Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
� ]ULIO BENTIVOGLIO
��
: t.· . -e<
Editor Chefe:
Bruno César Na scimento
Conselho Editorial
Prof. Dr. Alexandre de Sá Avelar (UFU)
Prof. Dr. Arnaldo Pinto Júnior (UNICAMP)
Prof. Dr. Arthur Lima de Ávila (UF RGS)
Prof. Dr. Cristiano P. Alencar Arrais (UFG)
Prof. Dr. Diogo da Silva Roiz (UEMS) HISTÓRIA & DISTOPIA
Prof. Dr. Eurico José Gomes Dias (Universidade do Porto)
Prof. Dr. Fábio Franzini (UNIFESP)
A IMAGINAÇÃO HISTÓRICA NO ALVORECER
Prof. Dr. Hans Urich Gumbrecht (Stanford University)
Prof•. Dr •. Helena Miranda Mollo (UFOP)
DO SÉCULO 21
Prof. Dr. )osemar Machado de Oliveira (UFES)
Prof. Dr. Júlio Bentivoglio (UFES)
Prof. D r. jurandir Malerba (UFRGS)
Prof•. Dr•. Karina Anhezini (UNESP - Franca) 2" edição
Prof•. Dr•. Maria Beatriz Nader (UFES)
Prof. Dr. lvlarcelo de Mello Rangel (UFOP)
Prof•. Dr•. Rebeca Gontijo (UFRRJ)
Prof. Dr. Ricardo Marques de Mello (UNESPAR)
Prof. Dr. T h iago Lima Nicodcmo (UERJ)
Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo (UFOP)
Prof•. Dr• Verónica Tozzi (Universidad de Buenos Aires)
CDD 901.02
Proêmio
No dia 24 de novembro de 2013 publiquei uma breve
nota em meu perfil no Facebook intitulada História e Distopia
e que tinha como subtítulo A teoria da história depois dofim da
história. Nela traduzia meu entusiasmo acerca de duas questões
que ocupavam meu pensamento: os trabalhos. do artista digital
George Grie com suas criações fantasmagórico-surrealistas e
o debate sobre a nova filosofia da história iniciado com a obra
de Hayden White, o qual havia tido o privilégio de conhecer
e conversar pessoalmente no congresso internacional 40th
Anniversary Metahist01y ocorrido na Universidade Federal do
Espírito Santo, em Vitória.
. Naquela oportunidade, observava que era necessário
estipular, parafraseando Walter Benjamin, novas teses para a
história do século 21, um campo que se torna a cada dia afetado
pelo relativismo, pelo ceticismo e pelas distopias tal como se
pode depreender da leitura de muitas obras e artigos que vem
sendo publicados desde o último quartel do século 20 até o
presente. Entendia como urgente dar vazão a um debate que
pudesse identificar os problemas e os sintomas da emergência de
um novo conceito de história que a meu ver não era meramente
presentista. Debate que já transparecia nas provocações
lançadas à teoria da história por pós-estruturalistas, filósofos
analíticos e pela nova filosofia da história inaugurada em torno
das reflexões de Hayden White; visíveis em variados estudos
acadêmicos, notadamente anglo-saxões, que apontavam para
as restrições do realismo, da representação e da narrativa
7
História & Distopia
julio Bentivoglio
8
9
História & Distopia julio Benlivoglio
10 11
História & Distopia
Julio Bentivoglio
12 13
História & Distopia
Julio Bentivoglio
quais eventos se debruçar e sobre como deveriam narrar os 14 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas,
SP: Unicamp, 2007; ROSSI, Paolo. O passado, a memória e o esque cimento.
chamados eventos limites.10 São Paulo, 2002.
15 BEVERNAGE, Berber. Historia, memória y vio lência estatal: tempo y
9 Cf. WHITE, Haydcn. Practical past. Northwestern Universily Press, 2014.
ju s tiça. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2016.
10 Cf. LACAPRA. Dominick. Representing the Holocaust: History,
16 Ibidem, p. 23.
14 15
História & Distopin
16 17
História & Distopia
Julio Bentivoglio
18
19
Distqpia ou o yatfios tia
história_pós-moderna
Dis é um prefixo latino muito comum que remete à ideia
de dualidade, divisão em duas partes, separação, movimento
em vários sentidos, afastamento, cessação, negação, falta,
intensidade. Ele encerra a ideia de dificuldade e de duplicidade.
Mas há também um prefixo grego dys que indica, dualidade,
dificuldade e mau estado.21 Topos, por sua vez, é um radical
que significa lugar, de modo que defino distopia, mais
livremente, como um deslugar, um lugar e sua negação, um
lugar cindido ou ainda um lugar em deslocamento. Ou seja,
temos um lugar deslocado, impróprio, fora do lugar. No plano
filosófico, a distopia representa a resistência ao humanismo
diante de realidades sempre hostis, das quais, aparentemente,
não é possível escapar.
A história que em tese poderia ser o estudo das ações
humanas no tempo - em especial no passado - na verdade
nasce da consciência da historicidade forjada no tempo e no
espaço pela própria experiência existencial individual. Ou
seja, de uma relação dual e complexa entre tempo e espaço
em permanente deslocamento, que é vivida, apreendida e
21
História & Distopia
julio Bentivoglio
uma descrição absolutizada, seja por uma fórmula, seja por A ameaça da história situa no interior do passado um
um modelo, seja por um sistema expressado por um conjunto mau futuro, semelhantemente à literatura distópica, ou ao
fixo e invariável de características. Tentar fixar o passado ocaso da arte, fazendo com que o pessimismo nas capacidades
deste modo reflete o caráter totalitário inerente às distopias da história ocupasse espaços vazios deixados pela falência
literárias. Segundo Frank Ankersmit, teríamos muitos passados da utopia científica moderna, fissurando-a e levando as
possíveis na história, para um mesmo event� ou �ara um representações da história científica à crise. Ou seja, a crença
� .
�
período, que atestam a relatividade das narra 1v�s 1stón� as. de que o excesso de histórias e a ampliação do acesso as fontes
Eles podem ser alternativos e até mesmo antmomtcos, v1sto poderiam provocar a identificação entre a história (ou as
serem interpretações e não traduções ou espelhos do passado.27 histórias) com o passado é algo que não se deu. Como diria
Segundo ele, a história, contudo, instituiu um padrão: as Arthur Danto,
_ dupla:
"declarações de uma narrativa histórica têm uma funçao
a história da ciência poderia [. ] ser lida como a
1) descrever o passado e, 2) definir ou individualizar uma ..
26 27
l/lst6ria & Distopia
julio Bentivoglio
By the ende of the J980s - moving beyond the engaged Para falar de um lugar precisamos saber qual a posição
utopianism of lhe 1970s and the Jashionable temptation
to despair in the early 1980s - severa/ writers confronted
que ocupamos em relação a ele, se estamos dentro ou fora.
the decade 's sirnultaneous silencing and cooptation of Pensemos no caso do passado. Que lugar ele ocupa? Onde nos
Utopia by turning to dystopian strategies as a way to come situamos em relação a ele? Para Jenkins o passado é um antes
to terrns with the changing social reality.31
do agora,33 mas ele pensa exclusivamente o passado como uma
O realismo cético da distopia conduziria a história a lugar temporalidade, como ações e eventos que acabaram e não
infeliz, visto problematizar sua antiga noção de passado e de exatamente como um lugar.34 Chegamos a um ponto no qual,
representação fiel. A distopia revela que abaixo de superfícies novamente, os historiadores deverão ser capazes de colocar os
reconhecidas e uniformes, existem dobras em que há a fundamentos teórico-metodológicos da disciplina em novas
imponderável diferença com variados níveis de desesperança. bases. Crise semelhante foi sentida pelos historiadores do
A distopia pode ser uma dobra na qual se escondem infinitas século 19 e início do século 20, que, em resposta, referendaram
imersos na atmosfera utópica do modernismo uma crítica e
linhas de fuga nas quais a realidade do passado escapa. A
distopia é o passado e sua recusa, sua incerteza, sua tentativa uma escrita particulares para a história. O sentimento, naquela
de fugir do controle dos totalitarismos forjados pela disciplina altura, era de que, nas palavras de seu precursor, Droysen
histórica desde o Oitocentos. tudo está abalado, tudo está passando por imensuráveis
rupturas, agitações, brutalizações. Todas as coisas velhas
O leitor deve ter percebido que, ao contrário da estão gastas, falsificadas, consumidas por vermes, de
literatura que coloca a distopia majoritariamente no futuro,
considera-se aqui que na história a distopia tem seu lugar 32 CHLADENIUS, Johann Martin. Princípios gerais da ciência histórica.
Campinas: Unicamp, 2013, p. 301.
no passado. E refletir sobre a distopia significa pensar esses
33 JENKINS, Keith. A história refigurnda. São Paulo: Contexto, 2014, p. 62.
34 Essa é a queLxa pri n cipal de Kate Brown, a de que os historiadores
3! BACCOLINI, Ratfaella; MOYLAN, Tom. lntrodrtclion. Dystopia and
. _
_ in.: BACCOLINT, Rallaclla; pensam mais nos d�cumentos e no tempo que na existência física dos luga res.
lmtoncs. MOYLAN, Tom. Dark horizons: science
BROWN, Kate. D1spatches from dystopia. Histories of pinces not yet
fiction and utopian imagination. London : Routledge, 2003, p. 2-3.
forgotten. Chicago: Uni vcrsity ofChicago Prcss, 20!5, p. 2.
28
29
História & Distopia
30 31
História & Distopia
julio Bentivoglio
32
33
História & Distopia
Julio Bentivoglio
Esse locus, ese primer laboratorio, gabinete que nace Shelley no início da obra diz que aquele relato imaginário
precisamente de la crisis que deriva dei racionalismo não era de todo modo impossível. As cattas e histórias do
secularista, herdero de la Ilustración, y el irracionalismo
velho capitão bem poderiam ser verdadeiras, continham, não
sobrenat11ra/, de raíz medieval, que surge a través de la
estética de/ romanticismo, representa un estadia pre obstante, uma advertência. Ou nas palavras do jovem doutor
moderno, en la medida que anticipa el topos que domina Frankenstein:
gran parte de la producción distópica: el laboratorio de
Brave New World.39 Mas quem poderá conceber os horrores dessa obra secreta,
cuja grandeza só era igualada pelos atos da mais baixa e fria
De algum modo, o Romantismo foi o prelúdio e desumanidade que, em nome da ciência, eu era obrigado a
cometer? Muitas vezes arrombei c penetrei em túmulos, em
ao mesmo tempo a ponte que conduziu à sensibilidade busca de material fresco para minha criação. Esses corpos
oitocentista e ao perspectivismo pós-modernos, centrados que, aos meus olhos, ainda pareciam conter centelhas de
no sujeito e na subjetividade. O topos da formação, essencial uma vida tão recentemente extinta foram profanados por
para compreendê-lo, contudo, fragmenta-se em diversos minhas mãos e meus instrumentos.11
caminhos que não conduzem exatamente às origens, mas a Afeiçoados aos cemitérios da história, historiadores
genealogias bem ao gosto de Foucault, produzindo ausências, também reviram arquivos e fontes, no dizer espirituoso
estranhamentos e uma forte nostalgia das gêneses ou das de Foucault e Certeau, exumando, em nome da ciência,
garantias de cientificidade. Assim, enquanto a historiografia documentos, séries e fundos para produzir história. E a
romântica podia se dar ao luxo de tratar das formações e das dificuldade de sua tarefa não era muito diferente daquele
origens, a historiografia pós-moderna analisa genealogias, personagem, pois, para o doutor Frankenstein:
preservando o gérmen das sensibilidades, desacreditando das
Embora possuísse a capacidade de dar vida à matéria
linhas de evolução e igualmente das origens. Em seu lugar
morta, o trabalho de preparar uma estrutura para recebê-la,
pensa as narrativas como textos figurativos e retóricos, artefatos com seu intrincado complexo de fibras, músculos e veias,
literários, estéticos e de performance, não como um gênero parecia de uma magnitude e dificuldade inconcebíveis.42
narrativo científico hermético, sem qualquer interferência da
Como a vida não deixa de imitar a arte, também na
imaginação ou da ficcionalidade. Os teóricos da modernidade,
ciência histórica:
conforme José Vasconcelos, já haviam percebido que
34
35
História & Distopia Julio Bentivoglio
à discussão epistemológica, seu calcanhar de Aquiles, indicando que viam c�m el pasado ha de ser igual de fácil que el contacto
sua atividade intelectual como uma prática científica, mais que uma prática dzrecto con el texto histórico.47
discursiva ou filosófica. Ver: LIMA, Luiz Costa. Aguarrás do tempo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1986, p. 22.
45 GUMBRECTH, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: 46 OLIVEIRA, J, op. cit., 2012, p. 24.
Editora 34, 1998, p. 13. 47 ANKERSMIT, Frank. História e tropologia. Londrina: Eduel, 2013, p. 71.
36 37
História & Dislopia
julio Be11tivoglio
38
39
História & Distopia
Julio Benlivoglio
systemic leve/.53 uma vez que o futuro foi penhorado e que só pode ser
percebido como um fim do mundo - desastre atômico,
Antes a distopia residia no método, agora ela reina dívida do terceiro mundo, destruição da camada de
absoluta no plano da consciência historiográfica. Ambas, ozônio -, a falência moderna tornou-se um lugar comum
e o revisionismo vai bem.s7
utopia e distopia tem sua origem no presente, mas,
Where as utopia takes us into a Juture and serves to indict Por conseguinte, o reconhecimento, disto que denomino
the present, dystopia places us directly in a dark and de ficções da história, surgiu somente quando da constituição
depressirzg reality, conjuring up a terrifying future if we de uma consciência historiográfica dist6pica, urdida no
do not recognize and treat its symptoms in the here and
now.54 interior de um pensamento pós-utópico, ou pós-moderno.
O caráter ficcional ou narrativo da história atualmente ocupa
A ficção científica é um gênero narrativo que nasceu um lugar central na reflexão historiográfica. É preciso lembrar
de dentro da consciência literária utópica moderna. Por ainda que a emergência de uma consciência histórica distópica
extensão, a ficção histórica como uma forma da história que e pós-moderna, que reconhece a ficcionalidade na história,
nasce de dentro da consciência histórica moderna, derivada não significa o ocaso de formas da consciência histórica que
daquela consciência literária também é utópica. Para Antoine a precederam ou que a historiografia abandone de vez seus
Compagnon ideiais científicos caros à modernidade.
a história moderna narra a si mesma com vistas ao Forçoso, contudo, é reconhecer que a revisão dos
desfecho a que quer chegar, não aprecia os paradoxos contextos são a expressão par excellence da natureza distópica
que escapam à sua intriga c os resolve ou os dissolve
em desenvolvimentos críticos; ela se escreve a partir dessa história científica ou moderna. Como apontou Frank
dos conceitos combinados de tradição e de ruptura, Ankersmit
de evolução e revolução, de imitação e de inovação.
53 GORDIN, Michael; TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/ 55 COMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade... Op.
dystopia: conditions of historical possibility. New Jersey: Princeton University cit., p. l i .
Press, 20 lO, p. 22.
5 6 Ibidem, p. 12.
54 Ibidem, p. 2.
57 Ibidem, p. 13.
40
41
Histórin & Distopia
/11/io Bentivoglio
42
43
História & Distopia
julio Bentivoglio
de efeito do real. Cf. BARTHES, Rolnnd. O rumor da língua. Sao Paulo: Londrina: Eduel, 2013.
Martins Fontes, 200 I, p. 129. E Richard Rorty rejeitado o fund�cionismo, no 64 DANTO, Arthur C. Após o fim da arte... Op. cit., p. 56.
qual o conhecimento surgiria de pressupostos seguros e vcrdade1ros retratados 65 DANTO, Arthur. Narration and knowledge. New York: Columbin
44 45
História & Distopia
julio Bentivoglio
46
47
História & Distopia
71 CHAUNU apud HARTOG, François. Regimes de historicidade. São 73 Cf. FERREIRA, Juan C. lntroduction: utopias and dystopias in Modem
Paulo: Autêntica, 2013, p. 246. Spain. Utopian Studics, v. 26, n. 2, p. 326-28, 1995.
72 LORENZ, Chris. Historica/ know/edge and historical reality. History & 74 MATIOS, Marília. O duplo em Frankenstcin. Disponível em: http:/I
Thcory, n. 33, p. 297, 1994. wwvl.ínvcntario.ufba.br/04/pdf/mmallos.pdf. p. 13.
48 49
História & Distopia Julio Bentivoglio
e punido no monte Cáucaso por Zeus. Como toda história, gestou-se uma nova história, filha de uma mãe severa e
Frankenstein de Mary Shelley possui muitas interfaces com exemplar que a humaniza, apontando suas regularidades,
as leituras e a formação de sua autora, bem como reflete o exigindo-lhe fidelidade. Na pós-modernidade a história parece
momento histórico peculiar em que veio à luz, incorporando ter desenvolvido uma natureza híbrida e mutável, um ser
características e preocupações mais gerais de seu tempo. De monstruoso e desobediente, fruto de ambições e experiências
todas elas, duas marcas são fundamentais: a presença triunfal científicas frustradas.76 A despeito disto, como Medusa, não
da ciência e a ênfase sobre a engenhosidade do gênio humano. havia um único passado cujo olhar do historiador não tenha
A historiografia também pode ser pensada como um vasto resistido à tentação de converter em pedra e imortalizar.
inventário de monstros, fantasmagorias que dão vida a passados De uma imagem perfeita num espelho que revelava
incontroláveis que se alternam e se multiplicam indefinidamente. identidades e uma complementaridade entre o agora e o vivido,
Criatura funesta, a narrativa histórica vive entre dois mundos, o no bestiário pós-moderno da história, o passado é um espelho
presente e o passado, com seu caráter híbrido, que se amplifica estilhaçado, não porque tenha se convertido em migalhas a
em histórias infindáveis, constituindo monstros narrativos que história, mas em múltiplos passados cortantes, incapazes de
são ora admirados, ora duramente combatidos. Toda narrativa serem restituídos a uma totalidade, como diversos pedaços que
histórica se constitui como uma sombra que revela um caráter integram um passado-monstro, no qual cada fragmento revela
sublunar, de duas naturezas similares, mas incompatíveis, dos a mesma imagem, reduzindo-a ao infinito, como pequenos
viventes e dos mortos, que coexistem em conflito aberto, na espelhos do real, que o replicam ao infinito criando a ilusão
historiografia. Dos bestiários medievais, marcados por criaturas de que, por meio da repetição, o passado seja encarado como
monstruosas sob a forma física, chegamos aos bestiários algo que realmente é. Essas imagens do passado, tão caras a
modernos constituidores de narrativas monstruosas sob a forma muitos historiadores na virada do século 20 para o século 21
conceitual e narrativa. Para Todorov, colocaram em cena o caráter espectral do passado. Estilhaçar
o fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assim que o grande espelho do passado, da historiografia utópica,
escolhemos uma ou outra resposta, saímos do fantástico resultou, pelo menos na crítica de alguns historiadores ao
para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o pós-modernismo, na fragmentação que prejudica a história,
maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada
por um ser que não conhece as leis naturais, d}ante de condenando-a a sete ou setenta anos de azar. José Carlos Reis
um acontecimento aparentemente sobrenatural.'5 identifica essa consciência de ruptura vivida com o advento da
pós-modernidade e sublinha que esta
Curioso que na Antiguidade a história era o resultado da
76 Para Terry Eagleton, a "pós-modernidade é uma linha de pensamento
inspiração divina, filha da musa Clio, que iluminava o passado que questiona noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade,
impedindo seu esquecimento e retratando feitos singulares, a ideia do progresso ou a emanação universal. Contrariando essas norm as do
exigindo devoção de seus admiradores. Na modernidade, Iluminismo, vê o mundo como um contingente, gratuito, diverso, instável,
imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas,
gerando certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade Ver:
".
75TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar
1978. p. 148. 1998, p. 7.
50 51
História & Distopia
Julio Bentivoglio
77 REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, a it:existência, no conhecimento que produzem, de um
temporalidade e verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 45. car�ter científico, objetivo, racional. Por conseguinte,
sena recomendavel , abandonar o analítico, o estrutural,
78 Para Jerzy Topolsky as narrativas dos historiadores são ativadas pela
imaginação, ao buscar imagens coerentes do passado, que sejam capazes de a macroanálise, a explicação - ilusões cientificistas - em
ser vislumbradas pelos leitores, ou seja, por meio do confronto entre duas favor da he�menêutica, da micro-história, da valorização
. .
imaginações e as conveções de época envolvidas TOPOLSKY, Jeny. 71re role of das mteraçoes mtencionalmente dirigidas, da concepção
logic and aesthetics in constntcling narra tive wfro/es in fristoriography. History -------
52
53
História & Distopia
Julio Dentívoglio
Curioso que, já nos anos 1950 Arnold Toynbee havia Quando avançaram perigosamente sobre esses limites
introduzido o epíteto pós-moderno como algo decadente, e esse abismo os historiadores passaram a criar campos, mais
anárquico e irracional. De qualquer modo, para Carlos Berriel, do que obras.84 Seu sucesso era verificado caso fossem bem
sucedidos em produzir uma inovação reconhecida. Exemplo
distopia attempts to be in continuity with the historical disso encontra-se na gestação de campos como história das
process, by enlarging and fonnalizing tlte negative
tendencies wl!ich are active in the present and may mentalidades, história das mulheres ou história das empresas,
conduct, a/most inevitably, ifthey are not obstructed.83 por exemplo. Elas reafirmam a centralidade dos documentos e
dos recortes para a produção da história. E,
O relativismo na história reside, portanto, nas
discordâncias entre como se produz a história e o modo em um modelo documental, a base da pesquisa é o fato
"duro" fruto do exame crítico das fontes e a intenção
como ela é pensada. Ou seja, para a história modernista só da historiografia é tanto suprir os relatos narrativos
seria história aquela que atendesse ao modelo progressivo de e "descrição densas" de fatos documentados quanto
narrativa que representa o passado. Abandonar o passado submeter o registro histórico a procedimentos analíticos
de formulação de hipóteses, prova c explicação.85
não implica em atirar fora a água e o bebê juntos da bacia,
mas em reconhecer que o que imaginávamos ser a água era,
na verdade, contextos líquidos heterogêneos e voláteis que
colocavam em risco a própria sobrevivência daquele frágil ser.
A história que buscava ser um espelho para o passado
tornou-se, inevitavelmente, no presente, um espelho sobre si
mesma. Quando as descontinuidades e as diferenças tomaram
se maiores e mais significativas que os contextos ou modelos,
deparou-se a história com seus limites, os historiadores viram
se expressando ou discutindo sobre passados que construíram
e elaboravam e não mais como a representação de um único e
mesmo passado. Deram-se conta que o passado é deslocamento.
E que os passados estariam, portanto, mais na cabeça dos 84 Nesse sentido a pós-modernidade seria uma condição que reúne um
conjunto de circunstâncias que Keith Jenkins identifica como a falha geral da
m�dernidade acompanhando Steven Connor c David Harvey. Cf. JENKINS,
82 CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In.:
Ke1th. Repensando a história. São Paulo: Contexto, 1995. p. 6; CONNOR,
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAlNFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história.
Steven. A cultura pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1995; HARVEY, David
Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 17.
(org.). A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1996.
83 13ERRIEL, Carlos E. O. Dricf notes on utopia, distopia and h istory. 85 LACAPRA, Dominick. History & criticism. New York: Cornell
Disponível em: utu://ww\v.unicamp.br/-berriel/.../berriel_prod_2.doc. p. 3.
University Press, 1985, p. 18.
54 55
A imaginaçao histórica no
sécufo 21
Partindo das reflexões de Hayden White, pode-se, a
rigor, reconhecer que a imaginação histórica e historiográfica
neste novo milênio está, cada vez mais, deixando aflorar uma
consciência distópica, de modo que a estrutura narrativa
das histórias, embora ainda conserve e seja orientada pela
imaginação modernista e seus tropos, tem convivido mais e
mais com o despertar de uma nova orientação imagética,
ou imaginação narrativa, pós-modernista. Tal proposição
encontra eco em Gordin quando reconhece que
In our effort to reclaim utopia and dystopia as analytic
categories of historical inquiry, we place space and time in
the background and think instead of these phenomena as
markersfor conditions ofpossibility. 86
57
Hist6ría e• Distopia
Julio Benfivoglio
A teoria literária e a literatura consideram as distopias do referente, sem dúvida, fruto de um maior pluralismo e
um subgênero literário recorrente em romances de ficção ceticismo epistemológicos, posto que a história, cada vez
científica. Tal como a utopia, ela se oporia à realidade, mas, mais é reconhecida, também, como um artefato literário
sendo o avesso do progresso, uma expressão do pessimismo. conforme sentenciou pela primeira vez, em 1973, Hayden
No caso da historiografia, este caráter diferenciado é, em White seguindo a trilha de Barthes e de Derrida. E enquanto
grande parte, associado ao revisionismo, ao relativismo e ao discurso, a narrativa histórica pós-moderna se estrutura em
ceticismo crescentes no interior dos estudos históricos a partir torno de variadas narrativas particulares e individuais, de
da Segunda Guerra Mundial. diversos discursos, oriundos de diversas fontes, perspectivas e
A fim de imaginar "o que realmente aconteceu" no atores históricos. Esta pluralidade, esta heterogeneidade, que
passado, portanto, deve primeiro o historiador prefigurar institui a lógica do jogo e da indeterminação tem se tornado,
como objeto possível de conhecimento o conjunto aparentemente, um padrão nas narrativas pós-modernas, cujo
complexo de eventos referidos nos documentos. Este ato
prefigurativo é poético, visto que é prccognitivo e pré advento nos role playing games (RPGs) é marca genealógica,
crítico na economia da própria consciência do historiador. sintoma que se expandiu para diferentes formatos, na literatura,
É também poético n a medida em que é constitutivo da nos quadrinhos, no cinema, nos seriados, etc. Esse padrão das
estrutura cuja imagem será subsequentemente formada
estórias na pós-modernidade não parece ainda ser a forma
no modelo verbal oferecido pelo historiador como
representação e explicação daquilo que realmente na qual se expressa a historiografia contemporânea, embora
aconteceu [ ...]. No ato poético que precede a análise já manifeste, ao menos em consciência o reconhecimeto
formal do campo o historiador cria seu objeto de análise dessa imaginação plurinarrativa. Escrevê-la mediante essa
e também predetermina a modalidade de estratégias
conceptuais de que se valerá para explicá-lo.87 perspectiva é outra questão. Há enorme resistência em
transpor esse tipo de imaginação para os textos históricos, que
Minha hipótese é a de que acompanhamos a conservam uma estrutura basicamente herdada do século 19.
emergência de um novo paradigma poético-linguístico, pré
De algum modo a crença no progresso histórico e
crítico e metahistórico. E que esse paradigma, no século 21,
no próprio progresso científico da história evidenciam,
é eminentemente distópico. Ou seja, a atual consciência na
atualmente, que existiram avanços na organização e acesso
historiografia é um modo preciso de pensamento, cuja pré
a novos documentos, que se ampliaram os métodos de
elaboração do enredo de início é, em si mesma desconfiada,
pesquisa, produzindo resultados mais consistentes no tocante
seja das capacidades científicas da história, seja das realizações
a alguns temas e temas estudados, contudo, vislumbra-se um
da historiografia, seja das evidências ou da materialidade
esgotamento e um estado em que aparentemente variadas
do passado, seja das verdades produzidas pela história em
metodologias, objetos e abordagens foram contemplados,
relação a ele. O passado tornou-se deslocamento, deslugar.
numerosos estudos foram preenchendo os quadros do passado,
E para se aproximar dele é preciso valer-se de múltiplas
entretanto, o crescimento vertiginoso dos estudos e textos
narrativas, não de uma narrativa única ou unificadora. Crise
históricos não realizou as expectativas do Iluminismo colocando
87 WHITE, Hayden. Meta-história... Op. cit., p. 45. por terra os fundamentos espirituais da modernidade. Dúvidas
58 59
História & Distopia
Julio Benlívoglio
e incertezas permanecem e se ampliam. O passado, por mais modo de argumentação e 5) modo de implicação ideológica.
que fosse preenchido pelas narrativas em expansão, ao invés Em nosso atual século, a incerteza marca tanto o vislumbre da
de ser esgotado ou assumir contornos vez mais precisos, surge crônica, quanto a elaboração da história, visto reconhecerem
deslocado, problemático, incompleto. Paradoxalmente, quanto sua provisoriedade, implicando na assunção de uma imaginação
mais escrevemos e pesquisamos sobre o passado mais lacunas histórica particular, que abdica do otimismo utópico da
e divergências surgem. Como os passados vão se ampliando, o imaginação modernista - científica - para, em seu lugar, elaborar
historiador deixa de ser somente o leitor da história mundial, o conteúdo e a estrutura da história a partir de um ceticismo
tornando-se o seu escritor, de modo que a história, ou o passado distópico e narrativista. Em outras palavras, a transformação
passa a ser o que ele escreve, ou como desejou Carl Schmitt em Die da crônica dos eventos em história na cabeça dos historiadores
buribunken (Os buribuncos): "a história só se cumpre contanto convertidos por meio de uma estória única no atual contexto
e à medida que for registrada".88 A despeito disso, mesmo o pós-moderno é informada pelo passado como um deslugar
esgotamento, a falência ou a reinvenção de alguns paradigmas atravessado por diferentes vozes. Isso explica, em parte, os
que insistem no reconstrucionismo e na manutenção da recentes encontros e desencontros entre o que dizem as obras
história científica,89 preservando-a em historiadores resistentes históricas e o que afirmam as memórias individuais ou coletivas.
às viradas, que continuam construindo histórias sem aderência
a essa consciência distópica de seu próprio tempo, produzindo As crônicas hoje em dia têm finais em aberto, de modo
livros e artigos que serão lidos por poucos quando não por que sua conversão em história é mais dificultada, articulando
ninguém. E que são incapazes de incorporar os avanços da a série de eventos não em uma, mas em diversas histórias
narrativa ficcional com sua fragmentação e perspectivismo possíveis (ao estilo dos RPGs), pois sua estrutura profunda
radicais. Embora existam limites para toda investigação, face não está tão claramente identificada, encontrada, reconhecida
às chamadas evidências empíricas, é preciso pensar que a ou descoberta pelos sujeitos e, em particular pelos leitores.
interpretação histórica continua sendo uma tarefa infinita. Sob a égide das incertezas, passado e presente parecem
estar em grande estranhamento, de modo que a imaginação
Caso seja escrita a última obra sobre um tema ou evento
histórico, teremos aí um passado morto. Sua repetição infinita, histórica, marcada pela dúvida, parte de elaborações de
dispensando a necessidade de novos estudos seria, contudo, enredo desconfiadas, informadas por uma filosofia da história
ceticista. Provavelmente o fechamento do futuro motivou a
algo absolutamente impensável.
abertura radical do passado, que hoje se apresenta como uma
Em sua obra seminal, Hayden White havia indicado caixa de Pandora aos historiadores. Os níveis de tolerância se
cinco níveis de constituição ou gênese de toda obra histórica: ampliam colocando em xeque o caráter autoritário das histórias
1) crônica; 2) estória; 3) modo de elaboração do enredo; 4) tradicionais subsumidas a poucas interpretações canônicas.
Eis a utilidade da literatura distópica, pois ela permite
88 SCHMITT npud KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Rio de
Janciro: Contraponto, 2014, p. 135. reconhecer esta sensível, mas evidente, mudança da
89 MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, consciência histórica contemporânea. Diversos autores, como
2008, p. 27. Ricoeur e Gadamer ou mesmo Jauss e !ser concordam que a
60 61
História & Distopia
julio Beutivoglío
leitura tem um papel decisivo na literatura, pois, nas palavras com diversos pontos de tensão, que ilustram as múltiplas redes
de Jean-Paul Sartre "o objeto literário é um estranho pião constituídas muitas vezes para tratar dos mesmos objetos
que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é preciso ou problemas.92 As múltiplas revistas ou grupos de pesquisa,
um ato concreto que se chama leitura".90 Ao inventar suas antagônicos que são criados. Tais distensões apresentam, na pós
histórias no presente, os historiadores estão profundamente modernidade estas tensões evidentes, pois, o reconhecimento
marcados por uma estrutura de pré-elaboração do enredo e de da estória, tanto por parte do historiador quanto por parte
urdidura de suas histórias sob a égide da distopia, de passados do leitor, está pautada, desde início para a possibilidade de
deslocados e em deslocamento que dialogam com os textos e espirais e labirintos e não de uma compreensão linear e tácita.93
as formações discursivas de seu tempo, estabelecendo zonas de Reduzir níveis de incompreensão e ampliar as possibilidades
contato e aderência ao universo de leitores dotadas de maior de persuasão, evitando o conflito aberto tem sido a estratégia
complexidade e ceticismo. Esse universo plural e radical da predominante na argumentação textual, tem sido a tônica,
leitura e das disputas de sentido criaram fissuras e marcas mais do que a adoção de paradigmas. Os paradigmas parecem
visíveis nos protocolos narrativos constituídos no presente. ter perdido a importância que tiveram no passado. Importa
E, em meio a esses protocolos, a distopia seria um dos hoje, menos saber se o historiador é marxista ou historicista e
mais significativos modelos lingüísticos contemporâneos, mais se suas análises são pertinentes ou eficazes. Num mundo
expressando configurações particulares de elementos léxicos, acadêmico disputado e distópico, a tolerância tem sido uma
gramaticais, sintáticos e semânticos por meio do qual os forma de sobrevivência, gestora de generosas e variadas formas
historiadores performam suas narrativas do passado, "em seus de história. No passado, a intolerância e a imposição dos cânones
próprios termos (e não nos termos em que vêm rotulados nos e regras reduziam o escopo criativo das histórias, tolhendo sua
documentos",91 numa representação cujo reconhecimento, capacidade imaginativa e narrativa.
ao · contrário da égide modernista, não se dá tacitamente A questão que se coloca atualmente na hisloriografia
pelos leitores, preparando-os para compreendê-las, visto brasileira parece ser a de que os historiadores insistem
comungarem de uma mesma imaginação histórica pré na manutenção de suas ficções científicas utópicas que
figurativa. Há que se reconhecer, este estranhamento na distopicamente controlam os passados possíveis reduzindo-os
referencialidade que alimenta a ponte entre autores e leitores. a lugares fixados por interpretações mais consagradas, ao passo
Isso permite vislumbrar a imaginação distópica como um
protocolo lingüistico preconceitual que "em virtude de sua 92 Cf. \o\'H!TE, Hayden. Tlle content of the form. Narrative discourse and
natureza essencialmente prefigurativa caracterizável em função historica/ representation. Baltimore: John Hopklns University Press, 1979.
. 93 Apesar disso os historiadores ainda são "pessoas céticas. Para eles cada
do modo tropológico dominante em que será vazado" instaura um deveria guiar-se confiando no seu próprio nariz, como um cão de caça. Eles
uma hisloriografia não mais de grandes certezas ou de trabalhos receiam que, uma vez se deixando distrair por uma teoria, eles passarão seus
modelares, mas uma historiografia pulverizada e segmentada, dias a vagar por um labirinto cognitivo do qual não encontrarão o caminho
que os conduza à saída. A crlticn literária é certamente o pior destes labirintos,
90 SARTRE, Jenn-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Atica, 2004, p. 35. especialmente em sua versão pós-moderna". Ver: HARLAN, David. Jntel/ectual
history and the return of narra tive. American Historical Review, v. 94, n. 3, p.
91 WHITE, H. Meta-história. Op. cit., p. 45, grifos do autor.
..
583, 1989.
62 63
História & Distopia
64 65
História & Distopia
Julio Bentivoglio
66 67
História & Distopia
Julio Bentivoglio
t'tll que o passado é sempre um horizonte, uma travessia. trauma. As experiências-limites enrijecem alguns passados
Nl·m fuiuro, nem passado, nem presente, o passado parece ter que não passam, tornando-os imperativos.104
llCI'dido sua condição à existência nesse presentismo distópico
radical, posto que se torna apenas discurso ou texto, sem direito Esta mutação reconhecida na preemmencia de
:l materialidade. A história pós-moderna oferece mundos ou narrativas literárias distópicas, acompanha uma discreta, mas
visões possíveis do passado a seus leitores sem a preocupação de sensível transfiguração da imaginação histórica ou narrativa no
discutir o status ou a hierarquia de suas representações. Embora Ocidente, em que as distopias ocupam, cada vez mais, espaços
reconhecendo sua historicidade ou o compromisso com a perdidos pelas utopias. Dvido à sua natureza literária, inscrita
verdade, a história não restitui ao passado, nesse momento na atmosfera do tempo em que é confeccionada, a história
distópico, sua condição de lugar fixo. Ele existiu, muitas e seus artefatos literários não atravessariam infensos essas
narrativas foram produzidas nele e sobre ele, contudo hoje o mudanças no plano das expectativas, medos e sentimentos.
passado não mais é conduzido a uma materialidade ou a um A forma das obras históricas tem flertado com esses modelos
sentido pré-determinado que o historiador deverá restabelecer e esses conteúdos distópicos. Isso porque forma e conteúdo
em plenitude, posto que sua existência é vivida textualmente, partem da distopia como um emblema que envolve o passado,
durante o ato da leitura e mediante a construção e atribuição ao contrário do modernismo e sua ficção cientificista da
de significados diversos pelos contemporâneos e pelos história, que de partida, ingenuamente, acreditava encontrar e
historiadores. É como se nós estivéssemos a contar histórias não controlar um passado único ou fixo, preservado em fragmentos
exatatemente uns com os outros, mas uns contra os outros.102 e dividido por opiniões ou relatos contraditórios.
O problema é que confundindo-se os leitores dissolve-se a Se o passado era disputa e tensão, talvez os historiadores
autoridade dos historiadores e seu domínio sobre o passado. não devessem eliminá-los, mas, antes, preservá-los para
E, provavelmente, foi por privilegiar a dimensão o escrutínio dos leitores. E, evidentemente, caso exista
narrativa em lugar da política que a nova história pós alguma solução ou verdade escondida, que ela venha a tona,
moderna viu surgir em torno de si acaloradas resistências e conservando-se a complexidade das vozes e dos eventos na
discussões éticas. O debate, não obstante, tem sido orientado própria narrativa. histórica.
mais por suas implicações ideológicas, éticas ou políticas que Hoje a historiografia reconhece passados plurais - algo
exatamente pela discussão sobre seu caráter estético.103 Em impensável no século 19 -, ou em deslocamento, ela se permite
grande parte o limite do que se pode ou não narrar é dado pelo aceitar deslugares - no qual as disputas de narrativas são
102 CARR, David. Gett'ing lhe story straight: narrative and historical reconhecidas e levadas em consideração, visto expressarem
knowledge. In.: ROBERT, Geon·rey (org.). The history and narrative reader. fragmentos de uma totalidade assustadora sob a qual se
London: Routledge 2001, p. 204.
ressentem de sua capacidade de captar, controlar ou inscrever
,
68 69
História & Distopia
julio Bentivoglio
70
71
Hist6ria & Distopia Julio Bentivoglio
Nenhum intérprete no Brasil, talvez, tenha sido ela valoriza e flerta com a sedução da razão. Mas, enquanto
tão enérgico em sua reação a esta ameaça pós-moderna e as utopias pareciam ser um projeto filosófico-político, as
distópica como Ciro Flamarion Cardoso. Com ele, é possível distopias talvez se insurjam como o momento estético e
vislumbrar o combate à esse monstro distópico, a esse passado ontológico de seu julgamento.
que não mais é tratado como algo inanimado, mas que é posto
a viver no interior da historiografia fruto da imaginação e Não resistindo a exemplificar por meio de uma
da consciência dos historiadores, ganhando vida própria, metáfora, eu diria que se o século 19 representou a primavera
adquirindo suas próprias razões e se insurgindo contra os da história, juvenil e revolucionária, rompendo seus grilhões
próprios historiadores. da literatura e da filosofia; o século 20, por sua vez, trouxe o
verão e outono da história, dias ensolarados, no qual a luz
As distopias literárias conservam, forçoso é reconhecer, da razão amparada pela ciência tudo acelerou e conquistou,
a ilusão de que o indivíduo poderá se libertar, preservando encarcerando os múltiplos passados no intuito de fixá-los em
também uma centelha utópica em muitas de suas criações. representações definidas por contextos consensuais urdidos
Isto porque muitas delas manifestam vislumbres da utopia em metanarrativas orientadas por uma imaginação histórica
e vestígios do modernismo, sobretudo em seu esforço de otimista, científica e utópica que, depois da Segunda Grande
reconhecer a importância do indivíduo ou do sujeito capaz de Guerra deparou-se com a chegada de nuvens pesadas e o
triunfar sobre as adversidades. esfriamento do entusiasmo dos historiadores. Assim, neste
Every utopia always comes with its implied dystopia início do século 21 a história parece ter encontrado seu
whether the dystopia of the status quo, which the utopia is inverno, no qual as sombras da maturidade obscureceram
engineered to address, ora dystopia Jound in the way this algumas certezas e os contornos dos múltiplos passados
specific utopia corrupts itself in practice.105
não podem confundir os olhos envelhecidos e experientes
Poucos romances distópicos escapam desta fantasia dos historiadores, que pareciam examinar pessoas ou fatos
otimista que acredita na vitória individual ou na superação quando na verdade contemplavam fantasmas, trazendo,
do cárcere tecnológico-totalitário. Esta persistência do
·
inconcientemente, à vida espectros narrativos e literários
modernismo segue também na história. Nas distopias, alimentados por monstros epistemológicos ou filosóficos.
contudo, esses sujeitos eram apenas fantasmas sem vida que Desse momento distópico, provavelmente, teremos talvez em
em algum momento despertam e ganham vida. Ou seja, em breve uma nova primavera, com a emergência de um novo ou
vários romances produzidos na segunda metade do século talvez de novos modelos narrativos para contar esse novo tipo
20 as distopias apresentam happy ends. Mas não todos. Não de história.
são poucos os que terminam descrentes com o homem,
denunciando tragédias anunciadas e irreversíveis. Este espírito
conflitante existe também na historiografia atual. Também
105 GORDIN, Michael; TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/
dystopia... op. cit., p. 3.
72 73
\
75
História & Distopia
fulío Bentivoglio
76 77
História & Distopia
Julio Bentivoglio
chamada escola de Frankfurt, em especial, Walter Benjamin científica. Constituía uma ação política no presente. Como
e um de seus atuais intérpretes Giorgio Agamben. A partir de para Karl Marx o comunismo não era uma fantasia, mas
ambos podemos reconhecer que é preciso estabelecer novas o resultado histórico inevitável da evolução econômica, a
teses para a teoria da história do século 21. Parece urgente história científica e o conhecimento do passado era também
ensejar um debate para problematizar os limites da história inevitável no curso do desenvolvimento da pesquisa histórica.
tal como a conhecíamos e o advento de uma nova experiência Para Moylan
com a história. Que talvez exija um novo conceito de história.
Debate que já transparecia nas provocações lançadas à teoria a narrativa distópica é, em grande parte, o produto dos
terrores do séculoXX. Cem anos de exploração, repressão,
da história tanto pelos pós-estruturalistas quanto por filósofos violência estatal, Guerra, genocídio, doença, fome,
analíticos e que se manifestavam em estudos acadêmicos, ecocídio, depressão, dívida e a diminuição constante da
notadamente anglo-saxões, apontando as restrições objetivas humanidade através do sepultamento e da venda da vida
cotidiana forneceram mais do que solo fértil para essa
e as limitações expressivas do conhecimento histórico em
face fictícia da imaginação utópica.'''
um cenário intitulado por muitos como pós-moderno. Esse
entusiasmo não ocorreu no Brasil. Aqui, revelou-se uma Karl Mannheim já havia construído uma sociologia
preocupação severa e uma forte resistência dos historiadores das idéias cujo desenvolvimento da utopia no interior do
em incorporar as novas reflexões epistemológicas que se pensamento moderno teria trilhado quatro momentos
encontravam e ainda se encontram em curso no âmbito da característicos. Seu surgimento se deu no interior do
teoria da história, aficcionados ao regime de cientificidade milenarismo anabatista que promoveu uma espiritualização
modernista e utópico. Esse regime revela fragilidades face da política. Curiso observar que, mais ou menos ao mesmo
às transformações operadas no âmbito dos saberes, e segue tempo, Carl Schmitt havia chegado a conclusão semelhante
alienado do significado efetivo de suas práticas científicas face integrando o pensamento político à teologia. A utopia
ao recurso à narrativa e ao problema da referência do passado. anabatista defendia a renovação da fé e a crença em uma nova
Estes historiadores do passado terão, contudo, que conviver vida de mil anos após o Juízo Final.
cada vez mais com uma situação em que
A segunda forma do pensamento utópico teria sido o
the space ofpolitics is dis-located, dis-placed, yet in such liberalismo burguês com sua ideia liberal humanitária que
a way that this dis-placement simply consists in bringing reivindicava outro reino na terra para já, exigindo a revolução
the poli tical back in to the proximity of its own essence. It
is this movement ofdisplacement/re-placement that I wish
ou a reconstrução do mundo. Este pensamento liberal criou
to evoke in mobilizing the term 'dystopia'}10 seu mundo ideal, cuja pedra de toque pode ser vista na ilusão
do livre mercado.
Este futuro utópico da história era um desejo e um
projeto dos historiadores para fortalecer a defesa da história A terceira manifestação da utopia na modernidade
reside na ideia conservadora, que não tem afeição por
110 BEISTEGUI, Miguel de. Heidegger & the political dystopias. London: 1 1 1 MOYLAN, Thomas Moylan. Scraps of the Untainted Sky: Science
Routledge, 1998, p. 6. Fiction, Utopia, Dystopia. Boulder: Westview Press, 2000, p. XI.
78 79
História & Distopia julio Bentivoglio
nenhuma teoria e que, pragmaticamente, ataca qualquer nova categories that promise great potential in reformulating
ideia que a ameace. Com efeito, os conservadores insistem the ways we conceptualize re/ationships between the past,
sempre naquilo que a realidade sempre é e jamais naquilo que present, andfuture. But what unites these threepoles with
each other? To our mind, the central concept that links
ela deveria ser.112 them requires excavating the "conditions of possibilit)"'
even the "conditions of imaginability"-behind localized
Por fim, a quarta e última forma da utopia foi a socialista
ltistorical moments, an excavation that demands direct
comunista, que para se afirmar teve que submeter a utopia engagement with radical change. After a/1, utopias and
liberal e reduzir os ímpetos da anarquia. dystopias by defi nition seek to a/ter the social arder on a
fundamental, systemic /eve/.113
Mannheim como tantos outros entusiastas utópicos,
contudo, subestimaram as energias que a imaginação distópica Ou seja, buscar nas experiências contemporâneas a
libertaria em suas expressões filosóficas e artísticas. Expressões gênese de wna consciência histórica orientada pela diversidade
do pessimismo desenvolveram-se ao lado do otimismo de perspectivas no plano das idéias e práticas radicalmente
utópico-científico, nos mais variados campos e, entre eles, contraditórias que deixam de reivindicar uma verdade objetiva
no interior da história. Com efeito, a partir do final do século última sobre o mundo, reconhecendo-se como projetos
19 utopia e distopia passaram a disputar a imaginação do distintivos a reinvidicar a realidade que não pretendem
futuro, indicando gradientes de enraizamento e de satisfação destruir ou aniquilar seus opositores, convivendo em tensão
ou insatisfação com o presente. Conhecendo franca expansão permanente, mas não em guerra. No plano da história isso
na literatura, não tardaria muito para que, a partir do último tem produzido grandes desconfortos, pois, de algum modo,
quartel do século 20 a distopia alcançasse a reflexão histórica. muitos historiadores se incomodam com esta pluralidade de
O passado dos historiadores-cientistas ao longo do século 20 representações do passado marcadas pelo que identificam
constituía a promessa do Éden celestial e, tal como os cristãos como liberdades excessivas interpretativas ou expressivas.
primitivos, eles depositavam nesse passado suas energias Defende-se a autonomia da arte, sua pluralidade de discursos,
utópicas. Integrar-se na história, relacionando passado e algo interditado à história, visto existirem imperativos éticos
presente em ambos, criava a euforia de que, no futuro, estariam e morais que a informam desde suas origens gregas, em
redimidos. particular, invocando a sacralidade de seu compromisso com
a verdade. Ainda segundo Gordin [et al],
Utopias e distopias são sempre perspectivas que
iluminaram o presente desde então e, no modo como aqui In our effort to rec/aim utopia and dystopia as analytic
defendo, expressaram leituras particulares do passado. Sua categories of historical inquiry, we place space and time in
the background and think inslead of these phenomena as
compreensão exige, nas palavras de Gordin [et al.]: markersfor conditions ofpossibility, understood in Michel
Foucault's sense.U4
to examine the historical location and conditions of utopia
and dystopia not as terms or genres but as scholarly
113 GORDIN, Michael; TILLEY, Hclcn; PRAKASJ-1, Gyan. Utopia/
112 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, dystopia...Op. cit., p. 2.
p. 186s. 114 Ibidem. p. 4.
80 81
História & Distopia
julio Bentivoglio
82
83
História & Distopia ]ttlio Bentivoglio
história, produziram multifacetadas abordagens. Mobilizaram ao qual penetro num futuro com maior esperança ou
exércitos de pesquisadores hierarquizados, numa intensa desespero, em face das perspectivas que esse movimento
divisão do trabalho historiográfico. Nessa imensa produção, a concebivelmente terá enquanto movimento em direção
a uma meta desejável [ ...] . Se eu conceber o processo
quantidade arvorou-se em realidade, reivindicou a verdade e histórico como espetáculo de degenerescência (e
assumiu o lugar da qualidade analítica ou narrativa. A história conceber o conhecimento histórico como sendo, antes de
tentou divorciar-se da narrativa, da retórica e da imaginação, tudo, conhecimento de um "espetáculo" que desenrola
diante dos olhos do historiador), viverei a história de
como o fez da literatura e da filosofia. Coube à emergência de
modo a acarretar ao processo um fim degenerado [...]
correntes filosóficas recentes estimular a desobediência a estes uma sucessão de chateações [e] agirei de modo a tornar a
modelos e ortodoxias da história. Dos antigos historiadores época em que vivo uma época estática, na qual nenhum
que eram reconhecidos como os mais hábeis, invariavelmente progresso será possível.120
se tratavam de exilados, conforme apontou Reinhart Koselleck,
Teríamos, finalmente, livrado-nos do fardo da história?
chegamos ao momento em que os historiadores mais criativos
Este mais perigoso produto que surgiu da química do intelecto,
têm sido os proscritos, como Hayden White, por exemplo.
conforme sentenciou Paul Valery? Ou estaríamos, novamente,
Apesar disso, retornando ao cárcere da crítica de Northrop Frye e a
urdiduras de enredo pautadas por novos mitos, tramando-as
Agaínst this dystopian tide, the oppositional political
culture of the late J960s and 1970s occasioned a revival of como romances anárquicos e icliográficos? Provavelmente os
distinctly eutopian writing, thefirst major revival since lhe delineamentos arbitrários impostos à operação historiográfica
end ofthe nineteenth century. The imaginative exploration
enquanto ciência ensejaram a formação de diferentes mitos,
ofbetter, rather than worse, placesJound a newform in the
"critica/ utopia". "Criticai", in this sense, incorporates an
dentre eles o par que norteou o surgimento de quase a
Enlightenment sense of critique, a postmodern altitude of totalidade das histórias imaginadas, utopia-distopia, com seus
self-rejlexivity, and the politica/ implication of a "criticai esterores de otimismo e ceticismo diante da historicidade.
mass required to make tlte necessary explosive reaction.119
Seja como for, a reflexão sobre a imaginação histórica no
Que a distopia colocou no centro do debate literário século 21 não pode desprezar as lições da literatura distópica
a falência político-espiritual das energias do modernismo e o quanto ela tem alimentado gerações e gerações de novos
com sua visão otimista do futuro, isto é ponto pacífico. Mas leitores. E conhecer o modo como são urdidos esses novos
reconhecer que o processo histórico possa ser um espetáculo textos e seu impacto na escrita da história indica a pertinência
de degeneração e não de progresso permanente era algo que já de pensarmos, mais uma vez, na complementaridade havida
estava na agenda de Kant. Nas palavras daquele filósofo: entre o nível manifesto das narrativas históricas e sua estrutura
de enredo, ou seja, entre sua epiderme descritiva e factual e
o processo de transição do passado para o presente,
sua dimensão semântica e figurativa mais profunda. Não resta
a forma que imponho às minhas percepções desse
processo, tudo isso proporciona a orientação segund dúvida de que diferentes histórias têm sido confeccionadas a
partir de sentidos disruptivos, reconhecidamente divididos,
l l9 BACCOLINI, Raflaclla c MOYLAN, Tom. Introduction. Dystopia and
histories... Op. cít., p. 2. 120 KANT apud WI-IITE, Hayden. Meta-hisloria.. . Op. cit'., p. 71.
84 85
História & Distopia julio Bentivoglio
opostos e deslocados. Com isso, rompeu-se no cerne da Em que pese os tropos serem limitados, os tipos
história da história, o mito do sentido verdadeiro ou único de figuração do passado são, em última análise, infinitos.
do passado. Transformando o passado retratado nos textos De antiquíssimo gênero da literatura que justificava sua
históricos em algo equivalente ao simulacro, desnuda-se que particularidade e existência na capacidade de retratar fatos
toda história traz, em sua narrativa, uma filosofia implícita da que realmente aconteceram até a Revolução Francesa, os
história, porquanto historiadores passaram a considerar que somente o provável e
[toda] narrativa histórica logra os seus efeitos como o verdadeiro fariam juz às histórias. Representar o real e não
explicação quando revela o sentido mais profundo dos mais o possível ou o imaginável. Ainda seguimos esse protocolo,
eventos que ela descreve através da sua caracterização na contudo, os historiadores dofuturo não podem mais ignorar as
linguagem ligurativa.121
técnicas e dispositivos ficcionais responsáveis pela produção
A importância da imaginação figurativa no contexto de suas narrativas históricas. 123 Forçoso é considerar cada
atual da vida contemporânea e da própria distopia como uma vez mais como os fatos são retratados por meio da narrativa,
força que alimenta leituras, narrativas e ideias, diz muito sobre desiludindo-os de seus antigos mitos de origem do que no o que
as críticas dirigidas à objetividade, à realidade ou ao passado aconteceu. Neste sentido falo do fim deste tipo de história, ou
no interior das histórias. A tradicional orientação científica da ao menos de sua crise. Igualmente proponho que as narrativas
história, com seus métodos rigorosos, técnicas impressionistas históricas que se desenvolvem no presente e se desenvolverão
e teorias modelares não exclui definitivamente a possibilidade no futuro terão suas estruturas de enredo alimentadas por um
de múltiplas representações históricas. Assim, toda história já tipo novo de imaginação histórica, distópica, que interferirá na
é, em si, relativista; mesmo que seus autores não se proclamem prefiguração das estruturas narrativas históricas repensando
relativistas. estratégias de escrita para representar tanto o como quanto o
por que as coisas aconteceram e em que passados, verificando
todo relato do passado sofre a mediação por parte do
seus deslocamentos, e não mais seguindo coordenadas
modo de linguagem em que o historiador molda sua
descrição original do campo histórico antes de qualquer pré-estabelecidas em contextos ou pontos fixos em mapas
análise, explicação ou interpretação que possa oferecer confeccionados pela historiografia tradicional.
dele.
Acompanhando Jablonka, talvez seja o caso de refletir que
O uso de uma linguagem técnica ou de um método de
análise específico, como tal, digamos, a econometria ou a escrita da história não é uma mera técnica (anúncio de um
plano, citações, notas de rodapé), mas também uma eleição.
a psicanálise, não liberta o historiador do determinismo
O investigador se encontra diante de uma possibilidade
lingüístico a que continua escravizado o historiador de escrita. De maneira reciproca, uma possibilidade de
narrativo convencional.122 conhecimento se oferece ao leitor.124
86 87
História & Distopia Julio Bentivoglio
Reconciliar a história com a literatura ou a crítica literária reduzi-la a éticas presentistas.127 Seria, antes de tudo, pensar a
poderá representar um grande avanço para se tentar vazar representação histórica sob novos termos, o que
um novo tipo de história, mais consoante a essa imaginação
não constitui um convite para que revisionistas e
distópica do presente. O que não significa colocarmos como negacionistas sentem à nossa mesa, mas abre nossas
oposição a relação entre ciência e arte, entre razão e imaginação possibilidades de representação de eventos e processos
históricos vários a imaginação poética, politicamente e
ou entre real e irreal. A história jamais se converterá em (sim!) empiricamente mais i nstiga ntes, provocadoras e
fábula ou fantasia.125 Neste cenário pós-moderno, é sabido adequadas àquilo que pensamos ser "real" - a não ser, claro,
que pensemos que o passado e o presente têm a forma de
que contextualizar é uma forma de ficcionalizar um tempo e
nossas escritas da história disciplinadas.128
um espaço, que os conceitos operam como metáforas e que os
atores históricos se convertem em personagens. Um caminho
importante poderia ser a ampliação do espaço de diálogo entre
o autor-historiador e seus leitores, de modo que aquele convite
estes a pensarem sobre suas escolhas, dificuldades, lacunas,
dúvidas, sem as elidir ou as manter nas entrelinhas.
a história é uma p ossibilidade de experimentação literária.
Não se trata unicamente de intriga, como em White, de
escritura como em Certeau ou de narração como em
Ricoeur, expressões que englobam de fato todas as formas
de história, mesmo as mais chatas. Trata-se, sobretudo,
de produzir um texto que seja integralmente literatura
e integralmente ciências sociais, que traga provas em si
por meio de um relato: uma história que é literatura ao
demonstrar, encarnar, não para insuflar vida ou criar
ambientes; uma investigação em que se aprofunda um
problema e não que apresenta resultados dispostos em uma
não-escritura como peixes em um balcão.126
125 JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporân ea, op. 127 ÁVILA, Arthur; NICOLAZZJ, Fernando e TURIN, Rodrigo (org.). A
cit., p. 23. história (in)disciplinada. Vitória: Milfontes, 2019, p. 32s.
126 Ibidem, p. 257-258. 128 Ibidem. p. 43.
88 89
Fyífogo
Este pequeno livro procurou apontar alguns elementos
que tentam diagnosticar uma crise na matriz disciplinar
histórica tradicional, herdada do século 20. Matriz esta que
defendia um estatuto científico para a história, a qual seria
capaz de produzir um conhecimento objetivo a partir de
vestígios deixados pelo passado, reconhecidos e utilizados
como evidências. Aquele saber teria diferentes atribuições e
tarefas, com destaque para sua função orientadora. Acontece
que o ceticismo diante das possibilidades e restrições do
arquivo, abalaram o estatuto das fontes como evidências
ou janelas do passado. A rigor, desde Foucault e Certeau
as fontes foram questionadas em seu caráter monumental.
Ambos acusaram os historiadores de fabricarem seus
documentos, de os inventarern na pesquisa afinal, sem. ,
91
História & Distopia
Julio Bentivoglio
92
93
História & Distopia Julio Bentivoglio
em torno da obra de Hayden White, 136 Louis Mink, Arthur Pensando nas aproximações e nas distinções que a
Danto e Frank Ankersmit. Para Verônica Tozzi narrativa histórica mantém com os textos literários, acredito
Este movimento involucra un fuerte cuestionamiento que o conceito de distopia e a produção de narrativas distópicas
de los presupuestos epistemológicos de la historiografia podem ser bastante úteis para pensarmos os sintomas da crise
"acadêmica" a su concepción representacionalisa del do cronótopo moderno de história, bem como indicar uma
conocimiento histórico, ai ideal de alcanzar el relato
o interpretación verdaderos acerca del pasado y la chave de compreensão para a natureza da história em meio
consideración de la historia como una ciencia.137 ao debate historiográfico contemporâneo. Ou seja, parto
do conceito de distopia para defender a formação de um
Uma das expressões ou sintomas deste mal-estar não novo cronótopo da história, ou ainda de um novo regime
só da modernidade, mas, sobretudo do saber histórico, surgiu de historicidade na qual a relação passado-presente-futuro
primeiramente a partir de alguns estudos que procuravam não apresenta novas configurações e expressões, que colocam
somente revisitar o passado com outros olhos, mas, sobretudo, em xeque a compreensão do conceito de história tradicional
revisar uma historiografia que se colocava como um espelho do e que, atualmente, parece não ser mais dar conta das
real. Exemplo característico disso foram os estudos relacionados realidades e das expectativas existentes na teoria da história. _
com o genocídio dos judeus durante o Nazismo, que procuravam A história moderna padeceria de quatro pecados mortais:
denunciar diferentes construções históricas a respeito daquele reducionismo (tornando a complexidade do real em uma
passado. Tal debate ensejou uma reflexão profunda em torno do estrutura estruturada), funcionalismo (submetendo partes ou
problema da memória e das relações entre memória e história, porções do real a essa estrutura), essencialismo (imaginando
na qual teve lugar de destaque a defesa do direito e do dever que essas estruturas têm uma essência e um conjunto básico
de memória na historiografia francesa.138 Em território anglo de características) e universalismo (pressupondo narrativas
saxão, tanto as denúncias feitas por teóricos afinados à filosofia duráveis).141
analítica como Arthur C. Danto, 139 quanto por seguidores da
filosofia da história de Hayden White como Frank Ankersmit O termo distopia foi usado pela primeira vez num
ou Keith Jenkins, por exemplo, ampliaram o fosso que separa discurso do Parlamento Britânico, em 1868, por Gregg
a realidade do passado, ou o passado prático das construções Webber, mas também por John Stuart Mill, que disse:
narrativas dos historiadores, ou seja, do passado histórico.140 É, provavelmente, muito elogioso chamá-los utópicos;
deveriam em vez disso ser chamados distópicos. O que é
136 Cf. WHITE, Hayden. Meta-historia... Op. cit. comumente chamado utopia é demasiado bom para ser
137 TOZZI, Verónica. E/ debate sobre narratividad en la nueva filosofia praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado
de la historia. In.: BRAUER. Daniel (org.) . La historia desde la teoria. Buenos mau para ser praticável.142
Aires: Prometeo, 2009, p. 25-26.
138 Cf. VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória. Rio de Paulo: Contexto, 1995,2001.
Janeiro: Zahar, 1978.
141 )OYCE, Patrick. The returno ofhistory: postmodernism and the politics
139 DANTO, Arthur C. Historia y narracion. Barcelona: Paidós, 1989. ofacademic History in Britain. Past and Present, n. 158, 1998, p. 18.
140 Cf. WHITE, Hayden. Meta-historia... Op. cit.; ANKERSMIT, Frank. 142 RIEGER, Thomas, RÜSEN, Jõrn [el. a/.]. Thinking utopia: steps into
História e tropologia... Op. cit.; JENKINS, Keith. Repensando a história. São other worlds. New York: Berghahn Books, 2005, p. 114.
94 95
História & Distopia
julio Bentivoglio
Como se vê, ambos utilizavam o termo como um Runner, Planeta dos Macacos ou Oblivion, dentre outros,
antônimo para utopia. Ou seja, distopia seria uma utopia atestam esse mal-estar com o futuro. Promover o deslocamento
negativa, um mau lugar. Observando, contudo a etimologia do desta questão para a história nos leva a constatação de que a
termo e sua relação com o problema da historicidade cheguei análise das distopias e sua denúncia têm servido muito mais
a conclusões diferentes. A distopia não é uma antiutopia, ela é a interesses ideológicos ou políticos que exatamente a clarear
um deslugar, que não se encontra exatamente no futuro, mas, uma importante reflexão sobre questões epistemológicas,
que pode estar em qualquer lugar, inclusive no presente e no éticas e estéticas. Isto nos leva a reconhecer a utilidade que
passado. Ela não seria um espaço desejável ou sonhado, mas estas obras cinematográficas ou literárias distópicas têm para
um mau lugar, de contrariedade e privação. A distopia seria, a teoria da história e a relação que estabelecem com a nova
portanto, a desfiguração da própria possibilidade da utopia. filosofia da história. Em outras palavras, o que elas podem
Para os historiadores, contudo, a distopia reside, sobretudo, nos ensinar sobre as carências de sentido e de orientação do
nas suas projeções sobre o passado. conhecimento histórico atual? Keith Booker define a literatura
Podemos vislumbrar expressões da distopia em distópica como
momentosmaisantigosdopensamentoocidental, emparticular, Briefly, dystopian literature is specifically that literature
associadas ao ceticismo filosófico. Hume ou Montaigne, por which situates itselfin directopposition to utopian thought,
exemplo, expressariam de algum modo a desesperança com waming against the potential negative consequences
of arrant utopianism. At the same time, dystopian
o futuro apresentando imagens de decadência e de ocaso já
lit'erature generally also constitutes a critique of existing
em seus presentes. Paradoxalmente, contudo, os prognósticos social conditions or political systems, either through the
negativos e a ampliação do ceticismo têm caminhado lado a criticai examination of the utopian premises upon which
lado com o crescimento do otimismo em alguns campos do those conditions and systems are based or through the
imaginative extension ofthose conditions and systems into
saber, como a medicina ou a computação. Mas, ao que tudo different contexts that more clearly reveal theirjlaws and
indica, outros campos como a filosofia ou a antropologia, ao contradiction.143
lado çla história, têm vivido discussões internas que expõem
as fragilidades e os limites do conhecimento que produzem. Pensar a distopia como um deslocamento, um percurso
Do mesmo modo as carências de sentido histórico têm sido e um projeto torna-se bastante útil no momento delicado e
preenchidas por curiosidades mais prementes do cotidiano, de crise que atravessam as Ciências Humanas. Um cenário
sendo buscadas no próprio presente, e não exatamente em um de renovação. Para a história, trata-se de um horizonte que
passado distante do qual nem todos se sentem integrados ou se apresenta para desconstruir a compreensão tradicional
atingidos. do passado e um projeto que pensa o futuro da disciplina
reivindicando os muitos passados possíveis. De algum modo,
Expressões de distopias têm sido frequentes na literatura a distopia parece denunciar a falência do Iluminismo. Algo
e também no cinema. Vários livros e fil mes apresentam que já havia surgido, invariavelmente, em diversos textos de
sintomas de descredenciamento da utopia. Livros como
143 BOOKER, M. Keith. Dystopian Literature: a Theory and Research
Guerra dos Mundos, 1984 ou Jogos vorazes e filmes como Blade Cuide. Westport & London: Greenwood Press, 1994, p. 122.
96 97
História & Distopia
julio Bentivoglio
pensadores vinculados à teoria crítica. Benjamin, Marcuse, retratava, realmente como aconteceu. De modo que não é
Horkheimer são distópicos. O campo literário para eles já possível fazer história hoje sem engajamento afetivo e ético.
surgia como dispositivo de análise radical da sociedade, cujo Igualmente se experimentam novas formas para a apresentação
objetivo seria produzir reflexões sobre os efeitos de barbárie da história, fugindo do texto, da tese, do artigo. O caráter
que se manifestavam em determinado tecido social dominado distópico da história atualmente parece acentuar o passado
pelo agir instrumental e pelo totalitarismo. O pensamento e suas distorções intencionais ou não, com múltiplas lentes
distópico se assemelha ao "historiador benjaminlano" descrito e diagnósticos, desertificando-o de seu caráter referencial,
por Olgária Matos, pois se lança a "compreender as esperanças de seus contextos ou de sua referencialidade. A narrativa
irrealizadas".144 histórica acaba por elidir o passado, trabalhando com
As obras distópicas parecem conter um pessimismo ativo, horizontes possíveis tão infinitos quanto ameaçadores. São
muito próximo dos frankfurtianos da primeira geração, como um navio fantasma que se projeta em uma falésia, como
cuj o objetivo é impedir, por todos os meios possíveis, o
sombras que se amplificam e obscurecem o passado prático.
advento do pior (LOWY, 200Sa, p. 24). Ao pôr o futuro
no registro do piorável, e não do melhorável como na Sobre esta história distópica, contudo, paira um anátema, cujo
utopia, as distopias facilmente podem ser confundidas lampejo podemos ver em Charles Peguy em meados de 1914,
como apologias da decadência.145 referindo-se aos historiadores metódicos:
Na distopia, denunciam-se a falência da literatura como On a no té souvent et depuis fort longtemps que les
uma resignação travestida de esperança; acompanhando, sectes religieuses, et à leur imitation les sectes politiques,
pardonnent tout, qu'elles peuvent pardonner l'in.fidélité,
portanto, as palavras de Octavio Paz, afinal, não se trata de l'indifférence, l'hostilité, la guerre, mais qu'elles ne
"oferecer ao paciente remédios", mas, somente de fazer "um pardonneront jamais l'apostasie.147
diagnóstico do seu mal".146
Do mesmo modo que as utopias se vinculam à
E quanto à história produzida atualmente e sua relação modernidade, penso que as distopias se acentuam na pós
com a disto pia? Há a emergência de um conceito de história modernidade, pois ressaltam as tendências negativas operantes
contemporâneo que se diferencia radicalmente do conceito no presente e as projeta no futuro, que parece ameaçador.
moderno. A história, cada vez mais se incorpora a um tipo Mas, a distopia não está no futuro tampouco em sua abertura,
de fruição, visto potencializar experiências subjetivas com visto ela o negar, refugiando-se em presente quase absoluto.
o passado, rompendo com a ilusão de trabalho objetivo que Tal como a história que, embora reivindique para si o passado,
é tão somente um presente que dialoga e recria o passado em
144 MATOS, Olgária. Discretas esperanças. São Paulo: Nova Alexandria, seus próprios termos, em um artefato literário. A história
2006, p. 125.
145 HILÁRIO, Leo mir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como
distópica transfigura o passado e tenta fazer previsões sobre
ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário Literàrio, v. 18, n. 2, ele. A distopia rompe com a relação supostamente antagônica
p. 206, 2013.
146 PAZ, Octavio. O ogro filantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, 147 PEGUY apud HARTOG, François. L'cvidence de l'histoire. Paris:
p. 13.
EflESS, 2005, p.99
98 99
História & Distopia julio Bentivoglio
entre progresso e regresso, como Foucault já havia detectado, O erro daqueles autores, contudo, foi o de destacar que a
colocando em seu lugar a heteronomia. Para Ankersmit história da humanidade atingiria um fim, relacionado com a
O historiador modernista segue uma linha de raciocínio emancipação e a liberdade, a um telos, portanto. A história da
a partir de suas fontes e evidências até uma realidade humanidade pode não ter acabado, mas a disciplina histórica
escondida por trás das fontes. Por outro lado, na visão talvez tenha chegado ao seu cadafalso. Mas, pensa-se aqui
pós-modernista, a evidência não aponta para o passado,
mas para outras interpretações do passado.1.18 no sentido que essa expressão fi m da história teria, como
- -
148 ANKERSMIT, Frank. Historiography aud postmodernism. History & Janeiro: Rocco, 1992.
Thcory, v. 28, n. 2, p. 140, 1989.
150 Cf. DANTO, Arthur. Narration and knowledge. New York: Columbia
149 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de University Press, 1985.
100 101
História & Distopia julio Bentivoglio
passado, visto ele ser mais invenção que lugar. Mas, tal qual a da invenção e sua condição de deslugar, perde-se o sentido
arte, historiadores acreditaram no progresso de seu ofício, de original da história. Chegamos a um estágio em que toda
seu conhecimento e de suas técnicas. Neste sentido, Antoine história surge como um ardil que esconde seu processo de
Compagnon evoca e acompanha Baudelaire em sua crítica à fabricação.
ideia de progresso.151
No século 19, conforme expôs Hegel,
Mas, afinal, aonde estão os limites e a fronteira entre a
as energias da história coincidiram com as energias da
história e o passado? De algum modo, é como se a história
arte, mas agora a história e a arte devem ir em direções
tivesse engolido o passado, usurpando-o. Continuará existindo diferentes e, apesar de a arte continuar podendo existir
desenvolvimento da história, mas não um desenvolvimento no que chamei de um modo pós-histórico, sua existência
essencial, no sentido de encontrar a expressão mais adequada já não porta qualquer significância histórica.153
do passado. Isto nos permite ver que talvez, os franceses do Talvez surja a pós-história: a história depois da história.
final do século 19 e início do 20 tivessem razão em fugir da
No entanto, subsistirá a importância política, mercadológica
filosofia. Parafraseando Danto, a história não se separa de
e profissional da história, como um campo reivindicado para
sua interpretação e de sua própria história, porque as obras
um tipo específico de trabalhador? Seriam somente estes
históricas são internamente relacionadas com as interpretações
interesses que mantém viva a história como um saber e como
que as definem. Pensar que a história possa ser explicada não um ofício específicos? Talvez, as resistências dos historiadores
mais pelo passado ou pelo contexto (que são invenções da
alimentados pela imaginação científica e utópica do passado
imaginação dos historiadores) nos conduz ao fato de que o com sua perspectiva interpretativa e política continuarão a
universo do historiador, seu estado de espírito, sua urdidura
alimentar
do enredo, suas ferramentas analíticas e seu quadro teórico é
que explicam a obra.152 Isto destaca a necessidade premente the reawakening of the imagination of possible and
alternate futures, a reawakening of that historicity which
de mais estudos de história da historiografia. Ao contrário our system-offering itself as the very end of history
da pintura, vale dizer, na história o limite das liberdades necessarily represses and paralyzes.15'1
expressivas conferido aos historiadores é dado pela ética.
Continuará sendo assim? Esperamos que sim. Mas, o Concordando com Arthur Danto, em seu percurso
crescimento de historiografias negacionistas e revisionistas histórico a história alcançou um estágio crítico de cognição,
acendeu o sinal de alerta para os historiadores. defrontando-se com sua possibilidade de redenção, podendo
reconhecer-se, tal como a arte, "como a história das identidades
O que impulsionava o avanço da história era buscar equivocadas da filosofia e de seus fracassos em olhar para si
a realidade do passado, quando se encontra nele o caráter
151 COMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade... Op. 153 DANTO, Arthur. O dcscrcdcnciamcnto filosófico da arte... Op. cit.,
cit., p. 12. p. 122.
!52 DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. . Op. cit.,
.
154 JAMESON, Fredric. Utopia as method, or the uses of the future...
p. 141. Op. cit., p. 42.
102 103
História & Distopia
Julio Bentivoglio
através de si".155 O maior drama da história foi ter sido a divina leitores? Nestas considerações finais, não poderia deixar de
comédia do Espírito, conforme apontou Hegel. A história, remeter-me, mais uma vez, às últimas palavras do monstro
como os demais saberes de Frankenstein que, ao reencontrar seu criador sem vida
se aproximam do zero enquanto a teoria sobre eles confessa seus crimes:
se aproxima do infinito, de modo que praticamente
tudo o que há no final é teoria, tendo a arte finalmente Diante de tanta incompreensão e injustiça, tangido pela
vaporizado num deslumbre de puro pensamento sobre revolta, assassinei criaturas inocentes, que nem mesmo
si mesma permanecendo, de certo modo, apenas como sabiam da minha existência. Lancei meu criador, digno,
objeto de sua própria consciência teórica.156 em todos os sentidos, do amor e admiração dos homens,
aos meandros da mais completa desgraça. Aqui está ele,
Deve-se, contudo reconhecer que o mito da história na brancura e frieza da morte. Por mais execrado que eu
seja, nada iguala o desprezo que sinto por mim mesmo.158
moderna foi muito forte, muito poderoso, pois,
era um mito que subentendia ao mesmo tempo a
Pobre história e historiadores que delimitaram sua
possibilidade de um encadeamento "objetivo" dos tarefa com metas científicas e utopicamente tão ambiciosas,
acontecimentos e das causas, e a possibilidade de um acreditando que no futuro preencheriam de informações o
encadeamento narrativo do discurso. A era da história, se
passado conhecendo-o de forma plena, total e global. Restituir
se pode dizer, é também a era do romance. É este caráter
fabuloso, a energia mítica de um acontecimento e de uma um real, fixando-o em uma verdade superior. Acreditando
narração que parece perder-se cada vez mais.157 ter dado vida ao passado, os historiadores ensejaram notáveis
criaturas, passados indomáveis que ganharam vida própria e
Este ocaso ocorre em um momento bastante fértil de que acabaram por desafiar a própria história e seus especialistas.
gestação capaz de engendrar uma nova história que poderá Vencê-los e superá-los imprimiu a marca da imperativa
superar formas antigas ou tradicionais da história, que necessidade de reescrita sistemática da história. Nessa tarefa, os
conhecerá seu fim efetivo quando desafiar seus sentidos historiadores chegaram bem perto de dominar os segredos da
e suas formas de apresentação mais caros, conhecendo existência humana no tempo, criando e reproduzindo mundos
verdadeiramente sua natureza e seus significados? Já tendo sido e seres desaparecidos. Com isso aproximaram-se do zênite
arte, ciência e combate, a história poderia, inexoravelmente, recôndito, no interior de seu próprio desenvolvimento histórico
direcionar-se a novos desafios, deixando novamente de ser um atingindo as altas e geladas latitudes do conhecimento. Toda a
ente absoluto no singular, para constituir um vasto conjunto de energia dispendida na esperança de realizar seu projeto científico
narrativas no plural, no qual não haverá boas ou más histórias, original congelaram a história em formas tradicionais que agora,
histórias falsas ou verdadeiras, científicas ou diletantes, mas, chocam -se contra poderosas forças de uma consciência histórica
tão somente, histórias, seus produtores, seus críticos e seus distópica que dissolve camadas de histórias, performances e
155 DANTO, Arthur. O dcscrcdcnciamcnto filosófico da arte... Op. cil., p. 148.
textualidades, pondo a nu passados não-visitados e ainda por
156 Ibidem, p. 148. construir, conduzindo a história a novos e inóspitos patamares,
157 BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Lisboa: Editorial 158 SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin Claret, 2010, p.
Estampa, 1991, p. 37. 122.
104 105
Hist6ria & Distopia
provavelmente, o que talvez nós identificamos até hoje como ANKERSMIT, Frank. Narrative logic: a semanlic analysis of the
historian 's language. Hague: Nijhoff, 1983.
história, seja tão somente a história de Heródoto, Tucídides,
Ranke, Mommsen, Jacques Le Gotf, Roger Charthier, entre ANKERSMIT, Frank. História e tropologia. Londrina: Eduel, 2013.
outros; ou seja, aonde enxergamos passado, talvez estejamos ANKERSMIT, Frank. Historiografia e pós- modernismo. Topoi, v. 2, p.
113-135, 2001.
contemplando a face de historiadores e, no pior dos casos,
apenas narrativas construídas sobre um suposto passado real ANKERSMIT, Frank. Narrativismo y teoria historiográfica. Santiago:
Finis Tcrrae, 2013.
e verdadeiro.
ANKERSMIT, Frank. Historiography and postmodernism. History &
Theory, v. 28, n. 2, p. 140, 1989.
A UGÉ, Ma rc. Não-lugares. Campinas: Papirus, 1995.
ÁVILA, Arthur; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo. A história
(in)disciplinada. Vitória: Editora Milfontes, 2019.
\ BACCOLINI, Raffaella e MOYLAN, Tom. Introduction. Dystopia and
� histories. In.: Dark horizons: science fiction and utopian imagination.
\London: Routledge, 2003.
BACZKO, Bronislaw. Lumieres de I ' u topie. Paris: Payot, 1978.
BARTHES, Roland. O rumor da Ungua. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
BARTOSEK, Karel. Les Aveux des archives. Prague-Paris-Prague,
1948-1968. Paris: Le Seuil, 1996.
106 107
História & Distopia julio Bentivoglio
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de quase torno de políticas de uture uture io y sexual. Cuadernos CILHA,
Janeiro: Zahar, 200 l . v. 14, n. 2, p. 85-108,2013.
BOOKER, M . Keith. Dystopian Literature: a Tluory and Research GHOSH, Ranjan; KEINBERG, Ethan. Presence: pllilosophy, hístory
Guide. Westport & London: Greenwood Press, 1994. and cultural theory for the twenty-jirst centu1y. New York: Cornell
� BROWN, Kate. Dispatches from dystopia. Histories ofplaces not yet University Press, 2013.
forgotten. Chicago: University of Chicago Press, 2015. GINZBURG, Carlo. ]ust one witness. In.: FRIEDLANDER, Saul.
CARR, David. Getting the story straight: narrative and historical Probing the limits of representation. Cambridge: Harvard University
knowledge. In.: ROBERT, Geoffrey (org.). The history and narrative Press, 1992.
reader. London: Routledge, 2001. GORDIN, Michael, TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. Utopia/
CARR, David. Tiempo, narativa e historia. Buenos Aires: Prometeo dystopia: conditions of lzistorical possibility. New Jersey: Princeton
Libros, 2015. University Press, 2010.
CÉZAR, Temístocles. Tempo presente e usos do passado. In.: VARELA, GUMBRECTH, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo:
Flávia [et. ai.]. Tempo presente & usos do passado. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.
'\. FGV, 2012. GUMBRECTH, Hans Ulrich. Produção de presença. Rio de Janeiro:
� CHARTIER, Roger. Q11atre Questions à Hayden White. Storia della Contraponto, 2010.
Storiografla, v. 24, p.133-142, 1993. HARLAN, David. Intellectual history and the return of narrative.
CHLADENIUS, Johann Martin. Princípios gerais da ciência histórica. American Historical Review, v. 94, n. 3, 1989.
Campinas: Unicamp, 2013. HARTOG, François. Regimes de historicidade. São Paulo: Autêntica,
COMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade. Belo 2013.
Horizonte: UFMG, 2010. HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como
.\.. COSSON, Rildo e SCHWANTES, Cíntia. Roma nce histórico: as ficções ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário Literário, v.
da história. Itinerários, n. 23, p. 29-37, 2005. 18, 11. 2, p. 201-215,2013.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: Edusp, 2006. HUDDE, Heinrich. De l'utopie à l ' uchronie: formes, sig11ijication,
DANTO, Arthur C. Historia y narracion. Barcelona: Paidós, 1989. fonctions. Tübingen, Narr, 1988).
DANTO, Arthur. Narration and knowledge. New York: Columbia JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporánea.
University Press, 1985. Manifesto por las ciencias sociales. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econômica, 2016.
DANTO, Arthur C. A note on history and narrative. History & Theory,
1967.
""' JAMESON, Fredric. Archeologies of the future: tire desire called utopia
DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. São Paulo:
� and other science jictions. London: Verso, 2005.
JAMESON, Fredric. Utopia as method, or the uses of tire future. In.:
Autêntica, 2014.
GORDIN, Michael, TILLEY, 1-Jelen; PRAKASH, Gyan. Utopia/
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva,
dystopia: conditions of historical possibility. New Jersey: Princeton
1971.
University Press, 2010.
FUKUYAMA, Fran cis. O fim da história e o último homem. Rio de
JENKINS, Keith. A história refigurada. São Paulo: Contexto, 2014.
Janeiro: Rocco, 1992.
JENKINS, Keith. Repensando a história. São Paulo: Contexto, 1995.
GARCIA, Ana María. Los avatares dei utur dis/utópico: Discusiones
108 109
História & Distopia julio Bentivoglio
Theory, n. 33, p. 297-327, 1994. TOPOLSKY, Jerzy. The role oj logic and aesthetics in constructing
LYOTARD, Jean-François. O pós-mode rno. Rio de Janeiro: Zahar, narrative wholes in historiography. History & Theory, v. 38, n. 2, 1989.
\VWW.inventario.ufba.br/04/pdf/mmattos.pdf p.l3. WHITE, Hayden. The content of the form. Narrative discourse and
MINK, Louis. La comprensión histórica. Buenos Aires: Prometeo historical representation.Baltimore: John Hopkins University Press,
Libros, 2015. 1979.
MOYLAN, Thomas Moylan. Scraps of the Untainted S ky: Science vVHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 2002.
Boulder: Westview Press, 2000.
Fiction, Utopia, Dystopia. WHITE, Hayden. The Relevance of Historical Studies: a Reply to Dirk
PAZ, Octavio. O ogro filantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. Moses. History & Theory. v. 44, n. 3 , p. 333-338, 2005.
110 111
�êndlce
Quadro comparativo entre a história utópica e a distópica
113
Este impresso foi composto utilizando-se as famílias tipográficas Miniom Pro
e Aramis.
Sua capa foi impressa em papel Supremo 250g/m2 e seu
miolo em papel pólen soft 80g/m2 medindo 14 x 20 em, com uma
tiragem de 100 exemplares.
� permitida a reprodução parcial desta obra, desde que citada
a fonte c que não seja para qualquer fim comercial.
EDITORA MILPONTES