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A INVESTIGAÇÃO DA NATUREZA

NO BRASIL-COLÔNIA

MARIA ELICE DE BRZEZINSKI PRESTES

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Ciência Ambiental da
Universidade de São Paulo, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Mestre em
Ciência Ambiental

Orientadora: Prof. Dra. Myriam Krasilchik


Co-Orientador: Prof.Dr. Thomas Lewinsohn

São Paulo
1997
Prestes, Maria Elice de Brzezinski
A investigação da natureza no Brasil-Colônia / Maria Elice de Brzezinski
Prestes. -- São Paulo, 1997.
193 p.

Dissertação (Mestrado) -- Programa de Pós-Graduação em Ciência


Ambiental - Universidade de São Paulo, 1997.
Orientadora: Profa. Dra. Myriam Krasilchik
Co-Orientador: Prof. Dr. Thomas Lewinsohn

1. História da História Natural 2. História da Ciência no Brasil 3.


História geográfica 4. Meio Ambiente e Conservação I. A investigação
da natureza no Brasil-Colônia
i

Ao Bruno e ao Ron,
companheiros que fazem de minha vida
uma bela e feliz viagem!
ii

AGRADECIMENTOS
Agradeço à FAPESP pela bolsa de mestrado de 24 meses e ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM), cujo compromisso com a investigação
interdisciplinar possibilitou o desenvolvimento desta dissertação.
Agradeço à minha orientadora, Profª. Drª. Myriam Krasilchik pela confiança depositada
em meu trabalho e ao Prof. Dr. Thomas Lewinsohn, cuja reflexão histórico-social sobre a
atividade científica ajudou-me a encontrar questões aqui investigadas.
Agradeço ainda ao Prof. Dr. Roberto de Andrade Martins e à Profª. Drª. Ana Maria
Alfonso-Goldfarb, cuja dedicação, competência e seriedade com que desenvolvem a pesquisa
em História da Ciência serviram-me de estímulo para ingressar na área. Devo-lhes a motivação
e as oportunidades de participar em atividades de pesquisa, ensino e divulgação da área no
Brasil e no exterior.
Um agradecimento muito especial aos grandes companheiros de jornada na História da
Ciência, cúmplices de todos os momentos, Profª. Drª. Luzia Aurelia Castañeda, grande amiga e
incentivadora além de interlocutora deste e de todos os estudos que tenho feito na História da
Biologia; Prof. Walmir Cardoso, pelo contagiante bom humor e arrojo com que conduz a vida;
Prof. Wilson Jesus, pelo imenso carinho dedicado ao fortalecimento que necessitei na etapa
final. Aos três eu devo a recondução ao caminho sempre que ele se tornou difícil.
Aos colegas do PROCAM/USP, Claudia Vieitas, mulher de grandes feitos, e Itamar de
Lima Cavalcante, homem de luta. Aos colegas do CESIMA/PUC-SP, especialmente à Mariza
Russo e Ubiraci pela amizade e diálogo constantes nos Seminários de História da Biologia. À
Profª. Drª. Márcia H. M. Ferraz pela dedicação em revisar e reparar informações sobre a
reforma da Universidade de Coimbra além da ótima conversa sobre Vandelli e Portugal do final
do século XVIII. Não posso deixar de agradecer também à colega Profª. Paula Laudelina da
Silva, cujo apoio na hora certa revelou uma amizade genuína.
À Dora e ao Ariel, por terem me ajudado a fazer da dissertação uma dissertação.
Às minhas amigas Rosane, Tereza, Luciana, Lucia e Daisy, pela afeição, ternura e
lealdade que tive o privilégio de contar ao longo de todos esses anos.
À minha tia Tereza, que acendeu em mim a paixão pela leitura, pela cultura e pelas
artes.
Aos meus pais, a quem devo todas as oportunidades e conquistas, agradeço pelo
exemplo de dignidade e pelo carinho e vigor que me ensinaram a ter pela vida.
iii

SUMÁRIO
Dedicatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . i
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ii
Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . iii
Lista de figuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . v
Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . vii
“Abstract” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . viii
Notas sobre a ortografia e as traduções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix
Epígrafe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . x
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.1 As várias “histórias ecológicas” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
1.2 Plano da dissertação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

2 A investigação da natureza no Brasil-Colônia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12


2.1 A produção de saberes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2.2 O olhar sobre a exuberância da natureza tropical . . . . . . . . . . . . . 17
2.3 A relação homem-natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

3 A Busca da ordem na natureza e do método para a História Natural . . . 28


3.1 Da história geográfica à geografia de plantas . . . . . . . . . . . . . 43
..
3.1.1 A noção de “lugar natural” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
3.1.2 O argumento do desígneo divino e o equilíbrio da natureza . 46
3.1.3 Lineu, Buffon e as idéias acerca da distribuição das espécies 49
............................................
3.1.4 A história geográfica de plantas nas floras locais modelares 54
3.1.5 A geografia de plantas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
iv

4 A introdução da História Natural em Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59


4.1 Domingos Vandelli (1735-1816) e a formação de naturalistas . . . . 62
4.2 Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) e a expedição filosófica 70
4.3 A criação de academias científicas, tipografias e jardins botânicos 80

5 Manuel Arruda da Câmara (1766-1811) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86


5.1 Notícias do homem, da sua formação e obra . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
5.2 Os temas de Arruda da Câmara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
5.3 A instituição de jardins botânicos e a transplantação de espécies . . 92
5.4 O aparecimento dos jardins botânicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
5.5 A transplantação de espécies na política colonial . . . . . . . . . . . . . . 104
5.6 A história geográfica de plantas em Arruda da Câmara . . . . . . . . . . 110
5.7 Conservação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

6 Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Bibliografia Primária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127


Bibliografia Secundária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

Apêndice 1: Notas acerca da História da Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . 143


Apêndice 2: Transcrição de D. Vandelli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
v

LISTA DE FIGURAS

As imagens foram “scanneadas” a partir das obras abaixo citadas e incluídas na bilbiografia.

FIGURA I: Tapiiretè (Tapir).


Obra: Piso e Marcgrave, Historia Naturalis. Autoria: Albert Eckhout (atribuição): óleo sobre papel, 1662.
Fonte: Belluzo, v. 1, 1994, p. 102.

FIGURA II: Retrato do Tucano.


Obra: André Thevet, La Cosmographie Universelle, 1575. Autoria: André Thevet; xilogravura. Fonte:
Belluzo, v. 1, 1994, p. 37.

FIGURA III: Fera que vive de vento (Bicho preguiça).


Obra: André Thevet, La Cosmographie Universelle, 1575. Autoria: André Thevet; xilogravura. Fonte:
Belluzo, v. 1, 1994, p. 37.

FIGURA IV: Dança de índios Tupinambás.


Obra: Jean de Léry, Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil..., 1600. Autoria: Jean de Léry;
xilogravura. Fonte: Belluzo, v. 1, 1994, p. 42.

FIGURA V: Um naturalista a trabalhar.


Obra: Manuel Arruda da Câmara, Obras reunidas. Autoria: Pe. João Ribeiro Montenegro (?); gravura.
Fonte: Câmara, 1982, s./p.

FIGURA VI: sem título (desenho anatômico de ave)


Obra: Domingos Vandelli, Diccionario de termos technicos de Historia Natural..., 1788. Autoria: Domingos
Vandelli; gravura. Fonte: Belluzo, v. II, 1994, p. 17.

FIGURA VII: As classes das plantas no sistema sexual de Linneo e terminologia de Botânica.
Obra: Domingos Vandelli, Diccionario de termos technicos de Historia Natural..., 1788. Autoria: Domingos
Vandelli; gravura. Fonte: Belluzo, v. II, 1994, p. 19

FIGURA VIII e IX: Frontispício alegórico da Viagem Filosófica, no qual, supostamente,


Alexandre Rodrigues Ferreira aponta o mapa do rio Amazonas, Madeira, Branco e Negro.
Obra: Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica. Autoria: ?; gravura. Fonte: Biblioteca Nacional,
1992a, s./p.
vi

FIGURA X: sem título (Rupicula rupicula).


Obra: Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica. Autoria: Codina ou Freire; gravura. Fonte:
Biblioteca Nacional, 1992b, s./p.

FIGURA XI: sem título (fêmea de Peixe-boi).


Obra: Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica. Autoria: Codina ou Freire; gravura. Fonte:
Ferreira, 1972, s./p.

FIGURA XII: Preguiça.


Obra: Alexandre Rodrigues Ferreira, manuscrito, desenho de gentios. Autoria: José Joaquim Freire
(atribuição); gravura. Fonte: Belluzo, vol. II, 1994, p. 70.

FIGURA XIII: sem título (Meloctatus cactus).


Obra: Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica. Autoria: Codina ou Freire; gravura. Fonte:
Biblioteca Nacional, 1992b, s./p.

FIGURA XIV: Autógrafo de Alexandre Rodrigues Ferreira.


Obra: Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica. Autoria: Alexandre Rodrigues Ferreira;
manuscrito. Fonte: Biblioteca Nacional, 1992a, s./p.

FIGURAS XV, XVI, XVII, XVIII: s./título (máquinas para fiar, descaroçar e ensacar o algodão)
Obra: Manuel Arruda da Câmara, Obras reunidas. Autoria: Pe. João Ribeiro Montenegro (?); gravura.
Fonte: Câmara, 1982, s./p.

FIGURA XIX: sem título (Tapirus terrestris).


Obra: Manuel Arruda da Câmara, Obras reunidas. Autoria: Pe. João Ribeiro Montenegro (?); gravura.
Fonte: Câmara, 1982, s./p.

FIGURA XX: Cynanchum histum Asclepiadaceae, 1800.


Obra: Manuel Arruda da Câmara, manuscrito. Autoria: Pe. João Ribeiro Montenegro (atribuição); desenho
a nanquim. Fonte: Belluzo, vol. II, 1994, p. 77.

FIGURA XXI: sem título (Coleóptera).


Obra: Manuel Arruda da Câmara, Obras reunidas. Autoria: Pe. João Ribeiro Montenegro (?); gravura.
Fonte: Câmara, 1982, s./p.
vii

RESUMO

Depois de uma visão panorâmica e geral dos primeiros relatos sobre a


natureza do Brasil-Colônia produzidos no século XVI, passou-se a um estudo mais
sistemático das obras portuguesas do final do século XVIII. A motivação que levou a
se tratar desses dois períodos foi dada pela necessidade de demarcar-se a existência
de dois modos distintos de produção de saber, “incomensuráveis” um ao outro,
contrariando portanto a historiografia “clássica” da biologia no Brasil, que tende a tratar
os primeiros como conhecimentos “pré-científicos”. Trata-se de abordar o mundo
renascentista em sua especificidade própria cuja modificação, em Portugal, ocorreu
praticamente apenas nas três últimas décadas do século XVIII, com a introdução da
ciência moderna através da Reforma Estatutária da Universidade de Coimbra. Sob a
coordenação de Domingos Vandelli, foram então treinados os primeiros naturalistas
profissionais, muitos deles “brasileiros”, para a exploração dos recursos naturais das
colônias, como fontes alternativas ao desenvolvimento político-econômico da Coroa
Portuguesa. Foi escolhida, para um estudo mais detalhado, a obra do pernambucano
Manuel Arruda da Câmara, por seu conteúdo científico estar em conformidade com o
grande desenvolvimento alcançado pela História Natural européia contemporânea, por
conter alguns dentre os primeiros esforços para a conservação de espécies no Brasil e
por exemplificar a conexão estreita, e respectivos conflitos, entre as propostas
científicas, que almejavam a divulgação e o desenvolvimento das ciências, e as
concepções políticas mercantilistas, que, regidas pelo interesse estritamente
exploratório, determinavam a manutenção das descobertas sob sigilo, freando e, por
fim, levando ao insucesso esse grande projeto que poderia ter dado nascimento à
primeira geração de naturalistas habilitados a dar prosseguimento à institucionalização
das ciências no Brasil.
viii

ABSTRACT

After having presented a panoramic and general view of the first reports on the
nature of the Colonial-Brazil produced in the 16th century, a more systematic study of
the Portuguese works of the end of the 18th century was made. The motivation for
dealing with these two periods was given by the need of delineating the existence of
two different ways of knowledge production, “incommensurable” with one another, thus
opposing the “classical” historiography of biology in Brazil, which tends to deal with the
former as “pre-scientific” knowledge. It is a way of tackling the Renaissance world in its
own specificity whose modification, in Portugal, practically ocurred only in the last three
decades of the 18th century, with the introduction of the modern science through the
statutory reform of the University of Coimbra. Under the supervision of Domingos
Vandelli, the first “professional naturalists”, many of them luso-brazilians, were then
trained for the exploration of the natural resources of the colonies, as alternatives
sources for the economic and political development of the Portuguese Crown. It was
chosen, for a more detailed study, the work of Manuel Arruda da Câmara, from
Pernambuco, since its scientific contents are in conformity with the great development
achieved by the contemporaneous European Natural History, because it comprises
some among the first efforts for the conservation of species in Brazil, and for illustrating
proposals, that aimed at the dissemination and development of the sciences, with the
mercantilist political conceptions, which were ruled by strictly exploratory interests, and
that determined the maintenance of the discoveries in secrecy, restraining, and
eventually, leading to failure this great project that could have given birth to the first
generation of naturalists qualified to proceed with the institutionalization of the sciences
in Brazil.
ix

Notas sobre a ortografia e as traduções.

Manteve-se a ortografia e a pontuação dos originais em língua portuguesa. Há


discrepâncias devido ao uso de edições de diferentes épocas para cada autor tratado.
Diversamente, todas as citações traduzidas — do castelhano, francês e inglês —
foram feitas pela autora (excetuando, infelizmente, o latim) segundo a forma moderna
de nossa língua.
x

“Todas as coisas se atraem entre si,


a questão é saber colocá-las na ordem justa,
e então se quebrará a ordem”
(José Saramago, Memorial do Convento, 1982)
11

1 INTRODUÇÃO

“É preciso fazer a História


Ecológica do Brasil”
(Inacy Sachs, PROCAM/USP, 28/08/96)

Em meio aos muitos relatos produzidos sobre a natureza do Brasil-Colônia, desde


os primeiros anos do 1500, não raro é encontrado uma temática relacionada ao que se
poderia denominar hoje de “preocupação ambiental”. Ora manifesta-se em um
deslumbramento frente à prolixidade de espécies vegetais e animais nos trópicos e sua
aparente inesgotabilidade; ora trata-se de medidas oficiais destinadas a restringir a
exploração de uma dada madeira em benefício da Coroa Portuguesa; ora revela-se um
assombro quanto ao rápido escasseamento de uma determinada tartaruga frente à
prática exploratória; ora defende-se a introdução de espécies úteis; ora apregoa-se a
necessidade de eliminarem-se espécies exóticas transplantadas sem o aval da Coroa;
ora aconselha-se a restrição, proibição e punição de explorar-se algum recurso natural.
O presente estudo teve nessas narrações a sua motivação inicial. Ele consiste
numa vistoria dos documentos produzidos acerca da investigação da natureza tropical
nos domínios do Brasil-Colônia em dois momentos distintos. Contrapõe uma abordagem
mais genérica dos primeiros relatos do século XVI ao que se produziu no final do século
XVIII, como resultado da reforma do ensino superior que introduziu a ciência moderna em
Portugal. Particulariza-se o projeto ilustrado objetivando a formação de naturalistas
habilitados a inventariar os recursos minerais, vegetais e animais do Reino Português e
suas conquistas. Toma-se como caso-estudo a obra de Manuel Arruda da Câmara por
inserir-se tanto no contexto institucional definido pela reforma, quanto na abordagem da
temática que mais se aproxima das questões relativas ao tratamento científico sobre a
natureza definidos pelo estágio de transformação em que se encontrava a História
Natural do período.
Primariamente comprometido com o ideal de uma pesquisa sob a perspectiva
interdisciplinar, este trabalho concentra o foco de interesse na produção dos
conhecimentos escritos acerca de nossa flora e fauna. Tem, portanto, por objeto, o
estudo da natureza no Brasil-Colônia e, por método, a História da Ciência1. Os relatos,

1
Como se trata de área emergente no Brasil, inclui-se em apêndice a esta dissertação, umas notas sumárias
sobre a História da Ciência. Trata-se de uma apresentação genérica, destinada a uma divulgação introdutória
12

memórias, estudos e dissertações sobre a flora e fauna brasileiras foram revisitados


como produtos das condições específicas de seu período histórico. Esse contexto,
buscado, por um lado, no campo teórico da pesquisa em História Natural tal qual se
realizava na época e, por outro, nas circunstâncias político-institucionais que definiram
sua inserção nas condições concretas enfrentadas por seus autores, almeja permitir um
juízo histórico mais justo do papel ocupado por essas investigações nas ciências do
Brasil-Colônia.
Diferentemente do quadro mais complexo formado pela investigação da natureza
no Brasil do século XIX, em que concorriam os esforços das expedições científicas,
patrocinadas por diversas nações estrangeiras, com a institucionalização da ciência no
Brasil, através da fundação das Faculdades e Universidades de ensino e pesquisa, da
formação de uma imprensa nacional encarregada da edição e divulgação de textos, as
três últimas décadas do século XVIII representaram uma tentativa de se iniciar o
desenvolvimento das ciências modernas no Império Português, à custa de investigações
em todos os seus domínios, incluindo-se estas terras americanas.
Embora não sejam tão poucos os estudos a respeito dos cientistas que
pesquisaram nossa fauna e flora nessa época áurea da História Natural, como o foi o
século XVIII, é incontestável que seus naturalistas são escassamente conhecidos, ao
menos fora dos círculos acadêmicos. Desse modo, mesmo que ainda haja muito a ser
estudado sobre os exploradores dos trópicos no século XIX, é certo que estrangeiros
como Bates, Darwin, Humboldt ou von Martius já alcançaram sua justa fama que, no
entanto, não é compartilhada com os naturalistas “brasileiros” do XVIII, especialmente no
que se refere ao conteúdo científico de sua obra e não tanto às suas biografias.
Pensando-se, ainda, numa contribuição para o estudo da História da Ciência no
Brasil, o nome de Manuel Arruda da Câmara confirmou-se para esta pesquisa por
tratar-se de um homem cuja cidadania portuguesa, dada a condição colonial, não o
impede de ser tratado como a um “brasileiro”, pois está apegado por nascimento ao Brasil
e é no Brasil que desempenha a maior parte de suas atividades científicas. Retornando
dos estudos em Portugal e França, Arruda da Câmara fixa moradia em Pernambuco.
Além disso, Arruda da Câmara pertence ao grande grupo de naturalistas formados
em Coimbra, no período imediatamente posterior à reforma estatutária de 1772 e
conseqüente ingresso das ciências naturais em Portugal2. Arruda da Câmara é, pois, um

dessa área de pesquisa cujo conhecimento é escasso em nosso país.


2
Veremos que Arruda da Câmara não concluirá seus estudos em Coimbra, buscando seu doutoramento na
13

bom representante da vinculação entre o projeto de desenvolvimento das ciências


naturais e o projeto político mais amplo da Metrópole em relação à exploração econômica
de seus domínios coloniais, particularmente o Brasil. Em outras palavras, esse autor pode
ser considerado segundo essa sua inserção tanto no projeto político da Ilustração
portuguesa, quanto no domínio científico ilustrado.
A reforma estatutária da Universidade de Coimbra passou a atrair um número
significativo de estudantes provenientes da colônia sul-americana. Estes homens
nascidos em terras brasileiras, mesmo que cidadãos portugueses, já nutriam interesses
pelo desenvolvimento da colônia natal, ainda que isso não significasse, sempre ou
abertamente, um desejo de autonomia em relação à Metrópole. Mas significava, ao
menos, empenho no incremento da atividade agrícola que vislumbravam poder ser
alcançado através de uma orientação científica adequada. E a Metrópole a fornecia.
Sujeitos ao novo currículo da Universidade de Coimbra, seus estudantes denotavam um
perfil relativamente homogêneo, especialmente no que se refere a suas influências
intelectuais decorrentes, por um lado, das instruções fornecidas por um grupo de
professores coordenados pelo naturalista Domingos Vandelli e, por outro, do que diz
respeito à sujeição de suas pesquisas futuras ao projeto político da ilustração. Estes
homens, mais ou menos conscientemente, mais ou menos voluntaria ou resistentemente,
saíram de Lisboa impregnados pelo ideal de promover nos domínios portugueses o
desenvolvimento científico para o qual foram treinados 3 . Assim, voltaram à sua terra
como portadores de um “discurso oficial”, para quem os cargos de naturalistas deveriam
estar sendo formados e para quem a academia de Lisboa deveria pôr-se disponível para
a publicação de seus estudos.
Manuel Arruda da Câmara é beneficiário do então criado cargo de
“naturalista-viajante”, pelo qual tornava-se encarregado de cumprir as determinações da
Coroa. Arruda da Câmara teve acesso à publicação de algumas memórias e dissertações
que lhe foram encomendadas além de pesquisas planejadas por conta própria. Embora
teórica ou intencionalmente, o mesmo estivesse à disposição de toda a geração de
naturalistas formados por Vandelli, como é o caso de outro naturalista que será aqui
destacado, Alexandre Rodrigues Ferreira, veremos o quão diferente foi o destino de suas
obras, bem como de boa parte da obra do próprio Arruda da Câmara.

Faculdade de Medicina de Montpellier.


3
A ambivalência das reformas ilustradas pode ser medida pelo fato de muitos dos jovens que buscaram
instrução em Portugal, “freqüentemente, eram instados a servir ao império. Se retornavam ao Brasil, ficavam
afastados do incentivo de colegas e impedidos de formar uma nova geração de estudiosos. Não havia
14

Em resumo, o final do século XVIII e, nele, o nome de Arruda da Câmara foram


definidos para um estudo detalhado por melhor representar uma geração de naturalistas
profissionais, formados segundo um corpo teórico sistematizado, homogêneo e
totalmente voltado à História Natural. O século XVIII é o período em que surgem os
naturalistas peregrinos — conforme são designados em documentos da Coroa
portuguesa — ou naturalistas viajantes — conforme o nome do cargo criado no Museu
Imperial do Rio de Janeiro, no século XIX, indicando o reconhecimento da profissão
(Moreira Leite, 1994/5, p. 10).
O trabalho de Manuel Arruda da Câmara é, em sua maior parte, anterior à vinda
da família real para a colônia (1808), o que traz duas implicações importantes: está
inserido, ao menos oficialmente, numa política de extração ou exploração das riquezas
naturais dos domínios da Coroa e não num projeto desenvolvimentista da própria colônia.
Era o progresso de Portugal, através de seus domínios, e não o do Brasil, que se
buscava. Como conseqüência dessa condição de “colono”, seus estudos da fauna e da
flora, assim como das riquezas minerais, guiam-se pelo utilitarismo português que
buscava desenvolver a agricultura e fomentar a economia da Metrópole, ao invés de
fomentar o ensino ou a criação de polos de pesquisa científica na colônia americana,
como, de resto, ocorria já na América espanhola. Isto desobriga, em termos, uma
avaliação do seu vínculo (in)direto com o âmbito mais complexo da institucionalização
das ciências no Brasil no século XIX.
Em termos conceituais, Arruda da Câmara traz na bagagem os conhecimentos
mais recentes e atualizados sobre História Natural, conforme as condições criadas em
Coimbra por Domingos Vandelli. Para o que centraliza os esforços desta pesquisa,
destaque-se que estão presentes em suas obras as primeiras investidas na História
Geográfica que ocupava-se em avaliar temas como a relação das plantas com o “solo” e
com o clima, a transplantação de espécies, o cultivo de espécies em jardins botânicos e a
sua eventual conservação. O século XVIII testemunha um momento importante para a
História das Ciências Biológicas e segundo as vistas de seus próprios protagonistas:

“Neste seculo he a Historia Natural mais cultivada, que nos passados, o


que demonstraõ as grandes, e interessantes descubertas, e o avultado
numero de Muƒeos.
No seculo passado, e no principio do presente haviaõ muitos Museos de
Medalhas, dos quaes agora ha poucos, e preferem-se os de Historia Natural”
(Vandelli, 1788, p. I-II).

bibliotecas públicas na colônia e era proibida a existência de gráficas” (Dean, 1996, p. 136).
15

Ali desenvolvem-se enormemente os estudos de Classificação, de Fisiologia, de


Anatomia, de História Geográfica, de Geologia, que começam a delinear as direções de
onde emergirão as grandes teorias biológicas ao longo do século XIX: a teoria celular, o
evolucionismo, a biogeografia, a ecologia e mais tardiamente a genética. O século XVIII
vive o apogeu da História Natural, mais comumente caracterizado pela atenção especial
à descrição e classificação dos seres vivos. Trata-se de um momento em que não apenas
o mundo científico, mas, também, as elites "esclarecidas" da Europa preocupavam-se
com a coleta e catalogação de minerais, vegetais e animais em seus gabinetes de
curiosidades. Momento em que o europeu se encantava com a exuberante flora e fauna
trazida das terras do Novo Mundo e em que multiplicavam-se os herbários, jardins e
coleções de espécimes, tanto oficiais quanto privados. Também é ali que se começa a
fazer sentir as conseqüências dos danos que o homem é capaz de causar na natureza.
16

1.1 As Várias “Histórias Ecológicas”

Retomando as palavras do professor Ignacy Sachs 4 , o desenvolvimento das


ciências ambientais no Brasil precisa cumprir uma primeira e grande etapa de
recolhimento de dados, tanto do estado presente da natureza, quanto de seu passado.
Impõe-se, segundo ele, a feição de uma “história ecológica” do Brasil em que se trate de
forma integrada ecossistemas, recursos e sociedades, e cuja perspectiva seja a de uma
história do “conhecimento da sociedade sobre a natureza”. Esta pesquisa da História
Natural praticada no Brasil-Colônia é uma pequena contribuição e um estímulo a tarefas
mais amplas. Não se pretende uma História da Ecologia no Brasil nem das possíveis
origens dessa Ecologia e menos ainda de seus movimentos ambientalistas, pois falta-lhe
a amplitude temática que tais trabalhos exigiriam. Mas, ao trazer à luz o contexto em que
se realizaram alguns dos primeiros estudos sistemáticos sobre a História Natural em
nosso país, pretende fornecer subsídios para que essas importantes abordagens
históricas sejam cumpridas.
A história “ecológica” do planeta apenas começa a ser escrita. Há muitas
vertentes sendo exploradas e é preciso delinear a relação que o presente estudo mantém
com elas. É preciso, por exemplo, conhecermos a história dos ambientes, dos
ecossistemas. É preciso conhecermos os modos pelos quais as diferentes culturas, nas
diferentes épocas, relacionaram-se com o entorno natural e o tipo de intervenção que lhe
impuseram. É preciso conhecermos como ocorreu a exploração dos recursos naturais
pelas diferentes sociedades. É preciso conhecermos os modos pelos quais foram
engendrados os saberes práticos sobre a natureza, como esses saberes passaram pelas
tradições orais e como constituíram-se no patrimônio cultural das “populações
tradicionais”. É preciso investigarmos os modos de produção dos conhecimentos teóricos
e dos critérios de verdade que cada época e cada cultura utilizou para definir a sua
“ciência”.
Coube por muito tempo aos biólogos, geógrafos, geólogos, agrônomos e tantos
outros profissionais diretamente ligados ao estudo ou à prática relativa ao mundo natural
conhecer um pouco desse passado, mesmo que por uma espécie de obrigação de ofício.
Também coube aos historiadores da ciência cumprirem essa tarefa. No entanto, o campo
das ações humanas sobre o ambiente deixou de ser objeto privilegiado desses
profissionais. As Humanidades obrigaram-se a incluir em seu campo de análise uma nova

4
Em palestra no PROCAM/USP em 28/08/1996.
17

e muito ampla área de investigação a que se convencionou denominar de “relações


homem-natureza”. Não é apenas a história bio e geológica dos ecossistemas que
passamos a conhecer cada vez mais hoje em dia, mas a história socio-política que
engendra a própria história dos ecossistemas5.
Muitos conceitos gerais da Ecologia derivam de longa tradição intelectual que
muitas vezes remonta à Antigüidade. Na variada gama de estudos sobre os autores do
passado que abordaram o que posteriormente veio a ser reconhecido como um aspecto
da ciência ecológica, encontra-se, com freqüência, uma interpretação desses autores
como sendo “precursores” da Ecologia moderna. Embora não seja esse o pressuposto
adotado neste estudo, é bom que se esclareça um pouco sobre as diferentes visões
sobre o tema e que derivam muito diretamente da própria definição do que se entende
por “Ecologia”.
Tome-se a observação de Malcom Nicolson para os três usos distintos que se faz
do termo “Ecologia”. Ele pode 1) “referir-se a um grupo ou grupos específicos de
profissionais de carreira científica especializada”; 2) “pode referir-se a um movimento
político ou filosófico que tem como uma de suas principais características ter uma dentre
uma variedade de preocupações ambientais e que, tipicamente, reivindica legitimar seus
princípios, ao menos em parte, por referência ao conhecimento gerado pelos ecólogos
científicos”; 3) “pode designar as relações de um organismo com o seu ambiente”
(Nicolson, 1988, p. 187).
Quanto ao primeiro sentido do termo, ainda se faz necessário destacar, até
historicamente, dois campos investigativos distintos: por um lado, a Ecologia que
formalizou-se como um programa de pesquisa científica especializada, cujo nome fora
cunhado por Haeckel em 1866, mas cujo desenvolvimento só ocorreu a partir da década
de 1890, “quando numerosos biólogos apoderaram-se da relação e começaram a tratar a
Ecologia como uma disciplina formal” (McIntosh, 1985, p. 23). É o que se passou a
denominar de “Ecologia consciente de si mesma”. Por outro lado, o que tornou-se a sua

5
A floresta brasileira acaba de ganhar uma publicação de sua história. A ferro e fogo. A história e a
devastação da Mata Atlântica brasileira, de 1996, é o grande presente que nos deixou o professor Warren
Dean. Conta-se ali das relações predadoras que a sociedade brasileira manteve com o seu “berço
esplêndido”, desde os índios, missionários, colonos e comerciantes do Brasil-Colônia, até as sociedades
agrícolas e industriais do século XX. A primeira, de outras histórias que, se espera, venham a proliferar entre
nós (Dean, 1996).
Entre as revistas científicas especializadas, pode-se citar a Environmental History Review e a Forest and
Conservation History, ambas dedicadas especialmente às questões da América do Norte. Mais recentemente,
em 1995, a Environment and History apareceu como uma “revista interdisciplinar que busca aproximar
acadêmicos das ciências humanas e biológicas, com a intenção deliberada de construir perspectivas de longo
prazo e bem fundadas para os problemas ambientais dos dias de hoje” (Grove, 1995, p.1).
18

contrapartida aplicada, voltada a questões de conservação e preservação de


ecossistemas, práticas agrícolas e florestais, “manejo pesqueiro e da vida selvagem,
estudos de impacto ambiental, controle de poluição e saúde pública”, e cuja formalização
“parece ter variado de país a país” (Egerton, 1985, p. 104) em meados do século XX6.
Quanto ao segundo sentido comumente atribuído ao termo Ecologia, considera-se
uma abordagem da ação humana sobre a natureza e a problemática ambiental,
envolvendo outros profissionais que, muitas vezes, nunca “trabalharam num
departamento acadêmico de Ecologia ou adquiriram qualificação [acadêmica] no assunto”
(Nicolson, 1988, p. 187). A preocupação central desses profissionais é relativa às
dimensões sócio-econômico-políticas implicadas pela gestão humana sobre o Meio
Ambiente. Diz respeito ao que se costuma denominar de “Movimento Preservacionista”
ou “Ambientalismo”, cujo surgimento pode ser apontado a partir de interesses
emergentes nas últimas três décadas do século XIX, especialmente nos Estados Unidos,
de preservar os recursos naturais através da criação das primeiras unidades de
conservação da natureza7. A primeira metade do século XX assistiu alguns esforços no
sentido de definirem-se regras e leis relativas ao manejo ambiental em diversos países. A
insuficiência dessas medidas levou à globalização da crise ambiental a partir de meados
da década de 1950. Um novo momento caracteriza então o Ambientalismo que tem no
livro Silent spring, de 1956, de Rachel Carson, um de seus marcos mais influentes.
O terceiro sentido pelo qual se emprega o termo Ecologia, designando as relações
dos organismos com o ambiente, é o que permite delinear no passado as preocupações
concernentes aos seres vivos e ao ambiente de modo geral. É este o sentido pelo qual
será adotado, moderadamente, neste trabalho, o adjetivo “ecológico”. Considera-se,
ainda assim, que o uso do termo é anacrônico e inadequado.
Parte-se do pressuposto de que a Ecologia científica, incluída sua vertente
aplicada, possui o seu nascimento genuíno no momento de sua formalização como
disciplina acadêmica, estreitamente vinculado ao próprio estágio em que se encontrava a
pesquisa das outras áreas da Biologia e da ciência em geral e do modo como esse
conhecimento relacionava-se com as políticas e práticas sociais sobre o meio ambiente8.

6
Na Inglaterra, pode-se tomar o ano de 1949, em que o governo estabeleceu o “Nature Conservancy” e nos
EUA, o ano de 1969, em que o Congresso aprovou o “National Environmental Policy Act”. Também devem ser
consideradas as primeiras revistas especializadas para a Ecologia Aplicada: o Journal fo Applied Ecology,
publicado na Inglaterra em 1964 e o Environmental Management, publicado nos EUA em 1976. (Egerton,
1985, p. 104).
7
Uma análise crítica das conseqüências da transferência pura e simples do modelo de conservação
americano para os países de terceiro mundo, e em especial o Brasil, foi feita por Diegues, 1996.
8
A localização da origem da Ecologia é tema controverso tanto entre os próprios biólogos, quanto entre os
19

Uma História da Ecologia consistiria, portanto, no estudo do desenvolvimento de seus


conceitos, como se poderia mencionar, dentre os centrais, o de “ecossistema” ou o de
“dinâmica de populações”. Uma História das origens da Ecologia, por sua vez, buscaria
pelos antecedentes e pelas tramas resultantes de suas relações no tempo9. Essa busca
pelos antecedentes que iluminaram as condições que tornaram possível o aparecimento
de uma ciência como a Ecologia não se confundiria com uma procura de precursores,
pois na noção de “precursor” subjaz a idéia de que haveria, lá no passado, mesmo que
de forma velada, a ciência presente que ora se investiga. Implica-se aí uma noção
finalista de que as ciências atuais seriam o mero resultado de um desenvolvimento
“necessário” a partir de precursores “mal compreendidos” ou “adiante” de seu próprio
tempo10.
A constatação de que problemas ambientais tenham sido objeto de investigação
no passado, e mesmo de um passado que possa remontar à Antigüidade, não significa
ou não implica em que estivesse lá em germe algum tipo de “proto-ecologia”11. Conhecer
esses problemas de acordo com seu próprio tempo significa conhecer o modo como cada
cultura os transformou em questões que se impunham ser respondidas. Diferentes
respostas geraram diferentes saberes ou ciências e sua relação com a ciência do
presente pode não ter resguardado sequer o contorno do objeto de investigação.
Ressalte-se, contudo, que nem toda abordagem de “questões ambientais”
tratadas por nossos antepassados é motivada exclusivamente pela elaboração de uma
História das origens da Ecologia, embora possa contribuir para a apuração de elementos
que permitam estimar o tipo de conexão entre as soluções do passado e as que se
apresentam à Ecologia atual12.

historiadores da Biologia. Uma boa panorâmica da controvérsia, muito apropriadamente relacionada à própria
definição de “Ecologia” e de seus propósitos é encontrada no capítulo Antecedents of Ecology, de McIntosh,
1985.
9
Entre os antecedentes da Ecologia, pode-se citar, a “dupla laicização do pensamento de Lineu que, no
tumultuoso contexto da revolução industrial, abre caminho à ecologia científica, primeiro na Europa, e, depois,
no Novo Mundo: Alexandre de Humboldt com a biogegrafia, alargou o espaço à dimensão do planeta inteiro;
Charles Darwin introduziu-lhe sobretudo uma concepção dinâmica e evolutiva do tempo. Mas, entre os seus
antecedentes, não podemos também esquecer a importância das leis de conservação da energia e da
matéria, nem as descobertas revolucionárias da geologia e da química, nem tão-pouco as aplicações desta
última ao domínio agrícola” (Deléage, 1991, p. 13).
10
Utilizando as claras palavras de Francisco Falcão, toma-se aqui a busca de precursores como algo que
“envereda facilmente pelos caminhos da teleologia (...) que conduz a explicar uma época não por aquilo que
ela é, mas em função daquilo que virá depois dela” (Falcon, 1996, p. 21).
11
“O termo ‘protoecologista’ foi cunhado por Voorhees (1983) para descrever aqueles que tinham um
discernimento ecológico antes de que a ciência formal da Ecologia tenha sido formulada” (McIntosh, 1985, p.
15).
12
“A história de uma idéia ou de um conjunto de idéias é muito diferente da história de uma ciência. Uma vez
que as idéias fazem parte do domínio público, elas podem ser empregadas por qualquer um que considere o
seu uso conveniente. Por isso, idéias podem surgir em todo e qualquer lugar. A história de uma ciência, por
20

1.2 Plano da Dissertação

O capítulo dois parte de um levantamento das fontes históricas tradicionais


disponíveis para se conhecerem os autores das primeiras narrativas sobre o ambiente
tropical brasileiro. A partir de uma revisão crítica das interpretações dadas às impressões
dos primeiros europeus, buscou-se uma filiação de suas obras ao plano conceitual mais
amplo que regia a produção científica européia nos séculos XV e XVI. O critério escolhido
foi o de ilustrar, a partir de alguns autores, os modos de produção de conhecimento sobre
a natureza no período considerado. Interessou delinear, na visão panorâmica, o conjunto
de elementos que formavam a “visão de mundo” e o olhar que guiava a investigação
sobre a natureza.
O capítulo três inicia-se com a transformação do conhecimento renascentista no
que se passou a denominar de “Nova Ciência”. Pretendeu-se aí tornar menos abrupta à
passagem ao tipo de pesquisa característica da época áurea da História Natural.
Circunscrevendo-se ao âmbito do desenvolvimento das idéias, particularmente das
consideradas relevantes à área da história geográfica e geografia de plantas,
exploraram-se conceitos provenientes da Antigüidade clássica a partir dos quais
começaram a aparecer, no século XVIII, os primeiros projetos de mapearem-se as
criaturas de regiões definidas e de entender o modo como elas eram unidas em um
sistema inter-relacionado.
O capítulo quatro traz o contexto político-institucional da introdução da Ciência
Moderna em Portugal e do projeto iluminista de formação de naturalistas profissionais
segundo as orientações de Domingos Vandelli13. Foi abordado o conjunto de iniciativas
propostas para o desenvolvimento da História Natural, como a formação de cursos
especializados, o planejamento de expedições filosóficas, como a de Alexandre
Rodrigues Ferreira, o fortalecimento de Academias científicas, o estabelecimento de
tipografias e a criação de jardins botânicos.

outro lado, é necessariamente a história de uma forma de organização social. A prática científica é organizada
em torno de estruturas institucionais e tradições de treinamento, pedagogia, qualificação, avaliação e
publicação (...) A história da ciência ecológica e a história do pensamento ecológico ou ambiental são, sem
dúvida, conectadas mas para investigar a primeira não é necessário investigar a segunda e vice-versa”
(Nicolson, 1988, p. 186).
13
A título de contribuição para o acesso de textos primários importantes para a História da Biologia no Brasil,
segue-se ao corpo da Dissertação um outro apêndice em que foi transcrita um pequeno trecho de uma obra
de Domingos Vandelli cujo acesso é dificultado por tratar-se de edição do século XIX e guardada em sessão
de obras raras (IEB/USP e FD/USP).
21

O capítulo 5 trata da obra de Manuel Arruda da Câmara. O procedimento adotado


na análise foi, primeiramente, o de selecionar nas obras impressas aqui utilizadas os
conteúdos julgados pertinentes ao tema desta pesquisa. Procurou-se colocar o autor em
seu próprio tempo, relacionando o seu trabalho com o quadro teórico mais amplo da
História Natural delimitado no capítulo três e com as condições institucionais sumarizadas
no capítulo quatro.
O capítulo 6 traz considerações finais, a título de conclusão, sendo seguido da
bibliografia e dos apêndices já mencionados.
22

2 A INVESTIGAÇÃO DA NATUREZA NO BRASIL-COLÔNIA

“Direi desde logo, ao iniciar este capítulo, que não


existe no Brasil nenhum quadrúpede em tudo e
por tudo semelhante aos nossos”.
(Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, 1578)

Já muito se falou do impacto que a natureza tropical causou nos primeiros


europeus que aqui chegaram, nas épocas das viagens de navegação. Aos que ficaram
no Velho Continente chegavam os testemunhos dos chamados “cronistas” encarregados
do relato acerca das riquezas naturais brasileiras. Desse modo, é pela mão dos europeus
que se inicia a História da Biologia no Brasil.
Já muito se escreveu da própria História da Biologia. Conhecemos, em grande, os
sentidos que guiaram a busca de conhecimento do mundo vivo nas diferentes fases da
história do Ocidente europeu. A identificação dos caracteres comuns e próprios a cada
tempo levaram a uma demarcação de períodos distintos gerindo a produção dos saberes
científicos. Podemos divergir quanto à rigidez na aplicação desses modelos ou quanto à
definição de seus limites inferiores e superiores na escala do tempo. Podemos debater
sobre a passagem de um a outro, se ela é muito lenta e gradativa ou se, ao contrário, é
sensível e abrupta. Podemos mesmo discutir se a sua aplicação traz mais luzes e
entendimento a uma dada época ou se esses “rótulos” não fazem mais do que tornar
mais turva a nossa visão desse passado que pretendemos reconstituir. Mas alertados
sobre a simplificação excessiva que as grandes periodizações, ou generalizações, nos
trazem, não podemos negar que elas nos são úteis.
Há sempre um conjunto de elementos que, em cada cultura e em cada época,
definem o modo de produção de saberes. Apenas investigando-se o contexto mais amplo
dessa produção de conhecimento é que se previnem análises anacrônicas e injustas
resultantes da comparação de incomparáveis e do uso da mesma medida para
incomensuráveis14.

14
A incomensurabilidade é um conceito apontado por Thomas Kuhn para caracterizar duas ciências
separadas entre si por uma revolução (Kuhn, 1989).
23

2.1 A Produção de Saberes

Para a investigação da fauna e flora brasileiras em particular constituíram-se como


fontes primeiras, neste trabalho, os textos “clássicos” que traçam a História da Biologia no
Brasil. São eles, o verbete de Rodolfo Garcia, História das Explorações Scientificas, no
Dicc. Hist. Geogr. e Ethnogr. do Brasil, de 1922; o artigo de Carlos França, Os
portugueses do século XVI e a História Natural do Brasil, de 1926; o livro de Arthur Neiva,
Esboço histórico sobre a botânica e zoologia no Brasil, de 1929; os livros de Cândido de
Mello-Leitão, A Biologia no Brasil, de 1937 e História das Expedições Científicas no
Brasil, de 1941; os textos de Olivério M. de Oliveira Pinto, A Zoologia no Brasil, e de
Mário Guimarães Ferri, A Botânica, ambos no livro organizado por Fernando de Azevedo,
As ciências no Brasil, de 1956.
Essas obras são rica fonte de consulta para o estabelecimento das personagens
que viveram a História da Biologia em nosso país15. Também provém dessas obras uma
classificação, tornada bastante usual, que agrupou os vários autores conforme a sua
distribuição cronológica e um certo estatuto de cientificidade atribuído aos seus trabalhos.
Esses autores identificam, via de regra, quatro fases distintas no desenvolvimento da
Biologia no Brasil: uma primeira fase, relativa aos relatos do século XVI, de “cronistas e
missionários”; uma segunda fase, das “primeiras contribuições verdadeiramente
científicas”, inaugurada por naturalistas trazidos junto à comitiva de Maurício de Nassau
no século XVII; uma terceira fase, das “Expedições Naturalistas Estrangeiras” do século
XIX; uma quarta fase, comumente subdividida em outras, em que se inicia a
“Contribuição Nacional” ao desenvolvimento da ciência a partir da chegada da Família
Real em 1808.
Os historiadores citados elencam, em geral, para a primeira fase, uma longa lista
de cronistas e missionários responsáveis pelas “primeiras citações” e descrições de
nossa fauna e flora que podem ser ilustrados por: Anchieta 16 , Ambrósio Fernandes
Brandão, Ivo d'Evreux, Pêro M. Gandavo, Jean Leri, Gabriel Soares de Sousa, Hans
Staden, André Thevet. Embora mencione-se que algumas de suas descrições são

15
Vale mencionar que escapam dos objetivos deste trabalho as contribuições ao conhecimento da natureza
que tenham sido elaboradas fora do que constituiu-se como esfera do “científico” e que vêm sendo
abordadas, por exemplo, entre as “etnociências”. Ou seja, não será contemplada qualquer contribuição
proveniente seja de populações indígenas anteriores à chegada dos europeus, seja de populações
tradicionais de nossos dias, cujos saberes e práticas sobre a natureza apenas anonimamente comparecem
nos textos científicos. A restrição da pesquisa aos relatos escritos e chancelados de “científicos” ou
“pré-científicos” não implica em considerar os saberes tradicionais como não científicos.
16
Anchieta não teria contribuído com o seu relato até o ano de 1799, quando finalmente sua obra foi publicada
integralmente em italiano (Oliveira Pinto, 1956?, p.97).
24

superiores às efetuadas pelos “cientistas” que se lhes seguiram, é apenas à segunda


fase que atribuem o aparecimento da “primeiras contribuições genuinamente científicas”:
as obras dos sábios holandeses Marcgrave (1610-1644) e Piso (1611-?) além das que
apareceram a partir da segunda metade do século XVIII, com homens como Frei Veloso
e Alexandre Rodrigues Ferreira, citando-se alguns casos isolados no período
intermediário.
O modo como são interpretados esses dois períodos é extremamente semelhante
em todos os comentadores citados. O "Ciclo dos Cronistas e Missionários" possui
importância como documento da história de nosso país. Já quanto ao seu papel para a
História da Biologia não é atribuído um grande valor. Quase como uma exceção, Oliveira
Pinto manifesta a opinião de que tais textos constituem-se em fonte de dados relativos à
distribuição geográfica e ao tamanho de algumas populações de animais no século do
Descobrimento. Essa opinião vem acompanhada, contudo, de um alerta para a
necessidade de uma análise criteriosa dessa obras uma vez que não raro apresentam
“digressões teóricas que dão crédito à lendas” ou “crenças improváveis” — como geração
espontânea e conseqüentes equívocos quanto à geração dos animais — além de pouco
conhecimento de anatomia17.
De maneira semelhante, assegura Rodolfo Garcia que “Em rigor ... não se póde
dizer que já no seculo XVI a Sciencia se tivesse interessado com os productos da
Natureza brasileira”. A obra de Anchieta, ainda segundo Rodolfo Garcia, “carece de
requisitos essenciaes para ser arrolada entre depoimentos scientificos. Esses, sómente
no seculo seguinte, haviam de fornecer-nos Wilhelm Pies e Georg Marcgrav, que
estiveram no Brasil durante o octennio nassauriano, e com que se iniciam as
investigações sobre as Sciencias naturaes e physicas em nosso paiz” (Garcia, 1922, p.
863). Mas o crivo estabelecido pela busca de um fazer científico semelhante ao padrão
do século XX não poupa nem mesmo o “importante” Marcgrave:

"É de lamentar que o escrúpulo piedoso de João de Laet (e um pouco a


sua ignorância em coisas de ciências naturais) não tivesse escoimado a parte

17
Embora pareça movido pela boa intenção de destacar aí a importância dessas obras, não se pode deixar de
apontar que a escolha de Oliveira Pinto foi infeliz, pois os dados dos cronistas são muito genéricos e pouco
quantificáveis. Tomem-se alguns exemplos: de André Thevet (1557): "existem numerosos coelhos", "vê-se na
América muita quantidade de certo animal de nome tapir", "possui a América inúmeros tatus". Ou Acuña
(1641): dos porcos montêzes, "de que estão povoadas quase todas as Índias". Ou Jean de Léry (1578): "há
também nessa terra do Brasil grande número de pequenos macacos pretos a que os selvagens chamam cay".
Ou Ivo d'Evreux (1615): "Achei-me muitas vezes nas matas, onde eles [os macacos] habitam e dir-vos-ei, sem
precisar o número, que vi grande quantidade d'eles". Ou Hans Staden (1557): "Há também muitos tigres
naquela terra". Surpreendentemente, veremos um tratamento semelhante em Alexandre Rodrigues Ferreira.
25

zoológica de tão notável trabalho de algumas lendas e abusões que aí


encontram guarida, certamente por as ter encontrado o editor entre as notas
esparsas do seu amigo, e incapaz de distinguir o que era a opinião do
naturalista, do que não passava de uma achega com que ilustrasse a parte
referente a lendas ou dizeres” (Mello-Leitão, 1941, p. 256).

Para a nossa sorte, João de Laet, não "livrou das impurezas" a obra de
Marcgrave, das "superstições, crendices, erros" que a tornam próxima da "zoologia dos
Cronistas" em que se encontram "misturadas observações de agudo senso crítico e
lendas que se formam ao sabor da fantasia” (Mello-Leitão, 1941, p.251). Isto é o que
constitui, segundo as perspectivas historiográficas mais atuais, o traço mais revelador da
obra, o aspecto que mais permite reconstituir o modo de produção de saberes no
período.
Como revisitar, então, isso que é o nosso patrimônio, muitas vezes esquecido, de
textos sobre a fauna e flora do Brasil? Um texto de um cronista do século XVI, deverá ele
ser lido como perfumaria da história? Será ele um mero objeto de curiosidade histórica,
cuja cientificidade perdeu-se quando outros saberes o superaram? Que interesse ele
pode despertar se nada mais de relevante sobre o mundo natural nos tem a dizer, se até
mesmo alguma informação pontual que possua não pode ser tomada com grande
confiabilidade?
Do mesmo modo, que diferença faria, noutro instante, revisitarmos um naturalista
treinado, empenhado numa tarefa já então considerada “científica”, como os que aqui
trabalharam no final do século XVIII? Encontraríamos, é certo, menos “delírios”. Menos
mistura de empírico com simbólico. Mais objetividade. Estaríamos mais confortáveis
diante de um padrão já familiar de escritura científica. Mas não nos sentíriamos
igualmente incomodados pelas ingenuidades, pelas teorias extravagantes, pelo desleixo
diante de alguns temas tão importantes ou, ao contrário, pelo trato exagerado sobre
aspectos irrelevantes?
Nenhuma diferença significativa faríamos, entre uns e outros. Todos seriam
“passado”. Todos seriam ultrapassados. Perfumaria, quinquilharia, saberes mortos.
A História da Biologia tem mostrado, contudo, coisa bem diferente dessa. Tem
mostrado que no século XVI não havia uma confusão entre empiria e fantasia, pois o
mundo não era classificado segundo a existência de seres concretos e abstratos; não se
tratava de impressões esparsas e assistemáticas, pois não havia sido inventado o
levantamento de dados através da observação rigorosamente metódica da natureza; não
se tratava de uma persistência cega na crença de uma certa teoria, pois não havia
26

perguntas sem resposta em número suficiente para que se buscasse uma teoria
alternativa.
Temos que revisitar nosso patrimônio. Para não esquecê-lo? Sim. Mas
principalmente para o vermos em sua própria diferença. É isto que a História da Ciência
tem feito. Tem nos fornecido novos óculos para olharmos sobre o passado da ciência. De
posse desses modelos mais recentes, feitos de materiais mais resistentes e mais leves,
podemos, batendo a poeira, ampliar as letras e perceber melhor o sub-texto desses
velhos livros de nossas bibliotecas.
Para essa releitura, encontrou-se a necessidade de rever a periodização desses
historiadores, especialmente no que diz respeito aos critérios utilizados para a separação
entre as obras do século XVI e as dos séculos XVII e XVIII. Optou-se aqui pela adoção
de uma distribuição distinta da investigação biológica em geral, do mundo renascentista
até o início do século XIX, observando-se o modo como os saberes foram sendo
constituídos. Seguiu-se a periodização em três grandes estágios, conforme sugestão de
Michel Foucault em As palavras e as coisas. O primeiro estágio configurou-se entre os
sábios Renascentistas; o segundo, denominado pelo filósofo francês, de período clássico,
emergiu à época da chamada revolução científica do século XVII e conheceu o apogeu
na História Natural do século XVIII; o terceiro, teve sua inauguração na virada do século
XVIII para o XIX, quando configurou-se a Biologia do modo como é praticada até o século
XX18. Acredita-se que isto possibilitará uma interpretação distinta quanto ao papel dessas
primeiras contribuições escritas sobre o mundo natural de nosso país.

18
Sem pretender esgotar o tema, pode-se lembrar que entre os historiadores “clássicos” da Biologia
costuma-se deixar o conhecimento dos séculos XV e XVI numa linha de continuidade e poucos avanços em
relação ao conhecimento medieval (como a História Enciclopédica de Taton que trata o Renascimento como
um período de avanços meramente técnicos ou a de Bodenhheimer onde apresenta-se uma história
absolutamente constinuísta); também não é unânime a passagem da História Natural para a Biologia no início
do século XIX. Como não era intenção debater entre essas diversas abordagens, serão apresentados apenas
os argumentos que corroboram a adoção de uma periodização em três grandes fases distintas.
27

2.2 O Olhar Sobre a Exuberância da Natureza Tropical

O impacto que a natureza tropical causou nos primeiros europeus que aqui
chegaram, nas épocas das viagens de navegação, não foi pequeno. Desavisados da
abundância e da orgia germinativa de nossa fauna e flora, os europeus
surpreenderam-se, e muito, com a quantidade e com a variedade de novas formas e
tamanhos de animais e vegetais.
Os animais desta terra americana são diferentes dos conhecidos na Europa do
século XVI, já, pelo tamanho. Não há por aqui animais muito grandes. Salvo esse a que
os indígenas denominam tapirussu — e cuja lembrança ao tamanho e porte de uma vaca
faz com que os portugueses o tratem por esse nome ou por tapir. Vaca, animal manso,
pelo menos se deixada em paz, não ataca. Uma segunda particularidade da fauna
americana já se faz notar aí, pois a robustez desta vaca ou tapir não está acompanhada
do temperamento das feras conhecidas do europeu. Ao contrário, trata-se de animal dócil
cuja única resistência, quando perseguido, “é a fuga para qualquer lado onde possa
esconder-se” (Thevet, 1944, p. 300).
Os seres vivos são diferentes, ainda, na forma. O que impressiona sobretudo é a
quantidade de novas formas. A variedade das formas vivas, especialmente dos vegetais,
já havia invadido o relato de Cristóvão Colombo. É bem conhecida a destituição das
observações geográficas e náuticas, necessárias aos objetivos econômicos e políticos de
sua expedição, dando lugar à menção incessante às plantas, à sua profusão de formas,
ao modo como preenchem todo o terreno e todos os espaços19. Colombo não cessava de
encantar-se com o esplendor da vegetação fresca e sempre verde. O encantamento
persistirá para os europeus por longo período. A profusão de seres absolutamente novos,
verdadeiramente ocultos, até então, nas terras deste Novo Mundo, não cessará de
despertar a sua curiosidade, desde há muito adormecida por uma imagem de natureza
composta por um conjunto restrito de formas bastante familiares.
Desde a Antigüidade, o número de espécies conhecidas não mudara
significativamente. Aristóteles descrevera algo entre 550 e 590 animais diferentes,
enquanto Teofrasto e Dioscórides, um número semelhante de vegetais e, por 1500 anos,

19
O relato colombiano surpreende porque, como lembra Guillermo Giucci, é “no contexto da
insaciabilidade, não mais do viajante curioso, mas do comerciante e do conquistador europeu
sustentados por incipientes Estados nacionais em ascensão, que chegamos ao Novo Mundo”
(Giucci, 1992, p. 101). Ver também o capítulo II de La naturaleza de las Indias Nuevas em que o
autor Antonello Gerbi explora a atração da fauna e flora sobre Colombo, que “chegam a distraí-lo
por um instante da busca do ouro” (Gerbi, 1992, p. 25).
28

essas foram as principais fontes de conhecimento sobre os seres vivos. Com as viagens
de navegação e a expansão renascentista dos estudos sobre a natureza houve um salto
espetacular no número de espécies conhecidas na Europa ocidental.
Como conseqüência desse encontro com a exuberância da natureza americana
impôs-se a produção de relatos que a apresentassem ao resto do mundo. A tarefa não
era pouca. Era preciso começar procurando pelos nomes com os quais os indígenas
tratavam os animais e vegetais e conhecer a sua origem etimológica. Era preciso
averiguar a utilidade dos seres, distinguir os comestíveis dos venenosos. Era preciso, em
suma, proceder à uma descrição que garantisse aos que não atravessaram o Atlântico
algum conhecimento desta natureza americana.
E o que significa uma descrição dos seres vivos para o homem renascentista? Em
primeiro lugar, é preciso lembrar, houve ali uma introdução de novos seres vivos nos
herbários de plantas e enciclopédias de animais herdados dos antigos. Tratou-se,
mesmo, de uma inserção e não de uma re-interpretação da natureza ou de uma
empreitada para reescrever os antigos compêndios de seres. A novidade, mesmo que
estupenda ou imprevista, não gerou re-elaboração, não causou um abalo no
conhecimento que já se dispunha da natureza. Tratou-se tão somente de acrescentar o
fenômeno novo no conjunto do conhecido, pois a natureza era vista, antes de mais nada,
como um poder fecundo, perpetuamente criador. Num mundo em eterna criação há
sempre lugar para o aparecimento de novas formas20.
Em decorrência disso, um segundo aspecto da descrição renascentista é o de que
cada novo animal ou vegetal observado era comparado às formas já conhecidas do
europeu. As peculiaridades e diferenças seriam assinaladas através da demarcação das
semelhanças. Comparar significa aí que “o exótico torna-se familiar”, que “é o mundo de
casa que se anexa pacificamente aos descobrimentos ultramarinos” (Gerbi, 1992, p. 18).
Não havia discussão quanto à novidade dos seres. Eles eram outros e eram estranhos.
“O animal de que falo, escreve André Thevet do bicho-preguiça, é, em poucas palavras,
tão disforme quanto seria possível crer ou imaginar” (Thevet, 1944, p. 307). A estranheza
permite a introdução da “prática e valiosa distinção categórica de animais como os
nossos e animais distintos dos nossos” (Gerbi, 1992, p. 17). A distinção, introduzida

20
A tese de que a descoberta do Novo Mundo, mesmo que implicando algumas refutações a antigas
verdades, não causou uma ruptura ou uma descontinuidade com o passado é sustentada por discussões de
diversos matizes, como em Sergio B. Holanda, especialmente no cap. II de Visão do Paraíso, que trata da
“trasladação para o Atlântico” de concepções medievais como a do paraíso terreal; T. Todorov em La
conquête de l’Amérique ... trata do olhar que procura ver o que já sabe; G. Giucci, no cap. 5 de Viajantes do
maravilhoso..., discute especialmente a incorporação da América na temática cristã.
29

desde o exótico Oriente de Marco Polo, predispõe à vastidão da empreitada que está
para ser cumprida.
Mas tanto a adição de conhecimentos quanto a comparação através do uso da
categoria das similitudes não implicam em que o saber renascentista constitua-se,
inteiramente, do mesmo modo que os saberes anteriores. Há, concomitantemente,
transformações profundas. A definição desses novos traços e dos modos como foram
interelacionados com a herança da Antigüidade e do Medievo é que têm autorizado
novas interpretações sobre a identidade desse momento fecundo da história ocidental. O
Renascimento não é mais visto em sua relação com o conhecimento clássico, seja pela
perspectiva de vê-lo como um renascer, seja pela de vê-lo como um reformar-se. O
Renascimento é visto hoje em sua positividade, em sua identidade própria. Vejamos um
pouco isso no que diz respeito aos primeiros relatos sobre a natureza do Novo Mundo.
Uma das maiores mudanças que se opera nesse momento diz respeito
justamente ao objetivo com que os seres são observados. Mesmo que o encontro de um
mundo natural extremamente diversificado e abundante estimule a produção de
inventários mais completos, não é a listagem exaustiva de seus representantes o que
norteia o trabalho dos sábios.

“Outros muitos bichos ha nestas partes pela terra dentro que será impossivel
poderem se conhecer nem escrever tanta multidão, porque assi como a terra
he grandissima, assi são muitas as qualidades e feições das creaturas que
Deos nella criou”.
“... ha outras [cobras] muitas na terra, doutras castas diversas, que aqui nam
refiro por escusar prolixidade”.
“... Outros muitos animaes e bichos venenosos ha nesta Provincia, de que
nam trato, os quaes são tantos em tanta abundancia, que seria historia mui
comprida nomea-los aqui todos, e tratar particularmente da natureza de cada
hum, havendo, como digo, infinidade delles nestas partes, aonde pela
disposição da terra, e dos climas que a senhoreão, nam pode deixar de os
haver”.
(Gandavo, 1980, p. 62; 109;109-10).

Será ao longo do século XVIII, principalmente, que a História Natural formulará e


postulará o inventário minucioso e exaustivo dos seres vivos como um procedimento
padrão a ser seguido. No Renascimento, a atenção que se pretende dar à natureza é
movida por um interesse distinto. Importa conhecer a ordem universal que relaciona todos
e cada um dos seres e acontecimentos criados. Desde os minerais aos astros do céu,
dos vegetais aos animais, dos seres visíveis aos invisíveis, dos homens aos anjos,
30

impõe-se a todos a integração numa unidade harmônica, pois a natureza terrena está
inserida no cosmos. Já que “tudo ha na mesma terra” é necessário que se “comprehenda
mais que a differença e a variedade das creaturas que ha dumas terras pera outras”
(Gandavo, 1980, p. 60). É preciso conhecer o seu lugar natural.
As enciclopédias de animais do Renascimento não se pretendem amplas nem
completas. Os relatos da natureza do Novo Mundo são pouco extensos porque o
interesse está centrado não numa enumeração completa, mas na procura de significados
ocultos. O que desvela o pleno sentido de um ser é o complexo das relações que ele
apresenta com todos os demais seres do mundo. As relações entre o macrocosmo,
representado pela esfera dos astros celestes, e o microcosmo, representado pelo homem
como um ser particular, definem ou dizem o que há de importante a se conhecer sobre os
seres. O modo como essas acepções comparecem no relato daquele que investiga os
segredos ocultos da natureza é o da assimilação da diferença à semelhança.

“O tapirussú ... do tamanho mais ou menos de uma vaca, mas sem chifres ...
e pé inteiriço com forma de casco de asno. Pode-se dizer que, participando
de um e outro animal, é semivaca e semi-asno. Difere entretanto de ambos
pela cauda, que é muito curta ..., pelos dentes que são cortantes e aguçados
(Léry, 1980, p. 135).

As semelhanças permitem vislumbrar o mistério oculto da natureza, a verdadeira


essência dos seres que se deve desvelar. Onde encontrar tal essência? Como
reconhecê-la? Para o renascentista, a resposta está numa certa noção de finalidade. Na
confluência com o forte humanismo que se desenvolve no período, são as necessidades
do homem que devem dirigir a investigação do sábio. Conhecer os seres significa
interpretá-los segundo essas necessidades, pois acredita-se que o mundo foi criado para
o bem do homem. "Todos os elementos e bens existentes no universo, desde a lua até o
âmago da terra, parece que foram feitos para o homem. E, na realidade, assim é”
(Thevet, 1944, p. 49). O projeto da criação dos animais e de sua distribuição teve como
“único propósito (...) prestar serviços ao homem” (Thomas, 1989, p. 23).
Conhecer um animal ou vegetal significa tomá-lo como parte do cotidiano humano,
inserido nas práticas de coleta, caça ou pesca, no preparo para a dieta, no
aproveitamento de suas partes ou dos produtos que geram. A utilidade do animal ou do
vegetal sobrepõe-se à descrição de sua aparência. É pelo uso que são oferecidos alguns
elementos de identificação e de organização para o conhecimento. “Na descrição dos
animais silvestres do país ... começarei pelos que servem de alimentação” (Léry, 1980, p.
31

135). O agrupamento e distribuição por similaridade não determina, ainda, o modo de


apresentação ou a classificação dos seres.
Lembre-se que nem toda finalidade é expressa como algo de eminentemente
prático. Há propósitos morais, religiosos, estéticos. Além dos hábitos e paixões próprias
de um animal, o simbolismo que se lhe atribui revela exemplos a serem seguidos,
modelos em quê inspirar-se: astúcia ou coragem, cuidado com a prole ou estratégia de
luta. O canto e a perfeição das formas servem à contemplação do belo.
O utilitarismo quinhentista não rege apenas o modo da descrição, mas legitima o
que se define como o campo da investigação21: “nam tratarei senam somente daquellas
de que se pode notar alguma cousa e que na terra mais estimadas dos Portuguezes e
Indios que habitão estas partes ... quiz sómente particularizar estas mais notaveis, e
passar com silencio por todas as outras, de que se deve fazer menos caso” (Gandavo,
1980, p. 111; 114). Não se pode esperar que esses primeiros relatos tivessem a
preocupação de arrolar a série completa de animais e vegetais dos trópicos.
Já foi mencionado que, diferentemente da História Natural posterior, a busca pelas
semelhanças entre os seres vivos no Renascimento está voltada à procura de sua
natureza íntima, de sua essência, a que se pode chegar através de sua finalidade. Se o
campo de visão é vasto o bastante para abarcar tudo o que se interpõe desde a lua até o
âmago da terra, o olhar é dirigido para atravessar os seres e trazer de seu interior o que
importa ser conhecido.

“Porquanto a natureza, mãe de todas as coisas, sempre refez ou guardou em


si mesma os mais preciosos e excelentes dons de sua obra ... Na arte, dá-se
o contrário. Os mais sábios artistas ... quando se punham a pintar, gravar ou
ornar uma barca ou estátua, só à parte externa davam brilho, ou guarneciam,
deixando a outra parte, a interna, rude e mal-acabada. Com a natureza,
procede-se diversamente. O corpo humano é um exemplo, pois todo o artifício
e excelência da natureza no seu interior se oculta (o exemplo aplica-se,
também, a qualquer outro corpo que não seja o do homem).
O superficial nem sequer se pode comparar com o que vem do íntimo, pois a
perfeição e acabamento do exterior depende dos elementos que dentro dele
se encontram. A terra, do mesmo modo, mostra por fora uma face triste e
melancólica, o mais das vezes recoberta de pedras, espinhos, cardos ou

21
O “utilitarismo” é uma “doutrina moral e política da busca da felicidade máxima para o maior número de
pessoas. Sendo sua origem mais remota (...) Epicuro (c. 341-270a.C.), esta doutrina foi desenvolvida por T.
Hobbes (1588-1679), D. Hume (1711-1776), Helvétius (1715-1771), J. Priestley (1733-1804) e outros
autores,embora sua forma mais elaborada ocorreu com J. Bentham (1748-1832). Para Bentham representava
uma ética naturalista e científica, que convertia os juízos subjetivos em objetivos, e os qualitativos em
quantitativos, por meio de um cálculo de prazeres e dores, pelo qual o bem e o mal podiam ser medidos
através da tendência das ações para a produção de felicidade” (Diccionario de Historia de la Ciencia, 1986, p.
580).
32

coisas semelhantes; mas, se o lavrador abre-a com a relha ou a charrua,


encontrará no seu seio esse excelso bem, prestes a recompensá-lo dos
esforços, qual seja a virtude vegetativa da raiz e do tronco da planta
defendida externamente por dura casca, algumas vezes simples, outras
dupla: a mais preciosa parte do fruto, — aquela que mantem o poder de
reproduzir-se e criar outro ser semelhante, — acha-se encerrada no seu mais
seguro lugar. Está no centro" (Thevet, 1944, p. 49).

Pode-se perceber claramente alguns elementos que compõe essa forma


característica de investigar o mundo. A tarefa fundamental é a de desvelar algo de oculto
dos seres. Há até mesmo aí bem configurado um discurso que desautoriza a descrição
dos seres através de suas feições externas. Mais do que descrever o que é visível,
trata-se de relatar o invisível. As feiçoões externas são meras assinalações, marcas,
assinaturas, deixadas pela Criação para que se torne possível a decifração dos seres.
Uma conseqüência disso é que a atenção dos sábios fica determinada por um horizonte
de percepção em que os seres que se oferecem à análise ainda não se constituem como
objetos propriamente empíricos: unicórnios, dragões, entes mistos de homem e animal,
são, todos, observados.
33

"Confesso — mesmo de acordo com a glosa 13 do livro de Isaias — que


existem certos monstros de forma humana. Os satyros por exemplo, que
habitam os bosques e são peludos como os animais ferozes. E disso estão
cheios os escritos dos poetas, — desses satyros, faunos, nynphas, dryades,
hamadryades, oreades e outras sortes de monstros que desapareceram com
o tempo, quando então o espírito maligno, tomando mil aspectos, porfiava por
todos os meios, em iludir a humanidade. Mas, hoje,que Nosso Senhor houve
por comparixão de comunicar-se à humanidade, tais espíritos malignos foram
rechassados. Deus transmitiu ao homem o poder contra os mesmos,
conforme o testamento das Santas Escrituras. Entretanto, ainda se encontram
na Africa certos monstros disformes ..." (Thevet, 1944, p. 193).

No elenco de seres vivos das obras dos sábios quinhentistas, assim como nas
Histórias Naturais da Antigüidade, exceção feita à Aristóteles, e nos bestiários medievais,
está incluso todo ser mítico cujo reconhecimento pode atribuir-se unicamente a
referências feitas por outrem. As tradições orais, o testemunho de um “especialista”,
como um pescador ou um lavrador, o lendário popular, são fontes fidedignas de
conhecimento ao lado dos textos dos antigos filósofos (como mostra a procura acirrada
no século XV por novos textos clássicos e novas traduções) e das Sagradas Escrituras22.

“... ouvi contar aos velhos das aldeias que, nas matas, são às vezes
assaltados e encontram dificuldades em se defender a flechadas contra uma
espécie de jacarés mostruosos que, ao pressentir gente, deixam os caniçais
aquáticos, onde fazem o seu covil. A esse respeito, além do que Plínio e
outros referem dos crocodilos do Nilo, no Egito, diz o autor da ‘História Geral
das Índias’ que matou crocodilos perto da cidade de Panamá, com mais de
cem pés de comprimento, o que é coisa quase incrível” (Léry, 1980, p. 135).

“... e tudo se pode crer, por dificil que pareça: porque os segredos da natureza
nam foram revelados todos ao homem, pera que com razam possa negar, e
ter por impossivel as cousas que nam vio nem de que nunca teve noticia”
(Gandavo, 1980, p. 120).

Existe uma mistura entre a erudição e a magia. O pensamento mágico é o que


traz à luz as similitudes sutis entre as coisas do mundo. A erudição aparece na
necessidade de interpretar a herança da Antigüidade, pois ela se confunde com a própria

22
As enciclopédias medievais obtém sucesso ainda “durante os cinqüenta anos que seguem o aparecimento
da imprensa” (Febvre & Martin, 1991, p. 370). Mas ganham maior relevo entre os humanistas, as publicações
incessantes, desde o século XV, dos mestres da Antigüidade clássica grega e latina como Aristóteles,
Teofrasto, Plínio, Galeno, Hipócrates, Euclides e Ptolomeu. Estes textos do domínio científico são colocados à
disposição de todos aqueles que sabem ler, através de “novas edições e novas traduções que vinham
substituir as dos séculos XII e XIII”, embaraçadas às glosas e comentários da escolástica (Febvre & Martin,
1991, p. 390). O desprezo pelos autores medievais opera “uma verdadeira conspiração do silêncio, enquanto
34

natureza:

"A verdade de todas essas marcas — quer atravessem a natureza, quer se


alinhem nos pergaminhos e nas bibliotecas — é em toda a parte a mesma:
tão arcaica quanto a instituição de Deus" (Foucault, 1981, p.50).

citam sem cessar os clássicos, a fim de ostentar a própria erudição” (Febvre & Martin, 1991, p. 390).
35

2.3 A Relação Homem-Natureza

Uma natureza assim criada para o homem não oferece limites à exploração, pois
a “autoridade humana sobre o mundo animal era (...) virtualmente ilimitada” (Thomas,
1989, p. 26). Nada mais verdadeiro nestas terras de abundância infinita. Não
encontramos na descrição da natureza americana, nos primeiros tempos da colonização
européia, uma preocupação com a natureza tomada em si mesma. Estes primeiros
descritores de nossas riquezas naturais traziam consigo o antropocentrismo definidor das
relações homem-natureza que perdurou por todo o Renascimento. Veremos adiante
como as investigações da História Natural, produzindo um conhecimento crescente de
seres que não mantém qualquer relação com os homens, que não lhes trazem mal ou
bem algum, irão deixar de sustentar esse utilitarismo antropocêntrico.
Há, é certo, ações “conservacionistas” em curso no XVI: há atos como o de 1534,
em que a Coroa decreta que todas as árvores de pau-brasil eram de propriedade real
(Dean, 1996 p. 68); como o de 1605, em que cria a função de Guardas Florestais e
institui a penalidade de morte para quem praticasse a extração ilegal do pau-brasil (Dean,
1996, p. 64). Mas, nos dois casos, trata-se de uma iniciativa para manter o monopólio
comercial. Não é a natureza que está ameaçada mas a sua prestação de benefícios ao
homem. Warren Dean cita muitíssimos exemplos disso em sua monumental História da
Mata Atlântica. Nem a Coroa, nem os colonos, nem os jesuítas, nem mesmo os índios
tupis escapam de uma mesma visão exploradora da natureza: queimam-na à mais leve
suspeita de malária (Dean, 1996, p.69), exploram suas espécies até a extinção, como a
arara, (Dean, 1996, p. 65), transformam-na na morada do diabo, conforme a pregação
jesuítica (Dean, 1996, p. 76).
Os relatos não trazem apenas a dimensão do maravilhoso. “A América aparece,
no relato de Hans Staden, não só desmitificada em relação ao modelo do maravilhoso
que a recobria e deformava, como reconhecida em sua singularidade e em sua diferença
radical com o referente europeu” (Giucci, 1992, p. 215). O canibalismo “colocava de modo
quase automático as noções de selvageria, primitivismo, bestialismo e barbárie ... já era
suficiente para legitimar a projeção de uma série de vícios incuráveis sobre o índio
americano ... A exposição de uma realidade americana pobre e inclemente com o viajante
europeu esclarecia a natureza deformadora do relato do maravilhoso. E o acúmulo de
informações provenientes do Novo Mundo ameaçava paulatinamente a hegemonia do
arquétipo associador de remoto e maravilhas” (Giucci, 1992, p. 231-2). Há enlevo e
desapontamento. A imagem não deve ser deturpada.
36

Há também o desinteresse. A frieza empírica ou utilitária dos portugueses já foi


apontada como uma razão do pouco estímulo à ciência no período. É freqüente
pensar-se que “... somente a partir da segunda metade do século XVIII, com o
abrandamento talvez das rígidas leis que proíbem à colônia qualquer veleidade de
cultura, vamos assistir aos primeiros indícios de uma curiosidade latente pelas ciências
de observação” (Oliveira Pinto, 1956, p. 100-1). Pouco procuraram conhecer e explorar
23
dos frutos desta terra, a não ser do que aparecesse com forte apelo comercial .
“Conquanto os cronistas arriscassem provar os frutos nativos, não os achavam tão bons
quanto os da casa” (Dean, 1996, p. 72). Os portugueses trouxeram sementes e animais
cujo plantio e domesticação conheciam e trataram de garantir daí a sua sobrevivência. O
resultado foi que ao longo do primeiro século o paraíso tropical da diversidade
reconhecida recebeu mais do que doou à europa espécies transplantadas24!
Assim, a novidade não tardou a desinteressar nossos colonizadores, mais
preocupados com a minimização das diferenças a fim de tornar menos dificultosa a
adaptação ao modo de vida neste ambiente tropical. O resultado disso para o
conhecimento de nossa natureza viva foi claro. No final do primeiro século, a “Mata
Atlântica ainda era quase totalmente desconhecida ou inobservada” (Dean, 1996, p. 82).
O mesmo vale para os outros ecossistemas brasileiros. A razão disso, contudo, não se
explica unicamente pelos interesses econômicos da Coroa portuguesa25. Se é certo que
nossos primeiros cronistas não são homens dedicados aos estudos da natureza, mas
missionários, colonizadores ou “feitores”, também é certo que lhes coube a produção dos
primeiros documentos sobre nossa fauna e flora. E essa produção não foi desconectada
de seu tempo. A cultura que trouxeram em sua bagagem, mais ou menos erudita, mais
ou menos popular, foi a cultura do homem renascentista. E foi como homens

23
“Não faltava aos portugueses, práticos e de inclinações empiristas, um grau de curiosidade quanto aos
domínios naturais que haviam conquistado, mas parecem ter concentrado quase toda essa atenção em suas
colônias asiáticas, talvez porque aceitassem com mais prontidão informações de sábios indianos e chineses
vestidos de seda que de pajés tupis botanicamente experientes, mas nus e iletrados” (Dean, 1996, p. 100).
Deve-se mencionar que uma opinião oposta é defendida fervorosamente ao longo de todo o artigo citado de
Carlos França. Segundo a opinião desse próprio “naturalista luso”, o seu artigo é rico o “bastante para
demonstrar que os portugueses, logo no seculo XVI, deram á sua colonisação uma feição scientifica muito
accentuada” pois, entre outras coisas, “trataram de divulgar, por escripto, o que de famoso havia na terra
admiràvel que descobriram” (França, 1926, p. 128).
24
Trata-se de uma suposição; ainda há pouco estudo sistemático disto.
25
O Prof Warren Dean insinua este tipo de visão, ao afirmar, à pág. 72, que o “interesse limitado” pela
vegetação e vida animal aparecia claramente nos primeiros relatos do Brasil-Colônia. Ao afirmar que “suas
listas não eram nem extensas nem detalhadas. Como conquistadores, ficaram em grande parte imunes
àquela curiosidade relativa ao mundo natural que, na época, despertava na Europa”, antecipou a prática da
História Natural européia em quase dois séculos. Como vimos aqui, não foi no XVI, mas apenas timidamente
no XVII e enfaticamente no XVIII que a investigação do mundo natural adotou a prática de inventariar ampla e
exaustivamente os seres vivos. Talvez também isso nos faça ver o irrealismo dos textos dos primeiros
37

renascentistas que olharam para a natureza tropical, do mesmo modo que outros ou eles
próprios olhavam para a natureza em seus países europeus de origem. E o que estava
definindo o modo como a natureza era então investigada, e, portanto, o que estava
definindo o alcance obtido por essa investigação, era essa mistura muito particular de
magia e empiria que guiava o olhar no período.
Outra coisa se fará nos séculos XVII e XVIII26.

cronistas com menos assombro que o Prof. Dean expressa à p. 59 de seu A Ferro e Fogo.
26
“Apenas na metade do segundo século de colonização no Brasil foi que as florestas brasileiras, totalmente
exóticas e imponentes, tornaram-se um hobby menor dos jesuítas, agora em condições de considerá-las
isoladas de seus temíveis, mas em grande parte exteminados, habitantes humanos. Os desenhos de frei
Cristóvão de Lisboa, residente no Maranhão no final dos anos de 1620, e que retratavam peixes, pássaros e
plantas, são os mais antigos que sobreviveram. Simão de Vasconcelos, que morou na Bahia, em sua crônica
escrita em 1663, objetivou mostrar que o Brasil não era inferior aos outros três quartos do mundo, uma idéia
que havia rancorosamente grassado entre os europeus depois de seu entusiasmo inicial por aquilo que
haviam fantasiado como um paraíso terrestre” (Dean, 1996, p. 100). “A descrição da floresta feita por
Vasconcelos, no entanto, ocupa apenas umas poucas páginas de seus massudo livro, cujo objetivo principal
era descrever a ‘missão heróica’ de sua ordem de arrancar o Brasil do poder do inferno ... Esses pedacinhos
de apreciação da natureza, de fato, são muito repetitivos e se encontram esprimidos entre longas e
minuciosas narrrativas das idas e vindas de missionários ... Esses esboços e relatos eram esforços amadores
que não contradizem a suposição de que as autoridades portuguesas, pelos menos em dois séculos e meio,
não se preocuparam muito com a impressionante biota da esplêndida colônia que havia caído em suas mãos.
Em contraste, a breve ocupação holandesa das capitanias do Nordetes, de 1626 a 1649, resultou na
publicação de brilhantes tratados de história natural, compilações de plantas e animais e um tesouro vívido e
precioso de desenhos botânicos e zoológicos que ainda possuem valor inestimável para biólogos atuais”
(Dean, 1996, p. 101)
38

3 A BUSCA DA ORDEM NA NATUREZA E DO MÉTODO PARA A

HISTÓRIA NATURAL

“Essa fermentação intelectual, agindo em todos os


sentidos por sua própria natureza, propagou-se
com uma espécie de violência a tudo o que lhe era
oferecido, como um rio caudaloso que rompeu
seus diques”.
(D’Alembert, Elementos de Filosofia,1759)

Sabe-se que desde o final do século XVII já se utilizava o termo “Revolução


Científica” para denotar as grandes mudanças ocorridas na Matemática, Física e
Astronomia devido aos trabalhos de homens como Galileu Galilei, Johanes Kepler, René
Descartes, Isaac Newton27. Tradicionalmente, a propagação dessa “Nova Ciência” para
os outros campos do saber foi considerada gradual e tardia. Diz-se da Química, por
exemplo, que apenas no final do século XVIII conheceu a sua revolução e transformação
na Química moderna. Um “atraso” semelhante ou até maior teria ocorrido no domínio do
estudo dos seres vivos, que só teria engendrado a Biologia moderna nos anos iniciais do
século XIX, com o surgimento de suas disciplinas especializadas e de suas duas teorias
“unificadoras”: a teoria celular e a teoria evolucionista.
No entanto, já há algum tempo, a historiografia vem mostrando que essa
interpretação é decorrente do forte reducionismo impresso à História da Ciência em
correspondência ao movimento da própria ciência de reduzir a Biologia ao modelo
matemático. A superação desse ideal e a aceitação de que a investigação da natureza
viva pudesse constituir-se autonomamente contribuiu ao início de uma nova interpretação
da História Natural realizada ao longo dos séculos XVII e XVIII28.

27
Como se pode depreender da menção de trabalhos que se estendem num longo período, desde Galileu a
Newton, adota-se aqui a noção de que a Revolução Científica como um fenômeno resultante de várias e
graduais modificações cujo efeito cumulativo produz, num período longo, um quadro “revolucionariamente”
distinto das épocas anteriores. Há discussão sobre longas revoluções em Debus, 1991 e em Martins, 1994.
28
O termo “História Natural” foi usado pela primeira vez em inglês em livro de John Maplet, A verde floresta,
de 1576 (Rossi, 1985, p. 53). O The Oxford Dictionary acusa os usos mais remotos do termo em 1567 e em
1585: “T. Washington tr. Nicholay’s Voy. II. x. 43b, Plinie, in his naturall history writeth [etc]”.
Ressalte-se que o termo “História” não tem aí o significado do da disciplina que investiga o passado, mas
significa “conhecimento” , “estudo”, enquanto “natureza” deve ser tomado no sentido aristotélico “daquela
parte do mundo físico que é formada e funciona sem o artifício do homem” (Hankins, 1985, p. 113). O Oxford
39

Naturalmente, o estudo dos animais, vegetais e minerais não ficou alheio ou


imune ao turbilhão que assolou as Matemáticas e a Física. Expressou, ao contrário, um
grande desenvolvimento29. Ao modo da consciência entre os filósofos naturais dedicados
à Física ou Astronomia do século XVII, os investigadores da natureza mais diretamente
ligada ao mundo vivo também tomavam-se a si mesmos como testemunhas oculares de
uma profunda reformulação que se operava no conhecimento30.

John Ray (1627-1705), um dos maiores expoentes da História Natural da


Inglaterra do século XVII, resume bem essa consciência, presente desde as suas
primeiras obras da década de 1660, no famoso Prefácio do Synopsis Britannicarum (de
1690)31:

“Sou grato à Deus por ter sido Seu desejo fazer-me nascer nesta época em

Dictionary define “história natural” como o trabalho que lida com as propriedades dos objetos naturais, plantas
ou animais (Oxford Dictionary, 1989, v. X, p. 244-45). Ver nota 3 sobre as divisões e denominações das
ciências durante o Iluminismo.
29
“Essa imagem das ciências naturais seguindo as pegadas de sua contraparte física deriva das
interpretações mais antigas sobre a Revolução Científica, que implicam em que a busca por descrições
minuciosas iniciadas na Renascença foi meramente produto de novos instrumentos como os microscópios.
Não teria ocorrido nenhuma transformação conceitual equivalente àquela que ocorrera na Astronomia e na
Física. Agora está claro que há limitações maiores para a validação dessa interpretação. A busca por uma
Biologia mecanicista só trouxe avanços limitados nos séculos XVII e XVIII, mas os naturalistas que
pretendiam descrever e classificar o mundo de acordo com novos princípios certamente tomavam-se a si
mesmos como engajados numa atividade revolucionária” (Bowler, 1992, p. 86).
30
Lembre-se que “Física” referia-se à ciência de todos os efeitos produzidos pela Natureza, incluindo-se tanto
os fenômenos vivos como os não vivos. “Medicina e Fisiologia, assim como os estudo do calor e do
magnetismo, eram parte da Física. No século XVII o médico e o físico eram a mesma pessoa. Além disso,
muito do que hoje denominamos Física era chamado de ‘Matemáticas’ no século XVIII (...) Astronomia, Ótica,
Estática, Hidráulica (...) Geografia, Horologia (concernente a relógios), Navegação, Agrimensura e
Fortificação”. E o que “chamamos hoje de ‘ciência’ era mais comumente chamado de ‘Filosofia Natural’” e que
não deve ser confundido com “História Natural” , termo amplo que durante o Iluminismo compreendia os
estudos da ‘Zoologia’, ‘Botânica’, ‘Geologia’ e ‘Meteorologia’, termos, de resto, já familiares no período. A
Filosofia Natural estava associada intimamente à Filosofia, Metafísica, Ética e Teologia, e dizia respeito à
faculdade da razão; a História Natural dizia respeito à faculdade da memória (Hankins, 1985, p. 11).
31
John Ray ilustrará aqui o naturalista do século XVII. Na medida em que a sua escolha foi um tanto
arbitrária, pois não foi por uma comparação sistemática à obra de seus contemporâneos, nem por um vínculo
direto com os naturalistas Arruda da Câmara ou Alexandre Rodrigues Ferreira, a não ser pela temática
estudada (principalmente a Botânica), cumpre destacar algumas razões que justificam destacá-lo no período:
John Ray foi um dos naturalistas mais ativos dos primeiros tempos da Royal Society; foi dos pioneiros na
observação e descrição minuciosa da flora britânica e seu trabalho é significativo dentro da história da
taxonomia; a obra que traz suas idéias acerca do papel da ciência na demonstração da existência e do poder
de Deus foi objeto de diversas publicações que se difundiram século XVIII à dentro, repercutindo em torno do
“argumento do desígneo” que será tematizado adiante.
Como não se trata, contudo, de mencioná-lo a título de exemplo de uma dada prática científica, não foi feito
um estudo de seus originais. Contou-se com a preciosa biografia de Charles E. Raven cujo estudo sobre John
Ray persiste, até hoje, como fonte de consulta altamente recomendada e universalmente utilizada: “The
definitive study is the biography by Charles E. Raven, John Ray, Naturalist, 2nd ed. (1950,
reissued 1986)” (Ray, 1997).
Só encontramos em microfilmes nos Landmarks do CLE/UNICAMP a obra de Willughby, Francis. The
ornithology of F.W. of Middletown in the County of Warwick Esq.; In three books. Wherein all the birds hitherto
known ... are accurately described. Trad. e ed. John Ray. London, J.Martyn, 1678.
40

que a vã sofística, que usurpou o título de filosofia e, segundo minha


memória, dominou as escolas, caiu no desprezo, e em seu lugar emergiu uma
filosofia solidamente construída sobre as fundações da esperimentação (...) É
uma época de nobres descobertas, do peso e elasticidade do ar, do
telescópio e microscópio, da circulação incessante do sangue através das
veias e artérias, das glândulas lactíferas e do duto biliar, da estrutura dos
órgãos da geração e de muitos outros — demais para mencionar: os
segredos da Natureza têm sido desvelados e explorados: uma nova Fisiologia
foi gerada. É uma época de progresso diário em todas as ciências,
especialmente na história das plantas” (Ray, apud Raven, 1950, p. 251).

Em que consiste essa Nova Ciência? O que a distingue do saber renascentista?


Uma das primeiras características que se pode relacionar é o abandono do aspectos
simbólicos da natureza em troca de um comprometimento com as suas propriedades
“observáveis”. O naturalista seiscentista John Ray “não terá nada que ver com a doutrina
das assinaturas, muito menos com a astrologia e alquimia” (Raven, 1950, p. 9). Herdeiro
das doutrinas de Francis Bacon (1561-1626), Ray mantém em todo o seu trabalho um
forte compromisso metodológico com a observação e a experimentação. A sua marca
mais profunda é a “rejeição do lendário e do irracional (...) da mitologia e fábulas” (Raven,
1950, p. 10), eliminando a espiritualização e concentrando-se numa análise impessoal da
natureza. Havia também uma pressão por avanços teóricos que alcançassem os
resultados práticos obtidos pelo desenvolvimento técnico nas diversas áreas do
empreendimento humano durante a Renascença, avanços que dependeriam de uma
“purificação” metodológica.
Trata-se então da busca por evidências fornecidas através da observação direta
dos seres e dos fenômenos da natureza. Isso acarreta uma alteração profunda em
relação ao Renascimento quanto ao uso e valoração das fontes de informação. Ler os
antigos implica numa revisão minuciosa das conclusões ali traçadas tomando-se por base
a evidência fornecida pelos sentidos. Na determinação do conjunto das evidências
válidas não se encontra mais o “argumento de autoridade”, pelo qual tomava-se como
verdadeiro o testemunho das Escrituras e da Tradição, ou seja, de um mestre do
passado32. Da mesma forma, os relatos dos viajantes, tão abundantes nas enciclopédias
e herbários medievais deveriam passar por crivo semelhante: fatos conhecidos dos
antigos, descobertas novas trazidas pelos viajantes, tudo deveria submeter-se ao teste da
observação e descrição minuciosa por meio de um imenso esforço sistemático.

32
Aí residiu, provavelmente, a maior fonte da intolerância da Igreja frente à Galileu. Mais do que as hipóteses
que ele levantou foi a sua nova concepção de verdade, independente das Sagradas Escrituras, que abalou o
clero. Galileu apontava para a verdade que podia ser vista na natureza por todo aquele que soubesse decifrar
41

Considera-se, freqüentemente, que a História Natural deve seu desenvolvimento


ao “mecanicismo”, embora tenha apenas muito lentamente adequado-se a ele. O termo
mecanicismo expressa a visão de que todos os fenômenos e seres do universo, inclusive
o organismo humano, funcionariam como uma máquina. A noção de “homem-máquina”,
já era conhecida dos gregos, mas teve grande destaque na pesquisa biológica da
modernidade desde a filosofia mecanicista de René Descartes (1596-1650). Segundo o
modelo do animal-máquina, para se conhecer um organismo, bastaria desmontá-lo e
explorá-lo em suas partes constitutivas, da mesma forma que um relojoeiro procede no
exame do relógio.
Em Ray, talvez a “religiosidade ... a fé de que poderia ver a vida uniformemente e
como um todo” (Raven, 1950, p. 8), o leva a concluir que não é a fragmentação dada pela
observação das partes de um organismo que o torna melhor conhecido e compreendido,
pois com esse movimento os seres perderiam a sua condição essencial de “totalidades
indissolúveis”. Para descrever uma planta, Ray nega-se a deter-se num único caráter e
afirma a necessidade de se tomar toda a estrutura da planta. Com isso, afirmava ter
desenvolvido um método natural de classificação, pois refletia a ordem objetiva da
natureza. Isso seria uma resistência ao pensamento predominante que depositava no
mecanicismo toda a possibilidade de desenvolvimento científico. Esse tipo de reação à
aplicação do mecanicismo no estudo dos animais e vegetais é que foi tomado como a
razão do atraso sofrido pela História Natural. Daí não é de se estranhar que se tenha
interpretado que toda a revolução científica tivesse passado ao largo da História Natural.
Além disso, o sentido de temporalidade curta, de acontecimento abrupto,
subentendido algumas vezes no termo “Revolução”, faz esquecer as resistências. Na
verdade, embora a Nova Ciência tenha surgido com uma força crescente, ela não foi
aceita nem implantada de forma tranqüila e imediata.
Na Universidade de Cambridge de John Ray a oposição era numerosa e influente.
“Não se pode esquecer que não havia um único laboratório de qualquer tipo no [Trinity]
College ou na Universidade” na época em que Ray “procurou em vão por toda a
Universidade um mentor que o ajudasse no estudo das plantas; que a Química e
Anatomia eram praticadas por ele e seus amigos na privacidade de seus próprios
aposentos; e em 1660 ele deplorava a falta de interesse em ‘Filosofia Experimental e na
engenhosa ciência matemática’“ (Raven, 1950, p. 28). No próprio berço da Física
Experimental, Ray ainda precisava defender o estudo da natureza no mesmo Prefácio de

a limpidez e univocidade de sua linguagem tal qual a linguagem matemática.


42

1690:

“Há os que condenam o estudo da Filosofia Experimental como se fosse uma


mera especulação e denunciam na paixão pelo conhecimento uma tarefa
desgostosa à Deus (...) Como se o Deus Poderoso fosse ciumento do
conhecimento do homem. Como se ao ter-nos formado pela primeira vez Ele
não tivesse percebido claramente o quão longe poderia penetrar a inteligência
humana (...) Aqueles que desdenham e desacreditam no conhecimento
devem lembrar que é o conhecimento que nos faz homens superiores aos
animais e inferiores aos anjos, que nos oferece a virtude e a felicidade que os
animais e o irracional não podem alcançar” (Ray, apud Raven, 1950, p. 251).

Percebe-se então que o momento de John Ray ainda é marcado pela transição,
pela coexistência de tendências fortes e distintas entre si. É certo que havia, inclusive
“alguns dentre seus melhores amigos, aqueles que de tão entusiasmados com a
novidade e o valor da ciência, pregavam o repúdio a todo o conhecimento anterior”
(Raven, 1950, p. 23). Mas em Ray, ainda que seu trabalho tenha inaugurado uma nova
era para os estudos botânicos, seu respeito à Aristóteles, sua insistência em evitarem-se
julgamentos apressados sobre a contribuição dos antigos, sua posição religiosa, sua
concordância, mesmo que discreta, com a perseguição às “artes demoníacas”, sua
permanência no uso do latim, ilustram uma posição moderada ainda significativa no
período e que irá desvanecer apenas no século XVIII. É pelo equilíbrio entre a grande
habilidade botânica e a imunidade frente aos destemperos da novidade que o irá elogiar
o naturalista Gilbert White (1720-1793) em carta a Barrington de 1º de agosto de 1771:

“Os sistematas estrangeiros são, eu o percebo, vagos demais em suas


diferenças específicas; o que é quase universalmente constituído por um ou
dois traços particulares, acarreta uma descrição em termos gerais. Mas nosso
conterrâneo, o excelente Sr. Ray, é o único descritor que transmite uma idéia
precisa em cada termo ou palavra, mantendo sua superioridade sobre seus
seguidores e imitadores a despeito da vantagem de novas descobertas e
informação moderna” (White, 1993, p. 126).

O que foi a sua contribuição à botânica? Ray foi dos primeiros a fornecer um
conceito biológico para “espécie”, mais próximo ao sentido moderno; foi “soberbo na
descrição, no relato conciso das características das plantas, aves, peixes e insetos... tinha
o ideal de habilitar o leitor de identificar com precisão cada espécie que ele descrevia”
(Raven, 1950, p. 32). Ray, foi o primeiro a utilizar caracteres estritamente morfológicos33.

33
Giles Denis aponta uma retomada “em detalhes” das Cartas Filosóficas de Ray pelos escritores da
43

É esta a página virada para o século XVIII, quando os sistemas de classificação dos seres
vivos seguirão desenvolvendo-se segundo as semelhanças morfológicas, rompendo
definitivamente com o velho interesse pela importância médica e simbólica das plantas e
animais. Importava conhecer não apenas as espécies úteis mas o conjunto mais amplo
possível da natureza. Em conjunto com John Willughby, em 1662, decide investir numa
descrição sistemática de todo o mundo orgânico, ou seja, planeja elencar exaustivamente
a série completa de seres. O naturalista inglês John Ray eleva estrondosamente o
número de “espécies” conhecidas para 18.655, no seu Historia Plantarum (1686-1704) —
desde Aristóteles e Teofrasto 15 séculos passaram-se sem que houvesse mudado o
número de espécies conhecidas: até a época da criação da primeira cadeira de botânica,
numa escola médica em Pádua, no ano de 1533, havia, ainda, entre 500 e 600 espécies
de plantas descritas, conforme a versão latina, de 1483, do Das Plantas (iv a. C.), de
Teofrasto, ou a de 1478, do Matéria Médica (I d.C.) de Dioscórides. O quadro começa a
mudar no século seguinte: em 1623, o Pinax, herbário de Caspar Bauhin, elencava 6.000
espécies, cinco décadas antes do trabalho de Ray. Os números também saltam
significativamente para os animais: Lineu elencará 4.236 tipos em 1758; em 1859,
Agassiz e Bronn contarão 522.400 animais.
Ray publica o primeiro catálogo local de plantas de um distrito efetuado na
Inglaterra, em 1660, o Catalogus plantarum circa Cantabrigiam nascentium, contendo 626
espécies em ordem alfabética, sinonimias, descrição de sua estrutura e de novas
espécies. Essa obra marca o início de uma atenção, que se desenvolverá em finais do
século XVIII, não apenas ao inventário mais amplo e completo, mas à coleta e
observação direta das plantas em seu ambiente natural, conforme discute no prefácio
supra citado à flora britânica:

“(...) para esse fim têm devotado toda energia não apenas os indivíduos
particularmente mas os príncepes e magnatas, ansiosos por encontrar novas
flores para seus jardins e recantos e por enviar coletores de plantas às Índias
distantes: eles viajaram através de montanhas e vales, florestas e campinas,
explorando cada canto da terra e trazendo à luz e à nossa vista tudo o que
está escondido. Certamente podemos esperar por coisas esplêndidas
daqueles que possuem tão abundantes oportunidades de procurar, cultivar e
descrever plantas, quando lembramos quão freqüentemente a falta de

Enciclopédia. O verbete “quantidade de plantas” afirma ser necessário discernir entre as qualidades
essenciais e “específicas” que caracterizam as plantas; “M. Ray observa que a principal diferença entre as
supostas espécies está na forma e sabor do fruto, porém deve-se atribuí-la também a características distintas
do terreno e dos métodos de enxerto”. A partir dessa noção os botânicos do final do XVIII irão elaborar um
programa agrícola baseado na intervenção humana sobre o modo de se cultivarem as plantas.
44

material neutraliza e frustra os esforços” (Ray, apud Raven, 1950, p. 251).

O naturalista John Ray surge numa época movida por um “amor autêntico às
coisas vivas, animais, pássaros, insetos e plantas ... gostava de ver seu crescimento,
assistir o desenvolvimento das sementes e transformação da pulpa na crisálida; e nunca
perdeu seu sentido de continuidade e totalidade do processo. Ele orgulhava-se de vê-las
vivas e em seus locais naturais” (Raven, 1950, p. 7). Afasta-se o quanto pode do
gabinete e percorre as trilhas dos campos e matas, e lastima muito, quando em idade
mais avançada, torna-se impedido das viagens que o levavam a observar as plantas em
seu próprio ambiente34.

No século XVIII, a ciência já interessa a um público maior que os das


Universidades, uma vez tornada mais acessível por meio do uso das línguas nacionais.
No final do século XVII, o próprio Ray reclamava de não haver mais um editor confiável
para um livro em latim, língua que passa a ser considerada morta e de interesse
exclusivo às escolas. As transformações teriam se cristalizado a ponto de que “na
segunda metade do século XVIII, a idéia de uma Revolução Científica afetando todos os
aspectos das ciências naturais tornara-se um lugar comum” (Hankins, 1985, p. 2).
A filosofia desse período é comumente denominada de “Filosofia da Ilustração” ou
“Iluminismo”35. Tratava-se de um compromisso com a “razão”, com o uso de métodos
“racionais” conforme o modelo criado nas Matemáticas. Eleger o pensamento claro e
racional como guia dessa transformação acarretava que o seu alcance ultrapassaria as
ciências naturais, atingindo todas as atividades humanas 36 . Acreditava-se que “pela
razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política” (Chauí, 1995,

34
Os aspectos até aqui tratados resumem algumas das razões apontadas para o desenvolvimento da História
Natural no século XVII: ênfase crescente no empirismo; uso de um método que realize uma enumeração
completa dos seres; uso da História Natural como o melhor meio de se conhecer a Deus (“argumento do
desígneo” que será retomado adiante). É possível destacarem-se outros aspectos conforme os autores
consultados. Não cabe aqui esgotar todos os elementos, nem todos os autores que discutem o período, mas
deve-se ressaltar, contudo, que entre as explicações para a Revolução Científica em geral e para a História
Natural em particular há ainda aspectos sociais e ideológicos que ultrapassam o plano de desenvolvimento
dos processos unicamente intelectuais.
35
As ambigüidades contidas nos termos Ilustração, Iluminismo e século das Luzes é bem explorada por
Francisco Falcon, 1991, cap. 2.
36
Nos Elementos de Filosofia, D’Alembert exprime a força de difusão do espírito metodológico da Nova
Ciência: “Essa fermentação intelectual, agindo em todos os sentidos por sua própria natureza, propagou-se
com uma espécie de violência a tudo o que lhe era oferecido, como um rio caudaloso que rompeu seus
diques. Assim, desde os princípios das ciências profanas aos fundamentos da Revelação, desde a metafísica
até as questões de gosto, desde a música à moral, das disputas dos teólogos aos problemas econômicos,
desde os direitos naturais até os direitos positivos, em suma, desde as questões que nos interessam de perto
até as que só indiretamente nos afetam, tudo foi discutido, analisado ou, pelo menos, agitado” (apud Cassirer,
1992, p. 77).
45

p. 48). Uma transformação que não se limitaria a algumas obras publicadas, a algum
acontecimento particular, a algum movimento intelectual datado, mas que se exprimiria
em vivências prolongadas, em “um processo que estava apenas começando — o
processo de esclarecimento do homem” (Falcon, 1991, p. 19). Em finais do século XVIII,
os filósofos naturais eram cientes de testemunharem uma Revolução nas ciências, mas
uma Revolução ainda em curso37.
Esse período das “Luzes” é principalmente o momento em que natureza e
entendimento humano ganham autonomia, ou em que o homem sai de sua menoridade,
para lembrar-se da famosa definição de Emmanuel Kant, de 1784. De uma vez por todas
foi rompido o vínculo com o sobrenatural, restando apenas a correspondência
indissolúvel e direta, sem mediações, entre a natureza e o homem que se põe a
conhecê-la através de seu próprio entendimento. Ao mesmo tempo em que os filósofos
do século XVIII percorriam uma longa trilha pela busca da fundamentação do
conhecimento, os dois séculos de investigação norteada por novos métodos científicos
mostravam que:

“(...) a filosofia popular da ciência (...) não é afetada por qualquer escrúpulo ou
dúvida crítica e está firmemente decidida a não prescindir de nenhuma de
suas ambições epistemológicas. Impelida pelo desejo de conhecer o que o
mundo contém em seu núcleo secreto, acredita ter ao alcance de sua mão a
solução de seus enigmas. (...) Que se descarte essa questão de
‘transcendência’ e a natureza deixa instantaneamente de ser um mistério.
Não é a sua essência que é misteriosa ou incognoscível, foi o espírito
humano que lançou sobre ela esse véu de palavras, de conceitos arbitrários,
de preconceitos fantásticos e a essência apresentar-se-á tal como é: como
um todo organizado, que se justifica a si mesmo, que se sustenta e se explica
inteiramente por si mesmo” (Cassirer, 1992, p.98-9).

O grande projeto do século XVIII foi o de impor uma ordem racional à multitude de
formas da natureza. Se desde o início do século XVII, a “conquista científica e técnica de
toda a realidade, a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da
invenção das máquinas, graças às experiências físicas e químicas” (Chauí, 1995, p. 47)

37
Se houvera uma revolução com Galileu e Kepler, ela se mostra ebulindo ainda em Newton. O que criou-se
com os dois primeiros foi a noção “de uma lei natural em toda a sua amplitude e profundidade, com toda a
sua importância metodológica, mas só tinham podido realizar a demonstração da aplicação concreta dessa
concepção para fenômenos naturais isolados (...) faltava ainda a prova de que essa legalidade rigorosa, a
qual se revelava válida nas partes, era transferível para o todo, de que o universo como tal era acessível aos
conceitos rigorosos do conhecimento matemático (...) Essa prova foi fornecida na obra de Newton (...) Era,
enfim, o triunfo do saber humano: a descoberta de um poder de conhecer que se igualava ao poder criador da
natureza. Foi assim que o século XVIII, em seu conjunto, compreendeu e apreciou a obra de Newton”
(Cassirer, 1992, p. 73).
46

já havia promovido o desenvolvimento dessas ciências, as resistências ao seu emprego


na História Natural, especialmente na Fisiologia e até na Taxonomia, haviam cedido38. No
domínio da Taxonomia, ao menos dois grandiosos desafios ainda não estavam
respondidos desde o descobrimento das novas terras. Por um lado, o aumento do uso
dos herbários tradicionais trouxe à tona o problema da identificação, pois as obras
antigas, traziam menções desprovidas de descrição suficiente acarretando, muitas vezes,
tomarem-se plantas diversas por uma mesma. Por outro lado, impunha-se acrescentar às
floras, as muitas milhares de novas espécies conhecidas, e não apenas as provenientes
do Novo Mundo, mas as da Europa do Norte, não contempladas nos herbários existentes,
tradicionalmente restritos à flora mediterrânea. Ray apenas dera o primeiro grande
impulso ao aumento de espécies conhecidas. A variedade a ser estudada ainda parecia
infinitamente grande.
Com uma grande tarefa a cumprir, o desenvolvimento da Taxonomia também foi
envolto em fortes debates e controvérsias. Contrapunha-se a busca por caracteres
essenciais dos seres à busca por caracteres acidentais ou secundários; discutia-se a
arbitrariedade ou busca por uma classificação natural dos seres; discutia-se o que era e o
que deveria ser uma classificação natural; contrapunham-se os critérios de escolha das
características; debatia-se entre a escolha de uma característica única e a adoção de um
conjunto delas para a descrição de uma espécie. A Taxonomia do século XVIII foi
contudo unânime em considerar o status dos seres vivos como essencialmente fixos,
cujas modificações seriam apenas efeitos de superfície que em nada alterariam a
estabilidade ou a possibilidade de predição no sistema.
Embora houvesse um mecanicismo tendendo a radicalizar a analogia entre o ser
vivo e a máquina, conforme aparece nos trabalhos de La Mettrie, L’homme machine, e de
Holbach, Système de la nature, há, também, ao longo do século XVIII, uma resistência
em aceitar esse reducionismo extremo para explicar o fenômeno da vida unicamente
através da Física e da Química. A atividade de “desmontar” os seres, segundo essa
crítica, só levaria a que se conhecessem as suas unidades constitutivas, mas não os
explicaria em sua globalidade. Tornava-se especialmente difícil explicar os fenômenos da
geração dos seres vivos a não ser que se tomasse o organismo como um todo formado
por mais do que a mera soma ou reunião de suas partes.

38
Uso o termo por sua abrangência e pronto reconhecimento atual, embora deva reconheçer o anacronismo.
Foi apenas no início do século XIX que De Candolle (Théorie élémentaire, 1813) nomeou a velha prática
sistemática com o termo “Taxonomia”, definindo-o como “a teoria da classificação, ou seja, o conjunto de
princípios dogmáticos que devem reger tal trabalho” (Callot, 1951, p. 156).
47

Essa posição mais moderada em relação ao mecanicismo é que predominou no


Iluminismo e foi responsável pelo deslocamento do eixo de análise da natureza: não seria
a “dedução lógica ou matemática mas o raciocínio que vai da parte ao todo [que nos
habilitaria] a decifrar e determinar a essência da natureza em seu conjunto [e isso
somente] partindo da essência do homem” (Cassirer, 1992, p. 100). Essa busca pelo
conhecimento do corpo humano levou, a Fisiologia e a Anatomia, em seu vínculo estreito
tanto com a Microscopia quanto com a Medicina, a dividirem espaço com a História
Natural do período. Assim, não foi só a coleta, nomeação, identificação e classificação de
seres que predominou na pesquisa do século XVIII. A Fisiologia, em sentido amplo, foi
fortemente desenvolvida.
Diderot em seu Da Interpretação da Natureza, de 1754, faz, por outra via,
apreciação semelhante do papel a ser cumprido pelas ciências naturais. Responsabiliza
as ciências abstratas (Matemática e Física) por frearem o conhecimento da História
Natural, pois esta deveria guiar-se por três meios:

“(...) a observação da natureza, a reflexão e a experiência. A observação


recolhe os fatos, a reflexão os combina, e a experiência verifica o resultado da
combinação. É preciso que a observação da natureza seja assídua, que a
reflexão seja profunda e que a experiência seja exata. Raramente se vê estes
meios reunidos” (Diderot, 1989, p. 39).

Diderot critica o espírito sistemático, o uso constante do método que a tudo


transforma em conceitos de classes e espécies, porque, para ele, isso representava a
passagem do método da Física para o domínio da História Natural. Embora não possa ou
não deva prescindir do método, a História Natural se empobreceria se não procurasse
formar seus princípios conforme seus próprios objetos. Isto ocorreria com o seu
desprendimento das disciplinas puramente racionais e sua dedicação exclusiva à própria
natureza. Esse é o espírito do tempo que se deixa penetrar pelas janelas então abertas
dos gabinetes de História Natural. Mais ainda, abrem-se as suas portas e por elas
atravessa um tipo novo de naturalista, carregando equipamentos variados, disposto a
percorrer as trilhas dos campos e florestas. A natureza é invadida por grupos de
observadores-coletores que procuram conhecer espécies novas, investigar seus hábitos
e localidades que habitam, coletá-las para as suas lições de anatomia, microscopia ou
classificação.
O espírito do tempo não é, pois, apenas marcado pela busca de sistemas de
classificação dos seres vivos. É também marcado por uma reação, não tanto ao sistema
48

em si, mas à redução metodológica que ele representa. Diderot expressa o espírito do
naturalista francês Buffon, adversário veemente do grande sistemata sueco Lineu. Os
motivos da crítica de Buffon passam pela mesma inconformidade com o uso das
Matemáticas regendo a formação de um método único para as ciências naturais. Para
Buffon, a sua aplicação à História Natural teria gerado uma repartição da natureza em
gêneros e classes, que não passariam de categorias mentais: “Na natureza só existem
indivíduos”, insiste Buffon! As classificações só podem servir à nomenclatura, jamais à
um sistema de natureza que expresse a sua realidade. “Uma vez que a natureza procede
por diferenças imperceptíveis de uma espécie a outra, de um gênero a outro, de tal modo
que entre eles encontramos uma série de estados intermediários que têm o ar de
pertencer metade a um gênero, metade a outro, nada de melhor nos resta fazer do que
aceitar a delicadeza, a sutileza dessas transições, tornar o nosso pensamento
suficientemente ágil para representar o movimento e as nuanças naturais” (Cassirer,
1992, p. 115).
Assim, não é apenas a Taxonomia, mesmo que junto à Fisiologia, que responde
pelo grande desenvolvimento da História Natural do século XVIII. A descrição dos seres
deixa de ser tratada unicamente como um meio necessário às classificações e torna-se o
viés pelo qual reconstitui-se uma visão da integração dos seres na natureza. As
descrições serão deslocadas para o domínio da territorialidade ocupada pelos seres
vivos. O século XVIII verá nascer, através do uso de algumas noções bastante arcaicas,
a História Geográfica de plantas, de que trataremos logo à seguir.
Finalmente, ainda não foi apenas o desenvolvimento da Fisiologia, da Taxonomia
e da História Geográfica de Plantas que marcou a História Natural do século XVIII.
Também derivando de um método centrado noutro foco que não a Matemática, o mesmo
Buffon delineia para a História Natural uma forma fundamental de conhecimento
“histórico”. A sua intenção descritiva desatrela-se da herança medieval de busca por
semelhanças e diferenças entre os seres para buscar a sua arqueologia, os seus “antigos
monumentos”, o seu passado. Costuma-se dizer desse momento, que a Terra ganhou a
sua história. A procura pelas forças que modelaram o planeta estabeleceram, pela
primeira vez no estudo da natureza, uma dimensão de temporalidade. A idade da Terra
estipulada na Bíblia foi substituída por diversas propostas de cálculos baseados em
causas naturais, em evidências fornecidas pelas investigações geológicas 39 . Embora

39
Os termos “Geologia” e “geólogo” são usados pela primeira vez por Horace-Bénédict de Saussure
(1740-1799), autor de Voyages dans les Alpes (1779-96), segundo Hankins, 1985, p. 153. Gabriel Gohau
49

envolta em muitas controvérsias e teorias alternativas disputando a explicação sobre a


formação da crosta terrestre, o surgimento da geologia no final do século teve esse
importante papel de instituir um passado histórico para a natureza. O mundo passou a ser
visto por suas transformações, descobriu-se que a Terra possui uma história, que é
bastante longa, e intensificaram-se os estudos sobre os fósseis.
Ressalte-se, contudo, que essa dimensão temporal não esteve associada ao
transformismo dos seres vivos. Os nomes associados ao estudo da história da natureza,
Buffon e Cuvier, estiveram também ligados a idéias fixistas. Foram os naturalistas
preocupados com os aspectos descritivos da natureza, Maupertuis, Diderot e Lamarck
que aproximaram-se da noção de transformação nos seres vivos. O papel ocupado por
essas correntes no surgimento da teoria evolucionista no século XIX é tema bastante
controvertido e foge ao alcance deste trabalho. O debate ocorre devido a uma crítica à
rota linear que se costumava traçar na historiografia entre os transformistas do XVIII e o
evolucionismo do XIX, em contraposição à resistência, e conseqüente impedimento, dos
fixistas ao pensamento evolucionista. Argumenta-se hoje que as idéias e pesquisas dos
fixistas é que teriam oferecido as contribuições mais decisivas ao aparecimento de uma
teoria evolutiva dos seres vivos40.
No século XVIII coexistiram portanto essas duas visões sobre o mundo natural:
usando a dimensão temporal, uma delas começara a tecer a história da Terra; usando a
noção da estabilidade numa natureza essencialmente fixa, a outra dera a desenvolver a
Fisiologia, a Taxonomia e a História Geográfica de Plantas. As duas perspectivas não se
conectaram até o século XIX, quando se delineará, não uma história da natureza, mas
uma história evolutiva dos seres vivos na natureza. No século XVIII, foi o mundo natural
em sentido amplo que ganhou uma dimensão de temporalidade até então insuspeita, e
isso simultaneamente à uma sofisticação crescente das análises taxonômicas que,
inversamente, permitiam conhecer os seres da natureza segundo a sua constância no
tempo. Como resultado dessa dupla vertente arregimentando os esforços de investigação
do mundo natural, o século XVIII poderia ser resumido como o palco de uma mistura
complexa de sistemas teóricos que admitiam algum grau de mudança sem perder o

menciona o aparecimento do termo, um ano antes de Saussure, em 1778, em Lettres physiques et morales
sur les montagnes, de Jean-André Deluc (1727-1817). Sobre a nova prática científica diz Gabriel Gohau: “No
final do século XVIII (...) um novo termo, geologia, descrevia um empreendimento comum a todos os que se
interessavam pelo passado da terra” (Gohau, 1990, p. 2).
40
Michel Foucault, por exemplo, afirma que o “fixista” Cuvier contribuiu mais para a teoria evolucionista, que o
“transformista” Lamarck, por ter estabelecido a descontinuidade radical entre os seres vivos que seria a
condição de possibilidade de um evolucionismo compor, realmente, a sua história (Foucault, 1981).
50

controle sobre o impacto causado pelas novas descobertas41. Apenas no século XIX o
sistema se renovaria fazendo nascer essa Biologia que chegou ao século XX42.
Aos propósitos deste trabalho, importa priorizar, a partir desse quadro amplo e
genérico, o relato daqueles estudos da natureza que se conformavam a um campo de
abrangência ao qual, hoje, pode-se propor a denominação de “ciências ambientais”43.
Lembre-se que a História Natural não fazia ainda a separação disciplinar, oitocentista,
entre o mundo vivo e o não vivo, embora já se comecem a demarcar esses domínios de
investigação no período, e já se utilizassem as denominações de botânico e zoólogo. Se
as conquistas alcançadas pela Biologia tornaram-se aparentes no século XIX, foi no
século XVIII que a investigação dos seres vivos experimentou um desenvolvimento sem
precedentes.
Dadas as quatro grandes áreas desenvolvidas na História Natural do século XVIII,
Fisiologia, Taxonomia, Geologia e História Geográfica, concentraremo-nos no que se
encontra implicado na obra do naturalista Manuel Arruda da Câmara. Na esfera do
conhecimento científico, nos dirigiremos mais especialmente para a História Geográfica
de Plantas, essa busca da ordem espacial, do lugar próprio de cada ser na natureza, a
partir do que poderemos tangenciar o que se convencionou denominar “relação
homem-natureza”. Importará investigarmos o que diz respeito à mudança de atitude do
homem em geral e do pesquisador em particular perante a própria natureza. Importará,

41
Ao tratar dessa tensão Peter Bowler aponta uma superação da discrepância entre duas interpretações
correntes do período: a visão derivada da análise de Michel Foucault, de que a História Natural brilharia
absoluta sob os refletores do século XVIII e a visão balizada pelas investigações geológicas que apontam o
aparecimento da dimensão temporal como evento mais significativo do período. Além disso, foram
investigadas as dimensões sociais, políticas e ideológicas caudatárias do conceito de universo em
transformação (ver Bowler, 1992, p. 102-104).
42
O termo “Biologia” foi cunhado simultaneamente por Lamarck e Treviranius em 1802 para “diferentes
formas e fenômenos da vida, das condições e leis sob as quais eles ocorrem e as causas que os determinam.
A ciência que concerne a estes objetos nós vamos designar de biologia ou de ciência da vida” (Treviranius,
apud Coleman, 1977, p. 2). Há explicações divergentes para essa tranformação. Enquanto Michel Foucault
atribui o surgimento da Biologia ao momento em que o vivo passa a ser destacado do não vivo, em meados
do século XVIII, T.L. Hankins argumenta que isso permitiria pensarmos nos mecaniscistas do XVII e XVIII
como precursores das idéias gerativas da biologia moderna. Para Hankins, a criação da Biologia “só ocorreu
depois de uma forte reação contrária à filosofia mecanicista que havia separado o estudo dos seres vivos da
natureza inanimada e explicado a ‘vida’ por princípios que não se aplicariam ao inanimado” (Hankins, 1985, p.
117). Em Gabriel Gohau, “A Geologia não foi a única ciência a emergir como um campo distinto nessa época.
O termo biologia foi usado pela primeira vez por volta de 1800, quando foi reconhecido que a divisão da
história natural em três reinos devia ser substituída por uma divisão em o mundo orgânico e o inorgânico.
Esse também foi um período decisivo para a química, graças a Antoine-Laurent Lavoisier (...)” (Gohau, 1990,
p. 2). Ver também: Farber, 1982; Caron, 1988.
43
Não se trata do significado pretendido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP,
em que se procuram contemplar e interelacionar domínios das Humanidades e das Ciências Exatas e
Biológicas no estudo do meio ambiente. Trata-se mais de um recorte artificial e a posteriori sobre os domínios
da investigação da natureza praticada no passado que nos permite elencar as temáticas relevantes à
abordagem histórica dos aspectos físicos e orgânicos do ambiente, ao modo do título criado por Peter Bowler
ao seu livro The fontana history of the Environmental Sciences.
51

também, conhecer os modos ou condições a partir das quais os naturalistas exercem as


suas atividades.
A nova ciência incitava a idéia de que o mundo era um sistema puramente
material que podia ser explorado para o benefício do homem 44 . Se anteriormente ao
Renascimento só se procurava conhecer o que mantivesse relação de utilidade para o
homem, as espécies, agora conhecidas por si mesmas, iluminadas por um grau maior e
mais independente de conhecimento, deveriam ter resgatados os seus aspectos úteis
para que o conhecimento não se perdesse em descrições sem fim. Paralelamente, surgia
uma mudança de sensibilidade em relação à natureza, através de uma aproximação
romântica à vida rural, de uma valorização das paisagens naturais, de uma busca pela
beleza própria aos ambientes selvagens. As montanhas deixavam de ser um obstáculo a
encobrir a visão da paisagem e ganhavam um valor estético próprio. A natureza passava
a gerar menos medo e mais prazer (Bowler, 1992, p. 140). Mesmo que não se trate aqui
de decidir sobre o modo com que isso afeta a ciência que se faz da natureza, pode-se
investigar um pouco de sua influência sobre os que a estudam em detalhe.
Considerou-se necessário, para que se pudesse estimar essa influência,
conhecer, também, um pouco sobre a profissionalização do estudioso da natureza. Pois
foi no século XVIII que iniciaram-se os esforços pela divulgação dos conhecimentos sobre
a natureza, que os governos financiaram viagens de exploração e criaram cargos de
naturalistas. Assim, torna-se relevante, para o estudo do desenvolvimento de uma dada
investigação científica desse período, conhecer os efeitos dessa profissionalização no dia
a dia do cientista, a relação entre o conhecimento produzido nesse domínio profissional e
o desenvolvido pelos amadores, o papel das editoras e das técnicas de ilustração.
Obviamente, não se tratará aqui de todos esses aspectos em detalhe. Mas serão
apontadas alguns estudos já feitos, assim como algumas lacunas que restam ser
preenchidas.
A profissionalização da História Natural em Portugal é o forno que moldará, entre
muitos outros, o naturalista luso-brasileiro aqui escolhido, Manuel Arruda da Câmara.
Reconstituído o campo teórico e o espaço institucional que o abriga, estaremos em
condições de aproximarmo-nos com menos equívoco do lugar que ocupa na história da

44
“Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo
inlgês Francis Bacon, para quem ‘saber é poder’, e a afirmação de Descartes, para quem a ‘ciência deve
tornar-nos senhores da Natureza’. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de
conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação da
verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza. Numa sociedade em que o
capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para
52

biologia em nosso país.

modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica” (Chauí, 1995, p. 255).
53

3.1 Da História Geográfica à Geografia de Plantas

3.1.1 A noção de “lugar natural”

A distribuição dos animais e vegetais em locais distintos é conhecida desde a


Antigüidade. Aristóteles, já interessado na diversidade dos seres vivos, indicava, que
“uma planta muda bastante com a diferença de localidade” (Aristóteles, De plantis, 820 a
9)45. As variações dos locais, Aristóteles as atribui à temperatura e umidade (relacionados
com a altitude), ao solo e à exposição ao sol46.
No caso das plantas, o lugar mais apropriado para que elas cresçam, e com mais
flores e folhas, nos diz Aristóteles, é aquele em que o clima é temperado. Os climas
extremos, tanto para o frio, com neve, quanto para o quente e seco, não são favoráveis47.
Isso vale também para o solo que, nesses locais, é empobrecido “porque calor e umidade
(...) estão ausentes. Assim, o solo que é mais fresco é o das montanhas e ali as plantas
crescem rapidamente” (Aristóteles, De plantis, 825 a 24-26)48.
Como veremos adiante que o século XVIII procurará nas montanhas o centro de
dispersão das espécies vegetais, vale mencionar o destaque dado, já, por Aristóteles, a
esse ambiente. Ao discutir as condições das localidades, certamente baseando-se na
geografia das regiões que conheceu em suas viagens pelo mundo grego, caracteriza as
montanhas numa contraposição aos locais com neve e aos locais desérticos49. Desta
comparação, acaba por concluir que são elas que oferecem a “posição apropriada para a
natureza” das plantas50:

“Nas montanhas, porque atraem umidade e porque a pureza do ar auxilia o


processo, a concocção ocorre rapidamente; portanto, as plantas geralmente

45
A verdadeira autoria da obra sobre as plantas é tema controverso entre os comentadores de Aristóteles. A
edição das Obras Completas organizada por W. D. Ross a insere no corpus aristotelicum pois, apesar de não
partilhar da mesma forma de outros trabalhos, o seu conteúdo é bastante coerente com o restante da
investigação biológica de Aristóteles e com a botânica de seu discípulo Teofrasto.
46
É preciso que se destaque que o termo “solo” é usado por Aristóteles como um conceito bastante distinto do
atual. Nele não há referência à composição nem ao fornecimento de nutrientes ao vegetal. Aristóteles
diferencia solo de “rocha”.
47
Aristóteles acreditava mesmo ser impossível a vida em geral nos ambientes “tórridos”, devido a uma
temperatura e secura excessivamente elevadas.
48
Noutra passagem, temperatura e umidade estão novamente relacionadas ao solo: “O crescimento de uma
planta requer solo, água e ar” (Aristóteles, De plantis, 826 a 29).
49
Aristóteles viveu em muitas cidades distintas. De sua Macedônia natal, viveu em Estagira e Pela; Da
Grécia, viveu em Atenas, em Mitilene, na ilha de Lesbos, em Atarneus e Assos, na Mísia e em Cálcis, na
Eubéia.
50
Curioso notar que Aristóteles afirma serem as montanhas altas apropriadas para as plantas medicinais, mas
que seus frutos “serão mais difíceis de serem assimilados e conterão menor capacidade nutritiva” (Aristóteles,
De plantis, 826 b 4).
54

estabelecem-se nas montanhas51” (Aristóteles, De plantis, 825 a 31-34).

Quanto à exposição aos raios solares, Aristóteles afirma que as que crescem em
“lugares sem sol não terão força para a produção de folhas e frutos” (Aristóteles, De
plantis, 826 b 8-9), pois é o sol que permite que as plantas (e os animais, diferentemente
das rochas) percam umidade (ou seja, que permite a concocção).
Assim, a idéia de que plantas apresentam similaridades conforme o local em que
se encontram, aparece várias vezes no texto de Aristóteles. As suas “regiões
biogeográficas” aparecem demarcadas pelas plantas típicas que possuem.

“Algumas plantas crescem em lugares secos, algumas no mar, outras nos


rios. [...]Algumas plantas crescem às margens dos rios, outras em água
parada. Das plantas que crescem em terra seca, algumas crescem nas
montanhas, outras nos planos. [...] nos desertos [...] Algumas plantas vivem
em altas altitudes, algumas em terra pantanosa, outras em terra seca, outras
igualmente bem em ambas” (Aristóteles, De plantis, 819 b 39-40; 820 a 1-8).

Em outras passagens, em que trata dos desertos e pântanos, a especificidade do


tipo de planta à região é confirmada:

“... nos desertos espécies separadas de plantas não ocorrerão, mas espécies
similares umas às outras” (Aristóteles, De plantis, 825 a 39)52.
“Geralmente tais plantas não diferem entre si quanto à forma devido à
presença constante da água e sua consistência densa e do calor do sol”
(Aristóteles, De plantis, 826 b 18-19).

Aristóteles não avançou nas suas investigações no sentido de buscar pelas


razões que tornavam cada planta característica de uma dada localidade. Ele limitou-se a
dar alguns exemplos e isto por uma razão muito simples: ele já possuia uma explicação,
dada através da noção de “lugar natural”, e que perpassa toda a sua ciência natural.
Segundo Aristóteles, o cosmos — para nós, o universo — é formado por esferas
sobrepostas, dotadas de movimento circular, eternas e perfeitas. A esfera mais externa
forma o céu das “estrelas fixas” e a última esfera antes da Terra é a da Lua. Eterno,
porém, imóvel, também é o nosso mundo; mas, porque constituído de matéria imperfeita,
diferentemente do éter, quintessência que forma as estrelas fixas, está sujeito à

51
Concocção é, para Aristóteles, um processo que ocorre em animais, vegetais, rochas e metais, em que
estão presentes o calor e a umidade. No caso das plantas e animais, trata-se de um processo de maturação
com liberação de umidade (transpiração) (Aristóteles, De Plantis, 822 a 25 - 822 b 25).
52
O conceito de “espécie” atual não corresponde ao uso do termo em Aristóteles, onde deve-se entender
55

corrupção e à imperfeição. Neste mundo dito “sub-lunar”, os seres estão sujeitos à morte;
mas devido a seus movimentos imitarem a perfeição do movimento circular “supra-lunar”,
eles são renovados pelos ciclos de geração. Assim, os seres individuais morrem, mas as
espécies são eternas53.
O movimento natural dos seres parte deles mesmos e compartilha da mesma
eternidade que o movimento das esferas estelares. Possui uma ordem que determina que
cada coisa possua uma natureza e um grau de perfeição que lhes são próprios. A
investigação consiste em procurar pelas causas (material, formal, motora e final) e o
modo em que estão combinadas em cada ser.
No caso das plantas, “o material próprio e a posição adequada à sua natureza”
definem as duas condições que precisam estar presentes para o seu desenvolvimento
(Aristóteles, De plantis, 824 b 38-39). Todos os seres são formados pela combinação de
quatro elementos geradores, terra, água, ar e fogo. Os corpos diferenciam-se uns dos
outros justamente por possuírem diferentes combinações dos elementos, e como cada
elemento, por sua própria natureza, possui um “lugar natural”, assim também o ser
possuirá o seu “lugar natural” de acordo com o elemento que preponderar em sua
composição. Os elementos, e os seres, ordenam-se naturalmente a partir do centro do
mundo, de modo que este é ocupado pela terra, seguida pela água, depois pelo ar e,
finalmente, pelo fogo54. Toda vez que um ser estiver, por qualquer razão, fora de seu
“lugar natural”, tenderá a regressar a ele pelo poder derivado dos seus elementos
constitutivos55.
Assim, por exemplo, o ser no qual prepondera o ar, tende a subir e a ocupar os
lugares mais altos, como é o caso das aves, dos cometas ou da umidade que escapa dos
espaços presentes entre as partes que formam o corpo de um vegetal ou animal. Os
seres que possuem mais do elemento terra, tendem a descer e a ocupar os lugares
baixos, sejam eles minhocas, pedras ou as “águas densas que encontram um nível mais
baixo do que a água que não é densa; pois o denso é da natureza da terra, o raro da
natureza do ar; portanto, a água doce fica numa elevação mais alta do que qualquer
outra água” (Aristóteles, De plantis, 824 a 28-33).
Essa noção de “lugar natural” persistiu por muitos séculos no pensamento

“tipo”. Ver: Lang, 1983; Granger, 1984; Prestes, 1996.


53
As noções de Aristóteles acerca da composição do cosmos em suas diferentes esferas e da eternidade do
Universo e do tempo encontram-se expostas na Física e na Metafísica.
54
Devido ao movimento das chamas para o alto, acreditava-se existir uma esfera de fogo entre as esferas
estelares, sendo lá o “lugar natural” desse elemento.
55
“Aristóteles estabelece a distinção entre o ‘lugar comum’ compartilhado por uma coisa com outras coisas e
56

ocidental56. No que diz respeito à sua aplicação na distribuição dos seres vivos, começou
a ser revista no século XVII e transformou-se no século XVIII, quando a distribuição
geográfica dos seres passou a ser problematizada e estudada metodicamente. Já havia
se avolumado o número de espécies trazidas das novas e diversas regiões atingidas
pelas viagens de exploração e conquistas do Renascimento. As coleções enriquecidas de
animais e plantas trazidas da Ásia, da África, das Américas, impunham novas questões,
antes insuspeitas, acerca da distribuição dos seres. Era preciso explicar tanto as
diferenças quanto as semelhanças encontradas em locais tão distantes entre si quanto o
são o velho do novo mundo.

3.1.2 O argumento do desígneo divino e o equilíbrio da natureza

Os herdeiros da Revolução Científica manifestavam o desejo de encontrar a


ordem na natureza procurando “um padrão racional subjacente à diversidade
aparentemente confusa de espécies”. No século XVII o “teólogo natural estudava as
espécies individuais para mostrar como sua estrutura está adaptada para o seu modo de
vida”, enquanto no século XVIII o sistemata procurava “o padrão que revelaria como toda
a variedade de espécies enquadra-se num sistema racionalmente ordenado” (Bowler,
1992, p. 155).
A teologia natural, cuja expressão de maior destaque ocorreu no trabalho de
Tomás de Aquino, no século XIII, apregoava que a existência e os atributos de Deus
manifestam-se à razão humana através das obras da natureza. Atendendo ainda à
necessidade de adequar-se à doutrina cristã, a investigação da História Natural do século
XVII passa a ver na natureza o livro das obras de Deus cujos caracteres eram lidos como
manifestações da ordem natural. O argumento do desígneo expressa essa idéia de que
os seres da natureza encontram-se distribuídos conforme uma ordem adequada
estabelecida por Deus no momento da Criação. O livro de John Ray, Wisdom of God in
the Creation, de 1691, reimpresso muitas vezes, foi responsável pela grande divulgação
dessas idéias na Inglaterra. Como já vimos, o próprio Ray não era um seguidor do

o seu lugar próprio ou peculiar” na Física, 209 a 31-b 2 (Ross, 1987, p.93).
56
Para o domínio dos corpos naturais, esta explicação procura dar conta daquilo que receberá um tratamento
distinto pela ciência moderna. Em Descartes, gravitas é o termo usado para explicar a queda dos “graves” e
tem um sentido distinto daquele estabelecido por Newton sob o termo “gravidade”. Assim, o célebre cientista
britânico não “descobriu” a lei da gravidade e nem foi o primeiro a se preocupar com o fenômeno, mas
interpretou-o de um modo novo. A noção de “lugar natural” foi, portanto, sendo gradativamente substituída por
outras, mas não o foi no domínio dos seres vivos.
57

mecanicismo, mas o argumento do desígneo que ele contribuiu muito em divulgar, foi
difundido no século XVIII através de uma metáfora mecanicista. Costumava-se comparar
a natureza a um relógio. A ordenação das partes de um relógio só poderia ser atribuída à
mente de um relojoeiro que, tomando-o em sua unidade e obediência a um determinado
fim, governa a distribuição harmônica de suas peças. Da mesma forma, Deus teria criado
cada uma das formas naturais e previsto para cada uma o seu lugar próprio para que
pudessem cumprir a finalidade porque foram criadas: o benefício do Homem. O
argumento do desígneo divino sustenta, pois, a noção de que a natureza é um todo
organizado harmonicamente.
Assim é que a velha noção de “lugar natural” foi dando lugar à de “equilíbrio da
natureza”. O equilíbrio da natureza passa a ser uma “lei natural”, um princípio regulador
que garantiria o lugar próprio dos seres e as relações que possuem entre si. Note-se que,
diferentemente da concepção atual, o equilíbrio natural não era entendido como algo que
se atinge através das relações, mas, ao contrário, porque existe a priori um “equilíbrio da
natureza” é que as espécies podem relacionar-se umas com as outras. Ele era entendido
como condição e não como efeito das relações. Os seres existem segundo uma ordem
natural que não é construída pela natureza mas pela mente do Criador.

“A forma de cada órgão é adaptada à função que desempenha no estilo de


vida do animal, mostrando que o Criador preocupa-se pelo bem estar de Suas
criaturas. Nós podemos chamar isto de argumento do desígneo utilitário,
porque assume que todas as características possuem um propósito utilitário.
O homem, naturalmente, foi o primeiro exemplo do desígneo (...) No início,
houve a tentação de construir todo o argumento em torno do homem,
sugerindo-se que as outras espécies foram criadas para servir aos seus
propósitos.
“Os naturalistas que desenvolveram o argumento do desígneo seriamente
perceberam que era impossível ver toda a criação como tendo sido formada
para o bem do homem. Em seus estudos, encontraram muitas espécies que
não tinham qualquer valor para o homem, embora cada uma, de algum modo,
revelasse a si mesma como um produto da sabedoria do Criador. Cada uma
era perfeitamente adaptada ao seu próprio modo de vida” (Bowler, 1989, p.
53).

É esse deslocamento da finalidade dos seres, primeiramente tomados apenas em


relação ao benefício do homem, depois valorizados por si mesmos, como obra divina,
que autoriza os naturalistas a dedicarem-se ao estudo de toda e qualquer criatura da face
da Terra. A História Natural floresce sem que seja necessário um rompimento com a fé
cristã. Conhecer a obra divina em sua integralidade passa a ser uma missão para com
58

Deus, cuja benevolência estende-se a todas as partes da Criação e não apenas às


espécies úteis ao homem. A natureza adquire esse estatuto magnânime de fazer mostrar
a sabedoria, o poder e a benevolência de Deus. Está ainda implícito no argumento o fato
de que se podem conhecer as leis que regem o funcionamento da natureza, mas a
natureza, ela própria, não cria nada.

“Note-se como as garras e os dentes do predador, por exemplo, são


adaptadas para a captura das presas. Não há contradição em se pensar que
um Deus benevolente criou animais que só poderiam viver matando outros?
O teólogo natural era capaz de racionalizar isto, argumentando que a longo
prazo os animais carnívoros minimizam a quantidade de sofrimento no mundo
porque eles dão aos membros velhos e doentes da espécie da presa uma
morte limpa e rápida (...) Interações entre espécies eram pensadas como
sendo harmoniosamente desenhadas para assegurar a estabilidade de todo o
sistema natural. Se alguma causa acidental permitisse a uma certa espécie
aumentar o seu número irregularmente, seus predadores iriam aumentar e
logo restaurar o equilíbrio. Assim, a relação presa-predador foi incorporada
pela teologia natural e as implicações da luta pela existência não foram
reconhecidas” (Bowler, 1989, p.54).

Embora revivido no Natural Theology, de William Paley, de 1802, e influente nos


debates acerca da geração dos seres vivos, especialmente entre os adeptos do
preformacionismo, a Teologia Natural perde forças no final do século XVIII, quando uma
nova geração de naturalistas, menos apegados aos apelos cristãos e mais adeptos do
materialismo do período, apregoa que a natureza possui, ela mesma, poderes criativos57.
O momento exige novo ajuste na noção de equilíbrio da natureza. Ele será feito, contudo,
não por um materialista descomprometido com a teologia e o Criacionismo, mas por um
homem de fé, o naturalista sueco Lineu, através da noção de “economia da natureza”,
como veremos a seguir.

57
O Natural Theology, de William Paley, persiste influenciando naturalistas do século XIX, como o jovem
Charles Darwin. Foi a sua teoria de evolução, contudo, que contribuiu para a dissolução das concepções da
teologia natural. Darwin passou a explicar os estados da natureza como resultado da herança e variação ao
acaso.
59

3.1.3 Lineu, Buffon e as idéias acerca da distribuição das espécies

Dois influentes naturalistas do XVIII, Lineu e Buffon, de maneira bastante distinta


um do outro, envolveram-se com as questões trazidas junto à bagagem dos animais e
vegetais coletados nas várias partes do mundo. Se a natureza possui uma ordem que
podemos conhecer e que nos habilita a fazer predições, como organizar uma variedade
incessante de espécies? As respostas de Lineu foram aparecendo nas gradativas
edições aumentadas e revisadas do Systema naturae (1735-1793) e no Oratio de Telluris
habitabilis incremento (1744); as de Buffon também acumularam-se ao longo dos
volumes do Histoire naturelle (1749-88).
Lineu, como Buffon, não elabora, ainda, uma teoria biogeográfica. Em seu projeto
amplo de inventariar os seres vivos e acomodá-los num sistema “natural” de
classificação, a organização espacial dos seres ocupa um lugar secundário 58 . Lineu
procurava arranjar as espécies de acordo com suas características (“morfológicas”)
observáveis. “O habitat ou o modo de vida da espécie era apenas ocasionalmente
mencionado, como elemento auxiliar à identificação” (Bowler, 1992, p. 167). Os modos de
vida, as condições peculiares de cada lugar permitiam, contudo, um início de atenção e
de levantamento de dados para o que se pode denominar uma “história geográfica”.
De fato, não era apenas com a identificação e classificação que se ocupavam os
naturalistas. Havia uma preocupação no sentido de se buscar outros sistemas de análise
da natureza, sistemas em que as relações entre os seres fossem devidamente
consideradas. “Os seres vivos interagiam com o ambiente e consigo próprios. Os
naturalistas do século XVIII sabiam bem disso e esperavam encontrar outro tipo de ordem
que tomasse esses fatores práticos em consideração” (Bowler, 1992, p. 167)59. Refletindo
esse tipo de preocupação é que, talvez, deva ser entendido o princípio da economia da
natureza formulado pelo sistemata Lineu:

58
Na verdade, embora buscasse decifrar a ordem divina, natural, da Criação, por razões práticas, o sistema
proposto por Lineu era artificial. Gradualmente a escolha artificial dos caracteres que deveriam reger os
agrupamentos foi-se tornando mais natural na medida em que novas espécies iam sendo incorporadas
através do reconhecimento de semelhanças gerais que levavam, muitas vezes, à formação de grupos novos.
59
“No início do século XVIII, Richard Bradley (1688-1732) havia notado como cada espécie de inseto tende a
alimentar-se de uma planta particular. Ele advertia os fazendeiros a não matarem pássaros em seus canteiros
de nabos, porque eles alimentavam-se dos insetos que danificavam a colheita. Como muitos de seus
contemporâneos, Bradley percebeu que todas as espécies de animais e plantas são dependentes umas das
outras numa rede complexa do que hoje podemos chamar de relações ecológicas” (Bowler, 1992, p. 169).
Sobre Richard Bradley ver importante estudo de Frank N. Egerton, 1969.
60

“Por economia da natureza entende-se a disposição muito sábia dos seres


naturais, instituída pelo Soberano Criador, segundo a qual estes tendem a fins
comuns e têm funções recíprocas” (Apud, Worster, 1988, p.37-8).

“A economia da natureza nos mostra a teologia, ou fines rerum, o propósito


para o qual cada ser foi criado e a combinação que há entre as coisas criadas
em sua geração, preservação e destruição” (Apud Larson, 1986, p. 449)60.

Para Lineu, as plantas e os animais devem estar em localidades apropriadas para


que possam cumprir a melhor termo a finalidade para a qual foram criadas dentro da
economia da natureza. O “Criador forneceu cada tipo com um hábito próprio ao clima
onde vive, de modo que parece destinado unicamente para o lugar onde é encontrado”
(Larson, 1986, p. 450)61. As criaturas, imutáveis, as mesmas desde o momento original
de sua criação, foram distribuídas pela superfície terrestre conforme limites físicos que
garantissem a cada espécie vegetal e animal o melhor cumprimento de seu propósito.
Esse foi o espaço constituído para que a natureza tivesse, ela própria, algum poder
criativo: na distribuição das espéceis. Assim como as criaturas, as relações entre elas
também deveriam ser estáveis. Partindo do modelo da circulação da água no planeta,
através da evaporação e precipitação, Lineu o “estendeu ao mundo vivo. Cada espécie
alimenta-se de sua própria presa, e é, por sua vez, alimento para outra espécie. Aqui nós
temos a concepção de cadeia alimentar, mas ela está ligada à pressuposição de que a
providência divina assegurará a continuidade de cada elo na cadeia (...) A possibilidade
de que a interferência humana poderia desregular o equilíbrio ainda era impensável,
embora a crescente industrialização do final do século XVIII logo começaria a trazer essa
questão à tona” (Bowler, 1992, p. 170-1).
Os conhecimentos acerca das mudanças ocorridas na superfície do globo, como a
teoria da retração dos oceanos, a que Lineu acreditava, trazia um problema à
estabilidade dos seres, pois se os ambientes mudaram ao longo do tempo, as espécies
também teriam que se ter movido no mundo, de modo a manterem-se nos ambientes

60
Aos propósitos deste trabalho, não buscou-se Lineu em seus textos originais, exceto pelos pequenos
trechos encontrados em inglês e/ou francês em obras gerais sobre o século XVIII. Um estudo mais detalhado
sobre o naturalista sueco deveria ser efetuado pela leitura de suas obras em latim ou das traduções
disponíveis em microfilmes dos Landmarks of Science, encontrados na Biblioteca do Centro de Lógica e
Epistemologia da UNICAMP:
- Lineu. A dissertation on the sex of plants. (1786). Printed for the author and sold by George Nicol.
- Lineu. A general system of Nature, through the three grand Kingdons of animals, vegetables, and mineral;
systematically divided into their several classes, orders, genera, species, and peculiarities. 7v. Londres,
1802-1806.
61
Daí a necessidade de se defender e argumentar a favor da transplantação de espécies, em Arruda e outros
herdeiros dessa concepção.
61

adequados. Também trazia um problema à ainda aceita versão bíblica de um dilúvio


recente em que as espécies foram salvas pela arca de Noé: o número de espécies
conhecidas já era grande demais para que coubessem na arca; também não se podia
explicar como, do monte Ararat, as espécies teriam migrado para regiões tão distantes
quanto as Américas; finalmente, seria difícil explicar como os predadores não eliminaram
suas presas durante a longa viagem. A explicação bíblica não fazia mais sentido. Embora
ainda não questionando a Criação divina, Lineu e os naturalistas de seu tempo procuram
uma explicação alternativa para o plano e processos de distribuição das espécies a partir
de sua origem.
A alternativa proposta por Lineu mantinha a crença numa criação única, conforme
o Gênesis, isto é, na existência de um centro único onde as espécies foram criadas. Mas,
devido ao reconhecimento do recuo dos mares, Lineu postula que as espécies ali criadas
dispersaram-se pelo globo, segundo as diferenças climáticas e as migrações.
Contrariamente, Buffon apregoa criações sucessivas e subseqüentes dispersões 62 . O
centro de criação/dispersão de Lineu também foi atribuído a uma montanha (no que se
atualiza a idéia do Monte Ararat e a mais anterior, de Aristóteles, de que as montanhas
são os locais de geração ou matrizes da vida), dotada de todos os tipos necessários de
localidades apropriadas à totalidade de espécies animais e vegetais. As partes baixas
dariam origem às plantas adaptadas a ambientes equatoriais e gradativamente em
direção ao topo da montanha formar-se-iam as espécies adaptadas a climas cada vez
mais temperados.
Após o recuo dos mares, os continentes apareceram ampliando quantitativamente
a oferta de localidades para os seres se desenvolverem. Unicamente a migração e a
disseminação seriam, então, “requeridas para explicar a localização presente das
espécies”. Subsidiava essa hipótese a crença de Lineu de que “condições físicas
semelhantes produzem seres semelhantes” (Larson, 1986, p. 450-1). Mas Lineu não se
preocupou em explicar como e por que as espécies migraram desse centro de origem
para as suas localidades atuais. Os alunos de Lineu já estavam percorrendo o mundo
para coleta e classificação de seres das diversas regiões da Terra e “torna-se cada vez
mais óbvio que os animais e plantas trazidos de diferentes regiões formavam grupos
reconhecidamente distintos. O conhecimento de condições físicas similares presentes em
áreas diferentes do globo não estava mais comprovando a crença de Lineu de que os

62
As idéias de Lineu estão no De telluris habitalis incremento de 1744. As de Buffon, esboçadas no Histoire
naturelle, a partir de 1749, encontra-se em sua versão final no Des époques de la nature, de 1778. Conforme
62

animais e plantas deveriam, nessas condições, ser os mesmos. Havia similaridades


superficiais devido à necessidade das espécies adaptarem-se ao ambiente, mas as
plantas e animais da América, por exemplo, eram muito diferentes das equivalentes
encontradas no Velho Continente” (Bowler, 1992, p. 175).
Como Lineu não resolveu esse problema e não se preocupou em explicar as
dispersões, não reside aí a sua reconhecida contribuição à futura Biogeografia. Como
estima J. Larson (1986), essa contribuição vem de outro lugar. Vem de sua influência
sobre o início de uma prática de levantamento de informações relativas à habitação e
localidade das plantas. Desse modo, a partir da década de 1760, uma publicação sobre a
flora deixa de ser uma mera lista de plantas, coletadas numa área delimitada
arbitrariamente. Passa a ser gradualmente formulado o conceito de que a flora e a fauna
possuem uma diferenciação regional. “Em outras palavras, a botânica começa a tornar-se
geográfica” (Nicolson, 1987, p. 171). Ao inventariar e descrever os seres, o tema das
diferenças relacionadas com a localidade volta a ser tratado, mesmo que, sob o aspecto
formal, segundo suas analogias e afinidades com a sistemática. Por ter-se empenhado
em trazer esses dados para a classificação, e tendo causado a influência que causou
entre seus contemporâneos, Lineu foi responsável pelo aparecimento da riqueza de
informações que serviriam aos naturalistas posteriores, por cuja teorização sobre o tema
da dispersão, fazerem emergir a disciplina da Biogeografia, no início do século XIX.

A via percorrida pelo superintendente do Jardin du Roi em Paris, Georges Leclerc,


conde de Buffon, foi diferente e até oposta à de Lineu. Buffon sustentava uma atitude
abertamente crítica e um horror declarado aos rumos tomados pela História Natural
ocupada com a classificação dos seres através de escolhas arbitrárias de similaridades
superficiais. A sua História Natural tinha por intenção a descrição do mundo animal em
sua completude, sem a fragmentação conseqüente do uso de um “padrão abstrato de
criação”. Buffon descarta os sistemas e métodos propostos de classificação e agrupa os
animais à moda antiga, levando em conta a utilidade da espécie para o homem.
Buffon ocupou-se muito mais diretamente do que Lineu com as discussões sobre
a distribuição dos seres. Não elaborou, como já foi mencionado, nem mesmo tentou
elaborar, uma teoria geral sobre o tema. Mas estudou detalhadamente um caso especial,
a presença dos quadrúpedes na América do Sul, tão diferentes dos do Velho Mundo.
Assim, a seu modo, Buffon deteve-se, também, com algumas das preocupações que

Larson, 1986, p. 450-2.


63

guiaram a formação da Biogeografia no início do século XIX63. Diferentemente de Lineu,


concluiu, de seu estudo, que “condições físicas semelhantes não produzem ou favorecem
formas semelhantes em todos os lugares; ele sugeriu que circunstâncias externas
causavam as diferenças nas espécies que vivem neles” (Larson, 1986, p. 451).
Populações de animais forçadas a viver em ambientes modificados sofreriam mudanças
individuais que poderiam tornar-se hereditárias. Postulando a necessidade de criações
múltiplas, cada uma sendo acompanhada de subseqüente dispersão, Buffon explica a
existência dos fósseis, que já eram então conhecidos: seres criados em épocas distintas
eram submetidos a diferentes circunstâncias externas, daí as suas diferenças. O centro
de criação e dispersão dos quadrúpedes em especial, teria sido, para Buffon, o polo
norte.
A oposição entre Lineu e Buffon constituiu-se num contexto próprio ao período em
que os naturalistas conheciam o “estudo dos fatos relativos à distribuição dos animais e
das plantas na superfície da Terra e dos princípios gerais deduzidos a partir desses fatos”
como sendo a “geografia histórica” ou “história geográfica” (Larson, 1986, p. 448).
Embora as idéias de Lineu tenham sido mais aceitas nos meios científicos da época que
as de Buffon, elas não deixaram de ser criticadas, e o conflito entre as duas permaneceu
até as primeiras décadas do século XIX. Novas sínteses teóricas só apareceram na
virada do século, com L. L. Wildenow (1792), G. R. Treviranus (Biologie, 1803-5),
Humboldt (Essai sur la geographie des plantes, 1805) e A. P. de Candolle (Géographie
botanique, 1820). Nesse meio tempo, os naturalistas permaneceram ocupados com seu
trabalho contínuo de coleta, análise e classificação de floras locais, bem ao modo da
História Natural ditada por Lineu.

3.1.4 A história geográfica das plantas nas floras locais modelares

Seguindo um método de classificação prático e fácil, tão esperado e finalmente


elaborado por Lineu, naturalistas de vários países da Europa lançaram-se em suas
aventurosas viagens de reconhecimento de flora e fauna pelos quatro cantos do planeta.
No caso das plantas, o período foi marcado pela elaboração das “floras locais”,

63
A. Gerbi distingue a zoologia geográfica da geografia zoológica. “Buffon funda, salvo melhor parecer dos
especialistas, a zoologia geográfica”; a geografia zoológica, “recebeu forma científica apenas na segunda
metade do século XIX” e é muitíssimo anterior a Buffon (Aristóteles e outros) (Gerbi, 1975, p. 16). Gerbi atribui
à Marco Polo a importante “distinção categórica de animais como os nossos e animais distintos dos nossos”
(Gerbi, 1975, p. 17).
64

inventários regionais de plantas, que deram a conhecer ao mundo, ainda mais


claramente, a imensa riqueza e diversidade vegetal.
Essas floras continham rotineiramente uma descrição física e uma história geral
da vegetação da região estudada, seguidas da lista de plantas encontradas. A descrição
das espécies continha o nome, as características específicas, a sinonímia, elementos
descritivos que permitissem a identificação, as variedades, as localidades, as habitações
e os usos a que serviam. As informações relativas à distribuição, localidades e habitação,
estão, assim, acopladas ou justapostas às informações sistemáticas. Nesse sentido é que
aos interesses taxonômicos elas apresentavam importância secundária, sob o ponto de
vista teórico; eram, contudo, indispensáveis, sob o ponto de vista prático, por facilitarem a
identificação, daí a sua presença no conjunto de dados levantados.
As floras exemplares do período são a Flora lapponica, do próprio Lineu (1732,
1792) e a Flora sibirica de Johann Georg Gmelin (1747-69), além da Flora Suiça de
Albrecht von Haller (1768). Lineu estabeleceu um padrão para a distribuição das plantas
nas montanhas, segundo os seus estudos próprios na Lapônia e as comparações com
outras floras européias. Ele definiu uma montanha como possuindo três zonas de
vegetação. As espécies do pico, por exemplo, só ocorrem ali, embora se repitam no
mesmo local de outras montanhas. Confirmava a sua suposição de que regiões
semelhantes produzem espécies semelhantes, não importa o quão longe estejam umas
das outras, conforme sugestão de Tournefort no Relation d’un voyage du Levant. A
explicação de Lineu para o aparecimento das mesmas plantas em locais tão distantes
baseava-se nos mecanismos de dispersão e disseminação pela água, vento e outros
meios, de modo a manter sua idéia de que houve um centro único de criação. Apesar
dessa semelhança, Lineu encontrou algumas discrepâncias no que se referia ao aspecto
geral da vegetação de uma mesma zona de regiões diferentes. Esse aspecto mudava
porque as plantas dominantes eram diferentes. Além disso, também encontrou algumas
plantas que não se repetiam nas mesmas zonas de outras regiões, ou seja, eram
exclusivas de algum pico. Assim os resultados alcançados pelas várias floras locais,
especialmente as mais distantes da Europa, tendiam a contradizer a possibilidade de um
centro único de dispersão. Como uma dada espécie migraria para um pico de uma região
tão distante se não tivesse que sobreviver antes em regiões mais baixas, para então
alcançar os picos? Como explicar as diferenças entre as espécies encontradas em zonas
semelhantes de regiões distantes?
Com a dificuldade dada pela imensa extensão da superfície terrestre, a hipótese
65

de Lineu perde terreno enquanto a idéia de criações múltiplas e dispersões sucessivas de


Buffon é encampada ao mesmo tempo que vai sofrendo modificações. Além de múltiplas
no tempo, as criações devem ter sido múltiplas também no espaço, tendo ocorrido em
diversos locais da superfície que, posteriormente, teriam sofrido transformações.
Fazendo a crítica aos preconceitos de fundo religioso e à pesquisa limitada de
Lineu, Gmelin dedicou-se ao problema da distribuição atual dos seres, buscando mais
diretamente as suas leis. Estabeleceu seis grupos distintos de plantas quanto à
distribuição, dos quais o último continha espécies comuns em montanhas européias e
campos siberianos. Assim, algumas espécies parecem ter sido criadas para
dispersarem-se por todo lugar, enquanto outras, para permanecerem confinadas em
regiões restritas e só dispersarem-se nas suas redondezas. Trata-se de uma explicação
que provê “um núcleo para o conceito de centros de criação” (Larson, 1986, p. 459). Na
Amoenitates Academicae, Lineu modifica suas idéias para acomodar os dados novos da
Flora Siberiana de Gmelin. Afirma, então, que quanto mais perto dos polos, mais baixos
podem ser os terrenos; quanto mais longe dos polos, a natureza alpina será encontrada
em terrenos mais altos. Estão sendo relacionadas a altitude e a latitude.
Os levantamentos da flora de distintas regiões proliferavam. Antes de abordarmos
os estudos efetuados pelos “brasileiros” formados por Vandelli, para inventariar a flora
deste Novo Mundo, detenhamo-nos ainda em três estudos florísticos, dos quais
interessam, aqui, apenas os critérios para análise da distribuição que emergiram das
particularidades encontradas em cada caso. O primeiro exemplo é o de Peter Simon
Pallas que, em 1772, dirigiu uma exploração da flora siberiana na esteira de trabalhos
como os de Gmelin. Acabou por definir seis províncias florais com base na topografia,
concluindo, portanto, sobre a necessidade de se encontrar um princípio físico que
atendesse à distribuição diferenciada dos grupos de plantas.
O segundo exemplo é o de Johann Reinhold Forster e Georg Forster, no Pacífico
Sul, entre os anos 1772 e 1775, em publicação de 1778, Observations made on a voyage
around the world. Como outros naturalistas atuando fora dos domínios europeus, estes
também “continuaram a pensar o seu trabalho como uma contribuição ao inventário da
natureza”, diz J. Larson, mantendo-se mais distanciados dos debates teóricos. Mas pela
fidelidade ao método lineano, isto é, por compreenderem sistematicamente as etapas de
coleta, análise e classificação dos exemplares encontrados, incluindo rigorosamente os
dados referentes ao lugar e à habitação das plantas, contribuíram substancialmente à
distribuição geográfica. Os Forster notaram “que as plantas e animais de uma região
66

formam uma unidade definida pelo ambiente” (Bowler, 1992, p. 176) e que esse padrão
uniforme de distribuição tinha por base especialmente a temperatura, com algumas
exceções. Afastaram-se de Lineu por terem que reconhecer, em 1789, que tal padrão
exigiria a existência de criações múltiplas para as espécies.
O último exemplo é o estudo de Ramond de Carbonnières da flora dos Pirineus,
de 1787. Preocupado em trabalhar com fatores físicos quantificáveis, notou o papel do
clima e das elevações na vida das plantas, vinculando as diferenças de temperatura não
apenas à altitude mas também à latitude. Influenciado pela regra lineana de que lugares
semelhantes produzem espécies semelhantes, desprezou, ou não percebeu, as
semelhanças entre as plantas de lugares distintos. De qualquer forma, as floras de
Carbonnières, dos Forster e de Pallas, tanto quanto outras do período, trouxeram um
mundo novo de dados e parâmetros, um vasto material que, apesar de servir à
constituição da futura Biogeografia, teve de aguardar o surgimento de um novo tipo de
interpretação.

3.1.5 A Geografia de Plantas

Na última década do século XVIII, começam a aparecer os frutos de novos


esforços teóricos para explicar o fenômeno da distribuição dos seres. O botânico alemão,
Karl L. Willdenow, publica, em 1792 o seu Princípios da Botânica, em que articula
conjuntamente os fatores físicos, a localidade e a habitação das plantas. Ou seja,
reconhece “a interação de fatores geográficos, geológicos e biológicos na determinação
das características de uma região” (Bowler, 1992, p. 176). Ao longo de seu trabalho de
pesquisa, convence-se de que seriam necessários vários centros de criação para explicar
tanto a existência dos mesmos tipos de plantas encontrados em regiões distantes umas
das outras, quanto o confinamento de outros tipos a uma região única e pequena.
Criadas em várias regiões, as plantas sofreriam dispersão apenas segundo à sua própria
natureza e em respeito aos limites climáticos.
Sua contribuição mais significativa foi a elaboração sobre a idéia de que o
desenvolvimento histórico da superfície terrestre é uma parte tão importante da geografia
de plantas, quanto as condições climáticas e edáficas. A história da terra já vinha sendo
apresentada pelos geólogos e Wildenow incorpora esses novos conhecimentos à sua
argumentação. A dispersão dos tipos, conclui ele, seria afetada por alterações físicas das
diferentes regiões, pelas “revoluções porque passou esta terra”, mudando o curso de um
67

direcionamento climático.
No entanto, isto não foi suficiente para explicar a semelhança da flora em regiões
de distâncias transcontinentais, como a América do Sul. Manteve-se fiel, nesse caso, à
máxima lineana (situações semelhantes produzem plantas semelhantes): “E por que a
natureza não poderia produzir, em latitudes e longitudes diferentes, espécies muito
semelhantes entre si?” (Wildenow, apud Larson, 1986, p. 468). Dessa forma, Wildenow,
como os Forster, não estava desprendido do enfoque central promovido pela Taxonomia.
O seu trabalho possui uma descrição mais detalhada da vegetação mas ainda como um
aspecto secundário. Semelhantemente, em 1803, G. R. Treviranus mantém no seu
Biologie, uma interpretação ahistórica, tratando de “processos” sob a perspectiva estrita
dos agentes físicos, das localidades e habitações.
Em todos esses casos, contudo, manteve-se uma tradição “florística”, preocupada
com a identificação das plantas que crescem numa área, fazendo generalizações sobre o
caráter florístico da região como um todo. O nível de análise era, ainda, essencialmente
sobre as espécies individuais. O rompimento com a florística ocorreu apenas com
Alexander von Humboldt, em quem a vegetação tornou-se um objeto autônomo de
investigação, definida como estudo de um “fenômeno coletivo, produzido pelas várias
espécies agrupadas [em que] uma vegetação se caracteriza pelas diferentes formas de
crescimento das plantas constitutivas e de suas abundâncias relativas” (Nicolson, 1987,
p.168)64
Com Humboldt, tem-se a grande obra dedicada à discussão sistemática e objetiva
dessas questões, no famoso Essai sur la géographie des plantes, de 1805. Aprendeu
com Wildenow o valor da paleontologia para a geografia das plantas e desenvolveu a
abordagem histórica junto aos inúmeros fatos da experiência recolhidos de suas
expedições e coordenação de trabalhos sobre as plantas coletadas em várias partes do
mundo. Além disso, utilizou-se de medições de altitude, temperatura e pressão do ar, de
modo a poder determinar os fatores físicos com uma precisão maior que seus
predecessores, já atentos às diferenças de altitude e temperatura. Também analisou as
comunidades de plantas horizontalmente distribuídas, expandindo o padrão de estudo,
até então corriqueiro, de observar a distribuição em montanhas, podendo perceber
contrastes mais fortes entre as zonas temperadas e os trópicos. A Biogeografia surge
com Humboldt porque ele “preocupou-se centralmente com a vegetação, suas

64
A distinção entre as duas tradições ou formas de geografia de plantas durante o século XIX, da “florística” e
da “morfológica” ou da “vegetação”, foi retomada por Malcom Nicolson a partir do The history of biology, de
68

características, distribuição e relação com os parâmetros ambientais, e não apenas ou


primariamente com plantas individuais ou espécies” como a tradição florística lineana
(Nicolson, 1987, p. 169).

Erik Nordenskiöld, publicado na Suécia entre 1920-1924.


69

4 A INTRODUÇÃO DA HISTÓRIA NATURAL EM PORTUGAL

“Ser não é ter sido,


ter sido não é será”
(J. Saramago, Memorial do Convento, 1982)

As três últimas décadas do século XVIII correspondem a um período em que


alguns países da Europa experimentaram o que os historiadores comumente designam
de absolutismo ilustrado, caracterizado por ser o “Estado típico da transição
feudal-capitalista” (Falcon, 1986, p.12). Prússia, Áustria, alguns estados alemães e
italianos além dos países ibéricos, tiveram através de seus monarcas e ministros formas
de governo entendidas como conseqüências das idéias filosóficas do Iluminismo.
Algumas das marcas do absolutismo ilustrado português foram fortemente impressas na
investigação científica do período, como ocorreu com a pretendida reforma completa de
todos os níveis de ensino em Portugal, ainda que, na prática, as mudanças pareçam não
ter sido tão grandes. De qualquer forma, “poucos terão sido os temas cuja importância
haja alcançado nível igual ao da educação nas práticas ilustradas. A crença na sua
eficácia libertadora, acoplada à fé inabalável na ciência, transformava a perspectiva de
educar as massas numa questão política — só assim havendo como formar homens bons
e cidadãos úteis” (Falcon, 1986, p. 29).
Conforme Rómulo de Carvalho, embora o desenvolvimento científico tenha sido
mais sentido nas últimas décadas do século XVIII, foi ao longo de todo o século que dois
fatores relevantes levaram os portugueses a interessar-se pelas investigações científicas:

“por um lado o contacto, cada vez mais íntimo, dos portugueses com o
mundo por eles mesmos desvendado, com a África, a Ásia, o Brasil,
surpreendentes repositórios de produtos naturais, plantas, animais e minerais
muitos deles nunca antes observados; por outro lado o entusiasmo, o
alvoroço, a euforia com que muitos cientistas estrangeiros se entregaram,
nesse século, à recolha, observação, descrição e catalogação de tudo quanto
a Natureza lhes deparava e que, por contactos fortuitos connosco, nos foram
envolvendo no mesmo gosto de observar, estudar e coleccionar,
independentemente de comerciar” (Carvalho, 1987, p. 9-10) 65.
65
Rómulo de Carvalho cita entre os naturalistas estrangeiros que estiveram em Portugal o “médico alemão
Gabriel Grisley que veio para Portugal no tempo de D. João IV” tendo publicado “em língua portuguesa,
Desengano para a Medicina” e, “em 1661, e em língua latina, um livro intitulado Viridarium Lusitanicum, ou
seja, o Jardim da Lusitânia, obra reeditada no século XVIII, por ordem da Academia das Ciências de Lisboa,
70

Rómulo de Carvalho menciona as principais obras do período: “Um dos fatores de


maior peso na evolução da mentalidade científica que veio a processar-se na segunda
metade do século XVIII, em Portugal, foi, sem dúvida, a publicação do Verdadeiro Método
de Estudar de Luís António Verney, em 1746” onde prepondera fortemente o interesse
pela Física, Astronomia, Matemática e Medicina, cabendo à História Natural umas poucas
citações (Carvalho, 1987, p. 28). A História Natural também é lembrada apenas
secundariamente nas Cartas sobre a Educação da Mocidade de António Nunes Ribeiro
Sanches, de publicadas em 1760 e em Método para aprender e estudar a Medicina, de
1763, que expressa claramente que o “estudo da História Natural [tem] o objectivo
determinado de fornecer informações aos estudantes de Medicina no exercício de sua
futura profissão (...) despojando a História Natural do seu valor próprio como ciência”
(Carvalho, 1987, p. 30-1; 33). Finalmente, a Recreação Filosófica ou Diálogo sobre a
Filosofia Natural, para instrução de pessoas curiosas que não frequentaram as aulas, do
Padre Teodoro de Almeida, publicada em 10 volumes entre 1751 e 1800: “forte nos
conhecimentos físicos e astronómicos, não se sentia tão à-vontade ao discorrer sobre os
temas de História Natural mas o seu objetivo de reunir numa mesma obra tudo quanto
respeitasse à chamada Filosofia Natural, não lhe permitiu dispensar-se de falar de
animais e de plantas” (Carvalho, 1987, p. 35).
Foi apenas a partir da década dos anos setenta do século XVIII que, sob a égide
do pensamento ilustrado de Sebastião José de Carvalho e Mello (1699-1782), o futuro
marquês de Pombal, mentor das reformas promovidas no Reino português, Coimbra foi
tornado o centro intelectual luso, passando a formar homens dotados dos novos
conhecimentos das ciências naturais em que se dava relevo à História Natural. Como
conseqüência da expulsão dos jesuítas do Reino, em 1759, iniciou-se a reforma do

em 1789” indicada por Domingos Vandelli, por constituir-se na primeira flora portuguesa. Também estiveram
em Portugal: o famoso naturalista francês Tournefort, “talvez ainda no final do século XVII ou nos primeiros
anos do século XVIII”; Antoine de Jussieu e outros “desse apelido” que empenharam-se em herborizações da
flora portuguesa ao longo do século XVIII; o médico francês Jean Vigier que, residente em Lisboa por mais de
trinta anos, escreveu Tesouro Apolíneo, Galénico, Químico, Cirúrgico etc e “Histoire des Plantes de l’Europe,
editada pela primeira vez em Lião, em 1670 (...) e traduzida para o português, pelo próprio Vigier, e publicada
em 1718” com o título História das Plantas da Europa e das mais usadas que vêm da Ásia, da África e da
América, onde vê-se figuras, seus nomes, em que tempo florescem e o lugar onde nascem. Com um breve
discurso das suas qualidades e virtudes específicas, em dois volumes totalizando 866 páginas de texto; o
naturalista (francês ou suiço ?) Merveilleux, que empreendeu expedição científica pelas “provínicas
portuguesas e redigindo diversas memórias sobre História Natural que entregou a D. João V (...) A obra
intitula-se Memoires instructifs pour un voyageur dans les divers Etats de l’europe. Contenant des Anedoctes
curieuses très propres à éclaircir l’Histoire du Tems, avec des Remarques sur le Commerce et l’Histoire
Naturelle, publicada em Amsterdam em 1738 e traduzida e publicada em português pela Biblioteca Nacional
de Lisboa em 1983 (Carvalho, 1987, p. 12-20).
71

ensino nas então chamadas escolas menores, de tradição escolástica, até então
dominado pelos padres da Companhia de Jesus. A reforma do ensino universitário não
se pôs na mesma “condição de urgência (...) visto a Compainha de Jesus não se ter
apoderado das cátedras coimbrãs”, embora alguns jesuítas tenham ali lecionado
(Carvalho, 1987, p. 40).
A reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra ocorreu em 1772 e
juntamente com a formação da Academia das Ciências de Lisboa em 1779 "marca o
advento no país das Ciências Físicas e Naturais" (Fontes, 1966, p.10), abrindo-se
Portugal para as ciências modernas. Os jovens talentosos nascidos no Brasil, que não
contavam com instituição de ensino superior além dos seminários dos jesuítas, tiveram aí
a oportunidade de integrarem-se ao grande desenvolvimento que se verificava na História
Natural européia do período66.
Os novos Estatutos da Universidade de Coimbra reformaram as Faculdades de
Leis, de Teologia e de Medicina ao mesmo tempo em que criaram as Faculdades de
Matemática e de Filosofia Natural. A Faculdade de Filosofia Natural, contava com os
cursos de Filosofia Racional e Moral (Lógica, Ética e Metafísica) no primeiro ano; de
História Natural (Zoologia, Botânica e Mineralogia), acompanhada da disciplina de
Geometria na Faculdade de Matemática, no segundo ano; de Física Experimental no
terceiro e de Química Teórica e Prática no quarto ano67. Os doutores formados eram
denominados de “naturalistas”68. Segundo os estatutos, a Faculdade de Filosofia Natural
deveria gozar da mesma importância que as demais. Isso pode ser medido pelo fato de
os quatro anos do Curso Filosófica terem-se tornado pré-requisito aos estudantes
interessados em doutorarem-se em Medicina, bem como aos estudantes destinados à
Faculdade de Teologia 69 . Os alunos poderiam ser atraídos para o Curso Filosófico

66
As matrículas de brasileiros nas Universidades de Coimbra, assim como na Universidade de Montpellier
nesse período são apontadas em Rodrigues, 1949; Moraes, 1949; Araújo; Pedrosa, 1959; Herson, 1996. A
secularização foi outra marca do governo ilustrado, em que persiste “a preocupação com a sobrevicência da
aristocracia: seus filhos são estimulados a estudar em colégios e faculdades, reformadas ou recém-criadas,
especialmente voltadas para os estudos modernos mais diretamente aplicáveis aos problemas da
administração do Estado” (Falcon, 1986, p. 26).
67
Segundo os novos estatutos, “Os estudantes poderiam matricular-se no curso a partir da idade de catorze
anos já feitos, deveriam entender e saber escrever ‘correcta e desembaraçadamente a Língua Latina’ e
possuírem o necessário conhecimento da Língua Grega para que a compreendessem quando escrita. As
aulas de História Natural, no 2º ano, eram diárias, da parte da tarde, e tinham a duração de hora e meia”
(Carvalho, 1987, p. 40).
68
Em 1765, já teriam sido introduzidas, no Colégio de Nobres de Lisboa, as disciplinas de Física Experimental
e de História Natural (Braga, apud Ferraz, 1995a, p. 23).
69
Conforme Ferraz, 1995b, p. 182. Bom para a valorização da Filosofia Natural mas nem tanto para o bom
andamento dos cursos, pois, em “1777 o número de estudantes era muito abaixo do que gostariam seus
dirigentes, em todas as faculdades reformadas da Universidade de Coimbra”. O caso era especialmente grave
na Faculdade de Medicina “pois a diminuição drástica do número de alunos deveria trazer, no parecer do
72

através do pagamento de “partidos”, “uma espécie de auxílio aos que se distinguissem no


estudo70” (Ferraz, 1995a, p. 54).

4.1 Domingos Vandelli (1735-1816) e a Formação de Naturalistas

Em 1772, o marquês de Pombal nomeou Domingos Vandelli (1735-1816) da


Universidade de Pádua como lente para as cátedras de Química e História Natural da
Universidade de Coimbra. Vandelli contava em seu currículo com diversos estudos já
publicados em História Natural, Medicina e Química, doutorando-se, em Coimbra, em
Filosofia e Medicina. Vandelli já havia participado da elaboração do projeto da reforma
universitária para lecionar no Colégio Real dos Nobres em Lisboa71.
Vandelli manteve contato freqüente com o naturalista Lineu, cuja influência
delinea-se em seus estudos e coletas de produtos naturais nas viagens efetuadas pela
Itália e que culminaram com a criação de um Museu de História Natural em Pádua, em
1763. Embora não conste que Vandelli tenha vindo a pisar em solo brasileiro, foi
entusiasmado por Lineu para o estudo de seus recursos naturais. Transcreve-se, à
seguir, a tradução feita por Maria Estela Guedes à VIII carta de Lineu à Vandelli, de 12 de
fevereiro de 1765, publicada em anexo à sua Florae Lusitanicae et Brasiliensis Specimen,
1788 (republicada em Romer, 1796), de onde retirou-se a versão original em latim,
acrescida de duas frases, para efeito de comparação:

“O utinam posses ipse adire Brasiliam, Terram,


quam nemo calca vit, excepto Marcgravio com suo
fure Pisone; sed in tempore quo nondum fax erat ac-
censa in Historia Naturali, adeoque debent om-
nia e novo describi ad lucem. Tu fores (sores?) prae reli-

reitor, graves conseqüências para a Universidade e para o povo. A razão da diminuição estaria, segundo
‘muitos Medicos’, na necessidade de os estudantes permanecerem na Universidade por oito anos, sendo três
de preparatório no Curso Filosófico e mais cinco no estudo da Medicina”. Nas outras Faculdades a
preocupação era menor porque se o número de estudantes das Faculdades de Leis e de Teologia, que
também fora estendido, com a obrigatoriedade da Filosofia Natural, para nove anos de escolaridade
(Carvalho, 1987, p. 43), era pequeno em comparação com o período anterior à reforma, era ainda “suficiente
para as necessidades do Reino” (Ferraz, 1995a, p. 53). O interesse pela Filosofia Natural diminuiu entre os
“brasileiros”, no início do século seguinte, em favor dos estudos de Direito” (Ferraz, 1995b, p. 181).
70
Consideravam-se alunos “obrigados” os que iriam destinar-se a outras Faculdades e alunos “ordinários” os
que pretendiam tornar-se naturalistas.
71
“... criado por legislação de 1761. Este Colégio, que só começou a funcionar em 1766” não atingiu os
objetivos pretendidos e em 1772 foi limitado ao ensino das Humanidades. Vandelli teria passado “pouco mais
de um ano” ali, entre 1764 e 1765, sem “ter tido a oportunidade de leccionar, no Colégio, as disciplinas de sua
especialidade” (Carvalho, 1987, p. 48).
73

quis aptus, qui in Re Naturali solidissimus es, in


inquirendo indefessus, in pulcherrime depingendo dex-
terrimus. Sed forte nullus in Lusitania agnoseit finem
Creationis esse Gloriam Dei ex opere; nos vero agno-
seimus D. T. O. scripsisse duos libros & Naturam
& Revelationem; ideoque illi harent in tenebris,
sed feliciter exteris. Bone Deus fi Hispani, & Lu-
sitani noscent sua Bona Naturae, quam, infelices es-
sent plerique alii, qui non possident terras exoticas!” (Linné, 1788, p. 80-81)72.

“Oxalá possas ir ao Brasil, terra onde nunca ninguém andou, excepto


Marcgrave com o seu (sure/fure?) Pisão; mas num tempo em que não estava
acesa nenhuma luz da História Natural; agora tudo deve ser de novo descrito
à luz. Tu estás apto para isso, és solidíssimo nas coisas da Natureza,
infatigável na inquirição, habilíssimo nos belos desenhos. Porventura em
Portugal ninguém reconhece que o fim da obra da Criação é para a Glória de
Deus; nós verdadeiramente reconhecemos ter D.T.O (Deus Todo
Poderoso?) escrito dois livros, Natureza e Revelação” (Lineu, apud Guedes).

As cartas de Lineu mantidas na publicação supra-citada foram enviadas de


Lupsala entre as datas de 3 de fevereiro de 1759 (1ª carta) e 12 de outubro de 1779 (22ª
carta). Elas atestam a grande troca intelectual entre os dois naturalistas, na medida em
que Lineu pergunta sobre a presença de determinadas espécies na flora brasileira,
comenta sobre nomenclatura e identificação de muitas das espécimes a ele remetidas,
instiga Vandelli a terminar a Flora Lusitanica, encorajando-o por várias vezes, mostra-se
à par dos afazeres e responsabilidades assumidas por Vandelli em Coimbra além de
mantê-lo informado sobre as edições sucessivas do Systema Naturae, mencionando o
número de novos gêneros descritos73.

72
Diferentemente da transcrição da Introdução ao Diccionario de Termos Technicos de Historia Natural e de
A Memoria sobre a Utilidade dos jardins Botanicos apresentada no apêndice 2, nas passagens das cartas de
Lineu ora citadas foram seguidas, ainda que parcial e “amadoramente”, as Normas Técnicas de Transcrição
Paleográfica apresentadas pelo Prof. R. Román Blanco, especialmente no que se refere à substituição do S
largo pelo s normal (Regra 6); uso do s para o f com valor de s (Regra 14); uso de c em lugar de ε. Por falta de
competência suficiente ao discernimento do que sugere a Regra 5, referente ao uso do i em lugar do i longo,
manteve-se fidelidade ao original (Blanco, 1987, p. 19).
73
Reproduzem-se, à seguir, trechos das cartas que corroboram a opinião mencionada, conforme parcos
conhecimentos pessoais do latim. Arriscando receber a opinião de que esta menção só deveria ser feita
acompanhada de devida tradução, optou-se, ainda assim, pela transcrição dos trechos retirados daquela obra
rara, em estado de pouca conservação no IEB/USP, para que futuramente se possa dela fazer uso mais
digno.
Carta I, 3/fev./1759: “Prodiit Systematis Naturae editionis decimae tomus primus de animalibus; sudat tomus
secundus de plantis; tomus tertius continuabit de lapidibus” (Linné, 1788, p. 74).
Carta VI, 12/fev./1763: “... quo Systema Naturae editionis decimae emiseram, dedi 200 nova insecta in altera
editione Faunae ...” (Linné, 1788, p. 79).
Carta XV, 15/jul/1767: “... Systematis editionis 12. tomus primus e prelo prodit; ex eo videbis, quod fideliter,
quæ a te accepi, allegavi. Alter tomus de plantis ad ½ impressus est, in e jus Didynamia dedi characterem,
2 descriptionem novae plantae Vandelliae; (...) Avidissime jam ícire opto quomodo tu valeas, & tua Flora,
omnes curiosi, qui ad me scripsere, avide expectant scire quod (ferat/serat?) Lusitania tua. (....) In tomo
secundo circiter 50 Genera plantarum, quæ antea non habui, adjeci, interque memorabile est Dracaena
74

A admiração recíproca é mais que verdadeira. É de Lineu que Vandelli extrai as


lições sobre o proceder do botânico e é a ele que se remete ao definir o campo de
investigações da História Natural74:

“Não consiste pois o estudo da Historia Natural, na simples nomenclatura;


mas nas observações, e nas experiências para conhecer as relações, a
ordem da Natureza, sua economia, policia, e formação da Terra, e
Revoluções, que sofreu, e em fim as utilidades, que se pódem tirar das
produções naturaes além das conhecidas.
Pelo que sendo este estudo tão util, e necessario, e digno que muitas
pessoas se apliquem a ele, e consistindo huma de suas maiores dificuldades
na inteligencia dos termos, de que os Naturalistas, e principalmente o Cel.
Linnéo fazem uso; por isso me determinei com a maior clareza possivel, a
traduzilos na nossa lingua” (Vandelli, 1788, p.iv-v).

Coube a Vandelli a formação de uma geração de naturalistas que deveria


promover o desenvolvimento da pátria portuguesa, pois a Botânica não era apenas
valorizada como disciplina acadêmica, mas almejada, especialmente, por sua aplicação
na agricultura e exploração de recursos naturais. Caberia aos naturalistas a tarefa
grandiosa de coletar, nomear, descrever, analisar e explorar as riquezas naturais de
todas as terras do Reino, para o fomento do comércio ultramarino em benefício de
Portugal75. Vandelli foi, talvez, a maior “expressão de um movimento intelectual que via a
necessidade de salvar o Reino” (Munteal, 1993, p. 18) da crise em que Portugal se
encontrava nas três últimas décadas do século XVIII.
A amplitude dos empreendimentos coordenados por ele deve ser entendida
segundo esse contexto político que objetivava a recuperação econômica do Reino

Vandellii” (Linné, 1788, p. 87).


Carta XVII, 13/mai/1769: “... Optarem vivere eo die, quo Flora tua Lusitanica prodiret, quae divers erit
rarissimis plantis europaeis, cum ne unus aut alter vestras viderit. Poteris sine dubio e Brasilia obtinere semina
rariorum plantarum, & ea in vestra calidissima regione sub dio terere, cum nulla hyems apud vos plantas
destruat. Varias habet Marcgraphius plantas, quas nullus Botanicus Systematicus potuerit ad sua amandare.
In Insula S. Thomae omnium omnino plantarum ibi nascentium vulgatissima est tua Vandellia” (Linné, 1788, p.
88-9).
Carta XX, 24/jul/1773: “Habui graphicas tuas litteras d. 17 Maii ultimi datas, ex quibus laetus perspexi fata tua
& totius reformatae Academiae. Propalavi apud omnes Amicos meos qualis quantus que sit Illustr. Pombalius
Scientiarum Protector, & Restaurator,cui felicia fata omnes, qui mecum scientias colunt, animitus exoptant.
Quid jam novi moliatur Flora in tuo Paradiso? in meo tuam memoriam quotidie mihi revocant tres insignes
plantae (...) (Linné, 1788, p. 90).
Carta XXII, 12/out/1779: “Nunc gratulor tibi, Vir Celeberrime, quod occasionem habuisti impensis vestrae
Reginae in Americam mittere Discipulos tuos, nunc fine dubio plura habebis pulchra” (Linné, 1788, p. 91).
74
Analisando os exemplares da flora e fauna brasileira, remetidos à Portugal com certa constância entre 1763
e 1807, constata-se que Vandelli publicou, entre outras obras, Florae et brasiliensis specimen “escrita a partir
da correspondência mantida com Lineu”, em 1788 (Munteal, 1993, p. 78).
75
“Influenciado pela fisiocracia (e, quem sabe, como uma reação ao mercantilismo da época pombalina),
[Vandelli] vê na agricultura o bem maior de seus povos. Nesse sentido, a História Natural e a descrição da
75

através de uma espécie de mercantilismo tardio, reinante na administração pombalina, e


de uma outra tendência, mais fortemente delineada sob D. Maria I, a fisiocracia, cuja
ênfase na agricultura domina o pensamento francês de meados do século XVIII 76 .
Tome-se como ilustração o verbete “Agricultura” no Grand Dictionnaire Universel du XIXe
Siècle:

“Arte de cultivar a terra, de fertilizá-la, de a fazer produzir; a Agricultura é o


seio do país (Sully);
“A agricultura é a primeira profissão do homem, é a mais honesta, a mais útil
e, conseqüentemente, a mais nobre que ele pode exercer” (J.-J. Rousseau);
“O amigo dos homens, esse Sr. de Mirabeau, que fala, que fala, que fala, que
decide, que resolve e que se engana tão freqüentemente, não é mais claro
que quando diz: Ame a Agricultura” (Voltaire). (Agricultura, 1866, p. 142)77.

Essas idéias comparecem na obra de Vandelli, e na dos alunos então formados


em Coimbra, quando converte o estudo dos temas agrícolas e dos recursos naturais para
uma finalidade eminentemente prática, a ponto de torná-los instrumentos de política
econômica. A inspiração no iluminismo italiano também colabora: “o que há de singular
na produção científica vandeliana é precisamente a interdependência dos estudos de
História Natural (classificação) e das investigações sobre a ciência da agricultura
(utilidade)” (Munteal, 1993, p. 55). A Botânica é definida pela Agricultura:

“O saber pois somente o nome das plantas naõ he ser Botanico, o verdadeiro
Botanico deve saber álem disto a parte mais difficultoza, e interessante, que
he conhecer as suas propriedades, usos medicinais; saber a sua vegetaçaõ,
modo de multiplicar as mais uteis, os terrenos mais convenientes para isso, e
o modo de os fertilizar” (Vandelli, 1788, p. III).
“A Sciencia da Agricultura consiste principalmente no conhecimento dos

natureza, seriam fundamentais para facilitar a exploração e melhorar os cultivos (Ferraz, 1995b, p 189-90).
76
O mercantilismo é entendido aqui conforme o ponto de vista de Francisco Falcon, como “o conjunto de
idéias e práticas econômicas que caracterizam a história econômica européia e, principalmente, a política
econômica dos Estados modernos europeus durante o período situado entre os século XV/XVI e XVIII”
(Falcon, 1996, p. 11), caracterizado pela transição do feudalismo ao capitalismo. É considerado tardio por ser
recuperado pelo Absolutismo Ilustrado “nas ‘Europas periféricas’, isto é, na península ibérica, na Itália, na
Alemanha e na Rússia, no momento mesmo em que o mercantilismo é submetido à críticas cada vez mais
agudas” (Falcon, 1996, p. 64).
A fisiocracia surgiu na França, na segunda metade do século XVIII, sob a liderança de François de Quesnay e
Mercier de la Rivière. Ainda segundo Francisco Falcon, é uma doutrina econômica que dá ênfase ao
incremento da agricultura através de empréstimos e racionalização do sistema fiscal. Os fisiocratas, “partindo
de uma filosofia utilitarista a respeito das relações sociais, produziram uma teoria política por eles mesmos
denominada de despotismo legal. A base fundamental da ordem natural é a propriedade, e a atividade
governamental deve procurar ‘o maior aumento possível da produção e da população e assegurar a maior
felicidade possível para o maior número de pessoas’. É dever do Estado, através do ‘déspota legal’, garantir
os direitos de propriedade, segurança e livre concorrência” (Falcon, 1986, p. 18).
77
O citado Marquês de Mirabeau é fisiocrata autor de Os Economistas, Amsterdan e Paris, Lacombe, 1769 e
Filosofia Rural, 1763 (Denis, 1994, p. 686).
76

vegetaes, da sua natureza, e do clima, e terreno em que nascem; na causa


da fertilidade da terra, na influencia do ar sobre os vegetaes, e nas regras
praticas necessarias para a boa cultura” (Vandelli, 1788, p. 293).

Além de responsável pelos Cursos de Química e História Natural, Vandelli foi


incumbido do estabelecimento do Jardim Botânico junto ao palácio real da Ajuda, em
Lisboa, em 1768, e atuou na formação do Museu de História Natural de Coimbra e do
Jardim Botânico de Coimbra, que se constituíram nos “espaços mais vitais de atuação
intelectual e científica de Vandelli, no final da governação pombalina e no período de D.
Maria I, até a invasão e ocupação francesas, que trouxeram para o naturalista italiano a
acusação de jacobinismo, seguida do exílio em Londres” (Munteal, 1993, p. 20), de onde
só retornou em 1815. Em Vandelli, lente da universidade e inspetor do jardim botânico,
assuntos relativos do jardim, aponta também para a necessidade de criação de “um
observatório, do gabinete de Física experimental, do laboratório de Química prática, de
um teatro anatômico, de um dispensatório farmacêutico” (Vandelli, apud Munteal, 1993, p.
57)78.
Na Memória sobre a Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, escrita
provavelmente em 1790, Vandelli reclamava que os propósitos da reforma estatutária da
Universidade só seriam atingidos através da adoção de várias medidas79. Vandelli elenca
então a necessidade da criação de uma cátedra de Economia, que “reuniria os diversos
conhecimentos da Agricultura, Artes, Manufaturas, Medicina e Comércio”; da
implementação de “soldos e prêmios” para os seus professores; da oferta de cargos para
os naturalistas formados, como “Intendências de Agricultura, de Ouro, dos Diamantes,
das Casas da Moeda, das Fábricas, dos Caminhos, dos Rios e dos Portos” (Ferraz,
1995b, p. 182-3).
Destacava ainda Vandelli a importância da realização de viagens científicas, ou
filosóficas, como eram denominadas, sob a coordenação de naturalistas capacitados a
reconhecer e aconselhar sobre a exploração dos recursos naturais do Reino e das
conquistas80:

78
O manuscrito Vandelli, lente da universidade e inspetor do jardim botânico, assuntos relatiovs do jardim
está na Coleção Negócios de Portugal, caixa 463, Arquivo Nacional.
79
A Memória sobre a Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra existe em pelo menos duas
versões, diferentes em alguns pontos: uma está em papéis diversos, maço 519, sem data, no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo e a outra encadernada entre Memórias inéditas, manuscrito VII, na Biblioteca da
Ajuda (Ferraz, 1995a, p. 64).
80
“A escolha de ‘filosóficas’ para qualificar as referidas viagens tem sua razão de ser no motivo que levou a
denominar Faculdade de Filosofia ao departamento universitário criado pela Reforma Pombalina, onde se
estudava (...) a História Natural. O seu estudo constituía uma atitude filosófica, a de observar e intrpretar a
Natureza nos seus diversos domínios” (Carvalho, 1987, p. 81).
77

(...) Que esta viagem há-de contribuir muito para o aumento da agricultura, e
perfeição das artes não se pode negar, pois só desta sorte se pode conhecer
o que o nosso país tem, e o de que é capaz. Ora se são úteis as viagens
feitas nos reinos estranhos, como totos os dias observamos, e se nós
mesmos temos mandado a eles alguns filósofos nossos, quanto não será
mais interessante uma viagem feita no nosso país, se é que queremos que se
diga que nos propomos saber o que há na casa alheia, ignorando o que há na
nossa” (Vandelli, 1987, p. 35).

Nesse documento, Vandelli deixa transparecer a relação que faz entre os “estudos
mineralógicos, botânicos e também químicos”, pois discrimina que um viajante naturalista
deveria ater-se a:

1º) “análise de todas as terras e seus principais constituintes, se conhece a


diversa proporção, em que se acham combinados; donde se deduz quais são
as plantas para que são mais próprias”;
2º) “Como as lenhas são um objeto de tanta importância, (...) maduro exame
sobre o estado dos nossos bosques, e matas, (...) das minas de carvão
fóssil”;
3º) “... conhecimento dos metais (...) e dos minerais (...) que podem fornecer
matéria para o estabelecimento de muitas fábricas, onde se empregam
substâncias importadas de países estranhos”;
4º) “O conhecimento de todas as plantas (...) os diferentes usos, que podem
ter já nas artes, e já na economia animal; ou sejam consideradas como
alimentares, ou como medicinais”;
5º) “... análise de todas as águas medicinais do reino, visto que do seu
conhecimento nasce o interessante ramo de medicina hidrológica” (Vandelli,
1987, p. 34-5).

Em 1779, Vandelli escreve sobre as tarefas nas Viagens filosóficas ou Dissertação


sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve
principalmente observar, expondo as questões: “Da necessidade dos Diários e método de
os fazer, Do conhecimento físico e moral dos povos, Dos rios, fontes minerais e lagoas,
Do reino das plantas, Do reino animal e outros tópicos ligados aos métodos de
classificação” (Munteal, 1993, p. 88)81. As instruções aos naturalistas incluíam Rol dos
instrumentos, drogas e mais utensílios pertencentes à História Natural, Física e Química,
que são indispensáveis a um naturalista que viaja: livros e cartas geográficas, lentes,
microscópios, óculos, tenazes para apanhar cobras e outras para insetos, armações para
apanhar borboletas, conchas e corais, martelos, machados, escopros, limas e serrotes,

81
Essa Memória encontra-se na Coleção de história e memórias das Academias de Ciências de Lisboa,
manuscrito do acervo da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
78

anzóis, espingardas, escalpelos, navalhas, tesouras, alfinetes e agulhas, sondas para o


mar e lagoas” (Munteal, 1993, p. 89)82.
A Memória sobre a necessidade de uma viagem filosófica feita ao reino e depois
nos seus domínios, escrita à Academia Real das Ciências de Lisboa, em 1796, mantida
em códice no Arquivo Nacional, também faz notar a inclinação fisiocrata de Vandelli:

“É logo a agricultura, as artes, e comércio o primeiro móvel da fortuna de


qualquer país, e único manancial de todo o bem do Estado, e de todo
interesse ou seja público, ou particular de uma nação. Ora como esta Real
Academia se tem proposto fomentar a indústria de nossos povos, e contribuir,
quando está da sua parte, para o aumento da agricultura, e perfeição das
artes, eu vou nesta pequena memória fazer ver quanto interessa ao mesmo
progresso da agricultura, e artes o conhecimento das substâncias, de que
abunda o nosso reino; mostrando ao mesmo tempo quanto se faz digno da
sua providentíssima atenção o mandar fazer para o mesmo fim uma viagem
filosófica, primeiramente nele, e depois nos seus domínios” (Vandelli, 1987, p.
34).

São várias as expedições efetuadas pelos alunos de Vandelli especialmente no


ano de 1783: Joaquim José da Silva foi enviado à Angola83; Manoel Galvão da Silva à
Índia e Moçambique84; João da Silva Feijó, a Cabo Verde, onde ficou até 1793 como
naturalista a serviço da Coroa. Mas foi sempre o Brasil o alvo de maior atração. No início
do século XIX, Feijó realizou investigações no Ceará, tendo algumas de suas obras
publicadas pela Imprensa Regia85. Remessas eram enviadas por vários naturalistas que

82
Vários textos do final do século XVIII dedicaram-se a “descrever quais deveriam ser as atividades a serem
desenvolvidas” pelos naturalistas: Breves Instrucçõens aos correspondentes da Academia das Sciencias de
Lisboa sobre as remessas dos produtos e notícias pertencentes a historia da Natureza para formar hum
Museo Nacional, 1781; as Instruções passadas ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira sobre o roteiro da
viagem entre o Pará e Mato-Grosso pelos Rios Amazonas e Madeira..., manuscrito no Arquivo do Instituto de
Estudos Brasileiros, São Paulo, Coleção Lamego, cod. 101, A8; as instruções traçadas pelo próprio Alexandre
Rodrigues Ferreira para sua viagem, publicadas pela Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, 1946, 53,
pp. 46-52; ou ainda, a Expedição da conduta e da utilid.e de hum Naturalista peregrino no Brazil, de
Jean-François Ravin, 1774, manuscrito no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, Coleção lamego, cod.
16.28, A8” (Ferraz, 1995a, p. 135).
83
Isto contrasta com a informação de que, para Angola, teria sido enviado “o naturalista italiano Angelo
Donatti e o riscador João Antonio” (Carvalho, 1987, p. 87).
84
Para Moçambique, Manuel Galvão da Silva teria sido acompanhado por “António Gomes, riscador, e João
da Costa ‘para recolher plantas, sementes, e fazer herbário’” (Carvalho, 1987, p. 87).
85
De João da Silva Feijó (1765-1815) pudemos levantar as seguintes obras:
1) Feijó, João da Silva. Prefação preliminar ao ensaio filosófico e político da Capitania do Ceará para servir à
sua história geral... naturalista encarregado das investigações filosóficas da mesma capitania. 1808. 9fl.
Autografado, Manuscritos 1,1, 6. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Trata-se de material cuja leitura é
muito difícil. 2) Feijó, João da Silva. Preambulo ao Ensaio filosofico, e politico sobre a capitania do Ceará
para servir á sua Historia natural, pelo Sargento Mór, e Naturalista João da Silva Feijó, Encarregado das
Investigações Filosóficas da mesma capitania. Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1810. 3) Feijó, João da
Silva. Memória econômica sobre a raça de gado lanígero da capitania do Ceará...Rio de Janeiro, Imprensa
Régia, 1811. 53p. Encontrado na seção de obras raras da Biblioteca Nacional. 4) Feijó, João da Silva.
Memória sobre mineraes de ferro do Cangaty do Xorro na Capitania do Ceará ... 24 de out. 1814. Cópia, 12p.
79

já se encontravam em várias regiões do Brasil: “Joaquim Velloso de Miranda, em Vila


Rica; Francisco Vieira do Couto, em Serro do Frio, Serafim Francisco de Macedo, em Vila
de S. Francisco da cidade da Baía; José da Silva Lisboa, na Baía; e Estácio Gularte, no
Rio de Janeiro” (Carvalho, 1987, p. 83).
Além dessas pessoas, José Mariano da Conceição Veloso e Alexandre Rodrigues
Ferreira foram, dentre os naturalistas nascidos em solo brasileiro, os que mais
destacaram-se devido a magnitude das tarefas que lhe foram atribuídas. Trataremos em
maior detalhe de Alexandre Rodrigues Ferreira, outro aluno de Vandelli que, de certo
modo, foi contemplado, até mais do que Arruda da Câmara, com cargos e expedições,
por assim dizer, oficiais, mas cuja obra reflete mais dramaticamente a ambigüidade do
empenho português na formação de naturalistas profissionais. A expedição filosófica
realizada por Rodrigues Ferreira pelos sertões do Brasil e os resultados por ela
alcançados auxiliam na composição do quadro contraditório em que Portugal projetava o
seu desenvolvimento científico. Mais adiante, ao tratar-se das tipografias, será feita uma
breve apresentação de Conceição Veloso.

4.2 Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) e a Expedição Filosófica

Alexandre Rodrigues Ferreira já foi apontado como o primeiro zoólogo nascido no


Brasil, na cidade de Salvador, em 27 de abril de 1756 (Carvalho, 1965, p. 7). No entanto,
outras biografias têm ressaltado mais justamente o caráter multitemático de suas
investigações, o que é mais adequado ao fazer científico de seu tempo86. Assim, embora

Manuscrito. Biblioteca Nacional. 5) Feijó, João da Silva. Flora ciarense, 1818. Cop. Cod. enc. de 92 fls.
Manuscrito e microfilme. Biblioteca Nacional. 6) Feijó, João da Silva. Relatório e catálogo: província do
Ceará. 1875. Fortalea, Typ. Imparcial de Francisco Perdigão, 1875. 97p. Anexo: Memória Inédita ao
naturalista Feijó, sobre a mineira de ferro de Cangaty, p. 93-95. Manuscrito. Biblioteca Nacional. 7) Feijó,
João da Silva. Compendio de lições elementares de história natural descriptiva dos dois reinos, zoológico,
phitológico organizado segundo o sistema de Linneo por João da Silva Feijó. 2 v. s.d. Manuscrito. Biblioteca
Nacional. Contém uma classificação dos animais. É um compêndio de zoologia, com lições muito
organizadas. 8) Feijó, João da Silva. Memória sobre a Capitania do Seará. O Patriota, n.2, março-abril
1814, p. 21.
Em Marcia Ferraz, 1995a, p. 152, são citadas ainda as seguintes obras:
9) Memória sobre a Fábrica de anil da ilha de Santo Antão, Memórias Económicas da Academia real das
Sciências de Lisboa tomo I, pp 293-303. 10) Memória sobre a urzela de Cabo Verde, Memórias Económicas
da Academia real das Sciências de Lisboa tomo 5, pp. 109-116. 11) Ensaio Económico sobre as Ilhas de
Cabo Verde em 1797, Memórias Económicas da Academia real das Sciências de Lisboa tomo 5, pp. 131-147.
12) Memória sobre a última irrupção da Ilha do Fogo. O Patriota, 1814, 2ª subscrição, 5(novembro), pp. 23-32.
13) Memória sobre o anil das ilhas de Cabo Verde. Museu Paulista, São Paulo, Arquivo José Bonifácio, D283.
86
Talvez, o fato de ter estudado sua obra zoológica, tenha influenciado este autor. De qualquer forma,
Carvalho não afirmou ser A.R.F. "apenas" um zoólogo. De qualquer forma, condiz com: "Alexandre Rodrigues
80

menos econômico, seria melhor citá-lo como "geógrafo, sociólogo, etnólogo, antropólogo,
economista e agronômo" (Fontes, 1966, p.7) ou como "geógrafo, etnógrafo, naturalista"
— incluindo-se aí a "Antropologia, Mineralogia, Zoologia, Botânica, Espeleologia e
sobretudo, talvez, Agronomia" (Silva, 1947, p. 9)87.
Seguiu a Portugal em 1770, matriculando-se na Universidade de Coimbra, aos
quatorze anos de idade. Dois anos mais tarde, assistiu a Reforma da Universidade e em
1774 transferiu-se para a Faculdade de Filosofia, obtendo ali a sua titulação, em 1778.
Nesse período, de 1777 a 1778, foi “demonstrador de História Natural na Universidade”
nas aulas de Domingos Vandelli (Garcia, 1922, p. 875). Ao doutorar-se foi indicado por
seu professor para chefiar uma expedição filosófica que deveria inventariar os recursos
naturais que pudessem servir aos interesses mercantis da Coroa portuguesa em seus
domínios americanos. Seria o início de um grande trabalho de pesquisa da fauna, flora e
minerais do Brasil, através de uma vasta expedição empreendida sob o seu encargo.
Partindo imediatamente para Lisboa, Alexandre Rodrigues Ferreira esperou, contudo, 5
anos para o início da expedição. Nesse intervalo, Alexandre Rodrigues Ferreira esteve
envolvido em diversas atividades como:

“o exame de uma mina de carvão de pedra em Buarcos ...; a redacção e


descripção dos productos naturaes do Museu da Ajuda; em experiencias
physicas e chimicas, na publicação de escriptos referentes á Sciencia e na
composição de outros, que se perderam, o que tudo lhe valeu a eleição de
membro da Academia das Sciencias de Lisboa, em 1780” (Garcia, 1922, p.
875).

De 1783 a 1792, Alexandre Rodrigues Ferreira finalmente partiu para essa que foi
a maior expedição de cunho científico empreendida pela Coroa Portuguesa em solo
brasileiro, pelas então Capitanias do Grão Pará, São José do Rio Negro (Amazonas) e
Mato Grosso (Cuiabá). Alexandre Rodrigues Ferreira chefiou a expedição na qualidade
de naturalista viajante, sendo o

“primeiro vassallo portuguez ... que exercitava a empresa de naturalista


encarregado de "observar, acondicionar e remeter para o Real Museu da
Ajuda os productos dos três reinos, animal, vegetal e mineral, sendo

Ferreira foi sobretudo um zoólogo. A fauna o seduzia mais que qualquer dos outros reinos da natureza" (Mello
-Leitão, 1941, p. 257).
87
Há ainda a denominação de "médico" baiano (Neiva, 1929, p. 5), devido a ter-se inscrito na Faculdade
Médica da Universidade de Coimbra em 1770. Embora tenha se transferido para o curso de Filosofia,
deixando inconcluso o de Medicina, não deixou de contribuir à temática médica, escrevendo a monografia
Enfermidades endêmicas da Capitania de Mato Grosso (Fonseca, 1958, p.8).
81

egualmente incumbido de todo o genero de observações philosophicas e


politicas sobre as differentes repartições e dependencias da população,
agricultura, navegação, comercio e manafacturas" (Oliveira Pinto, 1956, p.
102; Garcia, 1922, p. 875).

Assim, embora possa denominar-se de expedição naturalista, é importante


ressaltar, para compreender-se melhor o destino infausto das investigações de Rodrigues
Ferreira, que a sua expedição não possuía um caráter exclusivamente científico. Ao
contrário do que ocorreu durante o século XIX, quando as diversas expedições
estrangeiras traziam naturalistas que podiam dedicar-se mais exclusivamente às
observações da fauna e da flora brasileiras, coube a Alexandre Rodrigues Ferreira o
recolhimento de uma variada gama de informações, não apenas do âmbito mais amplo
da própria ciência como também de ordem socio-política.
A expedição fora idealizada em 1778, no reinado de D.Maria I, pelo Ministro da
Secretaria dos Negócios da Marinha e domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro,
com o objetivo de "incorporar-se às Comissões de Demarcação das fronteiras da América
portuguesa com as possessões espanholas", o que ocorreu, “de fato” e “parcialmente”,
em 1784. (Cunha, 1991, p. 18). Assim, tratava-se de agregar um interesse científico e
econômico ao caráter político militar das comissões de demarcação formadas em
cumprimento aos Tratados de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777), que definiam as
fronteiras das colônias “com base na ocupação efetiva”.
Este naturalista viajante deveria ainda encarregar-se de todos os aspectos
práticos da expedição, como sobre o que diz respeito ao relato dos "produtos
encontrados, ao acondicionamento desses produtos e à elaboração dos alimentos
diários, bem como ao asseio e saúde e aos cuidados com os instrumentos” (Moreira
Leite, 1994/5, p.8).
Rodrigues Ferreira foi acompanhado por dois artistas “riscadores”, José Joaquim
Freire e Joaquim José Codina e por um jardineiro-botanico, Agostinho Joaquim do Cabo.
Na medida em que deslocava-se pelas fortalezas e povoações, fazia cumprir as
provisões expedidas em Portaria do Governador e Capitão General do Estado, Martinho
de Souza de Albuquerque, para que

“directores e commandantes de todas as fortalezas e povoações, por onde


transitar, ou aonde mandar, lhe prestaráõ todo o auxilio e ajuda (...)
apromptando-lhe todo o mantimento, que precisar, e indios necessarios para
as equipações das canôas do seu transporte; praticando o mesmo todos os
officiaes auxiliares, juizes ordinarios, camaras, auxiliando-o com a gente que
82

requerer, e com as noticias e informações que pedir, deixando penetrar todos


os rios, serras, matos e abrir minas, aonde o julgar preciso, em ordem ao bom
fim das diligencias, de que vai encarregado por ordem de Sua Magestade”
(Albuquerque, 1983, p. 48).

Consta que houve momentos em que Rodrigues Ferreira esteve acompanhado de


“cerca de quinhentas pessoas, entre soldados, guias e índios da região”, o que indica o
vulto de seus compromissos (Biblioteca Nacional, 1992b; Cunha, 1991, p. 18). As
dificuldades, contudo, parecem ter sido mais da ordem das carências. No ano de 1788
são várias as cartas enviadas por Alexandre Rodrigues Ferreira às autoridades
portuguesas relatando as “contínuas deserções de soldados e índios domésticos” e
registrando a impossibilidade para “a Expedição de seguir viagem em virtude do exíguo
número de índios remeiros”88.
Fica do naturalista a “façanha estupenda de percorrer 39.000 quilômetros de hiléia
e sertão, colecionando e observando e escrevendo e resgistrando, mas, principalmente,
atendendo à injunção burocrática escravisante das instruções dos que o incumbiam da
tarefa” (Oliveira, 1958, p. 15). As vicissitudes porque passou o naturalista durante os nove
anos da expedição, pelo extravio de suas remessas à Portugal e pelas condições de seu
próprio retorno, têm sido indicadas pelos comentadores como justificativas da ausência
de uma análise científica mais rigorosa em sua obra.
De fato, em Relação dos animais quadrúpedes, silvestres, que habitam nas matas
de todo o Continente do Estado do Grão-Pará, divididos em três partes: primeira dos que
se apresentam nas mesas por melhores; segundo, dos que comem os índios em geral e
alguns brancos quando andam em diligência pelo sertão; terceira, dos que não se comem
(10 páginas), o próprio título desta memória indica o critério arcaico com que Alexandre
Rodrigues Ferreira organiza a distribuição das espécies. Note-se que não usa ainda o
termo mamífero para referir-se ao grupo. A listagem de animais está dividida em três
partes, 14 saborosos, 32 menos saborosos e 11 que não se comem. Como na maior
parte das memórias, apresenta apenas as características mais marcantes de cada
espécie, o que, no entanto, garantiu a identificação posterior da maioria dos animais
descritos89.

88
As cartas estão listadas no item 106, “Documentos relativos à Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues
Ferreira, desde o ano de 1784 até o de 1795”. In: Biblioteca Nacional, 1952.
89
Segundo identificação feita por Luiz Carlos Souto, os 14 animais do primeiro grupo correspondem a 12
espécies (Ferreira, 1972, p. 56-7):

queixada Tayassu albirostris (Illiger, 1811) - jovem


queixada-branca Tayassu albirostris - adulto
83

A precariedade de condições em que escrevia as suas memórias é sem dúvida


uma explicação melhor do que uma outra que também é levantada na bilbiografia sobre
Alexandre Rodrigues Ferreira: atribui-se essa lacuna ou falha taxonômica à precariedade
da própria sistemática zoológica do período (Carvalho, 1972, p. 55). Ora, o termo
mamífero já aparecera na décima edição do Sistema naturae de Lineu, em 1758, embora
a idéia de um grupo caracterizado pela posse de mamas já estivesse presente na terceira
edição original, de 1748 (Gregory, 1910).
Na Memória sobre o peixe-boi e do uso que lhe dão no Estado do Grão-Pará, 6
páginas, de 2 de fevereiro de 178690, Rodrigues Ferreira inicia, como de costume, com a
origem do nome, distribuição e abundância relativa do animal. Segue descrevendo os
modos de captura e o uso que se faz do peixe-boi, o modo de preparo de sua carne e de
obtenção de sua banha e manteiga, sem faltarem os preços com que esses produtos são
encontrados em localidades igualmente discriminadas. Ressalte-se que o autor garante
que, embora ainda haja confusão sobre o grupo a que pertence (inclusive entre a
população que alimenta-se dele acreditando estar cumprindo a abstinência de carne nos
dias santos), o peixe-boi deve “ser colocado no Sistema de Linnaeus no gênero
Trichechus e na espécie manatus”, pois trata-se de um autêntico “mamífero aquático”
(Ferreira, 1972, p. 59).
De qualquer modo, é legítima a pergunta sobre o que ele poderia ter feito e não o
fez. Em 1790, ele escreve com base em vasta documentação as Observações Geraes e
Particulares sobre a Classe dos Mamíferos observados nos territórios dos três rios, das
Amazonas, Negro, e da Madeira: com descrições circunstanciadas, que quase todos eles,
deram os antigos, e modernos naturalistas, e principalmente com a dos tapuios91. Inicia o

caitetu Tayassu tajacu (Linnaeus, 1758)


paca Agouti paca (Linnaeus, 1756)
veado-branco Mazama guazoubira (Fischer, 1814)
suaçucariaçu Odocoileus virginianus cariacou (Boddaert, 1784)
suaçuanhanga Mazama americana (Erxleben, 1777)
suaçuretê Mazama americana
suaçuapara Ozotocerus bezoarticus (Linnaeus, 1758)
suaçucaatinga Mazama simplicicornis (Illiger, 1811)
cutia-loura Dasyprocta aguti (Linnaeus, 1766)
cutia-preta Dasyprocta fuliginosa (Wagler, 1832)
cutia-de-rabo Myoprocta acouchy (Erxleben, 1777)
anta ou vaca-do-mato Tapirus terrestris (Linnaeus, 1758)

90
Publicado nos Arquivos do Museu Nacional, vol. XII: 169-174, 1903.
91
São muitos os autores citados ao longo das descrições: Lineu, Buffon, Charlcvois, Uchoa, Anson, Pison,
Marcgrave, Edward Tison, Ray, Aldrouand, Brisson, Plinio, La Condamine, Barrere, Malpighio, para não citar
toda a extensa bibliografia indicada e discutida pelo próprio autor entre as páginas 107 e 123 da referida
memória.
84

inventário com uma tabela de classificação dos “mamais” em que “seguindo a distribuição
de Lineu quanto às classes, porém, com o devido respeito a tão grande mestre, nem
todas as classes eu sigo as ordens” (Ferreira, 1972, p. 128).
Nessa memória, contudo, as descrições são bastante breves e nem sempre
equivalentes em todos os itens mencionados. Esses itens consistem em: origem do
nome; tamanho do animal; usos que dele se faz (de dentes, pele, presas, carne);
instruções sobre o preparo da carne para a alimentação; os lugares em que se
encontram. Para alguns animais faz um levantamento das citações em obras anteriores.
À execeção desse aspecto, a falta de sistematização dos dados, contudo, não torna
essas descrições muito dessemelhantes às dos séculos anteriores feitas por Lery,
Thevet, Gandavo, Marcgrave, embora Rodrigues Ferreira corrija freqüentemente
informações errôneas lá contidas. Desmente, por exemplo, a crença muito repetida
naqueles autores de que o bicho preguiça, visto sempre dormindo, não alimentava-se de
nada: “Possuindo exemplares vivos em casa, ofereci-lhes várias folhas diferentes para
sua alimentação e verifiquei que apenas as de embauba eram comidas” (Ferreira, 1972,
p. 49).

"... para cada espécie dá o nome lineano (quando já conhecido), a


bibliografia consultada e uma descrição sempre muito mais completa que a de
Lineu (ao qual, não raro, faz judiciosas restrições), dando os caracteres da
cabeça: – face, olhos, orelhas, nariz, focinho; tronco e assentos; artos e
cauda; anatomia interna. Completa essa parte morfológica ou sistemática um
curioso estudo dos costumes do animal (tratando com aquela minúcia, que
lhe era peculiar, da sua ecologia) e do seu emprego: uso médido, econômico
e dietético" (MELLO-LEITÃO, p. 258).

As descrições dos animais neste inventário seguem o exposto por Mello-Leitão,


mas devem ser feitas algumas ressalvas92 . Em primeiro lugar, conforme o que já se
discutiu nos capítulos anteriores, os comentários sobre os costumes do animal são da
ordem da História Natural característica do período e não da Ecologia. Vejamos quais os
elementos da História Natural que integram as descrições de Alexandre Rodrigues
Ferreira além daquelas discriminadas como “Usos” médicos, econômicos e dietéticos
(com destaque dado pelo autor à abundância da caça). Trata o autor, de modo não
sistemático, mas ocasional, dos hábitos, diurnos ou noturnos, do lugar em que habita, em
que se abriga durante a noite ou em que procura por alimento, do alimento, do número e

92
Uma avaliação cuidadosa das descrições morfológicas de Alexandre Rodrigues Ferreira estão em Carvalho,
1965.
85

do cuidado com as crias, da voz, de inimigos naturais, dos modos de defesa e ataque, de
sua locomoção. Uma citação recorrente é a da domesticabilidade do animal. Entre os
macacos, por exemplo, são descritos os casos de docilidade e meiguice que tornam o
animal facilmente familiarizado aos homens. Há casos particulares curiosos, como o do
macaco prego (Cebus apella):

“... meigos e dóceis, se bem que com alguma extravagância no seu afeto,
pois a algumas pessoas, sem motivo real e manifesto, mostram uma
extremada inclinação, e, a outras, um implacável rancor”. (Alexandre
Rodrigues Ferreira, 1972, p. 144)

Freqüentemente, o autor associa à domesticabilidade dados relativos a


características reponsáveis pela atração que o animal pode causar nos homens, como
pela “vivacidade de seus olhos, a variedade e o brilho de suas cores e a destreza de seus
movimentos”. Cuida também de indicar da maior robustez ou fragilidade perante a
mudança de clima e alimentos, indicando o interesse constante pelo transporte das
espécies mencionadas a outros domínios, pois a expedição de Alexandre R. Ferreira tem,
por uma de suas principais missões, o envio de espécimes à Europa, para constituição
das coleções dos museus de História Natural, dos herbários, hortos e viveiros.
Mello-Leitão não discute o problema da variabilidade do método. Alexandre
Rodrigues Ferreira não se preocupa em mencionar sistematicamente todos os critérios
descritivos dos animais, para todos os animais. Sua competência para um uso mais
rigoroso das descrições é demonstrada em outras obras, como a Memória sobre o peixe
Pirarucu, de que já se remeteram dois da Vila de Santarém para o Real Gabinete de
História Natural e agora se remetem mais cinco desta Vila de Barcelos, os quais vão
incluídos nos cinco caixões que constituem parte da sexta remessa do Rio Negro, de
1787, 3 páginas 93 . A memória contém a descrição latina e a nomenclatura binomial
conforme o modelo lineano do peixe 94 . Seguem-se considerações acerca da História
Natural, onde Alexandre Rodrigues Ferreira relata a origem do nome; a desova e a cria; a
época e os modos de pesca; o preparo na dieta; o uso do osso da língua e das escamas.
Ao relacionar os alimentos de que se nutre o pirarucu, Rodrigues Ferreira indica fazer
dissecções:

93
Publicada na sua versão original, por Alípio de Miranda Ribeiro, nos Arquivos do Museu Nacional, vol. XII:
155-158, 1903 (Carvalho, 1972, nota à p. 13).
94
Conforme comentário de José Cândido de Carvalho, se tivesse sido publicada, teria sido a primeira
descrição do peixe pirarucu, antecedendo as que foram feitas por Cuvier e Agassiz em 1829 (Carvalho, 1972,
p. 16).
86

“... Ele se alimenta de insetos e vermes aquáticos e de outros peixes tais


como a pescada, o aruanã, o tucunaré, a traíra, o pirapucu, o mapará e outros
que encontrei em seu estômago”.

Também é preciso salientar que quando o autor indica o tamanho dos animais,
quase sempre “palmos” e às vezes “pés” ou “varas” não o faz, sempre, por medidas
absolutas95. Há muitos casos em que é bastante impreciso, apenas comparando com as
dimensões de outro animal ou usando expressões ainda mais vagas, como “grande” ou
“pequeno”. Outro dado quantitativo, a abundância, também recebe o mesmo tratamento
inexato, pois as expressões usadas pelo autor não permitem qualquer definição
conclusiva: “são raros”, “onde há em maior abundância”, “onde não vi tantos quanto em”.
Nos casos em que compara dois sítios, a informação adquire valor comparativo: “há
maior número delas no Rio Amazonas do que nos outros que desaguam nele”96.
De volta à Portugal “exerce a função de vicediretor do Museu da Ajuda, sob a
direção de Domingos Vandelli, onde esperava organizar o material que havia enviado do
Brasil, a fim de escrever seus trabalhos” (Ferraz, 1995b, p. 187). “Alexandre Rodrigues
Ferreira e João da Silva Feijó, foram escolhidos por Domingos Vandelli para repartir a
cátedra de História Natural e Demonstrações Químicas do Museu de História Natural,
Jardim Botânico e Laboratório Químico em Ajuda, fato que aparentemente nunca
ocorreu” (Ferraz, 1995b, p. 188). Igualmente sem resultado teria sido esta outra petição
de Vandelli, em seu Relação da origem e estado presente do Real Jardim Botânico...:

“Respeito ao Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira Administrador do Jardim,


Laboratório, Museu e da Casa do Risco, oficial da Secretaria de Ultramar, de
cujo grande merecimento deu bastantes provas, até, das outras qualidades
das quais é dotado, depois de ter concluído a História das suas viagens do
Brasil, devia S. Mag. aproveitá-lo para Deputado na Real Junta do Comércio,
tendo vastos conhecimentos da Ciência Econômica e política, das produções
das Colônias, e do seu Comércio” (Vandelli, apud Munteal, 1993, p. 93).

95
Um palmo equivale a 8 polegadas ou 22 cm; uma vara representa 5 palmos, ou seja, 1,10m.
96
Das 65 espécies descritas neste Inventário, de apenas 4 Rodrigues Ferreira menciona a sua abundância.
Os macacos boca-preta (Saimiri sciureus ustus) “São infinitos pelas margens dos rios Amazonas, Negro,
Solimões e Madeira” (Ferreira, 1972, p. 149). As cutias pretas, (Dasyprocta fuliginosa) “são abundantes no rio
Negro” (Ferreira, 1972, p. 179). Os porcos (Tayassu) “são inumeráveis em todas as províncias quentes da
América Meridional” (Ferreira, 1972, p. 186). O peixe-boi (Trichechus inunguis) tem a sua densidade
populacional comparada entre várias regiões: “... na baía do Marapatá ... não chegam a ser tantos nem tão
grandes como da Vila de Curupá para cima ... Nos lagos da Vila de Faro é prodigiosa a sua quantidade.
Também há bastante nos da Vila de Sylves, sobre o rio Amazonas, e, com a mesma abundância, nos rios
Branco e Uaracá ... Mais raros são os peixes-boi de manteiga” (Ferreira, 1972, p. 197).
87

A grande investida científica de Alexandre Rodrigues Ferreira não frutificou entre


seus sucessores nem engendrou conhecimentos junto às instituições científicas de
Portugal. Na medida em que avançava pelos sertões do então Grão-Pará, o naturalista ia
enviando regularmente o material coletado para a instituição que promoveu a sua
expedição, o Real Museu de Lisboa. Enviou “mais de 200 volumes, em 13 remessas. Não
temos certeza do número de mamíferos remetidos, nem da maioria das localidades”
(Carvalho, 1965, p. 8). No entanto, muito do material coletado se perdeu. Sabe-se que as
remessas que chegavam em Portugal não eram devidamente catalogadas e
armazenadas. As fichas e anotações muitas vezes misturaram-se, consta que até
propositalmente, tornando inviável a sua reorganização e aproveitamento. Os
manuscritos permaneceram desconhecidos. Assim, não formou-se uma coleção
organizada e disponível para os estudos posteriores a que o próprio Alexandre Rodrigues
Ferreira idealizara executar nem que servisse como base de dados para outros
naturalistas examinarem. O projeto de formação do acervo de espécies da flora e fauna
brasileiras para os estudos naturalistas em Portugal simplesmente desvanecera.
O destino infausto de seu trabalho de coleta de dados e de espécimens para o
Museu também deve ser entendido na vontade de sigilo por parte do comando da Corte
portuguesa sobre os achados em terras brasileiras.
O próprio Vandelli atesta na Relação da origem e estado presente do Real Jardim
Botânico, Laboratório Químico, Museu de História Natural e Casa do Risco, escrito
provavelmente entre 1779 e 1780 (Munteal, 1993, p. 83), mantido em manuscrito do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o descaso com os materiais coletados denuncia o
estado de abandono do Laboratório e do Museu à época :

“A maior parte destas produções estão ainda fechadas em caixotes, como


vieram. Muitos animais, e principalmente insetos se perderam por não
estarem expostos (...) Existem nele muitíssimas produções desconhecidas
aos Naturalistas, entre as quais muitos minerais das Colônias e reino, que
ainda se devem classificar. O copiosíssimo herbário das colônias contém
gêneros e espécies novas e outras não bem conhecidas. Já estão riscadas e
iluminadas muitas plantas e animais. Além disso se acha neste Museu uma
boa coleção de diferentes vistas do Brasil, figuras de índios (...) Este Museu
não tem ainda Catálogo, e os nomes que algumas produções tem,
necessitam de ser novamente examinados. Eu já fiz o Catálogo dos Peixes,
os naturalistas antes de irem a viajar nas colônias complementaram aquele
das Conchas, e das Aves, que naquele tempo existiram e o jardineiro
auxiliado das estampas foi pondo nome a mais algumas produções” (Vandelli,
apud Munteal, 1993, p. 87).
88

Na verdade, o sigilo sobre as coleções e descobertas trazia muitos benefícios. O


próprio Vandelli não teria escapado dessa usurpação de material ao apossar-se da
descrição latina que Rodrigues Ferreira fez de uma espécie de peixe (Carvalho, 1972, p.
214)97. Muitos “originais e desenhos, já com as descrições feitas, ilustradas e somente à
espera de publicação" (Neiva, 1922, p. 15) além das 417 espécies representadas por 592
exemplares de mamíferos, aves, répteis e peixes, foram requisitados para o Museu de
Paris por Geoffroy Saint-Hilaire, quando da invasão Napoleônica a Portugal, em 1808.
Por muito tempo, os naturalistas franceses obtiveram desse episódio a oportunidade de
realizarem as primeiras descrições de animais ainda desconhecidos na Europa98.
Primeiramente restituídos a Portugal, os manuscritos e desenhos passaram ao
Brasil por portaria ministerial (Garcia, 1922, p.878), em 1842, quando “alguns desenhos
foram copiados em côr no Real Jardim Botânico de Portugal, para o Museu Nacional do
Rio de Janeiro, e aqui identificados por E. Goeldi (1886)” (Carvalho, 1965, p. 7).
A obra de Alexandre Rodrigues Ferreira permaneceu 2 séculos sem ser publicada!
Daí não se poder falar de influências de sua obra sobre outros naturalistas 99 . Os
manuscritos foram inventariados e catalogados em 1876-9 e 1951, pela Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro e as edições foram iniciadas no final do século XIX100.

97
A apropriação por Vandelli também é lembrada por W. Dean: ”Vandelli se apropriou de amostras das
magníficas coleções amazonenses de seu pupilo Alexandre Rodrigues Ferreira, excitando a curiosidade de
seus correspondentes mas omitindo sua procedência” (Dean, 1996, p. 136).
98
Assim é que, dos cerca de “96 exemplares de mamíferos levados por Junot a Paris, alguns aparecem
descritos em Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1812), Desmarest & Blainville (1817), Isidore Geoffroy (1844) etc”.
(Carvalho, 1965, p. 8). A estes naturalistas somam-se “Achille de Valenciennes, Louis Vieillot, Georges Cuvier
e Alexandre Humboldt; botânicos Aimé Bompland (...) de Candolle, Naudin, Cogniaux e outros” (Cunha, 1991,
p. 32).
O documento de Duc d’Abrantes, datado de 3 de junho de 1808, autoriza Mr. Geoffroy a receber do Diretor do
Museu, Sr. Vandelli, “65 espèces et 76 individus de mammifères, 238 espèces et 384 individus des oiseaux,
25 espèces et 32 individus de reptiles et 89 espèces et 100 individus de poissons” (Carvalho, 1972, p. 6).
99
Ao menos de uma de suas obras se diz ter produzido algum efeito nos sucessores. Trata-se da
Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos..., pela qual afirma-se que “sua coleção
serviu de base à descrição de inúmeras formas, sôbre diversas das quais há incerteza, quando não êrros e
omissões” (Carvalho, 1965, p. 8).
100
1876-79 - Alfredo Vale Cabral faz o primeiro inventário das obras de Alexandre Rodrigues Ferreira
existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, publicando-o nos Anais da Biblioteca, volumes 1,2 e 3.
Há levantamentos parciais não publicados anteriores, como o “Catálogo de obras existentes no Museu de
Lisboa” (Biblioteca Nacional, 1952, p. 109).
1885-8 - Diário da Viagem Philosophica pela Capitania de São José do Rio Negro (de 1785). Rev. Trimensal
do Inst. Geogr. Brasil., 48, 49, 50, 51.
1885 - Diário da Viagem Philosophica pela Capitania de São José do Rio Negro com a informação do estado
presente. RJ, Lammert.
1888 - Lista dos animais que fazem objeto das caçadas e das pescarias dos índios. Publicado por Emilio
Goeldi na Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 51.
1895 - Lista dos animais que fazem objeto das caçadas e das pescarias dos índios, reaparece no Ensaio
sobre o Dr. Alexandre R. Ferreira, de E. Goeldi.
1903 - Memória sobre o peixe Pirarucu, Memória sobre a Juararetê, Memória sobre o peixe-boi. Publicados
por Alípio de Miranda Ribeiro nos Arquivos do Museu Nacional, vol XII.
1934 - Observações Geraes e Particulares sobre a Classe dos Mammaes, observados nos trez Rios, das
89

Alexandre Rodrigues Ferreira exemplifica que a amplitude das medidas propostas


por Vandelli indicam a sua intenção de colaborar para o “que poderia ser um caminho
para a institucionalização das ciências”, ao que foi, de fato, seguido pelo grupo de
estudantes que tentou “abraçar a profissão de ‘Naturalistas’” (Ferraz, 1995a, p. 55),
embora os resultados desse empenho não tenham gerado práticas ou medidas
persistentes. A institucionalização das ciências, especialmente no que diz respeito à
Colônia de Portugal na América teria ainda que aguardar muitas décadas para começar a
ocorrer.

4.3 A Criação de Academias Científicas, Tipografias e Jardins Botânicos

Do projeto inicial das reformas ilustradas para as ciências participava ainda a


criação de meios de divulgarem-se textos que orientassem os naturalistas em suas
empreitadas, bem como de publicarem-se os resultados de suas observações e
investigações101. A criação de tipografias e de sociedades científicas tornava-se condição
necessária para a inserção de Portugal nos afazeres da ciência moderna que se
praticava no XVIII.
A formação de sociedades científicas, que coincide, não por acaso, com a de

Amazonas, Negro e da Madeira... na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.


1951 - Em 4 de junho o Congresso Nacional aprova o Projeto nº 560, liberando verbas parceladas em cinco
anos para a impressão das obras completas de Alexandre Rodrigues Ferreira, a cargo do Ministério da
Educação e Saúde. A Biblioteca Nacional fornece então um novo “catálogo dos documentos de Alexandre
Rodrigues Ferreira existentes nesta instituição e uma achega bibliográfica dos trabalhos já publicados e das
obras sôbre êle escritas” em que não se inclui documentação sabidamente mantida no “Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Arquivo Nacional e bibliotecas e arquivos estrangeiros” (RODRIGUES, 1952, p. 5 e 7)
como de Portugal e França.
1965 - Observações Geraes e Particulares sobre a Classe dos Mammaes, observados nos trez Rios, das
Amazonas, Negro e da Madeira... publicada e comentada por Cory T. de Carvalho nos Arquivos de Zoologia.
1970 - Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. SP, Bruner.
1971- Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, 1783-1792. RJ,
Conselho Federal da Cultura.
1972 - Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias:
Zoologia e Botânica. RJ, Conselho Federal da Cultura. Trata-se de uma edição crítica, enriquecida por
comentários de diversos especialistas que procuraram identificar as espécies ali descritas segundo a
nomenclatura atual.
1974 - Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias:
Antropologia. RJ, Conselho Federal da Cultura.
1983 - Viagem Filosófica ao Rio Negro, Museu Paraense Emílio Goeldi. Editado pelo Museu Paraense Emílio
Goeldi em comemoração ao bicentenário do início da expedição filosófica, contendo os títulos “em parte
pertencentes a seu acervo, ou a outros, sempre, porém, relacionados às áreas de especialização” do Museu.
101
Este aspecto tangencia outra característica dos governos ilustrados apontada por Francisco Falcon que é
a burocratização do Estado, com a “necessidade de elaborar regulamentos e instruções, múltiplos e
minuciosos, cuja tônica é a exigência de processos, informações e relatórios” (Falcon, 1986, p. 25).
90

Jardins Botânicos, representa um novo tipo de atividade, muito identificada com os ideais
do iluminismo, que é o da reunião de indivíduos aglutinados por um interesse comum. As
então chamadas “academias particulares de eruditos” surgiram em vários países da
Europa e promoviam suas reuniões em residências ou em cafés. A estas iniciativas
particulares, seguiu-se a formação de (ou a sua transformação em) academias oficiais,
patrocinadas pelos governos ou universidades. A Itália fez surgir a mais famosa, a
Accademia del Cimento, criada em 1657, cujos membros realizavam experiências em
História Natural e Física 102 . Na Inglaterra de 1660, um grupo de eruditos passa a
reunir-se no Gresham College, contando em pouco tempo com a aprovação do rei Carlos
II para a fundação oficial, dois anos depois, da famosa Royal Society de Londres, que se
mantém em atividade até hoje. Na França, a Académie des Sciences, tornada oficial em
1666 pelo governo de Luís XIV, já reunia, desde antes, homens como Descartes, Pascal,
Mersenne, Gassendi. Na Alemanha, a primeira academia foi fundada em Rostock, em
1620, e a oficial, a Academia de Ciências de Berlim, apareceu em 1700 (Ronan, 1987, p.
57; 108-10).
No entanto, D. E. Allen lembra que é na Inglaterra, provavelmente, onde primeiro
formaram-se os grupos, especial ou particularmente, dedicados à História Natural, como
o Temple Coffee House Botanic Club, em 1698. De Londres, também era a Sociedade
dos Apotecários, surgida provavelmente em 1620, e em atividade até 1834. Estas
associações promoviam "herborizações" ou excursões ao campo, com a finalidade de
identificar, nomear, coletar e indicar as utilidades das plantas locais. Além disso, a
Sociedade dos Apotecários "toma a si a manutenção do jardim botânico — mais tarde, o
famoso Physic Garden at Chelsea, estabelecido em 1673" (Allen, 1994, p. 5)103. Assim,
os jardins botânicos surgiram inicialmente como uma extensão das atividades de
especialistas reunidos nas academias e tiveram o seu perfil renovado através do
desenvolvimento da História Natural.
Em Portugal as academias particulares apareceram um pouco mais tardiamente
destinando-se à discussão dos mais variados assuntos104. A Academia Real das Ciências

102
Segundo Ronan, 1987, p. 57: em Nápoles: Academia Altomare meados do séc. XVI; Accademia Fiorentina,
de 1540, em que seus membros designavam de “Accademia degli Umidi” (Gerbi, 1996, p. 26); Academia dei
Segreti, fundada antes de 1580. Em Florença: Academia do Lincei.
103
Para D. E. Allen, a famosa Royal Society, fundada em 1660, diferentemente da Sociedade dos Apotecários
e do Botanic Club, contribuiu apenas indiretamente à História Natural. O seu papel maior foi o de reunir os
maiores botânicos do período, impulsionando-os a um convívio intelectual entre especialistas (p. 8).
104
Academia dos Generosos, 1647; Academia Instantanea, final do século; Academia dos Singulares, 1663;
Academia dos Solitários, 1664; Academia das Conf. Discretas e Eruditas, 1696; Academia dos Anônimos e
Academia dos Aplicados, ambas do início do século XVIII; Academia dos Laureados, 1721.
91

de Lisboa, criada em 1779, fortaleceu os trabalhos de História Natural na Universidade de


Coimbra e foi importante para a geração dos naturalistas “brasileiros” que ali foram
formados 105 . Assim, a proposta alcançou o Brasil com o aparecimento de várias
academias que, em sua maioria, foram dissolvidas sob pretexto de conspirarem ou de
tratarem de assuntos políticos e religiosos106. A Academia Scientifica do Rio de Janeiro,
reunida de 1772 a 1779, foi a primeira no país a tratar de assuntos de história natural
além de "physica, chimica, agricultura, medicina, cirurgia e pharmacia". Tal como a
inglesa Sociedade dos Apotecários, esta associação foi responsável pelo
estabelecimento de um horto botânico no Rio de Janeiro, em 1772.
A política do Reino português para o fomento do comércio de plantas gerou o
estímulo para que se publicasse "sobre assuntos de interesse científico e prático para a
vida econômica brasileira: aperfeiçoamentos técnicos, novos métodos agrícolas e novas
plantas que poderiam ser cultivadas, designadamente as originárias do Oriente e
produtoras de especiarias" (Almeida, 1975, p. 402). Também elaboraram-se memórias
"de cunho estritamente técnico" como resultado dos estudos solicitados pelo marquês de
Pombal sobre "exemplares da flora brasileira" e "produtos interessantes e comerciáveis,
até então ignorados ou inexplorados" (Dias, 1969, p. 113-4).
Para a impressão das memórias e discursos foi criada em Lisboa a Tipografia
Calcográfica e Literária do Arco do Cego, em 1798, "com a finalidade de divulgar
conhecimentos de ciências naturais e de agricultura uma vez que Razão, Natureza e
Prática deveriam compor forças para o bem da sociedade" (Dias, 1969, p. 119-20). Ali
foram editados os famosos volumes do Fazendeiro do Brasil dirigidos por Frei José
Mariano da Conceição Veloso, destinados aos lavradores "mais industriosos" dos mais
distantes sertões do Brasil107. A Casa Literária do Arco do Cego deveria voltar-se também

105
No reinado de D. Maria I “Portugal se abriu mais largamente aos influxos da ilustração européia. A
Academia Real das Ciências foi por excelência o centro de assimilação dessas novas correntes e de sua
adequação à realidade portuguesa. Direta ou indiretamente inspirado ou estimulado pela Academia, é todo
um vasto movimento intelectual que se processa; o pressuposto cientificista e pragmático percorre todo o
esforço para o adiantamento da agricultura, das artes e da indústria em Portugal e suas conquistas” (Novais,
1979, p. 225).
106
As primeiras academias foram: Academia Brazilica dos Esquecidos, Bahia, 1724; Academia dos Felizes,
Rio de Janeiro, 1736; Academia dos Selectos, Rio de Janeiro, 1752; Academia Brazilica dos Academicos
Renascidos, Bahia, 1759; Sociedade Litteraria, Rio de Janeiro, 1786. Para lista de academias no Brasil e
Portugal, ver: Ribeiro, 1871, v. 1, p. 165 e Mello-Leitão, 1937, p. 92-7. Para a lista das academias brasileiras e
sobre o seu fechamento e perseguição de seus membros, ver: Azevedo, 1885, p. 265-74.
Além destas, é digna de menção a existência de lojas maçônicas no Brasil, como a dos Cavaleiros da Luz,
fundada em 1797 na Bahia, cuja introdução em Pernambuco — segundo Moreira de Azevedo, em 1801 — é
atribuída a Arruda da Câmara, embora isto não seja confirmado (Mello, 1982, p. 57; Fausto, 1994, p. 131 e p.
562).
107
Fazendeiro do Brasil, melhorado na Economia Rural dos Generos já cultivados, e de outros que se tem
escrito a este assunto, coligido de memorias estrangeiras. 10 vol. 1798-1806.
92

à “divulgar traduções focalizando principalmente a agricultura” da “experiência colonial


das outras nações européias” (Dias, 1969, p. 136) e foi incorporada à Imprensa Régia em
1801.
Nascido em Minas Gerais em 1742 e “tendo estudado História Natural com os
franciscanos no Rio de Janeiro” (Ferraz, 1995a, p. 157), Frei Veloso seguiu para Portugal
como editor de muitos estudos técnicos, como a Dissertação sobre as plantas do Brasil
que podem dar linho..., de Arruda da Câmara, além da edição de várias coletâneas de
textos traduzidos como a Alographia dos alkalis vegetal ou potassa, mineral ou soda e
dos seus nitratos; Mineiro do Brasil; Quinografia Portuguesa ou collecção de varias
memorias (Ferraz, 1995a, p. 157). Quanto a seu trabalho de pesquisa pessoal, na área
da Botânica, destacou-se pela criação de 66 gêneros e 400 espécies de plantas
pertencentes à flora brasileira, resultando na grande obra Flora fluminensis, que
terminada em 1790, cuja impressão de 1825-27 mantém-se na sessão de Obras Raras
da Biblioteca Mário de Andrade, sem as pranchas.108
Paralelamente às Academias e Tipografia, a instituição de jardins botânicos
tornou-se projeto oficial para abrigar espécies de plantas medicinais além de outras de
valor econômico, como as de "utilidade para a construção naval". Em Coimbra, o
célebre naturalista Brotero escreve que os Jardins "não so devião servir para o progresso
da agricultura de todo o Brasil, mas ainda para estabelecer huma circulação de vegetais
uteis entre o Brasil e o Reyno e entre o Brasil e outras colonias da Nação" (Brotero, apud,
Almeida, 1975, p. 403)109. O tema dos jardins botânicos será retomado à frente, por estar
incorporado à obra de Manuel Arruda da Câmara.
Os incentivos oficiais também proliferavam através da oferta de bolsas para
formação de profissionais (engenheiros topográficos, hidráulicos, contadores, médicos:
Dias, 1969, p. 116). O absolutista ilustrado, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, tornado
ministro de D.Maria I, em 1796, "mandava pedir aos governadores das capitanias
relatórios sobre os processos empregados no preparo e cultivo dos gêneros exportáveis;

108
A Flora fluminensis foi ainda publicada por Ladislau Neto no tomo V dos Archivos do Museu Nacional, em
1881. As pranchas foram incomendadas a um impressor de Paris, em 1825, a mando de D Pedro I, mas cujo
sucessor não pagou a conta: o impressor vendeu as estampas (Neiva, 1929). A firma francesa recebera o
contrato para uma tiragem de 3.000 exemplares das 1640 estampas que deveriam compor as pranchas; foi
vendida como papel velho, em grande parte para fabricação de cartuchos de guerra (Hohene, Kuhlmann e
Handro, p.239, apud Ferri, 1956, p. 159). Teve 554 chapas pertencentes à Flora do Rio de Janeiro recolhidas
por G. Saint-Hilaire, em 29/08/1808 (Neiva, 1929, p. 22). “Parece que 500 exemplares teriam chegado ao
Brasil para apodrecerem em um prédio do governo imperial” (Ferraz, 1995a, p. 158).
109
Ainda digna de menção é mudança de intenções acerca do destino do Jardim Gariela em Caiena, quando
da invasão portuguesa na Guiana. A sua total destruição inicialmente planejada foi substituída pelo desejo de
conservar suas especiarias e de estendê-las aos jardins do Brasil. Conforme Almeida, 1975, p. 405-6.
93

ordenava que se procedessem a levantamentos de plantas nativas a serem remetidas


para o Reino e a explorações mineralógicas; prometia prêmios aos lavradores mais
industriosos; tratava de promover a introdução do arado e a cultura dos novos gêneros.
Ordenava medidas no sentido de aumentar o comércio interno e o de exportação" (Dias,
1969, p. 119). Também patrocinaram-se viagens de estudos, possibilitando contatos
diretos entre os estudantes brasileiros e a elite cultural da Europa, como ocorreu com
José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1835) e Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt
e Sá (1762-1835).
Em resumo, o período é fortemente marcado por uma "política de incentivo e o
aproveitamento dos estudiosos brasileiros pela Coroa portuguesa. Dos prefácios aos
numerosos tratados de história natural e de memórias sobre técnicas rurais saídas a lume
nesse período verifica-se que incumbiam de missões os jovens naturalistas saídos de
Coimbra ou de outras universidades européias para levar a cabo uma política mais ativa
de exploração e renovação da agricultura tradicional" (Dias, 1969, p. 121). Também
tratava-se de estudar e divulgar aqui as experiências agrícolas, invenções mecânicas,
"introdução e aperfeiçoamento de novas matérias-primas" levadas a efeito em outras
colônias, especialmente naquelas de onde proviriam informações úteis e aplicáveis ao
Brasil (Dias, 1969, p. 136-144).
Saliente-se, contudo, que houve um grande distanciamento entre intenções e
resultados. Não apenas as obras de Frei Veloso ficaram sem publicação e divulgação. O
Fazendeiro do Brasil também não teve sua meta cumprida, pois:

“Quase toda a totalidade da edição veio para o Brasil para ser vendida por
preço baixo pelos governadores das capitanias ou mesmo dada grátis aos
lavradores com o intuito de melhorar a agricultura. Mas ficaram, por falta de
interêsse, encalhadas nas secretarias do govêrno e os bichos acabaram
devorando tudo. Mais tarde, já depois da Independência, o que sobrou foi
vendido como papel velho para fogueteiros” (Moraes, 1969, p. 395).

Como enfatiza Marcia Ferraz, os esforços de Vandelli para a formação de


naturalistas, criação de cargos, planejamento de expedições e divulgação dos
conhecimentos das ciências modernas tendo por meta o desenvolvimento agrícola de
Portugal e sua Colônia americana desvaneceram nos insucessos de suas
implementações, em que pese o reconhecimento do árduo trabalho efetuado por uma
geração de naturalistas.
Assim, os trabalhos de Manuel Arruda da Câmara devem ser entendidos segundo
94

a formação obtida junto à mentalidade iluminista de Vandelli e os limites de


executabilidade derivados da política-econômica da Coroa portuguesa. Veremos que
Manuel Arruda da Câmara terá algumas de suas obras impressas, cumprindo, ao menos
em parte, a suposta finalidade de divulgação das artes agrícolas. Contudo, boa parte não
será publicada ou divulgada e até mesmo extraviada pois, no interesse da Coroa, estava
destinada mais a “servir de instrução ao govêrno, dada a política de sigilo e à intenção de
Portugal de manter o Brasil fechado para o mundo” (Dias, 1969, p. 129), do que ao
desenvolvimento científico sonhado por seus mentores110.

110
“Sabemos hoje, com segurança, que em relação ao Brasil, desde os idos de 1500, o Governo português
agia sempre com cautela, ao pôr em prática a política do sigilo, nada informando, quase sempre camuflando e
muitas vezes confundindo as suas declarações para que os olheiros das nações vizinhas nada soubessem. A
viagem científica de Alexandre Ferreira, ao que nos parece, foi organizada em Portugal sob esse véu de
mutismo, de modo que apenas as autoridades amazônicas estavam cientes da importância e finalidade de tal
empreendimento. Essa seria também uma das razões pelas quais o naturalista luso-brasileiro encontrou toda
espécie de dificuldades em Lisboa, após o seu regresso a Portugal em 1793, para publicar os resultados de
seus estudos na Amazônia. O certo é que não havia na época, intuito algum de divulgar os resultados de
estudos científicos fundamentais de um mundo desconhecido aos europeus, ávidos de informações e
novidades. Com olhares cúpidos, os governos ingleses, franceses e espanhóis principalmente, tentavam
enviar visitantes travestidos de cientistas a serviço do governo dessas nações...” (Cunha, 1991, p. 16).
95

5 MANUEL ARRUDA DA CÂMARA (1766-1811111)

“As crônicas de Itaguaí dizem que em tempos remotos


vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho
da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de
Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e
Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não
podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra,
regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os
negócios da monarquia.

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu


emprego único; Itaguaí é o meu universo.
(Machado de Assis, O Alienista, 1882)

5.1 Notícias do Homem, da sua Formação e Obra

Manuel Arruda da Câmara foi um dentre os vários luso-brasileiros a procurar


instrução superior nas universidades européias, no final do século XVIII. Tão logo
doutorou-se regressou, pelo “declarado amor ao seu país”, para cumprir o “seu empenho
em fazê-lo próspero e independente” (Mello, 1982, p. 12) e escrever sobre “sua musa que
era a pátria” (Almeida, apud Mello, 1982, p. 54)112. Esteve matriculado na Universidade
de Coimbra em outubro de 1786, ainda como Frei Manuel do Coração de Jesus, pois
ingressara, três anos antes, no convento Religioso Carmelita Calçado da Província de
Pernambuco. Freqüentou o Curso Filosófico nos dois primeiros anos e, em 1788, cursou
Filosofia juntamente com a Matemática. No ano da Revolução Francesa, 1789, uma
reviravolta também marcou a sua vida, não explicada em definitivo por seus biógrafos,
quando abandonou o sacerdócio e Coimbra, indo matricular-se, em 15 de agosto, no
Curso de Medicina da Universidade de Montpelier, onde defendeu tese de doutoramento

111
A data de nascimento de Manuel Arruda da Câmara era atribuída, não sem dúvidas, ao ano de 1752.
Conforme documento de matrícula da Universidade de Coimbra datado de 26/10/1786, contava nessa época
com vinte anos. Tem-se aí o único registro oficial conhecido do ano de seu nascimento: 1766. Esta matrícula
foi encontrada e está reproduzida em livro de Bella Herson, 1996, p. 261 e 272.
112
Ao comentar a publicação das obras reunidas de Manuel Arruda da Câmara, o editor, Leonardo Dantas
Silva, também ressalta que a biografia de Gonsalves de Mello faz ressurgir a “figura do cientista Manuel
Arruda da Câmara: um homem dedicado ao estudo das ciências naturais e à valorização de sua pátria. Um
inventor de máquinas e implementos agrícolas, um analista de métodos de cultivo, um pesquisador pioneiro
da flora, fauna e recursos naturais de toda uma imensa região que vai do Rio São Francisco aos sertões do
Piauí” (Câmara, 1982, p. 9).
96

em 1791113. Como “não é lembrado como médico” (Mello, 1982, p. 38), no retorno ao
Brasil, à província de Pernambuco, parece ter se dedicado mais exclusivamente a
estudos de cunho naturalista, durante os seus restantes 20 anos de vida.
Como outros membros da elite rural brasileira de então, formados segundo as
idéias fisiocratas de Domingos Vandelli, Arruda estava interessado no desenvolvimento
da agricultura na Colônia. Suas pesquisas e memórias escritas tinham, quase sempre, o
objetivo mais geral de contribuir à tal Arte além de serem orientadas pelo pensamento
ilustrado: "... por meio de repetidas experiências, poderia achar regras, quando não
exatas todas, ao menos aproximadas, que servissem de guia e constituissem arte, o
que até aqui tem sido rota cega", como se lê na Memória sobre a cultura dos algodoeiros,
escrita provavelmente em 1797 e publicada em 1799 (Câmara, 1982, p.113)114. Apesar
da humildade das palavras, elas denotam claramente a consciência sobre a emergência
de um conhecimento novo:

"É uma espécie de mania, que alucina os Escritores menos Filósofos, o


quererem atribuir à Ciência ou à Arte de que tratam, uma antigüidade que
date quase com a do primeiro homem. Se é certo, como devemos crer, que
Adão teve ciência infusa, pouco menos idosas são quase todas as Artes que
ele; mas o pouco progresso que elas têm tido, mostram que as suas origens
não remontam tão alto: Adão seria muito sábio, mas seus filhos têm sido
muito néscios; porque ou nada aprenderam daquele primeiro Pai, ou se
aprenderam, depressa se deixaram esquecer" (Câmara, 1982, p. 113-4).

O espírito da ciência moderna, a substituição da investigação “desorientada” ou


apressada por uma pesquisa metódica, derivada de “repetidas experiências” e da busca
pelas leis naturais se vê, também, neste trecho da Dissertação sobre as plantas do Brasil
que podem dar linhos, escrito em 1809 e publicado no ano seguinte115:

“nas ciências físicas nada se deve concluir senão dos fatos, coibindo os vôos
da imaginação, que tende sempre a lisonjear a vontade” (Câmara, 1982, p.
166).

O seu rigor científico aparece junto à crítica dos que não o possuem, neste outro

113
Herson (1996) elenca algumas indicações, embora não como evidências definitivas, de que o ingresso no
sacerdócio deveu-se à proteção da família, pois, ao que parece, tratava-se de cristãos-novos, perseguidos
pela Inquisição. Daí também se explicaria o abandono da vida reliogiosa quando de sua saída de Portugal.
114
A indicação das páginas para todas as obras de Arruda da Câmara referem-se à publicação das obras
impressas e coligidas por José Antonio Gonsalves de Mello, de 1982.
115
Arruda da Câmara vez por outra faz a “crítica a certos naturalistas que se contentavam com publicar
observações sumárias de viagem" (Mello, 1982, p. 26).
97

trecho, escrito 14 anos antes, em carta datada de 20 de setembro de 1795, enviada ao


amigo Frei Veloso e impressa no Paládio Português ou Clarim de Palas, no mês de maio
de 1796, com o título de Anúncio dos descobrimentos feitos em Paranambuc e remetido a
um dos Editores:

"... conciliar perfeitamente estas cousas com análises químicas e com as


indagações de História Natural, para o que bem sabe que é necessário não
se distrair o Filósofo, nem ter interrupções. Verdade é que tenho feito nestas
mesmas viagens do sertão e Piau-yg observações, indagações e algumas
descobertinhas que merecem seu lugar, mas por ora tudo está em
apontamentos e em embrião, por não ter tido tempo de passar a limpo, de
polir e acabar de as verificar (...)
Se eu tivesse o gênio de algumas pessoas, já podia arranjar tudo o que tenho
a este respeito e dar a público, pondo-lhes na frente o pomposo título:
Viagens mineralógicas no interior dos Sertões de Paranambuc, pelo ... etc.
Porém, meu Amigo, Deus me livre que da minha mão vá ao prelo obra minha
que ache em minha consciência que está imperfeita" (Câmara, 1982, p.
101-2).

Alimentado pelo espírito naturalista europeu do período, Manuel Arruda da


Câmara empreendeu várias expedições. De março de 1794 a setembro de 1795, essa
mencionada ida ao Piauí, da qual propõe-se a encaminhar, no devido tempo, oito
dissertações versando sobre os vários temas investigados na viagem. Embora tenha
escrito vários trabalhos, o planejamento aí esboçado não foi cumprido, seja pelo zelo
excessivo ao texto científico, seja pela necessidade de cuidar de sua subsistência (era
fazendeiro e possuía engenho de acúcar), seja pela falta de suficiente estímulo e
patrocínio. Ao longo dos meses de dezembro de 1797 a julho de 1799, também fez
viagens, dessa vez, aos sertões da Paraíba e do Ceará além de outras mencionadas por
Gonsalves de Mello, como ao Maranhão, embora difíceis de datar e precisar o etinerário
(Mello, 1982, p. 32-33).
Fica evidenciado esse traço de inserção nas práticas dos naturalistas
contemporâneos, para quem a observação direta da natureza rende mais do que as
instruções escritas pelos “naturalistas de gabinete”. Na Dissertação sobre as plantas que
podem dar linhos, ao criticar as descrições do tucum feitas por Manuel Ferreira da
Câmara e por Piso em sua História Natural do Brasil, no século XVII, põe em relevo os
critérios da “boa” ciência: Piso “escreveu em tempo que ainda não haviam verdadeiras
luzes de História Natural, e aquele [Ferreira da Câmara] escreveu em Lisboa, estando a
98

planta no Brasil116” (Câmara, 1982, p. 183).

"A experiência é a única linguagem que o povo entende ... todos estes
obstáculos se aplainarão pelo trabalho daquele que, no mesmo lugar onde
produz o gênero, sobre que quer instruir, fizer repetidas experiências a
respeito das influências do clima mais vantajosas, das diversas qualidades e
mistura das terras mais próprias, dos meios mais fáceis de plantar, colher,
beneficiar a colheita, diminuindo a mão-de-obra e aumentando por
conseqüência o lucro.
Estas vantagens são tão interessantes que têm obrigado a homens de um
merecimento assinalado a viverem nos campos, a fim de observarem de mais
perto a natureza e escreverem com acerto as instruções aos seus
semelhantes ... à proporção que se aumentam os conhecimentos da Física e
da Química, a cujo lado anda sempre a Agricultura, acham os modernos que
adicionar, abolir e mudar.
Daqui se pode inferir quão infinito será o número de imperfeições e de
erros introduzidos na cultura dos gêneros do Brasil e mais Domínios, sendo
todos novos a respeito dos da Europa, e não tendo tido, como os desta,
homens sábios que tratassem do seu melhoramento" (Câmara, 1982, p.112).

Não se tratava apenas de ir à natureza, mas de bem definir o que deve ser
investigado. Embora seus textos impressos não reflitam uma preocupação dirigida ao
estudo de fauna e flora locais, não se pode deixar de notá-la. O seu envolvimento com a
história geográfica da fauna e da flora comparece, seja nos desenhos que restaram,
especialmente os de insetos, seja nas anotações dos hábitos e localidades das plantas
úteis sobre as quais dissertou seguindo a tradição florística lineana, seja em
comprometimentos como este, na mesma carta à Frei Veloso117:

“(...) Creia V... que na distância destas 30 ou 40 léguas ao redor de mim tenho
um trabalho assaz grande, a querê-lo executar da maneira que V... me
insinua, que é o que deve ser” (Câmara, 1982, p. 105).

Arruda ainda critica explicitamente os naturalistas de gabinete no Anúncio dos


descobrimentos feitos em Pernambuco e na Memória sobre a cultura dos algodoeiros.
Arruda da Câmara irá congregar em seus trabalhos um duplo interesse pelo
desenvolvimento da Agricultura. Por um lado, traz o conteúdo empírico alcançado através

116
A referência de Arruda da Câmara a Piso repete a opinião de Lineu na VIII carta à Vandelli, citada no
capítulo 3, como se pode relembrar aqui: “(...) Marcgrave com o seu Pisão; mas num tempo em que não
estava acesa nenhuma luz de Historia Natural”
117
A elaboração de floras locais é almejada mas ainda não realizada. Em 1788, o próprio Vandelli ainda
lastima não haver “até agora huma Flora de Portugal (a unica obra de Botanica, que temos de Portugal, he o
Viridarium Lusitanicum do Grysley), e do Brasil” razão pela qual “ajuntamos a este Diccionario hum ensayo
dellas, com os nomes Portuguezes, virtudes medicinaes, e uso da Tinturaria” (Vandelli, 1788, p. V-VI).
99

das experiências químicas, várias vezes citadas por ele como fundamentais para o
entendimento da natureza do vegetal e conforme a sua marca profunda entre os
agrônomos do período. Por outro, traz para junto de si o lema naturalista maior do
período que era o de abandonar o gabinete para conhecer as plantas, e os animais, em
seu ambiente natural, conforme os trabalhos derivados dos botânicos.
Arruda da Câmara ilustra bem, ao menos no nível das intenções e oportunidades,
o naturalista profissional almejado pela reforma iluminista da Universidade de Coimbra:
por terem sido publicadas, algumas de suas memórias estiveram, ao menos
teoricamente, disponíveis para a divulgação entre os agricultores; além disso, ocupou
oficialmente o cargo de naturalista viajante a serviço da Coroa, a partir de 1797, quando
“houve Sua Majestade por bem fazer mercê ao sobredito Manuel Arruda da Câmara de
uma pensão de 400$ por ano e de 200$ de ajuda de custo, e tanto uma como outra
Vossa Senhoria lhe pagará por Ordem da mesma Senhora” (Mello, 1982, p. 31); desde
1795 cumpria tarefas solicitadas por Reais Avisos, tais como a procura “dos nossos
Linhos, isto é, sobre a possibilidade de se fabricar o papel” (Arruda, apud Mello, 1982, p.
35), por carta do governador e capitão general de Pernambuco, D. Tomás José de Melo,
solicitando "'os produtos Naturais e Artificiais dos índios dessas Capitanias' para serem
incorporados ao Real Museu e Jardim Botânico de Lisboa" conforme Reais Avisos que
recebera em 12/09/1795, 22/08 e 13/09/1796. Acrescenta D. Tomás que “'Vossa Mercê ...
se encarregue do descobrimento e preparo dos sobreditos produtos, assim artificiais
como naturais, de plantas, sementes e do mais que se compreende nas instruções', de
22/08/96” (Mello, 1982, p. 30-1).
Como já foi destacado anteriormente, nem sempre as intenções das reformas
ilustradas foram efetivadas. Na verdade, o próprio Arruda da Câmara é, ao mesmo
tempo, exemplo do abandono às grandes iniciativas sonhadas em Coimbra e de seu
desvanecimento em meio aos atropelos e mudanças da política econômica destinada ao
desenvolvimento da Colônia americana. Boa parte de sua obra desapareceu sem ser
publicada e do que se publicou pouco se conhece de sua real divulgação entre os
agricultores118.

118
Reproduzimos sumariamente a lista do espólio científico e literário desaparecido de Arruda da Câmara
segundo duas listas constantes no capítulo IV da Introdução às Obras Reunidas, de Gonsalves de Mello:
De 3 de abril de 1811, uma ordem do governador Caetano Pinto mencionava: 1) Flora de Pernambuco, com
estampas e desenhos; 2) Tratado de Agricultura; 3) tradução da obra de Lavoisier; 4) tratado sobre Lógica;
5) Insetologia ou coleção de desenhos de insetos.
De 5 de junho de 1811, um ofício de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ao mesmo Governador para que se
encontrem os manuscritos do falecido Arruda da Câmara, conforme “Relação dos Manuscritos de Manuel
Arruda da Câmara, Doutor em Medicina pela Universidade de Montpelier e Naturalista da Capitania de
100

5.2 Os Temas de Arruda da Câmara

Passemos à análise mais detida de alguns de seus estudos impressos. Dentre os


temas abordados nas dissertações de Arruda da Câmara, selecionaram-se para a
presente análise os relacionados 1) à transplantação de espécies e conseqüente criação
de jardins botânicos; 2) à noção de interelação da espécie com o tipo de ambiente, seja
ele caracterizado pelo clima, pela latitude ou pela vegetação que possui; 3) à
conservação ou preservação de espécies.
Quanto à criação de jardins botânicos, deve-se associá-los ao trânsito de espécies
e às ordenações que definiram, no período, os intercâmbios de seres vivos entre as
colônias e os países colonizadores, tanto através da introdução de espécies, quanto da
exploração do novo continente como fonte de recursos a serem enviados à Metrópole.
Tratava-se de detectar preocupações utilitaristas ou voltadas ao valor das espécies em si
mesmas, elementos estes importantes para se tentar reconstruir a visão de natureza que
guiava o trabalho de investigação.
Quanto à organização do conhecimento da fauna e flora brasileiras cabia analisar
a explicação da existência tanto de formas estranhas quanto de formas familiares que
vinham desestabilizar os sistemas de classificação já existentes para o mundo vivo
conhecido até então pelo europeu. Tratava-se de investigar se Arruda da Câmara
relacionava hábitos e localidades à maneira dos levantamentos florísticos lineanos, se
inventariava acerca da influência do ambiente sobre os organismos e se articulava ou
não a noção de economia da natureza.
Quanto à conservação, importava definir se se tratava de uma preocupação de
ordem propriamente “biológica” ou de ordem econômico-política. Só se justificaria
atribuir-se um embrião de pensamento ecológico a Arruda da Câmara, ou a outro autor

Pernambuco, apresentada ao Ilmo. e Exmo. Sr. Conde de Linhares, Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios Estrangeiros e da Guerra e Grã Cruz da Ordem da Torre e Espada, em 16 de maio de 1811”,
anexada ao ofício sem assinatura ou autoria conhecida. As obras inéditas de Arruda da Câmara ali constantes
são: 1) “Centúrias dos novos gêneros e espécies das plantas pernambucanas” (que corresponde à Flora
Pernambucana citada na primeira lista); 2) “Nova insetologia”, da qual pode ter restado o “grande número de
desenhos desses animais que se inclui no conjunto de desenhos que se guarda na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro”; 3) “Tradução do compêndio de Química de Lavoisier, que teria sido feita através de consulta ao
próprio autor na época em que viveu na França; 4) “Tratado sobre a Destilação”; 5) “Compêndio de Lógica”,
talvez tradução da Lógica de Condillac; 6) “Tradução das obras” de Condillac; 7) Uma tradução do poema do
Padre José Rodrigues de Melo, que não teria sido feita mas influída por Arruda da Câmara, por “conter
cousas úteis à agricultura”; 8) Compêndio de Agricultura Brasiliense; 9) “‘Cartas sobre produtos naturais e
úteis manufaturas’, seriam os relatórios e escritos com que atendia a pedidos de Ministros e Governadores,
‘dando conta dos objetos de que foi encarregado’, além da correspondência pessoal”; 10) “Obras poéticas”
(Mello, 1982, p. 47-55).
101

contemporâneo, se a preocupação manifesta com a extinção de uma dada espécie fosse


derivada dos efeitos provocados na própria natureza. Em outras palavras, cabia
investigar se a extinção era um problema por apontar para o esgotamento de um dado
recurso natural rentável ou por constituir-se em fator de ameaça ao equilíbrio do sistema
natural. Arruda da Câmara é um dos naturalistas do XVIII ao qual já se atribuiu o papel de
“pioneiro” nas denúncias sobre os danos causados pelo homem sobre a natureza 119 .
Como conseqüência de sua preocupação com a conservação de algumas espécies de
árvores, como a carnaúba, que desapareciam rapidamente através da exploração
mercantil, não raro, atribui-se a atitudes como a sua, um indicativo da origem da Ecologia,
e denominam-se esses autores de “precursores”. Partindo da perspectiva de que a
Ecologia é uma ciência que emerge apenas no final do século XIX, interessava conhecer
o modo pelo qual Arruda da Câmara abordou, um século antes, essas questões
posteriormente encampadas pelo domínio do “ecológico”. Cumpria estabelecer a real
medida de suas preocupações, analisadas como produto das condições específicas de
seu próprio tempo e não por um viés teleológico “que conduz a explicar uma época não
por aquilo que ela é, mas em função daquilo que virá depois dela” (Falcon, 1996, p. 21).

5.3 A Instituição de Jardins Botânicos e a Transplantação de Espécies

“Também sei, disse Cândido, que temos que


cultivar nosso jardim.”
(Voltaire, Cândido, 1759)

Arruda da Câmara aborda o tema em Discurso sobre a utilidade da instituição de


Jardins nas principais províncias do Brasil, de 1810. O objetivo do autor já fica claro no
início do texto: "O pomo, que da Pátria Pérsia veio/Melhor tornado no terreno alheio"
(Lusíad. Cant. 10. estân. 58). Além da epígrafe, o título da Parte Primeira do Discurso,
explicita-o claramente: "Da necessidade da instituição de Jardins nas principais
Capitanias do Brasil, para a transplantação dos vegetais úteis de diversas partes do
Mundo".

119
"cuidados no sentido de defender espécimes vegetais ameaçados de extinção por práticas predatórias de
exploração" (Mello, 1982, p. 12).
102

O propósito para a criação dos Jardins é o da promoção do intercâmbio de


espécies ou, melhor refletindo as intenções de Arruda, da introdução de espécies
exóticas em território brasileiro, bem como a expansão dessas e de espécies nativas
dentro do país. Os Jardins permitiriam o cultivo dos diversos tipos de plantas úteis à
alimentação ou preparo de medicamentos de modo a garantir-se uma independência da
compra de plantas estrangeiras aos altos preços alcançados por esses produtos devido
às práticas mercantilistas.
Esta objetivação econômica está sintonizada com o espírito reinante na França,
na segunda metade do século XVIII, especialmente entre as décadas de 1750 e 1770,
em que se propalava o desenvolvimento da agricultura e da economia, a partir da tese de
que a terra é a verdadeira fonte de riquezas que um país possui. O entusiasmo pela
agricultura comparece em muitas obras do período, não sem críticas às doutrinas daí
derivadas120. Há autores mais voltados à economia e política, como Gournay, intendente
do comércio a partir de 1751, que defende um sistema político mais voltado à agricultura
e estimula a produção de obras de economia, e Quesnay, cujo Painel Econômico, de
1758, junto ao artigo “grãos” publicado na Enciclopédia, em 1757, são considerados os
textos fundadores da fisiocracia. Há também autores aos que se pode denominar de
especialistas, como Duhamel de Monceau. Uns e outros mostram-se interessados na
agricultura por seus aspectos globais de modo que, à época, “o termo agronomia com
freqüência significa simultaneamente o mundo dos economistas e o mundo dos
conhecedores da agricultura” (Denis, 1994, p. 657 e 659).
Essa abordagem ampla da questão agrícola aparece claramente no Discurso
sobre os Jardins de Arruda da Câmara, cuja primeira parte é dedicada à exposição da
importância dos Hortos e das "regras pelas quais se devem fazer e manter"; a segunda
parte, traz uma listagem sugerida de plantas a serem aí cultivadas121. O autor inicia sua
exposição argumentando acerca do valor econômico — e político — das culturas viáveis
nos trópicos, onde seriam encontradas terras férteis apropriadas ao cultivo de plantas
úteis, oriundas de quaisquer partes do mundo. Arruda lembra que a falta de muitas
dessas plantas "tem acendido muitas e muitas vezes a guerra entre as nações" (Câmara,
1982, p. 198). Além disso, a experiência passada é evidência da necessidade de
conferir-se um novo impulso à agricultura de espécies provenientes de "países

120
Um mapeamento e uma classificação dos diferentes autores envolvidos com o ideal do desenvolvimento
agrícola em contraposição ao ensumo das manufaturas e do comércio é oferecido em Denis, 1994.
121
Arruda usa indiscriminadamente os termos "Jardim" e "Horto", de modo que aqui também os
consideraremos como sinônimos.
103

estranhos":

"... a possibilidade de podermos arrancar das Índias Orientais o seu principal


comércio, e nos senhorearmos dele com manifesta vantagem. Esta verdade é
ainda mais confirmada pela prosperidade, que obteve na Bahia, a plantação
da pimenta da Índia, enviada de Goa ..." (Câmara, 1982, p.199).
"... Que riqueza não nos tem provindo das transplantações das canas de
açúcar, do algodão, do tabaco, do café [...] da mandioca, do trigo, do milho,
da mangueira, da jaqueira, dos dendezeiros, dos inhames, dos coqueiros e
d'outras plantas? Nenhuma destas plantas é própria do Brasil: umas vieram
da Arábia, outras da Índia, outras de África, e o milho da América
Setentrional" (Câmara, 1982, p. 200).

Essa pequena lista de espécies introduzidas no Brasil inclui, erroneamente, a


mandioca e o tabaco: ambas já eram cultivadas pelos índios antes da chegada do
homem branco122.
Arruda advoga a favor da "transplantação de espécies", não sem antes discorrer
com algum detalhe sobre os modos de nutrição e de desenvolvimento das plantas, no
intuito de demonstrar a viabilidade das culturas123.
A criação de Jardins Botânicos é projetada como o melhor meio de a Coroa
promover o incremento da agricultura na Colônia, para que neles "se cultivem e tenham
como em viveiros e reservatórios, tanto as plantas indígenas, como as exóticas"
(Câmara, 1982, p. 203). Evidencia-se o realce dado pelo autor à utilidade e, até mesmo, à
urgência do empreendimento:

122
A mandioca, Manihot esculenta constituia a base da alimentação entre os índios brasileiros. J. A. G. de
Mello, já indicara o erro, não mencionando, contudo, o tabaco. Segundo Hill, Nicotiana tabacum é indígena
das Antilhas, América Central e do Sul. Segundo Joly, é da América do Sul ocidental. C. França lembra que
Damião de Goes já mencionara a sua introdução em Portugal e discute a sua introdução na França e na
Espanha, além de atestar a sua existência "desde 1500 nas mãos dos íncolas do Brasil" (França, 1926, p. 82).
Hoehne, por outro lado, argumenta: "sendo fato que a maioria dos representantes do gênero Nicotiana, ... é
nativa e originária das regiões da América do Norte, Central e Sul, é insofismável que a sua origem e centro
de irradiação seja a América. Acredita-se, no entanto, hoje, na impossibilidade da Nicotiana tabacum L. ser do
nosso continente ... por se crer ser ela uma forma híbrida e não se querer admitir como possível que os
naturais deste continente pudessem obter uma destas formas" (Hoehne, 1937, p. 29).
Com relação aos locais de origem, Arruda não mencionou o arquipélago Indo-Malásio para a jaqueira. Com
exceção da mandioca, que era citada desde os primeiros cronistas do século XVI, os equívocos de Arruda
refletem o conhecimento da época. Ele não era um leigo no assunto, uma vez que a segunda parte da
Dissertação sobre os Jardins traz as espécies agrupadas segundo a sua origem.
123
Trata-se de trecho em que prepondera uma argumentação científica, onde disserta com algum detalhe
sobre os modos pelos quais as plantas obtém nutrientes, lançando mão de conhecimentos da química
contemporânea. Em 1675, o jurista e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo, que já apregoara as idéias de
desenvolver a cultura de especiarias no Brasil, para tornarem-se fonte de riqueza para Portugal, precisava
provar "que o Brasil produziria abundantemente todos aqueles ricos frutos, de modo que o autor tentava a
demonstração recorrendo à razão e à experiência. Em seu entender, 'todos os princípios da Filosofia natural'
mostravam que tudo o que a Natureza produzia nas terras situadas entre a linha equatorial e o trópico de
Câncer produziria nas que corriam da mesma linha ao trópico de Capricórnio. Portanto, as plantas da Índia
deviam dar-se no Brasil" (Almeida, 1975, p. 360).
104

" ... e cumpre muito à Nação que se isto faça com a maior presteza e energia,
tanto para cômodo e abastança de todo o Estado, como para aumento do
comércio e maior freqüência de seus portos; o que também não pode deixar
de favorecer a população, de que tanto e tanto necessita" (Câmara, 1982, p.
202).

Há um misto entre uma argumentação de ordem econômico-política e outra de


ordem científica. O naturalista Arruda da Câmara discorre sobre a nutrição dos vegetais e
sobre a variedade de terrenos férteis no país. O empreendimento não é apenas útil, mas
potencialmente viável — e, o que o assegura, é o discurso científico124. Sobressaem,
claramente, os interesses ligados à agricultura. É certo que o Discurso configura-se,
antes de tudo, como uma petição e para isso é moldado pela persuasão e do
apontamento minucioso de indícios que assegurariam o retorno dos investimentos125.
Outro aspecto característico do Discurso, é o de ser dirigido aos agricultores,
possíveis beneficiários da existência dos Jardins, fato este que impõe a seguinte questão:
Arruda estava direcionado exclusivamente aos ideais pragmáticos da agricultura ou
usando desse utilitarismo estaria tentando garantir um espaço institucional para o
desenvolvimento de uma investigação "pura", ou seja, dentro do campo da História
Natural? Haveria algo mais, por trás do texto propositadamente persuasivo, que o
naturalista Arruda da Câmara estivesse interessado em promover ou investigar? Uma
maneira de investigarmos isto é procurando por outros eventuais interlocutores de
Arruda. A quem mais é dirigido o Discurso?
Como ocorre em outras obras suas, esta também é dedicada àqueles que a
usariam como a um guia, ou seja, àqueles que deveriam criar o jardim e mantê-lo126. O
corpo maior do texto, que contém a sua contribuição de especialista nas diligências
botânicas, dirige-se aos naturalistas encarregados pela criação e manutenção dos
Jardins. Arruda sugere as províncias onde eles devem ser estabelecidos e os lugares
mais apropriados; recomenda o tipo de instrução que deve possuir além dos deveres que
deve cumprir, aquele que ocupar o cargo de "Inspetor" do estabelecimento; menciona a

124
Opinião semelhante encontra-se em Gilles Denis: “Os especialistas agrônomos têm a ambição de dar sua
contribuição aos projetos dos economistas” (Denis, 1994, p. 658).
125
Segundo nota de J. A. G. de Mello, em Aviso Régio de 19/11/1798, a Coroa já encaminhara ao governador
do Pernambuco solicitação para que se tomassem as providências para instituição de um horto botânico, que
não foi cumprida. Em abril de 1810, o nome de Arruda é sugerido para "organizar e dirigir o Horto Botânico de
Pernambuco" (Mello, 1982, p. 70).
126
Essa é intenção clara do autor em Aviso aos lavradores, Memória sobre as plantas de que se pode fazer a
barrilha entre nós, Memória sobre a cultura dos algodoeiros, Dissertação sobre as plantas do Brasil que
podem dar linhos.
105

necessidade de um "Jardineiro, que ajude a pôr em execução os projetos do Inspetor e


sirva como de feitor aos escravos ou serventuários do jardim, e serão estes tantos quanto
se julgarem necessários aos serviço" (Câmara, 1982, p. 204); fornece, ainda, uma
listagem das "plantas úteis que merecem ser transplantadas e cultivadas". Além disso,
Arruda discrimina com certo detalhe as atividades que se esperava fossem cumpridas
nos Jardins.
Arruda da Câmara preocupa-se em aconselhar que os Jardins fossem dirigidos
não apenas por um "Inspetor ativo, instruído em princípios de agricultura", mas que muito
melhor seria se possuisse "a ciência da Botânica" além de saber "desenhar, para
descrever e desenhar as espécies de plantas novas e raras que se criarem no seu Horto"
(Câmara, 1982, p.203)127.
As atividades do Horto, determinadas através das obrigações deste Inspetor,
foram resumidas em oito funções. As quatro primeiras, correspondem ao labor
estritamente científico do botânico: selecionar plantas, cultivá-las, tratá-las; angariar
novas plantas; determinar-lhes os nomes e utilidades; documentar esses dados e os
relativos aos terrenos mais apropriados a cada uma. A quinta função e a sexta, dizem
respeito ao intercâmbio com outros Jardins, o que também pode ser incluído no rol das
atividades científicas: prover os meios de distribuição de suas plantas e das informações
sobre elas. A sétima função tem cunho mais burocrático e atende mais diretamente aos
interesses da Coroa: refere-se à elaboração de relatórios prestando contas das atividades
do Horto, de seus lucros e dos melhoramentos de que precisa além de uma avaliação de
resultados alcançados pelos agricultores que se beneficiaram das plantas recebidas. Na
última função, o autor volta a frisar as vantagens econômicas, arrolando as plantas que
devem receber tratamento prioritário, pois o empreendimento

"... não tem por objeto só o agradável e o aumento da Botânica, mas o seu
principal fim é o útil, para que a sua manutenção não seja tão onerosa ao
Estado, devem os Inspetores promover, o mais que puderem, a cultura
daquelas plantas que derem mais lucro" (Câmara, 1982, p. 203-4).

O detalhamento das funções do Jardim mostra que ele não deveria restringir-se a
ser receptor e mantenedor de mudas destinadas à agricultura, mas, uma instituição com
um desempenho científico a mais. As atividades que deveria manter estavam
perfeitamente inseridas na área de atuação da História Natural da época. Ao naturalista

127
O modelo é o mesmo dos Jardins Europeus.
106

cabia uma investigação da natureza que consistia em inventariar os seres vivos. Arruda
conhecia bem as excursões ao campo para levantar dados sobre os vegetais, sobre o
local que se desenvolvem, sobre os terrenos e terras próprias a cada tipo, sobre a coleta
de espécimes, mudas e sementes, sobre a necessidade de investigarem-se as
propriedades e usos medicinais ou alimentícios e de nomear e classificar as espécies.
Todas essas são atividades enquadradas nas funções listadas por Arruda.
Assim, a questão levantada sobre as intenções meramente utilitário-econômicas,
por um lado, e as pesquisa botânica “pura”, por outro, deve ser respondida em Arruda da
Câmara conforme uma noção muito específica de “utilidade”. Algo “útil” não precisa,
necessariamente, ter uma aplicação prática, embora possa por ela ser guiada. Para o
botânico naturalista a utilidade do conhecimento sobre uma planta poderia ser medida
pelo que fornecesse de subsídios sobre o seu crescimento, florescimento, frutificação,
nutrição, descartando-se as velhas doutrinas das causas eficientes ou finais.
Arruda teve a formação da Química de Lavoisier e tinha ciência de sua
contribuição para o desenvolvimento da Arte da Agricultura. Por outro lado, passou, ainda
que sem diplomar-se, pelos cursos idealizados por Domingos Vandelli, professor de
Química e História Natural em Coimbra. A sua obra apresenta os traços dessa dupla
formação. A jovem Química aproxima-se da investigação botânica do agronômo. Sobre a
planta cultivada convergem as noções de “mistura-química” e “mistura-econômica” que
regem a interligação entre Economia, Política, Química e Botânica 128 . Some-se aí a
crítica constante e explícita aos botânicos dedicados exclusivamente à montagem dos
herbários e catálogos de sistemática, atarefados com a nomenclatura, essa “Arte de
repetir, com outras palavras, aquilo que outros já disseram”, conforme proclama a
enciclopédia do Abade Tessier, de 1787. Procura-se uma nova Botânica, comprometida
com a questão agronômica ou agricultural mais ampla, mas sem perder de vista seu
projeto de conhecer a verdadeira natureza dos vegetais. As diferenças entre os tipos de
plantas, entendidas como derivadas das peculiaridades dos climas e terrenos em que
crescem, passam a balisar as classificações. Aproximam-se os botânicos do interesse
pelo cultivo e transplantação de espécies.
Interessado no trabalho de campo como os botânicos, Arruda está mais voltado
para a planta cultivada como os agrônomos. Preocupa-se em mostrar que não cabe ao
botânico distanciar-se do interesse pelas plantas úteis, ao mesmo tempo em que não

128
“(...) para os diferentes agronômicos, a planta é uma produção, uma transformação que se insere num
processo ao mesmo tempo sócio-econômico e físico-químico” (Denis, 1994, p. 661).
107

pode relegar ao jardineiro a tarefa de cuidar de seu cultivo, como se pode notar no
Discurso sobre a instituição de jardins. Acredita também no poder da Química em explicar
a nutrição e desenvolvimento dos vegetais.
É ampla a semelhança com o especialista agrônomo Duhamel de Monceau, cujo
Tratado sobre o cultivo das terras alcançou grande penetração entre os agrônomos do
período além de ser explicitada por Arruda da Câmara no Aviso aos lavradores: “(...) a
atenção não somente de vários agricultores curiosos, mas ainda muitos Filósofos, como
Duhamel, Vallemont Galois (Curiosités de la Nature & de l'Art sur la vegetation), l’abbé
Rousseau e outros, que fizeram repetidas experiências”129.
Sem explorar mais profundamente a questão econômico-política que rege a
discussão no contexto francês, é possível traçar algumas influências decisivas desse
contexto em Arruda da Câmara, especialmente no que diz respeito aos temas abordados
em suas memórias. Assim, são encontradas as semelhanças entre Arruda e a corrente
de escritos derivada da obra de Duhamel tanto na amplidão da abordagem, quanto na
crítica aos botânicos de gabinete, na intenção claramente pedagógica dos escritos, na
abordagem do estudo das plantas segundo a inserção em climas e terrenos diferentes.
As considerações de ordem administrativa, bastante detalhadas por Arruda, no
Discurso sobre a Instituição de Jardins, justificam-se pela própria amplitude das
atividades a que se dedica o agrônomo francês do período, que não se restringe aos
aspectos científicos e técnicos da agricultura, “mas também políticos, econômicos,
sociais, jurídicos, e até mesmo médicos e lúdicos (...) Assim, Pierre de Crescens (...)
dividiu seu Livro dos Benefícios Rurais em capítulos cujos temas eram a liberdade de
escolher o local segundo sua boa qualidade para instalar uma granja, o ar, os ventos, a
água, as instalações, os poços e as fontes, as cisternas, os materiais das casas, os
empregados (...) Obras como [essa servem exatamente à] administração de uma granja
ou de uma região” (Denis, 1994, p. 655). Paralelamente, há obras em que se oferece
maior magnitude à abordagem botânica. Este é o caso de nosso Manuel Arruda da

129
Além destes, encontram-se outros autores citados nestas obras impressas de Arruda da Câmara: Memória
de Mr. Quatremere lida na Academia das Ciências de Paris In: Memória sobre a cultura dos algodoeiros, p.
123. Também, van Helmont, nota 8, p. 160.Também Lineu, notas 2, 3, p. 159. Também “duas dissertações
que li na coleção da Academia” p. 119. Também Lineu, Gen. plant., nota 7, p. 160. Deve-se destacar ainda o
Frei Veloso, a quem conheceu em 1792 e com quem deve ter trocado muitas correspondências, embora só
tenha restado uma carta, de fev. de 1794, na qual declara “não me enfado nunca de ler e reler a sua carta, em
que ajunta a bela exposição a sábios documentos, que devem servir de guia ao Naturalista Viajante; eu nunca
os perderei de vista e desejo já ter inteiro descanso para os cumprir à risca" (Câmara, 1982, p. 104). Deve-se
mencionar ainda o Filósofo Condillac, cuja presumida tradução da obra não lhe deve ter passado incólume.
O biógrafo Gonsalves de Mello menciona ainda: Influências mais claras e declaradas do botânico Félix de
Avelar Brotero, de Lavoisier, do químico João Antonio Chaptal e do botânico Antonio Gouan (Mello, 1982, p.
21).
108

Câmara.
Finalmente, a influência de Duhamel de Monceau, aparece por esse ideal de
promover o desenvolvimento agrícola, cujos textos procuravam traçar “o caminho a ser
seguido” pelos cultivadores, segundo os preceitos da Arte. Arruda da Câmara, não por
acaso, escreve o seu Aviso aos lavradores130. Ainda quanto aos conteúdos, veremos o
enorme esforço empreendido por Arruda no estudo da adequação entre terrenos e
plantas de modo a otimizar o seu cultivo.
Os escritos de Arruda mostram a sua inserção nas idéias fisiocráticas da segunda
metade do século XVIII, através de seu forte comprometimento com toda a questão da
aclimatação de vegetais exóticos. Essa mentalidade francesa do período tão voltada à
questão da Agricultura está presente no trabalho de Arruda tanto quanto no de Domingos
Vandeli. Este foi o mentor da introdução das ciências naturais em Portugal e responsável
pelo incentivo às pesquisas patrocinadas pela Coroa e a serem realizadas por seus
pupilos naturalistas, como Manuel Arruda da Câmara.
Na sua Memória sobre a utilidade dos jardins botânicos, Vandelli é bastante direto
na referência que faz ao papel dos jardins botânicos:

“O primeiro conhecimento [‘dos vegetaes, da sua natureza, e do clima, e


terreno em que nascem’] adquire-se com o estudo da Botanica, o secundo
[‘causa da fertilidade da terra’] com experiencias, e reflexões fisicas, o terceiro
[‘na influencia do ar sobre os vegetais’], e quarto [‘regras praticas necessarias
para a boa cultura’] com hum Jardim Botanico, no qual he necessario cultivar
os vegetaes de todos os climas, e terrenos” (Vandelli, 1788, p. 293).

130
A necessidade de usar os conhecimentos das ciências para a melhoria das artes agrícolas é tão presente
em Arruda quanto em Vallemont (1705): “Mas não é suficiente que os Doutores alcancem novos
conhecimentos sobre o cultivo e a administração dos campos; é preciso que esses conhecimentos
importantes difundam-se entre os camponeses, a quem esse tipo de trabalho se destina (...) Ao publicar este
trabalho de Física, eu desejo passar dos entendidos para o povo tudo aquilo que é útil que foi descoberto faz
algum tempo, tanto na Agricultura como na Jardinagem, para que todas as pessoas possam disso tirar
proveito” (Vallemont, apud Denis, 1994, p. 665). Esse trecho é do prefácio de Vallemont de Curiosidades da
natureza e da arte sobre a vegetação, ou a agricultura e a jardinagem na sua perfeição, obra da qual Arruda
da Câmara retira uma receita para o preparo de um “adubo” para as sementes, anunciando de início: “Como,
porém, as experiências dos e os resultados que obtiveram os ditos Filósofos e curiosos não se acham na
língua Portuguesa, tomei o trabalho de dá-los a conhecer aos meus compatriotas, a fim de evitar-lhes o
engano que se lhes prepara, e ser-lhes de alguma utilidade” (Câmara, 1982, p. 87).
Os mesmos objetivos estão claramente expressos em Monceau, 1761: “O Cultivador, agindo mais por hábito
que por decisões deliberadas, guiava seu arado sem que ninguém lhe traçasse o caminho a ser seguido. (...)
alguns intendentes unem-se para congregar pessoas zelosas e instruídas que se propõem a fazer algumas
experiências, e estimular os Cultivadores de suas províncias a imitar seus procedimentos no cultivo das
terras” (Monceau, apud Denis, 1994, p. 665-6).
109

5.4 O Aparecimento dos Jardins Botânicos

Deve-se lembrar que Arruda não está sugerindo nada de novo. A História Natural
já ultrapassara a marginalidade ou obscuridade de uma ciência emergente. Estava
fortalecida nos meios científicos e até mesmo fora deles, devido à popularidade
alcançada no período pelas coleções de espécies exóticas. Também os Jardins não eram
novidade.
Deve-se lembrar, sobretudo, que eles sempre existiram. Desde os egípcios,
babilônios e helênicos; entre os chineses e japoneses ou árabes. Existiram também na
Idade Média, como fonte de plantas medicinais ou alimentícias. É verdade, contudo, que
o Jardim que se institui na Europa ocidental a partir do século XVI é diferente. Ele
pretende uma destinação nova, correspondente à emergência da ciência botânica. Neste
momento, eles surgem nas Universidades da Itália, França, Suiça, Holanda, para prover
materiais aos estudos botânicos que estivessem diretamente voltados à aplicação na
Medicina.
V. Heywood atesta que os jardins medicinais foram construídos antes na Itália, no
século XVI: primeiro em Piza (1543), seguido por Padua (1545), Florença (1545) e
Bolonha (1547). Só então, surgiram em Zurique (1560), Leiden (1577), Leipzig (1579),
Paris (1597), Montpellier (1598), Oxford (1621), Paris (Jardin des Plantes, 1626), Uppsala
(1655), Edimburgo (1670), Londres (Physic Garden of Chelsea, 1673), Berlim (1679) e
Amsterdam (1682)131.
A sua "criação" nesse período ilustra bem o estágio de profissionalização da
História Natural. Inicialmente criado para abrigar as plantas cujo uso terapêutico era
conhecido tradicionalmente, desde a famosa obra Materia medica, de Dioscórides, aos
poucos foi aglutinando coleções maiores, através de espécies provenientes das novas
áreas conquistadas pelos europeus no mundo e cuja utilidade apontada alhures
precisava ser investigada132.
Em Portugal só havia o Jardim na Ajuda, ao lado do Palácio Real, quando os
estatutos que reformaram a Universidade de Coimbra, em 1772, "consagram a
impossibilidade de um ensino superior sobre as plantas, se este não existir apoiado por

131
Ver V. H. Heywood, 1983. Ver também D. E. Allen, 1994.
132
A obra de Dioscórides (ca. 60 d.C.) constava de uma "soma de conhecimentos botânicos, farmacológicos
e químicos; ao referir-se aos remédios descreve com exatidão ao redor de 600 plantas, o que dá a sua obra o
valor de Tratado de Botânica descritiva mais importante da Antigüidade ... até o Renascimento, todos aqueles
que se ocuparam das propriedades das ervas, o citam constantemente como a máxima e indiscutível
110

um jardim botânico devidamente apetrechado" (Janeira, 1990?, p. 87). No entanto, em


resposta ao projeto de criação do Horto Botânico daquela Universidade, em carta de
dezembro de 1773, o Marquês de Pombal critica asperamente os excessos do projeto
lembrando que:

"... Todos estes Jardins [das Universidades de Inglaterra, Alemanha e


Holanda] são reduzidos a um pequeno recinto, cercado de muros, com as
comodidades indispensáveis para um certo número de ervas medicinais, e
próprias para o uso da Faculdade médica, sem que se excedesse delas, a
compreender outras ervas, arbustos, e ainda árvores das diversas partes do
mundo, em que se tem derramado a curiosidade já viciosa, e transcendente
dos sequazes de Lineu que hoje têm arruinado as suas casas, para
mostrarem o malmequer da Pérsia, uma açucena da Turquia e uma geração e
propagação de aloés com diferentes apelidos, que os fazem pomposos.
Debaixo destas regulares medidas, deve pois V. Ex.ª fazer delinear outro
Plano, reduzido somente ao número de Ervas Medicinais, que são
indispensáveis para o exercícios botânicos, e necessário para se darem aos
Estudantes as noções precisas para que não ignorem esta parte da Medicina"
(Ribeiro, 1871, p. 396-7)133.

As restrições do Marquês de Pombal podem parecer contraditórias à luz da


reforma estatutária do ano anterior. Afinal, ao criticar os antigos métodos de ensino e ao
criar as faculdades de Matemática e de Filosofia Natural, os novos estatutos deveriam
garantir o desenvolvimento do conhecimento da natureza nos reinos mineral, vegetal e
animal134. Desde o século XVI, os Jardins europeus cumpriam uma perspectiva de ordem
prática: abrigavam plantas alimentícias e medicinais. A reforma da Universidade de
Coimbra não mudou esse caráter eminentemente prático e que já se consagrara aos
Jardins. No entanto, o projeto para o Jardim da Universidade incluía uma nova função
dentre as suas atividades, a educacional: o Jardim da Universidade deveria servir aos
estudos médicos. No entender do poderoso ministro de D. José, a inclusão de objetivos
mais amplos, isto é, mais relativos a uma pesquisa botânica, em seu entender, “inútil”, já
seria um luxo ao qual as verbas da Universidade portuguesa não alçariam. As restrições
do marquês de Pombal à criação do Jardim podem ser compreendidas portanto à luz

autoridade" (Ahumada, 1942, p. 12).


133
A Carta de Pombal encontra-se reproduzida na íntegra em Jardins do Saber e do Prazer de Ana Luísa
Janeira. A data da carta, contudo, é ali indicada em 5/10/1775.
134
A ambivalência da reforma pombalina é tema discutido na historiografia. A reforma pretendia introduzir a
ciência moderna em Portugal, embora não tenha ido tão longe quanto o pretendido na prática. Lembre-se que
no final do século XVIII, a situação econômica de Portugal era "lamentável" (Prado, 1983, p. 34). Para uma
análise voltada mais especialmente à situação da química, ver Márcia Ferraz, 1995a.
Por outro lado, a administração do Marquês de Pombal como um todo também é vista como uma mistura de
ideais da Ilustração com práticas mercantilistas tradicionais (Fausto, 1994, p. 110-12).
111

dessa orientação fortemente pragmatista da Ilustração em Portugal135.


Mas também deve ser remetida a uma certa ambivalência do papel do Botânico e
da obra do seu mais ilustre representante, o sueco Lineu, criticado diretamente por
Pombal. Todos criticam a ação de um tipo de botânico que se deixa consumir
inteiramente pelo secar, catalogar, classificar e etiquetar plantas. Arruda da Câmara o
critica. Vandelli faz ver quão mais ampla é a atividade do Botânico. Lineu é um homem
voltado a uma pesquisa muito mais ampla do que a temática taxonômica, como já foi
apontado em relação à história geográfica, para citar-se um único exemplo. Quem, então,
está sendo verdadeiramente criticado, uma vez que os termos de todas as críticas são os
mesmos? Talvez a polarização criada à época, pela contorvérsia entre Lineu e Buffon,
tenha contribuído para essa simplificação ou redução da pesquisa de Lineu — que, aliás,
persiste até hoje não apenas no senso comum como também entre muitos botânicos.
Assim, parece ser mais da fama ou do uso da autoridade de Lineu para justificar
empreendimentos onerosos ou “fúteis” que se utiliza o ministro Pombal para atacar, de
fato, um outro inimigo. Os botânicos Vandelli e Arruda, que já incorporaram amplamente
em seu trabalho o método lineano não podem estar dirigindo-se ao mesmo alvo.
Qual a diferença entre os termos de Pombal, como “a curiosidade já viciosa, e
transcendente dos sequazes de Lineu que hoje têm arruinado as suas casas” e os de
Vandelli, como “o saber pois somente o nome das plantas naõ he ser Botanico”,
pleiteando, algumas linhas depois, a necessidade da “inteligencia dos termos, de que os
Naturalistas, e principalmente o Cel. Linnéo fazem uso”? Talvez deva ser outra a
pergunta. Não quem, mas o quê está em jogo? Talvez esteja ocorrendo aí a virada do
mercantilismo pombalino à fisiocracia do novo ministro das colônias e da marinha, D.
Rodrigo de Souza Coutinho, nomeado no reinado de D. Maria I, em 1796. O protesto de
Pombal foi escrito em 1773 ou 1775, pouco antes de desocupar o cargo em 1777. Sob a
proteção de Souza Coutinho, Vandelli está mais à vontade, 11 anos depois, para expor
suas posições na Memória sobre a utilidade dos jardins136. Arruda da Câmara, em 1810,
já não precisa ocupar-se de uma defesa pela investigação lineana. Ela já está totalmente

135
"O discurso [de Pombal] prima pela imposição declarada de uma tônica de retenção, pois considera essas
despesas tão exorbitantes quanto inúteis. Na verdade, discorda não só do orçamento envolvido, como da falta
de proveito decorrente dos desmandos taxonómicos" (Janeira, 1990?, p. 78) A reforma da Universidade de
Coimbra contrapõe a antiga "transmissão de saber, que retirava dos efeitos de retórica argumentos para
convencer" às práticas exigidas pela ciência moderna emergente, cujas despesas "terão de estar ao serviço
de um rigor metodológico e nunca do fausto desejado pelos príncipes" (Janeira, 1990?, p. 79).
136
Segundo W. Dean, a estratégia de Souza Coutinho para “lidar com o perigo francês foi acelerar a
absorção do conhecimento científico estrangeiro, que ele via não só como um meio de galvanizar as colônias
atrasadas, mas também de garantir sua lealdade, empregando bacharéis universitários em projetos que em
termos de concepção e execução abrangiam todo o império português” (Dean, 1996, p. 138).
112

incorporada no seu próprio fazer botânico137.


Além desse apelo utilitário-pragmático, lembre-se que o Jardim de Plantas de
Paris passa, no final do século XVIII por um período de decadência, que também será
sentido nos Jardins Botânicos da Ajuda e de Coimbra, especialmente na segunda década
do século XIX 138 . É plausível supor que o naturalista brasileiro conhecia bem as
dificuldades com que se defrontaria ao encaminhar a sua proposta139.

5.5 A Transplantação de Espécies na Política Colonial

Arruda menciona apenas dois jardins já existentes no Brasil: um no Pará e outro


em Caiena140. A sua proposta é para a criação de outros três: no Rio de Janeiro, na Bahia
e em Pernambuco. No entanto, em 1810, o Brasil já contava com outros jardins
botânicos: o supra citado do Rio de Janeiro, embora de curta duração, criado pela
Academia Scientifica, em 1772 (Dean, 1992, p.8; Azevedo, 1885, p. 271; Mello-Leitão,
1937, p. 94) e outro em São Paulo, de 1779, que, igualmente, "não teve andamento"
(Dean, 1992, p. 8). Existia também o Jardim Botânico de São Paulo no bairro da Luz,
criado por militares em 1798, transformado em passeio público, no local onde depois
formou-se o Parque da Luz (Hoene, 1941)141. Causa estranheza o fato de Arruda ter
ignorado no Discurso o Jardim Botânico da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
cuja fundação em 1811 apenas oficializou o Horto que já fora criado em 1808 e
"transformado em instituição real no ano seguinte" (Almeida, 1975, p. 407).

137
Não foi encontrada uma menção em defesa de Lineu na obra de Arruda da Câmara aqui examinada,
embora esta questão só tenha sido levantada posteriormente à leitura completa e sistematizada em
fichamentos de suas memórias e dissertações. Tudo o que se pôde reencontrar, nesse modo a posteriori,
foram as dezenas de citações que corroboram a idéia de que o método lineano estava amplamente
encampado por Arruda da Câmara:
138
Segundo A. L. Janeira, “nos dois casos há contestação político-social de antigos regimes e interesses
econômicos divergentes”.
139
J. A. G. de Mello, em nota à página 69, menciona que o Aviso Régio de 19 de dezembro de 1798, dirigido
ao governador de Pernambuco, já determinava o estabelecimento de um horto botânico naquela capitania,
“com a menor despesa possível, semelhante ao que no Pará fora criado pelo respectivo governador, no qual
fossem cultivadas todas as plantas assim indígenas como exóticas e, em especial, as que produzissem
madeiras de construção, para depois se semearem nas matas reais”. O aviso não se cumpriu.
140
Trata-se, em Belém do Pará, do Horto Público de São José, cuja data de fundação varia conforme o autor
aqui mencionado: 1796 (Dean, 1992, p.8; Almeida, 1975, p. 403); 1797 (Mello-Leitão, 1937, p. 112); 1798
(conforme Mello, 1954, p. 42). O de Caiena é o Jardim Gabriela, incluído por Arruda devido à ocupação da
Guiana Francesa pelas tropas luso-brasileiras, de 1809 a 1817.
141
À título de documentação, lembre-se aqui da iniciativa de Maurício de Nassau, relatada em 1647, como
"primeiro ensaio de um jardim botânico, no qual se reuniram com interesse científico e também ornamental,
uma grande variedade de árvores nativas e exóticas" (Mello, 1954, p. 35). Checar Palácio de Vrijburg.
113

Há menção há outros dois jardins, um em Salvador (Dean, 1992, p. 8;


Mello-Leitão, 1937, p. 112) e outro em Ouro Preto, criados depois de 1802 (Dean, 1992,
p. 8). Ao de Salvador, Mello-Leitão atribui a criação ao ano de 1809, junto com o de
Olinda. A data, contudo, está errada, ao menos para o de Olinda. O que há em 1807 e
em 1809 é a instrução para implementação de um Jardim em Olinda, que só
concretizou-se em 1811, depois, portanto, do Discurso.
O ano de 1811, é a data mais provável, também, para a criação dos jardins de
Salvador e Ouro Preto, seguindo determinação do mesmo ano do rei D. João VI para que
se criem "jardins filiais em Pernambuco, Baía, Minas Gerais e São Paulo" (Hoehne,
1941)142.
A implantação de hortos de plantas deve ser avaliada, também, segundo o
contexto mais amplo das práticas econômicas coloniais do período, não sendo o Brasil,
um caso isolado. É possível que o Jardim de Olinda tenha sido proposto por el-rei sob a
influência da solicitação de Arruda, como sentencia Warren Dean. Mas deve-se lembrar
que, no século XVIII, os Jardins Botânicos apareceram obedecendo uma dupla
orientação, conforme o local a que se planejava. Na Europa, junto às coleções vivas dos
jardins, formaram-se os herbários de plantas coletadas na exploração de diferentes
partes do mundo. Os herbários cresceram cada vez mais intensamente, como reflexo da
aceleração das explorações ultramarinas. A imensa quantidade de material recolhido
precisava não apenas ser estocada, quanto organizada e identificada, levando ao
desenvolvimento da taxonomia e ao estabelecimento da sua profissionalização
(Heywood, 1983, p. 7).
Nas colônias, as atividades dos jardins foram muito mais orientadas aos aspectos
medicinais e aplicações econômicas mais amplas, através da busca por madeiras,
especiarias, alimentos, fontes de pigmentos, resinas e ceras, tecidos, papel. Ao
inventariar a criação do Calcutta Botanic Garden em 1787 e compará-lo a outros, V. H.
Heywood conclui que os Jardins Botânicos dos países tropicais "foram geralmente
criados pelos governos como instrumentos de expansão colonial e desenvolvimento
comercial, desempenhando um papel importante no estabelecimento dos padrões de
agricultura em várias partes do mundo", tendo sido motivados, portanto, mais pelo
comércio do que pela ciência (Heywood, 1983, p. 7-10) 143 . Não apenas a Inglaterra
facilitou o intercâmbio com a Índia através da criação de Jardins, mas também a Holanda

142
Horto para Aclimação de Plantas Exóticas de São Paulo, 1811.
143
Pode-se atribuir à Ilustração essa dupla caracterização do conhecimento: por um lado, a Razão e a
114

com Caiena e Cabo da Boa Esperança e Portugal com as ilhas do Atlântico, Goa e o
Brasil. Os jardins botânicos emergem nessas colônias não tanto para a pesquisa
taxonômica, ou para o impulso da Botânica, mas como "novos e poderosos instrumentos
de intercâmbio de espécies tropicais" com vistas ao desenvolvimento da agricultura e do
comércio ultramarino (Dean, 1992, p. 7).
Espécies variadas de animais e vegetais foram introduzidas no Brasil desde os
primórdios da colonização. No início, o interesse era pela introdução de alimentos mais
familiares ao paladar dos conquistadores, ou de plantas cujo uso medicinal era
corriqueiro 144 . Assim, foram cedo introduzidas no Brasil espécies já aclimatadas em
Portugal ou nas possessões portuguesas das ilhas da Madeira e Cabo Verde, como a
cana de açúcar, a uva, o figo, a romã, a laranja, a lima, os coqueiros, o arroz branco, o
inhame. Diretamente da Ásia vieram a mangueira, a jaqueira e a bananeira, enquanto da
América veio o milho, rapidamente transformado em base da alimentação dos habitantes
do Brasil.
No entanto, a Coroa Portuguesa logo decidiu-se por manter o monopólio dos
mercadores dos produtos oriundos das colônias asiáticas, proibindo a introdução de
plantas economicamente significativas no Brasil. Ao longo do século XVI e até meados do
século XVII, uma série de impedimentos visava privilegiar o comércio dos produtos da
Índia, proibindo-se a importação de especiarias, cujo cultivo abundante no Brasil faria cair
o seu preço145. Chegou-se mesmo a decretar a extirpação de todas as espécies aqui
introduzidas — para o que atesta documentação relativa a pelo menos uma espécie, o
gengibre146.
A política da Coroa Portuguesa estava sintonizada com os preceitos mercantilistas
baseados na crença de que os ganhos de um Estado seriam expressos por seus
estoques de metais preciosos. Para isto, era necessária uma "política de proteção dos

Experiência; por outro, a sua aplicação, que evidencia o utilitarismo do século XVIII.
144
A maior fonte documental acerca das espécies nativas é encontrada nos relatos dos séculos XVI e XVII,
como no de José de Anchieta (1585), especialmente nos que enfatizavam a história natural do país, como
Pêro Magalhães Gandavo (1570), Fernão Cardim (1584), Jean de Leri, Gabriel Soares de Souza (circa 1587),
Hans Staden, André Thevet, Ambrósio Fernandes Brandão (1618).
Sobre introdução de espécies exóticas no Brasil ver: W. George, 1980; C.França, 1926; J. R. de S. Fontes,
1856.
145
A pimenta foi proibida em 1506, cfr. Almeida, 1975, p. 343.
146
O relato é do Pe. Antonio Vieira, de 1675: "... Há muitos anos que sei se dá no Brasil a pimenta, e quási
todas as outras drogas da Índia ...: e El-rei D. Manuel, por conservar a conquista do Oriente, mandou arrancar
todas as plantas indiáticas, com lei capital que ninguém as cultivasse, e assim se executou, ficando somente o
gengibre que, como é raiz, dizem no Brasil, se meteu pela terra dentro: mas ainda se conserva a proibição, e
se toma por perdido". Cartas do Padre Antonio Vieira, publ. por J. Lúcio de Azavedo, t. III, Coimbra, 1928, p.
147, apud Almeida, 1975, p. 342. Também Guilherme Piso o atesta na obra, conhecida por Vieira, História
Natural e Médica da Índia Ocidental. Cfr. J.R. do Amaral Lapa, O Brasil e as drogas do Oriente, p. 8-9 e L. F.
115

produtos do país", atribuindo-se às colônias o papel de "áreas reservadas de cada


potência colonizadora". Praticou-se então o exclusivo colonial, "conjunto de normas e
práticas", cujo "eixo básico" era a "exclusividade do comércio externo da colônia em favor
da Metrópole" (Fausto, 1994, p. 55-6). Daí derivou-se a política de monopólio sobre
produtos como o tabaco (em 1642), vinho, trigo, azeite de oliva e bacalhau com a criação
da Companhia Geral do Comércio do Brasil (em 1649). Apenas no final do século XVIII é
que deixou-se de praticar a política mercantilista no Brasil.
Contudo, entre meados do século XVII e finais do século XVIII, a Coroa não
apenas passa a "revogar as antigas proibições", como inicia as tentativas de "aclimatar
no Brasil as plantas de especiarias e outras habitualmente cultivadas nas regiões
orientais" (Almeida, 1975, p. 345-6). Assim, a transplantação de espécies passa a ser
vista como arma econômica a ser utilizada na expansão comercial, com o Brasil
desempenhando um papel crescente nos esforços de restabelecimento do império
português. Seguiram-se tentativas de estabelecimento da cultura da pimenta-do-reino
(Piper nigrum), anil, noz moscada de Banda, canela do Ceilão, cravo das Molucas e
gengibre, mandados buscar na Índia e trazidos em remessas sucessivas, nem sempre
bem sucedidas. As sementes, estacas ou mudas e pequenas árvores deveriam vir
acompanhadas de instruções sobre a transplantação, modos de transportá-las e
mantê-las nos navios além de determinações a respeito da qualidade das sementes
adquiridas e do seu plantio. Indicavam-se os locais onde deveriam ser cultivadas, "tendo
em conta a latitude [...] verificando a maior ou menor produção conforme o lugar, a
humidade, a exposição ao sol e ao vento e todas as outras particularidades que os
naturalistas observam" (Almeida, 1975, p. 360-1). Isto tudo especialmente para a canela
mais fina do Ceilão e para a pimenta da Índia.
As iniciativas não estão homogeneamente distribuídas no período. Atesta L. F. de
Almeida que, no final do século XVII, "vemos a Coroa multiplicar as instruções no sentido
não só de ser intensificada a procura das drogas do sertão, mas também de se proceder
ao seu cultivo", pois acreditando-se poderem ser "beneficiadas pela cultura", as "drogas
nativas do Norte do Brasil pudessem competir em qualidade com as do Oriente"
(Almeida, 1975, p. 377; 376). Assim desenvolveu-se a procura, extração e cultivo do
"cacau, baunilha, cravo, canela, pimenta, gengibre" para a alimentação, do urucu e
carajaru para a tinturaria, da "salsaparrilha, canafístula, quina" para o uso medicinal
(Almeida, 1975, p. 375).

de Almeida, 1975, p. 342-3.


116

Ao longo do século XVIII, as experiências tornaram-se "mais espaçadas", mas


vários elementos contribuíram para uma retomada ou um "renascimento" da agricultura
na Metrópole e suas colônias. Some-se a política com vistas à industrialização de
Portugal — destinando-se ao Brasil o papel de maior produtor e fornecedor das
matérias-primas necessárias ao empreendimento —, a decadência do ouro e uma política
de reformas para o Brasil, "sobretudo pela necessidade de formar elementos
indispensáveis à administração e à vida da nação no Novo Mundo" (Dias, 1969, p. 131)
em finais do século XVIII, some-se isso tudo, emergirá uma nova fase para o
desenvolvimento do Brasil-Colônia, fase marcada pela intenção de incremento à
agricultura e ao comércio. As medidas que deveriam viabilizar a retomada da tendência
agrícola concentraram-se de maneira acentuada na transplantação e aclimatação de
espécies economicamente valiosas.
Pode-se apontar a existência de um conjunto de elementos condicionantes das
novas tentativas de aclimatação com uma orientação mais clara por parte dos
governadores — e, mais determinantemente, do poder central, através da figura de D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, mais tarde marquês do Lavradio, Ministro da Marinha e
Ultramar. Esta orientação ainda vicejou com a vinda da família real para o Brasil.
A nova política de Estado efetuou-se por vários meios. Por um lado, tratou-se de
restabelecer os "prêmios e isenções fiscais para os introdutores e cultivadores de plantas
de especiarias" (Almeida, 1975, p. 412). "Data desse período, a introdução do fumo da
Virgínia na Bahia, do arroz Carolina no Pará e Maranhão, a tentativa de aclimação de
uma série de produtos inteiramente novos como o anil, a cochonilha, o cânhamo e a
fomentação de outros como o algodão, o cacau, o gengibre e o café, destinados a
ensaiar a diversificação da agricultura" (Dias, 1969, p. 112-3).
Por outro lado, a política de fomento do comércio de plantas gerou duas
inovações importantes — e mais significativas do ponto de vista científico: publicações e
jardins botânicos. Estimularam-se diversas publicações "sobre assuntos de interesse
científico e prático para a vida econômica brasileira: aperfeiçoamentos técnicos, novos
métodos agrícolas e novas plantas que poderiam ser cultivadas, designadamente as
originárias do Oriente e produtoras de especiarias" (Almeida, 1975, p. 402). As várias
memórias "de cunho estritamente técnico" surgiram como resultado dos estudos
solicitados pela Coroa sobre "exemplares da flora brasileira" e "produtos interessantes e
comerciáveis, até então ignorados ou inexplorados" (Dias, 1969, p. 113-4). A instituição
de jardins botânicos torna-se projeto oficial para abrigar espécies de plantas medicinais
117

além de outras de valor econômico, como as de "utilidade para a construção naval". Em


Coimbra, o célebre naturalista Brotero escreve que os Jardins "não so devião servir para
o progresso da agricultura de todo o Brasil, mas ainda para estabelecer huma circulação
de vegetais uteis entre o Brasil e o Reyno e entre o Brasil e outras colonias da Nação"
(Brotero, apud, Almeida, 1975, p. 403)147.
Os incentivos proliferam através da oferta de bolsas para formação de
profissionais (engenheiros topográficos, hidráulicos, contadores, médicos: Dias, 1969, p.
116). O ministro de D.Maria I, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1796, "mandava pedir
aos governadores das capitanias relatórios sobre os processos empregados no preparo e
cultivo dos gêneros exportáveis; ordenava que se procedessem a levantamentos de
plantas nativas a serem remetidas para o Reino e a explorações mineralógicas; prometia
prêmios aos lavradores mais industriosos; tratava de promover a introdução do arado e a
cultura dos novos gêneros. Ordenava medidas no sentido de aumentar o comércio
interno e o de exportação" (Dias, 1969, p. 119).
Assim, o Discurso de Manuel Arruda da Câmara deve ser entendido dentro das
orientações científicas e econômicas oficiais de sua época. O naturalista de Pernambuco
trouxe de sua estada breve em Portugal as orientações políticas com as quais engendrou
os seus textos científicos148. O momento era propício à disseminação de instruções aos
agricultores, à difusão dos novos conhecimentos da botânica e ao incremento da
agricultura no Brasil. Arruda levou a cabo a sua tarefa, num momento em que os ideais
da revolução francesa eram censurados pela Coroa e em que pretensões ao
desenvolvimento da colônia americana ainda podiam soar como perigosas tentativas de
independência de Portugal149.

147
Ainda digna de menção é mudança de intenções acerca do destino do Jardim Gabriela em Caiena,
quando da invasão portuguesa na Guiana. A sua total destruição inicialmente planejada foi substituída pelo
desejo de conservar suas especiarias e de estendê-las aos jardins do Brasil. Cfr L. F. de Almeida, 1975, p.
405-6.
148
Embora crítico “da política colonial e da concepção botânica anteriores” e ousado em “exaltar sua terra
natal em detrimento da metrópole abandonada”, Manuel Arruda da Câmara soube ser prudente o bastante
para transformar “sua chacota em exaltação: ‘se o estéril Portugal pôde florescer aos pés de um bom rei,
como poderia o Brasil deixar de florir’”? (Dean, 1996, p. 141-2).
149
No entanto, ao examinar os muitos cargos ocupados e os benefícios usufruídos pelos naturalistas do
período, M. O. da S. Dias defende a idéia de que, formadores da consciência nacional, estes homens não
pensavam o Brasil isolado de Portugal. De qualquer forma, é no trabalho destes brasileiros, formados
segundo os ideais da Ilustração nas universidades européias, seja em Coimbra, Montpellier, Edimburo, Paris
ou Estrasburgo, que, segundo a autora, devemos buscar as origens da formação de uma consciência
nacional, engendrada a partir da preocupação em aplicar os conhecimentos científicos novos à realidade
brasileira. Assim, embora promovessem e incentivassem reformas inspiradas no andamento de países mais
adiantados, como Inglaterra e Estados Unidos, estes naturalistas "não pensavam em independência e
separação" (Dias, 1969, p. 146), mas "queriam começar reformando Portugal". Estiveram "imbuídos de idéias
reformadoras [não políticas ou sociais, mas técnicas], mas sempre antes no intuito de orientar a Coroa e não
de romper com ela" (Dias, 1969, p. 149).
118

5.6 A História Geográfica de Plantas em Arruda da Câmara

Em consonância com a História Natural do período, Arruda da Câmara indica


várias vezes a relação íntima da planta com o lugar onde ela se desenvolve. São várias
as passagens em que afirma o "país próprio" de cada planta que, obedecendo a uma
ordenação natural, fora do qual ela não subsiste ou só o faz degeneradamente, isto é,
cresce pouco e não frutifica. Na Memória sobre a cultura dos algodoeiros, de 1799, a
associação da planta ao lugar é feita através do clima:

"A natureza concedeu a cada país ou a cada clima seus privilégios


exclusivos, e que sempre gozaram, apesar de todo o esforço da Arte"
(Câmara, 1982, p.123).

A localização própria indica a gênese, a origem que não pode ser descartada.
Qualquer transplantação deve ser efetuada com base no conhecimento do "país próprio"
de cada planta, sob pena de não se ver o seu desenvolvimento alhures. Para os trópicos
americanos, plantas da Ásia tropical podem ser trazidas. Mas para a Europa, nem mesmo
sob cultura atenciosa irá desenvolver-se (Câmara, 1982, p.123).

"O país próprio do algodoeiro é debaixo dos Trópicos, ou nas partes mais
vizinhas. A Ásia foi onde primeiro se fez uso desta planta: tanto lá como na
América cresce esta planta naturalmente, sem a mínima cultura: logo, ela é
natural destes dois países. Inúteis serão sempre os projetos de alguns
europeus de naturalizarem esta planta no seu país [...] pela diferença dos
climas degenera pouco a pouco, passando do estado de árvore elevada ao de
erva rasteira, e de frutífera a infrutífera [...] esta degeneração tem lugar tanto
na Ásia como na América, caminhando do meio dia ao Setentrião [...]
Enquanto a mim, posso afirmar que o de Maranhão já degenera muito a
respeito do de Paranambuc" (Câmara, 1982, p. 123-4).

Ao afirmar essa dupla origem do algodoeiro, indica a sua opção frente à polêmica
a respeito do centro de dispersão original das espécies: Arruda da Câmara mostra-se
partidário da concepção segundo a qual não houve um único centro de criação, mas
vários, como Buffon defendera. Mas é seguindo a prática lineana do período que Arruda
da Câmara justapõe as informações de caráter taxonômico às de caráter geográfico. Não
basta afirmar o lugar próprio das plantas. É preciso indicá-lo e descrevê-lo. É preciso
119

explicar a sua especificidade e demonstrar os modos utilizados pela Natureza para


confinar cada espécie a um tipo de lugar e de habitação. Como já vimos, as floras locais
escritas nas três últimas décadas do século XVIII já vinham incrementando a explicação
lineana para a distribuição dos grupos de plantas, substituindo ou somando às condições
climáticas e de dispersão, outros princípios físicos, com base na topografia (P. S. Pallas,
1772), nas elevações e relações entre altitude e latitude (R. de Carbonnières, 1787) ou
no desenvolvimento histórico das regiões para explicar descontinuidades na distribuição
de uma espécie (K. L. Wildenow, 1792)150.
Quanto ao clima, Arruda da Câmara analisa-o com respeito à temperatura,
ventilação, quantidade de chuvas e umidade do ar. As plantas características de
ambientes quentes não se desenvolvem completamente, ou sequer sobrevivem, se
levadas a ambientes frios. Arruda da Câmara relaciona a diferença de temperaturas à
latitude, mencionando degenerações semelhantes na Ásia e na América conforme se
avança do Sul ao Norte 151 . A ventilação varia em função da altitude, de modo que
terrenos “altos podem sofrer ressecamento devido ao açoite dos ventos”. Arruda da
Câmara toma o clima não apenas em relação à latitude, mas à superfície do terreno.
Classificar o clima significa para Arruda classificar a topografia. Note-se que ele não
distingue as altitudes, considerando equivalentes a serra de altitude das serras à
beira-mar.

"Neste país não se distinguem, como na Europa, as quatro Estações


constantes: apenas se marcam duas, verão e inverno [...] mas, além disto, eu
distingo dois climas bem diferentes, por causa da construção física da
superfície do terreno. Onde a superfície do terreno é cheia de múltiplas
serras, quer seja a beira mar ou não [é o agreste]. [...] onde os campos são
mais espaçosos, as chuvas não são tantas, a tempérie do ar é seca e quente,
chamam mimoso" (Câmara, 1982, p. 127-8).

Não é apenas do clima, no entanto, que as plantas dependem. A associação com


o clima já é inclusive um conhecimento divulgado desde a Antiguidade. Embora não haja
desde então exatamente uma biogeografia, já há uma noção clara de que o clima é
determinante para o desenvolvimento de um vegetal. O que Arruda da Câmara investiga
com as ferramentas teóricas que o seu próprio tempo começa a forjar são as diferenças
de propriedades entre os terrenos que geram plantas diferentes. Assim, soma-se ao

150
J. Larson, 1986, p. 461-8.
151
Arruda da Câmara não inverte o sentido para o hemisfério Sul, ao dizer que “Enquanto a mim, até posso
afirmar que o de Maranhão já degenera muito a respeito do de Paranambuc” (Câmara, 1982, p. 124).
120

clima, o terreno, como fator que determina a distribuição dos vegetais. A explicação de
Arruda da Câmara também acrescenta um critério a mais ao binômio clima/dispersão
utilizado por Lineu, semelhantemente a P. S. Pallas: a terra apropriada:

"... porque vemos que tal terra nutre e cria excelentemente uma planta, e
que mata e enfraquece outra: o velame [...] não podem vegetar bem na terra
de vargem, próprias para cana-de-açúcar [...] Há plantas habitadoras de
praias, ou marítimas [...] outras são próprias de água doce [...] outras, de
terras areentas [...] de terras argilosas [...] de terras calcáreas [...] outras,
finalmente, das terras marnosas" (Câmara, 1982, p. 124).

A terra é investigada pelo papel que desempenha no crescimento do vegetal que


é, para Arruda, o de "alicerce" e de "despenseira", sendo umas "mais liberais que outras,
na distribuição do mantimento ou nutrimento dos vegetais" (Câmara, 1982, p. 125). A
terra é, contudo, "a mesma". Não é pela sua natureza que apresenta-se diferenciada,
mas por essa sua propriedade de ser mais ou menos liberal. O resultado é definitivo:

"Por este modo tão simples obriga a Natureza os vegetais a habitarem em


diversos lugares, sem poderem mudar as suas habitações próprias e
consignadas, debaixo de pena de morte em si ou na sua descendência"
(Câmara, 1982, p. 125).

O conhecimento sobre a terra apropriada não serve apenas para auxiliar na


decisão sobre transplantações. Ele é eminentemente prático, essencial para a escolha do
local apropriado às culturas. Desta escolha dependerá o sucesso ou insucessso da
agricultura, o alcance ou não do "lucro avultado". Com essa preocupação, já se vê
esboçarem os perfis de terrenos: vargem, catinga, areísco. Vejamos como Arruda os
identifica:

"Chamam vargem às planícies que bordam os rios e ribeiros; logra também


o nome de vargem uma planície sem lombo algum, ainda que não seja
retalhada de rio [...] Catinga, em todo rigor do termo, entende-se por um
terreno cheio ou coberto de uma espécie de cássia, não descrita ainda por
Lineo [...] também se chama catinga um terreno coberto de outro qualquer
arbusto baixo [...] Areísco [...] chamam aquele terreno quase inteiramente
arenoso, ou seja coberto de mato ou calvo" (Câmara, 1982, p.126).

Assim, nota-se que a classificação de terrenos é pouco consistente, na medida em


que se baseia em critérios distintos: presença ou ausência de rios para a vargem;
presença de um determinado arbusto para a catinga, preponderância de areia, para o
121

areísco.
Um aspecto correlato à qualidade dos terrenos está na necessidade de
demonstrar-se a viabilidade das culturas, ou seja, de comprovar a fertilidade dos terrenos
brasileiros, tarefa à qual Arruda da Câmara não se abstém152. Como já foi mencionado
anteriormente, essa demonstração tinha que ser feita com bases científicas, pois parece
haver, ainda, no tempo de Arruda da Câmara, uma descrença na fertilidade dos terrenos
tropicais. Esta noção opõe-se à exaltação da grande variedade e abundância da
vegetação dos trópicos, fonte de encantamento europeu desde os primeiros que aqui
chegaram. Afinal, como uma natureza tão pródiga poderia sucumbir à força do braço
humano, nas culturas supervisionadas, atendidas? Natureza fértil por si só, mas pouco
afeita à cultura.
Talvez, a antiga noção aristotélica de que os trópicos seriam quentes demais para
abrigar a vida, esteja por trás desta concepção. A evidência empírica oferecida pela
diversidade biológica conhecida depois das viagens ultramarinas aos trópicos ainda não
teria sido suficientemente fortalecida por um corpo teórico que apagasse de vez a noção
aristotélica ou que a impedisse de reaparecer numa argumentação de ordem prática: a de
que as terras tropicais não seriam próprias à Agricultura. Naturalmente, essa idéia foi
alimentada pela dificuldade de adaptação das culturas tradicionais européias no novo
continente. Daí a razão de encontrarmos em Arruda um novo elemento para analisar a
questão. No Discurso, ele indica a noção de que a falta de produtividade depende da
extensão dos terrenos.

"Desde o Rio da Prata até o de Orenoque, de que hoje nos achamos de


posse, não se encontrará com facilidade um palmo de terra que não possa
convir à cultura de algum vegetal [...]Esta proposição, cuja evidência nem
todos alcançam, e que a alguns parecerá talvez paradoxa, principalmente se
se considera o grande espaço de lugares sáfios, que costuma haver em
terrenos de longa extensão, é contudo mui provável e verdadeira, como passo
a mostrar" (Câmara, 1982, p. 201).

Trata-se de uma noção que merece uma investigação mais detalhada em outra
oportunidade153. Pode-se notar que o nosso autor parece acreditar que a explicação virá

152
Conforme L. F. de Almeida, 1975, p. 360.
153
Por ora, é possível indicar que se trata de uma questão científica ainda não resolvida, ainda em aberto e
não de uma influência ideológica paradoxal como quer indicar o Prof. W. Dean com as palavras: “Até o
patriota Manuel Arruda da Câmara se mostra influenciado pela tese lamentável da inferioridade da natureza
colonial, quando presumia que nem a mandioca nem o amendoim podiam ser nativos do Brasil. Entre os
visitantes europeus, contudo, havia alguns cuja curiosidade e simpatia sobrepujavam o preconceito” (Dean,
1996, p. 146).
122

através do estudo sobre os modos de nutrição dos vegetais. Munido dos novos
conhecimentos da química, Arruda soma ao ar e à água, a luz, como terceiro alimento
dos vegetais. Cita Becker para sustentar a "necessidade absoluta" da luz, já aceita,
embora não demonstrada, para a "vitalidade" tanto dos vegetais quanto dos animais: a
luz entra na estrutura dos entes organizados, como parte essencial deles". Tomadas
essas "partes nutrientes" como substâncias, a quantidade em que se encontra disponível
determina o desenvolvimento: quanto mais, melhor. Esta disponibilidade varia para a luz
e para a água, em maior quantidade nas vizinhanças do Equador. Está, pois,
argumentando em favor da fertilidade maior das terras brasileiras154.
Quanto ao ar, a afirmação de que "sempre igual em todos os pontos da superfície
da terra, e em todas as alturas da atmosfera as proporções dos seus componentes se
acham sempre no mesmo estado" (Câmara, 1982, p. 201) explica a razão pela qual o
autor não distingue entre as altitudes. Daí aquela sua classificação tão artificial dos
terrenos.
Além das condições ligadas ao clima, Arruda explora a diversidade das "terras",
cada tipo capaz de "nutrir algum vegetal". Basta que o agricultor "saiba acomodar aos
diversos tipos de terreno" o vegetal que lhe é adequado. Assim, qualquer terreno, "por
mais sáfio que pareça", servirá ao cultivo, conforme o Discurso:

"É, pois, manifesto que sendo o continente do Brasil [...] tão extenso e tão
variado em climas e terras, é suscetível, não só de nele se cultivarem as
plantas da Europa, África e Ásia; mas de aí se naturalizarem as de umas em
outras províncias" (Câmara, 1982, p. 202).

As "terras primitivas" são classificadas em cinco tipos distintos: argila, sílice,


magnésia, barite e a cal e que se distinguem das terras metálicas. Sendo vista como
depósito da água disponível aos vegetais, o critério utilizado para a classificação foi o das
diferentes capacidades de retenção da água. Na terra em que predomina a argila, há

154
“Ao lado da ‘Memória sobre o algodoeiro”, Câmara apresenta o capítulo: ‘da terra própria ou do mais
conveniente para a cultura dos algodoeiros’. Ali conclui que nem toda terra é boa para qualquer planta. A
explicação disso, segundo ele, só pode ser dada por um químico, que estuda as análises e as sínteses, pois
‘é certo que as únicas substâncias que intervém na nutrição da planta são a água e o ar’. Assim, propõe uma
explicação sobre a função da água e do ar como nutrientes dos vegetais, presentes em ‘quantas substâncias
produza o reino vegetal, partes corantes, féculas, aminas, carbono, açúcar, ácidos vegetais, sais neutros; e eu
penso que até os mesmos metais e o enxofre, que se encontram nas plantas, não devem ser senão
compostos de alguns desses princípios (que compõem a água e o ar); pelo que acho possível, não apenas a
transmutação mas também o fabrico de metais’. Câmara parece concordar com os conselhos de Vandelli em
relação à necessidade de analisar as terras; neste respeito, chama a atenção seus esforços para elucidar em
1797 a ‘economia vegetal’. Este intento, indica sua aceitação da nova química, apesar de sua crença na
transmutação dos metais” (Ferraz, 1995b, p. 188-9).
123

maior retenção de água do que na que predomina a areia, variando-se as terras


conforme "as proporções destas misturas". A quantidade de água necessária varia de
vegetal para vegetal, seja porque deve ser um nutriente em maior ou menor quantidade,
seja porque os vegetais a perdem através da maior ou menor transpiração.
A preocupação central de Arruda da Câmara na caracterização do clima e da terra
apropriada orienta-se para as questões práticas mais do que para algum anseio teórico
de síntese. Contemporâneo de Humboldt, não estará, como este, preocupado em
descrever tipos de vegetação ou em demarcar comunidades de plantas. O seu interesse
é o de servir-se da observação geográfica para delimitar o mais detalhadamente possível
o local apropriado para uma dada cultura.
124

5.7 Conservação

J. A. G. Mello afirma que Arruda da Câmara é o "pioneiro entre nós" a perseguir o


"objetivo de preservação de espécies ameaçadas de destruição" (Mello, 1982, p. 41), na
medida em que propunha o cultivo nos Jardins Botânicos de vegetais raros ou, conforme
as palavras do próprio Arruda, daqueles vegetais "cuja destruição será inevitável apesar
de todas as proibições, por causa da extensão do país e da pouca população" (Câmara,
1982, p. 197).
Essa não é única menção de Arruda apontando para a necessidade de medidas
visando a conservação. Na dissertação sobre A almecêga e a carnaúba tal anseio
encontra-se explicito:

"... Por todos estes usos, e principalmente pelo do calafeto das embarcações,
bem se vê quanto é preciosa a conservação e ainda o aumento da cultura das
plantas que produzem a resina: elas na verdade se acham em abundância
nas matas [...] e ainda que a sua madeira tenha pouca ou nenhuma serventia
[...] e por essa causa haja razão de se supor pouca diminuição e dano nas
árvores, contudo não acontece assim pela ignorância dos povos, que, sem
atenderem à preciosidade da sua resina, as derribam sem piedade nos matos
e nos muitos roçados que fazem nas matas virgens [...] Daqui se vê a
necessidade de proibir-se as derribadas de matas virgens, nas que são
abundosas de almêcegas, como também a de vedar-se o soltarem fogos, o
que se não poderá conseguir sem fulminar alguma cominação de penas
contra os agressores; além disto, é visível quanto será útil a cultura destas
plantas nos lugares mais próprios" (Câmara, 1982, p. 230).
"... Razão tem o Ministério de empregar o seu cuidado na conservação dos
imensos carnaubais, porque estas árvores são úteis por muitos lados"
(Câmara, 1982, p. 231).

Vê-se que Arruda já indica a necessidade de se criarem meios para garantir o


cumprimento às medidas de conservação:

"Os rústicos, ou por não ponderarem que cortando estas árvores podem vir
a faltar, ou por se fiarem na grande quantidade delas, as derribam sem conta;
é, portanto, necessário proibir-se as derrubadas, principalmente para fazerem
currais e cercados [...] Para tirar as folhas e os frutos não é necessário cortar
as árvores, como eles praticam, basta arrimar uma escada ao tronco para o
fazerem com muita facilidade, sem dano da planta" (Câmara, 1982, p. 232)155.

Pode-se mesmo apontar uma franca intenção de Arruda com o propósito de

155
Usadas para alimentar o gado, para forros de casas, que duram de 15 a 20 anos e para se extrair a cera
da superfície das folhas novas.
125

salvaguardar essas plantas. No entanto, note-se que a preocupação do autor não


ultrapassa os limites estritos do âmbito econômico. Em que medida é lícito atribuir-se a
isso uma fundamentação científica? Talvez o trecho abaixo expresse um pouco uma
análise mais científica:

"... este vegetal é tão vagaroso em crescer que apenas em 50 anos adquire a
altura de 10 ou 12 pés, sem ainda frutificar; e esta é uma razão que deve
persuadir mais a proibição dos cortes sem necessidade, pois em poucos
minutos se malogra o trabalho que a natureza teve em muitos séculos e se
priva da utilidade que pode dar para o futuro uma árvore destas" (Câmara,
1982, p. 232).

Há, sim, uma preocupação relativamente à possibilidade de extinção, que não é,


em si mesma, uma idéia negativa; ao contrário, fazia parte das práticas agrícolas:

“O estudo da Zoologia naõ consiste em hum simplex conhecimento dos


nomes de cada animal; mas he necessario saber quanto for possivel a sua
anatomia, seu modo de viver, e multiplicar, os seus alimentos, as utilidades,
que delles se pódem tirar; e saber aumentar, e curar, e sustentar os que saõ
necessarios na economia; procurar descubrir os usos daquelles que ainda
naõ conhecemos immediatamente, ou extinguillos se saõ nocivos, ou
defender-se delles” (Vandelli, 1788, p. III).

Não há uma correlação da espécie ameaçada com as demais de seu ambiente,


nem uma suspeita das conseqüências do seu desaparecimento para o ambiente em que
vive. O que se teme é a eliminação de um recurso natural cujo uso é rentável ou útil. As
medidas adotadas frente ao problema da não extração de um recurso natural não são
uma novidade do século XVIII. Há medidas desde o ato de 1534, em que a Coroa decreta
que todas as árvores de pau-brasil eram de propriedade real (Dean, 1996, p. 68) ou o de
1605 em que cria a função de Guardas Florestais e institui a penalidade de morte para
quem praticasse a extração ilegal do pau-brasil (Dean, 1996, p. 64) ou ainda as ordens
reais que a partir de 1698 começavam a proibir sesmarias em áreas de reserva de
madeira de lei, usada para o fabrico de embarcações (Dean, 1996, p. 151). Mas em todos
esses casos trata-se de iniciativas para manter o monopólio comercial. Não há
mentalidade pró-conservação. Dean cita muitíssimos exemplos disso em sua
monumental história da Mata Atlântica. Nem a Coroa, nem os colonos, nem os jesuítas,
nem mesmo os índios tupis escapam de uma mesma visão exploradora da natureza:
queimam-na à mais leve suspeita de malária, exploram suas espécies até a extinção
126

(arara), transformam-na na morada do diabo. Diante da falta de conservação da vida


humana, como valorizar a natureza (Dean, 1996, p. 69; 65; 76; 75)?

A situação não é distinta em Alexandre Rodrigues Ferreira. Na Memória sobre o


peixe boi, de 1786 expressa preocupações em relação ao policiamento de sua pesca.
Vejamos como isto aparece:

“... do papel que me dirigiu o atual administrador ... em resposta às minhas


perguntas. É do seguinte teor: ‘Encarregando-me o Doutor Alexandre
Rodrigues Ferreira de lhe declarar como administrador do Real Pesqueiro dos
lagos de Vila Franca ... Certifico ... que nos dois anos da minha administração
rendeu 3.873 arrobas de peixe e 8.683 potes de manteiga, havendo para isto
a mortandade de 8.500 peixes-bois pouco mais ou menos. Advertindo que
qualquer dos referidos gêneros são igualmente de avultadas quebras, as
quais, com bastante prejuízo tem experimentado o presente contratador
daquele Pesqueiro.
... há de experimentar sempre o presente Contratador ou outro qualquer que
haja de o arrematar, um vigoroso prejuízo, não só por se lhe não darem índios
pescadores ... ajuntando a isto a pouca prontidão com que os diretores
cumprem as Portarias do Ilmo. Exmo. Sr. General do Estado ... como também
pelo grande prejuízo que causam as miudas pescarias mandadas fazer por
pessoas particulares as quais juntas avultam a muito maior número de peixe e
manteigas que o próprio Pesqueiro Real ... Assim falando, de baixo de toda a
verdade ... podia o estabelecimento do Pesqueiro de que se trata ser muito
mais interessante às reais rendas de Sua Majestade ... concedendo-se maior
número de gente ao Contratador ... e proibidas as pescarias de pessoas
particulares ... passo a noticiar das pescarias que se pode fazer na Contra
Costa da Ilha Grande de Johannes, hoje Marajó, até os Lagos do Rio
Araguari.
... que se pode estabelecer um novo pesqueiro, em que interessam
também às Reais rendas de Sua Majestade.
Nos lagos do Rio Araguari se podem fazer as pescarias de peixe-boi e
fatura de manteigas, pois há os ditos com abundância ...
... Até aqui a informação do Administrador” (Ferreira, 1972, p. 63-4).

Levantando a possibilidade de uso da pele do peixe-boi, Rodrigues Ferreira


encerra a memória. Se antes do relato do Administrador, o naturalista levantou as razões
técnicas para o controle da pesca, como se mostra em suas palavras transcritas abaixo,
mesmo que enriquecidas com alguns dados da biologia do animal, não as completou com
qualquer advertência quanto à ameaça de extinção ou danos que sua predação poderia
trazer ao ambiente.

“Sem dúvida de tantas utilidades quantas são as que deste mamífero se


127

tiram, nenhum policiamento é feito de sua pesca. Um peixe-boi para chegar


ao seu devido crescimento deve gastar anos e todos os que aparecem são
arpoados, mesmo as fêmeas prenhas. As fêmeas não parem mais de um até
dois filhos por ano. Os filhotes tirados do ventre das mães que são arpoadas,
para nada servem. Não se conhece o tempo de criação e o arpoador fica feliz
quando encontra um filhote para mais fácil arpoar a mãe. Arpoam-nos em
todos os tamanhos, sem distinção de idade. Por isto não deve causar espanto
a sua raridade em alguns lagos onde já não os encontramos há alguns anos.
Conservava antes Sua Majestade dois pesqueiros reais, um nos lagos de Vila
Franca e outro nos de Faro...” (Ferreira, 1972, p. 62)156.

A preocupação do naturalista nos guardou dados que atestam a sua rareação no


século XVIII e os danos para o Real Erário. Como nos outros casos de alerta
conservacionista no período, é a economia ameaçada pela escassez de um recurso
natural, e não o ambiente em si mesmo, o motivo das preocupações.
Na Memória sobre as Tartarugas (6 páginas. s/d.) descreve 14 espécies do estado
do Grão-Pará, citando-as por seus nomes indígenas. A Jurararetê é descrita mais
longamente pela origem do nome; diferença entre macho e fêmea, distribuição e
abundância na região; época e modos de coleta; usos da manteiga preparada dos ovos
ou da banha e da carne; preparo na dieta; tamanho, peso e preço; pontos de pesca por
conta da Fazenda Real:

“Uma tartaruga dá de comer a 10 pessoas, assim está arbitrada uma para


cada 10 soldados e às vezes sobra para quem saiba aproveitá-la... Existem
três pesqueiros certos por conta da Fazenda Real, para sustento da tropa do
rio Negro e para a mesa da demarcação: o primeiro e mais antigo, o que está
situado um dia de viagem, dentro da foz do rio dos Solimões, chamado do
Caldeirão ... que é do sustento da Guarnição ... o que está no rio Amazonas,
chamado de Poraquecoara e o do Rio Branco são para sustento dos
Empregados da Real Demarcação, que existe na Vila de Barcelos” (Ferreira,
1972, p. 28).

As 13 espécies restantes são descritas com brevidade, através de algum caráter

156
Nas Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos, de 1790, ao inventariar os
mamíferos, depois de uma comparação ao sistema de Lineu (p. 128-130), classificando-os nas ordens dos
quadrúpedes (p. 131-194); dos alados (p. 194-195) e dos pinados (p. 195-202), Alexandre Rodrigues Ferreira
retoma mais simplificadamente (sem dados numéricos) a preocupação econômica em relação à diminuição de
exemplares do peixe-boi repetindo este trecho quase literalmente: “Apesar de tantas utilidades que se tiram
deste animal, sua pesca até agora não tem tido nenhum policiamento. Um peixe-boi para chegar ao seu
devido crescimento deve gastar anos, mas sempre se arpoam quantos apareçam. Não se distingue o tempo
em que as fêmeas estão prenhes, porque, prenhes ou não, elas são arpoadas. Elas não parem mais de um
filho por ano, e o filho tirado do ventre da mãe assim morta de nada serve. Não se distingue o tempo de
criação, pois é até felicidade para o arpoador surpreender o filho para arpoar a mãe. Não se distinguem
também as idades, porque pequenos ou grandes todos são arpoados. Por isso nehuma admiração deve
causar a sua raridade em alguns lagos, onde, não há muitos anos, eram abundantes.” (Alexandre Rodrigues
128

distintivo que permita a identificação, acrescido de dados relativos aos modos de coleta e
usos de que delas se fazem 157 . Importa salientar que, nesta memória, Alexandre
Rodrigues Ferreira não menciona qualquer inquietação em relação à diminuição dos
estoques naturais e conseqüente necessidade de proteção à coleta predatória que se
pode perceber do relato.
Como na memória anterior, a Memória sobre a Jurararetê - As tartarugas que
foram preparadas e remetidas nos Caixões nº 1 até 7 da primeira remessa (6 páginas, de
3 de fevereiro de 1786158), repete boa parte das informações sobre a origem do nome,
distribuição e abundância relativa; uso da carne, dos ovos e da manteiga; preparo da
manteiga; tamanho, época, locais e modos de coleta:

“Dizem os práticos que onze ninhadas dão um pote de manteiga. Uma canoa
provida de gente hábil, em ano que não corra mal, faz cerca de mil potes e
nas grandes safras, dobram essa quantia” (Ferreira, 1972, p. 39).

Entretanto, aqui o autor já se mostra preocupado com a diminuição dos estoques


naturais. Além dos dados acima citados, apresenta tabelas discriminando a quantidade
de tartarugas “que tem entrado e morrido no curral das tartarugas da Fazenda Real de
Barcelos, pertencente à Demarcação de Limites, entre 1780 e 1785”, bem como em
“outro curral pertencente à Capitania” (Ferreira, 1972, p. 41, 42), de cujos dados conclui:

Ferreira, 1972, p. 200).


157
Das 14 tartarugas descritas, José Candido de Melo Carvalho identifica 12 espécies e mantém-se incerto
sobre uma (Ferreira, 1972, p. 31):

jurará-açu ou jurararetê Podocnemis expansa (Schweigger, 1812)


jurará-acanguçu Podocnemis dumeriliana (Schweigger, 1812)
tracajá Podocnemis unifilis (Troschel, 1848)
matamatá Chelus fimbriatus (Schneider, 1783)
juraraitiú exemplar jovem Podocnemis ou
o muçuam: Kinosternon Scorpioides (Linnaeus, 1766)
jurarê-uirapequê Podocnemis cayennesis (Schweigger, 1812)
jabutitinga Testudo denticulata (Linnaeus, 1766)
jabutipiranga Testudo carbonaria (Spix, 1824)
jabuticarumbé exemplar macho de Testudo denticulata
jabuti-aperêma Geomyda punctularia (Daudin, 1802)
jabuti-juruparigê Platemys platycephala (Schneider, 1792)
jabuti-putiápêna Kinosternon scorpioides (Linnaeus, 1766)
uruaná ou suruaná Chelonia mydas (Linnaeus, 1758)
tartaruga de casco Eretmochelis imbricata (Linnaeus, 1766)

Obs.: Em nenhuma das listas aqui apresentadas houve a preocupação de atualizar a identificação e o nome
científico das espécies pois isto escaparia aos objetivos presentes. Importa tão somente oferecer uma
amostra das possibilidades de identificação das espécies a partir dos dados fornecidos por Alexandre
Rodrigues Ferreira.
129

“ em ambos [os currais] se aproveitaram 36.007 e que em ambos se


desperdiçarm 17.461. Nesse número não figuram tartarugas entradas e
mortas em outros currais de particulares, que são bastante numerosos pelo
fato de elas serem o suprimento diário de carne de vaca de suas mesas.
Tampouco vão incluídas as que morrem nas canoas durante a viagem dos
pesqueiros até esta Vila, que são em maior ou menor número, segundo a
estação quente ou fresca, segundo a maior ou menor carga das canoas ou se
já têm ou não desovado” (Ferreira, 1972, p. 42).

Menciona o Ato de 19 setembro de 1769, que proibiu a “viração” no rio Branco,


prática que leva ao “desperdício” milhares de tartarugas e que consiste em serem viradas
de peito para cima quando, após a postura, regressam à água, garantindo-se assim a sua
imobilidade até que se possa cuidar de cada uma delas. No entanto, desde que as
tartarugas passaram a representar o sustento “não só nessa expedição [da demarcação]
mas também em outras expedições, não tem mais validade a referida proibição” (Ferreira,
1972, p. 41).

“Este anfíbio, escreve Rodrigues Ferreira, tão útil ao Estado ainda não
mereceu cuidados ou providências que são requeridas para evitar os abusos
que se praticam contra ele. Uma tartaruga para chegar ao seu devido
crescimento gasta alguns anos. Anualmente são inúmeras as que se
desperdiçam ao arbítrio absoluto dos índios; todas as ninhadas são
descobertas, pisadas a eito e a maior parte das tartaruguinhas são comidas
sem necessidade, o que em conjunto vem influir para sua raridade no
decorrer do tempo” (Ferreira, 1972, p. 41).

Está aí a preocupação conservacionista do século XVIII, tal como se encontra em


outros naturalistas alertados pela diminuição do número de exemplares animais e
vegetais.
Também pode ser apontada em Frei Velloso a preocupação que relacionava o
comércio dos recursos naturais à necessidade de um controle sobre seu uso. Ao ressaltar
as vantagens da exportação do corante azul, o índigo, “extraído de numerosas espécies
nativas de Indigofera, comparando-o a culturas como a do açúcar, declara ser “menos
destrutivo para a floresta” (Velloso, apud Dean, 1996, p. 150).
Entre 1795 e 1799, Rodrigo de Souza Coutinho “emitiu uma série de ordens
destinadas a preservar a madeira de valor naval”, pois o seu comércio prosperava
impune à supervisão dos “guardas-mores” (Dean, 1996, p. 151).

158
Publicado nos Arquivos do Museu Nacional, vol. XII: 181-86, 1903.
130

6 CONCLUSÕES

Os dois períodos estudados nesta pesquisa estão inseridos, quanto ao conteúdo e


ao contexto, na História Natural praticada entre os séculos XVI e final do século XVIII na
Europa Ocidental. Delimitou-se, nesse amplo espaço de tempo, a passagem de uma
História Natural marcada pela implantação de Jardins Botânicos e seu vínculo estreito,
primeiro, com a medicina, depois, com a agricultura, para uma História Natural mais
independente ou autônoma, calçada no fortalecimento das Sociedades e Academias de
eruditos, reivindicativa de fundos estatais para suas atividades, amparada pelo
desenvolvimento da Filosofia Natural e Experimental e pelos ideais Iluministas. Ao longo
dos séculos XVI e XVII, os jardins foram depositários de objetos naturais “raros” e
exóticos, cuja exploração obedecia a uma valoração que os tornava em “bens” coloniais.
Desse utilitarismo, o século XVIII pôde extrair seus frutos: foi a própria História Natural
que amadureceu num tipo mais autônomo de pesquisa, cujo objeto de investigação
passou a apresentar contornos próprios. O objeto natural passou a ser estudado “em si
mesmo”, descomprometido de seus vínculos utilitários. Os naturalistas passaram a
procurar e disputar entre si a escolha de critérios naturais ou artificiais (práticos) que
permitissem ordenar a natureza. Essa fase encerrou-se quando, com a chegada do
século XIX, uma nova mudança no modo de observar e investigar a natureza abriu
caminho para a institucionalização crescente da História Natural e a geração do que,
desde então, considerou-se um tipo novo de conhecimento sobre a natureza a que se
passou a denominar de Biologia.
A passagem entre esses diferentes momentos não foi abrupta, nem uniforme, nem
definitiva. Na verdade, em cada um desses grandes períodos é possível discernir casos
particulares que parecem impor um rompimento com o quadro geral, devido à dificuldade
em delimitá-lo inteira e perfeitamente por aquelas características mais amplas. O desafio
que se impõe ao estudo em pequeno, quando se persegue um determinado tema ou um
autor em particular, se faz notar exatamente nessa relação. No caso presente, em que se
buscava conhecer a obra de um dado autor, isto é, em que se buscava ressaltar os seus
aspectos singulares, impunha-se não retirá-lo de seu cenário, não moldá-lo de uma forma
tão particular que imposibilitasse, depois da análise, o seu retorno para junto de seus
pares. O desafio em tratar a obra de um autor do passado reside exatamente em não
distanciá-lo do restante da humanidade e do seu tempo histórico em nome de uma
131

pressuposta genialidade. Apenas desse modo poderiam ser reveladas as questões reais
a que submetia suas investigações e os meios disponíveis para resolvê-las.
A necessidade de colocar o autor em seu próprio tempo levou a que o estudo da
obra impressa de Manuel Arruda da Câmara fosse precedido de uma visão mais ampla
da História Natural moderna. Era necessário reconstituir-se o cenário que antecedeu e
engendrou o fazer científico dessa personagem. Mas, como um viajante que nem sempre
consegue frear o desejo de avançar um pouco mais rumo ao desconhecido, a fim de pôr
um fim ao roteiro inicialmente planejado, esta investigação do passado cedeu, por vezes,
à tentação de retroceder ainda um pouco mais, a fim de abarcar as origens. Perdeu-se aí
em profundidade. Mas, se ainda muito restou por ser analisado na obra de Manuel Arruda
da Câmara, alargou-se mais, acredita-se, a trilha de acesso para outras investidas até
ela. Afinal, dessa expansão do olhar dirigido à sua obra é que emergiu o seu papel
autêntico, assim como a de outros contemporâneos seus, alguns deles aqui
mencionados: constituíram-se como produtos genuínos de seu tempo, atrelados e
decorrentes de suas próprias condições históricas.
Manuel Arruda da Câmara, bem como a maior parte de seus colegas naturalistas,
não gerou escola, não influenciou outros pesquisadores, não teve, como pretendia, o
resultado de seus estudos, mesmo que impressos, disponível à consulta e ao uso por
agricultores ou botânicos. Ainda hoje o seu nome é conhecido apenas nos círculos
restritos dos historiadores do Brasil colonial, e muito provavelmente apenas entre aqueles
mais preocupados com a história de nossa ciência; alguns poucos cientistas, naturalistas,
biólogos, ecólogos, interessados no passado de sua disciplina e particularmente os
taxonomistas, por obrigação de ofício, também podem já ter-se dedicado a conhecer
autores como Arruda da Câmara. Assim sendo, pouco teremos a avaliar de sua influência
no desenvolvimento das ciências brasileiras.
Mas conhecê-lo significa conhecer a investigação da natureza em finais do século
XVIII, pois Arruda da Câmara é um bom indicativo do estágio em que se encontrava a
História Natural. Também é uma boa ilustração da relação entre a ciência produzida em
Portugal e outros pontos da Europa. Ilustra, especialmente, os interesses exploratórios
regendo toda a disposição da Coroa portuguesa pelo desenvolvimento da História Natural
em seus domínios. Serve como baliza entre intenções e resultados alcançados pelo
grande projeto iluminista português de abertura às ciências modernas 159 . À época, o

159
Já foi dito que os “... naturalistas ‘brasileiros’ realizaram viagens, fizeram descrições e puderam ver alguns
de seus trabalhos publicados. Mas a par dessas atividades foram, muitas vezes, secretários dos governos nas
132

projeto começou a produzir frutos: em Coimbra, renovou-se a Universidade, criaram-se


os jardins e gabinetes necessários às práticas da História Natural, enriqueceram-se os
museus de coleções naturais, formaram-se naturalistas, planejaram-se e executaram-se
expedições naturalistas, publicaram-se memórias sobre a fauna e flora do domínio
português conforme os conhecimentos mais atualizados da botânica e da química do
período.
No entanto, os objetivos declarados nos documentos reais não coincidiram com os
objetivos verdadeiros das empresas conquistadoras — e talvez daí se possa encontrar a
explicação da falência do projeto. Falência porque Manuel Arruda da Câmara, como
outros seus contemporâneos, nem mesmo sobreviveu como naturalista profissional. Foi
como fazendeiro, criador de gado e agricultor, que pôde subsidiar seus estudos. Nesse
sentido, o projeto português não vingou. Não institucionalizou a profissão de naturalista
nem a ciência da Botânica na Colônia sul-americana. Como já se disse que a “conquista
da terra brasileira não se seguiu ao entardecer de 22 de abril”, do mesmo modo se pode
afirmar que o desenvolvimento da História Natural em nosso país também não se seguiu
ao projeto iluminista iniciado pelo Marquês de Pombal e defendido mais ferrenhamente
por D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Vimos algumas das causas; entre um e outro
transitou-se do ideal mercantilista ao fisiocrata; entre governantes e naturalistas,
transitou-se, do mais puro pragmatismo, ao desejo de fazer desenvolver uma ciência
menos comprometida com a esfera político-econômica; transitou-se, da intenção
exploratória que pouco se interessava pela divulgação de conhecimentos, ao trabalho de
investigação que só encontra seu propósito no diálogo com os pares e interessados em
geral.
Não seria pois exagero comparar o resultado alcançado por essas iniciativas aos
resultados das primeiras explorações portuguesas no início do século XVI, considerada a
vontade, ainda que velada, da Coroa, em manter segredo de suas descobertas,
favorecida por um interesse que não ultrapassava um “público relativamente restrito de
sábios, de pessoas cultas, de grandes comerciantes” (Febvre, 1991, p. 394).
Quanto aos temas abordados em Manuel Arruda da Câmara e a sua relação com
as origens da ciência ecológica ou da preocupação ambiental resta concluirmos, em
consonância com vários autores aqui consultados, que tal como outros seus

colônias ou exerceram atividades de cunho mais administrativo que propriamente científico (...) Parece-nos
que toda paixão dos ‘brasileiros’ por conhecer sua terra esvaneceu-se ou perdeu-se — como a produção de
muitos dos naturalistas seus contemporâneos — sucumbindo no esforço de suplantar os equívocos e debelar
as dificuldades que acompanhavam as tentativas de realização de trabalhos fundados nas ciências modernas”
133

contemporâneos, Arruda da Câmara não foi imune nem alheio aos problemas ambientais
que já se constituíam em seu tempo. Isto não implica, no entanto, em afirmar que ele,
assim como outros, constituiu-se num “precursor” da ciência ecológica, pois como aponta
McIntosh, colocar a origem da ecologia noutro tempo implica em demonstrar que aquele
é contínuo a este. Também deve-se levar em conta que nenhum investigador do XVIII se
via como um tipo particular de naturalista para quem se exigisse a utilização de um termo
próprio como acontecerá no momento em que a palavra “ecologia” for cunhada, em 1867,
tornando-se de uso comum algum tempo depois. “Não foi antes do século XX que a
ecologia tornou-se estabelecida como uma ciência no sentido de ter suas próprias
posições acadêmicas, jornais e sociedades profissionais” (Nicolson, 1988, p. 184).
Esta perspectiva é reforçada ainda por considerações que se podem atribuir à
metodologia de pesquisa em História da Ciência, conforme nos lembra Hankins. Um
primeiro aspecto seria o de que afirmar a existência de uma Ecologia no século XVIII
exige a pressuposição de que lá existiria um campo de investigação delimitado que lidava
com os mesmos fenômenos que a ecologia moderna. Isso não é verdade. Entre as
preocupações dos naturalistas do século XVIII eram contempladas apenas algumas das
questões posteriormente repassadas à Ecologia quando foram organizadas e agrupadas
de um modo novo. Um segundo aspecto seria o de que, embora se possam encontrar os
mesmos termos da Ecologia atual sendo usados pelos naturalistas do XVIII, deve-se
ressaltar a mudança de seus significados. “Conservar” não quer dizer o mesmo nos dois
períodos pois as implicações e motivações que levam à conservação são radicalmente
distintas. Desde que a Ecologia do século XX desenvolveu-se em torno do conceito de
ecossistema, termos como “conservação”, “preservação” e “extinção” conduzem
imediatamente às implicações e efeitos sobre os demais indivíduos da população e sobre
as demais espécies da comunidade, noção não encontrada nem em esboço no
naturalista Manuel Arruda da Câmara.

(Ferraz, 1195a, p. 172).


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apêndice 1. NOTAS ACERCA DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA


150

apêndice 1. NOTAS ACERCA DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA

A História da Ciência é “um espaço independente


para a crítica do conhecimento científico através da
interdisciplinariedade”.
(Ana Maria Alfonso-Goldfarb, O que é
História da Ciência, 1994)

1 O Aparecimento da História da Ciência

O campo de pesquisa da história das ciências ou da ciência, se se prefere uma


certa comodidade de expressão, apenas recentemente vem conhecendo sua
160
autonomia . Costuma-se atribuir à década de 1960 o estabelecimento da área no
mundo acadêmico. E não apenas da História da Ciência, mas de várias outras áreas
nucleares de pesquisas históricas. Foi ali que teve início o que logo transformou-se numa
grande proliferação de pesquisas sobre temas até então desconsiderados pelos
historiadores.
Isto não significa, contudo, que não existisse anteriormente uma atividade em
História da Ciência 161 . Significa apenas que ela vinha ocorrendo como uma ação
individual a que se dedicavam especialmente os próprios cientistas, e, no mais das
vezes, aqueles que já se encontravam em final de carreira. Implicava, portanto numa
atividade secundária do pesquisador, à qual não se não se atribuia um grande
reconhecimento.
Na década de 1960 o quadro muda vigorosamente. A História da Ciência deixa de

160
Já se gastou muito tempo e energia discutindo o uso do singular ou do plural tanto para a História da
Ciência quanto para a Ciência Ambiental. Tomando apenas um dos aspectos desse debate, e resumindo-o
grosseiramente, pode-se dizer que as duas posições oscilam entre uma concepção que toma a ciência como
uma atividade intelectual particular, cuja meta sempre seria a elaboração de métodos universais que a
tornariam distinta das outras formas de conhecimento obtidas pelas sociedades; a outra visão é a de que a
ciência não almejaria métodos universais, pois cada campo poderia ser explorado por diferentes abordagens
e o fato de um dado objeto oferecer-se à análise mais rigorosa ou mais “objetiva” que outro, não torna o
primeiro menos científico que o segundo. Na primeira posição, a ciência seria um empreendimento único e
tudo o que fosse pré-científico ou pseudo-científico deveria ser excluído de seu campo de análise; na
segunda, cada época e cada cultura teria critérios próprios definindo uma ciência entre muitas, e essas
diferentes formas de conhecimento sofreriam valorações cambiantes conforme o seu grau de operação sobre
a natureza. Embora comungue da segunda visão, de que apenas o uso do termo plural pode manter
respeitadas as diferenças entre os diversos saberes que as sociedades produzem nas diferentes épocas,
capitulo diante do uso mais cômodo, e, infelizmente, já disseminado, do singular.
161
A história da ciência é alma gêmea da ciência moderna: surgiu com ela. Segundo Goldfarb, antes da nova
configuração de ciência derivada do positivismo de Auguste Comte, na primeira metade do século XIX, a
história da ciência confundia-se com a própria ciência.
151

ser uma atividade de interesse exclusivo dos cientistas e passa a ser tomada como uma
atividade à qual dedica-se também o profissional das Humanidades, especialmente
historiadores, filósofos e sociológos. Nesse momento, ela também inicia um estágio
crescente de independência: deixa de ocupar aquele lugar periférico para tornar-se a
atividade central de um pesquisador. Os historiadores da ciência passaram a conquistar,
nas instituições interessadas, em seus cômodos, nas prateleiras de suas bibliotecas e
nas grades curriculares de seus cursos, um espaço próprio, um orçamento próprio, um
programa de ensino e de pesquisa próprios.
Em vários países, como os EUA, a Inglaterra, a Alemanha, a Bélgica ou a
Espanha, já são muitas as Universidades e outras instituições de pesquisa que contratam
historiadores da ciência. Existem hoje “dezenas de periódicos internacionais e centenas
de publicações, congressos, grupos e departamentos próprios em quase todo o mundo”
(Alfonso-Goldfarb, 1994, p. 88)162.
No Brasil, porém, o processo de institucionalização deste programa de pesquisa
vem acontecendo mais lentamente. A UNICAMP mantém desde 1977, o Centro de
Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), idealizado, conforme publicado na
contra-capa de seus Cadernos de História e Filosofia da Ciência, para “a organização de
seminários, encontros e conferências, a coordenação de trabalhos de pesquisa, a
promoção de publicações especializadas, a criação de condições para o funcionamento
de cursos de Pós-Graduação de natureza interdisciplinar e a manutenção de acervo
bibliográfico e arquivo de documentação que proporcionam susídios a pesquisadores e
estudantes”. Foi constituído no CLE, em 1989, o Curso de Especialização em História da
Ciência e Epistemologia, formando, no entanto, apenas 9 especialistas em sua primeira e
única turma. Além desses especialistas, a UNICAMP já titulou, isoladamente, mestres e
doutores em História da Ciência.
Outra iniciativa está ocorrendo na PUC de São Paulo, com a inauguração, neste
ano de 1977, em nível de Mestrado, do Programa de Estudos Pós-Graduados em História
da Ciência, fruto dos trabalhos desenvolvidos pelo Centro Simão Mathias de Estudos em
História da Ciência (CESIMA), criado em 1994. A Universidade Federal de Minas Gerais
acaba de lançar o primeiro concurso para contratação de um historiador da ciência no

162
Não cabe listar aqui as inúmeras sociedades científicas destinadas à História da Ciência pelo mundo, nem
as inúmeras publicações que tratam diretamente do tema ou são abertas a ele. No entanto, vale mencionar,
devido à sua importância e grande número de associados, a International Union of History and Philosophy of
Science, que já está realizando o seu vigésimo Congresso Internacional neste ano de 1997. Para a história da
Biologia em particular, também há muitas sociedades científicas e publicações internacionais. Pode-se citar a
International Society for the History, Philosophy, and Social Studies of Biology, criada em 1982 e o Journal of
152

país. Os cursos de graduação e pós-graduação que contemplam, isoladamente,


disciplinas cujo conteúdo está voltado à História da Ciência, contam com profissionais
interessados mas que não obtiveram formação específica em História da Ciência.
Existem também no Brasil algumas publicações especializadas em História da
Ciência. A Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC), vem mantendo a Revista
da Sociedade Brasileira de História da Ciência, voltada às publicações da área. O CLE da
UNICAMP também possui seus Cadernos de História e Filosofia da Ciência. A Casa de
Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, mantém, desde 1994, a Revista História, Ciências,
Saúde - Manguinhos voltada devo à história dos conhecimentos e dos saberes
biomédicos. O Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) do Rio de Janeiro, também
possui um acervo tado entre outras áreas, à História da Ciência. O MAST também
mantém a revista Perspicillum que publica pesquisas que enfoquem o conhecimento
científico a partir de diversos campos disciplinares. A Universidade Federal do Rio
Grande do Sul lançou em 1996 a revista Epistéme. Filosofia e História das Ciências em
Revista. Outras revistas científicas vêm inserindo trabalhos de História da Ciência em sua
linha editorial, mesmo que de forma mais gradativa, isolada e lenta do que gostaríamos
que fosse.
Longe de se pretender um levantamento amplo do que se faz em História da
Ciência hoje no Brasil, este breve relato tem por intenção apenas chamar a atenção para
o estágio ainda incipiente da área entre nós. Muito embora os congressos da SBHC
venham mostrando um número crescente de participantes em seus eventos bianuais,
ainda há muito o que se fazer pela área em nosso país. O Brasil ainda precisa de
instituições que formem profissionais especialmente habilitados para a pesquisa e ensino
de História da Ciência. Precisa de publicações em português atualizadas e de bom nível
que instrumentalizem uma quantidade crescente de profissionais interessados. As
instituições universitárias e as sociedades científicas precisam ainda ser seduzidas pelos
benefícios que a História da Ciência pode lhes fornecer. Para isso, é preciso que se
conheça melhor a própria história da História da Ciência.

the History of Biology.


153

2 As Diferentes Histórias da Ciência


Em função dessa história recente e, principalmente, em função do estranhamento
das pessoas frente a este tipo de trabalho, testemunhado nas diversas oportunidades em
que colocamo-nos à público, é sempre útil começarmos por demarcar algumas fronteiras
com tudo o que está próximo, ou comumente subsumido, mas que não é, isoladamente, a
História da Ciência a que nos dedicamos hoje. Cada uma das delimitações do campo de
pesquisa será tomada a partir de seus vínculos históricos, de modo a ilustrar-se um breve
percurso da história recente da História da Ciência. Espera-se evidenciar o que foi
característico de cada período e um pouco do modo como foram sendo constituídos os
modelos atuais.
O estágio juvenil, digamos assim, em que se encontra a disciplina, acarreta uma
grande variedade de propostas de métodos. Semelhantemente ao que ocorre na
pesquisa em história desde a década de 1960, são muitas as perspectivas disponíveis
aos historiadores da ciência. Não estamos prontos para definir um método próprio, nem
muito provavelmente seja esse um bom caminho para apontarmos os nossos esforços.
Afinal ainda estamos com muitas perguntas em aberto. Não sabemos, ao certo, se há
uma historiografia que seja mais adequada para uma dada disciplina da ciência do que
para outra, ou mais adequada para um dado período histórico do que para outro.
Perguntamo-nos também se uma dada disciplina poderia fornecer um modelo a partir do
qual definíssemos um método e se esse método lhe seria exclusivo ou, contrariamente,
apropriado, e em que medida, para tratar das questões de outra ou outras disciplinas
científicas163.
Ao que parece, temos que continuar nosso trabalho, congregando os diversos
instrumentos úteis, deixando-nos guiar por nosso objeto de pesquisa e pelos objetivos
que pretendemos alcançar. Mais do que determinar um método único, parece-nos hoje
ser necessário cercar o objeto de investigação por meio dos elementos que ele mesmo
possa nos fornecer.
Isto vai ao encontro de uma perspectiva segundo a qual o fazer da História da
Ciência não implica na definição de uma nova disciplina científica, mas apenas em
circunscrever a pesquisa histórica ao campo das práticas e teorias científicas. Desse
modo, ela se torna diferenciada apenas pela necessidade de mesclar conhecimentos e

163
Estou referindo-me diretamente ao tema abordado nos debates de 1996 e 1997 dos Seminários de
Historiografia que vêm sendo realizados no Centro Simão Mathias de Estudos de História da Ciência
154

métodos da história com conhecimentos e métodos da ciência historicizada.

2.1 A História da Ciência no tempo da fundação da revista Isis.


Fazer História da Ciência não é, atualmente, traçar uma "evolução de idéias"
enquanto uma sucessão progressiva e linear do conhecimento desde os seus primórdios.
É bastante comum, contudo, encontrarmos nos manuais de ensino citações a cientistas
eminentes e descobertas importantes que lhes são atribuídas. Tudo isso organizado
cronologicamente, de modo que a ciência aparece como uma atividade contínua e
"progressiva", à qual cada "gênio" científico acrescenta a sua contribuição própria. As
idéias aparecem como tendo percorrido um caminho de mão única, em que se elencam
os predecessores das hipóteses atuais e os predecessores dos predecessores. O passo
dado hoje é sempre conseqüência necessária dos passos firmados pelos cientistas
anteriores. A ciência está configurada aí como um empreendimento de ordem teleológica
para a construção do "edifício do saber", cuja base é dada pelo conhecimento já obsoleto
dos antigos e cujo topo vislumbra um futuro sempre melhor.
O que se percebe claramente nessa perspectiva é a sua derivação de uma certa
noção que se tem da própria ciência. Tomada como uma evolução progressiva e linear
das idéias, nela, cada descoberta aparece como um fato isolado, destituído de vínculos,
seja do ambiente cultural ou institucional, seja do campo conceitual ou do aparato
metodológico que se encontra à disposição da disciplina. O resultado disso é que grande
parte do valor e do grau de certeza de um conhecimento científico acaba sendo medido
pela posição que ele ocupa na escala do tempo: é verdadeiro e seguro todo
conhecimento alcançado pela ciência mais recente, incerto e superado tudo o que foi
construído no passado, especialmente antes de a ciência moderna ter desenvolvido o
seu método “rigoroso” de aquisição de conhecimentos. Essa visão sobre o modo como a
ciência é construída também implica em que o conhecimento adquirido pela ciência
moderna, através do uso correto do método científico, teria um grau de certeza que
resistiria ao tempo: seria um conhecimento definitivo, uma verdade absoluta.
Essa perspectiva, um tanto simploriamente descrita acima, deriva em grande parte
da noção de ciência como um “conhecimento positivo sistematizado”, conforme a
doutrina de Auguste Comte. Todo o fazer científico dos séculos XIX e XX foi fortemente

(CESIMA) da PUC/SP, que ocorrem desde 1994.


155

guiado por tal perspectiva. Num período em que a História da Ciência era feita
principalmente por cientistas, todo o fazer da História da Ciência foi impregnado da
mesma perspectiva. Isto pode ser acompanhado em um dos primeiros periódicos
dedicados diretamente à História da Ciência, a revista Isis, fundada em 1912 pelo
matemático belga George Sarton. O papel de Sarton para a emergência da área em
nosso século foi muito grande. Além da revista, ele “organizou encontros internacionais e
manteve uma vasta correspondência, o que lhe permitiu estabelecer uma rede
internacional de pessoas com interesses similares” (Debus, 1988, p.3).
Sarton, como muitos de sua época (e talvez ainda muitos da atualidade), pensava
o seu trabalho a partir daquela visão de ciência como um “conhecimento positivo
sistematizado”. A conseqüência desse tratamento já foi mencionada: de uma ciência
“verdadeira” deve surgir uma História da Ciência igualmente “verdadeira”, que conte uma
versão “definitiva” dos fatos e apenas dos fatos “científicos”. Os objetos de estudo são
selecionados conforme o estatuto moderno de cientificidade: se a magia, a alquimia, a
cabala, foram banidas da “ciência”, a História da Ciência não pode, igualmente, ocupar-se
delas. Os conhecimentos que mostraram-se insuficientes ou equivocados e acabaram
sendo substituídos por saberes “certos” não precisam nem devem ser retomados, pois
expressam uma espécie de “má ciência”. Os erros dos cientistas do passado bem
poderiam ser varridos das prateleiras das bibliotecas.
A noção de que podemos escolher do passado apenas os seus bons frutos
autorizou ações ainda mais atrevidas que banir um livro de uma prateleira. Os próprios
textos originais poderiam ser suprimidos de seus “erros”. Trata-se aí de uma prática que
foi muito comum nas edições de obras antigas. Editar uma obra já significou, limpá-la dos
erros e conhecimentos ultrapassados, purificando seu conteúdo e deixando-o
“atualizado”. Vimos um exemplo disso, no item 2.1 do capítulo 2, quando se reclamou de
um editor não ter “escoimado” da obra do naturalista Marcgrave, que esteve no nordeste
brasileiro com Mauricio de Nassau, as alusões a coisas fantásticas e “cheias de
despropósito”.
A seleção de conhecimentos positivos, aceitos, válidos, cumpria, também, e
cumpre ainda hoje, a finalidade prática de elaboração de manuais de ensino. Ao
estudante que deve apreender o grande volume de conhecimentos disponibilizados pela
ciência moderna, não há tempo ou serventia para o aprendizado de conhecimentos
obsoletos. Naturalmente, trata-se aí de pensar o ensino como uma atividade de
deposição de conteúdos prontos sobre a mente do estudante, que está desprovida deles.
156

Na medida em que esse tipo de percepção sobre o ensino cedeu ou vem cedendo lugar a
formas de aprendizagem ativa, o argumento perde grande parte de sua legitimidade.
Essas considerações ajudam a ilustrar as razões de se ter produzido, por tanto
tempo, uma História da Ciência voltada quase exclusivamente a listar descobertas e
teorias científicas acompanhadas das respectivas datas e autores responsáveis.
Tratava-se, de fato, de elencar cientistas e, especialmente, de conhecer suas biografias,
características e tendências pessoais, predileções ou até mesmo manias, gostos e
costumes, pois tudo isso serviria para montar o quadro particular do cientista responsável
por um certo “grande” passo dado pela ciência. Coleções de anedotas sobre a vida
desses homens, “ilustres e geniais”, constituíam-se em fonte privilegiada para o
historiador da ciência. Impunha-se atribuir o mérito devido aos indivíduos e transformá-los
em modelos que inspirariam novos talentos.
Um grave problema, presente nos manuais de História da Ciência da primeira
metade de nosso século, derivado igualmente da perspectiva linear e progressista que se
tinha sobre a ciência, privilegiando o “gênio” de um cientista em particular, é o de terem
sido elaborados a partir de fontes secundárias. Lia-se pouco dos originais. Eles não eram
mesmo disponíveis. Afinal, publicavam-se conhecimentos positivos e não os “erros” do
passado. A conseqüência mais negativa disto era a produção de manuais cada vez mais
distanciados do conhecimento próprio ao autor. Os danos foram muitos. Os historiadores
da Biologia conhecem bem a dificuldade em desatrelar hoje os nomes de Lamarck e
Darwin da contraposição simplista que lhes foi forjada e que jamais existiu 164 . Este
problema vem sendo minimizado na medida em que a literatura secundária recente está
165
mais comprometida com os originais.
Assim, na perspectiva atual, todos os dados mencionados anteriormente não
constituem, isoladamente, uma história significativa de qualquer ciência. Também não
nos interessamos mais em transmitir aos nossos alunos de ciências modelos de
cientistas. Deixaremos apontados sucintamente, mais adiante, alguns dos atrativos de se
trabalhar a História da Ciência, conforme uma perspectiva atual no ensino de ciências.

164
Ver Bizzo, 1987; Castañeda, 1992; Martins, 1993; Desmond & Moore, 1995.
165
Que isto sirva de justificativa para o aproveitamento abusivo que fiz dela em vários trechos desta
dissertação...
157

2.2 A continuidade e a descontinuidade

Nem todos os trabalhos da primeira metade do século mantiveram-se dentro do


horizonte definido por Sarton. Entre os anos de 1923 e 1958, o historiador americano
Lynn Thordike publica os oito volumes de sua History of Magic and Experimental Science,
duplamente diferenciada por voltar-se a um tipo de conhecimento até então considerado
como pseudo-científico e cujo eixo repousa mais sobre as práticas do que sobre a teoria.
Na década de 1950, o filósofo da ciência de origem russa, Alexandre Koyré, ao afirmar
uma substituição do modelo aristotélico pelo platônico no desenvolvimento da física e da
astronomia dos séculos XVI e XVII, aponta para uma descontinuidade na linha de
pensamento herdada da Antigüidade.
Assim, os interesses de pesquisa na História da Ciência sofriam ampliações
significativas que influenciavam um número crescente de novos pesquisadores. Mas
todos esses trabalhos repousavam ainda, como o de Sarton, na perspectiva da ciência
vitoriosa que não se desprende de si para interpretar o passado. Importava
principalmente reconstituir as passadas largas de uma ciência gloriosa caminhando
decidida e linearmente para a verdade. A crítica, contudo, já existia. Em 1931, o
historiador inglês Herbert Butterfield publicara o ensaio The Whig Interpretation of History,
responsável pela disseminação da alcunha de “whiggish”, whiguismo, para toda história
organizada a partir dos critérios definidos pelo presente. Embora o próprio Butterfield não
tenha escapado do mesmo vício de interpretação em sua pesquisa histórica, a chama da
sua crítica permaneceu iluminando o rótulo que é usado ainda hoje para toda história
comprometida com a idéia do progresso linear da ciência.
158

2.4 O internalismo e o externalismo

Também da década de 1930, provém outro tema que até recentemente, senão até
hoje, gerou polêmicas furiosas entre historiadores, filósofos, sociólogos e historiadores da
ciência. Foi ali o início do que se convencionou denominar visão “externalista” da ciência.
Argumentava-se que o aparecimento de uma determinada teoria científica não era
decorrente apenas de sua “logicidade interna”, mas de uma variedade de outros fatores
provenientes de teorias de outras áreas científicas, bem como, e principalmente, de fora
da própria ciência. A proposta externalista disseminou-se rapidamente, especialmente
entre historiadores e sociólogos além dos próprios filósofos, comumente alijados da
possibilidade de fazer História da Ciência devido ao alto grau de especialização requerido
quando se tratava de restringir-se aos aspectos unicamente “científicos”. O externalismo
autorizava a reflexão sobre o fazer científico mesmo que sem domínio ou vivência da
própria ciência.
A década de 1950 recolheu os frutos dessa tendência. Joseph Needham publica o
resultado de seus vinte anos de pesquisa em Science and Civilization in China, obra
dedicada a conhecer o que se constituía como ciência numa outra civilização. Entender e
mesmo nomear de “científico” o conhecimento produzido na China implicava em procurar
pelo contexto socio-cultural que regia o seu desenvolvimento. Walter Pagel publica
Paracelsus, em 1958, depois de já ter escrito sobre Van Helmont, em 1930, como uma
crítica influente à História da Ciência alicerçada na idéia de progresso e constituída
apenas de cientistas “vitoriosos”:

“Em vez de selecionar dados que façam sentido ao acólito da ciência


moderna, o historiador deveria tentar buscar sentido nos ‘desvios’ filosóficos,
místicos ou religiosos [do trabalho] de cientistas do passado tido como ‘sérios’
— ‘desvios’ estes que são geralmente desculpados alegando-se o espírito, ou
mesmo o atraso do período histórico (...) Em outras palavras, cumpre ao
historiador reverter o método da seleção científica e reapresentar os
pensamentos de seu herói nos seus cenários orginais. Os dois domínios do
pensamento — o científico e o não-científico — irão então emergir, não como
simplesmente justapostos ou como concebidos a despeito de um ou do outro,
mas como um todo orgânico, no qual eles se reforçam e se confirmam
reciprocamente. Não há outro modo de compreender-se plenamente o sábio”
(Pagel, apud Debus, 1988, p. 10).

A ampliação do horizonte da História da Ciência aparece noutro trabalho muito


influente de 1964: The Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, de Frances Yates, em
que a autora procura explicar a antecipação do heliocentrismo no físico italiano devido a
159

sua visão mística e hermética do mundo e não a um desenvolvimento de idéias da


própria física.
No final dos anos 1960, somavam-se tantas propostas distintas de trabalho em
História da Ciência que não deixou de haver uma reação por parte dos historiadores da
ciência mais tradicionais. O externalismo foi combatido em nome de um retorno à ciência
“verdadeira”. O historiador da ciência não deveria ocupar-se das pseudo-ciências que já
tinham sido descartadas no passado pelos próprios cientistas. No final da década de
1970, outra grita pelo internalismo fez-se ouvir. Mas a História da Ciência já tinha, ela
mesma, ido “muito além de suas origens técnicas”, como nos diz o Prof. Debus. Mesmo
que ainda hoje possa-se ressoar por vezes a disputa entre os modos de perceber-se e
analisar-se a ciência, impõe-se a superação do debate. As duas perspectivas, uma vez já
tão separadas, foram ambas responsáveis, inclusive no interior de seu próprio debate,
pela riqueza gerada para a própria História da Ciência.
A superação da disputa parece dever muito a um certo filósofo da ciência, cujo
estudo considerado internalista acabou por influenciar mais fortemente os cientistas
sociais, filósofos e outros historiadores. Trata-se de Thomas Kuhn e seu famoso livro A
Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. O autor oferece uma explicação para a
descontinuidade na ciência, algumas vezes tão profunda que merece ser chamada de
revolução, que se atribui, não apenas à evolução do contexto teórico próprio da
disciplina, mas a uma conjunção de fatores em que pesam os apectos extra-científicos.
Assim, no momento em que uma dada ciência deixa de responder ou responde
insatisfatoriamente aos problemas que lhes são apresentados, configura-se uma crise
que só é superada quando um novo “paradigma” a substitui. O novo paradigma não pode
ser considerado como uma evolução natural do antigo, pois traz reformulações profundas
que dizem respeito a uma nova visão de mundo. É, pois, “incomensurável” ao anterior. A
ciência que se fará a partir dele será uma outra e não uma continuação linear da antiga.
Os anos seguintes foram férteis em análises que cruzavam diferentes disciplinas
científicas entre si e estas com a sociedade em seus vários domínios. Ao mesmo tempo,
a História da Ciência fortificou a sua autonomia perante as demais áreas acadêmicas.
Multiplicaram-se os estudos dedicados às relações entre a História da Ciência e a arte, a
política, a literatura, as mulheres; entre História da Ciência e história das idéias ou entre
História da Ciência e cultura; entre a História da Ciência e a própria história, que também
veio sofrendo a sua revolução historiográfica, especialmente na França, desde a década
de 1920.
160

Parece-nos hoje que a especificidade da História da Ciência em relação à própria


história está na exigência requerida de um conhecimento científico aprofundado. Assim, a
formação em História da Ciência deve dar-se no nível da pós-graduação em que o
profissional oriundo de uma área científica deve inteirar-se da história e da historiografia,
enquanto o que se graduou na história deve aprofundar-se no estudo da área científica
de seu interesse. Na medida em que a História da Ciência envolve as inter-relações entre
a ciência e todas as outras esferas da atividade intelectual, o jovem profissional vai logo
descobrir o quanto precisa também da filosofia e da sociologia, para citar apenas duas
áreas intimamente associadas.

3 Algumas Diretrizes Historiográficas

Para abordarmos a opção historiográfica adotada aqui, tomamos primeiramente, a


lembrança de que a História da Ciência, por ser história, se debruça sobre um objeto
definido como um acontecimento166. Fazer história é, então, falar dos acontecimentos, e a
marca de um acontecimento é a sua individualização, a sua ocorrência singular, a sua
não-repetição.
Assim considerado, o objeto de estudo assinala possivelmente a maior das
distinções entre a história e a ciência. A ciência age sobre algo que se presta a uma
análise metodologicamente objetiva, que pode e deve ser refeita tal e qual, inúmeras
vezes. A história, por sua vez, debruça-se em algo que se oferece a análises diversas e
permite várias narrativas possíveis. Ou, nos termos de Paul Veyne, a história dedica-se a
contar intrigas, através de um esforço em reencontrar a organização natural dos
acontecimentos. A intriga será o tecido da história, uma

"mistura muito humana e pouco 'científica' de causas materiais, de fins e de


acasos; numa palavra, uma fatia de vida, que o historiador recorta a seu
bel-prazer e onde os fatos têm as suas ligações objetivas e a sua importância
relativa" (Veyne, 1971, p.44).

Cabe portanto ao historiador definir os critérios que estabelecem os eventos


significativos para o seu objeto e para os objetivos que persegue em seu estudo. Com
isto posto, voltamo-nos a uma definição para a História da Ciência, como foi apresentada
161

por George Canguilhem, segundo a qual ela é um rótulo,


"um esforço para pesquisar e fazer compreender em que medida as noções
ou as atitudes ou os métodos ultrapassados foram, em sua época, uma
ultrapassagem, e, por conseqüência, em quê esse passado permanece como
uma atividade à qual é necessário conservar o nome de científica.
Compreender aquilo que foi a instrução de um momento é tão importante
quanto expor as razões da destruição pelo sucessor" (Canguilhem, 1983, p.
14).

Assim, investigar a história de uma disciplina científica como a Biologia, por


exemplo, consiste em detectar, primeiramente, quais objetos e quais abordagens
estavam disponíveis à análise dos sábios em cada período. Conforme a dimensão dada
por François Jacob, na sua obra A lógica da vida. Uma história da hereditariedade,
deve-se tomar esse objeto que permite a constituição de um domínio de pesquisa,
procurando, por um lado, definir a sua natureza; por outro, definir a atitude daqueles que
o estudam, o modo com que são observados, segundo que técnicas e que instrumentos,
de acordo com que campo conceitual ou epistêmico. Esse é o modo pelo qual se poderão
entender os obstáculos que a cultura de uma dada época impõe ao conhecimento.
A título de exemplo, a geração espontânea deixa de ser uma explicação
curiosamente mantida pela ciência moderna desde Redi, no século XVII, até Pasteur, no
século XIX. A sua permanência deixa de pesar como "erro" dos cientistas e torna-se uma
concepção avançada se entendermos que todo aquele que queria desvincular-se da
antiga noção de criação, que queria eliminar o argumento do desígnio da explicação da
origem dos seres, só tinha a seu dispor a teoria da geração espontânea. Nesse caso, o
"avanço" caracteriza-se pela firme determinação em deixar para fora do campo científico
as explicações de caráter religioso ou metafísico que se misturavam ao saber do
Renascimento. Segundo Jacob, a eliminação definitiva da geração espontânea enquanto
teoria científica, só pôde ocorrer no bojo de uma nova concepção da vida, que surgiu a
partir das noções de espécie e de evolução, desenvolvidas no século XIX.
Pode-se iluminar esse exemplo com as palavras da Prof. Ana Maria
Alfonso-Goldfarb, para quem a pesquisa em História da Ciência é:

“A busca de como cada cultura, cada comunidade científica e cada época


construiu, de acordo com seus objetivos e suas formas de ver o mundo, os
critérios das verdades que regeriam sua ciência” (Alfonso-Goldfarb, 1994, p.
86).

166
Conforme Veyne, 1971.
162

4 Os Objetivos da História da Ciência

A própria definição da pesquisa em História da Ciência está vinculada aos


objetivos que se pretende alcançar. Muitos dos objetivos gerais que aparecem mesclados
em pesquisas diversas, têm maior ou menor destaque e aprofundamento conforme a
área que se investigue. Pode-se procurar uma compreensão da ciência que foi produzida
no passado pura e simplesmente; pode-se procurar discernir o papel da História da
Ciência junto à atividade de investigação do cientista; pode-se colocá-la ao dispor do
ensino da ciência; pode-se buscá-la como exercício de interdisciplinariedade ou para a
ampliação do domínio cultural, produzindo a transferência de uma atitude científica para
as ações do cotidiano. A História da Ciência atual possibilita aos cidadãos a construção
de uma noção mais realista da ciência e da atividade científica, descoladas da noção de
progresso e do mito do cientista como provedor de soluções mágicas a todos os
problemas da humanidade.
É bastante comum tratar-se a ciência do passado como algo pouco complexo,
pouco elaborado, algo construído sem muita fundamentação seja empírica ou teórica.
Costuma-se atribuir uma limitação intelectual àqueles cientistas que não conseguiram
vislumbrar as verdades científicas, hoje tomadas como tão "óbvias", "simples",
"imediatas". Este tipo de interpretação é produto, entre outras razões, do mero
desconhecimento do passado da ciência. Trata-se de pura e simples ignorância das
teorias científicas do passado.
Tome-se a “Biologia” de Aristóteles como ilustração. Pode-se dizer, se se quer
repetir o que está nos manuais ou livros didáticos de ciências, que o que ele escreveu
sobre os seres vivos não vale à luz dos conhecimentos atuais e que, portanto, não
devemos perder tempo com eles. O estudo das ciências, segundo esse ponto de vista,
deve sempre circunscrever-se ao conhecimento dado hoje, pronto, já aceito pela
comunidade científica e então divulgado nos diversos tipos de publicações científicas.
No entanto, uma leitura cuidadosa da “Biologia” de Aristóteles desfaz a noção de
que só há ali uma coleção de informações "incorretas", e que, ao contrário, o filósofo
grego produziu uma ciência dos seres vivos bastante sofisticada. Há ali um programa de
pesquisa, uma metodologia definida e, especialmente, uma concepção geral do
funcionamento do organismo vivo que direciona o olhar do sábio sobre o que interessa
ser investigado. A sua pesquisa não é descomprometida de um quadro teórico, não é
guiada pelo acaso. Deve-se à própria história uma revisão de suas contribuições à
163

Biologia.
No caso de Aristóteles ainda, a importância de conhecermos mais profundamente
as suas investigações biológicas é ressaltada pelo fato de que, por muitos séculos, são
suas as questões relevantes, os métodos, as descrições e interpretações que
alimentaram e guiaram os investigadores da natureza. Não podemos entender
devidamente o modo como constituiu-se a História Natural e a Biologia posteriores, se
não nos concentrarmos em perceber os debates surdos que ali se travavam com o velho
e bom Aristóteles.

Ao futuro pesquisador, a História da Ciência possibilita conhecer os grandes


"problemas" tratados por sua disciplina e as diferentes "soluções" que lhes foram
oferecidas e que foram construídas ou delimitadas por determinados aparatos
conceituais. Isto auxiliará o cientista a vislumbrar os temas mais relevantes e que
merecem ser investigados. Trata-se, portanto, da obtenção de um norteamento e de
uma fundamentação da pesquisa. Não é preciso detalhar a importância desse aspecto na
tão necessária definição de política científica de nossas instituições de pesquisa.
A História da Ciência fornece também um modo de evitar um conhecimento
científico doutrinizante, na medida em que se propõe à análise da demonstração de um
resultado científico. Não se trata de "engolir" o conhecimento pronto, mas de desenvolver
uma atitude de constante inquietação e até de um certo ceticismo em relação à "verdade"
científica. O estudo da História da Ciência fornece ainda ao futuro pesquisador uma
noção antecipada da estrutura e funcionamento das instituições de pesquisa e do
comportamento da comunidade científica, o que facilita o desenvolvimento prévio de uma
postura científica167.
Cabe ainda destacar que, em níveis avançados, o estudo histórico não é útil
apenas no âmbito da própria disciplina científica a que se dedica, mas é também um
meio de atualizar e otimizar o conhecimento nas outras especialidades, vizinhas ou
distantes da sua própria. Assim, os diferentes especialistas da Biologia, por exemplo,
teriam, através do estudo histórico de sua disciplina um meio eficiente e rápido com o
qual poderiam inteirar-se da pesquisa realizada nas outras especialidades. Da mesma
forma, os chamados neo-biólogos (cientistas de outras áreas do conhecimento que se
vêem obrigados a conhecer a Biologia atual devido à sua relevância para o entendimento
global do homem e da sociedade no século XX) encontram, no estudo histórico, o modo

167
Conforme Martins, 1990.
164

apropriado para alertarem-se quanto aos grandes temas e conhecimentos significativos


alcançados por esta disciplina168.
Finalmente, a História da Ciência constitui-se em rico instrumento a ser agregado
à filosofia da ciência, propiciando um campo epistemológico no qual colocam-se questões
como a validação do método científico, o status das verdades científicas etc.
As contribuições da História da Ciência ao ensino de ciências, seja nos níveis de
1º e 2º graus, seja na graduação ou pós-graduação universitária, vêm sendo apontadas,
discutidas e avaliadas por historiadores da ciência, pedagogos e outros responsáveis por
definição de currículos169.
Resumidamente, vale destacar que a inter-relação dos aspectos intrínsecos da
ciência com os aspectos sociais, institucionais e culturais, através de informações
historicamente bem fundamentadas e bem articuladas, contribui para uma nova visão do
cientista e da ciência, mais condizente com as metas interdisciplinares, e, sobretudo,
mais atraente aos interesses do aluno que ainda não tem uma definição precisa de seu
futuro profissional. E isto vale tanto para o aluno de 2º grau, quanto para o que já está na
graduação e não fez suas opções de especialização.
O conhecimento da evolução dos conceitos e teorias e a compreensão do
processo de aquisição do saber contribuem imensamente para a valorização do
conhecimento do aluno além de facilitar a compreensão de temas complexos.
Comumente, o aluno possui noções do senso comum que muitas vezes coincidem com
concepções abandonadas ao longo da história, por conta do desenvolvimento ou
aumento de complexidade da análise científica170. Resgatar essas noções é um modo de
trazer as crenças do aluno para a discussão em classe, mostrando as razões pelas quais
elas não são mais aceitas e o percurso que foi seguido até que fossem abandonadas.
Diminui dessa forma a distância entre o saber científico e o saber do senso comum além
de beneficiar-se deste para compreender aquele. A dificuldade de compreensão de
temas complexos da ciência deve-se em grande parte ao fato de que os resultados
científicos atuais são "pouco intuitivos e óbvios" (Martins, 1990, p. 4). Assim, retomar o
percurso, mesmo que não linear e contínuo das idéias, serve como uma demonstração
histórica, passo à passo, da das teorias. A reconstrução desses conceitos habilitará os
alunos a constituírem ou a organizarem as suas próprias concepções e a submetê-las a

168
Conforme Mayr, 1982, p.20.
169
Ver Brush, 1987 e 1989; Matthews, 1989; Martins, 1990; Krasilchik, 1990; Bizzo, 1991; Pumprey, 1991;
BSCS, 1992. Wortmann, 1996.
170
Conforme Martins, 1990.
165

esquemas comparativos que facilitem a sua substituição pelas concepções científicas171.


Finalmente, poderíamos acrescentar que o conhecimento de idéias, temas,
problemas, aparelhos e experimentos do passado, constituem rica fonte de experimentos
simples e de fácil improvisação para o enriquecimento das aulas práticas172.
São muitos os meios pelos quais a pesquisa acadêmica atual busca a
interdisciplinariedade. Não cabe aqui aprofundar o tema, mas apenas destacar que o
estudo histórico permite acompanhar o aparecimento de conceitos num dado quadro
teórico, de modo a evidenciar as múltiplas fontes de origem dos mesmos, as suas
condições de possibilidade e os fatores que propiciaram o seu desenvolvimento. A busca
pelo passado de uma disciplina científica qualquer, levará, invariavelmente, a um campo
mais amplo, onde as delimitações e os recortes dados pela especialização do
conhecimento atual simplesmente não existiam. Desse modo, se pretendemos buscar
uma comunicação entre as disciplinas atuais, não poderemos nos fechar à grande
contribuição fornecida pelo conhecimento do modo pelo qual, lá no passado, os sábios e
os filósofos naturais, observaram e teorizaram a natureza.
O conhecimento histórico da pesquisa sobre os seres vivos é ainda imprescindível
para contextualizar e precisar as diferentes ações do homem perante a natureza.
Emergirá por detrás de toda ação humana um conjunto de concepções que constituiu, a
cada época, uma idéia de mundo, uma visão do papel que o homem desempenha frente
à natureza, um status atribuído aos seres vivos etc.
O estudo da história da ecologia, tomada seja como disciplina acadêmica, seja
como conhecimento prático ou aplicado que define o conjunto das ações do homem
sobre a natureza, servirá imensamente para a compreensão da atuação presente e para
a definição de condutas futuras frente ao meio ambiente.
Já sob este aspecto se justificaria o desenvolvimento de uma atitude "científica"
perante a natureza, de modo a se poder abordar os problemas ambientais como
resultado da ação desmedida do homem e para os quais as soluções não emergirão
necessária e rapidamente do mero desenvolvimento científico. O mito de uma ciência
onipotente é frontalmente atingido quando se tomam os desequilíbrios ambientais e a
incapacidade ou a lentidão em que os cientistas respondem aos desafios abertos pelos
danos irreversíveis ao ambiente. Ao mesmo tempo, abre-se a discussão dos aspectos
extra-científicos da relação do homem com a natureza, no sentido de se discutirem os

171
Conforme Krasilchik, 1990.
172
Conforme Martins, 1990.
166

papéis da sociedade civil, dos governos e demais instituições na definição de políticas e


ações ambientais.
167

apêndice 2. TRANSCRIÇÃO DE DOMINGOS VANDELLI173

173
Infelizmente, não se trata de uma transcrição paleográfica profissional. Não foi realizada qualquer
alteração ou atualização no sentido de uma edição crítica, cuidando-se que o texto fosse copiado e
diagramado o mais próximo possível do original, mantendo-se a ortografia, os sinais gráficos e a paginação,
tanto do prefácio ao Diccionario quanto da Memoria sobre a Utilidade dos Jardins Botânicos.
168

DICCIONARIO
DOS
TERMOS TECHNICOS
DE

HISTORIA NATURAL
EXTRAHIDOS
Das Obras de Linnéo, com a ƒua explicaçaõ,
e eƒtampas abertas em cobre, para facilitar
a intelligencia dos mesmos.
E
A MEMORIA SOBRE A UTILIDADE
DOS JARDINS BOTANICOS
QUE OFFERECE

A RAYNHA
D. MARIA I.
NOSSA SENHORA
DOMINGOS VANDELLI
Director do Real Jardim Botanico, e
Lente das Cadeiras de Chymica, e de
Hiƒtoria Natural na Univerƒidade
de Coimbra. &c.

CO IMBRA:
Na Real Officina da Univerƒidade.

M.DCC.LXXXVIII.
Com licença da Real Meƒa da Cõmiƒƒaõ Geral
Sobre o Exame, e Cenƒura dos Livros,
Foi taixado eƒte livro em Papel a dous mil e duzentos reis.
Vende-ƒe na loja de Antonio Barneoud á Sé velha.
169

B.L.

Homem ƒó com a força da ƒua ima-


ginaçaõ naõ podia comer, nem
veƒtir-se, nem executar os ƒeus de-
ƒejos; em fim nada podia fazer ƒem o auxi-
lio das producçoens naturaes, que ƒaõ a ba-
ƒe de todas as Artes, de que dependem prin-
cipalmente os commodos, e prazeres da vida.
Pois que o conhecimento dellas contribuie á
felicidade humana.
Além diƒƒo tambem ƒerve a exercer os
genios mais ƒublimes, e ƒerve de recreio, e
divertimento ás peƒƒoas, que eƒtaõ em outra
couƒa occupadas.
Neƒte ƒeculo he a Hiƒtoria Natural mais
cultivada, que nos paƒƒados, o que demonƒ-
traõ as grandes, e interƒƒantes deƒcubertas,
170

II
e o avultado numero de Muƒeos.
No ƒeculo paƒƒado, e no principio do
preƒente haviaõ muitos Muƒeos de Meda-
lhas, dos quaes agora ha poucos, e prefe-
rem-ƒe os de Hiƒtoria Natural(a)
O conhecimento das producçoens na-
turaes, ou a Hiƒtoria Natural em toda a ƒua
extenƒaõ abrange o Univerƒo; por iƒƒo ƒe
dividio em varios generos de ƒciencias, as
quaes muitas vezes ƒe confundem. A Anato-
mia, Medicina, Economia, e muitas Artes
ƒaõ ramos deƒta vaƒta ƒciencia, que ƒe divi-
de em Zoologia, Botanica, e Mineralogia.
O eƒtudo da Zoologia naõ conƒiƒte em
hum ƒimplex conhecimento dos nomes de
cada animal; mas he neceƒsario ƒaber quan-
to for poƒƒivel a ƒua anatomia, ƒeu modo de
viver, e multiplicar, os ƒeus alimentos, as
utilidades, que delles ƒe pódem tirar; e ƒaber

(a)
A impoƒƒibilidade de ƒe poderem ver todas as producçoens da Natureza eƒpalhadas em
paízes taõ remotos, ƒupre o Muƒeo, no qual como em hum Amphitheatro apparece em huma
viƒta de olhos, o que o noƒƒo Globo contém. V. Memoria ƒobre a utilidade, e uƒo dos Muƒeos
de Hiƒtoria Natural. D. V.
171

III
aumentar, e curar, e ƒuƒtentar os que
ƒaõ neceƒƒarios na economia; procurar des-
cubrir os uƒos daquelles que ainda naõ co-
nhecemos immediatamente, ou extinguil-
los ƒe ƒaõ nocivos, ou defender-ƒe delles.
O ƒaber pois ƒomente o nome das plan-
tas naõ he ƒer Botanico, o verdadeiro Bo-
tanico deve ƒaber álem diƒto a parte mais
difficultoza, e intereƒƒante, que he conhe-
cer as ƒuas propriedades, uƒos economicos,
e medicinais; ƒaber a ƒua vegetaçaõ, modo
de multiplicar as mais uteis, os terrenos mais
convenientes para iƒƒo, e o modo de os fer-
tilizar (a)
Os Naturaliƒtas antigos conheciaõ as
minas de Ferro; mas a falta de obƒervar
a propriedade de huma, que he o Magne-
te, a qual moƒtra o Norte, he quem privou
os antigos por tantos ƒeculos do commercio
com as Naçoens mais diƒtantes, e de ƒaber
a grandeza, e figura da Terra.

(a)
Memoria ƒobre a utilidade dos Jardins Botanicos, a reƒpeito da Agricultura, e principalmente
da cultivaçaõ de charnecas pelo D.D.V. Lisboa, 1770.
172

IV
Os modernos pois com a mencionada
obƒervaçaõ atreveraõ-ƒe a entrar no alto
mar, chegaraõ aons fins mais diƒtantes da
Affrica, reconheceraõ as praias orientaes
da Aƒia, dirigindo-ƒe ao Poente deƒcobri-
raõ a America.
Naõ conƒiƒte pois o eƒtudo da Hiƒtoria
Natural, na ƒimples nomenclatura; mas nas
obƒervaçoens, e nas experiencias para co-
nhecer as relaçoens, a ordem da Natureza,
ƒua economia, policia, e formaçaõ da Ter-
ra, e Rovoluçoens, que ƒoffreo, e em fim
as utilidades, que ƒe pódem tirar das produ-
cçoens naturaes além das conhecidas.
Pelo que ƒendo eƒte eƒtudo taõ util, e
neceƒƒario (a) , e digno de que muitas peƒ-
ƒoas ƒe appliquem a elle, e conƒiƒtindo hu-
ma das ƒuas maiores difficuldades na intel-
ligencia dos termos, de que os Naturaliƒ-
tas, e principalmente o Cel. Linnéo fazem
uƒo; por iƒƒo me determinei com a maior

(a)
Dominici Vandelli. Diƒƒert. de ƒtudio Hiƒtoriae Naturalis neceƒƒario in Medicina, Oeconomia,
Artibus, & commercio. Oliƒip. 1768.
173

V
clareza poƒsivel, a traduzilos na noƒƒa lin-
gua. Esta traducçaõ incumbí ao Dr. Fran-
cisco Jozé Simões da Serra Demonƒtra-
dor de Hiƒtoria Natural, mas a sua mor-
te impidio a acaballa.
Eƒta obra divide-ƒe em Terminologia I.
dos Mammaes. 2. das Aves. 3. dos Peixes
4. dos Amphibios. 5. dos Inƒectos. 6. dos
Vermes. 7. da Botanica. 8. e da Mineralogia.
As obras de Fabricio, Gouvaõ, e Reuff
ƒerviraõ para os Inƒeεtos, Peixes, e pela
Botanica.
Para facilitar pois o achar-se prompta-
mente a explicaõ (sic) de cada termo, haverá
no fim dous Indices geraes, que reduƒiraõ to-
da eƒta obra a hum verdadeiro Dicicionario;
accreƒcendo a iƒto todas as figuras neceƒ-
ƒarias para mais facilitar a intelligencia dos
termos, E por que os generos das Gramas ƒaõ
difficultoƒos, ƒe accreƒcentou duas taboas
com os riscos de todas as frutificaçoens dos
ditos generos.
E naõ tendo até agora huma Flora de Portu-
174

VI
gal (a), e do Brasil, ajuntamos a
eƒte Diccionario hum ensayo dellas, com
os nomes Portuguezes, virtudes medicina-
es, e uƒo da Tinturaria.

(a)
A unica obra de Botanica, que temos de Portugal, he o Viridarium Luƒitanicum do Gryƒley,
da qual obra aƒƒim me eƒcreveo o Cel. Linnéo ,, Poƒtquam tota europa calcata eƒt
Botanicorum pedibus, reƒtat etiamnum ƒola Luƒitania, quae India Europaea dicenda, &
feliciƒƒima Terra. Habemus tantum Gryƒley Viridarium Luƒitanicum, miƒerrimum opus, cujus
Plantas Oedipus ƒit, qui intelligat. Alit iƒta Terra quamplurimas rariƒƒimas plantas, uti constat
ex numeroƒis iƒtis Tournefortii Lusitanicis in Institutuionibus R. Herbariae nominatis, ƒed nullibi
descriptis, aut delineatis, adeoque etiamnum novis, quam nemo, nisi alter Oedipus intelligat. ,,
Lin. epiƒt. I O. an. 1765
175

293

MEMORIA
SOBRE A UTILIDADE
DOS
J ARDINS BOT ANICOS
A RESPEITO
DA AGRICULTURA,
E PRINCIPALMENTE
DA
CULTIVAÇÃO DAS CHARNECAS

A Sciencia da Agricultura(a) conƒiƒte prin-


cipalmente no conhecimento dos vegetaes,
da ƒua natureza, e do clima, e terreno
em que naƒcem; na cauƒa da fertilidade
da terra, na influencia do ar ƒobre os vegetaes, e
nas regras praticas neceƒƒarias para a boa cultura.

(a)
Os authores, que eƒcreveraõ da politica como Plataõ Xe-
nofonte, Ariƒtoteles, fizeraõ da Agricultura huma parte eƒƒen-
cial della. Os Heróes de Roma applicavaõ-ƒe á cultura da terra;
e eƒta como diz Plinio ƒe gloriava de ƒer cultivada por maõs
viεtorioƒas, e triunfantes. Gaudente terra vomere laureato. Varraõ
cita cincoenta authores gregos, que eƒcreveraõ ƒobre eƒte aƒƒump-
to. εataõ, Columella, Varraõ, fizeraõ ver com as ƒuas inveƒtigações
a grande extençaõ, e utilidade deƒta ƒciencia. De alguns paizes
ƒe pode dizer o que Columella eƒcreveo no tempo de Tiberio:
;; Vejo em Roma Academias de Filoƒofos, Oradores, Geometras, e
e Muƒƒicos; vejo homens que eƒtudaõ as artes, que tem por
objeto o paladar, e o ornato dos cabellos, e ao mesmo tempo
contemplo deƒprezada a Agricultura.
176

294
O primeiro conhecimento adquire-ƒe com o eƒtu-
do da Botanica, o ƒecundo com experiencias, e re- flexões
fiƒicas, o terceiro, e quarto com hum Jardim Botanico, no
qual he neceƒƒario cultivar os vegeta-
es de todos os climas, e terrenos.
Hum Botanico ignora inteiramente quaes fejaõ
os terrenos eƒtereis (ƒe exceptuarmos hum cham
cheio de ocra, enxofre, ou ƒal) por cuja cauƒa pò-
de eƒcolher entre treze mil, e mais plantas,
que ƒe conhecem, as que ƒaõ uteis á economia, e
proprias á qualidade do terreno (a); pois que he cer-
to, que exiƒtem plantas proporcionadas a todos os
differentes terrenos: por exemplo para as terras,
que os Francezes chamaõ franche, que ƒaõ os or-
dinarios terrenos cultivados; para os lugares cheios
de barro, greda, e areia; para os campos aridos,
aquoƒos, e arenoƒos maritimos.
Duas ƒaõ as opinioens a reƒpeito da fertilidade
da terra. A primeira, he que a terra ƒerve ƒómente
de matriz aos vegetaes, e de nada mais: a ƒegunda, que os
vegetaes tomaõ o maior nutrimento da terra.
O que he porem inconteƒtavel, he que o maior nu-
trimento das plantas depende da agua, e principal-
mente da chuva, a qual com as particulas differen-
tes que traz da atomosphera, e dos ƒaes, e olios
depoƒitados na terra concorre muito para a vegetaçaõ.
Alem do que contribue o calor, a luz, e materia eletrica.
Se eu me quizeƒƒe dilatar ƒobre eƒte aƒƒumpto,
que tem ƒido tratado por muitos authores de Agricul-

(a)
Sendo na Agricultura hum principio certo eƒcolher os ve-
getaes para aquelles terrenos, que lhes ƒaõ proprios.
177

295
tura, ƒeria muito diffuƒo; baƒta que ƒe ƒaiba, que
huma terra, a qual naõ dá paƒƒagem ás aguas, como
o barro, nem admitte a influencia do ar, he eƒteril
para algumas plantas, e fecunda para outras; e que
hum terreno arenoƒo, o qual naõ retem as aguas,
nem os ƒaes neceƒƒarios, he infecundo para mui-
tas plantas, e fecundiƒƒimo para outras.
Quaõ grande ƒeja a utilidade de hum Jardim Bo-
tanico (alem do goƒto de ver juntas as plantas de
todas as partes do mundo, e do proveito que dellas
recebem, a Medicina, as Artes, o Commercio &c.
(a)
para a Agricultura, ƒó o ignora aquelle, que naõ
ƒabe quantas plantas de regioens remotas por meio
dos Jardins ƒaõ hoje commuas, e ordinarias na Eu-

A reƒpeito da ƒua grande utilidade ja foraõ eƒtabelecidos


(a)

em França doze Jardins Botanicos, em Heƒpanha dous, em Sa-


boia hum, em Italia treze: em Alemanha vinte, em Inglater-
ra tres, na Pruƒƒia quatro, em Hollanda oito, em Dinamarca
hum, em Suecia tres, na Polonia hum, na Ruƒƒia hum; alem de
muitos Jardins particulares. Os Monarcas naõ ƒe contentaraõ ƒó-
mente com eƒta inƒtituiçaõ; mas com grandes deƒpeƒas mandaraõ
ás differentes partes do mundo Botanicos para deƒcobrirem novas
plantas. Fillipe II, Rey da Heƒpanha mandou o ƒeu primeiro
Medico Hernandes ao Mexico para cuja viajem lhe deo 250000
cruƒados, e elle deƒcobrio ƒete centas plantas. Luiz XIV. no
meio das ƒuas viεtorias ordenou viajens a varias partes, as Ilhas da
America mandou Plumier, ao Oriente Tournefort, e ao Peru Fe-
villé. Luiz XV. mandou José Juƒƒieu a America, a εzarina Ge-
melin á Siberia. Fernando VI. Rey de Heƒpanha fez vir de Sue-
cia Loeƒling, e inviou-o a America. O Imperador Francisco I.
mandou ás ilhas Antilhas Jacquiu. O prezente Rey de Sardenha
mandou Douati (?Donati) á Aƒia. ElRey de Dinamarca Forskol ao Egipto;
alem de muitos expedidos por varias Academias como da de Suecia
o Kalm a Penƒilvania, Oƒbek a India Oriental, Toren ao Surate,
Haƒƒelquiƒt á Paleƒtina, Alƒtroemer á Europa Auƒtral, e outros que
de ƒua propria vontade foraõ viajar como Brovvn á Jamaica, e
agora ƒe acha na Ilha de S. Thomé, Andanƒon ao Senegal, e o
Banks á Ilha da Terra Nova, e as Ilhas do mar do Sul.
178

296
ropa, e cujo numero ƒe vai cada dia aumentando,
de que he prova evidente França, Suecia, e Ale-
manha.
Por quanto, com o conhecimento Botanico adqui-
rido nos mais celebres Jardins, tem os Inglezes, e
Francezes examinado, e reconhecido a maior parte
das plantas que naƒcem nas ƒuas conquiƒtas da Ame-
rica, e tem tirado immenƒa utilidade, e cada vez
podéraõ tirar maior lucro.
Muito me dilataria eu ƒe quezeƒƒe referir todas;
algumas das quaes (a)* saõ da America meridional.
Que vaƒto campo ƒe me offerecia agora para huma di-
latada digreƒƒaõ, mas nem o tempo, nem a minha oc-
cupaçaõ; nem o aƒƒumpto o permite.
Nos Jardins Botanicos como ƒe cultivaõ as diffe-
rentes plantas de todos os climas, e terrenos, conhe-
cem-ƒe, e eƒcolhem-ƒe as mais proprias, e adequa-
das ao Paiz.
Quantas plantas ƒaõ hoje commuas, ordinarias,
que trazem a ƒua origem das regioens mais diƒtan-
tes? O trigo, ainda que ƒe naõ he planta da Europa.
O Milho painço (b) he da India. A Aveia (c) he da

(a)
Piper amalago. Piper aduncum. Piper verticillatum. Bromelia
Pinguin. Caƒƒia occidentalis. Guajacum officinale da Jamaica. Cinua
arundinaceae. Collinƒonia canadenƒis do Canadá. Laurus Bezoin. Po-
rifera Da Virginia. Rhus vernix. Acer ƒacharinum. da Penƒilvania.
Amyris clemifera da Carolina. Laurus Cinnamomum da Martinica.
Spigelia anthelmia da Cajenna, e do Braƒil. Laurus ƒaƒƒafras da Virginia,
e do Braƒil. Euphorbia ipecacuanha da Virginia, do Canada, do Braƒil.
Smilax ƒalƒaaparrilla da Virginia, e do Braƒil. Morus tinεtoria da Ja-
maica, e do Braƒil. &c.
*
Na errata que se segue ao texto, a referência à ilha de Martinica na nota
(a) é substituída porIlha de S. Tomé, das Molucas.
(b)
Panicum miliaceum.
Avena ƒativa.
(c)
179

297

Ilha de Joaõ Fernandes; as Borragens vieraõ de Alep-


po (a). O rabaõ (b) da China; o milho (c) da Ame-
rica; o Arroz he planta, que ƒe julga da Ethiopia,
e que antes ƒe cultivava na India (d); a Fava (e) he do
Egypto; a Amoreira branca (f) da China; os Tomates (g)
da America; a Bringella (h) he da Aƒia, Africa, e
America; o Pimentaõ (i) he do Braƒil; a Cidreira (k), o
Limoeiro (l) da Aƒia, Media, Aƒƒiria; a Laranjei-
ra (m) da China; o Igname (n), a Açafroa (o) he do
Egypto; a Piteira (p) he da America &c. Quaƒi todas
as noƒƒas arvores frutiferas ƒaõ de outros paizes.
Deixo de fallar de tantas arvores, plantas da Aƒia,
Africa, e America que eƒtaõ ja introduzidas na Eu-
ropa, ou para ornato dos Jardins, ou para outra u-
tilidade, porque faria hum dilatado catalogo, prin-
cipalmente ƒe ajuntaƒƒe todas as plantas de outros
paizes, que neƒte Real Jardim Botanico tenho experi-
mentado ƒerem adequadas, e proprias para eƒte feliz
clima.
Baƒta que ƒe ƒaiba, que muitas dellas uteis á E-
conomia, ás Artes, e ao Commercio ƒe daõ feliz-
mente, e que ƒaõ rariƒƒimas as plantas da America
Septentrional, que aqui ƒe naõ daõ bem, e de huma
parte dellas póde ƒervir de prova o Jardimde Mr.
de Wiƒme.
Alem das plantas da Aƒia, Affrica, e America,
com a instituiçaõ dos Jardins Botanicos em varias par-
tes ƒabe-ƒe, que plantas uteis de varios climas da
mesma Europa ƒe podem transplantar para cada Paiz.

Borrago officinalis. (b) Raphanus ƒativus. ( c) Zea Mays.


(a)

(d) Oryza ƒativa. (e) Vicia ƒaba. (f) Morus alba. (g) Solanum
Lycoperƒicum. (h) Solanum melongena. (i) Capƒicum annuum. (k) Ci-
trus medica. (l) Citrus limon. (m) Citrus aurantium. (n) Arum co-
locaƒia. (o) Carthamus tinεtorius. (p) Agave Americana.
180

298

A outra ƒumma utilidade, que ƒe tira da Botani-


ca, e dos Jardins he ƒaber quaes plantas uteis na E-
conomia &c. ƒe podem cultivar nos diverƒos climas,
e terrenos, de modo que dos terrenos incultos, e
commummente tidos por eƒtereis ƒe poƒƒa tirar grande
proveito.
Os terrenos incultos, que vulgarmente ƒe chamaõ Char-
necas naõ ƒaõ eƒtereis, e ƒe podem fazer uteis; de que
temos varios exemplos em Inglaterra, Irlanda, Di-
namarka, Suecia, e no Anjou nas fazendas do Mar-
quez de Turbilly (a); e em Liria nas terras viƒinhas a
Fabrica de vidros de G. Stephens.
A mesma obƒervaçaõ moƒtra que ƒemelhantes terre-
nos naõ ƒaõ infecundos, pois nelles (como nos do A-
lentejo) naƒcem varias eƒpecies de plantas natural-
mente como Tomilho (b), Eƒtevas (c), Camarinhas (d), Urze (e),
Quarqueja (f), Roƒmaninho (g), Aderno (h), Herva
das ƒete ƒangrias (i), Carraƒco (k), Aroeira (l), Pinheiro
(m), Zimbro (n), Gilbarbeira (o), Roƒelha (p), e muitas
mais, a que faltaõ os nomes Portuguezes (q).
Huma grande parte do Alentejo he totalmente in-
culta por ƒer terreno arenoƒo, no qual naõ ƒe po-
dendo ƒemear Trigo, Milho &c. com proveito, ƒe deixa
inculto, e ƒe chama eƒteril.
Por ventura faltaõ meios para fazer melhor eƒte ter-
reno? Ou faltaõ plantas uteis em alguma parte da

Memoire ƒur les defrichemens. Amƒterdam 1762. 8.. (b) Thy-


(a)

mus vulgaris. Thymus villoƒus. (c ) Ciƒtus ladanifera. (d) Empetrum


album. (e) Erica viridi purpurea. (f) Geniƒta tridentata. (g) Laven-
dula Stoecas (h) Phillyrea anguƒtifolia. (i) Lithoƒpermum fruticoƒum.
(k) Quercus coccifera, Quercus nana. (l) Piƒtacia lentiƒcus. (m)
Pinus ƒylveƒtris. (n) Juniperus oxycedrus. (o) Ruƒcus aculeatus. (p)
Ciƒtus albidus. (q) Erica ƒcoparia, ciliaries, cinerea, vulgaris. Myrtus lu-
ƒitanica. Ulex europaeus. Tojo. Centaurea aƒpera, Droƒera Luƒitanica,
Agroƒtis ƒtolonifera, Ophrys infectifera, Leucojum autumnale &c.
181

299

Economia, que lhes ƒejaõ proprias? certamente naõ.


Para fertilizar eƒtes lugares incultos baƒta ƒomente
queimar as ditas plantas com as ƒuas raizes(a) , cu-
ja cinza faz mais fertil o terreno.
Em alguns lugares naõ faltaõ bancos de barro,
(b)
comque ƒe fazem melhores os ditos terrenos im-
pedindo a paƒƒagem mui facil da agua. No cazo que
debaixo do terreno arenoƒo ƒe naõ ache nem barro,
nem greda, que ƒe buƒca com a fonda, encontra-ƒe
muitas vezes em alguns oiteiros viƒinhos, nos quaes
ƒe achaõ tambem leitos de conchas marinas, que ƒaõ
excellentes para a vegetaçaõ das plantas.
Se o terreno que ƒe deƒeja cultivar, he viƒinho
ao mar, poder-ƒe-haõ ƒervir dos teƒtaceos marinhos,
que ficaõ na praya, ou tambem onde houver a Tur-
fa (como junto a Setubal na Comporta) com eƒta
ƒe poderá fertilizar o terreno; ou ƒe na viƒinhança
correr algum rio ƒervir-ƒe-haõ delle; e nos lugares,
em que ficaõ aguas encharcadas eƒtas faraõ os terre-
nos capazes de dar com utilidade Trigo &c.
No caƒo de faltarem todos eƒtes meios, e achando-
ƒe hum lugar ƒem alguma planta, (couƒa muito rara no
Alentejo) por-ƒe-haõ plantas ƒucculentas, que tomaõ o
maior nutrimento das folhas, e neceƒƒitaõ pouco do ƒuc-
co da terra, e que apodrecendo daõ hum ƒal volatil
urinoƒo (c) e terra muito util para fertilizar mais o

(a)
Deve-ƒe advertir, que naõ queimando as raizes pouca uti-
lidade ƒe póde tirar.
Argilla communis, coeruleƒcens. Linn.
(b)
(c)
O alkali volatil acha-ƒe na analiza das terras ferteis.
A noƒƒa athmosfera eƒtá cheia delle. Todas as materias, que con-
tem eƒte ƒal contribuem a fertilidade; por eƒta cauƒa os eƒtru-
mes fertilizaõ as terras. Eƒte ƒal ƒe acha na maior parte dos vegetaes
apoprecidos, mas principalmente em o Reino animal.
182

300
terreno. Entre as plantas ƒucculentas algumas ƒaõ aqui
ordinarias, como a Figueira do Inferno (a), a Herva
baboƒa (b), Alcaparra (c ), o Telefio (d), a Figueira
brava (e) que ƒe conƒerva muitos annos em lugares onde a raiz naõ he
regada por huma gotta de agua.
Os Suecos cultivaõ as arêas moveis, e dellas ti-
raõ baƒtante proveito. Que grande utilidade ƒe pode-
rá logo tirar deƒtas, que ƒaõ mui ƒuperiores, e aptas
para muitas plantas? O Trigo Sarraceno (f) dá-ƒe
muito bem nos lugares arenoƒos.
Que proveito ƒe tiraria ƒe ƒe reduziƒƒem a paƒtos eƒtes
lugares incultos? Ha muitas plantas proprias para eƒ-
tes terrenos, como Bromus ƒecalinus, Poa rigida,
Melica ciliata, Aira caryophyllata, Aira flexuoƒa.
Aira caneƒcens, Agroƒtis ƒtolonifera, Holcus lanatus, Phleum
arenarium, Lupinus luteus.&c. e com eƒtes
paƒtos ƒe multiplicariaõ os rebanhos, e os gados.
E tambem ƒe poderiaõ ƒemear Pinheiros, que em
poucos annos dariaõ muito lucro. A Amoreira branca
nasce bem em ƒemelhante terreno, e nelle dá as folhas
mais Seccas, e poriƒƒo mais uteis para o suƒtento dos
bichos da ƒeda; e plantando os ramos das raizes ve-
lhas das Amoreiras dentro em quatro annos daõ folhas
grandes.
Em algumas partes ƒeria util a cultura do lirio
dos tintureiros (g), da Ruiva (h), e do Paƒtel (i)
para as cores.
Nos lugares arenoƒos maritimos ƒeria muito util a

Caεtus ƒicus Indica. (b) Aloe vulgaris. (c ) Capparis ƒpinoƒa.


(a)

(d) Sedum telephium. (e) Ficus carica capriƒicus. (f) Polygonum


ƒagopyrum (g) Reƒeda luteola. (h) Rubia tinεtorum. (i) Iƒatis tinεtoria.
183

301
cultura da flor de Cryƒtal, ou ƒoda(a) , que ƒerve
para fazer o vidro, e o ƒabaõ, como tambem a de
outras plantas proveitoƒas (b).
As plantas, que nos lugares ƒeccos, e onde ha
greda ƒe daõ bem ƒaõ muitas (c ) , algumas das quaes
ƒerviraõ para paƒtos (d). As plantas proprias para
lugares humidos (e) aquoƒos, e de alagoas (f) tam-
bem dariaõ alguma utilidade.
E por ora baƒta; porque para ƒe tratar a fundo
qualquer deƒtes objeεtos ƒeria neceƒƒario mais tempo.
Se correƒponder a aceitaçaõ do Publico aos meus
ƒinceros dezejos, occupar-me-hei em fazer experien-
cias ƒobre as plantas que ƒe cultivaõ, e ƒe cutivaraõ
neƒte Real Jardim Botanico a fim de conhecer as ma-
is exacεtas obƒervações ƒobre os lugares incultos: in-
dicarei os meios proporcionados conforme as ƒitua-
çoens, e producçoens, tratando fundamentalmente
de todos eƒtes objeεtos.

Salƒola ƒativa. Chenopodium maritimum. (b) Eryngium mariti-


(a)

mum. Cochelearia officinalis. Braƒƒica napus. Triglochin maritimum.


Hedyƒarum caput Galli. Trifolium glomeratum, ƒtriatum, Lotus mari-
timus, cytiƒoides. Carex arenaria, εenchrus racemoƒus. Triticum ma-
ritimum.&c.
(c ) Anthemis tinεtoria. (d) Hedyƒarum onobrychis. Trifolium spa-
diceum, filiforme. Medicago ƒativa, falcata. Andropogon iƒchoemum.
Aegilops triuncialis. Poterium ƒanguiƒorba &c. (e) Scirpus ƒluitans
sylvaticus. Phalaris arundinacea. Alopecurus Monspelienƒis, genicula-
tus. Aira aquatica. Poa aquatica. Cynoƒurus caeruleus. (f) Oryza ƒati-
va. Scirpus paluƒtris. Poa paluƒtris. Feƒtuca ƒluitans. &c.

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