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História, Memória e Violência de Estado

Tempo e Justiça
B ERBER B EVERNAGE
Copyright © 2018, Berber Bevernage
Copyright © 2018, Editora Milfontes.
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História, Memória e Violência de Estado

Tempo e Justiça
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Bruno César Nascimento

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Projeto Gráfico e Editoração


Bruno César Nascimento

Impressão e Acabamento
GM Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


B552h BEVERNAGE, Berber.
História, memória e violência de Estado: tempo e justiça. Berber
Bevernage; Tradução ---------------------. - Serra: Editora Milfontes/
Mariana: SBTHH, 2018.
346 p. : 20 cm

Inclui Bibliografia. Dedicado a Shanan Galan e muitos outros


ISBN: “desaparecidos sociais” na fortaleza da Europa.
1. Historiografia 2. Espírito Santo 3. Atraso I. Nascimento, Rafael
Cerqueira do II. Título.

CDD 981.52
Sumário
Agradecimentos .......................................................................... 11
Prefácio......................................................................................... 13
Capítulo I:
Introdução................................................................................... 17
Tempo da história vs. tempo da jurisdição............................ 19
Além do presente e do ausente, do reversível e do irreversível: o
irrevogável.................................................................................... 22
O dilema da justiça de transição, comissões da verdade e o
direito à verdade histórica......................................................... 26
Justiça de transição, a crise da consciência do tempo moderna,
e o projeto da simultaneidade................................................... 36
Organização do livro.................................................................. 47

Capítulo II: “La muerte no existe”. As Madres de Plaza de Mayo


e a resistência contra o tempo irreversível da história.
Introdução................................................................................... 55
Justiça de transição na Argentina: uma estrada longa e
sinuosa ..................................................................................... 58
As Madres em tempos de ditadura.......................................... 69
Evocando fantasmas. A resistência das Madres em tempos de
democracia................................................................................... 73
“Aparición con vida”. A história de um lema........................ 84
Conclusão: o tempo dos desaparecidos.................................. 91

Capítulo 3: “Nós, vítimas e sobreviventes, declaramos que o


passado está no presente”. A “nova África do Sul” e o legado do
Apartheid.
Introdução................................................................................... 97
A TRC no contexto da revolução negociada da África do Sul.....104
A TRC e o problema do passado assombroso....................... 111 Introdução................................................................................... 211
O tempo irreversível da história, a “distância” e a produção do Dois historiadores: Braudel e Collingwood .......................... 214
velho.............................................................................................. 116 Fernand Braudel..............................................................................214
Resistindo ao tempo histórico irreversível: o Grupo de Apoio Collingwood.....................................................................................222
Khulumani................................................................................... 124 Dois marxistas: Ernst Bloch e Louis Althusser ..................... 232
Conclusão..................................................................................... 131 Ernst Bloch ......................................................................................233
Capítulo 4: “O passado deve permanecer passado”. Tempo da Louis Althusser................................................................................238
história e tempo da justiça na “nova Serra Leoa”. Capítulo 7: Tempos Espectrais. Jacques Derrida e a desconstrução
Introdução................................................................................... 133 do tempo.
Do conflito a uma paz frágil: situando a Comissão da Verdade Introdução................................................................................... 247
e Reconciliação............................................................................ 136 Espectros de Marx ..................................................................... 248
O Tribunal Especial e a TRC: “tempo da jurisdição” vs. “tempo Desconstrução e a metafísica da presença.............................. 255
da história” .................................................................................. 143
Meditando sobre uma certa “não-presença”......................... 265
Um desejo de progresso e uma vontade de modernidade... 150
Resistência popular ao tempo histórico irreversível............. 157 Capítulo 8: História e o trabalho de luto.
Conclusão..................................................................................... 159 Introdução................................................................................... 273
Conclusão preliminar...............................................................163 Luto moderno: o legado de Freud............................................ 276
O que os desaparecidos e os espíritos ancestrais atormentados Práticas de luto não-modernas................................................. 280
tentam nos dizer sobre a história?........................................... 163 O que o luto nos diz sobre a história?..................................... 286
Capítulo 5: A difícil tarefa de pensar o irrevogável. Por que é tão Além do luto moderno vs. não-moderno: o legado de Jacques
Derrida.......................................................................................... 291
difícil entender o passado assombroso.
Desconstruindo a interioridade e a memória........................ 294
Introdução................................................................................... 177
Mensurando o tempo da morte .............................................. 301
Tempo absoluto, vazio e homogêneo ..................................... 178
Conclusão..................................................................................... 303
Historicismo................................................................................ 185
Modernismo................................................................................ 191 Conclusão..................................................................................... 307
Secularismo.................................................................................. 201
Bibliografia................................................................................... 319
Formulando a questão principal.............................................. 205

Capítulo 6: Procurando por outros tempos. Algumas críticas do


passado ausente e distante.
Berber Bevernage

Agradecimentos
Escrever este livro me levou por uma longa e sinuosa estrada,
repleta de curvas, caminhos alternativos e ocasionalmente até mesmo
retornos. Em cada curva, caminhos e retornos encontrei pessoas que
me estimularam e inspiraram a seguir em frente ou me encorajaram a
mudar de direção. É impossível nomeá-las todas, mas permitam-me
listar aqui, entretanto, algumas que foram especialmente importantes
para que este projeto se tornasse possível. Como este livro desenvolveu-
se a partir de um projeto de doutorado, primeiramente gostaria de
agradecer a Gita Deneckere, que orientou o projeto, que sempre
o apoiou, e assegurou-me a liberdade para moldar minha pesquisa
da maneira como eu desejava. Ademais, gostaria de agradecer Chris
Lorenz, que foi desde o início espécie de coorientador informal, e que
por diversas vezes agraciou-me com insights que foram de importância
crucial para o desenvolvimento do meu projeto.
Muitos colegas que trabalham em diferentes universidades
ajudaram a tornar este livro possível, comentando a partir de
rascunhos ou me inspirando durante conversas informais. Desejo
agradecer especialmente a Wulf Kansteiner, Antoon Van den
Braembussche, Antoon de Baets, Bruno De Wever, Freddy Mortier,
Keith Jenkins, Mark Mason e Peter Icke, Henning Trüper, Chiel van
den Akker, Barbara Henkes, María Inés La Greca, Verónica Tozzi,
Cecilia Macón, María Inés Mudrovcic, Francisco Naisthat, Nora
Rabotnikof, Eugenia Allier Montaño. Antoon Van den Braembussche
meticulosamente estudou versões preliminares do meu manuscrito
fazendo comentários preciosos que me deram novos insights cruciais.
Apesar de eu desejar agradecer a todos os meus amigos e colegas mais
próximos por seu apoio e por promover um ambiente de trabalho
prazeroso e estimulante, gostaria de nomear aqueles que leram e

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

comentaram meus rascunhos: Bouke Billiet, Joris Verschueren, Jan-


Frederik Abbeloos, Koen Aerts, Mathias Bienstman, Maja Musi,
Lore Colaert e Martin Ottovay Jorgensen. Desnecessário dizer que
eu assumo total responsabilidade pelo conteúdo deste livro e por
quaisquer erros que possam ser encontrados nele. Gratidão especial
à Lieve e Bouke que me ofereceram seu apoio em horas sombrias.
Finalmente, desejo agradecer a minha querida Elkovich, pelo seu
Prefácio
encorajamento infinito, e especialmente por suportar minha presença Este livro se concentra em torno de uma série de teses
frequentemente demasiada espectral. simples, porém provocativas: que o modo como lidamos com a
injustiça histórica e a ética da história é fortemente dependente do
A escrita deste livro não teria sido possível sem as bolsas de
modo concebemos o tempo histórico; que os conceitos de tempo
doutorado e pós-doutorado que tive a fortuna de receber do Fundo
tradicionalmente usados por historiadores são estruturalmente mais
Especial de Pesquisa da Universidade de Gante e da Fundação de
compatíveis com o ponto de vista dos perpetradores do que com o
Pesquisa Flandres.
ponto de vista das vítimas; e que romper com tal viés estrutural requer
repensar fundamentalmente as noções modernas dominantes de
história e tempo histórico.
Quando comecei a trabalhar em minha pesquisa de
doutorado que compreende a base do presente livro, meu plano era
me concentrar no uso prático da história para além da historiografia
acadêmica através do foco no campo da chamada “justiça de
transição”, e mais especificamente no contexto das “comissões da
verdade”, tais como foram criadas para lidar com o legado da junta
militar na Argentina, a era do Apartheid na África do Sul, e a guerra
civil em Serra Leoa. Pouco desconfiava que o estudo desse uso prático
da história me levaria em uma jornada filosófica na qual eu chegaria
finalmente a questionar alguns dos pressupostos básicos que eu
tomava como certos enquanto um historiador de formação.
Dois insights me fizeram decidir que uma abordagem
mais filosófica era necessária. Primeiro, observei que o interesse das
comissões da verdade pela história era muito mais difícil de explicar do
que eu esperava originalmente: esse interesse não podia ser reduzido
como a busca de uma verdade histórica, mas também não era apenas
uma questão de empréstimo da metodologia dos historiadores e por
vezes não podia nem mesmo ser compreendido nos termos de uma
oposição entre lembrança e esquecimento. Depois, me surpreendi ao

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

descobrir que o encontro das comissões da verdade com o protesto riscos. No entanto, espero ser capaz de convencer os leitores de que
popular não podiam ser inteiramente atribuídos a questões de levantar tais problemas não é uma questão sofista estéril, mas que
anistia, reparações ou visões conflitantes de verdade histórica. Fiquei possui uma relevância social real.
convencido então que, em um nível mais profundo, tanto o interesse
das comissões da verdade pela história, quanto os protestos populares
contra elas estavam relacionados a diferentes concepções de tempo,
diferentes interpretações da relação entre passado, presente e futuro.
Um dos desafios mais fundamentais para as conceitualizações
tradicionais de tempo histórico encontra-se, sem dúvida, na frequente
afirmação das vítimas sobre um passado que assombra o presente.
Estudando conceitos de tempo tão diferentes, por vezes até contra-
intuitivos, cheguei a desenvolver duas hipóteses centrais: que, de fato,
a fronteira entre passado e presente não é absoluta e que o passado às
vezes persiste no presente e que, por sua vez, os discursos da história,
em vez de serem descrições neutras do passado e do presente, muitas
vezes manifestam uma dimensão de “performatividade” pela qual
elas estabelecem ativamente quebras ou “distâncias” temporais entre
passado e presente.
Após examinar a relevância prática dos usos do discurso
histórico e da resistência contra eles, dedico a segunda parte do livro
a uma investigação filosófica sobre as questões de por que é tão difícil
para a maioria dos historiadores acadêmicos levar a sério a noção do
passado assombroso ou persistente, e sobre que tipo de cronosofias
alternativas seriam mais adequadas para tal tarefa.
Gostaria de conceber este livro como uma contribuição
para a teoria da história, embora uma contribuição pouco ortodoxa.
Pouco ortodoxa porque não incide diretamente sobre a historiografia
profissional; não adentra em questões de verdade, objetividade
ou narrativa histórica mas, em sua maior parte, este livro difere da
filosofia da história convencional pois tenta chamar atenção para
algumas grandes questões tão longamente negligenciadas sobre a
condição histórica – questões sobre tempo histórico, a unidade da
história, e o estatuto ontológico do presente e do passado – e porque é
abertamente programático no seu apelo por uma nova ética histórica.
Estou ciente que grandes questões não podem surgir sem grandes

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Berber Bevernage

Capítulo I
Querer libertar-se do passado: corretamente,
pois não é possível viver à sua sombra e o terror
não poderá ter fim enquanto culpa e violência
forem retribuídas com culpa e violência; e
incorretamente, porque o passado de que se quer
escapar ainda permanece muito vivo.
T. Adorno1

A fim de lutar contra a retaliação, o perdão


encontra, no tempo, um poderoso aliado.
W. Benjamin2

Introdução
Diversos filósofos têm notado as dimensões temporais da
relação entre história e justiça ou ética. As posições mais opostas e
explicitamente pronunciadas no debate foram aquelas tomadas por
Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Para Nietzsche, a história
sempre deve servir à vida e ao futuro; não deve se esforçar para
alcançar a justiça histórica.3 Nietzsche despreza a generalizada “febre

1 Adorno T., The Meaning of Working Through the Past. In: Critical Models.
Interventions and Catchwords. New York, Columbia University Press, 1998, pp. 89-
104, 89.
2 Benjamin W., The Meaning of Time in the Moral Universe. In: Selected
Writings, 1913-1926 (VOL I) (ed. M. Bullock & M.W. Jennings). Cambridge (Mass.),
Harvard University Press, 2002, pp. 286-287, 286.
3 Nietzsche F., On the Uses and Disadvantages of History for Life. In: Untimely
Meditations (ed. Daniel Breazeale). Cambridge, Cambridge University Press, 1997,

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

histórica obsessiva” e inveja o rebanho que, acorrentado ao momento, frenquentemente sentido, ou a alegada obrigação de fazer justiça ao
vive a-historicamente, em contraste com a humanidade, enterrada passado no (exigente) passado mesmo.8 Assim, a capacidade da história
pela sempre crescente carga do que é o passado. Para ser capaz de de contribuir para a busca da justiça muitas vezes parece ser limitada
viver, ele insiste, a humanidade deveria abandonar a esperança por ou até inexistente. A estreita relação entre essa concepção particular
justiça histórica e necessitaria aprender a esquecer. de tempo histórico e o restrito mandato ético da história torna-se
aparente quando essa antiga concepção de tempo é contrastada com
Em contraste, Walter Benjamin assumiu notoriamente uma
a noção de tempo muitas vezes implícita no discurso da jurisdição.
postura sem reservas a favor das inúmeras vítimas da injustiça histórica
ainda cobertas pelas ruínas acumuladas do passado.4 Ele defende uma
“solidariedade anamnésica” entre os vivos e os mortos, argumentando
que as gerações vivas não deveriam mirar fundamentalmente ao
Tempo da história vs. tempo da jurisdição
futuro, mas às gerações precedentes na sua luta por justiça.5 Os vivos, O historiador francês Henry Rousso observou em uma
argumenta Benjamin, possuiriam uma “fraca força messiânica” para entrevista que os historiadores tradicionalmente consideraram o
reparar as injustiças de um passado catastrófico. tempo próprio da história como o inverso do tempo próprio da
justiça. Enquanto a lei decreta a possibilidade de que a acusação e a
Na raiz de tais posturas encontram-se concepções
punição expire após um certo período de tempo (com a importante
radicalmente diferentes do passado e de seu estatuto ontológico. Na
exceção dos crimes contra a humanidade), o historiador supostamente
modernidade ocidental, a relação entre história e justiça geralmente
deveria começar seu trabalho apenas após certo período de espera,
se encontra dominada pela ideia do passado como entidade ausente
em geral após o enterro dos mortos e a abertura dos arquivos.9
ou distante.6 Tal estatuto ontológico ambíguo ou até mesmo inferior
Rousso rejeita essa noção de um período de espera, mas parece não
do passado levou diversos filósofos, seguindo Nietzsche, a declarar-
perceber que tal antagonismo temporal entre história e justiça está
se contra uma “obsessão” com a história e a argumentar, por sua
enraizado de forma muito mais profunda do que pode parecer à
vez, por uma ética focada no presente.7 A ideia do passado enquanto
primeira vista. O conflito entre o “tempo da jurisdição” e o “tempo
ausente ou distante torna difícil fundamentar o “dever de memória”
da história” (me refiro aqui à história como disciplina ou como um
pp. 57-124. discurso mais amplo) pode ser interpretado como um antagonismo
4 Benjamin W., Theses on the Philosophy of History. In: Illuminations (Ed. and resultante de suas respectivas ênfases na presença ou na ausência,
intro. Hannah Arendt). New York, Harcourt Brace Janovitch, 1968, pp. 253-264. e com a reversibilidade ou a irreversibilidade dos eventos em jogo.
5 O termo “solidariedade anamnésica” foi postumamente atribuído à filosofia Tradicionalmente, o discurso jurídico assume a ideia de um tempo
de Benjamin por Christian Lenhardt: Lenhardt C., Anamnestic Solidarity. The reversível em que o crime é, por assim dizer, ainda totalmente presente
Proletariat and its Manes. In: Telos, 25 (1975), pp. 133-154.
e capaz de ser revertido, anulado ou compensado por sentenças ou
6 Não nego as diferenças importantes entre a conceituação do passado como
“ausente” e a conceituação do passado como “distante”. Contudo, no contexto do punições corretas. Tal noção de tempo refere-se a uma lógica quase
meu argumento, estas diferenças não são tão relevantes. Tanto o “passado ausente”
quanto o “passado distante” são, em primeiro lugar, definidos como “não presentes” 8 A ideia de que o passado enquanto história pode ser “exigente” (demanding)
e, consequentemente, seu estatuto ontológico é considerado inferior ou “derivativo” é discutida por Bennington G., Demanding History. In: Attridge D., Bennington
ao presente. G. & Young R. (eds), Post-Structuralism and the Question of History. Cambridge,
7 Ver, por exemplo: Jenkins K., Why Bother with the Past? Engaging with Some Cambridge University Press, 1987, pp. 15-29.
Issues Raised by the Possible ‘End of History as We Have Known It.’ In: Rethinking 9 Rousso H., The Haunting Past. History, Memory, and Justice in Contemporary
History, 1 (1997), 1, pp. 56-66. France. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2002, p. 30.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

econômica de culpa e punição, na qual a justiça, em última análise, é são quantificáveis, e não podem ser utilizados em sistemas de troca.12
entendida como retribuição ou indenização. A história, ao contrário, No entanto, o próprio tempo irreversível da história, por sua vez,
tradicionalmente trabalha com a concepção de que o que aconteceu não sobredimensiona também a ausência ou a distância do passado?
está agora irremediavelmente passado. Ela salienta a “flecha do Não ignora, ele também, as dimensões de persistência e de presenças
tempo”, pensa o tempo como fundamentalmente irreversível, e nos “assombrosas” do passado e de suas injustiças?13 A ênfase na ausência
obriga a reconhecer as dimensões da ausência e da inalterabilidade do e na irreversibilidade do passado confere ao tempo irreversível
passado. da história algo de desconfortável, por vezes de injusto e quase
moralmente inaceitável. É contra tal tempo irreversível, que “ameaça
O tempo irreversível da história desafia o tempo jurídico:
destruir toda a moralidade”, que o sobrevivente belga-austríaco de
a justiça reparatória nunca pode ser rápida o suficiente para reverter
Auschwitz, Jean Améry, rebela-se em seu notório ensaio Resentments
ou desfazer totalmente o dano produzido pois todo crime está sempre
(1966). Améry chocou seus contemporâneos argumentando contra
já parcialmente no passado e, portanto, apresenta sempre dimensões
o perdão e a reconciliação em favor do ressentimento e exigindo
de ausência ou distância. Isso torna impossível, dentro do conceito
uma “inversão moral” do tempo. Ele queixava-se que “[...] o mundo
histórico de tempo irreversível, alcançar completamente a justiça
inteiro compreende a indignação dos jovens alemães com os profetas
após um período decorrido de tempo. Aqueles que reivindicam uma
ressentidos do ódio, e se coloca firmemente ao lado daqueles a quem
direção moral para a história (em nome das vítimas da injustiça
pertence o futuro. O futuro é obviamente um conceito de valor. O que
histórica) mais cedo ou mais tarde terão de confrontar esse conceito
será amanhã vale mais do que o que foi ontem”. Améry encorajou o
de tempo. Max Horkheimer utilizou exatamente esse tempo histórico
ressentimento, mas percebeu que sua orientação temporal retroativa
irreversível como uma arma temível em sua crítica da filosofia
estava em conflito com alguma das ideias mais dominantes acerca da
escatológica e anamnésica de seu amigo Walter Benjamin. A ideia
natureza irreversível do tempo:
de uma justiça perfeita, de acordo com Horkheimer, é uma ilusão
recorrente que deriva de uma noção primitiva de troca.10 É impensável Absurdamente, demanda-se que o irreversível seja
que a justiça perfeita possa ser realizada no campo da história, pois revertido, que o evento seja desfeito. [...] o sentido
temporal da pessoa aprisionada no ressentimento é
mesmo uma sociedade perfeitamente justa nunca pode compensar a retorcido, desordenado, na medida em que deseja duas
miséria do passado. O passado histórico é nichtwiedergutzumachende: coisas impossíveis: a regressão ao passado e a anulação do
“as injustiças [passadas] estão feitas e acabadas. Os assassinados foram
realmente assassinados”.11 12 Caputo J. D., No Tears Shall Be Lost. In: Carr D., Flynn T. R. & Makkreel
R., The Ethics of History. Evanston, Northwestern University Press, 2004, pp. 91-117.
O tempo irreversível da história está certo em criticar essa 13 Ao longo deste trabalho usarei o termo “persistência” para referir-me à
“ideia primitiva de troca” que fundamenta o tempo reversível da “presença” ambígua do passado assombroso, porque este termo é geralmente
considerado como sendo metafisicamente neutro. Desta forma, posso evitar as
jurisdição. Tanto Emmanuel Levinas e, na sua esteira, Jacques Derrida, discussões metafísicas, que creio infrutíferas, sobre a distinção entre “resistência”
argumentam que o tempo do sofrimento e a injustiça histórica não [endurance] e “persistência” [perdurance], como dois conceitos diferentes de como as
coisas persistem através do tempo. Falando de maneira muito simples: os defensores
da tese da persistência afirmam que as coisas persistem em virtude de terem partes
temporais além das espaciais. Os defensores da tese da resistência, em contraste,
10 Horkheimer M., Thoughts on Religion. In: Critical Theory. Selected Essays. afirmam que os objetos estão totalmente presentes em todos os momentos em
New York, Herder and Herder, 1972, pp. 179-180. que eles existem e, como tal, se movem através do tempo. Ver: McKinnon N., The
11 De uma carta para Benjamin (1937). Citada em: Peukert H., Science, Action, Endurance/Perdurance Distinction. In: Australasian Journal of Philosophy, 80 (2002),
and Fundamental Theology. Cambridge (Mass.), MIT Press, 1984, pp. 206-207. 3, pp. 288-306.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

que já aconteceu.14 dimensões do mesmo processo temporal, referem-se a duas experiências


Ainda assim, como um cativo da “verdade moral”, Améry radicalmente diferentes do passado. O irreversível, o tendo-acontecido
exige um direito de resistência contra o que chama de tempo (avoir-eu-lieu) que deveria ser primariamente decifrado como um ter-
“biológico” anti-moral que cura todas as feridas: sido (avoir-été), refere-se a um passado transitório ou passageiro. O
irrevogável, um tendo-acontecido mais frequentemente associado
O que aconteceu, aconteceu. Essa frase é tão verdadeira com o ter-sido-feito (avoir-fait), pelo contrário, é mais inflexível e
como é hostil à moral e ao intelecto. [...] A pessoa moral
exige a anulação de tempo – no caso particular mediante duro. As pessoas experimentam o passado como irreversível se elas
a responsabilização do criminoso por seu feito. Assim, e o experienciam como frágil e imediatamente dissolúvel ou fugaz em
através de um recuo do relógio, esse último pode juntar-se relação ao presente. Experimentam o passado como irrevogável se o
à vítima como um ser humano companheiro.15 experienciam como um depósito persistente e massivo que se adere ao
presente. Ambas experiências de passado, no entanto, de acordo com
Jankélévitch, referem-se a uma impossibilidade inversa: a de revisitar
Além do presente e do ausente, do reversível e do um passado perdido ou de expelir um passado inoportuno; trazer um
irreversível: o irrevogável passado muito passado (un passé trop passé) ao presente ou banir um
Améry tem razão, é claro, quando admite o absurdo de passado muito presente (un passé trop present) daquele presente.17
tentar desfazer o que já está feito. No entanto, quero levar a sério A distinção analítica de Jankélévitch é de grande relevância
suas queixas sobre o caráter amoral, ou mesmo, imoral do tempo pois o conceito de irrevogável nos permite escapar das dicotomias
irreversível – levar a sério o suficiente tal queixa como uma das aparentemente convincentes que discutimos acima. É claro que a
primeiras motivações para este livro e para criticar e tentar repensar experiência temporal do irrevogável, bem como a do tempo irreversível
essa noção de tempo. No entanto, como podemos repensar o tempo da história, salienta a inalterabilidade do passado – o que poderia
irreversível da história com sua ênfase no distante ou no ausente, sem significar chamar algo de irrevogável senão, em primeiro lugar, que
divagar na reversibilidade mítica do tempo da jurisdição? Como, de ele jamais pode ser revogado – mas, ao contrário do tempo irreversível
fato, é possível conceber uma terceira via, resistindo rigorosamente da história, ele não condena o passado a um estatuto ontológico
aos dois polos de oposição dicotômicas do reversível e do irreversível, inferior que facilita sua negligência. Ao referir-se a um passado que
ou do presente presente e do passado ausente? ficou “preso” e persiste no presente, o conceito de irrevogável de
Um bom ponto de partida pode ser encontrado na obra do fato rompe com a ideia de “distância temporal” entre o presente e o
filósofo francês Vladimir Jankélévitch. Numa de suas obras-primas passado que é tão central para o tempo irreversível da história. Além
filosóficas sobre tempo e temporalidade, Jankélévitch introduz disso, o irrevogável desafia a dicotomia entre as categorias fixas do
uma distinção analítica entre o que ele chama de “irreversível” e absolutamente ausente e do absolutamente presente ao se referir à
“irrevogável”.16 Enquanto ambos, de acordo com Jankélévitch, são “presença” incompleta e aparentemente contraditória ao que de modo
geral se considera estar ausente, ou seja, o passado.
14 Améry J., At the Mind’s Limits. Contemplations by a Survivor on Auschwitz Essa “presença” – ou , melhor, uma proximidade não-espacial
and its Realities. Bloomington, Indiana University Press, 1980, p. 68. – do irrevogável nunca deve ser confundida com a noção metafísica
15 Améry J., At the Mind’s Limits. Contemplations by a Survivor on Auschwitz de presença, que funciona como antônimo de ausência, uma vez que
and its Realities. Bloomington, Indiana University Press, 1980, p. 72.
16 Jankélévitch V., L’irréversible et la nostalgie. Paris, Flammarion, 1974. 17 Ibid., p. 211-212.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

isso levaria à inconsistências lógicas. No entanto, negando a absoluta questões emaranhadas dos limites (ontológicos) de separação entre
ausência do passado ou rejeitando o conceito de distância temporal, passado e presente, entre os vivos e os mortos? Ou formulado de modo
ao dizer que o passado por vezes está irrevogavelmente preso no um pouco distinto, o relativamente recente desmoronamento do tabu
presente, não necessariamente nos compromete com inconsistências sobre a história contemporânea e a crescente popularidade da escrita
lógicas ou absurdas – como a ideia de uma “causalidade retrospectiva” sobre passados cada vez mais recentes nos obriga a começar a repensar
ou a negação da “dependência de trajetória” (path dependence).18 Em a presunção mais fundamental que por tanto tempo funcionou como
outras palavras: a perspectiva do irrevogável oferece uma grande base da historiografia acadêmica: a presunção de que existe algo como
oportunidade para criticar o tempo irreversível da história e para uma ruptura “natural” e “dada”, ou uma distância, entre passado e
examinar a viabilidade de uma cronosofia alternativa que poderia presente?19 Teria o passado, como Chris Lorenz belamente formulou,
desafiar a concepção de passado como matéria “morta”, ausente ou alguma “meia vida natural” como se tratasse de uma porção de urânio
distante, e uma oportunidade para permitir algum espaço intelectual empobrecido?20 Uma história genuinamente “contemporânea” pode
para levar a sério a ideia de passados “persistentes” ou assombrosos. se basear nas mesmas noções (implícitas) de tempo e temporalidade
que por tanto tempo fez com que muitos historiadores acadêmicos
Contudo, tendo dito isso, devemos levar o raciocínio para
acreditassem estarem trabalhando com um passado “morto” ou
suas conclusões: um “passado” persistente não se limita a desconstruir
“acabado?” Uma vez que estão tão relacionadas com a noção de
as noções de ausência e distância; em vez disso, embaraça a delimitação
irrevogável, tais questões irão nos acompanhar (embora muitas vezes
rigorosa entre passado e presente e, assim, questiona até mesmo a
permanecendo implícitas) ao longo de todo o livro.
existência de tais dimensões temporais como entidades separadas.
Infelizmente, Jankélévitch prematuramente abortou a
Portanto, espero que a reflexão sobre a noção do irrevogável
abertura promissora oferecida pela noção de irrevogável quase
nos provoque a repensar ou reconsiderar duas questões simples, mas
imediatamente após declarar a existência do irrevogável como
fundamentais: o que significa realmente para algo ou alguém estar
uma categoria da experiência. Jankélévitch se apressa a sublinhar o
no “passado”, e como coisas, pessoas ou eventos se tornam passado?
caráter meramente metafórico ou subjetivo da ideia de que o passado
Parece-me que raramente os historiadores (Michel de Certeau parece
irrevogável “sobrevive” no presente. Na realidade, Jankélévitch
ser uma exceção importante) levantaram explicitamente tais questões
afirma que todo tempo se move constantemente em uma direção,
sobre a “transição” peculiar entre presente e passado. Reconsideremos
e a persistência do passado no presente, portanto, pode ser apenas
então brevemente o comentário de Henry Rousso sobre o “período de
uma experiência distorcida do que, na realidade, é o processo do
espera” que foi e ainda é muitas vezes recomendado aos historiadores.
Não seria esse tabu de longa data sobre a escrita da história 19 A prática de escrever história contemporânea remonta, é claro, pelo menos
ao mundo helênico. No entanto, como escreve Charles Maier, durante os primeiros
“contemporânea” – mais que apenas resultado de um problema prático dias do surgimento da «história profissional», a escrita da história contemporânea era
relacionado aos arquivos fechados, ou de um medo de trabalhar com muitas vezes descartada como uma atividade impossível e não científica que devia ser
certa insuficiência de visão retrospectiva – a sinalização desse próprio deixada aos amadores. A ascensão da história contemporânea profissional como a
problema: um tabu acerca de toda prática que poderia evidenciar as conhecemos hoje começou nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Maier
C. S., Contemporary History. In: Smelser N. J. & Balthes P. B. (eds), International
18 Para uma discussão interessante sobre o conceito de trajetórias dependentes Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. Oxford, Pergamon Press, 2001, pp.
– “[...] que o que aconteceu em um ponto anterior no tempo afetará os possíveis 2690-2697.
resultados de uma sequência de eventos ocorrendo em um ponto posterior no tempo” 20 Lorenz Ch., Beyond Good and Evil? The German Impire of 1871 and Modern
– ver: Sewell W. H. Jr., Logics of History. Social Theory and Social Transformation. German Historiography. In: Journal of Contemporary History, 30 (1995), 4, pp. 729-
Chicago, University of Chicago Press, 2005, pp. 100-101. 765, 729.

24 25
História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

tornar irreversível. Ainda assim, apesar deste aborto prematuro, para a independência após o tratado anglo-americano de 1783.22 As
Jankélévitch nos apresentou um nome para a cronosofia alternativa origens da justiça de transição moderna, de acordo com Ruti Teitel,
que desejo examinar. Nos capítulos e partes subsequentes irei analisar poderia situar-se na sequência da Primeira Guerra Mundial, mas
e criticar a noção de tempo histórico irreversível (e seu uso), e tentarei ela argumenta que a justiça de transição apenas foi compreendida
defender a consistência, a viabilidade e a significância ética da noção como extraordinária e internacional no período pós-1945. Tal
de irrevogável. delimitação permite que Teitel esboce uma genealogia trifásica da
justiça de transição, na qual a primeira “fase pós-guerra” associada
com os julgamentos de Nuremberg é seguida por uma segunda
O dilema da justiça de transição, comissões da verdade e o “fase pós-Guerra Fria” associada com as transições democráticas do
direito à verdade histórica final dos anos 1980, que por sua vez, direcionando-se para o fim do
século vinte, é substituída por uma terceira “fase de curso estável” da
Que maneira melhor de estudar a tríade história-tempo-
justiça de transição “associada com as condições contemporâneas
ética do que observar contextos em que ela é colocada em “prática”?
de conflitos persistentes que assenta a fundação para uma lei
O debate sobre as dimensões temporais da ética que discutimos
normalizada da violência”.23
acima, referindo-nos às posições conflitantes de pensadores
como Nietzsche, Benjamin, Horkheimer e Améry tem em tempos Ao falar sobre justiça de transição, a maioria dos estudiosos
relativiamente recentes reaparecido no palco político internacional tem apenas a segunda e a terceira fase em mente, e o fenômeno
com força total e extrema urgência no emergente campo da justiça é abordado mais frequentemente (implicitamente) centrando-se
de transição. apenas nas transições para a democracia.24 No último quarto do
século vinte, como muitos comentadores notaram, algo como uma
A justiça de transição pode ser descrita através das
“grande onda de novas democracias” ou uma “onda impetuosa
palavras de Ruti Teitel como “a concepção de justiça associada com
de liberalização” ocorreram em países que emergiam de passados
períodos de transformação política, caracterizada por respostas
violentos e autoritários.25 A “onda” aparentemente começou no sul
legais no confronto com irregularidades dos regimes repressivos
da Europa com as transições na Grécia e na Espanha; logo dirigiu-
antecessores”.21 A necessidade de sociedades em transição de
se para a América Latina, onde países como Argentina, Bolívia,
enfrentar legados violentos de ditaduras ou de guerras civis não
Chile, Brasil e Uruguai, saiam de ditaduras militares; logo depois a
é, naturalmente, nova. Concentrando-se na justiça de transição
“onda” atingiu a Europa Oriental, onde Polônia, Alemanha Oriental
a partir de uma perspectiva histórica, Jon Elster alegou que a sua
e Hungria rompiam politicamente com seus regimes comunistas; e
existência pode ser recuada para pelo menos 411 e 403 AC, quando
atenienses tiveram que restaurar duas vezes a democracia, após ela 22 Elster J., Closing the Books. Transitional Justice in Historical Perspective.
Cambridge, Cambridge University Press, 2004.
ter sido derrubada por oligarcas. Elser também provê seu “universo”
23 Teitel, Transitional Justice Genealogy, p. 70.
de justiça transicional com casos dos séculos dezesste, dezoito e
24 Para uma crítica a essa suposição que equipara qualquer transição de ditadura
dezenove, incluindo a restauração monárquica na Inglaterra após como um movimento em direção à democracia, ver: Carothers T., The End of the
a Declaração de Breda (1660), a restauração monárquica na França Transition Paradigm. In: Journal of Democracy, 13 (2002), 1, pp. 5-21.
após a queda de Napoleão (duas vezes, em 1814 e 1815), e a transição 25 Expressões de: Méndez J. E., In Defense of Transitional Justice. In: McAdams
A. J., Transitional Justice and the Rule of Law in New Democracies. Notre Dame,
21 Teitel R. G., Transitional Justice Genealogy. In: Harvard Human Rights University of Notre Dame Press, 1997, pp. 1-26, 1; Teitel R. G., Transitional Justice.
Journal, 16 (2003), pp. 69-94, 69. Oxford, Oxford University Press, 2000, p. vii.

26 27
História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

mais recentemente esse fenômeno tomou uma dimensão quase global mas quando se tenta fazer isso em países em fase de transição, os
com a queda do Apartheid na África do Sul, com os processos de paz problemas se intensificam. Há uma necessidade de equilibrar dois
em outras partes da África, e as coisas começaram a se mover, também imperativos: em primeiro lugar, há a necessidade de retornar ao
nesse sentido, em países asiáticos como Camboja, Timor Leste, e Estado de direito e processar os perpetradores: por outro lado, há a
Coréia do Sul.26 necessidade de reconstruir sociedades e embarcar em processos de
reconciliação”.28
Se a justiça de transição merece ser nomeada como um
ramo específico da justiça, em comparação com outras formas Como estes dois imperativos parecem muitas vezes opostos,
mais “comuns” de justiça criminal e de justiça social, isso se dá, comentaristas tem falado sobre uma “escolha diabólica”29 ou um
em primeiro lugar, porque o contexto de transição política e social “dilema da justiça de transição”:30 reparar a injustiça histórica e,
cria um conjunto específico de restrições nos quais fazer o uso do assim, abrir o risco de contestação social, desestabilização e retrono
repertório “ortodoxo” dos mecanismos de justiça torna-se uma da violência; ou objetivar um presente e um futuro democrático e
tarefa muito difícil. Esse é especialmente o caso quando as transições pacífico em prejuízo das vítimas de um passado sombrio? O ativista
não seguem um claro corte entre um regime militar e uma sucessão de direitos humanos Juan Méndez refere-se ao dilema como “uma
democrática mas, ao contrário, resulta de uma revolução negociada das escolhas mais difíceis que qualquer democracia tem que fazer”,
ou de acordos baseados em antigas e novas forças. Em tais situações contrariamente acrescenta que o desejo de reconciliação e construção
com equilíbrios precários de poder, em que a velha elite mantém nacional levou muitas vezes a uma política do “esquecer e perdoar”.31
grande influência política ou econômica e em que as forças militares Da mesma forma outro comentador coloca a questão retoricamente
ou de segurança seguem ameaçando a paz e a estabilidade política, do seguinte modo: “O que, então, devemos escolher? A paz construída
torna-se difícil a organização de julgamentos ou a recorrência a uma sobre a supressão pública das memórias das vítimas, ou uma justiça
aplicação direta da lei criminal.27 Às vezes, juízes ou procuradores que corre o risco de trazer a guerra de volta à vida?”32
recebem ameaças de morte, frequentemente as testemunhas ainda
Previsivelmente, a maioria dos perpetradores de injustiças
estão muito amedrontadas de apresentarem-se ao tribunal. A falta
escolheria a primeira opção, que frequentemente advogam em nome
de estabilidade socioeconômica também pode tornar mais difícil, aos
países saindo de situações de maciças violações de direitos humanos, 28 Boraine A, Transitional Justice. In: Villa-Vicencio C. & Doxtader E. (eds),
suportar os enormes custos de julgamentos coletivos com uma Pieces of the Puzzle. Keywords on Reconciliation and Transitional Justice. Cape Town,
garantia virtual de inúmeros obstáculos jurídicos, incluindo a falta de Institute for Justice and Reconciliation, 2004, pp. 67-72, 72.
evidências suficientes se os perpetradores encontram a oportunidade 29 Expressões de: Huyse L., Young Democracies and the Choice Between Amnesty,
Truth Commissions and Prosecutions. Leuven, Instituut Recht en Samenleving, 1998,
de destruir documentos incriminatórios. Como afirma Alex Boraine: pp. 11-12.
“Há enormes dificuldades na busca por justiça em situações normais, 30 Ver, por exemplo: Zalaquett, Balancing Ethical Imperatives and Political
26 Para um trabalho central sobre justiça de transição, ver os três volumes de Constraints. Ver também: Kritz N. J., The Dilemmas of Transitional Justice. In: Kritz
Transitional Justice. How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes, edited N. J. (ed.), Transitional Justice. How Emerging Democracies Reckon with Former
by Neil J. Kritz for the United States Institute of Peace (Washington, 1995). Ver Regimes. Volume I: General Considerations. Washington, United States Institute of
também os websites do Instituto da Paz dos Estados Unidos (http://www.usip.org/) e Peace Press, 1995, pp. xix-xxx.
do Centro Internacional de Justiça Transicional (http://www.ictj.org/en/tj/). 31 Méndez, In Defense of Transitional Justice, p. 1.
27 Zalaquett J., Balancing Ethical Imperatives and Political Constraints. The 32 Biggar N., Making Peace or Doing Justice. Must We Choose? In: Biggar
Dilemma of New Democracies Confronting Past Human Rights Violations. In: N. (ed.), Burying the Past. Making Peace and Doing Justice after Civil Conflict.
Hastings Law Journal, 43 (1992), pp. 1425-1438. Washington D. C., Georgetown University Press, 2001, pp. 6-22, 10.

28 29
História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

do futuro e da reconciliação nacional. Augusto Pinochet, por exemplo, Ackerman. Dada a particular combinação de um elevado capital
tentou evitar a exposição pública do passado violento no qual ele era moral com uma baixa capacidade burocrática, que frequentemnete
responsável adotando o discurso voluntarista cínico que sublinhava a caracterizam jovens democracias, o capital moral, segundo Ackerman,
importância do progresso e da construção nacional. “Ambos os lados é melhor gasto na ordenação constitucional do que na justiça corretiva.
devem esquecer”, afirmou ele Se for liberada totalmente, a demanda por justiça, adverte Ackerman,
devemos continuar a trabalhar para o Chile, para nossa pode ameaçar o desenvolvimento de uma democracia liberal. Além
república; não devemos olhar para trás. Não vamos disso, acrescenta:
permitir que esse país se torne uma nação de terceira Não pode haver esperança de corrigir de forma abrangente
classe, mas uma de segunda ou de primeira, se possível. os erros cometidos por uma geração ou mais. Falando de
Mas para isso é necessário ser inteligente, ser capaz, e ter a modo mais cru, reformas burocraticamente viáveis podem
habilidade de esquecer.33 fazer mais justiça e revelam-se menos divisórias, do que
De modo similar, F. W. De Klerk na África do Sul pós-Apartheid uma busca quixotesca pela miragem da justiça corretiva.36
afirmou que: “A melhor maneira de reconciliar seria dizer: vamos O que fazer então com as “carcaças fétidas” que muitas
fechar o livro do passado, vamos esquecer realmente e começar a vezes ainda permanecem nos arquivos oficiais (por exemplo, nos
olhar para o futuro”.34 arquivos da Stasi da Alemanha Oriental), pergunta-se retoricamente
O esquecimento consciente e a subordinação da justiça Ackerman, e, fornecendo sua própria resposta ele afirma radicalmente:
retrospectiva a uma política orientada pelo presente e pelo futuro “Queimei-os, eu digo. Se os arquivos permanecem, os membros do
também tem sido defendida com mais sinceridade em nome da novo governo serão tentados a usá-los para chantagear a oposição”.37
democracia e da emancipação por pessoas com trajetórias menos Se uma base constitucional forte é construída, os terrores do passado,
questionáveis. A filósofa política americana, Jean Bethke Elshtain, na sua visão, irão se tornar nada mais que “uma memória sombria,
por exemplo, defende o recurso a um “esquecimento voluntário” porém distante”.38
em situações nas quais nações ou grupos são mantidos reféns de Até muito recentemente, uma combinação de amnésia
um passado oneroso e se encontram em grande necessidade de um e anistia de fato prevaleceu historicamente como o antídoto mais
“teatro do perdão”. “As pessoas”, ela escreve, “gostam muito de comumente utilizado contra um passado doloroso provocado por
citar a afirmação de Santayana que aqueles que não conhecem a sua um conflito interno violento. É importante ressaltar que não obstante
história estão condenados a repeti-la”, mas talvez o inverso seja mais a exceção bem conhecida dos julgamentos de Nuremberg, onde um
provável, ou seja, que aqueles que conhecem sua história também poder externo processou os atores, bem como o caso excepcional
estão condenados à repetição.35 Posição similar é defendida por Bruce da Grécia, onde os coronéis foram rapidamente processados depois
33 Citado em: De Greiff P., ‘The Duty to Remember. The dead weight of the past,
or the weight of the dead of the past?’ (artigo apresentado no ILAS em 7 de Fevereiro recordar, o poder do Estado depende da sua capacidade de consumir o tempo, isto é,
de 2002) abolir e anestesiar o passado”. Mbembe A., The Power of the Archive and its Limits.
In: Hamilton C. et al. (eds), Refiguring the Archive. Dordrecht, Kluwer Academic
34 Citado em: Braude C., The Archbishop, the Private Detective and the Angel Publishers, 2002, pp. 19-26, 23.
of History. The Production of Public Memory and the Truth and Reconciliation
Commission. In: Current Writing, 8 (1996), 2, pp. 39-65, 57. 36 Ackerman B., The Future of the Liberal Revolution. New Haven, Yale
University Press, 1992, pp. 72-73.
35 Elshtain J. B., Politics and Forgiveness. In: Biggar, Burying the Past, pp. 40-56,
43. O teórico político Achille Mbembe afirma que a construção de Estados repousa, 37 Ibid., p. 81.
em primeiro lugar, sobre um ato de “cronofagia”. “Mais do que em sua capacidade de 38 Ibid., p. 98.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

de uma derrota militar, a justiça retrospectiva é muito rara quando “virada cultural” na teoria política tornou obrigatório que, mesmo
as injustiças são cometidas por atores estatais.39 Como Carlos em situações em que as restrições políticas excluam a viabilidade da
Santiago Nino, um dos principais arquitetos da justiça de transição na justiça retributiva, o passado não deve ser deixado pra trás e o fardo da
Argentina, comenta ao escrever em 1996: história deve ser enfrentado.44 A necessidade de administrar o legado
Ao pesquisar a história do direito penal quando aplicado de passados violentos revelou-se uma questão política de maior
a violações maciças de direitos humanos, encontramos importância: como nota um comentador, “parece haver um consenso
anistias amplas e perdões, silêncio generalizado e fracasso crescente de que, em situações de transição, o passado exige algo de
em processar quem quer que seja.40 nós”.45
Da mesma forma, outro comentarista observa que Em uma tentativa de encontrar uma solução pragmática
as guerras, anistias e o esquecimento muitas vezes aparecem para o dilema da justiça de transição que parecesse menos provocativa
juntos: “Se um conflito violento causa uma arritimia cardíaca à que processos penais para os perpetradores, embora sem ignorar
coexistência humana, as anistias aparecem para aliviar esse fardo”.41 completamente o sofrimento das vítimas, especialistas jurídicos
Historicamente, Timothy Garton Ash afirma, os “advogados do desenvolveram a forma da “comissão da verdade”: corpos semi-
esquecimento” apareceram em grande número e foram de influência judiciais que, em contraste com tribunais de guerra ou penais, não
considerável.42 Do Tratado de Lothar em 851 ao Tratado de Laussane, podem sentenciar ou punir, mas oferecer um testemunho verdadeiro
em 1923, muitos tratados de paz na história europeia incluíram atos sancionado oficialmente como alternativa.
que ordenaram o esquecimento. Mesmo desde 1945, escreve Garton
Ash, muito da democracia da Europa Ocidental do pós-guerra foi Apesar de terem sido nomeadas de formas muito diferentes,
construída sobre a base do esquecimento. Tão tarde quanto 1975, ele várias dezenas dessas comissões da verdade têm funcionado
observa, a Espanha fez a sua transição para a democracia com uma globalmente durantes as últimas três décadas.46 Exceto por uma
política consciente de esquecimento. comissão disfuncional de inquérito sobre o destino das pessoas
desaparecidas estabelecida por Idi Amin Dada em Uganda em 1974,
Desde o início de 1980, porém, as coisas foram mudando. as primeiras experiências reais com a fórmula da comissão da verdade
Embora muitas vezes a necessidade de anistia permaneça, ela se aconteceram na América Latina durante o início da década de 1980.
tornou mais sutil ou condicional, e a linguagem do esquecimento Após o estabelecimento em 1982 de uma comissão boliviana, que
desapareceu quase que inteiramente do vocabulário político.43 Uma se desfez sem submeter seu relatório final, um importante trabalho
39 Huyse L., Introduction. Tradition-based Approaches in Peacemaking, pioneiro foi feito na Argentina em 1984 pela Comisión Nacional
Transitional Justice and Reconciliation Policies. In: Huyse L. & Salter M. (eds), sobre la Desaparición de Personas (CONADEP). Um ano depois,
Traditional Justice and Reconciliation after Violent Conflict. Learning from African
Experiences. Stockholm, International IDEA, 2008, pp. 1-24, 2.
44 Forsberg T., The Philosophy and Practice of Dealing with the Past. Some
40 Nino C. S., Radical Evil on Trial. New Haven, Yale University Press, 1996, p. Conceptual and Normative Issues. In: Biggar, Burying the Past, pp. 65-84, 58.
viii.
45 Méndez, In Defense of Transitional Justice, p. 4.
41 Veitch S., The Legal Politics of Amnesty. In: Christodoulidis E. & Veitch S.
(eds), Lethe’s Law. Justice, Law and Ethics in Reconciliation. Oregon, Hart Publishing, 46 Vinte e uma dessas comissões são analisadas por Priscilla Hayner em seu
2001, pp. 32-45, 33. trabalho de referência Unspeakable Truths. Confronting State Terror and Atrocity.
New York, Routledge, 2001; uma análise mais curta de 15 comissões da verdade
42 Garton Ash T., The Truth about Dictatorship. In: The New York Review of encontra-se em: Hayner P. B., Fifteen Truth Commissions 1974-1994. A Comparative
Books, 45 (1998), 3, pp. 35-40. Study. In: Human Rights Quarterly, 16 (1994) 4, pp. 597-655. A análise seguinte é em
43 Veitch, The Legal Politics of Amnesty, pp. 33-45. grande parte baseada nesses dois trabalhos de Hayner.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

uma comissão semelhante sobre desaparecidos foi criada no Uruguai, seria buscada em um segundo momento, as comissões da verdade
e daí em diante as comissões da verdade foram sendo estabelecidas após a experiência sul-africana geralmente não apenas argumentam
em países de todo o mundo, incluindo o Zimbabwe, Uganda (pela que não são simplesmente “melhores segundas alternativas” mas, ao
segunda vez), Nepal, Chile, Chade, Alemanha, El Salvador, Sri Lanka, contrário, insistem que elas podem realizar coisas que não poderiam
Haiti, Burundi, África do Sul, Equador, Guatemala, Nigéria, Serra ser providas pelos tribunais tradicionais.50 Acredita-se que revelar
Leoa, Paraguai, Peru, Timor Leste, República Democrática do Congo, a verdade sobre o passado é altamente instrumental no objetivo
Libéria e Quênia. de alcançar a paz social e restaurar a confiança cívica em nações
feridas, pois, de acordo com um de seus principais defensores, “uma
De todos estes casos, a comissão com o mais amplo mandato
sociedade não pode reconciliar-se sobre a base de uma memória
e a maior influência internacional foi a Comissão de Verdade e
dividida”.51 “A verdade, além disso, tem sido considerada cada vez
Reconciliação (TRC), criada na África do Sul em 1995. Foi a primeira
mais um valor absoluto e irrenunciável”,52 e, como observado por Luc
comissão da verdade a realizar audiência públicas e funcionar de modo
Huyse, comissões da verdade recentes estão baseadas na ideia de que a
altamente transparente. Ao atrair uma enorme quantidade de meios
lembrança da verdade traz consigo uma forma suprema ou definitiva
de comunicação nacionais e internacionais e a atenção dos estudiosos,
de justiça.53 Ao invés de ser uma troca que sacrifica a busca da justiça em
a TRC sul-africana veio a funcionar como um modelo para todas as
prol da estabilidade política, como alguns estudiosos argumentam,54
comissões da verdade que vieram em seguida, promovendo a fórmula
defensores das comissões da verdade afirmam que conceitos legais
da comissão da verdade com uma “base obrigatória do cardápio da
inovadores como “verdade como reconhecimento (acknowledgment)”
justiça de transição”.47 Como notou um estudioso, desde o advento
e “justiça como reconhecimento (recognition)”, diminuem as tensões
da TRC sul-africana é difícil encontrar alguma política ou transição
entre verdade e justiça e proporcionam legitimação moral para essas
pós-conflito onde a ideia de estabelecer uma comissão da verdade não
comissões.55 Em parte sob o impulso das comissões da verdade, a ideia
tenha sido contemplada.48
50 Roht-Arriaza, The new landscape of transitional justice, pp. 3-4. Ver também:
A TRC sul-africana também foi uma das primeiras comissões Popkin M. & Roht-Arriaza N., Truth as Justice. Investigatory Commissions in Latin
a afirmar conscientemente que a revelação da verdade histórica America. In: Law and Social Inquiry, 20 (1995), pp. 79-116.
poderia ser considerada uma forma alternativa adequada de justiça.49 51 José Zalaquett in Boraine A., Levy J. & Scheffer R., Dealing with the Past. Truth
O que começou como um compromisso político em uma tentativa and Reconciliation in South Africa. Cape Town, IDASA, 1997, p. 13.
de escapar da escolha entre Cila e Caríbdis dos dilemas da justiça de 52 Expressão de: Zalaquett J., Introduction to the English edition. In: Report of the
Chilean National Commission on Truth and Reconciliation. Notre Dame, University
transição se tornou eventualmente uma importante inovação legal. of Notre Dame Press, 1993.
Apesar do fato de que a ênfase na “verdade” nas primeiras comissões 53 Huyse L., Alles gaat voorbij, behalve het verleden. Leuven, Van Halewyck,
era, prioritariamnete, um movimento pragmático na qual uma lógica 2006, p. 53.
54 Para esse tipo de crítica, ver, por exemplo: Gutmann A. & Thompson D., The
47 Roht-Arriaza N., The new landscape of transitional justice. In: Roht-Arriaza Moral Foundations of Truth Commissions. In: Rotberg R. I. & Thompson D. (eds),
N. & Mariezcurrena J., Transitional Justice in the Twenty-First Century. Beyond Truth Truth v. Justice. The Morality of Truth Commissions. Princeton, Princeton University
versus Justice. Cambridge, Cambridge University Press, 2006, pp. 1-16, 5. Press, 2000, pp. 22-44.
48 Freeman M., Truth Commissions and Procedural Fairness. Cambridge, 55 Para uma defesa moral das comissões da verdade, ver: Du Toit A., The Moral
Cambridge University Press, 2006, p. 11. Foundations of the South African TRC. Truth as Acknowledgement and Justice as
49 Esta ideia já havia sido parcialmente desenvolvida “Comisión Nacional para Recognition. In: Rotberg & Thompson, Truth v. Justice, pp. 122-140. Para uma análise
la Verdad y Reconciliación”, que esteve ativa no Chile entre 1990 e 1991. Zalaquett, das argumentações usadas na defesa das comissões de verdade, ver: Dyzenhaus D.,
Balancing Ethical Imperatives and Political Constraints, p. 1427. Justifying the Truth and Reconciliation commission. In: The Journal of Political

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

de um “direito à verdade” inalienável tem emergido cada vez mais como aulas de história que poderiam ensinar aos cidadãos valores
como parte estabelecida da lei internacional.56 Nas palavras do relator democráticos ou competências cívicas,58 e alguns historiadores
especial da ONU, Louis Joinet: começaram a mobilizar sua disciplina em apoio à gestão de conflitos e
Não se trata simplesmente do direito individual de uma de reconciliação.59 Ruti Teitel fala a respeito da emergência da “justiça
vítima ou de seus mais próximos e queridos de saber o de transição histórica” como uma prática autônoma que pode ser
que aconteceu, um direito à verdade. O direito de saber é colocada ao lado da justiça criminal, da justiça reparadora, da justiça
também um direito coletivo, valendo-se da história para administrativa e da justiça constitucional.60
evitar que violações se repitam no futuro. Seu corolário
é um “dever de memória” por parte do Estado: estar No entanto, a fim de compreender a relação concreta entre
preparado contra as perversões da história que aparecem história e ética ou justiça, é preciso se perguntar o que faz (ou o que se
sob os nomes de revisionismo ou negacionismo, na qual a espera que faça) a história ou o discurso histórico no campo da justiça
história de sua opressão aparece como parte do patrimônio
de transição.
nacional de um povo e como tal deve ser preservada.57
Por que, exatamente, tantos países em transição recentemente
voltaram-se à verdade histórica a fim de alcançar a unidade nacional
Justiça de transição, a crise da consciência do tempo e a reconciliação, ironicamente atribuindo propriedades benevolentes
moderna, e o projeto da simultaneidade a ela que tanto se parecem com aquelas associadas ao esquecimento
coletivo? Por que, de fato, a “opção da não-ação” antigamente
Não é necessário dizer que o recente surgimento de
dominante,61 perdeu quase que completamente seu crédito como
comissões da verdade e o desenvolvimento do conceito legal de
forma viável de lidar com passados onerosos, e por que quase ninguém
“direito à verdade” são de grande relevância para os historiadores.
acredita na opção do esquecimento?
Com a crescente popularidade da fórmula da comissão da verdade
como uma espécie de híbrido situado no cruzamento entre a história A fim de responder a tais perguntas, proponho analisar a
e a justiça, o discurso histórico move-se ao centro do palco na gestão
ético-política do passado coletivo. De fato, em todo o campo da justiça 58 Ver, por exemplo: Osiel M., Mass Atrocity Collective Memory and the Law.
de transição, as fronteiras antigamente bem guardadas que separavam London, Transaction Publishers, 2000.
história e justiça se tornam vagas e permeáveis. Juristas tem começado 59 Ver, por exemplo: Barkan E., History on the Line. Engaging History. Managing
Conflict and Reconciliation. In: History Workshop Journal, (2005), 59, pp. 229-236.
a ponderar a possibilidade e conveniência dos tribunais de guerra
60 Teitel, Transitional justice. Ver também: Teitel R. G., Transitional Historical
Justice. In: Meyer L. H. (ed.), Justice in Time. Responding to Historical Injustice.
Philosophy, 8 (2000), 4, pp. 470-496 Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 2004, pp. 209-222.
56 Para uma discussão detalhada, ver: De Baets A., Responsible History. New 61 Roht-Arriaza, The new landscape of transitional justice, p. 8. Deve-se notar
York, Berghahn Books, 2009, pp. 157-163. Ver também: Méndez J. E., The Right to que o recente consenso sobre os benefícios da verdade e da lembrança nunca foi
Truth. In: Joyner C. C. (ed.), Reining in Impunity for International Crimes and Serious completado. Em 1990, durante a democratização da Polônia, o primeiro-ministro,
Violations of Fundamental Human Rights. Proceedings of the Siracusa Conference 17- Tadeusz Mazowiecki, defendeu uma amnésia política, quando afirmou que “nós
21 September 1998. Ramonville St-Agne, Editions Eres, 1998. traçamos uma grossa linha entre nós mesmos e o passado.” Citado em: Amstutz M.
57 ‘Question of the impunity of perpetrators of human rights violations (civil R., The Healing of Nations. The Promise and Limits of Political Forgiveness. Lanham,
and political)’. (Relatório final preparado por Mr. Louis Joinet por conseguinte Rowman & Littlefield Publishers, 2005, p. 19. No rescaldo da sangrenta guerra civil
à decisão 1996/19 da Sub-Comissão) [26 de Junho de 1997]. Em: http://www. em Moçambique de 1976 a 1992, também o governo exortou as vítimas a perdoar e
unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/%28Symbol%29/E.CN.4.Sub.2.1997.20. esquecer. Graybill L., Pardon, Punishment, and Amnesia. Three African Post-Conflict
En?Opendocument (acessado em 22 de julho de 2007). Methods. In: Third World Quarterly, 25 (2004), 6, pp. 1117-1130.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

função da história, ou de um particular discurso histórico no campo profundamente alterada com o passado. Neste contexto, a opção de
da justiça de transição a partir da perspectiva de uma política do uma amnésia coletiva perdeu crédito não só porque é considerada
tempo – “uma política que leva as estruturas temporais da vida social injusta, mas também porque não é mais considerada uma ferramenta
prática como objetos específicos de sua intenção transformadora (ou adequada para fazer o passado descansar. O mero esquecimento, ao
preservadora)”.62 Argumento que o giro das comissões da verdade que parece, não é mais suficiente.
para a história e a recente preocupação internacional em reparar e se
A mudança política substancial relativa a crimes do passado
desculpar pelas injustiças históricas – que observadores têm descrito
durante as últimas décadas poderia ser descrita como relacionada a
como o surgimento de uma “moralidade neo-iluminista”,63 uma “febre
uma perda de confiança no funcionamento do tempo ou como um
de expiação fin de millénaire”,64 ou uma “política do arrependimento”
“decadência temporal”, um pacificador automático que traz à tona
global65 – deve ser visto primeiramente como uma reação a uma
novas formas de “símile-perdão” a longo prazo.67 Durante os tempos
mudança de regime de historicidade, para usar o conceito cunhado
áureos da modernidade, o tempo no Ocidente foi experimentado
pelo historiador francês François Hartog.66
geralmente como algo que estava tanto progredindo como se apagando.
Enquanto se permanecer preso na dicotomia modernista de Essa noção foi notadamente expressada por Vladimir Jankélévitch
um passado “vivo” e um passado inferior ontologicamente, ausente quando afirmou que “a inovação atualiza a novidade ao drenar a
ou distante, a única maneira razoável para escapar do dilema da superabundância de memórias, ao favorecer a deflação da memória”.68
justiça de transição – dada a dificuldade de cair de volta no repertório No contexto dessa consciência do tempo, a opção da amnésia – como
legal tradicional da justiça criminal e dado o medo de uma lembrança produto de um esquecimento passivo, da anistia ou de uma rigorosa
divisionista – parece estar em uma combinação de anistia e amnésia. destruição dos registros – poderia ser defendida como uma forma de
A ênfase no tempo histórico irreversível promove indiretamente uma naturalismo, apenas confirmando o que o tempo faria por si só de
atitude de deixar o passado para trás sempre que as vítimas ou seus qualquer maneira. Enquanto um transbordamento das recordações
parentes não possam alcançar a justiça imediatamente após os crimes poderia desacelerar ligeiramente o ímpeto do progresso, a maioria
serem cometidos. No entanto, vou reivindicar que uma aparente estava convencida que a direção do tempo não poderia ser revertida
“falha” da consciência moderna do tempo resultou em uma relação e que ninguém poderia mover o tempo contra a corrente. A pessoa
melancólica ou rancorosa, portanto, foi muitas vezes considerada não
62 Definição de Peter Osborne, in: Osborne P., The Politics of Time. Modernity mais do que um “retardatário, arriscando ser varrido por sua própria
and Avant-Garde, New York, Verso, 1995, p. xii. época”, um anacronismo vivo que não teria chances de sobreviver
63 Barkan E., Restitution and Amending Historical Injustices in International se se recusasse a ser contemporâneo de seus contemporâneos, que
Morality. In: Torpey J. (ed.), Politics and the Past. On Repairing Historical Injustices.
Lanham, Rowman & Littlefield Publishers, 2003, pp. 91-102, 100. Ver também:
se concentram no futuro.69 A partir desta perspectiva, a injustiça
Barkan E., The Guilt of Nations. Restituting and Negotiating Historical Injustices. histórica e suas vítimas dificilmente representavam um problema
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2000, pp. 329-332. político a longo prazo. Escrevendo em 1967, Jankélévitch poderia, por
64 Soyinka W., The Burden of Memory, the Muse of Forgiveness. Oxford, Oxford exemplo, ainda expressar com confiança a ideia de que:
University Press, 1999, p. 90.
65 Olick J. K. & Coughlin B., The Politics of Regret. Analytical Frames. In: Torpey
J. (ed.), Politics and the Past. On Repairing Historical Injustices. Lanham, Rowman & 67 Essas expressões são utilizadas por: Jankélévitch V., Forgiveness, Chicago,
Littlefield Publishers, 2003, pp. 37-62. University of Chicago Press, 2005.
66 Hartog F., Régimes D’historicité. Présentisme et Expériences du Temps, Paris, 68 Ibid., p. 14
Seuil, 2003. 69 Ibid., p. 18.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Cedo ou tarde, a pessoa rancorosa vai ceder à onipotência que lugares como a antiga Iugoslávia, Ruanda e África do Sul “não
do tempo e ao peso dos anos acumulados, pois o tempo vivem em uma ordem serial do tempo, mas em um tempo simultâneo,
é quase tão onipotente como a morte, e o tempo é mais no qual passado e presente são contíguos, massas aglutinadas de
tenaz do que a mais tenaz das vontades, pois é irresistível!
[…] Nenhum ressentimento, não importa o quão fantasias, distorções, mitos e mentiras”.73
obstinado ele seja, pode conter essa massa de indiferença No período entre as observações de Jankélévitch e as de
e desinteresse. Tudo aconselha esquecer! […] A longo
Ignatieff, algo realmente mudou no regime de historicidade que regula
prazo o esquecimento oceânico vai submergir todo rancor
debaixo de seu cinza nivelador, assim como as areias do a articulação moderna entre passado, presente e futuro. Ignatieff
deserto acabam por enterrar cidades mortas e civilizações expressa uma ideia que, em uma forma menos explícita, se tornou
defuntas, e assim como a acumulação de séculos e milênios difundida: a de que o passado, em situações de pós-conflito, fica de
vai, ao final, envolver os crimes imperdoáveis e glórias alguma forma preso no presente e se recusa a passar. Passado e presente
imortais na imensidão do nada.70 já não parecem se separar em suas próprias forças. “Aproximadamente
A figura do anacronismo vivo ainda é um metáfora popular desde o fim da Guerra Fria”, John Torpey comenta, “a distância que
para descrever o ressentimento de vítimas ou perpetradores, mas o normalmente nos separa do passado foi fortemente desafiada em favor de
legado de passados atrozes tornou-se um grande problema político uma insistência de que o passado está constante e urgentemente presente
internacional. Muitas vezes somos confrontados com narrativas de como parte de nossa experiência cotidiana.”74 A disseminação de um
antigas injustiças que reclamam reparações ou alimentam conflitos idioma que refere à natureza fantasmagórica ou espectral do passado
contemporâneos até o ponto em que ninguém mais segue confiante – falar de “passados que assombram”75 “espectros da história”,76 ou
de que o fardo da história vai desaparecer por si só. A relativamente de “fantasmas na mesa da democracia”77 apenas para dar alguns
recente perda de confiança no tempo como uma força que cura todas exemplos – parecem sublinhar o sentimento generalizado de uma
as feridas se torna clara quando nos contrastamos as anteriores citações desconfortável “presença”. Os defensores de políticas de reparação
de Jankélévitch com o comentário mais recente de Michael Ignatieff também enfatizam muitas vezes a persistência obstinada das injustiças
sobre a natureza subversiva dos passados atrozes.71 O problema com o passadas. O prêmio Nobel nigeriano Wole Soyinka, por exemplo,
passado e a razão pela qual ele continua a atormentar, de acordo com corrobora suas conhecidas reivindicações de reparação para o tráfico
Ignatieff, é precisamente o fato de que ele não é passado: “Os crimes transatlântico de escravos através de uma leitura do passado africano
nunca podem ser fixados com segurança no passado histórico: eles como uma “continuidade diabólica” em que as antigas feitorias
permanecem presos no eterno presente clamando por vingança”.72 escravocratas parecem nunca desaparecer.78 Ignatieff chama assim
Ignatieff ilustra sua hipótese descrevendo o modo como jornalistas que
atuavam nas guerras dos Balcãs eram muitas vezes confrontados com 73 Ignatieff M., Articles of Faith, p. 121.
histórias de atrocidades que relacionavam o conflito contemporâneo 74 Torpey J., Making Whole What Has Been Smashed. On Reparations Politics.
Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 2006, p. 19.
com eventos pertencentes a 1941, 1841, ou até mesmo 1441. Ele conclui
75 Rousso, The Haunting Past.
70 Jankélévitch V., Forgiveness, pp. 16–17. Jankélévitch também tem algumas 76 Fritzsche P., Specters of History. On Nostalgia, Exile, and Modernity. In: The
dúvidas sobre a capacidade do tempo para curar todas as feridas: o tempo em si, ele American Historical Review, 106 (2001), 5, pp. 1587-1618.
escreve, não é uma garantia permanente contra velhos ressentimentos, e o passado 77 Christie K. & Cribb R. (eds), Historical Injustice and Democratic Transition
nem sempre desaparece sem protesto. in Eastern Asia and Northern Europe. Ghosts at the Table of Democracy. London,
71 Ignatieff M., Articles of Faith. In: Index on Censorship, 5 (1996), pp. 110-122. Routledge, 2002.
72 Ibid., p. 121. 78 Soyinka, The burden of memory, p. 20.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

nossa atenção para o fato de que o passado doloroso nos assombra de entre “história” e “memória” não foi observada apenas no contexto
uma maneira que influencia ou mesmo ameaça a atual consciência de memórias traumáticas. Um dos primeiros a elaborar sobre essa
moderna do tempo. ruptura foi Maurice Halbwachs, que contrastou o empreendimento
histórico com o que ele chamou de memória coletiva.84 Yosef Hayim
Para entender como essa mudança se deu podemos tomar
Yerushalmi, no início dos anos 80, elaborou mais profundamente as
emprestados as noções de “irreversível” e “irrevogável” do próprio
diferenças entre historiografia e memória (coletiva) ao afirmar que
Jankélévitch. Embora tanto o irreversível quanto o irrevogável sejam,
a memória, em contraste com a história, não busca a historicidade
sem dúvida, categorias experienciais que estão presentes em todas as
do passado, mas sua “eterna contemporaneidade”.85 Uma postura
formas de consciência histórica, sua relação mutável pode nos ajudar
semelhante pode ser encontrada no trabalho de Pierre Nora, que
a distinguir entre diferentes regimes de historicidade. O declínio da
afirma que memória e história são fundamentalmente opostas uma
noção de progresso e o advento de uma “consciência de uma catástrofe
à outra: “Com o aparecimento do rastro, da mediação, da distância,
produzida pelo homem”79 tende a criar uma consciência histórica
não estamos no reino da verdadeira memória, mas no da história [...]
relativamente nova.80 A “memória da ofensa”, para tomar emprestado
A memória é um fenômeno perpetuamente real, um vínculo que nos
um termo de Primo Levi, tem aumentado continuamente desde o
liga ao presente eterno; a história é uma representação do passado.”86
Holocausto e agora desafia profundamente a moderna consciência do
tempo.81 A crescente influência de grupos de vítimas organizados e O que está em jogo com a persistência ou com a “presença
com grande visibilidade, e dos “empreendedores da memória”, tem sem agência”87 do passado irrevogável é a clara divisão entre passado e
contestado o passado evaporável irreversível e dado lugar a uma presente que se encontra na raiz da consciência moderna do tempo e
experiência que acentua de forma predominante o irrevogável. da historiografia moderna, como demonstraram Reinhart Koselleck e
Michel de Certeau.88 O tempo em contextos pós-conflito muitas vezes
Vários estudiosos argumentam que a “memória”
não é mais conceitualizado como “um meio necessário de mudança”;
manifesta uma estrutura temporal que difere radicalmente daquela
da historiografia acadêmica. Discutindo a memória judaica pós- University Press, 1995. O historiador americano Peter Novick também se referiu às
holocausto, Gabrielle Spiegel, por exemplo, afirma que esse tipo de características anti-cronológicas da memória para explicar a “cronologia incomum”
memória tende a entrar em conflito com a historiografia moderna, da consciência do holocausto nos Estados Unidos. Novick P., The Holocaust in
American life. New York, Mariner Books, 2000, p. 4.
porque ela reencarna, ressuscita e recicla, e se nega a manter o
84 Halbwachs M., On Collective Memory. Chicago, University of Chicago Press,
passado no passado.82 De forma similar, Lawrence Langer afirma que 1992.
a memória da atrocidade tende a desenvolver um “tempo duracional” 85 Yerushalmi Y. H., Zakhor. Jewish History and Jewish Memory. Seattle,
que perturba a cronologia.83 A oposição na orientação temporal University of Washington Press, 2002, p. 96.
79 Torpey, Making Whole What Has Been Smashed, p. 32. 86 Nora P., Between Memory and History. Les Lieux de Mémoire. In:
Representations, 26 (1989), pp. 7-24, 8. A tendência da memória em desafiar o
80 Segundo Andreas Huyssen, por exemplo, a “obsessão atual pela memória” raciocínio cronológico é descrita com mais ousadia por Richard Terdiman: ele afirma
está diretamente relacionada à crise da estrutura da temporalidade que sustenta a que “a memória é o passado presente”. Terdiman R., Present Past. Modernity and the
crença no progresso e na utopia. Huyssen A., Twilight Memories. Marking Time in a Memory Crisis. Ithaca, Cornell University Press, 1993, p. 8.
Culture of Amnesia. New York, Routledge, 1995, p. 9.
87 Jelin E., State Repression and the Labors of Memory. Minneapolis, University
81 Levi P., The Drowned and the Saved. New York, Vintage Books, 1989. of Minnesota Press, 2003, p. 5.
82 Spiegel G., Memory and History. Liturgical time and historical time. In: 88 Ver: Koselleck R., Futures Past. On the Semantics of Historical Time. New
History and Theory, 41(2002), 2, pp. 149-162. York, Columbia University Press, 2004. Ver também: De Certeau M., The Writing of
83 Langer L. L., Admitting the Holocaust. Collected Essays. New York, Oxford History. New York, Columbia University Press, 1988.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

sua passagem já não parece produzir uma distância entre passado e interpreto tal mudança da experiência do passado como patologia,
presente.89 Para a modernidade que, como defende Jürgen Habermas, fantasmagorismo ou distorção de um tempo histórico “real” pela
define a si mesma por sua orientação para o novo e necessita de ação de uma memória “militante”. Em vez disso, posiciono memória
rupturas continuamente renovadas com o passado para distinguir a e história no contexto de um tempo modernista que não é um dado
si mesma como o período mais recente de cada época anterior, isso é natural, mas um artefato político e cultural; um artefato que, como
bastante ameaçador.90 Como Hans Blumenberg ressalta, a pretensão Habermas observa, está em constante necessidade de autoafirmação.94
da modernidade de ser capaz de realizar essa ruptura está longe de
Essa perspectiva nos permite captar uma dimensão da
ser auto-evidente, pois entra em conflito com a realidade da história,
história que excede suas funções tradicionais de representar o passado,
onde raramente pode-se começar a partir de um ponto zero.91
de buscar a verdade e de gerar sentido. Em relação a uma modernidade
Argumento que é precisamente neste contexto ambíguo de ameaçada pelo irrevogável, a história é útil para uma propriedade
uma frágil modernidade e de uma crença vacilante na possibilidade que, como assinala Mark Phillips, muitas vezes é negligenciada: a
de uma demarcação rigorosa de passado e presente que precisamos regulação da “distância” (temporal).95 Nossa relação com o passado
situar esta peculiar virada para a história nas comissões da verdade. se baseia em produzir e manipular distância, por mais reduzida ou
Essa virada à história, afirmo, deve invocar primeiramente a noção de estendida que for. Essa distância entre passado e presente, observa
irreversibilidade e restaurar ou reforçar a crença caracteristicamente Philips, não é simplesmente dada, mas ativamente construída em uma
moderna em uma ruptura entre passado e presente que se vê ampla gama de “construções de distância” que envolvem implicações
ameaçada por uma memória que se recusa a deixar o passado passar. ideológicas e afetivas, suposições cognitivas e traços formais. Esse
Enquanto as comissões de verdade rejeitam sinceramente a amnésia, entendimento – de que o distanciamento entre passado e presente não
elas primeiramente se voltam à “história” para pacificar a incômoda resulta simplesmente da passagem do tempo, mas é algo que deve ser
força da “memória”. A história, então, é introduzida no campo da ativamente perseguido – sustenta uma das proposições centrais deste
justiça transicional, não apesar de uma memória excessiva, mas por trabalho. Argumentarei que, em vez de um quadro analítico neutro, a
causa dela. A política de transição é muitas vezes interpretada como história pode ser performativa. Com isso quero dizer que a linguagem
a busca de um equilíbrio adequado entre muita memória e muito histórica não é apenas usada para descrever a realidade (o chamado
esquecimento,92 mas minha tese é a de que o campo atual da justiça de uso “constatativo” da linguagem), mas também pode produzir efeitos
transição é uma arena para dois modos conflitantes de recordação que sociopolíticos substanciais e que, em alguma medida, pode provocar a
são orientados por duas características temporais contrárias.93 Não efetivação de um estado de coisas que pretende meramente descrever
89 Gumbrecht H. U., Presence Achieved in Language. In: History and Theory, 45
(o chamado uso “performativo” da linguagem).96
(2006) 3, pp. 317-327, 323. Para compreender por que esse “distanciamento”
90 Habermas J., Modernity’s Consciousness of Time and Its Need for Self-
Reassurance. In: The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge (Mass.), MIT 94 Habermas, Modernity’s Consciousness of Time.
Press, 1987, pp. 1-22, 5-6.
95 Phillips M. S., Distance and Historical Representation. In: History Workshop
91 Hans Blumenberg, citado em: Habermas, Modernity’s Consciousness of Journal, 57 (2004), pp. 123–141. Phillips observa que o conceito de distância é tão
Time, p. 7. central na prática da história que dificilmente se distingue da idéia de história por si
92 Ver, por exemplo: Minow M., Between Vengeance and Forgiveness. Facing mesma.
History after Genocide and Mass Violence. Boston, Beacon Press, 1998. 96 A distinção entre enunciações constativas e enunciações performativas foi
93 Utilizarei o termo lembrança como um conceito “neutro” que se refere tanto introduzida por J. L. Austin. Austin J. L., How to do Things with Words. Cambridge
à “memória” quanto à “história” como diferentes maneiras de lidar com o passado. (Mass.), Harvard University Press, 1962.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

performativo é importante para os países que atravessam transições, é presente. Embora a lembrança de um passado divisivo nunca conduza
preciso dar uma olhada na estreita relação entre política do tempo e o à criação de uma experiência nacional de simultaneidade, esse passado
projeto de construção nacional. Benedict Anderson argumenta que a pode ser útil se for coletivamente lembrado como algo “distante” ou
“gênese obscura” das nações modernas não pode ser entendida sem ter separado do presente.
plenamente em conta o desenvolvimento de um conceito específico
No entanto, a contribuição da história para o projeto de
de “simultaneidade”. Tal “simultaneidade cruzada” que é medida pelo
simultaneidade tem efeitos colaterais: muitas vezes, a construção da
relógio e pelo calendário vem sendo construída já há muito tempo e,
simultaneidade nacional se dá à custa da exclusão de pessoas que
de acordo com Anderson, se encontra em contraste com a concepção
não podem ou não querem deixar o passado “para trás”. Tomando
medieval cristã de uma “simultaneidade ao longo do tempo”, em que
emprestado um termo do antropólogo Johannes Fabian, argumentarei
passado e futuro se fundiram em um presente instantâneo por meio
que o discurso sobre o tempo irreversível da história às vezes tende
do presságio divino e de sua realização.97 A ideia da nação moderna
a se tornar uma prática “alocrônica”: uma prática que localiza
como uma comunidade sólida movendo-se através da história é um
(simbolicamente) em outro tempo ou trata como não-simultâneo
análogo preciso da ideia de um “organismo sociológico que se move
todo aquele que se recusa a participar do processo de construção
segundo o calendário através de um tempo homogêneo e vazio”.
nacional ou de reconciliação.99
Como expressa Anderson:
Um americano nunca conhecerá, nem saberá os nomes
de mais de um punhado de um de seus 240.000-odd Organização do livro
[sic] concidadãos americanos. Ele não tem ideia do que
eles estão fazendo em nenhum momento. Mas ele confia Este livro consiste em duas partes, cada uma subdividida em
plenamente em suas atividades constantes, anônimas e capítulos diferentes. Na primeira parte fixei-me em um duplo objetivo.
simultâneas.98 Primeiro, tento demonstrar que a noção de irrevogabilidade pode
A construção nacional poderia então ser interpretada como estar relacionada de forma relevante com as experiências populares
sustentada na complexa criação de uma ideia de simultaneidade de historicidade e que essa noção tem grande relevância ética. Em
temporal. É, no entanto, exatamente esse projeto de simultaneidade segundo lugar, exponho minhas afirmações sobre as implicações
que é ameaçado pelas memórias abundantes de passados atrozes. éticas dos discursos sobre a história e o tempo histórico irreversível
Nessa perspectiva, a maior ameaça que essas memórias representam (que eu formulei em termos mais abstratos acima) analisando sua
não provém da evocação de passados que geram divisões, senão, como performatividade. Embora essa performatividade possa ser benigna e
vimos, do fato de que tendem a experimentar esse passado divisivo muitas vezes seja experimentada como uma necessidade, ela nunca é
como irrevogável, e que resistem a deixá-lo passar. As sociedades que eticamente neutra.
devem lidar com passados irrevogáveis que provocam divisões e que Para cumprir ambos os pontos, cada um dos três capítulos
tentam criar simultaneidade nacional se voltam, então, para o discurso seguintes discutem a introdução e a contestação do discurso histórico
histórico com a finalidade de produzir um senso de irreversibilidade nas comissões da verdade e no contexto mais amplo da justiça
e de restabelecer ou impor a disjunção modernista entre passado transicional. Primeiramente me concentro na situação de justiça
97 Anderson B., Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of transicional na Argentina; em seguida, analiso o caso da África do Sul;
Nationalism. London, Verso, 2006. 99 Fabian J., Time and the Other. How Anthropology Makes its Object. New York,
98 Ibid., p. 26. Columbia University Press, 1983.

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e em terceiro lugar discuto o caso de Serra Leoa, onde existiram ao raramente parece tão urgentemente relevante ou importante como
mesmo tempo uma comissão da verdade e um tribunal de guerra. Do em momentos de transições políticas súbitas de uma forma de estado
ponto de vista geopolítico, Argentina, África do Sul e Serra Leoa podem para outra.”100 Destacando as situações de transição relativamente
ser chamados de periféricos ou, no máximo, de semi-periféricos, e os excepcionais, e não obstante extensas, podemos aprender muito sobre
três países têm a triste honra de que seus produtos de exportação mais os historiadores e o discurso histórico em cenários mais “normais”. E
conhecidos são termos e conceitos recém-criados que originaram-se a isso porque a realidade política das comissões da verdade e da justiça
partir de suas terríveis histórias de conflito: do “desaparecido” à “guerra de transição nos confronta com um contexto que se difere fortemente
suja”, passando pelo “Apartheid” e o “necklacing”, aos “diamantes de do contexto histórico no qual a história enquanto disciplina acadêmica
sangue” e os “guerreiros juju”. No entanto, quando analisados sob a se desenvolveu. Em vez da avassaladora experiência sociocultural
perspectiva da filosofia jurídica ou do direito internacional, os três de mudança constante ou de mutabilidade e o aparente progresso
países estiveram no cerne das recentes evoluções da justiça de transição inevitável que durante muito tempo obrigou os historiadores a
e, mais importante, representam um marco na evolução da fórmula conceber sua disciplina como uma grande operação de conservação
da comissão da verdade. O foco nos casos da Argentina, África do Sul que necessitava salvar um passado ameaçado de perda permanente,
e Serra Leoa oferece uma visão privilegiada do fenômeno mais amplo o campo da justiça de transição nos confronta, como afirmei acima,
das comissões da verdade porque as comissões estabelecidas nestes com uma situação na qual o problema principal não está na fuga do
três países abrangem, em conjunto, um período de três décadas, e passado, mas na sua recusa de passar. A persistência problemática
também porque elas influenciaram-se mutuamente e foram cruciais de um passado traumático e muitas vezes altamente conflituoso em
para a construção de um cânone comum. países que tentam realizar uma transição para se recuperar de conflitos
violentos, de fato, questiona implicitamente a aparente auto-evidência
Como a comissão de verdade na Argentina foi realizada a
do tempo histórico irreversível e comprova a relevância do conceito
portas fechadas e como se destinava principalmente a uma investigação
de irrevogável.
que eventualmente teve que auxiliar e facilitar o julgamento muito
mais ambicioso dos líderes da junta militar, irei me concentrar nos Após essa análise bastante concreta dos três estudos de caso,
protestos provocados por essa situação e tentarei analisar a relação levo a discussão para um nível filosófico mais abstrato na segunda parte
entre o discurso histórico e o protesto público das Madres de Plaza deste livro. Mais uma vez o objetivo é duplo. No primeiro capítulo
de Mayo. Os dois capítulos seguintes, em contraste, concentram-se desta segunda parte (capítulo 5 do livro), tento responder à pergunta
principalmente no funcionamento das comissões de verdade em sobre por que é tão difícil para os modernos pensadores ocidentais
si mesmas. No entanto, também nestes capítulos tento destacar a levarem a sério as reivindicações comuns das vítimas e sobreviventes
resistência contra as comissões de verdade e seus usos do discurso de que o passado persiste e assombra o presente. Argumento que
histórico. Usando relatórios de ONGs e materiais de seu website bem certas conceitualizações do tempo e da historicidade, difundidas na
documentado, discutirei a posição do “Grupo Khulumani de Apoio às historiografia acadêmica e no pensamento histórico ocidental atual,
Vítimas” da África do Sul. Baseando-me na literatura antropológica, impelem esses últimos a conceber o passado como irreversível e a
discutirei a resistência popular contra o trabalho da comissão da restringi-los a compreender, reconhecer ou até mesmo imaginar o
verdade em Serra Leoa. irrevogável. Referindo-me a ideias de pensadores tão diversos como
O foco na justiça de transição oferece perspectivas
interessantes pois, como observa um comentador, “a história 100 Evans R. J., Redesigning the Past. History in Political Transitions. In: Journal
of Contemporary History, 38 (2003), 1, pp. 5–12, 5.

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Reinhart Koselleck, Frank Ankersmit, Karl Mannheim, François realidade é muito mais complexa, com conflitos de tempo e regimes de
Hartog, Paul de Man, Jürgen Habermas e Charles Taylor, relaciono historicidade existentes em diferentes níveis, entre culturas diferentes
a negação do irrevogável e a promoção do irreversível a um conjunto e dentro de culturas ou de subculturas, etc.102
de elementos “cronosóficos” tais como o uso de um tempo absoluto,
O segundo capítulo da segunda parte do livro (capítulo 6)
homogêneo e vazio, o relato historicista da mudança histórica, a ênfase
é dedicado à busca de uma cronosofia alternativa que nos permita
modernista sobre a novidade histórica e a disjunção entre passado,
pensar e explicar o irrevogável (ou pelo menos nos oferece um bom
presente e futuro, e o tratamento da história como um domínio
ponto de partida para isso). Vários pensadores desenvolveram pontos
completamente secular.
de vista sobre o tempo que diferem significativamente do tempo
Longe de serem universais ou “de todas as épocas”, esses irreversível da história e de sua ênfase sobre o passado ausente ou
elementos cronosóficos e o tempo irreversível da história que ele distante. Para que uma cronosofia alternativa proporcione o espaço
impulsiona são construções históricas estreitamente relacionadas intelectual necessário para o reconhecimento do irrevogável, ela terá
com a visão de mundo desencantado que de forma lenta e irregular que romper com a ideia do passado ausente ou distante e ser capaz
se desenvolveu no Ocidente. Um exemplo de que esse tempo de incluir em sua perspectiva uma noção de “não-sincronicidade”
histórico irreversível não é universalmente aceito é exemplificado pela ou mesmo de “anacronicidade”. O trabalho de pensadores como
resistência contra sua disseminação no contexto da justiça de transição. Fernand Braudel, R. G. Collingwood, Ernst Bloch e Louis Althusser
Tal resistência deve nos fazer ponderar sobre se a disseminação parcialmente e em graus variados proporcionam tais perspectivas.
internacional do tempo irreversível da história não poderia, em De uma maneira muito mais radical, tal perspectiva é fornecida por
certos casos, constituir uma variação específica da imposição de Jacques Derrida. Durante os últimos anos de sua vida, Derrida dedicou
uma “arquitetura temporal” ocidental, como ocorreu, por exemplo, muita atenção ao passado assombroso e à ambígua posição de dívida
nos campos da organização política e econômica.101 No entanto, das gerações vivas em relação a tal passado. Discutindo a sobrevivência
deixo claro que não penso que o conflito entre diferente cronosofias enigmática do passado, Derrida descreveu sua perspectiva como
segue uma clara divisão entre o Ocidente e o não-Ocidente. Ainda girando em torno de um conceito “espectral” de tempo. Tal conceito
que seja generalizado e influente, não concebo o tempo irreversível
102 Jeffrey Olick pode estar certo quando ele coloca uma tese que é
da história como a única forma de consciência histórica que impera aparentemente o oposto da de Agacinski (ver nota 101): a saber, que desde o final
sobre o mundo, e nem sequer sobre a parte “ocidental” do mundo. A do século dezenove tem havido uma crescente diferenciação de temporalidades, um
processo que ele chama de “diferenciação crônica”. Olick observa que diferentes
101 Expressão de Sylviane Agacinski. Agacinski afirma que: “Através das temporalidades ou historicidades tendem a se acumular, em vez de se deslocar umas
técnicas pelas quais o tempo é medido e através de sua assimilação como valor de às outras. Segundo ele, o processo de diferenciação crônica resulta de um processo
mercado, podemos testemunhar o controle ocidental das horas sobre o mundo de crescente complexificação tecnológica, institucional e existencial das sociedades
inteiro”. Agacinski S., Time Passing. Modernity and Nostalgia. New York, Columbia ocidentais, o que tornou impossível ao Estado-nação manter sua posição monopolista
University Press, 2003, p. 5-6. A afirmação de Agacinski é confirmada por vários como guardiã da historiografia e dos projetos de comemoração. Como explica Olick:
estudos que relacionam a disseminação do tempo ocidental com o processo de “[...] no final do século dezenove, as pessoas comuns se encontravam espalhadas de
colonização. Ver, por exemplo: Cooper F., Colonizing Time. Work Rhythms and diferentes maneiras por múltiplos quadros crônicos: o tempo da fábrica, o tempo do
Labor Conflict in Colonial Mombasa. In: Dirks N. B. (ed.), Colonialism and Culture. calendário, o tempo local, o tempo nacional, o tempo oficial, o tempo de lazer, o tempo
Ann Arbor, University of Michigan Press, 1992, pp. 209-245. Ver também: Giordano de vida, o tempo público, o tempo privado, o tempo de família. No final do século
N., Around the Clock. The Colonisation of Time in the British World (with a focus dezenove, o fracasso dos Estados-nações em fornecer segurança existencial e unidade
on Lovedale, Cape Colony 1870-1905). In: Edmonds P. & Furphy S. (eds), Rethinking identitária em face dessas multiplicações parecia ter atingido um nível de crise”. Olick
Colonial Histories. New and Alternative Approaches. Melbourne, RMIT Publishing, J. K., The Politics of Regret. On Collective Memory and Historical Responsibility. New
2006, pp. 205-218. York, Routledge, 2007, p. 190.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça

foi raramente notado por historiadores ou filósofos da história, mas


esse conceito desafia profundamente o tempo histórico irreversível
e, portanto, considerei apropriado dedicar um capítulo separado (o
terceiro capítulo da segunda parte, capítulo 7 do livro) para Derrida e
sua cronosofia.
No quarto e último capítulo, retornarei a um nível mais
concreto, afastando a discussão de um foco estrito no tempo para
uma discussão da relação entre história e luto. Aqui, argumento que
é possível aprender muito mediante a abordagem da história como
uma prática de luto, mas as conclusões que se obtém de tal exercício
intelectual dependem fortemente do conceito específico de luto que se
toma como ponto de partida. Muitos dos “compromissos ontológicos”
subjacentes ao pensamento histórico moderno dominante também

Parte I
podem ser encontrados na descrição moderna dominante sobre o
luto, que em muitos aspectos se opõe às suas noções não-modernas
mais antigas e mais difundidas. A moderna teoria do luto obscurece
o fenômeno do irrevogável e, consequentemente, ela também nega
a maioria das dimensões de sua própria performatividade. Já que o
luto não-moderno, embora ofereça um melhor ponto de partida para
pensar sobre o irrevogável e embora reconheça uma noção muito
mais substantiva de performatividade, muitas vezes está baseado em
uma visão de mundo demasiadamente encantada, retornarei mais
uma vez ao trabalho de Jacques Derrida, a fim de proporcionar uma
posição alternativa.

52
Berber Bevernage

Capítulo II
“La muerte no existe”. As Madres de Plaza de Mayo e
a resistência contra o tempo irreversível da história

“Esta guerra, como todas as guerras, deixa


algumas sequelas, grandes feridas que apenas
o tempo pode curar. Elas são causadas pelas
perdas; os mortos, os feridos, os detidos, os
ausentes para sempre”
General R.E. Viola103

“[Por que] eles gostam dos mortos? Porque a


morte é o final”
Hebe de Bonanfini104

Introdução
No prefácio de um livro publicado na ocasião do 30º
aniversário do último golpe militar na Argentina, Hebe de Bonafini,
a presidente das Madres de Plaza de Mayo, citou algumas palavras
provocativas do escritor Eduardo Galeano: “a morte não existe.”105
Por mais radical que possa soar, essa expressão combina com um
intrigante lema que caracterizou a demanda das Madres por quase
103 De um discurso do líder da segunda junta militar em 1979 (Tradução do
autor).
104 De um discurso proferido pela presidente das Madres de Plaza de Mayo em
1995 (Traduçãodo autor).
105 Vázquez I. & Downie K. (eds), Un país. 30 años. El pañuelo sigue haciendo
historia. Buenos Aires, Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2006.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

três décadas: “aparición con vida”. Desde o desaparecimento de seus nascida do desespero, deixaram perplexas as forças armadas que,
filhos e filhas no final da década de 1970, o grupo de mães em torno inicialmente, não compreenderam a real extensão do desafio e
de Hebe de Bonafini alegou que, mais do que uma forma de dar laconicamente ridicularizaram as mulheres chamando-as de las locas
sentido à morte ou a absoluta falta de conhecimento sobre o destino de Plaza de Mayo.
de alguém, o desaparecimento é um “estado de ser”.106 Mesmo depois
Uma vez terminada a ditadura militar, a recusa persistente
de vários corpos aparecerem na costa do Atlântico e depois que covas
de luto (embora, naturalmente, não uma recusa do sofrer110) e de
secretas em massa foram descobertas em todo o país, as Madres de
reconhecer a morte dos desaparecidos não tornaram as Madres
Plaza de Mayo continuaram a insistir que os desaparecidos – a plavra
muito populares no contexto mais amplo da sociedade argentina.
espanhola para as vítimas dos militares que desapareceram sem deixar
A posição das Madres, na melhor das hipóteses, encontrou uma
vestígios – não são mortos “comuns” mas estão, em vez disso, entre a
incompreensão simpática, mas também foi denunciada por uma
vida e a morte. Como Hebe de Bonafini declarou uma vez, “as mães
maioria que gostaria de seguir em frente e consideravam que as mães
de desaparecidos não serão convertidas em mães de mortos”.107 As
deveriam enfrentar o luto privadamente e guardarem silêncio.111
Madres falam constantemente sobre seus filhos desaparecidos no
Como uma integrante das Madres comentou no final da década de
tempo presente e contam seus aniversários como se ainda estivessem
1980: “A aparición con vida é o mais controverso de nossos lemas,
envelhecendo a cada ano.
pois um monte de gente nos apoia, mas quando dizemos aparición
Essa ideia de imortalidade pode parecer estranha para um con vida, não. Vocês são loucas”.112
movimento que surgiu a partir de um grupo de mulheres em luto
Os estudiosos, de fato, tentaram compreender a negação
que inicialmente se conheceram em algum daqueles lugares que um
da morte pelas Madres em termos de psicopatologia relacionada
comentador chamou de “instituições públicas de morte”: hospitais,
à problemática do luto sem o corpo.113 A espera interminável dos
delegacias, guarnições do exército, necrotérios e cemitérios.108
Este foi especialmente o caso em uma sociedade onde as mulheres 110 É importante fazer uma distinção entre a noção de “luto” [mourning] e do
“sofrer” [grief]. O sofrer é uma emoção natural que, como reação à perda, é universal.
eram tradicionalmente esperadas para desempenhar o papel de O luto, em contraste, refere-se a respostas cultural ou socialmente construídas à perda
“reprodutoras da vida e guardiãs da morte”.109 As incessantes (e, em que se manifestam em muitas variedades históricas e geográficas. Enquanto o sofrer
pouco tempo, internacionalmente conhecidas) marchas de protestos é experimentado principalmente de modo privado pelos indivíduos, o luto muitas
vezes está ligado às regras sociais. Enquanto o sofrer pode ser encontrado em alguns
das Madres na principal praça de Buenos Aires e sua incrível força animais, como os primatas, o luto é considerado tipicamente humano. Assim, apesar
das Madres se recusarem a satisfazer a demanda social pelo trabalho do luto, elas,
106 Expressões de: Gordon A. F., Ghostly Matters. Haunting and the Sociological naturalmente, sofrem por seus filhos desaparecidos. Para uma discussão clara de
Imagination. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1997, p. 111. ambos os termos, ver: Homans P. (ed.), Symbolic Loss. The Ambiguity of Mourning
107 Citado em: Joyce C. & Stover E., Witnesses from the Grave. The Stories Bones and Memory at Century’s End. Charlottesville, University Press of Virginia, 2000, pp.
Tell. Boston, Little, Brown and Company, 1991, p. 254. 1-3.
108 Schirmer J. G., “Those Who Die for Life Cannot be Called Dead.” Women 111 Malin A., Mother Who Won’t Disappear. In: Human Rights Quarterly, 15
and Human Rights Protest in Latin America. In: Agosin M. (ed.), Surviving Beyond (1993), pp. 187-213, 207. Em 1985, dois anos após o ressurgimento da democracia,
Fear. Women, Children and Human Rights in Latin America. New York, White Pine em uma pesquisa nacional 59% do público argentino expressou sua desaprovação das
Press, 1993, p. 52. atividades das Madres. Schirmer, Those Who Die for Life Cannot be Called Dead, p.
40.
109 Schirmer, “Those Who Die for Life Cannot be Called Dead,” p. 53. Nicole
Loraux afirma que a tarefa do luto é tradicionalmente associada principalmente com 112 Depoimento de Graciela de Jeger in Fisher J., Mothers of the Disappeared.
as mulheres. Ver: Loraux N., Mothers in mourning. With the essay of amnesty and its London, South and Press, 1989, p. 128
opposite. Ithaca, Cornell University Press, 1998. 113 Femenía N. A. & Gil C. A., Argentina’s Mothers of Plaza de Mayo. The

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

parentes pela volta dos desaparecidos para casa é por vezes descrita tem sido confrontado com uma contínua demanda de justiça pelas
em termos psicológicos como “mumificação.”114 A demanda por vítimas do terrorismo de Estado e uma pressão por anistias por parte
aparición con vida, da mesma forma, tem sido analisada como uma dos militares. Enquanto os anos violentos entre 1976 e 1983 ainda
espera ou esperança ou, pior, como pensamento pré-racional ou estão sujeitos a interpretações fortemente antagônicas por diversos
mesmo mágico.115 grupos sociais, ninguém pode negar que os desaparecidos – como uma
“população de fantasmas” – se tornaram parte integrante da política e
Embora uma análise psicossocial possa ser útil para entender
da sociedade argentina.117
os problemas particulares com os quais os parentes dos desaparecidos
enfrentam, e ainda que seja difícil negar a existência de aspectos O golpe de 1976 não foi um evento único na história
mágicos na representação fantasmagórica dos desaparecidos, essas argentina. De fato, foi apenas o último de uma longa “tradição
perspectivas são insuficientes para compreender toda a amplitude nacional” de golpes militares. A violência política e o terrorismo
política e ética da demanda por “aparição com vida” e da negação de de Estado tampouco começaram na noite de 23 de março de
realizar o trabalho de luto demandado pela sociedade.116 No presente 1976, quando a junta militar liderada pelo general Jorge Rafael
capítulo irei ler o discurso das Madres como uma resistência radical Videla derrubou o governo eleito. No entanto, nenhum dos golpes
ao tempo irreversível da história. Argumento que o uso, pelas Madres, precedentes e nenhuma violência política anterior se aproximou da
da figura espectral do desaparecido deve ser colocada dentro de um extensão da violência que estava por vir.118 Sob o véu da segurança
contexto de uma política do tempo sofisticada. nacional, milhares de pessoas foram sequestradas em uma campanha
secreta mas bem planejada que foi orquestrada pelo alto comando
militar. As pessoas desapareceram de seus quartos à noite, foram
Justiça de transição na Argentina: uma estrada longa e sequestradas do local de trabalho ou foram tiradas da rua em plena
sinuosa luz do dia.119 Uma vez “desaparecidos”, em geral nada mais se ouvia
sobre eles, nem seus corpos retornavam. As vítimas simplesmente
Quando as eleições livres de 1983 puseram formalmente fim
deixaram de ter qualquer existência civil e entraram na categoria
a sete anos de ditadura militar, a ressurgente democracia argentina
lúgubre e fantasmagórica dos desaparecidos.120
herdou um pesado legado que geraria conflitos por mais de um quarto
de século. Desde o restabelecimento da democracia, cada governo Geralmente, as vítimas não eram oficialmente presas, mas
Mourning Process form Junta to Democracy. In: Feminist Studies, 13 (1987), pp. 9-18. 117 Expressão de: Cortázar J., Argentina. Años de Alambradas Culturales.
114 Suarez-Orosco M. M., The Heritage of Enduring a “Dirty War.” Psychosocial Barcelona, Muchnik Editores, 1984, p. 31.
Aspects of Terror in Argentina, 1976-1988. In: The Journal of Psychohistory, 18 (1991), 118 CONADEP, Nunca Más. Informe de la Comisión Nacional sobre la
4, pp. 469-505, 490. Desaparición de Personas. Buenos Aires, Eudeba, 2006, p. 15.
115 Ver, por exemplo: Suarez-Orosco, The Heritage of Enduring a “Dirty War,” 119 O “desaparecimento” como técnica do terror tem sido usual em toda a
p. 490 and p. 494. América Latina. Em meados da década de 1960 já era usada em grande escala pelo
116 Naturalmente, a figura do desaparecido não foi analisada somente em governo da Guatemala. Na década de 1970, ela se espalhou para países como o Brasil,
termos psicossociais. Na verdade, a natureza fantasmagórica dos desaparecidos Uruguai e Chile, até chegar a um clímax na Argentina. Na década de 1980, ocorreram
atraiu recentemente uma ampla e extensa atenção acadêmica. Para algumas desaparecimentos em massa em El Salvador, Guatemala e Peru. Estima-se que 90.000
discussões interessantes ver: Crossland Z., Buried Lives. Forensic Archaeology and casos de desaparecimento tenham ocorrido na América Latina desde 1964. Ver:
the Disappeared in Argentina. In: Archaeological Dialogues, 7 (2000), 2, pp. 146-159. Martos B. B., ‘Disappearances’. A Workbook. New York, Amnesty International USA,
Domanska E., Toward the Archaeontology of the Dead Body. In: Rethinking History, 1981.
9 (2005), 4, pp. 389-413. Ver também: Gordon A. F., Ghostly Matters . 120 CONADEP, Nunca Más, p. 13.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

eram mantidas em centros clandestinos de detenção. Estima-se que democráticos que aproveitaram o vácuo de poder para organizar uma
existiram aproximadamente 600 desses centros.121 Eram verdadeiros Multipartidaria.124
lugares de terror. A tortura foi aplicada sem exceção, e o calvário
Antes de entregar o poder político, no entanto, os militares
das vítimas terminava, na maior parte das vezes, em uma jornada às
tentaram se certificar de que não seriam processados por suas
fossas coletivas em sepulturas anônimas, ou mesmos aos rios e ao mar
violações aos direitos humanos. Para se resguardarem, foram tomadas
argentino. O número de desaparecidos ainda está em disputa – cerca
três precauções.125 Primeiramente, a junta publicou, em abril de 1983,
de 9000 casos foram identificados, mas alguns falam de até 30.000 –
o “Documento final sobre a guerra contra a subversão e o terrorismo”
mas, contrariamente à retórica militar, há um consenso relativo de
(este documento será discutido de forma mais detalhada adiante).
que a maioria deles nunca esteve envolvida na luta armada ou mesmo
Esse documento afirmava que a junta cumprira o seu dever ao serviço
em qualquer atividade política.122
da nação e afirmava que os desaparecidos, se não estivessem no exílio
Por um bom tempo, a tática de fazer as pessoas desaparecerem ou na clandestinidade, haviam perecidos em confronto aberto e
provou-se efetiva em evitar a criação de mártires cujos corpos e nomes assim tiveram de ser considerados mortos. Em segundo lugar, a junta
poderiam motivar protestos públicos organizados. No primeiro ano emitiu a “Lei de Pacificação Nacional”, uma anistia geral que garantia
do golpe não houve protestos fora do país, como fizeram grandes imunidade a alguns suspeitos de terrorismo e a todos os militares por
multidões no mundo quatro anos antes, quando Pinochet começou crimes cometidos entre 1973 e junho de 1982. Por último, os militares
a torturar e matar seus opositores políticos no Chile. Além disso, ordenaram a destruição de todos os documentos e arquivos que
nenhum país rompeu suas relações diplomáticas com a Argentina, poderiam incriminá-los.
como muitos fizeram com o Chile.123
Nesse ponto da história argentina, não era impensável (para
Uma vez confrontados com o protesto público, os militares dizer sutilmente) que os militares, apesar da pressão das organizações
declararam que se tratava de um inimigo que usava técnicas de de direitos humanos, conseguissem encobrir o que tinham feito e
guerrilha e que esta guerra sucia (guerra suja) exigia uma contra- escapar de sua obrigação de prestar contas. Enquanto as organizações
estratégia adaptada que não poderia restringir-se à norma legal. De de direitos humanos tinham grande autoridade moral nos anos pós-
fato, os militares se orgulhavam do que chamavam de “guerra contra transição, sua influência política direta era pequena. Em contraste, as
a subversão”, e apesar da coragem e perseverança das Madres de Plaza queixas dos militares eram difíceis de ignorar, devido ao simples fato
de Mayo e de outros grupos, a eventual cessão das juntas foi provocada de que eles tinham fácil acesso às armas. Se o clamor pela justiça das
não pelos protestos contra suas violações de direitos humanos, mas vítimas obteve alguma resposta no nível político, isso se deu porque,
por divisões internas e alguns eventos externos. Em última análise, com total surpresa, as primeiras eleições presidenciais foram ganhas
foi uma combinação de crise econômica e uma derrota humilhante por um candidato do “Partido Radical” com uma campanha que
na guerra pelas Ilhas Malvinas que forçou os militares a organizar colocava os direitos humanos na agenda política.126
um retorno ao governo civil e a negociar com os partidos políticos
124 Pion-Berlin D., The Fall of Military Rule in Argentina: 1976-1983. In: Journal
121 Esta é uma estimativa recente da Human Rights Watch. Reluctant Partner, of Interamerican Studies and World Affairs, 27 (1985) 2, pp. 55-76.
The Argentine Government’s Failure to Back Trials of Human Rights Violations. In: 125 Garro A. M. & Dahl H., Legal Accountability for Human Rights Violations
Human Rights Watch, 13 (2001), 5. in Argentina. One Step Forward and Two Steps Backward. In: Human Rights Law
122 CONADEP, Nunca Más, p. 13 and pp. 297-394. Journal, 8 (1987), pp. 283-344, 300.
123 Simpson J. & Bennett J., The Disappeared. Voices from a Secret War. London, 126 Decisões importantes sobre a política de direitos humanos na Argentina
Robson Books Ltd., 1985, p. 152. foram feitas quase unilateralmente pelos presidentes e seus conselheiros, com pouca

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Uma das primeiras decisões que Raúl Alfonsín tomou uma tentativa na historiografia oficial que se tornou infame como a
quando entrou na presidência em dezembro de 1983 foi a de teoria dos “dois demônios” (dos demonios). Assim, ele anunciou que
estabelecer uma comissão de inquérito. Pouco tempo depois, ele também processaria alguns dos ex-líderes guerrilheiros que acabavam
encontrou apoio político para anular a auto-anistia dos militares. No de voltar do exílio.130
entanto, a política de direitos humanos, que Alfonsín concebeu junto
A Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas
com seus assessores jurídicos Jaime Malamud-Goti e Carlos Santiago
(CONADEP), estabelecida por decreto em dezembro de 1983, era
Nino, orientava-se primeiramente para o futuro. O olhar retrospectivo
formada por dez membros proeminentes da sociedade argentina
da justiça retributiva preocupada em corrigir os abusos dos direitos
que gozavam de prestígio nacional e internacional por sua dedicação
humanos do passado devia estar subordinada a uma estratégia que
aos direitos humanos, presidida pelo renomado romancista Ernesto
impedisse o seu reaparecimento no futuro, consolidasse a estabilidade
Sábato.131 Durante os nove meses outorgados para investigar os crimes
do regime democrático e não perturbasse tanto os militares.127 Para
que as juntas cometeram entre 1976 e 1983, a comissão tomou cerca
isso, Alfonsín optou por uma comissão da verdade que trabalhasse
de 7.000 testemunhos que documentaram casos de 8.961 pessoas que
a portas fechadas, tivesse um limitado mandato legal e respondesse
desapareceram.
diretamente a ele, contrariamente aos desejos do movimento em
favor dos direitos humanos, que defendia uma comissão mais forte Além de recolher testemunhos, a comissão também
que pudesse exigir legalmente o testemunho dos perpetradores e identificou e visitou um grande número de centros secretos de detenção
respondesse ao Congresso Nacional.128Além disso, Alfonsín decidiu e organizou algumas exumações de fossas comuns e sepulturas
que todas as acusações – tanto as cometidas por partes privadas anônimas. Respondendo ao pedido de parentes que acreditavam
quanto as cometidas pelo governo – seriam primeiramente enviadas que alguns desaparecidos ainda estavam vivos, a CONADEP realizou
para um tribunal militar em vez de um civil, de modo que aos uma busca por pessoas não identificadas em prisões e instituições
militares seria concedida a oportunidade de purgar e inocentar sua psiquiátricas. Enquanto seus esforços para localizar desaparecidos vivos
própria instituição. Ademais, Alfonsín deixou claro que seu desejo era se mostraram infrutíferos, a comissão reuniu uma enorme quantidade
o de que apenas uma pequena parte dos militares fosse processada.129 de informações, e seus resultados globais foram considerados bem
Para sustentar uma aparente imparcialidade moral, ele também sucedidos pelo presidente e seus conselheiros.132 Em 20 de setembro
emitiu um documento que declarava que o terrorismo do exército de 1984, a comissão entregou 50.000 páginas de documentação ao
tinha sido provocado pelo terrorismo de esquerda que o precedeu – presidente Alfonsín e publicou uma versão do relatório em formato de

influência do Congresso. Osiel M., The Making of Human Rights Policy in Argentina.
The Impact of Ideas and Interests on a Legal Conflict. In: Journal of Latin American 130 ‘Decreto 157’ [13 de dezembro de 1983]. Em: http://www.derechos.org/
Studies, 18 (1986) 1, pp. 135-180, 143. nizkor/arg/doc/indultos.html (12.02.2008).
127 Osiel, The Making of Human Rights Policy in Argentina, p. 151. Ver 131 Além dos dez integrantes nomeados por Alfonsín, as Câmaras do Congresso
também: Alfonsín R., ‘Never Again’ in Argentina. In: Journal of Democracy, 4 (1993), podiam mandar três representantes, embora apenas a Câmara dos Deputados o fez.
1, pp. 15-19. CONADEP, Nunca Más, p. 447-448. Embora os assessores presidenciais desejassem
128 Mignone E., Estlund C. L. & Issacharoff S., Dictatorship on Trial. Prosecution alguma representação de organizações de direitos humanos, essas organizações eram
of Human Rights Violations in Argentina. In: Yale Journal of International Law, 10 céticas naquela época e se recusaram a participar na comissão. Nino, Radical Evil on
(1984), pp. 118-150, 125. Ver também: Osiel, The Making of Human Rights Policy in Trial, 73.
Argentina, p. 150. 132 Jaime Malamud-Goti chama o Nunca Más de “breve primavera argentina”.
129 Nino, Radical Evil on Trial, pp. 63-68. Malamud-Goti, Game Without End, p. 59.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

livro, omitindo os nomes dos perpetradores.133 Apesar da resistência lentamente um número crescente de processos movidos por parentes
inicial, a maioria das organizações de direitos humanos chegou a de desaparecidos. No entanto, já bastante avançadas, as acusações
cooperar com a CONADEP. Uma importante exceção foram as foram interrompidas por duas intervenções do governo de Alfonsín.
Madres de Plaza de Mayo, que continuaram a criticar a comissão Preocupado com as fortes reações dos militares e desafiado por uma
(voltarei a falar sobre isso mais adiante). série de atentados a bomba perpetrados por grupos de ultra-direita,
Alfonsín pediu a seus assessores que elaborassem uma estratégia legal
A tentativa de Alfonsín de permitir que os militares se
que limitasse os processos punitivos.137 No início de dezembro de 1986
julgassem revelou-se muito menos bem sucedida do que sua iniciativa
isso resultou na lei punto final, que estabelecia que os processos legais
de comissão da verdade. Sua política de direitos humanos sofreu um
futuros deveriam ser iniciados dentro de sessenta dias a partir de sua
sério revés quando o Conselho Supremo de Justiça Militar – o mais alto
promulgação. No entanto, a medida mostrou-se contraproducente
tribunal militar – declarou sua incapacidade e falta de vontade para
e desencadeou uma avalanche de novas acusações.138 A medida
processar os líderes da junta, tornando necessária a transferência das
tampouco tranquilizou os militares.
acusações para o tribunal civil.134 Isso levou a um evento relativamente
único na história da América Latina: o julgamento amplamente Em abril de 1987, uma tentativa de detenção de um oficial
publicizado dos nove comandantes militares que haviam encabeçado que se recusara a comparecer ao tribunal resultou em uma revolta
as três juntas militares que exerceram sucessivamente o poder. Em militar.139 Através de uma dramática intervenção pessoal, Alfonsín
março de 1985, o promotor Julio Strassera formulou 711 acusações, conseguiu acabar com a revolta, mas só conseguiu fazê-la fazendo,
incluindo assassinato, detenção ilegal, tortura, estupro e roubo, e secretamente, concessões aos militares. Menos de um mês depois,
exigiu sentenças apropriadas.135 O veredito final do tribunal decretou Alfonsín propôs a infame lei obediencia debida que excluía do risco
prisão perpétua para Videla e Massera. Agosti, Viola e Lambruschini de processo todos os militares e forças de segurança que haviam
foram respectivamente condenados a quatro anos e seis meses, agido seguindo ordens. Seu efeito prático foi conceder anistia a
dezessete anos e oito anos de prisão. Todos foram desqualificados aproximadamente trezentos dos quinhentos oficiais acusados. A lei
perpetuamente de ocupar cargos públicos e foram destituídos de seu foi amplamente vista como uma traição, e provocou fortes reações
posto militar. Os outros – Graffigna, Galtieri, Anaya e Lami Dozo - das organizações de direitos humanos.140 Tampouco a lei satisfez os
foram absolvidos com o argumento de que a maior parte dos crimes militares, e o tempo das rebeliões não se encerrou. Entre 1988 e 1990,
de “guerra suja” cessaram durante o seu mandato.136 ocorreram quatro motins militares e um cerco de uma guarnição
militar por parte de um grupo de esquerda.141 Enquanto isso, o governo
Na esteira do julgamento dos líderes da junta, começou
137 Nino, Radical Evil on Trial, pp. 92-93. E também: Malamud-Goti, Game
133 Devido a um vazamento, provavelmente por um membro da equipe da Without End, pp. 64-65.
CONADEP, uma lista contendo os nomes dos responsáveis foi publicada alguns dias 138 Antes da data de corte imposta em fevereiro de 1987, cerca de 300 novas
depois em El Periodista. Nino, Radical Evil on Trial, 80. denúncias foram arquivadas. Crawford K. L., Due Obedience and the Rights of
134 Mignone et al., Dictatorship on Trial, p. 140. Victims. Argentina’s Transition to Democracy. In: Human Rights Quarterly, 12
(1990), pp. 17-52, 25.
135 Amnesty International, Argentina. The Military Juntas and Human Rights.
Report of the Trial of the Former Junta Members, 1985. London, Amnesty International 139 Esta revolta seria conhecida como a rebelião da Páscoa. Nino, Radical Evil
Publications, 1987, pp. 18-46. Após o julgamento, o caso foi posteriormente para o on Trial, pp. 96-99.
Supremo Tribunal, onde as condenações foram amplamente confirmadas com 140 Crawford, Due Obedience and the Rights of Victims, pp. 17-52.
algumas poucas modificações. Malamud-Goti, Game Without End, 63. 141 Malamud-Goti, Game Without End, pp. 65-70. Ver também: Nino, Radical
136 Amnesty International, Argentina, p. 53-81. Evil on Trial, pp. 102-103.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

teve que lidar com problemas econômicos, e durante um período de organizações de direitos humanos continuaram sua busca pela
hiperinflação, Alfonsín acabou por entregar seu cargo presidencial justiça levando suas reivindicações para o exterior. Foram iniciados
seis meses antes do fim para Carlos Menem, o candidato peronista processos na Espanha, Itália, Suécia, França, Alemanha e México, mas
que havia ganhado as eleições de maio de 1989. os pedidos de extradição foram sistematicamente recusados pelo lado
argentino.145 Em 1995, o fardo do passado retornou à Argentina com
Com a vitória de Menem começava um trágico período
toda a força quando alguns militares, imunes de acusação, fizeram uma
para todos que se importavam pelos direitos humanos e pela justiça
série de horríveis confissões sobre suas atividades durante a “guerra
na Argentina. A política de Menem foi guiada por considerações
suja”. O mais notório dessas confissões veio do capitão aposentado
pragmáticas nas quais as questões de estabilidade política prevaleceram
da Marinha, Adolfo Scilingo, que admitiu sua participação em
sobre princípios normativos. Em relação ao legado de violações dos
dois “vôos da morte”, durante os quais jogou ao mar trinta vítimas
direitos humanos, a resposta de Menem foi a “reconciliação nacional”,
drogadas.146 Em poucas semanas, as confissões foram se sucedendo na
que basicamente significava que a questão deveria ser deixada para trás.
mídia, e a “maré confessional” chegou ao clímax quando o chefe do
“O passado não tem mais nada para nos ensinar”, assegurou Menem.
exército General Martín Balza apareceu na televisão para reconhecer
“Precisamos olhar para frente, com os olhos fixos no futuro. A menos
oficialmente que o exército tinha usados métodos ilegítimos durante
que aprendamos a esquecer”, ele advertiu, “seremos transformados
a “guerra suja”.147
em estátuas de sal”.142 Em outubro de 1989, Menem emitiu uma série
de decretos que perdoavam mais de 300 pessoas que estavam sendo Aproveitando a renovada atenção pública, o Centro de
processadas. Os indultos se aplicavam principalmente aos militares Estudios Legales Y Sociales (CELS), uma das organizações de direitos
acusados de crimes cometidos durante a “guerra suja”, mas também humanos mais importantes da Argentina, começou a pressionar
se aplicavam a alguns “subversivos” esquerdistas acusados de crimes em favor do que chamavam juicios por la verdad. Sem nenhuma
na década de 1970 e até mesmo aos oficiais que se rebelaram contra possibilidade de prossecução ou punição, esses julgamentos foram
o governo no final da década de 1980. Um ano depois, seguiu-se uma forma de ação judicial que se limitava a investigar e documentar.
uma segunda série de indultos, incluindo agora os que já estavam A Human Rights Watch considera que os “julgamentos pela verdade”
condenados, incluindo os líderes Videla, Massera e Viola, e o líder foram uma inovação jurídica fundamental, e seu princípio foi
guerrilheiro Mario Eduardo Firmenich.143 Não é necessário mencionar aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mas
que os indultos amarguraram não só as vítimas e seus parentes, mas as Madres de Plaza de Mayo criticaram fortemente os mesmos como
também um total de 70% da população que se opôs a eles.144 impotentes e profundamente cínicos.148
As realizações únicas na luta por justiça alcançadas pela Mais recentemente, as notícias sobre o problema da
CONADEP e o julgamento das juntas militares, que já estavam impunidade na Argentina têm sido mais positivas. Em março de
mitigadas pelas leis punto final e obediencia debida foram então
145 Equipo Argentino de Antropología Forence (EAAF), Annual Report 2005,
completamente anuladas. Durante o início da década de 1990, as pp. 154-155.
146 Verbitsky H., The Flight. Confessions of an Argentine Dirty Warrior. New
142 Citado em: Feitlowitz, A Lexicon of Terror, p. xi. York, The New Press, 1996.
143 ‘Decreto 2741’ [30 de dezembro de 1990]. Em: http://www.derechos.org/ 147 Osiel M., Mass Atrocity, Ordinary Evil, and Hannah Arendt. Criminal
nizkor/arg/doc/indultos.html ( 12.02.2008). Consciousness in Argentina’s Dirty War. New Haven, Yale University Press, 2001, p.
144 Ageitos S. M., Historia de la impunidad. De las actas de Videla a los indultos 21.
de Menem. Buenos Aires, Adriana Hidalgo editora, 2002. 148 Human Rights Watch, Reluctant Partner.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

2001, o juiz federal Gabriel Cavallo declarou que as leis de anistia As Madres em tempos de ditadura
na Argentina eram inconstitucionais e nulas, reabrindo assim a
As Madres de Plaza de Mayo surgiram em 1977, quando,
possibilidade de julgamento. Em outubro de 2001, outro juiz federal –
pouco após o golpe militar e do início da primeira onda de
Claudio Bonadío – também declarou inconstitucionais e nulas as leis
desaparecimentos, um grupo de mães se reuniu para organizar a
punto final e obediencia debida, mas a questão foi adiada no mesmo
busca de seus filhos e filhas e dar voz ao seu protesto. As Madres se
ano, quando a Argentina sofreu uma grande crise econômica e passou
reuniram pela primeira vez em segredo, mas logo decidiram tornar
por quatro presidentes em poucas semanas.149 Dois anos depois, em
público seu protesto na praça em frente ao palácio presidencial.153 Em
2003, as coisas começaram a se mexer novamente quando Nestor
30 de abril de 1977, catorze mães se reuniram na Plaza de Mayo.154
Kirchner foi eleito presidente com uma campanha que enfatizava os
Logo o número de mães que chegavam à praça aumentou: após sua
direitos humanos. Em agosto do mesmo ano Kirchner reuniu o apoio
primeira reunião, o número chegava a 60 ou 70, e um pouco mais
necessário do Congresso para anular as duas leis de anistia e reabrir
tarde já haviam cerca de 300 delas. Enquanto isso, as Madres também
alguns casos importantes que haviam sido arquivados por mais de
asseguravam sua presença em outras marchas e acontecimentos
uma década. A inconstitucionalidade das leis punto final e obediencia
públicos, onde tentavam chamar a atenção usando as fraldas de seus
debida foi finalmente confirmada pela Suprema Corte em junho de
filhos como lenços.155
2005. Embora os perdões presidenciais concedidos por Menem a
mais de 400 oficiais ainda vigoram, a derrubada das leis abriu novas Como a imprensa nacional permaneceu quase que
oportunidades.150 completamente silenciosa acerca dos protestos, as Madres decidiram
publicar um anúncio pago em um jornal. Em outubro de 1977 o
Em 2004, Kirchner anunciou que a Escuela Superior de
anúncio apareceu no jornal La Prensa. A manchete dizia: “não
Mecánica de la Armada, um notório centro de detenção e tortura
pedimos nada mais do que a verdade”, e o anúncio listava os casos
clandestina em Buenos Aires amplamente conhecido como ESMA,
de 237 pessoas desaparecidas que as Madres tinham sido capazes de
tornaria-se um memorial dedicado às vítimas do terror de Estado.151
rastrear.156
Com esse desenvolvimento e com a criação de um Parque da Memória,
a Argentina finalmente pareceu reconhecer seu legado sombrio.152 Até esse momento, as Madres sofriam alguns tipos de maus-
tratos, mas seu estatuto social enquanto mães e mulheres mais velhas
149 Human Rights Watch, Reluctant Partner.
as protegera das violências mais brutais que seus filhos e filhas haviam
150 EAAF, Annual Report 2005, pp. 153-154.
sido vítimas. Isso estava prestes a mudar. Os protestos públicos e o
151 Ibid., pp. 159-160.
anúncio no jornal tornaram as Madres extremamente vulneráveis.
152 Sobre este parque da memória, ver: Macón C., ‘Voiding the Void. Memory,
Space and Genocide in Contemporary Argentina.’ (artigo não publicado) Ver também: Um mês após a publicação do anúncio, o movimento foi infiltrado e
Huyssen A., Present Pasts. Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Stanford, três das fundadoras foram sequestradas, juntamente com uma artista
Stanford University Press, 2003, pp. 94-109. Uma exceção importante ao crescente
reconhecimento dos acontecimentos ocorridos durante a última ditadura militar é a 153 De Bonafini H., ‘Las Madres en Primera Persona’ (Conferência) [6 de julho
falta de um debate público sobre as dolorosas experiências da guerra das Malvinas e as de 1988]. Em: http://www.madres.org/asociacion/historia/historia.asp (15.01.2008).
suas consequências. Tozzi V., Malvinas como disputa. Tragedia, autorepresentación 154 Bouvard M. G., Revolutionizing Motherhood. The Mothers of the Plaza de
y limbo mnémico en el encuentro con el pasado reciente. In: Macón C. (ed.), Pensar Mayo. Wilmington, Scholarly Resources Inc., 1994, p. 69.
la democracia, imaginar la transición (1976-2006). Buenos Aires, Adour, 2006, pp.
83-98. Ver também: Tozzi V., Figuring the Malvinas War Experience. Heuristic and 155 Gorini U., La rebelión de las Madres. Historia de las Madres de Plaza de
History as an Unfulfilled Promise. In: Ankersmit F. Domanska E. & Kellner H., Re- Mayo. Tomo I (1976-1983). Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2006, pp. 117-119.
Figuring Hayden White. Stanford, Stanford University Press, 2009, pp. 261-281. 156 Citado em: Simpson & Bennett, The Disappeared, p. 159.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

simpatizante e duas freiras francesas.157 As perdas vieram como um de violações.163 As Madres estavam lutando por sua vinda desde
golpe terrível ao movimento. que começaram sua luta, mas ficariam muito decepcionadas com
os resultados.164 Enquanto a comissão publicava um documento
Em 1978 a Argentina foi sede da Copa do Mundo de futebol.
de 374 páginas que criticava fortemente o regime militar, a junta
O fluxo de turistas e a extensa atenção internacional significaram
militar recusou-se a divulgar o relatório, que pareceu não ter maiores
grandes possibilidades para as Madres.158 Mas os preparativos da
consequências. Além disso, as Madres terminaram se arrependendo
Copa do Mundo também provocaram uma crescente repressão
de terem dado seus depoimentos para a comissão já que muitos
política. Além disso, o aumento do patriotismo que acompanhou os
dos nomes e informações que possuíam acabaram nas mãos dos
jogos tornou muito difícil para as Madres disseminar a sua mensagem
militares.165
para o público argentino. As Madres foram acusadas de organizar
uma campanha anti-Argentina, perdendo o pouco apoio popular que No entanto, a combinação da crescente atenção internacional
tinham.159 Nesse contexto de indiferença generalizada, as autoridades e dos esforços das comunidades de exilados políticos espalhados pelo
tiveram passe livre para a repressão. No final de 1978 e no início de mundo permitiu que as Madres estabelecessem uma extensa rede
1979, as Madres sofreram sua mais severa perseguição.160 Mães foram de solidariedade internacional. Na primavera de 1979, as Madres,
presas e humilhadas repetidamente. O aumento da brutalidade apoiadas pela solidariedade internacional, estavam novamente
policial tornou muito difícil para as mães manterem sua presença prontas para fazer um movimento para atuar na frente doméstica.
semanal na Plaza de Mayo e, eventualmente, elas tiveram que retornar Em um ato de rebelião aberta criaram uma associação legalmente
temporariamente à clandestinidade de seus primeiros dias.161 registrada.166 Com o apoio financeiro de organizações internacionais
de solidariedade, elas puderam até mesmo bancar de um escritório
Se as Madres sobreviveram a este período de maior
próprio no início de 1980.167 Através desse escritório logo começaram
repressão e isolamento, foi devido a uma campanha de solidariedade
a escrever e publicar numerosos panfletos, folhetins e até mesmo
e da pressão diplomática que vinha do exterior.162 O regime militar
um jornal. Por volta da mesma época, as Madres decidiram voltar à
matou e sequestrou um grande número de cidadãos estrangeiros e
Plaza de Mayo, por mais forte que fosse a repressão. A partir deste
de cidadãos com dupla nacionalidade. Isso provocou um aumento
momento, elas não parariam de ir até a Praça até a sua última marcha
da atividade diplomática em várias embaixadas em Buenos Aires. Os
de número 15.000, quase três décadas depois, em 2006.168
militares começaram a sentir a pressão de vários países, incluindo a
Suécia, Alemanha, França, Itália, Holanda e os EUA. Em setembro O ano de 1981 foi importante para as Madres. O apoio
de 1979 a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos popular nacional finalmente aumentou, enquanto o regime
Estados Americanos se dirigiu ao país para inspecionar as suspeitas começava a enfrentar divisões em suas fileiras e provou ser incapaz
de conter a crise econômica. No final da ditadura, os protestos das
157 Sánchez M., Historias de vida. Hebe de Bonafini. Buenos Aires, Fraterna/
del Nuevo Extremo, 1985, pp. 148-150. Ver também: Bouvard, Revolutionizing 163 Bouvard, Revolutionizing Motherhood, p. 96.
Motherhood, p. 78. 164 Sánchez, Historias de vida, p. 185.
158 Gorini, La rebelión de las Madres, p. 213. 165 Bouvard, Revolutionizing Motherhood, pp. 96-97.
159 Simpson & Bennett, The Disappeared, p. 215. 166 Simpson & Bennett, The Disappeared, p. 168.
160 Sánchez, Historias de vida, p. 159. 167 Feitlowitz, A Lexicon of Terror, pp. 124-125.
161 Fisher, Mothers of the Disappeared, pp. 72-74. 168 Macpherson S., The Mothers’ last march … but their influence continues. In:
162 Gorini, La rebelión de las Madres, p. 239. The New Internationalist, Maio de 2006, p. 22.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Madres atraíram cada vez mais pessoas até que se tornaram enormes adequada para garantir a memória dos desaparecidos.172 Essas
manifestações públicas. O tom das Madres mudou e, em vez de questões eventualmente levaram à divisão das Madres de Plaza
pedir humildemente compaixão, começaram a exigi-la. Quando os de Mayo em 1986.173 Incomodadas pelo estilo de liderança da
militares tentaram repetir o truque aplicado na Copa do Mundo, ao presidente Hebe de Bonafini e sua atitude inflexível em relação
tentar o consentimento popular e o patriotismo através da invasão ao governo democrático, um grupo deixou a organização e criou
das ilhas Malvinas em 1982, as Madres responderam com uma um novo grupo denominado “Madres de Plaza de Mayo - Línea
campanha adaptada: “As Malvinas são argentinas, os desaparecidos Fundadora”.174 Ambos os grupos – o dirigido por Hebe de Bonafini
também”.169 e o novo grupo, liderado por María Adela Antokoletz – mantiveram
reuniões semanais na Plaza de Mayo, mas a fração de Hebe acusou
Após a humilhante derrota pelas mãos dos ingleses, o fim
os dissidentes de serem “alfonsinistas”.175 Na sequência irei me
da ditadura militar estava à vista. Logo um governo de transição
concentrar no grupo organizado em torno de Bonafini.176
começou a se preparar para a democracia, e em 10 de dezembro de
1983, Alfonsín foi declarado presidente. Durante dias a Argentina Evocando fantasmas. A resistência das Madres em tempos de
tornou-se cenário de celebrações animadas pela democracia. No democracia.
entanto, para as Madres, essa intensa alegria foi misturada com uma
tristeza ainda mais intensa. A transição para a democracia foi um Na noite anterior à posse de Alfonsín, centenas de cartazes
momento de esperança, mas também apresentou um novo desafio apareceram nas ruas de Buenos Aires. Eram esboços desenhados à
na busca da justiça e da memória. Ainda durante a ditadura haviam mão de figuras humanas de tamanho natural sem traços individuais
surgido fricções entre diferentes movimentos de direitos humanos e – com exceção de alguns, aos quais amigos e familiares não tinham
que estavam ativos na Argentina. Diferenças no estilo político e na sido capazes de resistir ao desejo – sem nome ou idade.177 Essa
estratégia criaram tensões entre os chamados afectados – grupos de presença fantasmagórica deveria representar os desaparecidos no
direitos humanos constituídos por vítimas ou parentes de vítimas novo período da democracia. O evento é um exemplo perfeito da
– e os não-afetados – organizações compostas principalmente por estratégia peculiar que as Madres de Plaza de Mayo desenvolveriam
profissionais.170 Após a transição democrática, discussões sobre 172 Especialmente o estatuto fantasmagórico dos desaparecidos, a recusa em
posições e alianças políticas também tiveram efeitos sobre o grupo reconhecer sua morte e o uso de alguns lemas radicais – sobretudo o já mencionado
dos afectados. Uma das principais controvérsias girava em torno aparición con vida – foram um ponto de discussão. Bouvard, Revolutionizing
Motherhood, p. 148.
da questão de quais posturas tomar em relação à administração
173 Asociaciòn Madres de Plaza de Mayo, ‘Basta de milicos’ [Dezembro de
Alfonsín.171 Outra discussão acalorada surgiu sobre a estratégia 1986]. Em: http://www.madres.org/marchas/marchas1_10/marchas6.asp (acesso em
06.01.2008).
169 De Bonafini, ‘Las Madres en Primera Persona.’
174 Ver o website das Madres de Plaza de Mayo - Línea Fundadora. Em: http://
170 Sobre os movimentos argentinos de direitos humanos, ver: Jelin E., The www.madresfundadoras.org.ar/ (acesso em 25.02.2008).
Politics of Memory. The Human Rights Movements and the Construction of
Democracy in Argentina. In: Latin American Perspectives, 21 (1994), pp. 38-58; Brysk 175 Joselovsky S., Madres de Plaza de Mayo. ‘No hubo mas remedio’. In: El
A., The Politics of Human Rights in Argentina. Protest, Change, and Democratization. Periodista de Buenos Aires, 2 (25 de abril a 1 de maio de 1986) 85, p. 7. (entrevista com
Stanford, Stanford University Press, 1994. E também: Bonner M. D., Defining Rights María A. Antokoletz)
in Democratization. The Argentine Government and Human Rights Organizations, 176 O grupo das Madres liderado por Hebe de Bonafini pode ser reconhecido
1983-2003. In: Latin American Politics and Society, 47 (2005), 4, pp. 55-76. pelo nome completo de “Asociación Madres de Plaza de Mayo”. Por conveniência,
171 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Entrevista a Hebe de Bonafini.’ Em: porém, chamaremos de Madres ou Madres de Plaza de Mayo.
www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=786 (acesso em 04.01.2008). 177 Simpson & Bennett, The Disappeared, p. 387.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

nas próximas décadas. A fim de obter uma primeira perspectiva sobre Em seguida, as Madres afirmam que rejeitam reparações
essa estratégia, basta lançar um olhar sobre um manifesto que enumera econômicas: “O que tem que ser reparado com justiça, não se pode
suas posições.178 O documento não tem data, mas é claramente tardio: consertar com dinheiro”.181 O ponto que segue é, à primeira vista,
as Madres desenvolveram um discurso revolucionário aberto, que já estranho para um movimento que luta contra o esquecimento, mas é
não se limitava à proteção dos direitos humanos fundamentais, mas consistente com a ideia de que os desaparecidos não estão mortos. As
incluía também um projeto ambicioso de reformas socioeconômicas. Madres rejeitam homenagens póstumas:
No entanto, o que nos interessa aqui é outro aspecto do discurso Rejeitamos as placas de identificação e os monumentos
radical e altamente consistente das Madres: sua atribuição de um porque significam o enterramento dos mortos. [...]
estatuto quase espectral aos desaparecidos. A homenagem póstuma serve apenas aos que são
responsáveis pela impunidade e querem se livrar de sua
Um dos primeiros pontos do documento afirmava que os culpa. O único monumento que podemos erguer é um
desaparecidos estão vivos. O raciocínio é o seguinte: comprometimento inflexível com seus ideais.182
Nós, as Madres de Plaza de Mayo, sabemos que nossos Quando perguntadas sobre de onde surgem suas posições
filhos não estão mortos; eles vivem nas lutas, nos sonhos
radicais sobre a memória e a justiça, as Madres referem-se ao caso da
e na promessa revolucionária de outros jovens. Nós, as
Madres de Plaza de Mayo, encontramos nossos filhos em justiça de transição na Bolívia que as chamou atenção e serviu como
cada homem ou mulher que se levanta para libertar seu exemplo negativo. Elas alegam que começaram a rejeitar reparações
povo. Os 30.000 desaparecidos vivem em cada um que econômicas, exumações e monumentos depois de visitarem a Bolívia,
dedica sua vida para que outros possam viver.179 onde viram como as vítimas foram enganadas pela comissão de
O ponto seguinte, “Cárcel a los genocidas”, exige punição direitos humanos, que as deram alguns monumentos e um pouco de
para os perpetradores de “genocídio” e é um clamor contra a dinheiro mas que, segundo elas, ao mesmo tempo que abandonaram
impunidade. Após esse ponto segue outro mais peculiar em que se as vítimas à militares e políticos que nada investigaram e deixaram
rejeitam as exumações: tudo como estava.183
As Madres de Plaza de Mayo rejeitam exumações As experiências negativas com o caso boliviano
porque nossos filhos não são cadáveres. Nossos filhos provavelmente influenciaram a posição hostil das Madres em relação
desapareceram fisicamente, mas vivem na luta, nos
ideais e no compromisso de todos aqueles que lutam pela 181 Ibid. (Tradução do autor).
justiça e pela liberdade de seu povo. Os restos de nossos 182 Ibid. (Tradução do autor). No que parece ser uma reação direta a essas
filhos devem ficar onde eles caíram. Não há túmulos para posturas, as mães da Línea Fundadora explicam sua posição em um documento
enterrar um revolucionário. Um punhado de ossos não os datado de 1987. Elas aceitam a necessidade de exumações se não forem realizadas
identifica porque eles são sonhos, esperanças e exemplos em escala maciça e se acontecerem após consulta da família próxima das vítimas.
para as gerações vindouras.180 Elas não rejeitam as homenagens póstumas realizada em universidades, escolas,
sindicatos, etc., se elas forem voltadas para uma lembrança real. Além disso, afirmam
que as famílias têm de decidir se aceitam reparações econômicas individualmente.
Ver: Madres de Plaza de Mayo - Línea Fundadora, ‘Brevísimo resumen de la creación
178 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Nuestras Consignas.’ Em: http:// y desarrollo del movimiento de Madres de Plaza de Mayo’ [1987]. Em: http://www.
www.madres.org/asociacion/documentos/consignas/consignas.asp (acesso em madresfundadoras.org.ar/documentos.shtml?x=69070 (acesso em 25.02.2008).
06.01.2008).
183 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Encendiendo fueguitos’ [20 de
179 Ibid. (Tradução do autor). fevereiro de 2003]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=392 (acesso
180 Ibid. (Tradução do autor). em 19.01.2008).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

à CONADEP. Outras organizações de direitos humanos também escavação de uma série de covas. As Madres estavam convencidas de
reagiram inicialmente de forma negativa ao modelo de Alfonsín para que essas exumações faziam parte de uma estratégia governamental
a comissão. Assim como as Madres, muitas organizações de direitos para transformar os desaparecidos em mortos “ordinários”, a fim de
humanos temiam inicialmente que a criação de uma comissão da desmobilizar as mães de luto e encerrar esse capítulo. Em retrospectiva,
verdade fosse apenas uma estratégia para ganhar tempo e deixar as elas falam sobre as exumações como a primeira fase do Punto Final de
coisas esfriarem. Além disso, também como as Madres, a maioria dos Alfonsín: “o verdadeiro ponto final não começou com a lei do ponto
membros da comunidade de direitos humanos criticou o polêmico final; começou quando Alfonsín, durante seus primeiros meses de
prólogo do relatório Nunca Más, que implicitamente igualava o terror governo, enviou telegramas dizendo que nossos filhos estavam mortos
de Estado com a violência das guerrilhas de esquerda.184A decepção em um ou outro cemitério [...] O ponto final era uma pequena placa
pelo fato de o relatório não ter nomeado perpetradores foi outra coisa em cada lugar dizendo “aqui estudou”, “aqui trabalhou”.187
amplamente compartilhada entre ativistas de direitos humanos. No
As Madres criticaram a mídia sensacionalista que
entanto, enquanto a maioria das organizações de direitos humanos
transformara a questão em um “show de horror” que, de acordo com
acabaram por endossar a comissão e colaborar com ela, as Madres
elas, auxiliaria Alfonsín a realizar um tipo de solução por esgotamento:
nunca mudaram de posição e mais tarde se tornaram ainda mais
“As pessoas estavam saturadas de horror e não queriam saber mais
hostis em relação ao trabalho de Sábato.
sobre isso, porque o horror tem seus limites. Essa era a intenção”.188
A razão para essa resistência contínua foi, em última instância, Além disso, alegavam que as exumações apenas confirmavam o que
baseada em uma crítica a uma outra natureza diferente daquelas que já era sabido. Elas não estavam interessadas em detalhes mórbidos
acabamos de resumir – uma crítica que era particularmente relvante e temiam que, ao aceitar a morte dos desaparecidos, sua posição
para as Madres. As Madres ficaram preocupadas porque a comissão, estratégica na busca por justiça se enfraqueceria. Resistir à urgência
com sua narrativa sobre extermínios em massa e de covas secretas, de ter os restos de seus filhos deve ter sido extremamente difícil para a
facilitaria o enterro simbólico dos desaparecidos.185 A verdade maioria das mães. Hebe de Bonafini lembra o quão difícil foi assumir
produzida pela CONADEP, afirmavam as Madres, era uma “verdade a posição radical sobre as exumações:
dos cemitérios” e a lembrança resultante era uma “memória da morte” custou-nos semanas e semanas de reuniões em que houve
em vez da “memória fértil” que defendiam.186 muitas lágrimas e desespero, pois a profunda formação
católica de nosso povo cria quase uma necessidade de ter
Essa suspeita aumentou quando a CONADEP ordenou a um cadáver, um enterro e uma missa.189
184 Em edições posteriores, o prólogo foi ajustado, e a diferença entre violência As Madres não se opuseram apenas simbolicamente às exumações,
por parte de civis e violência estatal foi claramente declarada.
também fisicamente tentaram impedir os arqueólogos forenses de
185 Em contraste, os antropólogos forenses reclamaram mais tarde que a
CONADEP cedeu à pressão das Madres e não se atreveu a declarar explicitamente que desenterrarem os corpos. Depois de algumas exumações pouco
os desaparecidos estavam mortos. Salama M. C., Tumbas anónimas. Informe sobre la profissionais, onde escavadeiras e coveiros não qualificados
identificación de restos de víctimas de la represión ilegal. (Relatório da Equipo Argentino
de Antropología Forense) Buenos Aires, Catálogos Editora, 1992, pp. 104-105.
187 De Bonafini, ‘Las Madres en Primera Persona.’ (Tradução do autor)
186 Expressões de: Asociación Madres de Plaza de Mayo, Memoria Fértil. La
dictadura, la impunidad y la compleja trama de complicidades 1976-2005. Buenos 188 Depoimento de Graciela de Jeger in: Fisher, Mothers of the Disappeared, p. 129.
Aires, Libros Editados, 2005. E também: Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Cierre 189 Citado em: Robben A., State Terror in the Netherworld. Disappearance and
del seminario’ [18 de dezembro de 1999]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido. Reburial in Argentina. In: Robben A. (ed.), Death, Mourning and Burial. A Cross-
asp?clave=156 (acesso em 28.01.2008). Cultural Reader. Malden, Blackwell Publishing, 2004, pp. 134-148, 143.

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arruinaram evidências forenses cruciais, grupos de direitos humanos inesperada quase três décadas após seu desaparecimento. As Madres
insistiram a CONADEP a buscar ajuda da American Association ficaram perplexas e tiveram que se reunir por algum tempo para
for the Advancement of Science.190 A pedido da CONADEP, a decidir que posição tomar. Numa conferência de imprensa alguns dias
famosa arqueóloga forense americana Clyde Snow foi ao país para depois, elas explicaram sua posição. Depois de lembrar à imprensa
treinar arqueólogos locais para se tornarem especialistas forenses. que nunca considerariam os desaparecidos como mortos, declararam
Depois que Snow treinou uma equipe que mais tarde seria a base que respeitariam a decisão dos parentes de suas ex-integrantes. As
da internacionalmente renomada Equipo Argentino de Antropologia Madres, como um coletivo, no entanto, não participariam do funeral
Forense (EAAF), uma de suas mais importantes tarefas foi a exumação ou em qualquer ritual ligado à morte. Não, elas não precisavam de
de Liliana Pereyra em um cemitério em Mar del Plata. A mãe de Liliana cadáveres para saber o que aconteceu. Já conheciam a verdade, e seus
havia pedido a exumação, mas esperavam-se encontrar também filhos e companheiros tinham que ser considerados desaparecidos para
outros dois corpos na mesma cova. Presumia-se que um desses corpos siempre.194 A mensagem foi repetida na Plaza de Mayo na mesma tarde:
pertencia a Ana María Torti, cuja mãe era integrante das Madres e [...] dissemos à imprensa que as Madres vão respeitar
que se recusou a dar permissão para a abertura da cova. No primeiro absolutamente o que decidem as filhas dos nossas
dia da exumação, os arqueólogos foram capazes de trabalhar sem camaradas, mas que o lenço branco, que não tem o nome
grandes perturbações. No entanto, quando os arqueólogos chegaram de uma só pessoa mas os nomes de mais de 200.000
ao cemitério no dia seguinte, encontraram um grande número desaparecidos em toda a América Latina, nunca estará
associado à morte. Essa morte, segundo nós, não tem
de ativistas em pé ao redor das sepulturas entreabertas. As Madres nada a ver com o lenço. Por tudo isso, não participaremos
haviam chegado de madrugada e começaram a dar voltas nas covas.191 de nenhuma cerimônia que tenha a ver com morte,
sepultamento ou homenagem póstuma, mesmo que seja
Os arqueólogos forenses da EAAF defenderam-se contra a
para nossas companheiras.195
crítica das Madres, afirmando que seu principal objetivo era “devolver
um nome e uma história àqueles que foram roubados de ambos”.192 Para O que vale para enterros e homenagens póstumas também
defender suas atividades, os arqueólogos usaram inclusive argumentos vale para monumentos e museus. Em meados da década de 1990,
filosóficos e afirmaram que o enterro e o cuidado pelos mortos existem surgiu um conflito sobre o destino do antigo centro clandestino
desde a pré-história e caracterizam o sentido do ser humano. Mesmo de detenção da ESMA em Buenos Aires. Após a ditadura, a ESMA
depois de desastres naturais ou guerras, eles afirmaram, as pessoas permaneceu propriedade da Marinha e o edifício continuou a
geralmente tentam enterrar aqueles que morreram, ou pelo menos funcionar como uma escola para oficiais militares. No entanto,
tentam honrá-los com tumbas simbólicas.193 nenhum edifício da Argentina simbolizou terror de Estado mais do
que este. A partir do início dos anos 90, a ESMA tornou-se cenário de
Apesar destes argumentos, as Madres nunca pararam de
uma série de escândalos.196 Em Maio de 1993, uma escola particular de
rejeitar as exumações, e sua atitude tem sido por vezes assustadoramente
firme. Em 8 de julho de 2005, os restos das três Madres que haviam 194 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Nuestras tres mejores madres’ [14 de
julho de 2005]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=1146 (acesso
sido sequestradas durante a ditadura apareceram de forma totalmente em 14.01.2008).
190 Joyce & Stover, Witnesses from the Grave, p. 232. 195 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘No reivindicamos los cuerpos
de nuestras compañeras, sino sus vidas, su pensamiento, su historia’ [14 de julho
191 Ibid., pp. 257-259. de 2005]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=1140 (acesso em
192 Salama, Tumbas anónimas, p. 13. (Tradução do autor). 14.01.2008). (Tradução do autor)
193 Ibid., p. 16. (Tradução do autor). 196 O relato a seguir é baseado em: Feitlowitz, A Lexicon of Terror, pp. 173-175.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

elite anunciou que utilizaria os campos de jogo da ESMA para as suas os militares fornecessem uma lista de todas as pessoas executadas
atividades esportivas. Era amplamente conhecido que esses campos durante a “guerra suja”. O pedido foi primeiramente vetado pelo
de esportes haviam servido para a queima de dezenas de cadáveres governo e pelos militares, e mais tarde a existência das listas foi negada,
e alguns pais, incluindo o parente de um desaparecido, se opuseram mas eventualmente, após muita pressão interna e internacional, uma
ao acordo. Mas a escola se manteve firme e mais tarde outras escolas lista foi publicada nos principais jornais em 1 de abril de 1995. O
também começaram a usar os campos. resultado decepcionou e insultou os parentes: a lista continha apenas
545 nomes, e nenhuma informação foi fornecida sobre o destino
Em 1995, as tentativas da Marinha em outorgar promoções
final das vítimas.198 A questão também azedou as relações entre as
a alguns acusados de assassinato e tortura mantiveram a ESMA em
diferentes facções do movimento de direitos humanos. As Madres
notícia. Nesse mesmo ano, os restos de pelo menos seis pessoas foram
rejeitaram a ideia das listas porque, segundo elas, coincidia com uma
encontrados numa lata de lixo pertencente à ESMA. Especialistas
estratégia governamental que visava “encerrar com toda a questão dos
confirmaram que os ossos provavelmente pertenceram a desaparecidos,
desaparecidos, transformando-os em mortos”.199 Em um discurso na
mas a Marinha se recusou a comentar.
cidade de Neuquén, Hebe de Bonafini lamentou que algumas mães
É neste contexto que as Madres começaram a organizar tivessem pedido pelas listas e afirmou que a luta das Madres era
ações de protesto nas portas do antigo centro de detenção. Em meados coletiva e que os nomes não importavam, pois tinham fotos. Mais
da década de 1990, em frente à ESMA, as Madres proferiram o seu uma vez, o discurso terminou com uma elaboração sobre o retorno
discurso espectral mais importante. O discurso de Hebe de Bonafini fantasmagórico dos desaparecidos: “Eles os jogaram no mar, mas eles
por ocasião do 19º aniversário do golpe é como uma clássica história voltaram. Eles os queimaram, mas eles voltaram. Eles os jogaram
de fantasmas: em masmorras, mas eles voltaram. Eles os torturaram, mas eles
Claro, os cadáveres continuavam aparecendo. Hoje, nesses voltaram”.200
muitos anos de distância, eles retornam! E retornam! E
retornam! E aqueles cadáveres que apareceram naquela
Apesar da tentativa fracassada de obter as listas, um
época nas praias de Santa Teresita, foram a prova de grupo de advogados, associados ao grupo de direitos humanos
que nossos filhos retornam, eles retornam em cada um CELS, continuou pressionando o governo, argumentando que os
que clama, eles retornam em cada um que protesta, eles familiares tinham o direito de obter informações. Dado que não havia
retornam em cada um de vocês!197 possibilidade de punição dos perpetradores após as leis de anistia
Por volta do mesmo período, duas outras questões chamaram de Alfonsín e Menem, o CELS se esforçou por um novo tipo de
a atenção das Madres: “a batalha sobre as listas” e a invenção jurídica processo judicial que não condenaria, mas procuraria a verdade. Eles
dos “julgamentos pela verdade”. A discussão sobre as listas das vítimas construíram seu caso em uma tríade de considerações humanitárias:
do terrorismo de Estado começou depois que confissões sobre os vôos “o direito inalienável à verdade, a obrigação de respeitar o corpo e
da morte da Marinha trouxeram o passado de volta na agenda pública.
198 Feitlowitz, A Lexicon of Terror, pp. 215-217.
Alguns grupos de direitos humanos pediram ao presidente Menem
199 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Reseña de la historia de las madres
que usasse sua posição como comandante-em-chefe e exigisse que hasta 1995.’ Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=2379. (acesso em
23.10.2008).
197 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘“!Pido Castigo!”’ [23 de março 200 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Nuestros hijos nacen cada día.’ [24 de
de 1995]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=285. (acesso em março de 1995]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=287. (acesso
10.01.2008). (Tradução do autor) em 10.01.2008). (Tradução do autor).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

o direito de luto pelos mortos”. A equipe do CELS não só utilizou impunidade. As Madres possuem a receita da “memória
fontes legais, mas também se referiu à literatura e à história mundial fértil” para lutar contra o esquecimento. Essa memória
para sustentar suas afirmações sobre a necessidade universal de ritos considera o valor da vida como supremo, assegura a
reabilitação dos desaparecidos como ativistas e tenta
funerários: os rituais funerários dos neandertais, a história cultural da construir pontes para novas gerações de homens e
morte de Philippe Ariès e até a Antígona de Sófocles.201 As Madres mulheres solidários e militantes.205
denunciaram os “julgamentos pela verdade” como uma armadilha
jurídica. Elas se incomodavam pelo fato da ideia ter sido proposta por A “memória fértil” das Madres encontrou terras menos
grupos de direitos humanos e apoiada por diversas mães e parentes.202 áridas após a virada do milênio com a chegada do presidente Néstor
Kirchner (2003-2007). As Madres estavam felizes com a anulação de
No final da década de 1990, as Madres protestaram contra algumas das leis de anistia e com os novos processos contra oficiais
o projeto de construir um parque de memória em Buenos Aires. Em por violações perpetradas quase três décadas antes. Em março de
1999, enviaram uma carta aos iniciadores do projeto dizendo que “se 2004, Kirchner presidiu uma cerimônia durante a qual os retratos de
necessário [elas] usariam picaretas, martelos e cinzel para apagar os ex-líderes da junta militar foram removidos das paredes da ESMA.
nomes [de seus filhos desaparecidos] listados neste monumento”.203 No mesmo dia, o presidente anunciou que o colégio militar seria
O Parque de la Memoria seria eventualmente construído, mas expropriado e transformado em um memorial.206 Seis anos antes, em
apenas de forma parcial e com vários anos de atraso. Observando 1998, as Madres haviam protestado fortemente contra o plano do
retrospectivamente, as Madres explicaram mais uma vez o motivo presidente Menem de demolir a ESMA e construir um monumento
dessa tomada de posição acerca de monumentos e homenagens de reconciliação nacional no local. Desta vez, após as negociações
póstumas. As Madres definitivamente resistem ao esquecimento, mas necessárias, apoiaram os planos para a ESMA.207
é notável o modo como a lembrança para elas sempre deve servir à
justiça e nunca deve ser considerada um objetivo em si mesmo. Como No trigésimo aniversário do golpe, em 2006, as Madres
elas dizem: “aquele que não perdoa não se esquece, mas aquele que se sentiram vitoriosas: finalmente, o Estado reconheceu suas
apenas diz que não esquece muitas vezes perdoa”.204 A oposição responsabilidades e, finalmente, empenhou-se em uma forma de
central, aliás, de acordo com as Madres, não é entre a lembrança e o reparação política em vez de econômica. Em um número especial de
esquecimento, mas entre o esquecimento e um certo tipo de memória seu Periódico Mensual, o resultado de três décadas de luta é revisto:
que elas chamam “memória fértil” – a memória que alimenta a sede e Desde o dia em que o atual presidente, recentemente
a fome da justiça: instalado na Casa Rosada, derrubou a cúpula militar,
iniciou-se uma longa lista de atos políticos com alta
Assim como as reparações econômicas, as leis de anistia relevância simbólica e histórica que honram a posição
ou a escolha de cúmplices do genocídio em cargos eletivos meticulosamente sustentada pelas Madres contra as
na “democracia”, o esquecimento é outra variedade da reparações econômicas, os parques de memória, as
exumações de cadáveres e a CONADEP. [...] Trinta anos
201 Feitlowitz, A Lexicon of Terror, pp. 242-243. se passaram, mas a “Aparición con Vida” formulada pelas
202 Asociación Madres de Plaza de Mayo, Memoria Fértil.
203 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Carta a la Comisión Pro-Monumento 205 Asociación Madres de Plaza de Mayo, Memoria Fértil. (Tradução do autor)
a los desaparecidos.’ Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=744 206 Human Rights Watch, ‘Argentina Confronts Past on Coup Anniversary’ [24
(acesso em 25.01.2008). de março de 2004]. Em: http://www.hrw.org/english/docs/2004/03/24/argent8213.
204 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Reseña de la historia de las madres htm (acesso em 07.02.2008).
hasta 1995.’ 207 Asociación Madres de Plaza de Mayo, Memoria Fértil.

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Madres derrotou drasticamente o “Nunca Más” de Sábato todas as probabilidades, continuavam esperando que os desaparecidos
e do Congresso.208 fossem encontrados vivos. No entanto, por trás da demanda pela
aparicón con vida havia mais do que apenas uma espera contra
toda esperança. Para as Madres, que sustentavam essa demanda, ela
“Aparición con vida”. A história de um lema se tornou uma maneira radical de reagir à atitude e ao discurso do
Como entender as posições radicais e por vezes estranhas das governo militar e de seus sucessores democráticos.
Madres sobre o legado do terror de Estado? O que pensar da linguagem Inicialmente, os pedidos das Madres aos militares haviam
espectral manifestada em expressões como “desaparecidos para siempre” e sido formulados principalmente em termos do direito à verdade. Em
“aparición con vida”? O que pode significar esta última expressão quando 1977, o primeiro anúncio colocado em um texto sobre os desaparecidos
as Madres a contrastam firmemente com a frase internacionalmente se intitulava Solo pedimos la verdad.210 Em outras ocasiões, a demanda
celebrada Nunca más, que elas denunciam como sendo um lema vazio por verdade foi inclusive apoiada por um argumento sobre a
e alfonsinista? Como afirmei no começo deste capítulo, o discurso das necessidade humana universal de fazer luto aos mortos. Em abril
Madres deve ser visto primeiramente como uma forma de resistência de 1979, as Madres enviaram um documento a várias autoridades
contra o tempo irreversível da história com sua ênfase na ausência ou internacionais, incluindo a ONU, o governo dos EUA e o papa, no
na distância do passado e o modo como essa cronosofia foi usada para qual expressaram a dor excepcional dos familiares dos desaparecidos:
sustentar o longo reinado da impunidade na Argentina.
Os sequestrados permanecem privados de qualquer
Para compreender a “invenção” das Madres da figura identidade, não se sabe se estão mortos ou vivos, e no último
espectral do desaparecido, precisamos olhar para a origem e a caso se estão detidos e onde. Isso gera ambiguidades de todos
os tipos, das quais as lesões psicológicas são os resultados
transformação da demanda pela aparição com vida. As Madres
mais graves. Os parentes acabam se relacionando com as
situam o primeiro uso público da frase “aparición con vida” no início ausências que se convertem em “fantasmas”. [...] Temos
dos anos 80. A ocasião para o uso do lema veio quando o ativista de que enfrentar a ausência, que, por sua extrema dor, não
direitos humanos Emilio Mignone (da organização CELS), durante é um processo comum de luto. Trata-se de um “luto sem
uma visita à Europa, proclamou que os desaparecidos estavam mortos. objeto”. É o vazio, a perda absoluta, a morte sem cadáver
As Madres reagiram publicando um documento que pedia a aparição e sem o enterro [...] Todas essas relações distorcidas são
causadas por este ato bárbaro de sequestro. As famílias
viva dos desaparecidos.209 A questão do estatuto dos desaparecidos pedem a verdade para poder enfrentá-la.211
seria um grande ponto de ruptura dentro do movimento de direitos
humanos. Já antes do final da transição para a democracia, a maioria Forçados a uma posição defensiva, os líderes da segunda
das organizações profissionais de direitos humanos recusou-se a junta logo reagiram negando todo o fenômeno dos desaparecimentos.
marchar sob a bandeira “aparición con vida” porque consideravam Em um discurso pronunciado em maio de 1979, o general Viola
essa uma exigência não razoável ou mesmo irracional. afirmou que os militares haviam lutado e vencido uma guerra não
convencional que inevitavelmente produziu perdas:
É verdade que por algum tempo muitos parentes, contra
Esta guerra, como todas as guerras, deixa algumas sequelas,
208 Iramain D., ‘Las Madres, Vencedoras en los Actos a 30 años del golpe.
Reparación política (y no económica) desde el Estado.’ In: Periódico Mensual 210 O anúncio é reproduzido em: Sanchez, Historias de vida. Hebe de Bonafini,
Asociación Madres de Plaza de Mayo, Abril de 2006. (Tradução do autor) pp. 238-239.
209 De Bonafini, ‘Las Madres in primera persona.’ 211 Citado em: Salama, Tumbas anónimas, pp. 43-44. (Tradução do autor)

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grandes feridas que apenas o tempo pode curar. Elas são regime.215 Para entender como as declarações de morte pretendiam
causadas pelas perdas; os mortos, os feridos, os detidos, os provocar o fim do “episódio” da guerra suja, é interessante analisar
ausentes para sempre.212 com mais detalhes o chamado “documento final”, emitido em 28 de
A mensagem era clara: o tempo resolveria tudo, e não abril de 1983, no qual os militares ofereceram uma reflexão histórica
havia nenhuma presença fantasmagórica de desaparecidos, apenas sobre sua “guerra à subversão e ao terrorismo”.216 “Essa síntese
ausências eternas – “ausentes para siempre”. No entanto, o fato de histórica de um passado doloroso e ainda próximo”, diz uma das
os militares entenderem o poder perturbador da espectralidade dos primeiras frases, “quer servir de mensagem de fé e reconhecimento
desaparecidos se manifestou claramente em uma série de leis que sobre a luta por liberdade, justiça e direito à vida”. Um pouco mais
foram subsequentemente promulgadas. Essas leis declararam a morte adiante são feitas as seguintes declarações: “Chegou o momento de
de todas as pessoas que desapareceram por mais de alguns meses e as dirigirmo-nos para o futuro: será necessário mitigar as feridas que
leis foram apresentadas como um gesto de filantropia, uma vez que cada guerra produz, confrontar com espírito cristão a nova época
supostamente permitiriam aos parentes continuarem com suas vidas. que inicia e olhar para o amanhã com humildade”. As forças armadas
conhecem o seu lugar na história. Foi pedido, pelo povo argentino,
Em 1980, mesmo os representantes de alguns partidos
que lutassem contra a subversão, uma tarefa que ela orgulhosamente
democráticos começaram a negar a existência (espectral) dos
realizou e que agora havia terminado. Mas o chefe militar acrescenta
desaparecidos. Em meados de abril daquele ano, o presidente da Unión
de uma forma estranhamente semelhante ao influente lema do Nunca
Cívica Radical, Ricardo Balbín, de modo infame declarou na televisão
Más: a experiência foi amarga e “nunca mais deveria acontecer”.
espanhola que na Argentina não havia desaparecidos, apenas mortos:
Todo mundo sabe que os desaparecidos são pessoas O documento continua com uma narração dos
mortas, mas um país não pode viver com fantasmas/ acontecimentos da “guerra suja” e, pela primeira vez, menciona
fantasias [fantasmas]. Tem de lidar com as realidades, implicitamente os desaparecidos ou, melhor, sua inexistência:
por mais difíceis que sejam. Preferimos mães chorando
Muitos morreram em confrontações abertas com as forças
por seus mortos e não implorando, como agora, por uma
do governo, outros se suicidaram para fugir de sua captura,
resposta que lhes é negada por aqueles que a possuem, já
alguns desertaram e tiveram que se esconder tanto das
que é impossível de dar.213
autoridades quanto de seus próprios grupos.217
As Madres ficaram furiosas por essas declarações. Em uma Os militares deixam claro que não existe tal coisa como a existência
carta aberta, elas perguntaram sobre qual eram as fontes de Balbín e espectral dos desaparecidos. No máximo, existem “mortos não
declararam que não estavam pedindo respostas, mas tinham o direito identificados”, pessoas que morreram ou pessoas que simplesmente
de exigi-las em nome da justiça.214 nunca existiram. Além disso, eles asseguram, todos aqueles que foram
As juntas militares continuaram declarando que os mortos em ação mas não puderam ser identificados foram legalmente
desaparecidos não existiam ou que eram realmente mortos «normais», enterrados em covas anônimas.
particularmente quando sentiam que se aproximava o fim do 215 Ver, por exemplo: Camps R., Los Desaparecidos están muertos. In: El
bimestre politico y economic, 2 (1983) 7, pp. 62-65.
212 Salama, Tumbas anónimas, pp. 46. (Tradução do autor) 216 ‘Documento final sobre la guerra contra la subversion y el terrorismo’ [28
213 Ibid., p. 51. (Tradução do autor) April 1983]. Em: http://www.desaparecidos.org/nuncamas/web/investig/saydom/
214 Mellibovsky M., Circle of Love over Death. Mothers of the Plaza de Mayo. lasombra/lasombr9.htm (acesso em 11.03.2008) (Tradução do autor)
Willimantic, Curbstone Press, 1997, p. 122. 217 Ibid. (Tradução do autor)

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Todo o texto pode ser considerado como um ato de “capítulos” e afirmou que a anistia visava a “tarefa árdua e delicada
encerramento, que chega a uma conclusão central: que a “guerra suja” de fechar etapas amargas e dolorosas na vida nacional argentina”.222
pertence à história e que a nação quer olhar para a frente para tempos Menos de uma semana antes de anunciar sua primeira lei de anistia,
melhores, “que é o desejo de toda a nação de pôr um ponto final Menem realizou uma bizarra cerimônia em que o cadáver do general
[punto final] a um período doloroso em nossa história para iniciar, Juan Manuel de Rosas foi repatriado e colocado em um túmulo
em unidade e liberdade, a institucionalização constitucional definitiva familiar em Buenos Aires mais de 112 anos depois de sua morte.223
da república”.218 Rosas tinha sido uma figura proeminente no conflito civil de meados
do século dezenove; ele havia fugido da Argentina depois de uma
Nas sentenças finais, os líderes da junta falam sobre memória
derrota militar e, posteriormente, tornou-se objeto de interpretações
e reconciliação num tom que dificilmente pode ser discernido
históricas conflitantes que continuaram provocando animosidades
daqueles utilizados pela comissões da verdade: “A reconciliação é o
até o século vinte. O enterro simbólico, segundo Menem, foi de
difícil começo de uma era de maturidade e responsabilidade assumida
grande significado histórico para a reconciliação nacional de todos os
com realismo por todos. As cicatrizes são uma memória dolorosa, mas
argentinos; pois fecharia as feridas centenárias do passado e acabaria
também o cimento de uma poderosa democracia, de pessoas unidas
com a intolerância.224 Embora ele não se referisse diretamente à
e livres “.219 Antecipando as críticas, terminam afirmando que “[...]
“guerra suja”, era claro para todos, e certamente para as Madres, que
apenas o tribunal da história poderá determinar exatamente a quem
o objetivo político real de Menem não era reabilitar um general do
pertence a responsabilidade direta pelos métodos injustos e as mortes
século dezenove, mas enterrar as memórias mais frescas e muito mais
inocentes”.220
explosivas do recente período de terror de Estado.
Durante os primeiros dias do ressurgimento da democracia,
Quando o general Martín Balza, em 1995, acabou por pedir
as referências à necessidade de encerramento e reconciliação
desculpas pelos crimes de “guerra suja” cometidos em nome das forças
desapareceram do discurso público por algum tempo, mas logo
armadas, sua fala girou em torno de um discurso que mais uma vez
o governo democrático desenvolveu um discurso que às vezes se
recordava a reação inicial dos militares. Todos os mortos haviam de
assemelhava ao discurso militar. Em certo sentido, tanto os líderes
ser respeitados, mas as dívidas haviam sido limpas e a única coisa que
da junta militar quanto os líderes democráticos subsequentes
realmente contava era a verdade. Além disso, afirmou que “na história
compartilhavam concepções semelhantes de passado como algo
das nações, mesmo nas nações mais cultivadas, existem épocas duras,
que devia ser deixado para trás e subordinado aos interesses do
obscuras e quase inexplicáveis”. O passado, portanto, deveria ser
presente e do futuro. Ao final do seu mandato, Alfonsín afirmou que
deixado para trás, afirmou Balza, pois “se não conseguirmos fechar as
a Argentina não poderia sobreviver se não se libertasse do fardo do
feridas e realizar o trabalho do luto, não teremos um futuro.”225
passado.221 Do mesmo modo, Menem encobriu suas infames leis de
anistia em um discurso histórico que falava sobre o fechamento de
222 ‘Decreto 2742’ [30 de dezembro de 1990]. Em: http://www.derechos.org/
218 ‘Documento final sobre la guerra contra la subversion y el terrorismo’. nizkor/arg/doc/indultos.html (acesso em 12.02.2008). (Tradução do autor)
(Tradução do autor) 223 Robben, State Terror in the Netherworld, pp. 134-135.
219 Ibid. (Tradução do autor) 224 O discurso pronunciado por Carlos Menem durante o reenterro cerimonial foi
220 Ibid. (Tradução do autor) publicado em: Menem C., La Esperanza y la Acción. Buenos Aires, Emecé Editores, 1990.
221 Kindt T., ‘Het discours van president Raul Alfonsín (1983-1987). 225 Neustadt B., ‘Entrevista al General Martín Balza’ [25 de abril de 1995].
Democratisering na de “Vuile Oorlog” in Argentinië.’ Gent, UGent, 2008. (não Em: http://www.bernardoneustadt.org/contenido_88.htm (acesso em 13.02.2011).
publicada) (Tradução do autor)

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Pouco depois das primeiras negações públicas sobre a ninguém disse quem os matou, quem deu a ordem.229
existência de desaparecidos a partir de 1979 e das primeiras afirmações Ou como Hebe De Bonafini explica:
de que só haviam mortos “normais” ou “ausentes para siempre”, as
Madres aprenderam que deveriam mudar de estratégia: a partir de Nós sabemos o que aconteceu. Nós não somos loucas, nós
não pedimos coisas impossíveis. Aparición con vida é um
então, não pediriam mais apenas a verdade; elas também começariam lema ético em princípio. Enquanto um único assassino
a exigir a aparição viva e se recusariam a cumprir a tradicional tarefa de permanecer nas ruas, nossos filhos viverão para condená-
luto. Elas recusaram-se a assumir a atitude de “carpideiras”.226 Como los.230
observamos no início deste capítulo, a recusa das Madres em fazer luto
E sobre o mesmo assunto ela acrescenta em outro lugar: “[Por que]
tem sido muitas vezes considerada irracional ou até mesmo um sinal
eles gostam dos mortos? Porque a morte é o final”.231
de loucura. Como aponta Oscar Abudara Bini, psiquiatra argentino
e companheiro de viagem das Madres, para os fiéis leitores de “Luto
e Melancolia” de Freud, havia apenas duas possibilidades para os
Conclusão: o tempo dos desaparecidos
familiares dos desaparecidos lidarem com o passado: a primeira seria
o processo normal e natural de luto que reconhece a perda, e a outra O ativismo de direitos humanos das Madres de Plaza de
era evidentemente patológica e a delirante negação da perda. Após Mayo está claramente relacionado a um conceito específico de tempo.
três décadas de luta, porém, afirma Abudara Bini, a posição de Madres A apreensão deste conceito não é uma tarefa fácil, uma vez que as
força uma mudança de perspectiva tanto na psicopatologia quanto Madres continuam a ser um movimento orientado pela prática que
na jurisprudência, e, em retrospectiva, pode-se levantar a questão de não se debruça frequentemente sobre questões abstratas como o
quem foi o verdadeiro louco.227 Outro comentarista observa que as tempo. Felizmente, existem algumas fontes que podem nos apontar
Madres mudaram o significado político dos “resepultamentos” e até tais perspectivas. Em 1999, as Madres decidiram criar a Universidad
mesmo o significado espiritual dos restos mortais em uma maneira Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM), uma universidade
que confronta diretamente a constituição cultural da sociedade popular que se esforça para “unir a teoria e a prática” e funcionar
argentina, com suas fortes influências católicas.228 como um “novo espaço de resistência”.232 A UPMPM organiza um
curso sobre filosofia da história, mas as fontes mais interessantes para
O que poderia ter começado, então, como a espera
analisar a concepção das Madres do tempo e da história encontram-se
desesperada contra toda a esperança rapidamente se transformou em
numa série de palestras inaugurais e num curso intitulado “História
uma poderosa posição estratégica e normativa. Como disse uma das
mães: 229 Testemunho de Carmen de Guede, em Fisher, Mothers of the Disappeared, p. 128.
230 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Discurso de Hebe de Bonafini’ [23 de
a verdade é que sabemos que os mataram. Aparición con março de 1995]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=774 (acesso
vida significa que, embora a maioria deles esteja morta, em 05.01.2008). (Tradução do autor)
ninguém se responsabilizou por suas mortes, porque 231 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Las madres nos sentimos
revolucionarias’ [Março de 1995]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.
asp?clave=420 (acesso em 05.01.2008). (Tradução do autor)
226 Expressão de: Mellibovsky, Circle of Love over Death, p. x.
232 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Creación de la UPMPM. Breve Reseña
227 Abudara Bini O., ‘El Derecho en psicoanálisis y los psicoanalistas ante Histórica de la Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo’ Em: http://www.madres.
derecho. Culto del bienestar, cultura del malestar, religón del terror.’ Em: http://www. org/univupmpm/univumpm.asp (acesso em 28.01.2008). Ver também: Asociación
madres.org/asp/contenido.asp?clave=1867 (acesso em 27.01.2008). Madres de Plaza de Mayo, ‘¿Como nació la Universidad?’ [Fevereiro de 2005]. Em:
228 Robben A., State Terror in the Netherworld, p. 144. http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=512 (acesso em 28.01.2008).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

das Madres de Plaza De Mayo “. Este último curso dá uma visão geral do crime.”235 Para ilustrar isso, Vázquez discute o caso do jornalista
da evolução do movimento. Curiosamente, ele começa com uma argentino José Luis Cabezas, assassinado em 25 de janeiro de 1996, e
“unidade metodológica” chamada “Memória, Passado e História”, para quem os manifestantes já gritavam “não se esqueçam de Cabezas”
que diferencia entre distintos usos da história que vão da “história dois dias depois, no dia 27. Em contraste com a detalhada “memória
como uma relação ativa com o passado” à “história como um discurso do horror”, a autora afirma, “começamos com a ideia de que o que
de poder hegemônico”. Para que os alunos elaborem um conceito se chama de passado argentino nunca chegou a ser passado, nunca
crítico de história, é proposta alguma literatura obrigatória; a lista terminou de acontecer, nunca teve um fim”.236 Para resumir, existem
inclui traduções espanholas de obras de Karl Marx, Eric Hobsbawm, duas formas de lembrança segundo Vázquez, uma que recorda tudo
Edward Thompson, Jean Chesneaux e também dois textos dos exaustivamente no estilo de Funes ou Nunca Más, mas se lembra
próprios organizadores do curso.233 Um deles é um artigo de Inés dizendo “isto já é passado”; a outra é a forma adotada pelas Madres,
Vázquez intitulado “Aspectos da memória e da cultura na Argentina que enfatizam a continuidade e são capazes de dizer “isto é o que
pós-ditadura”.234 somos”. Deve ficar claro que o artigo também discute implicitamente
duas concepções radicalmente diferentes do tempo, mas Vázquez
O artigo começa por citar algumas passagens do conto
trata a questão do tempo mais explicitamente em um seminário
“Funes el memorioso” de Jorge Luis Borges, que conta a história de
organizado em preparação da criação da universidade popular.237
um homem que depois de um acidente adquire a capacidade de se
Nesse seminário, Vásquez observa que a marcha circular semanal das
lembrar de tudo, incluindo os detalhes mais triviais mas, por causa
Madres era realizada no sentido anti-horário a fim de simbolizar seu
dessa condição, não pode pensar ou raciocinar. A memória pós-
desafio, e ela indica que o protesto das Madres entra necessariamente
ditadura na Argentina, diz Vázquez, é uma lembrança de detalhes
em conflito com a ideia geral de tempo linear e de progresso histórico.
exaustivos (horrendos) que, como o protagonista de Borges, sofre
A luta das Madres emana um tempo circular ou mesmo simultâneo
uma incapacidade de dar explicações. Mais uma vez, o relatório
Nunca Más da CONADEP serve como o exemplo mais proeminente Se, como vimos, a circularidade em geral nos oferece
desse fracasso. A autora denuncia que esse tipo de lembrança trata a outro modo de representar o tempo, de modo distinto ao
do escalonamento irreversível do passado, do presente e
“realidade permanente do horror produzido pela impunidade” como do futuro, a circularidade física apresentada pelas Madres
algo já passado, como aquilo ocorreu em “outro tempo, diferente do permite a integração dessas três instâncias estabelecidas
de hoje”. O resultado é que a sociedade começa a “se lembrar” mesmo pela cultura dominante para produzir a ilusão da ordem
em situações onde a “lógica temporal”, de acordo com Vázquez, temporal. Uma integração que poderíamos descrever
exige claramente “percepção e ação.” Em alguns casos, ela afirma, “a da seguinte forma: enquanto circulamos a pirâmide, os
desaparecidos (ligados ao passado na concepção clássica
exigência de lembrança (ainda que na realidade o que se pede seja
do tempo e no pensamento do establishment) estão
justiça) aparece imediatamente, praticamente ligada à ocorrência novamente aqui.238

235 Ibid., p. 207. (Tradução do autor)


233 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Programa Cátedra Historia Madres
de Plaza de Mayo.’ Em: http://www.madres.org/univupmpm/carreras/cursada_ 236 Ibid., p. 213. (Tradução do autor)
obligatoria/hist_madres/programa/programa.asp (acesso em 28.01.2008). 237 Vázquez I., ‘Algunas relaciones entre ética y política en la post-dictadura
234 Vázquez I., Aspectos de Memoria y Cultura en la Argentina postdictatorial. parte I’ [6 de novembro de 1999]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.
In: Vázquez I. & Downie K. (eds), Un país. 30 años. El pañuelo sigue haciendo historia. asp?clave=168 (acesso em 28.01.2008).
Buenos Aires, Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2006, pp. 201-217. 238 Ibid. (Tradução do autor)

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Vázquez lamenta que a temporalidade circular tenha passado, constituem um ataque frontal à prevalência de conceitos
sofrido, tão frequentemente, associações negativas no pensamento modernos de tempo e história. Hebe de Bonafini formula esse desafio
ocidental e que a maior parte da esquerda política na Argentina não de forma direta em algumas observações finais da série de palestras
tenha adotado o conceito de tempo das Madres. preparatórias. Em uma passagem altamente retórica, ela recorda um
incidente que ocorreu na época do julgamento da junta militar. Na
Alguns tentaram adaptar a peculiar política do tempo das
sala do tribunal, um dos juízes pediu-lhe para guardar o lenço branco,
Madres a questões sociais e políticas que excediam o envolvimento
mas ela se recusou porque os acusados estavam autorizados a usar
direto com a política da memória. Uma dessas tentativas pode ser
seus uniformes militares. A expressão em espanhol usada pelo juiz
encontrada no conceito de desaparecidos sociais, cunhado por Alfredo
tinha sido “archívese” e agora a presidente das Madres declara que
Moffat em outra das palestras realizadas na preparação da criação da
é exatamente esse “archívese” – traduzível como “arquive-se” tanto
Universidad Popular. Na Argentina, afirma Moffat, alguns grupos
no sentido de “guardar” ou “colocar nos arquivos” – que significa os
sociais, incluindo indígenas, escravos africanos, creoles, crianças de
compromissos que os políticos democratas fizeram com os militares,
rua, sem-teto e pacientes psiquiátricos, sempre foram obrigados a
os juízes, os clérigos e sindicatos burocráticos. “Esse archívese é a
desaparecer da sociedade. Os “desaparecidos sociais” são os “mortos
impunidade, o perdão, a desgraça”.240
vivos”: nem vivos nem realmente mortos. Assim como “desaparecidos
políticos”, escreve Moffat, aos “desaparecidos sociais” são negados A “memória fértil” das Madres não só resiste ao
qualquer história e são tornados invisíveis. Nas palavras de Moffat, esquecimento, mas também se opõe a todas as formas de lembrança
eles estão condenados a uma existência em “outro tempo e outro «histórica» que concebem o passado como uma entidade fechada que
espaço”. é separada do presente e apenas pode ser conservada arquivando seus
traços. Por mais de trinta anos, elas resistiram ao encerramento, e
A relação entre o tempo e a luta das Madres também é
o protesto contra a “morte” como uma metáfora mestra da história
brevemente comentada em mais uma das palestras preparatórias.
moderna é uma das características mais importantes de sua luta.
Enrique Marí, um dos filósofos jurídicos mais proeminentes da
Por temerem que o suposto estatuto ontológico inferior do passado
Argentina, afirma que o tempo é uma experiência essencialmente
“morto” (em comparação com o “presente vivo”) facilitasse sua
humana que não pode ser reduzida a uma simples realidade física.239
negligência e, portanto, a impunidade, elas o substituem por uma
O tempo, argumenta ele, tem de ser objeto de uma luta coletiva que
representação que enfatiza a presença espectral. A única maneira de
vise construí-lo de modo a resistir à linearidade, à sucessão e à simples
apreciar toda a extensão do contraste entre o famoso lema Nunca Más
acumulação de dias em que o passado, o presente e o futuro existem
e a menos conhecida Aparición con vida das Madres é vê-las como
sem interconexão.
fundadas em duas concepções conflitantes de tempo e história.
Os três comentaristas têm razão: a luta das Madres envolve
uma disputa pelo tempo. Mais do que simplesmente colocar um
formidável desafio político à sociedade argentina, a recusa das Madres
em realizar o trabalho de luto, sua resistência ao encerramento e
sua alegação de que os desaparecidos nunca serão uma questão do
239 Marí E., ‘La construcción social de la memoria y del olvido - parte I’ [6
de dezembro de 1999]. Em: http://www.madres.org/asp/contenido.asp?clave=159
(acesso em 28.01.2008). 240 Asociación Madres de Plaza de Mayo, ‘Cierre del seminario’.

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Berber Bevernage

Capítulo 3
“Nós, vítimas e sobreviventes, declaramos que o
passado está no presente”. A “nova África do Sul” e o
legado do Apartheid.

O passado é história, não podemos recriá-lo ou


mudá-lo
General M. Malan241

Seus tormentos são conhecidos


Por aqueles ossos que ainda chamam
Mas sabes que é o passado que está no presente
E que certas cabeças são assombradas pela
inquietação
Sobre as verdades que você procura.
Z. Mkhize, Grupo de apoio Khulumani242

Introdução
A Comissão de Verdade e Reconciliação da África do
Sul (TRC, 1996-2003) tem sido objeto de muitos elogios a nível

241 Malan M., ‘Submission to the Truth and Reconciliation Commission.’ Em:
http://www.doj.gov.za/trc/submit/malan.htm (acesso em 13.04.2007).
242 De um poema composto por Zweli Mkhize, membro do Grupo de Apoio
Khulumani. (No original: … Your torments are known/By those bones that are still
calling/But you know that it is the past which is in the present/And that certain heads
are haunted with uneasiness/About the truths you seek).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

internacional.243 Por todo o mundo, os comentaristas a celebraram é em si uma importante forma de justiça”.246 O acordo sul-africano,
como uma inovação jurídica e uma solução para os difíceis dilemas afirma-se, não foi uma anistia como equivalente da amnésia mas uma
envolvidos no enfrentamento de passados dolorosos em situações pós- “anistia pública” que, de acordo com aqueles que a outorgaram, era
conflito. Os integrantes da TRC afirmam terem criado de fato uma “algo mais e algo menos que uma norma impugnável”.247
fórmula que lida com o legado do Apartheid de forma exitosa, evitando
A TRC, de acordo com seus integrantes, empenhou-se na
tanto a impunidade como a vingança. Seu presidente Desmond Tutu
“luta da memória contra o esquecimento” de Milan Kundera.248 Alex
e o vice-presidente Alex Boraine têm viajado ao redor do mundo para
Boraine cita a famosa frase de George Santayana de que “aqueles que
compartilhar suas experiências. O parlamentar Johnny De Lange do
esquecem o passado estão condenados a repeti-lo”, e ele lembra aos
ANC disse orgulhosamente que a África do Sul era a primeira nação
seus leitores sobre a antiga sabedoria judaica de que “lembrar é o
a criar uma comissão da verdade através de uma lei parlamentar após
segredo da redenção”.249 Refletindo sobre o seu trabalho na comissão,
um processo público e participativo.244 Além disso acrescenta que a
Boraine escreve que “não sente vergonha de [sua] crença de que, no
TRC representou uma combinação única de formas tradicionais e
contexto sul-africano, a história deve ser reescrita e que a TRC tem
contemporâneas de lidar com a injustiça histórica. Em suas palavras, a
realizado uma significativa contribuição em vista desse fim”.250 Da
TRC combinou características tanto do “modelo de justiça” que visa a
mesma forma, Desmond Tutu afirma que a contribuição da TRC
prestação de contas por meio de processos judiciais, quanto do “modelo
para uma nova historiografia é um dos maiores legados da comissão,
de reconciliação” existente em países como o Chile, onde as comissões
que tenta oferecer um “roteiro para aqueles que desejam viajar para
da verdade foram combinadas com anistias gerais. A fórmula secreta
o nosso passado”.251 “Ainda podemos afirmar, sem medo de sermos
da TRC sul-africana, de acordo com seus integrantes e comentaristas
contraditados”, escreve Tutu, “que contribuímos mais para descobrir
internacionais, define-se em haver resistido a uma anistia geral ou
a verdade sobre o passado do que todos os processos na história do
irrestrita, fazendo a anistia ser condicionada à revelação completa
Apartheid”.252 Os defensores da TRC argumentam que uma comissão
da verdade histórica. A emergência desta verdade, afirma-se, leva a
da verdade é uma forma mais adequada para produzir a verdade
um processo de cura e reconciliação nacional e até contribui para
histórica do que qualquer tribunal: assim como “os processos de
a justiça “restaurativa”, assegurando a rememoração.245 Como um
justiça criminal sofrem quando devem lidar com o peso da história”,
proeminente juiz sul-africano expressou a ideia: “A exposição pública
da mesma forma “a história sofre quando é vista através de uma lente
e oficial da verdade, especialmente se o autor é parte desse processo,

243 A TRC foi mais ativa e pública entre 1996 e 1998, mas existiu até o lançamento 246 Goldstone R., Foreword. In: Villa-vicencio & Verwoerd (eds), Looking Back,
dos últimos volumes de seu relatório, em 2003. Reaching Forward, pp. viii-xiii, x.
244 De Lange J., The Historical Context, Legal Origins and Philosophical 247 Doxtader E., Easy to Forget or Never (Again) Hard to Remember? In: Villa-
Foundation of the South African Truth and Reconciliation Commission. In: Villa- Vicencio C. & Doxtader E. (eds), The Provocations of Amnesty. Memory, Justice and
Vicencio C. & Verwoerd W. (eds), Looking Back, Reaching Forward. Reflections on the Impunity. Claremont, David Philip Publishers, 2003, pp. 121-155, 123.
Truth and Reconciliation Commission of South Africa. Cape Town, University of Cape 248 Kundera é citado, entre outros lugares, em: Truth and Reconciliation
Town Press, 2000, pp. 14-31, 14. Commission of South Africa, Report (Volume 1), Cape Town, 1998, p. 116.
245 Para tais argumentos, ver por exemplo: Norval A., Truth and Reconciliation. 249 Boraine A., A Country Unmasked. Oxford, Oxford University Press, 2000, p. 260.
The Birth of the Present and the Reworking of History. In: Journal of Southern African 250 Boraine, A Country Unmasked, p. 288.
Studies, 25 (1999), 3, pp. 49-519, 505. Ver também: Du Toit A., Experiments with
Truth and Justice in South Africa. Stockenström, Gandhi and the TRC. In: Journal of 251 Prefácio por Desmond Tutu em: TRC, Report (Volume 1), p. 2.
Southern African Studies, 31 (2005), 2, pp. 419-448, 441. 252 TRC, Report Vol 1, p. 2.

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judicial”.253 Uma comentadora argumenta que a característica mais relação positiva direta entre a revelação da verdade e a reconciliação
importante do relatório final da TRC é que, ao contrário das decisões como afirmava a TRC.257 Para além das críticas sobre os aspectos
jurídicas, ela não representa um “ponto final” e não pode ser reduzida políticos e éticos da TRC, muitos especialistas, incluindo historiadores,
a uma narrativa de “verdade forense”. Com grande entusiasmo, ela criticaram duramente as descobertas das TRC, rejeitando seu foco
declara que “a TRC representa provavelmente um dos lugares de demasiado estreito e aquilo que designaram como uma “verdade
memória (lieux de mémoire) mais interessantes do nosso tempo”.254 diminuída”.258
No entanto, os abundantes elogios que a TRC recebeu De modo mais desconfortante, alguns comentadores
internacionalmente se encontram em agudo contraste com sua afirmam que a TRC sofreria de um curto espaço de memória e
recepção geral na própria África do Sul. Desde sua criação, a TRC tem que, potencialmente, facilitaria a amnésia social em vez de forjar
encontrado uma ampla gama de críticas. Não surpreendentemente, foi uma nova memória coletiva.259 Esta ideia está subjacente em vários
criticada por aqueles que preferiam o esquecimento e afirmavam que a críticos, mas foi formulada mais notavelmente por Jacques Derrida.
abertura de “feridas antigas” colocariam em perigo o futuro. Da mesma Derrida causou grande revolta quando, durante uma visita à África
forma, a TRC esperava críticas de inspiração política que afirmassem do Sul, em 1998, manifestou o seu receio de que a TRC corria o risco
que seu relatório final era parcial e que nem todas as partes eram de se transformar em um “exercício de esquecimento”. A iniciativa
tratadas igualmente ou, pelo contrário, que sua imparcialidade não da TRC em produzir um arquivo do Apartheid, ele afirmou, assim
diferenciava entre a imoralidade do Apartheid e a moral da luta contra como qualquer outro arquivo, produz memória e esquecimento ao
ele .255 Outra série de críticas foi dirigida ao acordo de anistia e à noção mesmo tempo: “Quando escrevo algo em um pedaço de papel”, dizia,
de reconciliação incluída no mandato da TRC. O acordo de anistia
257 Ver, por exemplo: van Zyl Slabbert F., Truth Without Reconciliation,
nunca foi apoiado pela maioria do público sul-africano, e tornou-se Reconciliation without Truth. In: Villa-Vicencio C. & Doxtader E. (eds), The
objeto de alguns dos mais sérios desafios jurídicos enfrentados pela Provocations of Amnesty, pp. 315-326, 323. Ver também: Forsberg T., The Philosophy
TRC.256 Além disso, nem todos estavam convencidos pela retórica da and Practice of Dealing with the Past. Some Conceptual and Normative Issues. In:
Biggar N. (ed.), Burying the Past. Making Peace and Doing Justice after Civil Conflict.
comissão sobre a justiça “restaurativa” ou sobre “a revelação como Washington D. C., Georgetown University Press, 2001, pp. 57-73. Argumentando
cura” e vários comentaristas questionaram se realmente existia uma a partir de uma perspectiva terapêutica, alguns alegaram que a ênfase da comissão
no esquecimento e na reconciliação e sua repressão de outras formas de resolução
253 Asmal K., Asmal L. & Suresh Roberts R., Reconciliation Through Truth. A psicológica por emoções menos nobres, como a raiva e a vingança, poderiam ter
Reckoning of Apartheid’s Criminal Governance. Cape Town, David Philip Publishers, consequências prejudiciais para os sobreviventes. Ver: Hamber B. and Wilson R.,
1996, p. 19. Symbolic Closure Through Memory, Reparation and Revenge in Post-conflict
254 Lollini A., Reconstructing the Past between Trials and History. The TRC Societies. In: Journal of Human Rights, 1 (2002) 1, pp. 35-53.
Experience as a “Remembrance Space.” In: Quest: An African Journal of Philosophy, 258 Ver, por exemplo: Mamdani M., A Diminished Truth. In: James W. & van de
16 (2002), 1-2, pp. 61-68, 67. Vijver L. (eds), After the TRC. Reflections on the Truth and Reconciliation Commission
255 Ver, por exemplo: Jeffery A., The Truth About the Truth Commission. in South Africa. Claremont, David Philip Publishers, 2001, pp. 58-61; Mamdani
Johannesburg, South African Institute of Race Relations, 1999. M., Amnesty or Impunity? A Preliminary Critique of the Report of the Truth and
256 Wilson R. A., The Politics of Truth and Reconciliation in South Africa. Reconciliation Commission of South Africa (TRC). In: Diacritics, 32 (2002), 3-4, pp.
Legitimizing the Post-Apartheid State. Cambridge, Cambridge University Press, 2001, 33-59, 55. Ver também: Posel D., The TRC Report. What Kind of History? What Kind
pp. 25-27. A própria existência da TRC foi ameaçada quando a Organização dos Povos of Truth? In: Posel D. & Simpson G. (eds), Commissioning the Past. Understanding
Azanianos (AZAPO) e as famílias de algumas das principais vítimas questionaram South Africa’s Truth and Reconciliation Commission. Johannesburg, Witwatersrand
a constitucionalidade das disposições de anistia. Ver: TRC, Report (Volume 1), pp. University Press, 2001, pp. 147-172, 148.
174-200. Ver também: Biko N., Amnesty and Denial. In: Villa-Vicencio & Verwoerd 259 Bundy C., The Beast of the Past. History and the TRC. In: James & van de
(eds), Looking Back, Reaching Forward, pp. 193-198. Vijver, After the TRC, pp. 9-20, 20.

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“eu coloco no meu bolso ou em algum lugar seguro apenas com o antes, registros foram sistematicamente destruídos para manter certos
objetivo de esquecê-lo, sabendo que posso encontrá-lo novamente processos secretos, e tem sido precisamente parte do mandato da TRC
enquanto, nesse meio tempo, tiver esquecido isso”.260 As declarações investigar essas práticas ilegais. Além disso, o conceito fundamental
de Derrida foram levadas a sério, e Verne Harris, diretor do Arquivo da TRC de tornar a anistia condicionada à revelação da verdade não
Histórico da África do Sul e membro da equipe de investigação da se baseia na convicção de que o simples esquecimento não serve mais
TRC, chegou a conclusão de que a comissão era um instrumento de como forma de lidar com o passado? Seriam tão pouco sinceros os
Estado, “fornecendo uma chave para recordar em benefício de um líderes da TRC quando citam Kundera e afirmam lutar contra o
esquecimento mais profundo”.261 Três historiadores sul-africanos esquecimento? É indesejável considerar o problema da justiça de
argumentam que o desejo da TRC de criar um novo passado nacional transição exclusivamente em termos de um conflito entre a lembrança
foi moderado pelo medo de perturbar o “cemitério da história” e falam e o esquecimento. Penso que um ponto de partida mais produtivo
de um mecanismo paradoxal no qual o passado é simultaneamente é criado por Heidi Grunebaum-Ralph, que alega que a relação da
exposto e submergido, ou exumado e (re)sepultado.262 Outros também TRC com o passado deve ser analisada como uma relação que cria
afirmam que a ideia de perdão visava o esquecimento ou que a TRC ativamente uma oposição entre formas de lembrança “próprias” e
exibia uma “retórica amnésica”, que sempre corre o risco de produzir “impróprias”.265
amnésia.263
Neste capítulo, portanto, argumentarei primeiramente
Embora as críticas sobre as dimensões da amnésia na que o campo atual da justiça de transição é principalmente a arena
TRC devem ser levadas a sério, seria indesejável se elas ocultassem para um conflito entre duas maneiras diferentes de lembrar que
as enormes diferenças entre o trabalho da TRC e a amnésia imposta manifestam características temporais opostas e que muitas vezes
pelo Estado que existia durante o Apartheid. Como o próprio Verne são referidas como “história” e “memória”. Argumentarei que a
Harris observa, a “ferramenta do esquecimento” era crucial para o TRC recorre ao discurso histórico com a finalidade de restaurar ou
sistema do Apartheid, que eliminou com força a memória das vozes impor o tempo histórico irreversível e reforçar a fronteira modernista
oposicionistas através da censura, da proibição, das detenções e da entre passado e presente que é ameaçada por um tipo particular de
morte.264 Durante os anos de transição entre 1990 e 1994, mas também memória que resiste à cronologia e se nega a deixar o passado passar.
260 A transcrição do seminário de Jacques Derrida foi publicada como: Derrida Na segunda parte deste capítulo, vou me concentrar em um grupo
J., Archive Fever in South Africa. In: Hamilton C. et al. (ed.), Refiguring the Archive. de vítimas e sobreviventes que critica fortemente o que chamam de
Kluwer Academic Publishers, 2002, pp. 38-80, citado na p. 54. “assuntos inacabados da TRC”. O Grupo de Apoio Khulumani foi
261 Harris V., ‘Truth and Reconciliation. An exercise in forgetting?’ [3 de originalmente criado para facilitar a colaboração com a comissão da
novembro de 2002]. Em: http://www.saha.org.za/research/publications/FOIP_5_1_
Harris.pdf (acesso em 11.04.2007).
verdade, mas ao longo dos anos tornou-se cada vez mais crítico do
262 Rassool C., Witz L. & Minkley G., Burying and Memorialising the Body of legado da TRC. Curiosamente, Khulumani, tanto implícita quanto
Truth. The TRC and National Heritage. In: James & van de Vijver (eds), After the explicitamente, questiona a política do tempo subjacente à TRC e,
TRC, pp. 115-127. ao fazê-lo, desenvolve uma cronosofia que tem semelhanças notáveis
263 Holiday A., Forgiving and Forgetting. The Truth and Reconciliation com a das Madres de Plaza de Mayo. No entanto, antes de prosseguir,
Commission. In: Nuttall S. & Coetzee C. (eds), Negotiating the Past. The Making
of Memory in South Africa. Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 43-56. Ver Africa’s Truth and Reconciliation Commission. In: Innovation, 24 (2002), pp. 1-8.
também: De Kok I., Cracked Heirlooms. Memory on Exhibition. In: Nuttall & 265 Grunebaum-Ralph H., Re-Placing Pasts, Forgetting Presents. Narrative,
Coetzee (eds), Negotiating the Past, pp. 57-74. Place, and Memory in the Time of the Truth and Reconciliation Commission. In:
264 Harris V., Contesting Remembering and Forgetting. The Archive of South Research in African Literatures, 32 (2001), 3, pp. 198-212, 202.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

esboçarei brevemente os antecedentes da justiça transicional e da analistas afirmam que, apesar das mudanças políticas formais, persiste
revolução negociada na África do Sul, contra os quais a TRC deve ser ainda um informal “apartheid residual” na “nova África do Sul” e que
compreendida. a ruptura com o passado nunca foi completamente realizada.268
Na sequência, quero focar em um aspecto específico dessa
relação problemática com o passado: a reparação das injustiças
A TRC no contexto da revolução negociada da África do Sul históricas e o destino miserável de numerosas vítimas e sobreviventes da
Em 10 de maio de 1994, a África do Sul foi palco de um dos violência e das atrocidades do Apartheid. Os detalhes e peculiaridades
acontecimentos políticos mais significativos do final do século vinte. da justiça de transição na África do Sul, como na maioria dos outros
Depois de décadas de luta política contra o sistema do Apartheid países em transição, estão relacionados com a natureza do regime
internacionalmente desprezado, Nelson Mandela tornou-se o que perpetrou as injustiças históricas, mas também com a maneira
primeiro presidente da África do Sul democrática. O evento foi notável específica como ele terminou. O que ocorreu na África do Sul não
pois refutava um pensamento fatalista quase generalizado, dentro e foi uma vitória nítida do movimento de libertação sobre o regime,
fora do país, sobre o eventual resultado da luta contra o Apartheid. mas uma “revolução negociada” ou um “acordo negociado”. A
Mandela tinha feito o que se julgava impossível: com sua incansável transição para a democracia foi o resultado de um doloroso processo
defesa da reconciliação e do perdão, parecia ter conseguido fazer com de compromisso, e a transição real estava muito distante dos sonhos
que os sul-africanos rompessem com seu passado e tirassem o país de que a maioria dos ativistas de libertação uma vez sonharam. Vejamos
sua espiral de violência. brevemente a história da “ascensão” e da “queda” do Apartheid.
No entanto, a ruptura com o passado que de forma tão Embora, obviamente, existissem leis racistas e
mágica ocorreu no âmbito do simbólico mostraria-se muito mais discriminatórias no passado, o Apartheid como um sistema jurídico
difícil de se realizar na África do Sul “real”, onde milhões de vidas formal ocorreu nos anos entre 1948 e 1994, quando o Partido
eram vividas. A tarefa de reconstrução nacional enfrentada pelo Nacional (NP) – a encarnação política do nacionalismo africâner
governo democrático liderado pelo ANC era enorme e parecia um branco – mantinha o controle do governo.269 A partir de 1948, o
desafio virtualmente impossível para um movimento que não tinha Apartheid foi construído em uma série aparentemente interminável
experiência em governar e que teve apenas um pequeno tempo de atos que definiam e codificavam legalmente a segregação racial
para preparação. Dadas as circunstâncias, o novo governo registrou e a discriminação. Algumas das primeiras leis escrupulosamente
notáveis sucessos em assistência médica, projetos habitacionais, dividiram os sul-africanos por raça – resultando nas categorias de
sistemas de eletrificação e ampliação da rede de abastecimento de água brancos, coloridos, índios e nativos ou africanos – e proibiu o contato
nos primeiros anos após a transição.266 Ainda assim, o governo nem sexual e os casamentos interraciais na tentativa de preservar a pureza
sempre foi capaz de atender às expectativas de mudança e progresso
da população, e suas políticas neoliberais não conseguiram cumprir 268 Expressões de: Sparks A., Beyond the Miracle. Inside the New South Africa.
as promessas de melhoria do padrão de vida.267 Além disso, muitos Johannesburg, Jonathan Ball Publishers, 2003, p. 43.
269 O seguinte relato da história do Apartheid baseia-se em informações dos
livros a seguir, exceto quando indicado de outra forma: Clark & Worger, South Africa.
266 Lodge T., South African politics since 1994. Cape Town, David Philip, 1999, The Rise and Fall of Apartheid; Lapping B., Apartheid. A History. London, Grafton
pp. 27-38. Books, 1986; Posel D., The Making of Apartheid 1948-1961. Conflict and Compromise.
267 Marais H., South Africa. Limits to Change. The Political Economy of Oxford, Clarendon Press, 1991; Worden N., The Making of Modern South Africa.
Transition. Cape Town, University of Cape Town Press, 2006, pp. 190-195. Conquest, Apartheid, Democracy. Malden, Blackwell Publishing, 2007.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

racial. Um pouco mais tarde, a lógica de segregação foi estendida a mortes e feridos em 757 e 2.389, respectivamente. Mais uma vez os
todas as esferas da vida social, resultando em transportes públicos eventos provocaram protestos internacionais, mas desta vez as coisas
separados, bares, cinemas, instalações esportivas, etc. começaram a mudar. Pela primeira vez, o Apartheid começou a ser
enfraquecido e os novos líderes africâneres se convenceram de que
A ascensão do sistema racista do Apartheid provocou
o modelo do Desenvolvimento Separado tinha de ser mudado. No
muitos protestos. Apesar da dura repressão, um grande aumento
final dos anos 70, o primeiro-ministro (e mais tarde presidente) P. W.
de protestos populares ocorreram na década de 1950. A maior parte
Botha argumentou que a África do Sul havia sido vítima de um ataque
dos protestos eram organizados pelo Congresso Nacional Africano
total por inimigos internos e externos e que, portanto, necessitava
(ANC), que havia sido fundado em 1912, e mais tarde pelo Congresso
uma “estratégia total” para lutar contra esses inimigos. Entretanto a
Pan-Africano (PAC), que se separou do ANC em 1959. No início dos
estratégia falhou, e nos anos 1980 o país se tornou o cenário de uma
anos 50, o ANC, em aliança com o Partido Comunista Sul-Africano,
virtual guerra civil que causou muito derramamento de sangue,
lançou a “Campanha Desafiadora” (Defiance Campaign), que
mas que nenhum dos lados parecia ser capaz de vencer. Ficou claro
mobilizou as pessoas para boicotes, greves, deserções e desobediência
que o impasse só poderia ser quebrado se os dois lados do conflito
civil. Alguns anos mais tarde, o ANC entrou em contato com uma
negociassem uma saída.
série de outras organizações que resistiram ao Apartheid, a fim de
lançar o Congresso Nacional do Povo, que em 1955 adotou a “Carta No final da década de 1980, já haviam ocorrido reuniões
da Liberdade” (Freedom Charter), que exigia uma África do Sul não semi-clandestinas entre grupos de intelectuais africanos e líderes
racial que pertenceria a todos que vivessem nele. empresariais e a liderança do ANC, mas os primeiros passos
decisivos para as negociações aconteceram em maio de 1988, quando
Em 1960, a espiral de protestos populares e de repressão do
funcionários do governo se reuniram secretamente com o ainda
Estado culminou com o sangrento massacre de Sharpeville, durante o
prisioneiro Nelson Mandela.270 Por cerca de dois anos o governo
qual a polícia matou 69 pessoas e feriu 180. Os tiroteios de Sharpeville
Botha manteve esse contato, mas as coisas realmente começaram
levaram a uma onda dramática de protestos que forçou o governo a
a se transformar quando Botha foi substituído por F. W. de Klerk.
declarar estado de emergência, banindo o ANC e o PAC, e prendendo
Voluntária ou involuntariamente, de Klerk lançou um processo
a maioria dos líderes de ambos os grupos. Apesar dos protestos
irreversível de reforma quando, em 2 de Fevereiro de 1990, anunciou
internacionais, Sharpeville não desestabilizou o Partido Nacional;
a libertação de Mandela e de centenas de outros prisioneiros políticos
sua força eleitoral aumentou, e durante a década de 1960 inicia-se
e anulou a proibição de uma série de movimentos de libertação. Em
uma segunda fase do Apartheid com base no sistema do chamado
11 de Fevereiro de 1990, Mandela foi efetivamente libertado. Logo os
“Desenvolvimento Separado” (Separate Development).
movimentos de libertação voltaram do exílio e, em maio do mesmo
Em meados dos anos setenta, a recessão econômica ano, as primeiras negociações oficiais abriram caminho para a reforma
começou a perturbar o sistema do Apartheid e, ao mesmo tempo, constitucional. A questão de quem redigiria a nova constituição foi
resultou em um conflito trabalhista que renovou a resistência negra. vivamente debatida e, sob a influência de Mandela, foi escolhido
Foi em tal contexto de fortes tensões que a insurreição de Soweto um congresso multipartidário, a “Convenção para uma África do
teve início, em junho de 1976, depois que a polícia abriu fogo em Sul Democrática” (CODESA), como fórum para a primeira fase das
uma marcha de crianças de escola, matando e ferindo várias delas.
Seguiu-se então uma série de boicotes, incêndios escolares e ataques,
e ao final do ano os números oficiais subestimaram os números de 270 Sparks, Tomorrow is Another Country, pp. 21-36.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

negociações.271 A CODESA começou seus trabalhos em dezembro apoiar uma anistia geral na qual aqueles que pretendem se
de 1991, mas logo enfrentou sérios problemas que resultariam em beneficiar divulgarão na íntegra as atividades para as quais
uma série de crises e, eventualmente, em um colapso. Em meados exigem uma anistia.273
de 1992, a convenção se decompôs e, após um massacre sangrento Contudo, a anistia continuou sendo uma fonte de conflito e todas as
em Boipatong, o ANC acusou o Partido Nacional de cumplicidade e negociações sobre o assunto falharam, de modo que ela não foi incluída
decidiu interromper as negociações. na constituição provisória que foi adotada em 18 de novembro de
Foram necessários meses de pressão diplomática até que o 1993. No entanto, no último minuto das negociações, um apêndice foi
ANC concordasse em entrar novamente em uma sessão de negociações anexado à constituição, que levantava finalmente a questão da anistia
bilaterais. Um passo importante foi dado após ter sido acordado política.274
que um governo de unidade nacional iria funcionar dentro de uma O apêndice não mencionava nada como uma comissão da
constituição provisória. A ideia veio de uma fonte inesperada: Joe verdade, mas sua ênfase na importância da reconciliação nacional e
Slovo, líder do Partido Comunista da África do Sul, que escreveu um no “entendimento”, além de sua declaração de que algum mecanismo
documento em que argumentava que certos compromissos poderiam judicial era necessário para lidar com as anistias criou uma abertura
ser feitos na mesa de negociação, desde que não bloqueassem ou que mais tarde permitiria o estabelecimento da TRC. Primeiramente,
adiassem a futura instalação de um regime democrático não-racial. no entanto, uma alta carga de reflexão e de pressão foram necessários.
Um dos compromissos propostos por Slovo era uma cláusula de Nos círculos do ANC, este processo foi iniciado em 1992 por Kader
“caducidade”, que previa a obrigatoriedade de partilha de poderes Asmal, que muitas vezes é considerado o pai intelectual da TRC.
por um número fixo de anos.272 Slovo também tentou resolver outro Asmal, como a maioria dos outros membros do ANC, inicialmente
obstáculo no processo de negociação, relacionado com a questão esperava que todos os perpetradores fossem punidos após a queda
da justiça de transição. O Partido Nacional, de de Klerk, estava do Apartheid, mas, assim como Slovo, ele logo chegou a perceber
absolutamente certo sobre o fato de que apenas aceitaria um acordo que esta não era uma opção realista. Em uma conferência proferida
que incluísse uma anistia geral para todos os seus membros e para na University of the Western Cape, Asmal enumerou uma variedade
todo o pessoal do exército, da polícia e dos serviços secretos. Isso de opções para administrar o passado, referindo-se a países como
era inaceitável para os movimentos de libertação, mas a questão foi Argentina, Chile, Rússia e Alemanha Oriental, e alertou que o passado
continuamente adiada por ambos os lados. Slovo propôs retirar a tinha que ser levado a sério como a chave para o futuro.275 Asmal
questão da discussão constitucional e deixá-la ao futuro governo admitiu que “nosso caminho de mudança através das negociações
interino, mas executar um compromisso público com o NP, é inconsistente com a ideia de um julgamento dos que estavam
indicando agora que, como parte de tal governo, iremos no governo anterior, ao estilo Nuremberg [...]”. “No entanto”, ele
escreveu, “não podemos nos dar ao luxo de tomar por encerrado as
271 Salvo indicação em contrário, a seguinte descrição do processo de
negociação baseia-se em: Gastrow P., Bargaining for Peace. South Africa and the questões sobre aqueles agentes governamentais acusados dos crimes
National Peace Accord. Washington, United States Institute of Peace Press, 1995; mais hediondos, que continuam a ordenar assassinatos”. “Mesmo os
Spitz R. & Chaskalson M., The Politics of Transition. A Hidden History of South
Africa’s Negotiated Settlement. Oxford, Hart Publishing, 2000; Sparks, Tomorrow is 273 Slovo, Negotiations, p. 40.
Another Country; Welsh D., Negotiating a Democratic Constitution. In: Spence J. E. 274 Doxtader, Easy to Forget or Never (Again) Hard to Remember?, p. 138.
(ed.), Change in South Africa. London, Pinter Publishers, 1994, pp. 22-49, 24. 275 Esta palestra foi publicada como: Asmal K., Victims, Survivors and Citizens
272 Documento publicado em: Slovo J., Negotiations. What room for – Human rights, reparations and reconciliation. In: South African Journal of Human
compromise? In: African Communist, 1992, 3, pp. 36-40. Rights, 8 (1992) 4, pp. 491-511.

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advogados”, afirmou Asmal, “devem reconhecer que a história não a verdade sobre seus crimes; e, em terceiro lugar, fazer recomendações
pode simplesmente ser encerrada quando um capítulo como o que sobre as devidas reparações às vítimas do Apartheid.278 Refletindo este
estamos deixando chega ao fim, e certamente não quando fazer isso mandato triplo, a TRC foi dividida em três subcomitês: o Comitê de
seria ignorar o sofrimento e as injustiças cometidas contra milhões”. Violações de Direitos Humanos, o Comitê de Anistia e o Comitê de
Portanto, o passado doloroso deveria ser reconhecido, e as forças Reparação e Reabilitação.
democráticas deveriam “assegurar que a memória fosse vitoriosa”.
Como o nome do documento já revelava, a TRC deveria
Na mesma época, a comunidade das ONGs também promover a reconciliação, e os legisladores viram isso como um
começou a pensar sobre a fórmula de uma comissão da verdade. Em exercício de construção nacional. A fim de encorajar a reconciliação,
1992, o Instituto para uma Alternativa Democrática para a África do a TRC promoveu uma justiça “restaurativa”, que teve de colocar em
Sul (IDASA) – do qual Alex Boraine foi o diretor – organizou uma primeiro plano os interesses e os testemunhos das “vítimas”.279 Para
viagem a alguns países da Europa Oriental para estudar sociedades tanto, o Comitê de Violações de Direitos Humanos reuniu quase
em transição do totalitarismo para a democracia.276 Em 1993 e 1994, 23.000 declarações entre 1996 e 1998 e promoveu uma série de
o IDASA organizou duas conferências em que especialistas de todo audiências de vítimas, de grande visibilidade em todo o país. Grande
o mundo foram convidados a partilhar as suas experiências sobre parte da campanha da TRC para conquistar o apoio das vítimas e
justiça de transição.277 As iniciativas da IDASA ajudaram a levar a convencê-las da necessidade de perdão foi, no entanto, frustrada pelo
discussão sobre a comissão de verdade a uma ampla gama de grupos fato de que a mesma instituição também tinha que conceder anistias.
da sociedade civil, e foi a pressão desses grupos que garantiu que a
TRC se tornasse um processo aberto e público em vez de um que
ocorresse a portas fechadas. A TRC e o problema do passado assombroso
A verdadeira base jurídica para a TRC foi fornecida pela Durante um simpósio de preparação para o TRC, o juiz
“Lei de Promoção da Unidade Nacional e Reconciliação” (Promotion constitucional Albie Sachs, falando em causa própria, mas alegando
of National Unity and Reconciliation Act), emitida pelo governo de refletir a opinião dominante dentro da liderança do ANC, expressou
unidade nacional em julho de 1995. Como produto de compromissos as grandes expectativas da comissão em uma frase poderosa: “é a
e concessões, sua formulação era complexa e seu conteúdo ambíguo. criação de uma nação”.280 No entanto, como tem observado vários
No entanto, o documento atribuía claramente à TRC um mandato críticos, a ideia de uma ligação positiva direta entre a revelação da
triplo: em primeiro lugar, tinha de traçar um quadro o mais completo verdade histórica e o estabelecimento da reconciliação nacional
possível da natureza, das causas e da extensão das violações graves está longe de ser evidente. Embora haja uma longa tradição que
dos direitos humanos cometidas durante o período iniciado em 1 de conjugue a historiografia com a construção da nação, o tema desta
março de 1960 até a data contemplada na Constituição; em segundo historiografia tem sido mais frequentemente um passado antigo e
lugar, tinha de conceder anistias seletivas aos perpetradores de crimes
278 ‘Promotion of National Unity and Reconciliation Act.’ [26 de julho de
motivados politicamente sob a condição de que esses revelassem toda 1995]. Em: http://www.info.gov.za/view/DownloadFileAction?id=70957 (acesso em
20.04.2007).
276 Boraine, A Country Unmasked, p. 14. 279 Simpson G., ‘Tell no lies, claim no easy victories.’ A brief evaluation of South
277 As discussões e trabalhos apresentados nestes dois congressos foram publicados Africa’s Truth and Reconciliation Commission. In: Posel D. & Simpson G. (eds),
em: Boraine, Levy & Scheffer (eds), Dealing with the Past. Ver também: Boraine A. & Commissioning the past. pp. 220-251.
Levy J. (eds), The Healing of a Nation? Cape Town, Justice in Transition, 1995. 280 Albie Sachs in: Boraine, Levy & Scheffer (eds), Dealing with the Past, p. 146.

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glorioso que evoca uma unidade mítica ou uma origem comum. Na seriam enterradas e esquecidas e um novo começo seria criado”. Ele
África do Sul, em contraste, como observa um comentador, a história levaria alguns anos para rever essa crença e se reconciliar com a ideia
era vivida pela população como algo ainda mais dividido do que a de que o passado não poderia ser deixado para trás.285 O giro da TRC
sociedade segregada em que viviam. Em vez de unir as pessoas, a à história, portanto, dificilmente pode ser explicado meramente pelo
história foi usada como uma ferramenta para dividir os membros da desejo de conservar as memórias do passado.
sociedade.281 Como resultado do Apartheid, o passado permanecia
Ao contrário do que afirma a retórica oficial da comissão,
sendo vergonhoso, divisivo e cheio de atrocidades.
ela tampouco pode ser completamente explicada apenas por sua
De uma perspectiva da construção nacional, a África do Sul capacidade de revelar os fatos. A verdade revelada no relatório final da
não parece estar confrontada com uma falta de memória, mas sofre TRC decepcionou muitos e, apesar das reivindicações dos membros da
principalmente com aquilo que Charles Maier chamou de um “excesso comissão, é difícil entender por qual motivo uma semelhante narrativa e
de memória”, que ameaça a regenerar antigos ódios continuamente.282 reconhecimento da história não poderia ter sido produzida no contexto
A revolução negociada sul-africana, de acordo com Erik Doxtader, de um tribunal que, ao final, seria capaz de punir os perpetradores.
apenas logrou sucesso porque, na primeira oportunidade, os Além disso, como admitiram os próprios comissionados, as restrições
negociadores concordaram em evitar temporariamente as jurídicas e políticas impediram a comissão de nomear a maioria dos
lembranças do conflito. Inicialmente, os negociadores definiram o perpetradores ou cúmplices e de descrever completamente os eventos
conceito de reconciliação em termos de anistia e amnésia. “Muito em que estavam envolvidos.286 Como resultado, as revelações dos
mais a necessidade de esquecer o passado do que a necessidade de relatórios oficiais da TRC pareciam insípidas em comparação com
perdoar, a reconciliação era uma forma de invenção que exigia que os as informações anteriormente registradas na imprensa, nos livros
negociadores colocassem a história em suspenso”.283 É claro que isso e em outros lugares. Remetendo-nos às palavras de Wole Soyinka,
tornaria ainda mais incômoda a união entre reconciliação e verdade poderíamos argumentar que os relatórios da TRC tomaram a forma
histórica, uma vez terminada a fase de negociação.284 Como observa de uma “articulação procedimento do conhecido”, que fez pouco
Doxtader, o próprio Mandela inicialmente definia a reconciliação mais do que reconhecer oficialmente o que poderia ser chamado de
como um estado de coisas em que as “injustiças e as ofensas do passado segredos públicos.287
281 Samarbakhsh-Liberge L., Truth and History in the Post-Apartheid South Nem a metodologia específica nem a epistemologia da
African Context. In: Quest: An African Journal of Philosophy, 16 (2002), 1-2, pp. 151- história acadêmica parecem ter sido de grande interesse para a TRC,
164, 156.
que, por um lado, usou frequentemente uma linguagem estritamente
282 Maier C. S., A Surfeit of Memory? Reflections on History, Melancholy, and
Denial. In: History and Memory, 5 (1993), pp. 1936-1951. 285 Nelson Mandela citado em: Doxtader, Easy to Forget or Never (Again) Hard
283 Doxtader E., Making Rhetorical History in a Time of Transition. The to Remember?, p. 133. Citando a frase de Mandela “devemos esquecer o passado”,
Occasion, Constitution, and Representation of South African Reconciliation. In: o historiador americano Eric Foner, depois de participar de um seminário em 1994,
Rhetoric & Public Affairs, 4 (2001), 2, pp. 223-260, 235. alertou seus colegas historiadores sul-africanos de que a política de reconciliação
nacional do novo governo poderia ser um grande desafio para sua profissão. Foner
284 André Du Toit, no entanto, observa que as noções de verdade e reconciliação E., “We Must Forget the Past.” History in the New South Africa. In: The Yale Review,
continuaram a evoluir, de modo que a ênfase de inspiração religiosa na reconciliação 83 (1995) 2, pp. 1-17.
tornou-se menos proeminente nas fases processuais mais tardias no processo
da TRC. Du Toit A., The Moral Foundations of the South African TRC. Truth as 286 Truth and Reconciliation Commission of South Africa, Report (Volume. 5),
Acknowledgement and Justice as Recognition. In: Rotberg R. I. & Thompson D., Cape Town, 1998, p. 206.
Truth v. Justice. The Morality of Truth Commissions. Princeton, Princeton University 287 Soyinka W., The Burden of Memory, the Muse of Forgiveness, Oxford, Oxford
Press, 2000, pp. 122-140, 130. University Press, 1999, p. 33.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

positivista e, por outro, alargou seu conceito de verdade para incluir Portanto, a TRC também não se voltou para a história em
as dimensões pessoais, sociais, restaurativas e terapêuticas que são busca de uma metodologia refinada.291
geralmente estranhas aos historiadores profissionais.288 Nenhum
Não, nada disso fez com que a TRC abraçasse tão
historiador foi nomeado ou ocupou alguma função de liderança
apaixonadamente a história como uma forma de alcançar a unidade
na TRC, e muitos historiadores profissionais viam inicialmente a
nacional e a reconciliação. O que atraiu a comissão da verdade foi
TRC como uma iniciativa duvidosa, e até mesmo perigosa.289 Os
o tempo irreversível da história e sua ênfase sobre a ausência ou
historiadores que trabalharam para a TRC pertenciam principalmente
distância do passado. Enquanto a comissão retirava muito de sua
ao departamento de investigação e alguns membros desta equipe
legitimidade colocando a ideia de lembrança como uma forma de
relatam que a “análise histórica” proposta por eles levou a tensões
justiça alternativa, o “ferrão” deve ser retirado da memória antes
e conflitos com outros departamentos que incluiam advogados que
que essa possa contribuir ao perdão e a reconciliação nacional, e esse
defendiam uma posição mais positivista e uma abordagem mais
“ferrão” está situado, em primeiro lugar, na evocação do irrevogável
empirista. Depois de menos de seis meses, os historiadores da comissão
por parte da memória.292 Desmond Tutu refere-se ao “estranho hábito
perceberam que seu sonho de escrever uma “história radicalmente
do passado de retornar para assombrar” e ao fato de que o passado “se
nova” para a África do Sul nunca se tornaria realidade:
recusa a descansar em paz” como um importante argumento em favor
Em grande parte como resultado dos muitos requisitos da comissão da verdade.293 Segundo o arcebispo, a comissão foi
legais incorporados no decreto em relação a provas – avisos
prévios, a tomada de conclusões, e a concessão de anistia, encarregada de descobrir a verdade sobre o nosso passado
a TRC veio a assumir gradualmente a posição de que era sombrio; para colocar os fantasmas do passado para
essencialmente uma comissão de investigação dirigida pelo descansar, para que eles não voltem a nos assombrar.294
Estado ao invés de um exercício de escrita ou reescrita de A liderança da ANC também era clara acerca do fato de que queria
história. […] Relutantemente, os pesquisadores aceitaram
o ponto de vista de que os relatórios de tais comissões não que a TRC liberasse a nova democracia do fardo do passado ao
continham análises históricas ou jurídicas detalhadas e que concluir seu trabalho o mais rapidamente possível, “de modo que
não satisfaziam o olhar acadêmico que o consideravam abordagem completamente histórica não é exclusiva da TRC da África do Sul.
pobres historicamente ou juridicamente, ou ambos. As Semelhanças podem ser encontradas em muitas comissões de verdade. Ver, por
reclamações subsequentes de alguns círculos acadêmicos exemplo: Grandin G., The Instruction of Great Catastrophe. Truth Commissions,
de que o relatório carecia de análise legal, sociológica ou National History, and State Formation in Argentina, Chile, and Guatemala. In:
histórica não era inesperada.290 American Historical Review, 110 (2005), 1, 46-67, 48.
291 A falta de uma metodologia histórica também parece ter sido um ponto de
288 TRC Report (Volume 1), pp. 110-114. conflito entre os próprios comissionados. No quinto volume do relatório final, por
exemplo, uma posição minoritária dos integrantes afrikaner Wynand Malan está
289 Du Toit A., The Truth & Reconciliation Commission as contemporary incluída. Embora seja, em primeiro lugar, uma crítica politicamente inspirada, ela
history. In: Jeppie S. (ed.), Toward New Histories for South Africa. On the place of the também critica a falta de uma profunda análise histórica qualitativa. Ver: ‘Minority
past in our present. Landsowne, Juta Gariep, 2005, pp. 61-80, 61. Antoon De Baets Position submitted by Commissioner Wynand Malan’ In: TRC, Final Report (Volume
observou que os historiadores são geralmente sub-representados em comissões de 5) pp. 436-456.
verdade. De Baets A., Responsible History. New York, Berghahn Books, 2009.
292 A expressão “ferrão da memória” é utilizada em: Tutu D. M., No Future
290 Cherry, Daniel & Fullard, Researching the ‘Truth,’ pp. 19-20. Da mesma without Forgiveness, New York, Doubleday, 1999, p. 271.
forma, Piers Pigou, outro membro da equipe de pesquisa da TRC, mais tarde ficou
muito desapontado com as oportunidades perdidas. Ver: Pigou P., False Promises and 293 TRC, Report (Volume 1), p. 7.
Wasted Opportunities? Inside South Africa’s Truth and Reconciliation Commission. 294 Desmond Tutu citado em: Rassool, Witz & Minkley, Burying and
In: Posel & Simpson (eds), Commissioning the Past, pp. 37-65. A ausência de uma Memorialising the Body of Truth, p. 115.

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deixemos o passado no passado e permitamos que a nação perdoe modo sistemático e deliberado para encerrá-lo.299
um passado que, no entanto, não ousam esquecer”.295 Kader Asmal Em relação a tais necessidades, o discurso histórico é usado
inclusive evocou a ideia de uma inundação purificadora e comparou a principalmente de forma performativa, numa tentativa de “distanciar”
TRC a uma curta mas poderosa “explosão de barragem catártica” que o passado e reforçar ou impor uma ruptura entre passado e presente.
lavaria o velho e criaria espaço para o novo.296 O pedido foi claramente Seria possível argumentar que a virada da TRC para a história faz
entendido e o prefácio ao relatório final da TRC de 1998 declara que, parte de uma ampla política do tempo em que a “nova” África do
uma vez “encarada a besta do passado nos olhos”, a porta do passado Sul tenta expulsar o passado assombroso definindo ativamente o que
tinha de ser fechada, de modo a não aprisionar o “futuro glorioso”.297 pertence ou não ao seu presente (jurídico, político, social, cultural,
Wole Soyinka, portanto, nota com razão que a rejeição da amnésia etc.); pela definição do que é real (actual), ou “oportuno” e o que deve
pela TRC deriva, em grande parte, da convicção de que a lembrança ser considerado impreciso, anacrônico ou velho.
também poderia conduzir ao encerramento dócil. O terreno comum
subjacente à maioria das comissões da verdade, segundo Soyinka, Essa justaposição ativa entre o passado e o presente (ou
seria a busca pelo que chama de “felicidade catártica” de enerramento; o futuro), o velho e o novo, já pode ser discernida na linguagem
a rejeição da amnésia em favor da lembrança deveria produzir uma performativa usada no apêndice da constituição interina de 1993,
“verdade que liberta”.298 que preparou a anistia, e criou espaço para a futura TRC. Portanto, é
interessante analisar mais atentamente o próprio texto:
Essa constituição proporciona uma ponte histórica entre
O tempo irreversível da história, a “distância” e a produção o passado de uma sociedade profundamente dividida,
do velho caracterizada por conflitos, lutas, sofrimentos e injustiças
indizíveis, e um futuro fundado no reconhecimento
Se a fórmula da comissão da verdade tem alguma função dos direitos humanos, da democracia e da coexistência
política neste contexto, é sobretudo a de auxiliar para a criação de pacífica e oportunidades de desenvolvimento para
um novo começo e uma ruptura com o passado em um momento todos os sul-africanos, independentemente da cor, raça,
classe, crença ou sexo. A busca da unidade nacional, o
em que o esquecimento já não parece adequado para tal trabalho. bem-estar de todos os cidadãos sul-africanos e a paz,
“A abordagem de uma negligência benigna em relação ao legado do exigem a reconciliação entre o povo da África do Sul
Apartheid”, escreve Kader Asmal, e a reconstrução da sociedade. A adoção da presente
constituição estabelece uma base segura ao povo da
certamente pode garantir a sobrevivência do passado como
África do Sul, para transcender as divisões e conflitos
um intruso no que deveria ser um futuro mais brilhante.
do passado, que geraram graves violações dos direitos
[...] Não podemos apenas dizer que o passado acabou. O
humanos, transgressão dos princípios humanitários em
passado nunca acabará, a menos que nos movamos de
conflitos violentos e um legado de ódio, medo, culpa e
vingança. Tudo isso pode agora ser enfrentado com base
295 Thabo Mbeki for the African National Congress, Statement to the Truth
na necessidade de haver compreensão mas não vingança,
and Reconciliation Commission [Agosto de 1996]. Em: http://www.anc.org.za/2639 uma necessidade de reparação mas não de retaliação,
(acesso em 13.04.2007). uma necessidade de ubuntu mas não de vitimização. A
296 Asmal, Asmal, and Suresh Roberts, Reconciliation through Truth, p. 208.
fim de promover tal reconciliação e reconstrução, será
concedida uma anistia por atos, omissões e infrações
297 TRC, Report (Volume 1), p. 22 (Prefácio de Desmond Tutu).
298 Soyinka, The Burden of Memory, p. 20. 299 Asmal, Asmal & Suresh Roberts, Reconciliation through Truth, p. 64 e p. 161.

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relacionadas com objetivos políticos e cometidos no era necessária para tornar as divisões e disputas algo “do passado”.
decurso de conflitos do passado. Para isso, o parlamento, Em uma das linhas finais da constituição interina – apenas antes das
sob os termos da presente constituição, adotará uma lei letras do novo hino nacional – a questão é finalmente clarificada, mas
que determine uma sólida data-limite, que deverá ser
uma data posterior a 8 de outubro de 1990 e antes de 6 de através de uma espécie de fórmula mágica. Em um texto altamente
dezembro de 1993, e que preveja os mecanismos, critérios performativo que fala do “povo da África do Sul” na primeira pessoa
e procedimentos, incluindo os tribunais, se houver, através do plural, um novo capítulo na história do país é aberto e tudo o
dos quais tal anistia será tratada em qualquer momento que veio antes é marcado como passado. Anistias agora podem ser
após a lei ter sido aprovada. Com essa constituição e com concedidas e os sul-africanos podem começar a perdoar.
esses compromissos, nós, o povo da África do Sul, abrimos
um novo capítulo na história de nosso país.300 Mais do que simplesmente envolver o problema da anistia,
Curiosamente, a passagem começa com a metáfora a ideia de uma ruptura histórica entre passado e presente é essencial
ambígua de uma “ponte histórica”. Como Frank Ankersmit aponta, para a identidade nacional da “nova” África do Sul. A identidade
a metáfora problemática de uma ponte refere-se ao mesmo tempo a sul-africana, como observa Richard Wilson, é construída sobre uma
uma noção de proximidade e uma noção de distância, uma lacuna e “historicidade descontínua”. “Ao contrário de visões nacionalistas
uma divisão.301 As coisas não se tornam muito mais claras quando o do passado, como na Grã-Bretanha ou na França, a nova nação sul-
texto passa a se referir a si próprio como uma “base sólida [...] para africana não é naturalizada por referência a sua ancestralidade, mas na
transcender [...] um legado de ódio, medo, culpa e vingança”. No meio afirmação da singularidade do presente”. Enquanto a maior parte das
de um dos períodos mais violentos da história sul-africana – afirma-se nações criam sua identidade nacional ao se oporem a outras nações,
que mais pessoas foram mortas na luta contra o Apartheid entre 1990 Wilson argumenta que “o lugar mais significativo de alteridade para
e 1994 do que nos trinta anos anteriores302 – é difícil ser inequívoco a nova África do Sul não tem sido outras nações, mas ela mesma”.304
ao falar sobre “divisões e disputas do passado”. Na perspectiva do A “nova” África do Sul é, na verdade, bastante única quando abre o
tempo irreversível da história, a referência a uma sólida “data-limite” preâmbulo da sua constituição “final” de 1996 com uma referência
é essencial, mas sua demarcação imprecisa não esclarece as coisas.303 A ao seu próprio passado violento: “Nós, o povo da África do Sul,
questão é importante porque a própria idéia de anistia, a raison d’être reconhecemos as injustiças de nosso passado; honramos todos
do apêndice, é condicionada à “passadidade” (pastness) dos eventos os que sofreram na luta por justiça e liberdade em nossa terra...”305
descritos – poucos concordariam em conceder anistia a crimes que Novamente, apesar da expressão de lealdade, parece que a referência
ainda estão ocorrendo. E novamente, foi precisamente tal anistia que às injustiças do passado afirma que essas mesmas injustiças não estão
mais no presente (o passado como ausência ou anti-presença), que
300 ‘Constitution of the Republic of South Africa’ [1993]. Em: http://www.info.
a injustiça não pertence mais ao presente da nova África do Sul.
gov.za/documents/constitution/93cons.htm (acesso em 20.04.2007). Nessa perspectiva, é significante notar que durante seu trabalho e na
301 Ankersmit F. R., Historicism. An Attempt at Synthesis. In: History and elaboração de seu relatório final a TRC estava altamente preocupada
Theory, 34 (1995), 3, pp. 143-161, 159. com a cronologia e a periodização. Como observa um comentador,
302 Wilson R. A., Justice and Legitimacy in the South African Transition. In: a TRC começou rapidamente a construção de uma nova “linha do
Barahona de Brito A., González-Enríquez C. & Aguilar P., The Politics of Memory.
Transitional Justice in Democratizing Societies. Oxford, Oxford University Press,
2001, pp. 195-196. 304 Wilson, The Politics of Truth and Reconciliation in South Africa, p. 16.
303 Posteriormente, tal data limite foi adiada para 1994 a fim de incluir a violência 305 ‘Constitution of the Republic of South Africa’ [1996]. Em: http://www.polity.
política ocorrida em torno do período das eleições sobre o processo de anistia. org.za/html/govdocs/bills/sacon96.html (acesso em 20.04.2007).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

tempo nacional”: contribuíram para o desenvolvimento de qualquer discernimento.310


O uso do tempo do calendário e das coordenadas espaciais Outro comentador afirma que a TRC optou por uma periodização
como signos “globais” esteve presente na comissão equivocada que impedia de ver as continuidades entre a violência
desde o começo. [...] Pela primeira vez, incidentes como estatal e as estratégias da contra-insurgência dos anos 80 e 90.311 A
o massacre de Sharpeville, a insurreição de Soweto, a relação com a história, estabelecida no relatório final, é melhor
bomba da Church Street, o incidente do Cavalo de Tróia, a descrita pelo próprio Desmond Tutu quando, em um prefácio, ele cita
matança de Bisho, o massacre da St James’ Church e assim
por diante, eram reconhecidos formalmente, colocados a conhecida expressão que diz “o passado é um país estrangeiro”.312
lado a lado, e organizados cronologicamente de forma A rigorosa periodização permitiu que a TRC criasse uma narrativa
que cobriram o período que correspondia ao mandato da altamente dicotômica, na qual passado e presente são estritamente
comissão e ao território do Estado-nação sul-africano.306 separados e opostos em termos morais, sem examinar as relações
Evidentemente, a construção de uma nova linha de tempo ou continuidades entre os dois. Um proeminente historiador sul-
nacional é de grande valor. No entanto, o relatório final da TRC parece africano critica o prazo estabelecido pela TRC por mais uma razão.
nunca realmente transcender o nível cronológico, que, naturalmente, Ao defender estritamente o período da história a ser trabalhado, ele
é um princípio organizador bastante pobre. Uma grande parte argumenta que a TRC se liberou da obrigação de levar em conta
do primeiro volume do relatório é dedicada a uma cronologia da outras partes do passado. “O que a TRC ameaça fazer”, ele escreve, “é
legislação do Apartheid, na qual uma longa série de leis é listada desacoplar essas histórias: definir três décadas do passado em termos
com referência à data de início e à data em que foram revogadas, de perpetradores e vítimas, e categorias bem delimitadas de injustiça,
aparentemente reafirmando que o Apartheid estaria realmente e sugerir que essa é a besta do passado”.313
passado e acabado.307 As conclusões sobre os perfis regionais das Este mecanismo não se restringe exclusivamente à narrativa
violações dos direitos humanos descritas no extenso terceiro volume da TRC, mas parece ter se tornado uma maneira difundida de lidar
do relatório são organizadas seguindo uma cronologia rigorosa que é com o passado do Apartheid na África do Sul. Chana Teeger e Vered
dividida em seqüências de 1960-1975, 1976-1982, 1983-1989 e 1990- Vinitzky-Seroussi argumentam que o Museu do Apartheid da África
1994 .308 No segundo volume, que oferece uma visão nacional das do Sul – o primeiro museu no país dedicado inteiramente a contar
violações pelo Estado do Apartheid dentro e fora da África do Sul, a história do Apartheid – tenta criar uma comemoração consensual,
pelos movimentos de libertação e nos países de origem, as histórias divorciando-se consistentemente o (terrível) passado do (esperançoso)
narradas são estritamente limitadas às datas de corte de 1960 a 1990.309 presente, resistindo a linhas narrativas que ressaltam a relevância do
Alguns dos historiadores que trabalhavam para a TRC falavam de passado para as questões e debates do presente.314 Do mesmo modo,
“uma certa obsessão da cúpula com cronologias”, e queixavam- Heidi Grunebaum-Ralph afirma que a história na África do Sul torna-
se da laboriosa montagem de listas que, segundo eles, pouco se representada como uma “descontinuidade com o tempo presente”,
310 Cherry, Daniel & Fullard, Researching the ‘Truth,’ p. 20.
306 Buur L., Monumental Historical Memory. Managing Truth in the Everyday 311 Wilson, The Politics of Truth and Reconciliation in South Africa, pp. 62-94.
Work of the South African Truth and Reconciliation Commission. In: Posel & 312 TRC, Report (Volume 1), p. 4.
Simpson (eds), Commissioning the Past, pp. 66-93, 78.
313 Bundy, The Beast of the Past, p. 17.
307 TRC, Report (Volume 1), pp. 448-497.
314 Teeger C. & Vinitzky-Seroussi V., Controlling for Consensus.
308 TRC, Report (Volume 3). Commemorating Apartheid in South Africa. In: Symbolic Interaction, 30 (2007), 1,
309 TRC, Report (Volume 2). pp. 57-78.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

e que muitas vezes é contada em termos de “antes” e “depois”, que considerados características definidoras do presente, aqueles que
mascara as continuidades estruturais e sistêmicas do Apartheid.315 não querem perdoar ou reconciliar não podem ser considerados
como totalmente simultâneos ou como contemporâneos do resto da
Uma separação estrita entre passado e presente pode ser
nação – como pertencentes à “nova” África do Sul. Baseando-se no
usada facilmente para se livrar do legado do passado e para se esquivar
potencial alocrônico do discurso histórico, a TRC tende a caracterizar
da responsabilidade histórica. Isto é, por exemplo, ilustrado em uma
ambos perpetradores não-cooperativos e vítimas rancorosos como
declaração apresentada à TRC por F. W. de Klerk em nome do Partido
anacronismos vivos, presos no passado e obstáculos para o progresso
Nacional. De Klerk propõe uma periodização do Apartheid em quatro
futuro da nação. Esse mecanismo se encontra em funcionamento
fases e livra seu partido da dívida histórica, sublinhando que deve
na famosa expressão de Desmond Tutu de que “não há futuro sem
ser feita uma distinção entre o “antigo” partido Nacional e o “novo”
perdão”. A fórmula é poderosa porque acusa implicitamente aqueles
Partido Nacional:
que não querem perdoar de obstruir não apenas um futuro específico,
Há uma profunda diferença entre o Partido Nacional como mas o futuro em geral – como se eles estivessem ameaçando
ele é atualmente constituído e o partido que governou
a África do Sul nas primeiras décadas após sua vitória
paralisar o tempo. Kader Asmal também esperava que aqueles que
eleitoral em 1948. As políticas e a filosofia do Partido ele observava vivendo em um mundo neurótico de esquecimento,
Nacional como são hoje constituídas são diametralmente esquecendo tanto do tempo quanto do lugar, fossem forçados ao
diferentes das do antigo partido. Ele também tem uma presente contemporâneo pela comissão da verdade e pela promoção
base de apoio diferente. Mais da metade das pessoas que da “adequada consciência histórica”. Após a ruptura da barragem da
votaram pelo Partido Nacional nas últimas eleições são TRC, ele argumenta, apenas “ermitões a-históricos” ainda poderiam
negros, de cor ou sul-africanos de origem indiana. Nem
eles, nem nossos mais jovens partidários brancos, podem negar a nova realidade, “olhando para trás, os fantasmas, inconscientes
ou devem estar associados, de qualquer maneira, às do exorcismo tão decisivamente em curso”.317 Um exemplo de um
políticas do Apartheid do passado.316 alocronismo notavelmente retórico pode ser encontrado nas seguintes
palavras de Asmal:
Além disso, como mencionei na introdução, ao mesmo
tempo que o uso do discurso histórico pode ajudar as comissões da Exatamente aonde (e quando) estão aquelas poucas
verdade a alcançar o encerramento objetivado por elas, ou ajudar pessoas vivas que ainda carregam a velha bandeira sul-
africana para eventos esportivos na nova África do Sul?
a reforçar a consciência de tempo modernista e sustentar o projeto Onde (e quando) estão vivendo aqueles pilotos da nossa
da simultaneidade, ele também pode produzir efeitos “alocrônicos”; companhia aérea nacional, ainda ignorando que a velha
por exemplo, atribuir simbolicamente a outro tempo aqueles represa H.F. Verwoerd no meio do país, um marco que
que se recusam a participar do processo de reconciliação ou de eles adoram apontar para seus passageiros, agora se
construção nacional. Uma vez que o perdão e a reconciliação são chama Garieb, em honra aos habitantes da área? Onde (e
quando) estão vivendo aquelas pessoas que proclamam
315 Segundo Grunebaum-Ralph, este modo de comemoração é melhor ilustrado amplamente seus direitos de propriedade sobre a terra e
pelo caso de Robben Island: “como um espaço não vivido no presente, a ilha e suas a água roubada dos negros a preço de banana logo após
representações históricas podem ser domesticadas; seus espaços e suas narrativas são violentas remoções forçadas? Em que tempo alguns de nós
articulados ainda mais como um passado encerrado”. Grunebaum-Ralph, Re-Placing
estamos vivendo.318.
Pasts, Forgetting Presents, pp. 200-201.
316 de Klerk F.W., ‘Submission to the Truth and Reconciliation Commission
by Mr. F. W., de Klerk, leader of the National Party.’ Em: http://www.doj.gov.za/trc/ 317 Asmal A. et al., Reconciliation through Truth, p. 52.
submit/np_truth.htm (acesso em 13.04.2007). 318 Ibid., p. 209. Deve-se notar que Asmal está falando sobre a consciência

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Resistindo ao tempo histórico irreversível: o Grupo de Apoio democrático como regime sucessor reconheceu formalmente suas
Khulumani responsabilidades na retificação de velhos erros, a maioria das vítimas
nunca recebeu qualquer compensação monetária ou material.
Apesar do fato de que a constituição sul-africana reconhecia
as injustiças do passado e honrava os que sofreram por justiça e Ainda mais angustiante do que a questão das reparações é
liberdade, a questão das reparações (individuais) não parecia ser o estado atual dos processos na África do Sul. A ideia subjacente no
uma preocupação real para o governo democrático nos anos que acordo da TRC de anistias seletivas em troca da verdade era de que
se seguiram ao fim do Apartheid. Os constantes pedidos de ajuda e todos aqueles que não se apresentassem à comissão seriam depois
reconhecimento por parte das vítimas e sobreviventes da violência processados individualmente. Para isso, foi criada uma unidade
do Apartheid foram quase totalmente ignorados pela liderança da especial no “Diretório Nacional de Processos Públicos” (National
ANC, que não considerou (ou deixou de considerar) o legado lúgubre Directorate of Public Prosecutions) logo após a entrega do relatório
da injustiça histórica como prioridade.319 As recomendações de da TRC de 1998.322 No entanto, quase ninguém foi processado, e
reparação feitas pela TRC foram largamente ignoradas. O governo os poucos processos judiciais sobre perpetradores de atrocidades
mostrou desprezo repetidamente pelo pedido de reparação monetária do Apartheid tiveram uma triste história de fracasso. Enquanto
individual, indicando que preferia as reparações coletivas.320 Foi o governo conduzido pela ANC manteve lealdade à sua rejeição
somente depois de pressões consideráveis de dentro e de fora do original de uma anistia geral e irrestrita, novas rodadas de anistias
país que o presidente Mbeki, em 2003, anunciou que haveria uma parciais foram conduzidas desde o fim das atividades da TRC.323
concessão “única” de 30,000 rands para indivíduos listados como Também pode-se perguntar se a quase total ausência de processos
vítimas pela TRC. Entretanto, apenas um pequeno número de não se reduz a uma situação de impunidade de fato e de anistia
vítimas havia sido reconhecido pela comissão, e mesmo esses ficaram geral. Além desses problemas de anistia e reparação, muitas vítimas
desapontados com a quantia de dinheiro, que era muito menor do e sobreviventes ressaltam que a TRC não revelou toda a verdade e,
que o prometido anteriormente.321 Assim, enquanto o novo governo por exemplo, começaram a pedir mais atenção para as numerosas
pessoas desaparecidas durante o Apartheid. Além dos problemas de
histórica de uma grande parte da população sul-africana e não especificamente sobre anistia e reparação, muitas vítimas e sobreviventes ressaltaram que a
as opiniões das vítimas ou dos perpetradores diretos das atrocidades do Apartheid. TRC não havia revelado toda a verdade e, assim, começaram a pedir
O fragmento citado é relevante, contudo, porque a TRC e seu discurso nunca
foram dirigidos apenas às vítimas diretas ou aos perpetradores de abusos de direitos Palestra de Alex Boraine, ‘South Africa. 10 Years After the TRC’ organizado pelo
humanos, mas também à população em geral. International Centre for Transitional Justice (ICTJ), Bruxelas, 29 de agosto de 2006.
319 Colvin C. J., Overview of the Reparations Program in South Africa. In: De 322 Fullard & Rousseau, An imperfect past, p. 90.
Greiff P. (ed.), The Handbook of Reparations. Oxford, Oxford University Press, 2006,
pp. 176-215. 323 A tensão no interior da liderança da ANC entre tal rejeição formal de
uma anistia geral e o anseio de deixar o passado no passado ficou muito clara na
320 Fullard M. & Rousseau N., An imperfect past. The Truth and Reconciliation discussão de Mbeki sobre o relatório da TRC perante o Parlamento en 1999: “[...]
Commission in transition. In: Daniel J., Habib A. & Southall R. (eds), State of the parece importante que todos devemos concordar que o que quer que aconteça, nunca
Nation. South Africa 2003-2004. Cape Town, HSRC Press, 2003, pp. 78-104, 87. Ver devemos cogitar a ideia de uma anistia geral. Ao mesmo tempo, considerações sérias
também: Madlingozi T., Good victim, bad victim. Apartheid’s beneficiaries, victims, devem ser tomadas para que não nos deixemos atrair para uma situação de conflito
and the struggle for social justice. In: le Roux W. & van Marle (eds), Law, Memory and em consequência dos crimes políticos do passado […] todos devemos dizer que o
the Legacy of Apartheid. Ten Years after AZAPO v President of South Africa. Pretoria, ontem é um país estrangeiro, como felizmente proclamavam os jovens afrikaners”.
Pretoria University Law Press, 2007, pp. 107-126. Declaração do Presidente do Congresso Nacional Africano, Thabo Mbeki, sobre o
321 O acordo também frustrou os ex-integrantes da TRC que previam uma soma Relatório da TRC na Assembleia Conjunta das Câmaras do Parlamento. Cape Town,
muito maior que seria paga a cada seis meses ao longo de um período de vários anos. 25 de fevereiro de 1999.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

mais atenção para a numerosa quantidade de pessoas desaparecidas uma organização autônoma, Khulumani começou a radicalizar sua
durante o Apartheid. crítica ao governo, e o grupo desenvolveu novas perspectivas sobre
as políticas de memória. A organização também ficou cada vez mais
Vítimas e sobreviventes criticaram também a falta de
desapontada com a TRC e seus resultados. A ênfase terapêutica do
compromisso do governo em relação ao que chamam de “assuntos
período inicial foi gradualmente substituída por uma abordagem
pendentes” da TRC. Uma das mais importantes vozes de protesto
mais política e com proeminência sobre a questão das reparações
provém do Grupo de Apoio Khulumani, o único movimento
de vítimas e comunidades.328 Formalmente, o grupo Khulumani
social pós-Apartheid na África do Sul que representa as vítimas
aprova a ideia de reconciliação nacional, mas argumenta que isso só
e sobreviventes da violência do Apartheid em nível nacional.324
pode ser um projeto de longo prazo e que não tem prioridade para
Khulumani – que significa “expressar-se” em isiZulu – foi criado
seus membros.329 O grupo sustenta que a questão da reconciliação é
em 1995 para facilitar a participação de vítimas e sobreviventes no
prematura e afirma que pedir às vítimas para se curar e reconciliar é
processo de TRC e, assim como a comissão de verdade, baseava-se na
“pedir demais, e muito cedo”. A “cura” continua a ser um dos objetivos
ideia de que falar sobre o passado poderia ajudar a curar traumas.325 O
declarados de Khulumani, mas a organização tornou-se cada vez mais
grupo de apoio ajudou a informar as pessoas sobre a TRC e organizou
crítica do fato de que as vítimas e os sobreviventes são convidados a
a coleta de declarações em comunidades locais; mais tarde, no processo
curar seus traumas em função da construção nacional.330
da TRC, o grupo tornou-se essencial em informar e dar apoio as
vítimas antes e depois de seus testemunhos; e em geral desempenhou Interessante observar que a crítica de Khulumani desafia
um papel importante na legitimação da comissão.326 Nos primeiros o tempo irreversível da história e especialmente a ênfase sobre
anos de sua vida organizacional, Khulumani fazia parte do “Centro de um passado ausente ou distante, e isso acontece de tal forma que,
Trauma para Sobreviventes de Violência e Tortura” (Trauma Centre apesar de diferenças importantes – como o apoio de Khulumani às
for Survivors of Violence and Torture) na Cidade do Cabo, mas em reparações materiais e sua aprovação formal da reconciliação a longo
setembro de 2000, separou-se deste último depois de algumas tensões prazo – assemelha-se muito à resistência das Madres de Plaza de
com os terapeutas profissionais que faziam parte do grupo.327 Como Mayo. Como explica Christopher Colvin, os membros de Khulumani
recusam o “encerramento” ou a “recuperação” até que o governo
324 A base de membros de Khulumani atualmente (2011) é composta por cerca cumpra suas promessas e, em contraste com o “modo terapêutico
de 55.000 indivíduos, a maioria deles sendo negros e pobres. Apenas 10% de seus
membros que foram vítimas de violações de direitos humanos, alega o grupo, foram da historiografia”, eles se concentram em vítimas que ainda sofrem e
incluídos no processo da TRC. Khulumani Support Group, “Membership”. Em: ainda não se recuperaram.
http://www.khulumani.net/ (acesso em 14.02.2011).
A história-como-terapia assume, como faz a terapia do
325 Hamber B., Mosikare N, Friedman M. & Maepa T., ‘Speaking Out. The role trauma, que o trauma acabou e que é tarefa do terapeuta,
of the Khulumani Victim Support Group in dealing with the past in South Africa’.
Trabalho não publicado apresentado no Psychosocial Programmes After War and
Dictatorship Conference, Frankfurt, junho de 2000. de Apoio às Vítimas de Khulumani e do Cape Town Trauma Centre for Survivors of
Violence and Torture). Ver também: Colvin C. J., Ambivalent Narrations. Pursuing
326 Makhalemele O., ‘Southern Africa Reconciliation Project: Khulumani Case the Political through Traumatic Storytelling. In: Political and Legal Anthropology
Study.’ (Relatório de pesquisa escrito como parte do Projeto de Reconciliação da Review, 27 (2004) 1, pp. 72-89.
África do Sul, 2004).
328 Colvin, ‘We Are Still Struggling.’
327 Colvin C. J., ‘“We Are Still Struggling.” Storytelling, Reparations and
Reconciliation after the TRC’ [Dezembro de 2000]. Em: http://www.csvr.org.za/docs/ 329 Ver o website do Grupo de Apoio Khulumani, em: http://www.khulumani.
trc/wearestillstruggling.pdf (acesso em 19.01.2008). (Relatório de pesquisa escrito para net/ (acesso em 15.01.2008).
o Centre for the Study of Violence and Reconciliation em colaboração com o Grupo 330 Colvin, ‘We Are Still Struggling.’

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

ou do historiador, convencer o paciente ou a nação de que pendentes”.334 O grupo de apoio adverte que
o trauma acabou. Para Khulumani, no entanto, elaborar a
história da luta significa escrever uma história sobre uma é loucura pensar que a demanda por responsabilidade
luta que não acabou. O tempo passou, mas o sofrimento vai desaparecer com o tempo. As demandas das vítimas
e a luta continuam. [...] Para essas vítimas, a ideia de que precisam ser atendidas. O passado não enterra o passado.335
o passado foi um período de opressão e o presente é um Por ocasião do 60º aniversário da libertação de Auschwitz em 2005,
momento de liberdade novo e redimido é uma ilusão, um
Khulumani colocou a questão de como o Apartheid seria lembrado 60
veredito prematuro sobre uma fase ainda não terminada
do desenvolvimento da história.331 anos após a sua queda:
ainda estamos tentando localizar o resto de alguns de
Khulumani questiona de fato a ruptura absoluta entre nossos filhos, sequestrados e queimados até a morte [...],
passado e presente que é tão básica na constelação política da “nova” ainda estamos tentando reconstruir nossas vidas fora das
África do Sul. Como eles expressam sua crítica: “Enquanto o governo terras assoladas pelo Apartheid e devastadas pela pobreza
declarou publicamente que o passado foi enterrado, o país e seus [...] ainda estamos nos perguntando como nossa dor,
cidadãos continuam a viver com as consequências do Apartheid”.332 A sofrimento e perda foi dotada de um valor monetário
organização reconhece e elogia o fato de que a África do Sul se tornou simbólico de um pagamento de reparações de 30.000
rands [...] ainda estamos [...] É hora de responder a essas
um país democrático, mas argumenta que o destino das vítimas e perguntas e agir sobre elas, de forma que em 2054, nossos
sobreviventes e as recomendações nunca implementadas da TRC filhos, seus filhos e os filhos de seus filhos não apenas
constituem uma dívida nacional.333 A fim de lembrar ao governo este recordem nosso sofrimento e digam “nunca mais”, mas já
fato, Khulumani começou a organizar ações de protesto com grande não estejam lidando com as consequências do Apartheid.336
visibilidade. Em declaração sobre essas ações, Khulumani desenvolveu A ideia de que uma preocupação com o passado não se opõe
um discurso que enfatiza o fato de que as injustiças históricas do a uma orientação para o futuro, mas que, em vez disso, é necessária
Apartheid ainda não estão no passado, argumentando que a mera para as gerações futuras é um leitmotiv recorrente. Sugerindo uma
passagem do tempo não resolverá as questões, e que nega a noção de expressão popular na “nova África do Sul” que se refere às gerações
distância entre o presente e o passado. Khulumani argumenta que, jovens como as que nascem livres, Khulumani afirma que o governo
ao não adotar o escopo total das reparações, o governo sul-africano traiu seus “nascidos livres” (born frees). Enquanto o governo outorgou
promove um modelo de justiça transicional que incorpora as “contas anistias aos perpetradores, os membros de Khulumani asseguram

334 Khulumani Support Group, ‘Khulumani International Lawsuit Appeal


331 Colvin C. J., ‘Brothers and Sisters, do not be afraid of me’. Trauma, history Victory Removes an Obstacle to Justice for Victims and to the Advance of Corporate
and the therapeutic imagination in the new South Africa. In: Hodgkin K. & Radstone Accountability’ [13 de outubro de 2007]. Em: http://www.khulumani.net/press-
S. (eds), Memory, History, Nation. Contested Pasts. London, Transaction Publishers, releases/5-Press/13-Khulumani%20Wins%20Lawsuit%20Appeal.html (acesso em
2005, pp. 165-166, p. 164. 15.01.2008).
332 Khulumani Support Group, ‘Advocacy and Lobbying Post-TRC’ [15 de 335 Khulumani Support Group, ‘Khulumani East Rand protest focusses on
novembro de 2007]. Em: http://www.khulumani.net/index.php?option=com_ TRC “Unfinished Business”’ [21 de novembro de 2005]. Em: http://www.khulumani.
content&view=category&layout=blog&id=18&Itemid=10 (acesso em 15.01.2008). net/press-releases/5-Press/178-khulumani-east-rand-protest-focusses-on-trc-
333 Khulumani Support Group, ‘Charter for redress proposed by Victims and qunfinished-businessq.html (acesso em 15.01.2008).
Survivors of Apartheid Gross Human Rights Abuses and Violations in South Africa’ 336 Khulumani Support Group, ‘Remembering the Liberation of Auschwitz’
Em: http://www.khulumani.net/campaigns/10-Redress/212-charter-for-redress.html [31 de janeiro de 2005]. Em: http://www.khulumani.net/press-releases/5-Press/96-
(acesso em 15.01.2008). remembering-the-liberation-of-auschwitz.html (acesso em 19.01.2008).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

que “não há anistia para o efeito potencial de traumas familiares que tem sido imposto às vítimas e sobreviventes:
não resolvidos em nossos bebês e crianças”. Portanto, Khulumani Não são os perpetradores que devem anunciar que é hora
pede a todos os sul-africanos que “aceitem que o passado ainda não de superar os horrores de um passado que continua a
passou”.337 A organização critica amargamente a frequente demanda existir no presente. São as vítimas que devem anunciar
de “superar nossa história do Apartheid”, porque sem a reparação essa hora (Legum). As vítimas e os sobreviventes devem
diminui-se ainda mais o papel que as vítimas e sobreviventes podem ser apoiados por seu governo em um empreendimento tão
importante.341
desempenhar para ajudar a trazer a democracia.338 “A África do Sul
não pode fingir”, argumentam eles, “que o passado é passado, que
os negócios podem continuar como sempre foram”.339 Comentando
Conclusão
acerca dos conflitos legais contra a cumplicidade corporativa com o
Apartheid, o grupo Khulumani articula sua crítica mais radical sobre Embora se deva reconhecer as muitas evoluções positivas,
o tempo histórico irreversível. Em uma passagem que estranhamente a história recente da África do Sul demonstra dolorosamente como o
reflete a linguagem performativa do apêndice da constituição de 1993, sonho de romper com o passado e começar tudo de novo é um ideal
que permitiu o acordo de anistia declarando o passado como um muito difícil de ser posto em prática. Enquanto o Apartheid terminou
capítulo a ser fechado, o grupo afirma que: formalmente no dia da inauguração do governo liderado por
As vítimas e os sobreviventes declaram que o passado Mandela, uma ruptura mais substancial com o legado do Apartheid
está no presente e que a única forma de impedir a foi, e ainda é, um projeto de longo prazo. Num contexto em que as
repetição de violações de direitos humanos por meio da pessoas, até recentemente, negavam a humanidade uns dos outros
conspiração de corporações multinacionais com regimes devido ao Apartheid, não partilhavam uma história comum devido
políticos ilegítimos é reforçando o direito constitucional à censura e manipulação do Estado e nem partilhavam um território
dos cidadãos buscarem reparações legais em qualquer
nacional comum devido ao estabelecimento de pátrias homónimas
autoridade competente.340
formalmente independentes, um dos poucos argumentos convincentes
Mantendo o mesmo tom e depois de repetir que chegou a para a necessidade da reconciliação nacional precisava situar-se na
hora de responsabilizar os autores, o grupo oferece uma grande crítica ideia de que tanto o amigo como o inimigo eram contemporâneos –
à política do tempo que sustenta o discurso terapêutico e reconciliador que, voluntariamente ou não, têm de compartilhar o mesmo presente.
Infelizmente, é exatamente essa idéia de contemporaneidade ou
337 Khulumani Support Group, ‘Betrayal of Khulumani’s “Born Frees”’ [12 de
junho de 2005]. Em: http://www.khulumani.net/press-releases/5-Press/155-betrayal- simultaneidade que muitas vezes é ameaçada em lugares onde a
of-khulumanis-born-frees.html (acesso em 15.01.2008). memória dos crimes tende a criar uma experiência irrevogável do
338 Khulumani Support Group, ‘Judge Mohamed Jajbhay’s Comments’ [6 de tempo para grandes parcelas da população.
julho de 2005]. Em: http://www.khulumani.net/press-releases/5-Press/175-judge-
mohamed-jajbhays-comments.html (acesso em 15.01.2008). É nesse contexto de necessidade de um projeto de
339 Khulumani Support Group, ‘4th World Chambers Congress’ [21 de junho simultaneidade nacional que proponho situar a virada «para a história»
de 2005]. Em: http://www.khulumani.net/press-releases/5-Press/140-4th-world- da TRC. No entanto, embora eu pense que a importância do potencial
chambers-congress.html (acesso em 19.01.2008). performativo do discurso histórico é muitas vezes negligenciada, meu
340 Khulumani Support Group, ‘Khulumani Case in New York’s Second Circuit foco na performatividade não significa minimizar a importância da
Court of Appeals from January 24, 2006’ [15 de novembro de 2007. Em: http://www.
khulumani.net/press-releases/5-Press/16-khulumani-case-in-new-yorks-second-
circuit-court-of-appeals-from-january-24-2006.html (acesso em 15.01.2008). 341 Ibid.

130 131
História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

verdade histórica ou da necessidade de reconhecimento oficial. Além


disso, é importante salientar que, embora certas frases e expressões
possam sugerir o contrário, não pretendo insinuar que os integrantes
da TRC voltaram-se conscientemente para o discurso histórico
devido a seu potencial performativo, ou que eles deliberadamente
empenharam-se numa política do tempo para restaurar o sentido
moderno de uma ruptura entre o passado e o presente e declarar que
Capítulo 4
as vítimas não cooperantes devem estar fora do tempo. Embora eu “O passado deve permanecer passado”. Tempo da
pense que a performatividade discursiva e a política do tempo podem história e tempo da justiça na “nova Serra Leoa”
ter conseqüências reais que podem ser desejáveis ou indesejáveis, essa
performatividade se refere mais aos efeitos do que às intenções.
O conflito armado entre o governo de Serra Leoa
Espero ter demonstrado que é precisamente como uma e a RUF/SL é por meio deste encerrado com efeito
reação a esse uso performativo do discurso histórico que o discurso imediato. Consequentemente, os dois oponentes
do Grupo de Apoio Khulumani deve ser entendido. Vários dos lemas assegurarão que a cessação total das hostilidades
e expressões usados por Khulumani mostram que eles têm uma seja observada imediatamente.
clara compreensão da política do tempo. Embora nunca usem esta Acordo de Paz de Abidjan, 1996342
terminologia exata, parece que eles compreendem muito bem como a
ênfase sobre o tempo histórico irreversível – sobre a distância temporal
ou a ausência do passado – tende a produzir o efeito político de deixar O conflito armado entre o governo de Serra
Leoa e a RUF/SL é por meio deste encerrado
passar os passados e de (indiretamente) facilitar a impunidade. A com efeito imediato. Consequentemente, os dois
estratégia política de Khulumani baseia-se em uma noção de tempo lados deverão assegurar que a cessação total
irrevogável, e embora o grupo até agora não tenha desenvolvido e permanente das hostilidades seja observada
uma linguagem espectral direta como a usada pelas Madres de Plaza imediatamente.
de Mayo, o grupo ainda é relativamente jovem e seu discurso pode Acordo de Paz de Lomé, 1999343
evoluir nessa direção.

Introdução
Serra Leoa ocupa um lugar relativamente único no universo

342 ‘Peace Agreement between the Government of the Republic of Sierra Leone
and the Revolutionary United Front of Sierra Leone.’ 30 de novembro de 1996.
Em: http://www.usip.org/files/file/resources/collections/peace_agreements/sierra_
leone_11301996.pdf (acesso em 14.11.2007).
343 ‘Peace Agreement Between the Government of Sierra Leone and the
Revolutionary United Front of Sierra Leone’ [7 de julho de 1999]. Em: http://www.
usip.org/files/file/resources/collections/peace_agreements/sierra_leone_07071999.
pdf (acesso em 14.11.2007).

132 133
História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

da justiça de transição pois, ao confrontar seus onze anos de guerra a importância de criar um “registro histórico imparcial” e de seu
civil, o pais desenvolveu uma abordagem de “duas vias”, na qual uma lema muitas vezes repetido que clama ao povo “perdoar, mas não
comissão da verdade e um tribunal de guerra operaram lado a lado. A esquecer”, a SLTRC manifesta muitos aspectos que são comumente
Comissão de Verdade e Reconciliação da Serra Leoa (SLTRC) esteve associados maiis com o esquecimento do que com a lembrança. Além
ativa entre 2002 e 2004, mas a iniciativa para a comissão já havia disso, Tim Kelsall tem sustentado que as tentativas dos comissionados
sido tomada durante as negociações de paz de Lomé, em 1999, onde de obter a verdade dos perpetradores fracassaram em grande parte.344
inicialmente deveria funcionar como contrapeso a uma controversa Face a essa relativa ineficácia em revelar fatos históricos (ao menos
anistia geral. Foi apenas mais tarde, após uma das partes no conflito ter nas audiências públicas), Kelsall argumenta que a importância da
violado o tratado de paz, em 2000, que a anistia geral foi parcialmente comissão em relação ao seu objetivo de criar a reconciliação deve
revista e que, com a ajuda das Nações Unidas, foi criado um Tribunal situar-se não na sua produção de verdade, mas em suas dimensões
Especial para a Serra Leoa que, assim como a SLTRC, começaria a rituais ou cerimoniais.
operar em 2002. Até hoje (2010), o tribunal havia indiciado somente
Em uma tentativa de explicar a enigmática virada para a
treze perpetradores que possuiam “a maior responsabilidade”. Parece
história no contexto da justiça transicional de Serra Leoa, vou elaborar
improvável que mais de dez deles sejam julgados antes que as operações
a tese que formulei no capítulo anterior. O uso do discurso histórico
da corte sejam suspensas, de modo que é provável que a grande
na SLTRC deve ser relacionado primeiramente com uma tentativa de
maioria dos perpetradores jamais enfrente qualquer justiça criminal.
distanciar o passado doloroso e, dessa forma, de restaurar ou impor
Ainda assim, a mera existência do Tribunal Especial tornou mais
uma ruptura modernista entre passado e presente. As elites de Serra
difícil para a SLTRC alegar de modo convincente que o testemunho
Leoa, como veremos, manifestam uma “vontade de modernidade”
da verdade constitui uma forma completa de justiça. Como resultado,
fortemente pronunciada; eles proclamam em voz alta sobre sua busca
a ideia de uma justiça restaurativa, embora certamente presente, tem
do progresso e sua ambição em “mover o país para frente”, afastando-
sido menos proeminente do que na TRC da África do Sul. Exceto por
se do passado “sombrio”. Enfatizando a dimensão ritual no trabalho
essa afirmação de alguma forma menos pronunciada de justiça e o
do SLTRC, seguindo as afirmações de Tim Kelsall, argumentarei que
fato de que a anistia não estava condicionada à revelação da verdade, a
o uso performativo do discurso histórico pode ser analisado como
SLTRC foi fortemente inspirada pelo exemplo da África do Sul. Com
uma espécie de “exorcismo” do passado assombroso. De forma
uma convicção possivelmente ainda maior do que a de seus colegas
muito semelhante aos casos anteriores, houve, em Serra Leoa, uma
sul-africanos, os membros da comissão da Serra Leoa postularam os
considerável resistência (local) às atividades da comissão da verdade.
efeitos terapêuticos e reconciliadores dos testemunhos da verdade.
Apesar das grandes diferenças na motivação da resistência em Serra
Tal como a TRC sul-africana, a SLTRC foi presidida por um líder
Leoa, na Argentina e na África do Sul, mais uma vez tentarei mostrar
religioso (o bispo metodista Joseph Humper) e foi permeada por um
que essa resistência pode estar relacionada a uma consciência do
tipo de linguagem religiosa que falava sobre a necessidade de perdão,
tempo distinta que pode ser interpretada como irrevogável, em vez
catarse e cura.
de irreversível.
Semelhante ao caso sul-africano, a ligação entre a verdade
histórica e a construção da nação – que é dada como auto-evidente,
mas nunca explicada pela comissão da verdade e seus partidários 344 Kelsall T., Truth, Lies, Ritual. Preliminary Reflections on the Truth and
– é, de fato, ambígua e bastante problemática. Apesar de sublinhar Reconciliation Commission in Sierra Leone. In: Human Rights Quarterly, 27(2005)
pp. 361-391.

134 135
História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Do conflito a uma paz frágil: situando a Comissão da invasão e a ideia de se juntar a um grupo de “lutadores pela liberdade”
Verdade e Reconciliação atraiu alguns jovens. Outros jovens foram recrutados forçosamente
para a RUF. Entretanto, os rebeldes não eram os únicos a usar
O início da “longa década” de conflitos sangrentos em Serra crianças-soldado, e o recrutamento de jovens, juntamente com
Leoa é normalmente datado em 23 de Março de 1991.345 Décadas o uso generalizado de técnicas de terror, incluindo mutilações e
de má governança, corrupção e uma combinação aparentemente amputações, tornou-se um dos aspectos mais notórios do conflito
contraditória de presença total do Estado e a sua simultânea total em Serra Leoa.
erosão criaram uma situação em que Serra Leoa era extremamente
vulnerável a ataques de dentro e de fora do país.346 Depois de um ano de luta, o governo do APC enfrentou um
desafio fatal que não veio dos rebeldes, mas de seu próprio exército.
Em março de 1991 um grupo de rebeldes armados que Em 29 de abril de 1992, um pequeno grupo de jovens soldados
se intitulava Frente Revolucionária Unida (RUF) entrou no país liderados pelos oficiais Valentine Strasser e Julius Maada Bio começou
ao longo da fronteira entre Serra Leoa e Libéria. Seu objetivo a se amotinar. Aterrorizado pelos soldados que se aproximavam
declarado era derrubar o governo autoritário do presidente Joseph do palácio presidencial, o presidente Momoh fugiu (supostamente
Momoh e seu Congresso de Todos os Povos (APC) que governava disfarçado de mulher), e então os amotinados, contra suas próprias
ininterruptamente desde o final dos anos 1960. Embora os invasores expectativas, se viram encarregados do país. Os oficiais amotinados
provavelmente não chegassem a uma centena, eles desafiaram com criaram um Conselho Provisório Nacional (NPRC) presidido
sucesso o desorganizado Exército de Serra Leoa (SLA). Em apenas por Valentine Strasser, que prometeu devolver o país ao regime
alguns meses, os rebeldes tomaram o controle de cerca de um quinto constitucional logo após o término da guerra. Inicialmente Strasser
do território do país. Inicialmente, os rebeldes receberam certo gozou de grande popularidade doméstica, e sua retórica esclarecida
apoio popular, mas isso logo mudou quando eles começaram a se lhe assegurou o apoio temporário da comunidade internacional.
comportar brutalmente, abusando das mulheres locais e realizando Além disso, o NPRC foi bastante afortunado no campo de batalha,
violência indiscriminada contra civis. Ainda assim, o fino véu de onde conseguiu, em parte, expulsar a RUF. Durante algum tempo,
ideologia idealista implantado pelos rebeldes para legitimar sua parecia que o exército seria capaz de derrotar os rebeldes, mas essa
345 Salvo indicação em contrário, esta visão geral baseia-se nas seguintes fontes: esperança acabou por ser vã. Adaptando-se às derrotas militares em
Richards P., Fighting for the Rain Forest. War, Youth & Recources in Sierra Leone. campo aberto, a RUF recuou para as montanhas, onde iniciou um
Oxford, James Currey & Heinemann, 1996; Gberie L., A Dirty War in West Africa. confronto usando táticas de guerrilha. Longe de aproximar o país da
The RUF and the Destruction of Sierra Leone. London, C. Hurst & Co. Ltd, 2005; Keen
D., Conflict and Collusion in Sierra Leone. Oxford, James Currey Ltd., 2005; Pham paz, tal transformação da RUF no final de 1993 anunciou o início
P. J., Child Soldiers, Adult Interests. The Global Dimensions of the Sierra Leonean de uma segunda fase ainda mais brutal de guerra de guerrilha que
Tragedy. New York, Nova Science Publishers, 2005; SLTRC, Witness to Truth. Sierra espalhou o conflito por todo o país.347
Leone Truth & Reconciliation Commission. (Volume 3A) Accra (Ghana), Graphic
Packaging Ltd, 2004. Em meio aos conflitos, as forças governamentais
346 Kieh G. K. Jr., State-building in Post-Civil War Sierra Leone. In: African indisciplinadas também começaram a cometer atrocidades cujas
and Asian Studies, 4 (2005), 1-2, pp. 163-185. Neste capítulo, não me concentro nas
pré-condições do conflito; para isso, ver: Alie J. A. D., Background to the conflict
principais vítimas eram, mais uma vez, civis. A trágica posição da
(1961-1991). What went wrong and why? In: Ayissi A. & Poulton E. (eds), Bound to população civil, simultaneamente assediada pelos rebeldes e pelo
Cooperate. Conflict, Peace and People in Sierra Leone. Geneva, UNIDIR, 2006, pp. exército, levou à criação de grupos de defesa civil que acrescentaram
15-36. Ver também: Alie J. A. D., A New History of Sierra Leone. London, Macmillan
Publishers, 1990. 347 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3A), p. 88.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

uma nova dimensão de complexidade ao conflito.348 a RUF para compartilhar o poder, e juntos criaram uma situação
de ilegalidade, colapso estrutural e terror total. Foi somente com a
Inicialmente, os grupos de defesa civil apenas protegiam
ajuda do Grupo de Monitoramento do Cessar-Fogo (ECOMOG),
suas próprias comunidades. Mais tarde, tornaram-se uma Força de
principalmente integrado por nigerianos, que Freetown pode ser
Defesa Civil bem armada e organizada, que se transformou em um
libertada e o governo do Presidente Kabbah reinstalado.350 Embora
braço do Estado de facto e, no seu desenvolvimento, acabou implicada
o impasse militar continuasse e grande parte do país permanecesse
em graves abusos dos direitos humanos, que por vezes eram de
nas mãos da coalizão RUF-AFRC, Kabbah imediatamente iniciou um
inspiração étnica.349 Além de mobilizar as milícias civis, o governo
julgamento por traição contra os líderes do golpe, incluindo Sankoh,
também tentou compensar o quase colapsado exército nacional por
que foi posteriormente condenado à morte. Em parte como reação a
meio do uso de mercenários.
perseguição de seu líder, a RUF lançou o país numa nova campanha
Tudo isso constituiu um conflito complexo e extremamente de terror que foi convenientemente chamada de “Operação Nenhuma
brutal, que parecia prolongar-se infinitamente pelas rendas que os Coisa Viva”. Em janeiro de 1999 o terror chegou a uma apoteose
diferentes partidos extraíram da venda (ilegal) de diamantes. Alguns quando as forças da coalizão RUF-AFRC conseguiram entrar e
dos primeiros raios de esperança para a população vieram em 1996 saquear Freetown mais uma vez. Foi necessário um cerco de mais
quando Valentine Strasser, pressionado por grupos da sociedade de seis semanas antes que as forças do ECOMOG (que, como todas
civil em Freetown, manteve sua promessa de organizar eleições as partes do conflito, começaram a cometer atrocidades) pudessem
democráticas. As eleições ocorreram em dois turnos entre fevereiro e reconquistar a cidade destruída. Apesar do recuo da coalizão RUF-
março de 1996 e após um resultado provavelmente fraudulento, elegeu AFRC da capital, o impasse militar permaneceu sem resolução.
Ahmad Tejan Kabbah do Partido Popular de Serra Leoa como novo
Foi neste contexto que o Presidente Kabbah, pressionado
presidente. Em torno do mesmo período um outro raio de esperança
pela ONU e pelo ECOMOG, pediu ao líder da RUF ainda preso,
surgiu quando o impasse militar conduziu o governo e os rebeldes
Sankoh, que participasse em novas negociações de paz organizadas
à mesa de negociação. Em 30 de novembro de 1996, na capital da
pelo governo de Togo na sua capital Lomé. Antes das negociações
Costa do Marfim, Abidjan, ambas as partes assinaram um acordo de
foi organizada uma conferência em que a elite política consultou
paz que providenciava uma anistia geral e prometia o fim imediato
líderes tradicionais e grupos da sociedade civil para discutir a questão
do conflito. Tragicamente, a euforia da população sobre a paz recém-
da justiça de transição. Logo ficou claro que Serra Leoa, como diz
conquistada seria de curta duração. Logo as tensões voltaram a se
Priscilla Hayner, “apresentou um contexto de ‘pior dos casos’ para
intensificar e as intenções reais da RUF ficaram claras quando seu
tentar preservar os padrões internacionais de justiça enquanto
líder, Foday Sankoh, foi preso em 2 de março de 1997, a caminho de se
negociava a paz”.351 Como consequência, a maioria estava convencida
encontrar com um negociante de armas na Nigéria. Também em 1997,
de que a paz só poderia ser obtida se os negociadores concordassem
a Serra Leoa foi palco de um novo golpe militar no qual amotinados
com a demanda da RUF por uma anistia geral.352 Assim, a ideia de
forçaram o governo a fugir e instalaram o Conselho Revolucionário
das Forças Armadas (AFRC). O golpe seria relativamente curto, mas 350 Adebajo A., Building Peace in West Africa. Liberia, Sierra Leone, and Guinea-
seria uma das fases mais violentas da guerra civil. O AFRC convidou Bissau. Colorado, Lynne Rienner Publishers, 2002, p. 89.
351 Hayner P., ‘Negotiating peace in Sierra Leone. Confronting the justice
348 Squire C., Bound to cooperate. Peacemaking and power-sharing in Sierra challenge.’ Report for the International Center for Transitional Justice, December
Leone. In: Ayissi & Poulton (eds), Bound to Cooperate, pp. 49-66, 53. 2007, p. 6.
349 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3A). 352 Berewa S., Addressing Impunity Using Divergent Approaches. The Truth

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

processar os perpetradores ou de criar um tribunal de guerra nunca Enquanto a população da Serra Leoa estava desalentada
foi realmente considerada por nenhuma das partes em negociação.353 com a ideia de partilha de poder, foi a anistia geral que deu ao Acordo
No entanto, a comunidade de direitos humanos formulou três de Paz de Lomé uma má reputação internacional. Pouco antes
exigências básicas que tinham de ser cumpridas pelas negociações: da assinatura do Acordo de Lomé, a ONU pronunciou-se contra
em primeiro lugar, pedia a participação ativa da sociedade civil no anistias gerais, o que causou grandes dificuldades ao representante da
processo de paz; em segundo, exigia que o acordo de paz incluísse ONU, Francis Okelo. No último momento, durante a cerimônia de
disposições claras para a proteção e promoção dos direitos humanos; assinatura, Okelo, sem informar as outras partes, decidiu acrescentar
e, em terceiro lugar, rejeitou qualquer acordo que pudesse garantir a seguinte nota ao acordo assinado pela ONU:
a partilha de poder com os rebeldes antes de eleições gerais.354 Além As Nações Unidas entendem que a anistia e o perdão
disso, pedia o estabelecimento de uma Comissão de Verdade, Justiça no Artigo IX do acordo não se aplicam aos crimes
e Reconciliação e pressionava para a adaptação do acordo de anistia, internacionais e outras violações graves da lei humanitária
de modo a torná-lo condicional à colaboração com a comissão da internacional.358
verdade.355 Pouco depois da assinatura do Acordo de Paz de Lomé, a
Quando o Acordo de Paz de Lomé foi eventualmente ONU criou uma missão de paz em Serra Leoa e começou com um
assinado em 7 de Julho de 1999, apenas algumas das reivindicações programa de desarmamento e desmobilização.359 No entanto, nada foi
da comunidade de direitos humanos foram cumpridas. Os rebeldes feito em relação ao anexo de Okelo ao acordo de paz. Os primeiros
claramente não se preocuparam muito com a ideia de uma comissão passos no sentido da criação de um Tribunal Especial foram tomados
da verdade, de modo que este pedido foi incluído no acordo final.356 apenas depois que os rebeldes violaram as condições do acordo de paz
Para a consternação dos ativistas de direitos humanos, entretanto, a ao retomarem as hostilidades, em maio de 2000.360 Argumentando que
palavra justiça foi deixada fora do nome da comissão, o acordo de paz a violação dos acordos anulava as disposições de anistia, o Presidente
previu o compartilhamento do poder no período anterior às eleições Kabbah dirigiu-se à ONU com um pedido formal para a criação de
gerais e, além disso, o acordo de anistia não foi condicionado ao um tribunal. Quando a ONU concordou, a fundamentação legal do
testemunho da verdade.357 Tribunal Especial foi criada.
Enquanto o acordo de Lomé previa a criação de uma
and Reconciliation Commission and the Special Court. In: UNAMSIL, Truth and
Reconciliation in Sierra Leone. Freetown, 2001, pp. 55-56.
Comissão da Verdade e Reconciliação dentro de um período de 90
353 Hayner, Negotiating peace in Sierra Leone, p. 12. dias após a sua assinatura, o ressurgimento das hostilidades atrasou
354 O’Flaherty M., Sierra Leone’s Peace Process. The Role of the Human Rights consideravelmente a criação da comissão. O projeto jurídico para
Community. In: Human Rights Quarterly, 26 (2004), pp. 29-62, 50. a comissão foi elaborada sob a forma de uma Lei da Comissão da
355 Ibid., p. 54. Verdade e Reconciliação aprovada pelo parlamento em novembro de
356 O Presidente Kabbah mais tarde comentou cinicamente que, “obviamente,
já que a comissão não teria poderes para punir, a AFRC/RUF concordou de bom 358 Citado em: Hayner, Negotiating peace in Sierra Leone, p. 5.
grado com sua inclusão no acordo”. Em: ‘A Statement by his Excellency the President 359 Berman E. G. & Labonte M. T., Sierra Leone. In: Durch W. J. (ed.), Twenty-
Alhaji Dr. Ahmad Tejan Kabbah Made Before the Truth and Reconciliation First-Century Peace Operations. Washington, United States Institute of Peace, 2006,
Commission on Tuesday 5th August, 2003.’ Em: http://www.sierra-leone.org/ pp. 141-228.
Speeches/kabbah-080503.html (acesso em 14.11.2007). 360 Cook N., Sierra Leone. Transition to Peace. In: Sillinger B. (ed.), Sierra Leone.
357 ‘Peace Agreement Between the Government of Sierra Leone and the Current Issues and Background. New York, Nova Science Publishers, 2003, pp. 17-54,
Revolutionary United Front of Sierra Leone’ [7 de julho de 1999]. 24. Ver também: Pham, Child Soldiers, Adult Interests, p. 149.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

2000. Pouco depois da aprovação da lei, uma série de projetos foram O Tribunal Especial e a TRC: “tempo da jurisdição” vs.
criados em preparação para a comissão. Entretanto, a comissão da “tempo da história”
verdade começou a operar somente no final de 2002, por volta do
mesmo período que o Tribunal Especial.361 De forma semelhante ao Como a maioria das comissões da verdade, a da Serra
Tribunal Especial, a SLTRC era uma instituição híbrida, parcialmente Leoa foi originalmente criada para funcionar como uma alternativa
nacional e parcialmente internacional. A ONU desempenhou um à justiça criminal (em vez de um complemento) e, como sublinham
papel importante no estabelecimento da comissão e seu caráter seus integrantes, as duas instituições “não foram criadas como parte
híbrido se refletiu na composição da equipe que incluía quatro serra- de um grande projeto”.366 A possibilidade de criar um tribunal de
leonenses nomeados pelo presidente e três membros internacionais guerra, como vimos, nunca foi seriamente considerada no momento
selecionados pelo Alto Comissário das Nações Unidas para os das negociações de paz em Lomé, quando foi tomada a decisão de criar
Direitos Humanos.362 A comissão subdividiu seu trabalho em três uma comissão. Serra Leoa não foi o primeiro país onde uma comissão
fases subsequentes que se concentraram em uma tarefa principal. da verdade trabalhou em paralelo com os esforços da justiça criminal,
Durante a primeira fase, que durou cerca de 4 meses, uma equipe mas seu caso ilustra claramente as dificuldades e potenciais armadilhas
reuniu mais de 8.000 relatos de vítimas, perpetradores e testemunhas. que podem surgir em tal situação. Apesar dos consideráveis esforços –
Como uma espécie de prévia, em janeiro de 2003 a comissão divulgou das Nações Unidas, dos especialistas legais e das ONGs – para definir
uma análise preliminar dos primeiros 1.300 depoimentos com os os diferentes papéis e as sinergias pretendidas entre a Comissão da
quais já haviam sido identificadas 3.000 vítimas.363 A segunda fase Verdade e o Tribunal Especial, inevitavelmente surgiram conflitos.367
das audiências (públicas e fechadas) começou em abril de 2003 e Durante a fase de preparação, a comissão da verdade foi confrontada
terminou no início de agosto do mesmo ano. Embora a comissão com uma decepcionante arrecadação de fundos, que foi interpretada
não tenha conseguido estender suas atividades a todas as regiões do como indicação de uma indiferença à sua missão ou de um maior
país devido à instabilidade política, realizaram-se várias audiências “entusiasmo dos doadores” pelo Tribunal Especial.368 Como ex-
em Freetown e na maior parte dos distritos de Serra Leoa.364 Após integrante, William Schabas descreve o sentimento que existia entre os
as audiências finais, a comissão entrou em uma fase de elaboração membros da comissão: “Possivelmente os doadores viam a Comissão
de relatórios que, como as outras fases, estava programada para comprometida com o acordo de Lomé, com sua desagradável anistia,
levar cerca de quatro meses, mas durou mais de um ano. Em 5 de algo com o qual o tribunal não estava afetado”.369 Além das tensões
outubro de 2004, a comissão finalmente apresentou seu relatório criadas pelo problema em serem financiadas pelos mesmos doadores,
ao presidente, mas levou até 2005 para que o relatório chegasse ao as duas instituições também competiram por integrantes qualificados,
público nacional e internacional.365 366 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 363.
367 Ver , por exemplo, o relatório da ONG de Nova Iorque ‘International
Center for Transitional Justice’: Wierda M., Hayner P. & van Zyl P., ‘Exploring the
361 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 56. relationship between the special court and the truth and reconciliation commission
of Sierra Leone.’ New York, ICTJ, Junho de 2002.
362 Ibid., p. 53.
368 Schabas W. A., The Sierra Leone Truth and Reconciliation Commission. In:
363 Hayner P., ‘The Sierra Leone Truth and Reconciliation Commission. Roht-Arriaza & Mariezcurrena (eds), Transitional Justice in the Twenty-First Century,
Reviewing the First Year.’ (Relatório escrito para o Centro Internacional de Justiça pp. 21-42, 23.
Transicional) Janeiro de 2004, p. 3.
369 Schabas W. A., A Synergistic Relationship: the Sierra Leone Truth and
364 Kieh, State-building in Post-Civil War Sierra Leone, p. 175. Reconciliation Commission and the Special Court of Sierra Leone. In: Criminal Law
365 Hayner, ‘Negotiating peace in Sierra Leone,’ p. 27. Forum, 15 (2004), pp. 3-54, 8.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

que eram escassos após a fuga de cérebros que havia flagelado a Serra instituições surgiu sobre outra questão bastante inesperada, a saber, a
Leoa por tanto tempo.370 do direito dos detidos sob a custódia do Tribunal Especial a participar
nas audiências públicas da comissão da verdade. O conflito começou
Mas, sobretudo, os integrantes da SLTRC temiam que a
quando três prisioneiros indiciados – incluindo o líder das Forças de
confusão sobre o funcionamento autônomo das duas instituições
Defesa Civil, Sam Hinga Norman – pediram para testemunhar em
dissuadisse os perpetradores de testemunharem para a comissão.
público. Quando o promotor do Tribunal Especial rejeitou o pedido,
Portanto, tanto os integrantes de ambas as instituições quanto
temendo que o acusado usasse o fórum público para propagar o ódio,
os responsáveis políticos nacionais e internacionais enfatizavam
a SLTRC iniciou uma luta legal para reverter essa decisão. Depois de
repetidamente que a comissão e o tribunal tinham mandatos
passar por várias instâncias legais, a questão acabou com o presidente
diferentes. Por um lado, foi afirmado que a comissão da verdade
da Câmara de Apelações, o juiz Geoffrey Robertson, que determinou
não tinha nenhuma missão punitiva e que visava somente a busca
que os detidos não podiam testemunhar em público, mas que seriam
da verdade, a catarse e a reconciliação; por outro, foi comunicado
autorizados a testemunhar por meio de declarações escritas. Em um
que o Tribunal Especial julgaria apenas os perpetradores de maior
raciocínio que foi fortemente contestado pelos integrantes da comissão
responsabilidade e que não se concentraria nas crianças-soldados.371
da verdade, o juiz Robertson argumentou que o frágil equilíbrio no
Além desse problema de percepção popular, os especialistas país levantava preocupações de segurança. Além disso, o juiz temia
também previram uma ampla gama de problemas jurídicos reais. A que as audiências públicas da SLTRC, que deveriam ser realizadas no
maior parte das preocupações dos especialistas girava em torno do edifício do tribunal, se assemelhassem ou até mesmo parodiassem um
problema da partilha de informações e da possibilidade de que os caso judicial real:
testemunhos auto-incriminatórios dos perpetradores dados perante a Um homem em custódia aguardando julgamento por
comissão da verdade pudessem ser usados como provas para condená- acusações muito sérias será exibido, no próprio tribunal
los perante o Tribunal Especial. Os defensores da SLTRC pediram onde esse julgamento será realizado em breve, diante de
proteção legal contra esse uso de evidências auto-incriminatórias para um bispo em vez de um juiz [...] O evento terá a aparência
facilitar as confissões dos perpetradores.372 de um julgamento, pelo menos a aparência de uma espécie
de julgamento habitual em séculos passados.373
Eventualmente, o principal conflito entre as duas
Além disso, ele argumenta que a comissão estava apenas
370 Schabas, A Synergistic Relationship, p. 8. negando uma audiência pública,
371 Em uma instrução no final de 2002, por exemplo, a comissão da verdade um evento mais plausível com o trabalho judicial de
observou que algumas pessoas ainda entendiam mal o propósito da comissão e sua
relação com o Tribunal Especial. Por isso, foi informado mais uma vez ao público
reconciliação (que não pode ser aplicado a indiciados que
que a comissão era um órgão independente, que não pretendia punir ninguém e que se declaram inocentes) que a tarefa da construção um
“não era uma armadilha”. ‘Eighth Weekly Briefing of the Truth and Reconciliation registro histórico.374
Commission Chaired by Professor William Schabas, On Wednesday 11th September
2002’. Em: http://www.sierra-leone.org/history-conflict.html (acesso em 04.03.2007). Ademais, o juiz declarou que o Tribunal Especial tinha primazia
Ver, por exemplo, o folheto criado pelo Tribunal Especial para informar o público da sobre a comissão da verdade e que era mais adequado para alcançar a
Serra Leoa sobre sua missão. Special Court for Sierra Leone, Wetin Na Di Speshal Kot? reconciliação, uma vez que apenas o tribunal tinha o poder de fazer justiça:
The Special Court Made Simple. Freetown, NABs Tech, 2003.
372 Schabas, The Relationship Between Truth Commissions and International
Courts. The Case of Sierra Leone. In: Human Rights Quarterly, 25 (2003), pp. 1035– 373 Citado em: SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 423.
1066, 1052. 374 Ibid., p. 424.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Dentro dos parâmetros falíveis da justiça humana, com deste livro, é importante ressaltar que as tensões entre a SLTRC e o
seus fundamentos do devido processo, da transparência Tribunal Especial em um nível mais básico parecem ter origem em
e dos direitos de defesa, somos encarregados de fazer um conflito entre o que eu descrevi na introdução como “tempo da
o nosso melhor para acabar com a impunidade que os
poderosos perpetradores de outra forma desfrutariam. história” e “tempo da jurisdição”. Para compreender as considerações
Isso devemos à memória das vítimas assassinadas, aos e intenções diferentes ou mesmo contrárias que inspiraram os
sobreviventes mutilados e aos que sofrem por eles. É um responsáveis pela criação da comissão da verdade, por um lado, e do
dever que partilhamos com outro organismo, a Comissão Tribunal Especial, por outro, podemos analisar os respectivos textos
da Verdade e Reconciliação criada pelo governo da Serra jurídicos que fundamentaram os dois. A “Lei de Comissão da Verdade
Leoa. Trabalharemos juntos para descobrir a verdade,
embora apenas o Tribunal tenha o poder de exercer a
e Reconciliação”, que em 2000 estabeleceu que a função da SLTRC
justiça, que é um pré-requisito para a reconciliação.375 seria:
criar um registro histórico imparcial das violações e
Perturbados por esse veredito, os comissionados dedicaram
abusos dos direitos humanos e do direito internacional
a maior parte de um capítulo do relatório final da SLTRC a uma revisão humanitário relacionados ao conflito armado em Serra
crítica do raciocínio do juiz, que eles consideraram “rígido” e “defasado Leoa, desde o início do conflito, em 1991, até a assinatura
das noções atuais de justiça de transição”.376 Reclamaram sobre o do Acordo de Paz de Lomé; para enfrentar a impunidade,
fato de que o juiz Robertson havia caricaturizado o funcionamento responder às necessidades das vítimas, promover a cura e
da comissão, argumentando que ele considerou a reconciliação a reconciliação e evitar a repetição das violações e abusos
sofridos.379
como meramente consistindo em atos de confissão e perdão, ao
mesmo tempo em que se opunha de forma rígida aos exercícios de Para cumprir essa tarefa, a comissão recebeu um mandato
reconciliação e testemunho da verdade da comissão. A decisão de de um ano com uma possível prorrogação de mais seis meses; além
Robertson, de acordo com os comissionados, se baseava pouco mais disso, a lei exigia que os membros da comissão fossem pessoas
do que em uma “preocupação territorial mal interpretada”.377 de “integridade e credibilidade” e de alto nível profissional ou
competência, nomeando explicitamente advogados, cientistas sociais,
Parecia justificado o sentimento dos membros da comissão
líderes religiosos e psicólogos.
de que a “justiça restaurativa” e até mesmo o “testemunho da verdade”
que defendiam nem sempre eram levadas a sério pelos legalistas e Apesar da notável ausência de qualquer referência aos
pelos políticos. O presidente Kabbah, por exemplo, em um discurso historiadores, o texto repete várias vezes que os membros da comissão
no início das audiências públicas do SLTRC em Freetown, em abril têm de criar um “registro histórico imparcial” e precisam examinar
de 2003, parecia preferir falar e promover o Tribunal Especial, “violações ou abusos passados”. Em um anexo à Lei, intitulado
e declarava que mais do que revelar a verdade, o objetivo mais “Memorando de Objetos e Razões “, o objetivo da comissão é mais
importante da comissão da verdade era a sua função terapêutica que uma vez formulado como:
deveria conduzir à reconciliação nacional.378 Contudo, no contexto uma catarse para o intercâmbio construtivo entre as vítimas
375 Citado em: SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 425.
de 2003]. Em: http://www.sierra-leone.org/Speeches/kabbah-041403.html (acesso em
376 Ibid., p. 418. 16.01.2007).
377 Ibid., p. 425. 379 ‘The Truth and Reconciliation Commission Act 2000’. [10 de fevereiro de
378 “Address by the President his Excellency Alhaji Dr. Ahmad Tejan Kabbah at 2000]. Em: http://www.usip.org/library/tc/doc/charters/tc_sierra_leone_02102000.
the Start of Public Hearings of the Truth and Reconciliation commission” [14 de abril html (acesso em 13.01.2007).

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

e os autores de violações e abusos de direitos humanos e, Da mesma forma, os integrantes da comissão, em diversas
a partir desta catarse, a Comissão compilará “uma clara ocasiões, expressaram sua insatisfação com as rígidas limitações
imagem do passado”. Consequentemente, pela cláusula temporais de seu mandato oficial. Discutindo e interpretando o prazo
6, a função principal da Comissão é criar um registro
histórico imparcial dos acontecimentos em questão como imposto, os integrantes, em seu relatório final e em reflexões privadas,
base para a tarefa de impedir a sua repetição.380 argumentaram que a regulação estrita apenas se aplicava a uma parte
das funções da comissão:
A verdadeira relevância da linguagem usada na lei da SLTRC,
com suas repetidas referências aos “registros históricos”, “violações e Em outras palavras, embora o “registro histórico” da
Comissão é limitado temporalmente, não há nada no artigo
abusos passados”, e “imagens do passado”, só se torna clara quando se 6(1) [da Lei da Comissão da Verdade e Reconciliação]
contrasta com a redação do texto que decretou a criação do Tribunal que impede a Comissão de se concentrar em períodos
Especial. Este estatuto de fundação declara que o Tribunal Especial, anteriores à 1991 e posteriores ao Acordo de Lomé, no que
com exceção das pessoas com menos de quinze anos de idade, “terá o se refere à responsabilidade de enfrentar a impunidade,
poder de processar aqueles que tiveram maiores responsabilidades por responder às necessidades das vítimas, promover a cura e
a reconciliação e evitar a repetição das violações e abusos
violações graves da lei humanitária internacional e da Serra Leoa”.381
sofridos.383
Além disso, o documento invalida a anistia concedida pelo Acordo
de Paz de Lomé para todas as pessoas sob a jurisdição do Tribunal “Nesse sentido”, prossegue o argumento, “a Comissão não
Especial. Por razões pragmáticas, para não sobrecarregá-lo, a jurisdição tem nenhuma jurisdição temporal, em contraste, por exemplo, com o
temporal do Tribunal Especial limita-se ao período que começa na data Tribunal Especial para a Serra Leoa”.384 E um pouco mais adiante: “Por
simbólica de 30 de novembro de 1996, quando foi assinado o Acordo todas estas razões, a Comissão não se sentiu particularmente limitada
de Paz de Abidjan (o governo da Serra Leoa solicitou posteriormente, pelo prazo estabelecido no artigo 6(1)”.385 É repetidamente salientado
sem êxito, que a data de início fosse transferida para o início do conflito, que o olhar da comissão não é dirigido apenas para o passado, mas
em 1991382). Claramente, o que autores de “maior responsabilidade” também para o futuro. O relatório final da SLTRC, em comparação
fizeram não poderia ser considerado “passado”, mesmo que suas com o da TRC sul-africana, é menos construído em torno da noção
atrocidades tivessem sido cometidas na mesma data cronológica que de uma ruptura absoluta entre passado e presente que implicitamente
as “violações e abusos passados” cometidas por outros indivíduos, que poderia legitimar o estado pós-conflito. Na seção de conclusão do
deviam ser transpostas para o “registro histórico imparcial”. Apesar relatório final, os integrantes formularam a deprimente conclusão de
de toda a retórica sobre o “enfrentamento da impunidade”, a maioria que muitas das causas que provocaram a guerra civil permaneceram
dos políticos e juristas parecem considerar que a comissão da verdade, inalteradas na Serra Leoa pós-conflito e que a presença contínua de
com sua estreita relação com o acordo de anistia, agiu principalmente prisioneiros políticos na “nova Serra Leoa” representava de facto a
para impor o tempo irreversível da história em eventos que de outra persistência do passado.386 Superestimando profundamente a ruptura
forma tenderiam a ficar “vivos” demais e “presentes”. entre o passado e o presente em outras sociedades pós-conflito, o ex-

380 ‘The Truth and Reconciliation Commission Act 2000’. 383 SLTRC, Witness to Truth (Volume 1), p. 43.
381 ‘Statute of the Special Court for Sierra Leone’ [16 de janeiro de 2002]. Em: 384 Ibid.
http://www.sc-sl.org/ (acesso em 11.04.2008). 385 Ibid.
382 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 369; E também: Schabas, A 386 Ver também: Schabas W. A., The Sierra Leone Truth and Reconciliation
synergistic relationship, p. 21. Commission, p. 28.

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integrante William Schabas afirma, em retrospectiva, que uma das por reparações e desculpas substituiu em grande parte a elaboração
característica únicas da SLTRC foi que ela “paradoxalmente” teve que de visões do futuro na política contemporânea. A preocupação com
construir seu “registro histórico imparcial” em um momento no qual “acertas as contas com o passado”, queixa-se, é tão difundida que o grito
a transição ainda estava incompleta e o conflito, portanto, ainda não de protesto “não se lamente [mourn], se organize” pelo movimento
havia passado completamente: operário tradicional foi substituído por um “organize-se para lamentar-
As comissões da verdade mais celebradas funcionaram não se”.388 Embora esta tese possa ser verdadeira para ramos específicos
apenas quando o conflito já havia terminado, mas quando a da política mais ampla de reparação, ela não é válida para a justiça de
transição, em um sentido social, estava bem encaminhada. transição em um país como a Serra Leoa. A instalação da comissão da
A Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul verdade nesse país, semelhante ao que já apontei para o caso da África
não precisava recomendar que as causas do sofrimento do Sul, deve ser interpretada não como a manifestação de uma obsessão
nacional, o Apartheid e a discriminação racial, fossem
proibidas. Da mesma forma, a Comissão da Verdade do com o passado ou uma perda de interesse no futuro, mas sim como
Chile não teve que argumentar que a democracia era uma uma reação direta às falhas do progresso e à ruptura ou ausência de
alternativa melhor à ditadura. Serra Leoa é diferente. O uma consciência moderna do tempo que se baseie na crença de uma
fim do conflito foi pouco mais do que um cessar-fogo, não clara divisão entre passado e presente. Longe de “eclipsar os modos
uma vitória decisiva de um lado sobre o outro e, sobretudo, visionários de imaginar o futuro”, a TRC de Serra Leoa combinou
o triunfo de uma visão social progressista sobre os valores
um olhar retrospectivo com um grande desejo de progresso. Isto é
e práticas perversas do passado.387
particularmente claro no projeto voluntarista denominado “Visão
O paradoxo que confundia William Schabas não nos pode Nacional para a Serra Leoa”, organizado pela SLTRC. Segundo a
confundir. Do ponto de vista que estamos desenvolvendo neste comissão, a futura Serra Leoa só poderia ser construída se um “roteiro”
livro, a visão sóbria de que o “tempo da paz” pode não ser facilmente fosse “vislumbrado” pela população. Portanto, a comissão lançou um
distinguido do “tempo do conflito” – que o passado persiste – oferece apelo para contribuições, pedindo que as pessoas enviassem ensaios,
uma explicação para a introdução do discurso histórico mais do que poemas, lemas, canções, pinturas ou fotografias que expressassem
sua contradição. Além disso, embora a resistência estratégica dos aspirações para o futuro do país. A comissão alega ter recebido mais
comissionados contra o enquadramento temporal imposto parece de 250 contribuições provenientes de cerca de 300 indivíduos que, em
implicar uma percepção do funcionamento do tempo irreversível da conjunto, eram representativos da população nacional.389 “Através do
história e do modo como este último tende a reforçar uma atitude que Visão Nacional”, argumentam os comissionados,
permite “deixar o tempo passar”, em muitas outras oportunidades, os serra-leoneses de todas as idades e origens podem
os comissionados enfatizaram essa mesma noção de tempo, falando reivindicar seu próprio espaço de cidadania na nova Serra
termos de um “triunfo progressivo” e de uma ruptura absoluta com o Leoa e fazer suas contribuições para o patrimônio cultural
passado. É sobre esse problema que me dedicarei no próximo tópico. e nacional do país.390
Além disso, os integrantes da comissão escrevem que “embora a SLTRC
tenha solicitado aos serra-leoneses que falassem sobre o futuro, a maioria
Um desejo de progresso e uma vontade de modernidade
388 Torpey J., Introduction. In: Torpey J., (ed.), Politics and the Past. On
O sociólogo John Torpey afirma que a recente “febre” mundial Repairing Historical Injustices. Lanham, Rowman & Littlefield Publishers, 2003, p. 1.
389 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 503.
387 Schabas, A Synergistic Relationship, p. 15. 390 Ibid., p. 505.

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das contribuições abordava o futuro fazendo referência ao passado”, e repetida várias vezes ao longo do relatório final e parece funcionar
acrescentam entusiasticamente que “as contribuições demonstram como o lema central do SLTRC: “A inspiração é: vamos correr a toda
amplamente que a Serra Leoa pode e deve alcançar novas alturas”.391 velocidade; se não conseguimos correr a toda velocidade, vamos correr;
se não conseguimos correr, vamos andar; se não conseguimos andar,
Obviamente, o projeto Visão Nacional destinava-se a
vamos rastejar, mas de qualquer forma possível, vamos continuar em
promover e legitimar a agenda ético-política da comissão da verdade,
movimento”.
e esta agenda está claramente refletida no conteúdo da seleção de
contribuições que são reproduzidas no relatório final. A primeira peça Pelo menos tanto quanto o anseio pelo progresso, a seleção
é um selo que retrata os contornos do país, uma multidão que marcha reflete outra característica central do discurso da comissão: uma ampla
unida por trás da bandeira nacional, o logotipo do SLTRC, e um “vontade de modernidade”, no sentido forte uma vez articulado por
pequeno texto que proclama a seguinte mensagem: “É verdade que a Paul de Man como “um desejo de chegar finalmente a um ponto que
guerra acabou – Bem-vindo a nova Serra Leoa”. A seguir, um extrato poderia ser chamado de verdadeiro presente, um ponto de origem
de um poema de alguns ex-prisioneiros da RUF: “Minha Serra Leoa, que marca uma nova partida”.393 Como dito pelo bispo Humper em
um novo capítulo e uma nova era”. Um pouco depois continua: “O um discurso: uma década após a “escuridão cair sobre nosso país”, a
passado deve permanecer passado/Com o passado nós conhecemos o comissão aponta para “novos começos” e para “a construção de uma
presente/E juntos fazemos o futuro/Agora é hora de seguir em frente”. nova Serra Leoa”.394
O poema é seguido por uma reprodução de uma pintura que retrata
Somente na perspectiva desse desejo de progresso e dessa
um grupo de pessoas olhando para o sol, na qual os próprios membros
vontade de modernidade combinada com um forte envolvimento
da comissão incluíram um comentário que diz que as pessoas estão
com a construção nacional, pode-se entender as características mais
olhando para o futuro como um novo dia e que elas estão orgulhosas
estranhas e mais ambíguas do trabalho da comissão. A ambiguidade
de serem serra-leoneses. Há até uma contribuição do presidente Joseph
da mensagem sobre a necessidade de “perdoar, mas não esquecer” e
Humper: um breve ensaio que prevê uma “Serra Leoa ressuscitada,
as alegações sobre as capacidades de cura da memória só se manifesta
nascida das cinzas”, e termina com a mensagem de que
plenamente quando o relato formal estabelecido no relatório
nem um único serra-leonês pode afirmar que não há final da comissão é contrastado com as tensões que se refletem
necessidade para ele ou ela de confessar e perdoar. Somos nas transcrições dos testemunhos das vítimas.395 Durante essas
todos responsáveis por permitir que o nosso amado
país deslizasse para o caos e o tumulto. Apenas quando audiências, os comissionados argumentaram que, além dos benefícios
tivermos descartado todas as pretensões poderemos terapêuticos que traria, o relato público do passado doloroso era
realmente avançar.392 um dever ao amado país e ao futuro da nação. Uma vez ou outra, se
A mais célebre é uma curta passagem de outro colaborador que é 393 De Man P., Literary History and Literary Modernity. In: Blindness and
391 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 505. Insight. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1983.
392 A ideia de que todo cidadão foi igualmente vítima do conflito e de que 394 ‘Address by Rt. Rev. Joseph Humper Chairman of the Truth and
todo cidadão partilhava uma certa responsabilidade é um leitmotiv no trabalho da Reconciliation Commission at the Official Commencement of Statement Taking by
comissão. Essa construção de uma “vítima nacional” ou da nação como vítima pode the Commission’ Em: http://www.sierra-leone.org/ (acesso em 14.11.2008).
ser explicada apontando para a maneira com que esta perspectiva é útil quando 395 O material que se segue foi retirado de transcrições das audiências públicas
integrantes da comissão e os responsáveis pelas políticas de Estado começam a que estão incluídas em um apêndice ao relatório da SLTRC intitulado “Transcrições
perdoar os perpetradores em nome da nação (em vez de deixar o perdão como uma de audiências públicas de TRC.” Em: http://www.sierra-leone.org/TRCDocuments.
prerrogativa privada das vítimas). html (acesso em 14.11.2008).

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agradecia as vítimas que testemunhavam por participar no “processo uma resposta padronizada sobre a necessidade de limpar as feridas e
de construção nacional que chamamos TRC”, ou felicitavam-as por de curar a nação ao criar um registro histórico. As seguintes linhas,
“ajudar a Comissão a ajudar a nação”, ou as chamavam de “patrióticos” bastante paternalistas, do bispo Humper são típicas e, portanto,
ou “corajosos”. ilustrativas:
A maioria das vítimas, entretanto, não parecia estar muito O que você está dizendo é sobre a abertura das feridas.
convencida pela mensagem da comissão sobre cura e reconciliação. Alguns de vocês não vão entender o que estamos fazendo
agora, mas mais tarde vocês vão. Ninguém vai te dizer que
Muitas delas enfatizaram que não poderia haver paz sem justiça e houve você nunca vai esquecer isso. Muitas coisas aconteceram
uma raiva generalizada sobre a suspeita de que o governo e a comissão nesse país. Até que saibamos o que aconteceu com pessoas
de verdade estavam preocupados principalmente com a reintegração como você, continuaremos a ficar na miséria nesse país.
dos perpetradores ao invés de cuidar das vítimas. A necessidade de É preciso dor, agonia e sofrimento quando falamos sobre
ajuda financeira ou compensação material, obviamente, foi a razão isso de novo. Você tem alguma outra pergunta?
mais importante para muitas vítimas e sobreviventes se apresentarem No entanto, numa fase posterior, os integrantes parecem
à comissão. Ao final de quase todos os depoimentos, os membros da desistir e, ao contrário da retórica do relatório final, deixam de
comissão eram questionados sobre o que planejavam fazer para mudar salientar a necessidade de se lembrar e, em vez disso, apenas pedem
o estado de privação contínua das vítimas. Em geral, reagiam a essas às vítimas que perdoem e reconciliem. Primeiro, os comissionados
questões argumentando que o ganho de testemunhar era psicológico, param de corrigir as vítimas quando mais de uma vez elas atribuem a
que a comissão ajudaria a garantir que o passado nunca retornasse, exigência de “perdoar e esquecer” à comissão. Mais tarde, eles desejam
que sua missão era ajudar as comunidades e não os indivíduos e que o que “a esperança e a coragem das vítimas avancem e se esqueçam do
progresso da nação era o mais importante. passado”, ou afirmam que a comissão realmente os pede para “perdoar
Além do desapontamento sobre a incapacidade ou a falta e esquecer”.
de vontade da SLTRC em fornecer assistência material ou financeira, É interessante notar que a SLTRC estava muito preocupada
o testemunho das vítimas também manifesta uma grande confusão, com o (re)enterro apropriado para os mortos. Como parte de seu
ou mesmo uma relutância, com o projeto da comissão de uma mandato, a comissão assistiu a algumas exumações com o objetivo
lembrança redentora. Um número considerável de vítimas parece de reenterrar adequadamente, visitou e mapeou uma série de covas
ter interpretado a missão da SLTRC como uma busca para “perdoar coletivas e escreveu um relatório sobre a necessidade de memoriais
e esquecer”. Tomemos, por exemplo, as seguintes testemunhas que para os mortos e desaparecidos.396 Durante as audiências públicas,
afirmam que “sabemos que temos que perdoar, esquecer e reconciliar” os membros da comissão muitas vezes perguntavam se os mortos
ou que querem “agradecer à comissão porque estão nos ensinando tinham recebido ritos de enterro apropriados e se alguma cerimônia
a perdoar e esquecer”. Outras vítimas, que observaram que os lemas tradicional ainda precisava ser realizada para apaziguar os mortos.
oficiais do SLTRC de fato exigiam que as vítimas perdoassem, mas não Como disse o integrante da comissão Prof. Kamara: “Tantas pessoas
esquecessem, repetidamente questionaram as razões para esse desejo morreram sem qualquer sepultamento apropriado e algo tem que ser
de lembrar. Como foi diretamente perguntado por uma vítima: “Por feito para realizar as cerimônias que colocariam suas almas em repouso
que depois de passar por todos esses sofrimentos com todas as dores
de nosso coração, você ainda nos pede para narrá-los novamente?”. 396 Sierra Leone Truth and Reconciliation Commission, LTRC, ‘Appendix
Inicialmente, os comissionados respondiam essas questões através de 4: Memorials, Mass Graves and Other Sites.’ Em: http://www.sierra-leone.org/
TRCDocuments.html (acesso em 14.11.2008).

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e também para satisfazer a sensibilidade das pessoas”. A comissão do passado, pode-se argumentar que o discurso histórico na SLTRC
da verdade também tomou parte em alguns rituais destinados a serviu principalmente para realizar uma espécie de “exorcismo”.
apaziguar os mortos. Em visitas a valas comuns ou locais de massacre,
os comissionados frequentemente convidavam líderes ou curandeiros
tradicionais para realizar rituais de limpeza e derramar libações para Resistência popular ao tempo histórico irreversível
apaziguar espíritos errantes e confortar os ancestrais. Possivelmente Ao contrário da impressão criada por seus integrantes, o
pressionados por um relatório da ONG Manifesto ‘99 que confirmava projeto da comissão de uma lembrança redentora não foi acolhido
que a maioria dos serra-leoneses “ainda” mantinha crenças animistas com unanimidade.400 As audiências públicas raramente atraíam o
tradicionais, e estavam convencidos de que alguns crimes despertaram público que se esperava, e muitas vezes a comissão teve dificuldades
a raiva dos antepassados ​​e assim pediram a intervenção ritual, a Ata da em mobilizar pessoas para testemunhar publicamente. Notavelmente,
Comissão de 2000 permitiu que a comissão da verdade procurasse a a relutância em cooperar com a comissão da verdade não veio, nesse
ajuda de líderes tradicionais e religiosos.397 caso, de perpetradores ou de vítimas que temiam que a comissão fosse
Embora reconhecendo em parte o valor potencial um exercício de esquecimento ou que a historicização do passado
da tradicional “justiça espiritual”, na qual os perpetradores são facilitaria a impunidade. Em vez disso, a relutância teve origem na
submetidos à limpeza e purificação, a comissão advertiu que alguns população mais ampla e, ironicamente – devido às meticulosas
dos mecanismos estavam “em conflito com uma cultura de direitos tentativas da comissão de “apaziguar” o passado – baseou-se no
humanos e perpetuavam uma cultura de violência”.398 Outros temor de que o testemunho da verdade da comissão reviveria ou
mecanismos eram considerados em harmonia com os objetivos da evocaria o passado. A antropóloga Rosalind Shaw atribui a resistência
comissão. Além do derramamento de libações, os integrantes da à lembrança redentora à existência local de estratégias alternativas de
comissão descrevem a cobertura ritual de corpos de crianças com lama recuperação social que envolvem o que ela chama de “esquecimento
e cinzas que são posteriormente limpos no rio para simbolicamente social”.401 Em um relatório escrito para o Instituto de Paz dos Estados
lavá-las de seu passado.399 Unidos, Shaw adverte que a ideia de que o testemunho da verdade tem
eficácia terapêutica e leva à reconciliação é baseada em uma “cultura
Dada a vontade da comissão de distanciar, romper ou até
de memória” ocidental derivada de tradições norte-americanas e
mesmo esquecer o passado, e dado seu envolvimento direto com os
europeias.402 Falando sobre suas experiências no norte do país, Shaw
rituais tradicionais visando o apaziguamento dos espíritos assombrosos
400 De acordo com uma pesquisa realizada por duas ONGs em 2002, portanto
397 The Truth and Reconciliation Commission Act 2000. antes das operações do SLTRC, a maioria dos ex-combatentes tinha uma visão
398 Os membros da comissão, por exemplo, rejeitam a prática do juramento, predominantemente positiva da comissão da verdade. Ver: PRIDE & ICTJ, ‘Ex-
que funciona como um mecanismo central nas práticas da “justiça tradicional” Combatant Views of the Truth and Reconciliation Commission and Special Court
em Serra Leoa. Quando o perpetrador de um determinado crime não se revela ou in Sierra Leone.’ Freetown, 2002. Rosalind Shaw, no entanto, argumenta que os
quando se esconde, não é raro em certas partes de Serra Leoa a pronunciação de uma resultados desta pesquisa estão equivocados, fato que foi claramente demonstrado
maldição ritual para punir o autor com a ajuda de espíritos. Para uma discussão sobre quando a maioria dos ex-combatentes se mantiveram afastados das audiências
este e outros mecanismos da “justiça tradicional”, ver: Alie J. A. D., Reconciliation públicas. Shaw R., Memory Frictions. Localizing the Truth and Reconciliation
and traditional justice. Tradition-based practices of the Kpaa Mende in Sierra Leone. Commission in Sierra Leone. In: The International Journal of Transitional Justice, 1
In: Huyse L. & Salter M. (eds), Traditional Justice and Reconciliation after Violent (2007), pp. 183-207, 197.
Conflict. Learning from African Experiences. Stockholm, International IDEA, 2008, 401 Ibid., pp. 183-207.
pp. 123-147. 402 Shaw R., ‘Rethinking Truth and Reconciliation Commissions. Lessons from
399 SLTRC, Witness to Truth (Volume 3B), p. 440. Sierra Leone.’ Washington, United States Institute of Peace, 2005. (Relatório especial)

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argumenta que muitos serra-leoneses preferiam esquecer o conflito e tomado e invertido, [...] As primeiras coisas, todas as coisas más,
que eles mostravam uma grande relutância em discuti-lo publicamente, foram colocadas por baixo. As primeiras pessoas, aquelas pequenas,
temendo que isso pudesse reproduzir os eventos novamente. Como vieram e perturbaram o mundo. Foi por isso que Deus os inverteu.
um dos entrevistados diz: “Quanto mais você retrata esse tipo de coisa, Ele fez um novo mundo de novo”.407 Como Shaw afirma, a história
mais você o incentiva”.403 Mesmo quando as vítimas testemunhavam separa o tempo dessas primeiras pessoas daquele de nós mesmos,
perante a comissão da verdade, Shaw argumenta, muitas vezes o ela narra uma descontinuidade radical através do sepultamento
faziam de uma forma que reduzia tanto quanto possível o risco de que (literal) do passado. A descontinuidade, no entanto, está longe
a violência pudesse retornar como parte do presente. Em certas partes de ser completa, e esse passado que se encontra por baixo às vezes
de Serra Leoa foram desenvolvidas “práticas de memória” alternativas pode aparecer e emergir no presente novamente. As pessoas podem
que eram incompatíveis com a “lembrança verbal” da SLTRC. O encontrar traços do primeiro mundo se cavarem poços e latrinas,
esquecimento social, escreve Shaw, “é uma recusa em reproduzir ou então o velho mundo irritado pode ser conjurado por conflitos
a violência falando dela publicamente. [...] O esquecimento social violentos no presente. Estreitamente relacionado com esse passado
‘desfaz’ a violência passada e ‘refaz’ uma nova persona social para os que permanece presente e relacionado com a tradição de adoração
ex-combatentes”.404 Em 2002, Shaw observou como o esquecimento dos ancestrais, Shaw argumenta, a memória em Serra Leoa não pode
social era usado para a reintegração e cura de crianças e de adultos ser concebida como uma atividade puramente cognitiva dirigida
ex-combatentes.405 meramente para armazenar e recuperar informações; em vez disso,
ela cria uma relação entre alguém e a pessoa ou o evento lembrado.
É interessante notar que a opção pelo esquecimento social e
Consequentemente, para muitos serra-leoneses, a lembrança verbal
a rejeição da lembrança verbal por parte da população da Serra Leoa
e pública de acontecimentos violentos é, contrariamente ao que diz
estão intimamente ligadas a uma concepção específica da relação entre
a SLTRC, não desejável, uma vez que liga a violência à pessoa que se
passado e presente que difere fortemente daquela que está implícita
lembra e arrisca-se a torná-la presente novamente.408 Mais uma vez,
na noção de tempo histórico irreversível. Para entender melhor essa
porém, por razões opostas àquelas discutidas nos capítulos anteriores,
concepção do passado e entender como ela se relaciona com a opção
a resistência contra (alguns aspectos) do trabalho da comissão da
pelo esquecimento, podemos voltar a nos concentrar no trabalho
verdade é dirigida principalmente contra o tempo irreversível da
etnográfico de Shaw.406 No norte de Serra Leoa, escreve Shaw, as
história e inspirada por uma visão que não mantém o passado
pessoas às vezes narram um mito de origem que inclui uma transição
totalmente ausente ou distante.
cataclísmica de um mundo antigo para o nosso mundo. Esse mundo
anterior era um mundo “irritado”, povoado por um tipo de pessoas
pequenas animalescas, e cheio de guerras, matanças, sequestros e
servidão. É por isso que Deus, de acordo com os narradores, cobriu
Conclusão
este mundo, literalmente virando-o de cabeça para baixo: “Ele foi De acordo com Giorgio Agamben, cada cultura em primeiro
lugar se relaciona com uma experiência particular do tempo, a criação
403 Shaw R., Displacing Violence. Making Pentecostal Memory in Postwar
Sierra Leone. In: Cultural Anthropology, 22 (2007), 1, pp. 66-93, 67. de uma nova cultura é impossível sem a alteração dessa experiência.
404 Shaw, ‘Rethinking Truth and Reconciliation Commissions,’ p. 9. “A tarefa original de uma revolução genuína”, argumenta Agamben,
405 Ibid.
406 Shaw R., ‘Transitional Subjectivities. Reconciling Ex-combatants in 407 Citado em: Ibid.
Northern Sierra Leone.’ (Artigo não publicado, 2005) 408 Shaw, Memory Frictions, p. 195.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

“nunca é simplesmente ‘mudar o mundo’, mas também – e acima violência por tanto tempo têm retornado em ondas aparentemente
de tudo – ‘mudar o tempo’”.409 O que Agamben observa sobre a incessantes. Em certas ocasiões, os próprios integrantes da comissão
“revolução genuína” também pode ser dito sobre os processos de paz não se mostraram convencidos de que uma ruptura com o passado
ou sobre a criação de uma cultura de coexistência pacífica após um tivesse sido estabelecida definitivamente e, como vimos, às vezes até
período de conflito violento. Uma das finalidades primordiais das se rebelaram contra o marco do tempo da história que havia sido
negociações de paz pode de fato ser descrita como a criação de um imposto à comissão através de seu ato legal fundador. Essa dúvida
“tempo de paz” que rompe com o “tempo de conflito”. A tentativa de por parte dos comissionados pode nos ajudar a explicar por que eles
criar uma ruptura entre o “então” e o “agora” manifesta-se claramente, nunca foram capazes de convencer completamente grandes partes da
por exemplo, na linguagem altamente performativa dos tratados de população (rural) a participar no projeto da comissão, mesmo quando
paz, como os de Abidjan e Lomé, nos quais a ruptura instantânea essa população muitas vezes compartilhava o objetivo de “apaziguar”
com o passado violento é firmemente pronunciada por meio de uma o passado.
fórmula declarativa. É a partir desta mesma perspectiva de uma política
de tempo performativa que proponho que deva ser compreendido o
uso de um discurso histórico no contexto da comissão da verdade de
Serra Leoa. Mais do que simplesmente entregar um “registro histórico
imparcial” ou uma “imagem clara do passado”, a ênfase sobre a
história e especialmente sobre o tempo irreversível da história teve de
assegurar à população de Serra Leoa que o conflito havia terminado,
que pertencia a outra época. É somente a partir dessa perspectiva
que a posição estranhamente ambígua dos comissionados sobre a
questão da lembrança ou do esquecimento pode ser compreendida:
em relação ao principal objetivo de distanciar o passado irrevogável,
a aparente oposição total entre lembrança e esquecimento se revela
de importância relativamente menor. O exemplo dos tratados de
paz de Abidjan e Lomé também tem que nos atentar ao fato de que
a performatividade e a política do tempo nem sempre funcionam. O
simples fato de que a redação performativa da declaração de paz de
Abidjan, em 1996, ter de ser repetida quase palavra por palavra na
declaração de paz de Lomé em 1999 mostra que há sempre um risco
de fracasso.
Como o bispo Humper observou, a SLTRC tratou primeiro
e acima de tudo sobre a criação de “novos começos”; isto, no entanto,
tem sido uma tarefa muito difícil em um país no qual atos de extrema
409 Agamben G., Time and History. Critique of the Instant and the Continuum.
In: Infancy and History. The Destruction of Experience. London, Verso, 1993, pp. 89-
106, 91.

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Berber Bevernage

Conclusão preliminar
O que os desaparecidos e os espíritos ancestrais
atormentados tentam nos dizer sobre a história?

Para aceitar o irreparável, tornou-se um


historiador do presente.
P. Petit sobre H. Rousso410

O objetivo e a ambição da história não é exaltar,


mas aniquilar o que realmente aconteceu.
P. Nora411

A recente “virada histórica” no contexto da justiça de


transição parece, à primeira vista, carregar consigo a promessa de
um maior mandato ético para a história. Além disso, o engajamento
prático do discurso histórico em contextos pós-conflito parece
superar a velha lacuna entre uma história acadêmica e as formas mais
comprometidas de se relacionar com o passado que são comumente
chamadas de “memória”. Na realidade as coisas acontecem de forma
diferente.
Vamos reconsiderar alguns de nossos resultados. Nos
capítulos anteriores, argumentei que o “uso” e o “abuso” bastante

410 Philippe Petit sobre Henry Rouso In: Rousso H., The Haunting Past.
History, Memory, and Justice in Contemporary France. Philadelphia, University of
Pennsylvania Press, 2002, p. xxi.
411 Nora P., Between Memory and History. Les Lieux de Mémoire. In:
Representations, 26 (1989), pp. 7-24, 9.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

ambíguos dos discursos históricos, no campo da justiça transicional, estados a reivindicarem novas identidades e se libertarem de “dívidas”
podem ser entendidos (pelo menos parcialmente) a partir da históricas, de modo a permitir que se concentrem no presente e no
perspectiva de uma política do tempo. Embora eu não queira sugerir futuro. Se hoje em dia as “novas nações” começam a escavar suas
que os integrantes das comissões conscientemente se engajem histórias vergonhosas de conflito e atrocidade, é principalmente
nesta política do tempo (como se fosse uma espécie de conspiração para ressaltar que essas histórias são passadas e que, portanto, não
filosófica) e, embora eu esteja ciente do risco de simplificação pertencem ao presente (político) da nação. Além disso, a mera
excessiva, creio ser possível argumentar que as comissões da verdade existência de orientações temporais “desviantes” e diferentes formas
se voltam para a história primeiramente a fim de impor o tempo de lembrança poderiam ser consideradas como ameaças potenciais
irreversível da história em eventos que são geralmente considerados ao “projeto de simultaneidade” sobre o qual, como argumentou
como (ainda) pertencendo ao tempo jurídico, ou em contextos Benedict Anderson, a construção da nação se baseia. Embora seja
onde uma “consciência de catástrofe”412 destruiu a fé no progresso, difícil avaliar sua eficácia, as comissões da verdade, com a ajuda de um
no apagamento, na cura e nos poderes do tempo. Uma “consciência discurso histórico, tentam contribuir para a criação do que se poderia
histórica genuína” e a ênfase na cronologia deve “distanciar” os chamar de “simultaneidade/contemporaneidade cívica”, afetando as
eventos dolorosos ocorridos durante o conflito e transformá-los orientações temporais das pessoas e proclamando publicamente o que
em matérias do passado, claramente diferenciados do presente. No pertence ao presente (político, social, cultural, legal, etc.) da nação e o
contexto da política de transição, a história não fornece essencialmente que deve ser considerado passado.
continuidade histórica, mas antes, é usada para provocar um sentido
Mais importante, no entanto, a própria exigência de perdão e
de descontinuidade histórica. Embora o uso do discurso histórico à
a promessa de não repetição (por exemplo, em expressões como nunca
primeira vista pareça estar dirigido ao próprio passado histórico, seu
más) sobre as quais se funda um projeto de reconciliação nacional
principal objetivo, de fato, é a construção de um presente “simultâneo”
se baseiam na ideia de irreversibilidade histórica. Na ausência dessa
ou “contemporâneo”, libertado do passado assombroso. Em termos
ideia de tempo irreversível – quando a confiança nas capacidades de
mais abstratos, pode-se dizer que o discurso histórico é introduzido
distanciamento do tempo se desfez ou quando os crimes e atrocidades
no contexto da justiça de transição para transformar o passado
não são (ainda) considerados passados – os argumentos para o perdão
irrevogável em irreversível.
tornam-se mais questionáveis e moralmente inoportunos. Por quê?
Várias razões podem ser enumeradas para responder Porque poucos estão dispostos a perdoar os atos perversos que ainda
à pergunta de porque exatamente existe uma necessidade tão estão acontecendo, e porque a promessa de não-repetição deve ser
forte para tal introdução do tempo irreversível da história e para a interpretada como profundamente cínica se os crimes e as atrocidades
descontinuidade histórica em contextos pós-conflito. Tal como são experimentadas como ainda “presentes” e não terminados.
Agamben, Bruce Ackerman afirma que as revoluções “cortam” o
Para entender exatamente como “funciona” um discurso
tempo em dois, separando o antes do agora, e tal como argumentei
histórico para separar o passado do presente e declarar “passadas”
anteriormente, o mesmo vale para revoluções negociadas ou acordos
as experiências das pessoas é útil examinar as diferentes formas pelas
de paz.413 A ênfase na descontinuidade histórica pode auxiliar novos
quais o passado e o presente são geralmente conceitualizados. A maior
parte das dificuldades em compreender a ideia de que o passado está
412 Torpey, Making Whole What Has Been Smashed, p. 32. “vivo” no presente, de acordo com Preston King, repousa sobre uma
413 Ackerman B., The Future of the Liberal Revolution. New Haven, Yale
University Press, 1992, p. 5.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

certa confusão sobre o que entendemos por passado e presente.414 Para ou “tradicionais” e aqueles que percebemos serem características
categorizar os diferentes significados que atribuímos a essas noções distintivas do presente, vistos como “novos”, “inovadores” ou
correlativas (mas mutuamente excludentes), King distingue entre um “modernos”. A periodização histórica, aparentemente dependente do
“tempo cronológico”, significando uma sequência temporal abstrata, tempo cronológico, segundo King, é antes de tudo um exercício de
e um “tempo substantivo”, referindo-se a uma sequência concreta de aplicação da dialética de noções substanciais de tempo. Enquanto cada
acontecimentos. Baseando-se no tempo cronológico, dois sentidos do noção particular do presente exclui o seu próprio passado correlativo
presente podem ser discernidos, cada um definido pela sua duração: o (por exemplo, adolescentes góticos fora de moda que constituem
“presente instantâneo” e o “presente estendido”. Ambos os presentes um passado neotérico não podem ser parte do presente neotérico,
se encaixam entre passado e futuro e têm um caráter puramente que se define pela moda de vestir-se de rosa), isso não é válido para
cronológico. Mas o primeiro se define como o menor instante possível sentidos não-correlativos do passado (por exemplo, adolescentes
que divide o passado e o presente (o momento, o “agora”), enquanto góticos fora de moda que pertencem a um passado neotérico são uma
o segundo se refere a um período de tempo mais prolongado (um dia, parte inegável do prolongado presente cronológico chamado 2011).
um ano, um século) cujos limites são arbitrariamente escolhidos, mas Assim, um presente pode ser penetrado por sentidos não-correlativos
dão ao presente alguma profundidade temporal. Devido à falta de do passado que, num sentido “substantivo”, permanecem vivos nesse
significado e ao caráter arbitrariamente cronológico desses presentes e presente. King explica:
passados ​​correspondentes, os historiadores costumam usar um quadro O passado não está presente. Mas nenhum presente é
de referência mais substantivo baseado em critérios que não são, em inteiramente divorciado ou não influenciado pelo passado.
si mesmos, temporais. A primeira dessas noções substantivas é a de O passado não está cronologicamente presente. Mas não
um “presente em desdobramento”. Enquanto um evento escolhido há como escapar ao fato de que grande parte dele está
(negociações, depressão, guerra, etc.) se desdobra, ele demarca um substantivamente presente.415
presente; quando o evento se considera como concluído, o tempo que Ao defender essa noção da interpenetração do passado e do
se desdobrou é chamado de passado. King observa que este é o único presente, Preston King relativiza sua divisão absoluta. Ele também nos
sentido em que podemos dizer que um passado particular está “morto” permite entender como o discurso histórico, no contexto da justiça de
ou “acabado”. Ele imediatamente adverte, no entanto, que qualquer transição, apoia ativamente a transição para uma nova nação, impondo
processo considerado concluído sempre contém outros subprocessos uma ruptura simbólica entre o presente e o passado. Poderíamos
que estão incompletos. Portanto, é muito difícil impedir que qualquer dizer que esse discurso obtém suas capacidades exorcizantes e
passado real seja parte de, funcione em, ou tenha influência em um alocrônicas misturando noções substantivas de tempo com um
presente em desdobramento. sentido cronológico naturalizado do tempo que tem um caráter
Além dos três presentes já descritos (o instantâneo, estendido estranhamente impalpável e difícil de questionar. A justaposição
e desdobrado), King menciona um quarto, que ele chama de “presente ativa do presente e do passado, do novo e do velho, ou do atual e do
neotérico”. Traçando um paralelo com a dialética da moda, observa inatual – de fato envolvendo reivindicações sobre o tempo substantivo
que muitas vezes distinguimos entre eventos que ocorrem no presente, – é disfarçada por um “véu” do tempo cronológico naturalizado. O
mas que são experimentados como “antigos”, “convencionais” discurso da história já “funciona” afirmando que certos fenômenos
pertencem ao seu domínio ou objeto epistemológico. Posicionando
certos acontecimentos como passados e diferenciando-os do presente,
414 King P., Thinking Past a Problem. Essays on the History of Ideas. London,
Frank Cass, 2000. 415 Ibid., p. 55. (itálico no original)

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

o tempo irreversível da história exorciza ativamente o passado vista clínico se não uma mera patologia? Ainda assim, esse mesmo
assombroso, pelo menos na mesma medida em que o descreve ou o raciocínio esclarecido não adota com demasiada facilidade um olhar
analisa. Isso pode explicar a maneira estranhamente obsessiva em que de futuro que muitas vezes resulta no reinado da impunidade? Isso não
as comissões da verdade frequentemente se referem às atrocidades é frequentemente o caso em relação ao dilema da justiça de transição?
como “crimes do passado”, mesmo que tenham acontecido muito Pessoas como F. ​​W. De Klerk, Augusto Pinochet e dezenas de generais
recentemente, algumas vezes pouco antes da criação da própria do exército não se transformaram de repente nos maiores defensores
comissão e que, em geral, não são experimentados como passado. desta solução racional? Ou, para expressar isso sem rodeios: o tempo
A descrição dos crimes como pertencentes ao “passado” em sentido irreversível da história, com sua ênfase sobre a ausência ou a distância
comum e cronológico provoca a conotação de que eles são “passados” do passado, não beneficia intrinsecamente os perpetradores?418 De
no sentido substancial de “passado”, “morto” ou “acabado”. No fato, como argumentou Matthias Fritsch, essa lógica pode facilmente
entanto, isso é muitas vezes mais um desejo do que uma realidade. ser usada para legitimar políticas totalitárias nas quais a referência
a um futuro melhor pode justificar o sofrimento no passado e no
A função do discurso histórico no campo da justiça de
presente.419 Além disso, como eu discuti na introdução e no capítulo
transição poderia então ser descrita evocando a figura de Derrida sobre
sobre a TRC da África do Sul, a contribuição do tempo irreversível
o legista que certifica a morte para infligi-la, “declarar a morte somente
da história para o projeto de construção nacional, criando um senso
para matar”.416 Esse fenômeno não parece descrever unicamente
de contemporaneidade cívica, traz consigo sérios efeitos colaterais:
a justiça de transição. Michel de Certeau observou uma tendência
apesar ou talvez por causa de seu papel no projeto de simultaneidade,
semelhante quando descreveu a historiografia moderna como uma
ele tende a tornar-se “alocrônico”. Portanto, pode-se perguntar se
forma de sepulcro, prometendo aos mortos um funeral adequado
a “virada histórica” no campo da justiça transicional sempre está a
na forma de um discurso escrito, mas exigindo seu entorpecimento:
serviço de uma causa ética.
“a escrita fala do passado apenas a fim de enterrá-lo”. “Assim”, ele
observou corretamente, É precisamente a partir dessa perspectiva que deve ser
pode-se dizer que a escrita faz os mortos para que os entendida a forte resistência contra o trabalho das comissões da verdade.
vivos possam existir em outro lugar. [...] Uma sociedade Em cada um dos três casos analisados, o protesto ou o desconforto
proporciona a si mesma um tempo presente através da com a abordagem das comissões pareceu girar em torno de sua ênfase
escrita da história.417 sobre o tempo histórico irreversível e, mais exatamente, em torno das
Dificilmente pode-se dizer que a criação de um espaço noções de “distância temporal” e de passado ausente. As vítimas falam
para os vivos seja uma coisa ruim. Não há uma longa tradição ao passado com uma voz diferente. Para entender isso, é importante
intelectual no Ocidente que associa a própria ideia de Ilustração e até reconhecer que a lembrança, mais do que se referir apenas sobre a
de racionalidade com a percepção de que os vivos devem se libertar verdade histórica e a lembrança dos fatos, também possui dimensões
da autoridade dos ancestrais mortos e das tradições mortas? Além éticas e, portanto, deve ser considerada uma “prática moral”.420 Em
disso, o que mais o passado assombroso pode ser de um ponto de 418 Tenho que agradecer a Wulf Kansteiner por esta franca reformulação da
minha tese.
416 Derrida J., Specters of Marx. The State of the Debt, the Work of Mourning, and 419 Fritsch M., The Promise of Memory. History and Politics in Marx, Benjamin
the New International. New York, Routledge, 1994, p. 48. and Derrida. New York, State University of New York, 2005, p. 3.
417 De Certeau, The Writing of History. New York, Columbia University Press, 420 Expressões de: Lambek M., The Past Imperfect. Remembering As Moral
1988, p. 101. Practice. In: Antze P. & Lambek M. (eds), Tense Past. Cultural Essays in Trauma and

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

contraste com a “linguagem do exorcismo” que caracteriza o discurso interpretadas como formas de memória.424 Mais especificamente, ela
histórico das comissões da verdade, a “memória da ofensa” nutrida afirma, essas práticas rituais rememoravam o tráfico de escravos no
pelas vítimas e sobreviventes, muitas vezes articula uma “linguagem Atlântico e os terrores que trazia às populações da África Ocidental.
de fidelidade”.421 Essa fidelidade, de fato, se expressa frequentemente Muito parecido com o que está acontecendo com o legado do recente
em termos da negação da ausência ou da distância. Em vez de dissipar conflito civil, o tráfico de escravos no Atlântico e o subsequente tráfico
os fantasmas do passado reforçando a divisão entre passado e presente interno de escravos não foram lembrados verbalmente, mas, de forma
e transformando a “persistência” ou a “proximidade” do irrevogável menos discursiva, foram elaborados como lembranças práticas em
na “ausência” segura do irreversível, a memória da ofensa ignora as forma ritual. O comércio de escravos, Shaw argumenta, é “esquecido
“hierarquias do tempo”, recusando-se a deixar o passado atroz para como história, mas lembrado como espírito”.425 Shaw mostra como os
trás, mantendo irrevogavelmente irrevogável em toda sua assustadora processos históricos associados com a vinda do comércio de escravos
proximidade.422 do Atlântico se refletem em uma transformação de espíritos locais
de seres predominantemente benignos e protetores em entidades
É nesse contexto de resistência contra o tempo irreversível
assombrasas ameaçadoras que se assemelham à perturbadora
da história que a linguagem espectral dos desaparecidos, dos
presença dos traficantes de escravos. Além disso, as técnicas atuais
espíritos ancestrais atormentados, e dos mortos que retornam deve
de proteção ritual contra feitiçaria ou contra os ataques espirituais
ser compreendida. Fantasmas e ancestrais que retornam falam
se assemelham às estratégias protetoras que antes eram usadas para
essencialmente sobre o passado, e mais precisamente sobre o passado
combater os ataques reais dos traficantes de escravos que há muito
irrevogável e sua “presença” ambígua no presente. Como se argumentou
tempo percorriam a paisagem de Serra Leoa.426
no capítulo sobre a Argentina, a figura espectral do desaparecido deve
ser vista principalmente no contexto da rejeição das Madres ao tempo A crença em fantasmas, espíritos e feitiçaria não é, é claro,
histórico irreversível e de sua construção de um conceito alternativo encontrada exclusivamente em Serra Leoa. No Ocidente, os fantasmas
de tempo que pode ser identificado como irrevogável.423 Da mesma têm retornado pelo menos desde a antiguidade, muitas vezes exigindo
forma, em Serra Leoa, a relutância em relação ao trabalho da comissão justiça e sempre subvertendo o tempo irreversível.427 Recentemente,
da verdade revela uma concepção do passado que contrasta fortemente
com as noções do passado ausente e distante – embora, ao contrário 424 Shaw R., Memories of the Slave Trade. Ritual and the Historical Imagination
in Sierra Leone. Chicago, University of Chicago Press, 2002.
das Madres, esta resistência vise um esquecimento social baseado no
425 Shaw, Memories of the Slave Trade, p. 9.
medo de enfurecer espíritos ancestrais e o retorno dos mortos. Já antes
426 Ver também: Shaw R., The Production of Witchcraft/Witchcraft as
do início da guerra civil, Rosalind Shaw descobriu que certas práticas Production. Memory, Modernity, and the Slave Trade in Sierra Leone. In: American
rituais envolvendo espíritos e feitiçaria em Serra Leoa deveriam ser Ethnologist, 24 (1997), 4, pp. 856-876. Um relato similar de como os rituais podem
servir como uma arte da memória n caso de Madagascar é fornecido por Jennifer
Memory. New York, Routledge, 1996, pp. 235-254. Cole: Cole J., Forget Colonialism? Sacrifice and the Art of Memory in Madagascar.
Berkeley, University of California Press, 2001, p. 283.
421 A expressão linguagem de fidelidade é usada em: Booth J. W., The
Unforgotten. Memories of Justice. In: American Political Science Review, 95 (2001), 427 Finucane R. C., Appearances of the Dead. A Cultural History of Ghosts.
4, pp. 777-791. London, Junction Books, 1982. Peter Buse e Andrew Stott expressam nitidamente a
relação antagônica entre a figura do fantasma e a noção de tempo linear: “De fato, o
422 A expressão “hierarquias do tempo” foi retirada de: Rousso, The Haunting anacronismo poderia muito bem ser a característica definidora dos fantasmas, agora
Past, p. 16. e no passado, porque o assombro, por sua própria estrutura, implica uma deformação
423 No entanto, o discurso das Madres também manifesta, por vezes, referências da temporalidade linear: pode não haver tempo adequado para os fantasmas”. Buse P.
à reversibilidade temporal. & Stott A., A Future for Haunting. In: Buse P. & Stott A. (eds), Ghosts Deconstruction,

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

um aumento da espectralidade pode ser observado em várias partes Mais uma vez a figura do espectro relaciona-se com as memórias da
do mundo, e muitos comentaristas argumentam que, em vez de ser violência: desta vez, as das vítimas caídas durante a fome do Grande
um remanescente de tradições antigas e moribundas, este fenômeno Salto e da Revolução Cultural. Embora a crença nos espíritos ancestrais
chegou para ficar.428 Embora a preocupação com fantasmas ou seja, obviamente, muito antiga, Mueggler argumenta que nas aldeias
espíritos não se restringe a contextos pós-conflito, vários estudiosos que estudou houve um aumento de espíritos selvagens durante
indicam a existência de uma estreita ligação entre essa preocupação as últimas décadas e, curiosamente, ele afirma que a vinda desses
e os legados de passados violentos em muitos lugares do mundo. Um fantasmas deve ser considerada uma reação direta à visão específica
dos exemplos mais notórios é o de Moçambique, onde, apesar de, ou do tempo que tem sido uma pedra angular na política socialista do
melhor, por causa de uma anistia geral e de um esquecimento imposto Estado central na China. Com algumas semelhanças notáveis com o
pelo Estado, foi dito que soldados mortos teriam retornado após o caso argentino que discuti anteriormente, Mueggler interpreta a figura
fim da brutal guerra civil. Esses soldados mortos teriam voltado para do espectro como parte de uma estratégia: “para desafiar a retórica
o reino dos vivos na forma de espíritos chamados Magamba, e fariam oficial sobre o tempo como um caminho ou uma trajetória linear, e a
isso para lutar pela justiça ou para vingarem-se.429 Embora o governo libertação seletiva da responsabilidade pela violência passada que esta
de Moçambique adote um discurso de modernização e considere as retórica implica”.432
práticas mágicas como coisas do passado que devem ser superadas,
estudiosos argumentam que a possessão de espíritos e o exorcismo
desempenham, de fato, um papel crucial no manejo desse passado e
nos processos de cura e reconciliação social.430
Da mesma forma, o antropólogo americano Erik Mueggler,
em uma aldeia rural do sudoeste da China, encontrou rituais de
exorcismo que ele interpretou como sendo parte de uma “estratégia
subversiva do tempo através da contação de histórias de fantasmas”.431
Psychoanalysis, History. London, Macmillan press, 1999, p. 1.
428 Sobre o apelo crescente do encantamento na África, ver: Comaroff J. &
Comaroff J. L., Occult Economies and the Violence of Abstraction. Notes from
the South African Postcolony. In: American Ethnologist, 26 (1999), 2, pp. 279-303.
Ver também: Geschiere P., The Modernity of Witchcraft. Politics and the Occult in
Postcolonial Africa. London, University of Virginia Press, 1995.
429 Igreja V. & Dias-Lambranca B., Restorative Justice and the Role of Magamba
Spirits in Post-Civil War Gorongosa. In: Huyse L. & Salter M. (eds), Traditional
Justice and Reconciliation after Violent Conflict. Learning from African Experiences.
Stockholm, International IDEA, 2008, pp. 61-83.
430 Honwana A., Undying Past. Spirit possession and the Memory of War in
Southern Mozambique. In: Meyer B. & Pels P., Magic and Modernity. Interfaces of
Revelation and Concealment. Stanford, Stanford University Press, 2003, pp. 60-80.
431 Mueggler E., Spectral Subversions. Rival Tactics of Time and Agency in
Southwest China. In: Comparative Studies in Society and History, 41 (1999), 3, pp.
458-481, 462. 432 Ibid., p. 467.

172 173
Parte II
Berber Bevernage

Capítulo 5
A difícil tarefa de pensar o irrevogável. Por que é tão
difícil entender o passado assombroso

Da mesma forma, quando a pré-modernidade


desaparecer, quando o campesinato se reduzir a
um remanescente pitoresco, quando os subúrbios
substituírem as aldeias e a modernidade reinar
triunfante e homogênea sobre todo o espaço,
então o próprio sentido de uma temporalidade
alternativa também desaparecerá.
F. Jameson433

Introdução
Logo no início do século vinte, Georg Simmel explicitamente
levantou a questão do que significa considerar algo “histórico.” Após
listar alguns critérios que são necessários mas insuficientes para chamar
algo assim, Simmel argumentou que a primeira e principal resposta
tem que ser procurada na possibilidade da exata localização temporal.
Na mesma linha de raciocínio, Simmel foi capaz de definir o histórico
sucintamente na seguinte expressão: “Um dado aspecto da realidade
qualifica-se como histórico quando nós sabemos como fixá-lo em
uma certa posição dentro do nosso sistema temporal”434. À primeira
vista isso parece ser um truísmo bastante trivial ou, melhor dizendo,

433 Jameson F., The End of Temporality. In: Critical Inquiry, 29 (2003), pp. 695-
718, 699.
434 Simmel G., Essays on Interpretation in Social Science (ed. Guy Oakes).
Totowa, Rowman and Littlefield, 1980, p. 127.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

uma questão de preocupação meramente metodológica, mas de fato Benjamin conhecidamente protestou contra o hábito comum dos
há algo interessante aqui. Primeiro, em contraste com a visão comum historiadores de trabalhar com um “tempo vazio e homogêneo” e
que simplesmente equaciona “história” com “passado” ou “realidade preenchê-lo com uma massa de fatos que são encadeados juntos como
passada”, a expressão cuidadosamente escolhida “um dado aspecto as “contas de um rosário”.435 A crença difundida na possibilidade
da realidade” e a posição da questão mesma implica que existem (ou de uma ordem cronológica universal e contínua de todos os fatos
podem existir) dimensões da realidade que não são (ou não podem históricos realmente revela uma dependência com relação a um
ser) reconhecidas como históricas. Além disso, a definição de Simmel conceito de tempo linear que funciona como um recipiente abstrato
também mostra que um conceito de tempo, ou um “sistema temporal”, que existe como entidade vazia e homogênea a priori e independente
mais que ser meramente uma estrutura ou ordenação analítica, pode dos eventos e fatos conferidos a ele. Segundo Giorgio Agamben, o
funcionar como um filtro ou peneira que ilumina certas partes da conceito moderno de tempo histórico resulta da secularização do
realidade e obscurece a existência de outras. tempo retilíneo e irreversível da Cristandade (influenciado pelo
Judaísmo) que foi separado da sua noção de um fim que se aproxima,
Neste capítulo iniciarei a partir dessa percepção da função
e de qualquer sentido senão aquele de um “processo estruturado em
de “filtrar” dos conceitos de tempo ou “sistemas temporais” para
termos de antes e depois”.436 Provavelmente há alguma verdade nisso
tentar responder a questão de por quê, apesar do fato claro que é muito
quando se trata da questão da linearidade. O Cristianismo, como é
difundido e de grande importância, é tão difícil levar a sério a noção
frequentemente argumentado, rompeu com as teorias cíclicas de
do passado assombroso e irrevogável na perspectiva da historiografia
tempo que (no mínimo em um nível filosófico)437 foram influentes
acadêmica e do pensamento histórico moderno (ocidental) em geral. A
na antiguidade grega porque as mesmas dependiam de uma narrativa
historiografia acadêmica e certamente o pensamento histórico moderno
de progresso espiritual e porque a ideia de um retorno cíclico infinito
mais amplo são muito fragmentados e diversos para que possamos
de eventos negou a significação de eventos únicos tais como a vinda
atribui-los uma simples e unificada “cronosofia” ou sistema temporal.
de Cristo.438 No entanto, enquanto isso pode oferecer uma explicação
Consequentemente não tentarei descrever um conceito moderno de
tempo histórico tão abrangente. Mais propriamente, discutirei um 435 Benjamin W., Theses on the Philosophy of History. In: Illuminations (Ed.
número de conceitualizações díspares mas relacionadas de tempo and intro. Hannah Arendt). New York, Harcourt, Brace & World, 1968, pp. 253-264.
e história que são difundidas e muito influentes na historiografia 436 Agamben G., Time and History. Critique of the Instant and the Continuum.
acadêmica e no pensamento histórico moderno e que acredito que elas In: Infancy and History. The Destruction of Experience. London, Verso, 1993, pp. 89-
106, p. 96.
nos compelem a pensar o passado como irreversível e nos restringe de
437 O contraste entre culturas ligadas a uma visão circular de tempo e aquelas
tomar plenamente em conta o irrevogável. Iniciando a partir de uma que concebem o tempo de modo linear não devem ser demarcadas tão estritamente.
perspectiva analítica em vez de estritamente histórica, focarei (1) na Chester G. Starr argumentou que muitas das reivindicações sobre a alegada ausência
adoção de um tempo absoluto, vazio e homogêneo; (2) na influência de conceitos lineares de tempo na antiguidade eram baseadas em uma confusão entre
noções de tempo histórica e filosófica. Enquanto a filosofia antiga de fato atribui
de conceitualizações de história historicistas; (3) modernistas e (4) na muitas vezes uma natureza cíclica para o tempo, os “historiadores” antigos, de acordo
tendência de tratar a história como uma questão totalmente secular. com Starr, trabalharam com a noção de tempo linear. Para algumas outras críticas
dessa estrita justaposição, veja: Momigliano A. D., Studies in Historiography. London,
Weidenfeld & Nicolson, 1966. Ver também: Trompf G. W., The Idea of Historical
Recurrence in Western Thought. Berkeley, University of California Press, 1979.
Tempo absoluto, vazio e homogêneo 438 Turetzky P., Time. London, Routledge, 1998, p. 56. Hannah Arendt, no
Em suas teses “Sobre o Conceito de História”, Walter entanto, adverte que a similaridade entre o conceito de tempo cristão e o moderno
é enganosa. Muitas vezes essa comparação é apoiada por uma referência à refutação

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(parcial) para a prevalência de representações lineares do tempo, formulação desse tempo absoluto veio das mãos de Isaac Newton, que
a influência do Cristianismo sozinho não pode responder por sua em sua “Philosophiae Naturalis Principia Mathematica” (publicado
conceitualização como vazio e homogêneo. em 1687) falou celebradamente sobre um “Absoluto, verdadeiro,
tempo matemático, de si mesmo, e de sua própria natureza, que flui
Mais diretamente, a ideia de um tempo vazio e homogêneo
uniformemente sem relação a qualquer coisa externa”.441
– que se estende infinitamente adiante e para trás de um ponto
arbitrário, é universalmente aplicável e é creditada como sendo Embora como tempo abstrato matemático o mesmo seja
tematicamente e interpretativamente neutra439 – tem que ser reversível,442 muitos estudiosos defendem que a conceitualização
relacionada à mais recente discussão filosófica que levou os primeiros de tempo de Newton foi de grande importância para a gênese do
cientistas modernos a posicionarem a existência de uma tempo pensamento histórico e da cronosofia moderna. O tempo newtoniano,
absoluto e matemático que passa independentemente do movimento argumenta Donald Wilcox, conceitualmente consubstancia as
físico ou da experiência subjetiva. A discussão sobre se o tempo ambições objetivistas e universalistas do raciocínio cronológico
tem uma existência autônoma ou se depende da existência mais moderno porque posiciona a si mesmo como mais fundamental
fundamental de um movimento celestial e terreno tem uma longa que qualquer tempo relativo ou subjetivo, e porque reivindica
história, com importantes pensadores apoiando ferozmente cada abranger todo espaço.443 Como Philip Turetzky formula: “No sistema
uma das duas posições: Platão e Aristóteles, por exemplo, divergem newtoniano, cada momento indivisível da duração existe em toda
fortemente nessa questão, defendendo respectivamente um conceito parte, enquanto a totalidade do espaço existe em cada momento”.444
de tempo absoluto ou um no mínimo autonomamente existente e
uma noção de tempo mais relativa. Durante o século dezessete, no and Space-time. Absolute Versus Relational Theories of Space and Time. Cambridge
entanto, o trabalho de alguns estudiosos proeminentes, incluindo René (Mass.), MIT Press, 1989. Na segunda metade do século dezoito o tempo relativo
Descartes e Isaac Barrow, moveu o debate decisivamente em direção foi promovido por Johann Gottfried Herder que, como W. Von Leyden assinala,
“sustentou a perspectiva de que tudo carrega em si mesmo sua própria medida de
à ideia que o tempo é absoluto e existe em si mesmo, uma posição que tempo, ou melhor, a medida do seu próprio tempo”. Von Leyden W., History and
permaneceria quase inconteste até o início do século vinte, quando foi the Concept of Relative Time. In: History and Theory, 2 (1963), 3, pp. 263-285, 279.
refutada pelas teorias da relatividade de Einstein.440 A mais influente 441 Citado em Turetzky, Time, p. 73.
442 Como Barbara Adam explica: “Por eliminar todas as condições fronteiriças
agostiniana do tempo cíclico pagão por sua defesa sobre a singularidade da Newton foi capaz de conceber o movimento como reversível, como simétrico em
encarnação de Cristo. Contudo, como Arendt observa, Agostinho nunca atribuiu relação ao passado e futuro. Seu tempo simbolizou uma unidade de extensão sem
uma singularidade similar aos eventos seculares. O conceito agostiniano de história direção”. Adam B., Time. Oxford, Polity Press, 2004, p. 30
secular, segundo Arendt, foi essencialmente o mesmo dos Romanos, i.e. enfatizava 443 Wilcox, The Measure of Times Past, p. 8. As características objetivistas e
igualmente a repetição dos eventos. Arendt H., The Concept of History. Ancient and universalistas do tempo newtoniano, de acordo com alguns comentadores, também
Modern. In: Between Past and Future. Six Exercises in Political Thought. New York, apoiam diretamente o imperialismo geopolítico. Appleby, Hunt e Jacob, por
The Viking Press, 1961, pp. 65-66. exemplo, afirmam que: “A modernização da história no século dezenove repousava
439 Wilcox D. J., The Measure of Times Past. Pre-Newtonian Chronologies and em uma nova concepção de tempo retirada da ciência newtoniana. [...] As novas
the Rhetoric of Relative Time. Chicago, University of Chicago Press, 1987, p 8. características do tempo não apareceram todas de uma vez, e muitos historiadores
440 A formulação de Newton do tempo absoluto não foi a primeira nem a última continuaram utilizando um ou mais elementos dos esquemas prévios de tempo. Mas
ocasião em que filósofos discordaram sobre a natureza do tempo. O tempo absoluto nas últimas décadas do século dezenove, os ocidentais mais educados possuíam um
tinha apoiadores antes de Newton, e durante a vida de Newton o tempo relativo foi senso universal e universalizante de tempo que foi, ademais, idealmente adequado
defendido, por exemplo, por Gottfried Wilhelm Leibniz. Ver: Capek M., The Conflict para a nova era do imperialismo europeu”. Appleby J., Hunt L. & Jacob M., Telling the
between the Absolutist and the Relational Theory of Time before Newton. In: Journal Truth about History. New York, W.W. Norton & Company, 1994, pp. 53-55.
of History of Ideas, 48 (1987), 4, pp. 595-608. Ver também: Earman J., World Enough 444 Turetzky, Time, p. 74.

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Além do mais, a ênfase na natureza atomista do tempo – resultando cronologias “episódicas” adaptadas a eventos que foram descritos.
do cálculo de Newton que concebe o tempo como uma soma de Novos sistemas de datação foram criados quando o desenvolvimento
infinitamente pequenas mas discretas unidades445 – conceitualmente de novas identidades históricas requeriam a sincronização de
apoia a visão comum que representa o processo histórico como uma eventos que teriam sido considerados temporalmente relacionados
infinita sucessão de eventos. Em vez de ser meramente conceitual, em cronologias prévias.449 Na antiguidade grega, por exemplo, a
no entanto, Donald Wilcox afirma que as ligações entre o moderno cronologia relacionava frequentemente à vida histórica de uma polis
sistema de datação e o tempo newtoniano são também históricas. ou aos eventos de uma certa batalha, e os sistemas de datação apenas
Assim como a concepção newtoniana de tempo absoluto, o sistema cresceram mais amplamente com a organização dos jogos olímpicos,
de datação a. C./d. C. surgiu durante o século dezessete, quando foi que conceitualmente sincronizou a vida dos participantes das cidades-
iniciada pelo estudioso jesuíta Domenicus Petavius, dentre outros. Estado.450
De fato, o próprio Newton, em um dos estudos cronológicos que ele
Em termos intelectuais, o surgimento do tempo e da datação
escreveu, esteve entre os primeiros a usar este sistema que tornar-se-ia
absoluta pode ser descrito portanto, de acordo com Philip Turetzky,
amplamente difundido apenas no século dezoito.446
como produto do desenvolvimento de novas técnicas matemáticas
É importante salientar que o sistema moderno de datação e de um gradual afrouxamento dos laços entre tempo e mudança
absoluta demandou muito esforço e um longo período para ou movimento. A ideia de que o tempo é mais fundamental que o
desenvolver-se e sua emergência esteve longe de ser auto-evidente.447 movimento, ele defende, é essencialmente moderna.451 As amplas
Antes de Newton, os sistemas de datação não eram absolutos, e, raízes sócio-culturais da abstração do tempo, no entanto, pode ser
faltando um conceito de tempo absoluto, os estudiosos geralmente remontada a fatores já existentes na Idade Média. Um primeiro passo
não tinham noção de extensões abstratas de tempo cronológico (como importante em direção à experiência do tempo abstrato já foi tomada
séculos ou décadas) que poderiam conter e caracterizar um grupo de quando monastérios beneditinos iniciaram a dividir o dia em horas
eventos ocorrendo dentro deles. Como Wilcox coloca: (canônicas) e iniciaram a organizar a vida de acordo com cronogramas
As datas no tempo [pré-newtoniano] estavam ligadas a baseados em entidades temporais abstratas ao invés de eventos
temas específicos, eventos, e lições morais, e davam um naturais (tais como meio-dia e pôr-do-sol). Uma segunda e mais
sentido e uma forma própria aos eventos que datavam. próxima influência relacionada no desenvolvimento gradual da noção
[...] Para historiadores antes de Newton o recorte temporal de tempo abstrato veio da criação e disseminação do relógio mecânico.
não incluía um grupo de eventos; um grupo de eventos O incentivo para desenvolver o relógio mecânico provavelmente
continham um recorte temporal.448
também veio dos monastérios medievais, e a palavra em inglês clock
Consequentemente os historiadores que trabalhavam antes do é etimologicamente relacionada à palavra medieval latina clocca e a
advento do tempo absoluto usavam principalmente sistemas de palavra francesa cloche, que significa “sino”452. Os sinos tiveram um
datação relativa e criaram uma ampla variedade para diferenciar papel central na regulação da vida pública nas sociedades medievais.
445 Kern S., The Culture of Time and Space. 1880-1918. Cambridge (Mass.),
Harvard University Press, 1983, p. 20. 449 Ibid., p. 13.
446 Wilcox, The Measure of Times Past, p. 8. 450 Ibid., p. 83
447 Bentley M., Modern Historiography. An Introduction. London, Routledge, 451 Turetzky, Time, p. 20.
1999, p. 2. 452 Whitrow G. J., Time in History. Views of Time from Prehistory to the Present
448 Wilcox, The Measure of Times Past, p. 9. Day. Oxford, Oxford University Press, 1988, p. 102.

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Desde que os relógios mecânicos foram os primeiros dispositivos que linearidade contínua de presentes históricos passados. Referindo às
possibilitaram a humanidade a marcar unidades de tempo iguais, palavras do teórico francês Jean-François Lyotard, podemos falar
abstratas e discretas com precisão, e desde que eles foram aptos a sobre a criação de um “tempo apresentado” (em vez de um mero
fazê-lo então independentemente do movimento dos corpos celestes, tempo que “apresenta”), que move do tempo experienciado como
não é uma coincidência, de acordo com Philip Turetzky, que a noção um “agora” [nun] para um tempo mais distanciado concebido como
de tempo uniforme e abstrato desenvolveu-se no mesmo período “desta vez” [dieses Mal] em que é pressuposto que “uma vez” [einmal]
histórico que o relógio mecânico.453 “Além disso”, Turetzky escreve, é equivalente à “outra vez” [das andere Mal].456
relógios mecânicos facilitam determinações precisas acerca
de que horas são e de quanto tempo passou em um dado
período. Isso encoraja a tendência do uso de metáforas Historicismo
espaciais referindo-se a extensões de tempo etc.454
Uma segunda forma de conceitualizar história e
Terceiro, o surgimento gradual do tempo abstrato pode ser temporalidade que é difundida e que pode tornar difícil o
relacionado ao surgimento de uma economia monetária e à mudança reconhecimento do irrevogável, é a assim chamada “historicista”.
de acordos de trabalho durante o século quatorze quando empregados Hesito usar o termo “historicismo”, no entanto, pois o mesmo é
na indústria têxtil iniciaram a pagar trabalhadores de acordo com o notório por sua complexidade e pelo número de significados diferentes
tempo que eles trabalhavam em vez de por item.455 ou mesmo contraditórios que lhe são atribuídos. Deixe-me, portanto,
Exceto pela dificuldade e pela gênese gradual da ideia de que primeiramente explicar o significado específico que tenho em mente.
o tempo passa “independentemente” dos eventos que mensura, a ideia Uma rápida pesquisa da literatura referente à palavra
de Newton que o tempo flui “equanimente” também rompeu com as historicismo imediatamente revela no mínimo seis usos diferentes,
primeiras experiências de tempo populares. Apesar da invenção do alguns dos quais são a oposição exata de outros.457 Iniciando com o
relógio mecânico, o tempo para maioria das pessoas permaneceu (e uso que é o mais distante do que tenho em mente, historicismo pode
permanece) não homogêneo. Em muitas culturas estritas (muitas referir a uma escatologia cristã protestante que afirma que a realização
vezes inspiradas religiosamente) existiram regulações (e ainda de uma certa profecia bíblica (aquelas do livro de Daniel e o livro do
existem) a respeito do que pode e do que não pode ser feito em certos Apocalipse) literalmente realiza-se na terra através da história até hoje,
dias; indicando que tempo foi/é frequentemente experienciado como em contraste àquela que situa a realização dessas profecias no futuro. Em
desigual em qualidade. No mínimo desde os romanos e certamente segundo lugar, existe o significado particular desenvolvido pelo filósofo
na Idade Média, a superstição popular, por exemplo, realçou o caráter
desigual do tempo por defender a existência de dias fastos e dias de
nefastos. 456 Lyotard J.-F., The Inhuman. Reflections on Time. Stanford, Stanford
University Press, 1992, p. 59. [Nota dos tradutores: Para a tradução desta passagem,
É o processo de homogeneização, juntamente com o visando o rigor conceitual, consultamos LYOTARD, Jean-François. O Inumano:
processo de abstração descrito acima, que torna possível para considerações sobre o tempo. Lisboa, Editorial Estampa, 1989, p. 66].
historiadores descreverem o tempo histórico como uma infinita 457 Para uma história detalhada da significação da palavra historicismo, ver:
453 Turetzky, Time, p. 68. Lee D. E. & Beck R. N., The Meaning of “Historicism.” In: The American Historical
Review, 59 (1954), 3, pp. 568-577; Iggers G. G., Historicism. The History and Meaning
454 Ibid., p. 69. of the Term. In: Journal of the History of Ideas, 56 (1995), 1, pp. 129-152. Ver também:
455 Ibid. Ver também: Whitrow, Time in History, p. 110. Hamilton P., Historicism. London, Routledge, 1996.

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Karl Popper em seu influente trabalho “A Miséria do Historicismo”458 a temporalidade são deslocados em direção ao próprio centro da vida
Aqui historicismo refere-se à teorias holísticas e teleológicas (mais social, de modo a tornar histórico e mutável mesmo normas e valores
notavelmente ramificações do hegelianismo e marxismo) que simulam que tinham sido previamente acreditadas como sendo “de todos os
ser hábeis a prever o futuro com base em conjuntos de inescapáveis tempos”. Friedrich Nietzsche, de fato, referiu-se a essa ideia que o
leis históricas e que Popper criticou como tendendo inerentemente mundo está sujeito ao constante processo de tornar-se (ao invés de
para o totalitarismo. O uso de Popper da palavra historicismo tem simplesmente ser) para reivindicar a relatividade de todos os valores,
sido criticado como idiossincrático porque não parece ter qualquer e Ernst Troeltsch conhecidamente falou nesse contexto sobre a “crise
conexão com os usos mais convencionais do termo. Contudo, como do historicismo”.461 Quando falo sobre historicismo refiro-me a esses
Georg Iggers observa, as ideologias soviéticas às quais Popper atacou dois últimos significados relacionados do termo.
parecem empregar elas mesmas a palavra historicismo dessa forma.459
Esses dois significados foram brilhantemente articulados
Terceiro, a expressão “novo historicismo” refere-se ao ramo da
pelo sociólogo Karl Mannheim, que em 1924 escreveu que o princípio
crítica literária que foi desenvolvida nos anos 1980 sob a influência
historicista não tinha apenas se desenvolvido como uma “mão
do crítico Stephen Greenblatt que argumenta que os textos literários
invisível” que havia controlado as ciências culturais com uma força
sempre devem ser considerados como um produto do seu contexto
extraordinária, mas que também tinha permeado o pensamento
histórico. Quarto, historicismo pode referir-se à escola histórica que
cotidiano.462 Para Mannheim, o historicismo foi simultâneamente
se desenvolveu na Alemanha durante o século dezenove seguindo o
uma “nova superestrutura teórica” que substituiu a prévia “doutrina
trabalho pioneiro de Leopold von Ranke. Esse “historicismo alemão”,
da supra-temporalidade da Razão” e uma correspondente ampla
então, significa o surgimento de uma metodologia de crítica histórica
visão de mundo (Weltanschauung). Tanto a posição científica
baseada em fatos históricos e contrasta com formas de historiografia
quanto a visão de mundo atribuíram um crescente papel ao tempo
prévias “acríticas” que são pensadas como sendo mais próximas
e a temporalidade e reconheceram completamente as dimensões
ao mito. Quinto, historicismo pode referir-se à posição filosófica
dinâmicas da vida. No entanto, Mannheim adverte, o historicismo
de um “movimento crítico” anti-iluminismo que reagiu contra o
não resulta automaticamente da escrita ou do registro da história.
pensamento racionalista que dominou o século dezoito.460 Pensadores
Desde Heródoto, ele escreve, a história tem sido registrada de muitas
tais como Vico, Herder e Dilthey rejeitaram amplamente a aplicação
maneiras – “como uma crônica simples de fatos, como lenda, como
do racionalismo Iluminista ao domínio da história, argumentando
um objeto edificante de meditação, como um livro de imagens
que todo produto do intelecto humano tem que ser interpretado em
espirituais, como retórica, como uma obra de arte” – e o historicismo
seu contexto histórico e refutaram o uso de leis históricas modeladas
apenas acontece quando a história é escrita da “Weltanschauung
segundo as leis da física. Esse sentido do termo historicismo, deste
historista”.463 Nas palavras de Mannheim: “Não é a historiografia
modo, está em oposição àquele ligado a ele por Popper. Sexto, e
intimamente relacionado aos usos acima expostos, historicismo pode 461 Iggers G. G., The German Conception of History. The National Tradition of
Historical Thought From Herder to the Present. Middletown, Wesleyan University
referir-se ao surgimento de uma ampla visão de mundo que vê o Press, 1968. Ver também: Iggers G. G., The ‘Crisis’ of Historicism and Changing
mundo inteiro como um produto de mudança histórica e que nega Conceptions of Historical Time. In: Comprendre, 43-44 (1977), pp. 60-73.
a existência de essências imutáveis. Nessa visão de mundo, o tempo e 462 Mannheim K., Historicism. In: Essays on the Sociology of Knowledge (ed.
Paul Kecskemeti). New York, Oxford University Press, 1952, pp. 84-133.
458 Popper K. R., The Poverty of Historicism. New York, Routledge, 1999.
463 Segundo Frank Ankersmit, é “[…] parte da profissão histórica mostrar que o
459 Iggers, Historicism, p. 137. que inicialmente poderia ter parecido estar fora da compreensão da história também
460 Hamilton, Historicism, p. 2. é, se observarmos com suficiente profundidade, parte de uma evolução histórica”.

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que nos trouxe o historicismo, mas o processo histórico através do de mundo racionalista do século dezoito não excluiu a possibilidade
qual vivemos que nos transformou em historicistas”.464 Embora de mudança, nem mesmo de mudança radical, mas de acordo com
o historicismo mesmo seja um produto da história e passa por um Ankersmit sempre tentou-se identificar uma substância imutável
processo dinâmico de mudança, ele é profundamente enraizado e subjacente à mudança e, além disso, sempre tendendo a atribuir a
difundido, segundo Mannheim, que estava escrevendo na década mudança a fatores externos causais. Essa visão de mundo concebia a
de 1920. Esse lugar sistemático “corresponde àquele da ‘metafísica’ realidade constituída de entidades que essencialmente permaneciam
dos tempos anteriores”.465 Sobre a relação do historicismo com esses a mesma ao longo do curso do tempo: a mesma contém uma noção
tempos anteriores, Mannheim é claro: do universo como consistindo de coisas como montanhas, rios,
[ele] passou a existir após a pintura medieval religiosamente pedras, cadeiras, ou pedaços de material orgânico que retém suas
determinada do mundo ter desintegrado e quando a essências mesmo quando adquirem ou perdem certo contingente
subsequente Ilustração, com sua ideia dominante de uma de propriedades no curso de suas histórias. Ankersmit fala sobre
Razão supra-temporal, ter destruído a si mesma.466 um “substancialismo” que nos predispõe a usar uma linguagem de
A visão de mundo historicista deste modo rompe com a causa e efeito. A ontologia substancialista e a linguagem puramente
precedente visão de mundo racionalista primeiramente por causa causalista, no entanto, de acordo com Ankersmit, rapidamente torna-
de sua diferente concepção de mudança histórica. Para entender o se presa da sua própria dialética contraditória, porque nenhuma linha
que há de novo na maneira historicista de compreender a mudança estrita pode ser desenhada entre a substância de um objeto e suas
histórica, podemos nos voltar para algumas intuições de Frank propriedades contingentes que mudam com o tempo. Por causa desse
Ankersmit. Ankersmit, de forma muita parecida com Mannheim, embaçado limite entre o essencial e o contingente é que é difícil reter
descreve o historicismo como “o resultado de uma historicização da a ideia de uma substância imutável que é externa à cadeia de causa e
concepção a-historicista da realidade política e social que foi adotada efeito – nas palavras de Ankersmit existe “uma urgência permanente
pelo século dezoito e a filosofia da lei natural”.467 Certamente, a visão e persistente que convida a linguagem causal a invadir o domínio
da substância”.468 A historiografia da Ilustração, Ankersmit defende,
Ankersmit F., The Sublime Dissociation of the Past. Or How to Be(come) What One foi apenas capaz de solucionar seus próprios paradoxos e explicar a
is no Longer. In: History and Theory, 40 (2001), 3, pp. 295-323, 299. Ainda assim, os mudança histórica “substancial” (mudança permeando na substância/
historiadores nem sempre parecem ter constituído a vanguarda da visão de mundo essência das coisas) por voltar atrás nas técnicas literárias e retóricas.
historicista. Muitos historiadores procuram quadros trans-históricos para ajudá-los
a ancorar o processo histórico. Para uma discussão sobre a busca pelo absoluto ou A famosa obra de Gibbon Declínio e Queda do Império Romano – que
imutável dentro do transitório, veja: Roshwald M., Perceptions of History. In Pursuit descreve a história do Império Romano da perspectiva de um objeto
of the Absolute in Passing Time. In: Diogenes, 47 (1999), 2, pp. 44-63. essencialmente imutável, mas mesmo assim luta com a questão da sua
464 Mannheim, Historicism, p. 85. queda, que não quer atribuir-se a fatores meramente externos – serve
465 Ibid., p. 127. como um exemplo privilegiado para Ankersmit do seu paradoxo e sua
466 Ibid., p. 85. evasão retórica. O historicismo, em contraste com a visão ilustrada da
467 Ankersmit F. R., Historicism. An Attempt at Synthesis. In: History and história, deveria, então, ser visto primeiramente como uma negação
Theory, 34 (1995), 3, pp. 143-161, 145. Ankersmit de fato tenta fazer uma síntese de
duas descrições do historicismo. A segunda descrição que ele discute é principalmente de essências imutáveis ou como uma historicização da substância.
de origem anglo-saxã e explica o historicismo como uma reação à centralidade da Como Ankersmit coloca:
retórica na historiografia ilustrada, e como uma tentativa de fundamentar a escrita
da história em fatos históricos em vez de convenções literárias. Eu somente discuti a
primeira descrição do historicismo de Ankersmit aqui. 468 Ankersmit, Historicism, p. 147.

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Para os historicistas a mudança histórica não poderia ser de ser situada na história do seu tornar-se. Enquanto o historicismo
restrita ao que é meramente periférico; de fato, a mudança originalmente começou como um caminho para defender ramificações
‘substancial’ foi vista como o verdadeiro domínio da das ciências humanas contra a filosofia da lei natural, a ênfase historicista
pesquisa histórica.469
na mutabilidade e temporalidade no século vinte invadiu até mesmo a
A tese de Ankersmit foi criticada em seus fundamentos esfera das ciências naturais. O historicismo, além disso, está na base de
historiográficos por Georg Iggers, que discordou da rigorosa distinção alguns dos mais influentes projetos filosóficos de nosso tempo. Pense,
desenhada entre o “realismo ontológico” da historiografia ilustrada e a por exemplo, o radical historicismo de Richard Rorty que promete “tratar
perspectiva do historicismo clássico. De acordo com Iggers, um exame tudo – nossa linguagem, nossa consciência, nossa comunidade – como
atento da obra “Declínio e Queda” de Gibbon mostra que ele levou um produto do tempo e da contingência”.472 Pense no argumento de
em consideração as mudanças internas no Império Romano, e além Foucault de que na história “efetiva” não há “constantes”, ou que: “Nada
disso argumenta que historicistas clássicos tais como Ranke e Droysen no homem – nem mesmo seu corpo – é suficientemente estável para
algumas vezes presumem que o objeto do seu estudo preservou sua servir como base para auto-reconhecimento ou para compreender outro
identidade sobre o tempo. Ranke, por exemplo, tratou Estados como homem”.473 Pense nos esforços incansáveis do filósofo americano Joseph
substâncias, ou mesmo pessoas, que apesar de mudanças parciais Margolis para provar que nada permanece invariável na história.474 Ou,
permaneceram essencialmentes as mesmas ao longo das suas histórias. pense em David Robert, que pode reveladoramente intitular sua visão
A crítica de Iggers serve como um bom aviso de que a global do pensamento de alguns dos mais influentes pensadores críticos
realidade histórica nunca encaixa sem ambiguidades em esquemas dos séculos dezenove e vinte de “nada além de História”.475
analíticos, mas a intuição de Ankersmit, apesar disso, parece válida
para mim. Em uma argumentação muito similar a Ankersmit, o
filósofo Nathan Rotenstreich explica a posição historicista como a Modernismo
rejeição de qualquer “substrato” trans-histórico subjacente à história: Uma terceira conceitualização de tempo e história que é
Em outras palavras, o substrato nunca é um sujeito cuja difundida e que impõe dificuldades para levar a sério o irrevogável
existência transcende o processo dos eventos. [...] nós não é aquela que percebe a história como a que traz a genuína novidade
temos o direito de assumir um fator que não se tornou, histórica, e que acredita que essa novidade justifica uma estrita
e que existe independentemente como um substrato para divisão qualitativa das dimensões temporais do passado, presente
tornar-se.470
e futuro. Essas crenças intimamente relacionadas eu chamaria de
E, como Giorgio Agamben escreve, a ideia central que governa o conceito “moderno” ou “modernista”. Reconhecidamente, meu uso do termo
de história do século dezenove foi a de “processo”.471 A tendência de
historicizar a substância e ver a mudança em todo lugar tornou-se uma 472 Rorty R., Contingency, Irony, and Solidarity. Cambridge, Cambridge
importante característica da maioria dos projetos intelectuais ocidentais University Press, 1989, p 10. (Itálico no original)
desde então. A natureza das coisas, como é frequentemente dito, tem 473 Foucault M., Nietzsche, Genealogy, History. In: Language, Counter-Memory,
Practice. Selected Essays and Interviews (ed. Donald F. Bouchard). New York, Cornell
University, 1977, pp. 139-163, 153.
469 Ankersmit, Historicism, p. 152. 474 Ver, por exemplo: Margolis J., The Flux of History and the Flux of Science.
470 Rotenstreich N., Time and Meaning in History. Dordrecht, D. Reidel Berkeley, University of California, 1993.
Publishing Company, 1987, p. 31. 475 Roberts D. D., Nothing but History. Berkeley, University of California Press,
471 Agamben, Time and History, p. 96. 1995.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

“moderno” é baseado em um significado bem específico, mas mesmo sobrevalorização do eterno e do antigo evidentes na estética clássica.478
assim está conectado com a compreensão de alguns proeminentes Uma compreensão similar da experiência moderna como uma ruptura
pesquisadores da questão. Por associar modernidade com a crença na continuamente recapitulada com o passado, e como inclinação em
novidade histórica e na possibilidade de uma quebra radical com o uma orientação sócio-cultural em direção ao futuro ou o novo, tem
passado, interpreto esse conceito em um sentido qualitativo ao invés sido defendida por Habermas. Habermas reivindica que o conceito de
de cronológico.476 Enquanto a moderna experiência social tem raízes modernidade “expressa a convicção que o futuro já tenha começado:
históricas e tornou-se dominante no período específico de tempo esta é a época que vive para o futuro, que abre a si mesma para a
cronológico que (em inglês) é chamado modernidade, e ao qual isso novidade do futuro”.479 Modernidade, ele escreve, por sua orientação
é, deste modo, empiricamente ou organicamente relacionado, não sócio-cultural recusa a emprestar qualquer modelo suprido por outras
deve ser equiparado com seu período cronológico por causa da sua épocas, e em vez disso ela tenta criar sua normatividade por si mesma.
disseminação não ter sido, e não é, universal (nem todas as pessoas Pelo fato dela definir a si mesma por sua abertura em direção ao futuro,
vivem hoje em dia experiências de uma forma moderna) e porque o mundo moderno constantemente tem de redefinir o seu próprio
alguns pensadores poderiam possivelmente ter tido experiências início epocal com cada momento que dá nascimento ao novo. Isto é,
sociais ou culturais modernas muito antes da época moderna. portanto, característico para a consciência temporal da modernidade,
iniciar “o mais recente [neuesten] período para a era moderna [neue]”.480
Usando o rótulo de moderno em seu sentido qualitativo para
Nas palavras de Habermas:
descrever uma característica de um discurso na história pode parecer
um pouco estranho à primeira vista. O crítico literário Paul de Man, por Um presente que compreende a si mesmo a partir do
exemplo, declarou uma vez que “em meio a vários antônimos que vem à horizonte da era moderna como a atualidade do mais
recente período tem de recapitular a ruptura com o
mente como possíveis oposições para ‘modernidade’ [...] nenhum é mais passado como uma renovação contínua.481
frutífero que ‘história’”.477 Para Paul de Man, modernidade, em primeiro
lugar, deve ser associada com a “renovação radical” ou mesmo com o Resumindo: a experiência moderna com seu amor pelo futuro e
esquecimento: uma obsessão com uma tabula rasa, com novos inícios. sua rejeição ao antigo, parece mais uma oposição à história que
No campo do esteticismo, o termo modernidade originalmente de fato um candidato apropriado para descrever uma característica que é
referiu-se à criações artísticas que romperam com qualquer orientação difundida na historiografia acadêmica e consciência histórica ocidental
no passado ou na tradição. Quando Charles Baudelaire em 1863 usou corrente. Entretanto, o historiador intelectual alemão Reinhart
primeiramente modernité, em seu ensaio “Le Peintre de la vie moderne”, Koselleck argumentou que a moderna “abertura” do futuro e a ideia
ele associou isso com o verdadeiramente novo, a efêmera novidade do relacionada do progresso foi de importância crucial na gênese do
presente, em que o artista moderno tinha de focar, desassociando isso da atualmente dominante conceito ocidental de história. Para Koselleck,
modernidade [Neuzeit] primeiramente tem que ser entendida como
476 Osborne P., Modernity is a qualitative, not a chronological, category. In: uma nova experiência de tempo, literalmente um “novo tempo” [neue
New Left Review, 192 (1992), pp. 65-84.
477 De Man P., Literary History and Literary Modernity. In: Blindness and 478 Frisby D., Fragments of Modernity. Theories of Modernity in the Work of
Insight. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1983, p. 144. Aleida Assmann Simmel, Kracauer and Benjamin. Cambridge, Polity Press, 1985, p. 14-16.
faz uma distinção similar quando ela contrasta um tempo da modernidade [Zeit der 479 Habermas, Modernity’s Consciousness of Time, p. 5.
Moderne] e um tempo da lembrança [Zeit des Gedächtnisses]. Assmann A., Kulturelle
Zeitgestalten. In: Stadler F. & Stöltzner M. (eds), Time and History. Proceeding of 480 A partir dessa perspectiva pode ser argumentado que o pós-modernismo é
the 28 International Ludwig Wittgenstein Symposium. Heusenstamm, Ontos Verlag, uma forma arquetípica do modernismo.
2007, pp. 469-489. 481 Habermas, Modernity’s Consciousness of Time, p. 7.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Zeit].482 Com o objetivo de explicar essa nova experiência do tempo tudo permanecesse mais ou menos da forma que era. Koselleck admite
histórico ele introduz os conceitos analíticos abstratos de “espaço que esse quadro é simplificado demais, mas mesmo assim serve para
de experiência” [Erfahrungsraum] e “horizonte de expectativa” sustentar o seu ponto que:
[Erwartungshorizont]. Esses dois conceitos de acordo com Koselleck As expectativas cultivadas nesse mundo campesino-artesanal
podem ser usados para analisar todos os tipos de concepções sócio- (e nenhuma outra expectativa poderia ser cultivada) subsiste
culturalmente determinadas de tempo e historicidade porque elas inteiramente nas experiências de seus predecessores,
tomam um estatuto “meta-histórico”: todo ser humano, independente experiências que por sua vez tornaram-se aquelas de seus
de se eles mesmos reconhecerem a existência do passado e futuro sucessores. Se qualquer coisa mudou, então mudou tão
lentamente e por tanto tempo que a brecha separando
como dimensões temporais separadas, tem alguma experiência ou experiências prévias e uma expectativa a ser inovadoramente
memória sobre o que aconteceu e certas expectativas ou esperanças revelada não minava o mundo tradicional.483
sobre o que irá acontecer. Apesar ou, melhor, graças ao seu alto nível
de generalidade, toda concepção de tempo ou historicidade pode Claro, isso não pode ser tomado como certo para todos
ser definida pela forma específica que interrelaciona um espaço de os estratos da sociedade da mesma forma: no mundo da política e
experiência e um horizonte de expectativa. Além do mais, a tensão intelectual, certos eventos (por exemplo, as Cruzadas, a descoberta
entre os dois em seu padrão em constante mutação – um espaço de do novo mundo, a revolução copernicana) quebraram o espaço
experiência muda a cada tempo e uma nova expectativa é realizada experiencial existente e criaram novas expectativas. Geralmente, no
ou negada, e uma mudança no espaço de experiência por sua vez entanto, de acordo com Koselleck, foi amplamente acreditado até a
pode dar origem a um novo horizonte de expectativa – oferece uma primeira modernidade que o futuro não poderia trazer qualquer coisa
explicação fenomenológica para a experiência do tempo histórico. fundamentalmente nova: “A sabedoria de Salomônica do nil novum
sub sole foi igualmente válida no mundo dos campesinos e da política,
De acordo com Koselleck, o espaço de experiência e o apesar de casos individuais poderem trazer surpresas”.484 Por causa do
horizonte de expectativa da maioria das pessoas até o século dezoito estabelecimento de um limite imóvel do horizonte de expectativa e a
era estreitamente unido e quase coincidiam. Com até oitenta por ligação do futuro ao passado, a doutrina cristã dos Juízo Final tinha
cento da população cultivando a terra, a Europa até aproximadamente uma grande influência na descrença da novidade histórica:
duzentos anos atrás foi uma “sociedade campesina” que viveu no
Até o esperado fim do mundo, seres humanos pecadores
interior do ciclo da natureza. Desconsiderando as mudanças na (como vistos de uma perspectiva cristã) não mudariam;
estrutura da organização social, flutuações no mercado e monetárias, até então, a natureza do homem (como visto de uma
Koselleck defende, o mundo cotidiano dependeu principalmente perspectiva humanista) permaneceria a mesma.485
do que a natureza trazia. As habilidades de manipular ou defender
Se as expectativas iam além das experiências prévias, elas usualmente
contra a natureza foram passadas de geração a geração e as inovações
não eram relacionadas a esse mundo, mas em vez disso ao porvir e ao
tecnológicas existiram, mas geralmente tomam muito tempo para
fim do mundo apocalíptico.486
tornarem-se estabelecidas que elas raramente criavam de fato uma
experiência de ruptura que conflitasse com experiências prévias. Na 483 Ibid., p. 264.
vida urbana, também, a estrita regulação das guildas assegurou que 484 Koselleck R., The Practice of Conceptual History. Timing History, Spacing
Concepts. Stanford, Stanford University Press, 2002, p. 111.
482 Koselleck R., Futures Past. On the Semantics of Historical Time. New York, 485 Ibid., p. 111.
Columbia University Press, 2004. 486 Koselleck, Futures past, p. 265.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Tudo isso, de acordo com Koselleck, mudou na segunda as faces de Jano. Se o novo tempo está oferecendo alguma
metade do século dezoito. Naquele momento, inovações tecnológicas coisa nova a todo tempo, o passado diferente tem de ser
e os efeitos do que mais tarde seria chamado “progresso”, resultou descoberto e reconhecido, ou seja, sua estranheza que
aumenta com o passar dos anos.490
em um aumento da quebra entre espaço de experiência e horizonte
de expectativa. Koselleck considera essa quebra como a base da Essa “descoberta” do mundo histórico evidentemente tem implicações
consciência histórica moderna com sua ênfase nas dimensões da para a formação da historiografia acadêmica e da metodologia
novidade, irreversibilidade e unicidade. Ele fala sobre um processo de histórica. Foi apenas com a separação qualitativa do passado, do
temporalização [Verzeitlichung]: presente e do futuro que a história pode tornar-se ciência:
O tempo não apenas permanece a forma em que todas as Desde então tem sido necessário desenvolver métodos
histórias acontecem, mas o tempo em si mesmo ganha especiais que ensina-nos a reconhecer o caráter diferente
uma qualidade histórica. Consequentemente, a história do passado. Desde então tem sido possível que a verdade da
não acontece mais no tempo, mas sim através do tempo. história mude com a mudança do tempo, ou para ser mais
O tempo é metaforicamente dinamizado em uma força exato, que a verdade histórica pode tornar-se defasada.
histórica em si mesmo.487 Desde então o método histórico significa também definir
um ponto de vista através do qual conclusões podem ser
Comentando na instituição do novo calendário após a Revolução traçadas. Desde então uma testemunha ocular não é mais
Francesa, Koselleck afirma que o que é realmente novo sobre a a autêntica e principal testemunha de um evento, ela será
modernidade “é a ideia de ser apta a iniciar a história novamente pela questionada à luz das perspectivas mutáveis e avançadas
contabilização em termos de um calendário”.488 que são aplicadas ao passado.491

Isso, é claro, teve repercussões para a concepção de passado. A “descoberta” do mundo histórico, no entanto, envolve
Por um lado o surgimento de novas expectativas sobre o futuro muito mais que simplesmente essas questões de método crítico. De
resultaram na mudança de uma valor do estudo do passado, que não fato, Koselleck argumenta, o próprio conceito de história como um
mais convincentemente poderia ser legitimado como oferecendo singular coletivo constituiu-se apenas em direção ao fim do século
lições vitais para o presente ou vida futura. O outrora tão influente dezoito. A ideia da história como um processo unificado e o axioma
topos historia magistra vitae dissolveu-se lentamente porque, como relacionado da unicidade histórica e individualidade, apenas veio
Koselleck coloca, “tornou-se uma lei que toda experiência prévia não à existência após a ideia de progresso abrir o futuro e as pessoas
poderia contar contra a possibilidade da alteridade do futuro. [...] acreditarem que poderiam “fazer” história. Até o século dezoito,
História, processualizada e temporalizada à constante singularidade, Koselleck argumenta, passado e presente estavam encerrados em
não poderia ser ensinada por muito tempo de maneira exemplar”.489 um plano histórico comum, e as pessoas não tinham a noção da
Por outro lado, foi exatamente a “descoberta” do progresso que trouxe “história” como um objeto epistemológico unificado. Muitas esferas
consigo a “descoberta” do mundo histórico: que hoje em dia são consideradas possuindo um caráter histórico
inato eram tratadas em termos de outras premissas, e não existia
As visões do mundo histórica e progressiva têm uma
origem comum. Elas complementam uma à outra como
nenhum denominador comum para todas aquelas histórias – res
gestae, pragmata, e vitae – que desde então tem todas sido reunidas e
487 Koselleck, The Practice of Conceptual History, p. 165. definidas como “história”. Como Koselleck explica:
488 Ibid., p. 152. 490 Koselleck R., The Practice of Conceptual History, p. 120.
489 Koselleck, Futures past, pp. 267-268. 491 Ibid.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Se alguém tivesse dito anteriormente a 1780 que estudava acadêmicos vigorou em estágios entre o fim do século dezessete
história, ele teria de uma só vez sido questionado pelo e meio do dezenove.496Apesar disso, a ideia de Koselleck de um
seu interlocutor: Que história? História de quê? História “Sattelzeit” – um ponto de virada em torno do fim do século dezoito
Imperial, ou a história da doutrina teológica, ou talvez a
história da França? Como dito anteriormente, a história e o início do dezenove em que os conceitos de tempo e história
poderia apenas ser concebida juntamente com uma fundamentalmente mudaram – encontra confirmação no recente
associação de temas que sofria mudança ou sobre a qual a trabalho de vários outros pensadores. O historiador francês François
mudança acontecia.492 Hartog, por exemplo, similarmente situa o divisor de águas entre o
Claro que deve-se ter cuidado em seguir Koselleck que ele chama de moderno e pré-moderno regime de historicidade
demasiado longe em suas apresentações frequentemente muito [régime d’historicité] em torno do fim do século dezoito.497 Assim
esquemáticas, e um certo ceticismo com relação à sua análise como Koselleck, Hartog situa a particularidade do prevalecente
é apropriado. A medievalista Kathleen Davis, por exemplo, régime d’historicité moderno na separação qualitativa do passado e
critica corretamente Koselleck pela estagnação ou pela “paralisia presente e em uma crescente atenção ao passar do tempo. Hartog
atemporal” que ele atribui à Idade Média e ao modo fortemente descreve a montagem desse conceito moderno de historicidade por
binário e linear que separa o medieval do moderno.493 Davis fala referir-se à introdução da fórmula autres temps, autres moeurs –
sobre uma “exclusão fundacional do tempo ‘medieval’” e ela “outros tempos, outras maneiras” – e ele acrescenta que no regime
argumenta que esse posicionamento de uma Idade Média atemporal moderno de historicidade o passado é geralmente considerado
é parte de uma política de periodização que oferece suporte para “passé”. A fim de ilustrar a relativamente rápida sucessão de um
reivindicações filosóficas e políticas sobre a soberania e legitimidade regime de historicidade pelo outro, Hartog refere-se aos escritos
da modernidade.494 Em linha com essa crítica da lógica binária de Chateaubriand, que de acordo com ele deve ser localizado
de Koselleck, poderia-se questionar se a dominante visão de historicamente no ponto de quebra, com alguns dos primeiros
mundo histórico moderna não é muito mais uma “planta de lento ensaios ainda submergidos na maioria das vezes no “antigo” regime
crescimento”495 ao invés de um produto de uma relativamente curta e alguns dos últimos ensaios já pertencendo na parte da “nova”
e concisa “revolução” epocal como Koselleck parece acreditar. visão sobre a historicidade. O pensamento de Chateaubriand,
Poder-se-ia duvidar se coisas tão profundas como experiências de de acordo com Hartog, em grande medida cai entre dois regimes
mudança temporal e histórica podem ser circunscritas a uma década. de historicidade. Enquanto o topos historia magistra vitae, por
Poderia ser mais seguro tomar as datas mencionadas por Koselleck exemplo, já teria tornado-se não convincente para Chateaubriand,
por serem primeiramente simbólicas ou escolher uma delineação 496 Hunt L., Measuring time, Making History. Budapest, Central European
cronológica menos precisa, como Lynn Hunt, que argumenta que University Press, 2008, p. 26. Outros têm situado as raízes do tempo histórico moderno
o conceito de tempo mais comumente usado por historiadores ainda mais anteriormente, no período da Renascença. Ainda assim, esses pensadores
geralmente não negam que o período em torno do fim do século dezoito também
492 Koselleck, Futures past, p. 194. trouxe mudanças importantes no conceito de tempo. Ver: Baron H., Das Erwachen
des historischen Denkens im Humanismus des Quattrocento. In: Historische
493 Davis K., Periodization and Sovereignity. How Ideas of Feudalism and Zeitschrift, 147 (1933), 1, pp. 5-20; Ermarth E. D., Sequel to history. Postmodernism
Secularization Govern the Politics of Time. Philadelphia, University of Pennsylvania and the crisis of representational time. Princeton, Princeton University Press, 1992.
Press, 2008. Veja também: Fasolt C., The Limits of History. Chicago, University of Chicago Press,
494 Ibid., p. 90. 2004.
495 Expressão de: Lowenthal D., The past is a foreign country. Cambrigde, 497 Hartog F., Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris,
Cambrigde University Press, 2003, p. 232. Seuil, 2003.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

ele não foi capaz de romper completamente com ele. E enquanto Secularismo
seu trabalho é permeado pela experiência da aceleração temporal e
Uma quarta abordagem do tempo histórico que é difundida
a ideia do processo histórico, Chateaubriand ainda não enfatizou a
na historiografia acadêmica e na consciência histórica no Ocidente,
separação do passado e do presente que caracterizou a historiografia
e que torna difícil o reconhecimento do passado irrevogável, é a do
científica do século dezenove. Para ele, Hartog argumenta, o passado
secularismo. A questão se o pensamento histórico e a modernidade
estava ainda situado no presente, e os mortos vivos estavam ainda
em geral são genuinamente seculares em natureza ou se eles são meras
assombrando os vivos.498
versões superficialmente secularizadas de uma antiga e mais autêntica
O historiador americano Peter Fritzsche, também, afirma visão religiosa da história, tem sido alvo de acalorados debates em
que por volta de 1800 “algo completamente novo” desenvolveu-se meio a filósofos e historiadores intelectuais. A mais influente voz
simultaneamente nas concepções da elite e populares de tempo e nesse “debate da secularização” indubitavelmente veio de Karl Löwith
história por toda a Europa.499 A Revolução Francesa e as subsequentes que em 1949 postulou o estado “derivado” do pensamento histórico
guerras napoleônicas deram surgimento a uma muito difundida moderno e da filosofia da história, e de Hans Blumenberg que, no
percepção de descontinuidade histórica e transformação ou, como início da década de 1960, reagiu à Löwith defendendo a autonomia,
Fritzsche coloca, uma “inquieta interação do novo”.500 Muito autenticidade e secularidade da modernidade.501
semelhante a Koselleck e Hartog, Fritzsche salienta que a experiência
No entanto, tenho que iniciar novamente com uma
da mudança radical e novidade histórica levou à destruição do
retratação e dizer que não irei entrar no debate Löwith/Blumenberg
estatuto exemplar da história como mestra da vida tanto quanto
aqui, mas que referirei a uma interpretação muito específica do
à “descoberta”, ou mesmo da obsessão, com o “novo passado”. A
conceito de secularidade. Sou inspirado pela reivindicação do filósofo
descoberta popular da “estranheza” do passado e a nova sensibilidade
canadense Charles Taylor que “secular” não significa primeiramente
para a onipresença da “perda” histórica nas décadas seguintes da
“não ligado a religião” mas, mais fundamentalmente refere-se a
Revolução Francesa, revelaram a eles mesmos um forte aumento
“um certo tipo de tempo”.502 “Secular”, Taylor explica, é derivado de
do interesse por ruínas, relíquias materiais e souvenirs do passado.
“saeculum”, um século ou era.503 O uso do termo secular que é comum
Essas ruínas e relíquias não mais representavam apenas decadência e
hoje – em que o mesmo contrasta com a religião ou se posiciona
morte, como foi o caso durante a maior parte do século dezoito, mas
como uma parte da oposição clero secular/regular – baseia-se naquele
também veio a significar vidas diferentes e mesmo subjetividades que
sentido original de forma específica:
outrora existiram em outro plano histórico e estavam agora ausentes.
Curiosamente, Fritzsche também observa que a percepção de uma Pessoas que estão no saeculum, estão incorporadas no
quebra entre passado e presente trouxe com ela um novo senso de tempo ordinário, elas estão vivendo a vida do tempo
contemporaneidade e da sincronicidade do tempo para a população 501 Löwith K., Meaning in History. The Theological Implications of the Philosophy
da Europa, isso a despeito do desenvolvimento simultâneo da ideia de of History. Chicago, University of Chicago Press, 1949. Ver também: Blumenberg H.,
diferenças nacionais e exclusão do não Ocidental. The Legitimacy of the Modern Age. Cambridge (Mass.), MIT Press, 1985.
502 Taylor C., Modern Social Imaginaries. Durham, Duke University Press,
2004, p. 93.
498 Hartog F., Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, p. 99.
503 Taylor C., Die Moderne und die säkulare Zeit. In: Michalski K. (ed.), Am
499 Fritzsche P., Stranded in the Present. Modern Time and the Melancholy of Ende des Millenniums. Zeit und Modernitäten. Stuttgart, Klett-Cota, 2000, pp. 28-85.
History. Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 2004. Veja também: Taylor C., A Secular Age. Cambridge (Mass.), The Belknap Press of
500 Ibid., p. 53. Harvard University Press, 2007.

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ordinário, como aqueles que se distanciam de modo a por Deus e funcionou de acordo com seu plano implicou que o que
viver mais próximo da eternidade.504 aconteceu no tempo foi muito real e realmente importava. Como
“Secular”, desta forma, refere-se ao “tempo ordinário” ou aquele que Taylor explica: “Deus entra no drama no tempo. A encarnação, a
está relacionado ao tempo ordinário/profano, como oposto àquele crucificação, aconteceu no tempo, e então o que ocorreu aqui não
que concerne às coisas da eternidade. pode mais ser visto como menos que totalmente real”.507 Influenciado
principalmente pelo pensamento de Agostinho, a cristandade latina,
Agora, para entender o que é “secular” ou pelo menos portanto, veio reconhecer a eternidade como “tempo acumulado”.
“secularizante” sobre abordagens modernas do tempo histórico, temos Ao invés de iniciar da ideia grega de tempo “objetivo” relacionado
que contrastá-las esta com as noções de tempo pré-modernas ou não- ao processo e movimento, Agostinho conhecidamente refletiu sobre
modernas. Antes do advento da visão de mundo modernista, Taylor a ideia de um tempo “vivido”. De acordo com ele as dimensões do
argumenta, o povo geralmente percebia o tempo como multicamadas passado e futuro são acumuladas em uma contínua totalidade ou
ou multidimensional. O tempo ordinário, na compreensão pré- instante na mente humana. Extrapolando nessa característica humana,
moderna, sempre existiu em relação ao que Taylor chamou “tempos Agostinho sustentava que Deus tinha a capacidade de acumular todo
superiores”, pelos quais foram “cercados” ou “penetrados” e que o tempo em um instante, portanto a totalidade do tempo estava
reuniram juntos ou mantiveram no lugar.505 Taylor observa que pode- simultaneamente presente a ele em um tipo de “nunc stans”. Em outras
se indiscutivelmente também se referir a este “campo organizado palavras: o instante de Deus como eternidade. A esses dois exemplos
pelo tempo ordinário” pelo termo mais comum filosoficamente e de tempos superiores Taylor acrescenta um terceiro que ele chama de
teleologicamente “eternidade”, mas ele defende sua escolha pela um “tempo de origens”. Ao contrário das duas noções de eternidade
expressão “tempos superiores” explicando que (a) pensadores pré- descritas acima, este último tempo superior não foi desenvolvido
modernos concebiam mais de um tipo de eternidade, e (b) essas por teólogos ou filósofos mas originou-se na tradição popular, não
“eternidades” não exauriam o fenômeno dos tempos superiores. 506 apenas na Europa mas quase em todos os lugares. O tempo das
Taylor dá três exemplos de tempos superiores que surgiram origens é um Tempo Grandioso, um “illud tempus”, em que o mundo
em momentos históricos diferentes mas que, para a maior parte da foi criado e a ordem das coisas estabelecida. Embora situado em um
história ocidental, existiu lado a lado em uma mistura complexa. O passado remoto, esse tempo das origens não pode ser compreendido
primeiro e mais conhecido exemplo pode ser encontrado na filosofia significativamente em um tempo secular ou cronológico, pois o
de Platão que viu a realidade mundana sub-lunar como uma mera mesmo pode reaparecer ou ser reabordado e, portanto, nunca pode
reflexão do ser pleno “realmente real” que tinha um estatuto imutável e ser considerado realmente passado. Como Taylor escreve, “O Tempo
eterno. Para ele, e seus últimos herdeiros europeus, o tempo ordinário Grandioso está, desta forma, atrás de nós, mas o mesmo também está,
foi meramente uma imagem em movimento e imperfeita da eternidade, em um sentido, acima de nós. Isso é o que aconteceu no início, mas
que tão logo explica porque os tempos superiores são superiores. isso é também o o grande exemplo, que nós podemos estar próximo
Embora essa noção grega de eternidade permaneceu influente no ou distante à medida que nos movemos através da história”.508
pensamento ocidental, outra ideia de eternidade desenvolveu-se na Desde a Ilustração esses tempos superiores tinham perdido
cristandade. A mensagem da Bíblia sobre um universo que foi criado
507 Ibid., p. 56.
504 Taylor, A Secular Age, p. 55.
508 Ibid., p. 57. Sobre esse assunto ver também: Gauchet M., The Disenchantment
505 Taylor, Modern Social Imaginaries, p. 97. of the world. A Political History of Religion. Princeton, Princeton University Press,
506 Taylor, A Secular Age, p. 54. 1997.

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cada vez mais a influência e foram expulsos ou incorporados por um prefiguração-realização que foi acreditada como existente entre o
tempo linear e cronológico que não deixou muito espaço para a ideia de sacrifício de Isaac e a crucificação de Cristo:
outros tempos. É esse longo processo de rejeição dos tempos superiores Esses dois eventos estavam conectados através dos seus
e do posicionamento do tempo como puramente profano, resultando lugares imediatamente contíguos no plano divino. Eles
eventualmente em uma consciência do tempo “radicalmente purgada”, são atraídos para a identidade na eternidade, ainda que
que, de acordo com Taylor, subjaz à “secularização” em suas formas sejam séculos (ou seja, “aeons” or “saecula”) separados.
sociais muito diferentes.509 A entronização do “tempo secular” como um No tempo de Deus há uma espécie de simultaneidade do
sacrifício e da crucificação. Similarmente, a Sexta-Feira
período de tempo único e absoluto, que cada vez mais veio a funcionar Santa de 1998 está mais próxima de certa maneira ao dia
como um recurso precioso que não deveria ser perdido, está também original da Crucificação que o meio-dia de verão de 1997.
relacionado de perto ao processo de desencantamento e disciplinação. Uma vez que os eventos são situados em relação a mais
De acordo com Taylor, portanto, o tempo secular, mais que qualquer que um tipo de tempo, a questão da localização do tempo
outro aspecto da modernidade, merece a descrição de Max Weber de tornou-se bastante transformada.512
uma stahlhartes Gehäuse (“jaula de ferro”).510 Além disso, foi apenas pela Uma tese semelhante à de Charles Taylor é encontrada
exclusão dos tempos superiores e sua substituição pelo tempo secular que no trabalho de Sylviane Agacinski, que argumenta que a visão de
as noções modernas de absoluta simultaneidade e da lógica cronológica mundo ocidental moderna resulta primeiramente do que ela chama
transitiva puderam ser postuladas. Como observa Taylor: “o recuo do eterno”.513 Para demonstrar o que é tão particular sobre a
Enquanto o tempo secular está entrelaçado com vários consciência do tempo modernista, Agacinski a contrasta também com
tipos de tempos superiores, não existe garantia que todos as tradições platônica e neoplatônica, que constroem suas filosofias
os eventos podem ser colocados em relações não ambíguas em torno de uma idéia de eternidade. Sem ter perdido todo desejo
de simultaneidade e sucessão.511 pelo duradouro, a modernidade veio enfatizar a passagem temporal e
De acordo com Taylor, a “lei de transitividade forte” – que se A está começou a descrever o mundo principalmente em termos do efêmero
antes de B e B antes de C, então A está antes de C, ou em uma versão em vez do permanente ou do eterno. Assim como Taylor, Agacinski
quantificada, que se A está muito antes de B, e B muito antes de C, argumenta que a modernidade, ao cortar ontologicamente os laços
então A está muito antes de C – subjacente ao raciocínio cronológico com o eterno, não somente abre o pensamento à temporalidade e à
moderno, nem sempre vigorou em sociedades (a medieval europeia história, mas também imediatamente rompe com o divino, ou pelo
por exemplo) que viu o tempo ordinário como interrompido pelos menos com a antiga idéia do divino.
tempos superiores que poderia dobrá-lo, deformá-lo, ou mesmo
re-ordená-lo. Mesmo eventos que estavam distantes no tempo
ordinário foram frequentemente concebidos como proximamente Formulando a questão principal
conectados. Como Taylor explica, referindo-se à relação da Criticar a noção de tempo absoluto, vazio e homogêneo,
a descrição historicista da mudança histórica, a crença modernista
509 Taylor, Modern Social Imaginaries, p. 97.
em uma estrita divisão entre passado e presente e a rejeição
510 Uma análise da relação entre tempo histórico e desencantamento muito
similar à de Charles Taylor pode ser encontrada no trabalho de Dipish Chakrabarty.
Chakrabarty D., Provincializing Europe. Postcolonial Thought and Historical 512 Ibid., p. 55.
Difference. Princeton, Princeton University Press, 2008, p. 74 and p. 89. 513 Agacinski S., Time Passing. Modernity and Nostalgia. New York, Columbia
511 Taylor, A Secular Age, p. 209. University Press, 2003.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

secularizada de “tempos superiores”. não é algo que devemos fazer única”.518 A ideia de que a realidade histórica ocorre através de uma
despreocupadamente. Tomados em conjunto, esses elementos infinita série de instantes discretos permitiu que os historiadores
constituem uma cronosofia que incorpora um grande potencial criassem uma metodologia moderna de crítica histórica, que depende
crítico. Sem dúvida, foi primeiramente essa cronosofia que fez que largamente da hipótese de que eventos e processos históricos
intelectuais tais como Karl Mannheim e Hans-Georg Gadamer importantes são constituídos de eventos menores que podem ser
falassem tão admiradamente sobre a consciência histórica moderna, encontrados diretamente nas fontes primárias. Como Wilcox explica:
respectivamente chamando-a de “força intelectual de extraordinária As qualidades contínuas e universais de tempo e espaço
significância, [...] a própria base sobre a qual construímos nossas de Newton tornaram possível para os historiadores – bem
observações da realidade sociocultural”, e “muito provavelmente como para os cientistas naturais – ver os componentes
a revolução mais importante [...] da época moderna”.514 Para básicos da realidade não como processos ou totalidades
Richard Rorty, o historicismo sustenta a promessa da emancipação orgânicas, mas como uma série de eventos discretos que
podem ser localizados em uma única linha de tempo e em
intelectual da humanidade: “Esse giro historicista ajudou a libertar- um único ponto no espaço.519
nos, gradualmente mas regularmente, da teologia e da metafísica, da
tentação de procurar uma fuga do tempo e da contingência”.515 Em Em adição a isso, a montagem de uma posição histórica crítica
um argumento que se assemelha à tese de Taylor sobre a secularização, estava relacionada com a homogeneização do tempo, porque essa
Rorty afirma que o historicismo radical poderia trazer-nos a um ponto homogeneização, como argumenta Bernard Williams, provocou
“onde não mais adoramos nada, onde tratamos o nada como uma a demanda de que eventos “lendários” remotos fossem explicados
quase divindade”.516 da mesma maneira como eventos que aconteceram ontem.520 Além
disso, essa mesma homogeneização do tempo, juntamente com sua
Além disso, como observa Wilcox, o surgimento do conceito universalização, de acordo com Lynn Hunt, tem grande importância
de tempo absoluto que existe como uma espécie de recipiente abstrato historiográfica porque cria a possibilidade para a revisão histórica.
independente dos eventos que nele se encontram tem sido crucial Sem a noção de que todos os eventos naturais são igualmente parte
para o desenvolvimento da ideia de uma simultaneidade global. Esse do tempo e que o tempo de todos tem o mesmo “peso ontológico”, ela
conceito permite aos pensadores modernos sincronizar eventos e afirma, não haveria história de afro-americanos ou do meio ambiente
pessoas em uma escala maciça sem necessariamente demonstrar hoje.521
a existência de quaisquer relações históricas concretas.517 O axioma
newtoniano de que todo o espaço existe no mesmo instante do tempo No entanto, embora incorporando grande potencial crítico,
poderia muito bem ser considerado uma fonte importante do que os elementos descritos neste capítulo, juntos também constituem
Elisabeth Deeds Ermarth chama de história de “Hipótese mundial uma cronosofia que não está em contato com partes importantes da
518 Ermarth E. D., Beyond the “Subject”. In: Jenkins K. & Munslow A. (eds), The
Nature of History Reader. Routledge, 2004, pp. 281-295. Meyer Schapiro citado em:
514 Mannheim, Historicism, pp. 84-85. Ver também: Gadamer H. G., The Ermarth, Sequel to History, p. 5.
Problem of Historical Consciousness. In: Rabinow P. & Sullivan W. M. (eds), 519 Wilcox, The Measure of Times Past, p. 4.
Interpretive Social Science. A Second Look. Berkeley, University of California Press,
1987, pp. 82-140, 89. 520 Discutido em in Taylor, A Secular Age, p. 271. Bernard Williams está de
fato discutindo uma mudança na concepção de temporalidade que aconteceu na
515 Rorty, Contingency, Irony, and Solidarity, p. xiii. historiografia antiga entre Heródoto e Tucídides, mas Charles Taylor argumenta que
516 Ibid., p. xvi. (Itálico no original). um processo similar de homogeneização teve lugar no século dezoito.
517 Wilcox, The Measure of Times Past. 521 Hunt, Measuring time, Making History, pp. 28-29.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

experiência de agentes históricos e que nos restringe severamente Quando se trata da incapacidade conceitual de levar a
no reconhecimento da complexidade total da realidade histórica – sério o fenômeno do irrevogável, mais especificamente, a explicação
mais notavelmente no reconhecimento da persistência do passado mais óbvia é que as noções de tempo secular absoluto, de mudança
“assombroso” ou do irrevogável. A noção de um tempo vazio e historicista e de delimitação rígida entre passado e presente
homogêneo, a ênfase na mudança constante e generalizada, a crença simplesmente transformam a ideia de um passado persistente em
em uma divisão estrita entre o passado e o presente e a crença de que uma inconsistência lógica. De fato, a cronosofia historicista moderna
toda experiência pode estar situada em um único tempo “secular”, traz consigo uma clara tendência analítica a respeito do “evento” e
tudo isso levou muitos pensadores modernos a tratar as noções do torna difícil conceber a realidade (ontológica) de qualquer forma de
passado e do presente como mutuamente exclusivas e a reduzir o persistência. Evidências dessa dificuldade podem, por exemplo, ser
passado ao “ausente” ou ao “distante”. Sem manter qualquer “désir encontradas nas ferozes discussões sobre o estatuto virtual ou real das
d’éternité” ou, sendo um ateísta, defender qualquer nostalgia por um estruturas sociais, que muitas vezes recaem a uma discussão sobre a
mundo religioso ou encantado, concordo com Charles Taylor quando natureza do tempo histórico.523
ele afirma que o que a partir de um ponto de vista da Ilustração parece
O fato de que a corrente principal do pensamento histórico
uma cronosofia “purgada” é de fato um empobrecimento.
moderno, como Koselleck mostra, não apenas historicamente,
Apesar de suas claras vantagens intelectuais, a noção de um mas também conceitualmente, emergiu como o correlato de uma
tempo absoluto, vazio e homogêneo e o raciocínio cronológico que crença no progresso e de uma visão de mundo saturada pela ideia
se baseia nisso, dificilmente podem explicar a pluralidade de noções da mudança constante e novidade histórica, poderia explicar por
de tempo “vividas” ou “subjetivas” e não podem integrar experiências que o problema da teorização da persistência do passado irrevogável
temporais que são não-lineares ou “não-contemporâneas”. Devido às nunca pareceu de grande urgência para essa tradição intelectual.
suas ambições universalistas, o tempo absoluto, vazio e homogêneo De fato, frequentemente parece como se as noções modernas do
não só de fato manifesta uma incapacidade de integrar experiências tempo histórico foram concebidas para equiparar o “histórico” com
diferentes de tempo, mas também uma intolerância direta a outras “mudança” ou “novidade” e não ver nenhuma persistência. Veja, por
temporalidades. Em relação à tese de secularização de Charles Taylor, exemplo, o seguinte raciocínio criado por Jörn Rüsen sobre a natureza
pode-se argumentar que a rejeição de tempos superiores em certo da história e do tempo histórico:
sentido acabou por colocar o tempo absoluto, vazio e homogêneo A História é originada na mudança de gerações; mas só
como o tempo superior a todos. O caráter “intolerante” ou mesmo se desenvolve como uma relação temporal específica
“imperialista” dessa noção de tempo tem sido desde há muito se a imediaticidade de uma relação (como a que existe
proclamado e criticado por estudiosos trabalhando nos campos entre pais e filhos) é estendida em uma relação mediada.
dos estudos subalternos e pós-coloniais. Pessoas tais como Dipesh A temporalidade só adquire uma dimensão histórica
se conecta dois horizontes de tempo que diferem em
Chakrabarty, Ashis Nandy e Sanjay Seth, por exemplo, tem afirmado qualidade; apenas sob essas circunstâncias é necessário
repetidamente que muitas experiências não ocidentais não podem ser diferenciar entre o próprio tempo e o dos outros, entre
integradas na historiografia acadêmica devido à última cronosofia.522
Economic and Political Weekly, April 10, 1999, pp. 897-904.
522 Chakrabarty, Provincializing Europe; Nandy A., History’s Forgotten 523 Ver: Archer M. S. Realist Social Theory. The Mophogenetic Approach.
Doubles. In: History and Theory, 34 (1995), 2, pp. 44-66. Ver também: Seth S., Reason Cambridge, Cambridge University Press, 1995. Veja também: Giddens A., The
or Reasoning? Clio or Siva? In: Social Text, 78. (2004), 1, pp. 85-101, 86. Ver também: Constitution of Society. Outline of the Theory of Structuration. Cambridge, Polity
Skaria A., Some Aporias of History. Time, Truth and Play in Dangs, Gujarat. In: Press, 1984.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

a presença do próprio Lebenswelt e o passado como


Lebenswelt passado.524
Hoje, as gerações continuam passando, mas a idéia de
progresso histórico para muitas pessoas já não é convincente. Para
grandes partes da população mundial, um horizonte de expectativa
realista continua ainda e sempre muito semelhante ou mesmo
coincidindo com um espaço de experiência frequentemente trágico.
Capítulo 6
Tornou-se claro que a idéia de progresso pertence a um contexto Procurando por outros tempos. Algumas críticas do
histórico específico e finito e, na ausência desse progresso, não é passado ausente e distante
impensável colocá-lo na terminologia de Rüsen, que os presentes
Lebenswelten não se distinguem mais facilmente dos passados.
Nesse contexto, temos que negar a história completamente a muitas Introdução
pessoas e sociedades, desde que continuamos a negar o irrevogável No capítulo anterior, tentei demonstrar que a gênese do
ou o passado persistente e a compreender estritamente a “história” tempo absoluto, vazio e homogêneo, a descrição historicista da
como idêntica à “mudança” qualitativa ou à “novidade”. Mesmo se for mudança histórica, a ênfase modernista na disjunção do passado e
apenas para essa consideração, precisamos repensar o tempo histórico do presente e a rejeição secularizante dos tempos superiores somam-
e procurar a possibilidade de uma cronosofia alternativa. se a uma cronosofia que não é apenas um tour de force intelectual
que motivou uma nova maneira de ver o mundo, mas também, e
pelo menos tanto quanto, um engenhoso “modo de não ver” partes
desse mundo. Essa cronosofia, argumentei, permite-nos ver apenas
um presente “vivo”, que está completamente presente, e um passado
“morto” que está completamente ausente ou distante, obscurecendo
tudo o que não pode ser categorizado nitidamente como puramente
passado ou puramente presente, ligado a uma localização temporal
exata em uma cronologia linear, ou se encaixando no modelo de
mudança historicista.
Felizmente, no entanto, a cronosofia acima, embora
difundida e influente, nunca manteve um controle absoluto sobre a
historiografia acadêmica e o pensamento histórico mais amplo no
Ocidente. Desde sua ascensão, mas principalmente desde a primeira
metade do século vinte, vários aspectos da cronosofia descrita têm
sido, de fato, contestados por pensadores que na maioria formaram
524 Rüsen J., Mourning by History. Ideas of a new element in historical thinking. parte de sua tradição, muitas vezes apenas queriam modificá-la, e
In: Historiography East & West, 1 (2003), 1, pp. 15-38, 21. Ver também: Rüsen J., invariavelmente mantiveram visões engenhosas da realidade histórica.
Historical Thinking as Intercultural Discourse. In: Rüsen J. (ed.), Western Historical
Thinking. An Intercultural Debate. New York, Berghahn Books, 2002, pp. 1-11. Alguns pensadores desafiaram a noção de um tempo singular, vazio

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

e homogêneo, outros rejeitaram a idéia de sincronia cronológica deveria inspirar-se na multidão de conceitos de tempo não-ocidentais
perfeita, e outros ainda questionaram a ruptura absoluta entre o (ou pré-modernos). Em reação à primeira objeção, pode-se afirmar
passado e o presente; vários pensadores também foram frustrados que as ciências naturais não trarão muito alívio. Vários pensadores
de alguma forma ou outra pela representação do passado como argumentam de maneira convincente que o tempo histórico não
irreversivelmente ausente ou distante. pode ser equiparado ou reduzido ao tempo natural ou ao tempo
cósmico, e mesmo que se queira romper com a ideia de um presente
Na esperança de encontrar uma cronosofia alternativa que
absolutamente contemporâneo, não se pode confiar na física relativista,
seja mais inclusiva do que a discutida no capítulo anterior – isto é, que
pois essa disciplina não possui uma noção de presente vivido.525A
nos permita ver o irrevogável e que menos facilmente se presta a fins
segunda objeção não pode ser simplesmente rejeitada: a inspiração
exorcistas e alocronistas – os próximos dois capítulos irão discutir uma
para uma cronosofia alternativa poderia de fato ser extraída de vários
seleção de cinco reflexões crítico-conceituais inspiradoras e atípicas
contextos. Enquanto eu certamente não quero que essa cronosofia
sobre tempo e história. Neste capítulo, discutirei primeiro as reflexões
alternativa seja “pré-histórica”, a inspiração poderia, por exemplo, ser
cronosóficas de dois historiadores: Fernand Braudel, com sua célebre
tirada sem dúvida de antigas concepções de tempo ou do que Mircea
defesa da existência de diferentes camadas temporais or durées; e R. G.
Eliade chamou de “ontologia arcaica”.526 E, enquanto abordagens
Collingwood, cuja teoria da “reconstrução subjetiva” (re-enactement)
de tempo ocidentais espalharam-se para todos os lugares, culturas
inclui um interessante repensar das relações entre passado e presente.
não-ocidentais poderiam similarmente ser uma inestimável fonte de
Em segundo lugar, focarei em dois filósofos marxistas, Ernst Bloch
inspiração em nossa procura por uma cronosofia mais inclusiva.
e Louis Althusser, ambos dos quais, apesar de suas diferenças,
levantaram questões semelhantes sobre a idéia de contemporaneidade Todavia, o foco nas críticas “internas” que se desenvolveram
histórica e a singularidade do tempo histórico. O próximo capítulo dentro ou à margem da tradição historiográfica no século vinte e
será então dedicado inteiramente aos pensamentos de Jacques Derrida no Ocidente tem vantagens. Creio que Derrida está certo quando
e, mais precisamente, à sua teoria da “espectralidade” ou “fantologia” argumenta que cada desconstrução de um sistema metafísico tem
[hauntology] e suas afirmações sobre a “não contemporaneidade do que começar a partir do próprio sistema. Também o foco “interno”
presente consigo mesmo”. Para cada um dos pensadores e críticos confronta-nos com uma série de reflexões críticas que são apresentadas
tratados oferecerei uma breve discussão sobre em que medida em uma terminologia e desenvolvidas em um contexto intelectual
oferecem uma base viável para teorizar o irrevogável. Escolhi por que tem relevância direta e facilmente reconhecível para a prática
dedicar um capítulo inteiro à filosofia de Derrida, porque ele oferece historiográfica acadêmica. Além disso, embora haja, naturalmente,
a desconstrução mais radical das noções de senso comum de tempo outros pensadores dentro da tradição ocidental que se empenharam
(histórico), e porque seu conceito alternativo de tempo “espectral”, na
minha opinião, serve como uma boa base intelectual a partir da qual 525 Teichmann R., The Complete Description of Temporal Reality. In: Baert
P. (ed.), Time in Contemporary Intellectual Thought. Elsevier, Amsterdam, 2000,
podemos começar a conceber a perspectiva histórica mais inclusiva pp. 1-15. Veja também: Adam B., Time and Social Theory. Cambridge, Polity Press,
que procuramos. 1990. Einstein relatou ter dito uma vez que “a experiência do Agora significa algo
especial para o homem, algo essencialmente diferente do passado e futuro, mas essa
É claro, poderia-se objetar que a busca por uma noção importante diferença não ocorre e nem pode ocorrer dentro da física”. Citado em:
alternativa de tempo histórico deveria se focar mais nas teorias do Tooley M., Time, Tense and Causation. New York, Oxford University Press, 1997,
tempo que durante o século passado foram desenvolvidas nas ciências p. 380.
exatas, ou ao invés disso que a busca por uma cronosofia alternativa 526 Eliade M., The Myth of the Eternal Return. New York, Bollingen Foundation,
1954.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

em reflexões críticas sobre o tempo histórico, os cinco pensadores a história das economias, estados, sociedades e civilizações. O tempo
que são discutidos nos próximos dois capítulos, devido à sua grande individual, finalmente, traz consigo um foco em uma história mais
diversidade, oferecem uma boa visão geral dos diferentes tipos de “tradicional”, de “flutuações breves, rápidas e nervosas”. Essa é uma
frustrações que surgiram em torno do passado ausente ou distante história de eventos políticos, que discute não o homem em geral, mas
durante o século vinte e as abordagens alternativas ao tempo histórico os homens em particular. Braudel admite que este nível temporal é o
que foram formuladas. mais emocionante e o mais rico em interesse humano, mas adverte
que é também o mais perigoso. Os historiadores que se deixam guiar
apenas pela baliza desse tempo individual e estão inconscientes das
Dois historiadores: Braudel e Collingwood correntes mais profundas da história irão inevitavelmente obter uma
visão distorcida e se encontrarão transportados para um mundo em
que falta uma dimensão, um mundo que é “cego” ou mesmo “bizarro”.
Fernand Braudel Braudel, entretanto, assegura a seus leitores que o mundo perigoso
Vamos começar essa visão geral dando uma olhada na da histoire événementielle é “aquele cujos feitiços e encantamentos
tentativa sem dúvida mais conhecida de repensar o tempo histórico: teremos exorcizado assegurando primeiro o mapeamento daquelas
a tese de Fernand Braudel de que a história contém uma pluralidade correntes subjacentes, muitas vezes silenciosas, cuja direção só pode
de tempos. Braudel primeiro elaborou essa idéia em sua dissertação ser discernida ao observá-las durante longos períodos de tempo”.529
La méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe As ideias sobre o tempo histórico que permanecem
II, originalmente publicado em 1949.527 No prefácio a essa obra- principalmente em um nível prático em La Mediterranée foram mais
prima ele anunciou que queria organizar sua discussão da história tarde, durante o final dos anos 1950, formulado mais explicitamente
do mundo mediterrâneo nos séculos quinze e dezesseis em torno em uma série de artigos polêmicos.530 É em um desses artigos que
de três tempos diferentes, que ele chamou respectivamente de Braudel primeiramente introduz o termo francês durée e começa a
tempo geográfico, tempo social e tempo individual. Um foco no falar sobre a longue durée, moyenne durée, e courte durée. Novamente
tempo geográfico tinha que tornar possível um inquérito sobre uma Braudel é claro sobre sua preferência pelo período mais longo de
história que dificilmente se transforma ou mesmo “quase atemporal”. tempo. Ele repete que “o curto período de tempo é o mais caprichoso
Tinha que contar a história do homem em relação ao seu entorno – e o mais ilusório de todos”, e que é amado principalmente pelos
montanhas, planícies e costas, mas também climas, estações, e mais “historiadores de outrora”.531 Para esses historiadores de ontem,
notavelmente o mar interior – “uma história cuja passagem é quase um dia ou um ano podem parecer indicadores úteis, mas para
imperceptível, [...] uma história em que toda mudança é lenta, uma os historiadores atualizados, uma mudança no tempo histórico
história de repetição constante, ciclos sempre recorrentes”.528 O
foco no tempo social serviu para revelar uma história que passa em 529 Ibid., p. 21.
“ritmos lentos mas perceptíveis”. Braudel usa essa noção para tratar 530 Estou me referindo primeiramente aos ensaios ‘Histoire et sciences sociales.
La longue durée,’ ‘Unité et diversité des sciences de l’homme,’ e ‘Histoire et sociologie,’
527 Braudel F., La méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe que originalmente apareceram entre 1958 e 1960 mas que foram coletados no livro
II. Paris, Armand Colin, 1949. No que segue citado em sua tradução inglesa: Braudel ‘Écrits sur l’histoire’ (Paris, Flammarion, 1969). Abaixo faço referência à tradução
F., The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip II (translated inglesa dessa compilação por Sarah Matthews (exceto quando indicado de outra
Sian Reynolds; 2 volumes). New York, Harper and Row, 1972-1974. forma): Braudel F., On History. Chicago, University of Chicago Press, 1980.
528 Braudel, The Mediterranean, p. 20. 531 Braudel, On History, p. 28.

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tradicional tem que acontecer. Vários historiadores, observa ele com períodos.534 Por causa de seu foco nas realidades “quase atemporais”
aprovação, já descobriram a moyenne durée. No entanto, ele lamenta da longue durée, ele nem mesmo parece acreditar na divisão absoluta
que muito poucos se concentram na longue durée, que ele vê em vigor entre passado e presente. Braudel não está impressionado pela muitas
em todo lugar na história. Para citar um exemplo de tal longue durée, vezes presumida alteridade ou estranheza do passado; para ele o
Braudel refere-se à existência de restrições geográficas: presente é pelo menos tão estranho quanto muito do passado:
Por séculos, o homem foi prisioneiro do clima, da vegetação, a história não consiste apenas em diferenças, no único
da população animal, de uma agricultura particular, de e no novo – tudo aquilo que não acontecerá duas vezes.
uma amplo equilíbrio lentamente estabelecido do qual não Ademais, o novo nunca é inteiramente novo. Ele vai de
poderia escapar sem o risco de tudo ser perturbado. Veja a mãos dadas com o recorrente e o regular.535
posição mantida pelo movimento dos rebanhos nas vidas
dos povos das montanhas, a permanência de certos setores Além disso, o presente não pode ser totalmente compreendido
da vida marítima, enraizados nas condições favoráveis também, a menos que o concebemos a partir de uma certa distância
forjadas pelas configurações particulares da costa, veja e como um composto de diferentes forças e influências. Como ele
a forma que a localização das cidades permanecem, a formula: “Cada ‘realidade’ reúne movimentos de diferentes origens, de
persistência das rotas e comércio, e toda a incrível fixidez um ritmo diferente: o tempo de hoje, alternadamente, data de ontem,
do cenário geográfico das civilizações.532
de anteontem e de todos os tempos anteriores”.536 Conseqüentemente,
Além das realidades geológicas e biológicas, Braudel a noção de passado para Braudel não parece ter uma ressonância de
discerne “elementos de permanência ou sobrevivência” similares nas ausência ou distância. Sua ideia de uma pluralidade de tempos, no
mentalidades e assuntos culturais. Admitidamente, não é uma tarefa entanto, parece romper mais notavelmente com a dependência
fácil para a profissão histórica adaptar à longue durée, e o historiador sobre um tempo que é singular e flui de forma equânime. De fato,
que quer fazê-lo, portanto, tem que estar pronto para mudar o seu quando solicitado, já em uma idade avançada, para refletir sobre sua
estilo, suas atitudes e sua forma inteira de pensar para adaptar-se a uma contribuição mais importante para a historiografia ele respondeu:
nova concepção de realidade social. Ainda, nesta fase, e apenas nesta “Meu grande problema, o único problema que eu tinha de resolver,
fase, Braudel acrescenta, “é próprio libertar-se do tempo exigente do era mostrar que o tempo se move em velocidades diferentes”.537
esquema da história, para estar fora dele e retornar posteriormente com
uma visão nova, abrasada com outras ansiedades e outras questões”.533
534 Olivia Harris fala sobre o “horror da descontinuidade” de Braudel. Harris
É claro que as concepções de história e temporalidade que O., Braudel: Historical Time and the Horror of Discontinuity. In: History Workshop
Journal, 57 (2004), pp. 161-174.
Braudel expressa são, em vários pontos, bastante atípicas para um
535 Braudel, On History, p. 67.
historiador acadêmico. Para Braudel, a história não é, evidentemente,
536 Optei aqui por uma tradução que difere levemente daquela feita por Sarah
a realidade em constante mutação que frequentemente se acredita ser. Matthews. Ela traduz a palavra francesa actualité como “evento atual” [current event],
Ao invés de conceber a história como um processo cheio de novidade mas prefiro a tradução literal “atualidade” [actuality] porque esta é mais intimamente
histórica e perda, Braudel vê principalmente intermináveis repetições relacionada à noção de “presente histórico” que o termo actualité refere-se
e estruturas estáveis que se sustentam teimosamente por longos claramente neste contexto. Na sentença original lê-se: “Chaque ‘actualité’ rassemble
des mouvements d’origine, de rythme differents: le temps d’aujourd’hui date à la fois
d’hier, d’avant-hier, de jadis”. Braudel, Écrits sur L’histoire, p. 56.
537 Citado em: Schwarz B., “Already the Past” Memory and historical time. In:
532 Braudel, On History, p. 31. Radstone S. & Hodgkin K. (eds), Regimes of Memory. London, Routledge, 2003, pp.
533 Ibid., p. 33. 135-151, 135.

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A resposta à questão do por que Braudel veio usar esses imobilidade majestosa tem tão frequentemente tocado-
conceitos distintivos de história e temporalidade ou onde exatamente me. Foi assim que eu procurei conscientemente estabelecer
sua noção particular do passado veio, pode tomar diferentes direções. a busca de uma linguagem histórica – a mais profunda que
poderia alcançar ou inventar – para apresentar as condições
Podemos referir ao objeto de estudo que tão profundamente chamou (ou no mínimo a mudança muito lenta) imutáveis que
a atenção de Braudel. O estudo de um objeto tão complexo e extenso impõe-se teimosamente a si mesmas continuamente.540
como o Mediterrâneo exigiu uma abordagem adaptada, mas no
prefácio de sua dissertação, Braudel expressou sua convicção de Exceto pela influência do Mediterrâneo como um objeto
que o mar, como ainda se pode vê-lo e admirá-lo hoje, é o melhor particular de estudo, e o fator pessoal apenas mencionado, a escolha
documento sobre a sua própria existência passada que pode ser de Braudel pela longue durée, é claro, também pode ser relacionada ao
imaginada.538 Da mesma forma, numa reflexão autobiográfica escrita contexto da escola dos Annales francesa. O programa de renovação
muito mais tarde, ele relata sua decisão de escrever uma história do historiográfica montado em torno da revista Annales, estabelecida em
Mediterrâneo como algo que amadureceu durante sua longa estada 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch, em primeiro lugar tomou a
em Argel, onde viu diariamente o “seu” mar e onde obteve vistas forma de uma crítica da história política predominante e a perspectiva
impressionantes a partir de hidroaviões voando a baixa altitude.539 A dos “grandes homens”. A rejeição da ideia de que a história é feita pela
contínua presença do mar e de outras características da paisagem do pequena elite dos grandes indivíduos foi, é claro, nem tão nova e foi
Mediterrâneo, assim, de alguma forma, veio significar a persistência compartilhada por outras correntes intelectuais naquele tempo, mas a
do passado no presente. A parte autobiográfica também provê outra original contribuição dos pioneiros dos Annales, como Paul Ricouer
explicação, ainda mais pessoal, para o desenvolvimento do conceito observa, é para ser situada na ideia que o indivíduo e o evento tem
atípico de história de Braudel e sua preferência pela longue durée que ser ultrapassados simultâneamente.541 Ao favorecer a longue durée
mais especificamente: eles poderiam ser vistos como uma resposta sobre os períodos de tempo mais curtos da histoire événementielle,
existencial aos tempos trágicos da Segunda Guerra Mundial, que Braudel foi, assim de fato, o fiel herdeiro do programa historiográfico
Braudel passou como prisioneiro de guerra na Alemanha. Os jornais original dos Annales que ele sempre reivindicou ser. Braudel também
e rádios alemãs, mas também as notícias de Londres em receptores foi leal a esse programa original quando, durante a década de 1950,
clandestinos constantemente vazavam informações sobre ocorrências argumentou que as diferentes ciências humanas e sociais tinham de
vexatórias das quais os prisioneiros queriam distanciar-se, rejeitar ou derrubar as cercas e barreiras disciplinares que os separavam para
mesmo negar. A melhor forma de manter distância dessas ocorrências formar um campo de estudo. Ele acreditava que a história e as outras
para Braudel foi acreditar que a história havia sido escrita em um nível ciências humanas e sociais compartilham um potencial “mercado
muito mais profundo: comum”, porque todos deveriam focar na “pluralidade do tempo
social” e tornarem-se conscientes da “dialética da duração”.542 Como
Escolher uma longa escala de tempo para observar foi as ciências sociais muitas vezes trabalham com noções como estrutura
escolher a posição de Deus Pai como um refúgio. Muito
longe de nossas pessoas e misérias diárias, a história foi social e frequentemente sofrem até mesmo um “horror do evento”, os
sendo feita, mudando lentamente, tão lentamente quanto historiadores podem apenas facilitar a integração interdisciplinar das
a vida antiga do Mediterrâneo, cuja perdurabilidade e
540 Ibid., p. 454.
538 Braudel, The Mediterranean, p. 17. 541 Ricoeur P., Time and Narrative. (Volume 1) Chicago, University of Chicago
539 Braudel F., Personal Testimony. In: The Journal of Modern History, 44 Press, 1990, p. 103.
(1972), 4, pp. 448-467, 452. 542 Braudel, On History, p. 26.

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suas profissões se eles reconhecerem que o passado é mais que apenas Braudel escreve,
uma massa de fatos e que essa massa não compõe toda a realidade ou tudo começa e termina com o tempo, um matemático,
toda a “profundeza da história”.543 divino tempo, uma noção facilmente zombada, externo
aos homens, ‘exógeno’, como os economistas diriam,
No contexto dessas trocas interdisciplinares nós temos empurrando os homens, forçando-os, e pintando seus
visto outra face de Braudel e sua cronosofia. Em dois artigos próprios tempos individuais com a mesma cor: isto é, de
que ele discute a relação entre história e ciências sociais, Braudel fato, o tempo imperioso do mundo.546
reclama que as ciências sociais da sua parte tendem a evadir da
Essa confiança em um tempo externo, matemático e mesmo
explicação histórica.544 De acordo com Braudel, isso acontece de
“divino” com a finalidade de proteger a história das cronosofias mais
duas maneiras quase contraditórias: por um lado alguns estudos
“liberais” das outras ciências humanas e sociais é um movimento
sociais são a-históricos porque eles levam em consideração apenas
compreensível, mas problemático. Isso requer algum questionamento
as mais “atuais” ocorrências e olham apenas para o passado mais
sério. Qual pode ser o estatuto dos três tempos de Braudel em face
recente, enquanto outros estudos sociais são a-históricos porque
ao seu último “tempo imperioso do mundo”, que claramente tende
eles transcendem o tempo completamente e fingem serem aptos a
a funcionar como um recipiente abstrato de tempo? Como pode
identificarem estruturas atemporais. Uma vez confrontado com os
o geográfico, o social e os tempos individuais de Braudel sempre
aspectos a-históricos das ciências sociais, Braudel, portanto, inicia
corretamente serem chamados “tempos” diferentes se eles todos
criticando não apenas a tendência de reduzir a realidade a uma
podem ser mensurados na mesma escala? E mais importante, o que
sucessão de eventos, mas também a tendência de trabalhar com o que
fazer da crítica de Braudel das noções de tempo e temporalidade
ele concebe ser um longo período de tempo – uma “trop longue durée”.
que descrevemos nos capítulos prévios se ele é tão rápido no
Na luta contra essa trop longue durée, Braudel re-invoca o tempo dos
realinhamento com essas noções em consequência da primeira tensão
historiadores e isso re-entra no singular como um universal. De fato,
com as cronosofias de outras disciplinas? Paul Ricouer observou
Braudel escreve, a passagem do tempo impõe a si mesma sobre todas
corretamente que existe uma “surpreendente falta de rigor” nas
as ciências humanas, mas essas outras ciências humanas muitas vezes
expressões de Braudel sobre a pluralidade dos tempos:
ignoram isso.545 A percepção do tempo dos historiadores, ele conclui,
por fim nunca pode ser aquela dos sociólogos ou filósofos, pois os Braudel não fala apenas de tempo curto e tempo longo, que
historiadores nunca permitem a si mesmos permanecerem fora do é de diferença quantitativa, mas também de tempo rápido
e lento. Falando absolutamente, a velocidade não aplica
“tempo do mundo”, que é irreversível e flui no ritmo da rotação da a intervalos de tempo mas a movimentos atravessando o
terra. Nós agora lemos que as diferentes durées são interdependentes tempo.547
e que não é tanto o tempo que é criado por nossas mentes mas a
forma que o decompomos: no fim do trabalho do historiador, todos Apesar do seu interesse ao longo da vida nas diferentes camadas da
os fragmentos do tempo são reunidos. A longue durée, a conjuntura realidade histórica, Braudel mostrou pouco interesse em explicar a
e o evento podem sem dificuldade ajustarem-se em conjunto porque relação ou interação entre essas camadas. De fato, ele nunca foi muito
elas são todas mensuradas na mesma “escala”. “Para o historiador”, além de que uma repetida referência a “dialética da duração”. Essa
falta de explicação fez as ideias de Braudel sobre tempo um objeto
543 Braudel, On History, p. 28. fértil de especulação para todos os tipos de comentadores e isso deixa
544 Ibid., p. 35. 546 Ibid., p. 48.
545 Ibid., p. 69. 547 Ricoeur, Time and Narrative (Volume 1), p. 104.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

sua amada noção de longue durée em um estado muito vulnerável.548 leitores interpretam mal os escritos sobre reconstrução subjetiva
como observações meramente metodológicas que explicam como
Talvez nós apenas criamos expectativas demais. Braudel foi,
os historiadores trabalham ou deveriam trabalhar quando estudam
afinal de contas, um historiador de puro sangue, e suas reflexões sobre
o passado. William Dray argumenta que a teoria da reconstrução
o tempo histórico foram primeiramente destinadas a serem práticas e
subjetiva envolve questões conceituais muito mais profundas e deveria
metodológicas, ao invés de filosóficas. Talvez estivéssemos errados em
ser vista primeiramente como uma reflexão epistemológica sobre
interpretar as distinções de Braudel entre um tempo geográfico, um
como o conhecimento histórico é possível.550 Dray tem razão sobre
social e um individual, ou as diferentes durées, como compreendendo
os aspectos epistemológicos da teoria da reconstrução subjetiva, mas
uma teoria do tempo histórico em vez de meramente ser “distinções
uma leitura atenta revela que essa teoria também está relacionada a um
dentro do tempo histórico”, como reivindica Lennart Lundmark.549
profundo repensar das noções de passado, história e temporalidade.
A posição ambígua de Braudel não pode prover-nos com o ponto
Para Collingwood, o passado histórico não pode estar morto ou
de partida para uma cronosofia alternativa que eu espero encontrar.
ausente; como ele coloca: “Como então re-construível, [o passado
Enquanto ela reforça um tempo externo que sincroniza e empurra
histórico] não é algo que já se encerrou”.551 Desnecessário dizer que
adiante tudo com uma mão piedosa, a cronosofia de Braudel não pode
é esse aspecto da teoria da reconstrução subjetiva que estou mais
ser usada para explicar o passado irrevogável. Ainda assim, Braudel,
interessado aqui. Antes de focar nessa concepção alternativa do tempo
foi sincera e profundamente inquietado pelo tempo irreversível da
histórico, entretanto, deixe-me dedicar um momento para discutir a
história com sua ênfase na ausência ou distância do passado, e embora
teoria da reconstrução subjetiva um pouco mais elaboradamente e
ele nunca realmente conseguiu romper inteiramente com ele, suas
explicar porque a mesma forçou Collingwood a romper com conceitos
tentativas repetidas de fazê-lo legitimaram sua inclusão nesse breve
mais tradicionais do tempo histórico.
panorama.
Collingwood, de fato, inicia sua discussão sobre a
reconstrução subjetiva levantando uma questão epistemológica.
Collingwood Como os historiadores podem, ele questiona, ter conhecimento sobre
Por uma segunda crítica do passado ausente, volto-me para o passado, dado o fato de que o passado não existe mais e assim nunca
o historiador britânico, filósofo e arqueólogo R. G. Collingwood e sua poderá ser estudado empiricamente pela percepção? A resposta de
teoria da “reconstrução subjetiva”, isto é, a teoria que os historiadores Collingwood afirma que o passado histórico só pode ser conhecido
conhecem o passado histórico através do ato de re-pensá-lo ou re- quando o historiador o re-construiu em sua própria mente.552 Para fazê-
construi-lo criticamente em suas mentes. O conceito de reconstrução lo, então, o historiador primeiro tem de distinguir entre o “exterior”
subjetiva é sem dúvida o mais conhecido mas também a parte menos e o “interior” dos eventos históricos. O exterior de um evento,
compreendida da filosofia da história de Collingwood. Muitos
550 Dray W. H., History as Re-enactment. R. G. Collingwood’s Idea of History.
548 Esta falta de explicação permitiu a Paul Ricoeur defender que o Mediterranée New York, Oxford University Press, 1995, pp. 52-54.
de Braudel, em contraste ao que ele mesmo afirmou mais tarde, desenvolveu-se em 551 Collingwood R. G., Notes on Historiography. In: The Principles of History.
torno de um enredo narrativo baseado em eventos históricos, embora diferindo do And Other Writings in Philosophy of History (ed. and intro. by W. H. Dray and W. J.
que o próprio Braudel teria compreendido sob a noção de evento. Ver: Ricoeur, Time van der Dussen). Oxford, Oxford University Press, 1999, pp. 235-250, 245.
and Narrative (Volume 1), p. 215. 552 Collingwood R. G., History as Re-enactment of Past Experience. In:
549 Lundmark L., The Historian’s Time. In: Time and Society, 2 (1993), 1, pp. Collingwood R. G., The Idea of History. Revised Edition with Lectures 1926-1928 (ed.
61-74, 62. e introdução por Jan van der Dussen) Oxford, Oxford University Press, 1993, p. 282.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Collingwood explica, inclui tudo que pode ser descrito em termos É claro, alguém poderia questionar o valor integral da ideia
de “corpos e movimentos”: “a passagem de César, acompanhado de de reconstrução subjetiva ao apontar para suas claras limitações
certos homens, através de um rio chamado Rubicão em uma data ou em situações onde ela é aplicada a eventos que não expressam um
outra”.553 O interior dos eventos, em contraste, refere-se àquilo que pensamento e assim não parece ter um “interior”. Em reação a essa
apenas pode ser descrito em termos de pensamento: “O desafio de crítica, Collingwood, no entanto, responde que o objeto real da
César às leis da República, ou o choque da política constitucional história é o res gestae, o domínio das ações humanas, e que toda ação
entre ele mesmo e seus assassinos”.554 O historiador, então, nunca humana envolve pensamento no sentido mais amplo. De fato, ele
deve focar em um dos lados do evento enquanto exclui o outro: “ele afirma que “toda história é a história do pensamento”.558 Collingwood
está interessado na travessia do Rubicão apenas em sua relação com está mais preocupado sobre duas outras possíveis objeções à sua
as leis da República, e no derramamento do sangue de César apenas teoria.559 Poder-se-ia argumentar, por um lado, que a reconstrução
em sua relação com o conflito constitucional”.555 Os eventos históricos subjetiva de um pensamento passado é impossível ao reivindicar
sempre devem ser considerados em sua completude, eles têm de ser que na história nada pode acontecer duas vezes. Ao se referir a uma
“penetrados” de tal maneira para que o pensamento subjacente possa mudança histórica abrangente ou à diferença “numérica” de diferentes
ser descoberto e “re-pensado”.556 Para fazer o enunciado acima um posições cronológicas, seria possível argumentar que a relação entre
pouco mais concreto, deixe-me reproduzir um exemplo dado pelo um pensamento reconstruído e o original é meramente uma relação
próprio Collingwood: o exemplo de um historiador imaginário que de semelhança. “Como”, poder-se-ia questionar, “pode o historiador
está lendo um certo édito de um imperador no “Código Teodosiano”: chamar os mortos à vida pela pesquisa científica?”560 Por outro lado,
Ler meramente as palavras e ser apto a traduzi-las não pode-se adotar a ideia de que uma experiência ou pensamento pode
equivale a saber sua significação histórica. Para fazê-lo ser repetida de forma idêntica, mas argumentam que essa reconstrução
ele deve enfrentar a situação com que o imperador estava subjetiva, enquanto a experiência está em questão, resulta literalmente
tentando lidar e ele deve ver por si mesmo, apenas como na identidade imediata entre o historiador e o ator histórico que ele
se a situação do imperador fosse a sua própria, como tal tenta compreender. Isso significaria efetivamente que o objeto (o
situação poderia ser tratada; ele deve ver as alternativas
possíveis, e as razões por escolher uma em vez de outra; passado) seria simplesmente incorporado no sujeito (o historiador),
e assim ele deve ir através do processo que o imperador de modo que o conhecimento resultante não seria do passado
foi ao decidir na questão particular. Desta forma, ele está em absoluto, mas do presente. Assim, Collingwood argumenta,
reconstruindo em sua própria mente a experiência do assemelhar-se-ia à notória ideia de Benedetto Croce de que toda
imperador; e apenas na medida em que faz isso ele tem história é história contemporânea.
qualquer conhecimento histórico, como distinto de um
conhecimento meramente filológico, do significado do A teoria da reconstrução subjetiva confronta assim
édito.557 Collingwood com um problema duplo: por um lado, ele deve
mostrar que alguns elementos do passado podem sobreviver para
553 Collingwood R. G., Human Nature and Human History. In: The Idea of tornar plausível sua ideia da reconstrução subjetiva, e assim negar a
History, p. 213.
554 Ibid. 558 Collingwood, Human Nature and Human History, p. 215.
555 Ibid. 559 Collingwood, History as Re-enactment, pp. 283-287.
556 Ibid. 560 Collingwood R. G., Outlines of a Philosophy of History [1928]. In: The Idea
557 Collingwood, History as Re-enactment, p. 283. of History, pp. 426-496. p. 444.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

absoluta ausência ou distância do passado. No entanto, para tornar com o “ideal”, e conclui que “Nós chamamos o passado, em si, à
plausível a ideia de que a reconstrução subjetiva pode ser usada para existência por recordar e pensar historicamente; mas nós fazemos isso
obter conhecimento do passado, ele deve traçar uma linha clara pelo desembaraçamento dele do presente em que realmente existe,
entre passado e presente, por outro lado, e deve negar a presença transformado, e re-transformando-o em pensamento naquilo que
completa do passado. Em toda sua obra, Collingwood desenvolve era”.563
vários argumentos para dirigir um curso intermediário entre uma
O problema e a solução proposta no artigo estão claramente
total ausência do passado e sua total presença, mas no nível mais
prefigurando o “problema duplo” da reconstrução subjetiva e Jan van
fundamental sua solução envolve nada menos que um radical repensar
der Dussen observa corretamente que as reflexões sobre tempo não
dos próprios conceitos de tempo e história.
apenas foram escritas um pouco anteriormente a Collingwood iniciar
O caminho mais fácil para ter uma primeira compreensão a conferenciar sobre filosofia da história, mas também poderiam ter
da visão de tempo de Collingwood é focar em um texto escrito provocado algumas das discussões nessas conferências.564Ainda assim,
em 1926 e dado o título desconcertantemente direto Algumas o artigo sobre as perplexidades é escrito em uma linguagem altamente
perplexidades sobre o tempo: com uma tentativa de solução.561 Nesse abstrata e é um texto antigo em que as ideias de Collingwood sobre
artigo, Collingwood argumenta que a concepção “ordinária” do história ainda não estavam totalmente maduras. Uma visão mais
tempo é “um tanto instável” e rejeita explicitamente a noção de um clara do conceito de história de Collingwood pode ser dada por textos
abstrato tempo vazio, a ideia de um pontilhismo temporal e aquilo que de uma data posterior em que ele tenta definir a especificidade da
ele chama de teoria do tempo da “linha reta”. Ele rejeita a tendência disciplina da história em relação às ciências naturais.
dos historiadores de “espacializar” o tempo e cair na ilusão de que o
Para Hegel, Collingwood escreve, a delineação do próprio
passado, embora não presente para nós no momento, ainda existe à
objeto do conhecimento histórico foi simples porque Hegel ainda
distância: isso seria considerar literalmente o conto de fadas sobre o
acreditava que a “transitoriedade das formas específicas” era
lugar onde todas as luas antigas são guardadas. Podemos considerar o
uma característica exclusiva da vida humana e assim ele poderia
passado como uma pré-condição necessária do presente, Collingwood
simplesmente afirmar que a natureza não tem história.565 No entanto,
afirma, mas ele não tem uma existência real (em oposição a uma
Collingwood argumenta, essa visão da natureza é derrubada pela teoria
existência ideal). Ainda assim, se reconhecermos apenas a realidade
da evolução. A concepção evolucionária da natureza, que iniciou na
do presente e negarmos toda a realidade do passado (e do futuro),
biologia e geologia, ele escreve, foi radicalizada por filósofos tais como
não poderia haver conhecimento algum do passado, e o presente, que
Bergson, Alexander e Whitehead, que levaram a sério o tempo e
“reduzido a um ponto matemático”, desapareceria completamente.
postularam a “historicidade das coisas”.566 As descobertas dos últimos
“Os termos do nosso problema”, ele escreve, “exige que, em algum
filósofos em princípio pareciam abolir a clara divisão entre processo
sentido, devemos restaurar ao passado e ao futuro a sua realidade, para
natural e histórico e pareciam converter a natureza em história. Mas
que o presente não possa ser exaurido de todo seu conteúdo”.562 A
pode isso ser verdade? É o ser da natureza de fato um ser histórico?
solução proposta por Collingwood é encontrada em um raciocínio
complexo que distingue o “ser” do “existente”, contrasta o ser “real” 563 Ibid., p. 150. (Itálico no original)
564 Introdução do editor. In: The idea of History, p. xliv.
561 Collingwood R. G., Some Perplexities about Time. With an Attempted 565 Collingwood, Human Nature and Human History, p. 211.
Solution. In: Proceedings of the Aristotelian Society, 26 (1925-1926), pp. 135-150. 566 Collingwood R. G., The principles of History. In: The Principles of History,
562 Ibid., p. 148. (Itálico no original) pp. 1-115, 58.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Não, afirma Collingwood, a tese de Hegel sobre a que acabaram de acontecer”, mas na realidade esse não é o caso.568
a-historicidade da natureza permanece, embora por outras razões que Em contraste ao passado morto da natureza, o passado histórico é
ele imaginou, tão verdadeira quanto no dia que ela foi primeiramente um passado “vivo” ou “sobrevivente”. Em uma série histórica assim
postulada. O que Alexander e Whitehead chamam de historicidade como em uma série natural existe sucessão cronológica, mas em
pode na melhor das hipóteses ser chamada “pseudo-historicidade”. contraste à última não existe nenhum “cessar de ser”, Collingwood
A confusão sobre a alegada historicidade da natureza reside na má argumenta. O passado histórico pode sobreviver no presente porque o
compreensão que reduz historicidade à “mudança” ou “qualidade mesmo envolve pensamento humano e enquanto atos de pensamento
cronológica”. A história real, no entanto, de acordo com Collingwood, acontecem em tempos definidos, Collingwoood afirma, parte do
nunca pode ser reduzida a uma mera “sequência temporal” ou a mera pensamento permanece fora do tempo. Uma vez que algo é pensado,
sucessão de eventos. Em contraste ao processo natural, em que o isso tende a tornar-se um “objeto eterno” – Collingwood toma
passado “morre” quando o mesmo é substituído pelo presente, uma emprestado esse conceito de Whitehead – que sobrevive através do
parte do passado sobrevive no presente em processo histórico. Para tempo:
colocar na linguagem filosófica um pouco antiquada de Collingwood Se a descoberta de Pitágoras a respeito do quadrado da
mas ainda assim direta: hipotenusa é um pensamento que hoje podemos pensar
A natureza é o reino da mudança, o Espírito é o reino do por nós mesmos, um pensamento que constitui uma
vir a ser. A vida do espírito é uma história: i.e., não um adição permanente ao conhecimento matemático, a
processo em que tudo vem a ser e morre, mas um processo descoberta de Augusto, de que uma monarquia poderia
em que o passado é conservado como um elemento no ser enxertada sobre a constituição republicana de Roma
presente. O passado não é meramente uma pré-condição desenvolvendo as implicações de proconsulare imperium
do presente, mas uma condição do mesmo. Enquanto e tribunicia potestas, é igualmente um pensamento que o
na natureza o passado foi necessário para que o presente estudante da história romana pode pensar por si mesmo,
pudesse existir agora (por exemplo, deve ter havido um uma adição permanente às ideias políticas. Se o Sr.
ovo que pode agora ser uma galinha) o passado sendo Whitehead é justificado em chamar o triângulo retângulo
assim deixado para trás quando o presente vem a ser, um objeto eterno, a mesma frase é aplicável à constituição
na história, na medida que se trata de história real e não romana e à modificação augustina dela.569
meramente sequência temporal, o passado conserva a si É esta sobrevivência ou mesmo a eternidade do pensamento
mesmo no presente e o presente não poderia estar ali a não
ser que o passado o fizesse.567
que, de acordo com Collingwood, torna possível a reconstrução
subjetiva, e sem ela, ele afirma, não poderíamos ter conhecimento do
Com demasiada frequência, questiona Collingwood, as passado ou compreensão do mundo mental de pessoas que viveram
pessoas falam sobre história como se isso fosse a mesma coisa que em outros tempos
transitoriedade, dizendo que alguma coisa é de “interesse meramente
histórico” para expressar a ideia que isso “morreu”. Ele admite que ele No entanto, com esse raciocínio sofisticado sobre o
mesmo no passado descreveu a história como a narração dos “eventos pensamento ser um objeto eterno, Collingwood ainda não tinha
providenciado uma resposta à segunda crítica potencial que ele
567 Collingwood R. G., Notes toward a Metaphysic. In: The Principles of mesmo antecipou: que a eternidade do pensamento colapsa a divisão
History, pp. 119-139, p. 130. (Itálico no original). Note-se que Collingwood no artigo
“Perplexidades” ainda mantém a visão que o passado geralmente pode ser visto como
uma pré-condição do presente; ele não tinha ainda feito explicitamente a diferenciação 568 Collingwood, Notes on Historiography, p. 245.
entre um passado natural e um passado histórico. 569 Collingwood, Human Nature and Human History, p. 218.

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entre o passado e o presente e que um pensamento re-construído mística, e de fato leva Collingwood a fazer algumas declarações
então apenas pode fornecer conhecimento do presente. Collingwood bastante obscuras. Tomemos o seguinte exemplo:
procura uma solução para esse problema pela diferenciação entre o A condição de [o passado] ser assim cognoscível é que ele
que ele chama o “objeto” do pensamento e o “ato” do pensamento. vive em nós. Podemos conhecer a conquista normanda
Vários atos de pensamento, mesmo quando separados no tempo, porque, sendo seus herdeiros, a temos em nossas mentes
podem ter o mesmo objeto (sobrevivente) do pensamento, mas (em nossa consciência política) como um elemento
esses atos de pensamento sempre acontecem em um contexto integral.572
concreto e como uma parte orgânica da vida do pensador. É por Segundo, há a questão do idealismo filosófico. As reflexões
causa desse contexto mudado que uma reconstrução subjetiva de Collingwood sobre tempo e história estão profundamente
pode reflexivamente ser reconhecida como histórica. Como coloca incorporadas em uma filosofia (neo)idealista de puro sangue.
Collingwood: “A resposta é que re-construir subjetivamente o a sobrevivência do passado no presente, como a existência
passado no presente é re-construi-lo em um contexto que lhe dá de qualidades secundárias, é algo que realmente acontece
uma nova qualidade”.570 Em termos abstratos, então, a solução no mundo, mas não acontece exceto quando o mundo
de Collingwood para o que chamamos acima de duplo problema alcança o nível do espírito [mind] em seu processo
da reconstrução subjetiva situa-se em uma visão metafísica da evolucionário. Até então, é uma mera virtualidade: o
temporalidade histórica que ele descreve como uma “eternidade no passado é como se fosse morto por uma morte natural –
ele morre lutando – ele descobre como triunfar sobre o
tempo”. Nas palavras de Collingwood: Tempo e faz-se imortal tornando-se Espírito ou criando a
O eterno, na história, tem essa peculiaridade, que começa Espírito como seu preservador.573
no tempo. O histórico é eterno como in aeternum, não
como ex aeterno. O ser histórico triunfa ao longo do tempo Certamente, o idealismo de Collingwood é engenhoso: o
no sentido de que se torna eterno: mas torna-se eterno mesmo geralmente estende o domínio do ideal apenas para as esferas
não na sua realidade (como forma encarnada), pois aqui, do pensamento humano. Ainda assim, a conexão com o pensamento
porque encarnado, perece: mas na sua idealidade (como e a consciência humana faz o pensamento de Collingwood bastante
forma desencarnada).571 restritivo. É de se duvidar se o fenômeno do irrevogável pode ser
Ninguém, eu presumo, negará que a teoria de Collingwood compreendido adequadamente a partir dessa estrutura intelectual. O
da reconstrução subjetiva e as noções relacionadas de objetos eternos passado assombroso como identificamos nos casos da Argentina, da
e um passado sobrevivente constituem uma saída bastante radical África do Sul e de Serra Leoa dificilmente podem ser comparados a
da noção de passado ausente. Mesmo assim, há alguns aspectos das categorias de pensamento e conhecimento (por exemplo, um triângulo
reflexões filosóficas de Collingwood que faz delas menos atraentes retângulo, a constituição romana) que Collingwood se refere para
como base para teorizar o passado irrevogável. Primeiramente pode- ilustrar a sua teoria da reconstrução subjetiva e consequentemente
se questionar se realmente faz sentido falar sobre uma “eternidade no a persistência do primeiro não pode simplesmente ser modelada na
tempo”. O que a eternidade pode significar além de “não vinculado eternidade dos últimos “objetos ideais”. Em geral, a reivindicação
pelo tempo” ou mesmo “fora do tempo”? A ideia tem uma aura de que “toda a história é a história do pensamento”, apenas pode
ser mantida se a noção de histórico estiver estritamente delimitada.
570 Collingwood, Outline of a Philosophy of History, p. 447.
571 Collingwood, Notes on the History of Historiography and Philosophy of 572 Ibid.
History. In: The Principles of History, pp. 219-234, 222. (Itálico no original) 573 Collingwood, Notes towards a Metaphysic, p. 132. (Itálico no original)

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Se seguimos Collingwood, portanto, corremos o risco de terminar Ernst Bloch


com uma visão mais exclusiva da realidade histórica em vez de uma
O filósofo alemão Ernst Bloch foi um pensador bastante
visão mais inclusiva. Muito mais pode ser escrito sobre a cronosofia
singular na tradição marxista. Embora durante a maior parte de sua
de Collingwood – sobretudo sobre sua mais ampla filosofia da
longa vida (1885-1977) um fiel apoiador do leninismo e da Revolução
história, cuja riqueza não pode ser dada devidamente aqui – mas as
Russa, Bloch desenvolveu uma filosofia altamente idiossincrática e
características apenas resumidas indicam que a teoria da reconstrução
dificilmente poderia ser chamado de marxista ortodoxo.575
subjetiva provavelmente não irá fornecer a cronosofia alternativa que
procuramos. No nível mais fundamental, as diferenças de Bloch com o
marxismo ortodoxo giravam em torno de dois pontos: primeiro, a
sua filosofia da história e, em segundo lugar, a sua noção intimamente
Dois marxistas: Ernst Bloch e Louis Althusser relacionada de “totalidade”. Embora ele mesmo acreditasse no eventual
advento do socialismo, Bloch rejeitou as crenças evolucionárias dos
As duas próximas cronosofias alternativas que discutirei
marxistas ortodoxos que pensavam que esse advento do socialismo
estão situadas no campo da análise social e política marixsta. Essa
era garantido por um conjunto de leis históricas rigorosas que
presença marxista em nossa procura por noções alternativas de
determinam a sucessão de diferentes estágios históricos. Além
tempo histórico não deve surpreender, pois o marxismo sempre
disso, Bloch também criticou o marxismo ortodoxo por sustentar
engajou-se profundamente nas análises dos processos históricos
uma noção empobrecida do todo social, em que tudo era reduzido
e em problemas relacionados à filosofia da história. Embora isso
à dimensão singular da produção econômica. De acordo com Bloch,
possa soar estranho, um dos mais difíceis problemas intelectuais
havia realidades mais primordiais do que a economia e a política, e ele
do marxismo, como Oskar Negt observa corretamente, tem sido
reclamava que muitos marxistas não deixavam espaço para o utópico,
o desenvolvimento de uma concepção materialista da história
o misterioso ou o oculto porque viam a realidade como uma totalidade
adequada: frequentemente as análises históricas marxistas foram
completamente imanente, homogênea e concreta.576
moldadas em um quadro hegeliano, que trata a história como uma
inflexível sequência de épocas que substituem ou “negam” uma à Essas críticas do evolucionismo e da redução da realidade
outra em um processo dialético singular e unívoco.574 As cronosofias a um conjunto de essências socioeconômicas reúnem-se em
de Ernst Bloch e Louis Althusser que irei discutir em breve são um dos mais importantes conceitos filosóficos de Bloch: o de
ambas o resultado de uma crítica eminentemente interna que visa Ungleichzeitigkeit, ou “não-contemporaneidade”.577 Em uma forma
purificar o marxismo da noção hegeliana de dialética e substituí-la mais ou menos implícita, essa noção retornou durante a maior parte
por uma compreensão mais sofisticada da história. No entanto, por da carreira intelectual de Bloch. Já em sua primeira obra filosófica
causa das ligações íntimas entre aspectos da filosofia hegeliana e a
corrente principal do pensamento histórico ocidental, as reflexões 575 Geoghegan V., Ernst Bloch. London, Routledge, 1996.
de Bloch e Althusser são de relevância direta para a historiografia 576 Jay M., Marxism and Totality. The Adventures of a Concept from Lukács to
acadêmica e o pensamento histórico em geral. Habermas. Cambridge, Polity Press, 1984, pp. 180-182.
577 Várias traduções do termo Ungleichzeitigkeit estão em uso: algumas falam
sobre “não-contemporaneidade”, outras sobre “não-sincronismo”, e outras ainda
sobre “não-simultaneidade”. Para cada uma dessas traduções, uma quantidade igual de
574 Negt O., The Non-Synchronous Heritage and the Problem of Propaganda. argumentos pró e contra podem ser encontrados. Optei por não-contemporaneidade
In: New German Critique, (1976), 9, pp. 46-70, 59. simplesmente porque é mais comumente usado.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

importante O Espírito da Utopia (publicada em 1918), o conceito foi uma “’herança’ dialeticamente útil”, que foi graciosamente usurpada
definido para funcionar na defesa da energia utópica da arte. O artista pelo fascismo, mas permaneceu não reivindicada pelo marxismo.583
verdadeiro, de acordo com Bloch, produz um excedente utópico
Essas percepções, no entanto, exigiram uma grande
porque ele(a) é “inatual” [unzeitgemäss] e em seu gênio transcende a
reconsideração das concepções marxistas ortodoxas do tempo e
contemporaneidade que comumente une as pessoas.578 Em meados da
da história. Para compreender a ascensão do fascismo, deveria-se
década de 1920, a noção de não-contemporaneidade implicitamente
reconhecer que havia algo como a genuína não-contemporaneidade
figurou em uma polêmica entre Bloch e seu colega marxista Georg
histórica. Como afirma Bloch:
Lukács. Bloch criticou Lukács por sustentar uma noção reducionista
da realidade histórica e por negligenciar o potencial utópico inerente A história não é uma entidade avançando ao longo de
uma única linha, na qual o capitalismo, por exemplo,
à natureza “polirrítmica” da história.579 Muito mais tarde, na década como etapa final, resolveu todas as anteriores; mas é
de 1960, Bloch baseou-se na noção de não-contemporaneidade para uma entidade polirrítmica e multi-espacial, com recantos
criticar a ideologia unilinear e o “tempo-fetichista” do progresso.580 não dominadas epor enquanto ainda não revelados e
Sua teorização mais explícita da não-contemporaneidade, no entanto, resolvidos. Hoje, nem mesmo as subestruturas econômicas
pode ser encontrada em seu livro Erbschaft dieser Zeit [Herança dessa nesses recantos, isto é, as formas obsoletas de produção
época], publicado em Zurique em 1935, no qual ele estabeleceu uma e troca, morreram, muito menos as suas superestruturas
ideológicas, muito menos o conteúdo genuíno de uma
análise da ascensão do fascismo alemão que diferia fortemente da Irratio ainda não definida.584
maioria das análises marxistas ortodoxas na época.581
Em linha com essa tese, Bloch afirma que
Herança dessa época, como observa Anson Rabinbach,
está organizado em torno de duas questões heterodoxas: primeiro, nem todas as pessoas existem no mesmo agora. Eles fazem
isso apenas externamente, pelo fato de que eles podem ser
poderia ser verdade que em um país como a Alemanha existissem vistos hoje. Mas eles não estão simplesmente, deste modo,
profundas contradições sociais, além da relação entre trabalho e vivendo ao mesmo tempo com os outros.585
capital ou proletariado e burguesia?582 E segundo, poderia ser dito que
a esquerda facilitou sua própria derrota negligenciando essas outras Dependendo de onde estão situadas e de quais classes pertencem, as
contradições e deixando as suas forças anticapitalistas aos fascistas? pessoas podem viver em tempos diferentes:
Bloch responde ambas as questões com um “sim” de todo coração! Os tempos mais antigos que os modernos continuam
Segundo ele, a sociedade alemã na década de 1920 e começo de 1930 a ter um efeito em estratos antigos [...] Vários anos em
geral pulsam naquele que está apenas sendo contado e
estava sujeita a uma multidão de contradições sociais que constituíam prevalece.586
578 Durst D. C., Ernst Bloch’s Theory of Nonsimultaneity. In: The Germanic Bloch relata a existência de pelo menos três grandes grupos
Review, 77 (2002), 3, pp. 171-194. não-contemporâneos na Alemanha entre guerras, todos atraídos para
579 Jay, Marxism and Totality, p. 182. a extrema direita. Primeiro, há a juventude, cujo “vazio de ser-jovem”
580 Bloch E., A Philosophy of the Future. New York, Herder and Herder, 1970,
pp. 120-122.
583 Bloch, Heritage of Our Times, pp. 1-2.
581 No que se segue, citarei a tradução inglesa por Neville e Stephen Plaice:
Bloch E., Heritage of Our Times. Cambridge, Polity Press, 1991. 584 Ibid., p. 62. (Itálico no original)
582 Rabinbach A., Unclaimed Heritage. Ernst Bloch’s Heritage of Our Times 585 Ibid., p. 97.
and the Theory of Fascism. In: New German Critique, 11 (1977), pp. 5-21, 5-6. 586 Ibid.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

não está inteiramente presente. Bloch admite que não há juventude Enquanto algumas das características descritas
como tal e que isso difere de classe para classe e de período para acima possam ser chamadas de mero atraso ou falsa não-
período, mas afirma que os jovens em seu desejo de escapar do presente contemporaneidade, Bloch argumenta que deve-se prestar
reificado muitas vezes são mais atraídos para a direita reacionária atenção à real e genuína não-contemporaneidade. Para entender
do que para a esquerda progressista: “A juventude que não está em porque a não-contemporaneidade pode ser tão politicamente
sintonia com o agora estéril mais facilmente retrocede do que atravessa explosiva, deve-se compreender que existem de fato dois tipos de
o hoje para alcançar o amanhã”.587 Outro grupo não-contemporâneo não-contemporaneidade: uma objetiva e uma subjetiva. A não-
é o do campesinato, que ainda vive e age quase exatamente como seus contemporaneidade objetiva refere-se aos remanescentes de épocas
antepassados fizeram séculos atrás. “Economica e ideologicamente”, anteriores, pré-capitalistas, ou sub- e superestruturas que sobrevivem
escreve Bloch, “os camponeses, no meio do veloz século capitalista, no presente. A não-contemporaneidade subjetiva, em contraste,
têm uma posição mais antiga”.588 Enquanto a diferença de tempo entre refere-se a um “não-desejo para o agora” que, após ter existido por um
a cidade e o país não for apagada, Bloch afirma, esse grupo também longo tempo como mero amargor, pode transformar-se em uma raiva
não se associará com os trabalhadores e será primeiramente atraído acumulada. Essa raiva subjetiva é especialmente perigosa se encontra
pela direita “romântica”. O terceiro grupo não-contemporâneo é o ou ativa objetivamente contradições não-contemporâneas. Em vez
da classe média empobrecida, que é nostálgica sobre o período pré- de interpretar erroneamente o fascismo como uma mera expressão
guerra quando as condições eram melhores. A estranha nostalgia superestrutural do último e moribundo estágio do capitalismo
revolucionária desse grupo inseguro, questiona Bloch, “coloca figuras monopolista, Bloch lança assim um chamado urgente para prestar
no meio da cidade que não são vistas há séculos”, e, novamente, ele atenção às contradições não-contemporâneas e mobilizá-las contra o
assevera, essa não-contemporaneidade é atraída para o fascismo. capitalismo e o fascismo:
Como ele descreve esse trágico processo: A tarefa é libertar aqueles elementos, até mesmo da
Formas mais antigas de ser, portanto, recorrem contradição não-contemporânea, que são capazes de
precisamente em termos urbanos, um modo de pensar e aversão e transformação, nomeadamente aquelas hostis
imagens mais antigas de ódio também, como a usura judaica ao capitalismo, desabrigados nele, e remontá-los para
enquanto a exploração em si. Acredita-se que a quebra funcionar em uma conexão diferente.590
do “arrendamento feudal” ocorreu como se a economia
estivesse em torno do ano de 1500, as superestruturas
O proletariado tem que formar uma “tripla aliança” com os
que pareciam revolucionadas há muito tempo vieram camponeses empobrecidos e as classes médias empobrecidas – ambos
revolvendo-se novamente e ficaram paralisadas no mundo sob a hegemonia proletária, é claro. Para que as contradições não-
de hoje como cidades medievais inteiras. Aqui é a Taberna contemporâneas sejam dominadas e uma tripla aliança seja formada,
do Sangue Nórdico, ali o castelo do Duque Hitler, ali a no entanto, a noção marxista frequentemente simplista de dialética
Igreja do Reich Alemão, uma Igreja terrena na qual até tem de ser substituída por uma noção mais complexa de uma dialética
mesmo as pessoas da cidade se sentem como um fruto
do solo alemão e adoram o solo como santo, como uma em multicamada ou polirrítmica que reconhece o fato de que os
confissão de heróis alemães e da história alemã.589 estágios históricos prévios nunca estão completamente “resolvidos”
em outros mais recentes, e que aspectos do passado podem sobreviver
587 Bloch, Heritage of Our Times, pp. 99. no presente.
588 Ibid., p. 101.
589 Ibid. 590 Ibid., p. 113.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Louis Althusser noções simplistas e “não-marxistas” da dialética e da totalidade em


uma crítica do tempo histórico. Novamente Hegel é o principal objeto
Seria difícil pensar em qualquer intelectual marxista que
da crítica. O tempo hegeliano tem duas características essenciais:
fosse mais oposto a Ernst Bloch em estilo e pensamento do que o
sua “continuidade homogênea” e sua “contemporaneidade”, que
filósofo francês nascido na Argélia Louis Althusser (1918-1990). No
subjaz a noção de um presente histórico. 594 O segundo aspecto é
entanto, assim como Bloch, Althusser criticou as noções simplistas
mais fundamental e funciona como uma condição de possibilidade
de dialética e as noções reducionistas de totalidade social, que ele
para o primeiro. A noção de contemporaneidade do tempo, segundo
similarmente relacionou a noções de tempo. Os conceitos de dialética
Althusser, está enraizada em um “congelamento metafísico” do
e tempo de Hegel são o objeto principal da crítica de Althusser.
continuum temporal. Essa operação intelectual, onde se faz uma
Com demasiada frequência, Althusser questiona, pensa-se incisão vertical em um momento no tempo para revelar um presente
que o marxismo resultou de uma inversão do hegelianismo, que o histórico, ele chama de um “corte essencial” [coupe d’essence].
idealismo de Hegel, por assim dizer, colocou a realidade em sua cabeça Althusser argumenta que esse corte essencial somente é pensável
e que o materialismo de Marx colocou-a em seu pé novamente. Essa em combinação com uma concepção particular de totalidade social
ideia ambígua de “inverter Hegel”, segundo Althusser, é problemática, – uma “na qual todos os elementos da totalidade são dados em
particularmente se ela é aplicada à noção de dialética. De fato, afirma uma co-presença [...]” – e que, como tal, é altamente ideológico.595
Althusser, uma noção genuinamente marxista de dialética, mais que O caráter ideológico do conceito de tempo de Hegel preocupa
meramente inverter a dialética de Hegel, é radicalmente diferente em Althusser principalmente porque Hegel o tomou emprestado de
sua natureza.591 um “empirismo vulgar” que ainda subjaz o trabalho da maioria dos
A partir da experiência revolucionária marxista, escreve historiadores e cientistas sociais. Uma das manifestações mais claras
Althusser, sabe-se que não se pode falar sobre uma única “contradição” de sua problemática concepção de história, afirma Althusser, pode ser
social geral. Em vez disso, uma vasta acumulação de contradições encontrada na distinção bastante difundida entre o “sincrônico” e o
sociais heterogêneas vem desempenhar “no mesmo tribunal” em “diacrônico”.
todas as sociedades. Para Althusser, a análise marxista mostra, Uma vez que uma concepção verdadeiramente marxista
portanto, que a história das formações sociais está principalmente da totalidade social não deve ser confundida com a ideia hegeliana de
“sobredeterminada”.592 A dialética hegeliana, ao contrário, não inclui uma totalidade “espiritual” unificada, assim também, de acordo com
tal noção de sobredeterminação e trabalha com um simples conceito Althusser, uma noção marxista do tempo histórico deve ser distinguida
de contradição. Segundo Althusser, essa contradição pode assumir sua de uma hegeliana.596 Alinhada com o fenômeno da sobredeterminação, a
forma simples apenas porque se baseia nos pensamentos ainda mais totalidade marxista é um “todo estruturado” complexo, que é composto
simplistas de Hegel sobre a unidade essencial dos períodos históricos. por “níveis relativamente autônomos” e que não pode ser reduzido ao
Hegel, ele critica, reduz a diversidade infinita das sociedades históricas
postulando a existência da simples unidade ou totalidade espiritual.593 594 Althusser L. & Balibar E., Reading Capital. London, Verso, 1979, p. 94.
595 Ibid., p. 94. (Itálico no original)
Assim como Bloch, Althusser transforma sua crítica das
596 Dever-se-ia, é claro, não aceitar necessariamente a leitura de Althusser
591 Althusser L., For Marx. London, NLB, 1977, p. 93. (Itálico no original) sobre a relação intelectual entre Hegel e Marx. Alvin Gouldner, por exemplo, em
contraste a Althusser, enfatiza que a noção de Marx de totalidade foi modelada depois
592 Althusser tomou empresetado essa noção de Freud. Ibid., p. 101. do exemplo de Hegel. Gouldner A., Against Fragmentation. New York: Oxford
593 Ibid. University Press, 1985, p. 271.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

primado de um centro. Isso tem conseqüências teóricas significativas. exceto seu uso epistemológico, sob a condição de que ela
Mais importante, a existência dessa totalidade estruturada não pode sofra uma conversão teórica e seja considerada em seu
mais ser compreendida com as noções de senso comum de um presente verdadeiro sentido como uma categoria não do concreto
mas do conhecimento.599
histórico ou contemporaneidade. De fato, Althusser rompe radicalmente
com a noção de um tempo singular, contínuo e homogêneo, e, em vez Após a rejeição da contemporaneidade e da continuidade
disso, postula uma pluralidade de tempos: homogênea do tempo, e após a dissolução da oposição sincronia/
não é mais possível pensar o processo de desenvolvimento diacronia, é necessário concluir, argumenta Althusser, que não se
dos diferentes níveis da totalidade no mesmo tempo histórico. pode falar de uma História singular, mas em vez disso deve-se falar de
Cada um desses diferentes “níveis” não tem o mesmo tipo uma série irredutível de histórias ou “estruturas de historicidade”.600
de existência histórica. Pelo contrário, devemos atribuir Aqui, então, somos confrontados com uma cronosofia que quebra
a cada nível um tempo peculiar, relativamente autônomo com a dicotomia passado/presente e parece permitir-nos pensar
e, portanto, relativamente independente, mesmo em sua
a persistência do passado no presente. É claramente assim que o
dependência, dos “tempos” de outros níveis. Podemos
e devemos dizer: para cada modo de produção há um próprio Althusser pensa sobre sua crítica. A prática política marxista,
tempo e uma história peculiares, pontuados de uma forma ele argumenta, é frequentemente confrontada com a sobrevivência do
específica pelo desenvolvimento das forças produtivas; as passado: “Não pode haver dúvida de que essas sobrevivências existem
relações de produção têm seu tempo e história peculiares, – elas se agarram tenazmente à vida”.601 Embora o termo sobrevivência
pontuados de uma maneira específica; a superestrutura seja frequentemente usado, o fenômeno mesmo, Althusser lamenta,
política tem sua própria história...; a filosofia tem seu
próprio tempo e história...; as produções estéticas têm seu permanece virtualmente não investigado. O fenômeno merece mais
próprio tempo e história...; as formações científicas têm que seu destino conceitual no hegelianismo, onde é tratado como
seu próprio tempo e história, etc.597 mera “supressão” – a “manutenção-do-que-tem-sido-negado-em-
sua-própria-negação”. Segundo Althusser, um olhar é suficiente
Com essa rejeição da contemporaneidade histórica, a
para ver que a sobrevivência do passado “suprimido” (aufgehoben)
oposição sincronia/diacronia, é claro, também se dissolve. Algo dessa
em Hegel é reduzida a uma simples modalidade de memória e que,
oposição permanece, certamente, na medida em que ela é compreendida
como tal é um passado “pré-digerido” que nunca forma realmente um
para ser o reflexo de uma mera “operação epistemológica” que tenta
obstáculo ou ameaça.
pensar a articulação complexa de diferentes temporalidades. Contudo,
a noção de sincronia não deve ser confundida com a presença temporal A noção de superação de Marx, argumenta Althusser, era
ou histórica de um objeto real.598 Uma vez que a noção de diacronia é claramente diferente daquela sustentada por Hegel, pois
construída sobre a noção de sincronia, conclusões similares devem ser “seu passado não tinha sombra, nem mesmo uma sombra
alcançadas: “objetiva” – mas uma realidade estruturada terrivelmente
A diacronia é reduzida à seqüência de eventos (à positiva e ativa, assim como o frio, a fome e a noite são
l’événementiel) e aos efeitos dessa seqüência de eventos para o trabalhador pobre”.602
sobre a estrutura do sincrônico [...] Uma vez que a
sincronia foi corretamente localizada, a diacronia perde 599 Ibid., p. 108. (Itálico no original)
seu sentido “concreto” e nada é deixado de ambas, 600 Ibid.
597 Ibid., p. 101. (Itálico no original) 601 Althusser, For Marx, p. 114.
598 Ibid., p. 107. (Itálico no original) 602 Ibid., p. 115.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

A realidade da sobrevivência, de acordo com Althusser, tem de Se esse tempo de referência ideológica é reintroduzido, ele se tornará
ser novamente relacionada com a sobredeterminação, que explica em breve irresistível tratar o deslocamento de tempos diferentes como
que uma revolução na estrutura de uma sociedade não modifica formas de atraso ou avanço no tempo.
imediatamente as superestruturas existentes dessa sociedade, ou que
Lamentavelmente, a própria filosofia de Althusser não está
as revoluções podem mesmo assegurar sobrevivências ou a reativação
livre de ambigüidades nessa mesma questão. Apesar de sua ênfase na
de “elementos mais antigos”. Como ele observa em um clima poético:
sobredeterminação e na pluralidade de tempos, Althusser sustenta
na história, as superestruturas
que, no fim das contas, esses tempos são apenas “relativamente”
nunca são vistas a se afastar respeitosamente quando seu autônomos, e que sua co-existência está fixada em “última instância”
trabalho é concluído ou, quando o Tempo chega [...] para pelo “nível” ou “instância” da economia.605 Martin Jay explica
dispersar ante Sua Majestade a Economia enquanto ele
avança ao longo da estrada real da Dialética.603 esse estranho movimento filosófico como uma tentativa de evitar
acusações de pluralismo não-marxista que poderia de outra forma
De fato, ele argumenta, toda a lógica da superação tem de ser resultar da sua teoria da sobredeterminação.606 Mas mesmo apesar
abandonada se se quer compreender o fenômeno da sobrevivência, do fato de que ele acrescenta a qualificação de que “a hora solitária
mas mesmo assim, ele admite, muito trabalho teórico ainda há que da ‘última instância’ nunca chega”,607 a recaída de Althusser no
ser feito. determinismo econômico levanta sérias questões sobre sua teoria
Em sua crítica teórica, Althusser prova estar bem ciente do tempo diferencial. Se, apesar de sua “complexidade estruturada”,
da maioria das armadilhas potenciais que impediram alguns de seus existir tal coisa como um centro ou essência da totalidade social, no
predecessores em seus caminhos. Uma vez que se rejeitou o modelo fim das contas a reintrodução de um “tempo base” (economicista)
ideológico de um tempo contínuo que pode ser dissecado em presentes ou “tempo de referência” não pode ser evitada. Certamente, a
históricos contemporâneos, ele explica, é importante não substituí-lo reintrodução de um tal tempo de referência economicista não torna
por outro tempo ideológico. Portanto, é necessário resistir à tentação necessariamente inconsistente a cronosofia de Althusser, uma vez que
de relacionar a pluralidade de tempos diferentes a um único “tempo ela não pode ser equiparada ao tempo ideológico hegeliano como uma
base” ideológico ou instalar um tipo de “tempo de referência” contra série homogênea de presentes contemporâneos. Entretanto, é difícil
o qual o deslocamento de outros tempos seriam então mensurados. ver como se poderia prevenir esse tempo de referência de mensurar
Isso é exatamente o que, de acordo com Althusser, sucedeu de todos os deslocamentos temporais em termos de avanço ou atraso – e,
errado com as reflexões cronosóficas de alguns dos historiadores dos portanto, de tornar-se alocrônica?
Annales – Lucien Febvre, Ernest Labrousse, e mais notavelmente O mesmo problema surge ainda em um grau mais elevado na
Fernand Braudel. Eles observaram corretamente que existiam tempos cronosofia de Ernst Bloch, sobre a qual, por razões explicativas, adiei
diferentes na história, mas eles foram a minha crítica. Bloch também, apesar de toda sua retórica sobre uma
tentados a relacionar essas variedades, como tantas dialética em multicamadas e polirrítmica, não pode resistir à sedução
variáveis mensuráveis por sua duração, ao tempo
ordinário em si, ao tempo ideológico contínuo que temos 605 Ibid.
discutido.604 606 Jay, Marxism and Totality, p. 407. De fato, essa acusação de subverter a
noção marxista de totalidade foi formulada contra Althusser por E. P. Thompson.
603 Althusser, For Marx, p. 113. Thompson E. P., The Poverty of Theory. London, Merlin, 1978, p. 289.
604 Althusser & Balibar, Reading Capital, p. 96. (Itálico no original) 607 Althusser, For Marx, p. 113.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

reducionista. Apesar de seu reconhecimento de que uma pluralidade sempre ao lado um do outro. Aqui pode ser bom parar por um
de antagonismos sociais de peso podem funcionar entre proletários e momento e dar uma olhada em uma importante crítica e advertência
burgueses, o peso dos primeiros, para Bloch, nunca pode igualar ao dos que o antropólogo Johannes Fabian expressou sobre a noção de uma
últimos.608 Os restos da ontologia política reducionista estão claramente não-contemporaneidade do contemporâneo, ou em suas palavras,
refletidos na cronosofia de Bloch, que, devemos agora mencionar, uma “negação do coetâneo”. Em seu livro inovador “O Tempo e o
inclui também, exceto para o não-contemporâneo objetivo e subjetivo, Outro”, Fabian demonstra de modo convincente como a antropologia
as categorias do contemporâneo objetivo e subjetivo. As contradições usa uma política do tempo para constituir seu objeto de pesquisa – o
não-contemporâneas têm uma força utópica e revolucionária, escreve outro.612 De acordo com ele, o tempo no discurso antropológico quase
Bloch, invariavelmente foi usado para separar o observador do observado. Na
mas a contradição não-contemporânea subjetiva nunca antropologia, ele escreve, existe “uma tendência persistente e sistemática
seria tão aguda, nem a contradição não-contemporânea para colocar o(s) referente(s) da antropologia em um Tempo diferente do
objetiva tão visível, se não existisse um contemporâneo presente do produtor do discurso antropológico”.613 O uso de uma série
objetivo, a saber, aquela postulada e crescente no e com o de “dispositivos de distanciamento” temporais produz um resultado
próprio capitalismo moderno.609 global negativo porque tende a representar a distribuição espacial da
Com base nessa noção do objetivamente contemporâneo, Bloch é humanidade como uma seqüência evolucionária no tempo, de modo
capaz de reivindicar que a linguagem comunista “é de fato totalmente que todas as culturas que não pertencem ao Ocidente venham a ser
contemporânea e precisamente orientada para a economia mais vistas como arcaicas ou “atrás” no tempo. “Em suma”, ele escreve, “a
avançada”.610 Apesar das visões positivas do não-contemporâneo que geopolítica tem suas fundações ideológicas na cronopolítica”. Embora
Bloch inicialmente sustentou, e apesar de suas advertências para não Fabian reconheça as dimensões potencialmente emancipatórias
confundir o não-contemporâneo com mero atraso, é difícil ignorar da apropriação de tempos diferentes, ele enfatiza primeiramente,
o fato de que essa ideia de atraso é a principal associação em “última portanto, que a negação do coetâneo pode funcionar como uma
instância”.611 condição de dominação. Além disso, ele reivindica que a capacidade
“alocrônica” do discurso antropológico está diretamente relacionada
As reflexões cronosóficas de Bloch, de fato, são lembradas
à sua origem em uma construção intelectual aparentemente “neutra”
primeiramente na forma da expressão curta e paradoxal que afirma
do tempo naturalizado e espacializado.
a “não-contemporaneidade do contemporâneo” [Ungleichzeitigkeit
des Gleichzeitigen]; uma expressão que levanta a questão de saber A crítica de Fabian serve como uma advertência de peso contra
qual dos dois termos deve ser enfatizado e como eles podem existir qualquer aceitação incondicional ou um entusiasmo muito grande
pelas noções de não-contemporaneidade ou tempo diferencial. Ainda
608 Bloch, Heritage of Our Times, p. 114. assim, muito dos efeitos político e ético potencialmente negativos da
609 Ibid., p. 109. (Itálico no original) ideia de não-contemporaneidade podem ser neutralizados se essa ideia
610 Ibid., p. 105. for adotada e se suas conseqüências intelectuais são consistentemente
611 Penso que isso é o que Michael Bentley se refere quando critica a noção de levadas a suas conclusões. Em reação a Fabian poder-se-ia argumentar
não-contemporaneidade do contemporâneo de Ernst Bloch, sobre a qual ele escreve
que “parece um manifesto por presença; mas isso funcionou como uma compreensão
tectônica do tempo em que as estruturas temporais deslizam espacialmente uma 612 Fabian J., Time and the Other. How Anthropology makes its object. New
sob a outra e criaram presenças falsas e atrasadas”. Bentley M., Past and “Presence”. York, Columbia University Press, 1983.
Revisiting Historical Ontology. In: History and Theory, 45 (2006), pp. 349-361, 353. 613 Ibid., p. 31. (Itálico no original)

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

que em vez de negar a real não-contemporaneidade entre o Ocidente


e o não-Ocidente, a suposta contemporaneidade do Ocidente consigo
mesmo tem que ser questionada e criticada. Althusser está certo
quando observa que as diferenças na temporalidade não podem ser
pensadas em termos de atraso ou avanço se não há nenhum tempo de
referência ideológico ou tempo-base. O que precisamos e o que está
mais em falta nas cronosofias alternativas discutidas neste capítulo é,
Capítulo 7
portanto, uma desconstrução explícita de qualquer noção de tempo Tempos Espectrais. Jacques Derrida e a desconstrução
que atue como um tempo recipiente e que finge ser a medida de todos do tempo
os outros tempos. A quem melhor podemos recorrer para esse tipo
de trabalho de desconstrução que o filósofo francês Jacques Derrida?
Introdução
Na contribuição para um livro intitulado “Pós-
estruturalismo e a Questão da História”, Geoff Benington escreve que
não seria difícil construir um argumento mostrando
que a desconstrução à medida que insiste na necessária
não coincidência do presente consigo mesmo, é de
fato em algum sentido o mais histórico dos discursos
imagináveis.614
Essa afirmação pode soar estranha para muitos historiadores.
A desconstrução foi muitas vezes criticada por ser anti-histórica
e seus efeitos foram amplamente temidos como a maior ameaça à
integridade da disciplina histórica. No conhecido livro de Richard
J. Evans “Em Defesa da História”, por exemplo, Jacques Derrida,
juntamente com alguns outros, figura proeminentemente como um
dos vilões e arqui-enganadores em uma missão de destruir a história.615
Claro, a desconstrução de Derrida desafia algumas pressuposições
profundamente incorporadas à historiografia acadêmica, e Derrida foi
sempre transparente sobre suas críticas a certos aspectos metafísicos
arraigados na história.616 Entretanto, a reivindicação de Benningtonn
614 Bennington G., Demanding history. In: Attridge D., Bennington G. &
Young R. (eds), Post-structuralism and the question of history. Cambridge, Cambridge
University Press, 1987, p. 17.
615 Evans R. J., In Defense of History. New York, W. W. Norton & Company,
1999.
616 Em uma entrevista Derrida adverte que a noção de história poder sempre ser

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

faz sentido e neste capítulo argumentarei que a obra de Derrida pode explicitamente questões éticas e políticas. Além disso, “Espectros de
ser uma importante fonte de inspiração para um discurso histórico Marx” incorpora uma discussão muito esperada sobre a relação entre
mais inclusivo, que seja capaz de abordar o problema do irrevogável e desconstrução e marxismo, um tópico que Derrida havia prometido
que não tenda para o alocronismo. Derrida frequentemente enfatizou elaborar havia mais de duas décadas atrás.619 O livro resultou de duas
seu interesse pela história, e especialmente em seu último livro discute palestras que Derrida proferiu na ocasião de um congresso intitulado
uma série de tópicos (incluindo aqueles da memória, herança, luto “Para onde vai o marxismo?” [“Whither Marxism?”], que foi organizado
e espectralidade) que são de grande interesse para historiadores.617 na Universidade da Califórnia em Riverside, em abril de 1993, quando
Neste capítulo, focarei principalmente na obra relativamente tardia de levantou a questão do destino político do marxismo no fim do século
Derrida, “Espectros de Marx. O Estado da Dívida, o Trabalho de Luto vinte. A discussão de Derrida sobre o legado do marxismo não deixou
e a Nova Internacional” (publicado em 1994), que tem como seu tema de ser notada em círculos marxistas e radicais de esquerda. Além
principal “a persistência de um presente passado ou o retorno dos das reações hostis, que eram esperadas, a publicação de “Espectros
mortos que o trabalho de luto mundial não pode se livrar”.618 Além de Marx” provocou um profundo debate intelectual e motivou a
disso, relacionarei esse tema do passado assombrado – ou nas palavras publicação de uma série de amplos comentários por pensadores
de Derrida passado “espectral”– às reflexões sobre tempo (histórico) proeminentes. O livro, no entanto, abrange um leque muito mais
que já podem ser encontradas em alguns dos primeiros trabalhos amplo de tópicos ao invés de focar exclusivamente na questão do
de Derrida, incluindo “A voz e o fenômeno”, “Gramatologia”, e os marxismo. Em vez de narrar meramente sobre os espectros de Marx,
ensaios “Différance” e “Ousia e Gramme”. Derrida reflete sobre toda uma série de espectros, e a maneira mais
fácil de organizar uma discussão dos conteúdos complexos do livro,
parece-me por ser focando em alguns desses diferentes espectros.
Espectros de Marx Iniciemos com uma breve discussão sobre os espectros que
“Espectros de Marx” ocupa um lugar especial na obra Derrida diz que primeiramente pensara quando escolheu o título
de Derrida. Muitos comentadores interpretaram esse livro como “Espectros de Marx”: os espectros de Marx e do marxismo que, de
uma virada na obra de Derrida, caracterizando o início de uma acordo com Derrida, ainda hoje – mais do que nunca? – assombra a
fase intelectual “tardia” em que Derrida cada vez mais abordou política internacional apesar da tentativa de exorcismo encenado pelo
neoliberalismo. Derrida denuncia o rubor da vitória que dominou o
reapropriada pela metafísica, e ele ressalta que ele rejeita o historicismo. Ele também
diz que sempre subscreveu à crítica de Althusser com relação ao conceito hegeliano Ocidente após o colapso do Muro de Berlim e a implosão do bloco
de história. Derrida J., Positions. Interview with Jean-Louis Houdebine and Guy oriental. Ele critica fortemente a instalação de uma hegemonia
Scarpetta. In: Positions. London, Continuum, 2002, pp. 37-78, 50. Outra importante de um novo-capitalismo mundial e a nova “dogmática” que o
influência sobre a noção de história de Derrida veio de Edmund Husserl Origem
da Geometria – um trabalho em que Husserl critica o historicismo tradicional. acompanha. Sobre o discurso dominante neoliberal e sua “conjuração
Veja: Derrida J., Edmund Husserl’s Origin of Geometry. An Introduction. Lincoln, antimarxista”, ele escreve que o mesmo:
University of Nebraska Press, 1989.
frequentemente tem a maníaca, jubilatória e encantatória
617 Derrida enfatiza que sua crítica é direcionada apenas contra uma certa forma que Freud atribuiu à chamada fase triunfante do
concepção metafísica de história. Se ele ataca o “archeo-teleológico” conceito de trabalho de luto. O encantamento repete e ritualiza a
história é apenas para mostrar como tal conceito neutraliza ou mesmo cancela a
historicidade. Derrida J., Specters of Marx. The State of the Debt, the Work of Mourning,
si mesmo, sustenta-se e realiza-se por fórmulas, como
and the New International. New York, Routledge, 1994, p. 75. 619 Derrida fez essa promessa em uma entrevista com o marxista francês Jean-
618 Ibid., 101. Louis Houdebine e Guy Scarpetta in 1971. Ver: Derrida, Positions, p. 54.

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qualquer magia animista. Ao ritmo de uma marcha e do comunismo, o neoliberalismo não logrou exorcizar todos os
cadenciada, proclama: Marx está morto, o comunismo fantasmas de Marx. De fato, Derrida defende, a repressão meticulosa
está morto, muito morto, e juntamente com ele suas dos fantasmas de Marx pelos poderes hegemônicos apenas confirma
esperanças, seus discursos, suas teorias e suas práticas.
Exclama-se: vida longa ao capitalismo, vida longa ao o fenômeno do assombramento: “o assombramento pertence à
mercado, aqui está a sobrevivência do liberalismo político estrutura de toda hegemonia”.623 Longe de estar morto e enterrado,
e econômico!620 o espectro do comunismo, hoje como um revenant, ainda assombra
os poderes dominantes tão efetivamente quanto fez em meados do
Derrida foca especialmente no discurso do filósofo político
século dezenove, quando ainda estava por vir, meramente anunciado
Francis Fukuyama, cujo trabalho “O Fim da História e o Último
pelo nome na primeira sentença do “Manifesto”: “Um espectro está
Homem” rejeitou criticamente como uma “doutrina” antimarxista
assombrando a Europa – o espectro do comunismo”.
neo-evangelista que carece de uma convincente teoria dos eventos
históricos.621 Isso nos leva para o segundo grupo de espectros que
Derrida focaliza: aqueles que vagueiam os escritos de Marx e, de
Em reação à retórica messiânica sobre a vitória da democracia
tempos em tempos, vem assombrá-lo. Por toda sua obra Marx teve
liberal e o fim da história, Derrida exclama que, “nunca a violência, a
uma grande afeição pela linguagem espectral, e em uma interpretação
desigualdade, a exclusão, a fome, e, portanto, a opressão econômica,
textual original Derrida mostra aos seus leitores que é impossível
afetou tantos seres humanos na história da terra e da humanidade”.622
compreender as muitas facetas do pensamento de Marx sem refletir
Temos lido um Derrida excepcionalmente direto politicamente, que
na função filosófica da sua linguagem. Além do das Gespenst des
se permite nomear as “pragas da nova ordem mundial” às quais ele
Kommunismus apresentado no “Manifesto”, espectros já apareciam
chama um “telegrama de dez palavras”. Em meio a outras coisas ele lista
em Marx em sua dissertação de 1841, “As Diferenças na Filosofia
o desemprego causado pela desregulamentação dos novos mercados,
da Natureza de Demócrito e Epicuro” e apenas reapareceriam em
a exclusão massiva dos moradores de rua cidadãos e exilados da
escala muito maior em “A Ideologia Alemã” e “O 18 Brumário de
vida democrática, a inabilidade de controlar as contradições do livre
Luís Bonaparte”.624 Em sua obra tardia, Derrida demonstra, Marx
mercado, o agravamento das dívidas externas, a indústria e comércio
nunca para de conjurar e exorcizar porque ele necessita da figura do
de armas, a disseminação de armas nucleares e o aumento de guerras
fantasma para resolver a complexa questão da herança revolucionária
inter-étnicas. Neste contexto, Derrida argumenta, a herança de Marx
– a tendência das revoluções em seguir o exemplo e referirem-se às
no fim do século vinte permanece tão importante quanto sempre foi,
revoluções antigas – por distinguir entre o espírito produtivo [Geist]
mesmo apesar do colapso do comunismo no bloco ocidental. Desde
da revolução e seu anacrônico e indesejável espectro [Gespenst]. A
que se leve em conta sua “historicidade irredutível”, ele defende,
elaboração mais ingênua sobre espectralidade, no entanto, de acordo
poucos textos na tradição filosófica, talvez mesmo nenhum, contém
com Derrida, é encontrada no “Capital”, e mais especificamente nas
lições que são mais importantes hoje que aquelas do “Manifesto” e de
alguns das outras grandes obras de Marx. 623 Ibid., p. 37.
624 Derrida observa que a linguagem espectral de Marx frequentemente
Apesar das declarações repetidas da morte do marxismo desaparece na tradução. Este é, por exemplo, o caso na passagem de “O 18 de Brumário
de Louis Bonaparte”,onde Marx escreve que “a tradição de todas as gerações mortas
620 Derrida, Specters of Marx, p. 52. pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos”. No original em alemão Marx escreve
lastet wie ein Alp, que segundo Derrida deve literalmente ser traduzido como “pesa
621 Ibid., p. 56. como um daqueles fantasmas que dão pesadelos”. Na tradução francesa também, o
622 Ibid., p. 85. espectro é substituído pela expressão pèse d’un poids très lourd. Ibid., p. 108.

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passagens nas quais Marx descreve a fetichização das mercadorias. o suficiente na linha divisória dessa oposição para querer
Poderia ser considerada uma coincidência que Marx aqui tenta denunciar, expulsar, ou exorcizar os espectros, mas pelos
explicar o caráter místico das mercadorias descrevendo-as como uma meios da análise crítica e não por uma contra-magia. Mas
como distinguir entre a análise que denuncia a mágica e a
aparição? Após oferecer uma leitura detalhada do exemplo famoso de contra-mágica que a mesma ainda arrisca ser?626
Marx sobre a mercantilização de uma desgastada mesa de madeira –
que, uma vez colocada em um antiquário, é metamorfoseada em um Concluindo, Derrida argumenta que Marx, assim como
tipo de coisa sobrenatural ou uma coisa sensuous non-sensuous, com seus adversários, tenta exorcizar a espectralidade fundamentando sua
um valor de mercado que não pode ser reduzido a qualquer valor de crítica em uma ontologia. Enquanto seu pensamento é crítico, Derrida
uso – Derrida resolutamente conclui que: defende que ainda assim permanece “predesconstrutivo” e enredado
na teia da metafísica.627
O esquema fantasmagórico agora aparece indispensável. A
mercadoria é uma “coisa” sem fenômeno, uma coisa em Isto sendo dito, podemos focar no terceiro grupo de espectros
luta que ultrapassa os sentidos (ela é invisível, intangível, que de uma forma mais complexa e muitas vezes implícita sempre
inaudível e inodora); mas essa transcendência não é povoa “Espectros de Marx”: aqueles que, por um lado, assombram
completamente espiritual, ela retém aquele corpo imaterial
que reconhecemos como fazendo a diferença entre o Derrida e sua desconstrução e, por outro lado, auxilia a desconstrução
espectro e o espírito. O que supera os sentidos ainda passa a assombrar a herança metafísica da filosofia ocidental. Como
em nossa frente na silhueta de um corpo sensual que, mencionado acima, o momento da aparição dos “Espectros de Marx”
entretanto, falta ou permanece inacessível a nós.625 foi bastante atípico na obra de Derrida por causa das predicações éticas
No entanto, Derrida adverte, apesar da importância da e políticas diretas ali contidas. Apesar que Derrida sempre deixou
figura do espectro em sua análise filosófica, econômica e política, Marx claro que ele considerava a si mesmo um pensador de esquerda, ele
desgosta dos fantasmas tanto quanto dos seus adversários que tentam foi muitas vezes incitado por colegas da esquerda a tomar posições
exorcizar o espectro do comunismo. Embora Marx seja obcecado por políticas mais explícitas, e seu trabalho frequentemente foi criticado
fantasmas, ele não quer acreditar neles e tenta opor suas aparições pelo seu suposto relativismo ético e político, irresponsabilidade
enganosas à presença real e realidade efetiva. Um dia, Marx acredita, ou mesmo suporte (indireto) de posições políticas pertencentes à
a humanidade será capaz de se livrar do delírio dos fantasmas, porque direita.628 Neste contexto pode-se argumentar que “Espectros de
os mesmos, conforme Marx, estão ligados à estrutura da economia Marx” é parte de uma tentativa de lidar com as questões éticas e
burguesa. A respeito da questão da herança revolucionária, Marx políticas que assombram a desconstrução. Isto torna-se claro quando
eventualmente rejeita ambos, o espírito e o espectro das revoluções consideramos que Derrida declara sobre a sua aceitação de falar na
passadas. Sua afirmação famosa que as revoluções do século dezenove conferência “Para onde vai o Marxismo” [“Whither Marxism?”],
têm que extrair sua inspiração do futuro ao invés do passado: “deixar que não estava “em primeiro lugar comprometida com um discurso
os mortos enterrar seus mortos”. Contudo, após repetidamente tê-los acadêmico e filosófico. Sendo antes de tudo, portanto, para não fugir
conjurado em seus escritos, Marx não pode se livrar dos seus espectros
626 Ibid., p. 47.
facilmente porque ele é assombrado por eles. Como afirma Derrida:
627 Ibid., p. 170.
Ele acredita que pode opô-los, como a vida à morte, como 628 Ver por exemplo: Ahmad A., Reconciling Derrida. ‘Specters of Marx’
aparências vãs do simulacro à presença real. Ele acredita and Deconstructive Politics. In: Sprinker, Ghostly Demarcations, pp. 88-109. Ver
também: Calcagno A., Badiou and Derrida. Politics, Events and Their Time. London,
625 Ibid., p. 150. Continuum, 2007.

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de uma responsabilidade”.629 Essa responsabilidade, ele argumenta, é que é dizer sobre certos outros que não estão presentes,
parcialmente a de um herdeiro para com sua herança – relação que, de nem vivendo atualmente, nem para nós, em nós, ou fora
acordo com ele, é sempre caracterizada parcialmente pela afirmação de nós, isso é em nome da justiça”.635
(crítica e seletiva) de um débito.630 Em uma declaração ousada No entanto, ele adverte, abordar o espectral não é uma tarefa fácil
Derrida afirma que a desconstrução em sua opinião nunca teve porque como um não-existente que nunca é completamente presente
“qualquer interesse” exceto como uma herança e com a radicalização ele está “fora de qualquer sincronia” e, portanto, desafia a semântica
de um certo espírito do marxismo. Uma herança porque, “[...] a e a ontologia, tanto quanto a psicanálise e a filosofia.636 De fato – e
desconstrução teria sido impossível e impensável em um espaço pré- que finalmente chegamos na questão da cronosofia – o espectral não
marxista”.631 Uma radicalização porque a desconstrução, em contraste pode ser contemplado enquanto se confia no conceito moderno de
ao marxismo, toma a espectralidade a sério, não considera a mesma tempo como uma série de “presentes” sucessivos ou “agoras” que são
como um mero simulacro que deve ser oposto à “presença real”, e não idênticos e contemporâneos a eles mesmos. Inspirado pela famosa
tenta violentamente integrá-la em uma ontologia.632 declamação de Hamlet de que o tempo está “fora de ordem”, Derrida
Acadêmicos em geral, argumenta Derrida, raramente argumenta que a espectralidade apenas pode ser entendida se aceitar-
abordam o problema da espectralidade por causa de suas características se a “não-contemporaneidade do presente vivo consigo mesmo”.637
misteriosas e “indecididas” que resistem à nítida distinção entre o real Embora tenha enfatizado repetidamente que “Espectros
e o irreal, os vivos e os mortos, ou – mais fundamentalmente – entre de Marx” representa uma mudança na obra de Derrida – separando
o que está presente e o que está ausente (o que é presente e o que é o mais abertamente político “último Derrida” de um “primeiro
passado).633 Assim, precisamente quando nenhuma ética ou política Derrida” – as observações sobre a necessária relação entre o espectro
parece possível, pensável, e apenas sem respeito ou reconhecimento e a “desarticulada” natureza do tempo apenas pode ser entendida
daqueles que não estão vivendo no presente (se já mortos ou não completamente se situadas dentro do ambicioso projeto de vida de
ainda nascidos), é mais necessário que nunca, Derrida afirma, “falar Derrida de criticar a “metafísica da presença” ocidental. Portanto,
do fantasma, de fato, para o fantasma e com ele”.634 Derrida é claro proponho que voltemos para a obra inicial de Derrida por um
sobre o motivo de abordar a figura do espectro: momento para focar na desconstrução do tempo que ali foi elaborada.
“Se estou preparando-me para falar longamente sobre
fantasmas, herança, e gerações, gerações de fantasmas, o
629 Derrida, Specters of Marx, p. 10. Desconstrução e a metafísica da presença
630 Derrida, Specters of Marx, p. 54. Pelo menos por dois milênios e meio, Derrida afirma, a
631 Derrida, Specters of Marx, p. 92. tradição do pensamento ocidental esteve situada e organizada em
632 Ibid., p. 51. torno da fundamental pressuposição metafísica da “presença” – se
633 Dever-se-ia, de fato, considerar o espectro pertencente a um conjunto de esta é definida como a proximidade dos objetos (material ou ideal),
conceitos que o próprio Derrida chama “indecidíveis”, “que escapam da inclusão na
oposição filosófica (binária) e que mesmo assim o habita, resiste e o desorganiza, mas
como a própria-presença ou a própria-identidade de um sujeito/
sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca ocasionar uma solução na forma cogito na imediaticidade do seus atos mentais, como a co-presença do
de dialética especulativa”. Derrida, Positions, p. 36. Derrida descreve o espectral como
“o que acontece entre dois, a entre todos os ‘dois de’ ou alternativamente ‘o mais que 635 Ibid., p. xix. (Itálico no original)
um/não mais um’ [le plus d’un]”. Derrida, Specters of Marx, p. xviii. 636 Ibid., p. 7.
634 Derrida, Specters of Marx, p. xix. (Itálico no original) 637 Ibid., p. xix.

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eu e do outro em intersubjetividade, ou, no nível mais fundamental, próprio a marca do elemento passado, e já deixando a si
como a manutenção do “agora” como um ponto do próprio presente mesmo ser contaminado pela marca da sua relação com o
temporal.638 Nos seus primeiros trabalhos, Derrida nunca parou de elemento futuro.640
criticar as formas muitas diferentes dessa metafísica da presença. A partir dessa descoberta sobre a dimensão necessária da
No que segue, focarei brevemente em três “níveis” diferentes, mas ausência ou não-presença na constituição do signo, uma conclusão
conectados, em que Derrida ataca a noção de presença: primeiro a radical pode ser esboçada: que o sentido linguístico não pode ser
teoria dos signos e significação, segundo sua reflexão crítica sobre fixado nem completamente presente enquanto tal e que não existe
a fenomenologia de Husserl da consciência interna do tempo, e tal coisa como um significado absoluto ou “transcendental”, que
terceiro a ontologia “fundamental” do tempo como foi estudada por a significação é em vez disso apanhada em um jogo sistemático em
Heidegger. que todo conceito refere a outro e que o sentido é interminavelmente
De acordo com Derrida, o conceito de signo na tradição diferente e infinitamente diferido. Esse jogo semiótico, que une as
ocidental sempre foi sinônimo para a representação da presença dimensões da diferença e do diferimento, é o que Derrida chama
ou tem sido integrado em um sistema (linguagem ou pensamento) différance. Além disso, Derrida defende, o princípio de Saussure
que está buscando por presença. Para ser libertado dessa absorção sobre a natureza constitutiva da diferença semiótica não apenas tem
da metafísica é necessário repensá-lo radicalmente.639 O linguista de ser radicalizada de tal forma que venha a incluir elementos não-
Ferdinand de Saussure deu alguns passos decisivos na direção de tal sincrônicos, tendo também que ser estendida a todos os sistemas de
repensar quando afirmou o caráter arbitrário e diferencial do signo, referência em vez de serem limitadas à linguagem em sentido estrito.
isto é, o fato de que a relação entre o significante e o significado é Saussure, assim como muitos outros pensadores, permanece preso na
meramente arbitrária em vez de necessária ou natural, e o fato que metafísica porque atribui primeiramente as dimensões de diferença e
elementos de significação apenas funcionam através de um sistema ausência à língua escrita, que é então contrastada com e subordinada
de diferenças e oposições que as distinguem. A afirmação de Saussure à fala “plena” ou à voz presente em si que por causa da sua alegada
que em significação linguística há apenas diferenças é inovadora, mas, proximidade à mente escaparia ao efeito da différance. Como Derrida
segundo Derrida, ela não vai longe o bastante. Primeiro, a noção de demonstra, esse privilégio da fala e o rebaixamento da escrita como um
Saussure da diferença linguística tem que ser estendida para incluir mero suplemento do mundo falado – que ele denomina fonocentrismo
não apenas as oposições entre termos que são sincrônicos, mas – é, por sua vez, baseado no privilégio da presença. Ele assinala que o
também as relações diferenciais não-sincrônicas entre elementos do estado secundário percebido da escrita diretamente correlaciona à sua
passado (ausente) ou do futuro. Como Derrida coloca: determinação como
o movimento da significação é possível apenas se cada tradutor de uma fala plena que estava completamente
assim chamado elemento “presente”, cada elemento presente (presente em si mesma, ao seu significado, ao
aparecendo na cena da presença, é relacionado à alguma outro, à própria condição do tema da presença em geral),
outra coisa que a si mesmo, desse modo mantendo em si técnicas no serviço da linguagem, porta-voz, intérprete
de uma fala originária em si mesma protegida da
interpretaçã.641
638 Derrida J., Speech and Phenomena. And Other Essays on Husserl’s Theory of
Signs. Evanston, Northwestern University Press, 1973, p. 99. Ver também: Derrida No entanto, por meio de uma análise bem complexa e engenhosa
J., Of Grammatology. Corrected Edition. Baltimore, Johns Hopkins University Press,
1997, p. 12. 640 Ibid., p. 13.
639 Derrida J., Différance. In: Margins of Philosophy, pp. 1-27, 10. 641 Derrida, Of Grammatology, p. 8. (Itálico no original)

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(que não pode ser reproduzida aqui), Derrida mostra que mensagens Colocando de forma diferente, a teoria da significação de
faladas estão sujeitas ao jogo da différance no mínimo tanto quanto Husserl, juntamente com a de muitos outros pensadores ocidentais,
textos escritos, e que a fala, portanto, tem de ser considerada como colapsa caso possa ser demonstrado que esse conceito particular de
subespécie da “escrita” em sentido amplo, em vez de existir antes dela “agora” é insustentável, “se a pontualidade do instante é um mito,
– consequentemente sua famosa “gramatologia”; a ciência da escrita. uma metáfora espacial ou mecânica, um conceito metafísico herdado,
ou tudo de uma vez, e se o presente da presença em si mesma não é
Claro, Derrida afirma, alguém poderia ser tentado a objetar
simples, se ele é constituído em uma síntese primordial e irredutível
que por trás da fala existe um sujeito vivo cuja consciência intuitiva
[...]”.644 O último é, claro, o que Derrida estabelece para demonstrar,
pode compreender o sentido sem qualquer necessidade de signos ou
e ironicamente – mas não surpreendentemente dado o que um
significação e pode, dessa forma, colocar um fim ao infinito jogo da
comentador incisivamente chamou de estilo “parasitário” de filosofar645
différance.642 Essa ideia da intuição da consciência imediata e presente
– ele o fez então por meios de uma detalhada leitura das reflexões
em si mesma está na base de quase toda teoria da significação ocidental.
sobre o tempo que podem ser encontradas na obra de Husserl. Apesar
De acordo com Derrida, isso pode, por exemplo, ser considerado
do seu implícito e provavelmente inconsciente uso da metáfora do
o “princípio dos princípios” que fundamenta o projeto filosófico
agora pontual em sua teoria da consciência e significação, Husserl,
da fenomenologia que foi fundada por Edmund Husserl no início
em sua obra “Lições para uma fenomenologia da consciência interna
do século vinte. No entanto, Derrida argumenta, esse privilégio da
do tempo”. refutou a ideia da simples auto-identidade do presente.
consciência também pode ser rastreado em um privilégio da presença:
Em seu último trabalho, Husserl demonstrou admiravelmente que a
neste caso o privilégio de um presente temporal como um instante
percepção humana do fenômeno temporal nunca pode ser reduzida
absolutamente sincrônico como um ponto. Toda teoria da significação
puramente a um presente ou a uma percepção “imediata” (intenção),
de Husserl, por exemplo, é baseada na pressuposição da existência
mas sempre inclui a dimensão de uma memória de curto prazo
de uma “vida mental solitária” que não tem nenhuma necessidade
(ou retenção) e uma dimensão de antecipação (ou protensão). Que
de signos ou comunicação interior porque seus “atos mentais” são
possamos perceber uma série de tons discretos como uma melodia
“vividos por nós no mesmo instante” [im selben Augenblick], e esse
musical, por exemplo, é devido ao fato que nosso cérebro juntamente
instante é considerado tão indivisível quanto um “piscar de um olho”.
com o tom reproduzido retém o som de tons prévios e antecipa o som
Para citar Derrida:
de tons por vir. Com o objetivo de limitar as implicações radicais dessas
A força dessa demonstração pressupõe o instante como descobertas sobre a natureza composta da percepção, Husserl ressalta
um ponto, a identidade da experiência instantâneamente
presente a si mesma. A auto-presença deve ser produzida
que a retenção é uma forma de memória primária em que um passado
na indivisível unidade de um presente temporal, de forma muito recente é retido por uma quantidade de tempo muito curta, e
a não ter nada a revelar a si mesma pela ação de signos. que isso não deve ser confundido com a menos confiável memória
Tal percepção ou intuição do eu pelo eu em presença não secundária em que o passado não é retido mas reproduzido ou re-
seria apenas o caso onde a “significação” em geral poderia presentado na forma de uma recordação ativa. Derrida, no entanto,
não ocorrer, mas também asseguraria a possibilidade geral mostra que essa divisão entre a quase-percepção da memória primária
de uma percepção primordial ou intuição, i.e., de não
significação como o “princípio dos princípios”.643 e o caráter re-presentacional da memória secundária é arbitrário e
644 Ibid., p. 61. (Itálico no original)
642 Derrida, Différance, p. 16. 645 Robert Bernasconi in: Reynolds J. & Roffe J. (eds), Understanding Derrida.
643 Derrida, Speech and Phenomena, p. 60. (Itálico no original) New York, Continuum, 2004, p. 124.

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indefensável. Em vez disso, ele defende, a descoberta de Husserl sobre [inactual]. Derrida repete e radicaliza a crítica que Martin Heidegger
a consciência interna do tempo deve ser tomada por suas conclusões já havia sugerido: emprestando a terminologia da maturidade de
radicais: que não existe tal coisa como uma percepção (pura, Heidegger, Derrida argumenta que a redução de todas as formas de
sincrônica); ou, colocado de forma diferente, que a assim chamada ser a formas de “presença” (Anwesenheit) é por sua vez relacionada ao
percepção imediata é sempre já mediada por memórias e expectativas privilégio de um modo de tempo definido – o presente (Gegenwart).648
que não referem ao presente, sendo que toda apresentação é antes de De Parmênides a Husserl, Derrida escreve, o privilégio do presente
tudo re-presentação. Para citar as palavras de Derrida: nunca foi profundamente questionado. Mesmo a não-presença é
Vê-se então rapidamente que a presença do presente sempre considerada em relação à presença ou como modalizações
percebido pode aparecer como tal apenas enquanto ela da presença. O passado e o futuro também são frequentemente
é continuamente composta com a não presença e a não determinados como uma sucessão de presentes passados ou presentes
percepção, com a memória primária e a expectativa futuros.
(retenção e protensão). Essas não percepções nem
são adicionadas, nem ocasionalmente acompanham Uma determinação de tempo particular tem desse modo
o real agora percebido; elas estão essencialmente e governado implicitamente a determinação do sentido do ser através da
indispensavelmente envolvidas nessas possibilidades. história da filosofia. A “ontologia tradicional”, segundo Derrida, pode,
[...] Tão rápido quanto admitirmos essa continuidade do
portanto, “ser destruída apenas por repetir e interrogar sua relação
agora e do não-agora, da percepção e não percepção, na
zona do primordialmente comum à impressão e retenção com o problema do tempo”.649 Heidegger claramente pressentiu
primordiais, admitiremos o outro na própria identidade isso mas, segundo Derrida, recusou ou não se atreveu a elaborar
do Augenblick; não presença e não evidência são admitidas os “indícios temporais” que poderiam destruir toda metafísica.
no piscar do instante.646 Enquanto “Ser e Tempo” submete a ontologia clássica a um “tremor
Claro que alguém poderia dizer que Derrida, como é extraordinário” por criticar radicalmente o tempo linear “vulgar”,
aparente na terminologia da passagem acima, apenas desconstrói sua própria proposição de um mais “autêntico” tempo primordial,
a consciência interna do tempo ou o presente percebido, e que por segundo Derrida, “ainda permanece dentro da gramática e léxicos da
trás desse tempo subjetivo ainda existe um inabalável tempo objetivo metafísica”.650 Nesse ponto Derrida mesmo considera a problemática
que flui uniformemente de instante a instante independente de heideggeriana como sendo a “mais profunda” e “mais forte” defesa do
qualquer observador. No entanto, em adição à sua desconstrução do pensamento da presença.651
assim chamado tempo “subjetivo”, Derrida também ataca a tradição
648 Derrida J., Ousia and Gramme: Note on a Note from Being and Time. In:
metafísica que descreve e conceitualiza o tempo em termos objetivistas Margins of Philosophy. Chicago, University of Chicago Press, 1982, pp. 31-67, 31.
ou ontológicos.647 A história do pensamento ocidental, segundo 649 Derrida, Ousia and Gramme, 47.
Derrida, tem sido fortemente influenciada por uma concepção de 650 Ibid., p. 63. Sobre essa “armadilha” metafísica em que Heidegger permanece
tempo que coloca demasiada ênfase no presente e no que está vigente preso, veja também o ensaio de Derrida “O fim do homem”. Aqui Derrida argumenta
[actual] em desvantagem do ausente (não-presente) e do não vigente que Heidegger não quebra radicalmente com a presença e que sua filosofia, apesar da
sua repetida crítica do humanismo, eventualmente permanece humanista. Derrida J.,
The Ends of Man. In: Margins of Philosophy, pp. 109-136, 128.
646 Derrida, Speech and Phenomena, p. 64-65. (Itálico no original) 651 Derrida, Positions, p. 41. Embora isto pareça ser uma avaliação bastante negativa,
647 Derrida é claro sobre o fato que o tempo nunca pode ser considerado Herman Rapaport observa que Derrida assumiu muitas posições diferentes sobre
“absolutamente subjetivo”, “[…] precisamente porque não pode ser concebido nas Heidegger, às vezes enfatizando a relação íntima entre o seu último projeto intelectual e
bases de um presente e a auto-presença de um ser presente”. Ibid., p. 86. aquele da desconstrução, e outras vezes alertando contra a confusão entre a desconstrução

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Em seu ensaio anterior “Ousia e Gramme”, Derrida inicia “ordem de coexistência”, segundo Derrida, já deve ter sido tradicional
de uma nota de rodapé de Heidegger em “Ser e Tempo” com o na época de Aristóteles e ainda permanece assim hoje:
objetivo de desenvolver sua própria crítica da concepção de tempo Um agora não pode coexistir, como um agora corrente e
ocidental. Assim como Heidegger, Derrida critica a longa tradição, presente, com outro agora enquanto tal. A coexistência
percorrendo de Aristóteles a Hegel, de conceitualizar o tempo a partir tem sentido apenas na unidade de um simples e mesmo
da ideia metafísica do agora/presente. Derrida, no entanto, esforça- agora. [...] Não se pode mesmo dizer que a coexistência de
se para oferecer uma contra leitura dos pensadores que Heidegger dois agoras diferentes e igualmente presentes é impossível
ou impensável: a própria significação de coexistência ou
critica. Ele quer mostrar que os grandes textos da metafísica não são de presença é constituída por seus limites. Não estar apto
apenas sobre o assim chamado conceito “vulgar” de tempo, mas que a coexistir com um outro (idêntico a si mesmo), com um
eles também contém os elementos para desconstruir esse tempo por outro agora, não é um predicado do agora, mas sua essência
dentro. Ao contrário de Heidegger, Derrida vai além em sua análise como presença. O agora, presença no ato do presente, é
dos paradoxos e aporias na história da metafísica com o objetivo de constituído como a impossibilidade de coexistir com um
outro agora, ou seja, com um outro-idêntico-a-si-mesmo.
olhar para as sementes de uma diferente noção de tempo que reside
O agora é (no presente do indicativo) a impossibilidade
no coração dessa tradição. Aristóteles, por exemplo, segundo Derrida, da coexistência consigo mesmo: consigo mesmo, ou seja,
não apenas iniciou uma longa tradição de pensamento metafísico, com um outro eu, um outro agora, um outro idêntico, um
mas também forneceu as ferramentas para desconstruir essa tradição duplo.653
e seu conceito de tempo. Ainda, é precisamente essa impossibilidade da coexistência
Derrida atribui a mais importante aporia da noção de dois agoras que, segundo Derrida, fica presa a uma contradição
metafísica de tempo a seu uso do conceito do “agora” unificado interna e em suas palavras apenas pode ser experimentada como a
e idêntico a si mesmo que divide o tempo infinitamente e dá a ele “possibilidade do impossível”. A própria ideia da impossibilidade da
a continuidade de uma linha. Enquanto Aristóteles sabia muito coexistência de um agora com outro agora, implica que esse outro
bem a respeito dessas aporias e explicitamente as expunha em sua agora é de uma certa maneira o mesmo e deste modo “[...] é também
exposição de senso comum temporal, ele nunca realmente respondeu um agora em si, e que o mesmo coexiste com aquele que não pode
as questões levantadas por ele mesmo. A história do pensamento coexistir com ele”.654
metafísico, de acordo com Derrida, é constituída por esta omissão e A impossibilidade da coexistência pode ser posicionada
é possível apenas por infinitamente evadir as questões na natureza enquanto tal apenas na base de uma certa coexistência, de
aporética do tempo.652 Derrida resiste especialmente a ideia metafísica uma certa simultaneidade do não-simultâneo, em que a
do presente absolutamente sincrônico ou “agora” porque o mesmo alteridade e identidade do agora são mantidas juntas no
exclui a possibilidade da espectralidade ou coexistência do não- elemento diferenciado de uma certa mesmidade.655
contemporâneo. Argumentos sobre a não-coexistência das partes Embora ele avisa que essa palavra deve ser interpretada em um sentido
do tempo e argumentos que distinguem tempo do espaço por neutro que implica nenhuma posição, atividade ou agência, Derrida
conceitualizá-los como uma “ordem de sucessão” em vez de uma salienta que as aporias do tempo nos compele a pensar em termos de

e o pensamento heideggeriano. Rapaport H., Heidegger & Derrida. Reflections on Time 653 Ibid., pp. 54-55. (Itálico no original)
and Language. Lincoln, University of Nebraska Press, 1989, pp. 7-10. 654 Ibid., p. 55.
652 Derrida, Ousia and Gramme, p. 47. 655 Ibid., p. 55. (Itálico no original)

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

uma síntese “paradoxal” que mantém junto muitos “agoras correntes” Ou como ele argumenta em outro lugar:
[maintenants] que são ditos como pertencentes ao passado ou ao A estrutura do atraso (Nachträglichkeit) de fato proíbe
futuro. Essa “síntese” ou “certa mesmidade” pode ser expressada pela fazer da temporalização (temporização) uma simples
palavra grega hama, que significa alguma coisa “junta”, “tudo de uma complicação dialética do presente vivo como uma síntese
só vez”, ou “no mesmo tempo”. A importância dessa pequena palavra originária e incessante – uma síntese constantemente
para a possibilidade da desconstrução do tempo, por dentro da direcionada de volta a si mesma, recolhida em e sobre
si mesma e recolhendo – traços retencionais e aberturas
tradição metafísica, dificilmente pode ser superestimada. Essa palavra protensionais. A alteridade do “inconsciente” faz-nos
foi usada apenas cinco vezes por Aristóteles mas, segundo Derrida, preocupar não com horizontes de presentes modificados
oferece “uma pequena chave que abre e fecha a história da metafísica – passado ou futuro –, mas com um “passado” que nunca
nos termos do que ela coloca em jogo”.656 Embora Aristóteles não foi presente, e que nunca será, cujo futuro vindouro nunca
se refira explicitamente ao significado dessa palavra e mesmo tenta será uma produção ou reprodução na forma de presença.
Portanto, o conceito de traço é incompatível com o
escondê-la, ela trai uma lógica inconsciente de descontinuidade,
conceito de retenção, do tornar-se-passado do que tem
não linearidade, ou o plural em sua concepção de tempo. Esta “pista sido presente. Não se pode pensar o traço – e portanto,
temporal”, segundo Derrida, pode fazer possível pensar um tempo différance – nos fundamentos do presente, ou da presença
que não é mais dominado por um presente ou um agora que tem a do presente.658
impossibilidade da coexistência com o não-contemporâneo como sua Em outras palavras: hama introduz a dimensão de
essência. exterioridade na interioridade do tempo, e por “contaminar” a
Um pensamento radical do tempo, além do mais, segundo metafísica isolada do presente/agora vem empoderar a noção
Derrida, nunca pode ser simplesmente uma questão de “complicar” desconstrutiva central de différance, sobre a qual Derrida mesmo
o conceito de presente/agora enquanto ainda retém as noções de observa que ela significa para a complexa “constituição do presente,
“homogeneidade” e “sucessividade”. Uma mera complicação da como um ‘originário’ e irredutivelmente não-simples”.659
estrutura do tempo, como buscada por Husserl, por exemplo, sempre
manterá a linearidade e permanecerá metafísica. Como Derrida
explica, mesmo quando alguém aceita que cada “Agora B” é constituído Meditando sobre uma certa “não-presença”
pela retenção de um “Agora A” e a protensão de um “Agora C”, esse A ideia de espectralidade em “Espectros de Marx” deve ser
modelo ainda reforça a noção do senso comum de uma sucessividade entendida como uma elaboração radical e política pelo último Derrida
temporal e torna impossível para um “Agora X” tomar o lugar de um de seu pensamento desconstrutivo inicial. O “espectro” está firmemente
“Agora A”. Como Derrida afirma em sua Gramatologia: baseado no longo projeto de vida de Derrida de desconstruir o tempo
[Esse modelo de sucessividade] proibiria isso, por um metafísico.660 Embora seja certamente histórico um “momento
atraso que é inadmissível à consciência, uma experiência
ser determinada, em seu próprio presente, por um 658 Derrida, Différance, p. 21. (Itálico no original)
presente que não teria precedido-o imediatamente mas 659 Citação de: Derrida, Différance, p. 13.
seria consideravelmente “anterior” a ele. Esse é o problema 660 Outros temas proeminentes na obra tardia de Derrida são também
do efeito diferido (Nachträglichkeit) do qual Freud fala.657 firmemente baseados sobre esse tempo da desconstrução. Esté é, por exemplo, o caso
com sua reflexão sobre o “dom”. O verdadeiro dom que produz nenhum débito e
656 Derrida, Ousia and Gramme, p. 56. não demanda um contra dom, segundo Derrida, pode ser pensado apenas nas bases
657 Ibid., p. 67. de um tempo desconstruído. Como Derrida coloca: “Em qualquer caso, o tempo, o

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

espectral”, segundo Derrida, o mesmo não pode ser datado conforme mediação sobre a não presença – que não é forçosamente
um calendário e não se encaixa no tempo – pelo menos não no o seu contrário, ou necessariamente uma mediação sobre
tempo concebido como uma série de presentes modalizados (passado uma ausência negativa, ou uma teoria da não presença qua
consciência.663
presente, presente real e futuro presente). O presente está “fora de
ordem” porque funde e incorpora elementos do passado e do futuro; Derrida também salienta que sua lógica espectral não
porque o mesmo é sempre assombrado por fantasmas ou aparições. introduz qualquer tipo de categoria metafísica nova. Em vez disso,
Como Fredric Jameson comenta, espectralidade pode ser facilmente afirma, é uma lógica que é implicitamente necessária em qualquer
descrita como: crítica da abstração, idealização, ideologização ou fetichização.664 É
o que faz o presente oscilar [...] os fantasmas de Derrida importante não isolar a ideia de Derrida da sobrevivência do espectro
são estes momentos em que o presente – e sobretudo nosso da sua desconstrução do histórico ou presente “vivo”. Warren Montag
presente em vigor, o rico, ensolarado e reluzente mundo defende corretamente que a possibilidade da espectralidade depende,
da pós-modernidade e o fim da história, do novo sistema em primeiro lugar, do conceito de “traço” de Derrida, que não pode
do último capitalismo – inesperadamente nos trai.661 ser resumido na simplicidade de um presente. “Isto é, deste modo,
Os fantasmas introduzem uma constante “anacronia” no irredutível a um presente ou presença que pode tornar um passado
presente; eles provocam uma “intemporalidade e um desajustamento ou ausência: esta própria não-contemporaneidade determina a
do contemporâneo”.662 O espectro, portanto, não é apenas um pedaço possibilidade de sua persistência”. O espectro, então, é simplesmente
de um passado “traumático” aparecendo no presente; em vez disso, sua o que “nunca esteve vivo o suficiente para morrer, nunca presente o
lógica questiona a inteira relação tradicional entre passado, presente bastante para tornar ausente”.665 Em outras palavras, espectralidade
e futuro. Derrida estava bem consciente do radicalismo da sua tese ou a negação da “ausência” absoluta é o outro lógico da desconstrução
sobre a não-contemporaneidade do presente consigo mesmo e sabia o de Derrida da “presença” absoluta.
quão difícil era repensar o tempo em um contexto acadêmico: Enquanto “Espectros de Marx” desenvolve o projeto
dentro da filosofia não há possível objeção sobre esse da desconstrução, eu destaquei acima que isto também inclui um
privilégio do agora-presente; isso define o próprio movimento mais afirmativo. A figura do espectro deve justificar a
elemento do pensamento filosófico, essa é a evidência passagem do desajustamento “técnico-ontológico” do tempo a uma
mesma, o pensamento consciente em si, isso governa todo
conceito possível de verdade e sentido. [...] Esse conflito,
problemática de ética e justiça que não pode ser compreendido
necessariamente diferente de qualquer outro, está entre
filosofia, que é sempre uma filosofia da presença, e uma
663 Derrida, Speech and Phenomena, pp. 62-63. (Itálico no original)
‘presente’ do dom, não é mais pensável como um agora, ou seja, como um presente 664 Derrida J., Marx & Sons. In: Sprinker M. (ed.), Ghostly Demarcations. A
ligado na síntese temporal”. Segundo Derrida, não é coincidência que o dom tanto em Symposium on Jacques Derrida’s Specters of Marx. London, Verso, 1999, pp. 213-269,
inglês quanto em francês é referido com o termo “presente”, pois ele defende que “O 245. De acordo com alguns comentadores, no entanto, a reavaliação de Derrida do
dom não é um dom, o dom apenas dá à medida que dá tempo. A diferença entre um espectral torna impossível críticar esses fenômenos como idealização, ideologização,
dom e toda outra operação de pura e simples troca é que o dom dá tempo. Lá onde há fetichização, ou para não mais diferenciar entre radicalismo e conservadorismo. Para
dom, há tempo”. Derrida J., Given Time: I. Counterfeit Money. Chicago, University of tal crítica, ver: Cohen S., Derrida’s “New Scholar.” Between Philosophy and History.
Chicago Press, 1994, pp. 9-14 & p. 41. In: Cohen S., History Out of Joint. Essays on the Use and Abuse of History. Baltimore,
661 Jameson F., Marx’s Purloined Letter. In: New Left Review, 209 (1995), pp. Johns Hopkins University Press, 2006, pp. 153-181.
75-109, 85-86. 665 Montag W., Spirits Armed and Unarmed. Derrida’s Specters of Marx. In:
662 Derrida, Specters of Marx, p. 99. Sprinker, Ghostly Demarcations, pp. 71-74.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

em termos de mera ontologia.666 Toda reflexão sobre (in)justiça econômica com outros dos quais Emanuel Levinas diz ser a base de toda
e ética, Derrida argumenta, deve ser relacionada de perto a uma ética.669 A presença absoluta, Derrida argumenta, nunca foi a condição
reflexão sobre a natureza desarticulada do tempo e vice-versa. As ou o objeto da justiça; a justiça sempre assume um certo sentido de
interpretações do dito enigmático de Hamlet que o tempo está “fora anacronismo. A ética não pode restringir a si mesma ao presente e
de ordem”, por exemplo, sempre duvidou de uma leitura literal que às gerações vivas. É preciso sempre lembrar que a impossibilidade
toma o enunciado como referindo à estrutura ontológica do tempo, (de deixar os mortos enterrar seus mortos) pode acontecer; que, para
e uma leitura metafórica que o considera como uma afirmação Derrida, é o mal absoluto: uma presença absoluta que não quer ouvir
primeiramente ética. Tradutores franceses proeminentes da frase de sobre a morte. Como nós vimos, sua crítica é endereçada diretamente a
Hamlet, por exemplo, tomaram formas diferentes: na tradução segura Fukuyama e sua ideia do fim da história que declara a morte do passado
de Yves Bonnefoy lê-se: “Le temps est hors de ses gonds”, em outra e tenta exorcizar todos os espectros em nome de um presente absoluto.
tradução mais arriscada fala-se sobre “Le temps est détraqué”, e uma Que a cronosofia de Derrida é intimamente relacionada às políticas
outra interpreta a frase como referindo-se ao estado do mundo – “Le de memória torna-se clara quando ele favoravelmente cita a questão
monde est à l’envers” – e a tradução de André Gide, juntamente com retórica de Yosef Hayim Yerushalmi “se é possível que o antônimo
aquelas de alguns outros, opta radicalmente por uma leitura ética de ‘esquecer’ não seja ‘lembrar,’ mas justiça”.670 Bem como Benjamin,
“Cette époque est déshonorée”.667 Também, Derrida escreve, Heidegger Derrida resiste ferozmente o reino do tempo teleológico do progresso
demonstrou em seu “Der Spruch des Anaximander” que as palavras no qual a injustiça presente e passada pode sempre ser justificada ou
gregas para justiça (Diké) e injustiça (Adikia) estão etimologicamente legitimada por referir a uma catarse futura. Apenas a promessa de
próximas relacionadas respectivamente aos conceitos de ligar, memorizar o injusto e a memorização da promessa da justiça pode
contíguo, ajustamento e articulação – ou na linguagem de Heidegger combater tal lógica totalitária e imoral.671
Fug e Fuge – e às noções do desarticulado, retorcido e fora-da-linha.
Após ter salientado os muitos aspectos produtivos do
Isto não deve ser considerado uma coincidência, segundo Derrida,
trabalho de Derrida, tomarei alguma distância e formularei algumas
que a tradução etimologicamente inspirada da expressão Adikia como
críticas. Embora Derrida possa ajudar-nos a repensar a noção de
“aus den Fugen” ou “aus den Fugen gehen” é também um equivalente
historicidade, e enquanto sua desconstrução, como Geoff Bennington
alemão de “fora de ordem”.668
argumenta, pode em um sentido ser chamada de “o mais histórico
No entanto, Derrida não acredita em uma relação entre tempo dos discursos imagináveis”, não pode ser negado que o trabalho de
e (in)justiça que seja direta ou inequívoca. A desarticulação do tempo Derrida também manifesta marcantes características a-históricas. Tais
pode ser uma característica da injustiça, mas ela também condiciona dimensões a-históricas podem ser claramente vistas, por exemplo, na
a própria possibilidade da justiça. No mínimo, esse é o caso se alguém descrição de Derrida da metafísica da presença. Como temos visto
quer mover o conceito de justiça para além das práticas de vingança, acima, Derrida defende que a tradição do pensamento ocidental por
punição ou mesmo restituição com sua lógica de igualdade “calculável”, no mínimo dois milênios e meio tem sido caracterizada pelo mesmo
de “responsabilização simétrica e sincrônica”, ou de um mero “fazer privilégio metafísico da presença. A mesma pressuposição metafísica,
correto”, com o objetivo de fazer possível o incalculável e a relação não 669 Derrida, Specters of Marx, p. 23.
670 Citado em: Derrida J., Archive Fever. A Freudian Impression. Chicago,
666 Derrida, Specters of Marx, p. 19. University of Chicago Press, 1996, p. 77.
667 Ibid. 671 Fritsch M., The Promise of Memory. History and Politics in Marx, Benjamin,
668 Derrida, Specters of Marx, pp. 21-27. and Derrida. Albany, State University of New York Press, 2005.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

por exemplo, segundo Derrida, figurou em teorias ocidentais do tempo conceito de tempo sempre permanecerá metafísico e sua crítica
de Aristóteles a Kant, passando por Marx e mesmo Heidegger, não das tentativas de Heidegger de conceber um tempo primordial não
importando se esses pensadores foram antigos ou medievais, modernos metafísico, pode-se questionar se o coração das noções desconstrutivas
ou pré-modernos. Assim, a metafísica da presença parece acolher uma de différance e trace não tomam em si mesmas a forma de uma
estranha característica trans-histórica no pensamento de Derrida. temporalidade primordial. Como Wood aponta, a ênfase de Derrida
no estatuto transcendental da différance – sua reivindicação que o
Similar déficit histórico pode ser observado nos conceitos
absolutamente nada pode precedê-la e que todas as formas de presença
filosóficos alternativos com os quais Derrida propõe substituir a
estão baseadas nela – está envolvida em um “alto grau mimético de
metafísica da presença. Noções como espectralidade e tempo fora-de-
argumentos transcendentais”.674 De acordo com Wood, Derrida nem
ordem, apesar das precauções de Derrida, frequentemente parecem
pode reivindicar o estatuto originário da différance, nem defender
referir a um fenômeno a- ou trans-histórico. Sobre a tese de Derrida
seu privilégio sobre a presença, sem cair na auto-ilusão. No entanto,
que o tempo está fora de ordem, Sande Cohen aponta corretamente
ao fazer a pergunta retórica se existe um lugar para uma noção de
que isso tende para uma “a-historicidade intemporal” porque é
différance sem este privilégio anexado, Wood responde que sim e
apresentada com demasiada frequência como um tipo de realidade
que isto está “precisamente no mesmo nível como existe lugar para
primordial que é eterna e imutável. Para citar as palavras enigmáticas
‘presenças’, ‘unidades’, e ‘identidades’ funcionando sem a segurança
de Cohen de modo justo:
metafísica que a filosofia está apta a conferir-lhes”.675 Ele acrescenta
A afirmação de que “o tempo está fora de ordem” é que:
sempre verdadeira, por isso todo presente está sempre
não-presente para si próprio, ainda que presente para si A dimensão apenas referida, na qual presença e différance
próprio exatamente daquela forma, portanto, relacionado encontram-se sem privilégio, eu nomearia dimensão da
aos espíritos e espectros, que são indícios de nossa fuga finitude humana. Nós estamos satisfeitos com as respostas
do que assombra. O presente deve ser imaginado como parciais a questões, significados incompletamente
um presente sempre não-presente em sua própria não- realizados, casos bons o bastante de imediaticidade. Temos
presença. Claro que essa relação (compreende Derrida) é um conhecimento tácito dos contextos, interpretamos
então também meta-metahistórica, desde que afirma que situações, sabemos o que é ver um pedaço de papel, ir a uma
nenhuma leitura de Marx ou do presente pode acontecer caminhada, e assim por diante. Derrida provavelmente não
sem o “primeiro” corpo verbal do espírito sempre conosco. disputaria isso. O que penso que ele esquece é que é dessa
Hipercontinuidade: espíritos e espectros movem-se em segurança diária, e de nossa compreensão tácita, embora
um tempo atemporal.672 vaga e mediana, que necessariamente começamos quando
consideramos, digamos, a contribuição da différance em
Uma crítica semelhante é formulada por David Wood. suas constituições. O presente sempre-pronto é a condição
Segundo Wood, Derrida em sua rígida justaposição da lógica da para a différance ser pensada. [...] O jogo da différance
identidade e da diferença – e sua rejeição da inteira tradição da não é infinito. [...] Diferença e identidade, ou différance e
filosofia ocidental como aprisionada na lógica da identidade – acaba presença, são pares ligados, e pode ser saudável pensar a
metafísica como o resultado de um privilégio hipertrofiado
reproduzindo uma oposição filosófica tradicional, essencialista e de um dos termos em cada par.676
metafísica.673 Apesar das repetidas afirmações de Derrida que o
672 Cohen S., Derrida’s “New Scholar,” pp. 169-170. 674 Ibid., p. 274.
673 Wood D., The Deconstruction of Time. Atlantic Highlands, Humanities Press 675 Ibid.
International, 1989. 676 Ibid., pp. 274-275. (Itálico no original)

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

A crítica de Wood da compreensão transcendental da


différance é importante porque nos dissuade de trocar o conceito
absoluto de tempo que criticamos por outra agência que estruturaria
de modo semelhante ou estaria na base de toda realidade. Em primeiro
lugar, no entanto, uma crítica da interpretação transcendental e
a-histórica da noção de différance e das ideias relacionadas de que
o tempo está fora de ordem é crucial porque esse fenômeno, como
Capítulo 8
temos visto, condiciona a possibilidade da espectralidade. Enquanto História e o trabalho de luto
não podemos conceber as diferentes quantidades ou qualidades da
différance – isto é, da différance como não idêntica a si mesma – nós
não seremos aptos a conceber mudanças intensas da espectralidade O dom de despertar no passado as centelhas da
ou do assombramento. Isso, no entanto, é importante porque uma esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não
abordagem genuinamente histórica da espectralidade deve ser capaz estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
de descrever o fato de que alguns “passados” assombram mais que inimigo não tem cessado de vencer.
outros e o fato de que existem diferentes níveis em que um presente
W. Benjamin677
pode ser assombrado. Uma descrição genuinamente histórica do
assombramento necessitará, por exemplo, ser capaz de explicar que
as situações de violência e guerra civil tendem a produzir um passado
Introdução
muito mais vigorosamente persistente que as situações estáveis e de
paz. Até agora tenho dedicado a maior parte deste livro para uma
análise que tenta compreender o fenômeno do passado irrevogável e
da performatividade focando nas noções de tempo e temporalidade.
Neste capítulo gostaria de complementar essa análise abordando a
questão de um ângulo um pouco diferente: tentarei aprofundar nossa
compreensão do irrevogável e da performatividade relacionando-as
aos problemas do luto e da morte.
Ultimamente, vários historiadores influentes e filósofos
da história argumentaram que existe uma estreita relação entre
a escrita da história e o trabalho de luto. Dominick LaCapra, por
exemplo, analisa a historiografia pós-holocausto usando os conceitos
psicanalíticos de “elaboração” e “passagem ao ato”, e propôs que o
677 Da tese VI. In: Benjamin W., Theses on the Philosophy of History. In:
Benjamin W., Illuminations. New York, Harcourt, Brace & World, 1968, pp. 253-
264, 255. [Nota dos tradutores: Para esta epígrafe, optamos utilizar a tradução para o
português BENJAMIN, Walter. “Sobre o Conceito da História”. In: Magia e técnica,
arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Volume I. 3ª edição. São
Paulo: Editora Brasiliense, pp. 222-232, p. 224-225].

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Historikerstreit alemão deveria ser interpretado como uma forma concepção de morte ou do modelo de luto a partir do qual partimos.
de luto coletivo.678 Jörn Rüsen argumenta que, em relação ao caráter
Já em meados da década de 1970, Michel de Certeau observou
traumático das experiências do século passado, a escrita da história
que a historiografia moderna é baseada em uma concepção de morte
pode ser concebida como um “procedimento de luto”. “A relação
particular, acrescentando que essa historiografia “toma como certo o
com o passado”, Rüsen escreve, “pode ser comparada à relação com
fato de que se tornou impossível acreditar nessa presença dos mortos
pessoas falecidas ou objetos no processo de luto”, e acrescenta, “então
que organizou (ou organiza) a experiência de civilizações inteiras”.681
em uma simples argumentação lógica, pode-se dizer que o luto é
Abaixo, portanto, argumento que se pode distinguir analiticamente
constitutivo para o pensamento histórico em geral e em princípio”.679
entre pelo menos dois conceitos profundamente diferentes de luto
Da forma semelhante, Ewa Domanska afirma que o discurso histórico
e morte que se relacionam com diferentes noções de historicidade:
é dependente do discurso da morte. Como ela explica:
a saber, um conceito moderno (sobretudo ocidental) de luto, e um
De fato, quando se fala do corpo morto, tocamos a própria conceito não-moderno de luto (mas não necessariamente não-
essência do discurso histórico que, indiscutivelmente, se ocidental). A diferença mais importante entre a relativamente jovem
origina da contemplação do corpo morto. Sem a morte
não haveria história. A história alimenta-se da morte. A teoria modernista do luto e o muito mais antigo e difundido conceito
história começa no túmulo.680 não-moderno de luto, argumentarei, pode ser encontrado nas
diferentes formas em que eles relacionam com as noções de “perda”
Concordo com LaCapra, Rüsen e Domanska que exista uma e “ausência”.682 Essas narrativas diferentes da relação entre “perda” e
relação próxima entre luto e historiografia e penso que esses autores
681 De Certeau M., The Writing of History. New York, Columbia University
estão certos quando argumentam que se pode aprender muito sobre Press, 1988, p. 7.
a escrita da história analisando-a a partir da perspectiva da prática do 682 Ao fazer uma distinção entre “perda” e “ausência”, estou inspirado pela obra
luto ou o discurso sobre a morte. Quando discuti o caso das Madres de Dominick LaCapra. Referindo-se a situações de pós-conflito como da Alemanha
de Plaza de Mayo argentinas, por exemplo, observei que a resistência após a Segunda Guerra e a África do Sul após o Apartheid, LaCapra argumenta que
é muito importante distinguir entre o conceito de perda e o conceito de ausência.
contra o tempo irreversível da história frequentemente se manifesta Essa distinção é importante porque uma confusão entre os dois pode levar a uma
como uma recusa em assumir a tarefa do luto e reconhecer a (metáfora confusão entre “traumas históricos” que são relacionados à perda causada por eventos
da) morte. Na conclusão preliminar seguinte aos três estudos de caso, históricos concretos e podem ser “superados” efetivamente, e traumas “estruturais” ou
reivindiquei, aliás, que a figura espectral do desaparecido e a ideia de “trans-históricos” que nunca podem ser remediados porque eles estão relacionados
a experiências indefinidas de falta ou de ausência de fundações metafísicas. Deve-
espíritos ancestrais errantes devem ser interpretadas como reflexões de se resistir a tendência de tratar mesmo as mais horrendas atrocidades históricas
concepções particulares da historicidade. Entretanto, neste capítulo, em termos de um discurso generalizado de ausência (metafísica). Inversamente, a
argumentarei que o que se aprende da comparação entre a história ausência das fundações metafísicas últimas não podem ser legitimamente remontadas
a qualquer perda histórica concreta, por mais traumática elas possam ser. Para citar
e o discurso sobre a morte ou a prática do luto depende muito da LaCapra: “Quando a ausência é convertida em perda, aumenta-se a probabilidade
678 LaCapra D., History and memory after Auschwitz. Ithaca, Cornell University da nostalgia deslocada ou utopia política em busca de uma nova totalidade ou
Press, 1998. Veja também: LaCapra D., Writing History, Writing Trauma. Baltimore, comunidade completamente unificada. Quando a perda é convertida em (ou
Johns Hopkins University Press, 2001. Ver também: LaCapra D., History in Transit. codificada em uma retórica generalizada indiscriminadamente de) ausência, enfrenta-
Experience, Identity, Critical Theory. Ithaca, Cornell University Press, 2004. se o impasse da melancolia infinita, do luto impossível e aporia interminável em que
qualquer processo de elaboração do passado e suas perdas históricas estão encerradas
679 Rüsen J., Mourning by history – ideas of a new element in historical thinking. ou abortadas prematuramente”. LaCapra D., Trauma, Absence, Loss. In: Critical
In: Historiography East & West, 1 (2003), 1, pp. 15-38, 18. Inquiry, 25 (1999), 4, pp. 696-727, 698. Enquanto estou inspirado pela distinção
680 Domanska E., Toward the Archaeontology of the Dead Body. In: Rethinking analítica de LaCapra, é importante notar que meu uso dos termos perda e ausência
History, 9 (2005), 4, pp. 389-413, 398. diferem consideravelmente daqueles de LaCapra. Quando falo sobre “ausência”, por

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

“ausência”, tentarei demonstrar, por sua vez, dão origem a diferentes algum tipo de perda (de uma pessoa amada ou de alguma “abstração”
noções de performatividade (“o trabalho de luto”) e diferentes relatos que toma o seu lugar, isto é, um ideal, um país, a liberdade, etc.), e
de ética (“a ética do luto”). Argumentando que a teoria moderna do porque ambos compartilham um conjunto particular de características
luto compartilha muitas características intelectuais com as concepções psicológicas (tais como perda de interesse no mundo exterior, perda
modernas da história, tentarei mostrar como uma análise da primeira de capacidade para amar, etc.). Entretanto, os dois estados mentais
pode nos ajudar a compreender porque é geralmente tão difícil para têm de ser distinguidos rigorosamente. Enquanto a melancolia pode
os pensadores modernos reconhecer o potencial performativo e as ser considerada uma disposição patológica que pode arrastar para
implicações éticas plenas das práticas discursivas da história. o resto da vida, o luto, de acordo com Freud, é uma característica
temporária e normal da vida. Como ele coloca:
Depois de contrastar os modelos modernos e não-modernos
de luto e discutir a forma que os mesmos se relacionam com conceitos nunca nos ocorre considerar [o luto] como uma condição
de tempo e história diferentes, teremos de lidar com a questão de qual patológica e remetê-lo para o tratamento médico.
Confiamos na sua superação após um certo lapso de tempo
conceito de luto melhor corresponde com a noção do irrevogável. Na e consideramos qualquer interferência a esse respeito
tentativa de responder a essa pergunta, voltarei mais uma vez à obra de como inútil ou até mesmo nociva.683
Jacques Derrida e, mais precisamente, à sua abordagem incomum do
luto, sobre a qual se pode argumentar que não é estritamente moderna Embora possa ser muito doloroso, o luto desempenha
ou não-moderna. um “trabalho” útil. Esse trabalho de luto começa, Freud argumenta,
após o “teste de realidade” mostrar que “o objeto amado não existe
mais” e demandar que toda ligação “libidinal” que apenas vive no ego
Luto moderno: o legado de Freud do enlutado seja retirada do objeto perdido. Em outras palavras, a
“realidade” demanda que o enlutado aceite que o perdido se tornou
A maneira mais fácil de analisar a teoria moderna do ausente. Como um comentador coloca, o trabalho de luto por
luto é sem dúvida focando no trabalho de Sigmund Freud e, mais Freud torna-se uma questão de “[...] revisão interna e de lidar com
especificamente, no influente e extraordinário relato do luto que ele as imagens mentais do item perdido”.684 Certamente, essa demanda
desenvolveu em seu ensaio “Luto e Melancolia” (publicado em 1917). frequentemente suscita oposição. É “uma questão de observação
O luto apenas desempenha um papel subordinado nesse ensaio, que geral”, Freud escreve, que as pessoas nunca apreciam abandonar
foca principalmente na melancolia, e Freud (parcialmente) revisou sua qualquer “posição libidinal”, mesmo quando estão disponíveis muitos
teoria do luto em ensaios posteriores, mas foram passagens de “Luto “substitutos” para a pessoa amada ou objetos.
e Melancolia” que vieram influenciar tanto o campo psicanalítico
quanto a conceitualização ocidental de luto mais ampla. Às vezes, a demanda de desapego é tão dolorosa que a
pessoa enlutada se afasta da “realidade” enquanto “se apega ao objeto
Em “Luto e Melancolia” o conceito de luto funciona
principalmente como uma maneira de lançar luz sobre o fenômeno 683 Freud S., Mourning and Melancholia. In: The Standard Edition of the
da melancolia. A comparação entre luto e melancolia é justificável, Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Volume 14) (ed. J. Strachey).
segundo Freud, porque ambos podem ser considerados reações a London, the Hogarth Press, 1953-1974, pp. 243-258, 243.
684 Volkan V. D., Not Letting Go. From Individual Perennial Mourners
exemplo, não me refiro à ausência das fundações metafísicas (tais como aquelas de to Societies with Entitlement Ideologies. In: Glocer Fiorini L., Bokanowski T.
uma comunidade original) mas, em vez disso, utilizo esse termo como o antônimo & Lewkowics S. (eds), On Freud’s ‘Mourning and Melancholia.’ London, The
da presença. International Psychoanalytical Association, 2007, p. 91.

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por meio de uma psicose alucinatória desejosa”.685 E, em muitos melancolia, argumenta ele, o mecanismo psicológico que lida com
casos, a crença na existência do objeto perdido é prolongada temporal a perda dolorosa por identificar-se com o objeto perdido e manter
e psicologicamente porque o desapego toma demasiada energia e as representações mentais do falecido no ego por um longo tempo
tempo. Normalmente, no entanto, “o respeito pela realidade ganha o é, de fato, difundido e bastante típico da maioria dos tipos de luto.689
dia” e o “comando da realidade” é realizado de forma fragmentada. “O Enquanto Freud não duvida do princípio da realidade que postula a
fato é”, Freud afirma, “que quando o trabalho do luto é completado, ausência dos mortos, e enquanto o desapego psicológico permanece
o ego torna-se livre e desinibido novamente”.686 O luto normal, o ideal de Freud, agora parece-lhe claro que nem toda parte da psique
então, de acordo com o Freud de “Luto e Melancolia”, contrasta humana lida com as “demandas da realidade” da mesma maneira
com o luto patológico que, por definição, é limitado no tempo. Sua após uma perda ocorrer. Similar ao que Freud já argumentou sobre a
principal diferenciação da melancolia (como um caso especial de luto melancolia em “Luto e Melancolia”, parece existir uma agência crítica
patológico) está situado no fato de que o luto normal experimenta na psique do enlutado que restringe o ego de obedecer prontamente
perda em um nível consciente e que o ego enlutado sabe simplesmente ao princípio da realidade. Devido o fenômeno ser tão difundido, essa
que tem que se desapegar de um conjunto de representações mentais agência crítica, segundo Freud, merece ser considerada uma parte
interiorizadas do falecido. A pessoa melancólica, em contraste, relativamente autônoma e separada do eu – ele fala sobre um “Ego-
frequentemente nega a perda ou experimenta a perda em um nível ideal” ou de um “Super-ego” que tem de ser diferenciado do “Ego”
inconsciente, o que pode resultar em auto-ódio ou uma diminuição e do “Id”. Desta forma, a teoria do luto ocupa um lugar central na
da auto-estima quando a ansiedade e a raiva sobre a perda se voltam famosa divisão freudiana do eu.
contra o ego. Citando Freud: “No luto é o mundo que se tornou pobre
Voltarei à teoria do luto de Freud abaixo, mas por agora deve
e vazio; na melancolia é o próprio ego”.687
ser notado que, enquanto Freud produz uma teoria inovadora e sutil
Agora, como já observei, enquanto essa abordagem fez-se sobre o eu, seu trabalho sobre o luto carece de uma elaborada noção
dominante no século vinte no Ocidente, a teoria do desapego e da do social. Tanto em seu primeiro e último relato, o luto e a melancolia
substituição do luto, desenvolvida em “Luto e Melancolia”, não foi o são conceituados como fenômenos pessoais, e Freud nunca realmente
relato final de Freud. Freud fez uma importante revisão da teoria do engaja-se em uma análise do luto coletivo. Como Martin Bergmann
luto em seu ensaio intitulado “O Ego e o Id” (1923).688 Nesse ensaio, observa, esse fato apenas torna-se estranho, considerando que Freud
Freud distancia-se de sua ideia anterior de que o luto, em contraste escreveu suas teorias de luto durante e pouco depois de uma das
à melancolia, pode ser terminado facilmente após um certo lapso maiores catástrofes sociais do século vinte, que trouxe perda coletiva e
de tempo e que o ego sempre re-emerge “livre” e “sem amarras” a necessidade de luto coletivo a uma escala não vista.690 Outra ausência
após completar a tarefa de luto. Possivelmente sob a influência de notável nas descrições de luto de Freud é a de qualquer referência a
experiências dolorosas de perda em sua vida privada, Freud veio a dimensões rituais: Freud nunca estuda ou comenta sobre a função dos
acreditar que o contraste entre luto e melancolia era menos rígido rituais de luto (coletivos). Enquanto é difícil avaliar em que medida
do que ele tinha suposto anteriormente. No lugar de se restringir à a teoria do luto de Freud é o produto de tendências sócio-culturais
mais amplas e em que medida suas ideias influenciaram essas
685 Freud, Mourning and Melancholia, p. 244.
686 Ibid., p. 245. 689 Freud, The Ego and the Id, p. 28.
687 Ibid., p. 246. 690 Bergmann M. S., Introduction. In: Glocer Fiorini, Bokanowski & Lewkowics,
688 Freud S., The Ego and the Id. In: The Standard Edition, Vol. XIX, pp. 12-66. On Freud’s “Mourning and Melancholia,” pp. 1-15, 8.

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tendências mais amplas, é claro que sua descrição do luto incorpora instante.”. Enquanto um período “mais ou menos prolongado” de
a maioria das características que os sociólogos atribuíram às típicas luto começa após a ocorrência da morte, e enquanto as cerimônias
práticas ocidentais de luto durante o século vinte: sua privatização, comemorativas são às vezes realizadas em honra do falecido por um
individualização e psicologização.691 certo período de tempo, acredita-se que o falecido ou falecida se foi
e seu corpo pode ser enterrado imediatamente. Como explica Hertz:
“O único propósito da demora de dois ou três dias entre a morte e o
Práticas de luto não-modernas sepultamento é permitir que sejam feitos os preparativos materiais e a
Vamos agora contrastar o relato arquetipicamente convocação de parentes e amigos”.693 Muito mais comum que a ideia
modernista do luto de Freud com um breve esboço de algumas modernista de uma morte instantânea, no entanto, acredita-se que a
características gerais das concepções não-modernas do luto. morte em muitas culturas seja um processo; um processo, aliás, que
Certamente, não existe tal coisa como uma prática não-moderna demanda por intervenções rituais e impõe uma série de obrigações aos
unificada, ou mesmo um conceito de luto: de fato, os antropólogos vivos. Essa abordagem da morte, segundo Hertz, reflete-se em práticas
gostam de apontar uma série infinita de sutis diferenças nos rituais de funerais que são muito difundidas de formas variadas: a prática do
luto e nas práticas funerárias em diversas culturas e subculturas em duplo sepultamento. Em muitas culturas, é um costume organizar um
todo o mundo. No entanto, como o meu interesse principal é traçar funeral temporário durante o qual o corpo do falecido é colocado em
alguns contrastes básicos e porque meu foco é meramente analítico, um abrigo temporário antes que seja levado para um sepultamento
será suficiente recorrer a dois relatos clássicos de rituais de luto não- final que acontece durante uma segunda cerimônia.
modernos que foram oferecidos pelos antropólogos Robert Hertz e Até a execução do rito do sepultamento final, acredita-se
Arnold van Gennep em 1907 e 1909 respectivamente. que tanto a comunidade dos vivos tanto quanto a dos mortos estão
Os rituais de sepultamento não-modernos e as práticas de expostas a perigos graves. Isso, é claro, a partir do fato que a prática
luto, argumenta Robert Hertz, apenas podem ser compreendidos se do duplo funeral envolve preocupações que não se limitam ao corpo
ocorrer a constatação de que a morte humana não pode ser reduzida do falecido, mas também sobre seu/sua alma e sobre o bem estar dos
a um fenômeno meramente biológico ou fisiológico (como, segundo sobreviventes. Como Hertz explica:
ele, é com demasiada frequência feito por observadores modernos Da mesma maneira que o corpo não é levado de imediato
ocidentais), mas sempre envolve dimensões sociais e culturais.692 Em ao seu “último lugar de descanso”, assim a alma não alcança
sua destinação final imediatamente após a morte. Deve
“nossa sociedade”, Hertz sustenta, escrevendo na França no começo primeiro passar por um tipo de provação, durante a qual
do século vinte, acredita-se geralmente que a morte ocorre “em um permanece na terra nas proximidades do corpo, vagando
691 Homans P. (ed.), Symbolic Loss. The Ambiguity of Mourning and Memory na floresta ou frequentando os lugares habitados enquanto
at Century’s End. Charlottesville, University Press of Virginia, 2000, pp. 6-9. Essa estava viva: apenas no final desse período, na ocasião do
caracterização das práticas ocidentais modernas de luto, é claro, não implica que não segundo funeral, e graças a uma cerimônia especial, que
existam mais manifestações de luto coletivo no mundo ocidental. Mais propriamente, entrará na terra dos mortos.694
sociólogos observam que a tarefa do luto em situações comuns (a morte “natural”
de um parente, por exemplo) não é mais regulada publicamente e que isso veio a ser Por algum tempo, a alma do falecido está assim presa
tratado como a responsabilidade do indivíduo. entre dois mundos, e não tem lugar de descanso até a última festa de
692 Hertz R., Death and the Right Hand. Aberdeen, Cohen & West, 1960, p. 27.
A expressão não-moderno é minha, é claro; Hertz na maioria das vezes usa o termo 693 Ibid., p. 28.
primitivo para referir-se aos rituais de luto que ele descreve. 694 Ibid., p. 34.

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sepultamento. Esta terrível posição da alma falecida explica porque ela em vez de uma mera destruição.
pode tornar-se uma ameaça para os sobreviventes:
Esta noção de morte como transição nos conduz a obra
Desse modo não é uma surpresa que, durante esse período, de Arnold van Gennep. A principal contribuição intelectual de Van
a alma deve ser considerada como um ser malicioso: ela Gennep para a análise do luto foi propor que as práticas de luto ou
encontra a solidão na qual foi impelida duramente para
suportar e tenta arrastar os vivos com ela. [...] Ela assiste os rituais funerários não-modernos tem que ser interpretados como
o luto de seus parentes de forma penetrante e se eles não ritos de passagem.696 Os ritos funerários, comparáveis a outros ritos de
cumprem propriamente os seus deveres para consigo passagem tais como os realizados para marcar a passagem da infância
mesmos, se eles não preparam ativamente sua libertação, à masculinidade, para acompanhar o parto, o casamento, etc., alega
a alma torna-se irritada e infringe doenças sobre eles, pois Van Gennep, seguem um modelo estrutural que pode ser dividido em
a morte lhe dotou com poderes mágicos que a permite
três fases inter-relacionadas, mas distintas, de separação, transição e
colocar suas más intenções em prática.695
incorporação. Curiosamente, os dados de pesquisa de van Gennep – em
A tarefa do luto com que os parentes sobreviventes são contraste com o que seria esperado de uma perspectiva modernista –
encarregdos não apenas tem de ser executada meticulosamente mostraram que não são os ritos de separação, mas os ritos de transição
para apaziguar a alma do falecido, mas também inclui uma série de e ritos de incorporação que figuram mais proeminente em práticas
proibições sociais que servem para proteger a comunidade em geral. não-modernas de luto. Claramente, o que mais preocupa as culturas
Devido a morte e o cadáver serem, em muitas culturas, considerados não-modernas confrontadas com a perda é o estado transicional ou
contagiosos, os parentes sobreviventes são frequentemente sujeitos “liminar” entre a morte e a vida de tanto o falecido e, através da lógica
a uma série de tabus e são separados do resto da sociedade por um do contágio, os parentes vivos. Os ritos complexos e elaborados de
banimento. Eles são ordenados a usarem uma vestimenta diferente, transição e incorporação, então, objetivam primariamente restaurar
assumir uma dieta diferente, e frequentemente não podem receber as fronteiras entre a vida e a morte. Como explica van Gennep:
quaisquer visitantes, e às vezes são confinados a suas casas por longos O luto, visto anteriormente por mim como um simples
períodos. agregado de tabus e práticas negativas marcando um
Assim, em contraste com sua variação modernista, que isolamento da sociedade daqueles cujo a morte, em sua
realidade física, colocou em um estado sagrado, impuro,
restringe principalmente a tarefa de luto à vida interior do indivíduo agora aparece para mim como sendo um fenômeno mais
e a trata em termos primeiramente psicológicos, o luto não- complexo. Trata-se de um período transicional para os
moderno comumente é um fenômeno inerentemente coletivo que sobreviventes, e eles entram pelos ritos de separação e
tem implicações sociais de longo alcance. Enquanto o costume do emergem deles pelos ritos de reintegração na sociedade
duplo sepultamento aparece em muitas variações, ele é geralmente (ritos de suspensão do luto). Em alguns casos, o período
transicional dos vivos é uma contrapartida do período
organizado em torno de um conjunto de premissas comuns sobre transicional dos falecidos, e o término do primeiro por
a natureza da morte. Em primeiro lugar, argumenta Hertz, ao invés vezes coincide com o término do segundo – ou seja, com a
de ser completado instantaneamente, a morte é compreendida incorporação do falecido no mundo dos mortos.697
como um longo processo que na maioria das vezes é considerado
Como Robert Hertz, van Gennep salienta que o luto não-
como terminado apenas quando o corpo do falecido é inteiramente
decomposto. Em segundo lugar, a morte é considerada uma transição
696 van Gennep A., The Rites of Passage. London, Routledge & Kegan Paul, 1977.
695 Hertz R., Death and the Right Hand, pp. 36-37. 697 van Gennep, The Rites of Passage, pp. 146-147.

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moderno é essencialmente uma preocupação coletiva com muitas meramente alteram e então continuam seu relacionamento com o
dimensões sociais. Tradicionalmente, toda vida social é suspendida morto. Certamente os enlutados têm de mudar sua relação com a
durante o período de luto, e quanto tempo isso leva depende do grau pessoa perdida e essa mudança é bastante radical, mas isso não implica
de parentesco dos sobreviventes do falecido, ou do estatuto social necessariamente que a relação termina. Estudos sobre as viúvas,
da pessoa morta. Se o falecido era um rei importante, por exemplo, enlutamento parental e as crianças enlutadas, por exemplo, mostram
van Gennep explica, toda sociedade poderia se esperar que toda a que muitos enlutados por muito tempo ou até mesmo pelo resto de
sociedade interrompesse a sua vida normal por um período de vários suas vidas continuam a sentir a presença de seus parentes perdidos e
meses. que às vezes se envolvem em relacionamentos com os mortos muito
conscientemente. Em contraste com o modelo ocidental dominante
Enquanto a ideia da morte como uma transição – em vez de
do século vinte, que postulava que os enlutados deviam deixar o
algo que acontece em uma instância e em si mesma não leva tempo
passado passar e que definiam qualquer relação sustentada com os
– pode parecer muito estranho de uma perspectiva modernista, ela
mortos em termos de patologia, vários psicólogos argumentam agora
certamente não foi e ainda não está ausente na história sociocultural
que os enlutados não devem ser forçados a deixar o passado descansar
do Ocidente. O costume de organizar uma vigília para o falecido,
ou focarem em novos apegos no presente. Como um comentarista
que outrora foi bastante universal no Ocidente e de fato apenas
explica, pesquisas recentes mostram que:
recentemente desapareceu, reflete a crença de que a morte é um
processo e que a alma da pessoa morta permanece dentro ou em volta A conexão remanescente deu a impressão de facilitar
do cadáver por um certo período em que tem de ser guardado. ambas as capacidades dos adultos e das crianças de lidar
com a perda e as mudanças concomitantes em suas vidas.
Além disso, embora a teoria inicial do luto de Freud em Essas ‘conexões’ proporcionaram consolo, conforto e
termos de desapego e substituição libidinais foi muito influente e apoio e aliviaram a transição do passado para o futuro.699
permaneceu largamente incontestada no Ocidente por muito tempo, Que o modelo dominante de luto “saudável” foi, e ainda é, tão
ela é criticada recentemente em várias frentes. Muitos manifestam resistente à falsificação empírica e que o mesmo é tão teimoso na
seu desconforto com a ideia de que os apegos às pessoas amadas reivindicação que o desapego é o resultado final normal do luto, é o
perdidas podem ser facilmente abandonados e substituídos por novos efeito de uma série de ideias e ideais modernistas sobre a natureza do
apegos. No entanto, a oposição à descrição modernista clássica do eu e a soberania do indivíduo que são mais desejo do que a realidade.700
luto não é apenas expressa em termos éticos ou emocionais. Uma Como argumenta um comentarista:
reação importante vem de um grupo de psicólogos que alegam
A ideia da moda que o propósito do luto é o do desapego
que o modelo clássico de luto subestima os apegos duradouros ou do falecido e o de seguir adiante não é baseada em pesquisa,
“vínculos contínuos” que a maioria dos enlutados mantêm com tampouco em experiência clínica, mas no valor cultural
o falecido.698 Dados abundantes de pesquisas, eles argumentam, ocidental da autonomia.701
mostram que o processo de luto não é primariamente “um estágio de
699 Klass D., Silverman P. R. & Nickman S. L., Preface. In: Klass, Silverman &
desengajamento” mas, antes, que os enlutados com frequência apenas Nickman (eds), Continuing Bonds, pp. xvii-xxi, xviii.
700 Silverman P. R. & Klass D., Introduction. What’s the Problem? In: Klass,
698 Ver por exemplo: Klass D., Silverman P. R. & Nickman S. L. (eds), Silverman & Nickman (eds), Continuing Bonds, pp. 3-27, 4.
Continuing Bonds. New Understandings of Grief. Philadelphia, Taylor and Francis, 701 Tony Walter citado em: Small N., Theories of Grief. A Critical Review. In:
1996. Ver também: Walter T., A New Model of Grief. Bereavement and Biography. Hockey J., Katz J. & Small N. (eds), Grief, Mourning and Death Ritual. Buckingham,
In: Mortality, 1 (1996), 1, pp. 7-25. Open University Press, 2001, pp. 19-48, p. 34.

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O que o luto nos diz sobre a história? sido creditada por implicar um repensar radical do tempo.703 Em
seu ensaio “Pensamentos para os tempos em guerra e morte”, por
Nosso foco principal aqui não é, em primeiro lugar,
exemplo, Freud parece desenvolver uma tese sobre a persistência do
direcionado a uma análise dos conceitos e práticas de luto em e por
passado quando, para explicar as abominações da Primeira Guerra
eles mesmos. Antes, como já indiquei, quero discutir se e como esses
Mundial, ele alega a sobrevivência dos antigos impulsos instintivos no
modelos diferentes de luto podem nos ensinar alguma coisa sobre
homem moderno.704 Da mesma maneira a descrição de Freud do luto
a história. Nessa perspectiva uma das diferenças mais marcantes
(no mínimo aquela em “O Ego e o Id”) parece incluir algum sentido do
entre conceitos de luto modernos e não-modernos é encontrado nas
passado persistente quando ele reconhece que os sobreviventes muitas
diferentes maneiras em que são percebidos (as fronteiras entre) vida
vezes prolongam psicologicamente a presença dos seus parentes
e morte e nas diferentes maneiras em que eles acoplam as noções de
perdidos por incorporá-los como imagens mentais em seus egos. No
“perda” e “ausência”. Enquanto a morte é obviamente experienciada
entanto, essa sobrevivência dos mecanismos psicológicos primevos
como uma forma de perda (por que outro motivo alguém se enlutaria?),
e a persistência assombrosa de imagens dos mortos, segundo Freud,
as práticas não-modernas de luto refletem uma crença difundida que
são dependentes de uma estrutura especial da psique humana que
a morte não torna (imediatamente, em si mesma) a pessoa falecida
fortemente contrasta com todas as outras dimensões “externas” ou
(inteiramente) ausente e que, portanto, as fronteiras entre a vida e a
“materiais” da realidade. Como Freud explica:
morte não são absolutas. Se é uma hipótese correta a de que existe uma
relação direta entre a maneira que se concebe a morte e a maneira que o desenvolvimento da mente mostra uma peculiaridade que
se concebe a historicidade, ou, como Jörn Rüsen coloca, que o luto é é presente em nenhum outro processo de desenvolvimento.
Quando uma aldeia cresce transformando-se em uma
“constitutivo” da historicidade, então a série de ideias não-modernas cidade ou uma criança em um homem, a aldeia e a criança
sobre a morte é incompatível com a ideia de um passado ausente ou tornam-se perdidas na cidade e no homem. A memória
uma estrita separação entre passado e presente. sozinha não pode traçar as características antigas na nova
imagem; de fato, os materiais ou formas antigas foram
O arquétipo freudiano do luto moderno, em contraste, eliminadas e trocadas por novas. Isso é diferente com o
nos dá uma imagem que se encaixa muito melhor com a noção do desenvolvimento da mente. Aqui pode-se descrever o
passado ausente ou distante. Isso pode parecer estranho à primeira estado de coisas, com o qual nada pode ser comparado,
vista, porque Freud frequentemente é apresentado como um teórico apenas por dizer que nesse caso todo estágio anterior de
do passado assombroso.702 Em uma certa medida isso é claramente desenvolvimento persiste ao lado do último estágio que
emergiu a partir dele; aqui a sucessão também envolve
verdade. Freud tem um interesse especial no tema do assombramento, co-existência, embora são os mesmos materiais que toda a
e sua teoria psicoterápica do “Nachträglichkeit” frequentemente tem série de transformações se aplica. O estado mental anterior
702 Richard Terdiman, por exemplo, sustenta que: “Nenhuma teoria moderna da
ação individual ou processo cultural fez mais da memória que a de Freud. Nenhuma 703 Muitas vezes, no entanto, essa suposta ligação entre a teoria do
concebeu a preservação do passado no presente como mais problemática”. Terdiman Nachträglichkeit e a redefinição de noções de tempo e causalidade baseia-se numa
R., Present Past. Modernity and the Memory Crisis. Ithaca, Cornell University leitura errada da teoria de Freud. Para uma reflexão crítica sobre o conceito de Freud
Press, 1993, p. 242. Michel de Certeau argumenta que a historiografia moderna e a de Nachträglichkeit e as muitas maneiras diferentes nas quais ele foi interpretado
psicoanálisis são baseadas em cronosofias opostas ou o que ele chama “estratégias do por outros, ver: Thomä H. & Cheshire N., Freud’s Nachträglichkeit and Strachey’s
tempo”. Enquanto a historiografia está baseada em uma ruptura limpa entre passado ‘Deferred Action.’ Trauma, Constructions and the Direction of Causality. In:
e presente, de Certeau argumenta, “a psicanálise reconhece o passado no presente”. International Review of Psycho-Analysis, 18 (1991), pp. 407-427.
De Certeau M., Heterologies. Discourse on the Other. Minneapolis, University of 704 Freud S., Thoughts for the Times on War and Death. In: The standard
Minnesota Press, 2006, p. 4. (Itálico no original) Edition, Vol. XIV, pp. 273-302.

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pode não se manifestar por anos, mas ainda assim está tão ou espíritos persistentes. No lugar de interpretar essas crenças como
presente que pode em qualquer momento novamente uma reflexão de noções alternativas de historicidade, no entanto, ele
tornar-se o modo de expressão das forças da mente, e de interpreta-as como “características de [...] baixos níveis de cultura”
fato a única, como se todos os últimos desenvolvimentos
fossem anulados ou desfeitos.705 e, mais exatamente, como o resultado de uma incapacidade da parte
dos “primitivos” de aceitar e compreender a realidade da morte e
Apesar ou por causa de seu estatuto excepcional, a transitoriedade.708
temporalidade especial ou a historicidade da psique, na visão de Freud,
como temos visto, é subordinada ao amplo princípio da realidade que Estreitamente relacionados à sua postura diferente sobre
é a da “transitoriedade de todas as coisas” e a da ausência da perda. a relação entre perda e ausência, os modelos modernos e não-
Como é expresso claramente no curto mas revelador ensaio intitulado modernos de luto também diferem fortemente em sua descrição da
“Sobre a transitoriedade”, é a lei universal da transitoriedade que torna performatividade e sua abordagem da ética. Enquanto em ambas
a tarefa do luto uma obrigação incontestável.706 Na perspectiva de as abordagens moderna e não-moderna o luto é considerado
Freud, o luto de fato vem funcionar como uma mera auto-adaptação como performativo (i.e., que “trabalha”), essa performatividade
à realidade externa: o trabalho de luto realiza no domínio da mente o é interpretada de maneiras opostas. Enquanto se deve estar bem
que o tempo e a história já tem realizado no mundo exterior. A recusa consciente do caráter problemático dessa dicotomia, poderíamos
ou inabilidade do luto e a continuação psicológica de qualquer relação dizer que as noções modernas e não-modernas de luto podem ser
com o morto, portanto, no fim apenas pode ser interpretado como um distinguidas por sua respectiva ênfase nas formas “externas” ou
tipo de “correr atrás” ou como um desajustamento ao ritmo do tempo “internas” da performatividade. Como temos visto, práticas não-
irreversível da história. modernas de luto são comumente baseadas na ideia que o processo
de morte pede por intervenções (rituais) ativas. Embora o luto não-
Em outras palavras, pode ser argumentado que Freud, em moderno tenha grandes implicações para a vida (social e mental) dos
vez de ser o teórico do irrevogável ou passado assombroso, reduz o sobreviventes, seu foco principal é sobre os próprios mortos: sobre o
irrevogável a partir de um amplo fenômeno histórico e social a uma precário destino dos seus corpos, mas especialmente sobre a separação
quase-patologia que deve ser situada na psique do indivíduo. Se as falível do mundo dos vivos, a temporária liminaridade, e finalmente a
práticas não-modernas de luto refletem uma visão de mundo em incorporação de suas almas ao mundo dos ancestrais. Da perspectiva
que dimensões do passado persistem em todas as possíveis esferas dos vivos nós podemos falar sobre uma performatividade “externa” do
da realidade, a teoria de Freud reduz essa sobrevivência à pequena trabalho de luto não-moderno. A teoria dominante do luto moderno,
e isolada ilha da memória humana.707 Freud é bem consciente das em contraste, não tem o sentido de tal performatividade externa, pois
práticas não-modernas de luto e da difundida crença em ancestrais está envolvida na crença que os mortos se foram: a crença na ausência
705 Freud, Thoughts for the Times on War and Death, pp. 285-286. da perda. Porque o falecido, segundo a abordagem moderna, em um
706 Freud S., On Transience. In: The standard Edition, Vol. XIV, pp. 305-307, 306. senso estrito não existe mais, não há literalmente nada para realizar.
707 Freud não está sozinho com essa psicologização do assombramento. A abordagem moderna envolve preferencialmente um processo
Sua abordagem encaixa-se em uma ampla tendência intelectual que já iniciou de psicologização e individualização que redefine o luto como algo
com o racionalismo do século dezoito que tentou abolir a crença em fantasmas ao que acontece exclusivamente dentro da mente de sobreviventes
“psicologizá-los”, considerando-os como um produto da mente humana. Terry
Castle referiu a esse processo como “invenção do inquietante” pela Ilustração. Citado
em: Davis C., Haunted Subjects. Deconstruction, Psychoanalysis and the Return of the 708 Freud S., Totem and Taboo. Some Points of Agreement between the Mental
Dead. New York, Palgrave Macmillan, 2007, p. 7. Lives of Savages and Neurotics. In: The standard Edition, Vol. XIII, pp. 3-200, p. 24.

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individuais. O foco principal do trabalho de luto moderno pode, Certamente não proponho uma escolha entre uma das duas
portanto, ser chamado “interno”. descrições de luto e suas éticas. Apenas objetivei mostrar que modelos
diferentes de luto relacionam com diferentes descrições da história.
A respectiva ênfase na performatividade interna ou externa
A análise de diferentes vertentes de luto levanta algumas questões
obviamente também tem implicações éticas. De acordo com sua
importantes sobre a conceitualização da história, e mais exatamente
performatividade externa, o luto não-moderno desenvolve uma ética
sobre o fenômeno do irrevogável: Qual é a aparência das fronteiras
que é primeiramente baseada em uma responsabilidade para com os
entre passado e presente (elas são liminares?), se há tal coisa como o
mortos. O luto moderno, em contraste, enfrenta o problema de que
irrevogável, qual é o seu locus e qual e o seu modus? Onde e como o
um comentador chama “defesa impraticável”:709 já que os mortos não
passado persiste? Exclusivamente na memória individual ou na psique
existem mais, eles não podem mais ser prejudicados ou defendidos
de sobreviventes enlutados? E como deve ser concebida essa memória?
e, portanto, nenhuma responsabilidade ética direta pode ser
Em uma tentativa de providenciar algumas respostas a essas questões,
desenvolvida para com eles. A descrição moderna do luto, portanto,
agora me volto para a teoria do luto que Jacques Derrida desenvolveu,
vem com uma ética bastante minimalista (mas não necessariamente
e que pode ser considerada como um complemento para sua teoria da
menos convincente) que primeiramente foca na recuperação dos
espectralidade.
sobreviventes e frequentemente tomam a forma de uma injunção
(clínica) de desapego. A diferença entre a ética do luto moderno e
não-moderno é mais óbvia quando se considera sua reação (potencial
ou provável) a uma recusa ao luto, tal como a que encontramos no
Além do luto moderno vs. não-moderno: o legado de Jacques
caso das Madres de Plaza de Mayo argentinas. A recusa das Madres Derrida
ao luto seria provavelmente rejeitada tanto em um contexto de luto É difícil subestimar o peso do tema do luto no trabalho
não-moderno quanto em um contexto de luto moderno. No entanto, de Jacques Derrida. Iniciando a partir do início dos anos 1980,
a partir da perspectiva da descrição não-moderna do luto, a recusa Derrida escreveu uma longa série de elogios, ensaios memoriais e
ao luto é primeiramente uma ofensa para com o morto (a quem orações fúnebres para colegas e amigos falecidos geralmente muito
estão negando a intervenção ritual que eles necessitam) e para com pessoais.710 Enquanto apenas alguns desses textos tratam o tema
a sociedade (que depende da estrita observação dos rituais de luto do luto explicitamente, a maioria deles o fazem implicitamente, e
para sua proteção contra ataques de espíritos e contágio da morte). A todos eles, como um comentador observa, são textos de ou em luto
partir da perspectiva da teoria moderna do luto, em contraste, a recusa e, portanto, podem ser considerados como um “delimitável mini-
ao luto primeiramente vem a ser vista como uma ofensa lamentável corpus dentro do corpus de Derrida”.711 Isso não significa que o tema
contra a própria recuperação psicológica e a autonomia. No lugar do luto permanence não relacionado a outras partes do pensamento
de ser interpretada como uma ofensa contra os mortos ou contra a
710 Muitos dos textos comemorativos de Derrida estão reunidos em: Derrida J.,
sociedade, a recusa do luto tende a ser concebida como uma forma The Work of Mourning (ed. P. A. Brault & M. Naas). Chicago, University of Chicago
de patologia porque envolve alegadamente uma impossível rebelião Press, 2001. Um longo ensaio dedicado à memória de Hans-Georg Gadamer foi
contra o princípio da realidade ou contra a própria passagem do publicado separadamente como: Derrida J., Béliers: le dialogue ininterrompu entre
deux infinis, le poème. Paris, Éditions Galilée, 2003. Um excerto desse ensaio foi
tempo. traduzido como: Derrida J., Uninterrupted Dialogue. Between to Infinities, the Poem.
In: Research in Phenomenology, 34 (2004), pp. 3-19.
709 Spargo R. C., The Ethics of Mourning. Grief and Responsibility in Elegiac 711 Naas M., History’s remains. Of Memory, Mourning, and the Event. In:
Literature. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2004, p. 4. Research in Phenomenology, 33 (2003), pp. 75-96, 77.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

de Derrida. Pelo contrário: está estreitamente conectado a uma “incorporação idealizada” ou mesmo de “consumo” do outro. Como
multiplicidade de outros temas em sua obra. Em uma ocasião, Derrida ele explica: “Isso implica um movimento em que uma interiorização
até mesmo afirmou que “[...] a questão do luto [...] é o próprio coração idealizada toma em si mesma ou sobre si mesma o corpo e voz do
de qualquer desconstrução”.712 Mesmo se essa afirmação seja talvez outro, a fisionomia e pessoa do outro, idealmente e quase-literalmente
uma hipérbole – Derrida falou sobre vários outros temas como devorando-o”.714 Embora a interiorização (temporária) da imagem e
constituindo o coração da desconstrução – ela é definitivamente válida da memória de um amigo falecido ou parente seja na maioria das vezes
para a relação entre o luto e o tema desconstrutivo da espectralidade. bem intencionada e apresentada como um ato de fidelidade, Derrida
Uma análise da descrição de Derrida do luto pode, portanto, promover questiona se isso realmente contribui para a “salvaguarda do outro
um entendimento mais profundo da noção de espectralidade e a como outro”, ou se isso deve ser preferivelmente considerado um ato
reivindicação que o tempo está “fora de ordem”. de narcisismo ou até mesmo de “plagiarismo psíquico”.715 Deve ser
questionado em que medida o luto preserva o falecido “como outro
Apesar da ênfase em espectros persistentes, o pensamento
(uma pessoa viva-morta) dentro de mim”, em vez de considerar ela/
de Derrida não pode ser interpretado como uma subespécie do tipo
ele parte da memória do enlutado ou da psique e deste modo negar
não-moderno de luto que descrevemos acima. Embora, apesar da
ou reduzir seu/sua alteridade. Além disso, Derrida suscita a questão
grande influência de Freud em sua ampla filosofia, a teoria do luto de
se a alegação aparentemente afetuosa que finge guardar o morto
Derrida também desvia consideravelmente da descrição modernista
mentalmente vivo e intacto ou guardar o morto “salvo [...] dentro de
dominante do luto. A descrição do luto de Derrida, de fato, parece ser
mim”, não deve ser preferivelmente interpretada como implicitamente
uma mistura – um híbrido. Como tentarei demonstrar, essa descrição
dizendo que eles são “mortos salvos em mim” – mortos exceto pela
pode ser interpretado como um diálogo crítico com ambos os modelos
imagem guardada na minha memória. O dilema ético de Derrida do
de luto, o moderno e o não-moderno. Além disso, pode nos ajudar em
luto pode então ser expresso na forma das seguintes questões:
nossa tentativa de responder às questões mencionadas acima – a saber,
aquelas sobre o locus e o modus do irrevogável, sobre as fronteiras É a mais angustiante ou mesmo a mais mortal infidelidade
separando passado e presente, e sobre o estatuto da memória. essa de um luto possível que interiorizaria dentro de nós
a imagem, o ídolo, ou o ideal do outro que está morto e
O interesse de Derrida no luto, em primeiro lugar, parece vive apenas em nós? Ou é aquela do luto impossível, que,
derivar do dilema ético que o mesmo suscita, segundo ele: o luto nos deixando ao outro sua alteridade, respeitando desta forma
confronta com um “insuportável paradoxo de fidelidade”.713 Embora seu remover infinito, tanto recusa a tomar ou é incapaz de
tomar o outro em si mesmo, como no túmulo ou sepultura
seja claramente uma forma de infidelidade não se enlutar pelos mortos, de algum narcisismo?716
esquecê-los, ou negar sua morte, Derrida duvida se a prática moderna
dominante de luto é mais ética ou responsável para com os mortos. A única maneira de sair dessa aporia – de enlutar-se ou não
Sobre a influência da psicanálise, Derrida questiona, o discurso
ocidental do luto foi moldado quase exclusivamente nos termos da 714 Derrida J., Memoires for Paul de Man. New York, Columbia University
Press, 1986, p. 34. (Itálico no original)
memória e interiorização. Ele descreve o processo de luto como de
715 Derrida J., Fors. The Anglish Words of Nicolas Abraham and Maria
Torok. (Foreword) In: Abraham N. & Torok M., The Wolf Man’s Magic Word. A
712 Derrida J., The Time is Out of Joint. In: Haverkamp A. (ed.), Deconstruction Cryptonymy. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986, pp. xi-xlviii, xvii.
is/in America. A New Sense of the Political. New York, New York University Press, A expressão “plagiarismo psíquico” foi tomada de: Kirkby J., ‘Remembrance of the
1995, pp. 14-37, 21. Future.’ Derrida on Mourning. In: Social Semiotics, 16 (2006), 3, pp. 461-472, 470.
713 Derrida, The Work of Mourning, p. 159. 716 Derrida, Memoires for Paul de Man, p. 6. (Itálico no original)

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

– conclui Derrida, é pelo repensar da moderna teoria do luto como ser reduzida à “simples inclusão de uma fantasia narcisista em uma
para movê-la para além da ideia de uma interiorização idealizada que subjetividade que está próxima a si mesma ou mesmo idêntica a si”.721
eventualmente é destinada ao desapego psicológico. Em vez de reduzir O problema principal da descrição moderna do luto, segundo Derrida,
a existência do morto ao conjunto das lembranças vazias em custódia é ser situada precisamente na noção de interioridade (inter)subjetiva–
da vida íntima de alguns sobreviventes, Derrida cria uma descrição de o “em mim” ou “em nós” – por um lado, e a descrição simplista da
luto que postula a influência última do morto e que visa uma contínua “memória”, “passado” e “presente”, por outro. Começaremos com a
relação com ele. Essa descrição rompe com a tradicional justaposição descrição de Derrida da primeira noção.
do luto e da melancolia e despatologiza o contínuo engajamento das
Se queremos compreender o contínuo poder (ou a “força”)
pessoas com os mortos. Segundo Derrida, isso é necessário não apenas
dos mortos sobre os vivos e entender como os mortos resistem ao
do ponto de vista ético mas também do político, porque o luto toca o
fechamento da memória interiorizada, Derrida argumenta, deve-
coração da ideia do político.717
se parar de pensar em termos de uma simplista oposição entre o
“interior” e o “exterior”, entre o que pertence a nós e o que pertence
ao outro, ou entre o “olhar” e o “contemplar”. Em vez disso, deve-se
Desconstruindo a interioridade e a memória iniciar de uma topologia ou uma organização de espaço distinta.722
Certamente, Derrida não nega a realidade inegável da
morte: “o outro está morto e nada pode salvá-lo da sua morte, nem 721 Ibid., p. 22.
ninguém pode nos salvar dela”.718 Não se pode refutar, argumenta 722 Derrida, The Work of Mourning, p. 159. A reorganização de Derrida da
topologia do luto relaciona-se intimamente com a teoria sobre o “poder da imagem”
ele, que o falecido não está mais vivo em si mesmo(a). O único ser que ele extrai de Louis Marin. Por uma questão de espaço, não posso abordar essa
dos mortos é, de fato, “em mim” ou “em nós”, e mais exatamente em teoria aqui. Deixe-me esboçar as relações entre luto e a imagem no pensamento de
nossa “memória enlutada”. Uma vez que a morte ocorreu, Derrida Derrida em apenas poucas linhas. Todo o discurso de luto que fala sobre um dentro
e um fora, um “em nós”, ou sobre uma certa visibilidade (que Derrida chama uma
afirma que “não há mais qualquer escolha [...] exceto aquela entre a “geometria dos olhares”), é dependente segundo Derrida da ideia que os mortos
memória e a alucinação”.719 Para citar Derrida: apenas sobrevivem como imagens. Como Derrida explica: “Nós estamos falando de
imagens. O que está apenas em nós parece ser reduzível a imagens, que podem ser
Tudo permanece “em mim” ou “em nós”, “entre nós”, memórias ou monumentos, mas que são reduzíveis em qualquer caso a uma memória
após a morte do outro. Tudo é confiado a mim, tudo é que consiste de cenas visíveis que não são mais nada senão imagens, pois o outro de
legado ou dado a nós, e primeiramente para o que chamo quem elas são as imagens aparecem apenas como aquele que desapareceu ou faleceu,
memória – para a memória, o lugar desse dativo estranho. como aquele que, tendo falecido, deixou ‘em nós’ apenas imagens”. Para repensar o
Tudo o que parece termos deixado é memória, pois nada luto, Derrida argumenta, é necessário romper com a tradição ontológica que tende
parece capaz de vir mais a nós, nada está vindo ou vem, do atribuir um estatuto inferior à imagem (em relação ao objeto “original” ou pessoa
outro ao presente.720 que ela retrata) e aprender a aceitar que “a força da imagem tem a ver menos com o
fato que se vê alguma coisa nela que com o fato que alguém é visto lá nela”. Após ter
No entanto, isso não significa que o outro falecido analisado a teoria dos retratos de Louis Marin, Derrida chega à seguinte conclusão
simplesmente pertence ao passado ou que a existência dos mortos pode entranha e radical: “As imagens vêem mais que são vistas. As imagens nos olham”.
Derrida, The Work of Mourning, pp. 159-161 (Itálico no original). Sobre a teoria
da imagem de Derrida, ver também: Saghafi K., The Ghost of Jacques Derrida. In:
717 Derrida J., Aporias. Stanford, Stanford University Press, 1993, pp. 61-62. Epoché, 10 (2006), 2, pp. 263-286. Outra discussão interessante sobre a relação entre
718 Derrida, Memoires for Paul de Man, p. 21. a morte e a imagem pode ser encontrada no trabalho de Robert Pogue Harrison. De
acordo com Harrison, ritos funerais não visam apenas, ou mesmo primeiramente,
719 Ibid., p. 28. uma separação ritual dos vivos e mortos, mas em primeiro lugar, servem para separar
720 Ibid., p. 33. (Itálico no original) a imagem do falecido do corpo ao qual essa imagem, de outra forma, permaneceria

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Como Derrida explica em um texto escrito sobre a morte de Roland antes do outro e aquele que vê o outro morrer tem a responsabilidade
Barthes: de enterrar e celebrar o outro.726
Roland Barthes olha para nós (dentro de cada um de Enquanto o outro falecido desta forma apenas vive em mim
nós, portanto cada um de nós pode então dizer que o ou nós, a própria noção do eu e do social estão dependentes do luto
pensamento de Barthes, memória, e amizade interessa
somente a nós) e nós não fazemos como gostaríamos desse outro – um luto que inicia muito antes da “efetiva” morte do
com esse olhar, apesar de cada um de nós ter o mesmo outro. Nas palavras de Derrida:
à sua disposição, à sua própria maneira, de acordo com [Os falecidos] vivem apenas em nós. Mas nós nunca somos
seu próprio lugar e história. Está dentro de nós mas não nós mesmos, e entre nós, idêntico a nós, um “eu” nunca
é nosso; não o temos à disposição como um momento ou está em si mesmo ou idêntico a si mesmo. Essa reflexão
parte de nossa interioridade.723 especular nunca se encerra em si mesma; não aparece
A razão para essa desapropriação, ou essa impossibilidade do anteriormente a essa possibilidade de luto, anteriormente
e fora dessa estrutura de alegoria e prosopopéia que
eu de interiorizar completamente e possuir o morto, é que o (falecido) constitui antecipadamente todo “ser-em-nós”, “em-mim”,
outro sempre já está instalado na “estrutura narcisista” ou na relação entre nós, ou entre nós mesmos. O selbst, o soi-même, o
do eu para consigo mesmo.724 “Em minha relação comigo mesmo”, si-mesmo aparece para si mesmo apenas nessa alegoria
Derrida escreve, “[o outro] está aqui em mim ante a mim, mais forte enlutada, nessa prosopopeia alucinatória – e mesmo
ou mais vigoroso que eu”.725 O eu, de fato, apenas emerge através da anteriormente à morte do outro efetivamente acontecer,
como nós dizemos, em ‘realidade’.727
experiência dos outros ou mais exatamente através da experiência dos
outros que podem morrer e deixar-nos com a responsabilidade de Dado o fato que o luto é constitutivo do si-mesmo, Derrida
lembrá-los. O que conta para a constituição do eu, segundo Derrida, argumenta, o morto pode apenas possivelmente ser interiorizado
também conta para a constituição do social. É precisamente a terrível por “exceder”, “ferir”, ou “fraturar” a própria interioridade que tenta
experiência de ser deixado sozinho ou a terrível solidão sobre a incorporá-lo. Além de ser constitutivo do si-mesmo e do social, o
morte do outro que permite-nos (eu, nós) pensar as noções de “eu”, luto, desta forma, também revela os limites do “eu” e do “nós” porque
“nós”, “entre nós”, “subjetividade” e “intersubjetividade”. Deve ser estes últimos são obrigados a abrigar algo que é “maior e outro que
sempre lembrado, Derrida argumenta, que a interioridade subjetiva e eles; alguma coisa fora deles dentro deles”.728 Consequentemente, não
intersubjetiva não emerge antes da terrível experiência da morte. No faz muito sentido falar de interioridade e exterioridade em termos de
entanto, a constituição do eu ou o social não necessariamente espera uma estrita oposição. Como Derrida explica:
o “efetivo” evento da morte: é suficiente para a morte ser possível ou Por mais narcisista que possa ser, nossa especulação
ser antecipada. A importância de um tal “luto antecipado” claramente subjetiva não pode mais dimensionar e apropriar esse olhar
manifesta a si mesmo no fenômeno da amizade, que, segundo Derrida, [do outro falecido; neste caso Derrida está se referindo
é baseado na lei extremamente segura que um amigo sempre morrerá a Louis Marin] ante ao qual aparecemos no momento
quando, carregando-o em nós, carregando-o junto com
ligado. Como ele coloca: “Entre o morto e o não-morto a diferença essencial jaz na todo momento de nossa atitude ou comportamento, nós
liberação da imagem”. Harrison R. P. The Dominion of the Dead. Chicago, University
of Chicago Press, 2003, p. 148. 726 Ibid., p. 159. Ver também: Derrida J., The Politics of Friendship. New York,
723 Derrida, The Work of Mourning, p. 44. Verso, 1997. E também: Derrida, Uninterrupted Dialogue, p. 7.
724 Derrida, Memoires for Paul de Man, p. 22. 727 Derrida, Memoires for Paul de Man, p. 28. (Itálico no original)
725 Derrida, The Work of Mourning, p. 160. 728 Ibid., p. 34.

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podemos superar nosso luto dele apenas pela superação a uma “memória de pensamento” que depende (parcialmente) de
de nosso luto, superando, por nossa conta, o luto de nós objetos externos ou traços, ou o que Derrida chama “hypomnesis”
mesmos, quero dizer o luto de nossa autonomia, de tudo técnica e mecânica. O conceito de Gedächtnis é importante porque
que nos faria a medida de nós mesmos.729
ajuda a nos mover além de uma memória interiorizada ou, como
O luto antecipado e a radical dissimetria criada pela natureza Derrida coloca, “além da interioridade afligida da introjeção
constitutiva da morte, segundo Derrida, inscreve uma “anacronia simbolista”. Como ela não reduz o outro necessariamente à estrutura
essencial em nosso ser exposto ao outro” – eles vem para desintegrar narcisista do si-mesmo, essa noção de memória, segundo Derrida,
o presente vivo. Isso me leva à segunda desconstrução subjacente à carrega consigo um potencial afirmativo que oferece a possibilidade
teoria do luto de Derrida: aquela da descrição clássica da memória. de um “engajamento além da negatividade” e uma fidelidade que vai
A questão da memória tem um destaque proeminente além do encerramento ou desapego efetuado pelo trabalho moderno
na obra de Derrida. Derrida referiu-se muitas vezes ao seu próprio do luto. Como Derrida coloca:
legado intelectual como uma luta contra a perda da memória e como Quando nós dizemos “em nós” ou “entre nós” para
uma tentativa de definir, compreender, e chegar a uma acordo com lembrar a nós mesmos fielmente “para a memória de”, de
as injunções éticas que se relacionam à memória. Como Gerhard qual memória estamos falando, Gedächtnis ou Erinnerung?
O movimento de interiorização guarda dentro de nós
Richter argumenta, o ímpeto ético-político central subjacente à obra a vida, pensamento, corpo, voz, olhar ou alma do outro,
de Derrida poderia ser descrito como uma mnemophilia, um amor mas na forma dessas hypomnemata, memorandos, signos
da memória, em vez de uma mera philosophia no sentido original de ou símbolos, imagens ou representações mnésicas que
um amor da sabedoria.730 Uma vez que é tão central para seu projeto são apenas fragmentos lacunares, distanciados e dispersos
filosófico, não deve surpreender que Derrida desenvolve sua própria – apenas “partes” do outro ausente. Por sua vez, eles são
parte de nós, incluídos “em nós” em uma memória que
interpretação da memória – uma interpretação que é crítica e que subitamente parece maior e mais antiga que nós, “maior”,
difere radicalmente da maioria das conceituações mais comuns da além de qualquer comparação quantitativa: sublimemente
memória. maior que esse outro que a memória abriga e guarda dentro
dela, mas também maior com esse outro, maior que a si
A memória, Derrida argumenta, é muito facilmente própria, inadequada a si própria, grávida com esse outro.
equiparável à interiorização subjetiva e à dimensão temporal do
passado. Em alguns idiomas, a equação da memória e da interiorização E ele acrescenta um pouco mais adiante que:
é até mesmo refletida semanticamente – este é o caso, por exemplo, Fala do outro e faz o outro falar, mas o faz assim para deixar
com o termo alemão Erinnerung. Esse acoplamento, no entanto, que o outro fale, pois o outro teria falado primeiro.731
não é necessário. Derrida refere-se à discussão de Paul de Mann da Deixe-nos, então, voltar para a crítica de Derrida da
distinção analítica que Hegel fez entre a noção de Erinnerung e a noção interpretação da memória como “do passado”. Para compreender essa
de Gedächtnis. Em contraste à lembrança interiorizada e subjetiva crítica, deve-se levar em conta as afirmações de Derrida sobre a relação
significada pelo termo Erinnerung, a palavra Gedächtnis refere-se íntima entre a memória e o nome próprio, e entre o nome próprio e
as noções de “vida” e “morte”. O que comumente chamamos a vida
729 Derrida, The Work of Mourning, p. 161. (Itálico no original) de alguém é o momento quando essa pessoa está apta a responder ao
730 Richter G., Acts of Memory and Mourning. Derrida and the Fictions of seu próprio nome. A morte, em contraste, segundo Derrida, pode ser
Anteriority. In: Radstone S. & Schwarz B. (eds), Memory. Histories, Theories, Debates.
New York, Fordham University Press, 2010. 731 Derrida, Memoires for Paul de Man, p. 37. (Itálico no original).

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definida em termos levinasianos como uma forma de não resposta. É sua vida a avançar sem ele, falando e suportando sua morte
o momento no qual nós sabemos que a pessoa mesma, a detentora do a cada vez que é pronunciado em nomear ou chamar, cada
nome, nunca será apta a responder novamente a ou em seu nome. No vez que é inscrito em uma lista, ou um registro civil, ou
uma assinatura.734
entanto, o nome próprio permanece mesmo após a morte acontecer,
e através dele nós continuamos a nomear, invocar e designar seu Derrida, portanto, alega que em vez de referir exclusivamente
detentor. A memória, então, Derrida argumenta, é exatamente isto: “é ao passado ou a pessoas falecidas, a memória está determinando
o nome do que para nós (um ‘nós’ que defino apenas desta maneira) nossas relações intersubjetivas com os outros viventes no presente.
preserva uma relação essencial e necessária com a possibilidade do A memória é, de fato, constitutiva do social e do presente vivido.
nome e do que no nome assegura a preservação”.732 A memória e Consequentemente, Derrida chega à conclusão que não faz sentido
o nome (próprio) não podem ser separados: por um lado a relação alegar que a memória é essencialmente orientada para o passado.
entre a memória e o objeto lembrado pode sempre ser analisada como Enquanto a memória tenta “preservar” traços, esses traços, segundo
a relação entre o nome e o nomeado; por outro lado, a nomeação Derrida, não estão necessariamente se referindo ao passado – no
do nome assemelha-se intimamente à estrutura de um ato de mínimo não a um passado definido como um contínuo de passados
comemoração. Para citar Derrida: presentes – e ele afirma que a memória pode ser “do presente” e até
O nome, ou o que pode ser considerado enquanto tal, mesmo – à medida que antecipa a morte que está porvir – do futuro
como tendo a função ou poder do nome – este é o único também.735
objeto e a única possibilidade da memória, e em verdade
a única “coisa” que pode ao mesmo tempo nomear e
pensar. Isto significa então que qualquer nome, qualquer Mensurando o tempo da morte
função nominal, está “na memória de” – a partir do
primeiro “presente” de sua aparição, e finalmente, está “na Agora que discuti a teoria do luto de Derrida em relação
virtualmente-enlutada memória de” inclusive durante a à sua desconstrução da interioridade subjetiva e da clássica
vida do seu detentor.733 descrição da memória, podemos finalmente proceder à discussão
Assim como nosso luto dos amigos não espera sua morte da relação das noções de tempo histórico e de espectralidade. Breve
“efetiva”, as características memorializantes do nome não apenas mas explicitamente, Derrida trata da relação entre luto, tempo e
manifestam a si mesmas após o detentor do nome próprio falecer. espectralidade em uma conferência intitulada “O tempo está fora
Pelo contrário, o nome é antecipadamente e desde a primeira vez “em de ordem” que ele apresentou em uma conferência em Nova York
memória de”. Como Derrida explica: pouco depois de escrever “Espectros de Marx”.736 Em sua conferência,
Derrida confessa que ele tornou-se ciente tardiamente que o
E desde a possibilidade dessa situação [em que o nome
continua a nomear seu detentor mesmo se o último não tema central de “Espectros de Marx” foi de fato o do luto, ou mais
pode mais responder a ele] é revelado na morte, nós especificamente aquele da “dis- ou anacronia do luto”. Ele notou que
podemos inferir que ele não espera pela morte, ou que a famosa expressão de Hamlet “o tempo está fora de ordem” ressoa
nele a morte não espera pela morte. Ao chamar ou nomear
alguém enquanto ele está vivo, nós sabemos que seu nome 734 Ibid., p. 49. (Itálico no original)
pode sobrevivê-lo e já o sobrevive; o nome começa durante 735 Ibid., p. 58.
736 Derrida J., The Time is Out of Joint. In: Haverkamp A. (ed.), Deconstruction
732 Derrida, Memoires for Paul de Man, p. 49. (Itálico no original). is/in America. A New Sense of the Political. New York, New York University Press,
733 Ibid., p. 54. 1995, pp. 14-38.

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secretamente com a “patologia essencial do luto”.737 a possibilidade de atribuir um tempo preciso para a ocorrência da
morte ou mesmo a eventualidade [eventness] da morte. Como Derrida
Que o tempo está fora de ordem, Derrida argumenta, é
explica:
claramente refletido pelo fato de que ninguém no séquito de Hamlet
pode concordar sobre o tempo ou a data de morte do seu pai – ou dever-se-ia parar de acreditar que o morto é apenas o
como Derrida coloca, “ sobre o tempo que separa a fala presente desse falecido e que o falecido não faz nada. Deve-se parar
de fingir saber o que é significado por “morrer” e
evento”738 – embora o evento desempenhe um papel chave na peça. especialmente por “morrendo”. Tem-se, então, que falar
Derrida observa que embora, ou talvez por causa do rei usurpador sobre espectralidade. Vocês sabem muito bem quem
exortar Hamlet a colocar um fim ou um termo ao seu luto, Hamlet ao pronunciou a sentença “O tempo está fora de ordem”:
longo da peça continua a ligar outras datas à morte do seu pai, e assim Hamlet, o herdeiro de um espectro preocupado com o fato
ao início do seu luto. Embora esse seja a verdadeiro tema do drama, de que ninguém mais sabia em que momento e portanto se
a morte lhe aconteceu.740
nenhum dos protagonistas de Shakespeare podem concordar sobre o
“tempo de luto”. Em outras palavras, pode ser visto que a teoria do luto
A análise desse enigma na peça de Shakespeare é informativa, de Derrida volta no fim das contas à sua repetida alegação sobre a
argumenta Derrida, porque nos ajuda a reconhecer o estranho inadequação de qualquer datação baseada no sistema cronológico tais
paradoxo cronológico no coração da economia do luto. Como ele como o calendário ou linhas temporais. Derrida quer deixar claro, de
observa, o luto bem sucedido ou “normal” presume o conhecimento uma vez por todas, que a data, em vez de representar uma referência
da data: “Deve-se de fato saber quando: em que instante o luto começa. objetiva à uma realidade externa, vem à existência precisamente na
Deve-se de fato saber em que momento a morte aconteceu, realmente interseção do “material” e do “psíquico”.
aconteceu”.739 É comumente dado como certo que o luto, pelo menos
sua finitude, depende da passagem do tempo. Segundo Derrida, no
entanto, essa relação de dependência tem que ser invertida: em vez Conclusão
de condicionar o trabalho de luto, o tempo mesmo é dependente do Sem ousar propor uma hierarquia causal, penso que
luto. Contudo, esse tempo do luto (e Derrida questiona retoricamente deveria estar claro que existe uma relação íntima entre a maneira
se existe qualquer tempo que não seja um tempo de luto?) não é um que pensamos sobre tempo e historicidade, por um lado, e a maneira
tempo linear que passa cronologicamente. Em vez disso, levanta que pensamos sobre luto e morte, por outro lado. Os discursos
as questões essenciais e relacionadas da data da “eventualidade” modernos sobre luto ressoam e reforçam discursos modernos
[eventness] do evento. sobre história e vice-versa. Os axiomas centrais das descrições não-
Porque o luto, como Derrida argumentou, inicia muito modernas de luto e morte (incluindo a crença em espíritos e a noção
antes da morte “real” ou física acontecer, e porque o luto relaciona- da morte como um processo), em contraste, refletem um conceito
se a um tipo de memória que pode relacionar-se ao presente ou ao de historicidade que evidentemente não é baseado em um tempo
futuro tanto quanto ao passado, o tempo do luto coloca em questão irreversível que automaticamente cria uma distância temporal entre
passado e presente. No entanto, a comparação entre o luto moderno
e não-moderno também revela quão difícil é para os acadêmicos
737 Derrida J., The Time is Out of Joint, p. 18.
ocidentais romper com o tempo irreversível da história sem
738 Ibid.
739 Ibid., p. 20. (Itálico no original) 740 Ibid., p. 30. (Itálico no original)

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tornarem-se “encantados”. A análise de conceitos diferentes de luto só pode ser feita a custo da trivialização de uma dimensão crucial do
e morte nos mostra indiretamente as muitas dificuldades que devem presente.
ser enfrentadas quando nós tentamos compreender o irrevogável.
Além disso, Derrida corretamente observa que devemos
Primeiro, pode ser questionado que tipo de existência o irrevogável
repensar a ideia de interioridade que frequentemente é associada com
tem. Ele realmente existe em si mesmo, ou é dependente em nós
a memória. É claro que o irrevogável pode existir apenas “em mim”
vivendo no presente? Segundo, também pode ser perguntado se o
ou “em nós”, mas esse “eu” e esse “nós” não devem ser considerados
irrevogável tem qualquer tipo de agência e/ou se é apenas um produto
interioridades puras. Como Derrida demonstra, o “eu” e o “nós” são
da memória humana. Poderia, de fato, ser argumentado de forma não
constituídos pelos mortos ou pelo passado irrevogável no mínimo
simplista que o passado que persiste é nada mais que o que chamamos
tanto quanto como eles o “contém”. A abordagem de Derrida é valiosa
comumente memória?
porque nos faz ver a relação íntima entre historicidade e sociabilidade.
Muitas dessas questões são levantadas por Jacques É de fato somente pela reflexão sobre a sociabilidade que se pode
Derrida. Historiadores e filósofos da história podem aprender muito repensar o conceito de historicidade de tal forma que isso nos permita
da maneira como Derrida procede enfrentando o problema do a levar a sério o irrevogável. Apenas ao repensar o social pode o
“sobrevivente”. Tanto em sua teoria do luto como em sua teoria da problema do locus e o modus do irrevogável ser resolvido. Em vez de
espectralidade, Derrida usa a mesma “técnica” intelectual: em vez ser reduzido à noção do senso comum da memória, o irrevogável nos
de focar na “morte” ou “o passado” diretamente, ele desconstrói obriga a repensar esse conceito de memória; afastado da dicotomia do
nossa noção de “vida” e o “presente”. Por fazer esse desvio, Derrida interior e do exterior, do individual e do coletivo e do presente e do
consegue questionar alguns de nossos mais fundamentais axiomas passado.
sobre história e tempo sem se emaranhar em um discurso irracional.
Outro aspecto interessante da teoria do luto de Derrida é
A resposta que Derrida propõe para a questão sobre o modo de ser do
encontrado em sua afirmação que em vez de condicionar o trabalho
morto aplica-se igualmente ao modo de ser do passado irrevogável, e
de luto, o tempo é dependente do luto. Por mostrar como diferentes
as respostas são diretas: o morto e o passado irrevogável não podem
práticas de luto produzem diferentes noções de tempo, Derrida
existir em si mesmos e por si mesmos; antes, eles existem “em nós”
pode nos ajudar a historicizar e conceitualizar conceitos de tempo
e em nossa “memória” (no sentido amplo incluindo Erinnerung e
(histórico). Se é possível abordar a história como uma prática de luto em
Gedächtnis). As respostas podem vir como um desapontamento a
um sentido mais amplo da palavra, as observações de Derrida podem
leitores que esperavam um conceito mais substancial ou “agencial”
contribuir para uma melhor percepção sobre a performatividade da
de passado assombroso. No entanto, é preciso ponderar o estatuto
história e sua participação nas políticas do tempo. Ao mesmo tempo,
dos mortos e do passado irrevogável em relação ao dos vivos e do
sua perspectiva também nos ajuda a explicar como a existência
presente. Antes de se considerar o modo de ser baseado na memória
de práticas não-modernas de luto, ou pior, a recusa ao luto, pode
dos mortos ou o irrevogável como uma forma inferior de existência,
ameaçar o sentido linear ou cronológico do tempo. É assim, creio, que
deve-se considerar o argumento de Derrida de que as relações entre
devemos interpretar a posição das Madres que, embora tenha passado
os vivos no presente são também sempre parcialmente mediadas pela
mais de trinta anos do tempo do calendário desde seus filhos serem
memória. A diferença entre o modo de ser do passado irrevogável e
desaparecidos, elas não os consideram pertencentes ao passado.
aquela do presente não deve ser, portanto, subestimada. Ou colocando
de forma diferente: a trivialização da existência do passado irrevogável

304 305
Berber Bevernage

Conclusão
Negar a eternidade, supor a vasta aniquilação
dos anos amedrontados com cidades, rios e
júbilos, não é menos incrível do que imaginar a
sua salvação total.
J. L. Borges741

Iniciei este livro me referindo à velha discussão sobre a


correta orientação temporal da ética e da justiça: deveríamos lutar por
uma forma de justiça que focalize nos crimes do passado ou deveríamos
nos focar preferencialmente em fazer justiça e buscar o bem no
presente? A forma de lidar com essa questão ética é profundamente
influenciada pela forma como se concebe o passado e o presente
e a maneira que estes são concebidos em termos ontológicos. No
pensamento ocidental moderno, como argumentei, a relação entre
história e justiça é fortemente determinada pelo pressuposto difundido
de que o passado está ausente ou distante. Como um resultado dessa
pressuposição, a capacidade da história de contribuir para a justiça é
muitas vezes presumida como mínima. A relação entre tempo e justiça
pode ser observada claramente quando se contrasta o conceito de
tempo comumente usado no discurso histórico com a noção de tempo
frequentemente implicada no discurso da jurisdição (em suas formas
mais tradicionais). O discurso tradicional da jurisdição, com sua lógica
de culpa e punição, geralmente trabalha com um tempo reversível no
qual os crimes podem ser anulados ou reparados, como se eles fossem
ainda completamente presentes. Em contraste com o “tempo da
741 Borges J. L., A History of Eternity. In: Borges J. L. & Weinberger E. (ed.),
Borges: Selected Non-Fictions. New York, Penguin Books, 1999, pp. 123-139, 136.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

jurisdição”, o “tempo da história” prevalecente é um tempo irreversível (se é que alguma vez existiu) por uma memória superabundante da
que salienta as características sempre já ausentes ou distantes dos crimes ofensa que resiste cronologia. É a partir dessa perspectiva que se deve
que aconteceram no passado. Esse tempo da história é seguramente abordar o que chamei “performatividade” do discurso histórico.
certo para criticar a lógica quase-econômica que subjaz o idealmente Mais que ser meramente descritivos ou analíticos, os discursos sobre
reversível tempo da jurisdição. No entanto, pode-se argumentar que a história tendem a produzir efeitos sócio-políticos significativos. No
o tempo da história por sua vez exagera a ausência ou distância do campo da justiça de transição, essa performatividade manifesta-se como
passado e dessa forma contribui para uma lógica que pode facilitar o uma tendência para restaurar ou criar uma ruptura entre o passado e o
reino da impunidade. presente por reforçar ou impor um senso de “distância” temporal, mas
ocasionalmente também se transforma em uma prática “alocronista”
Para demonstrar os efeitos potencialmente antiéticos dos
que simbolicamente aloca as pessoas no tempo e as carimbam como
discursos da história, escolhi focar em um contexto em que esses
anacronismos vivos. Pense na África do Sul e na Serra Leoa, onde a
discursos são, por assim dizer, “colocados em prática”: o fenômeno
constante ênfase na “novidade” da nação tendeu a ir de mãos dadas
relativamente recente das comissões da verdade que surgiu em muitos
com a exclusão de vítimas particulares cuja luta logo veio ser associada
países ao redor do mundo como uma nova fórmula para lidar com
com o passado ou ao “velho”. Ambos os fenômenos (performatividade
os dilemas da justiça de transição. Como órgãos semi-judiciais, as
dos discursos históricos e potencial alocronista) ainda não receberam
comissões da verdade não podem punir ou condenar, mas, em vez disso,
a atenção acadêmica que merecem. Seria interessante procurá-los em
oferecem a revelação da verdade como uma alternativa. Enquanto essas
outros âmbitos sociais além da esfera das comissões da verdade e justiça
comissões funcionam ocasionalmente como uma preparação na busca
de transição.
por justiça (criminal) (como foi o caso da CONADEP na Argentina),
elas são mais frequentemente combinadas com um arranjo de anistia A virada das comissões da verdade para a história não
de algum tipo e geralmente funcionam como uma alternativa (como permaneceu incontestada. Como tentei demonstrar, uma quantidade
foi o caso na África do Sul) ou, melhor, um complemento (como em considerável de resistência ao trabalho ou ao legado das comissões da
Serra Leoa) à jurisdição tradicional. Portanto, a fórmula da comissão de verdade podem ser encontradas em cada um dos três casos que estudei.
verdade pode ser interpretada como a introdução do tempo da história Embora essa resistência gira em torno de motivos divergentes ou
em um contexto que geralmente seria considerado como pertencendo à mesmo opostos nesses diferentes casos, é sempre surpreendentemente
esfera do tempo de jurisdição. Isso aplica-se a todos os três casos, mas é direcionado contra o irreversível tempo da história. Enquanto as
mais agudo no caso da Serra Leoa. Lá o conceito de tempo da comissão Madres de Plaza de Mayo na Argentina e o Grupo de Apoio Khulumani
da verdade chocou-se com a noção de tempo usado pelo tribunal de na África do Sul primeiramente e acima de tudo rejeitaram o tempo
guerra, operando no mesmo período. histórico irreversível porque temiam que este iria facilitar a impunidade,
grandes partes da população (rural) em Serra Leoa, em contraste,
Embora eu não queira minimizar a importância da verdade
recusaram a testemunhar para as comissões da verdade por medo de
histórica ou do reconhecimento oficial dessa verdade, argumento
despertar ou evocar os fantasmas do passado. Todos esses grupos, no
que a virada das comissões da verdade para a história deve ser vista
entanto, rejeitaram a ausência ou distância do passado e alegaram que o
primeiramente como parte de uma “política do tempo”. Como escrevi na
mesmo persiste no presente – quer eles o façam pelo desenvolvimento
introdução, a virada para a história deve ser interpretada no contexto de
de uma linguagem espectral ou por declarar diretamente que “o passado
uma “modernidade frágil” em que a crença tipicamente modernista em
está no presente”.
uma delimitação ou divisão estrita entre passado e presente é ameaçada

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Para levar seriamente essa alegação difundida e histórico moderno. Mesmo, como tentei demonstrar, os primeiros
frequentemente repetida sobre a persistência do passado, introduzi passos para uma tal ruptura e para uma cronosofia alternativa pode
a noção de um passado irrevogável que não pode ser desfeito, mas ser encontrada em pensadores tais como Braudel, Collingwood,
que persiste no presente e desta forma pode providenciar um ponto Bloch e Althusser. Na obra de Fernand Braudel encontramos uma
de partida para o desenvolvimento de uma cronosofia que funciona reação intuitiva e reconhecidamente incompleta de um historiador
como uma alternativa tanto para o irreversível tempo da história, proeminente contra a tendência de permitir uma única noção
como para o tempo reversível da jurisdição. Algumas vezes, o uso do de tempo. R. G. Collingwood ofereceu uma crítica muito mais
discurso histórico pelas comissões da verdade e sua celebração dos fundamentada filosoficamente da inclinação para tratar a realidade
poderes de cura do revelar a verdade sobre a história é acompanhado histórica em termos de mera sequência cronológica. A análise
por um reconhecimento explícito, ou no mínimo implícito, do marxista de Ernst Bloch e Louis Althusser revelou como o pressuposto
irrevogável – assim como a performance de um ritual de exorcismo sobre a existência de um presente histórico contemporâneo singular
implica um certo reconhecimento do problema do assombramento. reflete uma particular visão da realidade social que está longe de ser
Contudo, o reconhecimento prático do irrevogável pelas comissões politicamente neutra.
da verdade contrasta nitidamente com a grande dificuldade de tomar
Encontrei na obra de Jacques Derrida a mais elaborada
seriamente ou formalmente o reconhecimento do último fenômeno
e promissora contribuição para uma nova cronosofia que deve
nos relatos historiográficos estabelecidas por eles em seus relatórios.
permitir-nos pensar o irrevogável. Derrida nunca foi o filósofo
Sobre essa questão, as comissões não poderiam esperar muita ajuda
favorito da maioria dos historiadores. Dada a sua crítica das noções de
da historiografia acadêmica que geralmente é igualmente incapaz
senso comum de história, mas também dado seu estilo muitas vezes
de reconhecer ou mesmo ver a realidade do passado irrevogável,
enigmático de escrever e o alto nível de abstração do seu trabalho, é
já que comumente o trata como meramente metafórico ou como
improvável que ele algum dia seja. Todavia, considerando a atenção
o produto de ideias alucinatórias de vítimas traumatizadas. Essa
extensiva que ele dá para vários temas dos mais centrais dos debates
inabilidade de reconhecer o irrevogável, por sua vez, torna difícil o
correntes em história e memória, deve ficar claro que não podemos
reconhecimento do fenômeno da performatividade histórica. Como
nos dar ao luxo de simplesmente ignorá-lo. O trabalho filosófico de
argumento no capítulo 5, ambos os problemas intelectuais podem ser
Derrida e, mais especificamente, sua longa vida de crítica à metafísica
relacionados a uma série de aspectos cronosóficos que são difundidos
da presença e do conceito metafísico de tempo pode ser de grande
na historiografia acadêmica e no pensamento histórico mais amplo no
valor para todos aqueles que querem repensar o discurso histórico
Ocidente – destaquei o uso do tempo absoluto, vazio e homogêneo e
para torná-lo mais inclusivo. Derrida levanta muitas das questões que
o fenômeno do historicismo, do modernismo e do secularismo – que
cercam o fenômeno do irrevogável, e embora seja intelectualmente
tomados em conjunto transformam a ideia de um passado persistente
imprudente declarar que ele fornece respostas finais, penso que pode
em uma inconsistência lógica. Portanto, considero necessário quebrar
ser dito seguramente que sua obra pode nos apontar a direção correta.
com a cronosofia constituída pelos elementos acima e criticá-la como
uma maneira de não ver reconhecidamente engenhosa. Derrida ajuda-nos a ver como o tempo da história e o
tempo da jurisdição estão de fato engajados em uma mesma lógica
Certamente, romper com essa cronosofia dominante é
metafísica da presença. Essa lógica postula o passado ausente como
difícil porque, como reconheci, sua construção histórica foi uma
a presença modificada de um passado “presente”, e desse modo
grande realização intelectual que tem sido central para o pensamento
postula imediatamente a inferioridade ontológica daquele passado.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

Além disso, Derrida nos ensina que tendo em vista a compreensão devido a algum tipo de poder místico mas, antes, deve ser relacionado
do passado assombroso, nós não devemos começar olhando para a ao fato que o mesmo nunca foi completamente presente mesmo nos
natureza e características daquele passado em si mesmo mas devemos, dias quando era firmemente considerado por assim ser, tanto pelos
antes, focar na natureza e constituição do presente. O desvio intelectual inimigos como pelos apoiadores. O Apartheid teve sempre que ser
de refletir sobre a “presença do presente” e repensar o conceito de parcialmente representado ou “feito presente” para ser relacionado
tempo histórico é importante porque esse é o único caminho para ou posto em prática – seja defendendo ou resistindo. De fato, nunca
evitar tornarmo-nos místicos quando escrevemos sobre a persistência poderia ser reduzido a uma pura presença que pudesse ser encontrada
do passado. em um ponto no tempo e espaço. É precisamente esses elementos que
nunca foram totalmente presentes, ou que sempre estiveram carentes
Grande parte do misticismo em torno da noção do passado
de representação, que não se tornaram ausentes facilmente quando o
assombroso origina-se na tendência de atribuir uma completa presença
Apartheid foi formalmente removido.
(o oposto metafísico da ausência) a esse passado, ou atribuir a ele algum
tipo de agência – por exemplo, a crença que o passado pode retornar Embora essa caracterização da “presença” ambígua –
em sua própria força. No entanto, uma vez que a ideia de um presente ou, melhor, nos termos de Derrida, a “não-presença” – do passado
absolutamente sincrônico é desconstruída, passado e presente, de irrevogável pode à primeira vista parecer ser insubstancial, sua
fato, não precisam ser mais concebidos como categorias primordiais significância tem que ser avaliada em relação à presença imperfeita do
nem mutuamente exclusivas. Por argumentar que o tempo está “fora presente histórico. É por causa da presença incompleta do presente que
de ordem” e por demonstrar a “não-contemporaneidade do presente o passado irrevogável pode reter sua “não-presença”. O “modo de ser”
consigo mesmo”, Derrida nos permite refletir sobre a persistência do do passado é desta forma não tão radicalmente diferente do “modo
passado irrevogável sem nos obrigar a atribuir qualquer agência a ele de ser” do presente como frequentemente acredita-se; penso que essa
ou concebê-lo como alguma coisa que tem a força para retornar por é a lição mais importante que podemos aprender da desconstrução
conta própria. Em vez de atribuir todos os tipos de poderes místicos de Derrida intimamente relacionada do presente sincrônico e a mais
ao passado, Derrida ensina a focar na fragilidade do presente, ou ampla metafísica da presença.
melhor, da “presença do presente”.742 Como foi apontado no capítulo
Essa lição não deve ser restrita a questões de ontologia: ela
sobre a teoria da espectralidade de Derrida, o passado assombroso
aplica-se igualmente a questões epistemológicas. Embora não tenha
deveria ser visto como algo que (devido aos efeitos da différance)
focado na questão da epistemologia, é difícil negar que o projeto de
nunca foi presente o bastante para subitamente tornar-se ausente. Ou
rejeitar a absoluta ausência do passado (e sua imagem espelhada da
para relacionar com um exemplo tomado de um dos nossos estudos
absoluta presença do presente) tem implicações epistemológicas. Como
de caso: o fato do Apartheid ainda assombrar a África do Sul muito
Paul Ricoeur argumentou, a longa tradição da reflexão epistemológica
após a data em que foi oficialmente declarado passado e acabado não é
sobre problemas de representação histórica e sobre o enredamento da
742 Quando desconstrói a presença do presente, Derrida, é claro, não nega sua historiografia e ficção, está em última instância fundamentada na ideia
existência: como ele deixa claro em uma entrevista “como qualquer outro que tenta de que a escrita da história é um exercício difícil na diferenciação entre
ser um filósofo, não quero desistir nem do presente nem de pensar a presença do
presente”. Derrida J., The Deconstruction of Actuality. An Interview with Jacques
“a imagem do ausente como irreal” e “a imagem do ausente como
Derrida. In: Radical Philosophy, 68 (1994), pp. 28-41, 30. Mais propriamente Derrida anterior”.743 Isso obviamente muda quando verifica-se que o passado
toma essa presença do presente como sendo uma “determinação” ou “efeito”, em vez
de ser uma “forma de ser” absoluta ou primordial. Derrida J., Différance. In: Margins 743 Ricoeur P., Memory, History, Forgetting. Chicago, University of Chicago
of Philosophy. Chicago, University of Chicago Press, 1982, pp. 1-27, 16. Press, 2004, p. 238.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

não é ausência absoluta como geralmente é suposto. No entanto, não chamado um passado se ele persiste no presente. Essa questão sobre
quero aproveitar a “presença” ambígua do passado irrevogável para a “passadidade” do irrevogável é enganosa. Aqui tudo depende da
evadir ou negar os problemas epistemológicos profundos que, como maneira em que se define a noção de passado. É claro, o irrevogável
muitos filósofos da história proeminentes defendem, relacionam-se não pode ser chamado um passado se ela é definida como “aquilo
à representação histórica. Mais propriamente, penso ser necessário que se tornou ausente” ou como “aquilo que está se distanciando
combinar o escrutínio desses problemas epistemológicos com uma do presente”. Tampouco pode o irrevogável ser chamado passado
reflexão minuciosa sobre nossos compromissos ontológicos. A no sentido de ser “passado” ou “passe” que, como François Hartog
partir dessa perspectiva gostaria de questionar a suposição que esses observou, é frequentemente ligado a ele no regime de historicidade
problemas epistemológicos são únicos ou mesmo típicos para a moderno dominante. No entanto, o irrevogável pode ser chamado de
representação do passado. No contexto da defesa de Derrida acerca da passado se o passado é definido em um sentido amplo e mais neutro
importância da memória e representação nas relações entre os vivos como “aquilo que é experimentado como perda” – independentemente
no presente, poderia ser argumentado que, tanto quanto no campo da questão se essa perda é considerada uma coisa trágica ou bem vinda.
da ontologia, também no domínio da epistemologia a diferença entre
Além disso, parece bom acrescentar um retratação sobre a
as dimensões temporais do presente e do passado é muitas vezes
questão da cronologia. Gostaria de abandonar o sistema de ordenação
superestimada.
cronológica que é tão essencial para os historiadores? Não, claro
Tendo dito isso, no entanto, é importante lembrar da que não. Não pode ser negado que o sistema de datação cronológica
distinção entre a noção de ausência e aquela da perda como foi moderna é uma construção intelectual muito importante que é
discutido no capítulo anterior. Essa distinção é crucial por no mínimo especialmente bem sucedida em lidar com eventos históricos e que
duas razões. Primeiro, ela provê uma resposta à questão de saber pode contribuir imensamente para o desenvolvimento de percepções
se a negação da ausência de certos passados ou de certas partes do críticas sobre a mudança histórica. Além disso, mesmo se se decide
passado não equivale a um tipo de anti-realismo. Todavia, minha romper com a noção newtoniana do tempo absoluto, sempre será
defesa do passado irrevogável não me obriga a engajar uma posição possível escolher um certo tempo de referência – tomar um tempo
anti-realista, porque, enquanto nego a ausência de certas partes do expresso em termos de números de rotações terrestres em torno
passado, eu claramente não nego a incontestável realidade da perda do sol – e organizar uma ordenação cronológica em torno disso. A
histórica e da mudança histórica. A perda é muito real e sem uma questão permanece, no entanto, sobre como esse tempo de referência
preocupação com sua realidade eu não teria iniciado a reflexão sobre a relaciona relevantemente às muitas esferas diferentes da realidade
experiência irrevogável do tempo, em primeiro lugar. Ter em mente a social e cultural. Tem que ser apontado que o raciocínio cronológico
diferença entre perda e ausência é de fato importante quando abordo é uma maneira muito limitada de abordar a realidade histórica que
as noções de tempo e história alternativas que discuti nos estudos de é incapaz de apreender a historicidade em sua total complexidade.
caso sobre Argentina, África do Sul e Serra Leoa. Enquanto vítimas Como, por exemplo, aplicar uma perspectiva cronológica para a
e sobreviventes frequentemente negam a ausência do passado, posição perturbadora das Madres de que o desaparecimento dos
eles claramente não negam a perda que sofreram e que é o próprio seus filhos permanece mais próximo ou retém mais “presença” que
fenômeno que os converteram em vítimas e sobreviventes. Segundo, qualquer outro evento nos trinta anos de sua luta para obter justiça
a distinção entre a ausência e perda pode providenciar uma resposta pelas injustiças que eles sofreram.
para a questão de saber se o passado irrevogável realmente pode ser
Finalmente, deixe me retornar para a questão da relação

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

entre tempo e ética com a qual abri esse livro. Uma questão central conflito entre lembrar e esquecer envolve a questão política indecidida
permanece: podemos decidir sobre o dilema da justiça de transição sobre como relacionar as dimensões temporais do passado e do
agora que criticamos o tempo irreversível da história e defendemos presente. O foco sobre essas políticas do tempo permite-nos ir além da
a existência do irrevogável? Não, infelizmente (ou talvez felizmente) ideia de uma oposição absoluta entre lembrança e esquecimento por
o simples reconhecimento da não-contemporaneidade do presente distinguir entre formas radicalmente diferentes de lembrança. Nos
vivido e a sobrevivência espectral do passado não apresenta uma casos discutidos neste livro, por exemplo, a diferença entre a noção de
solução direta do dilema da orientação temporal apropriada da ética. lembrança defendida pelos grupos de vítimas e a noção de lembrança
Aqui quero tomar alguma distância crítica da posição de Derrida e implicada no discurso das comissões da verdade foi tão vasta que às
a teoria da justiça que surge junto a sua descrição da espectralidade. vezes parecia tornar de menor relevância a oposição entre lembrança
Ernesto Laclau está certo quando observa criticamente que não se e esquecimento.
pode fazer legitimamente a transição lógica de um argumento sobre
Novamente concordo com Ernesto Laclau quando ele
o desajustamento do tempo e uma afirmação (pós)-ontológica sobre
observa que a significância ética da desconstrução derridiana “é que
espectros ao vincular injunções éticas para serem responsáveis por
por alargar a área da indecidibilidade estrutural ela alarga também
eles.744 Por teorizar a existência de um passado irrevogável, portanto,
a área da responsabilidade – ou seja, da decisão”.746 Enquanto a
não quero sugerir que as sociedades que emergem de um período de
desconstrução da presença não pode nos ajudar a decidir sobre o
conflito violento tem que trazer justiça para as vítimas e sobreviventes
dilema da justiça de transição ou sobre a apropriada orientação
das injustiças históricas independente dos custos que suas ações
temporal da ética em geral, o reconhecimento do passado irrevogável
potencialmente poderiam trazer. A decisão sobre como exatamente
desmascara as falsas premissas a partir das quais as discussões
lidar com o passado após a transição política e/ou conflito violento
de justiça histórica com muita frequência iniciam. Primeiro, por
permanecerá uma questão sócio-política que não pode ser resolvida a
teorizar a persistência ou “presença” ambígua do passado e criticar a
priori ou fora de contexto, e pode-se imaginar contextos onde a “besta
superestimada diferença ontológica entre as dimensões temporais do
do passado” é realmente tão poderosa ou ameaçadora para lidar ou,
passado e presente, o conceito do irrevogável se livra da presumida
nas palavras de Desmond Tutu, ser “encarada nos olhos”. Dever-se-
inferioridade ontológica do passado que determina a relação desigual
ia estar igualmente reticente para a difícil questão sobre o equilíbrio
entre a preocupação com a injustiça histórica, por um lado, e valores
adequado entre lembrança e esquecimento. A questão de um possível
éticos direcionados ao presente e futuro, de outro. Esse caminho pode
“excesso” de memória não deve ser ignorada. Também concordo com
resistir a argumentação exotérica nietzscheana que apresenta uma
Tzvetan Todorov quando ele defende que a “sacralização” da memória
escolha falsa entre um presente vivido e um passado morto e ausente
e o hábito de “enaltecer a memória incondicionalmente e desacreditar
e que, como temos visto, é frequentemente usada por perpetradores
o esquecimento” são problemáticos.745 No entanto, por reformular
de injustiças históricas para escaparem da responsabilização.
as questões de lembrança e esquecimento em termos de conceitos
Segundo, embora o passado seja inalterável e não pode ser afetado
diferentes de tempo que eles implicam, tenho tentado apontar a
em uma maneira causal, podemos desenvolver com ele uma relação
natureza absolutamente política dessa questão. Em grande medida o
ética significativa. A noção do passado irrevogável e a desconstrução
744 Laclau E., The Time Is out of Joint. In: Diacritics, 25 (1995) 2, pp. 86-97, 93.
relacionada da metafísica da presença permite-nos reavaliar a
745 Todorov T., The Uses and Abuses of Memory. In: Marchitello H., What
“solidariedade anamnésica” de Walter Benjamin sem necessitar do
Happens to History. The Renewal of Ethics in Contemporary Thought. Routledge, New
York, 2001, p. 11. 746 Laclau, The Time Is out of Joint, p. 94.

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História, Memória e Violência de Estado: Tempo e Justiça Berber Bevernage

misticismo que muitas vezes é relacionado a mesma. Dessa forma, o Bibliografia


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