto de pesquisa. Podemos enu- os antropólogos podem aprender algo válido com
merar o que Rockwell1 seguindo os preceitos relação as consideráveis instabilidades de apli-
de Malinowski (1986) trata como aspectos fun- cação do modelo tradicional de pesquisa de cam-
damentais para a pesquisa de campo, no que po em seus projetos atuais.” 2
diz respeito à antropologia tradicional: Obser-
var; Documentar; Descrever; Co-habitar com O etnógrafo observa e paralelamente
a fonte; Interpretar e integrar conhecimentos interpreta, o artista também o faz, mas a sua
em relação ao objeto; Construir conhecimen- interpretação se dá por meio das práticas ar-
tos por meio do caráter reflexivo, elaborando tísticas, que os distanciam da elaboração de
hipóteses. hipóteses em relação ao campo de pesquisa.
Na arte, apesar de utilizarmos alguns Contudo, o intérprete da cena utiliza as experi-
dos procedimentos acima, ultrapassamos as ências e técnicas da antropologia para
normas etnológicas, alterando-as conforme o reinventar os limites e as funções da pesquisa
foco e o interesse do artista-pesquisador. Con- de campo, a fim de atender adequadamente
forme avalia Marcus ao se referir ao que os aos propósitos artísticos.
antropólogos poderiam aprender com as pes- A investigação-campo além de propor-
quisas de campo em arte. cionar o contato com o objeto de pesquisa tor-
na-se importante para estimulação do fazer
“(...) há práticas investigativas e preparatórias que, artístico, para buscar materiais que enrique-
embora similares à pesquisa de campo quanto à çam o corpo cênico.

123
cadernos da pós-graduação

“A contribuição mais substantiva da pesquisa • Na primeira viagem a campo entramos em


de campo para a produção não está no que a contato com o objeto primordial da pesqui-
platéia pode literalmente ver, mas em constituir sa, os tetos das igrejas de Ouro Preto. Nes-
o que ele chama as narrativas internas da produ- sa oportunidade pudemos observar os te-
ção, ignoradas pela platéia, que se originam das
tos, para posteriormente analisá-los. Apro-
matérias-primas fornecidas pela pesquisa de
veitamos também para conhecer o ambi-
campo.” 3
ente no qual o teto da Igreja Nossa Senhora
da Conceição se insere e tentamos buscar
Em algumas formas do fazer cênico é relações deste espaço com as pinturas.
importante reconhecer que as práticas
investigativas e preparatórias, similares à pes- • Na segunda viagem a campo privilegiamos
quisa de campo antropológica quanto à forma, observar as pessoas em suas manifesta-
modificam-se no propósito, ao tomar caracte- ções de fé, para posteriormente “dar” um
rísticas que se encaixem em uma configura- tratamento artístico ao material coletado.
ção particular das práticas artísticas. Portan- Fizemos a coleta de material por meio de
to, neste estudo a pesquisa de campo tomou registro videográfico e anotações em diá-
recortes próprios, que ultrapassaram a coleta rio, durante as festividades da Semana San-
de dados. Pudemos conhecer por meio do ta.
campo a experiência e as relações sinesté-
sicas4 que este possibilita. • A terceira viagem a campo nos possibilitou a
A vivência da corporeidade na pesqui- coleta de material fotográfico das igrejas
sa de campo permite o contato com a simpli- observadas e das figuras a serem utiliza-
cidade da própria criação humana, cuja com- das na análise, segundo os estudos de
preensão e estudo podem ser transformados François Delsarte.
em arte. As freqüentes idas à campo foram
fundamentais para o aprimoramento da pes- Elegemos para nossa pesquisa de cam-
quisa. po metodologia própria de observação que
atendesse às nossas prioridades, que eram
objetivamente coletar dados para a leitura
“Escrevo um relato descritivo de cada figura vis-
ta neste teto. Passo por santos, que não identi- gestual dos tetos da igreja, além de dados para
fico. Vejo cálices, cruzes, chaves, mastros, fle- a criação artística. Os métodos selecionados
chas, gavião, âncoras e muitos anjos.A pintura para a documentação foram: anotações; re-
parece penetrar em meus poros quando a obser- gistros fotográficos e videográfico; descrição
vo. Tamanha beleza e riqueza de detalhes per- dos objetos observados; vivência em campo;
passam meu campo da racionalidade, começo a fruição dos conhecimentos adquiridos. Em
me perder novamente diante da profusão de de- relação ao último método citado, utilizamos o
talhes: O melhor jeito de observá-la é do fundo critério “o que primeiro chamou a atenção da
para o altar, posição que possibilita visão sem
pesquisadora”, segundo a orientação da pro-
adentrar no campo da pintura, já que a pintura
fessora Grácia Navarro5, ou seja, os fatos
está concentrada no forro da capela-mor.” Diário
de Campo 19/07/2004.
registrados levaram em consideração uma
identificação com o objeto de pesquisa.

Conforme segue, fizemos os seguintes


“Não se deve deixar de reconhecer também que
recortes para facilitar e limitar a pesquisa de no trabalho artístico como no científico existe um
campo: caráter subjetivo na forma de se trabalhar e de

124
instituto de artes

se encontrar soluções criativas. O fluxo ordenati- vio. Quando voltam a rezar, o aperto volta. Acaba
vo segue os comandos dados pelo cérebro do a oração, as senhoras beijam a sagrada face, as
indivíduo que está procedendo ao arranjamento, velas são apagadas, e a face retirada do altar.”
de uma forma individual, espelha, ipso facto, o Diário de Campo 19/07/2004.
seu interior.
A criação artística espelha a visão pessoal do
artista, da mesma forma que a criação científica
Após a cerimônia da Sagrada Face,
reflete a visão do cientista. A diferença entre uma uma das funcionárias da Igreja, se aproxima
obra e outra não se dará no ato criativo, mas no interessada em dialogar:
processo de trabalho fundamentado num deter-
minado paradigma, e no conhecimento açulado “Ela começou a me contar histórias da Igreja,
de quem realiza a obra.” 6 da irmandade que é a ‘dona’ (sic) da igreja, e que
o Santíssimo Sacramento tinha um altar privile-
giado que com o tempo foi acoplado ao principal.
As experiências vividas nas viagens fo-
Depois ela começou a me falar da vida dela, me
ram registradas no diário de campo, neste
contou onde morava e como era a casa dela.
transcrevemos nossas observações, reflexões Disse que a casa tinha cerca de vinte cômodos
e evocamos de algum modo nossa sensibili- e pertenceu a um dos inconfidentes, fiquei muito
dade a respeito dos acontecimentos. curiosa. Contou-me que morava lá por mais de
cinqüenta anos. Viúva, mora com a mãe e três
“Chego em Ouro Preto. Saio para reconhecer a filhas. A conversa acabou com um convite de D.
cidade e entro na primeira igreja que vejo. Aque- Marilda para um café em sua casa.” Diário de
le templo e aquele universo pareciam me engolir. Campo 19/07/2004
Fui tomada por uma emoção sem fim, tive vonta-
de de chorar e me senti pequena diante daquela
Esse contato se tornou importante por
imensidão.” Diário de Campo 17/07/2004.
alguns motivos: Esta senhora acabou por
permear e facilitar o nosso7 acesso à comuni-
O primeiro contato verbal com os paro- dade da igreja; por meio de suas relações es-
quianos de Ouro Preto se deu após a obser- tabelecemos outros contatos e uma maior pro-
vação de um ritual de reza chamado Sagrada ximidade com o ambiente pesquisado. Outra
Face, descrito a seguir, em uma das passa- relevância da aproximação com Dona Marilda
gens do Diário de Campo. foi a possibilidade de perceber que os papéis
de pesquisador e pesquisado podem se inver-
“Um grupo de dez mulheres se reúne para rezar, ter. De acordo com Rockwell (1989), nós pes-
em homenagem à sagrada face de Jesus, cuja quisadores não adentrarmos no campo com
figura é colocada no altar. Cantos e louvações a hipotética neutralidade. Principalmente por-
são feitos durante uma hora. Os corpos conver- que quando estamos em campo de alguma
sam com Deus, de joelhos, em postura recolhi- maneira interferimos na rotina das pessoas do
da, talvez por se sentirem pequenas diante da
ambiente pesquisado, as pessoas se interes-
cena. Alguns olhos estão fechados, outros olham
sam em saber o que fazemos, quem somos e
com sinal de piedade, a garganta parece aperta-
da ao tentar dizer algo que não consegue. Às até que ponto como pesquisadores relatare-
vezes o olhar é direcionado ao infinito, como se mos a vida delas. Isso de alguma maneira aca-
enxergassem Deus, muito longe. Quando saem ba por modificar o comportamento e as rela-
dos joelhos e começam a cantar, as gargantas ções: até acontecer uma “aproximação”, en-
parecem se soltar e se vê uma sensação de alí- tre pesquisador e o “objeto”, os pesquisados

125
cadernos da pós-graduação

acabam revelando apenas o que é de seu in- O fato de ter que, de alguma forma, ar-
teresse. Neste ponto o pesquisador deve ter mazenar os momentos efêmeros do campo
tato e saber conduzir as relações para que nos permitiu a possibilidade de tornar presen-
estas facilitem o desenvolvimento da pesqui- te o passado vivido. As anotações, sob a for-
sa. ma de registros escritos, eram normalmente
realizadas durante os fatos, ou ainda no fim
“As pessoas da comunidade começaram a se do dia trabalhado, sobre os efeitos emocionais
preocupar em saber o que eu fazia ali. Resolvi causados pela oportunidade de vivenciar a
dizer que estava interessada apenas em pesquisar pesquisa, portanto as anotações contêm tam-
a pintura da Igreja de Nossa Senhora da Concei- bém as dúvidas e inquietações da pesquisa-
ção, o que não deixaria de ser verdade, já que a dora. “O discurso que você produz no diário
prioridade desta pesquisa é a análise gestual dos de campo é mais do que aquele que você pro-
tetos da igreja. Porém, também observei o gestual
duz numa caderneta de campo, em que você
das pessoas que freqüentam a igreja, para enri-
registra curtas observações, dados quantifi-
quecer a criação artística.” Diário de Campo
30/07/2004. cáveis e alguns diálogos sumários que lhe
parecem essenciais”. 8
Pudemos observar nos diários de cam-
As relações de dualidade (pesquisador-
po o retrato emocionado dos sentimentos, e
pesquisado) começaram a tomar corpo e, em
as impressões físicas e sinestésicas causa-
diversos momentos, a pesquisadora se con-
das pelo contato com o objeto de pesquisa.
fundiu com pesquisada e as relações se tor-
Apesar de muitas vezes, observarmos o es-
naram híbridas, ao mesmo tempo em que a
forço controlado, em vão, de conter as emo-
própria função de “ser” pesquisadora se con-
ções e não se perder no campo da subjetivi-
funde com “ser” humana.
dade.
Dentro do escopo da pesquisa artísti-
“Fiquei muito confusa. Às vezes me dava uma
vontade enorme de rezar. Um desejo de vivenciar co-científica, encontramos certa dificuldade de
as emoções deste momento. Ficava em dúvida focar e limitar o que observar. Passamos a
se observava as pessoas, se filmava, ou se cho- abordar os eventos que faziam mais sentido à
rava. Difícil não se entregar ao prazer de viver pesquisadora, para garantir solidez ao traba-
intensamente cada momento desta procissão.” lho e revisão contínua da interpretação do ob-
Diário de Campo 23/03/2005. jeto.
“Primeira Missa- Neste meu primeiro contato com
a missa, (nunca tinha ido a uma missa antes)
“Essa constante postura interrogativa possibili-
tentei observar as pessoas e absorver o que aque-
ta-nos questionar o que nos parece familiar e,
le lugar e aquela situação causavam no meu cor-
portanto ao que nos faz sentido, pois aos even-
po. Tiveram momentos divertidos, cometi muitos
tos que assim concebemos conseguimos atri-
erros ao acompanhar a cerimônia, não sabia
buir significados.” 9
muito bem quando sentava ou levantava, foi con-
fuso, e as pessoas notaram a minha inexpe-
riência, às vezes ao invés de pesquisadora, me A seguir veremos um relato, no qual
senti pesquisada pelos olhares dos paroquianos. aparecem os pontos, há a contestação da ob-
No fim da missa me pego rezando, agradecendo jetividade em campo.
a Deus por esses momentos sublimes.” Diário
de Campo 19/07/2004.
“Para fugir dos arredores da minha pesquisa fui
andar um pouco por Ouro Preto, mais especifi-

126
instituto de artes

camente no Bairro do Pilar. Este lugar tem uma em lugares, em espaços e tempos, e alguns
das igrejas mais belas e ricamente ornamenta- podem ser mais centrais ao campo-tema de que
das da cidade. Hoje, no entanto, a pobreza toma outros, mais acessíveis de que outros ou mais
conta do Pilar e de toda Ouro Preto, é impressi- conhecidos de que outros. Algumas conversas
onante que tanta riqueza gerada tenha se trans- acontecem em filas de ônibus, no balcão da pa-
formado em abandono e penúria. As casas em daria, nos corredores das universidades; outras
geral têm uma característica muito interessante, são mediadas por jornais, revistas, rádio e televi-
são pequenas em sua fachada, mas por dentro são e outras por meio de achados, de documen-
são muito grandes. Caminho pelas ruas e noto tos de arquivo e de artefatos, partes das conver-
que as pessoas são muito peculiares, elas cum- sas do tempo longo presentes nas histórias das
primentam desconhecidos. Conversam e passam idéias.” 10
o dia na janela.Deparo-me com uma casa mag- “Combinei encontrar dona Marilda na igreja para
nífica, vejo uma moça na porta e começo a con- irmos juntas até sua casa. Uma bela casa de
versar com ela. A moça me convida para entrar, esquina, bem em frente a um dos passos11 de
a casa é maravilhosa e se encontra dividida em Ouro Preto. A casa muito antiga, do século XVII,
duas partes, superior e inferior. Conserva carac- possuía diversos elementos da religiosidade da-
terísticas originais, com poucas modificações e quela senhora, cruzes atrás das portas, imagens
restauros, ou seja, estava bem danificada, o que de santos, santinhos, terços pelos vinte cômo-
não comprometia sua beleza, consigo ver alguns dos.
detalhes, o chão que parece pé-de-moleque, cal- Logo partimos para o cafezinho, conversamos
çamento muito antigo, um oratório por cima dos horas a fio, quando ia embora, muito timidamen-
móveis e minha imaginação vai longe.” Diário de te uma de suas filhas perguntou se poderia me
Campo 19/07/2004. mostrar suas poesias. Li com entusiasmo e
emoção; era como se me confidenciasse um
segredo, um tesouro: fiquei emocionada com seu
Entretanto, observamos que nestes gesto. Fui embora com a sensação de fechar
períodos o pesquisador “sai” do foco de sua com chave de ouro minha pesquisa de campo.”
investigação é quando acontece a “abertura do Diário de Campo 31/07/2004.
campo”, - momentos que o pesquisador co-
meça a fazer parte do campo - onde as rela-
A segunda visita a campo aconteceu
ções entre campo e pesquisador se estreitam,
durante os eventos da Semana Santa de Ouro
se individualizam, e podemos observar com
Preto (20 a 27/03/2005). A Semana Santa, ce-
maior clareza as particularidades daquele lo-
lebração do Mistério da Morte e Ressurreição
cal e daqueles sujeitos. Isso quer dizer que não
de Jesus Cristo, propõe reviver o martírio de
existem momentos separados ou não relacio-
Cristo, os passos de sua morte ao caminho
nados, durante o período que nos propomos
da salvação. Este é momento ímpar nas cele-
“estar em campo”, porque todas as experiên-
brações da fé cristã em Ouro Preto, por trazer
cias vivenciadas desde o cafezinho até as pro-
e reviver as tradições, simbolismos e passa-
cissões fazem parte da pesquisa, principal-
gens importantes da história cristã, principal-
mente porque de alguma forma aproximam o
mente a corporeidade deste momento.
pesquisador com seu objeto de pesquisa,
permeando as relações e facilitando a com-
preensão das questões relacionadas à pes- “No cristianismo, em particular, o corpo tem um
papel decisivo na salvação e na cura do Homem.
quisa.
O Verbo se fez carne, o divino se fez humano,
anulando a maior e mais original (no sentido de
“Nada acontece num vácuo; todas as conversas, começo, fundamento) das dualidades. O mes-
todos os eventos, mediados ou não, acontecem mo Senhor está vivo ontem e hoje. A salvação

127
cadernos da pós-graduação

não se refere unicamente à ‘alma’, mas ao Ho- A diversidade de pessoas observadas


mem.” 12 nos permitiu entender a corporeidade e as lin-
guagens gestuais presentes e implícitas nos
O cerne da Semana Santa é o reviver, freqüentadores daquele espaço sagrado, para
proporcionar ao fiel vivenciar as agonias de um posteriormente inserí-las no exercício cênico
Jesus humano e ao mesmo tempo celebrar a que complementa a pesquisa.
glória de um Deus vivo onipresente. Além do As histórias são diversas e se mistu-
aspecto litúrgico, a convivência com os paro- ram nas procissões, artifícios ímpares no que
quianos nessa época é um aprendizado de tange à propagação das manifestações indivi-
religiosidade. duais e coletivas. Observamos não só os cor-
pos que caminham atrás da procissão, mas
“Nunca vou me esquecer deste povo e destes também aqueles que ficam nas calçadas, nas
momentos de consagração da sua fé. Eu, que escadas, nas janelas e de alguma maneira são
nem sei bem o que é fé, ou onde ela está. Onde sujeitos dos festejos. Neste lugar, cheio de his-
está a minha fé? Essa resposta não sei dar de tórias e tradições, o espaço físico da cidade
imediato, mas sei ‘ver’ onde tá (sic) a fé deste serve de suporte para as procissões e ofere-
povo. Cada cruz, cada vela que se acende, cada ce o sustentáculo cenográfico para que estas
joelho que se esfola, cada ladeira subida e des-
ocorram. Neste campo os atores são os fiéis,
cida por esses senhores, nestas pedras lisas,
que durante os cortejos revelam o espírito reli-
tem que ter alguma explicação. Tem que ter uma
força grande que faz essa pessoas vararem a gioso do povo de Ouro Preto ao passear nas
noite, atrás desta procissão, onde está?” Diário procissões levando em punho suas “armas” e
de Campo. 24/03/2005. seus estandartes.

“Nas procissões vi muitas representações de fi-


Durante Semana Santa acontecem di-
guras bíblicas caracterizadas por pessoas da
versas comemorações, especialmente prepa-
comunidade, Isaac, Jacó, Moisés, Verônica
radas pelos fiéis da irmandade anfitriã. Em (como é luminoso seu canto ao desenrolar o pano
Ouro Preto há uma maneira peculiar de cele- da Sagrada Face). E que lindas são as crianças
brar a Semana Santa. Por características de da cidade vestidas de anjo, correndo pela procis-
sua formação, a cidade possui duas igrejas são. Tudo isso ao som das matracas, das varas
matrizes, a Matriz de Nossa Senhora do Pilar dos soldados que batem duras no chão e dos
e a Matriz de Nossa Senhora da Conceição. sinos que anunciam o luto do Senhor, e no fundo
As duas matrizes se revezam durante os anos a chuva lavando as ruas e as agonias deste povo.”
na realização da Semana Santa, isso dá mui- Diário de Campo 22/03/2005.
ta riqueza à manifestação. O comportamento
que existe desde o período colonial, competi- As festividades da Semana Santa, se-
ção entre as irmandades, acaba por refletir gundo os preceitos da Igreja católica, revivem
positivamente na organização do evento, e é a momentos de sofrimento, e dá ao povo a for-
grande oportunidade que as paróquias têm de ça necessária para seguir, renovando os vo-
exibir suas riquezas. Pudemos vivenciar nes- tos para um tempo próspero.
te período os acontecimentos programados
pela Semana Santa e também os episódios “Mesmo acordado durante a noite fazendo tape-
isolados de histórias anônimas que enrique- tes, o povo de Ouro Preto, cedinho, estava em-
ceram nosso campo imaginário. baixo da chuva fina, para acompanhar o último

128
instituto de artes

festejo da Semana Santa. A cidade inteira se de Ouro Preto, visitando outras paróquias e
enfeita para a despedida, do que penso ser o pontos turísticos, a fim de buscar outros olha-
evento mais importante de seus festejos. As ja- res sobre Ouro Preto.
nelas das casas estavam decoradas com col-
chas de retalho, toalhas bordadas e vasos de
“A diversidade dos acontecimentos, em geral
flores. Aos poucos, a procissão passa por cima
dos tapetes, estes feitos de serragem se des- contraditórios e ambíguos, provenientes dos di-
mancham. Feitos de efemeridade e serragem.” versos momentos do trabalho de campo dificulta
traçar conclusões que nos pareçam prontas e,
Diário de Campo 25/03/2005.
se não fosse por ‘um pequeno detalhe’ seriam
perfeitamente transponíveis a essa realidade es-
O período mais importante no decorrer pecífica. Justamente, em função desses ‘peque-
da Semana Santa foi o entendimento de algu- nos detalhes’ podemos compreender, através da
mas relações que a fé proporciona. A questão aparência dos fenômenos empíricos, o significa-
constante era entender porque as pessoas do que garante a particularidade dos modos de
ser. Além disso, porque há condições para a pro-
seguiam por quilômetros as imagens, porque
dução dos discursos, é necessário conhecer
senhoras e senhores se sacrificam subindo
cada contexto particular para compreender os
as ladeiras para no final da procissão beijar o significados atribuídos localmente aos conteúdos
santo. Em uma das últimas procissões essas das falas.” 14
dúvidas foram sanadas. A exaustão causada
ao seguir por horas a procissão permitiu à pes-
quisadora desligar-se dos fatos pesquisados
e foi neste instante que o entendimento foi al- Carolina Romano, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes –
UNICAMP. Bailarina, Coreógrafa, Pesquisadora, Professora de
cançado. Ao vivenciar essas emoções do cam- Dança e Ballet formada pela Royal Academy of Dance, Bacha-
po, a pesquisadora percebeu que as pessoas rel e licenciada em Dança pela UNICAMP.
E-mail: carolromano@terra.com.br
não cultuavam a imagem pura e simplesmen-
te; ao contrário, essas imagens estão intima- Informação relevante:
mente ligadas ao que representam ou simbo- Este artigo é parte da pesquisa realizada no Mestrado em
Artes intitulado “O gestual humano e o Barroco Mineiro à luz
lizam, e que na verdade as pessoas estavam dos estudos de François Delsarte”.
atrás de vivenciar as passagens de Cristo, ori-
entando-se pelos seus símbolos. Orientadora: Profa. Dra. Marilia Vieira Soares, Docente junto
ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP.
A terceira viagem a campo ocorreu no E-mail: mvsoares@iar.unicamp.br
período de 11 a 20 de julho de 2005, onde foi
realizada a coleta de material fotográfico. Apro-
veitamos esta última viagem para “amarrar Notas
questões”, ponderando nossas reflexões a res-
peito do campo. Atentos para a realidade que 1. SATO, 2001, p. 13.

2. MARCUS, 2004, pp. 133-158.

“o processo de pesquisa não é um processo de 3. Idem.


achar o real ou uma investigação para descobrir 4. Sinestesia - relação subjetiva que se estabelece esponta-
a verdade, mas ao contrário, é uma tentativa de neamente entre uma percepção e outra que pertence ao
domínio de um sentido diferente (por exemplo, um som que
confrontar, entrecruzar e ampliar os saberes.” 13
invoca uma cor ou um cheiro que invoca uma imagem).

5. Grácia Navarro, professora junto ao Depto. de Artes Corpo-


Traçamos um panorama geral de inves- rais do Instituto de Artes – UNICAMP.
tigação, procuramos explorar outros lugares 6. ZAMBONI, 2001, p. 30.

129
cadernos da pós-graduação

7. Refiro-me a nosso, no plural, porque apesar de estar em


campo sozinha, a todo o momento os passos tomados em
campo, foram dirigidos por minhas orientadoras.

8. Entrevista de Roberto Oliveira concedida a SAMMAIN e MEN-


DONÇA. www.scielo.br/pdf/ra/v43n1/v43n1a05.pdf, (Con-
sultado dia 29 de março de 2006).

9. SATO, op. cit., p. 14.

10. SPINK, 2003.


11. Capelinhas utilizadas nas procissões da Semana Santa.

12. MIRANDA, 2000, p. 31.

13. SPINK, op. cit.

14. SATO, op. cit., p. 13.

Referências Bibliográficas

MALINOWSKI, B. e E. Durhan (org). Malinowski, Série Antro-


pologia. São Paulo: Ática S.A. 1986.

MARCUS, George E. “O intercâmbio entre arte e antropologia:


como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar
a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia.” Re-
vista Antropologia. 2004 vol. 47, n. 1, pp. 133-158.
MIRANDA, Evaristo Eduardo. O corpo, território do sagrado.
São Paulo: Loyola. 2000.

OLIVEIRA, C. J. P. de. Fé, Esperança e Caridade. São Paulo:


Paulinas, 1998.

SATO, Leny e SOUZA, Marilene Proença Rebello de. Contribu-


indo para desvelar a complexidade do cotidiano através da
pesquisa etnográfica em psicologia . Psicol. USP, 2001,
vol.12, no. 2.

SPINK, Peter Kevin. Pesquisa de campo em psicologia social:


uma perspectiva pós-construcionista. Psicol. Soc. [online].
jul./dez. 2003, vol.15, no. 2. Acesso em: 06 de janeiro de
2006.

ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e


ciência. Campinas, São Paulo: Autores associados, 2001.
Entrevista de Roberto Oliveira concedida a SAMMAIN e MEN-
DONÇA. www.scielo.br/pdf/ra/v43n1/v43n1a05.pdf (Con-
sultado dia 29 de março de 2006).

130
instituto de artes

O Global e o Tribal: o corpo na sociedade contemporânea e


nas sociedades indígenas brasileiras

Rafael Franco Coelho


Regina Muller

Resumo:
O objetivo desta reflexão é esboçar, ainda que superficialmente, uma comparação entre o conceito
de corpo no mundo contemporâneo, valendo-se de exemplos da chamada body modification e de um
movimento intitulado de “modern primitives” e nas sociedades indígenas brasileiras. Por ora, pretende-se
verificar as possíveis relações que as marcas corporais, tais como a pintura corporal e os ornamentos das
sociedades tribais, especificamente das sociedades indígenas brasileiras, estabelecem com expressões
da sociedade contemporânea como a tatuagem, os piercings e as escarificações, examinando seus pon-
tos de similitude e divergência.

Sociedade contemporânea e sociedades


indígenas

Antes de iniciar esta reflexão, julga-se corporalidade enquanto idioma simbólico fo-
necessário esclarecer outras questões. Em cal”.1
primeiro lugar, respeitar as muitas e óbvias di- Em segundo lugar, quando se coloca a
ferenças existentes entre essas sociedades, questão das sociedades contemporâneas em
como a histórica, a cultural, a social, a geo- relação às sociedades indígenas brasileiras,
gráfica e enfim, de contexto, é condição es- o senso-comum remete diretamente a uma
sencial para atingir o objetivo desta análise, oposição entre os termos, como se as socie-
que deverá sempre proceder a partir destes dades indígenas brasileiras estivessem mor-
contextos culturais específicos, evitando, des- tas, perdidas no éden de um passado distante
se modo, uma generalização. Ainda assim, e estereotipado. Estas sociedades estão cada
pode-se dizer que, respeitando as particulari- vez mais vivas e crescendo exponencialmente,
dades étnicas de cada sociedade indígena bra- reelaborando e recriando suas respectivas
sileira, o corpo, nestas sociedades em geral, culturas através das gerações, como nos
é suporte constante para expressão de con- mostra o último censo da população brasilei-
ceitos sociais e cosmológicos e que “a origi- ra, sendo nossa “contemporânea” e pelo que
nalidade das sociedades tribais brasileiras (de tudo indica, fazendo parte do presente e do
modo mais amplo, sul-americanas) reside futuro da nação brasileira. Quando utilizarmos
numa elaboração particularmente rica da no- o termo sociedade contemporânea no texto,
ção de pessoa, com referência especial à estaremos nos referindo a uma sociedade “glo-

131
cadernos da pós-graduação

bal”, partindo do pressuposto de que a mando seu lugar.”4 Acredita-se que no decor-
globalização é um processo “atuante numa rer do texto, estas hipóteses serão relembradas
escala global, atravessa fronteiras nacionais, pelas discussões que faremos.
integrando e conectando comunidades e or-
ganizações em novas combinações de espa-
Corpo
ço-tempo, tornando o mundo, em realidade e
em experiência, mais interconectado.”2 Stuart Segundo Le Breton em seu livro “Adeus
Hall afirma que “A maioria das nações consis- ao Corpo”, o corpo não é mais apenas, em
te de culturas separadas que só foram nossas sociedades contemporâneas, a deter-
unificadas por um longo processo de conquis- minação de uma identidade intangível, a
ta violenta [...] as nações são sempre com- encarnação irredutível do sujeito, o ser-no-
postas de diferentes classes sociais e diferen- mundo, “mas uma construção, uma instância
tes grupos étnicos e de gênero [...] sendo de conexão, um terminal, um objeto transitório
‘unificadas’ apenas através do exercício de e manipulável suscetível de muitos empare-
diferentes formas de poder cultural [...] As na- lhamentos [...] onde o corpo é escaneado, pu-
ções modernas são, todas, híbridos culturais.”3 rificado, gerado, remanejado, renaturado,
Desse modo, dentro deste contexto artificializado, recodificado geneticamente,
globalizado, acredita-se que na sociedade con- decomposto e reconstruído ou eliminado [...]
temporânea os procedimentos de modificação Sua fragmentação é conseqüência da frag-
corporal como a tatuagem, os piercings e as mentação do sujeito [...] Nunca o corpo-simu-
escarificações podem ser observados na gran- lacro, o corpo-descartável foi tão exaltado como
de maioria das nações do mundo, não sendo na contemporaneidade [...] Boca, seios, olhos,
exclusividade de uma única cultura nacional. pernas, genitália esfacelada, moldada: não se
Além do foco específico desta reflexão, trata mais de um corpo, mas de um acumula-
podemos ter outra discussão como pano de do de órgãos colados em algo que se denomi-
fundo, algo que não se pretende explorar nem na corpo.”5
se aprofundar no momento, mas apenas deixá- Outros autores como Deleuze & Guat-
la como uma questão, sem qualquer preocu- tari em um texto intitulado “Como criar para si
pação de respondê-la. A partir dos exemplos um corpo sem órgãos”, afirmam que “O corpo
que se seguirão, como pensar as identidades é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessi-
nacionais no período pós-moderno ou contem- dade de órgãos. O corpo nunca é um organis-
porâneo? Stuart Hall formula três hipóteses para mo. Os organismos são inimigos do corpo. O
responder a esta questão: “primeiramente, corpo sem órgãos não se opõem aos órgãos,
coloca como possibilidade que as identidades mas a essa organização dos órgãos chama-
nacionais estão se desintegrando, como re- da organismo.”6
sultado do crescimento da homogeneização Para compreender a concepção do
cultural e do ‘pós-moderno global’. Em segun- corpo nas sociedades indígenas brasileiras,
do lugar, que possivelmente as identidades retiramos um trecho do artigo “A construção
nacionais e outras identidades ‘locais’ ou da pessoa nas sociedades indígenas brasilei-
particularistas estão sendo reforçadas pela ras”, onde os autores afirmam que “Na maio-
resistência à globalização. E finalmente, que ria das sociedades indígenas do Brasil, o cor-
as identidades nacionais estão em declínio, po ocupa posição organizadora central. A fa-
mas novas identidades – híbridas – estão to- bricação, decoração, transformação e destrui-

132
instituto de artes

ção dos corpos são temas em torno dos quais terados [...] Todas pessoas não-tribais que re-
giram as mitologias, a vida cerimonial e a or- agem a uma urgência primal e que fazem al-
ganização social.”7 guma coisa com seu corpo”.11 “Estes indiví-
Além disso, Renate Brigitte Viertler tam- duos partilham da idéia de só se sentirem com-
bém mostra que “o mundo indígena apresenta pletos a partir do momento em que adquirem
grande variedade de padrões estéticos e efei- suas respectivas marcas pessoais.”12
tos visuais do corpo humano criados por di-
versas técnicas: a mutilação, a pintura, a tatu- Modificações corporais
agem, a ornamentação, a expressão facial, a
postura do corpo e os gestos.”8 Antes de nos aprofundarmos no movi-
Assim como para os índios brasileiros, mento dos primitivos modernos, podemos di-
para a sociedade contemporânea “a anatomia vidir os adeptos das modificações corporais
não é mais um destino, mas um acessório da em três grupos. O primeiro foi formado por
presença, uma matéria-prima a modelar, a pessoas que adquiriram marcas corporais
redefinir, a submeter ao design do momento como um sinal de exclusão social, a exemplo
[...] O homem contemporâneo é convidado a das antigas práticas recorrentes durante a
construir o corpo, conservar a forma, modelar Segunda Guerra Mundial contra judeus nos
sua aparência, ocultar o envelhecimento ou a campos de concentração e nas prisões em
fragilidade, manter sua saúde potencial.”9 geral, descritos por Clastres no texto intitulado:
Da tortura nas sociedades primitivas : “Nas
De acordo com as afirmações acima,
colônias penais da Mordávia, a dureza da lei
talvez possamos sugerir que os procedimen-
encontra, como meio para enunciar-se, a mão,
tos de construção, fabricação e transforma-
o próprio corpo do culpado-vítima. O limite é
ção dos corpos estão presentes tanto na rea-
alcançado, o prisioneiro está inteiramente fora
lidade social indígena quanto na contemporâ-
da lei: quem o diz é o seu corpo escrito.”13 Por
nea. A questão que se coloca é como e por-
muito tempo, a tatuagem foi associada a indi-
que estes procedimentos de construção cul-
víduos sempre à margem da vida social, des-
turais são feitos em ambas as sociedades e
de piratas saqueadores até prisioneiros e só
quais os seus significados em cada uma em
mais recentemente ela saiu da clandestinida-
questão. Segundo Beatriz Ferreira Pires “O
de e perdeu seu caráter de exclusão. O se-
maior número e a maior variedade de adornos
gundo seria como um sinal de inclusão aos
corporais e técnicas para modificar as formas,
modismos e padrões estéticos atuais dos jo-
as cores e os contornos do corpo tiveram ori-
vens na sociedade contemporânea e a ade-
gem nas tradicionais sociedades ‘pré-letradas’,
são a uma comunidade urbana particular, as
fonte de referência para os modern primiti-
chamadas “tribos urbanas”. E finalmente o úl-
ves.”10 Para Mark Dery o primitivismo moder-
timo, no qual podemos incluir os primitivos
no é: “uma categoria que recobre tudo, que
modernos, sendo composto por pessoas que
compreende os fãs do tecno-hard-core e da
procuram através dos procedimentos de mo-
dance-music industrial: os fetichistas da es-
dificação do seu corpo adquirir marcas que
cravidão; os artistas de performances; os
funcionam como um sinal de diferenciação,
tecno-pagãos; finalmente os que gostam de
individualidade e memória.
pendurar-se com ganchos subcutâneos e ou-
tras formas de mortificação ou de jogo corpo- Para os primitivos modernos, as tatua-
ral, que pretensamente produzem estados al- gens, piercings e escarificações funcionam

133
cadernos da pós-graduação

como uma forma de identificação, não mais Marcas corporais


aquela utilizada nos prisioneiros para identificá-
los e excluí-los, mas para diferenciá-los dos No artigo A construção da pessoa nas
demais membros de uma sociedade, reforçan- sociedades indígenas brasileiras, os autores
do sua singularidade e identidade pessoal. O mostram de que forma essas modificações
corpo seria como um diário, onde estariam os ocorrem no contexto social indígena: “Assim,
principais fatos, os momentos-chave de sua os meninos, prestes a se transformarem em
existência, a memória de experiências íntimas homens (serem sociais), devem ter seus lábi-
e marcantes, um texto sobre sua vida, em sua os e orelhas furadas. É essa penetração gráfi-
própria pele, escrito no decorrer de sua histó- ca, física, da sociedade no corpo que cria as
ria pessoal. “O símbolo pessoal surge da as- condições para engendrar o espaço da
sociação, geralmente inconsciente, que o in- corporalidade que é a um só tempo individual
divíduo estabelece entre um desenho, uma e coletiva, social e natural. Quando tal traba-
forma, e o sentimento, a sensação que deter- lho se completa, o homem está completo, sin-
minado fato lhe despertou. Como essa asso- tetizando os ideais coletivos de manter a indi-
ciação se dá de forma absolutamente particu- vidualidade, tal como nós a concebemos, re-
lar, o real significado de qualquer uma das forçando a coletividade e a complementaridade
marcas corporais só é totalmente compreen- com ela.”16 Pierre Clastres, a descreveu da
dido pelo indivíduo que a possui.”14 Para eles, seguinte forma “a sociedade dita a sua lei aos
essa colagem de práticas e de rituais fora de seus membros, inscreve o texto da lei sobre a
contexto social, longe de seu significado cul- superfície dos corpos. Supõe-se, pois, que nin-
tural original e muitas vezes ignorado e esteri- guém se esquece da lei que serve de funda-
lizado por aqueles que o empregam, fazem de mento à vida social da tribo.”17
suas marcas corporais uma espécie de A pintura corporal nas sociedades indí-
sincretismo radical, que vão dos samoanos genas brasileiras enfatiza o rico vocabulário
aos índios, passando pela cibernética e iconográfico presente nos desenhos geomé-
robótica. tricos e grafismos como um sistema altamen-
Le Breton sintetiza de que forma as te estruturado de comunicação visual, social
modificações corporais funcionam no mundo e de conceitos cosmológicos, que obedecem
contemporâneo: “Em uma sociedade de indi- a regras precisas de grafia e significação, sen-
víduos, a coletividade de pertinência só forne- do memória social advinda da tensão entre
ce de maneira alusiva os modelos ou os valo- repetição e variação, tradição e inovação atra-
res da ação. O próprio sujeito é o mestre-de- vés da ação da história e dos indivíduos em
obras que decide a orientação de sua existên- seus contextos culturais particulares.18
cia. A partir de então, o mundo é menos a he- Os ornamentos corporais, como os dis-
rança incontestável da palavra dos mais ve- cos dos lóbulos das orelhas, em algumas
lhos ou dos usos tradicionais do que um con- etnias de língua Jê como os Xavantes e os
junto disponível à sua soberania pessoal me- Suyá são colocados durante o período de ma-
diante o respeito de certas regras. O extremo turidade sexual. Para os Xavantes, os batoques
contemporâneo define um mundo em que a auriculares, além de estarem relacionados
significação da existência é uma decisão pró- com o ritual de iniciação, tem funções e signi-
pria do indivíduo e não mais uma evidência ficados específicos de acordo com o objetivo
cultural.”15 do indivíduo. Cada tipo de madeira serve para

134
instituto de artes

uma finalidade, a madeira Wamari serve para Global e tribal


sonhar, outra madeira tem a função de afugen-
tar as serpentes, outra serve ainda para pre- Henri-Pierre Jeudy, ao discutir as com-
venir doenças e assim por diante. Segundo parações feitas por etnólogos entre as pintu-
Anthony Seeger, para os Suyá e a maioria das ras corporais dos Papuas da Nova Guiné e as
sociedades tribais “a ornamentação de um práticas ocidentais da maquiagem, coloca ou-
órgão pode estar relacionada com o significa- tro ponto de vista quanto à questão da pintura
do simbólico desse órgão numa sociedade. O corporal como elemento de inclusão ou dife-
ornamento das orelhas e da boca pode perfei- renciação social. “Não se sabe porque as pin-
tamente indicar a importância simbólica da turas corporais responderiam a uma função
audição e da fala na medida em que essas coletiva nas sociedades primitivas e a uma
faculdades são definidas por uma sociedade função de individualização nas sociedades
específica. Os ornamentos físicos devem ser ocidentais. Ao contrário, a complexidade da
tratados como símbolos com uma variedade pintura sobre a pele liga-se ao fato de que ela
de referentes. Devem ser examinados como traduz simultaneamente uma expressão cole-
um sistema...”19 tiva e individual [...] como se a própria pele fos-
se lugar da manifestação coletiva daquilo que
Já as escarificações podem estar rela-
é justamente pessoal. Pinturas corporais e
cionadas com preparações para lutas corpo-
maquiagens são, cada uma à sua maneira,
rais até métodos terapêuticos de medicina tra-
provas públicas de uma socialização da pele
dicional. Durante o ciclo ritual do Kuarup, rea-
como texto oferecido à visão coletiva.”20 Já Le
lizado pelas diversas etnias do Parque Indíge-
Breton tem outro ponto de vista sobre a ques-
na do Xingu, após o período de reclusão e du-
tão, dizendo que diferentemente da maquia-
rante a preparação para as lutas corporais do
gem, efêmera, feminina e destinada ao rosto,
huka-huka, os jovens lutadores e futuros guer-
a tatuagem é definitiva, é feita em homens e
reiros devem ter sua pele arranhada ou raspa-
mulheres e atinge essencialmente o conjunto
da com dentes de piranha por seu pai ou avô,
do corpo (ombro, braço, peito, costas, etc.),
como uma forma de adquirir bravura para as
mas raramente o rosto.21
disputas. Os Xavantes acreditam que as do-
enças têm geralmente duas origens: físicas ou No ritual de iniciação dos jovens Xa-
espirituais. No primeiro caso, considerado vantes, realizado em 2005, em um dia especí-
como “sujeira do sangue”, a solução seria fico chamado Wanoridobe, os iniciandos tive-
amarrar a região dolorida ou inchada de modo ram seu corpo pintado e padronizado de acor-
a prender o sangue neste local como num tor- do com linguagens visuais preestabe-lecidas
niquete. Em seguida fazer pequenos cortes socialmente para a sua classe de idade, en-
superficiais sobre a pele, dispostos paralela- quanto que seus padrinhos (iniciados aproxi-
mente, usando um pequeno pedaço de bam- madamente 14 anos atrás) e conhecedores
bu preparado de modo a servir como uma faca do vocabulário iconográfico presente nos de-
ou bisturi. Em alguns casos, além da sangria, senhos geométricos e grafismos da pintura,
ainda são passadas infusões ou cinzas de tiveram liberdade de expressar sua criatividade
determinadas plantas medicinais na região e individualidade através de vários tipos de pin-
escarificada, não só limpando o sangue, mas tura, embora sempre utilizando esse vocabu-
também para absorver as propriedades cura- lário. Uma dinâmica entre repetição e variação,
tivas de cada planta. coletividade e individualidade.

135
cadernos da pós-graduação

Apesar de Jeudy contestar a diferença Notas

entre a pintura corporal e a maquiagem, o ponto


1. SEEGER, 1979.
de vista que Le Breton defende se aproxima
do que aqui se pretende. Após os exemplos e 2. HALL, 2005.

argumentos levantados, acreditamos ter 3. Idem, pp. 59-60, 62.


elucidado que, apesar dos procedimentos de 4. Ibidem, p. 69.
modificação corporal estarem presentes tan- 5. LE BRETON, 2003, pp. 10, 26 e 28.
to no universo contemporâneo quanto no indí- 6. DELEUZE, 1996.
gena brasileiro, eles são bem diferentes no que
7. SEEGER, op. cit., p. 11.
se refere aos seus significados e funções so-
8. VIERTLER, 2000, p. 179.
ciais e pessoais. Mesmo que muitas das refe-
9. LE BRETON, op. cit., pp. 28 e 30.
rências do movimento dos primitivos moder-
nos e dos adeptos dessas modificações em 10. PIRES, 2005.

nossa sociedade venham das sociedades 11. LE BRETON, op. cit., pp. 36, 38 e 39.
tribais espalhadas pelo mundo, a forma como 12. PIRES, op. cit., p. 61.
esses procedimentos foram se adaptando e 13. CLASTRES, 1978, p. 125.
se misturando, recriados atualmente no con- 14. PIRES, op. cit., p. 166.
texto contemporâneo os difere radicalmente
15. LE BRETON, op. cit., p. 31.
das culturas e lugares de sua origem. Para as
16. SEEGER, op. cit., pp. 14-15.
sociedades indígenas brasileiras é inconcebí-
17. CLASTRES, op. cit., p. 129.
vel se misturar ao grupo sem esse trabalho de
integração e identidade coletiva que as cons- 18. VIDAL, 2000.

truções imprimem na pele de todos os indiví- 19. SEEGER, 1980.

duos. Já para os primitivos modernos a fabri- 20. JEUDY, 2002, p. 90.


cação do corpo obedece a um processo de 21. LE BRETON, op. cit., p. 34.
individualização e busca de identidade indivi-
dual e do sujeito, mas ainda assim de
integração a esse grupo social, o movimento Referências Bibliográficas
dos primitivos modernos.
Num período histórico onde a internet, CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas
de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
a virtualidade da vida e das relações sociais e 1978.
a informática imperam como características DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e
do nosso tempo, é interessante notar como o esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
corpo, esse objeto tão concreto e humano, HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio
volte a ser considerado como um suporte de Janeiro: DP&A, 2005.
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LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e Socieda-


de. Campinas: Papirus, 2003.
Rafael Franco Coelho, Mestre em Artes pelo Instituto de
Artes – UNICAMP. PIRES, Beatriz Ferreira. O corpo como suporte da arte: piercing,
E-mail: rafaelcoelho@iar.unicamp.br implante, escarificação, tatuagem . São Paulo: Editora
SENAC/SP, 2005.
Orientadora: Profa. Dra. Regina Aparecida Pólo Muller,
VIDAL, Lux Boelitz (Org.). Grafismo Indígena: estudos de an-
credenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes
tropologia estética. - 2. ed. - São Paulo: Studio Nobel: FAPESP:
do Instituto de Artes – UNICAMP.
EDUSP, 2000.
E-mail: muller@iar.unicamp.br

136
instituto de artes

VIERTLER, Renate Brigitte. “A beleza do corpo entre os índios


brasileiros”. In: QUEIROZ, Renato da Silva (Org.). O corpo
do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Paulo:
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1979.

SEEGER, Anthony. Os índios e nós: Estudos sobre socieda-


des tribais brasileiras. Rio de Janeiro: Editora Campus LTDA.,
1980.

137
138
instituto de artes

Antônio Parreiras: a trajetória de um pintor através da


crítica de sua época

Liandra Motta
Paulo Mugayar Kühl
Resumo:
O presente artigo é baseado na dissertação de Mestrado: A Obra do Pintor Antônio Parreiras vista
através da crítica de sua época, defendida pela autora e realizada a partir do levantamento e transcrição de
críticas à obra e vida do artista brasileiro Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860-1937), publicadas por
jornais e revistas em circulação entre os anos de 1883 e 1937, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.

O estudo teve como objetivo disponibi- assim como as bibliotecas do Instituto de Ar-
lizar um volume maior de informações sobre tes – IA, do IFCH e do IEL da UNICAMP.
a trajetória do pintor Antônio Parreiras através Os jornais e revistas pesquisados fo-
das críticas publicadas em periódicos da épo- ram: A Época, A Estação, A Noite, A Notícia,
ca, levando-se em conta o contexto em que A Semana, A Vida Moderna, Careta, Cidade
os artigos foram publicados, quem os escre- do Rio, Correio da Manhã, Diário de Notícias,
via e quem os publicava, a receptividade da Diário do Comércio, Diário Ilustrado, Fon-Fon,
crítica à sua obra, sua relação com a Acade- Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, Jornal
mia Imperial de Belas Artes, mais tarde Esco- do Brasil, Jornal do Commercio , Kósmos,
la Nacional de Belas Artes, a criação e direção Novidades, O Apóstolo, O Imparcial, O Jor-
da Escola Ao Ar Livre, sua busca por uma arte nal, O Malho, O Paiz, Renascença, Revista
nacional respeitável e de qualidade e sua efe- Ilustrada (todos publicados no Rio de Janeiro
tiva contribuição para a arte brasileira. – RJ); O Fluminense (em Niterói – RJ); Diário
Foram inicialmente selecionados os de Campinas (em Campinas – SP); Correio
períodos em que houve exposições, e em se- Paulistano, Comércio de São Paulo e O Esta-
guida feita a busca de periódicos em arquivos do de São Paulo (publicados na cidade de São
e bibliotecas, principalmente no Arquivo Edgard Paulo – SP).
Leuenroth, do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas – IFCH, da UNICAMP. Outras insti-
Uma breve biografia do Artista
tuições como o Centro de Documentação
Cultural Alexandre Eulálio, do Instituto de Es- Antônio Diogo da Silva Parreiras nas-
tudos da Linguagem – IEL, da UNICAMP, a Bi- ceu em 20 de janeiro de 1860, na cidade de
blioteca Nacional do Rio de Janeiro-RJ, o Mu- Niterói, Rio de Janeiro. Foi pintor, professor e
seu Antônio Parreiras de Niterói-RJ e a Biblio- escritor. Pintou paisagens, gênero, nus e ce-
teca do Museu Nacional de Belas Artes do Rio nas históricas. Na década de 80 do século
de Janeiro-RJ também foram consultadas, XIX, matriculou-se na Academia Imperial de

139
cadernos da pós-graduação

Belas Artes, onde teve aulas com o artista ale- tico de música, artistas como França Júnior,
mão, especialista em pintura ao ar livre, George Benedito Calixto e o próprio Antonio Parreiras,
Grimm. Seguindo o mestre, abandonou a o caricaturista Angelo Agostini, e um único
Academia para formar, em São Domingos, especialista em artes visuais, Gonzaga Duque.
Niterói, o Grupo Grimm e, mais tarde, a Esco- Já no século seguinte, o volume de pu-
la Ao Ar Livre. Em 1883 realiza sua primeira blicações decresce, provavelmente porque,
exposição, seguida de aproximadamente ou- entre outras razões, a crítica se torna mais
tras 68 até o final de sua carreira, alternadas especializada. Assim, logo no início do século
com excursões artísticas por praticamente todo XX, encontramos textos de Morales de Los
o Brasil. Viaja para a Itália, em 1888, com o Rios e Escragnolle Doria e, mais adiante, na
intuito de aperfeiçoar sua formação artística, década de 20, de Fléxa Ribeiro e Tapajós Go-
freqüentando a Academia de Belas Artes de mes.
Veneza por quase dois anos. Na primeira dé-
cada do século XX monta um ateliê em Paris,
A Trajetória do Pintor através da Crítica
para onde viaja constantemente, alternando
temporadas no Brasil e na França até o início Década de 80 - século XIX
da década de 20, quando retorna em definitivo
para o país natal. Em 1926 publica o livro auto- Parreiras é visto como um jovem e pro-
biográfico História de um Pintor Contada por missor artista. Os críticos buscavam nos tra-
Ele Mesmo e entra para a Academia Fluminen- balhos a aproximação da arte com o público,
se de Letras. Em 1933 comemora seu Jubileu sem as referências e regras da composição
Artístico com três grandes exposições nas ci- acadêmica, valorizando a representação ver-
dades do Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo, dadeira da natureza – cores e perspectiva – e
expondo trabalhos realizados durante toda a a impressão das emoções. Mostravam tam-
sua carreira artística. Quatro anos mais tarde, bém a preocupação com o destino dos qua-
em 17 de outubro de 1937, vem a falecer de dros, protestando contra a falta de museus e
maneira súbita, deixando cerca de 850 pintu- espaços adequados às exposições. No final
ras. dessa década, parte Parreiras para a Europa
em busca de aperfeiçoamento profissional.
A crítica da época
Década de 90 - sec. XIX
No final do século XIX havia um grande
volume de publicações, mas poucas eram De volta da Itália, o artista é recebido
assinadas e muitos escritores usavam pseu- por uma crítica mais exigente, que demanda
dônimos. Após a identificação de alguns des- críticos especializados para forçar um maior
ses nomes literários, foi possível perceber que progresso dos artistas. Reclama-se que as
os intelectuais da época, como: Afrânio Peixo- pinturas históricas e encomendas tolhem a li-
to, Alcindo Guanabara, Armando Erse, Carlos berdade e espontaneidade dos pintores e de-
de Laet, Coelho Neto, Dunshee de Abranches, monstra-se preocupação com uma produção
Filinto de Almeida, Olavo Bilac, Raul Pedernei- genuinamente brasileira, apontando-se a pin-
ras e Valentim Magalhães, eram os que mais tura de paisagens como o tema de represen-
escreviam sobre arte, ao lado de críticos es- tação mais nacionalista. Então, em 1896, An-
pecialistas em outras artes, como Arthur Aze- tônio Parreiras, em resposta às exigências da
vedo – teatrólogo, e Oscar Guanabarino – crí- crítica, finaliza e expõe a tela Sertanejas, sín-

140
instituto de artes

tese de todas as observações feitas nas flo- peramento, considerado forte e “rústico”, jus-
restas, que o consagra como importante pin- tificando seu estilo de pintura. Fléxa Ribeiro
tor paisagista. mantém sua opinião sobre o artista.

Anos 1900-1909 A relação com a Academia Imperial de


Belas Artes e com a Escola Nacional de
O artista sai em busca de uma maior Belas Artes
diversificação, praticando a pintura de gênero,
os nus e a pintura histórica. Nas primeiras ex- Com a Proclamação da República em
posições, é criticado pela falta de conhecimen- 15 de novembro de 1889, tudo que era ligado
tos de anatomia e pela ausência de perspecti- ao antigo regime ou levava o nome do impera-
va na pintura de figuras. Nesse período é pos- dor, foi substituído; assim, a então Academia
sível notar uma influência romancista em suas Imperial de Belas Artes passa a se chamar
obras. Academia Nacional de Belas Artes. Esta insti-
tuição, em junho de 1890, nomeou Parreiras
professor de pintura de paisagem, cargo que
1ª década - século XX
exerceu até novembro do mesmo ano, quan-
Parreiras monta um ateliê em Paris e do Rodolfo Bernardelli, Rodolfo Amoedo e
intensificam-se as encomendas de quadros Moreira Maia, este logo substituído por Décio
históricos. Sempre em viagem, o número de Villares, com o intuito de reformar o ensino ar-
exposições diminui e, conseqüentemente, as tístico do Brasil, instituíram a Escola Nacional
críticas também. Este é um período de transi- de Belas Artes.
ção entre os escritores remanescentes do A reforma afastou todos os professo-
século XIX e o surgimento dos novos críticos res ligados ao antigo regime, entre eles Par-
do século XX, o que também contribui para o reiras. Novos professores foram nomeados
pequeno volume de publicações. sem concurso, inclusive estrangeiros. Vários
protestos foram publicados em jornais e re-
Década de 20 – século XX vistas. Antônio Parreiras chegou a acusar
Rodolfo Bernardelli de o afastar do cargo para
Parreiras retorna em definitivo da Eu- nomear seu irmão, Henrique Bernardelli, para
ropa e encontra críticos que, apesar de mais a cadeira de paisagem, que, ao final, acabou
especializados, são mais tolerantes com o pin- extinta.
tor, já com 60 anos de idade, renomado e com Essa atitude do governo republicano
grande produção artística. Fléxa Ribeiro é o levou a uma ruptura e à formação de dois gru-
único crítico de arte ainda a se queixar de duas pos distintos de artistas, “os velhos” e “os no-
antigas dificuldades do pintor que, segundo os vos”, sendo a arte brasileira provavelmente a
demais críticos, já haviam sido superadas: o maior prejudicada por essa cisão. Os artistas
colorido e a perspectiva do desenho de figura. ligados ao antigo regime não mais participa-
vam dos eventos artísticos proporcionados
Década de 30 – século XX pela Escola e o processo de seleção, muito
rígido para o ingresso, afastou os alunos, que
Antônio Parreiras comemora seu Jubi- acabaram procurando os ateliês dos artistas
leu Artístico. Os críticos da época associam não mais ligados à instituição.
sua obra com sua aparência física e seu tem-

141
cadernos da pós-graduação

A criação da Escola Ao Ar Livre qualidade do próprio ensino artístico, a falta de


espaços destinados à crítica de arte nos peri-
Foi então que, em julho de 1891, Antô- ódicos e a escassez de críticos qualificados.
nio Parreiras inaugurou, em combate ao ensi- Não raramente, a crítica expressa o desejo
no oficial, a Escola Ao Ar Livre. frustrado de que essa cultura se desenvolva e
Sem nenhum investimento financeiro a importância que isso teria para a evolução
público ou dos alunos, a Escola tinha sede no do país em geral. Outras vezes, demonstra
próprio ateliê de Parreiras e as “aulas” eram esperança de que no futuro se consiga che-
ministradas ao ar livre. Não havia nenhum pro- gar a uma cultura artística consolidada. Ape-
grama de disciplinas a seguir; os alunos ape- sar de terem sido escritas há mais de cem
nas acompanhavam o mestre nas excursões anos, elas continuam muito atuais.
artísticas que ele normalmente realizava e, Quanto a essas questões, Antônio Par-
durante as viagens ou passeios, recebiam ori- reiras sempre foi reconhecido pela crítica, pois
entação. Na volta de cada excursão, aconte- apesar da falta de incentivo do meio artístico
cia uma exposição, da qual participavam alu- em que se encontrava, sempre esteve produ-
nos e mestre. zindo. Além disso, tomava iniciativas, como a
O pintor, que não tinha intenção de se- Escola Ao Ar Livre, que incentivava outros ar-
guir a carreira de professor, foi indicado várias tistas a produzirem também; escrevia e publi-
vezes para o cargo em diferentes instituições, cava críticas de arte e, com suas constantes
mas sempre recusou. Sua atenção parecia e gratuitas exposições, tentava criar no públi-
mesmo voltada para a produção artística. co o hábito de freqüentar eventos artísticos
Em 1902, Parreiras ainda chega a criar daquela natureza. Em um meio que parecia
um curso feminino de pintura, mas quando ins- infértil, toda e qualquer manifestação artística
titui seu ateliê em Paris, com os longos perío- era bem vinda, na tentativa de se criar uma
dos de estadia na capital francesa, passa a cultura artística na população.
orientar apenas o filho e o sobrinho. É possível
que tenha ainda orientado outros artistas, mas Conclusões
com grau de envolvimento muito menor.
Através das críticas de arte publicadas
nos principais veículos da época, foi possível
A Cultura Artística
acompanhar o percurso profissional de Antô-
Em muitas das críticas, é possível en- nio Parreiras e perceber que o pintor sempre
contrar desde pequenos trechos a textos qua- esteve atento a elas e consciente de sua im-
se inteiros de queixas e reclamações quanto portância. Para a crítica, o pintor de gênero,
à cultura artística brasileira. Essa manifesta- nus e cenas históricas nunca superou o pai-
ção se dá de várias formas e com diferentes sagista. Na paisagem, ele reunia todos os re-
focos. Na maioria delas, a crítica, para avaliar quisitos para uma pintura genuinamente naci-
as produções expostas, contextualiza o mo- onal e moderna.
mento artístico presente ao mesmo tempo em Antônio Parreiras muito contribuiu com
que protesta contra ele, evidenciando vários a arte nacional: criou uma nova escola de pin-
aspectos, como o preconceito com a profis- tura, deixou mais de 850 quadros, foi profes-
são de artista, a ausência de incentivos gover- sor, crítico de arte, escritor e, sobretudo, de-
namentais, a falta de museus, a ignorância e fensor da arte brasileira.
a má educação artística do público, a baixa

142
instituto de artes

Liandra Motta, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes –


UNICAMP.
E-mail: liandra_motta@yahoo.com.br

Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Khül, Docente junto ao


Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP.
E-mail: paulokuhl@iar.unicamp.br

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Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

143
144
instituto de artes

A Representação do Universo Caipira: fator de renovação


na produção de Almeida Júnior.

Paula Giovana Lopes Andrietta Frias


Paulo Mugayar Kühl

Resumo:
Quando se trata de avaliar as contribuições da produção de Almeida Júnior para a arte brasileira,
fica claro que o artista conseguiu trazer uma nova discussão para a pintura brasileira ao tratar os temas
regionalistas em suas obras. Dentre as questões que permeiam esta discussão, a inserção do ambiente
“caipira” nos assuntos artísticos do século XIX é um dos pontos fortes. Este artigo faz parte das pesquisas
desenvolvidas para a Dissertação de Mestrado Almeida Júnior, uma alma brasileira?, realizada pela autora.

O “novo” em Almeida Júnior

José Ferraz de Almeida Júnior (1850- rativas como O Descanso do Modelo, O Im-
1899), pintor nascido em Itu, interior de São portuno ou A família do Dr. Adolfo Augusto Pin-
Paulo, proveniente de uma família de poucos to; paisagens; obras sacras; pintura histórica²;
recursos, foi para o Rio de Janeiro estudar na obras regionalistas que retratam arquitetura de
Academia Imperial de Belas Artes graças a pau-a-pique, o homem do interior de barba rala
uma coleta de fundos feita pelo padre Miguel, e pés descalços, como Caipira Picando Fumo,
pároco da Igreja matriz de Itu, seu primeiro Violeiro ou Amolação Interrompida.
incentivador. Complementou seus estudos na Uma das características significativas
Escola de Belas Artes de Paris através de uma da produção de Almeida Júnior é a proximida-
bolsa de estudos cedida pelo Imperador. Des- de que consegue criar entre o espectador e a
tacou-se como pintor e recebeu diversos prê- cena retratada. A forma como compõe a cena,
mios.¹ envolve o espectador com a intimidade do per-
Sendo um pintor de formação acadê- sonagem, em Descanso do Modelo, por exem-
mica, sua produção se caracterizava pela ex- plo, onde retrata o momento de repouso da
celente qualidade técnica, que manteve duran- modelo, descontraída ao piano, numa conver-
te toda a sua trajetória. Dentre sua extensa sa informal e não posando para um retrato. Em
produção, as obras que mais chamaram a Repouso, onde a modelo é retratada dormin-
atenção da crítica foram as que apresentam do, bastante à vontade, com as roupas semi-
temas regionalistas, retratando o trabalhador abertas. Na obra Saudade, envolve o especta-
rural do interior paulista e seus costumes. dor na dor da personagem que vestida de luto
A obra de Almeida Júnior apresenta chora segurando um retrato, cuja história fica-
temática bastante variada: retratos; cenas nar- mos a imaginar. Em Partida da Monção, em

145
cadernos da pós-graduação

que retrata o momento da despedida dos “des- sava, por suas obras, maior originalidade e mais
bravadores” que estão por partir, o abraço das nítida e moderna compreensão da arte era
famílias ressaltando a intimidade, o lado psi- Almeida Júnior...
cológico dos monçoeiros e não a cena de uma ...Desde essa exposição até hoje não sei e nin-
guém sabe o que ele tem feito. Dizem que vive
partida heróica.
em sua província pintando retratos.
Em várias de suas telas, torna o É pena que vocação artística desse feitio se iso-
expectador cúmplice do “realismo cotidiano” le e viva embrenhado no interior de uma provín-
de suas cenas, retratando situações por ve- cia, onde pode erigir fortuna, porém obscuramen-
zes embaraçosas como em Recado Difícil, em te...” 3
que o garoto envergonhado não consegue di-
zer a mulher que o atende qual é o recado que Tomando como ponto de partida a Ex-
trazia, ou ainda em O Importuno onde a mo- posição Geral do Segundo Reinado em 1884,
delo escondida observa a conversa do pintor da qual o artista participa com as obras Fuga
com uma visita indesejada. para o Egito, Descanso do Modelo, Remorso
A produção regionalista do artista tem de Judas e O Derrubador Brasileiro, que são
início com a obra O Derrubador Brasileiro – elogiadas pela crítica, fica claro que Almeida
1879, a primeira de sua autoria a apresentar Júnior havia atingido um elevado grau de co-
tema nacional. Esta obra foi produzida no pe- nhecimento técnico na pintura. Havia chegado
ríodo em que o pintor estava na Europa e a de Paris há apenas dois anos e já estava en-
paisagem que foi pintada de memória difere tre os mais respeitados pintores da época.
das demais obras regionalistas que foram pin- O pintor mantinha uma boa relação com
tadas a partir da observação do real. O mode- o mercado artístico do período, tendo inclusi-
lo que posou para a obra era italiano, enquan- ve algumas de suas obras compradas por ór-
to os personagens retratados nas demais gãos do governo.4 Um dos pontos que chama
obras que apresentam temática caipira tem a atenção é que, apesar desta boa relação com
como modelos pessoas que realmente fazi- a crítica e o mercado, após algum reconheci-
am parte daquele ambiente, moradores das mento, Almeida Júnior parece não estar satis-
fazendas que o artista visitava para buscar ins- feito, talvez buscando dedicar-se a uma pes-
piração. quisa que considerava importante naquele
Almeida Júnior parecia ser atraído pelo momento, podendo também, estar mais perto
ambiente caipira, do qual manteve-se próximo, de sua terra. Certamente, já que o artista pre-
também por ter fortes laços com parentes e tendia viver da pintura, São Paulo era uma op-
amigos que lá viviam. ção interessante, pois assim se mantinha perto
Quando retorna de Paris em 1882, o de seus familiares e do ambiente do interior,
artista instala seu atelier em São Paulo, na Rua onde poderia se beneficiar de encomendas
da Glória, distanciando-se do Rio de Janeiro. pagas com os recursos provenientes do café,
Havia recusado um convite para lecionar na bastante promissores naquela região. Na épo-
Academia Imperial de Belas Artes, atitude que ca, muitos artistas garantiam sua subsistên-
causou estranhamento. A crítica da época con- cia pintando retratos, o que acontece também
dena esse comportamento: no caso de Almeida Júnior, que continua pin-
tando retratos, mesmo durante o período em
“Entre os artistas que enviaram quadros à última que se dedicou a produção das obras de tema
exposição acadêmica de 1884, aquele que acu- regionalista. Dentro desse contexto, a produ-

146
instituto de artes

ção regionalista, parece acontecer de forma mais clara. Uma das explicações dos críticos
paralela, resultando de um conjunto entre as para o uso das “novas cores” estaria relacio-
buscas pessoais do artista e as exigências do nada à representação da luminosidade natu-
mercado. ral das paisagens que o pintor retratou, que
Desde meados do século XIX, as dis- seriam reflexos da natureza tropical. Outra
cussões sobre os rumos da arte brasileira, explicação seria a influência da “luz impres-
relacionavam várias questões, dentre elas, a sionista” com a qual o pintor teria tomado con-
busca por uma identidade nacional e por uma tato durante o período em que esteve em Pa-
pintura genuinamente brasileira, que represen- ris.
tasse elementos da cultura nacional. A produ- Considerando a formação do pintor e o
ção regionalista de Almeida Júnior veio ao en- percurso natural de sua viagem, sempre ori-
contro desses anseios. entado pelo pensamento da Academia Impe-
Entre 1893 a 1895 está compreendido rial, o contato com o movimento impressionista
o período em que o artista mais produziu obras é algo improvável. A representação da “luz tro-
com esta temática: Caipira Picando Fumo em pical” pode ser apontada como o dado mais
1893, Amolação Interrompida em 1894, Aper- significativo, a partir da observação desta “luz”
tando o Lombilho, Cozinha Caipira, Recado e apropriando-se das conquistas acumuladas
Difícil e Nhá Chica de 1895, e ainda Garoto em termos de técnicas artísticas, Almeida
com Banana de 1897, Velha Beata de 1898, O Júnior conseguiu ser original para o meio ar-
Violeiro e Saudade de 1899, ano de sua mor- tístico brasileiro do século XIX.
te. E uma das características marcantes des-
sas obras é a representação do “caipira” em “E por que desejar que Almeida Júnior fizesse o
todo o seu contexto. A produção regionalista mesmo percurso dos impressionistas da Escola
de Almeida Júnior documenta a vida do caipi- de Paris? Por que considerar uma regressão ou
ra, mostrando suas casas, vestes, utensílios centralização de sua trajetória as telas que ele
produziria a seu regresso da Europa somente
e registrando seus costumes.
porque se dedicaria, a par de suas encomen-
A estética caipira representada nas das, a uma temática que, longe do usual,
obras de Almeida Júnior é vinculada em boa exemplificaria sua autonomia de vôo em um meio
parte de sua fortuna crítica com a busca por novo que acolhe sua produção? Como só ver
uma expressão nacional e ao desenvolvimen- sentimentos e empatia com seu entorno e não
to de uma pintura voltada para uma realidade reconhecer que essa motivação o tornou original
nacional. E o fato de o artista ter conquistado como obra? Não importa que outros tenham vin-
do depois, imitindo-o com mediocridade em aca-
tanto espaço, seja em relatos biográficos, crí-
demia regionalista. Almeida Júnior permanece
ticas ou ensaios jornalísticos, é um indício sig-
sensível à luz, à luz local, manipulando-a com
nificativo da representatividade da sua produ- rara mestria ao tirar dela partido do ponto de
ção. vista formal. Daí porque a poética de obras como
Dentre as questões que permeiam a Saudades, Leitura e Cozinha Caipira, destacam
produção regionalista de Almeida Júnior, uma uma peculiar apropriação do valor de “luz”,
das mais complexas é a questão do clarea- distanciada das preocupações impressionistas.
mento da paleta de cores apresentado nes- Mas também parece projetar visualmente uma
deglutição do impressionista a partir da cultura e
sas obras. As cores usadas nas obras
da sensibilidade brasileiras de um tempo de que
regionalistas são mais vivas, o artista altera
Almeida Júnior foi, sem duvida, o porta-voz mais
alguns tons de cores de sua paleta tornando-a expressivo.” 5

147
cadernos da pós-graduação

A questão do tema como fator de Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl, Docente junto ao
Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP.
renovação. E-mail: paulokuhl@iar.unicamp.com.br

Um dos momentos mais importantes


da reflexão sobre o artista acontece no início
Notas
do século XX quando Almeida Júnior veio a ser
reconhecido pelos modernistas como precur- 1. Dentre os prêmios que o artista recebeu, um deles repre-
sor, pioneiro em representar o nacional. Quan- senta o reconhecimento internacional de sua obra, medalha
do se trata de apontar o moderno na obra de de ouro em 1893 em Chicago na Exposição Internacional
Colombiana em comemoração ao IV Centenário do Desco-
Almeida Júnior, o tema se torna o centro da brimento da América, onde expõe: Caipiras Negaceando,
discussão por sua significativa importância Descanso do Modelo e Leitura.
social, pois a produção do pintor acontece em 2. Almeida Júnior produziu somente uma obra com tema histó-
meio à decadência da produção de cana-de- rico: Partida da Monção, de 1897.

açúcar do nordeste e o florescimento da pro- 3. ESTRADA, 1888, p. 154.


dução cafeeira paulista. 4. Em 1882 a Academia de Belas Artes comprou as obras
Derrubador Brasileiro, Descanso do Modelo e Remorso do
O nosso grande pintor do fim do século Judas, em 1890 a instituição adquiriu a obra Caipiras
passado deveria, com irrepreensível lógica, ser Negacendo e novamente em 1895 a obra Recado Difícil. A
paulista. De Pernambuco se deslocava para obra Partida da Monção, cuja produção é incentivada pelo
então secretário do interior Cesário Motta Júnior, foi adquiri-
São Paulo a primazia da nossa riqueza agrá- da pelo governo do Estado de São Paulo em 1899 para
ria, com a decadência da lavoura do açúcar e compor a galeria de obras do Museu Paulista.
o surto vitorioso do café. 5. AMARAL, 1999, p. 60.
O contexto é complexo, as realidades
artística e cultural tinham características pró-
prias, que apresentavam limitações e neces- Referências Bibliográficas
sidade de afirmação. É envolvida nesse ambi- AMARAL, Aracy. A Luz de Almeida Júnior. Revista da USP.
ente que a produção regionalista de Almeida São Paulo, n.5, 1990.

Júnior afirma seu valor. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia
das letras, 1996.
O desejo dos modernistas era de re-
AZEVEDO, Miranda. José Ferraz de Almeida Júnior. Revista
novação do pensamento artístico nacional, de do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. IV, p.
afirmação da cultura brasileira especialmente 605-8, 1898-1899.
a paulista. BARDI, P. M. História da Arte Brasileira. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1975.
De fato, as contribuições deixadas por
Almeida Júnior são resultado de todo um con- COLI, Jorge. A violência e o caipira. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: CPDOC/FGV, 2002.
texto cultural e de um conjunto de valores e
___________. Como estudar a arte brasileira do século XIX.
anseios que nasciam dessa necessidade de In: O Brasil redescoberto, Rio de Janeiro, Paço Imperial/Minc
afirmação, o que não as tornam menos signi- IPHAN, 1999.
ficativas e singulares no que se refere ao con- DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São Paulo:
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ESTRADA, Luis Gonzaga-Duque. A Arte Brasileira. Rio de Ja-


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Campinas: Mercado das Letras, 1994.
pelo Instituto de Artes – UNICAMP. Professora do Centro Uni-
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E-mail: giandri@uol.com.br Casquejas Fuentes Editor,1885.

148
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149
150
instituto de artes

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: algumas


aproximações

Daniela Pinotti Maluf


Maria de Fátima Morethy Couto

Resumo:
Este artigo é fruto da Dissertação de Mestrado: Lygia Clark e Merleau-Ponty: paralelos, defendida
em 2007, e que teve por objetivo encontrar alguns pontos de contato entre a obra plástica da brasileira Lygia
Clark, uma das artistas mais importantes do cenário nacional no século XX, e o filósofo francês Maurice
Merleau-Ponty, um dos principais articuladores do pensamento fenomenológico. O primeiro paralelo traça-
do entre as duas obras foi a noção de abertura de ambos, aproximando-as da idéia trabalhada pelo ensaísta
italiano Umberto Eco, em seu estudo intitulado Obra aberta. O segundo ponto de contato diz respeito a
relevância e o papel do processo. Clark e Merleau-Ponty propunham que o fazer é mais importante do que
o resultado obtido através dele. E, por fim, a interação entre sujeito e objeto, que se utiliza do corpo e do
mundo para se construir, rompendo com a concepção positivista de mundo interno e mundo externo.

Este trabalho tem como objetivo encon- A metodologia fenomenológica consis-


trar pontos de ligação entre a obra filosófica te na descrição das essências, não sendo um
do francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) método dedutivo nem empírico, considerando
e a obra plástica da brasileira Lygia Clark (1920- o que está perante a consciência, ou seja, a
1988), não restrito ao contexto histórico no qual própria coisa em si. Esta abordagem valoriza
algumas aproximações da teoria merleau- uma visão particular, singular, pois cada ser
pontyana se deram com o trabalho de Lygia, e humano percebe o mundo a sua maneira e é
sim ressaltando a “empatia” e a “similaridade” somente a partir desta percepção que ele “está
observadas entre os pressupostos teóricos de no mundo” e interage com ele.
um e as obras e/ou proposições de outro. A fenomenologia (estudo do fenômeno;
Optou-se por utilizar a palavra “paralelos”, pois aquilo que se mostra) está baseada na des-
tanto Lygia quanto Ponty traçaram seus pró- crição. Ela entende o homem como ser-no-
prios caminhos, e, tal como duas retas para- mundo, sem a separação entre sujeito e obje-
lelas, encontram-se no infinito. to. O mundo é um caráter do ser, assim como
Um desses “pontos de contato” entre o ser é intrínseco ao mundo, além disso o ho-
ambos pode ser encontrado quando compre- mem é visto como um ser inacabado, que está
endemos que tanto a obra de Lygia quanto a em constante vir a ser.
teoria de Ponty partem do fato de que deve- O filósofo Edmund Husserl (1859-1938)
mos “ir às coisas mesmas” se desejamos delimitou as linhas mestras da fenomenologia
conhecê-las. baseado no princípio metodológico que se

151
cadernos da pós-graduação

chamou de “redução fenomenológica” ou ao tentarmos separar esta união, corremos o


“epochê”, o qual consiste na “colocação entre risco não apenas de perdermos o todo, mas
parênteses” dos pressupostos que traçamos também as partes.
sobre o mundo, buscando uma percepção li- A arte, segundo Ponty, é muitas vezes
vre de idéias pré-concebidas. responsável por “esclarecer” a nossa condi-
A partir deste arcabouço metodológico ção e é daí que resulta a função da produção
procurei aproximar as obras de Merleau-Ponty artística em seus escritos, neles a arte não
e de Lygia Clark, com o intento de perceber o aparece com um fim alegórico ou de exemplifi-
modo e o como elas poderiam se entrelaçar, cação.
fazendo uso da análise qualitativa de material
documental, sempre à luz da fenomenologia, “Um pintor como Cézanne, um artista, um filóso-
especialmente a de Merleau-Ponty, o qual ser- fo devem não somente criar e exprimir uma idéia,
ve tanto como sujeito de minha análise, como mas ainda despertar as experiências que vão
base metodológica. enraizar em outras consciências. Se a obra é
bem sucedida, tem o estranho poder de transmi-
Maurice Merleau-Ponty publicou sua
tir-se por si. (...) O pintor só pode construir uma
tese de doutorado em filosofia em 1945,
imagem. É preciso esperar que esta imagem se
Fenomenologia da Percepção1. Esta é sua anime para os outros. Então a obra de arte terá
obra mais conhecida e também a de maior in- juntado estas vidas separadas, não mais unica-
fluência sobre o presente trabalho. Nela, o au- mente existirá numa delas como sonho tenaz ou
tor destrincha o “como” percebemos. Neste delírio persistente, ou no espaço qual tela colori-
texto o filósofo discorre sobre os tópicos fun- da, vindo a indivisa habitar vários espíritos, em
damentais para a compreensão da fenome- todo presumivelmente, espírito possível, como
nologia, partindo de uma retomada da pers- uma aquisição para sempre.” 3
pectiva husserliana, referindo-se à fenomeno-
logia como o estudo das essências sem se As obras têm uma “vida” para além de-
esquecer da importância da “facticidade”, ou las mesmas, por isso Merleau-Ponty faz uso
seja, a existência e a condição de ser-no-mun- desta riqueza de relações geradas e propicia-
do, para essas essências, e das limitações da das por elas. Uma “boa obra” tem um “poder
epochê. germinador”, ou seja, ela consegue “brotar” nas
pessoas que entram em contato com ela e,
“Na percepção, nós não pensamos o objeto e desta maneira, ganham uma amplitude extra-
não nos pensamos pensando-o, nós somos para ordinária. Em Ponty o artista é visto como al-
o objeto e confundimo-nos com esse corpo que guém que é capaz de catalisar o ser-no-mun-
sabe mais do que nós sobre o mundo, sobre os do em suas obras; é aquele que expõe a união
motivos e os meios que se têm de fazer uma
do dito “interior” com o “exterior” agregando a
síntese.” 2
isso seus sentimentos.
Os escritos de Ponty chegaram ao ce-
O mundo, para Merleau-Ponty, nunca nário artístico brasileiro através de Mário
esteve distante do sujeito que o percebe e as Pedrosa (1900-1981) e, posteriormente, por
idéias só poderiam existir através, a partir e Ferreira Gullar (1930-), os quais encontraram
para o mundo. A fim de explicitar esta unida- em suas idéias os fundamentos para a arte
de, ser-no-mundo ou sujeito-objeto, o filósofo que estava sendo realizada no Brasil na déca-
entende a arte como uma das provas desta da de 1950, principalmente no Rio de Janeiro.
“união indelével” e aproveita para alertar que,

152
instituto de artes

Não é sem propósito que os artistas ca (Planos em superfície modulada nº 1 , de


Neoconcretos (grupo carioca integrado por 1957) ou mesmo o descolamento da obra em
Ferreira Gullar, Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio relação à parede (Casulo, de 1959), podem ser
Oiticica, entre outros) encontram na teorização entendidas como movimentos de aproximação
de Merleau-Ponty um dos embasamentos do do espectador em relação a obra. O ser hu-
movimento. O que os Neoconcretos busca- mano, para Lygia Clark, transcende a soma
vam era a libertação de velhas formas de se das partes, ele é capaz de criar e, por isso,
fazer arte, o que resultou em uma nova rela- pode também ir “além” do “real”.
ção entre o espectador e a obra, que ficava Por meio da transformação da obra,
mais próxima e acessível. Lygia propunha uma transformação da percep-
No próprio Manifesto Neoconcreto, re- ção do espectador da própria obra. Buscava
digido por Ferreira Gullar em março de 1959, um envolvimento que levasse em conta todas
evidencia-se a importância das idéias Ponty: as sensações e sentimentos que foram mobi-
lizados e despertados diante e com relação
“Acreditamos que a obra de arte supera o meca- ao objeto em questão, dando sentido e signifi-
nismo material sobre o qual repousa, não por al- cado ao objeto de arte, fazendo dele um exem-
guma virtude extraterrena: supera-o por transcen- plo concreto da condição de ser-no-mundo.
der essas relações mecânicas (que a Gestalt Lygia Clark construiu obras que pode-
objetiva) e por criar para si uma significação táci-
mos chamar de “abertas”, servindo-se do con-
ta (M. Ponty) que emerge nela pela primeira vez.”4
ceito criado por Umberto Eco (1932-).
A discussão sobre a abertura das obras
Esta aproximação se deve principal- e suas possibilidades de interpretação se fa-
mente às críticas efetuadas por Ponty à ziam necessárias às “demandas históricas”
Gestalt (teoria utilizada pelos Concretos daquele momento, em razão das transforma-
Paulistas), evidenciando a relação intrínseca ções nas relações estabelecidas entre obra e
entre a fundamentação teórica, as obras de público. O que estava aparecendo nas déca-
arte produzidas e a diferenciação estética-ide- das de 1950 e 1960 era uma nova proposta de
ológica dos dois grupos. compreensão da arte.
Todo este arcabouço teórico chega de Umberto Eco esclarece:
modo diluído às obras de Lygia Clark. Seria,
portanto enganoso falar que as obras de Clark
“A poética da obra “aberta” tende, como diz
se basearam na fenomenologia desenvolvida
Pousseur, a promover no intérprete “atos de li-
por Ponty, porque, como ela mesma diz, era berdade consciente”, pô-lo como centro ativo de
tudo “coisa de orelha”, ou seja, este universo uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais
intelectual lhe chegava com distância, devido ele instaura sua própria forma, sem ser determi-
ao seu parco interesse. Porém, não é enga- nado por uma necessidade que lhe prescreva os
noso falar que as obras de Lygia têm um modo modos definitivos de organização da obra fruída;
fenomenológico de apreensão do mundo, e é mas (...) poder-se-ia objetar que qualquer obra
por isso que a teoria se apresenta tão adequa- de arte, embora não se entregue materialmente
da para a compreensão de suas obras. inacabada, exige uma resposta livre e inventiva,
mesmo porque não poderá ser realmente com-
As transformações propostas por preendida se o intérprete não a reinventar num
Lygia, como a quebra da moldura (Composi- ato de congenialidade com o autor.” 5
ção nº 5, de 1954), a inserção da linha orgâni-

153
cadernos da pós-graduação

Desta maneira, Eco coloca a abertura Segundo Merleau-Ponty, lidamos com


da obra como condição para sua assimilação o mundo e com os outros como prolongamen-
pelo fruidor, porque é através da “reinvenção” tos de nosso corpo e desta maneira somos
da obra e da aproximação com o autor que o levados a nos relacionar sempre de modo
espectador adquire condições de criar um di- aberto. Uma bengala para um cego não é um
álogo com a mesma. Para Eco, todas as obras objeto, é uma extensão de seu corpo, e as
são abertas, porque sempre é possível esta- pessoas com quem convivemos também o
belecer novas relações com elas. são.
Já Merleau-Ponty, em seu ensaio A lin-
guagem indireta e as vozes do silêncio, apon- “Sinto meu corpo como potência de certas con-
ta: dutas e de um certo mundo, sou dado a mim
mesmo com um certo poder sobre o mundo; ora,
é justamente meu corpo que percebe o corpo de
“A obra que se cumpre não é, logo, a que existe
outrem, e ele encontra ali como que um prolon-
em si como coisa, mas a que atinge o especta-
gamento miraculoso de suas próprias intenções
dor, convidando-o a retomar o gesto que a criou
, uma maneira familiar de tratar o mundo;
e, saltando mediações, sem outro guia que não
doravante, como as partes de meu corpo em
o movimento da linha inventada, a alcançar o
conjunto formam um sistema, o corpo de outrem
mundo silencioso do pintor, ora proferido e aces-
e o meu formam um único todo, o verso e o rever-
sível.” 6
so de um único fenômeno (...).” 7

Nossos olhos olham o mundo ao mes-


Ponty nos traz uma noção de abertura
mo tempo em que olham para si mesmos.
inalienável aos seres humanos e a toda e qual-
Em grande parte das obras/proposi- quer ação humana. Deste modo, generaliza-
ções, realizadas por Lygia a partir dos anos se a compreensão de abertura, mas não se
1960, tais como Bichos, Obras Moles, Cami- aprofunda em temas peculiares do objeto ar-
nhando, Respire Comigo - pedra e ar, Baba tístico.
Antropofágica, Roupa-Corpo, a própria obra ou
Tomemos como exemplo desta aber-
proposição pode ser transformada ou mesmo
tura os Bichos de Lygia, que são estruturas
gerada pelo fruidor-criador-participante. Neste
metálicas com partes móveis ligadas através
caso, as obras não estão propriamente “aber-
de dobradiças, devendo ser manipuladas pelo
tas”, elas ainda não estão “prontas”, elas
“espectador”. Num primeiro momento, diante
aguardam o diálogo com o espectador. Lygia
de um Bicho, nos perguntamos: o que desejo
entregava propostas e não necessariamente
fazer? Logo depois passamos para outra per-
“obras”.
gunta: o que ele pode fazer? E de repente tudo
Dentro dessa perspectiva, público e se transforma e a questão que nos surge é: o
obra compõem um cenário particular, no qual que “nós” (eu e o Bicho) podemos fazer?
as texturas, as cores, as sensações, as
A ação passa a ser “feita a dois”, o diá-
nuances são oriundas de um subtexto que
logo se estabelece, e é neste sentido que as
compete a cada experiência. Somente o es-
palavras de Lygia sobre o fato de que só os
pectador tem condições de explicitar como se
Bichos sabem o que eles são capazes de fa-
deu sua relação com a obra de arte, e que
zer se concretizam, pois esta relação não tem
sentidos agregou ao objeto.
como ser delimitada. Porque por mais que o

154
instituto de artes

objeto Bicho possa ser finito enquanto estru- é cortada, no sentido da fita, por cada um dos
tura, ele se mantém infinito enquanto relação co-criadores da obra, e quando a tesoura che-
com o objeto. Relação esta que só se dá no ga ao ponto de partida, no lugar de se dividir a
processo, que constitui a etapa do trabalho de fita em dois se escolhe entre cortar à direita
maior importância. ou à esquerda do corte já efetuado.
Com Lygia Clark esse processo se dá É evidente que cada um de nós pode
tanto na confecção de suas obras como no fazer o Caminhando, pode inclusive realizá-lo
próprio modo de ser delas, assim como nas diversas vezes, sem nunca deixar de ser,
vivências propiciadas por diversas de suas concomitan-temente, o mesmo e um outro.
proposições. Com Caminhando fazemos escolhas,
optamos por caminhos, mudamos de direção,
“Por Deus a vida é sempre para mim o fenômeno provocamos o destino, nos perdemos, nos
mais importante e esse processo quando se faz encontramos, temos dúvidas, temos certezas,
e aparece é que justifica qualquer ato de criar, somos exatos, hesitamos, desistimos, somos
pois de há muito a obra para mim cada vez é pacientes, obsessivos, descuidados, ficamos
menos importante e o recriar-se através dela é
atentos, brincamos, andamos a grandes cor-
que é o essencial.” 8
tes, tomamos cuidado, somos indiferentes,
nos arrependemos, nos entregamos, morre-
Fica nítido que o interesse que ela tem mos. Todas as sensações e questionamentos
em sua produção não diferia do seu interesse cabem enquanto dura a experiência.
para com a experimentação em sua vida. Ao Caminhando repete a condição huma-
longo de sua existência sua criação e sua na em si, a de sermos sempre os mesmos e
vivência estiveram sempre ligadas, e essa re- mudarmos constantemente. Desta maneira,
lação refletia-se diretamente em sua produção. esta “obra” poderia ser considerada uma “ode
Já com Ponty esse processo pode ser ao processo”.
percebido tanto no interior de um mesmo tex- A efemeridade da obra contrasta com
to ou ensaio como nas mudanças de um es- a duração do sentido da vivência da obra, pois
crito para o outro, e, mais do que isso, esse a experiência não se encerra nela mesma, o
processo é descrito como condição do texto. Caminhando continua sempre no gerúndio,
Suas idéias propõem o abandono das conclu- permanece infinitamente se fazendo.
sões prévias a fim de que adotemos uma pos-
Em diversas ocasiões Merleau-Ponty
tura que mantenha as características funda-
compara a construção da filosofia fenomeno-
mentais das coisas, ou seja, o seu caráter pro-
lógica à construção das obras de arte. É uma
visório e inacabado. O processo é, para
edificação do pensamento, que, por tentar
Merleau-Ponty, o único modo de compreensão
apreender o mundo e não teorizar sobre ele,
do mundo que respeita sua “essência”; a
necessita de uma atenção especial, que nun-
teorização sobre ele vem em segundo plano.
ca se distancia de seu “objeto” de estudo.
Para ilustrar o que venho a afirmar, gos-
Assim como as palavras de Ponty:
taria de traçar algumas considerações sobre
a obra que representa uma das maiores rup-
turas da trajetória de Lygia, o Caminhando, de “Se a fenomenologia foi um movimento antes de
ser uma doutrina ou um sistema, isso não é nem
1964, que consiste em uma tira de papel torci-
acaso nem impostura. Ela é laboriosa como a
da em 180º, que forma uma Fita de Moebius e
obra de Balzac, de Proust, de Valéry ou de

155
cadernos da pós-graduação

Cézanne – pelo mesmo gênero de atenção e de “Assim, porque eu me toco tocando, meu corpo
admiração, pela mesma exigência de consciên- realiza “uma espécie de reflexão”. Nele e por ele
cia, pela mesma vontade de apreender o sentido não há somente um relacionamento em sentido
do mundo ou da história em estado nascente.” 9 único daquele que sente com aquilo que ele sen-
te: há uma reviravolta na relação, a mão tocada
torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato
De forma semelhante à de Ponty, Lygia, está espalhado pelo corpo, que o corpo é “coisa
em 1966, escreve um texto intitulado “Nós re- sentiente”, “sujeito-objeto”.” 11
cusamos” e nele propõe:

Merleau-Ponty, tenta assim explorar o


“Recusamos a obra de arte como tal e damos
impasse da neutralidade ao qual a nossa per-
mais ênfase ao ato de realizar a proposição;
Recusamos a duração como meio de expressão. cepção está exposta, já que ela nunca é neu-
Propomos o momento do ato como campo de tra, pois dependemos de nossa relação com
experiência. (...) Propomos o precário como novo o mundo e com as coisas para poder sentir e
conceito de existência contra toda cristalização perceber. O corpo é tanto sujeito como objeto.
estática na duração.” 10 Na realidade para Ponty não é possível com-
preender ou existir a noção de sujeito-objeto
Lygia recusa os dogmas preestabe- se não partirmos do corpo.
lecidos, recusa todos os tipos de determinismo, Na filosofia de Merleau-Ponty o corpo é
inclusive o psíquico, recusa o seu lugar de “ar- o lugar no qual o mundo se dá, ele não é um
tista”, quando recusa a obra de arte, enfim, suporte e pode ser comparado a uma obra de
Lygia Clark prega a liberdade. Ela é contra a arte.
cristalização e contra todas as tentativas de
se compreender o real como sendo algo já “Um romance, um poema, um quadro, uma peça
dado e estático. Como em seus Objetos musical são indivíduos, quer dizer, seres em que
Relacionais que são construídos a partir de não se pode distinguir a expressão do expresso,
materiais baratos e facilmente encontráveis no cujo sentido só é acessível por um contato dire-
to, e que irradiam sua significação sem abando-
cotidiano (pedras, sacos plásticos, meias de
nar seu lugar temporal e espacial. É nesse sen-
nylon, bolinhas de isopor, entre outros), e po-
tido que nosso corpo é comparável à obra de arte.
dem ser facilmente reconstruídos por qualquer Ele é um nó de significações vivas e não a lei de
um de nós, bastando-nos ter os materiais ne- um certo número de termos co-variantes.” 12
cessários e, em alguns casos, uma ilustração
ou foto da proposta de Lygia. No entanto, a re-
produção material ou física do objeto não sig- O corpo faz parte do mundo e está aber-
nifica quase nada, porque é como se ele não to a ele. O corpo capta o mundo e o transfor-
existisse em si mesmo, ele só existe em con- ma. O corpo traz em si “sujeitobjeto”. E este
tato com o sujeito. entendimento é fundamental na obra de Ponty,
uma vez que, deste modo, falar do corpo é fa-
Os Objetos Relacionais de Lygia nos
lar da relação sujeito-objeto. Assim como, nas
remetem ao exemplo utilizado por Husserl e
propostas de Lygia, a manipulação ou o con-
por Ponty sobre o toque da mão direita sobre
tato com os objetos estavam constantemente
a mão esquerda, quando somos impelidos a
direcionadas ao corpo, a serviço do corpo, re-
perguntar: Qual mão está tocando e qual mão
compondo e resgatando o corpo vivido.
está sendo tocada? Qual delas é sujeito e qual
é objeto?

156
instituto de artes

A tônica central das propostas de Lygia Clark não separa arte e vida, por isso
é este movimento de mão-dupla, eu pertenço prescinde da arte para encontrá-la, pois se
ao objeto assim como ele me pertence, e este seguirmos seu modo de pensar e conceber o
sentido de pertencer não é o de posse, mas mundo todos os nossos gestos podem ser vis-
sim o de comunhão, o de reconhecimento da tos como atos criadores e por isso artísticos.
similaridade da matéria, com a finalidade últi- É claro que Lygia reconhece que, em
ma da re-experimentação e a redescoberta grande parte do tempo, estamos desconec-
das sensações e dos sentidos provenientes tados de nossas ações, de nosso sentir e per-
do corpo. ceber, no entanto, a fim de resgatá-los a artis-
A redescoberta do corpo e, conseqüen- ta utiliza-se de materiais banais e cotidianos,
te-mente, a redescoberta de nós mesmos pas- propondo que o participante saia de seu lugar
sa a ser o tema central das proposições de costumeiro e passe a habitar, ou melhor, co-
Lygia Clark, bem como se pode ver nos escri- habitar o lugar do artista. Lygia potencializa o
tos de Ponty. Cada um a sua maneira buscou sujeito, resgata no humano uma de suas ca-
retirar o corpo de uma condição subjugada de racterísticas fundamentais, a de ser um “ani-
receptáculo e conduzi-lo a uma posição que mal criador” que transforma a natureza. Lygia
lhe compete mais, a condição sine qua non da Clark retira-nos da passividade e devolve-nos
existência. nossa origem e nosso destino, de sermos per-
petuamente seres criadores.
“Não somos esta pedra, mas, quando a vemos Arte e vida, assim como filosofia e vida
ela ressoa no nosso aparelho perceptivo, a nos- não poderiam estar separadas para meus
sa percepção surge-nos como provindo dela, isto interlocutores. Sujeito e mundo estão unidos,
é, como existindo por ele, como nossa recupe- eu e os outros, estamos unidos, o pensamen-
ração daquela coisa muda que, desde que entra
to se constrói de modo coletivo, minhas sen-
na nossa vida, se mexe, desenvolve o seu ser
sações dizem respeito a todo o meu corpo e
íntimo, se revela a si própria através de nós. O
que julgávamos ser coincidência é coexistên- também ao mundo. Dentro desse espírito,
cia.” 13 Merleau-Ponty expõe o como vê a filosofia:

“Se filosofar é descobrir o sentido primeiro do ser,


Esta fala de Ponty nos remete a propo-
não é possível filosofar abandonando a situação
sição de Clark; Nostalgia do corpo: diálogo, de humana: é, pelo contrário, preciso assumi-la. O
1968. Nesta proposta, que é realizada em du- saber absoluto do filósofo é a percepção. A per-
pla ou com mais pessoas, cada participante, cepção funde tudo porque, por assim dizer, nos
ou “jogador”, passa um pequeno seixo da mão comunica uma relação obsessiva com o ser, que
de um para o outro. está perante nós e, todavia, nos atinge interior-
A proposta de Lygia consiste no sim- mente.” 14
ples fato de passar a pedra da mão de uma
pessoa para outra, mas com isso ela conse- Deste modo, perante as palavras de
gue retirar esta ação do lugar comum e Ponty, só nos resta admitirmos que estamos
transmutá-la para uma vivência repleta de sen- no mundo interagindo com ele e não como sim-
tido para cada um dos participantes. Esta pro- ples “espectadores”. Estamos com o mundo,
posição pode nos ajudar a compreender a im- somos o mundo, somos as coisas, e talvez o
portância do contato, não só com os objetos, papel do “espectador” nem possa existir pe-
mas também com os outros. rante essas condições. O homem não possui

157
cadernos da pós-graduação

valores absolutos, pois a sua condição exis- Referências Bibliográficas

tencial lhe impõe uma precariedade de certe-


CLARK, Lygia. “Carta de 26.10.1968, França.” In: FIGUEIREDO,
zas.
Luciano (org.). Lygia Clark - Hélio Oiticica: Cartas, 1964-
O que Lygia realizou durante toda a sua 1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
vida foi um “exercício experimental de liberda- CLARK, Lygia. “Nós recusamos”. In: CLARK, Lygia. Lygia Clark.
de”, conforme dizia Mário Pedrosa, foi uma Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa .
Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.
proposta para que o homem retomasse suas
ECO, Umberto. Obra Aberta. Tradução: Pérola de Carvalho.
“origens”, como ser criador, e que se projetas- São Paulo: Perspectiva, 1971.
se no futuro como ser integrado a si mesmo e
GULLAR, Ferreira. “Manifesto Neoconcreto”. Apud BRITO,
ao mundo. Do mesmo modo, os escritos de Ronaldo. Neoconcretismo - Vértice e ruptura do projeto
Merleau-Ponty permitiram um entendimento construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.
10 e 11. Publicado originalmente no Jornal do Brasil, Rio de
mais amplo e profundo da condição humana, Janeiro, 22 de março de 1959.
a fim de que o ser humano pudesse olhar para
HUSSERL, Edmund. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Edi-
si mesmo, para seus iguais e para o mundo ções 70. Tradução Artur Morão, 2001.
como a grande unidade que é. MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. Textos
selecionados. Seleção Marilena de Souza Chauí. São Paulo:
Nova Cultural, 1980.

___________. Elogio da filosofia. Lisboa: Guimarães Edito-


Daniela Pinotti Maluf, Mestre em Artes pelo Instituto de Ar-
res, 1986.
tes - UNICAMP e Psicóloga.
E-mail: dpinotti@usp.br ___________. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In:
Textos selecionados. Seleção Marilena de Souza Chauí. São
Orientadora: Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto, Do- Paulo: Nova Cultural, 1989.
cente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes -
UNICAMP. ___________. “O filósofo e sua sombra”, In: Textos seleciona-
E-mail: mfmcouto@iar.unicamp.br dos. Seleção Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova
Cultural, 1989.

___________. Fenomenologia da Percepção . São Paulo:


Martins Fontes, 1999.
Notas

1. MERLEAU-PONTY, 1999.

2. Idem. p. 320.

3. MERLEAU-PONTY, 1980, p. 121.

4. GULLAR, 2002, pp. 10 e 11.


5. ECO, 1971, pp. 41 e 42.

6. MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do si-


lêncio” In Textos selecionados. Seleção Marilena de Souza
Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 98.
7. MERLEAU-PONTY, 1999, p. 474.

8. CLARK, 1996, p. 56.

9. MERLEAU-PONTY, 1999, p. 20.

10. CLARK, 1980, p. 30.


11. MERLEAU-PONTY, “O filósofo e sua sombra”, 1989, p. 195.

12. Idem. pp. 209 e 210.

13. MERLEAU-PONTY, 1986, p. 26.

14. Idem, pp. 23 e 24.

158
instituto de artes

Entre o Museu e a Praça, o legado de Lygia Clark e Hélio


Oiticica

Marcia Moraes
Maria de Fátima Morethy Couto

Resumo:
O descompasso entre a arte contemporânea e as convenções museológicas já se delineia há
algumas décadas, e pode ser explicado pelo fato de que o museu convencionado durante o modernismo
tornou-se inadequado frente às produções artísticas mais recentes e não oferece lugar apropriado a este
tipo de arte. Neste artigo discutimos a incorporação dos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica por parte
deste museu tradicional, atentando para a posição avessa e crítica dos dois artistas frente a estrutura
museológica.

Entre o Museu e a Praça, o legado de


Lygia Clark e Hélio Oiticica

A partir da década de 1960, presencia- Lygia Pape e dos conceituais Ana Bela Geiger
mos em diversos países o crescimento da e Arthur Barrio2 entre outros. Para o crítico in-
importância do conceito da obra e do pensa- glês Guy Brett, era possível perceber no Brasil
mento do artista em oposição à noção desta época, “dois tipos de trajetórias artísti-
fetichizada de objeto de arte, o que, em linhas cas que podem ser descritas em termos de
gerais, resultou numa série de trabalhos que uma distinção entre a obra “fechada” e obra
criticavam o circuito fechado das artes e que “aberta”. A “fechada” está representada por
buscavam subverter o modelo expositivo mo- Sérgio Camargo e Mira Schendel, dois artis-
derno, convencionado como “Cubo Branco”1. tas favoráveis à idéia predominante que vê o
Os ataques aos mecanismos inerentes ao sis- artista como um criador de objetos autônomos
tema da arte e suas instituições, museus e para serem apreciados em determinados lo-
galerias era devido ao fato de que, ao mesmo cais institucionais – a galeria e o museu –, mas
tempo em que estes locais expunham traba- que, dentro desses limites, continuaria a fazer
lhos de arte, criavam valores simbólicos e eco- descobertas e a desafiar a ordem perturbadora
nômicos que contrariavam os artistas. na linguagem que lhe é própria. Já no caso dos
Neste período, o eixo das preocupações praticantes da obra “aberta”, como Clark,
dos artistas brasileiros também se deslocou Oiticica e Lygia Pape, são exatamente estes
dos objetos para o conceito de seus trabalhos, limites que eles questionam.” 3
o que desencadeou a criação de obras que Foi inicialmente sob os preceitos do
iam além da experiência perceptiva visual di- Movimento Neoconcreto que Lygia Clark e Hé-
reta, como as de Hélio Oiticica, Lygia Clark, lio Oiticica saltaram da superfície bidimensional

159
cadernos da pós-graduação

para o espaço real e elaboraram as obras-ob- para mim, (...) isso e é uma posição real a que
jeto ou não-objetos, como os denominou devo ser fiel; quero um novo comportamento,
Ferreira Gullar, que transcendiam o sentido de integral, que exclua toda sorte de idéia corrup-
obra de arte ligado apenas à materialidade e ta, pequenez de ‘mundo de arte’.“5
que efetivaram a idéia de uma relação dinâmi- Ainda na década de 1960, para sua par-
ca e dialógica entre artista, obra e espectador. ticipação na Bienal de Veneza de 1968, Lygia
Clark e Oiticica propunham a ampliação do Clark criou uma estrutura labiríntica a qual de-
acesso à arte e o fim do caráter de ‘sacralidade’ nominou A casa é o corpo. A proposta consis-
dado à obra; ambos afirmaram que suas tia em uma seqüência de salas escuras pelas
obras-objeto deveriam ser dispostas em es- quais o público-participante caminhava em
paços públicos e abertos, nos quais o público meio a bolas de borracha para chegar em uma
pudesse não apenas olhá-las mas tê-las como tenda cheia de luz, como uma analogia ao nas-
parte integrante de suas experiências cotidia- cimento. Na mesma esteira de pensamento,
nas, e nunca expostas em pedestais ou cola- Lygia Pape criou as obras Ovo e Divisor, am-
das às paredes dentro das isoladas salas de bos de 1968.
museus e galerias. Hélio Oiticica observou em
Estas novas propostas acerca da ex-
1961, que suas proposições de arte-totalida-
periência artística e da relação do sujeito com
de, arte–participativa, eram impossíveis de
o objeto de arte, formuladas por Lygia Clark,
serem adequadas às estruturas de museus
Hélio Oiticica e Lygia Pape tiveram início den-
ou galerias modernas, pois estes espaços não
tro do Movimento Neoconcreto, o qual teve seu
se interessavam por experiências artísticas
manifesto escrito por Ferreira Gullar em 1959.
que não pudessem ser reduzidas a seus pró-
O Manifesto apontava que a motivação do gru-
prios interesses e normas. Para o artista e te-
po de artistas e teóricos para o desenvolvimen-
órico Brian O’Doherty, as “galerias modernis-
to do Neoconcretismo foi a procura de uma
tas ideais subtraem da arte todos os indícios
saída para o movimento anterior, o Concreto.
que interfiram no fato de que ela é arte. A obra
Os Neoconcretos passaram a propor a reto-
é isolada de tudo o que possa prejudicar sua
mada da subjetividade na arte, embora não os
apreciação de si mesma.“4
interessasse “retornar ao subjetivismo tradici-
Em 1969 Hélio Oiticica realizou sua onal, inclusive por aceitar explicitamente os
mais importante mostra individual, a Experi- postulados básicos da vanguarda construti-
ência Whitechappel. Dentro da Galeria va”6. De acordo com Ferreira Gullar, o Neocon-
Whitechappel, em Londres, o artista criou um cretismo apoiou-se nas concepções de
ambiente no qual subvertia as normas de com- Merleau–Ponty quando esse apontou em sua
portamento tradicionalmente esperadas dos teoria fenomenológica, que a percepção teria
visitantes de uma exposição. Para Oiticica, a que ser temporal e fluir no corpo e contestou a
experiência consistia em um ‘campo experi- distância entre sujeito e objeto.
mental’, no qual todas as experiências huma-
No final dos anos 1950 e após inúme-
nas seriam permitidas, já que, para ele, o im-
ras tentativas de renovação do espaço pictóri-
portante não era o objeto, mas a forma como
co - série Superfícies Moduladas de Clark e
ele era vivido pelo espectador. Neste mesmo
Metaesquemas e Monocromáticos de Oiticica
ano, Hélio Oiticica escreveu em carta para
– Lygia Clark e Hélio Oiticica alegaram que a
Lygia Clark que, para ele, a idéia de objeto-arte
pintura já teria esgotado todas as suas possi-
vendável era coisa do passado; em suas pa-
bilidades formais e que a pura e simples con-
lavras, afirmou: “o objeto-arte não existe hoje
templação visual do quadro, bem como a imo-

160
instituto de artes

bilidade do recorte sobre a parede não mais produções deslocou-se na direção do envolvi-
os satisfazia. Neste período, Lygia Clark e Hé- mento entre artista, obra e espectador, pois
lio Oiticica realizaram proposições de estrutu- passaram a propor a eliminação da pura con-
ras espaciais, como os Contra-relevos e Ca- templação visual, visando a transformar o es-
sulos e os Bilaterais e Relevos Espaciais. pectador um ‘participador’ da obra de arte.
Em seus próximos trabalhos, Oiticica As criações espaciais de Clark e
se distancia das modalidades em escala Oiticica, tanto dentro do movimento Neocon-
ambiental e passa a criar trabalhos em escala creto quanto após seu desmembramento, de-
mais intimista. Em 1963, cria obras-objeto que ram-se, de acordo com Mário Pedrosa, em
denomina Bólides ou Transobjetos, em que meio a uma grande “crise escultórica mundi-
explora o que chamou de ‘coorporização da al”, revelando a importância do movimento
cor’, pesquisando e se apropriando de diferen- Neoconcreto e das criações dos dois artistas.
tes objetos e materiais de texturas e cores Para Pedrosa, as obras-objeto revolucionaram
variadas e colocando-os a disposição dos sen- o velho conceito tradicional de escultura as-
tidos do espectador. sim como das esculturas ditas cinéticas, pois
Desde a criação da série Superfícies adicionaram “às anteriores realizações no do-
Moduladas em 1958, Lygia Clark substitui a tela mínio das construções e criações de movi-
e a tinta a óleo por chapas de madeira pinta- mentos cinéticos” um elemento novo, de mai-
das com pistolas de tinta industrial. Nas séri- or transcendência: a arte de Clark e Oiticica
es seguintes, Contra-Relevos e Casulos, a “convida o sujeito-espectador a entrar numa
artista utiliza chapas de madeira e de ferro, só relação com a obra, quer dizer, com o objeto,
que desta vez as recorta e dobra criando for- de modo a que o sujeito participe da criação
mas que se situam entre o espaço bidimen- do objeto(...).” 7
sional e o tridimensional. Os Casulos são pla- Após a criação dos Trepantes (1964),
cas de metal que se dobram sobre si mes- os trabalhos de Clark caminharam em direção
mas, criando um espaço interno que se asse- à desmaterialização da obra e a experiências
melha e remete a um útero ou um ovo, como que envolviam de maneira ainda mais direta o
um plano estufado. Em 1961, como se os ato, o corpo e as sensações do participador.
Casulos tivessem caído das paredes para o Em 1964, Clark cria a proposição Caminhan-
chão, Lygia cria os Bichos. Inicialmente feitos do, na qual o sentido da obra residia no ato de
de alumínio dobrado, os Bichos possuíam do- se fazer a experiência, no caso cortar a fita de
bradiças que lhes davam articulação. Neste Moebius. É neste momento que Clark rompe
momento, Clark cria a possibilidade de que a de vez com a estrutura convencional do mu-
obra se transforme a partir do toque de quem seu e de espaços expositivos tradicionais, afir-
com ela interage. Em 1962, Lygia construiu mando que o “ato do Caminhando é uma pro-
obras moles, feitas de borracha, para serem posição dirigida ao homem (...)” A artista afir-
alisadas e apalpadas, de textura irregular: os mou na época que, após Caminhando, o obje-
Trepantes, que abriram caminho para suas to perdeu para ela seu significado e que, se
futuras proposições sensoriais e para um pro- ainda o utilizava era para que fosse o media-
cesso de abandono das preocupações mate- dor para a participação. Em 1966, Clark ela-
riais e estéticas. borou a proposição Nostalgia do Corpo, dita
Com a criação dos Bichos de Clark e por ela como um conjunto de experiências re-
os Bólides de Oiticica, os dois artistas inicia- alizadas com pequenos objetos que marcam
ram um processo em que a ênfase de suas seu abandono das “cogitações estéticas’”.

161
cadernos da pós-graduação

Na década de 1970, a artista se desli- cas desenvolvidas por seus integrantes fica-
gou totalmente do mundo das artes; entre 1970 ram afastadas da preocupação da crítica de
e 1975, residiu em Paris e lecionou no curso arte, só sendo retomadas na década de 1980.
de Artes Visuais da Sorbonne, onde realizou A mostra Lygia Clark e Hélio Oiticica, realiza-
‘exercícios de sensibilização’ com seus alu- da na Sala Especial da IX Salão de Artes Plás-
nos. A partir das propostas de sensibilização, ticas do Rio de Janeiro, em 1986, com
cresceu seu interesse em direção ao caráter curadoria de Luciano Figueiredo, deflagrou um
“terapêutico” de suas proposições; começou processo em que as críticas de arte nacional
então a questionar sua condição de artista e a e internacional passaram a olhar com mais
se colocar como ‘não-artista’, realizando ses- atenção para as produções dos dois artistas,
sões terapêuticas em seu apartamento no Rio resgatando-as e inserindo-as em mostras im-
de Janeiro. portantes, como as Bienais de São Paulo e
A trajetória de Hélio Oiticica foi extre- organizando expressivas retrospectivas indi-
mamente criativa e experimental, desde o fim viduais. Nos anos 1990, a crítica de arte inter-
dos anos 1950 até o ano de 1980, quando fa- nacional se adiantou à crítica nacional e orga-
leceu. Os marcantes Parangolés foram cria- nizou grandes retrospectivas individuais de
dos em 1964, em meio a um período eferves- ambos, que circularam por países da Europa
cente na produção de Oiticica. Foi neste ano e América.
que o artista passou a freqüentar os ensaios Os trabalhos de Lygia Clark e Hélio
da escola de samba Mangueira e, conseqüen- Oiticica passaram a estarem inseridos em
temente, todo o universo do morro. O contato grandes mostras nacionais e internacionais, a
com esta nova maneira de organização soci- discussão acerca do sucesso destas exposi-
al, cultural e arquitetônica, passou a influenciá- ções no que diz respeito à preservação da atu-
lo, fazendo com que desenvolvesse trabalhos alidade da obra e do pensamento destes artis-
que estabeleciam a participação e interação tas, teve início. Para Guy Brett, qualquer tenta-
total entre espectador e obra, como o Paran- tiva póstuma de reunir e apresentar as obras
golé e a Manifestação Ambiental Tropicália que de ambos estaria fadada a trazer à tona essa
são fortemente inspirados na arquitetura frag- questão, a qual, para Ricardo Fabbrini, “não
mentária das favelas. se resume apenas em verificar qual é a estra-
As Manifestações Ambientais, como a tégia museológica mais adequada de exposi-
Experiência Whitechappel expandiram as ori- ção destes trabalhos, trata-se de uma ques-
gens arquiteturais do Parangolé e trouxeram tão ética, política, cultural e ideológica”9. Quan-
um novo conceito espacial aos trabalhos de do discutimos a incorporação, por parte de Ins-
Oiticica, pois consistiam em ambientes em que tituições, dos trabalhos de Clark e Oiticica, dis-
o público podia caminhar, se movimentar e cutimos a incorporação do que se propunha
escolher a maneira de nele permanecer. ser transitório e que negava a perenidade
Oiticica propunha uma experiência do espa- exigida pelos museus, entretanto, estes traba-
ço, criava espaços incomuns, labirínticos “em lhos que à primeira vista estariam negando sua
vez de criar um espaço para determinado pro- própria essência ao serem museologizados,
grama de usos e funções, propõe o espaço, não seriam também, “como toda e qualquer
para, em seguida, deixar que sejam descober- obra de arte, documentos de civilização? Afi-
tos os usos e funções possíveis.” 8 nal, não deveria também o museu de arte con-
temporânea estar envolvido nesse progra-
Durante muitos anos após o término do
ma?” 10
Movimento Neoconcreto, as propostas artísti-

162
instituto de artes

Apesar de termos enfrentado a passa- Esta retrospectiva de 1992-1994, que


gem da arte moderna para a contemporânea, percorreu países europeus e os Estados Uni-
a Instituição que a abriga não sofreu muitas dos e que não foi mostrada no Brasil, suscitou
mudanças, apesar de algumas tentativas, discussões acerca de sua montagem, mas foi
quanto à sua adequação para exibir a produ- inegavelmente, a primeira e até agora única
ção artística contemporânea. De acordo com grande mostra internacional póstuma do lega-
Cristina Freire, o museu de arte contemporâ- do do artista. A exposição apresentou um com-
nea não deve se limitar a uma função passiva, pleto levantamento dos trabalhos de Oiticica,
com salas de exposições abertas apenas à incluindo trabalhos originais, reconstruções de
contemplação de poucos privilegiados, deve instalações e montando pela primeira vez a
preservar a obra exposta dando fundamental- instalação Cosmococas (1973), que nunca
mente, inteligibilidade à ela. havia sido executada pelo artista em vida.
O que verificamos atualmente é que os A mostra internacional Caminhando –
museus se adequaram ao papel econômico Retrospectiva Lygia Clark, de 1998-1999, que
ao qual foi alçada a cultura contemporânea e foi exibida no Brasil no fim de 1998 e início de
não procuraram se modificar para abrigar as 1999 no Paço das Artes, no Rio de Janeiro, foi
novas obras, daí o descompasso que encon- a maior e até agora, a única grande mostra
tramos atualmente nas inúmeras mostras re- internacional do legado da artista. Sua monta-
trospectivas de Lygia Clark e Hélio Oiticica. gem obedeceu a uma ordem cronológica, da
Como podemos encarar o fato de que os pro- produção da artista situada entre os anos 1960
jetos dos dois artistas, de embaralhamento e os anos 1980, foram expostos os Bichos e
entre arte e vida (ou de estetização do real) Objetos Relacionais. Para Paulo Herkenhoff,
acabaram por integrar as reservas técnicas esta exposição foi um marco para o conheci-
deste tipo de museus? E também como en- mento e a divulgação internacional da obra de
carar o fato de que acabaram sendo expos- Lygia Clark.
tos, em várias mostras, da forma mais tradici- Paulo Herkenhoff foi o curador da ex-
onal possível? posição retrospectiva Lygia Clark de 1999, re-
O que encontramos frequentemente alizada no Museu de Arte Moderna – MAM de
são dois modelos de exposições: em um mo- São Paulo, que contou com cerca de 110 obras,
delo tradicional, os Bichos, Trepantes, Obje- entre pinturas, objetos, obras participativas e
tos Relacionais, Máscaras Sensoriais, etc. de a montagem inédita da obra Maquete para In-
Lygia e Parangolés, Capas, Tendas, Bólides terior n. 1, idealizada por Clark em 1955. No
etc de Oiticica, são dispostos em vitrines e, entanto, “nessa exposição os Bichos ficaram
portanto, separados e isolados, longe da parti- abandonados numa bancada lateral. Eles es-
cipação do público, transformado novamente tavam enfileirados e, sendo obras originais, não
em simples espectadores, como aconteceu na podiam ser tocados: apenas um, o mais tra-
mostra Documenta X de Kassel de 1997, sob vesso, tendo saltado ao chão, saudava os
curadoria de Catherine David. Já em um se- visitantes.”11 Inúmeras réplicas se misturavam
gundo modelo, encontramos tentativas de re- aos Bichos e a outras peças originais, entre-
criar, dentro do espaço da exposição, a força tanto, o público só podia manipular tais répli-
mobilizadora das ações de Lygia Clark e Hélio cas sob o olhar dos educadores do MAM, o
Oiticica de forma “artificial”, como aconteceu que estabelecia uma situação curiosa para o
na exposição retrospectiva de Oiticica de 1992 visitante.
– 1994.

163
cadernos da pós-graduação

Ainda no contexto nacional, a exposi- a curadoria destinou aos depoimentos foi a


ção Hélio Oiticica: Obra e Estratégia, de 2002, mesma dada ao restante da exposição.
com curadoria de Luciano Figueiredo e reali- Duas grandes questões embasaram a
zada no MAM do Rio de Janeiro, foi uma das curadoria da mostra: como mostrar essa obra
mostras mais completas feitas até hoje no em um espaço museológico e como manter
Brasil acerca da obra do artista. A exposição, acessíveis as ações experimentais de Lygia
na qual “réplicas de Parangolés foram especi- Clark. Na tentativa de responder estas ques-
almente confeccionadas e cuidou-se pela pri- tões impostas por ela mesma, a curadora op-
meira vez em espaço museológico de infor- tou, nesta mostra, por tornar presente a me-
mar o visitante e encorajá-lo a retirar o mória da experiência viva dessas ações expe-
Parangolé de sua posição estática e vestindo- rimentais, por meio dos depoimentos, resul-
o, explorar suas possibilidades” 12 exibiu não tando nesta “exposição-arquivo”.
apenas as obras de Oiticica e suas réplicas,
É impossível reviver o ambiente e a pro-
como também registros de seus projetos nun-
posta da artista dentro de uma instituição, já
ca realizados, anotações do artista e uma sé-
que o tempo e o espaço exigidos por Lygia não
rie de fotografias e informações da época de
são os encontrados quando se visita uma ex-
cada criação de Hélio Oiticica, contextuali-
posição de arte. Os Objetos Relacionais, as
zando sua produção.
Máscaras e Roupas sensoriais e a proposta
A exposição Lygia Clark - Da Obra ao de construção de Caminhando sempre se tor-
Acontecimento – Somos o Molde, A você cabe nam, dentro do museu, registros curiosos de
o Sopro de 2005 - 2006, com curadoria de Suely uma proposta outrora inovadora. O que per-
Rolnik e Corinne Diserens, trouxe ao público cebíamos ao visitar a mostra era uma tentati-
uma nova maneira de expor a obra de Clark. va, por parte da curadoria, de comunicar e ex-
Diferente das duas formas já utilizadas anteri- plicar da forma mais detalhada possível a obra
ormente em mostras retrospectivas de Lygia de Lygia Clark.
Clark. Suely Rolnik afirmou que a partir da
Quando tratamos da exposição dos tra-
mostra retrospectiva entre 1997 e1999, Lygia
balhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica, deve-se
Clark passou a ser figura constante em gran-
levar em consideração a relação do público
des exposições nacionais e internacionais
com os objetos expostos. Em muitas mostras,
mas, mesmo tamanha circulação de suas
o impedimento de que o público possa mani-
obras, não solucionou o problema do acesso
pular as obras e a falta de explicações acerca
insuficiente a sua produção. Para a curadora,
das propostas dos artistas transformava os
a alternativa encontrada para sanar este pro-
trabalhos de Clark e Oiticica em grandes obje-
blema foi a realização de 56 entrevistas com
tos curiosos e paralisados. Com a intenção de
pessoas que foram ligadas à Lygia Clark, que
facilitar a compreensão dos trabalhos de Lygia
estudaram seu trabalho e o utilizam como re-
Clark e Hélio Oiticica quando expostos, pode-
ferência. Suely Rolnik afirmou ainda, que todo
se usar recursos de apoio ao visitante, como
o projeto da exposição nasceu das entrevis-
dados biográficos sobre os artistas, dados téc-
tas e da necessidade de realizar uma mostra
nicos sobre a obra, textos críticos sobre a ex-
que tivesse a exibição dos depoimentos como
posição e sobre toda, ou parte da produção do
algo diferenciador e que pudesse, ao menos
artista, documentos da época da criação, como
em parte, sanar o problema do acesso insufi-
projetos e anotações pessoais, filmagens da
ciente à produção de Clark. A importância que
época, entrevistas com pessoas que tenham

164
instituto de artes

tido contato com os artistas, réplicas dos tra- A mostra Cosmococas – Program in
balhos que exigem participação e confecção Progress com curadoria de César Oiticica Fi-
de catálogos. Ao lado destes recursos de lho que aconteceu na Pinacoteca do Estado
apoio, o desenho museográfico ganha papel de São Paulo em 2003 reflete este desafio.
estratégico e de destaque no processo de Para Oiticica, em Cosmococas “não se trata
construção da comunicação a ser estabelecida mais de impor um acervo de idéias e estrutu-
entre os trabalhos mostrados e o visitante da ras acabadas ao espectador, mas de procu-
mostra. rar pela descentralização da “arte”, pelo des-
Ao nosso ver, mais importante do que locamento do que se designa como arte, do
tocar os objetos originais ou as réplicas, é que campo intelectual racional para a proposição
o público entenda as propostas de Lygia Clark criativa vivencial.”14 Na mostra foram expos-
e Hélio Oiticica, que visava a uma intensa apro- tos também os cadernos de anotações de
ximação entre arte e vida. A compreensão dos Oiticica com os projetos para a execução das
trabalhos dos dois artistas pode acontecer cosmococas. Como na exposição Hélio
quando se possibilita que o público assista a Oiticica Obra e Estratégia, de 2002, a exposi-
registros filmados da década de sessenta, tor- ção que ocupou as salas da Pinacoteca tam-
nando-o consciente de que se trata de traba- bém se preocupou em trazer ao público os
lhos que tiveram grande importância na época documentos, anotações, reflexões e registros
em que foram criados, e que atualmente exer- deixados por Oiticica. No caso da exposição
cem grande influência na produção artística Lygia Clark Da Obra ao Acontecimento (2005-
contemporânea, principalmente a nacional. 2006), as curadoras Suely Rolnik e Corinne
Diserens optaram por exibir 33 das 56 entre-
Acreditamos que não existe um mode-
vistas realizadas por Rolnik, pois os depoimen-
lo expositivo único que possa ser utilizado em
tos das experiências vividas são o registro das
exposições de Lygia Clark e Hélio Oiticica, já
atividades terapêuticas desenvolvidas por
que há inúmeras diferenças entre os trabalhos
Clark, e foram necessárias para o aprofunda-
de ambos. Hélio Oiticica e Lygia Clark fugiram
mento do entendimento do legado da artista.
das instituições e galerias e negaram se inse-
Será que no caso de uma exposição do lega-
rir no mercado das artes, cada um a seu modo.
do de Hélio Oiticica este registro da experiên-
Enquanto Clark rompeu com as artes plásti-
cia vivida se faz tão necessário como no caso
cas e se fechou em um consultório trabalhan-
de Clark para a compreensão de sua obra?
do com terapia, Oiticica continuou refletindo
Em relação a algumas propostas de Oiticica o
acerca de sua produção e nunca abandonou
registro se faz necessário, por exemplo, quan-
seu trabalho artístico e sua intensa pesquisa
do tratamos das manifestações coletivas que
plástica. Em linhas gerais, Oiticica refletia de
o artista propunha nas ruas e locais públicos
que maneira sua crítica às instituições seria
de cidades como Rio de Janeiro; mas quando
mais eficaz, talvez levando sua arte para a rua?
nos referimos a outros trabalhos como os seus
Fugindo do museu para a praça? Já na déca-
Penetráveis, o registro não é tão importante
da de 1960, com sua exposição Experiência
quanto a própria obra. No caso de Hélio Oiticica,
Whitechapell, o artista estava dentro do espa-
registros documentais de suas criações, seus
ço convencional intentando sua transforma-
projetos, seus rascunhos e textos reflexivos
ção, como observou Guy Brett, a obra de
talvez sejam mas importantes para ampla com-
Oiticica está intimamente ligada ao “contínuo
preensão de seu legado artístico do que depo-
desafio à instituição de arte como museu de
imentos de quem vestiu um parangolé.
coisas mortas.”13

165
cadernos da pós-graduação

Esta junção entre “experimentalismo” e 3. BRETT, 1997, p. 283.

“museu”, gera discussões acerca da revitali- 4. O’DOHERTY, 2002, pp. 3-10.


zação de obras de arte como as de Clark e 5. OITICICA, 1986, p.111.
Oiticica e as inúmeras incompatibilidades en- 6. BRITO, 2002, p. 84.
tre estas obras e a estrutura museológica 7. Idem, p. 196.
moderna que encontramos em voga ainda
8. BEREINSTEIN, 2003, p. 83.
hoje. A grande questão que permeia as expo-
9. Observação feita por Ricardo Fabbrini, no exame de qualifi-
sições retrospectivas póstumas de Lygia Clark cação da Dissertação de Mestrado da autora MORAES, Már-
e Hélio Oiticica é se a instituição de arte pode cia, em 2005.
se adaptar às demandas e estruturas da arte 10. FREIRE, 1999, p. 41.
dos dois artistas ou são suas obras que de- 11. Idem, s/p.
vem adaptar-se à instituição? Já em 1972, 12. FIGUEIREDO, 2002, p. 15.
Hélio Oiticica escreveu o texto Experimentar
13. BRETT, 2005, p. 79.
o Experimental, no qual o artista defendeu a
14. Hélio Oiticica apud Fábio Cypriano. Mostra visita
impossibilidade de convívio entre o experimen- radicalidade de “Cosmococas”. Ilustrada. Folha de São Pau-
tal e todos os “re” - representar, revitalizar, lo, 26 de abril de 2003.
reviver, recriar, mas admitiu a retomada, o re-
torno: “não confundir reviver com retomar (...)
o experimental pode retomar, nunca reviver (...) Referências Bibliográficas
os fios soltos do experimental são energias
que brotam para um número aberto de possi- ADES, Daum (org). Arte na América Latina. São Paulo: Ed.
Cosac e Naify, 1997.
bilidades”. Atualmente, experimental e museu
podem viver juntos se o museu transformar- AMARAL, Aracy (Org.). Catálogo. Projeto construtivo brasi-
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Notas
BRETT, Guy. (org.: Kátia Maciel). Brasil Experimental arte/vida:
proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Ed. Contra Capa,
1. As mudanças desencadeadas pelo fim do paradigma aca-
2005.
dêmico refletiram tanto na maneira dos artistas se expres-
sarem como na forma com que passaram a ser expostas BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto
suas novas criações. O modelo de museu moderno, construtivo brasileiro. São Paulo: Ed. Cosac e Naify, 2002
convencionado como “Cubo Branco” foi iniciado pelo MOMA (2a. edição).
- Museu de Arte Moderna de Nova York, para abrigar não
apenas pinturas e esculturas modernas mas também expo- CLARK, Lygia. Catálogo. Lygia Clark, Texto: Ferreira Gullar,
sições “não-históricas”. A primeira exposição no MOMA a Mário Pedrosa, Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.
utilizar tal modelo foi “Arte e nosso tempo”, de 1939. ___________. Catálogo Lygia Clark. Introdução: Manuel J.
2. Arthur Barrio nasceu em Portugal, mas reside no Brasil Borja-Villel; texto Guy Brett, Paulo Herkenhoff, Ferreira Gullar.
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166
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167
168
instituto de artes

A Pesquisa Iconológica nas Artes: o legado da Escola de


Warburg

Ana Tagliari
Haroldo Gallo
Resumo:
O presente texto aborda algumas considerações teóricas a respeito da importância de Warburg e
de sua herança na área do estudo imagético, iconográfico e iconológico nas artes e na arquitetura, desta-
cando seus principais teóricos.
Este artigo é parte do texto realizado para a disciplina Teoria das Artes: Aby Warburg e a Historiografia
da Arte Contemporânea, oferecida pela Profa. Dra. Claudia Valladão de Mattos, em 2006, junto ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes - UNICAMP.

Considerado por muitos como o “pai da te obra intitulada Significado nas Artes Visu-
iconologia”, Aby Warburg (1866-1929), nasci- ais, e Ernst Gombrich (1909-2001) que se tor-
do na Alemanha, desde o início de sua vida nou diretor deste Instituto a partir de 1959, e
acadêmica, não se contentava com as inter- escreveu a Biografia Intelectual de Warburg1.
pretações e os estudos textuais sobre arte re- Segundo Giulio Carlo Argan2, apesar do
alizados até então. Sua intenção era de des- método Iconológico ter sido instaurado por
cobrir o significado próprio das imagens e as Warburg, no campo das artes visuais foi de-
informações que elas carregavam, portanto senvolvido por Panofsky. Este método de in-
sua linha de pesquisa era o do estudo vestigação iconológica escrito por Panofsky,
imagético. Após sua morte, em 1929, seu fiel que também estabeleceu um programa de
assistente Fritz Saxl, deu continuidade as pes- iconografia para a Escola de Warburg, analisa
quisas dentro do Instituto Warburg. conteúdos e significados das imagens. Base-
A Biblioteca de Warburg, fundada no fi- ado no sistema de Warburg e também em
nal do século XIX em Hamburgo na Alemanha, Ernst Cassirer (1874-1945), Panofsky procu-
é uma referência no estudo das artes, especi- ra revelar os significados das formas artísti-
almente no método iconológico e na pesquisa cas e seus sistemas de representação. Ele
imagética. Muitos estudiosos e pesquisadores relaciona mecanismos de percepção visual,
passaram por essa Biblioteca, que mais tarde representação espacial, conceitos culturais e
se tornou um Instituto, anexado a Universida- significados de cada período. Por outro lado,
de de Londres em novembro de 1944. Estes segundo o filósofo francês George Didi-
estudiosos formam a chamada Escola de Huberman3 (que recentemente realizou uma
Warburg ou Círculo de Warburg, cujos repre- interpretação filosófica da obra de Warburg) o
sentantes que mais se destacaram foram método Iconológico foi constituído e desenvol-
Erwin Panofsky (1892-1968), com a importan- vido por Erwin Panofsky, enquanto que

169
cadernos da pós-graduação

Warburg havia apenas instituído o método de famosa frase resume esta idéia: “Deus se es-
análise imagética, dando a base para os estu- conde nos detalhes”.6
dos de Panofsky.
O sucesso obtido por Warburg durante
suas pesquisas deveu-se especialmente gra-
ças a época em que viveu, uma vez que em
grande parte de suas pesquisas, Warburg se
baseava na manipulação de fotografias. Assim,
os produtos químicos descobertos no século
XIX, foram essenciais para que a fotografia se
fixasse em seu suporte físico.
Em suas pesquisas, Warburg se ocu-
pa essencialmente do conteúdo que a imagem
carrega, em detrimento da análise apenas de Fig. 1: Aby Warburg. Fonte: Fig. 2: Erwin Panofsky. Fonte:
www.anisn.it www.panofsky.com
sua forma. Sua intenção era de estudar a an-
tropologia e epistemologia da imagem, ou seja,
De 1924 a 1929, num projeto radical e
delinear motivos, padrões e formas que sobre-
inovador, Warburg realiza o Atlas Mnemosyne,
viveram ao tempo e seu conteúdo simbólico,
uma história da arte centrada e contada ape-
implícito na informação imagética, o pathos-
nas por imagens e sem o recurso textual.
formel. Por outro lado, o filósofo alemão Ernst
Mnemosyne é formada por 2000 mil fotografi-
Cassirer, importante pesquisador dos estudos
as extraídas da imensa coleção reunida por
iconológicos e imagéticos, estudava a heran-
Warburg, dispostas em 63 grandes suportes
ça dos símbolos contida nas imagens. Segun-
de telas negras esticadas sobre painéis de
do Carlo Ginzburg4, em A Filosofia das For-
1,50m por 2,00m. O espaço ocupado foi a sala
mas Simbólicas, realizada com base no acer-
de leitura da Kulturwissenschaftliche Bibliothek
vo iconológico da Biblioteca de Warburg,
Warburg – um espaço elíptico, que sugere um
Cassirer estabelece uma base filosófica em
saber cíclico e sem fim.
seus estudos imagéticos que, mais tarde, se-
rão a base dos estudos de Panofsky. Cassirer
exercia o papel de mentor filosófico dentro da
Escola de Warburg, como observou o Profes-
sor Marcos Seligmann Silva5.
Warburg acreditava que a imagem car-
regava a herança de uma memória coletiva e
que, a cada momento da história, essas ima-
gens sofriam algum tipo de transformação,
numa relação forma e época de conteúdo psí-
quico cultural baseado no sintoma de Freud e
que alguns desses motivos permaneciam nes- Fig. 3: Ernst Gombrich. Fig. 4: Fritz Saxl. Fonte: www2.
tas imagens. Desta forma podemos entender Fonte: www.anisn.it sas.ac.uk
a razão de Warburg em se ater aos mínimos
detalhes das imagens, na busca destas for- Atlas Mnemosyne foi iniciado por
mas constantes muitas vezes ocultas. Sua Warburg em 1924, desde o regresso da clíni-

170
instituto de artes

ca psiquiátrica de Kreuzlingen e desenvolvido Com a possibilidade de fundir várias


até sua morte em 1929. Segundo Didi- imagens num só painel, Warburg consegue
Huberman, Mnemosyne apresenta toda a ri- extrair do conjunto, comparações e diálogos
queza do trabalho cientifico warbuguiano, sob entre as imagens jamais imaginados. Sua in-
a forma de uma “unidade”, vista de uma pleni- tenção era de criar uma nova teoria de arte
tude iconográfica. Mnemosyne comporta as- baseada neste tipo de análise imagética da
sim todos os traços da linguagem privada e arte, se opondo a teoria de arte da época.
da procura autobiográfica do autor. Um das Como observou o filósofo Didi-Huber-
questões principais que Didi-Huberman expõe man, o pensamento de Warburg, especialmen-
em seu livro é a da sobrevivência ou Nachleben te em Mnemosyne, era rizomático, no sentido
, que segundo Giorgio Agamben7: “O termo que Gilles Deleuze8 o descreveu, sendo o prin-
alemão Nachleben não significa propriamente cípio da conexão e de heterogenei-dade um
“renascimento”, como foi muitas vezes tradu- dos principais que o fundamentam. Segundo
zido, nem “sobrevivência”. Ele implica a idéia Deleuze9, um rizoma não cessaria de conectar
daquela continuidade da herança pagã que, cadeias, é um mapa aberto com várias cone-
para Warburg, era essencial”. Didi-Huberman xões, como no funcionamento das sinapses,
utiliza esta palavra para expressar a idéia de assim como em Mnemosyne Warburg havia
“sobrevivência”. idealizado a fusão e a metamorfose das ima-
gens.
Até então, na Renascença Vasari havia
relatado a história da arte por meio de narrati-
vas da vida dos artistas baseado numa teoria
evolucionista de conquistas técnicas e repre-
sentativas gradativas de cada período (pers-
pectiva, claro/escuro, anatomia...). Winckel-
mann, considerado o pai da história da arte,
publica seu primeiro texto sobre a história da
arte baseado numa teoria evolucionista, em
1764. A idéia de Warburg era inovadora e pe-
culiar, uma história da arte muda e, ao contrá-
Fig. 5: Salão elíptico da Biblioteca Warburg.
Fonte: www2.sas.ac.uk rio das teorias anteriores, baseada numa teo-
ria cíclica da história da arte, apenas com o
poder de informação e metamorfose entre as
várias imagens das obras de arte.
Podemos afirmar que a história da arte
narrada pelos teóricos que antecederam
Warburg baseava-se numa teoria semelhante
ao sistema arborescente de Deleuze, que par-
te de um centro hierárquico que se opõe ao
pensamento rizomático que se assemelha ao
de Warburg.

Fig. 6: Arquivos da Biblioteca Warburg.


Fonte: www2.sas.ac.uk

171
cadernos da pós-graduação

A Escola de Warburg e a Escola de Viena Principais características da Escola de


Warburg e Panofsky
A linha de pesquisa imagética e icono-
lógica da Escola de Warburg tinha uma gran- É importante ressaltar que iconologia é
de dualidade com a linha da Escola de Viena, diferente de iconografia, sendo, no entanto, a
pois enquanto a primeira se preocupava em imagem o centro de estudo de ambas, e tem
estudar as formas e as imagens consideran- seu significado próprio.13
do-se seu conteúdo, na Escola de Viena o con- Considerando Panofsky um dos mais
teúdo era ignorado. Nas pesquisas de Alois importantes legatários da Escola de Warburg,
Riegl (1858-1905), um dos mais importantes destacamos algumas considerações sobre
teóricos representantes da Teoria Formalista, sua Teoria. Segundo o método de análise es-
podemos notar a exclusão do conteúdo na aná- tabelecido por Panofsky, há 3 níveis de signifi-
lise da imagem da forma. Nas pesquisas de cados nas imagens, sendo eles:
Heinrich Wolfflin (1864-1945), outro importan-
te herdeiro da Escola de Viena, há a clara 1. Tema Primário ou Natural: Neste momento
separação entre a forma e conteúdo. Em Con- há uma descrição pré-iconográfica, ou seja,
ceitos Fundamentais da História da Arte , uma análise das formas puras, volumes,
Wolfflin cria os conhecidos “esquemas”10 da cores e linhas com significados primários;
chamada Pura-Visualidade11, para explicar as 2. Tema Secundário ou Convencional: Neste
transições entre períodos. Trata-se de uma momento é estabelecida uma relação ou
Teoria Evolucionista, diferente da linha de pen- associação de motivos, combinações e
samento da Escola de Warburg. composições artísticas com conceitos e te-
Numa análise de uma obra de arquite- mas pré-estabelecidos. Para Panofsky há
tura, baseada na Teoria Formalista de Riegl, uma descrição iconográfica.
sua forma interna deveria corresponder exa- 3. Significado Intrínseco, constituindo o mun-
tamente ao que se vê externamente. Portanto do dos valores simbólicos: Nesta fase é ne-
a forma externa deveria ser perfeita para que
cessário que haja uma maior familiaridade
o espaço interno também o fosse.
com conceitos ou temas específicos, ba-
Como observou o Professor Jens seados em várias fontes e no repertório, no
Baumgarten12, a Escola de Viena não chegou objetivo de se estabelecer comparações e
a desenvolver profundamente um programa interpretações do conteúdo que a imagem
real de pesquisa iconológica, devido a dispu- carrega. Sendo assim, há uma interpreta-
tas teóricas entre os integrantes. Hans ção iconológica.
Sedlmayer tentou introduzir o programa para
a escola de Viena, com estudos sobre o con- Segundo Panofsky, a pré-iconografia se
teúdo, mas suas pesquisas foram interrompi- revela muitas vezes difícil de ser exata, no caso
das com a II Guerra Mundial. Sua idéia era de da análise de uma obra de arte, aplicando-se
desenvolver uma análise da forma relacionan- apenas nossa experiência prática de descri-
do com o contexto social e político, uma ção e familiaridade com temas específicos,
iconologia política. devido a intenção premeditada do artista no ato
de conceber sua obra. Assim como, para uma

172
instituto de artes

correta análise iconográfica de uma pintura 4. Parte da Teoria de Kant: saber-conquista,


Renascentista, pressupões-se um conheci- testemunho da fecundidade de sua obra, a
mento prévio de histórias bíblicas. perpétua consciência de si, a grande quan-
Desta maneira, podemos concluir que, tidade de resultados obtidos. Valores intan-
baseado no método de Panofsky, para se rea- gíveis da arte, poder da imaginação e auto-
lizar uma boa interpretação iconológica, primei- nomia das linguagens e das formas artísti-
ramente deve se fazer uma correta análise cas.
iconográfica. No entanto, as três operações 5. Separação entre forma e conteúdo, neces-
fundem-se de maneira indivisível no processo sidade de discernimento iconográfico.
de análise de uma obra.

A pesquisa aplicada à análise


Principais características entre a linha de arquitetônica
pensamento de Warburg e Panofsky:
No campo da arquitetura o método
iconológico analisa mutações e repetições, nas
WARBURG
várias maneiras de se associar as imagens
1. Entender a vida da imagem, seu paradoxo: na busca de novos significados. Alguns auto-
sobrevida, memória das imagens. res são referências devido ao método analíti-
co adotado por eles no estudo das obras
2. Compreender o valor expressivo das ima-
arquitetônicas. Dentre eles podemos citar os
gens e delas mesmas suas significações.
mais importantes como Rudolf Wittkover, Colin
3. Revelar dentro da unidade aparente dos sím- Rowe e Banister Fletcher.
bolos, a ordem ou caos estrutural dos sin- Banister Fletcher desenvolveu uma te-
tomas. oria na qual a história da arquitetura é narrada
4. Parte da Teoria de Nietzsche: saber-tragé- por meio de um método comparativo, com
dia, testemunho da não-exatidão de sua desenhos e imagens de motivos, tipologias e
obra, a extraordinária dor de seu pensamen- estilos arquitetônicos, podendo ser compara-
to, o lugar que é ocupado pelo não-saber e do ao método instituído por Warburg em
pela empatia, a grande quantidade de ques- Mnemosyne. Fletcher, no entanto, baseia-se
tões sem respostas que ele nos endereça. numa teoria evolu-
cionista na qual
5. Decompor e discernir forma e conteúdo,
no-ta-se um pro-
para trabalhar à partir destas intrinca-ções:
gresso na compa-
dos indiscerníveis iconográficos.
ração entre épo-
cas e estilos pre-
PANOFSKY cedentes. Sua te-
oria chega a ser
1. Definir a significação das imagens com au-
resumida em uma
xilio de desenhos e textos.
árvore, onde na
2. Interpretar conteúdos e temas figurativos ao base encontra-se
lado de sua expressão.
Fig. 7: Árvore baseada
3. Reduzir os sintomas particulares em sím- numa teoria evolucionista
bolos numa unidade da função simbólica. da Arquitetura.
Fonte: FLETCHER, 1950.

173
cadernos da pós-graduação

a arquitetura egípcia e na região mais alta os A criação de itens para a análise de uma
arranha-céus americanos. Assim sendo, no- obra arquitetônica por meio de desenho nos
tamos que a teoria de Fletcher, que foi publi- revela e destaca informações ocultas ao pro-
cada em 1896, nos remete ao sistema arbo- jeto que foram geradas pelo arquiteto a partir
rescente de Deleuze. deste mesmo instrumento. Desta maneira a
Rudolf Wittkower (1906-1971), foi quem análise iconográfica se mostra indispensável
instaurou e desenvolveu o método de interpre- para uma boa compreensão do conjunto.
tação iconológica na análise de edifícios. Em Os diagramas resultantes das análises
sua análise iconológica, Wittkower relaciona a facilitam a extração e separação de informa-
obra de arquitetura com o contexto cultural da ções discretas ou complexas e permitem o
época na busca de significados e interpreta- pesquisador identificar e explicar visualmente
ções das formas dos edifícios. Portanto a aná- características específicas do edifício seja de
lise de Wittkover nos revela o significado sim- parte ou de seu todo.
bólico e cultural de uma época que estão im- A análise das obras pelo método com-
plícitas nas formas arquitetônicas. parativo iconográfico nos auxilia na medida em
Colin Rowe (1920-) obteve uma bolsa que podemos estabelecer relações entre dife-
no Instituto Warburg, onde estudou e desen- rentes obras e revelar possíveis semelhanças
volveu uma pesquisa como colaborador de na maneira em que o arquiteto solucionou cer-
Wittkower aplicando o método de pesquisa tas questões, sejam elas projetuais ou con-
iconológica no campo da arquitetura. Ele de- ceituais. Comparar diagramas de edifício dife-
senvolve uma pesquisa analítica com méto- rentes num mesmo desenho é uma das quali-
dos gráficos baseados em comparações en- dades que faz a análise gráfica ser um válido
tre cidades, edifícios e culturas. Rowe realiza e eficiente meio de pesquisa.
comparações entre obras e desenhos do ar-
quiteto moderno Le Corbusier e do renascen-
Considerações Finais
tista Andrea Palladio, por meio de seu método
analítico gráfico. Desta maneira o autor discu- O pensamento de Warburg contribuiu
te o vocabulário da arquitetura do século XIX, para a formação de pesquisadores e de teóri-
suas origens filosóficas, suas manifestações cos na área da pesquisa iconográfica. Nas ar-
e seus caminhos por meio de esquemas e di- tes visuais Panofsky foi o que mais se desta-
agramas, estabelecendo relações com outras cou como propagador das idéias de Warburg.
culturas. No campo da análise de obras de ar-
quitetura, teóricos que estudaram na Escola
Na Arquitetura de Warburg desenvolveram suas teorias ba-
seadas no pensamento warbuguiano, multidis-
O uso da pesquisa iconográfica para ciplinar e pós-estruturalista, enquanto teóricos
análise de edifícios de arquitetura nos permite do século XIX ainda estavam presos a uma
revelar valores intrínsecos à imagem e ao de- teoria evolucionista, hoje suplantada.
senho, os quais não seriam possíveis apenas
Warburg era um pesquisador a frente
com o recurso textual. Por meio da análise
de seu tempo, e sua importância, além de suas
gráfica podemos identificar e sistematizar o
pesquisas, reside no fato dele ter criado con-
partido arquitetônico, comparar princípios utili-
dições para que outros teóricos pudessem
zados em diferentes soluções na ordenação
desenvolver suas investigações.
de formas no espaço.

174
instituto de artes

A teoria da arte que Warburg desenvol- 12. Palestra “Warburg e a Escola de Viena” proferida pelo
Professor Dr. Jens Baumgarten no dia 20/04/06. MATTOS,
veu não obteve muito sucesso, e, portanto a Claudia Valladão de. Notas de aula Teoria das Artes - Aby
História da Arte que conhecemos hoje, foi es- Warburg e a Historiografia da Arte Contemporânea. Campi-
crita baseada em teorias estruturalistas. As- nas: UNICAMP, 2006.

sim, como afirmou Thomas Kaufmann14, se a 13. FERREIRA, 2004. p. 1064. Iconologia: Explicação de ima-
gens e seus atributos. Iconografia: Arte de representar por
teoria de Warburg tivesse sido aplicada, tal- meio de imagem.
vez toda a história da arte tivesse sido conta-
14. KAUFMANN, 2004.
da de forma diferente.

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5. Palestra “Aby Warburg e Walter Benjamin” proferida pelo
Professor Dr. Marcos Seligmann Silva no dia 18/05/06. FLETCHER, Banister. A History of Architecture. On the
MATTOS, Claudia Valladão de. Notas de aula Teoria das comparative method. London: B.T.Batsford Ltd., 1950.
Artes - Aby Warburg e a Historiografia da Arte Contempo-
GOMBRICH, Ernst Hans. Aby Warburg. An Intelectual
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Biography. Londres: University of London Press, 1977.
6. FERRETTI, 1989, p. xii.
KAUFMANN, Thomas. Towards a Geography of Art. Chicago e
7. GUERRERO, Antonio. Aby Warburg e os arquivos da me- Londres: Chicago University Press, 2004.
mória . Disponível em: http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/
MATTOS, Claudia Valladão de. Notas de aula - Teoria das Ar-
resources/ aguerreiro–pwarburg/nachleben.htm. Acesso em
tes - Aby Warburg e a Historiografia da Arte Contemporâ-
22 de março de 2006.
nea. Campinas: UNICAMP, 1º semestre 2006.
8. DELEUZE, 1995, p. 11.
MONTANER, Josep Maria. Arquitectura y Crítica. Barcelona:
9. Idem, p. 15. Editorial Gustavo Gili, S.A., 1999.

10. WÖLFFLIN, 1996. Do linear ao pictórico, do plano à profun- PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo:
didade, da forma fechada à forma aberta, da pluralidade Editora Perspectiva, 1991.
para a unidade, da clareza absoluta à relativa das formas na
ROWE, Colin. The Mathematics of the Ideal Villa and Other
arte e arquitetura.
Essays. London, England: The MIT Press. 1997.
11. ARGAN, op. cit., p. 91.
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História
da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

175
176
instituto de artes

O Arts and Crafts e a Arquitetura Orgânica de Frank Lloyd


Wright

Ana Tagliari
Haroldo Gallo

Resumo:
O ideal socialista no qual se baseava o movimento de vanguarda artística inglês do século XIX, o
Arts and Crafts liderado por William Morris, seria mais tarde concretizado na cultura capitalista norte-
americana pelo arquiteto Frank Lloyd Wright. Desta maneira pontuamos os conceitos mais importantes,
bem como semelhanças e diferenças, estabelecendo um paralelo entre o movimento inglês e a arquitetura
residencial orgânica realizada por Wright.1

Frank Lloyd Wright (1867-1959), impor- Henry H. Richardson e Louis Sullivan, foram
tante arquiteto norte-americano do século XX, os pioneiros de uma arquitetura que seria de-
considerado um dos grandes mestres do mo- senvolvida por Wright no século XX. A arquite-
dernismo, é conhecido pela arquitetura orgâ- tura orgânica desenvolvida por Wright também
nica que desenvolveu, principalmente na área recebeu influência do poeta da democracia, o
residencial. Alguns autores atribuem sua im- norte-americano Walt Whitman, da arte e ar-
portância ao fato de Wright ser um dos primei- quitetura japonesas e de movimentos de van-
ros arquitetos a desenvolver uma arquitetura guarda, entre eles o movimento inglês Arts and
“genuinamente norte-americana”, se compa- Crafts, liderado por William Morris (1834-1896).
rarmos com as obras e estilos que o precede-
ram, em que os americanos recebiam refe-
O movimento inglês Arts and Crafts
rências externas. Wright, ao contrário, passa
a referenciar a produção externa e sua obra A base da estética moral do Arts and
foi publicada por importantes núcleos de reno- Crafts foi criada pelo arquiteto e teórico A.W.N.
vação, como a publicação alemã Wasmuth. Pugin (1812-1852), que em seus livros deixou
A arquitetura orgânica, segundo Wright,2 a herança que deu origem ao movimento.
não pertence a nenhum estilo. É uma arquite- Pugin queria reunificar o papel do artista e ar-
tura concebida de acordo com o local especí- tesão como acontecia na Idade Média. Defen-
fico e com as necessidades individuais de seus sor dos princípios da arte gótica, assim como
habitantes, uma arquitetura “para o homem”. seu contemporâneo Eugène Viollet-le-Duc,
Elimina elementos desnecessários, ressaltan- Pugin escreveu as três regras básicas que
do as propriedades naturais dos materiais, deveriam ser seguidas pela nova arquitetura:
suas cores e texturas. 1- Honestidade na estrutura e no uso e aplica-
Arquitetos do centro-oeste americano ção dos materiais; 2- Originalidade no projeto,
que atuaram na 2º metade do século XIX, como portanto sem imitações estilísticas; 3-Uso de

177
cadernos da pós-graduação

materiais regionais preservando suas proprie- até o mobiliário de maneira simples e hones-
dades e suas cores. ta, ou seja, sem revestimentos que escondes-
Inspirado pelas idéias de Pugin, John sem a beleza e coloração inerente ao material
Ruskin (1819-1900) deixou como legado para natural.
o movimento inglês As Pedras de Veneza (sen- A primeira residência considerada per-
do um dos capítulos intitulado The Nature of tencente ao movimento Arts and Crafts foi a
Gothic, de 1853). Os escritos de Ruskin pre- Red House (1859-60), em Upton, Kent, proje-
gavam a natureza como inspiração e instru- tada por Philip Webb (1831-1915) para a famí-
ção para os artistas e arquitetos, influencian- lia de William Morris. A Red House, que tem
do William Morris, o líder do Arts and Crafts. este nome devido à coloração do tijolo usado,
Ruskin era contra a divisão do trabalho na era foi construída com base num método de cons-
capitalista e defendia o trabalho artesanal e uso trução tradicional local e exerceu certa influ-
de materiais naturais.3 ência na arquitetura das próximas décadas.
Alguns artistas do Arts and Crafts luta- Desde o material utilizado até suas formas e
vam por reformas sociais por meio das artes. estrutura, a Red House se diferencia das cons-
Ironicamente o movimento teve sucesso ape- truções feitas na época e local. Webb não de-
nas entre grandes e ricos industriais, os quais sejava que a residência fosse enquadrada em
podiam pagar pelos serviços mais exclusivos nenhum estilo, mas sim nos princípios comuns
destes artistas e arquitetos. É importante res- do movimento, que eram funcionalismo (quan-
saltar que Morris era contra o uso de máqui- do a forma decorre do desempenho da fun-
nas e a industrialização no processo de cons- ção), relação do edifício com a paisagem e
trução das obras de arte. Entretanto, o ideal seleção dos materiais.
anti-industrial encarecia o objeto, visto que este
era feito apenas por uma pessoa do começo
ao final. Nota-se que o movimento não obteve
sucesso total de suas aspirações diante dos
avanços tecnológicos.
Os quatro princípios que norteavam o
movimento do Arts and Crafts eram: unidade
na composição artística, valorização do traba-
lho artesanal, individualismo e regionalismo.
Após a Revolução Industrial houve uma des-
valorização do trabalho do artesão e o objetivo
do Arts and Crafts era de restabelecer este Fig. 1: Philip Webb – Red House, Upton, Kent – 1859-60.
valor, a harmonia entre o trabalho do arquiteto, Fonte: CUMMING, 1991.

designer e artesão, e de realizar objetos de arte


de uso cotidiano para todos. Webb seguiu as recomendações de
Na arquitetura o edifício deveria ser Pugin e de Ruskin, segundo as quais o edifício
construído com materiais locais, desenhados deveria ser a reflexão honesta dos materiais
para se moldar à paisagem e refletir uma cons- utilizados e cuidadosa relação com a paisa-
trução tradicional e vernacular. A unidade da gem. Pugin também alertava para o fato de que
construção deveria ser alcançada por meio da o edifício não deveria ter características co-
união de desenhos e linguagens da estrutura muns a outros projetados pelo mesmo arqui-

178
instituto de artes

teto ou por uma determinada Escola (que ca-


racterizasse um estilo), o que poderia enqua-
drá-lo em normas a serem seguidas, e que
conduziria à fuga dos princípios do regionalis-
mo e individualismo pregados por ele. Segun-
do Pugin, a arquitetura deveria ter variações
de acordo com a região e os usuários.
Charles Rennie Mackintosh (1868-
1928) foi o arquiteto que levou ao extremo a
idéia de unidade na arquitetura Arts and Crafts.
Ele projetava todos os detalhes da residência,
desde frisos em materiais da fachada até ta-
petes, floreiras, luminárias e cinzeiros. Para Fig. 3: Frank Lloyd Wright – Robie House, Chicago – 1906.
Fonte: HILDEBRAND, 1991.
ele o interior da residência tinha que refletir a
maneira de viver de seus habitantes. No en-
tanto, segundo Cumming4, diferentemente dos Século XIX e XX – Arte e Arquitetura nos
outros arquitetos do movimento, Mackintosh Estados Unidos
não dava tanta importância para um bom aca-
bamento na feitura do mobiliário, o que resul- A idéia de que cada país deve possuir
tava num trabalho relativamente mal acabado. sua própria arquitetura que reflita sua história
Os interiores das residências de particular, geografia e clima, era central para o
Mackintosh são muito semelhantes aos de movimento do Arts and Crafts. Nos Estados
Wright, em sua fase inicial, e Nikolaus Unidos, o extenso e diverso território geográfi-
Pevsner5 considera Mackintosh como o equi- co permitiu vários tipos de arquitetura verna-
valente inglês a Wright. cular. Na região de Illinois, as planas pradarias
eram a inspiração, enquanto na Califórnia eram
o mar, o sol e o clima tropical. Como notou
Bruno Zevi6, para entender a verdadeira con-
tribuição da arquitetura norte- americana, de-
vemos considerar seus edifícios residenciais
e não apenas seus famosos arranha-céus,
posição que endossamos, uma vez que essa
reflete a identidade do lugar .
Na região da Califórnia, no período de
1907-09, a arquitetura considerada muito pró-
xima aos princípios do Arts and Crafts foi a dos
Bungalows (Figura 4). O Bungalow era a resi-
dência democraticamente correta, pois seu
custo era baixo e acessível a todos os cida-
dãos. Caracterizada como uma construção
californiana pelas qualidades espaciais, espa-
ços interiores amplos e abertos, um pavimen-
Fig. 2: Mackintosh – Hill House, Helensburgh
1903-04. Fonte: CUMMING, 1991.
to, grandes beirais que protegiam do sol e uso

179
cadernos da pós-graduação

intenso de materiais naturais como a madeira e de criar uma arquitetura que crescesse de
e uso de técnicas tradicionais na construção, acordo com a necessidade de seus usuários.
o Bungalow passava uma imagem de informa- Frank Lloyd Wright (1867-1959) traba-
lidade típica da sociedade californiana, com lhou no escritório de Sullivan por alguns anos
grande mobilidade, transitória, open-mind e e em 1893 abriu seu próprio estúdio em Oak
pronta para mudanças. O Bungalow era uma Park, região do subúrbio de Chicago. Wright
residência feita de madeira, influenciada pelas foi o grande disseminador das idéias de
técnicas tradicionais de construção america- Sullivan na arquitetura residencial, e em seus
nas, o Ballon Frame7. A característica visual livros se refere a ele com muito respeito, cha-
do Bungalow dava uma impressão de leveza mando-o de grande Mestre.
e de fácil montagem.
Como observou Bruno Zevi8, Wright
No centro-oeste dos Estados Unidos, proporcionou uma nova arquitetura residencial
a arquitetura que englobou esse tipo de postu- aos norte-americanos. Comparando-se com
ra foi a orgânica. Em meados do século XIX, o o que vinha sendo feito, Wright adaptou e de-
arquiteto Louis Sullivan (1856-1924), inspira- senvolveu as idéias de arquitetura orgânica de
do na arquitetura funcional de Henry H. Sullivan na concepção de espaços residen-
Richardson e William Le Baron Jenney, reali- ciais. Além de romper com tipologias da arqui-
zou uma arquitetura livre de ornamentos, com tetura que vinha sendo desenvolvida na região,
nova tecnologia e funcional. Sua célebre frase uma de suas grandes inovações esteve rela-
“A Forma segue a função” resume sua postu- cionada aos espaços internos, que se torna-
ra com relação à questão estética. ram mais amplos e sem divisões rígidas, de-
Considerado um arquiteto de vanguar- purando as formas arquitetônicas, como no-
da, Sullivan era uma pessoa muito culta e tou Vilanova Artigas9. Wright se preocupou com
consciente dos acontecimentos artísticos da a criação de espaços integrados com a natu-
Europa. Foi o mentor e líder filosófico do grupo reza, cuja intenção era promover bem estar e
de arquitetos que desenvolveram a arquitetu- liberdade ao individuo, o que, segundo
ra orgânica e original no centro-oeste ameri- Wright,10 torna o espaço muito mais habitável.
cano, a Prairie School. O ideal orgânico, ins- Wright11 preconizava o uso honesto dos
taurado por Sullivan a partir da década de materiais naturais, ressaltando que suas qua-
1880, tinha o objetivo de depurar ornamentos lidades inerentes como cores e texturas quali-
ficam a arquitetura moderna. Durante os pri-
meiros anos de sua carreira, sua obra orgâni-
ca esteve baseada em 4 conceitos, como ele
mesmo explica em seu livro The Natural
House: simplicidade, plasticidade, integridade
e uso de materiais naturais, com o objetivo de
conceber um espaço funcional e confortável
para seu habitante. Nesse período inicial de sua
carreira, conhecido como Prairie houses,
Wright projetou a Robie House – 1909 -, con-
siderada por muitos autores e críticos de
Fig. 4 : Bungalow californiano – Pasadena, 1911. Arquiteto:
Wright como sua obra-prima e por outros ain-
Arthur S. Heineman. Fonte: CUMMING, 1991. da como a casa emblemática do século XX.

180
instituto de artes

Em sua fase madura, após a década de 30, 7. Concepção de dentro para fora. Crescimen-
Wright ampliou esse conceito, construindo re- to de acordo com necessidades dos habi-
sidências orgânicas de baixo custo, as Usonian tantes;
Houses.
8. Espaço projetado com o objetivo de criar
uma arquitetura que integra interior e exte-
rior.

A Arquitetura Orgânica e o Arts and


Crafts. Princípios comuns ao Arts and
Crafts e a arquitetura orgânica de Wright

Semelhanças podem ser notadas en-


Fig. 5: Usonian House. Residência Goetsh-Winkler – 1939. tre os princípios da arquitetura orgânica de
Okemos, Michigan - Fonte: PFEIFFER, 1991 Frank Lloyd Wright e as idéias do Arts and
Crafts, e essas referências programáticas são
As Usonian Houses apresentam algu- a seguir apontadas:
mas similaridades aos Bungalows construídos 1. Unidade das artes: todos os artistas têm seu
na Califórnia no começo do século XX. Ambas valor único e juntos podem fazer uma obra
são construções em que há o predomínio do completa de qualidade;
material natural e que remetem à tradição
vernacular do Ballon-Frame norte-americano, 2. Valorização do trabalho e do processo de
bem como a uma arquitetura vernacular da projeto artesanais;
região. 3. Levar arte a todos os cidadãos, principal-
mente por meio de objetos de uso cotidia-
Características semelhantes entre a Red no;
House de Philip Webb e a arquitetura 4. Uso de materiais naturais e locais, preser-
orgânica residencial Prairie e Usonian de vando suas características inerentes (cor
Wright e textura);
São apontados a seguir pontos de se- 5. No caso da arquitetura, o edifício deveria ser
melhança entre a obra de Webb e a de Wright: desenhado para fazer parte da paisagem;
1. Uso de material natural sem revestimento; 6. Simplicidade e honestidade: não esconder
as características inerentes dos materiais,
2. Simplicidade e diferença dos estilos da épo-
como cores e texturas, por meio de reves-
ca (vitorianos);
timentos;
3. Desenhos de abstração da natureza usa-
7. Respeito, admiração e inspiração à cultura
dos nos vitrais e tapeçarias;
e arte oriental;
4. Respeito à natureza circundante;
8. Ideais sociais e vontade de mudar a socie-
5. Ênfase na assimetria, diferente dos padrões dade por meio das artes;
da época;
9. Arte individualista, ou seja, concebida e
6. Economia de recursos referentes à cons- construída especialmente para uma deter-
trução/ ausência de ornamentos; minada pessoa;

181
cadernos da pós-graduação

10. Arquitetura vernacular e regionalista: res- contrário dos ingleses do Arts and Crafts, com
peito pela cultura local e sua identidade, de seu rígido ideal socialista de que sua arte po-
preferência localizada longe de aglomera- deria ser uma ferramenta para a resolução dos
dos urbanos; problemas da sociedade, independente de todo
o sistema e da época em que viviam.
11. Trazer mudança e ruptura à arte e arquite-
tura. Nas primeiras décadas do século XX,
a sociedade americana passava por uma boa
12. Realização de uma arte e arquitetura em situação financeira e com grandes transforma-
geral doméstica; ções na área industrial e urbana. Enquanto
13. Idéia de guilda como na Idade Média: os isso, na Inglaterra havia pobreza e a minoria
mestres reuniam seus aprendizes em seus que se enriquecia eram os industriais, odia-
estúdios para passar o conhecimento do dos por Morris, entretanto, paradoxalmente,
oficio; seus únicos clientes.
Nas Usonian Houses, Wright realiza
14. Inspiração em poetas que pregavam a li-
uma arquitetura regional, individual, com ma-
berdade, democracia, vida simples e natu-
teriais naturais locais, que dialoga com a pai-
ral. (para o Arts and Crafts, Edward Carpen-
sagem e acessível à maioria dos cidadãos
ter e para Wright, Walt Whitman).
norte-americanos. O que foi somente um ide-
al romântico do movimento inglês Arts and
Características que diferenciam o Arts Crafts, teve sua concretização de maneira
and Crafts e a arquitetura orgânica de bem sucedida nos Estados Unidos. Segundo
Wright Argan13, Wright une o respeito à natureza, va-
lorização do artesanato, indústria, sabedoria
No entanto as diferenças também po-
oriental, racionalismo ocidental, tudo para cri-
dem ser notadas. Uma característica que di-
ar uma arquitetura única e inimitável.
ferenciou Morris e Wright foi a questão do uso
da máquina no processo artístico. Como já foi
dito, Morris condenava seu uso, mas Wright
Ana Tagliari, Mestranda em Artes pelo Instituto de Artes –
dizia que se usada de maneira adequada se-
UNICAMP, Arquiteta e Urbanista.
ria um ótimo instrumento para se levar arte a E-mail: anatagliari@iar.unicamp.br
todos os cidadãos. Num gesto de crítica e dis-
Orientador: Prof. Dr. Haroldo Gallo, Docente junto ao Depto.
cussão intelectual com o movimento Arts and de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP.
Crafts, Wright publica em 1901 um célebre E-mail: haroldogallo@uol.com.br
artigo intitulado The Art and Craft of the
Machine12, que causou grande repercussão
na época. Neste caso havia um paradoxo com Notas
as idéias do Arts and Crafts que pregavam
uma valorização do trabalho artesanal. 1. Este texto foi elaborado pelos autores a partir de um traba-
lho para a disciplina “Imagem: meios e conhecimento Cor:
Na cultura norte-americana não havia linguagem e informação”, do Programa de Pós-graduação
tantas restrições com relação à comercia- em Artes, oferecido pela Profa. Dra. Anna Paula S. Gouveia,
em 2006.
lização da arte e o anti-industrialismo não era
2. WRIGHT, 1954.
algo tão rígido quanto na inglesa. Desta ma-
neira a arquitetura orgânica de Wright atingiu 3. Outro importante legado desses teóricos e estetas foi a
teoria do restauro, a forma sistematizada de abordar a pré-
uma grande parte de cidadãos americanos, ao existência, pois a contraposição de suas posições,

182
instituto de artes

intervencionista em Le Duc e conservadora em Ruskin, con- GOUVEIA, Anna P. Notas de aula “Imagem: meios e conheci-
tinuam ainda hoje sendo pontos de partida para a aborda- mento - Cor: linguagem e informação”. Campinas: UNICAMP,
gem da questão da preservação. 2006.

4. CUMMING, 1991, p. 55. KAUFMANN, Edgar. FLW Writings and Buildings . USA:
Meridian Books, 1960.
5. PEVSNER, 1994, p. 167.
PEVSNER, Nikolaus. Os Pioneiros do Desenho Moderno: de
6. ZEVI, 1949. p. 120. “To see what America has really given to
William Morris a Walter Gropius. São Paulo: Martins Fon-
architecture we must consider its domestic buildings and
tes, 1994.
not its skyscrapers”.
PFEIFFER, Bruce Brooks. Frank Lloyd Wright Selected Houses
7. O Ballon Frame é um método de construção leve com ma-
– collection. A.D.A. Ed. Tokyo Co. Ltd., 1991.
deira, tradicional dos Estados Unidos.
WRIGHT, Frank Lloyd. An American Architecture. New York:
8. ZEVI, 1985, p. 41. “(...)a arquitetura wrightiana propõe na
Horizon Press, 1955.
América um caminho alternativo. O objetivo: criar um novo
gosto no americano médio, elevando o padrão qualitativo ___________. The Natural House. New York: Horizon Press,
da arquitetura residencial”. 1954.

9. ARTIGAS, 1999, p. 58. “(...) Assim, a casa norte-americana ZEVI, Bruno. Frank Lloyd Wright. Barcelona: Gustavo Gili S.A.,
de Wright perdeu paredes, ligou-se com a paisagem, com 1985.
o exterior. Confundiu contorno e compartimentos e passou
___________. Towards an Organic Architecture . London:
a definir-se pela dinâmica da vida, pela dinâmica da ativi-
Faber & Faber Limited, 1949.
dade humana a que se destinava”.
10. WRIGHT, 1955, p. 65. “Freedom of floor space (…) worked
a miracle in the new dwelling place. A sense of appropriate
freedom had changed its whole aspect. The dwelling became
more fit for human habitation…and more natural to its site.
An entirely new sense of space values in architecture of the
modern world”.
11. Idem, p. 99. “To be modern simply means that all materials
are used honestly for the sake of their qualities, and that the
materials modify the design of the building”.
12. KAUFMANN, 1960, pp. 55 a 73. The Art and craft of the
machine. Artigo publicado no Chicago Arts and Crafts
Society, Hull House, 06/03/1901 e no Western Society of
Engineers, em 20/03/1901.

13. ARGAN, 1992, p. 418. “Para Wright, o edifício é um acon-


tecimento primeiro e único, inimitável e irrepetível”. P. 419.
“ Natureza, artesanato, indústria, sabedoria oriental,
racionalismo ocidental, tudo concorre e se funde na cria-
ção do gênio”.

Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia


das Letras,1992.
ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da Arquitetura. São Paulo:
Cosac & Naify Edições Ltda., 1999.

CUMMING, Elizabeth e KAPLAN, Wendy. The Arts and Crafts


Movement. London: Thames and Hudson Ltd, 1991.
HILDEBRAND, Grant. The Wright Space: Pattern & Meaning in
Frank Lloyd Wright’s Houses . University of Washington,
1991.

183
184
instituto de artes

A Cor na Obra de Gastão Manoel Henrique

Márcia Elisa de Paiva Gregato


Marco Antonio Alves do Valle

Resumo:
Sem que exista a pretensão de esgotar o tema, este artigo apresenta como meta a análise de parte
da obra do escultor Gastão Manoel Henrique, sob a ótica do elemento cor. Trata-se de um conjunto de
investigações significativas a respeito dos atributos que envolvem a presença da cor nas esculturas do
artista e suas manifestações através da própria matéria empregada ou do uso de tons acromáticos, mati-
zes saturados e mesmo da harmonia entre luz e sombra que se revelam através contrastes e saturação de
pigmentos.

Introdução

Importante nome na história da arte bra- ta gráfico, cartazista e pintor – que desde mui-
sileira, o escultor, pintor, desenhista e profes- to cedo lhe ofereceu fartos materiais e orien-
sor Gastão Manoel Henrique, construiu ao lon- tou-o no aprendizado e uso adequado de cada
go das últimas quatro décadas um trabalho de instrumento, arte-final, limpeza e rigor no aca-
experimentação e procura, que aponta a geo- bamento dos trabalhos que Gastão se propu-
metria como componente marcante e quase nha a realizar.
invariável em sua produção, primando pelo
desejo intuitivo de ordenação e construção, que
Cronologia
segundo Ferreira Gullar, é a evolução de uma
linguagem que se inicia com rigorosas formas O início de sua produção artística se dá
geométricas, em trabalhos executados nos no final da década de 50, com a execução dos
anos 60.1 primeiros trabalhos, marcados pela intenção
Além da geometria, um outro fator im- deliberada de realizar uma série bem definida
portantíssimo na obra de Gastão é o rigor obe- e coerente, tanto na técnica e material utiliza-
decido na feitura de suas peças, definido por dos – guache de cores vivas e foscas sobre
Marco do Valle como “rigor formal e executi- cartão – quanto na temática – influência
vo”2, explicitamente identificado nas escultu- marcante de Giorgio de Chirico e Bem Shan:
ras executadas entre os anos de 1985 e 1989, paisagens urbanas, perspectivas alongadas,
expostas na Bienal de Veneza, na Itália, em sombras projetadas, muros de fábricas, telha-
1986 e posteriormente na Petite Galerie, no Rio dos de galpões, chaminés de pequenas indús-
de Janeiro, em 1987. trias, treliças de metal de torres e pontes, tri-
No que diz respeito a esse rigor, Gastão lhos de estradas de ferro, vagões, ou seja,
reporta sua origem ao atelier de seu pai - artis- cenas presenciadas pelo artista, vividas em

185
cadernos da pós-graduação

sua primeira infância, no bairro da Barra Fun- sões sob encomenda; coordenação de mos-
da em São Paulo. Nestes trabalhos já se evi- tras e exposições; realização de palestras;
denciava uma nítida preferência pelo volume além de atividades docentes na Faculdade de
geométrico que a cidade oferecia. Arquitetura da Universidade de Brasília – UnB,
Neste mesmo período, Gastão ganha Escola de Artes Visuais do Parque Lage – EAV-
o primeiro prêmio no Concurso de Cartazes Parque Lage, no Museu de Arte Moderna do
para o “Festival Catarinense de Folclore”, cujo Rio de Janeiro – MAM-RJ e Instituto de Artes
valor correspondia ao preço de uma passa- da Universidade Estadual de Campinas – IA –
gem de terceira classe no navio italiano “Con- UNICAMP.
te Grande” para Barcelona. Diante disso, o
ainda estudante da Escola Nacional de Belas Matéria, Forma e Cor
Artes, no Rio de Janeiro, interrompe seu cur-
so e embarca para Europa, onde, além de tra- A matéria básica de seus trabalhos é a
balhar em uma oficina de silk-screen que im- madeira, que sempre o atraiu por sua presen-
primia edições para Arp, Wassarely e Herbin, ça e intimismo oferecidos, fazendo-se presen-
também tem a oportunidade de conviver com te na quase totalidade de sua produção artísti-
jovens artistas franceses em uma cidadezinha ca.
próxima a Paris, dividindo seu tempo entre a Os primeiros relevos executados em
realização de trabalhos em atelier e visitas a 1962 foram pintados a óleo com tons quentes
galerias e museus da região; quando então e densos, mas sempre respeitando a qualida-
surge seu interesse pelos pintores contempo- de da matéria.
râneos abstratos. Considerando-a inesgotável, Gastão
No final da década de 60, Gastão tem na forma, a preocupação central de sua
retorna ao Brasil, fixando-se na cidade do Rio pesquisa escultórica. O artista dedica-se à
de Janeiro, onde passa a realizar uma série sua exploração ao longo dos anos, através das
de maquetes para esculturas, rigorosamente inúmeras articulações e experimentos realiza-
geométricas e de matizes saturados, com dos, o que pode ser considerado uma descen-
encaixes que lembravam jogos de armar. dência direta de Brancusi e Max Bill, porém,
Em 1963 Gastão faz sua primeira ex- paralelamente à forma, a cor também pode ser
posição individual, e depois desta, muitas ou- nitidamente identificada na obra de Gastão –
tras. Participa de várias Bienais de Artes Plás- seus atributos, encontram-se divididos em três
ticas, Salões de Arte Moderna e exposições distintas fases, cujo uso da cor pode ser visto
coletivas – dentre os quais destacam-se a VII nos trabalhos das décadas de 60 e 70 com a
Bienal de São Paulo, em 1963; Opinião 65; IX pintura de algumas peças em tons acromá-
Bienal de São Paulo, em 1967; V Bienal de ticos ou matizes saturados; nas últimas déca-
Paris, em 1967; Nova Objetividade Brasileira, das, com a escolha de determinada madeira,
em 1967 e a 42ª. Bienal Internacional de valorizando a cor natural da matéria através
Veneza, na Itália em 1986. de seu matiz principal; ou mesmo na combi-
Dentre as atividades exercidas pelo ar- nação de dois diferentes tipos de madeira (cla-
tista, ainda podem ser mencionados a execu- ro-escuro), que revelam harmonia e contras-
ção de dois cenários para teatro; álbuns de te, nos recentes trabalhos dos últimos dois
serigrafia e lito; esculturas de grandes dimen- anos.

186
instituto de artes

Tons Acromáticos – O Branco

Fig. 2: Esculturas das décadas de 60 e 70.


Fig. 1: Conversível No. 4 – Série “Conversíveis”, 1965.

tos minerais misturados à cola e água, o que


Nas décadas de 60 e 70, Gastão reali- resultou num acabamento fosco aveludado,
zou uma série de esculturas em madeira, pin- propositadamente pensado a fim de evitar o
tadas com tinta industrial branca. Esta série - reflexo da imagem do observador sobre as
de doze trabalhos - chamada “Conversíveis” peças, o que de certa maneira, seria uma in-
era composta por cubos seccionados em vá- terferência sobre a geometria, seu principal
rias partes, acondicionados em caixas tam- objeto de pesquisa.
bém cúbicas, onde a idéia era o que mais im- Nesta série, são utilizados matizes
portava, devendo a matéria então, desapare- saturados, preparados com pigmentos alea-
cer. toriamente escolhidos, cobrindo os desenhos
Os Conversíveis foram concebidos sob dos veios da madeira, em áreas delimitadas,
a influência dos “Bichos” de Lygia Clark, que impostas pela própria geometria externa e in-
estimulava a interação com o espectador, que terna do objeto. Entretanto, a madeira, ainda
poderia manipular o objeto de arte. que coberta, continuava presente.
Sendo a forma o foco central deste pro-
jeto, a escolha do branco se dá em função de Contraste e Saturação
sua neutralidade e contrastes entre luz e som-
bra que ele pode oferecer. Nas últimas décadas, Gastão passa a
desenvolver projetos que dispensam o uso dos
pigmentos, dando espaço ao próprio matiz da
Matizes Saturados
matéria aparente. A madeira passa a ser ape-
Ainda nas décadas de 60 e 70, o artista nas encerada, para que sua presença natural
reformula toda sua linguagem anterior e pas- se torne mais viva. Nesta fase, a matéria pre-
sa a ter maior interesse pelo objeto de ordem dominante é o Cedro Rosa, escolhida por sua
geométrica mais definida. Tais objetos foram textura e cor, que de maneira geral é clara, o
executados também em madeira e policro- que em contraste com a luz ambiente, propor-
mados com tintas criadas a partir de pigmen- ciona ao observador várias modulações de um

187
cadernos da pós-graduação

Os últimos trabalhos de Gastão resu-


mem-se na combinação harmônica de dois
diferentes tipos de madeira em uma única
peça. O predomínio destes contrastes de cla-
ro-escuro tem a intenção deliberada de criar
uma escultura “desenhada”, sendo que o de-
senho é realizado justamente pela combina-
ção dos dois matizes das madeiras escolhi-
das.
A atual pesquisa é ainda, conseqüên-
cia das anteriores, sendo caracterizada pelos
grupamentos de elementos anteriores, como
o cubo, a pirâmide, o cilindro, o cone, o
tetraedro e os prismas. Esses elementos se
Fig. 3: Esculturas das últimas décadas. tocam e se apóiam entre si através de seus
vértices, arestas, faces planas ou curvas e se
mesmo matiz, escurecendo-o ou clareando- contrabalançam mutuamente. São organiza-
o, de acordo com as sombras projetadas na dos de forma a valorizar as cores contidas em
peça. sua matéria, tornando o conjunto, um misto de
beleza e harmonia através dos contrastes pro-
Além do Cedro Rosa, o artista também
positadamente criados.
faz uso de outras madeiras mais escuras,
como o Pau-Brasil e o Mogno.
Sobre estes trabalhos, Ferreira Gullar Conclusão
escreve: Na arte da escultura, cada material tem
as suas propriedades estéticas próprias. E
(...) “A madeira é apenas encerada, para que não cada um deles tem também a capacidade de
se perca sua trama, sua fibra e seu calor. E é despertar emoções no observador.
exatamente essa presença viva da matéria natu-
ral que nos induz a tocar nas peças, a senti-las
A escultura de Gastão nos prova que
no tato, e acariciá-las mesmo, como para que- não há limites para a exploração de determi-
brar a frieza da composição abstrata.” 3 nado material. Em sua obra, ao longo dos
anos, percebe-se que o conhecimento técni-
co aperfeiçoou os métodos de se trabalhar
Harmonia e Contraste
materiais antigos como a madeira, o que não
altera seus atributos básicos na escultura, tor-
nando-a ainda surpreendente e enriquecedora
de uma linguagem emocional proposta pelo
artista.
Dentro deste contexto, a cor passa a
ser elemento fundamental, quer seja através
do uso de pigmentos ou da valorização dos
matizes contidos na própria matéria.

Fig. 4: Esculturas recentes.

188
instituto de artes

Márcia Elisa de Paiva Gregato, Doutoranda e Mestre em


Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP.
E-mail: mgregato@pathware.com.br

Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Alves do Valle, Docente


junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes –
UNICAMP.
E-mail: profvalle@bol.com.br

Notas

1. GULLAR, Ferreira. Revista “Isto é”, publicada em 18.04.1984


por ocasião das exposições de Gastão na Petite Galerie –
RJ, e Thomas Cohn Arte Contemporânea – SP.

2. VALLE, Marco do. Texto que acompanha o convite para a


exposição individual de Gastão Manoel Henrique, realizada
na Galeria de Arte do Instituto de Artes da Unicamp, em
novembro de 1996.
3. GULLAR, Ferreira. Revista “Isto é”, 18.04.1984.

Referências Bibliográficas

CHIPP, Herschel B. Teorias da Arte Moderna. Martins Fontes,


1988.

MORAES, Frederico. Escultura, Objeto e Participação. Revis-


ta GAM no. 9/10. Rio de Janeiro, ago/set/1967.

VALLADARES, Clarival do Prado. Um estudo sobre alguns


elementos e situações construtivas da pintura remota em
nossa contemporaneidade – Cadernos Brasileiros. Ano V,
jul/ago, no. 4.

189
190
instituto de artes

Dança dos Brasis: o corpo índio-espetáculo na arena do


Esporte

Graziela Rodrigues
Regina Muller

Resumo:
O foco é o corpo construído pelos índios para a ocasião de espetacularidade e as tensões que se
estabelecem com a concepção esportiva ocidental do evento do qual participam povos indígenas para
público não-índio em nível nacional e regional. Trata-se, neste caso, do ”II Jogos Tradicionais Indígenas do
Pará”, realizado em 2005, na cidade de Altamira, interior do estado do Pará, Amazônia, com a participação
de 20 ”etnias”.

Altamira, agosto de 2005. Um movimen- paço que reproduzia o clima e estilo das are-
to mais intenso de visitantes agitava a cidade, nas dos rodeios milionários do interior do es-
lotando um dos seus principais hotéis e, nos tado de São Paulo, distinguia o conteúdo do
demais, notava-se a presença de hóspedes, evento com a colocação, na entrada do públi-
alguns estrangeiros, comentando sobre locais co, de um portal de troncos esculpidos como
e horários do evento que reunia ali centenas totens decorados e amarrados entre si, numa
de índios da região. A grande surpresa era estilização das grandes moradias indígenas.
mesmo a espetacular arena com arquibanca- Compunham ainda a ambientação do evento,
das, portal e pira monumentais que se ergui- cabanas suntuosas com folhas de palmeira
am na parte mais elevada da cidade, à mar- cujo projeto arquitetônico (também muito bem
gem do rio Xingu, onde em tempos passados pago) buscava integrar a inspiração na estéti-
localizava-se apenas a sede do quartel do ca indígena à funcionalidade de espaços para
Exército nacional, com posição estratégica atividades paralelas (exposições de fotografia,
sobre a cidade. Desse modo, era vista de vá- cinemateca, oficinas e venda de artesanato).
rias ângulos da mesma, principalmente do Completavam esta ambientação, o cartaz de
cais, atualmente urbanizado como área de divulgação em tamanho gigantesco, cujos vá-
lazer e de onde saem e chegam as inúmeras rios exemplares se espalhavam pelas ruas de
embarcações que sobem ou descem o rio. Altamira, e a pira atlética, chamada pelos
Hoje, esta espécie de colina, abriga além do organizadores de “Fogo Indígena”, erguidos
quartel, um loteamento residencial chamado como dois mastros portentosos no alto do “Mi-
“Altavile” em cujo terreno, ao lado das casas rante”, o local onde se situou a parte extrema
já existentes, erigiu-se a imponente arena. Di- da arena, à beira do rio. Sinalizava-se, assim,
zia-se que somente a arquibancada de alumí- o aspecto grandioso da iniciativa do governo
nio havia custado cifra da ordem de centenas do estado do Pará de encampar a principal
de milhares de reais. A cenografia deste es- atividade a que se dedica atualmente o líder

191
cadernos da pós-graduação

indígena Marcos Terena. No material de divul- Educação Física da rede estadual de educa-
gação, atribui-se a realização dos “II Jogos Tra- ção acompanhavam as delegações, ministran-
dicionais Indígenas do Pará” à Secretaria Exe- do alongamentos preventivos contra “contu-
cutiva de Esporte e Lazer e à Secretaria Es- sões”.
pecial de Promoção Social do governo do Esta- As delegações eram formadas por gru-
do, com o apoio de outros órgãos (“Programa pos de indivíduos enviados por povos indíge-
Raízes”, Secretaria Executiva de Justiça e nas de territórios localizados no estado do Pará,
Paratur, do governo do Estado, FUNAI - Fun- Rondônia e Mato Grosso. O evento reunia,
dação Nacional do Índio, Caixa Econômica e assim, sociedades indígenas por estado bra-
Prefeitura Municipal de Altamira) e do Comitê sileiro, como se encontra definido no próprio
Intertribal/ Memorial e Ciência Indígena - ITC, título do evento, “II Jogos Indígenas do Pará”,
ao qual pertencem Marcos Terena e seu irmão considerando-se como convidados os prove-
Carlos Terena. O principal patrocínio ficou por nientes de territórios localizados em outros
conta da ELETRONORTE - Centrais Elétricas estados. As delegações representavam as
do Norte do Brasil, seguido da CELPA – Cen- “etnias”, nome dado pelos organizadores aos
trais Elétricas do Pará S.A., empresas priva- povos indígenas participantes.
das do setor elétrico brasileiro.
O Governo divulgava o “Programa
Os objetivos de integração dos povos Raízes” como ação de uma política do estado
indígenas entre si e destes à sociedade brasi- do Pará para os povos indígenas e quilombolas
leira encontravam-se também explicitados no que compreende atividades sociais e de pro-
material de divulgação bem como os de divul- teção dessas “comunidades”, com o slogan
gação da “cultura indígena” a fim de estimular “Pará. Estado que avança respeitando suas
o “respeito”, tal como se enunciava no sub- tradições”. No mesmo texto, lê-se que “os II
título do evento : “Um show de esportes, cultu- Jogos Tradicionais Indígenas do Pará, às mar-
ra e respeito às tradições”. Nas falas de Mar- gens do Xingu, em Altamira, têm o mérito de
cos Terena, como animador do “show”, eram mostrar os povos indígenas integrados à soci-
várias as descrições do comportamento, cren- edade” e “ao mesmo tempo, destacam a
ças e valores morais dos participantes atle- inventividade, estimulam a integração, a con-
tas, conclamando o público a respeitar e to- fraternização e revelam a autenticidade de uma
mar o exemplo dos povos indígenas na defe- cultura que precisa ser valorizada por todos
sa do meio-ambiente, harmonia familiar e reli- nós”.
giosidade. De outro lado, o locutor profissional
Estas mensagens revelam a incorpo-
contratado pela organização do evento, incita-
ração do evento pela máquina administrativa
va o público a torcer pelos competidores,
do estado, dando a ele o sentido de uma con-
como estratégia de animação eficiente e coe-
cepção multiculturalista e de respeito à diver-
rente com o objetivo propagandista dos reali-
sidade étnica da região amazônica, construída
zadores e patrocinadores.
e propagada, entretanto, sob a ideologia da
integração do índio à sociedade nacional e da
“Palmas para o guerreiro caiapó...” negação da autonomia política destes povos
enquanto nações indígenas, reduzindo-as a
“E a platéia delirava...”, nas palavras do “comunidades” assistidas pelo estado.
locutor, desempenhando o papel de animador
De outro lado, o evento permitia a afir-
de competição esportiva, com direito a prêmi-
mação de identidades étnicas e o reconheci-
os e treinadores. Equipes de professores de

192
instituto de artes

mento compulsório de sua forte presença, se inexistente. Índios que habitavam na cida-
particularmente na região da cidade de Altamira, de de Altamira, então, nunca ouvimos falar.
cuja história foi marcada desde sempre pelo Considerados remanescentes de antigos po-
confronto entre índios e não-índios. Do quase vos, protagonizaram índios “verdadeiros” no
extermínio dos Juruna, Xipáia e Curuaya, no filme de Cacá Diegues, “Bye bye Brasil”, em
século XIX a mais recente “atração e pacifica- 1978. Apenas em 1988, quando um projeto de
ção” dos belicosos Arara, nos anos 80, é uma construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu
história que alimenta o imaginário local e o pre- exigiu para os estudos de impactos ambientais
conceito de seus habitantes, negando a exis- o levantamento da população indígena a ser
tência dos que foram contatados no passado atingida, os Xipáia, Curuaya e Juruna foram
remoto ou colocando os de contato recente a computados e desde então, e principalmente,
uma tal distância geográfica que os apaga da no bojo da promulgação da Constituição de
realidade atual. Fomos testemunha, desde os l988 e do movimento indígena em defesa de
anos 70, de como a população de Altamira seus direitos, vêm recebendo reconhecimen-
manifestava repulsa pelos índios que haviam to pelo órgão governamental de assistência, a
assassinado invariavelmente um ou outro pa- FUNAI, com a demarcação de territórios indí-
rente de quase todos os antigos migrantes da genas e outras ações que respondem à
região nordeste que vieram para a Amazônia, legitimação de sua identidade étnica. Muitos
na época de exploração da borracha (começo continuam vivendo na cidade de Altamira, as-
do século XX) e que representam os primei- sumindo hoje a identidade escondida por tan-
ros contingentes que dão início a ocupação do tos anos.
médio Xingu e à criação deste núcleo urbano. A cidade também se transformou, ofe-
Nos anos 70, com a abertura da rodovia recendo contexto favorável ao “ressurgimen-
Transamazônica que provoca mudanças na to” de povos nativos habitantes destas terras.
economia e no perfil da população, com colo- A moda dos grandes centros urbanos chega à
nos do sul do país e profissionais liberais de Altamira, valorizando adereços de origem in-
diversos estados que buscam embarcar no dígena que nos surpreenderam ao decorar,
“milagre brasileiro”, o preconceito se reveste exatamente na época do evento, vitrines de
de outros conteúdos. Os índios sempre foram lojas freqüentadas pelo público de maior po-
considerados um empecilho ao progresso, der aquisitivo.
coisa de um passado atrasado, e selvagens
É neste novo cenário, radicalmente di-
que deveriam ser domesticados, mas manti-
ferente daquele de menos de 20 anos atrás,
dos à parte. Estórias de selvageria de um pas-
que os “II Jogos Tradicionais Indígenas do Pará”
sado histórico e um oportuno ou real desco-
foram oportunidade para que os Xipáia,
nhecimento da existência de uma grande po-
Curuaya e Juruna, pudessem representar os-
pulação indígena nos municípios de Altamira e
tensivamente, através da decoração do corpo
Senador José Porfírio constituíram a versão
e da performance de cenas rituais, sua identi-
destes novos pioneiros da frente de expansão
dade como grupo étnico cultural diferenciado
da sociedade nacional no sentido de afirmar o
vivendo no contexto urbano da sociedade na-
desejo de tê-los à parte. A civilização chegava
cional.
ao Xingu e índio era coisa do passado ou de
Povo indígena e delegação esportiva.
um local muito distante que as dificuldades de
Esta equação confere, de um lado, distinção
acesso pelo rio, famoso por suas cachoeiras
enquanto grupo de referência identitária e, de
perigosas, ajudavam a manter como algo qua-
outro, a incorporação da diferença através de

193
cadernos da pós-graduação

um sistema de classificação e representação tes” para se legitimar a “indianidade” da mistu-


do não-índio. A organização esportiva marca, ra. Esta, por sua vez, realiza, através do es-
pela competição entre diferentes, a diversida- petáculo, com suas regras e comportamen-
de cultural entre os povos indígenas e, ao mes- tos, a pretendida integração, princípio que
mo tempo, sua integração à sociedade nacio- norteia a competição esportiva na cultura oci-
nal através do exercício das modalidades es- dental. Outro princípio norteador, a exibição e
portivas oficiais do mundo dos brancos. o desempenho físico do corpo, ganha neste
Os chamados “jogos tradicionais” são evento um caráter próprio, enfatizando-se a
atividades cerimoniais de algumas sociedades qualidade do corpo “índio”, saudável e forte,
indígenas consideradas esportivas porque im- estereótipos do “bom selvagem”. Este corpo
plicam em competição e exibição de perfor- de desempenho atlético deverá, entretanto,
mance como a corrida de tora (de povos Jê), estar, antes de mais nada, devidamente iden-
o jogo de flechas, o arremesso de lança, a luta tificado como “índio” e, então, a ornamentação
corporal, o futebol de cabeça e a peteca. No corporal, a par das cenas rituais, toma lugar
programa, alguns constam como “demonstra- importante na apresentação dos atletas parti-
ção” mas, em alguns casos, como no jogo de cipantes dos “Jogos Indígenas Tradicionais”.
flecha, a condução se assemelhou à competi- Figurinos suntuosos, com plumária, pin-
ção pelo melhor desempenho, com premiação tura corporal, joalheria (colares de contas de
para o realizador da tarefa (acertar o olho da miçangas e sementes de árvores), roupas de
figura de um peixe reproduzida num painel). fibra vegetal, adereços diversos compunham
As modalidades futebol, atletismo 100 metros, a apresentação visual dos corpos indígenas.
natação e canoagem seguiam a condução ofi- Aqueles com muitos anos de contato e situa-
cial das competições esportivas da cultura ção atual de convívio intenso com o branco,
ocidental. A modalidade “cabo-de-guerra” nos espaços urbanos da sociedade nacional
considerada “tradicional” pelos organiza-dores local, como os Xipáia, Curuaya, Juruna,
não é encontrada nas sociedades indígenas, Tembé, Anambé, Manoqui, Guarani e Gavião
ao menos, de acordo com nosso conhecimen- usaram indumentária criada neste contexto de
to etnológico. relações interculturais. Seu significado reme-
O evento que proclama o “respeito à te a este conteúdo de produção da identidade
tradição” e “a integração do índio à sociedade” étnica contrastiva que se expressa pela
se caracteriza, assim, pela mistura de ativida- plumária, pintura corporal e saias de palha. Os
des lúdicas/cerimoniais e esportivas dos con- sutiãs eram peça quase obrigatória das mu-
textos índio e não-índio, sobrepondo classifi- lheres desses grupos, buscando-se uma so-
cação dos sistemas culturais indígenas ao da lução para combinar o uso destes sinais
cultura ocidental. Fazem parte da programa- diacríticos com esta peça da indumentária
ção, entretanto, atividades denominadas pe- cotidiana, já há algumas gerações incorpora-
los organizadores de “apresentações culturais” da por elas. Os Asuriní do Xingu, Parakanã,
as quais compreendem excertos de rituais das Araweté, Arara e Nambikwara, por sua vez, tra-
sociedades indígenas participantes. De certo ziam ornamentação corporal de uso tradicio-
modo, práticas religiosas (ritos litúrgicos e dan- nal e os Kaiapó, Xikrin do Bacajá e Asuriní do
ças) de sistemas de representação cujos sig- Tocantins combinavam alguns elementos tra-
nificados se encontram nos valores e visão de dicionais com a estilização do figurino indíge-
mundo baseados na tradição, são compara- na, padronizando, por exemplo, o uso de
dos e colocados no mesmo lugar dos “espor- cocares para todos os homens. No figurino tra-

194
instituto de artes

dicional, este era combinado com elementos se a realidade gestual daquele indivíduo ou gru-
padronizados do vestir ocidental. As mulheres po que é decodificada como sendo de maior
Asuriní do Xingu vestiam bermuda e “top” de intensidade e freqüência. Trata-se de uma for-
malha, desenhado especialmente para esta ma integrada de ver o movimento, onde não
ocasião pelos responsáveis por sua participa- há dissociação de seus vários aspectos se-
ção. Os Parakanã usavam calções verdes e jam físicos, emocionais, sociais e culturais. A
os Arara, calções amarelos. Havia ainda as partir de uma análise do corpo em contexto, a
camisetas, com logotipo do evento, usados proposta é captar a essencialidade do corpo
indistintamente. A maneira de ornamentar o visto através do convívio, no trabalho de cam-
corpo particularizava cada grupo e algumas de po. Capta-se aquilo que se faz mais contun-
suas características se relacionavam à situa- dente na expressão do corpo atuante, em suas
ção de contato. Todos, entretanto, pintavam- estruturas físicas impregnadas de sensações
se, usavam colares de conta e plumária. e sentimentos.
No que diz respeito aos Asuriní do
Xingu, os quais conhecemos melhor , apre- Os alongamentos
sentava-se uma condição e sentimento forte
de pertencimento ao grupo, através da pintura Com um caráter de apresentação cê-
em jenipapo, muito elaborada em desenhos nica, os exercícios de alongamentos eram fei-
geométricos. Jovens que nunca ou raramente tos dentro da arena, ao mesmo tempo em que
foram vistos nos últimos anos com a pintura ocorriam outras exibições. Em muitos momen-
corporal, exibiam-se orgulhosos com ela, mais tos, o foco maior de atenção estava voltado
os adereços que complementam a ornamen- para esta cena dos alongamentos, assim
tação tradicional. anunciado por um dos locutores: “Aquecimen-
Pode-se dizer que nestas apresenta- to para evitar qualquer tipo de contusão,
ções, seja do corpo decorado, seja dos ritu- distensão muscular e desequilíbrio físico”. Os
ais, nota-se, assim, ambigüidades e talvez até índios eram colocados em forma circular e o
conflitos se atentarmos, por exemplo, ao sem- espaço central deste círculo era ocupado por
blante tenso e perplexo de indivíduos vestidos uma estudante de educação física da Univer-
de índio a caráter na arena de exibição. Nota- sidade Estadual do Pará, fazendo a demons-
va-se também posturas de silêncio e obser- tração dos movimentos. Os índios prontamen-
vação que contrastava com os gritos da pla- te copiavam estes movimentos.
téia e o som dos alto-falantes com a voz dos Os alongamentos apresentados são
locutores e as músicas que a animavam . uma padronização em forma de seqüência de
O desempenho físico, a linguagem e movimentos que as academias de ginástica
postura corporal sugerem ainda uma leitura em geral, das mais simples às mais sofistica-
importante do evento que pode oferecer algu- das, utilizam como preparação do corpo. Tra-
mas interpretações sobre participação dos ín- ta-se de um modelo padronizado norte-ame-
dios nas ocasiões de afirmação da multicul- ricano, vinculado à idéia de eficácia inques-
turalidade, promovidas pelos brancos. tionável para todo tipo de atividade física e para
todo tipo de corpo voltado à prevenção de le-
A leitura corporal que realizamos se fun-
sões.
damenta no método BPI, Bailarino-Pesquisa-
dor–Intérprete1 através da qual o corpo em mo- Estes alongamentos são realizados ten-
vimento é visto dentro de suas performances do como referência a postura vertical com ên-
artísticas e quando destituídas destas. Busca- fase na parte superior do tronco em elevação.

195
cadernos da pós-graduação

As partes do corpo são alongadas de forma cidas pelos índios, deixando em evidência a
segmentada, tais como: alonga-se o pescoço inadequação desta proposta para este público
fazendo uma tração com uma das mãos na alvo. A realidade dos corpos indígenas definiti-
cabeça em direção ao ombro oposto, uma vamente não estava sendo levada em consi-
perna permanece com o joelho alongado en- deração, como se estivessem sendo ofereci-
quanto o outro é mantido flexionado em rela- dos aos índios instrumentos para as suas ne-
ção ao dorso com o objetivo de alongar a par- cessidades corporais, quando vemos que em
te inferior da coxa. E assim, sucessivamente, suas performances, os corpos são outros, ta-
umas partes em relação às outras partes do lhados quase ao inverso do que é a visão de
corpo vão solicitando um equilíbrio do corpo corpo do homem ocidental globalizado.
numa luta contra a gravidade na postura verti- O som amplificado com músicas po-
cal. pulares de temas diversos cujas letras fala-
Pode-se dizer que este padrão de tra- vam de paixão, de abandono e de “que o índio
balho corporal chega a ser antagônico ao pre- descerá...”, mesclava-se à voz do locutor.
paro corporal que se encontra em sociedades Compunha esta cena dos alongamentos a dis-
indígenas do Brasil, cuja relação com o solo tribuição de spray contendo antiinflamatórios,
se dá de forma contrária a esta, pois é a partir fornecidos pela produção dos jogos aos índi-
de uma intensa relação com o mesmo que se os que usavam excessivamente o medicamen-
dão as suas organizações corporais. A entre- to como sendo algo de bom para os seus de-
ga à gravidade, fundamenta todas as suas ati- sempenhos corporais na competição dos jo-
vidades, seja no cotidiano ou nos rituais e, ao gos.
contrário da segmentação de partes do corpo,
o movimento que eles realizam envolve toda a
Os esportes
unidade corpórea.
Ocorria, de fato, na arena dos “Jogos A demonstração de um corpo forte e a
Tradicionais Indígenas”, que os índios, na ten- disputa do grupo que tem mais força significa-
tativa de realizarem os movimentos que lhes ram as marcas dos jogos, exaustivamente
eram dados, reproduziam as formas sem a estimuladas.
postura adequada a esta linguagem de movi- O locutor, referindo-se às etnias cha-
mentos e sem a ação do esforço preciso para mando-as de “as guerreiras” e “os guerreiros”
que se obtivesse o alongamento almejado. instigava: “Vamos animar a galera, vocês con-
Como exemplo, observamos que em um dos seguem ou não conseguem? Sob o sol quen-
movimentos demonstrados, no qual uma das te a galera quer ver.” E para o público: “Cadê o
mãos segura o cotovelo, exercendo uma for- grito da Galera!!! Solta o grito!!! A arquiban-
ça de tração para que se faça o alongamento cada que soltar mais o grito vai ganhar cami-
de todo o braço, foi interpretado, por uma das seta.”
índias, como sendo apoiar o cotovelo na pal- Cada “etnia” estava organizada para a
ma da mão, sem nenhuma força de tração competição através de distintas modalidades
empregada, de modo a ocorrer o movimento esportivas.
solicitado para a pretendida eficácia. Outros
fatos observados foram a solicitação de equi-
líbrio em uma das pernas ocasionando O “cabo de guerra”
desequilíbrios e várias outras disposições de Na modalidade “cabo de guerra”, uma
posturas demonstradas que eram desconhe- corda é esticada ficando um grupo de cada

196
instituto de artes

lado, segurando nas extremidades e fazendo Não possibilitava o intuito do evento”,


resistência. Vence quem tem a força para fa- como dito pela locução, de produzir mais e
zer com que o outro grupo se desloque. mais “adrenalina”.
Era dado um microfone para um dos
integrantes de cada grupo que, em sua língua, Fragmentos de Rituais
estimulava o seu grupo a dar o máximo de for-
ça. Alguns índios desmaiaram e a fala do lo- Cada povo indígena trouxe para a are-
cutor denotava uma certa banalidade para isto na um fragmento de seus rituais, anunciado
valorizando o atendimento médico imediato. pela locução como “apresentação cultural.”
O grupo vencedor tinha para os demais Por um momento, o corpo dos povos
grupos a imagem de força, um modelo a ser indígenas era revivido com pertencimento a um
alcançado. Na fala do locutor vemos que esta lugar próprio, mesmo estando situado num
modalidade de esporte era a preferência: “E o espaço estranho a eles.
público vai ao delírio!!!” Os Nambikwara apresentavam uma
estrutura física com uma postura de abaula-
O futebol de cabeça mento do tronco bem definido, com um
posicionamento da pelve reforçando este de-
A impulsão na bola (pequena e feita de senho propiciado pelos ísquios que se
látex) é realizada pelo topo da cabeça e a bola direcionavam para o solo. Os movimentos dos
não pode ser tocada por nenhuma outra parte pés com esforço máximo, de penetração no
do corpo. A partir de uma impulsão de todo o solo, eram acompanhados pelo toque da flau-
corpo em direção à bola, os braços realizam ta também direcionada para o solo.
uma flexão, ficando todo ele em paralelo ao Os Asuriní com as flautas do “Turé”,
solo para, em seguida, o tronco mergulhar apontando para o solo ou para frente, manti-
dentro dos braços e dar o impulso de cabeça nham a postura perpendicular com mais fre-
na bola. Em alguns momentos, o corpo fica qüência. O olhar acompanhava as mudanças
suspenso no ar apoiado apenas nas mãos para posturais. Como se estivessem introduzindo
em seguida deitar-se por segundos no solo. o som das flautas no solo, realizavam um des-
Por um momento, o rosto encosta-se no solo. locamento com avanços e recuos, tendo os
Perde quem encostar outra parte do corpo na pés em movimento um esforço médio, isto é,
bola que não a cabeça. como se suas raízes deslocassem por debai-
Esta modalidade cheia de habilidades xo da terra. Com os braços enlaçados na cin-
corporais e fluência do movimento, permeada tura ou no pescoço uns dos outros, compu-
de sutilezas, não causou nenhum impacto na nham uma coesão grupal. Percorreram a are-
platéia passando quase despercebida. A refe- na sempre com um sentido de agregar os seus
rência dada pelo locutor para esta modalidade membros, os seus corpos unidos e concen-
era a de outro futebol como “paixão nacional”, trados numa disposição espacial que os fa-
mas nada que pudesse validar aquele futebol voreciam enquanto unidade grupal.
específico. Possivelmente a pouca aderência Os Kaiapó apresentaram uma postura
do público deve-se ao fato de que neste fute- abaulada, tendo o dorso da mão esquerda pró-
bol não há vários participantes disputando num ximo aos olhos e a mão direita na altura da
clima de maior agressividade. cintura, ambas voltadas para o solo, assim

197
cadernos da pós-graduação

como o olhar. Os pés mantinham uma forte da, outros “pajés” se juntaram a este primeiro,
impressão no solo, marcando o ritmo de for- no total de três. Eles traziam um charuto em
ma acentuada nos momentos de deslocamen- uma das mãos e, na outra, o chocalho, num
to pela arena. O canto acompanhava o fluxo movimento ondulatório com o tronco para fren-
do movimento. Não havia uma relação direta te e para trás, de onde tomavam um impulso
com o público, fechando-se um circuito entre para se lançarem à frente, num gesto que era
eles de perfeita harmonia de canto, ritmo e acompanhado pelos braços e com uma das
movimento. Um bloco uníssono. mãos em concha, como se tirasse do seu
O povo Aikewara centralizou a sua apre- corpo algo que era então lançado no espaço.
sentação na figura do xamã, com a participa- Este movimento foi se intensificando até ocor-
ção de todos os demais membros de seu gru- rer uma relação de troca entre o que se tirava
po presentes. O xamã com um maço de fo- do corpo e o que voltava para o corpo. Com
lhas percorreu o corpo de uma jovem jogando estes sentidos, o movimento ganhava uma
água em sua cabeça, enquanto cantava. Todo característica de maior projeção no espaço,
o grupo percorria de forma circular este mo- com grande impulso para fora e, com a mes-
mento. ma intensidade, retornava ao eixo. Na medida
em que ia havendo esta ampliação do movi-
Os Tembé apresentaram dois momen-
mento, os joelhos ganhavam maior flexão e
tos de distintos rituais. Num primeiro momen-
molejo. A mão que retirava também lançava
to, jovens casais de braços dados desloca-
de volta para o centro do corpo. Um dos “pa-
vam-se no espaço em fileiras que se cruza-
jés” ampliou este movimento até atirar-se ao
vam ao centro, trocando de lugares. Os ho-
solo e lá ficar entregue como se estivesse in-
mens usavam os chocalhos, acentuando o rit-
consciente. Outro “pajé” trabalhou este corpo
mo em direção ao solo. Homens e mulheres
estendido no chão como se estivesse retiran-
realizavam uma batida forte do pé direito se-
do algo dele. Em seguida, os outros “pajés” se
guida de uma elevação dos calcanhares que
agruparam para erguer do solo o corpo até
voltavam pontuando o solo, acompanhado de
então estendido. De mãos dadas realizam o
uma báscula da pelve impulsionando-a frente
movimento de saltar retornando ao solo com
e trás. Predominava o impulso do corpo para
intensidade. Depois, colocaram as mãos aber-
cima sem perder a relação com o solo.
tas em direção ao solo mantendo uma postu-
Num segundo momento da apresenta-
ra perpendicular do tronco. A dinâmica foi ga-
ção dos Tembé, um xamã, referido como
nhando outros movimentos sutis e bem defini-
“pajé”, inicia a ação fumando um cachimbo e
dos como o esfregar as duas mãos, com
trabalhando a fumaça de modo a envolver o
impulsão dos pés, retornando com maior pe-
espaço e as pessoas de seu grupo. Enquanto
netração no solo. Quanto à disposição espa-
estrutura física era mantida uma firme base
cial, os três “pajés” mantiveram uma triangu-
em ambas as pernas, os joelhos encontravam-
lação sem nunca perdê-la, durante os seus
se flexionados e os pé não perdiam a base em
deslocamentos. Os membros do povo Tembé
nenhum momento. Realizavam o movimento
ali presentes mantiveram o canto com a coe-
de transferência do peso do corpo, frente e trás
são de seus corpos, envolvendo o trabalho dos
e também nas laterais, com a mesma base
pajés durante todo o tempo.
fincada ao solo. O ato de pressionar os pés no
O tempo elástico que requer um ritual
solo retirava a força de impulso de todo o cor-
desta natureza, gerava certa inquietude na pla-
po para trabalhar a fumaça no espaço e nas
téia e o locutor ao microfone anunciava: “mes-
pessoas do grupo que o circulava. Em segui-

198
instituto de artes

mo que o público não entenda, isto é impor- ança. A proximidade dos corpos e o sentido
tante para eles. É cultura curtida na floresta.” de coesão grupal foi um fator observado em
Em vários momentos de demonstração todos os povos indígenas. A concentração que
destes fragmentos de rituais, ora o locutor ora mantiveram ao longo de suas apresentações
a platéia se pronunciavam com muitos ruídos também foi um aspecto preponderante, mes-
ou gritos. O show precisa continuar. O locutor mo num clima de muita dispersão, com o lo-
anunciava: “ritual sagrado do guerreiro... ritual cutor solicitando que a platéia se pronuncias-
mais que sagrado. Um ritual de purificação.” se aos gritos.
O corpo observado no espaço à mar-
gem da arena, paralelo ao evento, quando apa-
Uma síntese da linguagem corporal
rentemente não estavam fazendo nada, ou
presente
seja, em estado de repouso, demonstrava um
Pudemos observar que a anatomia sim- incomodo ímpar. Ao largo das apresentações
bólica, fruto de decodificações da Estrutura chamadas de esportivas e culturais, as postu-
Física de um corpo do Brasil, aspectos que ras comumente eram de encurralamento, os
dizem respeito ao BPI, se fizeram presentes índios ficavam encostados e recolhidos nas
em alguns momentos da atuação destes cor- grades que circundavam a arena.
pos indígenas no decorrer dos “Jogos tradici- Olhares longínquos, olhares perdidos,
onais Indígenas”. corpos mostrando certo desconforto de esta-
rem naquele ambiente, como se o estar ali fos-
“A partir de uma intensa relação com a terra o se um tributo a pagar pelo reconhecimento de
corpo se organiza para a dança. A capacidade suas existências. Por um instante, via-se um
de penetração dos pés em relação ao solo, num erguer de corpo orgulhoso por uma apresen-
profundo contato permite que toda a sua estrutu- tação de suas representações, ali aceitas pelo
ra física se edifique a partir de sua base. A ima-
público branco. Os olhares curiosos e surpre-
gem que temos do alinhamento é de que a estru-
sos eram menos freqüentes do que os olha-
tura possui raízes.” 2
res ausentes. Os sentimentos de inadequação
eram recompensados por uma busca de
Em outros momentos, quando eram adequação ao que lhes era solicitado nos alon-
solicitados a traduzir outras linguagens corpo- gamentos e nas disputas que eram o foco do
rais que não a deles, esta estrutura sofreu frag- evento. A saudade dos filhos ausentes foi por
mentação, como nos do alongamento. Encon- vezes mencionada numa postura de recolhi-
trava-se plena, entretanto, na linguagem de mento, não raro de tristeza. Corpos que não
seus rituais. se afastavam de seus iguais, pois raramente
Observamos ainda, como plenitude de se via um índio apartado de seu grupo. Senti-
sua postura corporal, as mulheres carregan- mentos de medo e de estranhamento se fazi-
do os seus filhos, durante todo o tempo da jor- am sentir, misturados a um esforço de se ade-
nada dos “Jogos Tradicionais Indígenas”, que quar àquelas propostas dos jogos como es-
perdurou sete dias, de manhã à noite. Interes- tratégia de sobrevivência.
sante notar que o corpo mãe-criança é Considerando os corpos dos povos in-
indissociável. Mesmo quando estas mulheres dígenas presentes neste mega evento, o sen-
participavam dos rituais, esta estrutura era a tido de corpo encurralado apresenta-se como
de filho como parte do corpo da mãe e em sendo a mais contundente de suas realidades
nenhum momento ouviu-se um choro de cri- gestuais, superando o corpo atento, dócil e

199
cadernos da pós-graduação

solícito que se esperava deles. Como bons


intérpretes que são, procuravam atingir um
público que os vissem como uma humanida-
de possível de adquirir algum valor.

Graziela Estela Fonseca Rodrigues, Docente junto ao


Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP.
Desenvolve atualmente pesquisa sobre o BPI, o corpo em mo-
vimento, Dança do Brasil, processos de criação e ensino da
dança. Autora do livro Bailarino-Pesquisador-Intérprete: Pro-
cesso de Formação , e de vários capítulos e artigos sobre
dança e BPI.
E-mail: graziela@iar.unicamp.br

Regina Aparecida Polo Muller, Docente credenciada, junto


ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes
– UNICAMP. Desenvolve atualmente pesquisa sobre perfor-
mance, interculturalidade e o corpo em movimento na cena
contemporânea. Autora do livro Os Asuriní do Xingu, historia
e arte.
E-mail: muller@iar.unicamp.br

Notas

1. RODRIGUES, 1997.

2. Idem.

Referências Bibliográficas

RODRIGUES, Graziela Esteta Fonseca. Bailarino–Pesquisa-


dor-Intérprete: Processo de Formação. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1997.

200
instituto de artes

Colóquio:
Convergências na Arte Contemporânea

201
202
instituto de artes

Apresentação

Os textos aqui reunidos foram apresentados no colóquio Convergências na Arte Con-


temporânea, organizado pelos professores Maria de Fátima Morethy Couto (IA/UNICAMP) e
Dária Jaremtchuk (USP Leste) - responsáveis pelo grupo de pesquisa Vanguarda e Modernidade
nas artes no Brasil e no exterior - e por Hermes Renato Hildebrand (IA/UNICAMP). O evento foi
realizado no auditório do Instituto de Artes da UNICAMP nos dias 7, 8 e 9 de junho de 2006 e
contou com o apoio da FAPESP, do FAEPEX, do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos
Departamentos de Artes Plásticas e Multimeios, Mídia e Comunicação da UNICAMP.
O evento contou com a participação de professores/pesquisadores de diferentes Insti-
tuições de Ensino Superior do país - UERJ, UFRJ e UFF (Rio de Janeiro); PUC-RS e UFRGS
(Porto Alegre); UnB (Brasília) e USP, PUC-SP, FAAP e UNICAMP (São Paulo) - e de artistas
atuantes em diferentes áreas (cinema, artes plásticas, fotografia, novas mídias). As conferênci-
as foram organizadas em mesas-redondas temáticas (Arte e Fotografia, Arte e Vídeo, Arte e
Curadoria, Arte e Historiografia, Arte e Crítica, Arte e Novas Mídias, Arte e Política, Arte e
Corpo), com a presença de dois ou três docentes/artistas de destacada atuação em sua área
de competência. Aos conferencistas foi solicitado que relacionassem o tema proposto para a
mesa-redonda às pesquisas que realizam na Academia e/ou aos trabalhos práticos que desen-
volvem, cabendo-lhes a escolha do recorte a ser apresentado.
As conferências abrangeram um amplo leque de questões referentes ao tema geral do
Colóquio, oferecendo novas perspectivas de leitura e análise para todos os participantes e
contribuindo decisivamente para a formação de nossos alunos de graduação e pós-graduação.
Analisou-se a natureza da produção contemporânea, em seus diferentes meios de expressão,
discutindo-se noções como especificidade e convergência, obra de arte e trabalho artístico e
refletindo-se sobre a assimilação das novas mídias pelo artista contemporâneo, as mudanças
ocorridas no pensamento historiográfico e na crítica de arte a partir da segunda metade do
século XX, a relação entre arte e política hoje.
Optamos por organizar os artigos por nome do autor, não respeitando assim a ordem da
apresentação dos trabalhos no evento. Alguns dos conferencistas não puderam enviar seus
textos a tempo para esta publicação, outros entenderam que sua participação se dera de
maneira informal. Ressalto, porém, que a contribuição de todos foi decisiva para o sucesso do
colóquio e deixo aqui meus agradecimentos aos colegas que aceitaram tomar parte deste
nosso projeto.

Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto


Depto. de Artes Plásticas - Instituto de Artes - UNICAMP.
E-mail: mfmcouto@iar.unicamp.br

203
204
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Problemas da crítica e da curadoria no panorama recente


da arte brasileira

Agnaldo Farias

“Da adversidade vivemos”


Hélio Oiticica

O ponto de partida dessa nossa con- tulo “Contra”, e o segundo sob a etiqueta “A
versa pode muito bem ser o convite que foi Favor”. Com o tempo, a fórmula foi aprimora-
feito a um crítico amigo meu, há uns de dez da com a inclusão de uma terceira possibili-
anos, pelo jornal Folha de São Paulo, para que dade, qual seja ela, “Em termos”.
escrevesse um artigo sobre a obra de Alfredo Em que pese seu caráter anedótico, a
Volpi. Pois bem, a natureza do convite foi situação descrita diz muito da situação atual
explicada ao meu colega da seguinte manei- da crítica de arte no Brasil contemporâneo. No
ra: estava sendo preparada uma grande expo- que se refere especificamente à crítica que até
sição sobre a obra de Volpi, uma exposição os anos 80 se produzia nos jornais, também
que previsivelmente seria muito comentada ela foi obrigada a acompanhar a tendência
pela imprensa em geral, comentários que, avassaladora que faz com que toda a notícia,
como era de se esperar, seriam muito favorá- em nome do suposto interesse de servir ao
veis. Diante disso, dessa unanimidade enten- público, termine antes por atender, em maior
dida pelo funcionário do jornal, tal como se verá ou menor medida, mas sempre predominan-
mais a frente, como ultrajante, o convite feito temente, ao mercado. Em relação a isto não
ao meu colega era para que ele escrevesse se pode perder de vista as avassaladoras
sobre Volpi mas, atenção!, não a favor de Volpi mudanças ocorridas nos últimos anos nesse
e sim contra. Meu colega declinou a gentil oferta veículo, premido pela necessidade de vender
argumentando que não era o caso. Presume- mais em resposta aos seus anunciantes, si-
se que a partir disso o jornal saiu à procura de tuação agudizada pela retração no mercado
quem se ocupasse desse encargo, a bem di- da publicidade em geral e da mídia em parti-
zer um insulto encomendado. cular, e que termina por dotar as notícias de
Naquela altura, assim como anos a fio, uma tônica puxada pelo escândalo, patente nas
a Folha de São Paulo mantinha uma página manchetes apelativas. Prova disso são as pri-
semanal dedicada à sua compulsão meiras páginas dos cadernos de cultura que
maniqueísta. Como todos se lembram, um passaram a ser tomadas por imagens publici-
determinado assunto era apresentado no alto tárias, encimadas por uma discreta chamada
da página, seguido de dois artigos escritos a sobre algum assunto tratado lá dentro.
seu propósito, o primeiro deles debaixo do tí-

205
cadernos da pós-graduação

Diante desse comprometimento que desassistido de lastro teórico e conhecimento


mais e mais vem pesando sobre essa moda- de causa, no dizer do escritor português Mario
lidade de texto, a maior parte da crítica de arte de Carvalho, quer chamar a atenção de todos
ou abandonou o barco, refugiando-se na aca- para a sua existência. E o triste consolo quan-
demia, cursos livres ou pesquisas marginais, to a esse quadro reside na constatação de que
imaginando que assim garantiria sua idonei- essa mesma história vem acontecendo com
dade e compromisso com a produção artísti- poucas modificações nos mais variados
ca, ou se manteve na imprensa às custas de quadrantes do planeta. Ainda assim, o Brasil
regredir, salvo algumas notáveis exceções, ao possui algumas peculiaridades. Vamos a elas
estágio da reportagem, da útil não obstante deixando claro que não pretendo aqui fazer um
superficial tarefa de noticiar o evento – no caso inventário de lamentações, mas dar a medida
de uma exposição - sem entrar no âmbito do de uma situação urgente e que, em respeito a
juízo sobre sua qualidade, ou regrediu ao es- epígrafe de Helio Oiticica, devemos nos em-
tágio da opinião pura e simples. penhar em resolver. E discutir faz parte desse
Pensando especificamente nas formas processo.
com que o mercado repercute na crítica de
arte, vemos que a saída pelo comentário arbi-
trário e desprovido de fundamento, a supera- Um intermezzo necessário para a
bundância de opiniões eventualmente até mes- apresentação da entrada do Brasil na era
mo insultuosas, revela-se como mais uma dos espetáculos
mercadoria. Dentro dessa dinâmica perversa,
a subjetividade, a opinião, quanto mais abusa-
A história é bem conhecida mas deve
da, peremptória e agressiva melhor, ganhou o
ser repassada. Trata-se da ampliação súbita
status de grife. Notadamente quando o objeto
do meio artístico brasileiro, fenômeno que se
de análise é a arte contemporânea, que conta
deu ao longo dos últimos quinze anos. A partir
com um grande número de desafetos, a co-
de então, no Brasil, a exemplo do que aconte-
meçar pela parcela a um só tempo ingênua e
ce em tantos países, a cultura em geral e as
arrogante do público, qual seja aquela que não
artes plásticas em particular, passaram a ser
suporta conviver com aquilo que não entende
vistas como um excelente horizonte de inver-
à primeira vista e insiste em reduzir o mundo
são de capital, capaz de atrair sólidos rendi-
àquilo que cabe no acanhado horizonte
mentos. No nosso país, a eficácia dessa nova
descortinado pelo seu olhar. Cumpre salientar
visão traduziu-se no surgimento de um gran-
que, freqüentemente, o ataque mais impiedoso
de número de novas galerias, na criação de
provém daqueles que um dia praticaram com
novas instituições culturais, no fortalecimento
dignidade e eventualmente com muita compe-
de antigas, na presença progressivamente
tência o diálogo com a arte de seu tempo. Este
maior de nossos artistas no exterior, em parti-
é o caso de Ferreira Gullar, embora não se
cular nas feiras de arte, a coqueluche do mo-
possa dizer o mesmo de Affonso Romano de
mento. Deve-se sublinhar ainda como
Santana, com seu esforço tão equívoco quan-
corolários desse processo a redefinição do
to ruidoso em medir a qualidade da produção
lugar da crítica e a presença cada vez mais
contemporânea através da régua da arte mo-
conspícua e ubíqua, não obstante muito con-
derna e correntes antecessoras.
trovertida, da figura do curador, os alvos des-
Nunca, como na imprensa do Brasil de sa conversa de hoje.
hoje, houve tanta possibilidade para aquele que,

206
instituto de artes

Voltando a situação brasileira, graças al do reconhecimento da nossa história da arte,


às leis de incentivo surgidas a partir do final isto é, museus com acervos constituídos e
dos anos 1980, leis segundo as quais os con- submetidos a revisões críticas e aquisições
tribuintes passaram a poder deduzir parte dos orientadas e publicações elaboradas no mes-
impostos fiscais devidos para investir em cul- mo diapasão. O tempo passa e estamos lon-
tura, a cena passou a ser cada vez mais co- ge da consolidação de um circuito institucional
mandada pelo assim chamado “marketing cul- capaz de dar visibilidade à nossa produção
tural”. Profissionais cuja especialidade consis- artística, seja ela moderna ou contemporânea.
te em oferecer a uma empresa qualquer um Nossos museus, em que pese o excelente
determinado “produto cultural”, supostamente material humano e o voluntarismo recorrente
mais afinado com o seu perfil, e que ela patro- de alguns deles, continuam dotados de acer-
cinaria através da isenção do pagamento de vos precários e equipes de profissionais incom-
impostos. Se no Brasil essa medida efetiva- pletas.
mente significou um divisor de águas no meio Na falta da retaguarda de um circuito
cultural como um todo, trouxe algumas defor- constitucional constituído, o mercado conver-
mações dignas de serem assinaladas. A mais te-se no principal protagonista do processo, o
importante delas decorre de um meio empre- primeiro e último recurso de tudo e de todos,
sarial imaturo, de natural desinteressado dos incapaz, pela sua natureza mesma, de contri-
problemas da cultura, ao mesmo tempo que buir para o desenvolvimento de uma produção
ansioso pelo que ela pode lhe oferecer em ter- crítica – venha ela sob forma puramente teóri-
mos de retorno de imagem. Num país sem tra- ca ou sob a forma de uma obra de arte, dado
dição em investimento no âmbito da cultura, que a vejo também na qualidade de pensamen-
cujos empresários notabilizam-se pela sede to - de natureza independente.
de lucros rápidos, concebendo a arte nos ter-
mos estritos de uma relação custo/benefício,
o marketing cultural, salvo algumas exceções, Todo o poder ao mercado!
e coerentemente com esse empresariado, ter-
mina por se interessar quase que exclusiva-
1. O crítico
mente por grandes nomes, eventos do tipo
“arrasa-quarteirão”. Feitas essas considerações pode-se
Pois tudo isso, até mesmo o progres- voltar à crítica e a constatação de que no Bra-
sivo reconhecimento no plano internacional da sil, de meados dos anos 1950 até o fim dos
nossa produção artística, acontece sem que anos 1980, a obra de arte com pretensões
tenha ocorrido a contrapartida de um reconhe- experimentais visava principalmente a ela. Na
cimento interno. Ainda que essa produção, ausência de mercado, até porque este quan-
como corretamente defende Sonia Salzstein, do principiou suas investidas, o que aconte-
dos anos 1950 em diante, esteja no mesmo ceu em princípios dos anos 1970, interessa-
patamar da arquitetura moderna brasileira (Os- va-se apenas por valores consagrados - Di
car Niemeyer e grupo) e do Cinema Novo Cavalcanti, Portinari, Pancetti, Bonadei etc -,
(Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos o crítico comparecia como o grande
à frente), ela, ainda segundo essa pesquisa- interlocutor do artista contemporâneo.
dora, não consegue impregnar o campo soci- E a invenção de categorias como “não-
al a uma dimensão pública. Não houve ainda a objeto”, resultado do diálogo cerrado entre
construção, por assim dizer, da prova materi- Ferreira Gullar, Lygia Clark e Helio Oiticica;

207
cadernos da pós-graduação

“aparelhos”, Ronaldo Brito e Waltércio Caldas, mo sob a evidência de que o aspecto mais
entre alguns outros exemplos, apontam para consistente da produção brasileira, aquela que
a fertilidade dessas relações e a compreen- de resto vem atraindo mais duradouramente o
são da crítica como uma tarefa que ultrapas- público internacional, deriva, como não pode-
sa os limites da interpretação e os problemas ria deixar de ser, da linha de continuidade com
de avizinhamento do objeto pela via da pala- a tradição interna do país, de resto muito mais
vra. ampla do que o extraordinário binômio entre
Não é que essa tradição de diálogo en- visão construtiva e transgressão, caso da he-
tre artistas e críticos, iniciada no anos 1950 rança neo-concreta, já bastante divulgado fora
com as conversas entre Mario Pedrosa, Lygia do país. Uma tradição que, naturalmente, se
Clark e Hélio Oiticica, tenha se perdido. Ela constituiu e continuará se constituindo a partir
pode ser verificada em outras associações de do diálogo intermitente e crítico com o campo
artistas e críticos, como Cildo Meireles e geral da cultura.
Frederico Morais, Antônio Dias e Paulo Sérgio Mas diante dessa sedutora Esfinge - o
Duarte, Nuno Ramos e Rodrigo Naves e, mais reconhecimento e a fama - que o mercado
recentemente, no uso ampliado que Lisette coloca no caminho do artista, especialmente
Lagnado fez do termo “instauração”, inventa- do jovem artista, avivando seus sentimentos,
do por Tunga. Também vale a pena mencionar guiando suas opções, para que mesmo a crí-
dois exemplos no terreno da curadoria, a tica? Salvo, talvez, se ela for laudatória...
operatividade dos conceitos de “Cartografia”, De volta ao lugar da crítica feita em con-
elaborado por Ivo Mesquita a propósito de uma tato íntimo com a produção, saliente-se que
exposição do início dos anos 1990, e “Antro- ela diz respeito a um aspecto muito particular
pofagia”, conceito nuclear da Bienal de São do trabalho do crítico. De fato, a operação crí-
Paulo de 1998, que Paulo Herkenhoff tomou tica que nasce dessa modalidade de diálogo,
emprestado de Oswald de Andrade. porque existem várias modalidades de diálo-
Ainda que essa sorte de diálogo se go com a obra é, no mais das vezes, um lugar
mantenha, é forçoso admitir que ele, como já carregado de afeto, de intensa adesão do ob-
foi dito, arrefeceu consideravelmente a partir servador frente aquilo que ele analisa. Não que
dos anos 1990. Nesse sentido é que parece não haja limites a serem colocados, não é que
contar a presença de um mercado cada vez não haja óbices e ressalvas por parte dessa
mais fluente e influente. Em vez de dar conti- linhagem de escritura. Toda crítica, mesmo
nuidade às discussões internas, em alguns aquela que, como defendia Baudelaire, que
casos tendo como interlocutor o crítico, o ar- pretende trazer em si as ressonâncias poéti-
tista cede muito mais facilmente às deman- cas do objeto de sua atenção, não poderá se
das do mercado, orienta-se através dele, pre- furtar à sua dimensão pública, o que a faz bus-
ocupa-se mais, e desde o interior da escola car ser objetiva, permeada por análises e juízos
de artes, com a direção dos ventos do de valor desdobrados de hipóteses e temas
mainstream. A naturalidade com que se admi- convenientemente demonstrados, com argu-
te a dinâmica desse processo deve ser con- mentos calçados por conceitos, aspectos his-
frontada, porém, com a freqüência com que tóricos etc. Ainda assim, aquele que escreve
trabalhos feitos de encomenda para o que se no calor do contato com o produtor da obra é
supõe seja o desejo do mercado, nomeada- seguramente mais cúmplice dos resultados do
mente o internacional, e que quase sempre que daquele que escreve mais distanciado e
resulta em banalidade. E isso acontece mes- cujo texto é publicado em revistas e jornais.

208
instituto de artes

Mesmo que se trate da mesma pessoa, feita especializadas – Galeria e Guia das Artes –
as contas, a finalidade do texto publicado em publicadas a partir da segunda metade dos
periódico, jornal e revista, é naturalmente di- anos 1980 em diante, não sobreviveram aos
verso. Destinado a um público anônimo e plu- anos 1990. O que existe são publicações
ral, que não necessariamente compartilha as erráticas e heróicas, promovidas por artistas,
cifras do idioma do especialista, a crítica de grupos independentes e profissionais ligados
jornal é aquela que, a partir de uma linguagem ao setor acadêmico. Este é o caso, entre pou-
mais direta e simplificada, no melhor dos ca- cas outras, de revistas como Gávea, Item, Arte
sos sem incorrer em reducionismos, busca & Ensaios, Ars e, mais recentemente, a revis-
fazer uma mediação entre o público e a obra ta Número, apoiada pelo Centro Universitário
de arte, sempre atendendo os parâmetros Maria Antônia, da Universidade de São Paulo,
apresentados anteriormente. ponto de encontro entre jovens críticos e
Vai daí que, em relação ao caso do crí- curadores. O mercado editorial de livros – ca-
tico situado próximo ao artista, no Brasil, a pitaneado pelas editoras Cosac & Naify, Com-
exemplo do que aconteceu nos Estados Uni- panhia das Letras e Martins Fontes – surge
dos nos anos 1980, ele terminou por se aco- aqui como notável exceção em um ambiente
modar nos catálogos publicados pelas galeri- reflexivo pouco denso, produzindo volumes
as e em livros no geral monográficos, o que fundamentais ao entendimento crítico da pro-
sucedeu não sem alguma incompreensão e dução contemporânea nacional. A Internet tem
desconforto das partes envolvidas. A título de também se tornado, nesse ambiente rarefei-
ilustração, testemunhei o caso de um artista to, um espaço privilegiado não só de difusão
que se recusava peremptoriamente a pagar, de informações, mas, igualmente, de elabora-
e, naturalmente, a publicar, o texto encomen- ção crítica.
dado a um crítico para figurar no catálogo de Descontado os problemas, já comen-
sua exposição, por julgar que ele não era sufi- tados, relativos à migração do texto crítico para
cientemente elogioso. as folhas de pagamento das galerias, e que,
Quanto ao segundo lugar ocupado pela como nos diz Perry Anderson, pode ser resu-
crítica, a imprensa, a tribuna de onde eram e mido como uma incompatibilidade entre inte-
são comentados os produtos artísticos, foi resses comerciais e reflexão simbólica, o fato
sendo abandonado ao menos pelos mais im- é que num país como o Brasil, onde as esfe-
pacientes diante de toda a pressão. O lugar ras, antes mesmo de serem demarcadas já
ainda não está de todo vago. Mas assinale-se nascem destruídas, esses problemas assu-
mais uma vez que são poucas e honrosas as mem um inventivo e irisado leque de práticas
exceções, isto é, os profissionais que se atre- venais. Assim, ao lado de contribuições sen-
vem a discordar e apontar problemas nas ex- síveis e intelectualmente honestas, temos um
posições resenhadas. Imagina-se que seus número ostensivamente maior, um imenso
lugares ou estejam sendo disputados ou já fo- repertório de publicações que não passam de
ram tomados pelos autores de diatribes e imposturas luxuosamente encadernadas com
agressões gratuitas, gente que faz o gosto da o único propósito de emprestar valor ao que
imprensa mais pedestre e do público mais não tem valor algum; um exercício editorial de
ávido por opiniões sanguinolentas. Isso quan- baixa qualidade, forjado em escrituras vazias
to aos jornais. Em relação às revistas é forço- e impresso em papel couché de alta gramatura.
so lembrar que não as possuímos mais; que, Isso não haverá de ser novidade para
sintomaticamente, as duas únicas revistas nenhum dos ouvintes embora eu acredite, in-

209
cadernos da pós-graduação

sisto nisso, na importância de compartilhar tal, face a sua total dependência de estratégi-
nossas experiências por dramáticas que se- as de cunho puramente comercial.
jam. Prosseguindo, há o caso freqüente do
convite, por parte das mais variadas institui-
ções, a curadores de fora e muitas vezes
O curador alheios aos aspectos essenciais de quem os
O último tópico a ser abordado, e o fa- recebem. O que é índice de duas coisas: ou
rei indicativamente, refere-se ao fato de que, que a instituição não tem um escopo claro de
no Brasil dos anos 1990, igualmente facultado atuação, uma missão e uma linha curatorial
pela considerável entrada de capital no setor, pré-definidas, ou as estão traindo. E por que
o crítico também migrou para a prática as traem? Aqui novamente comparece a rapi-
curatorial. Não quero com isso dizer que to- dez em atender as demandas dos patrocina-
dos os nossos curadores sejam provenientes dores, interessados em programações de im-
da crítica e tampouco que todos os críticos se pacto, uma dinâmica que têm como resultado
dediquem à prática curatorial. Mas sim ressal- imediato o fortalecimento de profissionais sem
tar que a prática curatorial revelou-se uma ex- lastro crítico, produtores de mostras sem uni-
tensão possível e fértil para que o crítico, dian- dade ou critério estético. Quanto a isso ainda
te de uma produção marcada pela variedade ressoam nos meus ouvidos as palavras de um
de disciplinas, e ainda mais colocada em con- produtor que, numa reunião comigo quando eu
fronto direto com a arquitetura e com o públi- respondia pela curadoria geral do Museu de
co, encontrasse um lugar privilegiado para a Arte Moderna do Rio de Janeiro, perguntou-me
disseminação de sentidos. candidamente: “Eu tenho um excelente patro-
cinador do ramo madeireiro, você não quer
Há muitos casos, todavia, conforme já
criar (sic) uma exposição que envolva madei-
se assinalou anteriormente, em que a prefe-
ra?”
rência do marketing cultural por blockbusters
tem dado margem a quantas exposições feé- A coisa prossegue e adquire contornos
ricas, desprovidas de sentido estético, alarmantes: curadores de museus e institui-
freqüentemente de responsabilidade de ções correlatas que re-orientam com invulgar
curadores que sequer se dão ao trabalho de à-vontade o rumo das instituições, ignorando
escrever sobre o que fazem, quanto mais sob toda a história durante o tempo em que pas-
um ângulo crítico. Nesse sentido, a exacerba- sarão a sua frente; curadores que são advisers
ção de poderes do curador, porque responsá- de galerias; marchands que incidem nas pro-
vel, em última instância, por legitimar e refe- gramações de museus; artistas que se sub-
rendar a produção desse tipo de exposições – metem a situações constrangedoras em nome
e por ser co-responsável, por esse mesmo da divulgação de seus trabalhos etc, etc. Nes-
motivo, pela alocação de recursos escassos se sentido, o simples cruzamento entre a pro-
em projetos que não agregam conhecimento gramação de museus com as programações
algum – tem contribuído para o esgarçamento das galerias comerciais pode render resulta-
crescente da relação entre produção artística dos do mais interesse.
e reflexão crítica. Isso é notadamente verda- É preciso sustar a marcha desse pro-
deiro em relação àqueles que, embora cesso, é preciso que as experiências sejam
entrincheirados entre os auto-proclamados in- solidificadas, que nós, artistas, críticos e
dependentes, não deveriam intitular-se como curadores comprometidos com a produção

210
instituto de artes

artística sejamos mais atentos aos limites na-


turais do mercado, sobretudo quando, num
caso como o brasileiro, ele tende a se apre-
sentar como arena da livre e feroz concorrên-
cia para onde o neo-liberalismo nos está em-
purrando. É somente pensando com prudên-
cia e método que lograremos enfrentar essas
novas adversidades.

Agnaldo Farias - Professor da Faculdade de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP, e crítico de
arte. Foi curador da Representação Brasileira da XXV Bienal
de São Paulo (2002), curador adjunto da XXIII Bienal de São
Paulo (1996) e da I Bienal de Johannesburgo (1995). Foi curador
geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1998/
2000) e curador de exposições temporárias do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo (1990/1992).
Atualmente é consultor de curadoria do Instituto Tomie Ohtake.
Autor, entre outros títulos, dos livros La Arquitectura de Ruy
Ohtake (Celeste, 1994), Arte Brasileira Hoje (Publifolha, 2002),
Amélia Toledo. As naturezas do artíficio (W11, 2004).

211
212
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Os excitáveis ou “l’art d’apprivoiser”

André Parente

Em minha última temporada Parisien- do à produção de efeitos cinéticos visuais e


se1 conheci alguns quadros-objeto intitulados sensoriais.
Excitáveis, criados pelo artista plástico Os excitáveis possuem dois compo-
cearense Sérvulo Esmeraldo. Foi um choque, nentes básicos: uma caixa, feita de cartão ou
literalmente ! Fui tomado por uma emoção ain- madeira, e dotada de uma cobertura de plásti-
da dura, e que só se intensificou desde então, co transparente, em geral plexiglass, e um
à medida que me pus a pesquisá-los conjunto de pequenos elementos, móveis e
leves, dispostos dentro da caixa. Os elemen-
tos são excitáveis pela ação da eletricidade
estática produzida na relação do espectador
com o quadro, por meio da fricção de sua su-
perfície.

“En frottant la surface du plastique avec le dos


de la main, on crée des charges électriques qui
par induction font apparaître des charges de signe
contraire sur des éléments contenus dans la boite.
Ceux-ci sont alors, tantôt attires par le plastique,
tantôt repousses vers le fond de boîte.” 2

A energia estática é uma forma de ener-


gia sutil e misteriosa. Antigamente, marinhei-
ros viajando à noite viam espectros
fantasmagóricos de luz azulada dançar nos
mastros dos navios. Chamavam a este fenô-
meno de “fogo-de-Santelmo”, patrono dos
marinheiros.
Os excitáveis são, antes de mais nada, O fenômeno da estática é muito comum
quadros-dispositivo de um tipo muito particu- nos vôos aéreos, uma vez que, nos ambien-
lar. Pois, além de pinturas abstratas, são má- tes frios e secos, a energia passa das superfí-
quinas eletrostáticas. Isto é, um quadro sensí- cies sobre a qual nos movemos e produzimos
vel à energia eletrostática que emana do es- atrito para os nossos corpos, até fluírem por
pectador e das condições atmosféricas, visan- nossas mãos para os objetos que pegamos,

213
cadernos da pós-graduação

gerando pequenos choques. Não era por aca- zados pelos próprios espectadores em suas
so que Esmeraldo testava pequenos protóti- interações físicas com as obras. Importa di-
pos dos excitáveis em suas viagens aéreas. zer que as obras cinéticas integram o movi-
Desde 1967, ano da criação do primei- mento virtual e o movimento real, o movimen-
ro excitável, e durante mais de 10 anos, Sérvulo to ótico e o movimento mecânico.
Esmeraldo realizou centenas de excitáveis3 Por outro lado, a arte cinética
que variavam em função de parâmetros tais problematiza a questão da participação do
como o material, a forma, a cor e o tamanho. espectador na obra de arte. Na arte contem-
Os menores e mais simples eram feitos com porânea, como na maior parte das obras
pequenos sacos de plásticos transparentes “à cinéticas, a obra é fruto da participação e da
fermeture étanche” ou “barquettes” de alimen- interação do espectador. Pouco a pouco, a
tos dentro dos quais eram colocados confetti participação vai cedendo o lugar a uma parti-
de várias formas e cores que possuem a gra- cipação ativa (interativa).
ça de um objeto híbrido, a meio caminho entre A arte brasileira fez duas importantes
o brinquedo, o protótipo e a arte. contribuições, reconhecidas internacionalmen-
Os maiores e mais complexos te, para a arte cinética: os Aparelhos
excitáveis podem ter algo em torno de um Cinecromáticos (1955) de Abraham Palatinik
metro e meio. Ouvi falar de um excitável com e os Bichos (1962) de Lygia Clark. A nosso
dimensões ambientais. Ele teria uma forma ver, chegou a hora de nos darmos conta de
tubular que ia do chão ao teto. Em seu centro, que os excitáveis, embora não sejam conhe-
haveria uma haste que o percorreria de cima cidos no Brasil, representam uma contribuição
a baixo, sobre a qual eram presos canudos de ainda maior do que as anteriores. Em relação
plástico que reagiriam à presença e aos movi- aos Aparelhos Cinecromáticos, os excitáveis
mentos dos espectadores que entravam na são interativos e em relação aos Bichos, eles
sala. Uma verdadeira instalação cinética introduzem uma interatividade não mecânica.
interativa! Na verdade, como veremos, os excitáveis são
A arte cinética e a arte cibernética têm como o ápice e a ruptura do movimento cinéti-
em comum o fato de serem as duas princi- co e exprimem muito bem a passagem da arte
pais correntes da arte contemporânea a mecânica para a arte eletrônica.
problematizar a relação da arte e da ciência, A partir dos anos 1960, a arte cinética
por um lado, e da participação do espectador produzirá dispositivos, situações e ambientes
na obra de arte, por outro. polimórficos, multisensoriais, transformáveis,
Embora presa aos problemas estéticos penetráveis, nos quais os espectadores são
herdados do construtivismo e do abstracio- convidados a participar como parte integrante
nismo geométrico, a arte cinética rompe com e essencial da obra. Como nas máquinas inú-
a questão da representação. Por um lado, a teis e derrisórias de Tinguely, nas máquinas
arte cinética não se interessa mais pela repre- cibernéticas de Schoeffer, nos dispositivos
sentação do movimento, mas sim pela sua magnéticos de Takis, os dispositivos eletros-
produção, e isto de pelo menos três diferentes táticos excitáveis são uma das descobertas
formas: movimentos óticos produzidos pela maiores da arte interativa dos anos 60.
deslocamento do espectador diante das obras, Na verdade, os excitáveis introduzem
movimentos mecânicos criados com a ajuda um terceiro fator que vai transformar a arte do
de motores e, finalmente, movimentos reali- movimento cinético em verdadeira arte da

214
instituto de artes

complexidade e da indeterminação, devido ao vos e passam a ser apenas o vetor de atuali-


fato de que, neles, o movimento se faz entre a zação sensorial e afetivo da obra. Em matéria
pintura e o objeto, entre o objeto e o especta- de arte, a única regra comum a dispositivos
dor, entre o espectador e o ambiente que o cir- tão distintos é que os efeitos sejam intensos e
cunda. Na verdade, nos excitáveis, como qua- os afetos excitáveis.
lificar o movimento que vemos? Qual é o lugar O que nos surpreende nos excitáveis é
do movimento? Qual é a sua origem e a sua como um dispositivo eletrostático de interação
destinação? O movimento flui ao longo do entre a pintura e o espectador pode se trans-
ambiente, sendo o espectador e o quadro formar em um dispositivo pulsional que, quan-
interfaces através das quais a energia flui sem to mais é excitado, mais é excitante. O
cessar. No entanto, não sabemos onde a ener- excitável é um puro acontecimento que toca o
gia começa e onde acaba. Entre o movimento espírito como uma presença imaterial, quali-
do espectador e o movimento dos elementos dade singular, pura afecção nervosa não pas-
da obra, há uma energia invisível que flui, ora sível de representação. É quase impossível fi-
gerando atração, ora gerando repulsão entre car ao lado de um excitável sem ser
os elementos em interação. Qual é a matéria “apprivoisé” por seu fluxo energético sem
da obra fenomenologicamente falando? Como destinação, igual a que sentimos diante do
qualificar esta materialidade-imaterial dos cachorro que balança o rabo.
excitáveis?
Para não entrarmos em discussões in-
Neste sentido, os excitáveis não são tricadas acerca de questões relativas ao esta-
apenas simples objetos, embora em aparên- do da estética após o sublime, em particular a
cia sejam de uma grande simplicidade, mas questão da materialidade imaterial e do tempo
objetos interativos eletrostáticos complexos paradoxal, vejamos uma metáfora como exem-
que mobilizam não apenas o espectador, que plo. Na famosa passagem do encontro da ra-
é apenas um elemento entre outros da obra, posa e do Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry
mas o ambiente como um todo. Não é à toa coloca de forma poética a questão da síntese
que os excitáveis são extremamente sensíveis passiva do tempo que está na base do senti-
às condições ambientes, o nível de umidade mento estético. Ao encontrar a raposa, o pe-
do ar, a temperatura e os materiais emprega- queno Príncipe a convida para brincar. A rapo-
dos, pois estes últimos têm uma enorme influ- sa porém, diz que não pode brincar porque não
ência sobre a interação entre o espectador e se sente “apprivoisé”. Intrigado, o Príncipe per-
os excitáveis. gunta o que é “apprivoiser”. A raposa então
Entre a pintura e o objeto, entre o obje- responde que se trata de uma coisa bastante
to e o espectador, entre o espectador e o am- esquecida: “cela signifie creer des liens”. Intri-
biente, os excitáveis são atratores estranhos gado, o Príncipe pergunta o que é criar laços:
que capturam e transformam nossas energi-
as. Os excitáveis correspondem muito bem ao “– Bien sûr, dit le renard. Tu n’es encore pour moi
conceito seminal de Jean-Francois Lyotard de qu’un petit garçon tout semblable à cent mille
pintura como dispositivo pulsional. Isto é, uma petits garçons. Et je n’ ai pas besoin de toi. Et tu
pintura que já não pode mais ser vista como n’a pas besoin de moi non plus. Je ne suis pour
representação de nada, pois os excitáveis se toi qu’un renard semblable à cent mille renards.
apresentam como transformadores de ener- Mais, si tu m’apprivoises, nous aurons besoin
l’un de l’autre. Tu seras pour moi unique au mon-
gia que suscitam efeitos e disposições da parte
de. Je serai pour toi unique au monde... Et puis
dos espectadores, que deixam de ser passi-

215
cadernos da pós-graduação

regarde! Tu vois, là-bas, les champs de blé? Je gamos um hipertexto, ou zappeamos a TV,
ne mange pas de pain. Le blé pour moi est inutile. nem sempre damos tempo para que se crie
Les champs de blé ne me rappellent rien. Et ça, vínculos. Por outro lado, sem os vinculos, con-
c’est triste! Mais tu as des cheveux couleur d’or. tinuamos a zappear. É um círculo vicioso: não
Alors ce sera merveilleux quand tu m’auras
damos tempo para que haja afeto e continua-
apprivoisé! Le blé, qui est doré, me fera souvenir
mos a nos deslocar porque nada nos afetou.
de toi. Et j’aimerai le bruit du vent dans le
blé... S’il te plaît... apprivoise-moi ! Na situação do zapping, dificilmente seremos
– Je veux bien, répondit le petit prince, mais je apprivoisé. No caso dos excitáveis, dificilmen-
n’ai pas beaucoup de temps. J’ai des amis à te interagimos com eles sem que eles nos
découvrir et beaucoup de choses à connaître. capturem em suas transformações energéti-
– On ne connaît que les choses que l’on cas. Tal é o mistério dos excitáveis.
apprivoise, dit le renard. Les hommes n’ont plus
le temps de rien connaître. Ils achètent des
choses toutes faites chez les marchands. Mais
André Parente – Doutor em comunicação pela Universidade
comme il n’existe point de marchands d’amis,
de Paris VIII, onde estudou entre 1982 e 1987 sob a orientação
les hommes n’ont plus d’amis. do filósofo Gilles Deleuze. Em 1987 ingressou na Escola de
– Si tu veux un ami, apprivoise-moi ! Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
– Que faut-il faire? dit le petit prince. onde criou o Núcleo de Tecnologia da Imagem (N-imagem).
Autor, entre outros títulos, de Narrativa e Modernidade. Os
– Il faut être très patient, répondit le renard…” 4
cinemas não-narrativos do pós-guerra (Papirus, 2000) e
Cinéma et Narrativité. Le cinéma expérimental, le cinéma
direct et le cinéma dysnarratif ( L’Harmattan, 2005).
Depois que a raposa foi “apprivoisée”, Organizador de Imagem máquina (Ed. 34, 1993), Redes Sen-
chegou a hora do Príncipe partir, e a raposa soriais: arte, ciência e tecnologia (Contra Capa, 2003) e Tra-
mas da Rede. Novas Dimensões Estéticas e Politicas da
disse que ia chorar: Comunicação (Sulina, 2004). Tem como principal foco de sua
pesquisa a problematização do papel da imagem no exercício
do pensamento, e a compreensão das tecnologias da imagem
“– C’est ta faute, dit le petit prince, je ne te
como formas inéditas de hibridação de campos diferenciados
souhaitais point de mal, mais tu as voulu que je de saber.
t’apprivoise...
– Bien sûr, dit le renard.
Notas
– Alors tu n’y gagnes rien !
– J’y gagne à cause de la couleur du bleu.” 5
1. Em 2004 fui convidado como Professor Visitante da Univer-
sidade de Paris III (Nouvelle-Sorbonne), onde ministrei cur-
sos de cinema, arte e novas tecnologias.
Esta pequena passagem é uma lição
de estética. Em arte, só criamos laços quan- 2. “Ao friccionarmos a superfície do plástico com o dorso da
mão, criamos descargas elétricas que, por indução, fazem
do somos afetados. E somos afetados ape- aparecer descargas de sinal contrário nos elementos conti-
nas em nossa passibilidade. Ou seja, somos dos na caixa. Em decorrência disso, esses elementos são
os laços e relações que contraímos. Antes por vezes atraídos pelo plástico, por vezes empurrados
para o fundo da caixa”. Cf. ESMERALDO, Sérvulo, “Méthode
mesmo de podermos nos representar as coi- pratique et illustré pour construire un excitable précédé d’une
sas, somos capturados por ela. Mas, para que notice sur l’életricité statique”. Antuérpia, Guy Schraenen
Editeur, 1976.
isto ocorra, é fundamental que nossa atenção
se volte para elas. A atenção é o cimento dos 3. Grande parte dos excitáveis se encontra em coleções fran-
cesas, suíças e belgas, lugares onde a arte cinética mais se
laços e afetos que se formam. difundiu na Europa.
Quando colocamos a questão da 4. - “Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão
interatividade esquecemos o tipo de um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu
não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessi-
interatividade de que se trata. Quando nave-

216
instituto de artes

dade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a


cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos
necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo.
E eu serei para ti única no mundo... (...) E depois, olha! Vês,
lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para
mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa algu-
ma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então
será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é
dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do
vento no trigo... (...) - Por favor... cativa-me! (...) - Bem qui-
sera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo.
Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.- A
gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a rapo-
sa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma
coisa. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não
existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos.
Se tu queres um amigo, cativa-me! - Que é preciso fazer?
perguntou o principezinho. - É preciso ser paciente, respon-
deu a raposa”. In: SAINT-EXUPERY, Antoine de. O pequeno
príncipe. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2004, capítulo XXI.
5. - “A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te
fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse... - Quis,
disse a raposa.- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.-
Vou, disse a raposa.- Então, não sais lucrando nada! - Eu
lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo”. Idem,
capítulo XXI.

217
218
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

A “mensagem do meio”: Pop Art e fotografia*

Annateresa Fabris

Num dos capítulos de Marxismo e for- tomado pelos objetos fotográficos da Pop Art,
ma (1971), Fredric Jameson propõe uma pela lata de sopa Campbell e pelas represen-
contraposição entre a concepção surrealista tações de Marilyn Monroe. As substituições são
do objeto e a inerente à Pop Art, a partir de múltiplas: “basta-nos trocar o ambiente de pe-
uma explicação econômica. Os objetos que quenas oficinas e balcões de lojas, o mercado
despertam o interesse dos surrealistas são de pulgas e as bancas nas ruas pelos postos
produtos de uma economia ainda não de todo de gasolina ao longo das auto-estradas ame-
industrializada e sistematizada, que trazem as ricanas, pelas lustrosas fotografias nas revis-
marcas de uma organização artesanal do tra- tas, ou pelo paraíso de celofane da drugstore
balho e de uma distribuição garantida por uma americana”. Os objetos do Surrealismo desa-
rede de pequenos lojistas. Como a publicida- pareceram, sem deixar qualquer vestígio, por-
de não atingiu as proporções atuais, os anún- que os produtos que nos cercam são absolu-
cios podem ser “apreendidos como objetos de tamente destituídos de profundidade: “seu con-
fascínio em si mesmos”. A energia psíquica teúdo de plástico é totalmente incapaz de ser-
que os surrealistas infundem nos objetos deri- vir como condutor de energia psíquica (...).
va precisamente da marca do gesto humano Qualquer investimento da libido em tais obje-
ainda presente neles. Entre esses objetos, o tos é obstruído já de início, e podemos nos
autor confere um destaque particular ao ma- perguntar se é verdadeiro que nosso universo
nequim, que considera o “verdadeiro emble- de objetos é doravante incapaz de fornecer
ma” da sensibilidade de uma época, o “totem algum ‘símbolo apto a despertar a sensibilida-
supremo da transformação da vida pelos de humana’, se não estamos na presença de
surrealistas”, por fazer do corpo humano um uma transformação cultural de proporções
produto, por demonstrar a existência de uma extraordinárias, uma ruptura histórica inespe-
outra presença que olha para a humanidade radamente absoluta em sua natureza”.2
com um olhar triste e que a interpela com uma A dicotomia apontada por Jameson en-
voz sem vida.1 tre dois tipos de objetos – os artefatos
O romantismo dos surrealistas, que surrealistas, portadores das dimensões do
haviam transformado a cidade em natureza, desejo e do imaginário, e os ícones mais vis-
não tem condições de sobreviver ao advento tosos da cultura de massa – não será objeto
de uma nova ordem econômica, caracteriza- de uma reflexão comparativa, que não caberia
da pela subordinação de todas as formas de no espaço dessa comunicação. O que se ten-
produção ao sistema de mercado e pelo do- tará fazer será testar a hipótese do autor à luz
mínio do antinatural. O lugar do manequim é de um elemento que ele destaca no caso do

219
cadernos da pós-graduação

Surrealismo, mas não da Pop Art: a presença vada da publicidade; a justaposição de frag-
da fotografia enquanto elemento qualificador de mentos do cotidiano que dão a ver a precarie-
uma determinada percepção do real. dade e o caráter provisório das mensagens
Confrontados com uma paisagem, que veiculadas pelos sistemas de comunicação
William C. Seitz descreve nos termos de um social, apresentada por James Rosenquist
“collage environment”, os artistas da segunda com os recursos técnicos, as cores e a
metade do século XX adotam uma atitude aber- simbologia elementar da linguagem publicitá-
ta diante de um ambiente urbano caracteriza- ria; a transposição gigantesca das imagens
do pela presença de “letreiros confusos, luzes, das histórias em quadrinhos feita por Roy
anúncios, filmes comerciais, cemitérios de Lichtenstein, que se vale da gama cromática
automóveis, detritos de bairros miseráveis”.3 (preto e branco, vermelho, azul e amarelo) e
Concebendo a cidade como “um fenômeno de da retícula fotográfica dos originais; a comida
comunicação”, os artistas pop inauguram a de dimensões pantagruélicas valorizada por
ideologia do “aprendendo com Las Vegas”, e Claes Oldenburg, que pode tanto lembrar uma
propõem, como farão, em 1972, Robert sociedade afluente em busca de gratificação
Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, quanto a obsessão oral que caracteriza a cul-
“questionar o modo como vemos as coisas”.4 tura norte-americana.
O questionamento de um modo de ver Ao usarem imagens e recursos fotográ-
codificado desdobra-se em várias direções, ficos, os artistas pop não se limitam a propor
tendo como epicentro as múltiplas imagens que um registro do cotidiano. Como lembra Mario
constelam a paisagem urbana, sob forma de Amaya, a fotografia, em suas mãos, “perde
símbolos de status (automóveis, objetos do- misteriosamente todo significado como um
mésticos, alimentos, residências, etc.), publi- descritor, tornando-se um meio de puro
cidade, ícones técnicos, mitos de massa e design”, a apontar para a nova natureza da
simbologia sexual.5 Se a imagem está no cen- realidade quer na arte, quer na vida7, marcada
tro das operações pop, não admira que os ar- pela dimensão do artifício.
tistas lancem mão da fotografia, concebida A idéia de Amaya de que a Pop Art não
quer como um estímulo visual tão enraizado se limita a um simples registro ganha reforço
no inconsciente que necessita ser redefinido se se atentar para uma das estratégias
como objeto e descritor mecânico, quer como adotadas pelos artistas na apresentação dos
um processo que permite controlar os diferen- objetos: o deslocamento, presente nos qua-
tes estágios do desenvolvimento mecânico da drinhos ampliados de Lichtenstein, nas latas
obra.6 Graças à fotografia, os procedimentos de sopa e nas garrafas de Coca-Cola de
reprodutivos são inseridos nos processos ar- Warhol, nos objetos gigantescos de Oldenburg
tísticos de diferentes maneiras, podendo ser e nas imagens de derivação publicitária de
destacadas algumas incidências como a con- Wesselmann e Rosenquist. Um elemento ser-
cepção de ampliação inerente a muitas obras ve de traço unificador: o isolamento no qual o
e a preferência pela técnica serigráfica por parte objeto é apresentado, separado de seu con-
de um artista como Andy Warhol. texto por uma espécie de enquadramento fo-
Ampliações são, sem dúvida, a repre- tográfico. Segundo Claudio Marra, o isolamento
sentação do nu feminino, despersonalizado e proposto pelos artistas pop reveste-se de dois
destituído de toda sensualidade, levada a cabo significados: remete a uma relação unívoca
por Tom Wesselmann com uma técnica deri- com o mundo e subtrai o objeto do curto-cir-

220
instituto de artes

cuito do uso prático no qual está mergulhado. precisas da imagem técnica – mecanização,
No primeiro caso, o isolamento evidencia uma serialidade e reprodutibilidade – que o artista
suspensão de juízo, uma tomada de consci- aplica na representação das latas de sopa
ência sem escolha, uma vez que o objeto, sub- Campbell e das garrafas de Coca-Cola.10
traído do contexto de valores que poderiam A ambientação A loja, apresentada por
conferir-lhe um significado, vale apenas por si. Oldenburg em dezembro de 1961, desperta
No segundo caso, assiste-se ao estranha- um outro paralelo com a fotografia, embora de
mento do objeto, o qual, tendo perdido suas natureza diferente das operações de Warhol.
finalidades práticas, torna-se portador de uma Para o crítico Jack Kroll, Oldenburg seria “o
espécie de percepção absoluta, de clara deri- Cecil Beaton da regressiva zona degradada de
vação fotográfica.8 nossa inocência perdida e levemente mal chei-
Embora isolados do contexto, os obje- rosa”, o que acaba por colocar entre parênte-
tos que comparecem nas obras dos artistas ses a tradição de reportagem objetiva e remi-
pop são chamados por eles de “minha paisa- niscência histórica associada ao Lower East
gem”9, o que não deixa de ser significativo, pois Side, o bairro de Nova Iorque a que o artista
aponta, mais uma vez, para uma relação com fazia alusão com sua ambientação, inspirada
a realidade mediada pelo artifício e pelas es- numa loja de descontos. Ao ser vista através
truturas tecnológicas. O artista pop mantém das lentes de um fotógrafo associado à alta
com os objetos uma relação destituída de pre- costura, essa região da cidade torna-se um
conceitos e dissimulações. Escolhidos por objeto artístico e reveste da mesma qualidade
estarem ali, por integrarem o novo contexto o mundo do comércio, que passa a ser trata-
urbano, os objetos são aceitos em sua do como um espetáculo estético.11
alteridade, em sua onipresença, em sua pa- Se as imagens comerciais de Warhol
dronização, não sendo transformados em ve- e Oldenburg suscitam uma visão fotográfica,
ículos de idéias estéticas, morais ou políticas. que reafirma a relação intrínseca entre apara-
Evidenciam sem pejo sua condição de mer- tos tecnológicos e Pop Art, a problemática da
cadoria, sem serem portadores de significa- fotografia é ainda mais evidente no segundo
dos desveladores do inconsciente e do dese- grande eixo da poética, o relativo aos valores
jo, como no Surrealismo. da cultura de massa. Quem mais se destaca
As latas de sopa Campbell, que se tor- nele é Warhol, por explorar vários ícones des-
naram um dos emblemas da relação da Pop sa cultura, derivados diretamente do jornalis-
Art com o universo da mercadoria, não repre- mo. Num primeiro momento (1961-1962), o
sentam a primeira escolha de Warhol. Seu pri- artista pinta em acrílico uma primeira página
meiro interesse é despertado por outros obje- notavelmente ampliada de jornais como o New
tos emblemáticos da sociedade de consumo York Post, o Daily News e o New York Mirror.
– televisor, aquecedor de água, aspirador de Esse primeiro interesse por imagens proveni-
pó, furadeira –, acompanhados por seus res- entes do universo da comunicação de massa
pectivos preços e representados com as co- multiplica-se, levando-o a buscar na imprensa
res dos anúncios publicitários originais veicu- ou nos stills publicitários fotografias de figuras
lados pela imprensa, ou seja, preto e branco. e cenas emblemáticas de uma nova cultura
O uso de fontes fotográficas explícitas nessas visual. Entre as primeiras, privilegia as imagens
obras datadas de 1960 desdobra-se, dois anos de estrelas do cinema, do espetáculo e da
mais tarde, num olhar moldado por qualidades política, como Marilyn Monroe (1962), Elvis

221
cadernos da pós-graduação

Presley (1964), Liz Taylor (1964) e Jackie A repetição mobilizada por Warhol é
Kennedy (1965). Em relação às segundas, analisada por outro prisma por Christopher
manifesta preferência por acontecimentos do Finch, que toma como ponto de partida Aci-
cotidiano, como suicídios, motins, acidentes dente branco (1963). A fotografia não poderia
automobilísticos, catástrofes, etc. ser mais horrendamente real, mas, multiplica-
Em muitas dessas obras, Warhol não da, torna-se, de algum modo, dependente do
se limita à apropriação de fotografias; leva seu formato da tela, distanciando o observador do
gesto mais longe, aplicando em seus traba- acontecimento. Se o artista transforma a ima-
lhos um dos dispositivos fundamentais da ima- gem de um fato real numa obra devedora da
gem técnica, a repetição. Ao lidar, de maneira concepção pós-cubista do espaço e das mas-
oblíqua, com a idéia de unidade e/ou identida- sas nele reunidas como uma coisa em si, não
de enquanto portadora de sentido, o artista deixa, ao mesmo tempo, de lançar mão da
estaria, de acordo com Oscar Masotta, colo- estética do tédio, própria da programação
cando em pauta a questão do código. Longe televisiva. Warhol transfere para seu trabalho
de pretenderem expressar, suas repetições aquele senso de distanciamento provocado no
visam significar, isto é, “fazer-nos sentir a cor- espectador pela repetição monótona de acon-
relação entre dois significantes que se opõem tecimentos violentos, mas consegue um efei-
(multiplicação-identidade) com dois significa- to diferente do da televisão, na medida em que
dos que também se opõem (não-sentido-sen- retém o interesse de seus observadores.13
tido)”, confrontando o espectador com a pre-
sença do código. Diferentemente de um artis-
ta como Arman, que transforma a quantidade
em qualidade, ao fazer de suas acumulações
um campo de problemas pictóricos, Warhol
explora um campo de relações lógicas graças
a uma imagem (multiplicada em termos de
conjunto) previamente despojada de tensões
gestálticas e de todo dinamismo interno. Pelo
fato de a apreensão de suas obras se dar na
descontinuidade, por sucessivas operações
corporais, o crítico argentino acredita que o que
ele produz são signos e não imagens, posto
que a imagem é “um ato único, espontâneo e
sintético da consciência”. Apesar dessa res-
salva, que apontaria para a “identidade de indi-
ferença” de cada imagem, Masotta afirma, por
fim, a ambivalência de significados de que os
trabalhos de Warhol seriam portadores: eles
Fig. 1: ANDY WARHOL - White Car Crash. Serigrafia
tanto apontam para o sentido, isto é, para a s/ tela, 1963.
multiplicidade como signo no interior de um
código, quanto para o não-sentido, ou seja, Por viver numa paisagem configurada
para o absurdo, para a “queda caótica da cul- pelos meios de comunicação de massa, o ar-
tura na natureza”.12 tista pop não poderia deixar de usar imagens
fotográficas, uma vez que a percepção da re-

222
instituto de artes

alidade do habitante das cidades foi profunda- mercadoria. Essa identificação tem seu lado
mente alterada pelo predomínio do artifício. A progressivo nas novas propostas da linguagem
fotografia não é um atalho para evitar a fatura artística. Por outro lado, apresenta seu lado
manual do quadro, mas o reconhecimento da conformista, regressivo e, até mesmo, repres-
condição de existência objetiva que a imagem sivo em termos de totalidade social na apa-
técnica adquire aos olhos do usuário: algo não rente ordem e conciliação estética, não real,
tangível, mas dotado de todos os atributos da que recusa à arte toda possibilidade de anta-
realidade corriqueira.14 gonismo e negação. Exceto poucos casos em
Diante dessas evidências, é possível algumas obras de Kitaj, Tilson, Warhol e ou-
subscrever na íntegra a hipótese de Jameson? tros, raramente é possível detectar sinais críti-
Um autor como Simón Marchán Fiz, embora cos. Nunca coloca em questão a ideologia da
considere a Pop Art como “a tendência mais manipulação e se movimenta, em geral, no
decisiva na evolução da representação da dé- contexto da falácia do popular, denunciada no
cada de 1960”, não deixa de detectar na início”.15
impessoalidade, objetividade e neutralidade A poética da Pop Art é suficientemente
ostentadas pelos artistas associados a ela ambígua para ser interpretada a partir de
uma forma de apresentação do status quo sem parâmetros opostos aos de Jameson e
qualquer desejo de modificá-lo. Isso explicaria Marchán Fiz, em vários níveis. Em relação à
não só o uso de processos mecânicos, so- presença determinante do objeto, é inegável
bretudo a fotografia, mas também a falta de que, graças a ele, foram superados determi-
qualquer crítica em sentido estrito: nados valores estéticos tradicionais, baseados
na perenidade e na unicidade, tendo sido aber-
“Embora a ‘pop’ rechace as convenções estilís- tas novas possibilidades à criação artística,
ticas e temáticas da tradição aristocrática da arte sobretudo a de relacionar-se com o universo
e assuma o cotidiano e o banal, submete-se, urbano de maneira franca, sem atentar para a
praticamente sempre, aos valores simbólicos do oposição (canônica) entre estético e não-es-
sistema estabelecido. Revela ser a arte de uma tético.16 Se os artistas pop despertam a aten-
sociedade capitalista altamente desenvolvida. A ção do espectador para os aspectos estéticos
relação com essa sociedade dá-se pela técnica
do cotidiano, levam-no também, embora não
mecânica de reprodução e pelo princípio de mul-
de modo frontal – nos moldes da anterior no-
tiplicação de massa, e, ainda, pelas convenções
estilísticas e unidades temáticas escolhidas. ção de engajamento – a perceber que há algo
Apresenta, pois, os produtos de massa e suas de inquietante neste mesmo cotidiano e nos
implicações de um modo quase literal. Embora, objetos onipresentes em suas telas e no am-
às vezes, se possa detectar alguma distância biente urbano.
crítica ou irônica, pretende, via de regra, ser ‘neu- Mergulhada numa nova idéia de cida-
tra’. (...) As obras são radicais na banalidade de, moldada pelo predomínio do consumo e
consciente do objeto e conseqüentes na instau-
da comunicação, a Pop Art é, a seu modo, uma
ração da realidade do mundo da mercadoria.
interpretação dessa nova situação, produzin-
Estabelecem relações de ordem entre o mundo
do consumidor e o mercantil, elevando tudo isso do efeitos de estranhamento, graças aos re-
à categoria artística, convertendo-o em estética.” cursos estilísticos utilizados, e negando, com
suas imagens efêmeras, a eternidade dos
ícones da história da arte. Imagem de um mun-
A ‘neutralidade’ aparente resolve-se na
do sem ilusões, no qual a banalidade cotidia-
identificação entre o mundo da arte e o da
na se desdobra em vitrines, cartazes e no jogo

223
cadernos da pós-graduação

de reflexos da sociedade do espetáculo17, a do retrato fotográfico (UFMG, 2004). Organizadora de


Modernidade e modernismo no Brasil. (Mercado das Letras,
Pop Art traz em seu bojo a problemática do 1994) e Arte e política: algumas possibilidades de leitura. (C/
enfraquecimento do sujeito e da ascensão dos ARTE, FAPESP, 1998). Recebeu o Prêmio Jabuti de Ciências
códigos sociais, criando uma cenografia para Humanas pelo livro: O futurismo paulista, e o Prêmio Sérgio
Milliet da Associação Brasileira de Críticos de Arte pelo livro:
o banal e para o objeto, despido de sua antiga Cândido Portinari.
percepção empática. Confrontado com o novo
universo da tecnologia da informação que, na- Notas
quele momento, estava sendo analisado por
Marshall McLuhan numa obra seminal como 1. JAMESON, Fredric. Marxismo e forma: teorias dialéticas da
literatura no século XX. São Paulo: Hucitec, pp. 85-86. 1985.
Understanding media (Os meios de comuni-
cação de massa como extensões do homem, 2. Idem., p. 86.

1964), o artista pop não deixa de prestar aten- 3. LIPPARD, Lucy. “O ‘pop’ de Nova Iorque”. In: Lippard, Lucy et
al. A arte pop. Lisboa: Editorial Verbo, p. 79. 1973.
ção aos significados presentes nas estruturas
tecnológicas. O próprio Mc Lunhan, numa con- 4. VENTURI, Robert et al. Aprendendo com Las Vegas. São
Paulo: Cosac & Naify, pp. 25 e 27. 2003.
ferência proferida em 1966, estabelece uma
5. MARCHÁN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto
relação frutífera entre Pop Art, meio urbano e (1960-1974). Madrid: Ediciones Akal, pp. 42-44. 1997.
novas tecnologias, ao detectar na vertente “o
6. AMAYA, Mario. Pop Art... and after. New York: The Viking
reconhecimento de que o próprio ambiente Press, p. 22; MARCHÁN, op. cit., p. 38. 1966.
exterior pode ser processado como arte” e a 7. AMAYA. Idem, p. 27.
possibilidade de “treinar a percepção huma-
8. MARRA, Claudio. Fotografia e pittura nel Novecento: una
na” para uma realidade inédita, a do storia “senza combattimento”. Milano: Bruno Mondadori, pp.
“imediatismo” e da “totalidade eletrônica”.18 147-149. 1999.

O olhar que o artista pop lança sobre a 9. COMPTON, Michael. Pop Art. London: Hamlyn, p. 34. 1970.

paisagem urbana tem como trâmite as ima- 10. ROUILLÉ, André. La photographie: entre document et art
contemporain. Paris: Gallimard, pp. 410-411. 2005.
gens produzidas pelos meios de comunicação
de massa. Em seu universo, feito de simula- 11. WHITING, Cécile. A taste for pop: pop art, gender and
consumer culture. Cambridge: Cambridge: University Press,
cros, mitos midiáticos, ícones pré-constituídos, p. 28. 1997.
não cabem mais os valores da modernidade. 12. MASOTTA, Oscar. El “pop art”. Buenos Aires: Editorial
O significado epifânico inerente aos objetos Columba, pp. 64-65, 71-75. 1967.
surrealistas é substituído pela “mensagem do 13. FINCH, Christopher. Pop Art: object and image. London:
meio”, teorizada por Mc Luhan, abrindo cami- Studio Vista, pp. 149-150. 1968.
nho para um novo momento cultural, não por 14. Idem, p. 98.
acaso denominado de pós-moderno. 15. MARCHÁN, op. cit., pp. 47-49.

16. Charles Schultz, num desenho animado da turma do Charlie


*Investigação realizada com uma bolsa de Produtividade em Brown, cria uma situação que demonstra a penetração da
Pesquisa do CNPq. O presente artigo é um excerto da confe- estética pop na sociedade norte-americana. Durante uma
rência “Imagens do urbano: do moderno ao contemporâneo”, visita ao museu de arte moderna, algumas crianças, entre
proferida no Seminário Nacional “Dimensões do urbano” as quais Charlie Brown e Patty Pimentinha, se afastam do
(Criciúma, UNESC, maio de 2006). grupo e acabam entrando num supermercado. Tomam os
produtos expostos nas prateleiras por obras de arte e, no
relatório apresentado no dia seguinte, demonstram ter reali-
Annateresa Fabris – Professora Titular do Programa de Pós-
zado uma experiência de fruição estética.
Graduação em Artes da Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo - ECA/USP e pesquisadora do CNPq, 17. PRADEL, Jean-Louis. L’art contemporain depuis 1945. Pa-
É autora, entre diversos outros títulos, de Futurismo: uma ris: Bordas, p. 39. 1992.
poética da modernidade (Perspectiva/EDUSP, 1987), Portinari,
18. MCLUHAN, Marshall. “O meio é a mensagem”. In: McLuhan
pintor social (Perspectiva/EDUSP, 1990), O futurismo paulista
por McLuhan: conferências e entrevistas. Rio de Janeiro:
(Perspectiva/EDUSP, 1995), Identidades virtuais. Uma leitura
Ediouro, p. 130. 2005.

224
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Notas sobre arte e política

Celso Favaretto

1. As modalidades artísticas que na importante questão – o que é a arte? –, e


enfatizam a idéia de participação parecem ser de todo o trabalho de extensão do campo da
muito apropriadas para se pensar relações de arte e das tentativas de fazer da arte um lugar
arte e política, pois aí a “partilha do sensível” de resistência no interior do campo social.
aparece com forte evidência. Sabe-se que na 3. O que é interessante de se pensar é
arte moderna, especialmente a de vanguarda, se a atual reproposição da “imanência” tem a
a participação aparece quase como cumpri- ver com a insatisfação dos próprios artistas a
mento de algo inevitável, como se fosse, des- respeito do “valor social da arte” ou com o apa-
de os construtivistas russos, um suposto dos ziguamento crítico das tensões e debates que
desenvolvimentos das proposições e experi- envolveram as discussões sobre a “função
mentações – um suposto que, freqüentemen- social” da arte moderna de vanguarda. No Bra-
te, é emblematizado no desejo de passar da sil, a questão foi muito claramente enfrentada
arte à vida, de pensar a arte e a vida comparti- nos anos 1960-70, delineando-se nos proje-
lhadas socialmente. A participação surge, di- tos, programas e nos debates, o essencial das
gamos, para suprir um deficit de ação, supos- proposições sobre a imanência do político na
ta imanente na arte desde os primórdios da arte e vice-versa – tanto nas artes em que a
arte moderna. participação era explícita, em seus diversos
2. Fala-se num revival da participação matizes, às vezes até mesmo sectários, quan-
na arte contemporânea das últimas décadas, to nos projetos e práticas em que a participa-
depois dos grandes investimentos na partici- ção não era direta, mas suposta intrínseca aos
pação nos anos de 1960-70 e nos processos formais de modo constituinte. Pas-
desinvestimentos dos anos de 1980, no qua- sada a febre, as ilusões, ou simplesmente a
dro do que foi considerado como pós-moder- necessidade de tais projetos e debates, o que
no. Mas, parece que a participação que não restou? Ao se repor a questão, será que o que
mais investe o político, como o que ocorria na se quer assinalar é a extraordinária indiferen-
década de 1960, virou consensual, manifes- ça que salta da arte contemporânea? Por que
tando-se por experiências sem grande interes- a volta desse assunto, se as experimentações
se e vitalidade, quase sempre referidas direta que motivaram o debate já foram devidamen-
ou indiretamente a esquemas da recepção te codificadas? O que incomoda? Talvez uma
midiática. Parece que as experiências mais excessiva mornidão da arte? Ou uma falta de
recentes ressentem-se da falta daquilo que nos contundência, quando e onde há claras inten-
anos 1960-70 constituía-se na força de toda ções em significar o político? Mais ainda: por-
arte nova, de todo interesse crítico centrado que a aposta na participação não mais é

225
cadernos da pós-graduação

operante, caindo na indiferença? Seriam, es- 5. Considerando, como diz Rancière,


tas práticas artísticas apenas práticas “com- que “as práticas artísticas são ‘maneiras de
pensatórias”, porque as “intervenções” não fazer’ que intervêm na distribuição geral das
teriam mais a eficácia que tiveram nos anos maneiras de fazer e nas relações com manei-
60? E que eficácia teria sido a daquela época? ras de ser e formas de visibilidade” tratava-se
4. Tratava-se, naquele tempo, de pro- então de inventar proposições, soluções ima-
por a arte como modalidade de intervenção na ginativas, que por uma ação que visava a re-
“realidade” como um todo, ou especificamen- sultados esperados – a conscientização por
te em alguns de seus aspectos, como o urba- exemplo –, deveriam distender as formas da
no, ou como intervenção no sistema de pro- experiência política, como a sempre sonhada
dução cultural e de comunicação. Basta lem- pela arte: definição de um lugar de fala, inau-
brar a novidade da intervenção tropicalista nos guração de um tempo de promessas. Lem-
festivais de música popular dos anos de 1960, brando Foucault, conceber a vida como arte,
por exemplo. Enfim, tratava-se de fazer a críti- implicando a constituição de modos de exis-
ca dos lugares institucionalizados de tência, de estilos de vida, que relevam da es-
evidenciação e de circulação da arte. Uma arte tética e da política, pois ambas das dimensões
da ação, de convite, exigência ou imposição humanas postulam regras, ainda que faculta-
de participação, que seria irrecuperável pelo tivas para o que há para se fazer, para o que
princípio da representação, concebia experi- se faz e para o que pode ser feito4. Imbrica-
ências que implicavam o coletivo, no modo de mento, portanto, de ética e estética, como que-
se apresentar e na significação, visando qua- riam os artistas dos 1960, visionários, que viam
se sempre a uma eficácia imediata, e mais, a neste modo de generalização da arte a possi-
uma eficácia simbólica. Estas experiências bilidade de reinvenção da política. E este
configuravam novos modos de sentir, de rela- imbricamento, como se sabe, princípio e pro-
cionar-se, de agir socialmente, com que pre- cedimento modernos, implicava uma interven-
tendiam induzir “novas formas da subjetivida- ção no próprio coração do ato artístico: o novo,
de política”1, pelo entendimento que faziam da o que diferencia e abre o vulto da significação,
fusão da arte com a vida. Tempo das ilusões é ruptura, abolição da representação, da for-
(revolucionárias e dos comportamentos); tem- ma eleita, inventor da vida nova. Busca políti-
po “das promessas da emancipação”, muito ca, isto é, busca do que é “comum”, procura
diversa da desilusão histórica recente2. Aliás, “das reconfigurações do sensível comum”5.
dada esta visada da desilusão, entende-se Algo que remete, sem dúvida, àquilo que
porque a reposição da “participação” se faz ao Deleuze denomina “enunciação coletiva”, fra-
modo da “reparação”e da reconciliação3. As turas que Rancière entende como contribui-
tendências mais significativas da arte brasilei- ção “para a formação de coletivos de
ra dos anos 1960, e mesmo já dos 1950, esti- enunciação que repõem em questão a distri-
veram comprometidas com o imperativo mo- buição dos papéis, dos territórios e das lingua-
dernista da emancipação; as diferenças entre gens (...) desses sujeitos políticos que
os projetos dependiam da maneira como com- recolocam em causa a partilha já dada do sen-
preendiam a imbricação de arte e política, ao sível”6. A intervenção artística deriva, assim,
articularem teorias e práticas às exigências da dos modos específicos do sensível com que
realidade brasileira, que se impunham como se apresentam os produtos artísticos, sendo
necessidade. aí que se operam as transformações estéti-

226
instituto de artes

cas que podem fazer o político repercutir sen- simplesmente diluir as estruturas no cotidia-
sivelmente. no, mas, acima de tudo, transformar os parti-
6. Embora às vezes ingênuos (pensa- cipantes “proporcionando-lhes proposições
dos hoje, retrospectivamente, não no seu abertas ao seu exercício imaginativo”, de modo
surgimento) os projetos e ações das artes dos a torná-lo “objetivo em seu comportamento
anos 1960, enquanto prefiguravam, imagina- ético-social”. Tratava-se, portanto, de uma ou-
vam, um modo solidário de vida social, tra inscrição do estético: o artista enquanto
emblematizadas ou alegorizadas em suas motivador da criação; a arte como intervenção
experiências, consideravam que as ações de- cultural.
rivadas dos propostas e programas eram já 8. O imaginário que conduzia o experi-
agentes efetivos, de uma maneira ou outra, de mental de Oiticica é aquele que se interessa
transformação das relações intersubjetivas e pela função simbólica das atividades – o que
coletivas. Acreditava-se, quase sempre, no implica a suplantação da imaginação pessoal
valor simbólico das ações, na força do instan- em favor de um imaginativo coletivo – e não
te e do gesto. Ora, estes atos eram “produzi- pelos simbolismos da arte. O requisito para
dos”. Substitui-se o mito da “criação artística” que isto se cumpra é que as atividades, as
pela idéia de que a invenção é “trabalho”, é “fa- ações, devem supor uma adequada perspec-
bricação”. Considera-se, assim, que a arte tiva crítica para a identificação das práticas
realiza o mesmo princípio do trabalho – a culturais com efetivo poder de transgressão -
“transformação do pensamento em experiên- o que, por sua vez, provém da confrontação
cia sensível da comunidade”7. dos participantes com as situações.
7. Tomemos como exemplar a manei- Inconformismo estético e inconformismo so-
ra como Oiticica propôs a participação coleti- cial coincidem na conexão de individual e co-
va. A sua proposição de antiarte ambiental, letivo. A circularidade entre experiência pes-
além de conceito mobilizador para conjugar a soal e experiência artística atinge uma outra
reversão artística e o interesse político, enfim ordem do simbólico e redefine o estético pelo
as dimensões ética e estética, a superação deslocamento social da atividade artística.
da arte, a renovação da sensibilidade e a par- 9. Se, como se sugeriu, tal posição
ticipação, implicava o redimensionamento cul- pode hoje parecer ingênua, pois teria sido uma
tural dos protagonistas das ações. As propo- espécie de suplemento de sentido investido na
sições visavam a liberar as atividades do arte, por força do imaginário da participação
ilusionismo, para que as ações funcionassem mobilizador das esperanças daquele tempo,
como intervenção nos debates daquele tem- pode-se perguntar que possibilidades estari-
po. As propostas estéticas não se desligavam am hoje à disposição para realizar alguma
da intervenção cultural. Pois, para ele, o cam- ação com poder de exemplaridade. Como os
po de ação de sua atividade não se reduzia à meios à disposição são atualmente muito
crítica do sistema da arte: inscrevia-se como maiores seria de se supor que estaríamos
uma atividade coletiva, visionária, em que se mais perto da possibilidade de tornar eficazes
interceptavam a produção de novas subjetivi- as ações. Mas não é bem assim. De um lado,
dades e a significação social das ações. Como o valor simbólico das ações foi comprometido
ele dizia, não visava com a antiarte à criação na raiz, pelo enfraquecimento das imagens, do
de um “mundo estético”, pela aplicação de seu poder de atuar nos instantes decisivos, por
novas estruturas artísticas ao cotidiano; nem razões óbvias, pelo seu desgaste pelo exces-

227
cadernos da pós-graduação

so de exposição. De outro, porque a proposi- co Ronaldo Brito9. No evento, tudo se torna


ção de situações participativas exige do artis- simplesmente interessante: nada mais releva
ta talentos de organização, de articulação de do belo ou do maravilhoso; do novo e da ruptu-
meios diversos, além da dificuldade de se se- ra. O evento não propicia a fruição dos traba-
lecionar as práticas culturais e imagens com lhos apresentados. A passagem da simples
efetivo poder de interferência – na arte, nas presença à presentificação de uma experiên-
instituições, na vida. cia significativa, de que proviria o efeito estéti-
10. Nesta chave, em que a participa- co materializado na participação, supõe que
ção é efeito de um conjunto de requisitos ma- esta derive do valor exemplar dos signos arti-
teriais para a sua aparição, e supondo que a culados ou disseminados na situação. Ou seja,
fundação política da arte mudou de posição, os eventos tiram toda a sua eficácia do poder
importa considerar um aspecto dessa arte simbólico do espetáculo. Tudo depende, diz
contemporânea interessada ainda nos efeitos Lyotard, da maneira como aquilo que é desig-
de participação, que se tornou quase um prin- nado como arte é apresentado. Ora, esta apre-
cípio fundamental. Referimo-nos à prática em sentação tem muito a ver com a política cultu-
que o aspecto “evento” é inseparável de toda ral que dá suporte aos eventos. Esta arte polí-
a arte que tem como requisito fundante a tica é “a cultura” e “a cultura é a arte de guiar a
ambientação. Pretende-se com isto provocar, transferência”. A transferência ocorre confor-
além dos efeitos artísticos, um delizamento dos me o “estilo”, a “maneira” de apresentação, de
rituais da arte para a política. A ambição é articulação dos processos e dos seus efei-
ressignificar a participação nas condições atu- tos 10.
ais de produção, exatamente porque expõe, Mas, se o evento tira toda a sua eficá-
torna transparente, visível e sensível, o aspec- cia do poder simbólico do espetáculo isto, a
to mercadoria implícito na espetacularidade do princípio, implica um tempo pseudo-crítico.
evento8. Poderia ser crítico? Haveria a possibilidade de
11. Se é verdade que a arte contempo- se dominar aí a fuga do instante e do prazer,
rânea é em grande parte determinada pelo da simples exposição aos acontecimentos que
caráter institucional do lugar em que aparece, fluem? Aos mecanismos da simples repeti-
então a modalidade de sua apresentação, ção? Talvez considerando-se o peso da frus-
como evento, é proposta como uma possibili- tração que os participantes do evento, do pú-
dade de, de algum modo, interferir na situa- blico de arte contemporânea, experimentam.
ção, já que este modo de apresentação faz Pois a fruição da arte contemporânea é medi-
parte da própria “obra” ou qualquer outra coisa ada obrigatoriamente pela reflexão sobre os li-
que seja. De que modo? Destinado a princípio mites do trabalho moderno, a experiência es-
à inserção de um trabalho artístico no meio de tética não se torna contundente diretamente a
arte, o evento é um acontecimento que vira o partir do sensível, uma vez que a mediação da
próprio fato artístico, confundindo as expecta- novidade, da ruptura, da significação social não
tivas dos receptores que buscam uma experi- são, via de regra, aparentes. Assim, não to-
ência estética. E uma das consequências é mar a frustração como uma atitude comum,
que a experiência estética confunde-se com a mas espessá-la, poderia ser um modo de sim-
realidade mais imediata da arte, com a instân- plesmente se recodificar a intervenção.
cia do mercado e do lazer: um exercício supe- 12. A este regime estético, de uma es-
rior da fantasia como diz sibilinamente o críti- tética generalizada, de uma estetização difusa

228
instituto de artes

– como aquela, narcisista, que nos convida a lugar à morfogênese”. Segundo ele, “vivemos
prestar cada vez mais atenção ao corpo, ao o fim da hegemonia do espetáculo fechado e
eu, que para além do interessante que há nis- estável: a cenografia subordina-se à cenologia;
to, pois devemos nos manter e nos tratar bem, em direção a relações inéditas entre o Corpo,
se torna fastidiosa –, deve-se associar uma a Materialidade e o Artificial, em direção ao
outra mudança do regime estético: aquele pro- deslocamento tecno-estético da ordem repre-
vocado pelas novas tecnologias, que propõem sentativa analógica”13.
mudanças substanciais no estatuto da imagem 13. Uma estetização generalizada
na cultura contemporânea, com repercussões pode, contudo, ser entendida de outra manei-
profundas na experiência estética. Alain ra: como alargamento da experiência estéti-
Renaud propõe que a noção de visibilidade ca14. Trata-se de pensar a dimensão estética
cultural está substituindo atualmente o conceito da vida a partir das experiências das vanguar-
de imagem. Deste modo, as novas tecnologias das, em que o questionamento da obra de arte,
estariam redefinindo a experiência estética que, ou mesmo os projetos de abolição da arte, não
freqüentemente, não mais se refere ao vivido implicam recusa da arte, antes um desejo de
mas à experiência virtual, com que, aliás, com mais arte. Algo que deixa a sensação de que
a passagem do óptico ao digital, ocorre uma há uma continuidade possível entre os mun-
transformação radical no conceito de represen- dos representados e os espaços cotidianos.
tação. Toda a questão resume-se no seguin- Não se trata, obviamente, do esteticismo dos
te: saber de que modo e em qual proporção românticos do fim do século XIX, ao coloca-
as experimentações propiciadas pelas novas rem a sua genialidade na vida e não mais na
tecnologias atingem a sensibilidade, atuam no obra, ou então daquele esteticismo da obra de
sensível de modo a relegar as imagens óticas arte total à maneira wagneriana. E nem, obvi-
ao passado11. Annateresa Fabris, comentan- amente, daquele esteticismo narcisista que
do as idéias de Alain Renaud, diz que “os en- vem da submissão do destino individual às
saios das novas tecnologias redefinem a rela- exigências da obra de arte, como ocorre na
ção do fruidor com a obra, obrigando-o a ter estetização dos comportamentos como, por
uma atenção concentrada num fluxo contínuo, exemplo, a difundida pela publicidade e seu
que só pode ser apreendido em sua totalidade convite de embelezamento dos corpos. Há,
ao introjetar a temporalidade proposta pelo ar- nas existências esteticamente bem sucedidas,
tista, enquanto não é raro um olhar transeunte diz Jean Galard, uma beleza involuntária que
sobre os produtos tradicionais, que nada mais não leva a arte em consideração, mas que re-
fazem do que exibir estruturas e relações quer, entretanto, uma certa arte. Esta é uma
perceptivas conhecidas a sobejo”12. Assim, via interessante de se pensar, por exemplo, a
pode-se dizer esta nova situação experimen- “arte pública”, não como uma arte na rua, mas
tal corresponde a uma nova configuração do uma arte da rua. Mas a qualificação de “artísti-
trabalho artístico, entendido agora, diz Renaud, co” aplica-se “a operações, a um trabalho,
como um “laboratório experimental da sensi- cujos resultados não podem ser involuntários”.
bilidade e do pensamento visual”. Assim sen- Assim, pode-se falar em “uma experiência
do, estaria ocorrendo um alargamento nunca estética da paisagem natural, onde a intenção
visto, desde o Renascimento, da experiência artística é, por definição, ausente. Há uma ex-
estética e do regime estético, “em direção a periência estética de certas realidades urba-
uma estética de procedimentos, na qual o pro- nas desagradáveis, como as cidades de São
cesso se impõe sobre o objeto: a forma cede Paulo e do México, que podem ser interessan-

229
cadernos da pós-graduação

tes. Esses lugares monstruosos são involuta- Celso Favaretto – Mestre e Doutor em Filosofia, com con-
centração na área de Estética. Professor da Faculdade de
riamente belos, posto que mágicos – uma re- Educação da Universidade de São Paulo - USP. Tem vários
miniscência, sem dúvida, das experiências livros publicados entre eles Tropicália. Alegoria, Alegria
surrealistas. É claro que esta oposição entre (Kairós, 1979 e Ateliê Editorial, 1996) e A invenção de Hélio
Oiticica (Edusp, 1992), além de diversos ensaios e artigos em
beleza premeditada e involuntária deve ser ate- livros coletivos, jornais e revistas.
nuada: a beleza involuntária, de uma cidade,
por exemplo, não é estranha a intenções. Esta Notas
beleza é mediatizada pelo cinema, pela foto-
grafia, pela literatura. É uma beleza produzida 1. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO
por palavras e imagens, que artializando nos- experimental org.; Ed. 34, p. 11, 2005.
sas estruturas perceptivas, mitologizam a ci- 2. Idem.
dade e produzem a sua magia15. 3. ARDENNE, Paul. Un art contextuel. Paris: Flammarion, p.
203, 2004.
14. Tudo isto que aqui vem sendo dito
talvez possa ser equivocadamente entendido, 4. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, p. 119,
1992.
segundo a advertência de Rancière, como “a
5. RANCIÈRE, op. cit., p. 61
nostalgia de uma arte instauradora de uma co-
presença entre homens e coisas e dos ho- 6. Idem, p. 60.

mens entre si”, num tempo em que não mais 7. Ibidem, p. 67.
se pode radicalmente opor “a pureza das for- 8. Cf. nosso texto, “Arte do tempo: o evento”. In: Sexta feira,
mas ao comércio das imagens”16. Mas, ao se nº 5 [tempo]. São Paulo: Hedra, p. 110 e ss, 2000.

recusar as promessas redentoras da arte e 9. BRITO, Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folha de São
Paulo, p. 5. Folhetim, nº 350, p. 5, 2/10/1983.
do pensamento, enfim da representação, tal-
vez se possa fazer uma aposta: a de não nos 10. LYOTARD, J-F. Moralidades pós-modernas. Campinas: SP,
Papirus, p. 27 e ss.
rendermos à tentação de colmatar o vazio. In-
11. RENAUD, Alain. “Nouvelles images, nouvelle culture: vers
ventar, pensar, fazer arte talvez signifiquem, un “imaginaire numérique” (ou “Il faut imaginer un Démiurge
cada vez mais, que temos que trabalhar nos heureux”). In: Cahiers Internationaux de Sociologie , v.
interstícios do vazio, nas falhas e nas brechas. LXXXII. Paris: PUF, 1987.

Na linguagem, no pensamento e na arte trata- 12. FABRIS, Annateresa. “Redefinindo o conceito de imagem”.
Revista Brasileira de História [Dossiê: arte e linguagens],
se, talvez, de assumir as coisas em sua sin- nº 35, v. 18. São Paulo: ANPUH/ Humanitas, p. 221, 1998.
gularidade, que, freqüentemente, está na
13. RENAUD, op. cit., p. 126.
literalidade, antes da interpretação. Trata-se de
14. GALARD, Jean. ”Repéres pour l’élargissement de
descobrir, como na música, uma dicção, um l’expérience esthétique”. In: Diogène, nº 119. Paris, 1982.
timbre, uma tonalidade. Talvez seja esta a sin-
15. GALARD, Jean. “Beauté involuntaire et beauté prémédité”.
gularidade das relações da arte com a políti- In: Temps Libre nº 12. Paris, p. 112, 1984.
ca*. 16. RANCIÈRE, Jacques. “O destino das imagens”. In: Folha de
S.Paulo, Mais!, p. 16, 28/01/2001.

*Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no coló-


quio “A dimensão estética imanente à política”, no seminário
“São Paulo S.A.- práticas estéticas, sociais e políticas em de-
bate”, promovido por EXO experimental org. e SESC, São
Paulo, 17/04/2005.

230
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

O Corpo da Arte

Daniela Bezerra
Maria Beatriz de Medeiros

Brasília, 26 de maio de 2006, 19h30 CCBB. Está tudo cercado, tem um monte de
polícia, ROTAN, etc.,mas eles não estão con-
trolando os convites na entrada. Dá para en-
— Alô!
trar todo mundo. Avisa todo mundo que dá
— Alô! Oi, Dani. Fala. para entrar.

— Seguinte, nossa concentração em — Esperamos vocês no estaciona-


frente ao Clube de Golfe não vai ser possível. mento. Venham rápido, estamos cercados.
O local está cercado. São cinco carros da
ROTAN. E tem montes de policiais armados. Mensagens de celular para todo mun-
do.
Daniela se referia ao nosso encontro Fomos. Entramos. Éramos mais ou
marcado (cerca de uns 20 artistas) em frente menos quinze.
ao Clube de Golfe, que fica próximo ao Centro
Cultural Banco do Brasil (CCBB), para protes-
tar contra a censura à exposição Erótica; os
sentidos da arte, da qual constavam trabalhos
de artistas brasileiros e outros. Essa exposi-
ção, em Brasília, foi substituída por outra:
Picasso. Paixão e erotismo. Erotismo estran-
geiro pode. Criticar a igreja e sua incansável e
verdadeira pedofilia, não.
O local onde fica o CCBB é, de acordo
com o Plano de Brasília, ermo. Nenhuma con-
centração ali seria visível na cidade. Mas as
aberturas de suas exposições são muito con-
corridas, e, como não tínhamos convite, ficarí- Fig. 1: “contra censura 1”
amos bloqueando a entrada, fingindo buscar
os convites nos carros. No entanto...
É de sentar e chorar: Pura verdade:
cinco carros, muitas motos, muitas armas e
— Caramba! Onde vocês estão? muitos policiais com coletes à prova de bala
contra artistas protestando contra uma infeliz
— Estamos no estacionamento do
censura:

231
cadernos da pós-graduação

“Depois de três reuniões tensas, realizadas en- de Márcia X, Desenhando com terços, que
tre a semana passada e ontem, a direção do mostra diversas duplas de rosários religiosos
Banco do Brasil decidiu cancelar a exposição cruzados, sendo que cada terço é disposto em
Erótica - os sentidos na arte em Brasília. O mo- forma de pênis. Aqueles que não tinham ca-
tivo do cancelamento é o impasse causado pela
misetas vestiram ‘batas de padre’ (de fato,
censura a uma obra da artista plástica Márcia X,
velhas becas de formatura da universidade)...
que mostra dois pênis cruzados feitos com rosá-
rios religiosos. A mostra, que passou por São Tínhamos 30 ‘batas de padre’.
Paulo e pelo Rio, seria inaugurada no próximo No Rio de Janeiro, onde começou o pro-
dia 15. cesso de censura à exposição, com o enco-
Os diretores do Banco do Brasil não aceitaram a brimento da obra da Márcia X, e depois, em
reintegração do trabalho de Márcia X na exposi- protesto, com a retirada de trabalhos por artis-
ção. Com isso, colecionadores e artistas, como
tas, como Rosangela Rennó, além de outros
Rosângela Rennó e Franklin Cassaro, ameaça-
liderados pela galeria “A Gentil Carioca”
vam retirar suas obras da exposição. Não houve
acordo.” 1
(Márcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto
com colaboração de Ricardo Basbaum), tam-
bém haviam sido feitas camisetas com a obra
Artistas participantes da exposição cen- de Márcia X e protestos em frente ao CCBB
surada: Alair Gomes, Albert Marquet, Alfredo daquela cidade. O Canal Contemporâneo (Pa-
Nicolaiewsky, Almeida Junior, André Masson, trícia Canetti) divulgou amplamente a censura
Anita Malfatti, Antônio Dias, Antônio Gomide, e realizou um abaixo-assinado contra a cen-
Antônio Henrique Amaral, Auguste Rodin, Cláu- sura. Foram recolhidas cerca de 800 assina-
dio Mubarac, Duane Michals, Edgard de Sou- turas.
za, Eliseu Visconti, Emygdio de Barros, Eric
Na vernissage em Brasília juntaram-se
Fischl, Felix Braquemond, Fernanda Preto,
a nós mais uns 15 artistas e a Drag Queen
Florian Raiss, Francis Picabia, François
Lilith (Cyntia Carla). Caminhamos para a en-
Boucher, Franklin Cassaro, Hans Bellmer,
trada da exposição: televisão, jornais, entre-
Ismael Nery, Ivan Serpa, Jean-Jacques Lebel,
vistas. Nunca havia visto tanta imprensa em
Jules Pascin, Luiz Zerbini, Lygia Pape, Manolo
uma abertura de exposição no CCBB. E ela lá
Hugué, Marcelo Grassmann, Marcelo Krasilcic,
estava ‘para nós’.
Marcia X, Marco Paulo Rolla, Nan Goldin,
Newton Mesquita, Pablo Picasso, Paul Éluard,
Paul Gauguin, Pierre Molinier, Pitágoras,
Rodolpho Bernardelli, Rosana Monerath,
Rosângela Rennó, Thomas Glassford,
Thomas Ruff, Tunga, Ubirajara Ribeiro, Vera
Lúcia Brandão Martins, Vicente do Rego
Monteiro, Vik Muniz, Wesley Duke Lee, além
de peças arqueológicas do Museo Rafael
Larco Herrera (Peru) e Museu de Arqueologia
e Etnologia da Universidade de São Paulo.
A exposição estava cheia, digo, os
pilotis do CCBB estavam cheios. Na exposi-
ção, nem entramos. Havíamos feito, com spray
e estêncil, camisetas com a estampa da obra Fig. 2: “contra censura 4”

232
instituto de artes

Depois, ficamos nos perguntando se tes, dizíamos: O corpo da arte. O corpo da


alguns daqueles que nos entrevistavam, gra- arte. Alguns respondiam: Amém! O gran final
vavam imagens, barravam a nossa passagem contou com a participação da lançadora de
para dentro da exposição não seriam jornalis- fogo Iaci Szajnweld de Menezes, semidespida
tas, mas pessoal do CCBB. com um enorme ‘terço‘ trançado no corpo.
Aos poucos fomos pintando ‘terços’
com pontos, como se fossem as contas do
rosário, em forma de pênis, nas costas das
‘batas de padres’. Diversos presentes vesti-
ram as batas restantes. Entrevistas e mais
entrevistas: pululavam repórteres e os polici-
as armados de coletes à prova de bala olhan-
do de longe. Formamos um grande círculo no
centro do qual foram dispostos baguetes e
pãezinhos formando dois grandes pênis. ‘Ave
Mariíiiia’... foi entoada repetidamente, sem sair
dessas palavras, pois ninguém conhecia o res-
to da famigerada canção. Lilith comia bana-
nas, outras pessoas do público pediam bana- Fig. 4: “contra censura 3”
nas e se juntaram a nós. O pão foi distribuído.
Ao oferecer os pedaços de pão aos presen-
Numa semana na qual o Museu de Arte
de São Paulo - MASP fica sem luz; numa se-
mana na qual se anuncia o provável fechamen-
to do Museu da Pampulha; numa semana na
qual 40 dos 100 estudantes que participavam
do 8º Fórum Nacional das Entidades de Peda-
gogia (FONEP), em Goiânia, foram protestar
na frente do Ministério da Educação (MEC), em
Brasília, contra a homologação das diretrizes
curriculares do curso de Pedagogia, e foram
presos; numa quinzena na qual o filme: O có-
digo Da Vinci quase foi censurado; numa quin-
zena na qual se discute na Câmara Legislativa
de Goiânia a possibilidade de censurar a mos-
tra: Rumos, organizada pelo Itaú Cultural; num
semestre no qual o livro: Brazilian Art recebeu
1 milhão de reais do Ministério da Cultura
(MINC) para produzir uma publicação que de-
verá ser vendida por R$ 250,00 cada, ficamos
apenas com questões:

“O que significa política cultural para Bancos que


dizem fazer cultura sem integrar, em seus qua-
Fig. 3: “contra censura 2”

233
cadernos da pós-graduação

dros, pessoal especializado em arte? Qual é a têm medo? De tudo. Quando não se está
política cultural do governo Lula? Qual a posi- seguro dos passos dados, porque não há
ção, de fato, do MINC, frente a toda essa realida- rumo nem terreno traçado, a tudo se teme.
de? Esperamos sinceramente que o Corpo da
Lembremos, um novo museu foi construído em
Arte possa levá-los ao paraíso para sem-
Brasília. Projetos curatoriais e políticas públicas
pre perdido.
para seu real funcionamento são amplamente
ignorados pela comunidade das artes.”
Conclusão:
A alegação da presença de tantos poli-
1- nossos projetos nunca mais serão
ciais veio com a justificativa de que o Banco
escolhidos para serem realizados no CCBB.
temia que os artistas participantes do protesto
deteriorassem as obras de Picasso ali expos- 2- Márcia X e Desenhando com terços
tas. entraram definitivamente para a história da arte
Será que a polícia sabe a diferença en- no Brasil. Ao que ficamos muito gratos.
tre arte, artistas, estudantes e PCC?
“O artista plástico Ricardo Ventura, viúvo de Már-
Cabe lembrar que a exposição Picasso.
cia X, acha que a decisão do BB dará uma proje-
paixão e erotismo trazia o pior Picasso que já ção que a obra talvez não tivesse se a exposição
vi na minha vida e muito pouco erotismo. em Brasília fosse mantida: Se o Banco do Brasil
Ainda sobre a exposição censurada, queria evitar que a obra fosse divulgada, o tiro
assim explica Tadeu Chiarelli, professor da saiu pela culatra. Já tem site na China comen-
ECA-USP, historiador e crítico de arte: tando a censura ao trabalho.” 3

“Como a palavra ‘erotica’ na língua portuguesa é Maria Beatriz de Medeiros - É artista plástica, professora
empregada exclusivamente como adjetivo, para Doutora da Universidade de Brasília - UnB. Pesquisadora do
CNPq. Representante Adjunta para a área de Artes na CAPES.
dar título à exposição foi escolhida a palavra in-
Coordenadora do Grupo Corpos Informáticos. Participa do grupo
glesa ‘erotica’, que também é utilizada como de Intervenções Urbanas de Brasília. www.corpos.org.
substantivo. [...] Trata-se de uma Erótica na
Daniela Bezerra - É Artista Visual /Plástica, residente em
medida em que a exposição foi pensada como
Brasília. Diversas exposições individuais e coletivas. Seu tra-
uma antologia de obras eróticas. A mostra se balho faz parte do acervo do Mozarthaus Museum em Salzburg-
vale tanto de peças arqueológicas como de obras Áustria. Trabalha junto a diferentes grupos no Distrito Federal,
de arte de autores contemporâneos, modernos e tais como 0.17, grupo de Intervenções Urbanas de Brasília,
Encontro de artistas Coração. Representante de Brasília nas
tradicionais, nacionais e internacionais, para con-
Câmaras setoriais de artes visuais, suplente da Câmara Fede-
figurar uma reflexão sobre a arte e os meandros ral.
que percorre para interpretar o impulso sexual.
[...] Respeitada a individualidade de cada peça
Notas
exibida, elas estão reunidas formando núcleos
que problematizam e potencializam noções 1. CARVALHO, Mário César. BB cancela a exposição Erótica
em Brasília. Folha de São Paulo. Disponível em: http://
estabelecidas não apenas sobre sexo e erotis-
www1.folha.uol.com.br/folha/cotiano/ult95u121045.shtml.
mo na arte, mas também sobre história, antro- Acesso em fevereiro de 2007.
pologia e psicanálise.” 2
2. http://www.noitesapaulo.com.br/ccbb/index.htm
3. CARVALHO, op. cit.
Em que país será que vivemos? De que
adianta pensar e fazer arte neste país? De que Imagens
as ‘autoridades’ e sua colega elite branca Contra censura 1, 2, 3, 4 in mbm1 escritos mbm1.

234
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Arte e novas mídias

Lucia Santaella

Antes de entrar especificamente no 1. Um exercício de conceituação


tema da arte e novas mídias, sou irresistivel-
mente levada pela necessidade de esclarecer Não muito tempo atrás, no final dos
o sentido em que emprego a palavra mídia, anos 1980, início dos 1990, intelectuais aca-
pois essa palavra, seu plural “mídias” e o adje- dêmicos não utilizavam o termo “mídia” no
tivo “midiático” têm sido utilizados à saciedade, Brasil. A palavra era de uso ainda restrito aos
sem a preocupação com a demarcação mais publicitários e jornalistas, para se referirem à
precisa do seu significado e de seu campo de divulgação que uma informação recebia nos
referências. Trata-se de uma palavra que vem meios de comunicação.
sofrendo pelo excesso de uso e pela Se o termo “mídia” era ainda de uso
descaracterização do conceito. Com bastan- restrito, qual então era o termo empregado
te imprecisão, muitos têm se referido a todo o para se fazer referência aos meios de comu-
complexo contexto atual sob o nome de “cul- nicação? Até os anos 1980, os termos da moda
tura midiática”. Essa generalização cobre o intelectual eram “meios de massa”, “cultura de
território com uma cortina de fumaça. A meu massa”, “indústria cultural” e, com menos fre-
ver, para começarmos a entender o tema pro- qüência, “tecnologias da comunicação”. Essas
posto para esta mesa, é necessário, antes de expressões eram traduções das expressões
tudo, esclarecer o que se esconde por trás da correspondentes em inglês: mass media e
generalização da palavra “mídia”. mass culture. Quanto à “indústria cultural”, por
É claro que as mídias são hoje questões políticas, este conceito foi muito mais
onipresentes, a começar pelo aparelho fonador, popularizado na América Latina do que nos
que é a primeira dentre todas as mídias. En- Estados Unidos e Europa Central.
tretanto, quais são as mídias, como se inse- Se lançamos hoje um olhar retrospec-
rem na dinâmica social, em quais delas o ca- tivo dos anos 1980 para cá, essa perspectiva
pital está investindo, como impõem sua lógica temporal de mais de 20 anos nos permite per-
ao conjunto da cultura? São todas questões ceber que não foi casual a gradativa substitui-
irrespondíveis se não fizermos o esforço de ção de todas essas expressões anteriores por
precisar nossos conceitos. A confusão dos um termo genérico e bastante vago como é o
modos como nos aparecem os fatos que pre- termo “mídia”. A tese que venho defendendo
tendemos compreender é proporcional à con- desde o início dos anos 1990 é a de que, a
fusão conceitual. partir dos anos 1980, a cultura de massas co-

235
cadernos da pós-graduação

meçou cada vez mais crescentemente a per- massa” não era mais suficiente para dar con-
der sua hegemonia no campo da cultura. ta desses novos processos de comunicação.
Antes de explicitar como venho interpre- Entretanto, foi a emergência da cultura
tando as mídias, desde a primeira vez em que planetária, via redes de teleinformática, que
empreguei o termo no título do meu livro: Cul- instalou definitivamente a crise na hegemonia
tura das mídias, em 1992, vale a pena indicar dos meios de massa e, com ela, o emprego
os sentidos que essa palavra tem abarcado. da palavra “mídia” se generalizou para se re-
Pode-se dizer que há sentidos mais estritos e ferir também a todos os processos de comu-
sentidos mais amplos no seu campo de refe- nicação mediados por computador. A partir de
rência. Por volta do início dos anos 1990, com uma tal generalização, todos os meios de co-
um sentido mais estrito, mídia se referia espe- municação, inclusive os de massa, inclusive
cificamente aos meios de comunicação o livro, inclusive a fala, passaram a ser referi-
de massa, especialmente aos meios de trans- dos pela rubrica de “mídia” até o ponto de qual-
missão de notícias e informação, tais como quer meio de comunicação receber hoje a de-
jornais, rádio, revistas e televisão. Seu sentido nominação genérica de “mídia” e o conjunto
foi se ampliando para se referir a qualquer meio deles, de “mídias”, compondo aquilo que Albino
de comunicação de massas, não apenas aos Rubim chamou de Idade Mídia (2000) e outros
que transmitem notícias. Assim, passou-se a têm chamado de cultura midiática ou era
falar em mídia para fazer referência a uma midiática1.
novela de televisão ou a qualquer outro de seus O uso da palavra “mídias” nas expres-
programas, não apenas aos informativos. Tam- sões em que ela aparece em inglês nos ajuda
bém passou-se a chamar de mídias todos os a compreender melhor uma tal expansão no
meios de que a publicidade se serve, desde seu emprego em português. Para marcar a
out-doors até as mensagens publicitárias vei- passagem dos meios de massa aos meios
culadas por jornal, rádio, TV. Em todos esses digitais e as diferenças que essa passagem
sentidos, a palavra “mídia” ainda está se refe- implica, Poster (1995) chama a era
rindo aos meios de comunicação de massa. informacional ou digital de “segunda idade das
O termo foi se fixando cada vez mais mídias”2. Entretanto, muito mais comum tem
em função do crescimento acelerado dos sido o emprego (também utilizado por Poster)
meios de comunicação que não podem mais da expressão new media em oposição a mass
ser necessariamente considerados como media3. Portanto, em inglês, a expressão new
meios de comunicação de massa, pelo me- media surgiu para dar conta de uma expan-
nos tal como o conceito de comunicação de são dos meios de comunicação para além dos
massa esteve delineado até o início dos anos meios estritamente de massa.
1980. Quando se deu o surgimento de equipa- Lunenfeld considera a expressão “new
mentos técnicos propiciadores de novos pro- media” ambígua e se pergunta: “O vídeo é ain-
cessos de comunicação, tais como a multipli- da um “ new medium ”? Os sistemas
cação dos canais de televisão a cabo, o operacionais são mídias? O hipertexto é um
videocassete, o videodisco, os jogos eletrôni- meio diferente do livro eletrônico? No fim, o
cos, etc., esses equipamentos começaram a autor acaba por considerar que essa expres-
minar o exclusivismo dos meios de massa e, são funciona como um termo geral, capaz de
conseqüentemente, a expressão “meios de caracterizar as produções do nosso tempo,

236
instituto de artes

com a ressalva, porém, de que são novas mos no meio de uma revolução nas mídias e
mídias as produções que foram incorporadas de uma virada nas formas de produção, distri-
ao universo digital, não importa quão similares buição e comunicação mediadas por compu-
seus resultados finais possam estar do cine- tador, a qual deverá trazer conseqüências
ma e televisão tradicionais4. culturais muito mais profundas do que as an-
Lev Manovich, no seu livro The language teriores.
of new media, é um pouco mais explícito quan- Conclusão: o emprego dos termos
do busca responder à questão: “o que é new “mídia” e “mídias” em português alastrou-se
media”? “Podemos começar a responder essa em função da crise da hegemonia da cultura
pergunta”, diz ele, de massas, uma crise que resultou do adven-
to de novas lógicas culturais que não mais se
“listando as categorias que são comumente dis- conformam com a lógica que é própria da cul-
cutidas sob esse tópico na imprensa popular: a tura de massas. Infelizmente, entretanto, em
internet, os web-sites, a multimídia computa- português o termo “mídia” é genérico, vago e
cional, os jogos eletrônicos, CD-Roms, DVD, perde a distinção que ainda existe em inglês
realidade virtual. Mas isso é tudo que há nas entre mass media e new media. Ora, essa
novas mídias? E os programas de televisão que vagueza no emprego do termo em português
são rodados em vídeo digital e editados em esta-
nos leva a perder a percepção das distinções
ções de trabalho computadorizadas? São tam-
que devem ser estabelecidas entre as diferen-
bém novas mídias? E as composições de ima-
gens e palavras e imagens – fotografias, ilustra- tes lógicas e distintos modos de funcionamento
ções, layouts – que são criados nos computado- social que regem os meios de massa e aque-
res e então impressos em papel? Onde pode- les processos que não são mais regidos por
mos parar com isso?” 5 essa lógica.
É em função disso que venho defen-
Manovich conclui então que a compre- dendo a necessidade de se distinguir seis ti-
ensão popular identifica as novas mídias com pos de lógicas culturais:
o uso do computador para distribuição e exibi-
• a cultura oral;
ção em vez de produção. Desse modo, os tex-
• a escrita;
tos distribuídos em computador, web sites e
livros eletrônicos, são considerados novas • a impressa;
mídias, enquanto aqueles que são distribuídos • a cultura de massas;
em papel não o são. Do mesmo modo, foto- • a cultura das mídias e a
grafias em CD-Rom são tomadas como no-
• cibercultura.
vas mídias, enquanto as impressas não o são.
O autor termina por não aceitar esse tipo de Essas distinções me parecem impres-
distinção propondo que, por trás do emprego cindíveis para compreendermos a complexi-
da expressão “novas mídias” está acontecen- dade da cultura contemporânea e, dentro dela,
do uma revolução cultural profunda cujos efei- compreendermos não só a complexa dinâmi-
tos estamos apenas começando a registrar. ca dos circuitos das artes, como também o
Assim como a prensa manual no século XIV e papel desempenhado pelas mídias nesses cir-
a fotografia no século XIX exerceram um im- cuitos. Como se pode ver, utilizo todas as pa-
pacto revolucionário no desenvolvimento das lavras - “circuitos”, “artes” e “mídias” - no plu-
sociedades e culturas modernas, hoje esta- ral, por razões que ficarão claras mais adian-
te.

237
cadernos da pós-graduação

2. Três lógicas comunicacionais distintas da inércia da recepção de mensagens impos-


tas de fora e nos treinaram para a busca da
Para os objetivos deste artigo, vou me informação e do entretenimento que deseja-
deter apenas nos três tipos mais recentes de mos encontrar. Por isso mesmo, foram esses
formação cultural: a massiva, a das mídias e meios e os processos de recepção que eles
a cultura ciber. Existe um tal consenso sobre engendram que prepararam a sensibilidade
o entendimento do conceito de cultura de mas- dos usuários para a chegada dos meios digi-
sas que me dispensa da necessidade de qual- tais cuja marca principal está na busca dis-
quer explicação para esse conceito. O mes- persa, alinear, fragmentada, mas certamente
mo não se pode dizer de cultura das mídias e uma busca individualizada da mensagem e da
cibercultura, pelo menos no sentido em que informação. Portanto, a cultura das mídias
emprego essas expressões que passei a com- constitui-se em um período de passagem, uma
preender como se segue. ponte entre a cultura de massas e a mais re-
Por volta do início dos anos 1980, co- cente cibercultura.
meçaram a se intensificar cada vez mais os A cibercultura está fundamentalmente
casamentos e misturas entre linguagens e ligada à mundialização em curso e às mudan-
meios, misturas essas que funcionam como ças culturais, sociais e políticas induzidas pela
um multiplicador de mídias. Estas produzem mesma. Ela apóia-se sobre esquemas men-
mensagens híbridas, como se pode encontrar, tais, modos de apropriação social, práticas
por exemplo, nos suplementos literários ou estatísticas muito diferentes das que conhecí-
culturais especializados de jornais e revistas, amos até agora. A navegação abstrata em
nas revistas de cultura e de arte, no rádio-jor- paisagens de informações e de conhecimen-
nal, telejornal, etc. tos, a criação de grupos de trabalho virtuais
Ao mesmo tempo, novas sementes em escala mundial, as inúmeras formas de
começaram a brotar no campo das mídias com interação possíveis entre os cibernautas e
o surgimento de equipamentos e dispositivos seus mundos virtuais criam uma enorme quan-
que possibilitaram o aparecimento de uma tidade de comportamentos inovadores cujas
cultura do disponível e do transitório: fotocopi- conseqüências sociais e culturais ainda não
adoras, videocassetes e aparelhos para gra- puderam ser suficientemente estudadas.
vação de vídeos, equipamentos do tipo Em suma, cada uma das formações
walkman e walktalk, acompanhados de uma culturais acima especificada - a cultura de
remarcável indústria de videoclips e massas, a cultura das mídias e a cultura digi-
videogames, juntamente com a expansiva in- tal - apresenta caracteres que lhes são própri-
dústria de filmes em vídeo para serem aluga- os e que precisam ser distinguidos, sob pena
dos nas videolocadoras, tudo isso culminan- de nos perdermos em um labirinto de confu-
do no surgimento da TV a cabo. Essas sões. Uma diferença gritante entre a cultura
tecnologias, equipamentos e as linguagens das mídias e a cultura digital, por exemplo, está
criadas para circularem neles têm como prin- no fato muito evidente de que, nesta última,
cipal característica propiciar a escolha e con- está ocorrendo a convergência das mídias, um
sumo individualizados, em oposição ao con- fenômeno muito distinto da convivência das
sumo massivo. São esses processos que mídias típica da cultura das mídias.
considero como constitutivos de uma cultura
das mídias. Foram eles que nos arrancaram

238
instituto de artes

Todas essas distinções que vim esta- 3. O caldeirão de misturas da cultura e


belecendo até agora visaram preparar o terre- arte contemporâneas
no para argumentar que as mídias não podem
ser consideradas como um monolito indistin- Entretanto o fator mais importante para
to. Cada ciclo cultural funciona socialmente de se compreender a complexidade da cultura e
maneiras diversas. A cultura dos meios de artes contemporâneas encontra-se no caldei-
massa, do jornal à televisão, opera de modo rão de misturas e hibridizações que as carac-
muito diverso da cultura das mídias e, mais terizam. Embora cada tipo de formação cultu-
ainda, do modo como opera a cibercultura. ral tenha traços específicos que diferencia uma
Quando levamos isso em consideração, dei- formação cultural da outra, quando surge uma
xamos de cometer os equívocos correntes de formação cultural nova, ela não leva a anterior
impor sobre um ciclo cultural critérios de jul- ao desaparecimento. A cultura escrita não le-
gamento que são empregados para um outro vou a oral ao desaparecimento, a cultura das
ciclo cultural distinto. Esse equívoco vem sen- mídias não levou a cultura de massas ao de-
do cometido com muita freqüência atualmen- saparecimento, e assim por diante. Ao contrá-
te, quando se impõem sobre a cibercultura rio, todas as formas de cultura, desde a cultu-
categorias de análise e de julgamento que são ra oral até a cibercultura hoje coexistem, con-
próprias da cultura de massas. vivem e sincronizam-se na constituição de
uma mescla cultural hipercomplexa e híbrida.
Aspecto relevante para o tema deste
artigo diz respeito ao fato de que os distintos É certo que, em cada período histórico,
tipos de mídias e as eras culturais que confor- a cultura fica sob o domínio da técnica ou da
mam são inseparáveis das formas de sociali- tecnologia mais recente. Apesar da coexistên-
zação que são capazes de criar, de modo que cia e das misturas entre todas as formações
o advento de cada nova mídia traz consigo um culturais, as mídias mais recentes acabam por
ciclo cultural que lhe é próprio e que fica im- se sobressair em relação às demais. É isso
pregnado de todas as contradições que carac- que vem acontecendo com as mídias digitais
terizam o modo de produção econômica e as que instauraram a cibercultura, cuja expres-
conseqüentes injunções políticas em que um são mais visível encontra-se na internet e mais
tal ciclo cultural toma corpo. Considerando-se recentemente nos aparelhos móveis. Contu-
que as mídias são conformadoras de novos do, esse domínio não é suficiente para asfixiar
ambientes sociais, pode-se estudar socieda- o funcionamento das formações culturais
des cuja cultura se molda pela oralidade, en- preexistentes. Afinal, a cultura comporta-se
tão pela escrita, mais tarde pela explosão das sempre como um organismo vivo e, sobretu-
imagens na revolução industrial-eletrônica, etc. do, inteligente, com poderes de adaptação
Esses ambientes são fundamentais para se imprevisíveis e surpreendentes.
compreender a dinâmica que cada um deles É a atual convergência das mídias no
impõe sobre a produção das artes e o circuito mundo ciber, na coexistência com a cultura
das artes. Por isso mesmo, podemos dizer que das mídias e com a cultura de massas, junta-
a produção e o circuito das artes na cultura de mente com as culturas precedentes, todas ain-
massas são distintos da produção e circuito da vivas e ativas, que tem sido responsável
que são próprios da cultura das mídias e que pelo nível de exacerbação que a densa rede
são ainda distintos da produção e do circuito de produção e circulação de bens simbólicos
das artes na cibercultura. atingiu nos nossos dias e que é uma das mar-

239
cadernos da pós-graduação

cas registradas da cultura digital. Entretanto, movimentos de um campo cujas fronteiras


a atual inflação e excesso de produção cultu- avançam a perder de vista6.
ral já começou a se fazer sentir nos anos 1960, Na tradição das artes computacionais
no apogeu da cultura pop, intensificando-se dos anos 1980, a ciberarte inclui a imagem,
nos anos 1980, justamente quando se deu o sua modelação em 3D e a animação, assim
surgimento da cultura das mídias e a explo- como a música computadorizadas. Enquanto
são dos debates sobre o pós-moderno, pós- nos anos 1980 tratava-se de uma produção
modernismo e pós-modernidade. Esses de- que começava no computador e dele saia para
bates sinalizaram o crescimento da complexi- ser exposta em meios tradicionais, tais como,
dade cultural e do relevo cada vez maior da no caso das imagens, as impressões gráficas,
cultura na vida social. gradativamente, o computador foi sendo cada
A complexidade cultural foi crescendo vez mais utilizado para estender a capacida-
na medida mesma em que foram crescendo de de mídias tradicionais: a fotografia analógica
as mídias e a circulação social dos signos que manipulada digitalmente; o cinema ampliado
por elas transitam. À maior produção soma- no cinema interativo; o vídeo, no
se a abertura para a cultura do outro, próximo videostreaming; o texto ampliado nos fluxos
ou distante, levando à mistura e sincretismo interativos e alineares do hipertexto; a imagem,
das culturas. Além disso, como já foi sugeri- o som e o texto ampliados na navegação
do, a cultura é cumulativa. Novas mídias e as reticular da hipermídia em suporte CD-Rom ou
novas formações culturais que delas se origi- em sites para serem visitados e interagidos,
nam não provocam o desaparecimento das tudo isso já em plena atividade, enquanto se
formações culturais anteriores, o que gera jus- espera a ampliação da TV digital em TV
tamente a enorme concentração, densidade e interativa, unindo indelevelmente o computa-
extensão inconsútil e abrangente da produção dor com a televisão.
simbólica atual e intensifica o fluxo veloz de Na tradição das performances, têm-se
signos, textos, imagens, sons que configuram agora as performances interativas e as
a trama hipercomplexa da cultura nas socie- teleperformances que, através de webcams ou
dades contemporâneas. outros recursos como sensores, fazem
interagir cenários virtuais com corpos
presenciais, corpos virtuais com corpos
4. Tendências da arte e novas mídias presenciais e outras interações que a imagi-
nação do artista consegue extrair dos disposi-
Tendo esclarecido esses pontos que
tivos tecnológicos.
julgo cruciais para entendermos a arte na sua
relação com as novas mídias, passarei a se- Na tradição das instalações, vídeo-ins-
guir a apresentar uma visão panorâmica das talações e instalações multimídia, surgem as
instalações interativas, as webinstalações ou
tendências dessa arte.
ciberinstalações que levam ao limite as
As atividades artísticas abertas pela
hibridizações de meios que sempre foram a
revolução digital são múltiplas e multifacetadas.
marca registrada das instalações. Estas ago-
Em outra ocasião (Santaella 2003: 176-180)
ra se potencializam com o uso de vídeos
ensaiei uma tentativa de sistematização de
conectados à internet em sites abertos para a
suas tendências. Reapresento a seguir essa
interação do internauta, com o uso de
sistematização, agora mais atualizada na ten-
webcams que permitem transições fluidas en-
tativa de um possível acompanhamento dos

240
instituto de artes

tre ambientes físicos remotos e ambientes vir- dispositivos maquínicos com o corpo, permi-
tuais ou que disparam através de sensores. tindo o diálogo entre o biológico e os sistemas
Enfim, as ciberinstalações hoje se constituem artificiais em ambientes virtuais nos quais os
elas mesmas em redes encarnadas de dispositivos maquínicos, câmeras e sensores
sensores, câmeras e computadores, estes capturam sinais emitidos pelo corpo para
interconetados às redes do ciberespaço. processá-los e devolvê-los transmutados.
Na tradição dos eventos de telecomu- Nos interstícios da realidade virtual e da
nicações, aparecem, via rede, os eventos de realidade concreta, estão surgindo obras vol-
telepresença e telerrobótica, que nos permi- tadas para a configuração de uma realidade
tem visualizar e mesmo agir em ambientes aumentada. Esta nasce das diversas possibi-
remotos, enquanto se espera pelo advento da lidades a serem exploradas pelo artista de mis-
teleimersão e, com ela, da promessa da ubi- turas entre ambientes concretos e ambientes
qüidade que se realizaria quase inteiramente virtuais que se amalgamam, podendo gerar
não fosse pelo fato de que o corpo uma interpenetração inconsútil de ambos.
tridimensional teleprojetado será incorpóreo, Com o surgimento dos aparelhos por-
impalpável. Em ambos, nas ciberinstalações táteis, dispositivos móveis, sem fio, como os
e nos eventos de telepresença, tanto o mundo telefones celulares cada vez mais turbinados,
lá fora passa a se integrar no mundo simulado a informação sonora, visual e verbal começou
através de trocas incessantes, por exemplo, a circular por todos os cantos, espalhando-se
quando se faz uso de webcams, quanto o re- perto do corpo e distribuindo-se pelo espaço
ceptor passa a habitar mentalmente o mundo físico. Tais redes de tecnologias portáteis e
simulado enquanto seu corpo físico se encon- mídias móveis estão nos conduzindo a uma
tra plugado para permitir a viagem imersiva, cultura da distribuição e do compartilhamento
algo que a metáfora de Matrix soube ilustrar à na qual os artistas exercem o papel fundamen-
perfeição. tal de pôr em evidência as mudanças profun-
Nos sites ou ambientes criados espe- das que se anunciam no audiovisual e seus
cificamente para as redes, as variações são modos tradicionais de difusão.
múltiplas: sites interativos, sites colaborativos, Em quase todas essas tendências,
sites que integram os sistemas de multi-agen- manifesta-se aquilo que vem sendo chamado
tes para a execução de tarefas, sites que le- de “segunda interatividade”,7 quando as má-
vam o usuário a incorporar avatares dos quais quinas são capazes de oferecer respostas si-
se emprestam as identidades para transitar milares ao comportamento dos seres vivos,
pelas redes. Neste ponto, começa a se dar a para situações geradas no interior de sistemas
passagem da incorporação para a imersão em baseados em modelos perceptivos oriundos
realidade virtual, quando, nos web sites em das ciências cognitivas, sistemas esses que
VRML (Virtual Reality Modelling Language) o simulam o funcionamento da mente, seguin-
internauta é transportado para ambientes de do princípios de inteligência artificial e vida ar-
interfaces perceptivas e sensórias inteiramen- tificial. Tais simulações operam de forma com-
te virtuais. plexa, em ambientes que evoluem em suas
A realidade virtual pode também se re- respostas, como, por exemplo, os dotados de
alizar em cavernas digitais de múltiplas proje- redes neurais e suas camadas ou perceptrons
ções. Utilizando softwares complexos de alta que funcionam como conexões de sinapses
performance, o artista propõe interfaces dos artificiais e que podem ser treinadas para a

241
cadernos da pós-graduação

aprendizagem, dando respostas para além da em novos ambientes que, longe de serem
mera comunicação em modelos clássicos. meramente técnicos, são também vitais. São
“Em pesquisas mais recentes, surgem, assim, os artistas que sinalizam as rotas para a adap-
sistemas artificiais dotados de fitness, com ple- tação humana às novas paisagens a serem
na capacidade de gerar e lidar com imprevisi- habitadas pela sensibilidade.
bilidades resultando em processos de solução Dado o grande número de pessoas que
de problemas por trocas aleatórias, seleção está hoje trabalhando com as novas
de dados, cruzamentos de informação, auto- tecnologias das redes, tornou-se porosa a
regulagem do sistema, entre outras funções”.8 fronteira entre a arte digital e um simples even-
Em todas essas tendências, as interfa- to high tech e de entretenimento. Diferenciar
ces com a matemática são evidentes, e, sem as árvores da floresta está se tornando uma
elas, esse tipo de arte nem poderia existir.9 Em tarefa cada vez mais difícil. Contudo, tal difi-
algumas das tendências, a interface com a fí- culdade não pode nos levar à apologia da
sica também é fator constitutivo da obra. Mas indistinção. Ao contrário, deve aguçar nossos
o campo de estreitamento do trinômio arte-ci- sentidos de alerta para o fato de que a arte
ência-tecnologia que se encontra hoje em interativa e as novas junções promulgadas pela
grande destaque é o da biologia,10 campo esse arte-ciência-tecnologia estão inaugurando uma
que vem recebendo o nome de bioarte e apre- nova era em que experiências inéditas sem
sentando-se nas seguintes categorias: espaço, sem tempo, sem imagens entraram
no domínio da arte e para as quais não mais
(a) arte genética (cromossomos, ADN, he-
se aplicam os termos tradicionais da história
reditariedade, hibridizações);
da arte, nem mesmo os termos duchampianos
(b) arte bio-tecnológica-genética (bioen-
e seus métodos de avaliação. Um novo cam-
genharia, arte transgênica, arte da clona-
po de atividade crítica precisa ser aberto, um
gem, manipulação genética);
campo que transcenda as preocupações pre-
(c) arte bio-tecnológica (cultura de tecidos,
viamente separadas dos historiadores e teóri-
arte celular);
cos do cinema, fotografia, televisão, vídeo,
(d) tecnologias úmidas, semi-vivas (cibor-
imagens e sons gerados computacionalmen-
gue, seres cíbridos);
te. Uma nova estética precisa emergir, uma
(e) vida artificial (algoritmos genéticos,
estética que transponha sem temor as frontei-
tecnologias biométricas, nanotecno-
ras que a tradição interpôs entre os caminhos
logias, criaturas genéticas de vida artifi-
da ciência e da arte.
cial, zoosistê-mica).

Como se pode ver, na era digital, tanto


quanto em outras eras, os artistas se lançam Lúcia Santaella – É professora titular no programa de Pós-
à frente do seu tempo. Quando surgem novos Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo - PUCSP. Pesquisadora 1A do
suportes, recursos técnicos e desafios estéti- CNPq. É presidente honorária da Federação Latino-Americana
co-éticos colocados pelas descobertas cientí- de Semiótica e Membro Executivo da Associación Mundial de
ficas, são eles que sempre tomam a dianteira Semiótica Massmediática y Comunicación Global, México, des-
de 2004. Foi eleita presidente para 2007 da Charles S. Peirce
na exploração das possibilidades que se Society, USA. Recebeu o prêmio Jabuti em 2002 e o Prêmio
abrem para a criação. Desbravam esses ter- Sergio Motta, em Arte e Tecnologia, em 2005. Tem diversos
livros publicados no campo da semiótica, dentre os quais: O
ritórios tendo em vista a regeneração da sen- que é Semiótica (Col. Primeiros Passos, Brasiliense), Culturas
sibilidade humana para a habitação e trânsito e Artes do pós-humano (Paulus editora, 2003), Corpo e comu-
dos nossos sentidos e da nossa inteligência nicação (Paulus editora, 2004) e Navegar no Ciberespaço
(Paulus editora, 2004).

242
instituto de artes

Notas

1 RUBIM, Albino. Comunicação e política. São Paulo: Hacker,


2000.

2. POSTER, Mark (1995). The second media age. Cambridge:


Polity Press.

3. BOLTER, J. David e GRUSIN, Richard. Remediation.


Understanding new media. Cambridge, MA: Mit Press, 1999.
4. LUNENFELD, Peter . “Screen grabs: the digital dialectic and
new media theory”. In:The digital dialectic. New essays on
new media. Peter Lunenfeld (ed.). Cambridge, MA: The MIT
Press, pp 14-21, 1999.

5. MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge,


Mass.: Mit Press, pp. 19-20, 2001.

6. SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano. Da


cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, pp.
176-180, 2003.

7. COUCHOT, E., TRAMUS, Marie-Hélène e BRET, M.. “A segun-


da interatividade. Em direção e novas práticas artísticas”,
Em Arte e vida no século XXI, Diana Domingues (org.). São
Paulo: UNESP, pp. 27-38, 2003.
8. DOMINGUES, Diana. Criação e Interatividade na Ciberarte.
São Paulo: Experimento, p. 84, 2002.

9. HILDEBRAND, Hermes R.. As imagens matemáticas. Tese de


doutorado defendida na PUCSP, 2001.

10. SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação. Sintoma da


cultura. São Paulo: Paulus. 2004.

243
244
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

A História da Arte: revisão e novas perspectivas

Maria Lúcia Bastos Kern

A historiografia da arte no final da déca- delos científicos vigentes. No entanto, o estru-


da de 1970 começa a ser objeto de contesta- turalismo, ao investir no rigor metodológico,
ção por artistas contemporâneos e por estudi- afasta-se da filosofia com o fim de modelar as
osos da área. Entretanto, as questões que são ciências humanas ao modo das ciências exa-
colocadas em xeque já vinham sendo debati- tas, num discurso lógico-matemático que es-
das e reformuladas em outros campos do co- timula análises quase mecânicas, generali-
nhecimento desde os anos 1950 e 1960. Es- zadoras, ao se fundamentar em processos de
tas décadas são extremamente significativas auto-regulação da estrutura.2 Esse discurso
para as ciências humanas e as artes, graças nega o indivíduo como articulador de sentido
às mudanças epistemológicas estabelecidas de mundo, notabilizando a primazia do domí-
pela utilização de métodos rigorosos oriundos nio sócio-cultural. Com isto, não estuda os atos
da lingüística, das ciências da natureza e da dos discursos isolados do sistema de conven-
matemática, direcionados a implantar um pro- ções que lhe deu lugar, e se baseia no
grama estruturalista e promover o progresso binarismo estrutural.3 Segundo estudos des-
científico. Elas são importantes também pe- sa vertente, há uma tendência em considerar
las transformações que estão se processan- apenas a sincronia, as permanências das so-
do, ao mesmo tempo, nas práticas artísticas ciedades e a exclusão do sujeito.4
que conduzem ao questionamento dos pres- Saussure concebia a linguagem como
supostos da arte moderna e da historiografia. uma rede de estruturas que poderia ser anali-
Na década de 1950, emerge o estrutu- sada ao se decompô-la em distintos elemen-
ralismo nas ciências sociais, tendo como mo- tos, como letras e palavras, que seriam defini-
delo teórico-metodológico os estudos de lin- dos por suas relações que os unem entre si.
güística de Ferdinand Saussure (1857-1913). Os estruturalistas aplicam os pressupostos da
O estruturalismo contesta o pensamento aca- lingüística de Saussure no estudo de múltiplas
dêmico nas ciências humanas, pautado pela formas de práticas culturais, porque acreditam
filosofia, e acaba se difundindo em diferentes que elas pertencem a um sistema de estrutu-
campos do conhecimento. Em busca de novo ras subjacentes.5 Seguindo estes pressupos-
paradigma, o estruturalismo se situa na crise tos científicos de Saussure e Charles Pierce,
da modernidade e na tentativa de soluções ao a Semiótica também considera a obra de arte
reagir aos antigos postulados, bem como ao como totalidade significante e a sua análise
assumir o caráter libertador diante de sua pos- detalhada exige decompô-la nos elementos
tura crítica e de ruptura,1 em relação aos mo- que a constituem, até reconhecer em cada um

245
cadernos da pós-graduação

deles o papel integrador dessa totalidade. Esta Assim, a questão da autoria evidencia-
análise é imanente e de caráter sincrônico, da pelas práticas artísticas7, é também verifi-
logo, anti-histórica. cada no campo do conhecimento, como o en-
Os estruturalistas consideram que os fraquecimento do sujeito enquanto centro
textos e as imagens constituem obras integra- dos processos sociais, cognitivos e criativos.
das no sistema de representação cultural, no Michel Foucault e Roland Barthes fazem refle-
qual o contexto do receptor, os modelos e as xões sobre o problema da autoria na área lite-
convenções de representação que lhe são fa- rária.8
miliares contam tanto quanto as intenções do A história da totalidade, da unidade es-
autor ou do artista. Roland Barthes vai mais piritual, da temporalidade linear e do progres-
longe ao afirmar que é a “linguagem que fala e so do Espírito também é discutida nas obras
não o autor”.6 A partir desta acepção, muitos de Foucault, como Arqueologia do saber
estruturalistas acreditam na possibilidade de (1968) e Ordem do discurso (1970) nas quais
uma História da Arte sem nomes e colocam ele coloca em questão as concepções de His-
em xeque não só o pensamento humanista, tória fundamentadas no pensamento filosófi-
mas também a noção de gênio criador e de co hegeliano.9
chef-d’oeuvre que durante muito tempo A partir dos anos de 1950 e 1960, quan-
permeou a historiografia da arte. do os paradigmas do conhecimento científico
Michel Foucault, estimulado pelos tra- começam a ser repensados10, a arte moder-
balhos de Lévi-Strauss, Lacan e Barthes, de- na vive uma fase de crise e de abandono das
senvolve estudos no campo da filosofia e se premissas que a institucionalizaram, como se
consagra nos anos de 1960 com o livro: Les pôde verificar nas reflexões de Foucault e
mots et les choses, no qual procura fazer uma Barthes. Na década seguinte, a modernidade
arqueologia das ciências humanas, sem tra- e seus pressupostos começam a ser questio-
çar as linhas de continuidade do pensamento, nados por intelectuais e artistas e a noção de
mas sinalizando as descontinuidades, num pós-modernidade entra na pauta dos debates,
posicionamento anti-historicista. Ao revisar a porém a partir de pressupostos defendidos por
história das ciências humanas, Foucault ques- pensadores modernos, como Nietzsche e
tiona a razão e identifica nesta o meio de esta- Freud. Estes intelectuais, no final do século XIX,
belecer o controle social e de produzir indiví- perceberam os sintomas de crise da
duos subordinados. Com isto, o ideal moder- modernidade e propuseram soluções alterna-
no de racionalização do pensamento como tivas à excessiva valorização da razão e à au-
mecanismo de constituição de sujeitos autô- sência de liberdade humana, prevista pelos fi-
nomos e livres é desmontado, visto que o au- lósofos das luzes. A descrença contemporâ-
tor identifica no saber o exercício de poder. Já nea nas ideologias e o ceticismo em relação
na sua primeira obra Histoire de la folie (1961), ao futuro propiciam o abandono dos projetos
Foucault abre a perspectiva histórica para o utópicos pelos artistas, assim como o desa-
estruturalismo, fugindo dos estudos meramen- parecimento das ações de ruptura das van-
te sincrônicos. Para ele, o homem está cons- guardas. A cultura das mídias invade o cotidi-
ciente de seu desaparecimento numa rede de ano e as próprias práticas artísticas.
relações, fenômeno que o conduz a reinstalar No campo das artes, as mudanças de
o sujeito no interior da história cultural, como paradigma são evidenciadas pelo abandono
sujeito ausente. das ações transgressoras dos artistas, que

246
instituto de artes

conduzem ao enfraquecimento de seu poder “O fim da História da Arte não significa


de negação e à ritualização da arte. As cate- a morte da arte. Ao contrário. Ao escapar à
gorias de pureza, autonomia, originalidade, ilusão histórica e ao mito de Prometeu do pro-
autoria e de gosto universal não se aplicam gresso em arte, nós redescobrimos suas re-
mais, diante do hibridismo, da mescla da arte lações com o mito de Fausto: a arte é uma
com outras atividades práticas, de sua experiência-limite de lucidez, para iluminar a
pluralidade e banalização. Estas mudanças de imagem do mundo”.12
paradigma são rapidamente identificadas pela Para ele, a crise generalizada da ideo-
crítica de arte e historiadores, porém os últi- logia vanguardista sugere um fim ou uma mu-
mos levam mais tempo para absorvê-las e tação. Esta mutação significa a morte da his-
repensar os seus métodos de investigação, tória da arte hegeliana. Ele acredita que a so-
apesar das atitudes de protesto do artista fran- lução está no recurso às ciências humanas, à
cês Hervé Fischer e das publicações de estu- Sociologia e, principalmente, à Psicanálise que
diosos na Europa e EUA. tem por objetivo desmistificar a arte, através
A historiografia da arte que emergiu na de sua análise e de suas práticas, interrogar
modernidade e se estabeleceu, ao longo dos com lucidez os funcionamentos ideológicos e
séculos XIX e XX, sob postulados de autono- institucionais da sociedade.13 Assim, ele pro-
mia, teleologia, universal, sacralizadora do ar- põe que a teoria freudiana deixe de ser aplica-
tista e da obra, começa a ser minada, exigin- da às biografias individuais e se concentre nos
do ser revisada. A disciplina presa ao conhe- estudos sociais, isto é, passe do individual ao
cimento erudito, especializado e autônomo é coletivo.
colocada em questão com o desaparecimen- Nesse mesmo ano, o filósofo analítico,
to de fronteiras no campo do saber e do objeto Arthur Danto, publica The transfiguration of the
de estudo, a obra de arte. Os debates dos commonplace,14 livro no qual ele define a es-
intelectuais a respeito da modernidade, pós- sência da arte e determina a especificidade da
modernidade e pós-estruturalismo possibilitam obra em relação aos objetos não artísticos,
também a emergência de estudos revisionistas estabelecendo as fronteiras entre os mesmos.
da disciplina e de seus postulados canônicos. Ele afirma que as obras de arte possuem uma
Em 1979, Hervé Fischer declara no estrutura intencional, ao contrário dos objetos
Centro Cultural Georges Pompidou o término que se limitam a ser o que são. A estrutura
da história da arte linear, cortando simbolica- intencional é produzida pelo ser humano, o
mente um fio branco. Porém, o livro que dá artista. Com isto, ele estabelece a diferença e
origem a essa manifestação pública só é edi- delimita a noção de obra de arte, destacando
tado em 1981, sob título L’Histoire de l’art est que ela porta intenção e, como tal, tem o cará-
terminée.11 Neste estudo, o autor traça um pa- ter representacional, devido à sua estrutura
norama da historiografia e desmistifica os semiótica, sendo plausível de ser interpreta-
conceitos de arte e artista, assim como os da. Observa-se que o filósofo norte-america-
seus estatutos. A partir destas premissas, no apóia-se no pressuposto da intenção, tam-
Fischer faz um inventário da arte e de suas bém focalizado pelo estruturalismo e pela
funções até a contemporaneidade, o que lhe Semiótica, que a considera sempre dissimu-
permite concluir que a arte não está morta, lada na obra. Entretanto, a identificação da in-
mas o que acaba é a sua história como pro- tenção do autor não possibilita se descortinar
gresso em direção ao novo, ao original e à os seus significados no domínio cultural.
perfeição.

247
cadernos da pós-graduação

Em 1983, Hans Belting publica na Ale- do experimentalismo. O autor acredita que a


manha o seu livro: Das Ende der arte contemporânea procura se libertar des-
Kunstgeschichte? “A história da arte aca- sas premissas, negadas pelas vanguardas,
bou?”,15 e retoma as questões levantadas por mas presentes nos suportes teóricos da arte.19
Fischer, demonstrando que o fim da história Diante das transformações das práti-
da arte não significa o término da disciplina, cas artísticas e dos paradigmas científicos na
mas de uma narrativa, pautada na totalidade, contemporaneidade, Belting considera a arte
na unidade e no conceito único de arte e acon- a partir do conceito antropológico, no qual ela
tecimento artístico. O estudioso faz uma revi- é pensada enquanto um sistema de símbolos
são da historiografia da arte desde Vasari, pas- como qualquer outro sistema, dissipando a
sando por Winckelmann e pelas vanguardas, antiga separação arte e vida.20 Essa nova vi-
para mostrar que esta, a partir do Romantis- são rompe com a tradicional concepção
mo, começa a se afastar dos artistas e obras sacralizadora que identifica o objeto de arte
contemporâneas, fixando-se apenas no pas- como distinto de outros objetos. O estudioso
sado mais distante.16 alemão acredita que são os papéis e as fun-
O autor demonstra que apesar dos es- ções que a arte exerce na sociedade, a sua
forços científicos, a historiografia da arte se natureza como obra e seus estatutos que se
encontra em crise, desde as vanguardas do modificam, não se podendo mais pensar numa
início do século XX, provocada em parte pela história estruturada nas noções de unidade, de
negação das rupturas, pela ausência de uni- progresso e de autonomia. Para tal, é neces-
dade da arte até então defendida e pela manu- sário observar as transformações operadas
tenção de pressupostos humanistas.17 Entre- pela arte moderna até a arte contemporânea.21
tanto, ela se identifica com as vanguardas no Sete anos depois, Georges Didi-Huber-
que se refere à sua confiança num progresso man publica: Devant l’image 22, livro no qual
futuro. É somente com a crise das vanguar- revisa a concepção positiva de historiografia
das e a consciência de ausência de continui- da arte, demonstrando as suas limitações, a
dade da arte contemporânea que a disciplina ausência de questionamentos e os problemas
não consegue mais sustentar os seus princí- relativos à leitura da imagem e à noção de
pios norteadores.18 legibilidade presente neste procedimento
Belting revisa também os conceitos de metodológico. Ele acredita que o historiador da
obra de arte e seus distintos estatutos e con- arte deve estar consciente da fragilidade ine-
clui que os mesmos não dão mais conta das rente à leitura da imagem, o seu caráter
propostas das vanguardas e menos ainda da lacunar, em particular no domínio dos objetos
arte contemporânea. Ele justifica esta conclu- figurativos. Ele questiona também a noção
são ao apresentar a noção de obra absoluta norteadora da disciplina de história da arte
do século XIX que busca um ideal inatingível, como portadora de conhecimento específico,
sendo considerado pelos artistas modernos e que impôs uma forma de discurso específico
contemporâneos como anacrônico, assim e inventou fronteiras artificiais, impondo um
como os conceitos de chef-d’oeuvre. O ana- sistema de pensamento fechado e negando
cronismo dos pressupostos teóricos da conceitos de outros campos do saber.
historiografia e da teoria da arte conduz, no Para Didi-Huberman, “o historiador é
século XX, à ausência de definição de obra de um modelador, artesão, autor e inventor do
arte, sendo a mesma na sua individualidade a passado”. Quando o historiador desenvolve a
expressão de idéias e conceitos, resultantes sua “pesquisa no tempo perdido”, “ele não se

248
instituto de artes

encontra em face a um objeto circunscrito”, Semiótica, destacando os seus reducionismos


mas diante de “alguma coisa como uma ex- ao desconsiderarem as particularidades das
pansão líquida”, “uma nuvem sem contornos”, obras e ao se centralizarem nas suas mensa-
difícil de ser apreendida em toda a sua com- gens.
plexidade.23 Panofsky apóia-se no pensamento de
Ele salienta ainda o problema de uma Kant, especialmente na crítica do conhecimen-
disciplina que se propõe ser objetiva, mas que to, com vistas a sistematizar e dar nova orien-
estuda práticas subjetivas.24 Apesar dessas tação à disciplina. Kant, em sua Crítica da ra-
dificuldades destacadas pelo autor, nos livros zão pura (1781), aborda o problema do conhe-
de História da Arte todo o visível é decifrado cimento, define os seus limites e suas condi-
sob “noção de ciência fundada na certeza”, sob ções subjetivas. Panofsky aplica com rigor o
premissas de que “a representação é unitária, pensamento do filósofo no estudo histórico das
como um espelho exato” ou apresenta o cará- imagens, desenvolvendo o método iconológico,
ter simbólico, no qual os conceitos são tradu- porém descolado das questões formais da
zidos em imagens e “todas as imagens em obra e sob pressupostos que, na atualidade,
conceitos”, 25 como é concebida pela não são mais admitidos pela ciência. Dentre
Semiótica. estes se destacam a noção de cosmovisão
Outro problema evidenciado por Didi- de mundo, que se baseia na idéia de unidade
Huberman se refere à noção de disciplina que e homogeneidade, assim como nos concei-
estuda a arte do passado, considerada morta tos de representação clássicos.
e ultrapassada, como um objeto fixo.26 Desde Outro problema evidenciado por Didi-
Vasari, a História da Arte é definida como um Huberman é que o historiador alemão ao de-
movimento em direção à perfeição, sendo o senvolver um capítulo no seu livro: Significado
seu clímax Miguel Ângelo, considerado divino. nas artes visuais (1955), afirma que a História
Mais tarde, com Hegel, ela é concebida pela da Arte é uma disciplina humanista, e, com isto,
morte de suas figuras e de seus objetos sin- limita a expansão de seu conhecimento. Para
gulares. O historiador, para Hegel, deveria ele, a História da Arte é uma disciplina de Hu-
encarnar o conteúdo total do Espírito de cada manidades, por não se constituir como práti-
forma através de um movimento continuado, ca e ter o fim de estudar o passado e de avivar
no qual cada forma morreria ao revelar para a o que está morto.28 Verifica-se que esta con-
história a sua própria verdade. O Espírito e a cepção não é muito distinta daquela defendida
morte permitiram a crença e a emergência do por Hegel.
Saber Absoluto. “A história é o devir que se Didi-Huberman apresenta Freud para
atualiza no saber”. O problema da História da fazer frente a Kant e ao paradigma cognitivo,
Arte após Hegel é que ela se apóia na premis- porque acredita que o seu pensamento se
sa de que a verdade só pode ser proferida de- constitui como o primeiro a oferecer novos ele-
pois da morte. Não se afirma mais que a arte mentos à crítica do conhecimento e rever o
está morta, mas que ela é imortal.27 estatuto das ciências humanas. Freud retomou
Didi-Huberman, ao fazer a revisão a questão do sujeito pensando em ruptura e
historiográfica, retoma os pressupostos teóri- não estabelecendo limites e fronteiras fecha-
co-metodológicos desde Vasari até Erwin das, como foram produzidas por Kant. Para o
Panofsky, detendo-se, sobretudo, na análise autor francês, Freud coloca em questão o
das metodologias essencialmente cognitivas, paradigma crítico e permite re-situar o objeto
como a Iconologia de Panofsky e a Semiologia/ da história da arte, ao reconsiderar o estatuto

249
cadernos da pós-graduação

do objeto do saber em relação ao qual se deve signa o irregular dos acontecimentos-sintomas


pensar.29 A partir dessas premissas, Didi- que atingem o visível, uma memória em pro-
Huberman procura estabelecer uma distinção cesso que nunca foi feita ou descrita.
entre visual e figurável, delimitando a última Para ele, a categoria do visual33 se
categoria como própria das formações do in- apóia em conceitos e procura resgatar o sen-
consciente, diferente de figurativo, e terminan- sível, buscando ultrapassar a excessiva obje-
do assim com a tirania do visível enquanto tividade da Iconologia e da Semiótica, assim
imitação e do figurável como lisível, próprio à como o caráter fenomenal e representacional
Iconologia e à Semiótica. Para tal, retoma o da imagem. Para o autor, o visual permite re-
pensamento visual cristão que não reivindicou sistir aos esquemas e aos princípios regula-
a visibilidade, a imitação, a aparência das dores dessas metodologias, que uniformizam
Vênus, a idolatria, mas o seu caráter de acon- a imagem em relação ao conjunto de outras
tecimento “sagrado”, revolucionando com a imagens, e ignoram as suas particularidades.
sua verdade encarnada, como efeito do in- O visual, enquanto categoria de análise, divide
consciente. o visível e resiste à unificação, à síntese do
Os cristãos convocaram o inconscien- real e à redução dos signos e símbolos a um
te visual que designa o acontecimento e o sin- mesmo contexto cultural. Essa categoria (do
toma visual em oposição à noção de mímesis visual) opera com conceitos para explorar o
clássica, permitindo o surgimento da sensível, bem como procura penetrar no inte-
Encarnação. A hipótese do autor é a de que rior da imagem e nos mistérios do olhar, que
as artes visuais cristãs têm mantido esta con- também têm a sua história.34
cepção, elas criaram outro visível, mas que O estudioso francês questiona as no-
não é invisível. Elas abriram a Imitação ao ções dominantes e generalizantes de repre-
motivo da Encarnação. “Seria a imanência sentação e símbolo como eficazes e transpa-
desta capacidade humana de inventar corpos rentes no processo de interpretação, argumen-
impossíveis”, misteriosa que é o poder da tando que elas não evidenciam os sintomas35
figurabilidade, em oposição à figuração. “O e que também se caracterizam pela opacida-
encontro do corpo com a luz na Anunciação de. A partir desses pressupostos teóricos, ele
de Fra Angélico funcionava como metáfora da tem o interesse em conhecer a complexidade
Encarnação”.30 do processo de criação visual.
A partir dessas considerações, o autor Outro aspecto importante salientado por
destaca a importância da Antropologia históri- Didi-Huberman no livro: Devant le temps ,
ca, que conseguiu produzir trabalhos impor- (2000) 36 se refere à questão da temporalidade
tantes sobre “o campo visual” da Idade Média. da obra. Ele defende o anacronismo como
Antes da imagem adquirir o estatuto de obra meio fecundo de se entender as obras do pas-
de arte havia a exigência de abertura do visí- sado, quando afirma que o historiador não pode
vel, abertura de um mundo que permitiu apre- se contentar em fazer a história da arte sob o
sentar sintomas e traços de mistérios.31 ângulo da euchronie, isto é, sob o ângulo con-
Didi-Huberman salienta ainda a neces- veniente do artista e seu tempo. As artes visu-
sidade de o historiador articular dois pontos de ais exigem que se as aborde sob o ponto de
vista aparentemente estrangeiros: o estrutural vista de sua memória, isto é, das “suas mani-
e o do acontecimento, isto é, a abertura da pulações do tempo” e dos diálogos que os ar-
estrutura.32 O estrututural é o regular que deve tistas estabelecem entre si e as obras em dis-
ser interrompido ou deslocado. O visual de- tintos momentos históricos. Para ele, diante

250
instituto de artes

da imagem contemporânea o passado não passado. O olhar sobre as práticas contem-


cessa de se reconfigurar, porque ela é pensa- porâneas permite ao historiador comparar e
da numa construção de memória. Ela é ele- refletir sob outras premissas a respeito do pas-
mento de passagem e também de futuro. sado e verificar as complexas condições de
Muitos estudiosos do final do século XIX criação visual.
e início do século XX, já identificavam nas suas Como se pode observar, os debates e
análises a presença de sobrevivências de ou- as reflexões em torno da modernidade, pós-
tros passados, como espécies de memórias modernidade e do pós-estruturalismo, junta-
inconscientes. É o caso, por exemplo, dos mente com as mudanças nas práticas artísti-
estudos de Aby Warburg sobre as obras de cas contemporâneas, estimulam a revisão da
Botticelli - O nascimento de Vênus e A Prima- historiografia da arte, bem como a construção
vera - nos quais ele verifica a permanência de de novas categorias conceituais e
expressões e gestos da antigüidade. A partir metodologias de pesquisa. Os estudos resul-
dessas sobrevivências, Warburg focaliza dois tantes se detêm também nos trabalhos de
conceitos importantes que serão objeto de antigos historiadores, pouco valorizados nos
análise pelo filósofo francês: sintomas e seus tempos, mas que forneceram importan-
pathosformal.37 tes subsídios teóricos e metodológicos para a
Na atualidade, Georges Didi- disciplina. Os historiadores retomam ainda o
Huberman38 revisa as reflexões de Warburg e pensamento de Freud para fazer frente às
Walter Benjamin para demonstrar a complexi- metodologias de interpretação da arte, es-
dade temporal da imagem e colocar em che- sencialmente cognitivas e reducionistas que
que métodos canônicos presentes na não dão conta da sua complexidade, e abrem
historiografia em geral. Ele acredita que a ima- as fronteiras da disciplina para outros campos
gem apresenta distintas temporalidades e do conhecimento. Na atualidade, a história da
memórias, demonstra que o seu tempo, por arte totalizante é abandonada em prol de múl-
ser heterogêneo, é impuro e que esta nada tiplas histórias da arte, as quais evidenciam
mais é do que uma montagem de tempos dis- um crescente interesse pelas práticas artísti-
tintos, formando anacronismos. cas na América Latina, África e Ásia, depois
de longa tradição de pesquisas relativas aos
Essas questões se aplicam às diferen-
grandes centros ocidentais.
tes imagens, da arte à publicidade, passando
inclusive pela fotografia, e devem ser objeto
de debate pelos historiadores e historiadores Maria Lúcia de Bastos Kern – É Doutora em História da Arte
da arte, visto que apontam a noção do anacro- pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) e Pós-Dou-
torado pela Universidade de Paris I e pela École des Hautes
nismo como meio fecundo de repensar o sa- Études en Sciences Sociales. É professora titular da Pontifícia
ber histórico. Universidade Católica do Rio Grande do Sul e pesquisadora
1A do CNPq. É autora de: Arte Argentina: Tradição e Modernida-
Assim, o historiador da arte deve de (EDIPUCRS, 1996) e organizadora de: As Questões do Sa-
conectar o presente com o passado para me- grado Na Arte Contemporânea da América Latina (UFRGS,
1997), América Latina: Territorialidade e práticas artísticas
lhor compreender o processo artístico e per-
(URGS, 2002) e de Imagem e conhecimento ( EDUSP, 2006).
ceber com mais acuidade as singularidades,
transformações e as mudanças de
Notas
paradigmas. Deste modo, a história da arte
não se configura apenas como memória e 1. DOSSE, François. História do estruturalismo. O campo do
signo, 1945/1966. São Paulo: Ensaio; Campinas: UNICAMP,
conhecimentos objetivos e sistematizados do 1993, pp.16-17. De um lado, se situa como estruturalismo

251
cadernos da pós-graduação

científico mais rigoroso que busca a lei, desenvolvido por Jacques Derrida utiliza no plano teórico o termo
Claude Lévi-Strauss na Antropologia, Algirdas-Julien “desconstrução”, com o fim de analisar a construção do
Greimas na Semiótica e Jacques Lacan na Psicanálise; e, de conhecimento e do sentido. Ele acredita que a linguagem
outro, um estruturalismo mais flexível, liderado por Roland sendo um meio de comunicação, pode veicular ao mesmo
Barthes, Gérard Genette, Tzvetan Todorov e Michel Serres tempo a presença e ausência de sentido. Para ele, é o jogo
numa linha semiológica. Existe ainda um estruturalismo dos signos que cria a tensão entre o sentido e não sentido.
historicizado e epistêmico, no qual se destacam Louis
11. FISCHER, H. L’Histoire de l’art est terminée. Paris: Baland,
Althusser, Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Jacques Derrida.
1981.
2. Idem, p. 180.
12. Idem, s/ p.
3. O termo estrutura tem primeiramente sentido arquitetônico,
13. Ibidem, pp. 15 e 194.
depois, numa acepção mais moderna, assume a noção de
estudo das partes como meio de permitir a organização da 14. DANTO, Arthur. The Transfifuration of the Commonplace,
totalidade. A sua origem situa-se não apenas na lingüística Cambridge (Massachussets), Harvard University Press,
de Ferdinand Saussure, mas também na Escola de Praga. 1981. Livro ainda não traduzido e publicado no Brasil. Na
Para o lingüista, na estrutura nenhum elemento individual França, La transfiguration du banal. Une philosophie de
tem sentido fora dela. l’art, foi publicado em 1989 pela Seuil.
4. As reflexões a respeito do sujeito, resultantes do estrutura- 15. BELTING, Hans. Das Ende der Kunstgeschichte?. Muni-
lismo nas ciências humanas e sociais, têm continuidade com que: Deutscher Kunstverlag, 1983. Na França, L’Histoire de
a Semiótica. Esta concebe a linguagem como sistema de l’art est-elle finie? Nîmes: Jacqueline Chambon, 1989. Esta
signos, no qual o elemento individual não tem sentido, visto publicação é resultante da aula inaugural na Universidade
que os signos só têm significado numa rede de relações. A de Munique. Nela, ele analisa questões de método para ana-
Semiótica estrutural busca estudar a produção de sentido lisar o papel da arte moderna na historiografia. Na edição
no discurso como um processo de significação. brasileira, BELTING inclui novos capítulos e justifica o seu
posicionamento presente na primeira versão alemã e fran-
5. D’ALLEVA, Anne. Méthodes & théories de l’Histoire de
cesa. O Fim da História da Arte. Uma revisão dez anos
l’Art. Paris: Thalia, p. 131, 2006.
depois. São Paulo: Cosac & Naif, 2006. Nesta edição, ele se
6. BARTHES, Roland. Image, music, text. Londres: Fontana/ preocupa em focalizar as mudanças no mundo contemporâ-
Collins, p. 143, 1977. In: D’Alleva, Anne, op. cit., p. 135. neo que possibilitaram a revisão da historiografia.

7. FLECK, Robert. La “mort de l’auteur et les questions de 16. BELTING, Hans. L’Histoire de l’art est-elle finie? Nîmes:
temps, d’original et de conservation de l’art contemporain. In: Jacqueline Chambon, pp. 16-23, 1989.
Quelles mémoires pour l’art contemporain? Rennes:
17. Idem, p. 25.
Presses Universitaires de Rennes, p. 180, 1997. Barthes,
R.. “De l’oeuvre au texte”, Revue d’Esthétique, nº 3, 1971. 18. Ibidem, p. 26.
8. Em 1969, Foucault profere a conferência intitulada “Qu’est 19. BELTING, Hans. Le chef-d’oeuvre invisible . Nîmes:
que c’est l’auteur?”, na Sociedade Francesa de Filosofia, em Jacqueline Chambon, pp. 13-16, 2003.
que ele evidencia a revolução da arte e da literatura e ques-
tiona o conceito de autor, de duração da obra e de originali- 20. BELTING, Hans.L’Histoire de l’art est-elle finie?, op. cit., p.
dade da mesma. Em 1971, Barthes publica um artigo intitulado, 5.
“De l’oeuvre au texte”, no qual constata que a obra perde a 21. Idem, pp. 6-7.
sua proeminência e se situa num nível de interações com
outras obras, cujo valor de importância é similar. Nessa pers- 22. DIDI-HUBERMAN, G. Devant l’image. Paris: Minuit, pp. 10-
pectiva, a autoria e a originalidade da obra deixam, paulati- 11, 46, 1990.
namente, de ser os focos centrais de estudos. 23. Idem, pp. 10-11.
9. Foucault se equipara aos estruturalistas, mas os seus estu- 24. Ibidem, p. 51.
dos evidenciam que ele não se fundamenta na noção de
estrutura, como fizeram outros intelectuais na época. Cf. 25. Ibidem, p. 10.
DOSSE, op. cit., p. 69. 26. Ibidem, pp. 54-56.
10. O estruturalismo começa a ser revisado a partir de suas 27. Ibidem, pp. 59-63. HEGEL, Fenomenologia do Espírito,
categorias básicas, como a estrutura enquanto meio de co- 1807.
nhecimento e o binarismo. Este último era utilizado como
meio de analisar um determinado contexto. O pós-estrutura- 28. PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Pau-
lismo parte da premissa de que a estrutura não se constitui lo: Perspectiva, p. 44, 1991. O autor alemão também conce-
como meio de atingir a verdade profunda, mas que ela é uma be o historiador da arte como humanista pelo fato deste
construção cultural criada pelo discurso. Não existem meios estudar o “material primário”, que consiste na obra de arte.
objetivos e universais de atingir a verdade. Esta não pode Esta, por sua vez, é resultante das intenções do autor, con-
ser produzida fora das categorias de espaço e tempo. dicionadas pelos padrões da época e do meio ambiente em
que foi criada, pp. 30-31.

252
instituto de artes

29. DIDI-HUBERMAN, op. cit., pp. 14-15. 38. DIDI-HUBERMAN, G. Devant l’image. Paris: Minuit, 1990;
Devant le temps. Paris: Minuit, 2000; L’ Image survivante.
30. Idem, p. 37-40. A encarnação no pensamento cristão seria
Histoire de l’art et temps des fantômes selon Warburg .
a união em Jesus Cristo da natureza divina com a natureza
Paris: Minuit, 2002.
humana. A encarnação é representada em imagens que
personificam o ser espiritual revestido por um corpo carnal.
Entretanto, o autor vincula esta noção com o pensamento
freudiano, relativo ao inconsciente.

31. Ibidem, p. 64.


32. Ibidem, p. 41.

33. Panofsky não olhava a imagem, mas a analisava a partir do


estudo das alegorias e símbolos em relação com as repre-
sentações dos mesmos no passado e com o contexto histó-
rico do momento em que ela foi elaborada pelo artista. A
partir destas considerações e do conhecimento da obra e
do artista, ele procurava identificar o seu significado e a sua
mensagem.

34. DIDI-HUBERMAN, G. Devant l’image, op. cit., pp.15-6; 173-


175.

35. Ele utiliza a noção de sintoma de Freud, construída a partir


da análise do sonho, como figuração. Para o estudioso, o
sonho extrai a relação de representação do real e apresen-
ta um caráter deformador por ser constituído por rupturas
lógicas, sendo incapaz de tornar visíveis as relações tem-
porais. A noção de sintoma procura resgatar na imagem a
sua capacidade expressiva. Com isto, Didi-Huberman rom-
pe com a noção de que o visível é legível, propalada pela
historiografia tradicional, que acredita desvendar a imagem
em sua totalidade. Deve-se salientar que a noção de sinto-
ma, que será posteriormente aprofundada por Didi-
Huberman, foi utilizada pelo seu mestre Hubert Damisch, no
estudo Théorie du nuage. Paris: Seuil, 1972.

36. DIDI-HUBERMAN, G. Devant le temps. Histoire de l’art et


anachronisme des images. Paris: Minuit, pp. 10 e 39, 2000.
37. WARBURG, A. Essais florentins . Paris: Klincksieck, pp.
49-100, 1990. A noção de sintomas de Warburg lhe permite
identificar as manifestações artísticas como fenômenos vin-
culados à história e evidenciar os seus diferentes sentidos
e temporalidades presentes nas obras. Ele trabalha essa
noção a partir do processo de comparação entre as obras
em distintos momentos históricos, tendo em vista verificar
as permanências e questioná-las. Carlo GINSBURG salienta
que a Antigüidade buscada por Warburg não é a apolínea
clássica, mas a dionisíaca. A noção dionisíaca, oriunda de
Nietzsche, é atrelada a de pathosformal, identificada nas
imagens pelas expressões de estados de espíritos das fi-
guras representadas. Ver: Mitos, emblemas, sinais. São
Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 45. O conceito de
pathosformal inaugura uma nova percepção do
Renascimento. Esse conceito é elaborado através da ob-
servação das representações das imagens, dos gestos e
movimentos das figuras, de diferentes estados psíquicos.
A partir do pathosformal, ele verifica o caráter híbrido da
arte do renascimento, rompendo com as visões homoge-
neizadoras do formalismo de Wölfflin e do historicismo.

253
254
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Curadoria da exposição Cinético_Digital

Mônica Tavares
Suzete Venturelli

Com curadoria de Mônica Tavares e exposição, sendo de per si identificado por uma
Suzete Venturelli, a exposição Cinético_Di- respectiva cor, com vistas a conduzir o visi-
gital, realizada no Instituto Itaú Cultural de São tante a uma compreensão das similaridades
Paulo, de 06 a 11 de setembro de 2005, foi e diferenças das trajetórias criativas inerentes
configurada para ser um ambiente de explora- às obras selecionadas, se comparadas com
ção histórica, estética e educativa. Foi pensa- os procedimentos utilizados pelos artistas ve-
da a partir de três grandes eixos conceituais: teranos. Em cada um dos três andares da ex-
a arte computacional, as instalações e a arte posição, ficaram dispostos os trabalhos de
nas redes, que, respectivamente, estão na cada artista pioneiro. Tais trabalhos abrem o
base da produção de Waldemar Cordeiro, espaço dialogando com a produção dos artis-
Abraham Palatnik e Julio Plaza. tas convidados. Em razão da importância e da
A mostra pretendeu mostrar como os contribuição das obras dos três precursores
procedimentos criativos desses três artistas para o desenvolvimento da arte digital brasilei-
pioneiros fundamentam o surgimento da arte ra, cada eixo conceitual foi representado por
digital no Brasil. Melhor dizendo, a proposta foi um desses três artistas que, conseqüentemen-
identificar como os procedimentos por eles te, encabeçou uma determinada diretriz
utilizados já indicavam, de modo precursor, os operacional de criação. Assim, cada eixo pro-
caminhos e percursos que sustentam a pro- cessual foi representado e identificado por uma
dução contemporânea brasileira de arte digi- cor (vermelho, verde ou azul).
tal, enfocando o “como” cada obra foi produzi- No propósito de salientar como cada
da. Nesta perspectiva, fundamentou-se na li- obra foi produzida, relacionando-a às domi-
nha de reflexão acerca de como os meios, nâncias processuais inerentes a cada módulo,
códigos e linguagens utilizados condicionam os trabalhos expostos, a depender da poética
o modo de formar do artista. Tomando como proposta, poderiam estar vinculados a cada
base as influências antes referidas, foi feito o uma das três cores (vermelho, verde e/ou
recorte da atual produção da arte digital brasi- azul), estabelecendo o seu relacionamento ló-
leira. A curadoria selecionou trabalhos de ar- gico ou de dependência com dois ou mais gru-
tistas que têm se destacado por utilizar as pos conceituais. Em razão do caráter híbrido
novas tecnologias eletrônicas como das novas tecnologias eletrônicas, cada obra
potencializadores poéticos e na contramão do poderia manter relacionamento com cada
finalismo instrumental. módulo, o que remete à idéia de destacar as
Cada um dos três módulos foi tratado preponderâncias processuais a elas inerentes.
de maneira específica no espaço disponível da Deste modo, propôs-se como conduta para a

255
cadernos da pós-graduação

disposição das obras uma leitura das mesmas que se deve refletir sobre a diferença conceitual
por meio da relação com as cores inerentes que existe entre a idéia de “tecnologia como
aos eixos conceituais, no intuito de conduzir o arte” e a de “arte como tecnologia”4, premissa
público a uma maior compreensão dos proce- esta minimamente requerida e intencionada na
dimentos criativos inerentes às obras da pro- seleção dos trabalhos da exposição
dução contemporânea. Procedimentos estes Cinético_Digital.
já trabalhados e indicados de modo pioneiro O objetivo pretendido foi expor obras na
nas obras dos artistas Waldemar Cordeiro, proposta de subverter crítico e criativamente o
Abraham Palatinik e Julio Plaza. aparelho produtor e que fossem representati-
Ademais, na pressuposição de que no vas dos seguintes eixos processuais: arte
fazer artístico mediado pela tecnologia os pro- computacional, instalações e arte nas re-
cessos desenvolvidos e os produtos daí gera- des.
dos exigem de quem cria uma familiarização No módulo arte computacional, as
com modelos tecno-científicos, a curadoria obras de Waldemar Cordeiro (1925-1973)
procurou também mostrar como a arte, ao se abriam o espaço dialogando com os trabalhos
relacionar com os domínios da ciência e da dos artistas convidados. Ele foi um dos artis-
tecnologia, torna-se um campo interdepen- tas pioneiros da arte computacional no Brasil.
dente de exploração. Nesta perspectiva, ad- Foi também um expoente da arte visual con-
mitiu como premissa que ao conceito tradicio- creta brasileira, influenciando vários artistas
nal de artista incorporam-se outros papéis, com base na idéia de que o conteúdo da obra
como por exemplo, o de programador. deve ser representado de modo concreto pela
Não esquecendo, como dizia Plaza, que linguagem artística. Seu processo de criação
“a arte (produto) não é pesquisa ( stricto procurava, entre outros aspectos, relacionar
sensu), mesmo que esta faça parte (lato-sen- as idéias artísticas ao conhecimento da ciên-
so) de seu processo”,1 cabe referir que os tra- cia e ao desenvolvimento tecnológico de sua
balhos artísticos expostos são resultados de época. O método por ele utilizado está na base
investigações e indagações elaboradas pelos dos processos de criação e pesquisa de artis-
artistas nos principais laboratórios de arte e tas computacionais da atualidade. De forma
tecnologia das universidades do Brasil. As pes- geral, seu percurso criativo abrangia a trans-
quisas por eles desenvolvidas, no contexto das formação das retículas de imagens fotográfi-
matérias-primas e dos procedimentos cas em valores numéricos, o processamento
heurísticos, referendando o que admitia Plaza, algorítmico e a geração da imagem, propria-
devem assim aparecer como suporte, cami- mente dita. A primeira fase era realizada de
nhando na perspectiva de se caracterizar modo manual, com base na sobreposição de
“como meio e não como fim”.2 uma retícula sobre a imagem original amplia-
Neste sentido, considerando a condição da. Em seguida, definiam-se os dados para a
precípua, que é a de “ter a consciência de que criação da matriz alfanumérica a ser armaze-
não se está fazendo ciência”, a meta buscada nada na memória do computador. Com isto,
por esses artistas tecnológicos, na intenção criava-se o algoritmo para tratamento dos seus
por alcançar o “equilíbrio entre norma e forma”, dígitos, do qual resultavam diferentes possibi-
é justamente a de manter o “compromisso lidades imagéticas. Com base no princípio em
com as qualidades do objeto que cria” e não a que predomina a tensão entre a poética e a
de priorizar o pressuposto de retratar “a ver- utilização de modelos de programação e que
dade do conhecimento do objeto”.3 E é aqui estrutura as obras selecionadas de arte

256
instituto de artes

computacional, foram escolhidos os trabalhos problemática da mediação entre obra e recep-


dos artistas: Carlos Vicente Fadon, Tânia Fra- tor.
ga, Diana Domingues, Mario Maciel, entre ou- Por outro lado, ao considerarmos os
tros. cinéticos de Palatnik como representantes
No módulo instalações, foram os tra- deste princípio conceitual, a proposta foi tam-
balhos de Abraham Palatnik (1928) que inici- bém enfatizar as possíveis relações que o seu
aram o percurso do visitante. O princípio trabalho estabelece com as questões de
orientador do módulo dizia respeito às propos- desmaterialização e desaparecimento do ob-
tas de mediação entre obra e receptor, pensa- jeto artístico tradicional que, conforme Popper,
das desde a arte cinética. estão na base do conceito antes referido de
Quando começou sua pesquisa environment. Ou seja, de um ambiente estra-
cinética no contexto da arte, Palatnik estava tegicamente proposto, que prevê uma partici-
experimentando novos caminhos sobre as re- pação mais acrescida do espectador, consi-
lações sensoriais e perceptivas entre obra e derando a possibilidade do uso de novos ma-
espectador. Devido a esse fato, suas idéias teriais como forma de um engajamento mais
passaram a ser referências fundamentais na total. E é este princípio que está diretamente
criação da arte interativa. Nos cinéticos de na base dos trabalhos dos artistas Gilbertto
Palatnik, o movimento real da própria obra, Prado, Milton Sogabe, Raquel Kogan, Mario
construído por meio de artefatos industriais- Ramiro, entre outros relacionados ao eixo das
mecânicos, é utilizado como princípio poético. instalações.
Este é perseguido na intenção de provocar di- Na entrada do módulo arte nas redes,
ferentes modos de organização da sensibili- foram apresentadas as obras selecionadas de
dade, os quais visam capturar o receptor por Julio Plaza (1938-2003). Um dos interesses
meio da renovação de práticas receptivas. desse artista se situava na possibilidade de
Há muito, o teórico Frank Popper já di- organizar, produzir e veicular imagem pelos
zia que a intervenção do espectador dentro do sistemas de redes. Ele encontrou nos meios
processo estético varia do nível primário de de comunicação como o slow-scan , o
participação lúdica ao nível mais elaborado de videotexto e o computador aliados poderosos
uma participação total.5 Tal engajamento mo- para suas experimentações artísticas. Sua
biliza as suas capacidades e faculdades obra, bastante rica, representada na exposi-
contemplativas, perceptivas e locomotoras. ção pela utilização da holografia, da arte
Segundo o autor, a passagem da atitude computacional e de sistemas de rede, de-
contemplativa ao comportamento ativo, que monstra claramente o vigoroso processo de
afinal solicita e incorpora o receptor tanto men- colaboração com os poetas concretistas e o
tal quanto fisicamente, tem correlação direta forte interesse pelas questões da tradução
com a noção de environment, considerada intersemiótica. De maneira geral, o artista bus-
como o lugar de encontro privilegiado de fatos cava experimentar as potencialidades que os
físicos e psicológicos que animam o universo novos meios oferecem como sistema de cria-
do receptor. É nesta perspectiva que os ção artística. É inegável e precursora sua con-
cinéticos de Palatnik, considerados como tribuição no que concerne às poéticas da dis-
máquinas artísticas que propõem o movimen- tância. Ao propor uma ruptura com as formas
to como forma de ludicamente capturar o re- e os métodos tradicionais de exposição da arte,
ceptor, já indiciam no Brasil e avant la lettre a tais poéticas colocam em trânsito as diferen-

257
cadernos da pós-graduação

tes culturas na direção de que a redução da Sua produção científica, tecnológica e artístico-cultural envol-
ve a Arte Computacional, Arte e Tecnologia, Realidade Virtual,
distância física conduz à tendência de Mundos Virtuais, Animação, Arte digital, Ambientes Virtuais e
nivelamento planetário de repertórios. A web Imagem Interativa.
arte, representante mais atual destes proces-
Mônica Tavares - Professora da Escola de Comunicações e
sos criativos, firma-se hoje como um espaço Artes da Universidade de São Paulo - ECA-USP, e pesquisado-
de produção artística aberto para o mundo. ra do CNPq. Co-autora de Processos Criativos com os Meios
Alguns exemplos de obras que mantêm vín- Eletrônicos: Poéticas Digitais. (Hucitec, 1998). Organizou,
juntamente com Suzete Venturelli, a exposição Cinético_Digital.
culo com o módulo arte nas redes são as rea-
lizadas pelos artistas: Giselle Beiguelman, Síl-
via Laurentiz, Douglas de Paula, Lúcia Leão, Notas

entre outros.
1. PLAZA, Julio. “Arte/Ciência.” In: PLAZA, Julio; TAVARES,
No conjunto da exposição, os trabalhos Monica. Os processos criativos com os meios eletrônicos:
escolhidos (no total de 28) foram distribuídos, poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, p. 8, 1998.

de modo sincrônico, pelos três andares da 2. Idem.


mostra, não sendo proposto um percurso 3. Ibidem, pp. 7 e 12.
diacrônico e seqüencial para a visita. A 4. PLAZA, Julio. “As imagens digitais”. In: PLAZA, Julio;
vinculação das obras dos artistas convidados TAVARES, Monica. Os processos criativos com os meios
eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, p. 29,
com os eixos conceituais da exposição se deu
1998.
por meio da sua identificação à cor específica
5. POPPER, Frank. Art, action et participation: l’artiste et la
de cada módulo. Independente do piso em que creativité aujourd’hui. Paris: Éditions Klincksieck, pp. 11-14,
estavam localizadas, as obras que foram 1980.
identificadas pela mesma cor (enfim, aquelas
que estabelecem uma analogia em relação a
uma dada diretriz operacional de criação) dia-
logavam entre si. Neste pressuposto, a idéia
foi enfatizar o relacionamento lógico dos tra-
balhos recentes com um ou mais dos eixos
processuais anteriormente referidos, desta-
cando assim os seus procedimentos de cria-
ção e, conseqüentemente, ligando a produção
recente às obras dos artistas pioneiros.
Na exposição, os visitantes puderam
interagir com os trabalhos de arte digital reali-
zados por artistas brasileiros, de renome na-
cional e internacional, como também apre-
enderam como as obras de Abraham Palatnik,
Waldemar Cordeiro e Julio Plaza configuram-
se, no âmbito nacional, como precursoras e
inovadoras das relações entre arte, ciência e
tecnologia.

Suzete Venturelli - É doutora em Artes e Ciências da Arte


pela Universidade de Paris I e professora-adjunta da Universi-
dade de Brasília - UnB. Em 2004, publicou o livro: Arte: espa-
ço_ tempo_imagem, pela editora da Universidade de Brasília.

258
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Arte e crítica no Brasil. Desdobramentos de um processo


vivido

Mônica Zielinsky

Nessa breve reflexão trago à luz meus A partir desse momento, várias dúvidas
próprios caminhos percorridos nos estudos colocaram-se, em especial em relação à ne-
sobre a crítica de arte, entremeados das ines- cessidade de compreensão sobre o que seria
gotáveis questões e perplexidades sobre o de fato esse campo de produção intelectual
assunto. hoje. Perguntava-me se efetivamente a crítica
Cheguei à França em 1994, no intuito de arte ainda existe e como estaria sendo
de desenvolver uma tese de doutorado que, exercida. Predominariam os modelos de ou-
em linhas gerais, delineava-se como um estu- trora, através do exercício da palavra ou se
do sobre os elementos perceptivos imbrica- estaria vivendo hoje uma forte crise dos dis-
dos no processo de trabalho dos artistas, ele- cursos? E quais seriam seus veículos, os jor-
mentos estes relacionados com as novas pes- nais, periódicos universitários, catálogos, as
quisas sobre a visualidade. No entanto, ao che- revistas eletrônicas ou as curadorias haviam
gar a Paris, encontrei um clima de acirrados se tornado o veículo mais atual do exercício
debates sobre a arte contemporânea e sua da crítica? E o que se dizer da crítica de arte
crítica, que repercutiam amplamente no curso no Brasil, como se constituía, como estaria
que eu freqüentava na universidade. Fui des- sendo exercida e o que lhe seria peculiar?
de logo surpreendida e arrebatada por essa Em todas essas questões estavam
rica ambiência, em especial por ser conflituosa subjacentes interrogações da ordem de diver-
de idéias; ela originava-se no meio universitá- sas naturezas de reflexão e, para tal, detive-
rio, mas extrapolava-o para o mundo da arte, me mais profundamente nos estudos da área
através de debates em museus, artigos publi- da estética contemporânea. Busquei, na es-
cados em revistas de arte e jornais ou das sência da pesquisa, compreender os diversos
mais novas publicações. De imediato, repor- conceitos de crítica, recorrendo, para sua fun-
tei-me às lacunas sobre essas discussões em damentação, às propostas de alguns filó-
nosso país. A crítica de arte, como uma esfe- sofos da arte que pensavam esta área tão de-
ra de trabalho de importância essencial aos batida em nossos dias.
movimentos do campo artístico, não estava As visíveis transformações da arte, des-
sendo, a meu ver, suficientemente pensada, de sua passagem do moderno ao contempo-
em especial no que se referia à atualidade ar- râneo, a emergência das novas condições de
tística brasileira. De um dia para outro, substi- sujeito e da sua forma de se relacionar com o
tuí meu assunto de tese. Estava absolutamente mundo e a vida, a interrogação sobre valores
convicta da necessidade de se pensar a críti- e o exercício do juízo, estruturaram o arcabouço
ca de arte contemporânea no Brasil.1 desta tese. Naquele momento, a arte questio-

259
cadernos da pós-graduação

nava, como até hoje o faz, sua própria materia- son Goodman, 1968), a do argumento de
lidade, sua circunscrição ontológica diante das legitimação (Beardsley, 1981), ou as teorias
extensões e delimitações de seu campo e do institucionais da arte (George Dickie, 1964). O
seu espaço; extrapolava as noções do efêmero debate centrava-se, em especial, na questão
e fragmentário, o descontínuo e o caótico, o de como avaliar a arte contemporânea e es-
hibridismo em todas suas possibilidades barrava na ausência de suporte para emitir
constitutivas, inclusive em seus fluxos perma- juízos sobre os fenômenos artísticos. Deste
nentes com o cotidiano, a mescla de culturas modo, as teorias analíticas apresentavam, de
ou com as novas perspectivas da tecnologia e uma maneira geral, as teorias institucionais da
da informação. Nesse contexto, abordar o fato arte como uma alternativa possível diante dos
artístico de forma crítica geraria inevitáveis impasses do contexto da crítica da arte dos
debates. Não sendo, já há algum tempo, pos- nossos tempos.
sível aspirar a qualquer representação unificada Todas essas discussões levaram-me,
do mundo, diante do abalo das referências naquele momento, a tentar compreender as
estáveis do próprio conhecimento no mundo conformações dessa área em nosso país. Para
social, este campo da crítica de arte apresen- isso, levantei farto material sobre escritos crí-
ta uma progressiva indagação em sua forma ticos brasileiros, em especial dos anos 1980 e
de exercer o espírito crítico, este concebido, a elaborar quinze entrevistas representativas
segundo sua etimologia, como a capacidade (como estudos de caso) com críticos de arte
de distinguir, discernir e de julgar, segundo os brasileiros, em especial atuantes em São Pau-
princípios da razão. lo e Rio de Janeiro, extensivas também a his-
Colocaram-se as diferentes possibilida- toriadores da arte, jornalistas e artistas. Dese-
des de entendimento dessa área de atuação, java conhecer como esses entrevistados bra-
conforme os estudiosos consultados naquele sileiros concebiam essa atividade em nosso
momento. Alguns autores (em especial fran- país, como se posicionavam diante das con-
ceses e alemães) defendiam a atividade críti- formações da crítica de arte contemporânea e
ca conforme sua etimologia, como o exercício busquei estudar sua posição sobre as ques-
de uma atividade ainda em busca de normas, tões de juízo em matéria de arte.
mesmo que essas fossem reconstruídas pelo Como resultados, encontrei, de uma
debate intersubjetivo, este alicerçado em uma maneira geral, pouca proximidade entre os tex-
argumentação e em fatos observáveis, como tos críticos e as obras artísticas, também rara
defendia por exemplo Rainer Rochlitz2 e, a um era a atribuição de valor nas análises sobre a
modo semelhante, Martim Seel (1996). Jean- arte. Em muitos casos prevalecia a exaltação
Marie Schaeffer (1996), por sua vez, optava dos artistas, em detrimento das necessárias
pela defesa de uma conduta crítica apoiada nas reflexões sobre a arte do país. Diagnostiquei,
preferências subjetivas do espectador, recu- ainda em muitos dos textos e entrevistas ana-
sando, ao contrário de Rochlitz, qualquer cu- lisados, uma rara compreensão histórica da
nho avaliativo e fundamentado intersubjetiva- arte brasileira contemporânea, em relação à
mente na recepção da arte. Outros autores, sua formação moderna no país, com exceção
preferentemente de origem anglo-saxã e de de alguns poucos, mas representativos escri-
tradição da filosofia analítica, optavam por con- tos. A abordagem da arte, por sua estruturação
siderar essa recepção como um fato interpre- no tecido social brasileiro, era quase inexistente
tado por meios instituídos, tais como a história e percebia-se freqüentemente uma fuga para
da arte (Danto, 1981), a ótica simbólica (Nel- textos herméticos, descritivos ou poéticos so-

260
instituto de artes

bre a arte; estes eram tratados pelos entrevis- discriminada e disposta nas diferentes partes
tados, na maior parte das vezes, com prefe- do catálogo, ao se considerar o conjunto da
rência em relação a uma experiência profun- obra. Nem toda a produção do artista apresenta
da com o trabalho de arte. Adequavam-se, pre- o mesmo perfil de resultados e a tomada de
ferencialmente, ao consenso geral da mídia, decisões, sobre a forma de apresentá-los, re-
aos interesses institucionais e do mercado de laciona-se constantemente com avaliações,
arte. muitas das quais são difíceis de formular e de
Diante desses resultados, organizei, assumir. Menciona-se como exemplo, na ela-
simultaneamente à escrita da tese, uma pe- boração do catálogo raisonné referente à obra
quena coletânea de ensaios de filósofos e es- gravada de Iberê,3 a presença de muitas gra-
tudiosos europeus (em especial franceses), de vuras assinadas pelo artista (portanto confir-
alguns brasileiros e de um autor norte-ameri- madas por ele) que não apresentam a força e
cano que pensavam esse mencionado deba- importância dentro do conjunto da obra de al-
te sobre a crítica de arte contemporânea a partir guns dos trabalhos não assinados. O que se
de um ponto de vista mais filosófico sobre a coloca em questão não é o elemento assina-
questão, contemplado, nesse livro, como uma tura, mas ao que ela remete: as escolhas do
interrogação sobre os limiares internos da pró- artista, em alguns casos, confrontam-se com
pria arte contemporânea, dos seus discursos a avaliação externa a elas e que ocorrem no
e sobre suas diferentes abordagens. mundo público.
Mesmo convicta da inegável importân- No entanto, a obra de Iberê insere-se
cia desses estudos para a constituição de idéi- em princípios considerados tradicionais da
as sobre a área em questão e seus conceitos, arte, isto é, ela não apresenta as conflituosas
ao estar novamente em contato com meu país discussões e tipo de análise sobre a recep-
de origem, novas questões colocaram-se mais ção levantadas pela arte contemporânea. Os
recentemente e atualizaram meu pensamen- critérios para o discernimento da proposta ar-
to sobre as relações entre a arte e a crítica. tística e nível de realização das obras de Iberê
não trazem as mesmas dúvidas e
Pouco tempo após meu retorno ao Bra-
questionamentos levantados em momento
sil, coube-me a oportunidade de assumir a res-
anterior.
ponsabilidade de um trabalho na Fundação
Iberê Camargo em Porto Alegre/RS, para ela- A constante proximidade e aprofunda-
borar a catalogação da obra desse artista. mento do contato com esta obra provocou
Essa atividade tem como base uma profunda desafios que me levaram a repensar o exercí-
pesquisa sobre a obra de Iberê Camargo, além cio da crítica de arte em relação à conduta de
de constituir-se de um trabalho técnico, que um artista brasileiro. Estimularam outro gêne-
congrega a identificação de dados sobre as ro de discernimento, o que diz respeito à com-
obras e organiza-os, com vistas à abertura das patibilidade das questões atuais da arte em
suas fontes primárias e secundárias ao domí- relação aos dados da constituição histórica da
nio público, para fins de seu reconhecimento, obra de Iberê Camargo. Em seu modo artísti-
estudos, difusão e confirmação sobre autenti- co, essa obra indica uma trama específica, a
cidade. que envolve raízes de uma herança expressi-
va, ainda tão pouco abordada pela nossa críti-
Parte desse empreendimento insere-se
ca e pesquisas continuadas no país. No en-
em uma atividade crítica focada na arte de
tanto, qualquer questão como esta que se apre-
Iberê, pois requer uma seleção qualitativa a ser

261
cadernos da pós-graduação

senta poderia ser tratada de um modo descri- ção da arte do país em relação ao seu trânsito
tivo e não crítico. E é neste sentido que perce- e suas articulações no circuito globalizado das
bo a transformação operada em meu pensa- manifestações artísticas do presente. Tem-se
mento hoje, como conseqüência dos resulta- consciência que, na extensão do mercado de
dos daquela tese. arte internacional, as obras apresentam-se
O trabalho que desenvolvo não compor- quase sempre afastadas dessas conexões, de
ta apenas um relato cumulativo de dados so- sua inserção cultural de origem. Vejo assim
bre a produção do artista em relação aos fa- como essencial compreender a história da
tos identificados. É acompanhado de uma re- constituição dessa arte, seu enraizamento
flexão e de uma crítica sistematizada. Crítica antropológico, político e social, um tipo de re-
de arte é pois entendida como uma atitude in- flexão que, em meu ponto de vista, é primordi-
telectual, a que coloca em xeque, como vem a al para o exercício contemporâneo da ativida-
ser o estudo de caso sobre a obra de Iberê, as de crítica no país, tendo sempre, em minha
condutas artísticas e institucionais, como lem- experiência particular, esse foco como um dado
bra Bruce Ferguson4 ao rever “as pautas so- fundamental.
ciais ocultadas sob as formas imagéticas”. Em Lembro a esse respeito o trabalho de
outras palavras, evocando o pensamento de Rodrigo Naves, em seu valioso texto “Azar his-
outro estudioso norte-americano, Johnatan tórico”,6 no qual ele discute o desconhecimen-
Crary, pensamos ser fundamental considerar to, mesmo a manifestação de um “desdém”
as manifestações artísticas por uma arqueo- por parte do mundo artístico brasileiro em re-
logia crítica das condições históricas das lação a importantes trabalhos de arte moder-
obras, “como uma pré-história do nosso pre- na do país, obras estas que praticamente nun-
sente, em seus mundos ‘técnico- ca chegaram a ser suficientemente compre-
institucionais’”.5 Este autor refere-se também endidas e também mostradas fora do Brasil,
a uma atitude, a de suspensão da percepção, como é o caso da obra de Iberê. Nesta análi-
conforme seus estudos mais recentes, como se, ele aponta a forte presença de parâmetros
uma apreensão dos fatos artísticos com um alheios à origem e à verdade dessas obras
sentido de tensão, como uma exploração das entre as escolhas do meio institucional, ao
condições de sua emergência histórica na atu- valorizar outras produções que se firmaram no
alidade. meio internacional por questões contraditóri-
Assim, a obra do artista em questão é as à sua proposição original. Assim ele se re-
analisada, simultaneamente à identificação e fere, nesse mesmo escrito, à música de João
coleta de seus dados artísticos e documen- Gilberto:
tais, também pelas condições sociais e políti-
cas da sua produção, inserção no mundo ar- “Há nas interpretações de João Gilberto justeza
tístico e de sua visibilidade. Essas condições (a afinação, o tom certo) e deslocamento ( as
expõem fatos relativos à pré-história de sua divisões inusuais, as durações alteradas), uma
constituição, como afirma Crary, das diversas continuidade feita de ajustes sutis – um Brasil
em que o “jeito” deixa de ser o escamoteamento
épocas até sua projeção na atualidade.
das dificuldades para tornar-se talvez a maneira
Nessa perspectiva, vê-se, além dessa mais sábia de compreendê-las. No seu modo de
experiência específica relativa aos estudos captar o passado, João Gilberto, por frinchas e
sobre Iberê, que é tarefa importante da crítica dribles, faz a história emergir no presente”.7
atual brasileira colocar em questão a forma-

262
instituto de artes

Tais idéias parecem essenciais e apro- urge ser pensada através de seu próprio es-
ximam o campo da crítica (quase ao fundi-lo) copo constitutivo, “o momento de formação
aos fluidos contornos que estabelece com a prevalecerá sobre o resultado já formado”.10
história da arte. Pergunto-me, pois, de que Questões como ontologia da arte, ex-
modo pode-se associar os diferentes concei- pressão e fundamentação dos juízos, a crítica
tos de crítica estudados com a constituição da apoiada em elementos observáveis do traba-
arte brasileira? Por que ela não se submeteu lho, conduta estética abalizada por preferênci-
até hoje a uma avaliação aprofundada em seu as subjetivas, a interpretação e orientação
solo de origem sobre as questões que lhe são cognitiva dos filósofos da arte de tradição ana-
constituintes? Como têm circulado os textos lítica, teorias institucionais da arte são todos
críticos brasileiros no próprio país e, em espe- dados valiosos para se refletir sobre a crítica
cial, no exterior? De que modo o mundo inter- de arte hoje. São contribuições essenciais
nacional tem acesso às obras brasileiras con- para muitas das revisões sobre o exercício
temporâneas? Seriam refeitos, através das desta conturbada tarefa no presente. A arte
análises sobre a arte deste país, os caminhos brasileira poderia talvez exigir de sua crítica a
sobre a inserção desta arte em meio às raízes revisão aqui proposta, necessitando-se acre-
culturais brasileiras? Que leituras têm sido re- ditar primordialmente em ações propositivas
alizadas da nossa produção artística em rela- a partir do campo da crítica de arte, ao
ção à sua emergência histórica? E ainda, como potencializar novas e audaciosas pesquisas
se daria esse tipo de leitura em relação às for- nessa área de trabalho. Estas podem, quem
ças institucionais que estruturam o meio de sabe, espraiar-se em ações que constituem o
arte? meio de arte e da cultura no país: na aborda-
Cada um desses questionamentos po- gem que parte do contato visceral com o tra-
deria estimular ricas análises sobre o campo balho dos artistas; a partir do meio universitá-
da crítica de arte no Brasil, ainda incipientes rio, mas para além dele; em atividades docen-
porém indispensáveis para a compreensão da tes que estimulem a formação de novos críti-
recepção e inserção da arte brasileira no cir- cos e pensadores, os que possam refletir so-
cuito global. bre a constituição social e política da arte em
A partir dessas reflexões, evoco o pen- suas conexões com a contemporaneidade; em
samento de um estudioso do romantismo ale- curadorias de exposições que tenham, antes
mão pouco mencionado entre nós, Karl Philipp da seleção de artistas, um profundo respeito à
Moritz. Ele lembra que a obra de arte significa arte; também, em diretrizes museológicas e
a si própria, pelo jogo das suas partes; ela é institucionais que criem linhas de trabalho
portanto sua própria descrição.8 Essa idéia estimuladoras para a eclosão de um pensa-
pode ser estendida ao contexto da arte do nos- mento interrogativo sobre as questões da arte
so país, uma vez que esta produção possui hoje em relação às suas raízes de origem; ain-
um valor próprio a ser reconhecido de dentro, da, no incentivo à criação de publicações au-
a partir de seu interior. Segue Moritz, mencio- daciosas que fomentem debates entre críticos,
nando que “se uma obra de arte existisse se- artistas e representantes institucionais. São
não para indicar algo exterior a ela, tornar-se- essenciais as ações que provocam aquela ati-
ia por isso mesmo algo acessório”,9 idéia que tude tensa que Crary propõe, as que recusam
pode ser igualmente trazida às reflexões aqui a fixidez e a contemplação passiva de tudo o
propostas. Mais que nunca, a arte brasileira que se manifesta sob a superfície dos fatos

263
cadernos da pós-graduação

institucionais, considerando os trabalhos de


arte, desde sua origem, como a referência pri-
mordial.
Destas idéias, a crítica no Brasil dos
nossos tempos quem sabe poderá inspirar-se
para alavancar suas indagações e destas oca-
sionar sua própria transformação e o futuro da
arte brasileira.

Mônica Zielinsky - Professora do Instituto de Artes da Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS; Coordena-
dora do Centro de Documentação e Pesquisa do Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da
UFRGS. Autora, entre outras publicações, de “Iberê Camargo.
Catálogo raisonné. Volume 1-Gravuras”. São Paulo: Cosac
Naify, 2006. Responsável pela catalogação da obra completa
de Iberê Camargo.

Notas

1. A tese desenvolvida a partir desses questionamentos


intitulou-se “ La critique d’art contemporaine au Brésil:
parcours, enjeux et perspectives” e foi defendida em de-
zembro de 1998, na Universidade de Paris I – Panthéon
Sorbonne.

2. ROCHLITZ, Rainer. Subversion et subvention . Art


contemporain et argumentation esthétique. Paris: Gallimard,
1994.

3. ZIELINSKY, Mônica . Iberê Camargo. Catálogo Raisonné.


Volume I-Gravuras. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
4. FERGUSON, Bruce. “Exhibition rhetorica: material speech
and ulter sense”. In: Thinking about exhibitions. London:
Routledge, 1996.

5. CRARY, Johnatan. Suspensions of perception. Attention,


spectacle, and modern culture. Cambridge, Massachssetts:
The MIT Press, 1999.

6. NAVES, Rodrigo. “Azar Histórico. Desencontros entre mo-


derno e contemporâneo na arte brasileira”. In: Novos Estu-
dos Cebrap, nov 2002.
7. Idem, p. 19.

8. Cf. TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. Campinas:


Papirus, 1996, mencionando o pensamento de Karl Philipp
Moritz, p. 207.

9. Idem, p. 210.
10. Ibidem, p. 200.

264
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Godard Curador

Nelson Aguilar

A exposição de Godard no centro Pompidou : ANTEONTEM - TER SIDO; ON-


Georges Pompidou em Paris, coloca em ques- TEM - A VER e HOJE. A sala ONTEM A VER
tão a mostra de arte contemporânea e dispo- está envolta por televisores que projetam
sitivos: curadoria, patrocínio, cenografia, divul- excertos de clássicos: Um dia em Nova York
gação, enfim toda a maquinaria que envolve o de Stanley Donen e Gene Kelly, Johnny Guitar
circuito artístico. de Nicholas Ray, A cor da romã de Serge
O projeto inicial da exposição seria or- Paradjanov, Dom Quixote de Orson Welles,
ganizado pelo então diretor do Departamento O evangelho segundo São Mateus de Pier
de desenvolvimento cultural, Dominique Païni, Paolo Pasolini, O testamento do dr. Mabuse
em colaboração com o cineasta, e se chama- de Fritz Lang, Gente de domingo de Robert
ria Collage(s) de France, arqueologia do cine- Siodmak e Edgar G. Ulmer, entre outros. Essa
ma segundo JLG: uma série de 9 entrevistas oferta simultânea faz parte da metodologia
com personalidades utilizando o cinema como godardiana oriunda do teatro de Brecht. O ci-
ponto de intersecção seria veiculada durante nema de Godard evita que o espectador entre
seus nove meses de duração. O título em hipnose profunda, siga os passos de im-
Collage(s) de France trazia alguma ironia: há postos alter-egos, pelo contrário acorda o pú-
alguns anos Godard se prontificou a fundar blico, o som briga com a imagem, reconhece-
uma cadeira de história do cinema relaciona- se um ator famoso ou uma atriz atraente (nes-
da à história do século XX no Collège de se campo, sua pontaria é infalível), mas sem
France, sem sucesso. transparência alguma, permanecendo enigmá-
ticos e intransponíveis do começo ao fim do
O projeto gorou, o cineasta se desen-
filme. A melhor maneira de ver é acordado, os
tendeu com o curador e uma nova exposição
Viagem(ns) em Utopia. JLG. 1946-2006. Em
busca de um teorema perdido é organizada
pelo próprio cineasta (11/5-14/8/2006).
Logo à entrada está inscrita a frase inau-
gural do périplo, homóloga ao Lasciate ogni
speranza: O que pode ser mostrado não pode
ser dito. O dístico é do primeiro Wittgenstein e
serve a Godard como o axioma que irá animar
sua teoria de conhecimento cinematográfica.
A mostra ocupa três salas, somando
ao todo 11.000 m2 na galeria sul do centro Fig. 1: Sala ONTEM - A VER

265
cadernos da pós-graduação

truques à mostra, os cortes, os movimentos O diretor de fotografia, o grande Harry Stradling,


de câmara, a luz, a especificidade de cada acompanha o movimento dos afetos, uma vez
objetiva, a cor. Godard ajudou os Cahiers du que iluminou O bonde chamado Desejo de Elia
cinema a propagar a noção de cinema de au- Kazan. Senti medo do bando que invade o
tor, onde o que vale são as obsessões de cada saloon, de alguma sobra, de uma bala perdi-
cineasta, o estilo, a maneira de decupar a da. O cinema dá, a mostra tira, o espectador
cena, a equipe técnica que elege. Antes disso, torna-se adulto. O ritmo espacial onde
predominava o fã-clube consagrado aos ato- perambulamos não é diverso de um poema
res. de William Carlos Williams, com recorrências,
Em sua exposição, Godard pretende aliterações, ecos, pulsações.
também quebrar a atenção do público para A locação está composta por palmei-
fazer ver. Há uma mesa e cadeiras com os ras, pedras e tijolos sobre paletes. O ambien-
pés parafusados no chão, portanto em situa- te em instauração adquire sua suficiência por
ção de filmagem. Sentei nessa cadeira e as- se aproximar de uma situação criada por Ilya
sisti o trecho oferecido de Johnny Guitar, o di- Kabakov ou, mais precisamente, do Jardim de
álogo entre Vienna (Joan Crawford), dona do Inverno de Marcel Broodthaers, mostrado na
cassino, e sua equipe, decorrido numa suces- 22ª Bienal de São Paulo (1994), que trata da
são de plongées, ela, no alto, diante de uma desconstrução do dispositivo museológico, as
balaustrada, eles, embaixo, ao lado da roleta. palmeiras que servem de fronteiras entre sa-
A economia dos cortes, a diferença hierárqui- las que classificam ou segregam obras de
ca no próprio jogo de campo e contracampo, arte, por exemplo, separando os fauves dos
as cores saturadas que sobrecarregam o cubistas, adquirem status próprio. O artista
saloon, a indumentária em tons pastéis de belga descobre uma conotação pós-
Johnny Guitar (Sterling Hayden) sobressaem colonialista no artifício, pois a idéia do jardim
em meio ao hiperativo technicolor. Entra um de plantas tropicais em estufa marcou a expo-
grupo de cidadãos comandado por outra mu- sição mundial realizada em Londres (1851),
lher fálica, Emma Small (Mercedes no Palácio de Cristal, primeira armação de vi-
McCambridge). O filme lida com o ciúme, o dro e ferro abrigando um mega-evento. Joseph
ciúme é diagonal e não frontal, os casais es- Paxton, seu inventor, arquiteto e paisagista,
tão trocados, Vienna gosta de Johnny, Dancin’ famoso por recriar as condições para a floração
Kid de Vienna e Emma Small de Dancin’Kid. na Inglaterra da vitória-régia, usa a planta como
padrão para definir as linhas de força da estru-
tura arquitetônica. Por sua vez, Broodthaers
refere-se ao Museu Real da África central, em
Bruxelas, cujo acervo provém do antigo Congo
Belga, propriedade do rei Leopoldo II, em se-
guida incorporada à Bélgica mediante paga-
mento ao soberano. As palmeiras são senti-
nelas da periferia aclimatadas à metrópole.
Esse ambiente colonial no Pompidou
prossegue feérico pela presença de dois tren-
zinhos elétricos, um de passageiros e outro
de mercadorias, que atravessam a sala e se
Fig. 2: Sala ONTEM - A VER

266
instituto de artes

conectam à vizinha, que recebe os letreiros te em happening, numa insurreição, insubor-


“ANTEONTEM - TER SIDO”. O trem é um ve- dinação, insubmissão, distante de Joseph
ículo extraordinariamente hierarquizado, artifí- Beuys, próxima de Allan Kaprow.
cio mecânico, primogênito do cinema. Sua Godard está habituado a lidar com a
imagem ficou no século XX definitivamente vin- indústria do cinema a contrapelo, a lutar den-
cada pelo transporte de milhares de prisionei- tro das corporações contra a sociedade co-
ros aos campos de extermínio construídos mandada pelos fluxos do capital, a empregar
pelos alemães em seu país e na Polônia. os canais de comunicação à revelia, suas in-
tervenções na TV aberta sempre se transfor-
mam em operações de guerrilha cultural.
Ainda na sala pequenos monitores
reconstituem os tropos do discurso cinemato-
gráfico godardiano que deveriam alimentar as
nove salas do projeto original: devaneio (=o
real), parábola (=os canalhas), inconsciente/
aliança (=totem, tabu), lição (ões) [(=o(s)
filme(s)], metáfora (=câmera), imagem (=hu-
manidade) e alegoria(=mito), fábula (=o mau-
soléu) e montagem (=sésamo, teorema).
Na floresta das palmeiras, dois televi-
sores emitem A grande testemunha de Robert
Bresson e um filme de Sacha Guitry (Não há
etiquetas na exposição que indiquem de que
filme se trata). Um trecho do chão é revestido
por tacos pretos, à maneira de uma casa em
vias de se decorar.

Figs. 3 e 4: Sala ANTEONTEM - TER SIDO

Há um embate entre o piso de linóleo


castanho claro do museu, neutro, distinto, e
cada intervenção, rude, fios à mostra, materi-
al empilhado, plantas ainda com a etiqueta do
fornecedor, leito desfeito, andaime tombado,
cerca de madeira, páginas de livro fotocopia-
das e riscadas por marcador, a parafernália Fig. 5: Sala ANTEONTEM - TER SIDO
da produção cinematográfica provisória, uma
constante agressão contra a instituição que Na sala ANTEONTEM - TER SIDO está
acolhe o filho pródigo. A instalação se conver- escrito o verso de José Lezama Lima La luz

267
cadernos da pós-graduação

es el primer animal visible de lo invisible. O


efeito da colagem está em ação, como no li-
vro de Walter Benjamin, O Trabalho das Pas-
sagens. Um leito desfeito (de hospital? de pri-
são?) brilha ao lado da Camisa romena de
Matisse, do desenho de Hartung, dos Músicos
de Nicolas de Staël. O uno diante do múltiplo.
As grades de proteção, que sinalizam
canteiro de obra, congêneres de nossos ca-
valetes sarapintados, protegem as maquetes
do projeto original com o famoso No
trespassing do Cidadão Kane. Essa tralha acu-
mulada chama-se Babe Lônia. O trem conti-
nua seu curso nessa sala e, ao lado dos tri-
lhos, outro televisor emite excertos do Evan-
gelho de Pasolini, da Palavra de Carl Dreyer e
dos 10 mandamentos de Cecil B. DeMille.
Roda também o filme de Godard: Verdadeiro/
Falso Passaporte.
Os tacos de madeira aumentam sua
inserção no piso dessa sala. Num canto, o
encarte com os dizeres: é uma negociação Figs. 7 e 8: Sala HOJE
para deixar o outro amar.
Sala HOJE. Um loft. Sobre a cama de Mesa: televisores sintonizados nos ca-
casal, o televisor emite Falcão Negro em Peri- nais abertos. Na da cozinha, filme pornográfi-
go de Riddley Scott e, ao lado, uma reprodu- co. Andaime caído. Sobre uma lousa está es-
ção do divã de Freud. Há um painel de cruzes crito: Em 1900, Claude Monet convida Edgar
de Malta, aludindo ao parentesco entre as Degas a vir ver o telefone que acaba de ser
medalhas de guerra e o mecanismo das instalado em sua casa. Vejo, disse Degas, que
filmadoras. ele toca e você vai! Eu não vou.
Uma frase de Matéria e Memória de
Bergson decompõe-se nas três salas: O es-
pírito toma emprestado à matéria as percep-
ções, seu alimento, e lhas restitui sob forma
de movimento onde lhe imprimiu sua liberda-
de.

Nelson Aguilar - Professor de História da Arte no Instituto de


Filosofia, e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP. Foi curador-geral das XXII e XXIII Bienais
Internacionais de São Paulo (1994 e 1996), da Mostra do
Redescobrimento, organizada pela Associação Brasil 500
Fig. 6: Sala HOJE

268
instituto de artes

Anos (São Paulo, Rio, São Luís, Fortaleza, Salvador, 2000/2) e


da IV Bienal do Mercosul (2004, Porto Alegre). Foi também
curador-associado da exposição Brazil Body and Soul, reali-
zada no Museu Guggenheim de Nova York (2001/2). Foi curador-
geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1998 a
2000). Foi curador para a representação brasileira na XXV
Bienal de São Paulo (2002). Coordena as exposições do Insti-
tuto Tomie Ohtake a partir de 2001. Autor dos livros Bienal 50
anos - 1951/2000 (São Paulo: Fundação Bienal, 2001), La
Arquitectura de Ruy Ohtake (Madrid: Celeste, 1994), Nelson
Leimer (São Paulo: Paço das Artes, 1994) e Arte Bralileira Hoje
(São Paulo: Publifolha, 2002).

269
270
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Imagens do corpo perfeito


O sacrifício da carne pela pureza digital

Paula Sibilia

Se fosse possível enxergar a beleza em si, limpa, pura, sem mistura, sem estar contaminada de
carnes humanas, de cores e de outras muitas miudezas mortais, mas se fosse possível avistar a
beleza divina em si, especificamente única...

Platão1

A beleza do corpo reside por inteiro na pele. Certamente, se os homens pudessem ver o que se
encontra sob a pele, dotados como os linces de Beócia de penetração visual interior, bastar-lhes-ia
ver uma mulher para terem náuseas: toda essa graça feminina não é mais do que saburra, sangue,
humores e fel. Pensemos no que se esconde no nariz, na garganta, no ventre: só imundice. E nós
que sentimos repugnância ao tocar, mesmo que com a ponta dos dedos, o vômito e o esterco, como
é que podemos sentir o desejo de abraçar tamanho saco de excrementos?

Odon de Cluny2

O subtítulo deste artigo pode parecer o corpo humano costuma receber uma grave
alheio a uma sociedade como a nossa, que acusação: seja nas academias de ginástica
alardeia os consumos hedonistas e na qual ou nos consultórios dos cirurgiões plásticos,
vigora um imperativo do gozo constante e da nas sessões dos “grupos de emagrecimento”
felicidade compulsória. Há lugar para o sacrifí- ou nos múltiplos salões de beleza, acima da
cio em um quadro como esse? Busca de pu- balança ou diante do espelho; uma e outra vez,
reza? Novas formas de ascetismo? Por um o corpo é acusado de ser impuro. E recebe,
lado, é indubitável que o “culto ao corpo” tem por tal motivo, a merecida punição. Mas o cor-
se tornado um contundente fenômeno contem- po contemporâneo revela sua impureza em um
porâneo; no entanto, junto com essa tendên- sentido completamente novo: sua falta mais
cia emergem novos valores, mitos, crenças, grave consiste em ser imperfeito e finito. Por
imagens e metáforas que parecem desprezar ser orgânico, demasiadamente orgânico, é fa-
a materialidade corporal - e, inclusive, chegam talmente condenado à degradação e à
a irradiar certa vocação de conquista e ultra- obsolescência. Para compensar todas essas
passagem dos limites inerentes ao organismo fraquezas da carne, faz-se necessário recor-
humano, graças à valiosa ajuda da rer aos diversos rituais de purificação hoje dis-
tecnociência. poníveis: um grande conjunto de privações e
Essa última afirmação pode resultar um sacrifícios de novo cunho que, contudo, jamais
tanto curiosa, dado o contexto no qual estamos serão suficientes para nos livrar da nossa in-
imersos. Contudo, não é difícil entrever que hoje digna condição carnal.

271
cadernos da pós-graduação

A acusação de impureza relativa ao ga), ou a comunhão com Deus (como nas


corpo humano não é uma novidade histórica, experiências místicas medievais), para aludir
evidentemente, embora a poluição atual não a dois momentos emblemáticos de nossa his-
seja idêntica àquela que vigorou em outros tória nos quais se desenvolveram práticas
períodos de nossa civilização. De todo modo, ascéticas. Agora não se almeja uma liberta-
não convém desdenhar alguns pontos em co- ção dos caprichos do corpo para dominar tan-
mum, que ainda podem ser significativos para to a si mesmo como aos outros, nem
captar a peculiaridade do fenômeno contem- tampouco para transcender a vida mundana
porâneo. Neste Ocidente secularizado dos iní- com o propósito de alcançar alturas espiritu-
cios do século XXI, um universo globalmente ais. Em vez disso, a nova moralização das
sincronizado pelos vaivéns e pela lógica do práticas corporais que prolifera entre nós per-
mercado, abarrotado de dispositivos segue metas bem mais prosaicas: vencer no
tecnocientíficos que prometem saciar todos os mercado das aparências; obter sucesso, be-
desejos e necessidades imagináveis, parece leza, auto-estima ou eficiência; efetuar uma
inconcebível qualquer expiação em nome dos boa performance física e sobretudo visual.
valores transcendentes de outrora. Por isso, Enfim: todos fatores bem cotados hoje em dia.
as novas formas de ascetismo que se desen- O termo fitness delata, assim, sua origem
volvem entre nós mantêm uma relação com- etimológica em língua inglesa: como uma pa-
plexa, embora aparentemente contraditória, lavra de ordem que incita a se adequar ao
com as práticas hedonistas do consumismo modelo hegemônico. Tanto de forma literal
e do império das sensações. Essa curiosa como simbólica, trata-se de incorporar seus
amálgama, que em principio pode parecer im- valores.
provável, é sumamente prolífica: todos os dias, Em uma sociedade cada vez mais im-
uma infinidade de frutos surge do seu cerne: pregnada pela lógica do espetáculo e pela moral
da bibliografia de auto-ajuda até a farmacopéia das sensações, essa obsessão por adaptar
anti-oxidante, passando por uma miríade de as próprias aparências aos contornos do “cor-
produtos e serviços que contemplam das ci- po perfeito” que se apresenta como modelo
rurgias estéticas até os suplementos universal concentra a atenção de setores cres-
vitamínicos e os alimentos light e diet; dos spas centes da população global. E incita a desdo-
e personal trainers até os diversos métodos brar modalidades inovadoras do “cuidado de
de bronzeamento artificial, os pilates e os si”.3 Esse conjunto de práticas, crenças e ritu-
power-yoga. ais já não aponta mais para o fortalecimento
O novo receituário da expurgação com- da vida sentimental, como foi habitual nos tem-
preende, assim, toda uma série de práticas que pos modernos da era burguesa, mas
poderíamos denominar neo-ascéticas. Um tampouco procura cultivar a vida pública, como
conjunto de rituais que exigem uma disciplina ocorria na Grécia Clássica. Agora, todas as
férrea e uma intensa série de abnegações, atenções tendem a se concentrar no aperfei-
além de tempo e dinheiro - enfim, nada des- çoamento dos diversos aspectos da vida físi-
prezível de acordo com as cotações do mer- ca. No contexto contemporâneo, “cuidar de si”
cado de valores contemporâneo. Tudo isso deixou de remeter à preservação de costumes
para atingir uma certa pureza. Mas a pergunta e valores burgueses, com sua preocupação
é inevitável: de que pureza se trata? O objetivo constante no que tange ao enriquecimento da
explícito de tais rituais não consiste em atingir alma, aos sentimentos e às qualidades mo-
a excelência pública (como na antiga polis gre- rais, para canalizar suas cerimônias em dire-

272
instituto de artes

ção ao cuidado do corpo físico. Por um lado, vas formas de preocupação consigo constitu-
expande-se a busca de sensações em, em seu conjunto, o que alguns autores
prazerosas, inéditas e extremas; por outro denominam bio-ascese.4 Trata-se de uma am-
lado, tenta-se burilar o próprio aspecto corpo- pla série de práticas e técnicas que contribu-
ral como se fosse uma bela imagem em para criar biodidentidades, isto é, um tipo
bidimensional. Tudo isso em uma atmosfera particular de “identidade”, para a qual as ca-
sócio-cultural que estimula a ostentação de racterísticas anatomo-fisiológicas do corpo
atributos como beleza, saúde, longevidade e humano constituem um referente fundamen-
“boa forma”. tal. Porque este curioso renascer contempo-
Os elementos resumidos nos parágra- râneo do ascetismo não implica um trabalho
fos anteriores constituem um conjunto de no- sobre si para se colocar à disposição dos de-
vidades históricas, disseminadas especial- mais, do mundo ou de Deus; em vez disso,
mente nas últimas décadas. Pois tanto a edu- trata-se de uma corpolatria que se esgota em
cação cívica como a sentimental, que têm sido si própria, como um tipo de ascese com voca-
hegemônicas em outros momentos de nossa ção imanente, “humanamente pobre e social-
história, esforçaram-se por manter em um mente fútil”.5 Por isso, cumpre notar que este
segundo plano as sensações corporais e o deslocamento no foco do “cuidado de si” des-
cuidado das funções e formas físicas. Ou seja, tila suas seqüelas éticas e políticas. Se o as-
toda a trivialidade da vida biológica era menos- pecto corporal passa a ocupar o sítio antes
prezada, em proveito de outros valores consi- dedicado aos grandes ideais, em contrapartida
derados superiores. O desdém pelo corpo or- será preciso desalojar os antigos protagonis-
gânico é um ingrediente comum, tanto à anti- tas daquelas práticas e espremê-los em algum
ga tradição política ou guerreira baseada na canto menos privilegiado de nossas preocu-
ação, como à educação burguesa intimista e pações: os grandes sentimentos, pensamen-
sentimental. No primeiro quadro, o corpo era tos e ações.
considerado um mero instrumento, uma ma- No entanto, embora pareçam tão mo-
téria bruta que devia se submeter aos rituais destas ou “pouco nobres”, as metas dos no-
da moderação dietética e erótica a fim de de- vos ascetismos não devem conduzir a enga-
monstrar virtudes cívicas e efetuar determina- no, pois seus devotos praticantes costumam
das conquistas no âmbito público. No segun- levá-las muito a sério. Inclusive, supõe-se que
do caso, a brutalidade da carne podia consti- em seu nome - e somente em seu nome - qual-
tuir uma ameaça para a delicadeza da quer sacrifício seria legítimo. Não devemos
interioridade psicológica; por isso, paixões bai- esquecer, porém, que isso ocorre em uma
xas e instintos agressivos deviam ser laborio- sociedade como a nossa, na qual os antigos
samente domesticados, em busca do desen- valores transcendentes a que esse termo re-
volvimento intelectual, sentimental, moral e mete parecem ter se esvaziado de sentido. É
espiritual. Nesses dois momentos históricos, habitual, porém, que as novas práticas bio-
o “cuidado de si” não apontava para o corpo ascéticas levem seus adeptos até a própria
físico como um fim em si mesmo, mas como morte, como informam as notícias já quase
um meio para alcançar outros fins considera- cotidianas sobre complicações em cirurgias
dos mais “nobres” ou transcendentes. plásticas ou falecimentos por ingerir
Nas novas práticas aqui estudadas, anabólicos de uso veterinário, sem esquecer
porém, o “cuidado de si” passa a focalizar o de uma vertente que tem merecido considerá-
corpo físico per se. É por isso que estas no- vel atenção midiática nos últimos tempos: a

273
cadernos da pós-graduação

transformação da anorexia em uma “epidemia vilegiado de preocupações e sofrimentos, não


de época”, que em suas versões mais graves apenas de prazerosas sensações. Como ex-
pode ser fatal. plica Jurandir Freire Costa, “o narcisismo sen-
Cada era inventa suas próprias formas sorial leva o eu a dirigir a agressividade motora
de masoquismo, e a nossa não é uma exce- para o corpo próprio, no intuito de torná-lo con-
ção. Se nos velhos tempos protagonizados forme a imagem ideal”.8 Nesses casos, ao
pela subjetividade “sentimental”, enfeitiçados existir um forte desequilíbrio entre a intensida-
pelo ideal do amor romântico e azeitados pelo de das sensações e o nível das agressões, o
dispositivo da sexualidade, os sofrimentos in- sujeito pode chegar a perder a noção de que
dividuais jorravam como desejos insatisfeitos sua vida está em perigo. E, inclusive, pode obter
que se estilhaçavam contra as rígidas normas “ganhos masoquistas com a auto-mortifica-
sociais, hoje, em pleno declínio da “interioridade ção”, para além dos danos físicos e psíquicos
psicológica” e de todo aquele paradigma sub- que tais exageros podem acarretar. São diver-
jetivo, numerosas aflições emanam da sas as manifestações dessa tendência a diri-
inadequação corporal. 6 Isto é, da falta de gir a agressividade em direção ao próprio cor-
fitness. Por isso, as novas modalidades de po: da compulsão pela correção cirúrgica de
“cuidado de si” exigem grandes doses de dis- todos os “defeitos” presentes na própria su-
ciplina e força de vontade, e a moralização perfície corporal até os excessos na prática
decorrente chega a ser implacável no julga- do fisiculturismo a fim de obter um corpo mus-
mento àqueles que não conseguem se ade- culoso (um tipo de comportamento obsessivo
quar: os indolentes, os incapazes, os fracos. que se conhece como vigorexia); da obses-
são pelo consumo exclusivo de alimentos “sau-
É curioso que essa busca tão intensa
dáveis e naturais” para evitar engordar ou ado-
pela felicidade corporal, tanto em termos de
ecer (ortorexia) até a intensa busca da magre-
beleza como de saúde e bem-estar físico, em
za que pode gerar patologias como a anorexia
casos extremos seja capaz de incitar também
ou a bulimia. Cabem ainda, neste conjunto de
à própria destruição do corpo. Os exageros nos
novos mal-estares de época, as ansiedades
esforços por modelar o próprio corpo para
suscitadas pela temível exposição ao olhar
adequá-lo aos padrões da boa imagem podem
alheio, que poderá julgar severamente o pró-
ter conseqüências imprevistas: em vez de se
prio aspecto corporal caso este seja “inade-
ajustar, o organismo humano pode evidenciar
quado”, desatando fobias sociais como a
violentamente seus limites e se quebrar, ou
síndrome de pânico ou a depressão.
inclusive morrer. A geração que hoje tem en-
tre 50 e 60 anos de idade encarna a viva prova Todos esses exemplos refletem as di-
dessa tendência: acostumados a executar o versas faces de uma “doença” tão penosa
catálogo completo do bio-ascetismo para se como vergonhosa: a desgraça da inadequação
manter jovens, belos e saudáveis, estes no- corporal. Daí a virulência, às vezes tão insen-
vos adultos estão “desbordando os limites con- sata que chega a beirar o absurdo, do ódio à
vencionais das capacidades físicas da media- flacidez e à gordura que se espalha entre nós:
na idade”. Como conseqüência de tais exces- a lipofobia. Tamanho desconforto com relação
sos no cuidado de si, ao longo da última déca- à materialidade orgânica do corpo humano
da, a quantidade de lesões esportivas quase costuma ter algumas ressonâncias insólitas,
dobrou nesse grupo de idade.7 que podem ser interessantes para iluminar
Curiosamente, então, a corpolatria estas questões pois se apresentam como sin-
transforma o próprio corpo em um centro pri- tomas extremos do problema aqui examina-

274
instituto de artes

do. Uma delas é aludida em uma reportagem passando a ser também um hábito dos mem-
publicada originalmente no jornal The New York bros do extremo oposto da pirâmide social; isto
Times sob o título: “O jejum prolongado vira é, aqueles que desejam fugir desesperada-
moda em um setor da classe média alta”. O mente de uma nova ameaça de abjeção: a
artigo alude a um novo hábito considerado sau- gordura. Essas duas faces do drama corporal
dável, que se explica da seguinte maneira: “dei- contemporâneo parecem se aparentar hoje em
xar de comer alguns dias ajuda a purificar o dia, parodiando o capitalismo contemporâneo
corpo contaminado pela comida-lixo e a men- como uma fabulosa máquina de produção de
te castigada pelo estresse”. Uma nutricionista excesso e falta ao mesmo tempo. Muito bem
citada no texto assevera que o jejum conduz a delimitados em términos socioculturais e eco-
uma depuração completa do corpo: “permite nômicos, o fantasma da fome e o fantasma
que o sistema digestivo descanse e dá tempo da gordura assombram os sujeitos contem-
para que as enzimas se dediquem a curar os porâneos de modos bastante diferentes e até
órgãos, rejuvenescer as células e voltar o tem- mesmo contraditórios (e, provavelmente, tam-
po para atrás, além de fazer com que a agulha bém complementares). Em ambos os casos,
da balança retroceda”. Também são citadas, embora de forma perversamente distinta, im-
porém, as vozes dissonantes de alguns pro- põe-se o mesmo sacrifício: não comer.
fissionais da área de saúde, que alertam con- O fenômeno se deixa ilustrar de maneira
tra os perigos envolvidos nessa retórica da incrivelmente literal com “o casal que se ali-
pureza corporal, esclarecendo que “nossos menta de luz”, uma notícia bastante divulgada
corpos não estão sujos”. Uma psicóloga es- pela mídia do mundo inteiro em anos recen-
pecializada em transtornos alimentares, por tes. Parece uma fábula, mas não é: a brasilei-
sua vez, afirma que “a mera idéia de que seja ra Evelyn Levy Torrence e seu marido norte-
possível superar as necessidades corporais e americano Steve Torrence afirmam ter perdi-
a estimulação ambiental para o consumo de do “o vício de comer”. Ambos juram não ter
comida transmite uma sensação de pureza e ingerido alimento algum desde 1999, diminu-
virtude”. A nova moda talvez não seja tão es- indo também drasticamente todo consumo de
tranha assim: ela tem “motivos óbvios”, con- líquidos. “Trata-se de um processo de purifi-
clui o artigo, porque hoje a dieta e a saúde sus- cação orgânica, como uma cura de
citam um interesse crescente; “muitas pesso- desintoxicação”, explica o casal, que mora na
as reagem com força diante da atitude insalu- Flórida (Estados Unidos) e integra uma asso-
bre da sociedade com relação aos alimentos”, ciação internacional composta por milhares de
esclarece, porque temem “o impacto da co- pessoas dedicadas a seguir os ensinamentos
mida-lixo em suas vidas e o fantasma da obe- da australiana Jasmuheen, autora do livro: Vi-
sidade, que cresce com os anos”.9 ver da Luz, que também afirma praticar esse
Pode-se vislumbrar, aqui, uma leitura “estilo de vida” desde 1993.10 Segundo esta
paradoxal - e, sem dúvida, carregada de feroz perspectiva, o hábito de comer não constitui
ironia - da música de Chico Buarque intitulada uma necessidade biológica do organismo hu-
Brejo da Cruz, que em 1984 comentava uma mano mas um “vício mortal”, que se pode per-
novidade: o hábito de “comer luz” entre as cri- der - e que, sem dúvida alguma, se deveria
anças das favelas cariocas. Neste caso, po- perder. “Só comemos porque somos viciados
rém, a novidade de “se alimentar de luz” deixa em comida, uma dependência capaz de pro-
de ser um atributo exclusivo dos pobres abje- vocar 90% das doenças que afetam a huma-
tos famélicos das urbes subdesenvolvidas, nidade”.11

275
cadernos da pós-graduação

Pode ser interessante comparar o site Porque são desagradáveis, impuros e biocidas,
que este etéreo casal mantém na Web - por exemplo: contaminam a Terra, envenenam
intitulado: Vivendo da Luz,12 com toda sua elo- as próprias células, intoxicam o corpo e de-
qüência espiritualista de superação triunfante gradam a saúde, entre outros malefícios igual-
das constrições corporais - com os weblogs mente sombrios e vinculados com a idéia de
que aderem ao movimento conhecido como impureza.
ProAnorexia. Nesses sites, adolescentes víti- Assim, sob o amparo de um certo cli-
mas de distúrbios alimentares e transtornos ma new age de inspiração orientalista, a luz do
dismórficos afirmam sua opção por tais “esti- sol é apresentada como uma energia capaz
los de vida” e defendem seu “direito de não de nutrir os corpos humanos e mantê-los vi-
comer”. As autoras desses relatos cotidianos vos - além de mais bonitos, magros e saudá-
trocam informações e conselhos para perder veis - evitando a necessidade de “contaminá-
peso e glorificam a capacidade de “controlar” los” com alimentos grosseiramente materiais.
o próprio corpo, além de publicarem na Internet Mas não se trata de vertentes isoladas, visto
fotografias delas próprias e das modelos e atri- que propostas comparáveis emergem de ou-
zes que lhes fornecem thinspiration ou “inspi- tro campo fundamental da cultura contempo-
ração para emagrecer”. Uma delas, por exem- rânea: a tecnociência. São inúmeras as pes-
plo, confessa o seguinte: “tenho que eliminar quisas que tentam descobrir nos laboratórios
essa gordura que está no meu corpo, tenho entidades como o “gene da obesidade” (ou da
que conseguir e vou conseguir; todas nós va- magreza) e o “hormônio da fome” (ou da
mos ser magras e lindas, vamos ser perfei- saciedade), como dispositivos técnicos capa-
tas; unidas, temos muita mais força para com- zes de desprogramar a vontade de comer e,
bater a comida!”.13 Outro desses sites se apre- sobretudo, a capacidade de engordar.
senta assim: “a anorexia não é uma doença e
Outro exemplo desta tendência é a cha-
nem um jogo; é uma habilidade, aperfeiçoada
mada “comida digital”, um tipo de alimento
somente por umas poucas pessoas: os elei-
composto de software: substâncias imateriais
tos, os puros, os impecáveis”.14
escritas em código informático. De fato, esse
Como se vê, a retórica é quase idênti- sonho foi apresentado originalmente na ciên-
ca à utilizada pelo casal que “se alimenta de cia-ficção: na primeira parte da trilogia Matrix,
luz”. E pode ser comparada, também, com os diante de um suculento prato de comida pres-
discursos dos adeptos do biochip, um grupo tes a ser devorado, um personagem desse fil-
que defende a adoção de uma dieta baseada me explica a outro que tanto o prato como os
exclusivamente em brotos de sementes. Se- alimentos que ele contém na realidade não
gundo seus cultores, esses alimentos seriam existem, já que se trataria de mera informa-
portadores não apenas de nutrientes mas tam- ção. Ou seja, instruções de software capazes
bém de “memória natural” e “informação viva”, de disparar no cérebro todos os efeitos sen-
em uma comparação explícita (e algo insólita) soriais que uma versão real do alimento pro-
com os chips dos computadores.15 No mes- duziria materialmente. Costuma ocorrer que a
mo movimento em que se abraçam compor- tecnociência se proponha a realizar os deva-
tamentos alimentares desse tipo, tende-se a neios da ciência-ficção que povoam o imagi-
condenar todos os demais hábitos nutricionais: nário contemporâneo; assim, o jornal
aqueles adotados pelos “outros”, categoria Technology Research News anunciou que “in-
contra a qual estes costumam se recortar. vestigadores da Universidade Tsukuba elabo-

276
instituto de artes

raram um simulador de comida que reproduz rosa fonte de imagens corporais no mundo
os sonidos, as texturas e os sabores vincula- contemporâneo. Essas técnicas oferecem às
dos com o ato de comer comida real”. 16 O a- imagens corporais tudo aquilo que a ingrata
parelho consiste em uma complexa interface Natureza costuma escamotear aos organis-
para morder, um alto-falante que acrescenta o mos vivos, e tudo aquilo que as duras práticas
som (das mordidas, da mastigação e do ato bio-ascéticas também insistem em lhes ne-
de engolir), um vaporizador que espalha chei- gar, com seus métodos tão analógicos, ainda
ros e aromas, e um dispositivo que combina tão grosseiros em sua maneira de operar so-
os elementos básicos que definem o sabor bre a materialidade carnal. Já os afiados bis-
(doce, azedo, amargo, salgado), todos capta- turis de software conseguem que todos os “de-
dos com sensores específicos a partir de ali- feitos” e outros detalhes demasiadamente or-
mentos reais. Porém, também neste caso, o gânicos sejam eliminados facilmente dos cor-
que se come é nada. Só se ingere a mais pura pos fotografados, ao retocá-los e corrigi-los na
luz, embora neste caso ela seja literalmente tela do computador. Tecnicamente purificados,
digital. Mera informação imaterial processada os “corpos modelos” exibidos nas vitrines
pelos circuitos cerebrais. Por tal motivo, este midiáticas aderem a um ideal de pureza digi-
curioso e ainda precário artefato parece tradu- tal, longe de toda imperfeição toscamente
zir um grande sonho contemporâneo: a possi- analógica e de qualquer viscosidade demasi-
bilidade de conservar o prazer sensorial de adamente carnal.
consumir certos alimentos, porém sem incor- Todos os dias, esses modelos digita-
porar matéria alguma ao corpo que “come” - lizados - e, sobretudo, digitalizantes - desbor-
evitando assim, também, o conseqüente ex- dam das telas, dos outdoors e das páginas das
cesso de peso, bem como as culpas e as pro- revistas, para impregnarem os nossos corpos
messas de sacrifícios purificadores. e as nossas subjetividades. As imagens as-
Para além da veracidade ou da viabili- sim editadas se convertem em objetos de de-
dade de todas estas propostas, convém lem- sejo a serem reproduzidos na própria carne,
brar que seus defensores não pretendem utili- que de algum modo se “virtualiza” nesse mo-
zar estas técnicas para mitigar as virulentas vimento. Não é por acaso que, em nosso pe-
necessidades dos famintos que ainda existem culiar contexto sociocultural, a profissão
em nosso planeta globalizado (em número exercida pelos cirurgiões plásticos se ofereça
crescente, cumpre esclarecer). Em todos os como a promessa de realização de tais so-
casos, ao contrário, a intenção consiste em nhos imagéticos nos corpos orgânicos, ven-
aplicar essas “técnicas mágicas” para saciar dendo a possibilidade de deletar todas as im-
a voracidade do outro extremo da abjeção con- perfeições da carne com total limpeza e eficá-
temporânea: a quantidade também crescente cia. Tudo ocorre como se os cirurgiões estéti-
de obesos e pessoas com sobrepeso em todo cos também operassem sobre imagens de
o mundo. software, em vez de trabalharem sobre cor-
Mas a nossa tecnociência e seus so- pos orgânicos, e como se a sua tarefa consis-
nhos de digitalização universal vão ainda mais tisse em redesenhar os traços “defeituosos”
longe. Não é por acaso que programas de edi- em vez de rasgar peles e cortar ossos. A pro-
ção gráfica como o PhotoShop desempenham messa que se vende e se compra, também
um papel cada vez mais primordial na cons- nestes casos, é a de gerar uma beleza tão
trução das fotografias que expõem “corpos asséptica como descarnada: luminosa,
belos” na mídia, e que constituem uma pode- imaterial, bidimensional.

277
cadernos da pós-graduação

Contudo, é atroz o contraste entre os propício para exercer a resistência política


diversos tipos de estratégias purificadoras que quando já não restam outras formas de fazê-
foram rapidamente apresentadas nos parágra- lo, assim como em outros tempos e espaços
fos anteriores. Toda a pulcra imaterialidade, a teria ocorrido com santos, faquires e grevis-
pureza não-orgânica e a cândida luminosidade tas. Alguns autores reivindicam, inclusive, o
dos “comedores de luz”, bem como a pureza parentesco entre estes comportamentos atu-
“viva e digitalizante” dos adeptos do biochip e ais e outros tipos de resistências femininas à
das brilhantes imagens corporais depuradas opressiva cultura patriarcal ao longo da nossa
com programas de edição como o PhotoShop, história, como é o caso de santas, bruxas e
estilhaçam-se violentamente nas macas dos histéricas.18 Apesar de mostrar algumas ares-
cirurgiões e nos padecimentos anoréxicos. Em tas interessantes do problema, as explicações
franco contraste com toda aquela leveza su- desse tipo não terminam por nos convencer.
postamente incorpórea, nestas outras experi- Entre outros motivos, porque não parece cla-
ências, corpos mortificados protagonizam um ra a fronteira entre o “controle do próprio cor-
drama marcado pela insistência material da po” e a falta total de controle nestes casos,
carne e pelo intenso sofrimento psicofísico defendendo uma resistência mortal cujo valor
daqueles que desejam se livrar de seu peso. político é no mínimo duvidoso. Em vez de um
De alguma maneira, porém, todas essas prá- desafio às tirânicas regras vigentes, a estraté-
ticas estão aparentadas e sugerem a existên- gia da fome parece expressar uma obediên-
cia de uma raiz comum: uma atmosfera que cia excessiva a tais ditames; até mesmo por
as excede e as engloba, certo clima sociocul- abdicar, nesse gesto fatal, de toda possibilida-
tural, econômico e político que as ampara e de de fazer realmente alguma coisa.
as torna possíveis. Não constituem, de certo, Não há nada de inócuo, portanto, na in-
os únicos exemplos de “artistas da fome” que sistência das imagens corporais irradiadas
hoje proliferam, entre os quais também cabe pelos meios de comunicação, fortemente atre-
mencionar os crudivoristas e os vegans, entre ladas a uma série de mitos, crenças e valores
muitos outros. Enfim: genuínos puristas e hoje vigentes. Ao vincularem de maneira tão
fundamentalistas das normas vigentes, em estreita a magreza aos padrões de beleza atu-
uma cultura cada vez mais articulada em fun- ais (cada vez mais universalizados e obriga-
ção dos riscos e da “liberdade de escolha”. tórios) às conseqüentes práticas de purifica-
Entretanto, há quem vislumbre novas ção corporal, essas imagens estimulam o “sa-
modalidades de “resistência” nestas formas crifício da carne” em prol de uma beleza
tipicamente contemporâneas de jejum volun- imagética e descarnada, eminentemente visu-
tário. Posições desse tipo costumam brotar de al. Para se aproximar desse protótipo, todo si-
uma fonte muito bem delimitada: certo femi- nal de materialidade orgânica deve ser elimi-
nismo acadêmico dos Estados Unidos, parti- nado. Assumindo o trono do grande ideal con-
cularmente sensível diante da possibilidade de temporâneo, o “corpo perfeito” se apresenta
politizar a anorexia, por exemplo.17 Os argu- como um alvo ao qual todos os membros da
mentos mais habituais procuram provar que nossa sociedade parecem aspirar. Uma meta
essa capacidade de mortificar e “controlar” o moralmente admirável, um objetivo pelo qual
próprio corpo equivaleria a utilizar a última ci- é preciso se esforçar, trabalhar, lutar e até
dadela da autonomia para inscrever nela uma morrer. Cabe perguntar, porém, parafrasean-
mensagem de oposição. O corpo flagelado do Gilles Deleuze, “a que somos levados a
seria, segundo esta perspectiva, um campo servir”.19 Quais são os dispositivos de poder

278
instituto de artes

que demandam esse insólito sacrifício vital? 4. ORTEGA, Francisco. “Da ascese à bio-ascese, ou do corpo
submetido à submissão ao corpo”. In: Orlandi, Luiz; Rago,
Quais são as engrenagens que tamanha ener- Margareth.; Veioga-Neto, Alfredo (Orgs.). Imagens de
gia contribui para alimentar, fagocitando tan- Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzchianas. Rio de
tos esforços e sofrimentos? O que pode (e o Janeiro: DP&A, pp. 9-20, 2002.

que não pode) esse corpo? Eis uma questão 5. COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura: Corpo e
consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Ed.
fundamental para as artes e as políticas con- Garamond, p. 20, 2004.
temporâneas.
6. Sobre o declínio da “interioridade psicológica” e de todo o
paradigma subjetivo representado pelo homo psychologicus,
“Vou me esforçar, preciso disso.. eu venho nes- cf. BEZERRA, Benilton. “O ocaso da interioridade e suas
repercussões sobre a clínica”. In: Plastino, C. A. (Org.).
sa há muito tempo, mas é o que sempre digo, se Transgressões. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002; pp. 229-
um dia eu tivesse parado, pode ter certeza, eu 239; e Sibilia, Paula. “Do homo psico-lógico ao homo tecno-
seria uma obesa mórbida, porque minha vontade lógico: a crise da interioridade”. Semiosfera. Rio de Janeiro:
de comer é intensa, e é essa a razão pela que ECO-UFRJ, Ano 3, nº 7, 2004.

eu tenho que forçar meu corpo a entrar em 7. PENNINGTON, Bill. “Mediana edad: elbaby boom llenalos
starvation... Gordos precisam de dieta para o gimnasios... ylos consultorios”. La Nación. Buenos Aires,
p. 12, 17/04/2006.
corpo, magros precisam de Ana para a alma.”
8. COSTA, op. cit.; p. 123.
Netotchka - Anorexic Life 20
9. GRIGORIADIS, Vanesa. “El ayuno prolongado se puso de
moda en un sector de la clase media alta norteamericana”.
Clarín, Buenos Aires, 02/09/2003.<http://old.clarin.com/diario/
“A culpa é sempre indubitável.” 2003/09/02/s-03701.htm>.

10. JASMUHEEN, Viver da Luz. São Paulo: Ed. Aquariana, 2001.


Franz Kafka 21
<http://www.jasmuheen.com>.

11. SANTOS FERREIRA, Paula. “Viver da Luz”. A Capital. Lis-


boa, 7/09/2001.
Paula Sibilia - é professora do Departamento de Estudos 12. Vivendo da Luz. <http://www.vivendodaluz.com>.
Culturais e Mídia do Instituto de Artes e Comunicação Social da
Universidade Federal Fluminense - IACS-UFF. Fez graduação 13. EPPRECHT, Catharina. “Grupos defendem anorexia e
em Comunicação e em Antropologia na Universidad de Buenos bulimia”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20/9/2004.
Aires (UBA),instituição na qual também exerceu atividades 14. DOMINGO, Laura. “Centenares de ‘webs’ proanorexia
docentes e de pesquisa. Em 2002 concluiu o mestrado em animan a jóvenes a adelgazar”. El Mundo, Madri, 15/9/2001.
“Comunicação, Imagem e Informação” da UFF, publicando o Convém esclarecer que sites deste tipo costumam ser obje-
livro: O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e to de denúncias e são periodicamente retirados da Internet.
tecnologias digitais (Ed. Relume Dumará), também Porém, continuam a proliferar em todo o mundo; basta digitar
lançado em espanhol. Em 2006 defendeu sua tese de douto- o termo “proanorexia” em um site de busca como Google
rado em “Saúde Coletiva” na Universidade do Estado do Rio de para se ter acesso a vários exemplares, procedentes de
Janeiro (IMS-UERJ), e em 2007 concluiu o doutorado em “Co- diversos países e escritos em uma ampla variedade de lín-
municação e Cultura” da Universidade Federal do Rio de Janei- guas.
ro - ECO-UFRJ.
15. Ana Branco: <http://venus.rdc.puc-rio.br/anabranc>; Vida
S a u d á v e l : < h t t p : / / w w w. r i o t o t a l . c o m . b r / s a u d e /
arqsau54.htm>; Biochips: aprendendo com os alimentos
Notas vivos . <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/anabranc/
portugues/arquivos/ biochip_mayra.doc>.

1. PLATÃO. “El Banquete”. In: Diálogos. México: Editorial Porrúa, 16. “Device Simulates Food”. Technology Research News, 6/
1991. 08/2003. <http://www.technologyreview.com/articles/
rnb_080603.asp>.
2. CLUNY, Odon de (século X). Apud, PAQUET, Dominique. La
historia de la belleza. Barcelona: Claves, p. 109, 1998. 17. Alguns exemplos: Eckerman, Liz. “Foucault, embodiment
and gendered subjectivities. The case of voluntary self-
3. Sobre o conceito de “cuidado de sí”, cf. FOUCAUT, Michel starvation”. In: Petersen, Alan; Bunton, Robin (orgs.)
História da Sexualidade III. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Foucault, Health and Medicine. London: Routledge, pp. 151-
Graal, 1985; e Taylor, Charles. As fontes do self: A constru- 169; Bordo, Susan. “Eating disorders: The feminist challenge
ção da identidade moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 1997. to the concept of pathology”. In: Leder, Drew (Org.). The

279
cadernos da pós-graduação

body in medical thought and practice . Londres: Kluwer


Academic Pubs., 1992; p. 179-196; MILES, Margaret. “Textu-
al Harasment: Desire and the Female Body”. In: Cole, Letha;
Winkler, Mary (orgs.). The good body: Ascetism in
contemporary culture New Haven: Yale University Press,
1994, pp. 49-63.

18. Cf. FENDRIK, Silvia. Viagem ao País do Nuncacomer. São


Paulo: Ed. Via Lettera, 2005; BELL, R. M. Holy anorexia.
Chicago: The University of Chicago Press, 1985.

19. DELEUZE, Gilles. “Post-Scriptum sobre as sociedades de


controle”. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 226,
1992.

20. Netotchka tem 16 anos, mora em Marília e possui um blog


na Internet chamado Anorexic Life. A frase aqui citada foi
postada na Web no dia 24/10/2004.<http://
www.anorexics.blogger.com.br>. Convém esclarecer que
“Ana” é o termo utilizado para nomear a anorexia, no jargão
das adeptas do movimento ProAnorexia, enquanto “Mia” no-
meia a bulimia.

21. KAFKA, Franz. Na colônia penal. Rio de Janeiro: Ediouro,


p. 15, 1996.

280
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Alguns efeitos de plasticidade a partir da crítica em rede

Ricardo Basbaum

Os ouvidos daqueles que trabalham por exemplo, contribuem para animar, com
com arte contemporânea estão já habituados novos impulsos, campos diversos do pensa-
à expressão crise da crítica: desde os primei- mento (filosofia, antropologia, lingüística, psi-
ros momentos que se seguiram à Segunda canálise, etc.) e apontar para um decisivo
Guerra Mundial, já se percebia uma perda de redelineamento epistemológico dos saberes no
eficiência do paradigma de pensamento críti- final do século XX e início do XXI. Não que a
co-humanista, iniciado com o Iluminismo.1 ‘crise’ tenha sido diminuída, debelada ou dis-
Eventos tais como as atrocidades do solvida, mas que certamente não permaneceu
holocausto, a explosão de bombas nucleares, a mesma – na presença de outros operado-
a franca instrumentalização e industrialização res conceituais os impasses do pensamento
da ciência, o franqueamento do campo da arte adquirem diferentes contornos.
aos jogos do mercado, constituem apenas al- Ou seja, mais correto seria buscar re-
guns dos traços que indicavam, naquele mo- ferências às crises da crítica – assim, no plu-
mento, um quadro complexo de enfrentamento, ral –, indicando tanto a presença de mutações
frente ao qual as ferramentas conceituais dis- em seus impasses, quanto a reiteração de
poníveis - com que se tinha até então pratica- uma certa condição própria do campo de con-
do as manobras de intervenção emancipatória tinuamente trazer ao primeiro plano uma in-
do pensamento frente aos jogos do poder - não vestigação acerca de seus contornos, limites
se mostravam mais apropriadas. Diversos e fronteiras, de forma afirmativa (conferindo
autores, a partir de muitas disciplinas, irão pro- positividade às regiões de clausura). Para a
curar contribuir, desde então, para o desem- área da arte contemporânea, a presença rei-
baraço deste fio, em busca de alguma recu- terada e constante do vetor crise não indicaria
peração da potência do pensamento. Fasci- necessariamente um impasse ‘paralisante’,
nante, sob esse aspecto, é se perceber como mas sim a necessidade de assumir a condi-
sem dúvida há um grande, múltiplo e contínuo ção de mutabilidade, fluência e deslocamento
esforço para tornar clara a presença de mu- contínuos2 – se as coisas deslizam e esca-
danças significativas no quadro geral das coi- pam, por que também o gesto de intervenção
sas e se buscar caminhos diferenciados para crítica não deveria, a seu modo, igualmente
a reinvenção da potência do pensamento: é refazer-se a cada diferente dobra, corte ou
claro que se trata, como sempre, de um cam- desvio? Ou seja, buscar potencializar-se quan-
po de disputas de diversas posições mas a do há impasse, inventar possibilidades de des-
presença no cenário, desde os anos 1950, de locamento quando se percebe forçosamente
áreas de interesse como estruturalismo, imóvel. Claro que hoje, no limiar de um novo
semiologia, semiótica, cibernética e topologia, século, frente à expansão do capitalismo

281
cadernos da pós-graduação

globalizado,3 fortemente ancorado nas inova- cedências, onde o saber que se constrói em
ções mais avançadas da informática, a tarefa torno da arte resulta da experiência de articu-
de ‘abrir as coisas’, permeabilizá-las à dúvida lação conceitual realizada.
e tornar visíveis as relações de poder e cons- É interessante enfatizar, para a crítica
truções estratégicas torna-se esforço consi- de arte, como um dos caminhos possíveis de
derável, frente à escala aparentemente desenvolvimento – ou seja, possibilidades de
totalizante da “instalação progressiva e disper- reinvenção frente a um permanente estado de
sa de um novo regime de dominação”.4 Para crise – o exercício de aproximação com a uti-
o estudioso italiano Omar Calabrese (crítico lização de ferramentas plásticas e sensíveis
de arte, semioticista), é próprio da crítica de extraídas das obras, realizado a partir de ca-
arte o exercício de um “antimétodo”, a “rejei- racterísticas pertencentes à sua modalidade
ção dos métodos”,5 ou seja, evitar partir de um própria de escrita. Sabe-se que este é um ca-
“esquematismo teórico”, um método de traba- minho que acredita na força característica da
lho fixo e decidido a priori, para buscar a confi- escrita; logo, não haveria qualquer coincidên-
guração de sua metodologia a partir da rela- cia no fato de diversos poetas terem contribu-
ção direta com o objeto junto ao qual se pre- ído decisivamente no encaminhamento de
tende exercer a mediação discursiva.6 Ainda muitas das discussões deste campo: acostu-
que, desde as pontes entre arte e mados a trabalhar com os limites da escrita,
fenomenologia estabelecidas por Merleau- trazem para o exercício da crítica certa desen-
Ponty (e que se mostraram influentes no de- voltura estrutural que os permite arrancar no-
senvolvimento da crítica de arte contemporâ- vas palavras, termos e conceitos frente à lin-
nea a partir de meados dos anos 1950, tendo guagem estabelecida, plasmando novos sen-
Ferreira Gullar entre seus pioneiros), tenha se tidos junto às exigências concretas derivadas
tornado imprescindível o estabelecimento de do enfrentamento da obra plástica. Percebe-
um enfrentamento presencial – o chamado se que, quase sempre – nos textos mais
“embate corpo-a-corpo” com a obra –, pode- instigantes, naqueles decisivos –, há a inau-
se perceber o campo da crítica contemporâ- guração de um vocabulário novo, uma sintaxe
nea marcado por alguma disponibilidade ex- particular, um uso de recursos gráficos, ne-
perimental, isto é, frente ao conhecido e cele- cessários para a escrita investida da força de
brado “campo ampliado” da arte contemporâ- aproximação para com as obras de arte. Há
nea é possível a indicação de alguns traços um trabalho conjunto, assim como há a elabo-
em que também a crítica de arte procura ração de uma modalidade de objetos plásti-
reinventar-se em seus pressupostos, de modo cos, a partir da escrita. Escreve Omar
a continuamente refazer suas relações com a Calabrese: “a forma poética secreta e enigmá-
produção. Voltando à referência anterior, o pe- tica da linguagem dos críticos não é um tru-
queno ensaio de Rosalind Krauss7 é represen- que ocasional, mas algo de co-natural à sua
tativo, sem dúvida, da atitude renovadora do tendência de autolegitimação valorativa”8: ou
grupo de historiadores e críticos de arte reuni- seja, junto ao seu papel de mediação
dos em torno da revista October: abrir-se à discursiva em contato com o trabalho de arte
perspectiva de aproximação de diversos cam- – no qual se propõem manobras de constru-
pos de estudo – psicanálise, lingüística, ção de sentido e instauração de um campo
semiótica, literatura, etc. – para configurar sua problemático – é próprio do texto crítico, en-
abordagem do objeto de arte a partir da utiliza- quanto peça de escrita, um olhar para si pró-
ção de instrumentos conceituais de várias pro- prio em sua materialidade constitutiva, atento

282
instituto de artes

à sua própria construção, vocabulário, sinta- de Deleuze concentra-se na investigação de


xe, dicção, textura, aspecto gráfico, etc. “como o pensamento se organiza segundo ei-
Claro que esta atenção do texto para xos e direções”, desenvolvendo uma apreen-
consigo mesmo não é privilégio – dentre os são sensível em termos de espacialidade, uma
campos discursivos que se diferem da litera- vez que “segundo as direções, não se fala da
tura – da crítica de arte; assim como, entre mesma maneira, não se reencontram as mes-
aqueles que praticam a crítica, não é neces- mas matérias: com efeito, é também uma
sário atuar como poeta para manifestar aten- questão de linguagem ou de estilo”. Se o filó-
ção e inventividade para com a escrita. Mas é sofo francês está em busca de outro modo de
importante que se considerem tais cuidados pensar, sua escrita terá que atentar à
não como exercício de estilística literária, mas plasticidade de que é portadora, indicar possi-
enquanto portadores de um modo plástico pró- bilidades de se aproximar e se articular a seus
prio da escrita – importante produtor de senti- objetos, procurar como se dará o envolvimento
do, tanto em relação à construção formal do com o leitor, perceber-se como produtora de
texto quanto em ressonância e homologia com proposições que dizem respeito ao eixo espa-
as características próprias das obras em ço-tempo em suas várias derivações – isto é,
questão naquele momento. Nesse caso, é investir no processo de construção de lingua-
decisivo que se perceba o texto crítico tam- gem próprio do texto, uma vez que os aspec-
bém como ferramenta de produção de senti- tos plásticos e sensíveis de sua materialidade
do plástico – e não apenas ‘conteudístico’. Ao já configuram caminhos na produção do sen-
se referir a seu livro Lógica do sentido, Gilles tido que se pretende configurar.10
Deleuze afirma que sua busca – expressa O que se nota aqui é que a renovação
naquela obra – por “uma forma que não seja do discurso crítico passa de modo significati-
aquela da filosofia tradicional”9 passou por uma vo pela busca de caminhos de estruturação
investigação topológica da história da filosofia plástica ou topológica da escritura, com a
e da literatura: o encontro com a literatura de consciência de que se trata de um percurso
Lewis Carroll (“trata-se de um explorador, um em que é necessária atenção em trabalhar as
experimentador”) e seus “três grandes livros articulações entre escrita e percepção, entre
Alice, Alice através do espelho e Sílvia e Bru- as ferramentas conceituais adotadas e a lin-
no”, se deu a partir da capacidade do autor in- guagem das obras a que se quer construir re-
glês em “renovar-se segundo as dimensões ferência e mediação. Expressando as inquie-
espaciais, os eixos topológicos”: “Em Alice, as tações trazidas pela vivência dos novos obje-
coisas se passam em profundidade e altura tos a que se vê confrontado, Frederic Jameson
(...). Em Alice através do espelho existe, ao escreve: “Ainda não possuímos o equipamen-
contrário, uma surpreendente conquista das to perceptual que nos permita perceber esse
superfícies (...). Com Sílvia e Bruno, trata-se novo tipo de hiperespaço (...) em parte porque
de outra coisa: duas superfícies coexistem os nossos hábitos de percepção foram forma-
com duas histórias contíguas (...).” E mais: dos naquele antigo tipo de espaço que deno-
desta vez em relação direta com o campo minei o espaço do alto modernismo”.11 Se tais
mesmo da filosofia, indica as seguintes co-re- limitações indicam com clareza a necessida-
lações: “o platonismo, e a altura que orienta a de de se buscar as ferramentas conceituais
imagem tradicional da filosofia; os pré- adequadas, é preciso também investir na or-
socráticos e a profundidade (...); os estóicos e ganização topológica da escrita, de modo a
sua nova arte das superfícies...” O interesse costurar as linhas argumentativas do pensa-

283
cadernos da pós-graduação

mento crítico – “a própria palavra escrita abs- modernidade, interpretar o sintoma da pós-
trai propriedades do fluxo da experiência e as modernidade, e compreender porque não nos
fixa em forma espacial”.12 Nesse sentido, pode dedicamos mais por inteiro à dupla tarefa da
ser experimentado um caminho de desenvol- dominação e da emancipação”. De fato, a hi-
vimento das relações entre discurso e obra de pótese de trabalho de Latour não implica em
arte através da investigação das possibilida- simples e sumária rejeição da modernidade,
des dos arranjos espaciais e plásticos – mas na compreensão de recente transforma-
topológicos – envolvidos na operação.13 ção em seus pressupostos – cujo desdobra-
Somos conduzidos, então, para mais mento produtivo efetivamente implicará, como
um diagnóstico de crise da crítica, que parte veremos, em significativa reformulação das
da necessidade de uma “mudança topológica” condições de organização do pensamento:
para que se possa experimentar outra modali-
dade de construção argumentativa frente às “(...) a palavra moderno designa dois conjuntos
coisas – trata-se das pesquisas desenvolvi- de práticas totalmente diferentes que, para per-
das a partir dos anos 1990 por Bruno Latour manecerem eficazes, devem permanecer distin-
(entre outros), que sugere que “ao invés de tas, mas (...) recentemente deixaram de sê-lo.
O primeiro conjunto de práticas cria, por ‘tradu-
pensar em termos de superfícies – duas di-
ção’, misturas entre gêneros de seres completa-
mensões – ou esferas – três dimensões – o
mente novos, híbridos de natureza e cultura. O
que se propõe é que se pense em termos de segundo cria, por ‘purificação’, duas zonas
nós, que possuem tantas dimensões quanto ontológicas completamente distintas, a dos hu-
suas conexões”.14 Tal caminho tem sido inves- manos, de um lado, e a dos não-humanos, de
tigado por Latour a partir de sua constatação outro. Sem o primeiro conjunto, as práticas de
de que, de fato, se queremos continuar desen- purificação seriam vazias ou supérfluas. Sem o
volvendo alguma potência ligada ao pensamen- segundo, o trabalho de tradução seria freado, li-
to, será necessário questionar as premissas mitado ou mesmo interditado. O primeiro con-
do que foi chamado de “modernidade”: sua junto corresponde àquilo que chamei de redes, o
segundo ao que chamei de crítica.”
afirmação, transformada em pergunta, preten-
de localizar o trabalho investigativo no quadro
das problematizações contemporâneas: “ja- O problema da modernidade residiria,
mais fomos modernos”15, escreve. Para o au- principalmente, em uma busca crítica que iso-
tor, a atual crise do pensamento se deve a di- la uns dos outros “epistemólogos, sociólogos
versos impasses decorrentes das promessas e desconstrutivistas”, cada qual “alimentando
modernas, nunca enfim atingidas em sua ple- suas críticas com as fraquezas das outras
nitude – a “passagem do tempo”, por exem- duas abordagens”, sendo que “cada uma (...)
plo, que caracteriza o “novo regime” da [das] formas de crítica é potente em si mes-
modernidade através de “uma aceleração, ma, mas não pode ser combinada com as
uma ruptura, uma revolução no tempo”, não outras”: entretanto, a crescente percepção de
permite mais, hoje, que se “mantenha essa que é necessário interconectar “natureza”, “po-
dupla assimetria: não podemos mais assina- lítica” e “discurso” em busca de “uma nova for-
lar a flecha irreversível do tempo nem atribuir ma que se conecta ao mesmo tempo às coi-
um prêmio aos vencedores (...) nada mais nos sas e ao contexto social, sem contudo redu-
permite dizer se as revoluções dão cabo dos zir-se nem a uma coisa nem a outra” aponta,
antigos regimes ou os aperfeiçoam”. O cami- para Latour e seus colegas, para o fato de que
nho que indica inclui “retomar a definição de “a própria crítica deve entrar em crise por cau-

284
instituto de artes

sa destas redes contra as quais se debate”. to o sujeito em torno da prática dos quase-ob-
Ou seja, ainda que reconhecendo a importân- jetos e dos mediadores”: “a natureza gira, de
cia da “tripartição crítica” e sua construção fato, mas não ao redor do sujeito-sociedade.
“purificada” dos “conceitos”, do “social” ou da Ela gira em torno do coletivo produtor de coi-
“retórica”, é preciso se perceber que a única sas e de homens. O sujeito gira, de fato, mas
forma de compreendermos nossos próprios não em torno da natureza. Ele é obtido a partir
impasses (e Latour indica aqui a necessidade do coletivo produtor de homens e coisas.” Tra-
de realizar uma etnografia sobre nós mesmos, ta-se de pensamento cuja complexidade es-
“fazer uma antropologia do mundo moderno”) capa aos limites deste ensaio; entretanto, está
se dará através da busca de “continuidade” aí delineado um caminho onde os limites e
entre as diversas análises. Atravessando “as impasses de um formato de operação crítica,
fronteiras entre os grandes feudos da crítica” voltado para o pólo purificador-disciplinar, são
– e sem ser “nem objetivas, nem sociais, nem contrapostos à possibilidade de reorganização
efeitos de discurso” –, “as redes são ao mes- dessa modalidade de discurso.
mo tempo reais como a natureza, narradas Lembrando que o termo réseau origi-
como o discurso, coletivas como a socieda- na-se com Diderot – que o utilizou para des-
de”. O ponto-chave residiria, então, em traba- crever “matérias e corpos de modo a evitar a
lhar de maneira dupla, considerando a neces- divisão cartesiana entre matéria e espírito”16 –
sidade de articular a produção de objetos – Latour retoma a “mudança de topologia” trazida
através da purificação – com a construção de pelo pensamento em rede, ao apontar que, “ao
redes – por meio de mediações produtoras de invés de superfícies, tem-se filamentos (ou
“híbridos”: rizomas)”17; ao invés de “espaço social ou
‘real’, simplesmente associações”. É próprio
“enquanto considerarmos separadamente estas da noção de rede o desenvolvimento de uma
práticas, seremos realmente modernos, ou seja, potência que não parte de “concentração, pu-
estaremos aderindo sinceramente ao projeto da reza ou unidade”, mas da sensação de que
purificação crítica, ainda que este se desenvolva “resistência, obstinação e firmeza são mais
somente através da proliferação de híbridos. A
facilmente obtidos através de enredamento,
partir do momento em que desviamos nossa aten-
entrelaçamento, costura e trama de amarras
ção simultaneamente para o trabalho de purifica-
ção e o de hibridação, deixamos instantaneamen- que são fracas em si mesmas”, sendo que
te de ser modernos, nosso futuro comeca a mu- “não importa quão forte for a ligação, ela terá
dar. (...) Qual o laço existente entre o trabalho de sido tecida de fios ainda mais frágeis”. O fato
tradução ou de mediação e o de purificação?” de partirem de “localidades irredutíveis, inco-
mensuráveis e desconectadas, que então, a
grande custo, conduzem a conexões provisó-
Bruno Latour considera que a tarefa de rias e comensuráveis” indica que, no caso das
se pensar duplamente, nos termos de “traba- redes, a “Universalidade ou ordem não são a
lho de mediação (...) e de purificação” nos in- regra, mas as exceções”. Para Latour, está em
dicaria o processo de uma verdadeira “contra- jogo aqui uma “reversão figura/fundo”: ao in-
revolução copernicana”, em que ocorre uma vés de se trabalhar com objetos isolados, em
“inversão da inversão”, onde os “extremos” sua autonomia e contornos claramente defini-
(pólos intermediários/natureza e purificação/ dos,18 tem-se um campo de relações preen-
sujeito-sociedade) “deslizam rumo ao centro chido por incontáveis tramas. “Literalmente,
e para baixo, [fazendo] girar tanto o objeto quan- não há nada a não ser redes, não há nada en-

285
cadernos da pós-graduação

tre elas, (...) não há ‘éter’ no qual poderiam butos que asseguram a continuidade de obje-
estar imersas” – este seria o primeiro passo tos enquanto são deslocados através do es-
em direção a uma “ontologia não-reducionista paço”: o “ponto importante é que a
e relacional”.19 Somos conduzidos assim a espacialidade não é dada [nem] fixa, não é
percorrer um caminho argumentativo que, pro- parte da ordem das coisas” – logo, “a noção
curando reagir à crise da crítica, busca desen- de ‘rede’ é em si mesma um sistema
volver um olhar diverso sobre as coisas: é im- topológico alternativo”, já que “em uma rede,
portante perceber que tal desdobramento de- os elementos retém sua integridade espacial
marca uma clara consciência de organização em virtude de suas posições em um conjunto
espacial – ou seja, há uma elaboração de ligações ou relações”. Ao confrontar-se com
argumentativa que aposta ao mesmo tempo noções do senso-comum relativas à apreen-
em um modo de entrelaçamento entre campo são do espaço, este pensamento em rede efe-
discursivo e objeto. Qualquer procedimento de tivamente atua como “uma máquina para de-
uma operação crítica, nesse caso, irá apontar clarar guerra ao Euclidianismo”, contribuindo
para as estratégias conceituais e para sua “desestabilização”, uma vez que
argumentativas de um funcionamento em “mostra que o que aparenta ser topografica-
rede, ao mesmo tempo em que compreende mente natural, dado pela ordem do mundo, é
que a caracterização topológica do conjunto na verdade produzido em redes”.
discursivo a ser elaborado também trabalha, Neste momento, é necessário que se
simultaneamente, na construção material e inicie um deslocamento que traga novamente
concreta de um tecido onde texto e obra de a crítica de arte para nosso campo de discus-
arte estabelecem conexões, ligações reais e são: ao apontar as características de um pen-
efetivas. samento em rede, indicando sua própria
Somando-se às preocupações de Bru- estruturação topológica como ferramenta de
no Latour, o pesquisador inglês John Law20 sin- enfrentamento dos impasses da modernidade,
tetiza mais algumas características deste pro- o que nos interessaria seria indicar de que
cedimento problematizador, desenhado a maneira o campo do debate crítico da arte con-
partir das características dinâmicas próprias temporânea poderia avançar em sentido pro-
das redes: trata-se de um modelo de pensa- dutivo, isto é, verificar se de alguma maneira
mento decorrente da junção de “materialidade se abrem algumas possibilidades de associa-
relacional” e “performatividade” – enquanto que ção entre texto e obra de arte frente à cons-
o primeiro aspecto decorre de uma “semiótica tante presença de uma crise. Imediatamente
da materialidade”, onde a noção de que “as se destacam quatro comentários ou percur-
entidades são produzidas em relações” é “apli- sos possíveis, trazidos aqui em forma de rápi-
cada a todos os materiais, e não simplesmen- das anotações – cada qual mereceria uma
te àqueles não lingüísticos”, o segundo indica articulação mais detalhada, assim como uma
que, uma vez que “as entidades atingem sua investigação que se aproximasse da obra de
forma como conseqüência das relações em certos artistas, de modo a experimentar con-
que se localizam”, elas então são cretamente processos de intervenção crítica.
“performatizadas nas relações, assim como
por meio e através delas”. A partir daí, fica
apontada a condição de se “pensar 1. O que me parece mais impactante nas teo-
topologicamente”, já que “a topologia se ocu- rias que se propõem a trabalhar um pensa-
pa da espacialidade, em particular com os atri- mento em rede21 é a utilização forte e franca

286
instituto de artes

do discurso como forma mesma de produção Caldas. Em ambos os casos, a força de in-
de articulações entre os objetos. A convergên- venção presente nos textos é capaz de arras-
cia, já mencionada, da ‘forma’ rede para com tar obras para um enredamento em que é ins-
seus pressupostos epistemológicos de cons- taurado um processo de indissocia-bilidade
truir um pensamento a partir da referência entre ‘obra’ e ‘discurso’. Certamente o que
ontológica ao aspecto conectivo, implica na ocorre nesses casos já se passa em outra
revelação de um impressionante potencial de região, diferenciada em relação ao mero dis-
aproximação entre ‘as palavras e as coisas’: curso ‘crítico’. As características topológicas
segue-se a possibilidade de uma escrita mais de um pensamento em rede certamente po-
do que nunca ‘táctil’, que eventualmente se dem auxiliar na determinação das manobras
aventure no compartilhamento com a obra de e operações que são ali postas em jogo.
um espaço conjunto, onde algumas dessas
tramas sejam processadas. Imagina-se a fer-
4. Uma aproximação das teorias de pensamen-
ramenta discursiva construindo gestos de in-
to em rede com certos desenvolvimentos da
tervenção crítica em inédita proximidade com
arte conceitual apontam para a constatação
as obras.
de que, efetivamente, o campo da arte con-
temporânea colocou em funcionamento uma
2. Outro ponto que imediatamente se destaca modalidade de percepção capaz de, em um
é a possibilidade de se perceber a mesmo ato perceptivo, proceder a uma “dupla
espacialidade própria da obra de arte como captura”: o objeto artístico é percebido tanto
construção conjunta da rede discursiva soma- nos contornos próprios de sua autonomia,
da às características sensíveis e materiais das quanto em seu enredamento com outras enti-
obras. Tendo a organização espacial como dades fora de si, pertencentes a seu entorno
resultado deste pensamento em rede, que ar- concreto material ou imaterial. Ou seja, a arte
ticula texto e obra de arte, vê-se o quanto o contemporânea já tem exercitado, em suas
desenvolvimento discursivo se coloca também produções das últimas décadas do século XX,
como agente na proposição de modelos de uma verdadera percepção em rede – cuja im-
espaço: ocorre uma articulação entre agrega- portância reside, sem dúvida, em trazer para
do sensível e campo textual, de modo a pro- junto das experiências corporais um procedi-
duzir formações espaciais próprias. Logo, se- mento de extrema complexidade formal e
ria possível dizer que cada novo texto crítico epistemológica. Claro que é tarefa da crítica
redesenha os contornos espaciais das obras de arte – e seus campos afins da história e
de arte a que se refere. teoria da arte, por exemplo – mergulhar nesta
ampla área de possibilidades; assim como, por
outro lado, enquanto elemento decisivo, parti-
3. Não é difícil de se perceber que as articula-
cipante deste mesmo enredamento, também
ções entre texto crítico e obra, mencionadas
a dinâmica das práticas artísticas deve focali-
nos dois itens anteriores, são de certa forma
zar esforços experimentais nesta mesma di-
experimentadas nos casos em que artista e
reção. Afinal, ainda sendo ‘duplo’, trata-se de
crítico desenvolvem trabalho conjunto de ‘fôle-
um mesmo trabalho, cujo objetivo é manter a
go’, permeado por um olhar recíproco de um
potencialidade do pensamento e sua capaci-
sobre o outro: este seria o caso do desenvol-
dade de intervenção no entorno.
vimento de Ferreira Gullar junto ao neocon-
cretismo, ou de Ronaldo Brito junto a Waltércio

287
cadernos da pós-graduação

Ricardo Basbaum - É artista plástico e professor do Instituto 10. DELEUZE, op. cit. Continuando a pesquisar nesta direção,
de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. o autor relata que, a partir de seu encontro com Félix Guattari,
Possui textos publicados em catálogos de exposições e em se dá a produção de O Anti-Édipo: neste livro, “não há mais
diversas revistas especializadas, no Brasil e no exterior, entre altura, nem profundidade, nem superfície. Ali tudo chega, as
as quais se incluem Verve, Galeria, Guia das Artes, Gávea, intensidades, as multiplicidades, os acontecimentos, tudo
Arte & Ensaio, Trans, Lapiz, Atlantica, Poliester, Blast, Revis- se faz sobre uma espécie de corpo esférico ou moldura
ta da USP, Porto Arte, O Carioca, Confidências para o exílio, cilíndrica– corpo sem órgãos”.
Número e Concinnitas. Colaborador dos livros The next docu-
11. JAMESON, Frederic. “The Cultural Logic of Late Capitalism.
menta should be curated by an artist (Nova York, Revolver,
Apud HARVEY, op. cit.
2004), e Interaction: artistic practice in the network (Nova
York, Eyebeam Atelier e D. A. P., 2001), entre outros. Organi- 12. HARVEY, David, op. cit. Vale lembrar a formação de
zou a coletânea Arte Contemporânea Brasileira – texturas, Geógrafo do autor inglês.
dicções, ficções, estratégias (Contra Capa, 2001). Autor dos
livros de artista de G. x eu (1997) e NBPx eu-você (2000). 13. BASBAUM, Ricardo. “Convergências e superposições
entre texto e obra de arte”. Dissertação de Mestrado. Orien-
tação de Rogério Luz, ECO-UFRJ, 1996. Desenvolvi uma
primeira aproximação do problema em minha dissertação de
Notas mestrado, através de referências à antropologia e filosofia,
seguindo sobretudo os trabalhos de Foucault e Deleuze-
Guattari.
1. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna, São Paulo, Cia. das
Letras, 1992. Um dos mais conhecidos diagnósticos é aque- 14. LATOUR, Bruno. “The trouble with Actor-Network Theory”,
le relatado em diversos de seus escritos, entre os quais o disponível em <http://www.ensmp.fr/~latour/poparticles/
célebre último capítulo denominado: “A crise da arte como poparticle/p067.html>.
ciência européia”. 15. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro:
2. DELEUZE, Guilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, Editora 34, 1994. “Eu seria então, literalmente, um pós-mo-
1992. É nesse sentido o autor procura apontar indicações derno? O pós-modernismo é um sintoma e não uma nova
de construção de um pensamento fluido de “resistência”. solução. Vive sob a Constituição moderna mas não acredita
Cf. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. mais na garantias que esta oferece. Sente que há algo de
errado com a crítica sem no entanto acreditar nos seus
3. HARVEY, David. “Do fordismo à acumulação flexível”. In: fundamentos”. p.50. As citações que se seguem, salvo quan-
Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. do indicado, têm este livro como referência.
O autor aponta para a “passagem para um regime de acu-
mulação inteiramente novo, associado com um sistema de 16. LATOUR, Bruno. “The trouble with Actor-Network Theory”,
regulamentação política e social bem distinta. (...) A acumu- 1994, op.cit. As citações que se seguem têm como referên-
lação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um con- cia este mesmo texto.
fronto direto com a rigidez do fordismo”. 17. Latour menciona o trabalho de Gilles Deleuze e Félix
4. A expressão é de DELEUZE, op. cit. Guattari: “Introdução: rizoma”, in Mil Platôs. Rio de Janeiro:
Editora 34, Vol. 1, 1995. Em outro texto, Bruno Latour co-
5. CALABRESE, Omar, “A linguagem da crítica de arte”. In: menta acerca de como a noção de rede se tornou banaliza-
Como se lê uma obra de arte. Lisboa: Edições 70, s/d. da na última década: “Este é o grande perigo de se utilizar
uma metáfora técnica antes de seu uso comum, por todos.
6. Uma rápida observação: Lucy Lippard e Frederico Morais,
Agora que a World Wide Web existe, todos acreditam que
entre outros, são alguns exemplos de críticos de arte que
sabem o que é uma rede. Enquanto que há vinte anos atrás
procuraram experimentar o exercício da crítica a partir de
havia ainda algum frescor no termo, como ferramenta crítica
mediações não-discursivas. Trata-se, certamente no caso
contra noções tão diversas como instituição, sociedade,
do brasileiro, de produções pouco estudadas – F. Morais,
estado-nação e, em geral, qualquer superfície plana, agora
nos anos 1970, chegou a estabelecer diálogos com artistas
perdeu seu radicalismo e tornou-se a noção favorita de
a partir da realização de exposições, além de dedicar-se à
todos aqueles que querem modernizar a modernização. ‘Abai-
elaboração de obras audiovisuais com a utilização de diapo-
xo as instituições rígidas’, dizem, ‘vida longa às redes flexí-
sitivos.
veis’. (...) Naquele momento, a palavra rede, como o termo
7. KRAUSS, Rosalind . “A escultura no campo ampliado”. Gávea, rizoma, de Deleuze e Guattari, claramente significava uma
Rio de Janeiro, nº 1, s/d. série de transformações – traduções, transduções – que
não poderiam ser capturadas por qualquer dos termos tradi-
8. CALABRESE, op. cit., p. 18.
cionais da teoria social. Com sua nova popularização, agora
9. DELEUZE, Gilles. “Note pour l’édition italienne de Logique du a palavra rede siginifica transporte sem deformação, um
sens“. In: Deux regimes de fous - textes et etentretiens acesso instantâneo, imediato, a toda peça de informação.
1975 - 1995. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. As demais Isso é exatamente o oposto do que queríamos dizer. Gosta-
citações que se seguem provém da mesma fonte. ria de chamar de ‘informação de duplo-clique’ [double click
information] aquilo que assassinou a última porção de radi-

288
instituto de artes

calismo crítico da noção de rede.” “On recalling ANT”. In:


LAW, John e HASSARD, John (orgs.). Actor network theory
and after, Oxford: Blackwell Publishing, 1999. É claro que
estamos aqui utilizando o termo ‘rede’ em sua primeira
acepção.

18. HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia


e feminismo-socialista no final do século XX”. In: Silva, Tomaz
Tadeu da, Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2000. Donna Haraway registra a mesma questão,
indicando, através de paráfrase de Michel Foucault, que
vivemos em um momento de ocaso da análise clínica que
diagnostica claramente seus objetos, através de linhas e
contornos definidos: “É hora de escrever A morte da clíni-
ca. Os métodos da clínica exigem corpos e trabalhos; nós
temos textos e superfícies. Nossas dominações não funci-
onam mais por meio da medicalização e da normalização;
elas funcionam por meio de redes, do redesenho da comu-
nicação, da administração do estresse.”

19. LATOUR, B. “The trouble with Actor-Network Theory”, 1994,


op.cit.
20. LAW, John , “After ANT: complexity, naming and topology”.
In: Org. In: LAW, John e HASSARD, John (orgs.), 1999,
op.cit.
21. LAW e HASSARD, op. cit. Recentemente este corpo de
pensamento foi batizado de actor-network theory (uma ver-
são aproximada poderia ser ‘teoria do agente-rede’), e orga-
nizado sob a sigla ANT. Entretanto, alguns de seus princi-
pais pensadores – como os aqui citados Bruno Latour e
John Law – reagem fortemente a tal etiqueta, procurando
escapar da fixação de seu pensamento em uma ‘teoria’, sob
risco de excessiva simplificação e banalização.

289
290
instituto de artes
colóquio

Convergências na Arte Contemporânea

Troca-troca: arte e história como transversalidade

Sheila Cabo Geraldo

1. A obra em deriva

“Onde o senhor vai estacionar a obra?” chegar a Curitiba. As paradas, nem sempre
Ouvindo essa pergunta, Jarbas Lopes termi- prazerosas, muitas vezes são forçadas pelas
na o vídeo-registro da deriva dos três carros- condições dos carros, que, muito antigos, en-
bólides, como descritos no Diário de Bardos1, guiçam constante e sucessivamente. Empur-
que protagonizara em 2002. Nos carros, além rar carro na chuva, pernoitar em hotel de es-
de Jarbas, viajavam Luis Andrade, Aimberê trada, perder-se e achar-se nas ruelas e ave-
César, Marssares, Ducha, Jorge Melodia, Sér- nidas é parte do que chamam hoje Troca-tro-
gio da Torre e Léo. Os oito artistas-anti-artis- ca: um objeto-proposição-performance-vídeo.
tas-não-artistas-an-artistas2 jogaram durante O historiador de arte, na aproximação
cinco dias o jogo da viagem nos três “fuscas” de Troca-troca, tanto do vídeo quanto dos car-
de Jarbas, que havia sido convidado a levar a ros ou do Diário, é levado indiscutivelmente à
“obra” para a inauguração do Museu de Arte reflexão sobre as formas e apresentações que
Contemporânea de Curitiba, hoje chamado as manifestações artísticas tomam na
Museu Oscar Niemeyer. contemporaneidade, mas, sobretudo, é lança-
A viagem havia começado em uma ofi- do no debate sobre a possibilidade da história
cina no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, onde da arte dar conta de tal manifestação, assim
os carros foram preparados e pintados de azul, como é lançado às discussões sobre a escri-
vermelho e amarelo, tendo, além de sono- ta histórica que essas manifestações reque-
rização em rede, as cores de suas partes al- rem. Uma vez sendo o fato artístico rarefeito
ternadas, ou seja, as portas, os capots e os em sua historicidade, a obra apresentada por
porta-malas haviam sido trocados, resultando Jarbas - que também poderíamos nomear,
em três besouros mondrianescos, que rece- seguindo a história, de não-objeto, ou não-obra,
beram, ainda, adesivos com palíndromos de ou ainda anti-arte, na sua incerteza - lança
Luis e som de Marssares. Passando pelo bairro aquele que a quer historiar ao mesmo tempo
da Lapa, no centro boêmio do Rio de Janeiro, na percepção e análise do projeto, no exercí-
o comboio segue para Austin, na Baixada cio de acompanhamento reflexivo de seu
Fluminense, onde acontece a primeira para- intrincado processo, assim como na elabora-
da-para-comer-e-sambar. Depois dessa, en- ção conceitual, que os recursos de registro de
tre oficinas, hotéis baratos e banhos de rio, fatos artísticos implicam, na media em que
param em Seropédica, Resende, Itatiaia, esses registros se tornam fatos artísticos em
Aparecida do Norte, Jacareí, Grande São Pau- si. O que se apresenta como discurso históri-
lo, São Paulo, Avenida Paulista, São Lourenço co necessário, então, aproxima-se inconteste
de São Paulo, Registro e Barra do Turvo até do discurso da teoria, pela proximidade não só

291
cadernos da pós-graduação

com outros objetos artísticos, mas, sobretu- 2. História e transversalidade


do, com os esquemas de pensamento, que
esses objetos fazem aflorar, como o desen- A expansão do sentido da arte no mun-
cadeado pela adoção em Troca-troca da rela- do contemporâneo está intimamente associa-
ção de cores ou, ainda, pela referência explíci- da ao questionamento da hegemonia e da
ta aos Ready-mades de Marcel Duchamp, os centralidade cultural e política européia e nor-
quais nos remetem aos exemplos de anseio te-americana. Pensar a arte hoje, significa por-
de reconstrução plástica do mundo coincidente tanto ter em mente o debate dos acontecimen-
com a dúvida sobre a permanência da arte no tos no nível cultural global dos últimos anos.
mundo moderno e contemporâneo. Mas, nes- Mas, para se falar em arte, do ponto de vista
se trabalho-projeto-registro afloram, ainda, os da história, teremos que falar, necessariamen-
discursos de viagem, que tomam aqui a for- te, do debate em torno do deslocamento do
ma do relato impresso e da imagem-cinema, campo específico das experimentações de lin-
assim como aqueles referentes ao mapea- guagem e meio artístico para o campo ampli-
mento geográfico e à cartografia cultural, os ado das relações, quando a arte conecta dis-
quais de alguma forma envolvem o debate tâncias e negocia significados.4 Assim, há que
sobre a institucionalização das relações em se estabelecer um espaço de debate histórico
arte, que o processo de globalização vem cujo foco central recaia nos encontros, onde
ampliando. A expressão do rosto de Jarbas, possam ser analisadas as semelhanças e di-
registrada no vídeo, ao ouvir do segurança do ferenças nos comportamentos artísticos, teó-
Museu a frase com a qual iniciamos esse tex- ricos e culturais dos mais diversos centros.
to, é absolutamente reveladora desse debate. Um debate em história que dê conta do fenô-
meno da globalização e das diversidades cul-
Partindo da constatação de que a reali-
turais, das múltiplas concepções de arte daí
dade da obra é que se impõe, mas perceben-
decorrentes e de teorias que admitam essas
do igualmente que a obra de arte é, em si, uma
diversidades.
ficção, já que sua existência e seu valor de-
pendem do sentido que admitem no tempo, na Nesse sentido, ao pensar no fazer his-
cultura e na história, é fácil concluir que a pró- tórico, enquanto história da arte, além do ma-
pria história da arte é uma ficção, abrindo-se peamento dos problemas e dos enfrenta-
para infindáveis experimentações. Segundo mentos específicos da produção, circulação,
Belting, “A arte é uma ficção histórica, como já recepção e teorização da arte, impõe-se, de
provou Marcel Duchamp, do mesmo modo que imediato, o debate no campo da própria histó-
a história da arte, o que André Malraux desco- ria, já que, mais do que nunca, irrompem ques-
briu sem querer quando escreveu sobre o ‘mu- tões de campos exteriores, como o da antro-
seu sem paredes’”.3 Sendo assim, libertos da pologia, o da teoria política e o da sociologia,
necessidade de uma certa tradição histórica, os quais vão concorrer para o levantamento
há que se procurar a ficção que dê conta da das contradições mas também para a identifi-
cultura artística moderna, mas, sobretudo, da cação dos sentidos da arte no mundo contem-
contemporânea, a qual se liga à cultura artísti- porâneo, ainda que os reconheçamos como
ca numa relação transversal e não necessari- provisórios. Fazendo parte dessas questões
amente pelo método da procura da tradição, estão os debates em torno da imigração e da
da influência, do desenvolvimento, da evolu- exclusão, debates diretamente ligados à no-
ção, da fonte e da origem. ção de “outro” cultural em todas as suas situ-

292
instituto de artes

ações, tanto fora das fronteiras - como é o cesso fotográfico não era apenas uma ques-
caso das culturas não ocidentais, não bran- tão de ótica”.6 Correlato do automatismo psí-
cas e não homogêneas, ou seja, híbridas, que quico, ou escritural, o automatismo mecânico
desestabilizam o sentido da arte no ocidente, da fotografia teria o poder de alavancar a his-
reconhecidamente hegemônico -, mas tam- tória como uma teoria que, partindo do objeto
bém dentro das próprias fronteiras culturais, fotográfico, se lançasse como pensamento
que envolvem a marginalização e os sistemas para além da forma e, portanto, para além da
de controle do “diferente”, como é o caso do história da arte moderna. Como escreveu ain-
debate sobre o gênero na arte, negado por da Damisch: “a fotografia é sempre do outro,
séculos. do outro discurso que não o estritamente ar-
Participando, ainda, da discussão da tístico. Ela opera no discurso da viagem, do
historiografia da arte contemporânea estão os arquivo, da ciência”.7 Assim é que teria a ca-
debates sobre a profusão de iniciativas de pacidade de anunciar a história da arte na
auto-produção artística e curatorial, as quais contemporaneidade, já que não trata dos fa-
abrem novas relações de poder, mas que, so- tos, mas daquilo que, sendo-lhes exteriori-
bretudo, apontam para outras possibilidades dades, explicitam-nos nas transversalidades.
de relações, como as que se dão na rede livre Constitui, portanto, uma outra história, num
de informação, ou seja, na Internet. Essas ini- registro que recusa os limites constituídos pela
ciativas podem levar à reavaliação dos senti- crítica moderna, sobretudo a greenberguiana,8
dos da arte, já que possibilitam a visibilidade acionando o que Stéphane Huchet9 considera
de práticas, teorias, conceitos e valores artís- exemplar na história que o próprio Hubert
ticos locais, na relação global-local. Sem dúvi- Damisch, assim como a que Didi-Huberman,
da essa é uma prática que está envolvida com desenvolvem, ou seja, uma história por sinto-
a discussão do poder e da representação, as- ma, aberta aos mitos e aos desejos, que pos-
sim como com o debate em torno da memória sibilita a utopia em arte e história, relacionada,
histórica e poder, um problema que se coloca em Didi-Huberman, com a discussão do visí-
especialmente entre nós, pois mesmo tendo vel e do invisível.
ultrapassado há muito a formação colonial, O que estamos aqui chamando, apoia-
encontramos, sobretudo no campo da história dos em Damisch, de uma história de
e da crítica de arte, muitos resquícios desse transversalidades nos remete necessariamen-
processo. te ao conceito de descontinuidade em história
Pergunta-se, então: qual história da arte e nos aproxima da discussão que Michel
se faz necessária quando nos encontramos Foucault desencadeou a partir da escrita de
envolvidos por uma produção que abriga a di- História da loucura, Nascimento da clínica e
versidade e aciona o debate cultural e políti- As palavras e as coisas, que ele discute em A
co? Para responder a essa pergunta, parece- arqueologia do saber: um estudo teórico-
me interessante observar o que escreveu metodológico da história.
Hubert Damisch a respeito de Rosalind A história que se anuncia com os con-
Krauss5, quando identifica a autora fazendo um ceitos de descontinuidade, limite e transforma-
deslocamento epistemológico no que diz res- ção, como assinala Foucault, coloca não só
peito ao estudo histórico da fotografia, o qual problemas de procedimentos, como também
se acaba mostrando determinante para a his- problemas teóricos. Isso implica o imperativo
tória da arte como um todo. Segundo Damisch, de se pensar historicamente a diferença, os
Krauss entendera que “o automatismo do pro- afastamentos, as dispersões. Implica, portan-

293
cadernos da pós-graduação

to, a desintegração da forma tranqüilizadora uma outra circunstância, mas que penso ser
do idêntico, assim como o reconhecimento das possível aplicar aqui, que os objetos materiais
autonomias, mas, sobretudo, um desvincular- não são unidades fracas, acessórias ao dis-
se da procura das origens, da volta linear aos curso. São objetos presos em um sistema de
antecedentes, da reconstrução desses ante- remissões a outros objetos - um livro a outros
cedentes, das tradições, das curvas evolutivas, livros, uma pintura a outras pinturas - os quais,
das projeções teleológicas. São renúncias di- para além de sua autonomia formal (configu-
retamente ligadas à rejeição da “função fun- ração interna), apresentam-se, nas palavras
dadora do sujeito”, já que é na história contí- de Foucault, como um “nó em rede”. Há ainda
nua que o sujeito vê a possibilidade de desen- que se pensar que esse jogo de remissões
volver tudo que lhe escapou no tempo e, como não é homólogo. A unidade de um objeto, ao
escreve Foucault: “O tempo é aí concebido em ser questionada, perde sua evidência, não se
termos de totalização, onde as revoluções ja- indica a si mesma, só se constrói através de
mais passam de tomadas de consciência”.10 um campo complexo de discursos. Além dis-
Com as pesquisas concomitantes e de so, a obra de um artista não pode ser vista
certa forma determinantes, em psicanálise, lin- como o lugar tranqüilo de onde questões po-
güística e etnologia, sobre as descontinui- dem ser levantadas, mas como colocando por
dades, acabam vindo à tona e constituindo a si mesma um feixe de questões na forma de
história as leis do desejo, as formas da lingua- enunciados.
gem, os jogos de simbolização, os discursos Assim, como explica Foucault, a recu-
míticos e fabulosos. Diante desse esfacela- sa das formas de continuidade abre um domí-
mento, o problema que se apresentou não foi nio constituído pelo conjunto de enunciados
mais apenas o da perda da história centrada efetivos, na dispersão de acontecimentos e na
no sujeito transcendental, mas também o de instância de cada um. A análise do campo
imobilidade sincrônica da estruturalização. A discursivo, não sendo alegórica, é voltada para
essas ameaças Foucault responde a compreensão dos enunciados na estreiteza
conclamando uma “abertura viva da história”, e singularidade de sua atuação. Operando por
onde no lugar das escansões colocar-se-ia o relações entre enunciados “ mesmo que es-
devir, no lugar do sistema um árduo trabalho capem à consciência do autor, mesmo que
de liberdade, num esforço de recompor-se e não pertençam ao mesmo autor, mesmo que
de tentar readquirir o domínio de si própria. os autores não se conheçam “, ou entre gru-
Essa abertura levaria, como ele escreveu, “ a pos de enunciados, ou mesmo entre enuncia-
uma história que seria, ao mesmo tempo, lon- dos, grupos de enunciados e acontecimentos
ga paciência ininterrupta e vivacidade de um de uma ordem inteiramente diferente “ teórica,
movimento que acabasse por romper todos os econômica, social, política “ a história, então,
limites”.11 seria a história dos jogos de relações entre
Talvez o que mais interesse nessa teo- acontecimentos discursivos, ou ainda a histó-
ria de uma história aberta e viva, na procura ria das transformações através do discurso.
de uma história que dê conta das implicações A história por relações entre aconteci-
político-culturais da produção contemporânea mentos discursivos em Foucault me parece
seja o que Foucault chamou jogo de remis- correlata da história que Damisch vê Rosalind
sões. Ao se pensar em fazer história da arte Krauss desenvolver em seu estudo sobre a
no mundo globalizado, há que se ter em men- fotografia, como percebemos no ensaio
te, como alertara o historiador referindo-se a “Corpus delicti”,12 quando as teorias psicana-

294
instituto de artes

líticas não são acionadas para esclarecer os Notas

objetos, mas enquanto discursos que na rela-


1. LOPES, Jarbas. Catálogo. Rio de Janeiro: Capacete Entrete-
ção com o próprio discurso fotográfico, assim
nimentos, 2003.
como com o discurso dos signos imagéticos,
2. KAPROW, Allan. “A educação do an-artista II”. In: Concinnitas,
constroem significados sempre transitórios. nº 6, Rio de Janeiro: Instituto de Artes da UERJ, 2004.
Assim, essa história não é aquela transdis- 3. BELTING, Hans. “A história da arte no novo museu: a busca
ciplinar, para a qual concorrem disciplinas di- por uma fisionomia própria”. In: O fim da história da arte.
versas no sentido de esclarecer o sentido São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

submerso da obra de arte. O que Foucault re- 4. BELTING, Hans. Art History after Modernism. Chicago: The
University of Chicago Press, 2003. Seguimos aqui a demar-
clama é, como escreveu na introdução de: As
cação que Hans Belting identificou entre a modernidade –
palavras e as coisas, uma aproximação de caracterizada pela discussão que a arte empreendia nas
dispersos de graus variados, os quais, em seu estruturas do fazer, do exibir e do interpretar – e a
contemporaneidade, caracterizada pelo que o historiador
cotejamento estabeleçam sentido, sempre em alemão enumerou como: a perda da hegemonia norte-ameri-
transformação. cana conquistada no pós-segunda-guerra; a globalização
cultural, que desafia a definição ocidental de arte; e a revi-
Assim, no Troca-troca de Jarbas Lopes são da participação das chamadas minorias na história da
poderíamos identificar, facilmente, o jogo da arte.
ordem do formal com o campo do antropológi- 5. DAMISH, Hubert. Prefácio de Krauss, Rosalind. O Fotográ-
co, em um choque capaz de criar o que Walter fico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. Prefácio de Hubert
Damisch, 2002.
Benjamin chamou de “um relâmpago para for-
mar uma constelação”.13 Densos, na conten- 6. Idem.

ção dialética da forma e cultura, estão os três 7. Ibidem.

carros, cuja pintura demonstra preocupação 8. DANTO, Arthur C. After the End of Art: contemporary art and
the pale of history. Princeton: Princeton University Press,
formal e apurado envolvimento com a cor; três
1997.
carros cujo modelo remonta ao pós-segunda
9. HUCHET, Stéphanne. “Passos e caminhos de uma teoria da
guerra e que está fora de linha, mas é muito arte”, prefácio da edição brasileira Didi-Huberman, George.
usado nas periferias, sobretudo por pessoas O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
de baixa-renda; um deslocamento através de 10. Idem.
localidades “perdidas”; o filme-documentário da 11. Ibidem.
viagem; a participação de artistas reconheci- 12. KRAUSS, Rosalind. “Corpus delicti”. In> O Fotográfico.
dos no circuito e a chegada ao Museu de Arte Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002.
Contemporânea de Curitiba, num arranjo de 13. Apud. DIDI-HUBERMAN, George. “O anacronismo fabrica a
inteligência artística que propicia múltiplos história: sobre a inatualidade de Carl Eistein”. In: Zielinsky,
Mônica (org), Fronteiras. Arte,Crítica e Outros Ensaios .
enunciados, construindo, assim, o sentido da
Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2003.
arte e da história da arte em uma relação trans-
versal.

Sheila Cabo Geraldo - Doutora em História pela Universida-


de Federal Fluminense com tese sobre Arte e Modernidade
Germânica. Professora Dra. do Departamento de Teoria e His-
tória da Arte do Instituto de Artes da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro - UERJ e do Curso de Especialização em História
da Arte e da Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Autora do livro Goeldi:
uma modernidade extraviada, Rio de Janeiro, Ed. Diadorim,
1995, publicou diversos artigos sobre história e historiografia
da arte. É editora da revista Concinnitas, do Instituto de Artes
da UERJ.

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instituto de artes

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