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C opyright © 2019, Julio Bentivoglio .


C opyr ight © 2019, Editora Milfont es.
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Prof. Dr. Diogo da Silva Roiz (UEMS) HISTÓRIA & DISTOPIA
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A IMAGINAÇÃO HISTÓRICA NO ALVORECER
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DO SÉCULO 21
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Laboratório de Estudos em Teoria c História da Historiografia


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EDITORA MILFONTES
Vitória, 2019
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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios
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permissão prévia da ed itora .

Projeto Gráfico e Editoração


Bruno César Nascimento
Sumário
Capa
Tempestade proem1o
' . ................ .. ................................
............................... 7
Bruno César Nascimento -Aspectos
Exórdio ............ .................. ................. . .
.......... ....................... 17
Revisão
JuHo Bentivoglio
Rosemary A. J. Dentivo glio
Distopia ou o pathos da história pós-moderna . . . . . . . ......... 21

CTP, Impressão e Acabamento As ficções científicas da história na modernidade ........... 31


GM G ráfica c Editora
O historiador e seus monstros ............................................ 49

A imaginação histórica no século 21 . ............. . ............... .. . 57

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP) Narrativas distópicas do passado na pós-modernidade . 65

BEN476h BENTIVOGLIO, Julio A sombra das distopias históricas ...................................... 75


História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do
século 21/ Julio Cesar Bentivoglio. 2• ed rev. .

Vitória: Editora Milfontes, 2019.


Epilogo .............. ..................................................................... 91
1 1 4 p.: 20cm: il.
Referências Bibliográficas: ............................................. . ........ 107
Inclui Bibliografia.
ISBN: 978-85-94353-73-3
Apêndice ......................................... .......................................... 1 13

1 . Teoria da História. 2. F ilosofia da História. 3. Narrativa.


4. Distopia. I. BENTIVOGLIO, Julio Cesar .

CDD 901.02
Proêmio
No dia 24 de novembro de 2013 publiquei uma breve
nota em meu perfil no Facebook intitulada História e Distopia
e que tinha como subtítulo A teoria da história depois dofim da
história. Nela traduzia meu entusiasmo acerca de duas questões
que ocupavam meu pensamento: os trabalhos. do artista digital
George Grie com suas criações fantasmagórico-surrealistas e
o debate sobre a nova filosofia da história iniciado com a obra
de Hayden White, o qual havia tido o privilégio de conhecer
e conversar pessoalmente no congresso internacional 40th
Anniversary Metahist01y ocorrido na Universidade Federal do
Espírito Santo, em Vitória.
. Naquela oportunidade, observava que era necessário
estipular, parafraseando Walter Benjamin, novas teses para a
história do século 21, um campo que se torna a cada dia afetado
pelo relativismo, pelo ceticismo e pelas distopias tal como se
pode depreender da leitura de muitas obras e artigos que vem
sendo publicados desde o último quartel do século 20 até o
presente. Entendia como urgente dar vazão a um debate que
pudesse identificar os problemas e os sintomas da emergência de
um novo conceito de história que a meu ver não era meramente
presentista. Debate que já transparecia nas provocações
lançadas à teoria da história por pós-estruturalistas, filósofos
analíticos e pela nova filosofia da história inaugurada em torno
das reflexões de Hayden White; visíveis em variados estudos
acadêmicos, notadamente anglo-saxões, que apontavam para
as restrições do realismo, da representação e da narrativa

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História & Distopia
julio Bentivoglio

históricos, configurando novos problemas para história em um


Em minha curta digressão no Facebook em 2013,
cenário, visto por muitos teóricos como pós-moderno.1 Para
servi-me de uma obra de George Grie intitulada The Flying
Hayden White no século 19 e início do 20,
Dutchman. Artista emblemático, da arte depois do fim da arte,
todas as importantes disputas teóricas e ideológicas que deixou a Rússia para viver no Canadá, após a derrocada do
travadas na Europa entre a Revolução Francesa e a
socialismo real, Grie cria arte digital, por meio de referências
Primeira Guerra Mundial foram na realidade disputas
que visavam determinar que grupo poderia reivindicar ao surrealismo e construindo artefatos bi e tridimensionais.
o direito de estabelecer em que poderia constituir uma Aquela obra traz a imagem de um castelo-navio em ruínas
representação "realista" da realidade socia!.2 projetando-se no mar com seu casco de iceberg, navegando
águas acinzentadas sob um céu encoberto. Contemplamo-o
Esta noção de representação realista é exatamente o que
se encontra em crise. Aquele entusiasmo seja por Grie, seja por como uma súbita aparição de um navio-fantasma, navegando
White, vinha acompanhado de uma preocupação: enquanto sem alma alguma, como que por inércia, numa rota firme,
desviando do observador.
na Europa e América o debate ensejado pelas viradas (ética,
lingüística, epistemológica e narrativa) era bem recebido pelos O navio da história tem hoje esta aparência para
historiadores, no Brasil havia e ainda há enorme resistência alguns teóricos e alguns críticos da história. Ele é um clarão
em se encarar estes novos desafios que se encontravam e ainda fantasmagórico que pretende iluminar o passado. Paira sobre
se encontram em curso no âmbito da teoria da história. Entre a história anátema semelhante ao do lendário navio fantasma
nós ainda existe um forte apego a um regime de cientificidade dinamarquês, que às vezes era visto por alguns ma1·inheiros e
do século 20, que procura ignorar as transformações operadas que foi retratado em várias narrativas. Teria ele existência real?
no âmbito dos saberes ou o ainda questionar qual o significado Seriam suas histó. rias verdadeiras? Um fosso de águas geladas e
efetivo de nossas práticas científicas e narrativas.3 Ou seja, os profundas separa o real dessa imagem do navio, assim como o
historiadores brasileiros escusam-se da categórica questão passado da história. Talvez, o navio da história, como esse de Grie,
levantada por Dominick LaCapra: "quais são as formas esteja vazio, sendo preenchido apenas por nossas convenções,
possíveis de representação histórica e quais suas bases?".4 por nossas convicções, mas, sobretudo pela imaginação histórica
Aqui tudo enseja o apelo a rótulos que reduzem quase tudo a dos historiadores. A história dos historiadores navega célere e
relativismos ou a revisisonismos vistos como temerários. suavemente por uma superfície de versões agitadas de águas
profundas e pelo movimento incessante dos ventos e das marés,
1 Cf. MALERBA, Jurandir. História e narrativa: a ciência e a arte da escrita
da história. Petrópolis: Vozes, 2016. aparecendo e reaparecendo em toda parte. Parafraseando Walter
2 WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 1995, p. 60. Benjamin, a história é essa aparição única de passados distantes,
3 Cf. DANTO, Arthur C. Historia y narracion. Barcelona: Paidós, 1989; que insistem e que nos assombram quando, num repente,
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1999; TOZZI, deparamo-nos com eles vindo rapidamente em nossa direção
Verónica. La historia segun la nucva filosofia de la historia. Buenos Aires:
Prometeo, 2009.
para, em seguida, desaparecer e tornar a reaparecer em outros
4 LACAPRA apud ANKERSMIT, Frank. Narrativismo y teoria lugares, épocas, livros e variações narrativas. Teria a história
historiográfica. Santiago: Finis Terrac, 2013, p. 29. perdido também sua aura?

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9
História & Distopia julio Benlivoglio

O navio fantasma da história hoje navega cauteloso,


exprimindo sua dificuldade de restituir, verdadeiramente, o
passado ou ainda de salvar, historicamente, a humanidade,
promovendo a redenção ética como queriam Droysen ou
Hegel, por exemplo. Afinal, como reconhecia Michel de
Certeau, a história é um paradoxo, um oximoro.5 Ela se
ressente hoje de seus velhos hábitos distópicos - de controlar e
aprisionar o passado num invólucro científico -, controlando-o
totalitariamente com suasfenamentas analíticas e seu aparato
conceitual demasiadamente metafórico. Agora, em um
cenário também distópico ela é que tem se tornado refém da
criatura que ela mesma engendrou: o passado histórico. O
capitão-historiador tornou-se Ulisses, entretanto, não resistiu
ao canto das sereias e deixou sua nau navegar perigosamente
em meio a recifes. Náugrafo, cuja voz, narrativa ou canto não
Flying Dutchman, George Grie (Yuri Georg evich Gribanovski, 2006). pode mais reivindicar a verdade!
Talvez os historiadores contemporâneos, ao contrário O casco de gelo da empiria segue derretendo-se, revelando
dos historiadores do século 19, sejam agora náufragos de a fragilidade do antigo castelo de ambições e de certezas do
passados que um dia existiram, mas que no presente, como navio da história, que agora vaga sem resistir ao cerco do tempo
as histórias, navegam como navios-fantasmas que povoam e ao oceano de dúvidas e de considerações críticas. A linguagem
as páginas da historiografia. O estudo do passado no Brasil e de Circe, tudo sabia, antecipou e, por fim, tudo pôs a perder?
no mundo assemelha-se cada vez mais a este castelo de gelo Teriam os historiadores sucumbido ao canto irresistível da
arruinando-se, como um iceberg que se desgarra e derrete sob linguagem? Sem as amarras do método, a cegueira ideológica
0 sol irredutível do real e da narrativa. Se antes os historiadores ou o tampão auditivo epistemológico, o navio da história
acreditavam no passado como algo verdadeiro e palpável, enfrenta a dura tormenta de talvez ter perdido suas referências
agora parece que eles o contemplam como algo espectral, fundamentais.6 No horizonte não há sol ou estrelas para os
como uma criação assombrosa da imaginação e do esforço guiar, apenas esse céu cinzento. Sem um mapa, tripulação ou
de pesquisa. Como algo insondável, cuja natureza parece
esconder-se, residindo invisível nas profundezas de águas cada 5 Cf. CERTEAU, Michel De. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.
vez mais escuras e questionáveis; emergindo, episodicamente,
6 Um dos pontos críticos da história hoje é a desreferencialização do
em narrativas cercadas de dúvidas e incertezas, ou em vestígios passado, que deixa de ser um lugar ou ponto capaz de orientar as afirmativas
circunstanciais. dos historiadores. Cf. ANKERSMIT, Frank. Narrative logic: a semantic analysis
of the historian 's language. Haguc: Nijhoff, 1983; Idem. Narrativismo y teoria
historiográfica. S antiago: Finis Terrae, 2013.

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História & Distopia
Julio Bentivoglio

propulsão o navio da história segue em meio a um oceano de


A expansão dos debates epistemológicos e o
incrédulos, em sua aguda crise desreferencialização.'
aprofundamento da própria crítica histórica a partir dos anos
Este cenário parece encerrar uma longa tradição do 1960, sobretudo sob o impacto da virada linguística, acabaram
conhecimento histórico. Desde sua reinvenção no século 19, por converter o pote de ouro em uma caixa de Pandora.
quando deixou de ser mais um gênero narrativo ou um mero Acreditando ter se aproximado e acessado verdades sobre o
exercício filológico reivindicando para si um estatuto científico, passado, em pesquisas que se ampliaram vertiginosamente, por
a história, conhecida a partir de então particularmente em vezes sufocando a memória, a escrita e a re-escrita da história
França e em Alemanha como ciência histórica, conquistou as reconheceu-se como praticamente infinita e capaz de revelar
.universidades e ao longo do século 20 ampliou seu prestígio e múltiplas versões sobre aspectos do passado. Evidentemente que
hegemonia, transportando pesquisadores, interessados e leitores a chamada Escola dos Annales já havia advogado transformar o
a passados distantes. A euforia pode ser sentida em seus efeitos passado, ou a história, em problema, abandonando a história
materiais: a expansão do número de periódicos, artigos, trabalhos factual eminentemente política para construir uma história
acadêmicos e livros dedicados ao campo impressiona, nos mais mais social. O debate historiográfico francês, contudo, afastou­
diferentes países e sua consolidação como um campo acadêmico se das reflexões filosóficas, visando consolidar a história como
do saber. O aperfeiçoamento das ferramentas hemísticas, a ciência, desenvolvendo a crítica docmnental, a ampliação dos
ampliação e expansão do acesso às fontes, o avanço dos debates estudos mono gráficos e a diversificação de objetos e abordagens
historiográficos, tudo parecia indicar um caminho dourado para acreditando com isto ser capaz de reconstittúr cada vez mais
a história. Como se o passado (ou antes o acesso à verdade sobre o passado. Vozes isoladas como as de Henri-Irenée Marrou e,
ele) fosse o pote de ouro no fim do arco-íris a ser encontrado posteriormente, Paul Veyne e Paul Ricoeur, passaram a fazer
pelos historiadores nas prateleiras dos arquivos ou na crítica dos coro com autores como Michel Foucault revelando algumas
testemunhos existentes. Este otimismo modernista coadunou­ fissuras epistemológicas e fragilidades narrativas daquela
se com um tipo de compreensão das tarefas da ciência histórica concepção de história. Em relação à dimensão narrativa, ou ao
em. formação e construiu passados possíveis, com níveis de problema da reconstituição do vivido, os franceses, na esteira
objetividade e algmnas certezas que foram responsáveis pela de Roger Chartier, preferiram discutir as representações e
consolidação do càmpo, ao lado dos demais saberes durante a seus sentidos presentes nos testemunhos, e não as próprias
primeira metade do século 20. Nas palavras de Ankersmit representações que eram fabricadas pelos historiadores, bem
como sua capacidade de refigurar ou compreender o passado.
a busca da verdade histórica que se inaugurou no século
XIX e que inspirou a disciplinarização do texto histórico O impacto da virada linguística foi acompanhado pela força
requereu o abandono da retórica e de efeitos literários, de novas reflexões críticas, que inicialmente são sentidas nas
pois se acreditava que estes atrapalhavam o caminho da restrições apontadas por Levi-Strauss e, em seguida, se tornam
verdade histórica.8
mais contundentes nas observações de Roland Barthes, Jacques
7 Cf. ANKERSMIT, Frank. Narrativc logic . Op. cit.
..
Derrida e Gilles Deleuze, dando ensejo à chamada virada crítica,
8 ANKERSMIT, Frank. A escrita da história: a natureza da representação vivida a partir dos anos 1990 pelos partidários dos Annales.
histórica. Londrina: Eduel, 2012, p. 36.

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História & Distopia
Julio Bentivoglio

François Furet já diagnosticava este problema ao revelar esse


Tais embates foram intensamente acompanhados por
túnel no qual o homem adentra na escuridão, sem saber aonde
uma virada memorialística, ou dos estudos sobre a memória,
suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, mtmido da que passou a disputar com a história o papel de discurso
segurança ilusória de uma ciência acerca do que ele faz.
orientador sobre o passado.U Das antigas rivalidades em que
Ao lado dos dilemas franceses, o impacto da obra história era vista como superior à memória, passou-se a se
de Martin Heidegger e da hermenêutica de Gadamer na viver um momento em que a memória invadiu territórios da
Alemanha e em solo europeu, foi acompanhado pelos debates história reivindicando para si maior autoridade narrativa sobre
da filosofia analítica anglo-saxã. E também pela inflexão o passado. Esses novos estudos sobre a relação entre memória
provocada por Meta-história de Hayden White, que lançou e história, deram azo a pensar sobre o ressentimento, 12 o
nova luz sobre a dimensão estética ou narrativa da história, trauma, 13 o esquecimento,14 e a interdição de passados, 15 em
evidenciado ainda as colisões entre o passado histórico e os suma, integravam consistentemente a chamada virada ética e
passados práticos.9 Assim, da história problema até os debates memorialística, sob a égide da importância dos testemunhos.
narrativistas contemporâneos e à crítica feita pela nova filosofia Bevernage, por exemplo, adverte sobre o conflito entre
da história vinculada ao legado de Hayden White, viveu-se o tempo histórico e o tempo judicial}6 Ao leitor, tanto
um período intenso de reflexão sobre o fazer histórico. Desde o revisionismo, quanto o negacionismo, aliados a doses
então, investigar o passado começou a implicar na abertura crescentes de ceticismo, evidenciavam o desgaste de antigas
de muitos passados incontroláveis ou possíveis e, ademais, concepções de história, que começaram a apontar restrições
na contradição entre diferentes passados, que pareciam éticas e narrativas consideráveis indicando como de maneira
colocar em risco algumas certezas do conhecimento histórico,
'lhcory, Trauma. Corncll: Cornell Universily Prcss, 1994; FRIEDLANDER,
em especial uma possível verdade única sobre os eventos. Saul. Probing thc limits of represcntation. Cam bridge: Harvard Un ivers ily
Algo explícito tanto na expansão de uma historiografia Press, 1992.
revisionista, que revisitava e desconstruía versões tidas como 11 Cf. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada
subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 RICOEUR, Pa u l. A
consagradas ou consensuais produzidas pelos historiadores,
memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007; Mudrovcic,
quanto em uma historiografia negacionista que locava em M. I. EI debate en torno a la representación de aconlecimientos límites de/pasado
temas-limites ou tabus, relacionados a episódios traumáticos, reciente: alcances de/ testimonio comofuente. Dianoia, v . 52, n. 59, 2007.
procurando interditar histórias ou verdades históricas vistas 12 Cf. ANSART, P ierre. Les sentiments et le politiqu e. Paris: 1-Jarmattan,
2007.
como irrefutáveis. Tinha início a chamada virada ética na
13 LACAPRA, Dominick. Writing History, Writing Trauma. Cornell:
historiografia, na qual os historiadores começaram a discutir Cornell University Press, 2001; LORENZ, Chris. Historical kuowledge aud
seus comprometimentos éticos ou políticos, bem como sobre historical reality. History & Theory, n. 33, p. 297-327, 1994.

quais eventos se debruçar e sobre como deveriam narrar os 14 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas,
SP: Unicamp, 2007; ROSSI, Paolo. O passado, a memória e o esque cimento.
chamados eventos limites.10 São Paulo, 2002.
15 BEVERNAGE, Berber. Historia, memória y vio lência estatal: tempo y
9 Cf. WHITE, Haydcn. Practical past. Northwestern Universily Press, 2014.
ju s tiça. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2016.
10 Cf. LACAPRA. Dominick. Representing the Holocaust: History,
16 Ibidem, p. 23.

14 15
História & Distopin

progressiva o passado se tornava um problema e, de algum


modo, fugia do controle dos historiadores. Não por acaso,
um conjunto considerável de importantes obras históricas
começou a ser produzido por não-especialistas: filósofos,
antropólogos, sociólogos ou jornalistas, dentre outros.
Este pequeno livro procura reunir algumas destas Exórcfio
preocupações, sugerindo alguns caminhos possíveis para se
Transformei um quarto em laboratório, separado
pensar a emergência de um novo conceito de história diante
dos outros aposentos por corredores e por uma longa
deste conjunto de transformações, as quais têm produzido nos galeria. Pelos dois anos seguintes, convivi ali, sozinho,
historiadores leituras e apreensões diferentes e muitas vezes apenas com minha criatura - ou com as partes mortas
contraditórias do passado. e inanimadas com que ela estava sendo construída.
Ninguém será capaz de imaginar as sensações que
me impulsionaram em minha tarefa. A vida e a morte
pareciam-me limites imaginários, os quais eu romperia
para jogar uma torrente de luz sobre o nosso mundo de
sombras. E o resultado seria glorioso: uma nova espécie
de homens me abençoaria como o seu Criador. Seres
felizes e benevolentes deveriam sua existência a mim.
Nenhum pai exigiria tanta gratidão de um filho quanto
eu mereceria deles. E, não apenas isso, eu também
devolveria a vida a mortos queridos, que se tivessem ido
cedo demais. Eu, Victor Frankenstcin, seria o anjo da sua
ressurreição.17

Há mais semelhança entre esta longa citação de


Frankenstein, ou o Prometeu moderno, publicada em 1818, e
alguém redigindo sua dissertação de mestrado ou sua tese de
doutorado em história do que podemos imaginar. Um criador
dando vida, a partir de fragmentos, ao ser do passado. Na
verdade, não poucos pesquisadores já buscaram inspiração
neste que é um dos mais poderosos mitos da literatura
romântica para discutir seus problemas de estudo. Parece que
retorno a um lugar-comum, no entanto procurarei transfigurá­
lo, 18 do mesmo modo que a história, de modo sistemático,
17 SHELLEY, Mary. Frankcnstein. São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 18.
18 Cf. DANTO, Arthur. Narralion and knowlcdgc. New York: Columbia
University Press, 1985.

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História & Distopia
Julio Bentivoglio

parece transfigurar sempre um lugar aparentemente comum:


o passado. O mito de Frankenstein é tão poderoso, aliás, Procurarei demonstrar como algumas questões decisivas
quanto outro mito também poderosamente moderno, do qual relacionadas com o problema da representação, da autonomia,
é um irmão siamês: a ciência. do descolamento das narrativas face ao real, das aporias em
torno do lócus do passado e acerca das restrições ontológicas
Para este breve estudo, que visa discutir novas do empirismo, entre outras, encontram-se debatidas por
configurações da imaginação histórica desde o último quartel variados intérpretes cuja recepção no Brasil é ainda incipiente
do século 20 até o presente, pretendo analisar a crise do e restrita aqueles que se dedicam à teoria da história. Pensei
modelo científico e de uma consciência moderna da história ser o caso de tentar reunir esses problemas complexos em
para desenhar, em seguida, a emergência de uma nova uma síntese simples que pudesse levantar alguns temas
consciência historiográfica, profundamente pós-moderna e mais gerais que alimentam o debate epistemológico atual
sedutoramente distópica na esteira da leitura de Frankenstein. de maneira acessível, relacionando-os à minha hipótese de
Parto da sugestiva indicação feita por Hayden White de que toda que a história tal como conhecíamos acabou dando lugar a
história tem, além de seu conteúdo científico, um componente histórias elaboradas a partir de uma imaginação cada vez mais
localizado na imaginação histórica dos historiadores, distópica. Por que não usar Frankenstein para refletir sobre o
responsável pela elaboração do enredo, que . confere uma caráter distópico da história que, nos dias correntes, através de
forma característica e literária às narrativas históricas.19 Em múltiplas narrativas transfigura, sedutoramente, o passado?
Meta-história Hayden White analisa a imaginação histórica
modernista e a tropologia que informou narrativas de
historiadores e filósofos da história do século 19. Defenderei
aqui a emergência de uma nova imaginação histórica, pós­
modernista e distópica, sutil e sistemática, bastante freqüente
nas elaborações narrativas contemporâneas. Afinal,
através dos tempos, a literatura tem dado voz aos
medos e esperanças gerados pelas descobertas
científicas e retratado as imagens e mitos em torno da
própria ideia de ciência.20
------

19 Para Ankersmit, Meta-história inaugura uma nova era que ultrapassa


o s modelos de covering Jaws ou da compreensão hermenêutica (2012, p.20).
Com essa obra Hayden White mostrou que os textos históricos possuem três
níveis, um descritivo, outro explicativo e um terceiro, representacional e que
não olhamos o passado através da história, mas que olhamos para a história e
nela acreditamos ver o passado. Cf. ANKERSMIT, Frank. A escrita da história:
a natureza da representação histórica. Londrina: Eduel, 2012, p. 79.
20 ROCQUE, L. de L.; TEIXEIRA, L. A. Frankenstein, de Mary Shelley c
Drácula, de Bram Stoker: gênero c ciência na literatura. História, Ciências,
Saúde Manguinhos, v. Vlll, n. L, p. 1 2, 2001.

18
19
Distqpia ou o yatfios tia
história_pós-moderna
Dis é um prefixo latino muito comum que remete à ideia
de dualidade, divisão em duas partes, separação, movimento
em vários sentidos, afastamento, cessação, negação, falta,
intensidade. Ele encerra a ideia de dificuldade e de duplicidade.
Mas há também um prefixo grego dys que indica, dualidade,
dificuldade e mau estado.21 Topos, por sua vez, é um radical
que significa lugar, de modo que defino distopia, mais
livremente, como um deslugar, um lugar e sua negação, um
lugar cindido ou ainda um lugar em deslocamento. Ou seja,
temos um lugar deslocado, impróprio, fora do lugar. No plano
filosófico, a distopia representa a resistência ao humanismo
diante de realidades sempre hostis, das quais, aparentemente,
não é possível escapar.
A história que em tese poderia ser o estudo das ações
humanas no tempo - em especial no passado - na verdade
nasce da consciência da historicidade forjada no tempo e no
espaço pela própria experiência existencial individual. Ou
seja, de uma relação dual e complexa entre tempo e espaço
em permanente deslocamento, que é vivida, apreendida e

21 Cf. SCHENEIDER, Luiziane Schcneider. A semântica dos prefixos


de- e dis- para as palavras de base. Apresentado no 11 Seminário Nacional
em Estudos da Linguagem na Unioeste em Cascavel no Paraná (6 a 8 de
,

outubro de 2010). Disponível em: http://cac-php.unioeste. br/cventos/iisnel/


CD_IISncll/pagcs/simposios/simposi o% 200 I Iasemanticadosprefixosdc-cdis­
paraaspalavrasdebase.pdf

21
História & Distopia
julio Bentivoglio

reconhecida pelos indivíduos. Os historiadores se tornaram


especialistas em converter estas compreensões individuais intenções, que reivindicam uma materialidade para o passado,
em experiências coletivas, compartilhadas pelos leitores. como algo localizável, como uma extensão do presente.
Reproduzir essas experiências por meio do diálogo entre os Complica-se ou transfigura-se aquilo que poderia ser
testemunhos do passado, a compreensão dos historiadores e um lugar comum. Em outras palavras, poderíamos dizer que
a cabeça dos leitores, faz-nos ver que a história padece, como existem ao menos quatro passados possíveis: um passado em
o tempo, daquilo que Jacques Derrida identifica a um atraso si, como totalidade heurística ou um lugar antes do agora
originário, que remete sempre a um passado ou a um futuro, vivido em suas ações e pensamentos; um passado para os
cheio de traços que interrompem a possibilidade de uma contemporâneos que nele habitaram traduzido de diferentes
identidade simultânea com o presente, posto que está cheio formas e retratado em seus discursos, um passado para os
de dobras, linhas de fuga e eu acrescentaria deslocamento. O homens e mulheres do futuro e do presente, constituído por
passado dos historiadores seria, portanto e par excellence, um múltiplas representações, memórias, narrativas e discursos e,
deslugar:22 um lugar impróprio, deslocado, fora do lugar; que por ftm, o passado produzido pelos historiadores.
a escrita da história, alinhavada nas fileiras da modernidade,
Se o passado já era, em si, um problema de ordem
buscava inscrever sob a égide das utopias, seja da razão, seja da
ontológica e epistemológica de difícil solução, agregam-se a
ciência, para o fixar. ele problemas ainda maiores, quais sejam: a noção de verdade
As histórias se passam em outros lugares que não são e de acessibilidade física, direta e indireta por meio das fontes
exatamente, nem o passado, nem o presente, tampouco o futuro, e por meio das narrativas históricas. Elementos basilares da
que estariam ao alcance da mão dos historiadores por meio dos história desde suas origens com os antigos que chegaram ao
documentos, convertendo essa experiência compreensiva por século 21 muito enfraquecidos, pois, tanto o revisionismo
meio de narrativas em passados que expressam realidades para quanto o relativismo apontaram não somente a existência da
o mundo do leitor.23 O problema é que além de deslocados e diferença, que acentuou a discordância ou a tensão entre as
em deslocamento, os passados da história surgem em variados interpretações e imagens construídas sobre o passado; como
discursos e camadas que precisam ser desconstruídos, cujas também questionou o lugar do passado.
produções de sentido foram forjadas não raro com diferentes
A dificuldade com a noção de uma verdade ace rca da
experiência passada é a de que ela não pode mais ser
22 Ao contrário dos não -lugares que, conforme Marc Augé são espaços experienciada, e isto deixa o conhecimento histórico
de transição não relacionais e não identitários que produzem solidão, visto vul n erável à acusação de que ele é uma construção tanto
os indivíduos não estabelecerem com eles nenhuma relação significativa; o
da imaginação quanto do pensamento e de que sua
passado seria um deslugar, pois, seu significado desloca-se no interior de sua
autoridade não é maior que o poder do historiador de
própria historicidade, adquirindo existência ao longo das narrativas históricas,
que lhe atribuem significados, relações c identidades; cujo reconhecimento
persuadir seus leitores de que seu relato é verdadeiro.2'1
por meio das leituras produz afetividades, comparações e estranharnentos. Cf.
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Campinas: Papirus, 1995.
23 Cf. DANTO, Arthur C. A note Oll history and narrative. History &
'Tileory, 1967. 24 WHITE, Hayden. TI1c contcnt of the form. Narrative discourse and
historical representation. Baltimorc: John Hopkins University Press, 1979, p. 174.
22
23
História & Distopia
julio Bentivoglio

Estabelece-se, portanto, nos dias correntes, ao menos


passado, ou seja, no fato de que subsiste algo dele e que
para mim, um crescente entendimento de que a ideia de
dá testemunho dele.26
verdade associada ao passado, só se reconstitui a partir da
diferância, na qual toda discordância é sequenciada, havendo Em meio aos diversos gêneros literários e em virtude
um adiamento em relação ao sentido das coisas, provocando da utilidade que a literatura pode ter, fornecendo reflexões
um questionamento sobre a fixação de um passado em lugar e compreensões sobre a realidade, é bem provável que um
do reconhecimento da existência de tantos passados quanto gênero particular, no caso a ficção científica, sirva de ilustração
for possível imaginá-los ou recuperá-los.25 Um exemplo para o problema que aqui tentamos analisar. E no interior das
disso é o lugar ocupado pela destituição de Dilma Rousseff narrativas forjadas nessa rubrica, encontram-se as distopias,
da presidência da República do Brasil em 2016, seja na como um de seus gêneros mais apreciado na atualidade, com
opinião pública seja nos estudos políticos e históricos, visto suas histórias adversas do futuro que talvez possa ilustrar o fim
ter se tornado um passado cuja geografia analítica embora se de uma dada concepção de história e o advento de uma nova.
refira a um mesmo país, sociedade e atores, não é capaz de As distopias revelam um cenário sempre hostil à
indicar coordenadas fixas ou seguras de realidade. Captada em sobrevivência humana, desafiada por aparatos tecnológicos
diferentes olhares, a destituição é ora golpe, ora impeachment, de controle e governos autoritários que procuram reduzir as
ou seja, é um lugar em deslocamento, cuja paisagem conhece diferenças impondo um comportamento massificado. Não teria
múltiplas camadas narrativas em curso e sem solução, posto sido esta também a ambição da história? O desenvolvimento
que serão incapazes de reduzir estes diferentes passados a um das técnicas de pesquisa não procurou disciplinar o passado
lugar único. Poder-se-ia ainda pensar em quantas narrativas pacientemente reduzindo-o a contextos e a lugares mais ou
mais serão necessárias para esgotar, fixar ou representar menos consensuais e duráveis por algum espaço de tempo?
corretamente o passado em torno da queda de Dilma Rousseff. Tal como a distopia, não habita apenas nos ambientes externos
Jorn Rüsen apresenta este tipo de questão de forma lapidar. ou construídos historicamente, mas, interfere na própria
Para ele intimidade e na consciência dos sujeitos históricos, a história
sentenças históricas (histórias) são sempre enunciados também forjou domínios distópicos de passados aparentemente
sobre algo que foi o caso no passado. Sua credibilidade controlados e determinados - mediante a adoção de recortes
depende de convencer seus destinatários de que o que
ou caracterizações categóricas, procurando evitar a dúvida, a
ocorreu no passado aconteceu na forma como enunciam
[e] [ ... ]para reforçar sua pertinência empírica, as histórias negação ou a revisão- que foram exacerbados e reproduzidos
podem remeter a uma instância de autenticação. Essa pela imaginação histórica moderna? Feudalismo, Estado
instância consiste na contemporaneidade factual do absolutista, Revolução Industrial, entre outras, são expressões
ou antes conceitos que parecem indicar o controle da história
25 Para Derrida a desconstrução é uma estratégia que questiona o
sobre o passado. O caso seria, contudo, pensar na possibilidade
pensamento metafísico tradicional com suas m�táforas e meton�mi�s.
.
subvertendo suas hierarquias e denuncian do seu carater de JOgo de auscnc1as ou não de se fixar uma única realidade para o passado, com
c presenças. DERRIDA. )acques. A escritura e a diferença. São Paulo:

Perspectiva, 1971, p. 248.


26 RÜSEN, Jõrn. Razão histórica. Brasllia: EdUnb, 2001, p. 101.
24
25
História & Distopia Julio Bentivoglio

uma descrição absolutizada, seja por uma fórmula, seja por A ameaça da história situa no interior do passado um
um modelo, seja por um sistema expressado por um conjunto mau futuro, semelhantemente à literatura distópica, ou ao
fixo e invariável de características. Tentar fixar o passado ocaso da arte, fazendo com que o pessimismo nas capacidades
deste modo reflete o caráter totalitário inerente às distopias da história ocupasse espaços vazios deixados pela falência
literárias. Segundo Frank Ankersmit, teríamos muitos passados da utopia científica moderna, fissurando-a e levando as
possíveis na história, para um mesmo event� ou �ara um representações da história científica à crise. Ou seja, a crença
� .

período, que atestam a relatividade das narra 1v�s 1stón� as. de que o excesso de histórias e a ampliação do acesso as fontes
Eles podem ser alternativos e até mesmo antmomtcos, v1sto poderiam provocar a identificação entre a história (ou as
serem interpretações e não traduções ou espelhos do passado.27 histórias) com o passado é algo que não se deu. Como diria
Segundo ele, a história, contudo, instituiu um padrão: as Arthur Danto,
_ dupla:
"declarações de uma narrativa histórica têm uma funçao
a história da ciência poderia [. ] ser lida como a
1) descrever o passado e, 2) definir ou individualizar uma ..

diminuição progressiva da distância entre a representação


narrativa específica do passado".28 Bom exemplo disso são as e a realidade. Havia nessa história uma base para o
histórias do grande historiador alemão, Leopold von Ranke. otimismo, segundo o qual os bolsões remanescentes de
ignorância seriam pouco a pouco trazidos à luz, de modo
Esta tensão entre os objetivos utópicos e a adoção que tudo poderia fmalmente ser conhccido.29
de práticas disciplinares distópicas, de modo sem�lha1� te
ao poder tirânico dos romances informados pela dtstopta, E como a narrativa jamais é um veículo neutro, deve­
constituiu o percurso recente da história nos últimos doi� se reconhecer que a intenção originária do historiador-autor
séculos, preconizada como ciência histórica, desde Ranke ate não esgota tanto o ser do passado quanto também o ser da
muitos historiadores no presente. obra, do mesmo modo que os contextos construídos não são
capazes de explicar seja o passado, seja o próprio texto, posto
Pode ser que a distopia sirva como um motto e um que ambos são invenção, tentativa de controle e busca por
conceito sugestivo para se pensar a história não somente consenso.J0 A história, como a utopia ou a distopia, requer
enquanto atividade científica peculiar, mas também como elementos de realismo capazes de conferir o reconhecimento
uma forma de arte, a fim de se evitar totalitarismos e excessos, dos leitores. Mas, enquanto as utopias históricas construíram
em que boa parte dos historiadores defensores da história passados felizes, lugares desejados, localizados, pacíficos
meramente como ciência ainda insistem, procurando e aceitos, a distopia parece surgir como um deslugar
disciplinar o passado e exercer sua autoridade ab�oluta sobre preocupante, marcado por incertezas e indesejado. Um topos
ele. Basta pensar nos debates havidos entre Françms Furet e os aceito mediante consensos provisórios que duram até que uma
historiadores marxistas franceses sobre a Revolução Francesa
para entender este ponto. 29 DANTO, Arthur. O descrcdcnciamcnto filosófico da arte. São Paulo:
Autêntica, 2014, p. 125.
27 ANKERSMIT, Frank. Narrativismo y teoria historiográfica.
Santiago:
30 Para David Carr a história é uma narrativa, um artifício e um produto
Finis Tcrrae, 2013, p. 75. da imaginação individual dos historiadores. CARR, David Tiempo, narativa e
.

28 Ibidem, p. 88. historia. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015, p. 18.

26 27
l/lst6ria & Distopia
julio Bentivoglio

nova obra venha ocupar o lugar de outra. Espaço de recusa e


gradientes de diferença que surgem nos discursos e narrativas
negação, posto que coloca em risco os passados apaziguados
produzidas sobre este lugar-tempo. Chladenius, ao tratar das
e consensuais, fenômeno que se amplia cada vez mais na
coisas futuras sublinhara que
historiografia ocidental a partir dos anos 1980. Para Baccolini,
o reconhecimento das coisas futuras tem grande
in the 1980s, this utopian tendency carne to an abrupt semelhança com o conhecimento das coisas passadas e
end. In the face oj economich restructuring, right-wing a nossa alma se ocupa tanto com um quanto com outro.
politics, and a cultural milieu informed by an intensifying O futuro se transforma em passado com o decorrer
fundamentalism and commodification, of writers revived do tempo. Muitas pessoas não conseguem enxergar
and reformulated the dystopian genre. As the utopian muito longe no futuro, ao passo que para outras o
momentJaded, only a few writers {...) kept the narratives reconhecimento de um assunto - que ainda é futuro - é
ofsocial dreamming alive. corno se já tivesse se concretizado.32

By the ende of the J980s - moving beyond the engaged Para falar de um lugar precisamos saber qual a posição
utopianism of lhe 1970s and the Jashionable temptation
to despair in the early 1980s - severa/ writers confronted
que ocupamos em relação a ele, se estamos dentro ou fora.
the decade 's sirnultaneous silencing and cooptation of Pensemos no caso do passado. Que lugar ele ocupa? Onde nos
Utopia by turning to dystopian strategies as a way to come situamos em relação a ele? Para Jenkins o passado é um antes
to terrns with the changing social reality.31
do agora,33 mas ele pensa exclusivamente o passado como uma
O realismo cético da distopia conduziria a história a lugar temporalidade, como ações e eventos que acabaram e não
infeliz, visto problematizar sua antiga noção de passado e de exatamente como um lugar.34 Chegamos a um ponto no qual,
representação fiel. A distopia revela que abaixo de superfícies novamente, os historiadores deverão ser capazes de colocar os
reconhecidas e uniformes, existem dobras em que há a fundamentos teórico-metodológicos da disciplina em novas
imponderável diferença com variados níveis de desesperança. bases. Crise semelhante foi sentida pelos historiadores do
A distopia pode ser uma dobra na qual se escondem infinitas século 19 e início do século 20, que, em resposta, referendaram
imersos na atmosfera utópica do modernismo uma crítica e
linhas de fuga nas quais a realidade do passado escapa. A
distopia é o passado e sua recusa, sua incerteza, sua tentativa uma escrita particulares para a história. O sentimento, naquela
de fugir do controle dos totalitarismos forjados pela disciplina altura, era de que, nas palavras de seu precursor, Droysen
histórica desde o Oitocentos. tudo está abalado, tudo está passando por imensuráveis
rupturas, agitações, brutalizações. Todas as coisas velhas
O leitor deve ter percebido que, ao contrário da estão gastas, falsificadas, consumidas por vermes, de
literatura que coloca a distopia majoritariamente no futuro,
considera-se aqui que na história a distopia tem seu lugar 32 CHLADENIUS, Johann Martin. Princípios gerais da ciência histórica.
Campinas: Unicamp, 2013, p. 301.
no passado. E refletir sobre a distopia significa pensar esses
33 JENKINS, Keith. A história refigurnda. São Paulo: Contexto, 2014, p. 62.
34 Essa é a queLxa pri n cipal de Kate Brown, a de que os historiadores
3! BACCOLINI, Ratfaella; MOYLAN, Tom. lntrodrtclion. Dystopia and
. _
_ in.: BACCOLINT, Rallaclla; pensam mais nos d�cumentos e no tempo que na existência física dos luga res.
lmtoncs. MOYLAN, Tom. Dark horizons: science
BROWN, Kate. D1spatches from dystopia. Histories of pinces not yet
fiction and utopian imagination. London : Routledge, 2003, p. 2-3.
forgotten. Chicago: Uni vcrsity ofChicago Prcss, 20!5, p. 2.

28
29
História & Distopia

modo irrecuperável. E o novo ainda não tem forma e fim,


é caótico, meramente destrutivo.35

A natureza distópica da história de algum modo


acaba por abalar não somente o mito fundador do passado,
como o próprio mito de fundação científica da história na
modernidade, porque se patenteia a existência de tantos
passados quanto as obras histórias serão capazes de produzir.
ficções cíentjficas da história
As
E que, no entanto, nem todos os historiadores estariam
propensos a aceitar. Em todos eles, reconhecemos elementos
na modernídaáe
comuns, referencialidades, contextos, embora nada disso os
torne iguais ou reduza o passado a algo específico ou único.
Nas palavras de Rildo Cosson e Cíntia Schwantes
o valor da narrativa, seja ela histórica ou literária, está
não apenas na verdade do que diz, mas também na
consciência de que usa uma determinada forma para
dizer essa verdade. A metaficção historiográfica coloca
em primeiro plano a autoconscíência de que a história e a
literatura são construções discursivas, motivo pelo qual é
possível reescrever o passado como ficção e a ficção como
passado.36

O que se percebe deste motto distópico para história é


que não conhecemos exatamente o passado, mas o acessamos
apenas por meio de representações, narrativas e simulacros
construídos e reconstruidos pelos historiadores.37 Esta
verdade última da insuficiência e da impossibilidade da
história encontrar ou se aderir ao passado significa, no caso
da história, o que o modernismo representou para a história
Frontispício de Frankenstein, edição da Colburn & Bentley (1831)
da arte: o fim.
A imagem acima ilustra a terceira e definitiva edição
de Frankenstein, publicada em Londres, em 1831. Mas a obra
35 DROYSEN, J. G. Historik. Berlin: [s. n.]. 1933, p. 328. havia surgido bem antes. Assim, há mais ou menos duzentos
36 COSSON, RiIdo; SCHWANTES, Cíntia. Romance histórico: as ficções anos, em 1816, Mary W. Godwin e seu amigo Percy B. Shelley
da história. Itinerários, n. 23. 2005, p. 30.
passavam, juntamente com Lord Byron e ]ohn Polidori, o
37 ANKERSMIT, Frank. Historiografia c pós-modernismo. Topoi, v. 2, p.
190, 2001. verão em uma casa às margens do Lago Léman, nos arredores

30 31
História & Distopia
julio Bentivoglio

de Genebra. A erupção de um vulcão na Ilha de Sumbawa, na


atual Indonésia, havia lançado milhares e milhares de toneladas trazer à vida uma criatura-mulher. Nesse ínterim casa-se
com Elizabeth, que, logo após o casamento é estrangulada
de poeira e cinzas na atmosfera, impedindo a passagem na
pelo monstro. Victor então empreende uma longa caçada à
luz solar em vários pontos do hemisfério norte, de modo que
boa parte da Europa naquele verão ficou um bom tempo às sua criatura, chegando até o Polo Norte, onde é resgatado
pelo capitão Walton e, doente, conta toda a história vindo a
escuras, encoberta. Nessa atmosfera sombria, fria e chuvosa,
falecer. Na cabine do navio são, em seguida, surpreendidos
os amigos começaram a ler histórias de horror e fantasmas,
pela chegada do monstro que chora a morte de seu criador e
boa parte delas recentemente traduzidas para o francês do
promete dali sumir e suicidar-se.
alemão. Em seguida, a partir do desafio de Byron, puseram­
se a confeccionar suas próprias histórias. Inventava-se ali, Harold Bloom enxerga em Frankenstein um mito
naquele momento, um gênero literário: a ficção científica. E trágico, inspirado pelo Prometeu de Ésquilo, Hamlet de
reinventava-se outro: os romances de terror. A futura senhora Shakespeare e Paraíso perdido de John Milton. Há ali um
Mary Shelley levou alguns dias para encontrar a base de sua exuberante herói trágico, que padece nas mãos da incerteza e
ficção e somente a concluiu em 1817. O manuscrito foi recusado do destino. Nortrhop Frye, por seu turno, identifica na obra um
por duas editoras até ter sua primeira edição de 500 exemplares sugestivo thriller existencialista.38 Em seu Teoria do romance,
lançada em 1 o de janeiro de 1818, em três volumes, pela editora Lukács identifica também o herói trágico naquela obra, em
lond1·ina Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones. sua viagem crítica para o interior de si mesmo, uma viagem
de autoconhecimento e revelação, que expressa a fratura entre
Escrita sob o formato de narrativa epistolar, gênero
o indivíduo e o mundo. Do antigo herói trágico emergiria
bastante cultuado e que teve em Werther de Goethe seu ponto
agora um sujeito problemático. Como se vê, não existiria
alto, a história é contada por meio das cartas do capitão Robert
mito moderno mais poderoso que Frankenstein. E como todo
Walton a sua irmã. Nelas ele revela que teria encontrado
monstro possui seu duplo, talvez não haja, paradoxalmente,
no Polo Norte Victor Frankenstein. Nelas são narradas
nada tão pós-moderno quanto Frankenstein.
as desventuras de Frankenstein, que, quando estudante
de Ciências Naturais havia transformado seu quarto em Frankenstein inaugurou um novo gênero literário, a
laboratório e criado a partir de pedaços de cadáveres, uma ficção científica e serviu de modelo para novos romances
criatura gigantesca que logo após rejeitou. Abandonada à sua similares, como Dr. fekill e Mr. Hyde, por exemplo. Ele
própria sorte, a criatura fugiu, sendo sempre hostilizada pelas possui muitas referências históricas e filosóficas, visto citar
pessoas, vivendo escondida numa casa de um pai cego e seus autores e filósofos, como Paracelso ou Darwin, revelando não
filhos, lendo e estudando em segredo, para depois procurar exatamente como a vaidade leva os indivíduos à perdição, mas
seu criador, assassinado o irmão deste, William, para atrair o como a soberba do conhecimento científico na modernidade
mestre e exigir que ele construísse uma esposa para ele. Com é perigosa. Realiza uma crítica às ambições científicas de seu
receio de ver gerações de monstros sendo geradas à partir tempo, bem como expressa em suas entrelinhas uma forte
daquele casal, Victor protela enquanto pode essa missão de
38 FRYE, Northrop. Anatomia da critica. São Paulo, 2007, p. 72.

32
33
História & Distopia
Julio Bentivoglio

crítica feminista ao universo masculino de então. Para muitos,


o visível não passa de aparência. Subjacente a tudo o
Frankenstein mostra como a falta de limites éticos na ciência que vemos existe um nível mais profundo, essencial, e
pode colocar em risco a sociedade, algo muito novo, muito é somente a partir dele que podemos verdadeiramente
contemporâneo. Para Ana María García, entender nossos objetos de estudo.'10

Esse locus, ese primer laboratorio, gabinete que nace Shelley no início da obra diz que aquele relato imaginário
precisamente de la crisis que deriva dei racionalismo não era de todo modo impossível. As cattas e histórias do
secularista, herdero de la Ilustración, y el irracionalismo
velho capitão bem poderiam ser verdadeiras, continham, não
sobrenat11ra/, de raíz medieval, que surge a través de la
estética de/ romanticismo, representa un estadia pre­ obstante, uma advertência. Ou nas palavras do jovem doutor
moderno, en la medida que anticipa el topos que domina Frankenstein:
gran parte de la producción distópica: el laboratorio de
Brave New World.39 Mas quem poderá conceber os horrores dessa obra secreta,
cuja grandeza só era igualada pelos atos da mais baixa e fria
De algum modo, o Romantismo foi o prelúdio e desumanidade que, em nome da ciência, eu era obrigado a
cometer? Muitas vezes arrombei c penetrei em túmulos, em
ao mesmo tempo a ponte que conduziu à sensibilidade busca de material fresco para minha criação. Esses corpos
oitocentista e ao perspectivismo pós-modernos, centrados que, aos meus olhos, ainda pareciam conter centelhas de
no sujeito e na subjetividade. O topos da formação, essencial uma vida tão recentemente extinta foram profanados por
para compreendê-lo, contudo, fragmenta-se em diversos minhas mãos e meus instrumentos.11
caminhos que não conduzem exatamente às origens, mas a Afeiçoados aos cemitérios da história, historiadores
genealogias bem ao gosto de Foucault, produzindo ausências, também reviram arquivos e fontes, no dizer espirituoso
estranhamentos e uma forte nostalgia das gêneses ou das de Foucault e Certeau, exumando, em nome da ciência,
garantias de cientificidade. Assim, enquanto a historiografia documentos, séries e fundos para produzir história. E a
romântica podia se dar ao luxo de tratar das formações e das dificuldade de sua tarefa não era muito diferente daquele
origens, a historiografia pós-moderna analisa genealogias, personagem, pois, para o doutor Frankenstein:
preservando o gérmen das sensibilidades, desacreditando das
Embora possuísse a capacidade de dar vida à matéria
linhas de evolução e igualmente das origens. Em seu lugar
morta, o trabalho de preparar uma estrutura para recebê-la,
pensa as narrativas como textos figurativos e retóricos, artefatos com seu intrincado complexo de fibras, músculos e veias,
literários, estéticos e de performance, não como um gênero parecia de uma magnitude e dificuldade inconcebíveis.42
narrativo científico hermético, sem qualquer interferência da
Como a vida não deixa de imitar a arte, também na
imaginação ou da ficcionalidade. Os teóricos da modernidade,
ciência histórica:
conforme José Vasconcelos, já haviam percebido que

40 VASCONCELOS, José A. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós­


39 GARCIA, Ana Maria. Los avatares dei utur dis/ut6pico: Discusiones modernismo na historiografia americana. São Paulo: Annablumc, 2004, p. 17.
quase tomo de polfticas de uture rtture io y sexual. Cuadernos CILHA, v. 14, n. 41 SHELLEY, Mary. Frankenstein.. . Op. cil., p. 19.
2, p. 88, 2013. 42 Ibidem, p. 16.

34
35
História & Distopia Julio Bentivoglio

Os antigos mestres [. . ] prometiam coisas impossíveis,


.
Também o marxismo na historiografia se alimenta
e não levavam nada a cabo. Os cientistas modernos
prometem muito pouco [ ...) mas, conseguiram milagres. deste espírito utópico e cientificista de retratar 0 passado
Conhecem até as mais recônditas intimidades da natureza objetivamente, contudo,
e demonstram como funciona em seus esconderijos.41
o Marxismo é outra teoria social com a qual se pode fazer
Este otimismo característico, capaz de ilustrar a uma analogia em relação ao pensamento pessimista da
distopia literária. Apesar de concebido no século 19 o
historiografia no Oitocentos, acentuou-se ao longo do século marxismo influenciou o pensamento político de gra�dc
20 em diferentes tradições: tanto na historiografia científica parte d� século 20. Sua ênfase no mal do capitalismo
metódica no século 19, como no movimento dos Annales, te� mUlto em comum com o pensamento distópico, e
por exemplo, que sempre defenderam a cientificidade da mu1to de seu trabalho envolve uma tentativa de revelar a
natureza ilusória das pretensões capitalistas que, segundo
história e de seus métodos."" Não por acaso, Gumbrecht ele, compromete o desenvolvimento do verdadeiro
revela que uma das principais características da modernidade potencial humano em favor do sistema econômico.46
seria sua confiança, quase cega, no conhecimento produzido
Nada seria capaz de conter este espírito da historiografia
pelo observador.45 A crítica histórica seria, para metódicos
oitocentista que chega até o século 20, responsável por
ou annalistes, capaz de realizar milagres. Não por acaso, de
constituir o que denomino de ficções científicas da história na
ciência em construção na obra de Marc Bloch e Lucien Febvre,
modernidade, que acredita na capacidade epistemológica da
a história alcançaria notáveis avanços na França nos anos 1970,
história de produzir narrativas capazes de dar vida ao passado.
1980 e 1990, vendo ser reconhecido seu estatuto científico.
De localizá-lo nos documentos e fixá-lo em uma narrativa
Indício seguro disso foram os enormes esforços empíricos,
objetiva e verdadeira. O projeto utópico na historiografia
interdisciplinares e seriais de muitos historiadores desde
científica no Oitocentos se manteve ao longo do século 20
então para dar vida e iluminar o passado, bem como o uso de
e tem mantido no século 21 modelos evolutivos amparados
estatísticas, bancos de dados e computadores. O paralelismo
no avanço da pesquisa como um horizonte desejado para
com a descrição de Shelley é bastante rico: das macroanálises
se encontrar o passado e revelá-lo. Este ainda resiste nos
passamos à história em migalhas e à microhistória capazes
documentos e na cabeça de muitos historiadores. Trata-se do
de iluminar detalhes e universos infinitos com seus recortes
mito do realismo histórico, ou do chamado efeito Magritte da
radicais e sua redução de escala.
história, que segundo Ankersmit,
la idea de que e/ pasado en si nos es acecible en la misma
43 SHELLEY, Mary. Frankenstein. . Op. cit., p. 33.
. medida en que lo son las representaciones históricas que
44 Luiz Costa Lima censura os Annales e sua resistência generalizada tenemos de él {. } y de ahf la idea de que el contacto directo
..

à discussão epistemológica, seu calcanhar de Aquiles, indicando que viam c�m el pasado ha de ser igual de fácil que el contacto
sua atividade intelectual como uma prática científica, mais que uma prática dzrecto con el texto histórico.47
discursiva ou filosófica. Ver: LIMA, Luiz Costa. Aguarrás do tempo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1986, p. 22.
45 GUMBRECTH, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: 46 OLIVEIRA, J, op. cit., 2012, p. 24.
Editora 34, 1998, p. 13. 47 ANKERSMIT, Frank. História e tropologia. Londrina: Eduel, 2013, p. 71.

36 37
História & Dislopia
julio Be11tivoglio

Este período modernista e utópico no qual desenvolve�


que é velho.49 Neuezeit, diriam os alemães, conceito operativo
esta história científica representou, ao mesmo tempo, a era
e dinâmico que traduz, conforme indica Koselleck, uma época
em que a história-saber era produzida através de práticas
e sua consciência. "A palavra de ordem do moderno foi, por
muito distópicas: transformando o passado em repetição do
excelência, 'criar o novo"'.50
mesmo ou do conhecido. Em estrutura sincrônico-diacrônica
de eventos pensáveis e explicáveis, com suas interpretações Todo o projeto historiográfico ocidental teria se
ditadoriais e modelares. Insurgir-se contra o clássico ou assentado sobre esta utopia: conhecer o passado como ele
contra o cânone, implicava substituir a velha lei por uma nova realmente foi, ou singelamente reconstruir o passado por
lei de explicação ou compreensão do passado, tirando-o de meio da narrativa através de modelos científicos. Ou seja,
uma prisão epistemológica para o inserir em outra. Toda essa esse projeto, esse ideal, eivado de valores e interesses, só se
história distopicamente científica extrapolou seu direito de concretizaria plenamente no interior da ambição modernista,
usar as chamadas evidências como garantidoras da verdade na qual a razão e a ciência tudo podem conhecer, estabelecer e
sobre o passado. A história do século 19 exercitou suas forças controlar. Segundo Jameson,
distópicas para, no século 20, ser ameçada pela própria
�vhat _is important in a utopia is not what can be positively
distopia. Os passados por ela fixados se tornaram mortos­ tmagmed and proposed, but rather what is not imaginable
vivos que deveriam ser eliminados, revisitados e reescritos em and not conceivable.51
novas histórias. Para Ankersmit Todo o projeto pós-moderno para a historiografia é, por
admiramos grandes historiadores como Ranke, seu turno, narrativo; cujos gradientes de passado provocam
Tocqueville, Burckhardt, Huizinga, Meinecke e Braudel um caos que tiraniza e oprime a imaginação histórica
não pela exatidão de suas descrições e explicações de
contemporânea, que se torna distópica. Porque leva a sério a
situações históricas, mas pelas interpretações panorâmicas
que oferecem de grandes partes do passado.48 advertência de Certeau
a historiografia {quer dizer "história" e "escrita") traz
Pensar a história como uma narrativa próxima da inscrito no próprio nome o paradoxo -e quase o oximoron
ficção científica, pressupõe que o passado seja reivindicado - do relacionamento de dois termos antinômicos, o real
pela história tal como o rzovum o é pela ficção científica. Algo e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este
estranho e familiar ao mesmo tempo, algo verossímil, possível, laço não é pensável, fazer como se o articulasse.52
e ao mesmo tempo inacreditável. Cada história parece conhecer
um novo passado ou um aspecto que ainda não havia sido 49 COMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade. Belo
Horizonte: UFMG, 2010, p. 17.
reconhecido (ou inventado) nele. Não por acaso, novidade ou 50 Ibidem., p. 1O.
novum, é palavra-chave para se compreender modernidade. 51 JAME�ON, Fredric. Utopia as method, or lhe uses of lhe future. /11.:
E novo é o que é atual ou presente, distinguindo-se daquilo �
?OR I N, M1�hae!; TILL��·. Helcn; PRAKASH, Gyan. Utopia/ dystopia:
cond1t10ns ojfustoncal posstbtilty. New Jcrsey: Princeton University Press, 2010,
p. 23.
48 ANKERSMIT, Frank. Narrativismo y leoria hisloriográfica. Santiago:
52 CERTEAU, Michel De. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense
Finis Terrae, 2013, p. 114. Universitária, 1998, p. 11.

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39
História & Distopia
Julio Benlivoglio

O despertar para esta atmosfera cheia de distopia permite


Genealógica e teleológica, a narrativa histórica prevê o
entender melhor essa relação e passagem de uma ciência futuro.55
distópica e moderna para uma consciência ou imaginação
distópica e pós-moderna. É possível dizer que a história trilhou caminho
semelhante ao da arte moderna, em sua superstição pelo
To our mind, the central concept that links them requires
excavating the "conditions of possibility"-even the
novo, em sua profissão de fé no futuro, em seus esforços de
"conditions of imaginability"-behind localized historical teorização, na disseminação de suas obras jw1to a massas cada
moments, an excavation that demands direct engagement vez maiores, a tentação das sínteses e visões de conjunto, e sua
with radical change. After ali, utopias and dys topias by paixão pelas rupturas e negações.56 Assim,
defi nition seek to alter the social arder on afundamental ,

systemic leve/.53 uma vez que o futuro foi penhorado e que só pode ser
percebido como um fim do mundo - desastre atômico,
Antes a distopia residia no método, agora ela reina dívida do terceiro mundo, destruição da camada de
absoluta no plano da consciência historiográfica. Ambas, ozônio -, a falência moderna tornou-se um lugar comum
e o revisionismo vai bem.s7
utopia e distopia tem sua origem no presente, mas,
Where as utopia takes us into a Juture and serves to indict Por conseguinte, o reconhecimento, disto que denomino
the present, dystopia places us directly in a dark and de ficções da história, surgiu somente quando da constituição
depressirzg reality, conjuring up a terrifying future if we de uma consciência historiográfica dist6pica, urdida no
do not recognize and treat its symptoms in the here and
now.54 interior de um pensamento pós-utópico, ou pós-moderno.
O caráter ficcional ou narrativo da história atualmente ocupa
A ficção científica é um gênero narrativo que nasceu um lugar central na reflexão historiográfica. É preciso lembrar
de dentro da consciência literária utópica moderna. Por ainda que a emergência de uma consciência histórica distópica
extensão, a ficção histórica como uma forma da história que e pós-moderna, que reconhece a ficcionalidade na história,
nasce de dentro da consciência histórica moderna, derivada não significa o ocaso de formas da consciência histórica que
daquela consciência literária também é utópica. Para Antoine a precederam ou que a historiografia abandone de vez seus
Compagnon ideiais científicos caros à modernidade.
a história moderna narra a si mesma com vistas ao Forçoso, contudo, é reconhecer que a revisão dos
desfecho a que quer chegar, não aprecia os paradoxos contextos são a expressão par excellence da natureza distópica
que escapam à sua intriga c os resolve ou os dissolve
em desenvolvimentos críticos; ela se escreve a partir dessa história científica ou moderna. Como apontou Frank
dos conceitos combinados de tradição e de ruptura, Ankersmit
de evolução e revolução, de imitação e de inovação.
53 GORDIN, Michael; TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/ 55 COMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade... Op.
dystopia: conditions of historical possibility. New Jersey: Princeton University cit., p. l i .
Press, 20 lO, p. 22.
5 6 Ibidem, p. 12.
54 Ibidem, p. 2.
57 Ibidem, p. 13.

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41
Histórin & Distopia
/11/io Bentivoglio

O contexto histórico apropriado perdeu suas tradicionais


importância, função e naturalidade como pano de fundo, agregariam novos parágrafos à grande narrativa tecida pelos
não porque estejamos assim tão ávidos para assumir uma historiadores sobre cada um de seus campos, objetos ou
posição a-histórica ou que não exista o desejo de fazer temas, sem, contudo, colocar-se em risco uma fisionomia
justiça ao uso da história, mas porque nos desligamos
deste contexto histórico.58
mais consensual entre os historiadores. Pode-se mexer em um
e outro aspecto desta grande narrativa, como Koselleck fez em
Contextos são sempre produzidos para afirmar relação ao Iluminismo em seu Crítica e crise, ou Laura de Melo
padronizações, construindo passados domesticados, e Souza em Os desclassificados do ouro, por exemplo, mas
aprisionados e de consenso. Ninguém imagina a Estátua jamais os historiadores colocariam à pique o grande edifício
da Liberdade sendo construída em Paris, mas ela nasceu da história. Esse é o passadofrankensteinizado, criatura criada
lá. Contextos, atualmente, deram lugar à desconstrução. à imagem e semelhança de seu criador/historiador, que precisa
Antiguidade e Medievo, por exemplo, passaram a conviver com estar sempre sob controle. Pequenas reformas ou a agregação
novas fronteiras contextuais como, por exemplo, a Antiguidade de novos objetos nos grandes e conhecidos cenários de
Tardia. A secular Idade Média, por sua vez, também tem sempre. Esses sucessivos retoques e acréscimos configurariam
ensejado novas realidades contextuais para além da Baixa ou da uma imagem cheia de remendos e incisões: um Frankenstein
Alta Idade Média. O Renascimento parece também não conter com pedaços de muitas épocas e pessoas diferentes.
multifacetados passados históricos que dele, recentemente,
Sente-se, no entanto, uma transformação em curso. É
têm sw·gido. Sem os contextos, entrentanto, como será possível bem provável que a história, tal como a conhecíamos, tenha
operar a sincronia-diacronia dos eventos, dos fatos, dos atores?
chegado ao fim. De fato, essa afirmativa em si, parece um
Como pensar permanência e mudança? Do mesmo modo, a grande clichê. Não foram poucos os que já decretaram o fim
função autoral persiste mesmo se eliminamos a ideia de autor, da história. De todos eles, Fukuyama em seu ensaio O fim
fenômeno semelhante aos contextos: ambos são um cárcere de da história redigido em 1989 é o mais conhecido, cujo livro
ferro para as Ciências Humanas, em especial a história, todas saiu em 1992. Naquela altura, o liberalismo e a democracia
hermenêuticas por natureza. liberal tinham, de algum modo, vencido o socialismo real e
Qualquer objeto desde sua gênese ou qualquer tema a os tota1itarismos. O erro de Fukuyama foi relacionar o fim da
ser estudado pelos historiadores partiria, nas ficções científicas história com um cenário, com um contexto, com um momento
da história, de um edifício previamente estruturado, com no tempo. O fim da história aqui diagnosticado se dá em
regras, atmosfera e conceitos pré-estabelecidos59 encontrados outro lugar, mais exatamente no interior da história, no seio
na historiografia e em seus diálogos. Pequenas descobertas da própria disciplina, esgotada de suas argúcias teleológicas
e de suas sutilezas metafísicas. Do suposto monopólio da
58 ANKERSMIT, Frank. Historiografia e pós-modernismo. Topoi, v. 2, prática científica, talvez, novamente, tenhamos que lembrar
p.l32, 200 l.
que "as investigações históricas não sofrem de autarquia",6o
59 Os conceitos seriam ao mesmo tempo uma metáfora e uma cnteléquia
como indica ANKERSMIT. Cf. ANKERSMIT, Frank. A escrita da história ...
60 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de
Op. cit., p. 24.
Janeiro: Zahar, 2001, p. 68.

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História & Distopia
julio Bentivoglio

ou seja, o passado não é uma propriedade exclusiva dos


Romper com um dado passado e constituir múltiplos
historiadores, como também avalia Hayden White ao passados possíveis tem aqui o efeito abstracionista radical
tratar do passado prático. A defesa do monopólio teórico­
de liberdade criativa e expressiva que transcende o passado
metodológico, a reivindicação da exclusividade dos arquivos,
provável. A leitura de livros como Raízes do Brasil ou Casa­
a reserva de mercado das narrativas e das práticas sobre o
grande e senzala poderiam corresponder à pergunta em torno
passado tudo parece estar ameaçado, por conta da própria
deles: por que somos história? Liberados do peso das histórias
história da história. Em sua trajetória de autoconhecimento, tradicionais esses livros, criados nos estertores do modernismo
de discussão de seus pressupostos e resultados, descortinou­ brasileiro, foram capazes de despertar uma autoconsciência
se para a história suas verdades mais íntimas. Para alguns, que deveria ter se radicalizado, muito embora sua incorporação
esta iluminação do campo, longe de fortalecê-lo, fragilizou-o, nos meios acadêmicos tenha tido o efeito inverso, de se instituir
expondo os limites do projeto utópico e plantando em seu como modelos, produzindo novas linhagens de histórias
interior o gérmen da distopia. modernistas, orientadas mais pelo aparato científico ou ético,
O "fim da história" é uma frase que carrega ressonâncias que pela composição estética. Liberaram a história do peso
ameaçadoras numa época em que temos o poder de da história, mas impuseram novos cânones interpretativos
acabar com tudo, de expelir explosivamente o gênero
modernistas, cujo rompimento sé dá, timidamente agora.
humano da existência. O apocalipse sempre foi uma
visão possível, mas ele raramente pareceu tão próximo Algo bem diverso do que conhece a historiografia anglo-saxã,
da realidade como é hoje.6' por exemplo. E bem diferente da arte depois do fim da arte,
conforme analisou Arthur Danto. De qualquer modo, a arte,
Mas a história não está sozinha diante de seu termo. Ela
como a história, "é um sistema de estratégias aprendidas para
está bem acompanhada, em sua agonia feliz, pela arte, cujo
tornar as representações cada vez mais adequadas, julgadas
ocaso semelhante foi diagnosticada por Arthur Danto em seu
imutáveis por um critério perceptual".64 Não obstante,
provocador artigo de 1984, convertido no livro Após o fim da
contrariando Platão, a história insiste em colocar-se como uma
arte de 1997. Fim não tem o sentido de morte; o que chegou
das representações mais elevadas e verdadeiras da realidade
ao fim foi uma narrativa, não o tema dessa narrativa.62 O
do passado, impondo uma configuração particular da relação
realismo histórico, tal como o realismo pictórico, talvez tenha
entre forma e conteúdo. Afinal, se o passado não está presente,
vislumbrado seus limites a partir da crise da representação
como a história, que é uma forma narrativa, pode se parecer
narrativa.63 com ele? Como diria Danto,
61 DANTO, Arthur. O descredcnciamcnto filosófico da arte... Op. cit., p.
Itsometimes is said that the task ofphilosophy is not to
149.
think or talk about the world, but rather to analyse tl1e
62 DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: Edusp, 2006, p. S. ways in which the world is thought and talked op5
63 Roland Barthes já havia criticado a chamada realidade objetiva, fruto da

crença em um referente todo-poderoso, colocando em seu lugar o que enomina em narrativas científicas. Ver ANKERSMIT, Frank. História e lropologia.

de efeito do real. Cf. BARTHES, Rolnnd. O rumor da língua. Sao Paulo: Londrina: Eduel, 2013.
Martins Fontes, 200 I, p. 129. E Richard Rorty rejeitado o fund�cionismo, no 64 DANTO, Arthur C. Após o fim da arte... Op. cit., p. 56.
qual o conhecimento surgiria de pressupostos seguros e vcrdade1ros retratados 65 DANTO, Arthur. Narration and knowledge. New York: Columbin

44 45
História & Distopia
julio Bentivoglio

Questionada severamente nas últimas décadas e


Louis Mink é categórico ao reconhecer que a história
atravessando um momento crítico, provavelmente a história
jamais logrou atingir a plena maturidade epistemológica.
enfrentará, no futuro próximo seus maiores desafios, que
Para ele ela somente conheceu algum avanço quando, a partir
decidirão se continuará sendo exclusivamente uma prática
das críticas da nova filosofia da história e do narrativismo,
científica ou se se permitirá erigir novos avatares para suas
reconheceu seu estatuto de protociência.68
narrativas acerca dos passados possíveis. Fredric Jameson
considera, nessa direção, por exemplo, Foucault examinou com propriedade este problema
dos dicursos científicos ao tratar da transição dos saberes
the utopian "method" outlined here as neither a
hermeneutic nor a politicalprogram, but rather something orientados por semelhanças que produzia sínteses, pois, para
like the structural inversion of wlwt Foucault, following ele "o grande devaneio de um termo da história é a utopia dos
Níetzsche, called the genealogy.66 pensamentos causais, como o sonho das origens era a utopia
dos pensamentos classificadores".69 Subsumida à aventura do
Ou seja, um método "jrom either empirical history or the
pensamento moderno, ainda segundo aquele autor
evolutionary narratives reconstructed by idealist historians".6i
Subsumida ao momento em que nasciam as ciências, talvez u�l discurso que se pretende ao mesmo tempo empírico c
.
não haja estória mais oportuna para tratar do nascimento e cntlco só pode ser, a um tempo, positivista e escatológico·
o homem aí aparece como uma verdade ao mesm�
do ocaso da própria história que Frankenstein. Ela pode ser tempo reduzida e prometida. A ingenuidade pré-crítica
uma alegoria que ilustra bem o surgimento e a crise agônica nele reina sem restrições. Um papel tão complexo, tão
da ciência histórica nos últimos dois séculos. Romance e superdeterminado e tão necessário foi desempenhado,
no pensamento moderno na análise do vivido [que] é o
história são artefatos narrativos que flertam com a imaginação
espaço onde todos os conteúdos empíricos são dados à
científica, que expressam historicidades e que reanimam experiência. io
pedaços inanimados do passado num ser gigantesco, a
historiografia, que escapa ao controle de seus criadores, No cogito da historiografia pós-modernista a reflexão
ganhando vida própria, voltando-se contra os próprios e análise do passado não leva à descoberta do passado
historiadores. Ambas possuem como cicatriz de origem, verdadeiro ou essencial. Refletir sobre o passado, neste caso,
responsável durante o século 19 pela gênese de um gênero implica reconhecer que o eu penso não equivale, portanto, a
literário específico: a ficção científica moderna. Ambas deram eu sou. Não por acaso estas reflexões epistemológicas sempre
vida a obras que procuram construir um ser para o passado e atormentaram o sono tranqüilo dos historiadores. Não poucos
para o futuro que, com o tempo, deixa de ser divino e expressa advertiram para que se evitassem essas reflexões abstratas
feições de monstruosidade. ou filosóficas de Langlois e Seignobos a Pierre Chaunu, o

68 MINK, Louis. La comprensión histórica. Buenos Aires: Prometeo


University Press, 1985, p. 15.
Libros, 2015, p. 72.
66 JAMESON, Fredric. Utopia as method, or the uses of tlze future... Op.
69 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins
cit., p. 42.
Fontes, I 999, p. 361.
67 Ibidem, loc. cit.
70 Ibidem, p. 442.

46
47
História & Distopia

qual categoricamente afirma que "a epistemologia é uma


tentação que se deve descartar resolutamente".71 No entanto,
concordamos com Chris Lorenz para o qual "fazer história é
uma atividade mais filosófica do que muitos historiadores se
dão conta.72
O ftístoríadór e seus monstros
A palavra monstro deriva do substantivo monstrum, que
possui múltiplos significados, dentre eles o de fato prodigioso,
ser que não é natural, desgraça, coisa ou criatura funesta.73
Deriva também, do radical que deu origem ao verbo mostro,
ou seja, possui um sentido de revelação. Com sua natureza
híbrida e indefinida, um monstro
é um arauto da crise de categorias pela qual passa o
sujeito contemporâneo em sua fragmentação. A criatura
de Frankenstein, formada por partes de distintos
cadáveres e, portanto, de distintas identidades, cumpre
perfeitamente sua função "monstruosa" de, duplamente,
revelar e profetizar a crise do sujeito, cujos sinais já
podiam ser percebidos no século XIX. O mesmo século
que levou a noção de individualidade a um ponto até
então inconcebível.'4

Como se vê, monstros revelam a diferença e o conteúdo


incontrolável do pensamento. Não por acaso, duas referências
míticas de peso informam a narrativa de Frankenstein. A
primeira, que já aparece na epígrafe do romance, é a influência
d 'O paraíso perdido de John Milton, poema sobre a criação e
a queda do homem. A segunda, que já surge no subtítulo da
obra, é a tragédia de Prometeu, um gigante que rouba o fogo
dos deuses e o entrega aos homens, sendo por isso acorrentado

71 CHAUNU apud HARTOG, François. Regimes de historicidade. São 73 Cf. FERREIRA, Juan C. lntroduction: utopias and dystopias in Modem
Paulo: Autêntica, 2013, p. 246. Spain. Utopian Studics, v. 26, n. 2, p. 326-28, 1995.
72 LORENZ, Chris. Historica/ know/edge and historical reality. History & 74 MATIOS, Marília. O duplo em Frankenstcin. Disponível em: http:/I
Thcory, n. 33, p. 297, 1994. wwvl.ínvcntario.ufba.br/04/pdf/mmallos.pdf. p. 13.

48 49
História & Distopia Julio Bentivoglio

e punido no monte Cáucaso por Zeus. Como toda história, gestou-se uma nova história, filha de uma mãe severa e
Frankenstein de Mary Shelley possui muitas interfaces com exemplar que a humaniza, apontando suas regularidades,
as leituras e a formação de sua autora, bem como reflete o exigindo-lhe fidelidade. Na pós-modernidade a história parece
momento histórico peculiar em que veio à luz, incorporando ter desenvolvido uma natureza híbrida e mutável, um ser
características e preocupações mais gerais de seu tempo. De monstruoso e desobediente, fruto de ambições e experiências
todas elas, duas marcas são fundamentais: a presença triunfal científicas frustradas.76 A despeito disto, como Medusa, não
da ciência e a ênfase sobre a engenhosidade do gênio humano. havia um único passado cujo olhar do historiador não tenha
A historiografia também pode ser pensada como um vasto resistido à tentação de converter em pedra e imortalizar.
inventário de monstros, fantasmagorias que dão vida a passados De uma imagem perfeita num espelho que revelava
incontroláveis que se alternam e se multiplicam indefinidamente. identidades e uma complementaridade entre o agora e o vivido,
Criatura funesta, a narrativa histórica vive entre dois mundos, o no bestiário pós-moderno da história, o passado é um espelho
presente e o passado, com seu caráter híbrido, que se amplifica estilhaçado, não porque tenha se convertido em migalhas a
em histórias infindáveis, constituindo monstros narrativos que história, mas em múltiplos passados cortantes, incapazes de
são ora admirados, ora duramente combatidos. Toda narrativa serem restituídos a uma totalidade, como diversos pedaços que
histórica se constitui como uma sombra que revela um caráter integram um passado-monstro, no qual cada fragmento revela
sublunar, de duas naturezas similares, mas incompatíveis, dos a mesma imagem, reduzindo-a ao infinito, como pequenos
viventes e dos mortos, que coexistem em conflito aberto, na espelhos do real, que o replicam ao infinito criando a ilusão
historiografia. Dos bestiários medievais, marcados por criaturas de que, por meio da repetição, o passado seja encarado como
monstruosas sob a forma física, chegamos aos bestiários algo que realmente é. Essas imagens do passado, tão caras a
modernos constituidores de narrativas monstruosas sob a forma muitos historiadores na virada do século 20 para o século 21
conceitual e narrativa. Para Todorov, colocaram em cena o caráter espectral do passado. Estilhaçar
o fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assim que o grande espelho do passado, da historiografia utópica,
escolhemos uma ou outra resposta, saímos do fantástico resultou, pelo menos na crítica de alguns historiadores ao
para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o pós-modernismo, na fragmentação que prejudica a história,
maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada
por um ser que não conhece as leis naturais, d}ante de condenando-a a sete ou setenta anos de azar. José Carlos Reis
um acontecimento aparentemente sobrenatural.'5 identifica essa consciência de ruptura vivida com o advento da
pós-modernidade e sublinha que esta
Curioso que na Antiguidade a história era o resultado da
76 Para Terry Eagleton, a "pós-modernidade é uma linha de pensamento
inspiração divina, filha da musa Clio, que iluminava o passado que questiona noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade,
impedindo seu esquecimento e retratando feitos singulares, a ideia do progresso ou a emanação universal. Contrariando essas norm as do
exigindo devoção de seus admiradores. Na modernidade, Iluminismo, vê o mundo como um contingente, gratuito, diverso, instável,
imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas,
gerando certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade Ver:
".

75TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar
1978. p. 148. 1998, p. 7.

50 51
História & Distopia
Julio Bentivoglio

desacelera a história, desinteressa-se pelo futuro, que


não pode mais ser produzido com segurança. O sentido Lembro aqui de uma bela descrição de Gabrielle Spiegel,
universal se decompõe, os sentidos se multiplicam. A que argumenta que "é muito improvável que retornemos ao
grande narração se fragmenta em múltiplas narrações.
'realismo quase-científico, à 'empiria ingênua' ou a qualquer
A grande narração moderna era normativa, moralista,
submetia a ação ao dever ser utópico. Na pós­ dos postulados pré-pós-modernos que informavam a escrita
modernidade o universal se pulveriza em indivíduos, da história". Também não é provável, continua aquela autora,
fragmenta-se. Não há mais supracritérios que possam que a maior parte dos historiadores "responderá ao chamado
decidir entre o ser e o dever ser [...]. Os consensos
a uma 'experiência histórica sublime' recentemente feito por
possíveis são provisórios, locais e precários.n
F. R. Ankersmit".80 Ou seja, encontramo-nos na encruzilhada
Sabemos que não alcançamos ou reproduzimos o da distopia. D e algum modo o sublime corresponde a uma
passado, de modo que ele aparece e desaparece, como um experiência estética assustadora, monstruosa, prazerosa
fantasma que depende mais de nossa imaginação que da nossa para alguns e dolorosa ou inaceitável para outros. No
ciência.78 Nesse sentido, a fragmentação criou a possibilidade cenário marxista brasileiro e latinoamericano, ao contrário
de pensar que se houve complementaridade ou repetição, a do que se pode detectar em marxistas do cenário anglo­
fisionomia ou o ser do passado poderiam ser encontrados saxão, especialmente em Fredric Jameson, Hayden White
ou revelados. Um encontro semelhante ao de Hamlet com o ou Raymond Williams; essas histórias pós-modernistas
fantasma de seu pai, o rei morto. Para Jacques Derrida, um são uma ameaça à própria história.81 Além da denúncia da
espectro é sempre um reaparecido, uma repetição. Ele está fragmentação temática e teórica, eles apontam o risco do
sempre voltando. As aparições são uma herança. Um recalque relativismo, efeito inexorável do abandono das "totalidades
que sempre volta. Paul Valery a esse respeito diz, sociais significativas", em adesão às irracionalidades de uma
epistemologia narrativista que coloca em risco o debate
agora, em um imenso terraço de Elsinor, que vai da
Basiléia até Colônia, próximo às areias de Nieuport, político.
aos pântanos do Soma, as gredas da Champagne, aos
Conforme Ciro F. Cardoso,
granitos da Alsácia - o Hamlet europeu olha milhares de
espectros. Ele é, porém, um Hamlet intelectual. Medita a .reconstrução do labor profissional empreendido pelos
sobre a vida e a morte das verdades. Tem por fantasmas htstoriadores a partir das "formas de representação", dos
todos os objetos de nossas controvérsias".79 "níveis de discursividade", das "epistemes" mostraria
------

77 REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, a it:existência, no conhecimento que produzem, de um
temporalidade e verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 45. car�ter científico, objetivo, racional. Por conseguinte,
sena recomendavel , abandonar o analítico, o estrutural,
78 Para Jerzy Topolsky as narrativas dos historiadores são ativadas pela
imaginação, ao buscar imagens coerentes do passado, que sejam capazes de a macroanálise, a explicação - ilusões cientificistas - em
ser vislumbradas pelos leitores, ou seja, por meio do confronto entre duas favor da he�menêutica, da micro-história, da valorização
. .
imaginações e as conveções de época envolvidas TOPOLSKY, Jeny. 71re role of das mteraçoes mtencionalmente dirigidas, da concepção
logic and aesthetics in constntcling narra tive wfro/es in fristoriography. History -------

80 SPIEGEL apud ANKERSMIT, Frank. História e tropologia. Londrina:


&Theory, v. 38, n. 2, 1989, p. 207.
Eduel, 2013, p. 39.
79 VALtRY, Paul. Essais quase politiques, OEuvres. t. I. Paris: Gallimard,
1957, p. 993. 81 CARDOSO , Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da
história. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 17.

52
53
História & Distopia
Julio Dentívoglio

da história como sendo narrativa e literária [... ] a ideia


de que "discurso" e "realidade humana" (individual ou historiadores que em algum lugar ao qual pudessem encontrar
coletiva) são gran dezas incomensuráveis.82 ou serem transportados através de uma fonte qualquer.

Curioso que, já nos anos 1950 Arnold Toynbee havia Quando avançaram perigosamente sobre esses limites
introduzido o epíteto pós-moderno como algo decadente, e esse abismo os historiadores passaram a criar campos, mais
anárquico e irracional. De qualquer modo, para Carlos Berriel, do que obras.84 Seu sucesso era verificado caso fossem bem
sucedidos em produzir uma inovação reconhecida. Exemplo
distopia attempts to be in continuity with the historical disso encontra-se na gestação de campos como história das
process, by enlarging and fonnalizing tlte negative
tendencies wl!ich are active in the present and may mentalidades, história das mulheres ou história das empresas,
conduct, a/most inevitably, ifthey are not obstructed.83 por exemplo. Elas reafirmam a centralidade dos documentos e
dos recortes para a produção da história. E,
O relativismo na história reside, portanto, nas
discordâncias entre como se produz a história e o modo em um modelo documental, a base da pesquisa é o fato
"duro" fruto do exame crítico das fontes e a intenção
como ela é pensada. Ou seja, para a história modernista só da historiografia é tanto suprir os relatos narrativos
seria história aquela que atendesse ao modelo progressivo de e "descrição densas" de fatos documentados quanto
narrativa que representa o passado. Abandonar o passado submeter o registro histórico a procedimentos analíticos
de formulação de hipóteses, prova c explicação.85
não implica em atirar fora a água e o bebê juntos da bacia,
mas em reconhecer que o que imaginávamos ser a água era,
na verdade, contextos líquidos heterogêneos e voláteis que
colocavam em risco a própria sobrevivência daquele frágil ser.
A história que buscava ser um espelho para o passado
tornou-se, inevitavelmente, no presente, um espelho sobre si
mesma. Quando as descontinuidades e as diferenças tomaram­
se maiores e mais significativas que os contextos ou modelos,
deparou-se a história com seus limites, os historiadores viram­
se expressando ou discutindo sobre passados que construíram
e elaboravam e não mais como a representação de um único e
mesmo passado. Deram-se conta que o passado é deslocamento.
E que os passados estariam, portanto, mais na cabeça dos 84 Nesse sentido a pós-modernidade seria uma condição que reúne um
conjunto de circunstâncias que Keith Jenkins identifica como a falha geral da
m�dernidade acompanhando Steven Connor c David Harvey. Cf. JENKINS,
82 CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In.:
Ke1th. Repensando a história. São Paulo: Contexto, 1995. p. 6; CONNOR,
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAlNFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história.
Steven. A cultura pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1995; HARVEY, David
Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 17.
(org.). A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1996.
83 13ERRIEL, Carlos E. O. Dricf notes on utopia, distopia and h istory. 85 LACAPRA, Dominick. History & criticism. New York: Cornell
Disponível em: utu://ww\v.unicamp.br/-berriel/.../berriel_prod_2.doc. p. 3.
University Press, 1985, p. 18.

54 55
A imaginaçao histórica no
sécufo 21
Partindo das reflexões de Hayden White, pode-se, a
rigor, reconhecer que a imaginação histórica e historiográfica
neste novo milênio está, cada vez mais, deixando aflorar uma
consciência distópica, de modo que a estrutura narrativa
das histórias, embora ainda conserve e seja orientada pela
imaginação modernista e seus tropos, tem convivido mais e
mais com o despertar de uma nova orientação imagética,
ou imaginação narrativa, pós-modernista. Tal proposição
encontra eco em Gordin quando reconhece que
In our effort to reclaim utopia and dystopia as analytic
categories of historical inquiry, we place space and time in
the background and think instead of these phenomena as
markersfor conditions ofpossibility. 86

Tal compreensão é, em parte, compartilhada pelos


discípulos de Hayden White, que enxergaram a partir de
Meta-história a emergência de uma nova filosofia da história
responsável por dotar de autoconsciência este saber. Essa
cosmovisão tem sido acompanhada de perto pela emergência
de uma nova consciência histórica, que eu identifico como
distópica por excelência, que começa a substituir uma
imaginação utópica modernista.

86 GORDIN, Michael; TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/


dystopia... Op. cit., p. 4.

57
Hist6ría e• Distopia
Julio Benfivoglio

A teoria literária e a literatura consideram as distopias do referente, sem dúvida, fruto de um maior pluralismo e
um subgênero literário recorrente em romances de ficção ceticismo epistemológicos, posto que a história, cada vez
científica. Tal como a utopia, ela se oporia à realidade, mas, mais é reconhecida, também, como um artefato literário
sendo o avesso do progresso, uma expressão do pessimismo. conforme sentenciou pela primeira vez, em 1973, Hayden
No caso da historiografia, este caráter diferenciado é, em White seguindo a trilha de Barthes e de Derrida. E enquanto
grande parte, associado ao revisionismo, ao relativismo e ao discurso, a narrativa histórica pós-moderna se estrutura em
ceticismo crescentes no interior dos estudos históricos a partir torno de variadas narrativas particulares e individuais, de
da Segunda Guerra Mundial. diversos discursos, oriundos de diversas fontes, perspectivas e
A fim de imaginar "o que realmente aconteceu" no atores históricos. Esta pluralidade, esta heterogeneidade, que
passado, portanto, deve primeiro o historiador prefigurar institui a lógica do jogo e da indeterminação tem se tornado,
como objeto possível de conhecimento o conjunto aparentemente, um padrão nas narrativas pós-modernas, cujo
complexo de eventos referidos nos documentos. Este ato
prefigurativo é poético, visto que é prccognitivo e pré­ advento nos role playing games (RPGs) é marca genealógica,
crítico na economia da própria consciência do historiador. sintoma que se expandiu para diferentes formatos, na literatura,
É também poético n a medida em que é constitutivo da nos quadrinhos, no cinema, nos seriados, etc. Esse padrão das
estrutura cuja imagem será subsequentemente formada
estórias na pós-modernidade não parece ainda ser a forma
no modelo verbal oferecido pelo historiador como
representação e explicação daquilo que realmente na qual se expressa a historiografia contemporânea, embora
aconteceu [ ...]. No ato poético que precede a análise já manifeste, ao menos em consciência o reconhecimeto
formal do campo o historiador cria seu objeto de análise dessa imaginação plurinarrativa. Escrevê-la mediante essa
e também predetermina a modalidade de estratégias
conceptuais de que se valerá para explicá-lo.87 perspectiva é outra questão. Há enorme resistência em
transpor esse tipo de imaginação para os textos históricos, que
Minha hipótese é a de que acompanhamos a conservam uma estrutura basicamente herdada do século 19.
emergência de um novo paradigma poético-linguístico, pré­
De algum modo a crença no progresso histórico e
crítico e metahistórico. E que esse paradigma, no século 21,
no próprio progresso científico da história evidenciam,
é eminentemente distópico. Ou seja, a atual consciência na
atualmente, que existiram avanços na organização e acesso
historiografia é um modo preciso de pensamento, cuja pré­
a novos documentos, que se ampliaram os métodos de
elaboração do enredo de início é, em si mesma desconfiada,
pesquisa, produzindo resultados mais consistentes no tocante
seja das capacidades científicas da história, seja das realizações
a alguns temas e temas estudados, contudo, vislumbra-se um
da historiografia, seja das evidências ou da materialidade
esgotamento e um estado em que aparentemente variadas
do passado, seja das verdades produzidas pela história em
metodologias, objetos e abordagens foram contemplados,
relação a ele. O passado tornou-se deslocamento, deslugar.
numerosos estudos foram preenchendo os quadros do passado,
E para se aproximar dele é preciso valer-se de múltiplas
entretanto, o crescimento vertiginoso dos estudos e textos
narrativas, não de uma narrativa única ou unificadora. Crise
históricos não realizou as expectativas do Iluminismo colocando
87 WHITE, Hayden. Meta-história... Op. cit., p. 45. por terra os fundamentos espirituais da modernidade. Dúvidas

58 59
História & Distopia
Julio Benlívoglio

e incertezas permanecem e se ampliam. O passado, por mais modo de argumentação e 5) modo de implicação ideológica.
que fosse preenchido pelas narrativas em expansão, ao invés Em nosso atual século, a incerteza marca tanto o vislumbre da
de ser esgotado ou assumir contornos vez mais precisos, surge crônica, quanto a elaboração da história, visto reconhecerem
deslocado, problemático, incompleto. Paradoxalmente, quanto sua provisoriedade, implicando na assunção de uma imaginação
mais escrevemos e pesquisamos sobre o passado mais lacunas histórica particular, que abdica do otimismo utópico da
e divergências surgem. Como os passados vão se ampliando, o imaginação modernista - científica - para, em seu lugar, elaborar
historiador deixa de ser somente o leitor da história mundial, o conteúdo e a estrutura da história a partir de um ceticismo
tornando-se o seu escritor, de modo que a história, ou o passado distópico e narrativista. Em outras palavras, a transformação
passa a ser o que ele escreve, ou como desejou Carl Schmitt em Die da crônica dos eventos em história na cabeça dos historiadores
buribunken (Os buribuncos): "a história só se cumpre contanto convertidos por meio de uma estória única no atual contexto
e à medida que for registrada".88 A despeito disso, mesmo o pós-moderno é informada pelo passado como um deslugar
esgotamento, a falência ou a reinvenção de alguns paradigmas atravessado por diferentes vozes. Isso explica, em parte, os
que insistem no reconstrucionismo e na manutenção da recentes encontros e desencontros entre o que dizem as obras
história científica,89 preservando-a em historiadores resistentes históricas e o que afirmam as memórias individuais ou coletivas.
às viradas, que continuam construindo histórias sem aderência
a essa consciência distópica de seu próprio tempo, produzindo As crônicas hoje em dia têm finais em aberto, de modo
livros e artigos que serão lidos por poucos quando não por que sua conversão em história é mais dificultada, articulando
ninguém. E que são incapazes de incorporar os avanços da a série de eventos não em uma, mas em diversas histórias
narrativa ficcional com sua fragmentação e perspectivismo possíveis (ao estilo dos RPGs), pois sua estrutura profunda
radicais. Embora existam limites para toda investigação, face não está tão claramente identificada, encontrada, reconhecida
às chamadas evidências empíricas, é preciso pensar que a ou descoberta pelos sujeitos e, em particular pelos leitores.
interpretação histórica continua sendo uma tarefa infinita. Sob a égide das incertezas, passado e presente parecem
estar em grande estranhamento, de modo que a imaginação
Caso seja escrita a última obra sobre um tema ou evento
histórico, teremos aí um passado morto. Sua repetição infinita, histórica, marcada pela dúvida, parte de elaborações de
dispensando a necessidade de novos estudos seria, contudo, enredo desconfiadas, informadas por uma filosofia da história
ceticista. Provavelmente o fechamento do futuro motivou a
algo absolutamente impensável.
abertura radical do passado, que hoje se apresenta como uma
Em sua obra seminal, Hayden White havia indicado caixa de Pandora aos historiadores. Os níveis de tolerância se
cinco níveis de constituição ou gênese de toda obra histórica: ampliam colocando em xeque o caráter autoritário das histórias
1) crônica; 2) estória; 3) modo de elaboração do enredo; 4) tradicionais subsumidas a poucas interpretações canônicas.
Eis a utilidade da literatura distópica, pois ela permite
88 SCHMITT npud KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Rio de
Janciro: Contraponto, 2014, p. 135. reconhecer esta sensível, mas evidente, mudança da
89 MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, consciência histórica contemporânea. Diversos autores, como
2008, p. 27. Ricoeur e Gadamer ou mesmo Jauss e !ser concordam que a
60 61
História & Distopia
julio Beutivoglío

leitura tem um papel decisivo na literatura, pois, nas palavras com diversos pontos de tensão, que ilustram as múltiplas redes
de Jean-Paul Sartre "o objeto literário é um estranho pião constituídas muitas vezes para tratar dos mesmos objetos
que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é preciso ou problemas.92 As múltiplas revistas ou grupos de pesquisa,
um ato concreto que se chama leitura".90 Ao inventar suas antagônicos que são criados. Tais distensões apresentam, na pós­
histórias no presente, os historiadores estão profundamente modernidade estas tensões evidentes, pois, o reconhecimento
marcados por uma estrutura de pré-elaboração do enredo e de da estória, tanto por parte do historiador quanto por parte
urdidura de suas histórias sob a égide da distopia, de passados do leitor, está pautada, desde início para a possibilidade de
deslocados e em deslocamento que dialogam com os textos e espirais e labirintos e não de uma compreensão linear e tácita.93
as formações discursivas de seu tempo, estabelecendo zonas de Reduzir níveis de incompreensão e ampliar as possibilidades
contato e aderência ao universo de leitores dotadas de maior de persuasão, evitando o conflito aberto tem sido a estratégia
complexidade e ceticismo. Esse universo plural e radical da predominante na argumentação textual, tem sido a tônica,
leitura e das disputas de sentido criaram fissuras e marcas mais do que a adoção de paradigmas. Os paradigmas parecem
visíveis nos protocolos narrativos constituídos no presente. ter perdido a importância que tiveram no passado. Importa
E, em meio a esses protocolos, a distopia seria um dos hoje, menos saber se o historiador é marxista ou historicista e
mais significativos modelos lingüísticos contemporâneos, mais se suas análises são pertinentes ou eficazes. Num mundo
expressando configurações particulares de elementos léxicos, acadêmico disputado e distópico, a tolerância tem sido uma
gramaticais, sintáticos e semânticos por meio do qual os forma de sobrevivência, gestora de generosas e variadas formas
historiadores performam suas narrativas do passado, "em seus de história. No passado, a intolerância e a imposição dos cânones
próprios termos (e não nos termos em que vêm rotulados nos e regras reduziam o escopo criativo das histórias, tolhendo sua
documentos",91 numa representação cujo reconhecimento, capacidade imaginativa e narrativa.
ao · contrário da égide modernista, não se dá tacitamente A questão que se coloca atualmente na hisloriografia
pelos leitores, preparando-os para compreendê-las, visto brasileira parece ser a de que os historiadores insistem
comungarem de uma mesma imaginação histórica pré­ na manutenção de suas ficções científicas utópicas que
figurativa. Há que se reconhecer, este estranhamento na distopicamente controlam os passados possíveis reduzindo-os
referencialidade que alimenta a ponte entre autores e leitores. a lugares fixados por interpretações mais consagradas, ao passo
Isso permite vislumbrar a imaginação distópica como um
protocolo lingüistico preconceitual que "em virtude de sua 92 Cf. \o\'H!TE, Hayden. Tlle content of the form. Narrative discourse and
natureza essencialmente prefigurativa caracterizável em função historica/ representation. Baltimore: John Hopklns University Press, 1979.
. 93 Apesar disso os historiadores ainda são "pessoas céticas. Para eles cada
do modo tropológico dominante em que será vazado" instaura um deveria guiar-se confiando no seu próprio nariz, como um cão de caça. Eles
uma hisloriografia não mais de grandes certezas ou de trabalhos receiam que, uma vez se deixando distrair por uma teoria, eles passarão seus
modelares, mas uma historiografia pulverizada e segmentada, dias a vagar por um labirinto cognitivo do qual não encontrarão o caminho
que os conduza à saída. A crlticn literária é certamente o pior destes labirintos,
90 SARTRE, Jenn-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Atica, 2004, p. 35. especialmente em sua versão pós-moderna". Ver: HARLAN, David. Jntel/ectual
history and the return of narra tive. American Historical Review, v. 94, n. 3, p.
91 WHITE, H. Meta-história. Op. cit., p. 45, grifos do autor.
..
583, 1989.

62 63
História & Distopia

que as narrativas distópicas que defendem passados alternativos


são menos numerosas e bastante combatidas. Em contrapartida,
a sociedade manifesta, visivelmente, níveis significativos de
ceticismo em relação ao passado típicos do presentismo. Ou
seja, no Brasil, o realismo histórico resiste na universidade, mas
não é convicção absoluta na sociedade. Diante desse quadro,
nas narrativas construídas sobre o passado, científicas ou não,
Narrativas distc!fícas dó
presencia-se, cada vez mais a descrença nas utopias. Como
uma prática ela parece ter atingido os limites de sua efetivação, _passado na_pós-modêrnícfadê
conforme vemos em Gordin [et al.],
Estas considerações ilustram o argumento central aqui
therefore, is utopia as a practice, as a technique used defendido. O de que a história no presente, tal como o romance
by historica/ actors for understanding their particular de Mary Shelley, é, queira ou não, essencialmente distópica.
contemporary circumstances - and thus a valuable lens
for the historian.9''
Aliás, talvez não exista algo tão em moda ou tão apreciado do
que as estórias distópicas: seja no cinema, seja na literatura, há
Tal constatação poderia dar a entender que retornamos um intenso cultivo dessa modalidade de consciência histórica
ao velho dilema da relação entre texto e contexto, de influência em nosso tempo.
ou determinação. Mas, depois de tantas realizações no plano
Muita tinta já foi gasta tratando das utopias, que,
epistemológico, talvez seja lúcido considerar a defesa de
desde a primeira de Thomas Morus, que completou 500
que texto é contexto e que contexto também é texto, posto
anos em 2016, incorporou-se e alimentou energias vitais da
que ambos são produtos da narrativa, da imaginação e da
modernidade e, em especial, do pensamento iluminista, com
interpretação. Ou seja, a atmosfera pós-moderna não parece
sua ênfase na razão, no progresso e na emancipação humana.95
ser teoricamente orientada, não tem uma expectativa ou um
Fredric Jameson, por exemplo, vê complementaridades entre
projeto único e coletivo. Ela constitui um espaço fluido de as utopias e as distopias. Para ele
relações de força, dobras e linhas de fuga no qual coexistem
múltiplos discursos, de modo que há um espaço rizomático e ali ostensive Utopian content was ideological, and tlrat the
properfunction of its themes lay in critica/ negativity, tha
dinâmico de colamento e descolamento dos autores, leitores is, in their function to demystify tlteir opposite numbers.
e idéias em movimento. Com isso já é possível ver despontar The axamination of tire an/i-Utopian, then, of the fear
na historiografia brasileira cada vez mais obras e estudos of Utopia, has led us to identity a fimdamental source in
históricos que capturam o passado como um deslugar. 95 Cf. HUDDE, Heinrich. De l 'utopie à l ' uchronie: formes,
signification,fonctions. Tübi ngen : Narr, I 988; GORDIN, Michael, TILLEY,
1-Ielen; PRAKASH, Gyan. Utopia/ dystopia... Op. cit.; BROWN, Kate.
Dispatches from dystopia... Op. cit.; JAMESON, Fredric. Archeologies
of the future: the desire called utopia a11d other scie11ce fictions. London:
94 GORDIN, Michael; TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/ Verso, 2005; BACZKO, Bronislaw. Lumicres de I 'utopie. Paris: Payot,
dystopia... Op. cit., p. 4. 1978.

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História & Distopia
Julio Bentivoglio

the very form of Utopia itself, in the formal necessicty of


magistralmente Koselleck em sua obra-prima Futuro passado.99
Utopian closure.96
Insisto: este passado converteu-se em deslugar, posto que deve
Acontece que do modo como hoje urdimos o ser pensado como deslocamento e não como um ponto fixo. Esse
tempo, reconhecendo a temporalidade e vivenciando as traço das distorções do passado pode ser claramente ilustrado
historicidades, estaria em curso a emergência de uma nova pelos passados que não passam, pelos deveres e imperativos da
consciência histórica, de um novo cronótopo: presentista para memória face à história, pelas produções de esquecimento, pelos
François Hartog, ceticista para Hans Ulrich Gumbrecht. Para balanços, retornos e revisões, pelas políticas de compensação ou
esses autores, o mal-estar da modernidade, ou antes, sua crise, de reparos a danos pretéritos no presente.100 Isto é absolutamente
teria dado lugar a uma atmosfera nova, menos otimista e mais diferente da meta e do alvo atingido pela crítica de Carlo Ginzburg
cética. Em outras palavras, pode-se dizer que a utopia estava ao sentido último da nova filosofia da história de Hayden White.
para a modernidade assim como a distopia está para a pós­ O historiador italiano desconsiderou a diferença entre história­
modernidade. Para José Carlos Reis processo, a história-saber e a história-vazada-pela-narrativa,
acusando o norteamericano de compactuar com o fascismo
o projeto moderno iluminista legitima toda violência
contra o passado-presente, encarando-o como um e com o revisionismo, muito embora, em nenhum momento
entrave [... ] , [defende] a história concebida como um White houvesse colocado em questão o compromisso com
processo global, coerente, uni ficado e acelerado da verdade ou justificasse qualquer tipo anti-ético de falsificação
humanidade, um sujeito singular-coletivo, em direção à
histórica mediante representações distorcidas do passado.101
perfectibilidade, à moralidade e à racionalidade futura. A
crítica racional tornou-se impiedosa e intransigente em Nas ficções científicas da história modernista que
relação aos irracionalismos e privilégios da tradição.97
enxergavam no passado um ausente, atingimos um momento
Enquanto a utopia é otimista, a distopia é pessimista, em que o passado parece revelar-se sempre como um novo
relativista. Enquanto o passado era somente passado na outro, como algo familiar e estranho ao mesmo tempo, posto
modernidade, na pós-modernidade o passado é ainda um que é sempre a imagem de si mesmo em deslocamento,
presente, e também partes integrantes de presentes simultâneos portanto desfocada. A um passado que era a busca da finitude
e conflitivos, dissolvendo a antiga unidade ou integridade - encontrar o ponto final da história -, chegou-se ao momento
que o passado tinha sob a égide do modernismo. Agora esse
passado se torna plural, dinâmico e historicizáveP8 Posto que, 99 KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
100 Temístocles Cézar aponta essa como uma das características da
afinal de contas, ele também é futuro, conforme sublinhou reconfiguração do campo historiográfico no qual estes, entre outros temas,
tem pautado a agenda dos historiadores há três décadas. C�ZAR, Temístocles.
Tempo presente e usos do passado. In.: VARELA, Flávia [et. ai.]. Tempo
96 JAMESON, Fredric. Archeologies ofthe fu ture... Op. cit., p. 2 1 1 . presente & usos do passado. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 32.
101 Cf. GINZBURG, Carlo. ]ust one witness. In.: FRIEDLANDER, Saul.
97 REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade,
temporalidade e verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 180. Probing the limits of representation. Cambridge: Harvard Un iversity Press,
1992, p. 57-58; WHITE, Hayden. The Relevance of Historical Studies: a Reply
98 ANKERS.MIT, Frank. Narrativismo y teoria historiográfica. Santiago: to Dirk Moses. History & Theory. 2005, v. 44, n. 3; CHARTIER, Roger. Quatre
Finis Terrae, 2013, p. 193. Questions à Hayden White. Storia della Storiografia, v. 24, 1993.

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História & Distopia
Julio Bentivoglio

t'tll que o passado é sempre um horizonte, uma travessia. trauma. As experiências-limites enrijecem alguns passados
Nl·m fuiuro, nem passado, nem presente, o passado parece ter que não passam, tornando-os imperativos.104
llCI'dido sua condição à existência nesse presentismo distópico
radical, posto que se torna apenas discurso ou texto, sem direito Esta mutação reconhecida na preemmencia de
:l materialidade. A história pós-moderna oferece mundos ou narrativas literárias distópicas, acompanha uma discreta, mas
visões possíveis do passado a seus leitores sem a preocupação de sensível transfiguração da imaginação histórica ou narrativa no
discutir o status ou a hierarquia de suas representações. Embora Ocidente, em que as distopias ocupam, cada vez mais, espaços
reconhecendo sua historicidade ou o compromisso com a perdidos pelas utopias. Dvido à sua natureza literária, inscrita
verdade, a história não restitui ao passado, nesse momento na atmosfera do tempo em que é confeccionada, a história
distópico, sua condição de lugar fixo. Ele existiu, muitas e seus artefatos literários não atravessariam infensos essas
narrativas foram produzidas nele e sobre ele, contudo hoje o mudanças no plano das expectativas, medos e sentimentos.
passado não mais é conduzido a uma materialidade ou a um A forma das obras históricas tem flertado com esses modelos
sentido pré-determinado que o historiador deverá restabelecer e esses conteúdos distópicos. Isso porque forma e conteúdo
em plenitude, posto que sua existência é vivida textualmente, partem da distopia como um emblema que envolve o passado,
durante o ato da leitura e mediante a construção e atribuição ao contrário do modernismo e sua ficção cientificista da
de significados diversos pelos contemporâneos e pelos história, que de partida, ingenuamente, acreditava encontrar e
historiadores. É como se nós estivéssemos a contar histórias não controlar um passado único ou fixo, preservado em fragmentos
exatatemente uns com os outros, mas uns contra os outros.102 e dividido por opiniões ou relatos contraditórios.
O problema é que confundindo-se os leitores dissolve-se a Se o passado era disputa e tensão, talvez os historiadores
autoridade dos historiadores e seu domínio sobre o passado. não devessem eliminá-los, mas, antes, preservá-los para
E, provavelmente, foi por privilegiar a dimensão o escrutínio dos leitores. E, evidentemente, caso exista
narrativa em lugar da política que a nova história pós­ alguma solução ou verdade escondida, que ela venha a tona,
moderna viu surgir em torno de si acaloradas resistências e conservando-se a complexidade das vozes e dos eventos na
discussões éticas. O debate, não obstante, tem sido orientado própria narrativa. histórica.
mais por suas implicações ideológicas, éticas ou políticas que Hoje a historiografia reconhece passados plurais - algo
exatamente pela discussão sobre seu caráter estético.103 Em impensável no século 19 -, ou em deslocamento, ela se permite
grande parte o limite do que se pode ou não narrar é dado pelo aceitar deslugares - no qual as disputas de narrativas são
102 CARR, David. Gett'ing lhe story straight: narrative and historical reconhecidas e levadas em consideração, visto expressarem
knowledge. In.: ROBERT, Geon·rey (org.). The history and narrative reader. fragmentos de uma totalidade assustadora sob a qual se
London: Routledge 2001, p. 204.
ressentem de sua capacidade de captar, controlar ou inscrever
,

103 Posição lúcida neste debate é a de TOPOLSKY que defende que a


história respeita uma orientação básica de informar quais textos e fatos foram por meio de uma narrativa única ou absoluta. Quando se
utilizados na sua elaboração, afastando-se da mera ficção. Cf. TOPOLSKY, Jerzy. acentuou o combate à ilusão cientificista e a ingenuidade
The role oflogic and aesthetics in constructing narral.ive wholes in historiography.
History & Theory, v. 38, n. 2, 1989. 104 RÜSEN, Jôrn. Razão histórica.. Op. cil., p.
. 171.

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História & Distopia
julio Bentivoglio

positivista, criou-se uma abertura fantasmagórica que


lançadas sob os historiadores e suas narrativas. Com o mundo
implodiu a antiga história por dentro. E ao reconhecer sua
e o passado em crise, não é mais possível construir histórias
verdadeira natureza, encerrou-se um modelo e um tempo da
de passados tranqüilos, felizes ou apaziguados. Porque 0
história. É por isto que é possível dizer que a história, tal como
presente é atormentado por aqueles múltiplos passados
a conhecíamos, chegou ao fim. Porque hoje é sabido que a
fantasmagóricos que o atravessam, mesmo não estando mais
narrativa não é o passado, tampouco o reproduz. As histórias
se tornaram avatares, tornando o passado um lugar inabitável,

a�ui. onv�rtendo-os em espaço de disputa a exigir que
tnbunats SeJam erguidos em defesa da ética e da verdade na
pois Já residem apenas espectros. Não por acaso essas novas
história sempre que alguma narrativa fuja da razoabilidade
histórias dependem cada vez mais dos leitores e de suas
ou dos consensos estabelecidos. Por as histórias à prova, tem
crenças. Longe de imaginar que o passado é um espaço a ser
sido a tarefa dos historiadores, mais do que contar histórias na
visitado, encontrado ou localizado em um mapa, costurando­
contemporaneidade.
se pedaços de diferentes épocas e lugares ou informações
de documentos, para se criar um novo ser, informados pela No interior do imaginário literário modernista, a
consciência distópica do século 21 os historiadores entendem literatura havia situado as distopias no futuro. Este é 0 caso
que aquelas operações transfiguram o passado, tornando-o de muitas ficções científicas que descreveram distopias
quase um antilugar - posto que é ao mesmo tempo construção, futuristas de sociedades controladas tecnologicamente por
invenção e representação. Então, esse lugar deslocado, computadores, robôs, clones, etc. A imaginação histórica pós­
atravessado por temporalidades e discursos, de afirmação e modernista, contudo, tem localizado suas distopias no passado,
contradição ao mesmo tempo, dificilmente seria um ponto tal como Frankenstein de Mary Shelley, onde os personagens
com coordenadas fixas, a ser encontrado pelo GPS dos contam histórias que viveram. Enquanto a história modernista
historiadores, em arquivos, documentos ou na imaginação; procurou aprisionar e domesticar o passado conferindo­
como se ele existisse previamente de tal ou qual modo como lhe apenas um futuro, encadeado, situado e condicionado, a
aparece na narrativa que construíram sobre ele. Este passado história pós-modernista colocou em seu lugar um conjunto
distópico é dispersão, caos e multiplicidade, ao qual os de passados selvagens, monstruosos e indomáveis cheios de
historiadores tentam imprimir uma ordem. futuros abertos.
Não é só a literatura ou o cinema que hoje revelam A crise da modernidade, tão bem expressada em
exuberantes distopias apreciadas pelos leitores. Esta diversos autores da Escola de Frankfurt e que teve seu apogeu
atmosfera contaminou também a história e, em vários países durante a Guerra Fria viu triunfar distopia, perturbando 0
temos observado, desde os anos 1960, a publicação de obras sono tranqüilo da razão. O sonho da história em conhecer
históricas distópicas. Nelas, os pesadelos dos historiadores e reproduzir o p�ssado deu ensejo, portanto, a passados
ganham enlevo: o relativismo, o perspectivismo e o ceticismo. construídos; hostis e desafiadores. Prenhes não de realidades
Monstros têm sido despertados, colocando em risco os palpáveis, mas, de fantasmagorias.
consensos conslruídos no passado e desconfianças têm sido

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Hist6ria & Distopia Julio Bentivoglio

Nenhum intérprete no Brasil, talvez, tenha sido ela valoriza e flerta com a sedução da razão. Mas, enquanto
tão enérgico em sua reação a esta ameaça pós-moderna e as utopias pareciam ser um projeto filosófico-político, as
distópica como Ciro Flamarion Cardoso. Com ele, é possível distopias talvez se insurjam como o momento estético e
vislumbrar o combate à esse monstro distópico, a esse passado ontológico de seu julgamento.
que não mais é tratado como algo inanimado, mas que é posto
a viver no interior da historiografia fruto da imaginação e Não resistindo a exemplificar por meio de uma
da consciência dos historiadores, ganhando vida própria, metáfora, eu diria que se o século 19 representou a primavera
adquirindo suas próprias razões e se insurgindo contra os da história, juvenil e revolucionária, rompendo seus grilhões
próprios historiadores. da literatura e da filosofia; o século 20, por sua vez, trouxe o
verão e outono da história, dias ensolarados, no qual a luz
As distopias literárias conservam, forçoso é reconhecer, da razão amparada pela ciência tudo acelerou e conquistou,
a ilusão de que o indivíduo poderá se libertar, preservando encarcerando os múltiplos passados no intuito de fixá-los em
também uma centelha utópica em muitas de suas criações. representações definidas por contextos consensuais urdidos
Isto porque muitas delas manifestam vislumbres da utopia em metanarrativas orientadas por uma imaginação histórica
e vestígios do modernismo, sobretudo em seu esforço de otimista, científica e utópica que, depois da Segunda Grande
reconhecer a importância do indivíduo ou do sujeito capaz de Guerra deparou-se com a chegada de nuvens pesadas e o
triunfar sobre as adversidades. esfriamento do entusiasmo dos historiadores. Assim, neste
Every utopia always comes with its implied dystopia­ início do século 21 a história parece ter encontrado seu
whether the dystopia of the status quo, which the utopia is inverno, no qual as sombras da maturidade obscureceram
engineered to address, ora dystopia Jound in the way this algumas certezas e os contornos dos múltiplos passados
specific utopia corrupts itself in practice.105
não podem confundir os olhos envelhecidos e experientes
Poucos romances distópicos escapam desta fantasia dos historiadores, que pareciam examinar pessoas ou fatos
otimista que acredita na vitória individual ou na superação quando na verdade contemplavam fantasmas, trazendo,
do cárcere tecnológico-totalitário. Esta persistência do
·
inconcientemente, à vida espectros narrativos e literários
modernismo segue também na história. Nas distopias, alimentados por monstros epistemológicos ou filosóficos.
contudo, esses sujeitos eram apenas fantasmas sem vida que Desse momento distópico, provavelmente, teremos talvez em
em algum momento despertam e ganham vida. Ou seja, em breve uma nova primavera, com a emergência de um novo ou
vários romances produzidos na segunda metade do século talvez de novos modelos narrativos para contar esse novo tipo
20 as distopias apresentam happy ends. Mas não todos. Não de história.
são poucos os que terminam descrentes com o homem,
denunciando tragédias anunciadas e irreversíveis. Este espírito
conflitante existe também na historiografia atual. Também
105 GORDIN, Michael; TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/
dystopia... op. cit., p. 3.

72 73
\

A sombra rias rlistqpías


históricas
As distopias são uma crítica ao projeto moderno, são
pessimistas, desencantadas com a razão e a ciência, com os
sujeitos, com a reificação. Os historiadores falam muito,
acompanhando as realizações da linguistic turn, do problema da
narrativa como algo relacionado à estrutura narrativa. A meu
ver o problema não é exatamente de ordem estrutural, mas de
ordem estética. Não penso a distopia apenas como um efeito da
linguistic turn. Sua origem reside no debate sobre a mímesis e
nas possibilidades ontológicas de se alcançar o ser do passado.
Em primeiro lugar cumpre pensar a história científica
modernista como a figura do ditador nos romances distópicos.
Ela cresceu mantendo um contexto profundamente autoritário
de controle ao seu redor, no qual, os protocolos científicos e
metodológicos defendidos pelos historiadores procuraram
racionalizar, controlar e padronizar o que se entendia como
uma escrita científica da história e de um dado passado. Os
recursos e instrumentos narrativos utilizados, igualmente,
deveriam estar sob controle, evitando-se excessos literários ou
imaginativos. O reconhecimento pelos pares, a inserção em
hierarquias acadêmicas e seus circuitos de produção editorial,
em livros ou artigos, conduziram a história à níveis de controle
nunca dantes imaginados.

75
História & Distopia
fulío Bentivoglio

As histórias revisionistas, que porventura se apresentam elaboração de enredo, de pré-compreensão, de imaginação


como pós-modernas e distópicas, são, na verdade um sintoma narrativa. Alteração que põe em movimento antigas relações
de uma história que resiste a oferecer verdades, a uma história estabelecidas entre forma-e-conteúdo da história. A própria
que apela por um novo julgamento do passado, tentando concepção de prática científica mudou e também tem levado
impor novas visões. Nesse sentido o revisionismo parece algo em conta os elementos distópicos da realidade do passado e
novo, mas é um retorno da velha história. O revisionismo de suas possibilidades de reprodução, sem contar o problema
também é distópico, porque também quer impor uma sobre os limites da representação.108 Vive-se um momento
verdade sobre o passado. Não obstante seu surgimento, de crise da representação, debatida amplamente pelos
nesse cenário pós-moderno, ter propiciado a discussão sobre narrativistas, ao longo dos anos 1980 e 1990. Neste sentido, a
a centralidade da ética e da política no interior dos estudos proposta de Roger Chartier, longe de ser inovadora, parece ser,
históricos. Marco nessa questão foi a publicação de Probirzg de fato, anacrônica.109 Semelhantemente, quando se questiona
the limits of representatiorz: Nazism and the final solutiorz de o estatuto da verdade histórica no interior da história, a
Saul Friedlander. Nessa obra está o debate acalorado em que criação das comissões da verdade também não deixam de ser
Carlo Ginzburg ataca Hayden White, Michel de Certeau e igualmente problemáticas.
François Hartog acusando-os de integrarem um movimento
historiográfico pós-moderno relativista e cético, afastando­ Para Baudrillard a distopia se constitui em meio à
se da verdade e do realismo histórico, colaborando com a diferença no presente ou em relação do presente com o
negação do Holocausto.106 futuro. Para os historiadores, reconhece-se hoje a existência
de múltiplos passados projetados pelo presente, que,
Com a pós-modernidade, o grilhão do realismo foi paradoxalmente, sinalizam variados passados possíveis,
rompido. Chris Lorenz identificou esse momento como construídos pelas narrativas, criando a dificuldade de se aceitar
virada metafórica de White e Ankersmit, embora o problema um passado único, fixo e perpétuo. Evocam o perspectivismo
da metáfora já existisse na tradição germânica com Auerbach como um meio mais adequado para se pensar os encontros e
ou Blumenberg.107 Isto não inviabiliza elencar a estética desencontros das narrativas possíveis.
como um caminho para se pensar a imaginação histórica e
a produção histórica no presente. Presencia-se, agora, uma As distopias destacam para o debate contemporâneo
profunda mudança em curso na imaginação historiográfica a importância da contribuição dada pelos integrantes da
contemporânea. Não se trata somente de abandonar a 108 Afinal, se não há fonte ou texto, não há passado. Goste ou não há
concepção científica da história para valorizar sua dimensão sempre um texto que separa ou intermédia a relação entre o historiador e o
passado. Cf. ANKERSMIT, Frank. Narrativismo y teoria hisloriográfica... Op.
metafórica ou literária. Trata-se antes de uma mudança de cit. p. 73-75.
,

109 Basta obsenrar que enquanto a historiografia anglo-saxã, tanto no


106 GINZBURG, Carlo. fust one wítness... Op. cit., p. 89. periódico History & TI1eory quanto na America11 Historica/ Review a partir de
1989 discutiram o problema do narrativismo quanto do rcpresentaclonismo,
107 E também nas reflexões de Max Black e MaryHesse. Ver: ANKERSMIT, ou seja, envidavam esforços epistemológicos para pensar os limites da História,
Frank. A escrita da história: a natureza da representação histórica. Londrina: na França os Annales buscavam reforçar suas convicções reconstrucionistas em
Eduel, 2012, p. 24-25. defesa das verdades do passado.

76 77
História & Distopia
Julio Bentivoglio

chamada escola de Frankfurt, em especial, Walter Benjamin científica. Constituía uma ação política no presente. Como
e um de seus atuais intérpretes Giorgio Agamben. A partir de para Karl Marx o comunismo não era uma fantasia, mas
ambos podemos reconhecer que é preciso estabelecer novas o resultado histórico inevitável da evolução econômica, a
teses para a teoria da história do século 21. Parece urgente história científica e o conhecimento do passado era também
ensejar um debate para problematizar os limites da história inevitável no curso do desenvolvimento da pesquisa histórica.
tal como a conhecíamos e o advento de uma nova experiência Para Moylan
com a história. Que talvez exija um novo conceito de história.
Debate que já transparecia nas provocações lançadas à teoria a narrativa distópica é, em grande parte, o produto dos
terrores do séculoXX. Cem anos de exploração, repressão,
da história tanto pelos pós-estruturalistas quanto por filósofos violência estatal, Guerra, genocídio, doença, fome,
analíticos e que se manifestavam em estudos acadêmicos, ecocídio, depressão, dívida e a diminuição constante da
notadamente anglo-saxões, apontando as restrições objetivas humanidade através do sepultamento e da venda da vida
cotidiana forneceram mais do que solo fértil para essa
e as limitações expressivas do conhecimento histórico em
face fictícia da imaginação utópica.'''
um cenário intitulado por muitos como pós-moderno. Esse
entusiasmo não ocorreu no Brasil. Aqui, revelou-se uma Karl Mannheim já havia construído uma sociologia
preocupação severa e uma forte resistência dos historiadores das idéias cujo desenvolvimento da utopia no interior do
em incorporar as novas reflexões epistemológicas que se pensamento moderno teria trilhado quatro momentos
encontravam e ainda se encontram em curso no âmbito da característicos. Seu surgimento se deu no interior do
teoria da história, aficcionados ao regime de cientificidade milenarismo anabatista que promoveu uma espiritualização
modernista e utópico. Esse regime revela fragilidades face da política. Curiso observar que, mais ou menos ao mesmo
às transformações operadas no âmbito dos saberes, e segue tempo, Carl Schmitt havia chegado a conclusão semelhante
alienado do significado efetivo de suas práticas científicas face integrando o pensamento político à teologia. A utopia
ao recurso à narrativa e ao problema da referência do passado. anabatista defendia a renovação da fé e a crença em uma nova
Estes historiadores do passado terão, contudo, que conviver vida de mil anos após o Juízo Final.
cada vez mais com uma situação em que
A segunda forma do pensamento utópico teria sido o
the space ofpolitics is dis-located, dis-placed, yet in such liberalismo burguês com sua ideia liberal humanitária que
a way that this dis-placement simply consists in bringing reivindicava outro reino na terra para já, exigindo a revolução
the poli tical back in to the proximity of its own essence. It
is this movement ofdisplacement/re-placement that I wish
ou a reconstrução do mundo. Este pensamento liberal criou
to evoke in mobilizing the term 'dystopia'}10 seu mundo ideal, cuja pedra de toque pode ser vista na ilusão
do livre mercado.
Este futuro utópico da história era um desejo e um
projeto dos historiadores para fortalecer a defesa da história A terceira manifestação da utopia na modernidade
reside na ideia conservadora, que não tem afeição por
110 BEISTEGUI, Miguel de. Heidegger & the political dystopias. London: 1 1 1 MOYLAN, Thomas Moylan. Scraps of the Untainted Sky: Science
Routledge, 1998, p. 6. Fiction, Utopia, Dystopia. Boulder: Westview Press, 2000, p. XI.

78 79
História & Distopia julio Bentivoglio

nenhuma teoria e que, pragmaticamente, ataca qualquer nova categories that promise great potential in reformulating
ideia que a ameace. Com efeito, os conservadores insistem the ways we conceptualize re/ationships between the past,
sempre naquilo que a realidade sempre é e jamais naquilo que present, andfuture. But what unites these threepoles with
each other? To our mind, the central concept that links
ela deveria ser.112 them requires excavating the "conditions of possibilit)"'­
even the "conditions of imaginability"-behind localized
Por fim, a quarta e última forma da utopia foi a socialista­
ltistorical moments, an excavation that demands direct
comunista, que para se afirmar teve que submeter a utopia engagement with radical change. After a/1, utopias and
liberal e reduzir os ímpetos da anarquia. dystopias by defi nition seek to a/ter the social arder on a
fundamental, systemic /eve/.113
Mannheim como tantos outros entusiastas utópicos,
contudo, subestimaram as energias que a imaginação distópica Ou seja, buscar nas experiências contemporâneas a
libertaria em suas expressões filosóficas e artísticas. Expressões gênese de wna consciência histórica orientada pela diversidade
do pessimismo desenvolveram-se ao lado do otimismo de perspectivas no plano das idéias e práticas radicalmente
utópico-científico, nos mais variados campos e, entre eles, contraditórias que deixam de reivindicar uma verdade objetiva
no interior da história. Com efeito, a partir do final do século última sobre o mundo, reconhecendo-se como projetos
19 utopia e distopia passaram a disputar a imaginação do distintivos a reinvidicar a realidade que não pretendem
futuro, indicando gradientes de enraizamento e de satisfação destruir ou aniquilar seus opositores, convivendo em tensão
ou insatisfação com o presente. Conhecendo franca expansão permanente, mas não em guerra. No plano da história isso
na literatura, não tardaria muito para que, a partir do último tem produzido grandes desconfortos, pois, de algum modo,
quartel do século 20 a distopia alcançasse a reflexão histórica. muitos historiadores se incomodam com esta pluralidade de
O passado dos historiadores-cientistas ao longo do século 20 representações do passado marcadas pelo que identificam
constituía a promessa do Éden celestial e, tal como os cristãos como liberdades excessivas interpretativas ou expressivas.
primitivos, eles depositavam nesse passado suas energias Defende-se a autonomia da arte, sua pluralidade de discursos,
utópicas. Integrar-se na história, relacionando passado e algo interditado à história, visto existirem imperativos éticos
presente em ambos, criava a euforia de que, no futuro, estariam e morais que a informam desde suas origens gregas, em
redimidos. particular, invocando a sacralidade de seu compromisso com
a verdade. Ainda segundo Gordin [et al],
Utopias e distopias são sempre perspectivas que
iluminaram o presente desde então e, no modo como aqui In our effort to rec/aim utopia and dystopia as analytic
defendo, expressaram leituras particulares do passado. Sua categories of historical inquiry, we place space and time in
the background and think inslead of these phenomena as
compreensão exige, nas palavras de Gordin [et al.]: markersfor conditions ofpossibility, understood in Michel
Foucault's sense.U4
to examine the historical location and conditions of utopia
and dystopia not as terms or genres but as scholarly
113 GORDIN, Michael; TILLEY, Hclcn; PRAKASJ-1, Gyan. Utopia/
112 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, dystopia...Op. cit., p. 2.
p. 186s. 114 Ibidem. p. 4.

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História & Distopia
julio Bentivoglio

Na prática, utopia e distopia tendem a testar as fronteiras


frearam o advento ou uma ruptura mais radical e distópica
da realidade, colocando em movimento relações específicas
da história. Fredric Jameson identifica, ao menos, duas dessas
de tempo e espaço, reimaginando o passado, o presente e o
"great utopias of the 1960's and 70's tended to stage such
futuro. Reposicionando-os e refletindo sobre seu estatuto.
visions in terms ofrace and gender".117
Deste modo, seria preciso examinar
Ou seja, uma parte considerável dos projetos e sonhos
utopias (and dystopias) not for wlwt they tell us about
an intel/ectual construct in assorted individuais' heads,
que ainda alimentam os historiadores, bem como o imaginário
but rather for what they reveal about a set of abiding de boa parte da sociedade são utópicos. Prova viva de que a
concems and cultural formations that generatedboth the imaginação histórica utópica não acabará. De qualquer modo,
desireforutopian transcendence and the specificform that para Fredric Jameson,
utopia!dystopia took. As sucll, utopias are not to be seen as
referringto an imagined place at somefuture time; instead, The utopian impu/se, therefore, calls for a hermeneutic,
we are interested in llow the llistorian can use variants of for the detective work of a decipherment and a reading
utopian thinking and aclion to explore the specificity of of utopian c/ues and traces in the landscape of file real;
a time and a place. Utopian visions are never arbitrary. a theorization and interpretation of unconscious utopian
They always draw on the resources present in lhe ambient investments i11 realities large or small, which may be far
culture and develop them with specific ends in mind that from utopian.118
are heavily structured by the present.115
Do mesmo modo que estas utopias científicas não
O desnudamento da história, de suas práticas e de sua desaparecerão do solo da história, nenhum passado desaparece
trajetória, tem produzido um redimensionamento de sua por completo. Isto motiva o desenvolvimento da pesquisa
própria historicidade neste início do século 21. O esgotamento histórica que procurará recuperar mesmo os detalhes mais
do projeto utópico alimenta o teor distópico, produzindo um ínfimos a seu respeito. O risco é o de que com esta escavação
ceticismo em relação à sua orientação quanto ao futuro da e produção continua de textos, os historiadores acabem
história e em seus protocolos dirigidos cientificamente em por expropriar o passado de si mesmo, alienando-o de sua
direção ao passado. Deste modo, sublinhamos que materialidade pretérita, criando um passado sustentado por
readers think of utopia and dystopia {. . / as styles of
.
textos e mais textos. Acredito que foi em nome do passado e
imagination, as approaclzes to radical change, and dessa tarefa infinita, posto que utópica, que os historiadores
not simply as assessments of ambitious plans for social
construíram instituições como arquivos, museus,
engineering that have positive (utopic) or negative
(dystopic) resztlts.'16 universidades; escreveram e reescreveram manuais de ensino,
múltiplos textos metodológicos, urdiram variados modelos de
De qualquer modo, ainda vivemos um forte ímpeto de análise, desenvolveram hierarquias de pesquisa, promoveram
algumas utopias históricas do último quartel do século 20, que uma divisão social do trabalho e dos saberes relacionados à
1 15 GORDIN, Michael, TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/
1 1 7 JAMESON, Fredric. Utopia ns method, or the uses of thefuture... Op.
dystopia... Op. cil.. p. 4.
cil., p. 25.
116 Ibidem, p. 5. 1 18 Ibidem, p. 26.

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História & Distopia ]ttlio Bentivoglio

história, produziram multifacetadas abordagens. Mobilizaram ao qual penetro num futuro com maior esperança ou
exércitos de pesquisadores hierarquizados, numa intensa desespero, em face das perspectivas que esse movimento
divisão do trabalho historiográfico. Nessa imensa produção, a concebivelmente terá enquanto movimento em direção
a uma meta desejável [ ...] . Se eu conceber o processo
quantidade arvorou-se em realidade, reivindicou a verdade e histórico como espetáculo de degenerescência (e
assumiu o lugar da qualidade analítica ou narrativa. A história conceber o conhecimento histórico como sendo, antes de
tentou divorciar-se da narrativa, da retórica e da imaginação, tudo, conhecimento de um "espetáculo" que desenrola
diante dos olhos do historiador), viverei a história de
como o fez da literatura e da filosofia. Coube à emergência de
modo a acarretar ao processo um fim degenerado [...]
correntes filosóficas recentes estimular a desobediência a estes uma sucessão de chateações [e] agirei de modo a tornar a
modelos e ortodoxias da história. Dos antigos historiadores época em que vivo uma época estática, na qual nenhum
que eram reconhecidos como os mais hábeis, invariavelmente progresso será possível.120
se tratavam de exilados, conforme apontou Reinhart Koselleck,
Teríamos, finalmente, livrado-nos do fardo da história?
chegamos ao momento em que os historiadores mais criativos
Este mais perigoso produto que surgiu da química do intelecto,
têm sido os proscritos, como Hayden White, por exemplo.
conforme sentenciou Paul Valery? Ou estaríamos, novamente,
Apesar disso, retornando ao cárcere da crítica de Northrop Frye e a
urdiduras de enredo pautadas por novos mitos, tramando-as
Agaínst this dystopian tide, the oppositional political
culture of the late J960s and 1970s occasioned a revival of como romances anárquicos e icliográficos? Provavelmente os
distinctly eutopian writing, thefirst major revival since lhe delineamentos arbitrários impostos à operação historiográfica
end ofthe nineteenth century. The imaginative exploration
enquanto ciência ensejaram a formação de diferentes mitos,
ofbetter, rather than worse, placesJound a newform in the
"critica/ utopia". "Criticai", in this sense, incorporates an
dentre eles o par que norteou o surgimento de quase a
Enlightenment sense of critique, a postmodern altitude of totalidade das histórias imaginadas, utopia-distopia, com seus
self-rejlexivity, and the politica/ implication of a "criticai esterores de otimismo e ceticismo diante da historicidade.
mass required to make tlte necessary explosive reaction.119
Seja como for, a reflexão sobre a imaginação histórica no
Que a distopia colocou no centro do debate literário século 21 não pode desprezar as lições da literatura distópica
a falência político-espiritual das energias do modernismo e o quanto ela tem alimentado gerações e gerações de novos
com sua visão otimista do futuro, isto é ponto pacífico. Mas leitores. E conhecer o modo como são urdidos esses novos
reconhecer que o processo histórico possa ser um espetáculo textos e seu impacto na escrita da história indica a pertinência
de degeneração e não de progresso permanente era algo que já de pensarmos, mais uma vez, na complementaridade havida
estava na agenda de Kant. Nas palavras daquele filósofo: entre o nível manifesto das narrativas históricas e sua estrutura
de enredo, ou seja, entre sua epiderme descritiva e factual e
o processo de transição do passado para o presente,
sua dimensão semântica e figurativa mais profunda. Não resta
a forma que imponho às minhas percepções desse
processo, tudo isso proporciona a orientação segund dúvida de que diferentes histórias têm sido confeccionadas a
partir de sentidos disruptivos, reconhecidamente divididos,
l l9 BACCOLINI, Raflaclla c MOYLAN, Tom. Introduction. Dystopia and
histories... Op. cít., p. 2. 120 KANT apud WI-IITE, Hayden. Meta-hisloria.. . Op. cit'., p. 71.

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História & Distopia julio Bentivoglio

opostos e deslocados. Com isso, rompeu-se no cerne da Em que pese os tropos serem limitados, os tipos
história da história, o mito do sentido verdadeiro ou único de figuração do passado são, em última análise, infinitos.
do passado. Transformando o passado retratado nos textos De antiquíssimo gênero da literatura que justificava sua
históricos em algo equivalente ao simulacro, desnuda-se que particularidade e existência na capacidade de retratar fatos
toda história traz, em sua narrativa, uma filosofia implícita da que realmente aconteceram até a Revolução Francesa, os
história, porquanto historiadores passaram a considerar que somente o provável e
[toda] narrativa histórica logra os seus efeitos como o verdadeiro fariam juz às histórias. Representar o real e não
explicação quando revela o sentido mais profundo dos mais o possível ou o imaginável. Ainda seguimos esse protocolo,
eventos que ela descreve através da sua caracterização na contudo, os historiadores dofuturo não podem mais ignorar as
linguagem ligurativa.121
técnicas e dispositivos ficcionais responsáveis pela produção
A importância da imaginação figurativa no contexto de suas narrativas históricas. 123 Forçoso é considerar cada
atual da vida contemporânea e da própria distopia como uma vez mais como os fatos são retratados por meio da narrativa,
força que alimenta leituras, narrativas e ideias, diz muito sobre desiludindo-os de seus antigos mitos de origem do que no o que
as críticas dirigidas à objetividade, à realidade ou ao passado aconteceu. Neste sentido falo do fim deste tipo de história, ou
no interior das histórias. A tradicional orientação científica da ao menos de sua crise. Igualmente proponho que as narrativas
história, com seus métodos rigorosos, técnicas impressionistas históricas que se desenvolvem no presente e se desenvolverão
e teorias modelares não exclui definitivamente a possibilidade no futuro terão suas estruturas de enredo alimentadas por um
de múltiplas representações históricas. Assim, toda história já tipo novo de imaginação histórica, distópica, que interferirá na
é, em si, relativista; mesmo que seus autores não se proclamem prefiguração das estruturas narrativas históricas repensando
relativistas. estratégias de escrita para representar tanto o como quanto o
por que as coisas aconteceram e em que passados, verificando
todo relato do passado sofre a mediação por parte do
seus deslocamentos, e não mais seguindo coordenadas
modo de linguagem em que o historiador molda sua
descrição original do campo histórico antes de qualquer pré-estabelecidas em contextos ou pontos fixos em mapas
análise, explicação ou interpretação que possa oferecer confeccionados pela historiografia tradicional.
dele.
Acompanhando Jablonka, talvez seja o caso de refletir que
O uso de uma linguagem técnica ou de um método de
análise específico, como tal, digamos, a econometria ou a escrita da história não é uma mera técnica (anúncio de um
plano, citações, notas de rodapé), mas também uma eleição.
a psicanálise, não liberta o historiador do determinismo
O investigador se encontra diante de uma possibilidade
lingüístico a que continua escravizado o historiador de escrita. De maneira reciproca, uma possibilidade de
narrativo convencional.122 conhecimento se oferece ao leitor.124

123 Pelo menos esta é a conclusão de Hans KELLNER, H. Ler Hayden


White como leitor. .. Op. cit..
124 JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporónea.
121 WHITE. Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 2002, p. l32. Mmrifesto por las cie11cias socíales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica
,

122 Ibidem, p. 134. 2016, p. l l .

86 87
História & Distopia Julio Bentivoglio

Reconciliar a história com a literatura ou a crítica literária reduzi-la a éticas presentistas.127 Seria, antes de tudo, pensar a
poderá representar um grande avanço para se tentar vazar representação histórica sob novos termos, o que
um novo tipo de história, mais consoante a essa imaginação
não constitui um convite para que revisionistas e
distópica do presente. O que não significa colocarmos como negacionistas sentem à nossa mesa, mas abre nossas
oposição a relação entre ciência e arte, entre razão e imaginação possibilidades de representação de eventos e processos
históricos vários a imaginação poética, politicamente e
ou entre real e irreal. A história jamais se converterá em (sim!) empiricamente mais i nstiga ntes, provocadoras e
fábula ou fantasia.125 Neste cenário pós-moderno, é sabido adequadas àquilo que pensamos ser "real" - a não ser, claro,
que pensemos que o passado e o presente têm a forma de
que contextualizar é uma forma de ficcionalizar um tempo e
nossas escritas da história disciplinadas.128
um espaço, que os conceitos operam como metáforas e que os
atores históricos se convertem em personagens. Um caminho
importante poderia ser a ampliação do espaço de diálogo entre
o autor-historiador e seus leitores, de modo que aquele convite
estes a pensarem sobre suas escolhas, dificuldades, lacunas,
dúvidas, sem as elidir ou as manter nas entrelinhas.
a história é uma p ossibilidade de experimentação literária.
Não se trata unicamente de intriga, como em White, de
escritura como em Certeau ou de narração como em
Ricoeur, expressões que englobam de fato todas as formas
de história, mesmo as mais chatas. Trata-se, sobretudo,
de produzir um texto que seja integralmente literatura
e integralmente ciências sociais, que traga provas em si
por meio de um relato: uma história que é literatura ao
demonstrar, encarnar, não para insuflar vida ou criar
ambientes; uma investigação em que se aprofunda um
problema e não que apresenta resultados dispostos em uma
não-escritura como peixes em um balcão.126

De algum modo, acompanhamos aqui aqueles que


defendem uma atualização da disciplina, como indica Arthur
Ávila. Historiadores como Gabrielle Spiegel, Allan Megill, Enzo
Traverso, Allun Munslow, Wulf Kansteiner, Chris Lorenz ou
Ewa Domanska, por exemplo. Atualizar, significa para Ávila,
indisciplinar a história, o que não implica licenciosidade
teórica ou empírica, conversão da história em opinião ou

125 JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporân ea, op. 127 ÁVILA, Arthur; NICOLAZZJ, Fernando e TURIN, Rodrigo (org.). A
cit., p. 23. história (in)disciplinada. Vitória: Milfontes, 2019, p. 32s.
126 Ibidem, p. 257-258. 128 Ibidem. p. 43.

88 89
Fyífogo
Este pequeno livro procurou apontar alguns elementos
que tentam diagnosticar uma crise na matriz disciplinar
histórica tradicional, herdada do século 20. Matriz esta que
defendia um estatuto científico para a história, a qual seria
capaz de produzir um conhecimento objetivo a partir de
vestígios deixados pelo passado, reconhecidos e utilizados
como evidências. Aquele saber teria diferentes atribuições e
tarefas, com destaque para sua função orientadora. Acontece
que o ceticismo diante das possibilidades e restrições do
arquivo, abalaram o estatuto das fontes como evidências
ou janelas do passado. A rigor, desde Foucault e Certeau
as fontes foram questionadas em seu caráter monumental.
Ambos acusaram os historiadores de fabricarem seus
documentos, de os inventarern na pesquisa afinal, sem. ,

essa intervenção permaneceriam mudos. Recentemente,


legislações impondo sigilo e mesmo legalizando o descarte
n1ostraram a desconfiança de que os arquivos não guardam
tudo, tampouco são capazes de revelar ou conter todas as
informações sobre o passado, apontando não apenas sua
centralidade, mas, também sua marginalidade.129 Ao mesmo
tempo, alguns autores denunciaram a dissimulação muitas
vezes existente nos documentos, produzidos para iludir ou
desviar e não exatamente para informar, preservando-se

129 HARTOG, François. L'evidcnce de l'histoire. Paris: EHESS, 2005, p.


233; 239.

91
História & Distopia
Julio Bentivoglio

segredos ou ausência de narrativas.130 Na verdade, pode-se


Reinhart Koselleck,134 estão a dizer que estaria em curso
dizer que nem os arquivos ficaram à salvo do revisionismo,
uma mudança na consciência histórica contemporânea, no
tal como se depreende da leitura de Les aveux des arquives
qual há uma expansão radical do presente, que prescinde da
de Karel Bartosek, quando este afirma existirem sempre duas
experiência do passado transformando-a e que se projeta em
histórias, "a que não passava de aparência" e "a que realmente
direção ao futuro, encurtando-o. Isto significa que o horizonte
ocorreu". 13 1 de expectativas, os projetos, as esperanças ou a abertura do
Não poucos historiadores têm refletido sobre o problema porvir se encurtaram de tal modo que aquelas imagens e
das representações e das narrativas em relação ao passado. A narrativas do passado que apresentavam o futuro como algo
problemática relação entre o real e o ficcional que permeia o aberto e bem-vindo deram lugar ao ceticismo e ao temor que
trabalho dos historiadores tem sido contemplada em obras faz com que ele não seja mais desejado como era nos séculos
recentes como na coletânea organizada por Amir Eshel, Futurity: 19 ou 20. As representações do futuro como um espaço abe110
contemporary literature and the questfor the past. Mas há uma de expectativas, ou de aperfeiçoamento necessário têm dado
literatura em franco crescimento devotada a essa questão.132 lugar a um receio no qual o presente não mais se projeta
adiante, mas, ao contrário, que mergulha cada vez mais nas
De algum modo, visitamos neste estudo introdutório
experiências atuais e em sua exacerbação.
duas questões fundamentais. A primeira relacionada com a
crise do cronótopo moderno de história, tal como entende As fissuras apresentadas ao cronótopo moderno de
Hans Ulrich Gumbrecht e que, para François Hartog estaria história já se faziam sentir desde o final da Segunda Guerra
relacionada com uma mudança no regime de historicidade Mundial. E se intensificaram na crítica produzida por vários
moderno, que agora adquiria um caráter presentista.133 pensadores pós-estruturalistas, dentre eles Derrida, Foucault
Em outras palavras, tais autores, na esteira das reflexões de ou Lyotard, dentre outros, quando colocaram em questão
o otimismo epistemológico moderno, denunciado como
130 Cf. COMBE, Sonia. Archives interdites. Les peurs Jrançaises face à ingenuidade ou ilusão científica das Ciências Humanas,
/'hist�ire contemporaine. Paris: Albin Michel, 1994.
amparados, sobretudo na crise de referencialidade que
131 Cf. BARTOSEK, Karel. Les Aveux des archives. Prague-Paris-Prague,
1948-1968. Paris: Le Seuil, 1996. apontavam, a qual transparecia tanto no perspectivismo
132 GHOSH, Ranjan; KLEJNBERG, Ethan. Presence: philosophy, history inerente à produção do conhecimento histórico, quanto na
and cultural theory for the twenty-.first century. New York: Cornell University evidência do caráter linguístico e narrativo da história, cujo
Press, 20 13; SOUTHGATE, Beverley. A new type of history:.fictiorral proposals
for dealing with the past. London: Routledge, 2012; RUNIA, Eelco. Moved saber de algum modo, estava eivado de subjetividade e de
by the past: discontinuity and historical mutation. New York: Columbia ficcionalidade. 135 Esse último aspecto foi reconhecido e se
University Press, 2014; SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memórias em terras
de história: problemáticas atuais. In.: I3RESCIAN!, S.; NAXARA, M. Memória e
tornou um dos pilares da nova filosofia da história, que emerge
ressentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: UNICAMP,
2001.
134 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. cit.
133 Cf. GUMBRECTH, Hans Ulrich. Produção de presença. Rio de
135 Cf.DERRIDA, Jacques. Aescriturae adiferença... Op. cit.; FOUCAULT,
Janeiro: Contraponto, 2010; HARTOG, François. Regimes de historicidade.
Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1996; LYOTARD, Jean­
São Paulo: Autêntica, 2013. n
François. O pós-moder o. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

92
93
História & Distopia Julio Bentivoglio

em torno da obra de Hayden White, 136 Louis Mink, Arthur Pensando nas aproximações e nas distinções que a
Danto e Frank Ankersmit. Para Verônica Tozzi narrativa histórica mantém com os textos literários, acredito
Este movimento involucra un fuerte cuestionamiento que o conceito de distopia e a produção de narrativas distópicas
de los presupuestos epistemológicos de la historiografia podem ser bastante úteis para pensarmos os sintomas da crise
"acadêmica" a su concepción representacionalisa del do cronótopo moderno de história, bem como indicar uma
conocimiento histórico, ai ideal de alcanzar el relato
o interpretación verdaderos acerca del pasado y la chave de compreensão para a natureza da história em meio
consideración de la historia como una ciencia.137 ao debate historiográfico contemporâneo. Ou seja, parto
do conceito de distopia para defender a formação de um
Uma das expressões ou sintomas deste mal-estar não novo cronótopo da história, ou ainda de um novo regime
só da modernidade, mas, sobretudo do saber histórico, surgiu de historicidade na qual a relação passado-presente-futuro
primeiramente a partir de alguns estudos que procuravam não apresenta novas configurações e expressões, que colocam
somente revisitar o passado com outros olhos, mas, sobretudo, em xeque a compreensão do conceito de história tradicional
revisar uma historiografia que se colocava como um espelho do e que, atualmente, parece não ser mais dar conta das
real. Exemplo característico disso foram os estudos relacionados realidades e das expectativas existentes na teoria da história. _

com o genocídio dos judeus durante o Nazismo, que procuravam A história moderna padeceria de quatro pecados mortais:
denunciar diferentes construções históricas a respeito daquele reducionismo (tornando a complexidade do real em uma
passado. Tal debate ensejou uma reflexão profunda em torno do estrutura estruturada), funcionalismo (submetendo partes ou
problema da memória e das relações entre memória e história, porções do real a essa estrutura), essencialismo (imaginando
na qual teve lugar de destaque a defesa do direito e do dever que essas estruturas têm uma essência e um conjunto básico
de memória na historiografia francesa.138 Em território anglo­ de características) e universalismo (pressupondo narrativas
saxão, tanto as denúncias feitas por teóricos afinados à filosofia duráveis).141
analítica como Arthur C. Danto, 139 quanto por seguidores da
filosofia da história de Hayden White como Frank Ankersmit O termo distopia foi usado pela primeira vez num
ou Keith Jenkins, por exemplo, ampliaram o fosso que separa discurso do Parlamento Britânico, em 1868, por Gregg
a realidade do passado, ou o passado prático das construções Webber, mas também por John Stuart Mill, que disse:
narrativas dos historiadores, ou seja, do passado histórico.140 É, provavelmente, muito elogioso chamá-los utópicos;
deveriam em vez disso ser chamados distópicos. O que é
136 Cf. WHITE, Hayden. Meta-historia... Op. cit. comumente chamado utopia é demasiado bom para ser
137 TOZZI, Verónica. E/ debate sobre narratividad en la nueva filosofia praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado
de la historia. In.: BRAUER. Daniel (org.) . La historia desde la teoria. Buenos mau para ser praticável.142
Aires: Prometeo, 2009, p. 25-26.
138 Cf. VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória. Rio de Paulo: Contexto, 1995,2001.
Janeiro: Zahar, 1978.
141 )OYCE, Patrick. The returno ofhistory: postmodernism and the politics
139 DANTO, Arthur C. Historia y narracion. Barcelona: Paidós, 1989. ofacademic History in Britain. Past and Present, n. 158, 1998, p. 18.
140 Cf. WHITE, Hayden. Meta-historia... Op. cit.; ANKERSMIT, Frank. 142 RIEGER, Thomas, RÜSEN, Jõrn [el. a/.]. Thinking utopia: steps into
História e tropologia... Op. cit.; JENKINS, Keith. Repensando a história. São other worlds. New York: Berghahn Books, 2005, p. 114.

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História & Distopia
julio Bentivoglio

Como se vê, ambos utilizavam o termo como um Runner, Planeta dos Macacos ou Oblivion, dentre outros,
antônimo para utopia. Ou seja, distopia seria uma utopia atestam esse mal-estar com o futuro. Promover o deslocamento
negativa, um mau lugar. Observando, contudo a etimologia do desta questão para a história nos leva a constatação de que a
termo e sua relação com o problema da historicidade cheguei análise das distopias e sua denúncia têm servido muito mais
a conclusões diferentes. A distopia não é uma antiutopia, ela é a interesses ideológicos ou políticos que exatamente a clarear
um deslugar, que não se encontra exatamente no futuro, mas, uma importante reflexão sobre questões epistemológicas,
que pode estar em qualquer lugar, inclusive no presente e no éticas e estéticas. Isto nos leva a reconhecer a utilidade que
passado. Ela não seria um espaço desejável ou sonhado, mas estas obras cinematográficas ou literárias distópicas têm para
um mau lugar, de contrariedade e privação. A distopia seria, a teoria da história e a relação que estabelecem com a nova
portanto, a desfiguração da própria possibilidade da utopia. filosofia da história. Em outras palavras, o que elas podem
Para os historiadores, contudo, a distopia reside, sobretudo, nos ensinar sobre as carências de sentido e de orientação do
nas suas projeções sobre o passado. conhecimento histórico atual? Keith Booker define a literatura
Podemos vislumbrar expressões da distopia em distópica como
momentosmaisantigosdopensamentoocidental, emparticular, Briefly, dystopian literature is specifically that literature
associadas ao ceticismo filosófico. Hume ou Montaigne, por which situates itselfin directopposition to utopian thought,
exemplo, expressariam de algum modo a desesperança com waming against the potential negative consequences
of arrant utopianism. At the same time, dystopian
o futuro apresentando imagens de decadência e de ocaso já
lit'erature generally also constitutes a critique of existing
em seus presentes. Paradoxalmente, contudo, os prognósticos social conditions or political systems, either through the
negativos e a ampliação do ceticismo têm caminhado lado a criticai examination of the utopian premises upon which
lado com o crescimento do otimismo em alguns campos do those conditions and systems are based or through the
imaginative extension ofthose conditions and systems into
saber, como a medicina ou a computação. Mas, ao que tudo different contexts that more clearly reveal theirjlaws and
indica, outros campos como a filosofia ou a antropologia, ao contradiction.143
lado çla história, têm vivido discussões internas que expõem
as fragilidades e os limites do conhecimento que produzem. Pensar a distopia como um deslocamento, um percurso
Do mesmo modo as carências de sentido histórico têm sido e um projeto torna-se bastante útil no momento delicado e
preenchidas por curiosidades mais prementes do cotidiano, de crise que atravessam as Ciências Humanas. Um cenário
sendo buscadas no próprio presente, e não exatamente em um de renovação. Para a história, trata-se de um horizonte que
passado distante do qual nem todos se sentem integrados ou se apresenta para desconstruir a compreensão tradicional
atingidos. do passado e um projeto que pensa o futuro da disciplina
reivindicando os muitos passados possíveis. De algum modo,
Expressões de distopias têm sido frequentes na literatura a distopia parece denunciar a falência do Iluminismo. Algo
e também no cinema. Vários livros e fil mes apresentam que já havia surgido, invariavelmente, em diversos textos de
sintomas de descredenciamento da utopia. Livros como
143 BOOKER, M. Keith. Dystopian Literature: a Theory and Research
Guerra dos Mundos, 1984 ou Jogos vorazes e filmes como Blade Cuide. Westport & London: Greenwood Press, 1994, p. 122.

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julio Bentivoglio

pensadores vinculados à teoria crítica. Benjamin, Marcuse, retratava, realmente como aconteceu. De modo que não é
Horkheimer são distópicos. O campo literário para eles já possível fazer história hoje sem engajamento afetivo e ético.
surgia como dispositivo de análise radical da sociedade, cujo Igualmente se experimentam novas formas para a apresentação
objetivo seria produzir reflexões sobre os efeitos de barbárie da história, fugindo do texto, da tese, do artigo. O caráter
que se manifestavam em determinado tecido social dominado distópico da história atualmente parece acentuar o passado
pelo agir instrumental e pelo totalitarismo. O pensamento e suas distorções intencionais ou não, com múltiplas lentes
distópico se assemelha ao "historiador benjaminlano" descrito e diagnósticos, desertificando-o de seu caráter referencial,
por Olgária Matos, pois se lança a "compreender as esperanças de seus contextos ou de sua referencialidade. A narrativa
irrealizadas".144 histórica acaba por elidir o passado, trabalhando com
As obras distópicas parecem conter um pessimismo ativo, horizontes possíveis tão infinitos quanto ameaçadores. São
muito próximo dos frankfurtianos da primeira geração, como um navio fantasma que se projeta em uma falésia, como
cuj o objetivo é impedir, por todos os meios possíveis, o
sombras que se amplificam e obscurecem o passado prático.
advento do pior (LOWY, 200Sa, p. 24). Ao pôr o futuro
no registro do piorável, e não do melhorável como na Sobre esta história distópica, contudo, paira um anátema, cujo
utopia, as distopias facilmente podem ser confundidas lampejo podemos ver em Charles Peguy em meados de 1914,
como apologias da decadência.145 referindo-se aos historiadores metódicos:
Na distopia, denunciam-se a falência da literatura como On a no té souvent et depuis fort longtemps que les
uma resignação travestida de esperança; acompanhando, sectes religieuses, et à leur imitation les sectes politiques,
pardonnent tout, qu'elles peuvent pardonner l'in.fidélité,
portanto, as palavras de Octavio Paz, afinal, não se trata de l'indifférence, l'hostilité, la guerre, mais qu'elles ne
"oferecer ao paciente remédios", mas, somente de fazer "um pardonneront jamais l'apostasie.147
diagnóstico do seu mal".146
Do mesmo modo que as utopias se vinculam à
E quanto à história produzida atualmente e sua relação modernidade, penso que as distopias se acentuam na pós­
com a disto pia? Há a emergência de um conceito de história modernidade, pois ressaltam as tendências negativas operantes
contemporâneo que se diferencia radicalmente do conceito no presente e as projeta no futuro, que parece ameaçador.
moderno. A história, cada vez mais se incorpora a um tipo Mas, a distopia não está no futuro tampouco em sua abertura,
de fruição, visto potencializar experiências subjetivas com visto ela o negar, refugiando-se em presente quase absoluto.
o passado, rompendo com a ilusão de trabalho objetivo que Tal como a história que, embora reivindique para si o passado,
é tão somente um presente que dialoga e recria o passado em
144 MATOS, Olgária. Discretas esperanças. São Paulo: Nova Alexandria, seus próprios termos, em um artefato literário. A história
2006, p. 125.
145 HILÁRIO, Leo mir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como
distópica transfigura o passado e tenta fazer previsões sobre
ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário Literàrio, v. 18, n. 2, ele. A distopia rompe com a relação supostamente antagônica
p. 206, 2013.
146 PAZ, Octavio. O ogro filantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, 147 PEGUY apud HARTOG, François. L'cvidence de l'histoire. Paris:
p. 13.
EflESS, 2005, p.99

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entre progresso e regresso, como Foucault já havia detectado, O erro daqueles autores, contudo, foi o de destacar que a
colocando em seu lugar a heteronomia. Para Ankersmit história da humanidade atingiria um fim, relacionado com a
O historiador modernista segue uma linha de raciocínio emancipação e a liberdade, a um telos, portanto. A história da
a partir de suas fontes e evidências até uma realidade humanidade pode não ter acabado, mas a disciplina histórica
escondida por trás das fontes. Por outro lado, na visão talvez tenha chegado ao seu cadafalso. Mas, pensa-se aqui
pós-modernista, a evidência não aponta para o passado,
mas para outras interpretações do passado.1.18 no sentido que essa expressão fi m da história teria, como
- -

em Arthur Danto quando se refere ao fim da arte.150 Pensar


De algum modo a partir do final do século 19 já a história hoje em dia, significa não mais poder ignorar
eram sentidas trocas e transferências profundas entre que ela, cada vez mais, deverá se tornar autoconsciente,
a estética filosófica e as narrativas literárias. A filosofia transformando-se ou então se convertendo-se em filosofia da
sempre influenciou demasiadamente a literatura, do mesmo história. O que se percebe hoje em dia é que a matriz disciplinar
modo que a literatura a filosofia. Nesse processo a história da história científica tem cedido paulatinamente seu lugar
permaneceu, de algum modo, resistente e à margem. É a outra matriz, mais narrativista. Histórias gerais têm sido
sobejamente conhecida a aversão dos teóricos da história confrontadas a histórias mais singulares ou individuais. Assim,
franceses à filosofia até meados dos anos 1980, salvo raras os benefícios da tecnologia ou dos novos saberes produzidos
excessões como Paul Veyne. Processo idêntico ocorrerá na não conseguem estabelecer a emancipação ou liberdade dos
Alemanha em sua recusa ao historicismo. Poucas foram as estudos históricos, mas os aprisionam em debates acirrados
trocas e a apropriação consciente, afinal o estruturalismo é e atomizados, identificando muitas vezes como maléficas as
a prova viva de que inconscientemente a filosofia pautava a novas narrativas revisionistas ou negacionistas. Revelando as
própria lógica de construção historiográfica, informando a contradições e os limites das construções historiográficas e
condução da pesquisa histórica em sua relação sujeito, objeto, estando a história cada vez mais propensa a reconhecer essas
quadro teórico. O reconhecimento da filosofia no interior da determinações, o saber histórico adquire uma nova dimensão.
história, seja da linguagem, seja do debate estético, conduziu,
Tanto o avanço da empiria, a emancipação da
inexoravelmente, a história para a crise da história. O fim da
memória, quanto a expansão autoreflexiva n a historiografia
história no sentido de que ela chegou ao fim de sua trajetória,
tem conduzido ao fim da história, revelando suas condições
de seu autoconhecimento.
de produção, seus limites representacionais e o caráter
Falar em fim da história, relacionando-a com a relação fantasmagórico do passado como um mau referencial, como
visceral havida hoje em dia entre história e distopia, remete­ um deslugar. Tal como na história da arte em sua busca
nos a pelo menos três momentos em que essa morte foi incessante pela verossimilhança, a história se aproxima de um
decretada: em Hegel, em Marx e em Francis Fukuyama.149 entendimento de que há diferentes modos de representar o

148 ANKERSMIT, Frank. Historiography aud postmodernism. History & Janeiro: Rocco, 1992.
Thcory, v. 28, n. 2, p. 140, 1989.
150 Cf. DANTO, Arthur. Narration and knowledge. New York: Columbia
149 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de University Press, 1985.

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História & Distopia julio Bentivoglio

passado, visto ele ser mais invenção que lugar. Mas, tal qual a da invenção e sua condição de deslugar, perde-se o sentido
arte, historiadores acreditaram no progresso de seu ofício, de original da história. Chegamos a um estágio em que toda
seu conhecimento e de suas técnicas. Neste sentido, Antoine história surge como um ardil que esconde seu processo de
Compagnon evoca e acompanha Baudelaire em sua crítica à fabricação.
ideia de progresso.151
No século 19, conforme expôs Hegel,
Mas, afinal, aonde estão os limites e a fronteira entre a
as energias da história coincidiram com as energias da
história e o passado? De algum modo, é como se a história
arte, mas agora a história e a arte devem ir em direções
tivesse engolido o passado, usurpando-o. Continuará existindo diferentes e, apesar de a arte continuar podendo existir
desenvolvimento da história, mas não um desenvolvimento no que chamei de um modo pós-histórico, sua existência
essencial, no sentido de encontrar a expressão mais adequada já não porta qualquer significância histórica.153
do passado. Isto nos permite ver que talvez, os franceses do Talvez surja a pós-história: a história depois da história.
final do século 19 e início do 20 tivessem razão em fugir da
No entanto, subsistirá a importância política, mercadológica
filosofia. Parafraseando Danto, a história não se separa de
e profissional da história, como um campo reivindicado para
sua interpretação e de sua própria história, porque as obras
um tipo específico de trabalhador? Seriam somente estes
históricas são internamente relacionadas com as interpretações
interesses que mantém viva a história como um saber e como
que as definem. Pensar que a história possa ser explicada não um ofício específicos? Talvez, as resistências dos historiadores
mais pelo passado ou pelo contexto (que são invenções da
alimentados pela imaginação científica e utópica do passado
imaginação dos historiadores) nos conduz ao fato de que o com sua perspectiva interpretativa e política continuarão a
universo do historiador, seu estado de espírito, sua urdidura
alimentar
do enredo, suas ferramentas analíticas e seu quadro teórico é
que explicam a obra.152 Isto destaca a necessidade premente the reawakening of the imagination of possible and
alternate futures, a reawakening of that historicity which
de mais estudos de história da historiografia. Ao contrário our system-offering itself as the very end of history­
da pintura, vale dizer, na história o limite das liberdades necessarily represses and paralyzes.15'1
expressivas conferido aos historiadores é dado pela ética.
Continuará sendo assim? Esperamos que sim. Mas, o Concordando com Arthur Danto, em seu percurso
crescimento de historiografias negacionistas e revisionistas histórico a história alcançou um estágio crítico de cognição,
acendeu o sinal de alerta para os historiadores. defrontando-se com sua possibilidade de redenção, podendo
reconhecer-se, tal como a arte, "como a história das identidades
O que impulsionava o avanço da história era buscar equivocadas da filosofia e de seus fracassos em olhar para si
a realidade do passado, quando se encontra nele o caráter

151 COMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade... Op. 153 DANTO, Arthur. O dcscrcdcnciamcnto filosófico da arte... Op. cit.,
cit., p. 12. p. 122.
!52 DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. . Op. cit.,
.
154 JAMESON, Fredric. Utopia as method, or the uses of the future...
p. 141. Op. cit., p. 42.

102 103
História & Distopia
Julio Bentivoglio

através de si".155 O maior drama da história foi ter sido a divina leitores? Nestas considerações finais, não poderia deixar de
comédia do Espírito, conforme apontou Hegel. A história, remeter-me, mais uma vez, às últimas palavras do monstro
como os demais saberes de Frankenstein que, ao reencontrar seu criador sem vida
se aproximam do zero enquanto a teoria sobre eles confessa seus crimes:
se aproxima do infinito, de modo que praticamente
tudo o que há no final é teoria, tendo a arte finalmente Diante de tanta incompreensão e injustiça, tangido pela
vaporizado num deslumbre de puro pensamento sobre revolta, assassinei criaturas inocentes, que nem mesmo
si mesma permanecendo, de certo modo, apenas como sabiam da minha existência. Lancei meu criador, digno,
objeto de sua própria consciência teórica.156 em todos os sentidos, do amor e admiração dos homens,
aos meandros da mais completa desgraça. Aqui está ele,
Deve-se, contudo reconhecer que o mito da história na brancura e frieza da morte. Por mais execrado que eu
seja, nada iguala o desprezo que sinto por mim mesmo.158
moderna foi muito forte, muito poderoso, pois,
era um mito que subentendia ao mesmo tempo a
Pobre história e historiadores que delimitaram sua
possibilidade de um encadeamento "objetivo" dos tarefa com metas científicas e utopicamente tão ambiciosas,
acontecimentos e das causas, e a possibilidade de um acreditando que no futuro preencheriam de informações o
encadeamento narrativo do discurso. A era da história, se
passado conhecendo-o de forma plena, total e global. Restituir
se pode dizer, é também a era do romance. É este caráter
fabuloso, a energia mítica de um acontecimento e de uma um real, fixando-o em uma verdade superior. Acreditando
narração que parece perder-se cada vez mais.157 ter dado vida ao passado, os historiadores ensejaram notáveis
criaturas, passados indomáveis que ganharam vida própria e
Este ocaso ocorre em um momento bastante fértil de que acabaram por desafiar a própria história e seus especialistas.
gestação capaz de engendrar uma nova história que poderá Vencê-los e superá-los imprimiu a marca da imperativa
superar formas antigas ou tradicionais da história, que necessidade de reescrita sistemática da história. Nessa tarefa, os
conhecerá seu fim efetivo quando desafiar seus sentidos historiadores chegaram bem perto de dominar os segredos da
e suas formas de apresentação mais caros, conhecendo existência humana no tempo, criando e reproduzindo mundos
verdadeiramente sua natureza e seus significados? Já tendo sido e seres desaparecidos. Com isso aproximaram-se do zênite
arte, ciência e combate, a história poderia, inexoravelmente, recôndito, no interior de seu próprio desenvolvimento histórico
direcionar-se a novos desafios, deixando novamente de ser um atingindo as altas e geladas latitudes do conhecimento. Toda a
ente absoluto no singular, para constituir um vasto conjunto de energia dispendida na esperança de realizar seu projeto científico
narrativas no plural, no qual não haverá boas ou más histórias, original congelaram a história em formas tradicionais que agora,
histórias falsas ou verdadeiras, científicas ou diletantes, mas, chocam -se contra poderosas forças de uma consciência histórica
tão somente, histórias, seus produtores, seus críticos e seus distópica que dissolve camadas de histórias, performances e
155 DANTO, Arthur. O dcscrcdcnciamcnto filosófico da arte... Op. cil., p. 148.
textualidades, pondo a nu passados não-visitados e ainda por
156 Ibidem, p. 148. construir, conduzindo a história a novos e inóspitos patamares,
157 BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Lisboa: Editorial 158 SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin Claret, 2010, p.
Estampa, 1991, p. 37. 122.

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Hist6ria & Distopia

orientados por uma nova imaginação historiográfica.


O mais irônico nisto tudo é que muitos acreditam
Rgerênâas Bi61logn!ficas:
que Frankenstein é o monstro, quando na verdade trata­ ANKERSMIT, Frank. A escrita da história: a natureza da representação
se do nome do criador, não da criatura. Do mesmo modo, histórica. Londrina: Eduel, 2012.

provavelmente, o que talvez nós identificamos até hoje como ANKERSMIT, Frank. Narrative logic: a semanlic analysis of the
historian 's language. Hague: Nijhoff, 1983.
história, seja tão somente a história de Heródoto, Tucídides,
Ranke, Mommsen, Jacques Le Gotf, Roger Charthier, entre ANKERSMIT, Frank. História e tropologia. Londrina: Eduel, 2013.
outros; ou seja, aonde enxergamos passado, talvez estejamos ANKERSMIT, Frank. Historiografia e pós- modernismo. Topoi, v. 2, p.
113-135, 2001.
contemplando a face de historiadores e, no pior dos casos,
apenas narrativas construídas sobre um suposto passado real ANKERSMIT, Frank. Narrativismo y teoria historiográfica. Santiago:
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110 111
�êndlce
Quadro comparativo entre a história utópica e a distópica

HISTÓRIA UTÓPICA HISTÓRIA DISTÓPICA

Artefato de valor científico Artefato de valor narrativo


O passado é um lugar O passado é um deslugar
Modernismo Pós-modernismo
O historiador não controla o
Historiador controla o passado
passado
A historiografia avança
A historiografia retoma
progressivamente rumo ao
incessantemente o passado
futuro
O passado como a verdade é um Passados e verdades são
só múltiplos
A história é uma janela do A história é um avatar do
passado passado
Filosofias especulativas e críticas
Nova filosofia da história
da história
O sentido está na narrativa e a
O passado tem um sentido e uma
verdade na confrontação das
verdade
narrativas possíveis
É reconstrucionista É desconstrucionista
Produz metanarrativas Produz narrativas

113
Este impresso foi composto utilizando-se as famílias tipográficas Miniom Pro
e Aramis.
Sua capa foi impressa em papel Supremo 250g/m2 e seu
miolo em papel pólen soft 80g/m2 medindo 14 x 20 em, com uma
tiragem de 100 exemplares.
� permitida a reprodução parcial desta obra, desde que citada
a fonte c que não seja para qualquer fim comercial.

EDITORA MILPONTES

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