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Hayden White

Ponta 4

META-HISTÓRIA
A IMAGINAÇÃO HISTÓRICA DO SÉCULO XIX

CSP
Reitor Roberto Leal Lobo e Silva Filho
Vice-reitor Ruy Laurenti

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Presidente João Alexandre Barbosa


Diretor Editorial Plinio Martins Filho
Editor-assistente Manuel da Costa Pinto

Comissão Editorial João Alexandre Barbosa (Presidente)


Celso Lafer
José E. Mindlin
Oswaldo Paulo Forattini
Djahna Mirabclli Redondo Tradução de José Laurênio de Melo
Indicação dc Antônio Dimas,
professor do Dept° dc Letras Clássicas c Vernáculas da USP.

Título do original cm inglês:


Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe

© 1973 by the Johns Hopkins University Prcss

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Só se pode estudar aquilo
White, Hayden. com que primeiro se sonhou.

Meta-História : A Imaginação Histórica do Século XIX/ Hayden White ; Bachelard


[tradução de José Laurénio dc Melo]. - São Paulo: Editora da Universidade de A Psicanálise do Fogo
São Paulo, 1992. (Coleção Ponta; v. 4)

Bibliografia.

ISBN: 85-314-0053-8

1. Europa - História - Historiografia - Século 19 - Teoria I. Título.

92-0109 CDD-907.204

índices para catálogo sistemático:

1. Europa: Historiografia 907.204

Direitos cm língua portuguesa reservados à

Edusp - Editora da Universidade dc São Paulo


Av. Prof. Luciano Gualbcrto, Travessa J, n° 374
6® andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
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TcL: (011) 813-8837/813-3222 r. 2633,2643

Printed in Brazil 1992


SUMARIO

Prefácio........................................................................................................... 11
Introdução: A Poética da História

Parte 1
A TRADIÇÃO RECEBIDA: O ILUMINISMO
E O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
1. A Imaginação Histórica entre a Metáfora e a Ironia................................... 59
2. Hegel: A Poética da História e o Caminho para além da Ironia ... 95

Parte II
QUATRO TIPOS DE “REALISMO”
NA ESCRITA HISTÓRICA DO SÉCULO XÍX
1. Michelet: O Realismo Histórico como Estória Romanesca....................... 147
2. Ranke: O Realismo Histórico como Comédia............................................ 175
3. Tocqueville: O Realismo Histórico como Tragédia................................... 203
4. Burckhardt: O Realismo Histórico como Sátira......................................... 241
PREFÁCIO
Parte III
O REPÚDIO DO “REALISMO” NA FILOSOFIA
DA HISTÓRIA DO FINAL DO SÉCULO XIX

1. A Consciência Histórica e o Renascimento da Filosofia da História 277 2. Marx:


A Defesa Filosófica da História no Modo Metonímico ... 291
3. Nietzsche: A Defesa Poética da História no Modo Metafórico . . . 339
4. Croce: A Defesa Filosófica da História no Modo Irônico........................... 383

Conclusão.............................................................................................................. 433

Bibliografia.......................................................................................................... 443

índice Remissivo................................................................................................... 449

Esta análise da estrutura profunda da imaginação histórica é precedida


por uma introdução metodológica. Ali tento expor, explicitamente e de maneira
sistemática, os princípios interpretativos em que se baseia o trabalho. Enquanto
lia os clássicos do pensamento histórico europeu do século XIX tornou-se para
mim evidente que considerá-los como formas representativas da reflexão histó­
rica pressupunha uma teoria formal do trabalho histórico. Procurei apresentar
tal teoria na introdução.
Nessa teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente é:
uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa. As histórias
(e filosofias da história também) combinam certa quantidade de “dados”,
conceitos teóricos para “explicar” esses dados e uma estrutura narrativa que os
apresenta como um ícone de conjuntos de eventos presumivelmente ocorridos
em tempos passados. Além disso, digo eu, eles comportam um conteúdo
estrutural profundo que é em geral poético e, especificamente, linguístico em
sua natureza, e que faz as vezes do paradigma pré-criticamente aceito daquilo
que deve ser uma explicação eminentemente “histórica”. Esse paradigma fun­
ciona como o elemento “meta-histórico” em todos os trabalhos históricos que
são mais abrangentes em sua amplitude do que a monografia ou o informe de
arquivo.
A terminologia que empreguei para caracterizar os diversos níveis cm que
se desdobra um relato histórico e para construir uma tipologia de estilos
historiográficos talvez se mostre desorientadora. Mas tentei primeiro identificar
as dimensões manifestas - epistemológicas, estéticas e morais - do trabalho
histórico e só depois penetrar até o nível mais profundo em que essas operações
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META-H1STÓRIA 13

teóricas fundam suas sanções pré-críticas implícitas. Ao contrário de outros


leitores, explico na introdução por que a empreguei e o que entendo por suas
analistas da escrita histórica, não suponho que a subcstrutura “meta-histórica”
do trabalho histórico consista nos conceitos teóricos explicitamente utilizados categorias.
Um dos meus intuitos fundamentais, além daquele de identificar e
pelo historiador para dar a suas narrativas o aspecto de uma “explicação”.
interpretar as principais formas de consciência histórica na Europa oitocen­
Acredito que tais conceitos compreendem o nível manifesto do trabalho, visto
tista, é estabelecer os elementos inconfundivelmente poéticos presentes na
que aparecem na “superfície” do texto e podem comumente ser identificados
com relativa facilidade. Distingo, porém, três tipos de estratégias que podem historiografia e na filosofia da história em qualquer época que tenham sido
postos em prática. Diz-se com freqüência que a história é uma mescla de
ser usadas pelos historiadores para alcançar diferentes tipos de “impressão
explicativa”. Chamo, a essas estratégias, explicação por argumentação formal, ciência e arte. Mas, conquanto recentes filósofos analíticos tenham conse­
guido aclarar até que ponto é possível considerar a história como uma
explicação por elaboração de enredo* e explicação por implicação ideológica.
modalidade de ciência, pouquíssima atenção tem sido dada a seus compo­
Dentro de cada uma dessas diferentes estratégias identifico quatro possíveis
nentes artísticos. Através da exposição do solo lingüístico em que se consti­
modos de articulação pelos quais pode o historiador alcançar uma impressão
tuiu uma determinada idéia da história tento estabelecer a natureza
explicativa de tipo específico. Para os argumentos há os modos do formismo, do
inelutavelmente poética do trabalho histórico e especificar o elemento pre-
organicismo, do mecanicismo e do contextualismo; para as elaborações de
figurativo num relato histórico por meio do qual seus conceitos teóricos
enredo há os arquétipos da estória romanesca**, da comédia, da tragédia e da
foram tacitamente sancionados.
sátira; e para a implicação ideológica há as táticas do anarquismo, do conser-
vantismo, do radicalismo e do liberalismo. Uma combinação específica de Assim, postulo quatro modos principais de consciência histórica em
modos constitui o que chamo de “estilo” historiográfico de determinado conseqüência da estratégia prefigurativa (tropológica) que informa cada um
historiador ou filósofo da história. Procurei explicar esse estilo em meus deles: metáfora, sinédoque, metonímia e ironia. Cada um desses modos de
estudos sobre Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt entre os historiado­ consciência proporciona a base para um protocolo lingüístico preciso com que
res, e sobre Hegel, Marx, Nietzsche e Croce entre os filósofos da história, da prefigurar o campo histórico e a partir do qual podem ser empregadas estraté­
Europa do século XIX. gias específicas de interpretação histórica para “explicá-lo”. Afirmo que os
A fim de correlacionar esses diferentes estilos como elementos de uma mestres reconhecidos do pensamento histórico do século XIX podem ser
única tradição do pensamento histórico, fui forçado a postular um nível profun­ compreendidos, e que suas relações mútuas como participantes de uma tradição
do de consciência no qual um pensador da história escolhe as estratégias comum de investigação podem ser confirmadas, pela explicação dos diferentes
conceituais com que irá explicar ou representar seus dados. Nesse nível, acre­ modos tropológicos que lhes inspira e informa o trabalho. Em suma, é minha
dito, o historiador realiza um ato essencialmente poético, em que prefigura o opinião que o modo tropológico dominante e seu concomitante protocolo
campo histórico e o constitui como um domínio no qual é possível aplicar as lingüístico compõem a base irredutivelmente “meta-histórica” de todo trabalho
teorias específicas que utilizará para explicar “o que estava realmente aconte­ histórico. E sustento que esse elemento meta-histórico nas obras dos historia­
cendo” nele. Esse ato de prefiguração pode, por sua vez, assumir certo número de dores magistrais do século XIX constitui as “filosofias da história” que implici­
formas cujos tipos são caracterizáveis pelos modos lingüísticos em que estão tamente mantêm suas obras e sem as quais eles não poderiam ter produzido os
vazados. Seguindo uma tradição de interpretação que remonta a Aristóteles e que, tipos de obras que produziram.
mais recentemente, foi desenvolvido por Vico, pelos lingüistas modernos e pelos Por fim, tento mostrar que as obras dos principais filósofos da história do
teóricos da literatura, dou a esses tipos de prefiguração os nomes dos quatro tropos século XIX (Hegel, Marx, Nietzsche e Croce) só diferem das dos seus homólo­
da linguagem poética: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. Como é gos no que às vezes se denomina “história propriamente dita” (Michelet, Ranke,
bastante provável que essa terminologia seja estranha a muitos dos meus Tocqueville e Burckhardt) quanto à ênfase, não quanto ao conteúdo. O que
permanece implícito nos historiadores é simplesmente levado à superfície c
sistematicamente defendido nas obras dos grandes filósofos da história. Não é
* Emplotment, no original, traduzido aqui quase sempre por “elaboração de enredo". No entanto, para as
acidente o fato de que os principais filósofos da história foram também (ou
formas verbais - to emplot, emplotted, emplotting - utilizou-se. como ponto de partida, a expressão “pôr em posteriormente se descobriu que foram) quintessencialmente filósofos da lin­
enredo”, empregada pelo prof. Luiz Costa Líma para dar conta do termo emplotment ao abordar esta obra guagem. Por isso é que foram capazes de compreender, de modo mais ou menos
de Hayden White em seu livro O Controle do Imaginário (Ia edição. São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 166; 2*.
autoconsciente, os fundamentos poéticos, ou pelo menos lingüísticos, em que
ed, revista ,e ampliada. Rio de Janeiro, Forense Universitária. 1989, p. 166) (N. doT.).
•• Romance, no original. “Estória romanesca” é a lição colhida na tradução do prof. Péricles Eugênio da Silva tiveram suas origens as teorias supostamente “científicas” da historiografia do
Ramos do livro de Northrop Frye. Anatomia da Crítica (São Paulo. Cultrix, 1973). no qual o autor de século XIX. Naturalmente esses filósofos procuraram isentar-se das acusações
Meta-História foi buscar os arquétipos dos modos de elaboração de enredo. Ver. adiante, a introdução (N.
de determinismo lingüístico com que atacavam seus adversários. Mas é inegável,
doT.).
a meu ver, que todos eles entendiam a proposição essencial que tento demons-
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trar: que, em qualquer campo de estudo ainda não reduzido (ou elevado) ao uma rejeição da própria ironia. E terá sido parcialmente desbravado o caminho
estatuto de verdadeira ciência, o pensamento permanece cativo do modo para a reconstituição da história como forma de atividade intelectual que é ao
lingüístico no qual procura apreender o contorno dos objetos que povoam seu mesmo tempo poética, científica e filosófica em suas preocupações - como foi
campo de percepção. durante a idade de ouro da história no século XIX.
As conclusões gerais que extraio do meu estudo da consciência histórica
oitocentista podem ser assim sumariadas: 1) não pode haver “história propria­
mente dita” que não seja ao mesmo tempo “filosofia da história”; 2) os modos
possíveis de historiografia são os mesmos que os modos possíveis de filosofia
especulativa da história; 3) esses modos, por sua vez, são na realidade formali­
zações de intuições poéticas que analiticamente os precedem e que sancionam
as teorias particulares usadas para dar aos relatos históricos a aparência de uma
“explicação”; 4) não há apodicticamente premissas teóricas infalíveis em que
se possa de forma legítima assentar uma justificativa para dizer que um dos
modos é superior aos outros por ser mais “realista”; 5) em conseqüência disso,
estamos irremediavelmente presos a uma escolha entre estratégias interpreta-
tivas opostas em qualquer esforço de refletir sobre a história em geral; 6)
como corolário disso, os melhores fundamentos para escolher uma perspec­
tiva da história em lugar de outra são em última análise antes estéticos ou
morais que epistemológicos; e, finalmente, 7) a exigência de cientificização
da história representa apenas a declaração de uma preferência por uma
modalidade específica de conceptualização histórica, cujas bases são ou
morais ou estéticas, mas cuja justificação epistemológica ainda está por
estabelecer.
Ao apresentar minhas análises das obras dos pensadores históricos
magistrais do século XIX na ordem em que aparecem, procuro sugerir que o
pensamento deles representa a elaboração das possibilidades de prefiguração
tropológica do campo histórico contidas na linguagem poética em geral. O
aproveitamento real dessas possibilidades é, no meu modo de ver, o que
mergulhou o pensar histórico europeu na condição irônica do espírito que o
aprisionou no final do século XIX e que é às vezes chamada dc “crise do
historicismo”. A ironia, cuja forma fenomênica era esta “crise”, continuou
desde então a florescer como o modo dominante da historiografia profissional,
tal como era cultivada nos meios acadêmicos. Isso, creio cu, é o que explica
tanto o torpor teórico dos melhores representantes da moderna historiografia
acadêmica quanto as numerosas rebeliões contra a consciência histórica em
geral, que marcam a literatura, a ciência social e a filosofia do século XX.
Espera-se que o presente estudo elucide as razões desse torpor por um lado e
das rebeliões por outro.
Talvez não passe despercebido que este mesmo livro está vazado num
modo irônico. Mas a ironia que o informa é consciente e portanto representa
uma volta da consciência irônica contra a própria ironia. Se lograr.estabelecer
que o ceticismo e o pessimismo de grande parte do pensar histórico contempo­
râneo têm suas origens numa disposição de espírito irônica, e que esta disposi­
ção dc espírito é por sua vez apenas uma dentre muitas posturas possíveis a
adotar diante do registro histórico, terá proporcionado alguns dos motivos para
INTRODUÇÃO
A POÉTICA DA HISTÓRIA

Este livro é uma história da consciência histórica na Europa do século


XIX, mas também pretende contribuir para a atual discussão do problema do
conhecimento histórico. Como tal, representa não só uma exposição do desen­
volvimento do pensar histórico durante um período específico de sua evolução
mas também uma teoria geral da estrutura daquele modo dc pensamento que
é chamado de “histórico”.
Que significa pensar historicamente e quais são as características incon­
fundíveis de um método especificamente histórico dc investigação? Essas ques­
tões foram debatidas durante todo o século XIX por historiadores, filósofos e
teóricos sociais, mas habitualmente dentro do contexto da suposição de que era
possível lhes dar respostas inequívocas. A “história” era considerada um modo
específico de existência, a “consciência histórica” um modo preciso de pensa­
mento, e o “conhecimento histórico” um domínio autônomo no espectro das
ciências humanas e físicas.
No século XX, porem, as considerações em torno dessas questões se
processam numa atmosfera um pouco menos autoconfiante e em presença de
um receio de que talvez não haja possibilidade de lhes dar respostas definitivas.
Pensadores da Europa continental - dc Valcry c Heidegger a Sartre, Lévi-
Strauss e Michel Foucault - expressaram serias dúvidas sobre o valor de uma
consciência especificamente “histórica”, sublinharam o caráter fictício das
reconstruções históricas e contestaram as pretensões da história a um lugar
entre as ciências1. Ao mesmo tempo, filósofos anglo-americanos produziram

1. Vero meu “TheBurden of History”,//wto»y andTheory, 5, n° 2 (1966): 111-34. em que se estudam as razões
dessa revolta contra a consciência histórica. Quanto a manifestações mais recentes, verCIaude I.évi-Strauss,
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uma alentada bibliografia sobre a posição epistemológica e a função cultural da Meu método é, para dizê-lo numa só palavra, formalista. Não tentarei
reflexão histórica, bibliografia que, tomada em conjunto, justifica intensas decidir se a obra de um determinado historiador é uma descrição melhor, ou
dúvidas acerca do estatuto da história como ciência rigorosa ou arte genuína2. mais correta, de um conjunto definido de eventos ou de um segmento do
Essas duas linhas de investigação tiveram o efeito de criar a impressão de que processo histórico, do que a descrição deles feita por algum outro historiador;
a consciência histórica de que se orgulha o homem ocidental desde o início do ^ocurareij de^r£fej^çiaJdcjlüfic£J3SXomponentes.£sUutxu^isjjc^.as^s-
século XIX talvez não passe de uma base teórica para a posição ideológica a crições.
partir da qual a civilização ociSfentarencara seu relacionamento não só com as No meu entender, esse procedimento justifica a concentração em histo­
cufturase^civnízações que a precederam mas também com as que lhe são riadores e filósofos de desempenho nitidamente clássico, aqueles que ainda
contemporSgãs goJempp e contíguas no espaço3. Em suma, é possível conce­ servem de modelos reconhecidos de modos possíveis de conceber a história:
ber a consciência histórica como um vics_çspçcifica mente ociçfantal capaz de historiadores como Michelct, Ranke, Tocqueville e Burckhardt; e filósofos da
fundamentar retroativamente a presumjd^j^j>erinridadejla.moderna^socieda- história como Hegel, Marx,_Nietzsçhe e.Croce. No exame de tais pensadores
de industrial. discutirei a questão do que representa o enfoque mais correto do estudo
"‘Tífinha própria análise da estrutura profunda da imaginação histórica da histórico. A situação deles como possíveis modelos de representação ou con-
Europa oitocentista pretende oferecer uma nova perspectiva ao debate em ceptualização histórica não depende da natureza dos “dados” que utilizavam
curso a respeito da natureza e função do conhecimento histórico. Ela avança para escorar suas generalizações nem dás teorias que invocavam para explicá-
em dois níveis de investigação. Procura analisar, primeiro, as obras dos mejstres las; depende, isto sim, da consistência, da coerência e do poder iluminador de
reconhecidos da historiografia^ULQpcia dp século XIX e, em segundo lugar, as suas respectivas visões do campo histórico. É por isso que não podem ser
o5Fas'dõsprmapais filósofos da história desse mesmo período. Um objetivo “refutados”, ou ter suas generalizações “desconfirmadas”, quer pelo recurso a
geral é determinar as características de família das diversas concepções do novos dados que poderiam surgir em pesquisa subsequente, quer pela elabora­
processo histórico que efetivamente aparecem nas obras dos narradores clássi­ ção de uma nova teoria para interpretar os conjuntos de eventos que constituem
cos. Outra meta é determinar as várias teorias possíveis mediante as quais foi a seus objetos de representação e análise. A situação deles como modelos de
reflexão histórica justificada pelos filósofos da história daquele tempo. A fim narração e conceptualização histórica depende, em última análise, da natureza
de alcançar esses alvos, considerarei o labor histórico como o que ele manifes­
tamente é, a saber: uma estrutura verbal na forma^del un^discurso narrativo em tradição neopositívista (e anti-hegeliana) representada da maneira mais conspícua por Karl Popper. Mas as
prosa que pretende serumnSSel^ou ícone, de estruturas e processos passados duas obras abordam um problema comum, isto é, a natureza da representação “realista”, que é o problema
no mteressieSegqp/ícflro que eram representando-os\ colocado para a moderna historiografia. Nem um nem outro, porém, trata da análise do conceito crucial de
representação histórica, muito embora ambos tomem o que se poderia denominar “senso histórico” como
um aspecto centra Ido “realismo" nas artes. Eu. decerto modo, inverti a formulação deles. Eles perguntam:
The Savage Mind(Londres, 1966). pp. 257-62; e Idem, “Overture to leCru et leCuit", em Jacques Ehrmann quais sáo os componentes “históricos" de uma arte “realista”? Eu pergunto: quais são os elementos
(Org.), Structuralism (Nova York, 1966), pp. 47-48. Consultem-se também duas obras de Míchel Foucault: “artísticos" de uma historiografia “realista”? Ao procurar responder a esta última pergunta, vali-me
The OrderofThingszAnArcheology oflhe Human Sciences (Nova York, 1971). pp. 259 e ss., e LArchéologie intensamente de dois teóricos da literatura cujas obras representam sistemas filosóficos virtuais: Norlhrop
du savoir (Paris, 1969), pp. 264 e ss. Frye, The Anatomy of Criticism: Four Essays (Princeton, 1957 [Anatomia da Crítica, tradução de Péricles
2 A substância desse debate foi competentemente resumida por Louis O. Mink, “Philosophical Analysis and Eugênio da Silva Ramos; São Paulo, Cultrix, 1973)); e Kenneth Burke.J Grammar ofMotives (Berkeley e
Historical Understanding”, Review of Metaphysics, 21, n° 4 (jun., 1968): 667-98. Quase todas as posições Los Angeles, 1969). Também me beneficiou a leitura dos críticos estruturalistas franceses: Lucien Gold-
assumidas pelos principais participantes do debate estão representadas William H. Dray (Org.), em mann, Roland Barthes, Michel Foucault e Jacques Derrida. Gostaria de assinalar, porém, que estes últimos
Philosophical Analysis and History (Nova York, 1966). me parecem, em geral, cativos de estratégias tropológicas de interpretação do mesmo modo que seus
3. Ver Foucault, The Order of Things, pp. 367-73. homólogos do século XIX. Foucault, por exemplo, não parece estar consciente de que as categorias que usa
4. É claro que aqui estou na iminência de abordar o debatidíssimo problema da moderna critica literária para analisar a história das ciências humanas são pouco mais do que formalizações dos tropos. Frisei isto
(ocidental), o problema da representação literária “realista”. Para uma explanação do problema, ver René em meu ensaio “Foucault Decoded: Notes from Underground”. History and Theory, 12, n° 1 (1973): 23-54.
Wellek, Concepts of Criticism (New Haven e Londres, 1963), pp. 221-55. De maneira geral, meu modo de Em minha opinião, toda a discussão sobre a natureza do “realismo” em literatura se embaralha na
encarar o problema, tal como ele aparece dentro do contexto da historiografia, segue o exemplo de Erich incapacidade de estabelecer criticamente em que consiste uma concepção genuinamente histórica da
Auerbach, Mimesis: The Representation of Reality irt Western Literature (Princeton. 1968). Toda a questão da “realidade". A tática habitual é pôr o “histórico” em confronto com o “mítico”, como se aquele fosse
representação “fictícia” da “realidade” foi tratada em profundidade, com especial referência às artes visuais, puramente empírico e este não fosse senão conceptual, e em seguida localizar o reino do “fictício” entre os
em E. H. Gombrich, Ari and Jllusion.A Study in lhe Psychology of Piclorial Representation (I>ondres e Nova dois pólos. A literatura é portanto vista como sendo mais ou menos realista, dependendo da proporção de
York, 1960). O próprio Gombrich vai descobrira origem do realismo pictórico da arte ocidental na tentativa elementos empíricos para elementos conceptuais contida dentro dela. Tal é, por exemplo, a tática de Frye,
dos artistas gregos de traduzirem termos visuais as técnicas narrativas dos autores de textos épicos, trágicos bem como de Auerbach e Gombrich. embora se deva notar que Frye pelo menos considerou o problema
e históricos. O capítulo 4 àeArt and Ulusion, sobre as diferenças entre a sobredeterminação conceptual da num ensaio sugestivo, "New Directions from Old”, em Fabies of Identity (Nova York, 1963). que trata das
arte do Oriente Próximo, orientada para o mito, e a arte narrativa, antimítica, dos gregos, pode ser relações entre história, mito e filosofia da história. Dos filósofos que lidaram com o elemento “fictício” na
provei tosa mente cotejado com o famoso capítulo de abertura da Mimesis de Auerbach, que justapõe os narrativa histórica, achei mais úteis os seguintes: W. B. Gallíe. Philosophy and the Historical Understanding
estilos de narrativa encontrados no Pentateuco e em Homero. É dispensável dizer que as duas análises da (Nova York, 1968); ArthurC. Danlo.Analytical Philosophy of History (Cambridge. 1965) & Louis O. Mink,
carreira do “realismo” na arte ocidental propostas por Auerbach e Gombrich diferem muito. O estudo de “The Autonomy of Historical Understanding”, em Dray (Org.). Philosophical Analysis and History, esp. pp.
Auerbach é hegeliano sob todos os aspectos e apocalíptico no tom, enquanto Gombrich trabalha dentro da 179-86.
20 HAYDENWHJTE

META-HISTÓRIA 21
preconceptual e especificamente poética de suas perspectivas da história e seus
processos. Tudo isto admito como justificação de um enfoqpe fnrmalktx-do A TEORIA DA OBRA HISTÓRICA
estudo da reflexão histórica no século XIX.,
Isso posto, porém, fica evidente de imediato que as obras produzidas por
Começo por distinguir os seguintes níveis de çonceptualizaçãq na obra
esses pensadores representam concepções alternativas, e ao que tudo indica
histórica: 1) crônica; 2) estória; 3) jnodo de elaboraçãodeenred^4yr^do"de
mutuamente exclusivas, não só dos mesmos segmentos do processo histórico
argumentação; e 5jjhòdô de implicação ideológica. Entendo que a “crônica” e
mas também das tarefas da refleMQJÚstóriça^Çjinsideradas^uramente como
a^estória” remetem a “elementos primitivos” do relato histórico, mas ambas
estruturas verbais, as obras por e.lçs .produzida parecem. ter características
representam processos de seleção e arranjo de dados extraídos do registro
Tôrmais radicalmentedjfexcuto.e-arranjai ojpag-atp conceptual, usado para histórico não pr^SJS^l^nteresse de Fórharesse registro mais compreensível
explicar os mesmos conjuntos de dados, de maneiras fundamentaimente dife-
para um público de determinado tipo. Assim concebida, apbj^hi^tc^içaj;epxp-
rentes. No nível mais superficial, por exemplo, a obra de um historiador pode
senta uma tentativa de mediarão entre o que eu chamarei de-C^^. (tf^órico,
ser diacrônica ou processional por natureza (salientando o fato da mudança e 0 nao'PTtoróriçoj e um público.
transformação no processo histórico), ao passo que a de outro pode ser sincrô-
nica ou estática na forma (acentuando o fato da continuidade estrutural). Por Ém primeiro lugar os elementos do campo histórico são organizados
outro lado, enquanto um historiador pode entender que é sua tarefa reevocar,
de maneira lírica ou poética, o “espírito” de uma época passada, outro pode temRorayg^^
presumir que lhe cabe sondar o que há por trás dos acontecimentos a fim de postmor^nAÍafe eventos J^pmpon^
revelar as “leis” ou os “princípios” de que o “espírito” de uma determinada de^acontecimento, que, sçgundg^se pensa, possuj çpmeço, mgiq^fim
vms/Essa transformação da crônica em estória é efetuada pela caracterização
época é apenas uma manifestação ou forma fenomênica. Ou, para registrar uma
de alguns eventos da crônica em função de motivos iniciais, de outros em função
outra diferença fundamental, alguns historiadores concebem sua obra primor­
de motivos conclusivos, e de ainda outros em função de motivos de transição.
dialmente como uma contribuição para a iluminação de problemas e conflitos
Um evento simplesmente registrado como tendo ocorrido num certo tempo e
sociais existentes, enquanto outros se inclinam para suprimir tais preocupações
lugar é transformado num evento inicial por sua caracterização como tal: “O rei
presentistas e tentam determinar em que medida um dado período do passado
foi a Westminster em 3 de junho de 1321. Lá ocorreu o funesto encontro entre
difere do seu, no que parece ser um estado de espírito bem próximo daquele do
o rei e o homem que iria finalmcnte desafiá-lo em disputa pelo trono, se bem
“antiquário”.
que na ocasião os dois homens parecessem destinados a tornar-se os melhores
Em poucas palavras, consideradas exclusivamente como estruturas ver­
amigos”. Um motivo de transição, por outro lado, sinaliza ao leitor para que
bais e formais, as histórias produzidas pelos historiadores mestres do século suspenda temporariamente suas expectativas acerca da significação dos acon­
XIX exibem concepções radicãlmente diferentes daquilo em que deveria con­
tecimentos nele contidos até que seja fornecido algum motivo conclusivo:
sistir “a obra histórica”. A fim, portanto, de identificar as-xaracterístjcasde “Enquanto viajava para Westminster, o rei foi informado por seus conselheiros
família dos diversos tipos de reflexão histónça produzidos pelo século XIX, é de que ali o esperavam seus inimigos e que as possibilidades de um acordo
necessário em primeiro lugar esclarecer em que poderia consistir a estrutura vantajoso para a coroa eram escassas”. Um motivo conclusivo indica o fim ou
típico-ideal da “obra histórica”. Uma vez elaborada essa estrutura típico-ideal, resolução visível de um processo ou situação de tensão: “A 6 de abril de 1333
disporei de um critério para determinar que aspectos de qualquer obra histórica travou-se a Batalha de Balybourne. As forças do rei foram vitoriosas, os rebel­
ou filosofia dajiistóriaj:pnhecida devem ser considerados no afã de identificar des, derrotados. O resultante Tratado de Howth Castle, de 7 de junho de 1333,
seus elementos estruturais Em seguida, reconstituindo as transfor­ trouxe paz ao reino - muito embora viesse a ser uma paz difícil, consumida nas
mações operadas nos modos pelos quais os pensadores da história caracterizam chamas das lutas religiosas sete anos depois”. Quando um dado conjunto de
aqueles elementos e os arranjam numa ordem narrativa específica para chegar eventos é posto num código de motivos, o leitor tem diante de si uma estória; a
a uma “impressão explicativa”, devo ter condições de cartografar as mutações crônica de eventos transforma-se num processo diacrônico concluído, a respeito
fundamentais ocorridas na estrutura profunda da imaginação histórica referen­ do qual é possível então fazer perguntas como se se estivesse lidando com uma
te ao período em estudo. Isto, por sua vez, permitirá caracterizar os diferentes estrutura sincrônica de relações5.
pensadores da história do período em função da posição por eles partilhada
enquanto participantes de um universo de discurso característico, dentro do 5. As distinções entre crônica, estória e enredo que tentei expor nesta seção talvez tenham mais valia para a
qual eram possíveis diferentes “estilos” de reflexão histórica. análise de trabalhos históricos do que para o estudo de ficções literárias. Ao contrário de ficções literárias
comoo romance, as obras históricas são feitas de acontecimentos que existem fora da consciência do escritor.
Os acontecimentos relatados num romance podem ser inventados de um modo que não podem ser (ou não
devem ser) inventados numa história. Isso dificulta a distinção entre a crônica de eventos e a estória contada
numa ficção literária. Em certo sentido, a “estória" contada num romance como os Buddenbrooks de Mann
é indistinguível da “crônica” dos acontecimentos relatados na obra, muito embora possamos distinguir entre
META-HISTÔRIA 23
22 HAYDENWWTE

As estórias históricas reconstituem as sequências de eventos que condu­ “identificadas” ou “descobertas” na crônica. Podem ser respondidas de várias
zem dos inícios aos términos (provisórios) de processos sociais e culturais, de maneiras. Chamo essas maneiras de explicação por elaboração de enredo,
um modo que as crônicas não são obrigadas a fazer. A rigor, as crônicas têm explicação por argumentação e explicação por implicação ideológica.
finais em aberto. Em princípio não têm inícios; simplesmente “começam”
quando o cronista passa a registrar os eventos. E não têm pontos culminantes
nem resoluções; podem continuar indefinidamente. As estórias, porém, têm EXPLICAÇÃO POR ELABORAÇÃO DE ENREDO
uma forma discernível (mesmo quando essa forma é a imagem de um estado de
caos) que separa os eventos nelas contidos dos outros eventos que poderiam Prover o “sentido” de uma estória através da identificação da modalidade
aparecer numa crônica abrangente dos anos cobertos em seus desdobramentos. de estória quefoi contada é o que se chama explicação por elaboração de enredo.
Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado através Se, ao narrar sua estória, o historiador lhe deu a estrutura de enredo de uma
do “achado”, da “identificação” ou “descoberta” das “estórias” que jazem tragédia, ele a “explicou” de uma maneira; se a estruturou como uma comédia,
enterradas nas crônicas; e que a diferença entre “história” e “ficção” reside no ele a “explicou” de outra maríeira/A elaboração de enredo é a via pela qual
fato de que o historiador “acha” suas estórias^ ao passo que o ficcionista uma seqüência de eventos modelados numa estória gradativamente se revela
“inventa” as suas Essa concepção ^a tarefa do fiístoriádor, porém, obscurece como sendo uma estória de um tipo determinado.
o graTB^ftinvgnção” que também desempenha um papel nas operações do Seguindo a direção indicada por Northrop Frye em seu Anatomy of
historiador/Õ mesmo evento pode ser útil como um tipo diferente de elemento Criticism, identifico pelo menos quatro modos de elaboração de enredo: a
dFmuitas estórias históricas diferentes, dependendo da função que lhe é estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira. Pode haver outros, como o
atribuída numa caracterização motívica específica do conjunto a que ele per­ épico, e é provável que um determinado relato histórico contenha estórias
tence. A morte do rei pode ser um começo, um final, ou simplesmente um evento vazadas num modo como aspectos ou fases do conjunto inteiro de estórias
de transição em três estórias diferentes. Na crônica este evento está simples­ postas em enredo de outro modo. Mas um historiador qualquer é forçado a pôr
mente “ali”, como um elemento de uma série; não “funciona” como um elemen­ em enredo todo o conjunto de estórias que compõem sua narrativa, enredo que
to de estória. O historiador arranja os eventos da crônica dentro de uma assume uma forma de estória abrangente ou arquetípica. Por exemplo, Miçhelçt
hierarquia de significação ao atribuir aos eventos funções diferentes como vazou todas as suas histórias no modo romanesco, Ranke vazou as suas no modo
elementos da estória, de maneira a revelar a coerência formal de um conjunto ^coTmccTTocqueville utilizou7o^m^^?ágFcõT Burckhardt usou a sátira. A
completo de eventos como um processo compreensível, com princípio, meio e estrutura épicrde^enrêdorpTrece ser a forma implícita da própria crônica. A
fim discerníveis. questão importante é que toda história, mesmo a mais “sincrônica” ou “estru­
O arranjo de eventos selecionados da crônica no interior de uma estória tural”, há de ser posta em enredo de alguma maneira. O modo satírico forneceu
suscita os tipos de questões que o historiador deve prever e responder no curso os princípios formais pelos quais a historiografia supostamente “não-narrativa”
da construção de sua narrativa. As questões são desta ordem: “Que aconteceu dc Burckhardt pode ser identificada como uma “estória” de tipo especial. Pois,
depois?” “Como isso aconteceu?” “Por que as coisas aconteceram desse modo como mostrou Frye, as estórias vazadas no modo irônico, do qual a sátira é a
e não daquele?” “Em que deu no final tudo isso?” Essas perguntas determinam forma ficcional, alcançam seus efeitos precisamente ao frustrar as expectativas
as táticas narrativas que cabe ao historiador empregar na construção dc sua normais acerca dos tipos de resoluções proporcionados por estórias vazadas em
estória. Mas tais perguntas acerca das conexões entre dois eventos, que os outros modos (estória romanesca, comedia ou tragédia, conforme o caso)6.
transformam em elementos de uma estória seguível, devem ser diferenciadas dc
perguntas de outro tipo: “Que significa tudo isso?” “Qual a finalidade disso 6. Estou consciente de que, ao empregar a terminologia e a classificação de estruturas de enredo de Frye. me
tudo?” Essas perguntas têm a ver com a estrutura do conjunto inteiro de eventos exponho à crítica daqueles teóricos de literatura que ou se opõem aos esforços taxonômicos de Frye ou têm
considerado como uma estória concluída e reclamam um juízo sinóptico da suas próprias taxonomias a propor no lugar da dele. Não desejo dar a entender que as categorias de Frye
sãoas únicas possíveis para classificar gêneros, modos, mythoi etc., em literatura; mas achei-as especialmenle
relação entre uma dada estória e outras estórias que poderiam scr “achadas”,
úteis para a análise das obras históricas. A principal crítica à teoria literária de Frye parece ser que. embora
seu método de análise funcione bastante bem nos gêneros literários de segunda ordem, como o conto de
fadas ou a novela policial, é ele demasiado rígido e abstrato para fazer justiça a obras de tão rica textura e
a “estória-crônica” e o “enredo” (que é o de uma tragédia irônica). Diversamente do romancista, o
tantos níveis como Rei Lear, Em Busca do Tempo Perdido ou mesmo O Paraíso Perdido. Talvez isto seja
historiador defronta com um verdadeiro caos de acontecimentos já constituídos, dos quais há de escolher os
verdade; provavelmente é. Mas a análise de Frye das principais formas de literatura mítica e fabulosa serve
elementos da estória que vai contar. Realiza sua estória mediante a inclusão de alguns acontecimentos e a
muito bem para a explicação das formas simples de elaboração de enredo encontradas em formas de arte
exclusão de outros, realçando alguns e subordinando outros. Esse processo de exclusão, realce e subordina­
“limitadas”como a historiografia. As “estórias” históricas tendem a incluir-se nas categorias elaboradas por
ção é levado a cabo no interesse de constituir uma estória de tipo particular. Isto é. o historiador "põe em
Frye precisamente porque o historiador resiste à construção das peripécias complexas que constituem o
enredo” sua estória. Sobre a distinção entre estória e enredo, ver os ensaios de Shklovsky. Eichenbaum e
fundo de comércio do romancista e do dramaturgo. Exatamente porque o historiador não está (ou pretende
Tomachevsky, representantes da escola formalista russa, em LeeT. Lemon & Marion J. Reis (Orgs), Russian
não estar) contando a estória “pela estória”, inclina-se ele por colocar suas estórias em enredo segundo as
Formalist Criticism: Four Essays (Lincoln, Neb., 1965); e Frye, Anatomy, pp. 52-53. 78-84.
24 UAYDEN WUITE META-HISTÓRIA 25

A estória romanesca é fim^msnfcalmpnte» um„dtamaJe auto-identifica­ condição da sociedade é então representada como sendo mais pura, mais sã e
ção simbolizado pela apticffo'do herói para transcender o mundo da experiên­ mais sadia em conseqüência do conflito entre elementos do mundo aparente­
cia, vencê-lo e libertar-se dele no final - o tipo de drama associado à lenda do mente opostos de forma inalterável; estes elementos revelam-se, no fim de
Graal ou à estória da ressurreição de Cristo na mitologia cristã.É um drama do contas, harmonizáveis uns com os outros, unificados, concordes consigo mes­
triunfo do bem sobre o mal, da virtude sobre o vício, da luz sobre a treva, e da mos e com os outros. As reconciliações que ocorrem no final da tragédia são
transcendência úítima do homem sobre o mundo em que foi aprisionado pela muito mais sombrias; têm mais o caráter de resignações dos homens com as
Queda. O tema arquetípico da sátira é o exato oposto desse drama romanesco condições em que devem labutar no mundo. Essas condições, por sua vez, se
da redenção; é de fato um drama da disjunção, drama dominado pelo temor de declaram inalteráveis e eternas, implicando que ao homem não é possível
que o homem é essencialmente um cativo do mundo, e não seu senhor, e pelo mudá-las mas que lhe cumpre agir dentro delas. Impõem limites quanto ao que
reconhecimento de que, em última análise, a consciência e a vontade humanas se pode aspirar e ao que se pode legitimamente visar na busca de segurança e
são sempre inadequadas para a tarefa de sobrepujar em definitivo a força equilíbrio no mundo.
obscura da morte, que é o inimigo infatigável do homem. A estória romanesca e a sátira seriam, aparentemente, meios mutuamente
A comédia e a tragédia, porém, sugerem a possibilidade de libertação, ao exclusivos de pôr em enredo os processos da realidade. A noção mesma de sátira
menos parcial, da condição da Queda, e de alívio provisório do estado dividido romanesca representa uma contradição. Posso legitimamente imaginar uma
em que os homens se acham neste mundo. Mas essas vitórias provisórias são estória romanesca satírica, mas o que eu entenderia por essa expressão seria
concebidas dessemelhantemente nos arquétipos míticos de que as estruturas de uma forma de representação destinada a expor, de um ponto de vista irônico, a
enredo da comédia e da tragédia são formas sublimadas. Na comédia, a espe­ fatuidade de uma concepção romanesca do mundo. Mas, por outro lado, porco
rança do temporário triunfo do homem sobre seu mundo é oferecida pela falar de uma sátira cômica e de uma comédia satírica, ou de uma tragédia satírica
perspectiva de reconciliações ocasionais das forças em jogo nos mundos social e de uma sátira trágica. Mas cabe notar aqui que a relação entre o gênero
e natural. Tais reconciliações são simbolizadas nas ocasiões festivas de que se (tragédia ou comédia) e o modo em que ele é vazado (satírico) é diferente
vale tradicionalmente o autor cômico para terminar seus relatos dramáticos de daquela que prevalece entre o gênero da estória romanesca e os modos (cômico
mudança e transformação. Na tragédia não há ocasiões festivas, salvo as falsas e trágico) em que ele pode ser vazado. Comédia e tragédia representam
ou ilusórias; pelo contrário, há sugestões de estados de divisão entre os homens restrições à percepção romanesca do mundo, considerada como um processo,
ainda mais terríveis do que aquele que incitou o trágico agon no início do drama. no interesse de levar a sério as forças que se opõem ao esforço de redenção
Todavia, a queda do protagonista e o abalo do mundo que ele habita ocorridos humana ingenuamente sustentado como uma possibilidade para a humanidade
no final da peça trágica não são considerados ameaçadores para aqueles que na estória romanesca. A comédia e a tragédia levam o conflito a sério, mesmo
sobrevivem à prova agônica. Para os espectadores da luta houve uma aquisição que aquela resulte numa visão da ulterior reconciliação de forças opostas e esta
de conhecimento. E pensa-se que essa aquisição consiste na epifania da lei numa revelação da natureza das forças que se opõem ao homem. E é possível,
regedora da existência humana que a pugna vigorosa do protagonista contra o para o autor romanesco, assimilar as verdades da existência humana reveladas
mundo produziu. respectivamente na comédia e na tragédia dentro da estrutura do drama de
As reconciliações que acontecem no final da comédia são reconciliações redenção que ele imagina em sua visão da vitória final do homem sobre o mundo
dos homens com os homens, dos homens com seu mundo e sua sociedade; a da experiência.
Mas a sátira representa uma espécie diferente de restrição às esperanças,
possibilidades e verdades da existência humana reveladas na estória romanesca,
formas mais convencionais - como o conto de fadas ou a novela policial por um lado, ou como estória na comédia e na tragédia respectivamente. Ela observa essas esperanças, pos­
romanesca, comédia, tragédia ou sátira por outro. sibilidades e verdades ironicamente, na atmosfera gerada pela percepção da
Talvez importe lembrar que o historiador oitocentista de formação regular teria sido criado numa dieta de inadequação última da consciência para viver feliz no mundo ou compreendê-lo
literatura clássica e cristã. Os mylhoi contidos nessa literatura lhe teriam fornecido um fundo de formas de
estória a que poderia recorrer para fins narrativos. Seria um equívoco, porém, supor que mesmo um plenamente. A sátira pressupõe a inadequação última das visões do mundo
historiador tão sutil comoTocqueville fosse capaz de adaptar essas formas de estórias aos tipos de desígnios dramaticamente representadas tanto no gênero da estória romanesca quanto
que um grande poeta como Racine ou Shakespeare conceberia. Quando historiadores como Burckhardt, nos gêneros da comédia e da tragédia. Como fase na evolução de um estilo
Marx, Michelet e Ranke falavam de “tragédia” ou “comédia" tinham geralmente uma noção muito simples
do que significam esses termos. Era diferente no caso de Hegel. Nietzsche e (em menor extensão) Croce.
artístico ou de uma tradição literária, o advento do modo satírico de represen­
Como especialistas em estética, esses três filósofos tinham uma concepção muito mais complexa de gênero tação assinala uma convicção de que o mundo envelheceu. Como a própria
e consequentemente escreviam histórias muito mais complexas. Os historiadores em geral, por mais críticos filosofia, a sátira “pinta seu cinzento sobre cinzento” na compreensão de sua
que sejam de suas fontes, tendem a ser ingênuos contadores de histórias. Quanto à caracterização das própria inadequação como imagem da realidade. Portanto prepara a consciên­
estruturas básicas de enredo proposta por Frye. ver Anatomy, pp. 158-238. Acerca de Frye. ver Geoffrey
Hartman, “Ghostlier Demarcations: The Sweet Science of Northrop Frye", em Beyond Formalism: Lilerary cia para seu repúdio de todas as conceptualizações rebuscadas do mundo e
Essays, 1958-1970 (New Haven e Londres, 1971), pp. 24-41. antevê um retorno e uma percepção mítica do mundo e seus processos.
26 HAYDEN WHITE META HISTÓRIA 27

Essas quatro formas arquetípicas de estória oferecem-nos um meio de (composta pelos meios de produção e pelos modos de relação entre eles) haverá
caracterizar as diferentes modalidades de impressões explicativas que um transformação nos componentes da Superestrutura (instituições sociais e cul­
historiador pode buscar no nível da elaboração do enredo narrativo. E permi­ turais), mas que a relação inversa não prevalece (por exemplo, mutações na
te-nos distinguir entre narrativas diacrônicas, ou processionais, do tipo produ­ consciência não operam mutações na Base). Outros exemplos de leis putativas
zido por Michelet e Ranke e as narrativas sincrônicas, ou estáticas, escritas por (como “A moeda má expulsa a boa” ou mesmo uma observação banal como
Tocqueville e Burckhardt. Nas primeiras o senso de transformação estrutural é “Tudo o que sobe deve cair”) são em geral pelo menos tacitamente invocados
predominante como a principal representação orientadora. Nas segundas, o no curso dos esforços feitos pelo historiador para explicar um fenômeno como,
senso de continuidade estrutural (especialmente em Tocqueville) ou estase digamos, a Grande Depressão ou a Queda do Império Romano. O bom senso
(Burckhardt) predomina. Mas a distinção entre uma representação sincrônica ou convencionalismo dessas últimas generalizações não lhes afeta o estatuto de
e uma representação diacrônica da realidade histórica não deve ser tomada supostas premissas maiores de argumentos nomológico-dedulivos graças aos
como indicadora de métodos mutuamente exclusivos de pôr em enredo o campo quais se oferecem explicações de eventos fornecidos na estória. A natureza das
histórico. Essa distinção aponta apenas para uma diferença de ênfase no generalizações apenas aponta para o caráter protocientífico da explicação
tratamento da relação entre continuidade e mudança numa dada representação histórica em geral, ou para a inadequação das ciências sociais de onde essas
do processo histórico como uma totalidade. generalizações, aparecendo numa forma apropriadamente modificada e mais
A tragédia e a sátira são modos de elaboração de enredo concordes com rigorosamente enunciada, poderiam ser extraídas a título de empréstimo.
o interesse daqueles historiadores que percebem atrás ou dentro da congérie O ponto importante é que, na medida em que um historiador apresenta
de eventos contidos na crônica uma estrutura vigente de relações ou um eterno explanações pelas quais as configurações de eventos de sua narrativa são
retorno do Mesmo no Diferente. A estória romanesca e a comédia sublinham explicadas mais ou menos na forma de um argumento nomológico-dedutivo, tais
a emergência de novas forças ou condições emanadas de processos que parecem explanações devem ser distinguidas da impressão explicativa alcançada pela
à primeira vista ou ser imutáveis em sua essência ou estar mudando só em suas maneira como ele pôs em enredo sua estória como uma estória de tipo particular.
formas fenomênicas. Mas cada uma dessas estruturas arquetípicas de enredo Isso não decorre do fato de que não se pudesse tratar a elaboração de enredo
tem suas implicações para as operações cognitivas pelas quais o historiador como um tipo de explicação por meios nomológico-dedutivos. Com efeito, um
procura “explicar” o que estava “realmente acontecendo” durante o processo enredo trágico poderia ser tratado como aplicação das leis que regem a natureza
do qual ela proporciona uma imagem de sua verdadeira forma. e as sociedades humanas em certos gêneros de situações; e, na medida em que
tais situações foram estabelecidas como existentes em determinado tempo e
lugar, poder-se-ia considerar que elas foram explicadas pela invocação dos
princípios aludidos, do mesmo modo que os eventos naturais são explicados por
EXPLICAÇÃO POR ARGUMENTAÇÃO FORMAL
identificação das leis causais universais que se presume governem suas relações.
Talvez eu pudesse dizer que, na medida em que um historiador fornece o
Além do nível de conceptualização em que o historiador põe em enredo “enredo” pelo qual os eventos da história que ele conta ganham algum tipo de
seu relato narrativo “do que aconteceu”, há outro nível no qual ele pode coerência formal, ele está fazendo o mesmo tipo de coisa que faz um cientista
procurar explicar “a finalidade disso tudo” ou “o que isso tudo significa” no fim quando identifica os elementos do argumento nomológico-dedutivo em que
de contas. Nesse nível posso discernir uma operação a que chamo explicação deve vazar sua explicação. Mas faço aqui a distinção entre a colocação em
por argumentação formal, explícita ou discursiva. Tal argumentação oferece enredo dos eventos de uma história considerados como elementos de uma
uma explicação do que acontece na estória mediante a invocação de princípios estória e a caracterização daqueles eventos enquanto elementos de uma matriz
dc combinação que fazem as vezes de leis putativas de explicação histórica. de relações causais que se presume tenham existido em regiões específicas do
Neste nível de conceptualização, o historiador explica os eventos da estória (ou tempo e do espaço. Em suma, tomo por enquanto ao pé da letra a afirmação do
a forma que imprimiu a esses eventos ao pô-los em enredo de um modo historiador de estar fazendo a um só tentpp t ciência e a distinção habitual­
particular) através da construção de um argumento nomológico-dcdutivo. Esse mente traçada entre as operações investigativas do historiador de um lado e sua
argumento pode ser analisado à maneira de um silogismo, no qual a premissa operação narratjyadooutro. Admitimos que uma coisa é representar “o que
maior consiste em alguma lei putativamente universal de relações causais, a aconteceu” e “por que aconteceu como aconteceu” e outra bem diferente é
premissa menor, nas condições do limite dentro do qual a lei é aplicada, e uma prover um modelo verbal, na forma de uma narrativa, de modo a explicar o
conclusão na qual os eventos realmente ocorridos são deduzidos das premissas processo de desenvolvimento que conduz dc uma situação a uma outra situação
por necessidade lógica. A mais famosa dessas leis putativas é provavelmente a recorrendo às leis de causação.
chamada lei da relação entre a Superestrutura e a Base, formulada por Marx. Mas a história difere das ciências prccisamejule poique..as historiadores
Essa lei afirma que, sempre que houver qualquer transformação na Base discordam, não só sobre quais são as leis decausação sociaj que^po-denam
META-HISTÓRIA 29

28 HAYDENWHTTE
A teoria formista da verdade tem em mira a identificação das caracterís­
ticas ímpares dos objetos que povoam o campo histórico. Nessa conformidade,
invocar para explicar uma dada sequência dc eventos, mas também sobre a
o formista considera que uma explicação está completa quando um dado
questão da forma que umae^lícação ucienHncairdêve assumif.TTa uma longa
conjunto de objetos foi convenientemente identificado, seus atributos de classe,
história de controvérsia sobre se as explicações científicas naturais e as históri­
genéricos e específicos, foram marcados, e as etiquetas que atestavam essa
cas devem ter as mesmas características formais. Essa controvérsia gira em
particularidade foram coladas. Os aludidos objetos podem ser individualidades
torno do problema de saber se os tipos de leis que poderiam ser invocadas nas
ou coletividades, particulares ou universais, entidades concretas ou abstrações.
explicações científicas têm seus equivalentes no reino das chamadas ciências
Assim entendida, a tarefa da explicação histórica consiste em dissipar a percep­
humanas ou espirituais, como a sociologia e a história. As ciçncias físicas
ção das similaridades que parecem ser partilhadas por todos os objetos do
parecem avançar por força dos acordos, alcançados de tempos em tempos pelos campo. Quando o historiador estabelece a unicidade dos objetos particulares
mem^ÕFaas^munidades e^ de cientistas, relativamente ao que
do campo ou a variedade dós tipos dc fenômenos que q camjgoju^n^sta,
conta como problema.científico, à jfoxmajque uma explicação científica deve
fornece uma expITcaçao f^rrn jst a Hq campo como tal.
assumir e aos[gêneros$edaÓQs^que poderão ser acolhidos como provas numa
desçnSaQ .cprretamçnte científica darealiefade. Entre os historiadores não O modo formista de explicação encontra-se em Herder, Carlyle, Michelet,
existe tal acordo, nem nunca existiu. Isso talvez simplesmente reflita ajxatui^a nos historiadores romanescos e nos grandes narradores históricos, como Nie-
protocientífica da resa historipgráfiça, mas é importante ter em mente essa buhr, Mommsen e Trevelyan - em qualquer historiografia em que a descrição
discordância (õu*! de concordância) congênita sobre o que importa como da variedade, do'colorido e da vividez do campo histórico é tomadFcomo o
explicação especificamente histórica de qualquer conjunto dado de fenômenos Ôbjêtivõcentral do trabalho doJústorjadqr. Sem dúvida um historiador formista
históricos. Pois isso significa que as explicações históricas são obrigadas a pode mostrar-se inclinado a fazer generalizações acerca da natureza do proces­
basear-se em diferentes pressupostos meta-históriços acerca da natureza do so histórico como um todo, à semelhança de Carlyle que a caracterizou como
campo “a essência de inumeráveis biografias”. Mas, nas concepções formistas da
5 histórico?pressupostos
_ im ---- - ■*— '
que geram diferentesTÍJconcepções dos tipos de
Ijum ..ijuiiy,. . * - i—v—»
explicação histórica, a unicidade dos diversos agentes, agências e atos que
exp//cí2çoc5"que podem ser usadas na análise historiografica.
compõem os “eventos” por explicar é fundamental para as investigações, e não
As disputas historiográficas no nível da “interpretação” são na realidade o “fundo” ou a “cena” para o despontar dessas entidades8.
disputas sobre a “verdadeira” natureza da empresa do historiador. A história
permanece, no estado de anaxquia conceptual em que as ciências naturais 7. As observações feitas com relação a Frye na nota 6 aplicam-se, mutatismufandi, à concepção dc Pepper das
estiveram durante o séculQJLYI. quando havia tantas diferentes concepções da formas básicas de reflexão filosófica. Sem dúvida os maiores filósofos - Platão, Aristóteles, Descartes,
“empresa científica” quantas eram as posições metafísicas. No século XVI as Hume, Kanl, Hegel, MilI - resistem à redução aos arquétipos apresentados por Pepper. Talvez mesmo o
diversas concepções do que a “ciência” devia ser refletiam em última análise as pensamento deles represente uma mediação entre dois ou mais dos tipos de posições doutrinárias que
Pepper esboça. Mas os tipos ideais de Pepper proporcionam uma classificação bastante conveniente dos
diversas concepções de “realidade” e as diversas epistemologias por elas gera­ sistemas filosóficos ou das visões de mundo mais simplistas, do gênero de concepção gerai da realidade que
das. Assim, também as disputas sobre o que a “história” deve ser refletem de encontramos em historiadores quando eles falam com o filósofas - isto é, quando invocam alguma idéia geral
igual modo variadas concepções daquilo em que deve consistir uma correta do ser, recorrem a alguma teoria geral relativa a verdade e verificação, inferem implicação ética de verdades
supostamente estabelecidas e assim por diante. Em sua maioria, os historiadores raramente se elevam acima
explicação histórica e diferentes concepções, portanto, da tarefa do historiador. do nível de refinamento filosófico representado por, digamos, Edmund Burke. O grande Whig linha
certamente uma visão do mundo, embora não propriamente uma “filosofia” reconhecível como tal. Como,
É escusado dizer que não falo aqui dos gêneros de disputas que surgem aliás, a maioria dos historiadores, sem excetuar Tocqueville. Pelo contrário, os maiores filósofos da história
nas páginas dos resenhadores dos periódicos especializados, em que é possível tendem a elaborar uma filosofia e também uma visão do mundo. Neste sentido são mais “cognitivamente
responsáveis” do que os historiadores, que na maioria dos casos simplesmente adotam uma visão do mundo
questionar a erudição ou exatidão de um determinado historiador. Falo dos e tratam-na como se fosse posição filosófica cognilivamente responsável. Sobre as “hipóteses do mundo”
tipos de questões que afloram quando dois ou mais especialistas, de aproxima­ ditas básicas, ver Stephen C. Pepper, World Hypotheses.A Study in Evidence (Berkeley e Los Angeles, 1966),
damente igual erudição e refinamento teórico, chegam a interpretações alter­ parte 2, pp. 14ess.
8. Achei a terminologia critica de Kenneth Burke utilíssima para as minhas tentativas de caracterizar o que
nativas, ainda que não por força mutuamente exclusivas, do mesmo conjunto de chamei de “campo histórico” anterior à análise e representação que dele faz o historiador. Sustenta Burke
eventos históricos, ou a diferentes respostas a perguntas como “Qual é a que todas as representações literárias da realidade podem ser analisadas em função de uma péntade de
verdadeira natureza do Renascimento?” O que se subentende aqui, em pelo elementos “gramaticais” hipotelizados: cena, agente, ato. agência e propósito. O modo como esses elementos
se caracterizam e os pesos relativos dados a eles como forças causais no “drama” em que figuram revelam a
menos um nível de conceptualização, são diferentes concepções da natureza da
visão de mundo implícita em todas as representações da realidade. Por exemplo, um autor materialista estará
realidade histórica e da forma apropriada que um relato histórico, considerado propenso a enfatizar o elemento “cena” (o meio, como quer que seja concebido) em relação aos elementos
como argumentação formal, deve assumir. Seguindo a análise de Stephen C. “agente”, “ato”, “agência” e “propósito”, de modo a fazer com que estes quase se igualem a epifenômenos
Pepper em seu World Hypotheses, diferenciei quatro paradigmas da forma que daquele. Já um autor idealista tenderá a ver “propósito” em toda parte e transformará a cena em pouco mais
do que uma ilusão. Ver, para uma explanação geral, Burke, A Grammar of Motives, pp. 3-20.
se pode conceber_ípie~assuma jima._ explicação histórica, considerada como
argumento discursivo: fori^js^organicista, mecanicista e contextualista7.
30 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 31

Para usar os termos de Pepper, o formismo é esscncialmentc “dispersivo” Sem dúvida, como observa Pepper, os historiadores que lidam com esse
nas operações analíticas que executa sobre os dados, e não “integrativo”, como modo estarão mais interessados em caracterizar o processo integrativo do que
tendem a ser as explicações organicistas e mecanicistas. Assim, embora uma em descrever seus elementos individuais. Isso é o que dá aos argumentos
estratégia explicativa formista tenda a ser ampla quanto ao “alcance” - vasta vazados nesse modo seu caráter “abstrato”. Além disso, a história escrita nesse
nas espécies de particularidades que identifica como ocupantes do campo modo tende a orientar-se para a determinação do fim ou da meta para a qual
histórico suas generalizações acerca dos processos discernidos no campo se presume que propendem todos os processos encontrados no campo histórico.
propendem a carecer de “precisão” conceptual. Os historiadores romanescos, Um historiador como Ranke, está claro, resistirá conscientemente à inclinação
e, na verdade, os “historiadores narrativos” em geral, estão inclinados a cons­ para especificar qual poderia ser o telos de todo o processo histórico, e há de
truir, em torno da totalidade do campo histórico e da significação de seus se contentar com o esforço de determinar a natureza de certos teloi provisórios,
processos, generalizações tão extensas que têm pouquíssimo peso como propo­ estruturas integrativas intermediárias como o “povqF, a “nação” ou a “cultura”,
sições que podem ser confirmadas ou desconfirmadas pelo emprego de dados que ele intenta descobrir no processo histórico em curso. A determinação do
empíricos. Mas tais historiadores geralmente compensam a vacuidade de suas fim último de todo o processo histórico só pode ser vislumbrada, sustenta
generalizações com o fulgor de suas reconstruções de determinados agentes, Ranke, numa visão religiosa. E assimja obra de Ranke pode ser considerada um
agências e atos representados em suas narrativas. exemplo de uma historiografia composta num modo especificamente formista.
As hipóteses organicistas do mundo e suas correspondentes teorias da Mas, ainda que Ranke prime pela descrição de eventos em sua particularidade,
verdade e da argumentação são relativamente mais “integrativas” e portanto suas narrativas devem a estrutura e coerência formal como explicações dos
mais redutivas em suas operações. O organicista tenta descrei£Losj2Qimenores processos por ele descritos antes de tudo ao fato de recorrerem tacitamente ao
discernidos no campo histórico como componentes de processos sintéticos. No modelo organicista do que deve ser uma adequada explicação histórica, modelo
âmago da estratégia organicista existe um compromisso metafísico com o implantado na consciência do próprio Ranke como paradigma do que deve ser
paradigma da relação microcósmico-macrocósmica; e o historiador organicista toda e qualquer explicação válida dc todo e qualquer processo presente no
tenderá a ser regido pelo desejo de ver entidades individuais como componentes mundo.
de processos que se agregam em totalidades que são maiores ou qualitativa­
mente diferentes da soma de suas partes. Os historiadores que operam dentro É uma característica das estratégias organicistas de explicação abster-se
dessa estratégia de explicação, como Ranke e a maioria dos historiadores da procura de leis do processo histórico, quando o termo “leis” é interpretado
“nacionalistas” das décadas de meados do século XIX (Von Sybcl, Mommscn, no sentido de Irel^^S^Sairun^Kaise invariantes, à maneir^J|a^sica
Treitschke, Stubbs, Maitland etc.) tendem a estruturar suas narrativas de modo newtoniana, da química lavoisieriana ou da Hioíògia darwipiana. O organicista
a desenhar a consolidação ou cristalização, a partir dc um conjunto de eventos tende a falar dos “princípios” ou das “idéias” que informam os processos
evidentemente dispersos, de alguma entidade integrada cuja importância c individuais percebidos no campo e de todos os processos tomados globalmente.
maior do que a de qualquer das entidades individuais analisadas ou descritas Esses princípios ou idéias são vistos como formadores de imagens ou prefigu-
no curso da narrativa. radores do fim para que tende o processo como um todo. Não funcionam como
Os idealistas em geral, e os pensadores dialéticos como Hcgel em especial, agentes ou agências causais, salvo em historiadores de orientação decididamen­
representam esse modo de abordar o problema da explicação dos processos te mística oui teológica, caso em que são geralmente interpretados como mani­
discernidos no campo histórico. festações dos desígnios de Deus para Sua criação. De fato, para o organicista,
tais princípios e idéias funcionam não como restrições à capacidade humana de
realizar uma meta caracteristicamente humana na história, como é de supor que
Embora úteis como estratagema para caracterizar a concepção, pelo historiador, do “campo histórico** ainda
não processado, as teorias de Burke sáo menos úteis quando se trata de caracterizar o que o historiador as “leis” da história funcionam no pensamento dos mecanicistas, mas como
poderia fazer do campo depois que este foi “gramaticalmente” posto em código. Sua Rhetoric of Motives fiadores de uma liberdade humana essencial. Assim, embora precise destacar
(Berkeley e Los Angeles, 1965). que pretende sondar as dimensões morais da representação literária, e seu a natureza integrativa do processo histórico visto como um todo para que possa
Language as SymbolicAction (Berkeley e Los Angeles, 1968), que pretende oferecer uma versão secularizada
do nível “anagógico” medieval do sentido e da significação, são decepcionantemente convencionais. Burke apreender o sentido do processo histórico, o organicista não extrai as variedades
tem. por certo, razão em afirmar que todas as representações literárias da realidade, por mais “realísticas” de conclusões pessimistas que o mecanicista rigoroso tende a extrair de suas
que sejam, são em última análise alegóricas. Mas quando passa a classificar as espécies de alegorias que reflexões sobre a natureza nomológica do ser histórico.
poderiam estar presentes dentro delas, oferece pouco mais do que um pastiche das simbologias marxistas,
freudianas e antropológicas, que são, por sua vez, apenas representações alegóricas da “realidade" que As hipóteses mecanicistas do mundo são também integrativas em seu
intentam simplesmente analisar. Consideradas como alegorias, as histórias parecem prestar-se à análise objetivo, mas propendem a ser antes redutivas que sintéticas. Para usar a
pelos métodos apresentados por Frye. Considerada como forma de discurso cognitivamente responsável,
uma história parece ser caracterizável na terminologia de Pepper. E, consideradas como opúsculos morais,
linguagem de Kenneth Burke, o mecanicismo está disposto a ver os “atos” dos
parecem ser classificáveis precisamente nos termos sugeridos pela sociologia do conhecimento de Man- “agentes” que povoam o campo histórico como manifestações de “agencias”
nheim. Sobre esta ver a nota 11, mais adiante. extra-históricas que têm suas origens na “cena” dentro da qual se desenrola a
32 HAYDENWfíITE

META-HISTÓRIA
“ação” descrita na narrativa. A teoria mecanicista da explicação apóia-se na
busca das leis causais que determinam os fesuT^dgSBBÍproçessos^scobertbs circundante. Aqui, como no formismo, o campo histórico é apreendido como
no campo histórico. Õs objetos que se supõe que habitam o campo histórico são um “espetáculo” ou uma tapeçaria de rica textura que à primeira vista parece
interpretados comó existentes na modalidade de relações de parte com parte, carecer de coerência e de qualquer estrutura fundamental discernível. Mas, ao
cujas configurações específicas são determinadas pelas leis que se presume contrário do formista, que tende simplesmente a considerar as entidades em
governarem suas interações. Assim, um mecanicista como Buckle, Taine, Marx sua particularidade e unicidade - isto é, sua similaridade com, e diferença de,
ou, como indicarei, mesmo Tocqueville, estuda a história a fim de predizer as outras entidades no campo o cont^rtualisfa insiste em que “o que aconteceu”
leis que de fato governam suas operações e ^çre^a^^ónali fim de expor no campo pode ser explicado pela especificação da$t.inter7réEc5eãR^^nais
numalormanarrativa os efeitos dessas leis. existentes çntre os agentes e^agênçi^_ quç ^çupayam^ campo num dado
A compreensão das >is que regem a história e a determinação de sua momento.
natureza específica podem ser mais ou menos conspícuas na representação “do A determinação dessa inter-relação funcional é levada a cabo por uma
que estava acontecendo” no processo histórico num determinado tempo e lugar; operação que alguns filósofos modernos, como W. H. Walsh e Isaiah Berlin,
mas, na medida em que as investigações do mecanicista se realizam na busca de chamam de “coligação”9. Nessa operação o objetivo da explicação é identificar
tais leis, seu relato é ameaçado pela mesma tendência para a abstração que a os “fios” que prendem o indivíduo ou a instituição em estudo a seu especioso
do organicista. Ele considera as entidades individuais menos importantes como “presente” sociocultural. Exemplos desse gênero de estratégia explicativa po­
testemunho do que as classes de fenômenos a que se pode demonstrar que dem ser encontrados em qualquer historiador digno deste nome, de Heródoto
pertencem; mas essas classes, por sua vez, são menos importantes para ele do a Huizinga, mas ela encontra expressão como princípio dominante de explica­
que as leis que, segundo se presume, suas regularidades manifestam. Em última ção no século XIX na obra de Jacob Burckhardt. Como estratégia de explicação,
análise, para o mecanicista, uma explicação só é considerada completa quando o contextualismo procura evitar tanto a tendência radicalmente dispersiva do
ele descobre as leis que, é de presumir, governam a história, da mesma maneira formismo quanto as tendências abstrativas do organicismo e do mecanicismo.
que é de presumir que as leis da física governam a natureza. Então aplica essas Busca, em lugar disso, uma relativa integração dos fenômenos discernidos em
leis aos dados de modo a tornar suas configurações compreensíveis como províncias finitas de ocorrência histórica em função de “tendências” ou fisiog-
funções dessas leis. Assim, num historiador como Tocqueville, os atributos nomonias gerais de períodos e épocas. Na medida em que tacitamente invoca
próprios de uma dada instituição, de um costume, de uma lei, forma de arte ou regras de combinação para determinar as características de família de entidades
coisa parecida, são menos importantes como testemunho do que a espécie, a que ocupam províncias finitas de ocorrência histórica, essas regras não são
classe e as tipificações genéricas que, na análise, se pode demonstrar que interpretadas como equivalentes às leis universais de causa e efeito postuladas
exemplificam. E essas tipificações por sua vez são julgadas por Tocqueville - e pelo mecanicista ou aos princípios teleológicos gerais postulados pelo organi­
ccrtamente por Buckle, Marx e Taine - menos importantes do que as leis da cista. Ao contrário, são interpretadas como relações reais que se presume
estrutura social e o processo que regem o curso da história ocidental, cujas tenham existido em tempos e lugares específicos, cujas causas primeira, final e
operações eles atestam. material nunca podem ser conhecidas.
Obviamente, se bem que sejam caracterizadas pela precisão conceptual, O contextualista avança, diz-nos Pepper, isolando algum (na verdade,
as concepções mecanicistas de verdade e explicação estão expostas às acusações qualquer) elemento do campo histórico como assunto de estudo, seja o elemento
de falta de alcance e tendência para a abstração do mesmo modo que seus tão amplo como “a Revolução Francesa” ou ião pequeno como um dia na vida
congêneres organicistas. De uma perspectiva formista, mecanicismo e organi- de uma determinada pessoa. Em seguida passa a escolher os “fios” que ligam
cismo parecem ser “redutivos” da variedade e do colorido das entidades o evento que vai ser explicado a diferentes áreas do contexto. Os fios são
individuais presentes no campo histórico. Mas, para restaurar a desejada exten­ identificados, estendidos para fora, na direção do espaço natural e social
são e concretude, não é preciso buscar refúgio numa concepção tão “impres­ circundante dentro do qual ocorreu o evento, e estendidos para trás no tempo,
sionista” da explicação histórica como a representada pelo formismo. Pode-se, a fim de determinar as “origens” do evento, e para a frente no tempo, a fim de
dc preferência, adotar uma posição contextualista, que como teoria da verdade determinar seu “impacto” e “influência” sobre os eventos subseqüentes. Essa
e da explicação representa uma concepção “funcional” do sentido ou da operação termina no ponto em que os “fios” ou desaparecem no “contexto” de
significação de eventos percebidos no campo histórico. algum outro “evento” ou “convergem” para provocar a ocorrência de algum
A pressuposição informadora do contcxtualismo é que os eventos podem novo “evento”. O impulso não é integrar todos os eventos e tendências que
ser explicados ao serem postos dentro do “contexto” de sua ocorrência. Por que pudessem ser identificados em todo o campo histórico, mas, antes, reuni-los
ocorreram como ocorreram há de ser explicado pela revelação das relações
9. Ver W. H. Walsh, Introduction to the Philosophy of Ifutory (Londres, 1961), pp. 60-65; Isaiah Berlin, “The
específicas que tem com outros eventos ocorrentes em seu espaço histórico
Concepl of Seientific History”, em Dray (Org.), Philosophical Analysis and Hístory, pp, 40-51. Sobre
“coligação" em geral, ver as observações de Mink, “Autonomy”, pp. 171-72.
31 HAYDENWHTTE META-H1STÓR1A 35

numa cadeia de caracterizações provisórias e restritas de províncias finitas de de tipo peculiarmente “histórico” deve tomar. Por contraste, mecanicismo e
ocorrência “significativa”. organicismo representam heterodoxias do pensamento histórico, na opinião
tanto da principal fileira de historiadores profissionais como da de seus defen­
Deve ser óbvio que o enfoque contextualista do problema da explicação
sores entre filósofos que vêem na “filosofia da história” mito, erro ou ideologia.
histórica pode ser visto como uma combinação dos impulsos dispersivos que
Por exemplo, o influente livro de Karl Popper, The Poverty of Historicism,
movem o formismo de um lado e os impulsos integrativos que inspiram o
consiste quase somente numa sistemática denúncia desses dois modos de
organicismo do outro. Mas, na realidade, uma concepção contextualista da
explicação do pensamento histórico10.
verdade, da explicação e verificação parece ser extremamente modesta naquilo
que reclama do historiador e exige do leitor. No entanto, em razão de sua Mas os motivos da hostilidade doshistQXÍadQr-es-profissionaisaQS.modos
organização do campo histórico em diferentes províncias de ocorrência signifi­ organicistas e mecanicistas de explicação continuamobscuros. Ou, melhor, as
cativa, com base na qual é possível distinguir uns dos outros os períodos e as razões aessa hostilidade parecem residir em considerações de tipo especifica­
épocas, ^^contextualismo representa uma solução ambígua do problema da mente extra-epistemológico. Pois, admitida a naturezajxotocicntífiça
construção de um modelo narrativo dos processos discernidos no campo histó- dos históricos, não^há^fuMame^^^pUtemológçoLJP^Qt^, a
YícoTCF^ffuxo” do tempo histónçq^é^ejrrcaradp jíelo contextualista corno um preferência de um modo de explicação sobre outro»
movimento ondulatório (isso é explicitamente indicado por Burckhardt) em que Está claro que já se disse que a história sò pode libertar-se do mito, da
certas fases ou culminâncias são consideradas intrinsecamente mais significati­ religião e da metafísica através da exclusão dos modos de explicação organicis­
vas dõ que outras. Ã operação de estender os fios de ocorrências de modo a tas e mecanicistas de suas operações. Segundo a opinião geral, a história não
permitir o discernimento de tendências no processo sugere a possibilidade de pode desse modo elevar-se à condição de “ciência” rigorosa, mas argumenta-se
uma narrativa em que as imagens de desenvolvimento e evolução pudessem que pode ao menos evitar os perigos do “cientismo” - a dúplice macaqueação
predominar. Mas, na realidade, as estratégias explicativas contextualistas incli­ do método científico e ilegítima apropriação da autoridade da ciência - através
nam-se mais para as representações sincrônicas de segmentos ou seções do dessa exclusão. Pois, limitando-se à explicação segundo os modos do formismo
processo, cortes feitos, por assim dizer, a contrapelo do tempo. Essa tendência e do contextualismo, a historiografia pelo menos permaneceria “empírica” e
para o modo estruturalista ou sincrônico de representação é inerente a uma resistiria à queda no tipo de “filosofia da história” praticada por Hegel e Marx.
hipótese contextualista do mundo. E se o historiador que se inclina para o Mas, precisamente porque a história não é uma ciência rigorosa, essa
contextualismo agregar os vários períodos que estudou numa visão completa de hostilidade para com os modos de explicação organicista e mecanicista parece
todo o processo histórico deverá transpor os limites do arcabouço contextualista expressar apenas um preconceito por parte do estabelecimento profissional. Se
- rumo ou a uma redução mecanicista dos dados em função das leis “intempo- se admite que o organicismo e o mecanicismo apresentam percepções de
rais” que se presume regê-los ou a uma síntese organicista daqueles dados em qualquer processo nos mundos natural e social que não podem ser obtidas pelas
função dos “princípios” que se presume revelem o telos para o qual tende todo estratégias formistas e contextualistas, então a exclusão do organicismo e do
processo ao cabo de um longo percurso. mecanicismo do cânone das explicações históricas ortodoxas deve basear-se em
Certamente qualquer um desses quatro modelos de explicação poderia considerações extra-epistemológicas. O compromisso com as técnicas disper­
ser utilizado numa obra histórica para oferecer alguma coisa que se parecesse sivas do formismo e do contextualismo reflete apenas uma decisão da parte dos
com um argumento formal do verdadeiro sentido dos eventos descritos na historiadores de não tentarem o tipo de integrações de dados que o organicismo
narrativa, mas não gozam todos do mesmo prestígio junto aos notórios prati­ e o mecanicismo sancionam naturalmente. Essa decisão, por sua vez, parece
cantes profissionais da disciplina desde sua academicização no início do século assentar em opiniões pré-criticamente sustentadas acerca da forma que uma
XIX. De fato, entre os historiadores acadêmiços^modelos formista e contex­ ciência do homem e da sociedade tem de assumir. E por seu turno essas opiniões
tualista tendem a predominar como principais çandidajpsAortodoxia. Sempre parecem ser geralmente éticas, e especificamente ideológicas, por natureza.
que*aparecem tendências organicistas ou mecanicistas em renomados mestres É amiúde afirmado, especialmente pelos radicais, que a preferência dos
do ofício, como em Ranke e Tocqueville respectivamente, são elas encaradas historiadores profissionais por estratégias explicativas contextualistas e formistas
como lapsos em relação às formas adequadas que as explicações em história é ideologicamente motivada. Por exemplo, dizem os marxistas que é do interesse
podem assumir. De mais a mais, quando o impulso de explicar o campo histórico dos grupos sociais estabelecidos rejeitar os modos mecanicistas de explicação
em termos francamente organicistas e mecanicistas chega a predominar num histórica porque a revelação das leis reais da estrutura e do processo históricos
determinado pensador, como Hcgcl de um lado e Marx de outro, é este impulso exporia a verdadeira natureza do poder desfrutado pelas classes dominantes e
interpretado como a razão da queda na abominável “filosofia da história”. supriria o conhecimento necessário para desalojar essas classes de suas posições
Em suma, para os historiadores profissionais, formismo e contextualismo
representam os limites da escolha entre as formas possíveis que uma explicação 10. Karl R. Popper, The Poverty of Historicism (Londres, 1961), pp. 5-55.
META-H1STÓRIA 37
36 HAYDENWHTTE

para mantê-lo no estado em que se encontra); tais prescrições vêm acompanha­


de privilégio e poder. É do interesse dos grupos dominantes, afirmam os radicais, das de argumentos que se arrogam a autoridade da “ciência” ou do “realismo”.
cultivar uma concepção da história em que só os eventos individuais e suas Seguindo a análise de Karl Mannheim, em Ideology and Utopia, postulo quatro
relações com seus contextos imediatos podem ser conhecidos, ou em que, na posições ideológicas básicas: anarquismo, conservantismo, radicalismo e libe­
melhor das hipóteses, se permite o arranjo dos fatos em frouxas tipificações,
ralismo11.
porque tais concepções da natureza do conhecimento histórico se conformam
Há, é claro, outras posições metapolíticas. Mannheim menciona o apoca-
respectivamente com as preconcepções “individualistas” dos “liberais” e as
lipticismo das primeiras seitas religiosas modernas, a posição do reacionário e
preconcepções “hierárquicas” dos “conservadores”.
a do fascista. Mas essas posições são em essência autoritárias de um modo que
Por contraste, os historiadores liberais também consideram ideologica­ as formas oitocentistas das ideologias supramencionadas não são. O apocalip-
mente motivadas as pretensões dos radicais à descoberta das “leis” da estrutura ticista baseia suas prescrições para a ação na autoridade da revelação divina, o
e do processo históricos. Tais leis, diz-se, são em geral apresentadas com vistas reacionário na da prática de uma classe ou grupo, que é vista como um sistema
a promover algum programa de transformação social, numa direção radical ou eternamente válido de organização social, e o fascista na autoridade indisputada
reacionária. Isso impregna de mau cheiro a própria busca das leis da estrutura de um chefe carismático. E, embora sê empenhem em polêmicas com represen­
e do processo históricos e torna suspeito o saber de qualquer historiador que tantes de outras posições, os porta-vozes desses pontos de vista não acham
pretenda investigar tais leis. O mesmo se aplica àqueles princípios pelos quais
os filósofos idealistas da história intentam explicar o “sentido” da história em
11. Simplifiquei a classificação de Mannheim dos principais tipos de ideologias e as filosofias da história que
sua totalidade. Tais “princípios”, insistem os expositores de concepções de as apoiam. No ensaio “Prospects of Scientific Politics”, Mannheim enumera cinco “tipos representativos
explicação contextualistas, formistas e mecanicistas, são sempre apresentados ideais” de consciência política que surgiram nos séculos XIX e XX, dois dos quais são espécies de
em apoio a posições retrógradas ou obscurantistas em suas intenções. conservantismo (uma “burocrática”, a outra “historicista”). Não preciso fazer essa distinção aqui, já que se
pode dizer que a forma “burocrática” se contrapõe a todas as tentativas ideologicamente inspiradas de
Parece haver, de fato, um irredutível componente ideológico em todo transformação da ordem social. Estou interessado no trabalho de intelectuais que procuram transformar ou
relato histórico da realidade. Isto é, simplesmente porque a história ngoé, jima manter o status quo recorrendo a concepções específicas do processo histórico. Que eu saiba, nenhum
ciência, ou é, na melhor das hipóteses, uma protociência com elementos não- historiador ou filósofo da história escreveu de modo a promover a atitude do “conservador burocrático”.
Da maneira como defini o conservantismo, porém - isto é, como uma defesa não de um passado idealizado
científicos determináveis em sua constituição, a própria afirmação de se ter mas do regime social vigente o “historicismo conservador”, como o concebeu Mannheim, constituiria o
percebido algum tipo de coerência formal no registro histórico leva consigo refúgio natural do “conservador burocrático”. Ver Mannheim, Ideology and Utopia: An Introduction to the
teorias da natureza do mundo histórico e do próprio conhecimento histórico Sociology of Knowledge (Nova York, 1946), pp. 140 e ss.; e Idem, “Conservative Thought”, em Paul
Kecskemeti (Org.), Essays in Sociology and Social Psychology (Nona York, 1953), pp. 74-164.
que contêm implicações, ideológicas para as tentativas de compreender “o Mannheim também incluiu o “fascismo” entre os tipos ideais da moderna consciência política. Não utilizei
presente”, por mais que esse “presente” esteja definido. Dito de outro modo, a essa categoria, pois seria anacrônica se aplicada a pensadores do século XIX. Em vez disso, usei a categoria
própria afirmação de se ter distinguido um mundo passado de um mundo do “anarquismo”, que, na opinião de Mannheim, é a forma peculiarmente oitocentista assumida pela
reflexão política apocalíptica. Importa lembrarque no ensaio, “The Utopian Mentality”, Mannheim arrolou
presente de reflexão e práxis social, e de se ter determinado a coerência formal quatro tipos ideais de reflexão utópica, cada um representando um estágio distinto na evolução da
daquele mundo passado, implica uma concepção da forma que o conhecimento consciência política moderna. Eram o quiliasmo orgiástico (a tradição milenarista representada pelos
do mundo presente também deve tomar, na medida em que é contínuo com anabatistas no século XVI), a idéia humanitarista-liberal, a idéia conservadora e a utopia socialista-comu­
nista. Ver Ideology and Utopia, pp. 190-222 O anarquismo foi a forma secularizada que o quiliasmo
aquele mundo passado. O compromisso com uma forma particular de conheci­ orgiástico assumiu no século XIX, enquanto o fascismo é a forma por ele assumida no século XX. Ver/bní,
mento predetermina os tipos de generalizações que se pode fazer acerca do p. 233.0 que toma ímpar o anarquismo na história das políticas apocalípticas é o falo de que, ao contrário
mundo presente, os tipos de conhecimento que se pode ter dele, e consequen­ do quiliasmo e do fascismo, ele procura ser cogn itivamente responsável, istoé, procura oferecer justifica tivas
temente os tipos de projetos que é lícito conceber para mudar esse presente ou para sua postura irracional.
No meu entender, o anarquismo é a implicação ideológica do romantismo, aparecida onde quer que o
para mantê-lo indefinidamente em sua forma vigente. romantismo tenha aparecido no século XIX, e, da mesma forma que o romantismo, alimentou o fascismo
no século XX. Mannheim tentou ligar o romantismo ao conservantismo de forma sistemática quando, na
realidade, em suas primeiras manifestações no século XIX aconteceu-lhes ser contemporâneos um do outro.
A filosofia da história gerada pelo mythas romântico não prefigura aquela noção de uma comunidade
EXPLICAÇÃO POR IMPLICAÇÃO IDEOLÓGICA plenamente integrada, realizável no tempo histórico, que inspira aos conservadores hinos de louvor ao status
quo social. O que é singular no romantismo é seu elemento individualista, aquele egoísmo que inspira a
crença na desejabilidade de uma anarquia perfeita. Esse elemento pode estar presente em alguns pretensos
As dimensões ideológicas de um relato histórico refletem o elemento ético pensadores conservadores, mas, se forem verdadeiramente conservadores, ele estará ali como um expediente
envolvido na assunção pelo historiador de uma postura pessoal sobre a questão ideológico, para defendera posição privilegiada de determinados grupos no regime social vigente contra as
da natureza do conhecimento histórico e as implicações que podem ser inferidas reivindicações de mudança programática provenientes de radicais, liberais ou reacionários. O conservador
dos acontecimentos passados para o entendimento dos atuais. Por “ideologia” não pode aprovar uma concepção genuinamente anarquista do mundoda mesma forma que não pode tolerar
uma concepção verdadeiramente radical. Defende o status quo ao mostrá-lo como uma unidade integrada,
entendo um conjunto de prescrições para a tomada de posição no mundo orgânica, que anarquistas e radicais ainda sonham promover.
presente da práxis social e a atuação sobre ele (seja para mudar o mundo, seja
METAHISTÓRIA 39
HAYDENWHITE

I
necessário firmar a autoridade de suas posições cognitivas em premissas racio- mudança social, todas as quatro reconhecem sua inevitabilidade mas represen­
nalistas ou científicas. Assim, ainda que apresentem teorias específicas da tam visões diferentes não só quanto à sua desejabilidade mas também quanto
sociedade e da história, essas teorias não assumem suas responsabilidades ao ritmo ótimo de mudança. Evidentemente os conservadores são os mais
diante da crítica desfechada por outras posições, diante dos “dados” em geral desconfiados de transformações programáticas do status quo social, enquanto
ou do controle pelos critérios lógicos de consistência e coerência. os liberais, radicais e anarquistas são relativamente menos desconfiados de
As quatro posições ideológicas básicas identificadas por Mannheim, po­ mudança em geral e, analogamente, são menos ou mais otimistas acerca das
rém, representam sistemas de valores que reivindicam a autoridade da “razão”, perspectivas de transformações rápidas da ordem social. Como observa Man­
da “ciência” ou do “realismo”. Essa reivindicação compromete-as tacitamente nheim, os conservadores tendem a ver a mudança social através da analogia das
com a discussão pública com outros sistemas que invocam a mesma autoridade. gradualizações botânicas, ao passo que os liberais (pelo menos os liberais do
Torna-as epistemologicamente autoconscientes de um modo que os represen­ século XIX) dispõem-se a vê-la através da analogia dos ajustes, ou “sintonias
tantes dos sistemas “autoritários” não são, e engaja-as no esforço de compreen­ finas”, de um mecanismo. Em ambas as ideologias admite-se que a estrutura
der “dados” descobertos por investigadores do processo social que trabalham fundamental da sociedade é sólida e que alguma mudança é inevitável, mas
com pontos de vista alternativos. Em suma, as formas oitocentistas de anarquis­ acredita-se que a própria mudança é mais eficaz quando se modificam deter­
mo, conservantismo, radicalismo e liberalismo são “cognitivamente responsá­ minadas partes da totalidade, ao invés de se alterarem as relações estruturais. Os
veis” de um modo que suas congêneres “autoritárias” não são12. radicais e anarquistas, no entanto, acreditam na necessidade de transformações
Cumpre salientar neste ponto que os termos “anarquista”, “conservador”, estruturais, os primeiros visando reconstituir a sociedade sobre novas bases, os
“radical” e “liberal” destinam-se a servir mais de designadores de preferência últimos visando abolir a “sociedade” e substituí-la por uma “comunidade” de
ideológica geral do que de emblemas de partidos políticos específicos. Repre­ indivíduos cuja coesão é mantida por um sentimento compartilhado de sua
sentam diferentes atitudes com respeito à possibilidade de reduzir o estudo da “humanidade” comum.
sociedade a uma ciência e à desejabilidade de fazê-lo; diferentes noções das Quanto à velocidade das mudanças imaginadas, os conservadores insis­
lições que as ciências humanas podem ministrar; diferentes concepções da tem num ritmo “natural”, enquanto os liberais preferem o que se poderia
desejabilidade de manter ou mudar o status quo social; diferentes concepções chamar de ritmo “social” do debate parlamentar, ou o ritmo do processo
da direção que as mudanças dostatas quo deve tomar e os meios de efetuar tais educacional e das disputas eleitorais entre dois partidos empenhados na obser­
mudanças; e finalmente diferentes orientações temporais (uma orientação para vância das leis estabelecidas de governação. Radicais e anarquistas, ao contrá­
o passado, o presente ou o futuro como repositório de um paradigma da forma rio, prefiguram a possibilidade de transformações cataclísmicas, muito embora
“ideal” de sociedade). Cumpre também assinalar que o enredo que um deter­ aqueles tendam a ser mais conscientes do poder necessário para efetuar tais
minado historiador elabora do processo histórico ou do modo de explicá-lo num transformações, mais sensíveis à força inercial de instituições herdadas, e
argumento formal não precisa ser considerado como uma função da sua posição portanto mais preocupados com o provimento dos meios de realizar tais mu­
ideológica conscientemente assumida. Mais exatamente, pode-se dizer que a danças.
forma dada por ele a seu relato histórico tem implicações ideológicas concor­
Isso nos conduz a uma consideração das diferentes orientações temporais
dantes com uma ou outra das quatro posições diferenciadas acima. Assim como
das várias ideologias. De acordo com Mannheim, os conservadores estão pre­
toda ideologia é acompanhada por uma idéia específica da história e seus
dispostos a imaginar a evolução histórica como um aperfeiçoamento progressi­
processos, toda idéia da história é, também, afirmo, acompanhada por implica­
vo da estrutura institucional vigente, estrutura que é a seus olhos uma “utopia”,
ções ideológicas especificamente determináveis.
isto é, a melhor forma de sociedade com que os homens podem “realisticamen­
As quatro posições ideológicas que me interessam podem ser aproxima­
te” contar, ou a que podem legitimamente aspirar, por enquanto. Já os liberais
damente caracterizadas nos seguintes termos. Com relação ao problema da
imaginam um tempo no futuro em que essa estrutura terá sido melhorada, mas
projetam esse estado utópico num futuro remoto, de modo a desencorajar no
12. Fui buscar em Pepper a noção de “responsabilidade cognitiva”. Ele a emprega para fazer distinção entre
sistemas filosóficos comprometidos com defesas racionais de suas hipóteses de mundo e outros que não têm presente qualquer tentativa de concretizá-lo precipitadamente, por meios “ra­
tais compromissos. Exemplos destes últimos são o misticismo, o animismo e o ceticismo extremo, todos os dicais”. Por outro lado, os radicais tendem a ver o estado utópico como iminente,
quais, em algum ponto de seus argumentos, reincidem nas idéias de revelação, autoridade ou convenção. o que incute neles o interesse por encontrar os meios revolucionários de realizar
Embora certos místicos, animistas e céticos pudessem apresentar justificações racionais das posturas
irracionais que assumem perante a realidade, tais justificações são habitualmente formuladas como críticas
essa utopia agora. Finalmente os anarquistas inclinam-se a idealizar um passado
ao hiper-racionalismo de seus adversários. O conteúdo positivo de suas doutrinas é em última instância remoto de inocência natural humana da qual os homens tombaram no estado
indefensável em bases racionais, uma vez que negam no fim a autoridade da própria razão. Ver Pepper, “social” corrupto em que se encontram hoje. Por sua vez, projetam essa utopia
WorldHypotheses, pp. 115-37. Os equivalentes de tais sistemas no pensamento político seriam representados sobre o que é efetivamente um plano não-temporal, encarando-a como uma
pelo nobre feudal preso à tradição; pelo reacionário, que nega qualquer valor ao presente ou ao futuro; e
pelo fascista ou niilista, que rejeita a razão e o ideal de consistência na discussão com seus opositores. possibilidade de realização humana em qualquer tempo, bastando que os ho­
40 HAYDEN WHÍTE META-H1STÔRIA 41

mens se apossem do controle de sua humanidade essencial, seja por um ato de conhecimento histórico a que recorrem as diferentes ideologias. Pois, já que
vontade, seja por um ato de consciência que destrua a crença socialmente essas concepções têm origem em considerações éticas, a assunção de uma
estatuída na legitimidade da instituição social vigente. determinada postura epistemológica para julgar a adequação cognitiva delas
representaria em si mesma apenas outra opção ética. Não posso asseverar que
A demarcação temporal do ideal utópico, em nome do qual trabalham as
umat das concepções do conhecimento histórico preferjdaJ2mm>a.,dadajdeo-
diferentes ideologias, permite a Mannheim classificá-las com respeito à tendên­
logiastyanuHs“realísü^^
cia delas para a “congruência social” de um lado ou a “transcendência social”
do gue con^uijmn^dequa^ Nem
do outro. O conservantismo é o mais “socialmente congruente”; o liberalismo
posso 3Fzer que uma concepção do conhecimento histórico é mais “científica”
o é em termos relativos. O anarquismo é o mais “socialmente transcendente”;
do que outra sem prejulgar o problema do que deve ser uma ciência especifi­
o radicalismo o é relativamente. Na verdade, cada uma das ideologias represen­
ta uma mescla de elementos de congruência social e transcendência social. camente histórica ou social.
Sobre esse ponto, suas divergências recíprocas são questões mais de ênfase que Certamente durante o séculorXIXaj^cep£ã^^
de conteúdo. Todas levam a sério a probabilidade de mudança. Isso é o que representada^QjmfiÇ^BsaQ. Mas os teóricos sociais diferiam entre si quanto
explica o interesse compartilhado pela história e ã preocupação de oferecer uma à questão da legitimidade de uma ciência mecanicista da sociedade e da história.
justificativa histórica para seus programas. Do mesmo modo, isso é o que explica Os modos formista, organicista e contextualista de expliçaçãQf„çoníinuaiam a
a disposição para debater entre si, em termos cognitivamente responsáveis, florescer ha$~ciêncí^WTOnas apíongo virtude de genuínas
questões secundárias como a velocidade da mudança social desejável e os meios divergências de opinião sobre a adequação do mecanicismo como estratégia.
a usar para realizá-la. Não estou preocupado, portanto, em classificar as diversas concepções
É, porém, o valor atribuído à instituição social existente que explica suas da história produzidas pelo século XIX em função de seu “realismo” ou de sua
diferentes concepções, tanto da forma da evolução histórica quanto da forma “cientificidade”. Também não é meu propósito analisá-las como projeções de
que deve assumir o conhecimento histórico. No entender de Mannheim, o uma dada posição ideológica. Só estou interessado em indicar como as consi­
problema do “progresso” histórico c interpretado de maneiras diferentes pelas derações ideológicas entram nas tentativas do historiador de explicar o campo
diversas ideologias. O que é “progresso” para uma é “decadência” para outra, histórico e construir um modelo verbal dos processos desse campo numa
gozando a “época atual” de um estatuto diferente, como um zénite ou nadir do narrativa. Mas procurarei mostrar que mesmo as obras daqueles historiadores
desenvolvimento, dependendo do grau de alienação de uma dada ideologia. Ao e filósofos da história cujos interesses eram manifestamente não políticos, como
mesmo tempo, reverenciam diferentes paradigmas da forma que devem ter os Burckhardt e Nietzsche, têm implicações ideológicas específicas. Essas obras,
argumentos destinados a explicar “o que tem acontecido na história”. Esses afirmo, estão pelo menos concordes com uma ou outra das posições ideológicas
diferentes paradigmas de explicação refletem as orientações mais ou menos dos tempos em que foram escritas.
“científicas” das diversas ideologias. Penso que o momento ético de uma obra histórica se reflete no modo de
Assim, por exemplo, os radicais partilham com os liberais a crença na implicação ideológica pelo qual uma percepção estética (a elaboração do
possibilidade de estudar a história “racionalmente” e “cientificamente”, mas enredo) e uma operação cogriitiva (o argumento) podem combinar-se para
têm diferentes concepções a respeito daquilo em que poderia consistir uma deduzir enunciados prescritivos daqueles que pareçam ser puramente descriti­
historiografia racional e científica. Aqueles procuram as leis das estruturas e vos ou analíticos. Um historiador pode “explicar” o que aconteceu no campo
dos processos históricos, estes as tendências gerais ou o rumo geral do desen­ histórico ao identificar a lei (ou as leis) que rege(m) o conjunto de eventos
volvimento. Como os radicais e os liberais, os conservadores e os anarquistas postos em enredo na estória como um drama d<, significação trágica. Ou,
acreditam, em conformidade com uma convicção difundida no século XIX, que inversamente, pode encontrar a significação trágica da estória que pôs em
é possível descobrir e apresentar o “sentido” da história em esquemas cogniti­ enredo ao descobrir a “lei” que rege a seqüência de articulação do enredo. Em
vamente responsáveis e não simplesmente autoritários. Mas a concepção que ambos os casos as implicações morais de um determinado argumento histórico
têm de um conhecimento histórico característico requer certa fé na “intuição” têm de ser inferidas do relacionamento que o historiador presume ter existido,
como o terreno em que se poderia erigir uma “ciência” putativa da história. O dentro do conjunto de eventos considerado, entre a estrutura de enredo da
anarquista inclina-se para as técnicas essencialmente empáticas do romantismo conceptualização narrativa de um lado e a forma do argumento oferecido como
em seus relatos históricos, ao passo que o conservador propende para integrar explicação “científica” (ou “realística”) explícita do conjunto de eventos, do
suas várias intuições dos objetos do campo histórico num amplo relato organi- outro.
cista de todo o processo. Um conjunto de eventos posto em enredo como uma tragédia pode ser
No meu modo de ver, não existem premissas extra-ideológicas que per­ explicado “cientificamente” (ou “realisticamente”) recorrendo-se a leis preci­
mitam arbitrar entre as conflitantes concepções do processo histórico e do sas de determinação causal ou a leis putativas de liberdade humana, conforme
42 HAYDEN WH1TE META-HJSTÓRIA 43

o caso. Na primeira hipótese a implicação é que os homens estão atados a um riadores “explicam” um dado evento inserindo-o na rica trama das individuali­
destino inelutável em virtude de sua participação na história, ao passo que na dades igualmente discrimináveis que ocupam esse espaço histórico circundante.
segunda hipótese a implicação é que eles podem agir de maneira a controlar, Contestava tanto a possibilidade de inferir leis do estudo da história quanto a
ou pelo menos influenciar, seus destinos. O impulso ideológico das histórias desejabilidade de submetê-la à análise tipológica. Para ele, uma dada área de
modeladas nesses modos alternativos é em geral “conservador” e “radical” ocorrência histórica representava um campo de acontecimento que era mais ou
respectivamente. Essas implicações não precisam estar formalmente delineadas menos rico no esplendor de sua “trama” e mais ou menos suscetível de repre­
na própria narração histórica, mas serão identificáveis pelo tom ou clima em sentação impressionista. Sua Civilização do Renascimento, por exemplo, é
que estão moldadas a resolução do drama e a epifania da lei que assim se convencionalmente encarada como desprovida de “estória” ou de qualquer
manifesta. As diferenças entre os dois tipos de historiografia assim distinguidos “linha narrativa”. Na verdade, o modo narrativo em que foi vazada é o da sátira,
são aquelas que concebo como características da obra de um Spengler de um a satura (ou “miscelânea”), que é o modo ficcional da ironia e que obtém alguns
lado e de um Marx do outro. O modo mecanicista de explicação é usado por dos seus principais efeitos ao recusar oferecer os tipos de coerências formais
aquele para justificar o tom ou clima de histórias postas em enredo como que estamos condicionados a esperar da leitura da estória romanesca, da
tragédias, mas de maneira a deduzir implicações ideológicas que são socialmen­ comédia e da tragédia. Essa forma narrativa, que é o correspondente estético
te acomodacionistas. Em Marx, porém, uma estratégia de explicação igualmen­ de uma concepção especificamente cética do conhecimento e suas possibilida­
te mecanicista é utilizada para sancionar uma descrição trágica da história que des, apresenta-se como o tipo de todas as concepções supostamente antiideo-
é heróica e militante no tom. As diferenças são precisamente semelhantes lógicas da história e como uma alternativa àquela “filosofia da história”,
àquelas que distinguem a tragédia euripidiana da sofocliana ou, para tomar o praticada tanto por Marx e Hegel quanto por Ranke, que Burckhardt pessoal­
caso de um único autor, a tragédia do Rei Lear da de Hamlet. mente desprezava.
Exemplos específicos de historiografia podem ser rapidamente citados Mas o tom ou clima em que molda uma narrativa satírica tem implicações
para fins de ilustração. As histórias de Ranke são consistentemente vazadas no ideológicas específicas, “liberais” se vazada num tom otimista, “conservadoras”
modo da comédia, forma de enredo que tem como tema central a idéia de se vazada num tom resignado. Por exemplo, a concepção burckhardtiana do
reconciliação. Da mesma maneira, o modo dominante de explicação utilizado campo histórico como uma “textura” de entidades individuais unidas por pouco
por ele foi organicista, que consiste na descoberta das estruturas e dos processos mais do que seu estatuto de componentes do mesmo domínio e pelo fulgor de
integrativos que, acreditava ele, representam os modos fundamentais de relação suas diversas manifestações, combinada com seu ceticismo formal, é destruido­
encontrados na história. Ranke não se ocupava com “leis” mas com a descoberta ra de qualquer esforço por parte de seu público de usar a história como meio
das “Idéias” dos agentes e agências que via como habitantes do campo histórico. de compreender o mundo atual em termos outros que não os conservadores. O
E afirmarei que o tipo de explicação que ele supunha que o conhecimento próprio pessimismo de Burckhardt em relação ao futuro tem o efeito de
histórico proporciona é o equivalente epistemológico de uma percepção esté­ promover em seus leitores uma atitude de “sauve quipeut” e “que o diabo leve
tica do campo histórico que toma a forma de um enredo cômico em todas as quem ficar por último”. Seria possível promover tais atitudes no interesse de
narrativas de Ranke. As implicações ideológicas dessa combinação de um modo causas liberais ou conservadoras, dependendo das situações sociais reais em
cômico de elaboração do enredo e um modo organicista de argumento são que fossem propostas; mas não há possibilidade alguma de basear argumentos
especificamente conservadoras. Pensava-se que essas “formas” que Ranke radicais sobre elas, e suas implicações ideológicas fundamentais como Burck­
divisou no campo histórico existiam no tipo de estado harmonioso que conven­ hardt as empregou são estritamente conservadoras, quando não são simples­
cionalmente aparece no fecho de uma comédia. Ao leitor resta contemplar a mente “reacionárias”.
coerência do campo histórico, considerado como uma estrutura concluída de
“Idéias” (isto é, instituições e valores), e com o tipo de sensação gerada na
encenação de um drama que alcançou uma definitiva resolução cômica de todos
O PROBLEMA DOS ESTILOS HISTORIOGRÁFICOS
os conflitos visivelmente trágicos nele incluídos. O tom de voz é acomodacionis-
ta, o clima é otimista e as implicações ideológicas são conservadoras, porquanto
se pode concluir naturalmente de uma história assim explicada que se habita o Tendo feito distinção entre os três níveis em que operam os historiadores
melhor dos mundos históricos possíveis, ou pelo menos o melhor que se pode com o fito de alcançar uma impressão explicativa em suas narrativas, conside­
“realisticamente” esperar que exista, dada a natureza do processo histórico que rarei agora o problema dos estilos historiográficos. Em minha opinião, um estilo
historiográfico representa uma combinação particular d£ modos de elã^ração
se revela nos relatos que Ranke faz dele.
ãeTenredo^ argument^SoTimpficaçãõ ideológica. Kías*osdiversos modos de
Burckhardt representa outra variante dessas mesmas possibilidades de elaboraçao de enredo, argumentaçao e implicação ideológica nao podem ser
combinação. Burckhardt era um contextualista; dava a entender que os histo­ indiscriminadamente combinados numa determinada obra. Por exemplo, um
HAYDEN WIUTE
META HISTÓRIA 45

enredo cômico não é compatível com um argumento mecanicista, assim como


uma ideologia radical não é compatível com um enredo satírico. Há, por assim espécies distintas de fenômenos. Alem disso, cumpre concebe-las de modo que
dizer, afinidades eletivas entre os vários modos que poderiam ser usados para mantenham certos tipos de relações umas com as outras, cujas transformações
alcançar uma impressão explicativa nos diferentes níveis de composição. E essas constituirão o “problema” que será resolvido pelas “explicações” proporciona­
afinidades eletivas baseiam-se nas homologias estruturais que se podem discer­ das nos níveis de enredo e argumentação da narrativa.
nir entre os possíveis modos de elaboração de enredo, argumentação e impli­ Em outras palavras, o historiador defronta o campo histórico mais ou
cação ideológica. As afinidades podem ser graficamente representadas assim: menos da mesma maneira que o gramático defrontaria uma nova língua. Seu
primeiro problema consiste em distinguir entre os elementos léxicos, gramati­
Modo de Elaboração Modo de Modo de Implicação cais e sintáticos do campo. Só então poderá ele intentar a interpretação do que
de Enredo Argumentação Ideológica significam determinadas configurações de elementos ou transformações de suas
relações. Em suma, o problema do historiador é construir um protocolo lingüís­
Romanesco Formista Anarquista tico, preenchido com as dimensões léxicas, gramaticais, sintáticas e semânticas,
Trágico Mecanicista 4„ Radical por meio do qual irá caracterizar o campo, e os elementos nele contidos, nos
Cômico Organicista Conservador
seus próprios termos (e não nos termos em que vêm rotulados nos documentos)
Satírico Contextualista Liberal
e assim prepará-los para a explicação e representação que posteriormente
oferecerá deles em sua narrativa. Por sua vez, esse protocolo lingüístico precon-
ceptual será - em virtude de sua natureza essencialmente prefigurativa - carac-
Convém não tomar essas afinidades como combinações necessárias dos
tcrizável em função do modo tropológico dominante em que será vazado.
modos num determinado historiador. Pelo contrário, a tensão dialética que
caracteriza a obra de todo historiador magistral geralmente surge de um afã de Os relatos históricos se querem modelos verbais, ou ícones, de segmentos
aliar um modo de elaboração de enredo com um modo de argumentação ou de específicos do processo histórico. Mas tais modelos são necessários porque o
implicação ideológica que é incompatível com ele. Por exemplo, como irei registro documental não apresenta uma imagem não equívoca da estrutura dos
mostrar, Michelet tentou combiriar um enredo romanesco e um argumento eventos nele atestados. A fim de imaginar “o queJrgg//ne/Ue aconteceu” no
formista com uma ideologia que é explicitamente liberal. Assim também Burck- passado, portanto, deve primeiro o historiador prefigurar como objetopossível
hardt empregou um enredo satírico e um argumento contextualista a serviço de
uma postura ideológica que é explicitamente conservadora e em última análise Este ato prefigurativa é poéZico. visto que é precognitivo e pré-crítico na
reacionária. Hegel elaborou seu enredo da história em dois níveis - trágico no economia da própria consciência do historiador. É também poético na medida
microcósmico e cômico no macrocósmico -, ambos justificados pelo emprego em que é constitutivo da estrutura cuja imagem será subseqüentemente formada
de um modo de argumentação que é organicista, daí resultando a possibilidade
de inferir implicações ideológicas radicais ou conservadoras de uma leitura de daquilo “que realmente aconteceu” no passado. Mas é constitutivo não somente
sua obra. de um domínio que o historiador pode tratar como possível objeto de percepção
Mas, em todos os casos, a tensão dialética se desenvolve dentro do (mental). É também constitutivo dos.rQZ?cg/7jQ.£..Qne emPX£garáJ)ara identificar
contexto de uma visão coerente ou imagem diretiva da forma da totalidade do os&bjgtop que povoam aquele domínio e caracterizar os tipos de relações que eles
campo histórico. Isso confere à concepção que o historiadortem do campo o podem manter entre si. No ato poético que precede a análise formal do campo
aspecto de uma totalidade coerente. E essa coerencia e consistência dao a obra o historiador cria seu objeto de análise e também predetermina a modalidade
seus atributos estilísticos propnos. O problema aquj^^ide em determinarmos das estratégias conceptuais de que se valerá para explicá-lo.
fundamentos dessa ccKrênci_ae,,çpnsistência. A meuyer, esses fundjmç.ntossão Mas o número de estratégias explicativas possíveis não é infinito. Há, dc
poéticos, e êspeqffcam^ fato, quatro tipos principais, que correspondem aos quatro principais tropos da
linguagem poética. Por conseguinte, localizamos as categorias para analisar os
Antes que o historiador possa aplicar aos dados do campo histórico o
diferentes modos dc reflexão, representação e explicação, encontrados cm
aparato conceptual que usará para representá-lo e explicá-lo, cabe-lhe primeiro
campos não científicos como a historiografia, nas modalidades da própria
prefigurar o campo, isto é, constituí-lo como objeto de percepção mental. Esse
linguagem poética. Em suma, a teoria dos tropos fornece-nos uma base para
ato poético é indistingüível do ato lingüístico em que o campo é preparado para
classificar as formas estruturais profundas da imaginação histórica num dado
a interpretação como um domínio dc tipo particular. Em outras palavras, antes
período de sua evolução.
que um dado domínio possa ser interpretado, há de ser primeiro organizado
como um território povoado por figuras discerníveis. As figuras, por sua vez,
devem ser concebidas para ser classificáveis como ordens, classes, gêneros e
46 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 47

A TEORIA DOS TROPOS mais flexível do discurso poético e uma diferenciação mais sutil dos estilos literários do que a oferecida pelo
sistema bipolar preferido pelos lingúistas modernos. Embora mantendo a distinção binária básica entre
metáfora e metonímia, alguns retóricos passaram a ver a sinédoque como uma espécie de uso metafórico e
A poética tradicional e a moderna teoria da linguagem identificam quatro a ironia como uma espécie de uso metonímico. Isso permite a distinção entre linguagem integrativa de um
tropos básicos para a análise da linguagem poética, ou figurada: metáfora, lado e linguagem dispersiva do outro, conquanto ainda permita outras distinções concernentes e graus de
metonímia, sinédoque e ironia13. Esses tropos permitem a caracterização de integração ou redução visados em diferentes convenções estilísticas. Em A Ciência Nova (1725, 1740).
Giambattista Vico utilizou a quádrupla distinção entre os tropos como base para diferenciar 06 estágios de
objetos em diferentes tipos de discurso indireto, ou figurado. São especialmente consciência através dos quais a humanidade passou do primitivismo para a civilização. Ao invés de ver uma
úteis para entender as operações pelas quais os conteúdos de experiência que oposição entre consciência poética (mítica) e consciência prosaica (científica), portanto, Vico viu uma
resistem à descrição em representações não ambíguas em prosa podem ser continuidade. Ver Thomas G. Bergin & Ma H. Fisch (Trads.), The New Science of Giambattista Vico (Ithaca,
N.Y., 1968) Livro 2, pp. 129ess., sobre“Poetic Wisdom”. Sobre a teoria retórica do Renascimentoe quanto
a um catálogo das clássicas figuras de linguagem e dos tropos, ver Lee A Sonnino./l Handbookto Siteenth
13. Os dois principais expoentes da concepção tropológica do discurso nãocientífico (mítico. artístico e onírico) Century Rhetoric (Londres, 1968), pp. 10-14, 243-46.
sãoos estruturalistas Roman Jakobson eClaudeLévi-Strauss. Este usa a díade metafórico-metonímica como A distinção entre esquemas efiguras em retórica convencional assenta nisto: um esquema (seja de palavras
base para sua análise dos sistemas nomeativos em culturas primitivas e como chave para a compreensão dos [Zexeor], seja de pensamento [dianoia]) é uma ordem de representações que não envolve saltO6 ou substitui­
mitos. Ver ClaudeLévi-Strauss, TheSavageMind, pp. 205-44; e, para uma exposição do método, verEdmund ções “irracionais”; já uma figura envolve precisamente tal substituição irracional (ou pelo menos inespera­
Leach, Claude Lévi-Strauss (Nova York, 1970). pp. 47 ess. Jakobson usa a mesma díade como base para uma da), como, por exemplo, na expressão “frias paixões” em que o adjetivo “quentes" talvez fosse esperado.
teoria lingúística da poética. Ver seu brilhante ensaio “Linguistics and Poetícs”, em Thomas A. Sebeok Mas o que é racional e o que é irracional no uso lingúístico? É racional qualquer figura de linguagem que
(Org.), Stylein Language (Nova York e Londres. 1960), pp. 350-77; e o famoso capítulo 5 de Roman Jakobson produz o efeito de comunicação visado pelo usuário. E o mesmo se poderia dizer dos esquemas, quer de
e Morris Halle, Fundamentais of Language (Gravenhage, 1956 intitulado “The Metaphoric and Metony- palavrasquer de pensamentos. Ouso criativoda linguagem admite, na verdade exige, afastamento em relação
mic Poles”, republicado em Hazard Adams (Org.), Criticai Theory since Ptato (Nova York, 1971), pp. ao que a consciência no ato de ler, pensar ou ouvir antevê com base na convenção. E isto se aplicaria tanto
1113-16. Para idêntica aplicação dessa díade ao problema da caracterização da estrutura linguística dos ao discurso “realista” em prosa quanto à poesia, por mais “romântica” que fosse. O que os sistemas
sonhos na psicanálise, ver Jacques Lacan, “The Insistence of the Letter in the Unconscious”, em Jacques terminológicos formais, como os ideados para denotar os dados da física, têm em vista é a eliminação por
Ehrmann (Org.), StructuraUsm (Nova York, 1966). pp. 101-36. completo da linguagem figurada, a construção de “esquemas” de palavras perfeitos em que nada de
Lévi-Strauss, Jakobson e Lacan concebem a metáfora e a metonímia como os “pólos” do comportamento inesperado apareça na designação dos objetos de estudo. Por exemplo, o acordo para usar o cálculo como
lingúístico, representando respectivamente os eixos contínuo (verbal) e descontínuo (nominal) dos atos de o sistema terminológico para discutir a realidade física postulada por Newton representa a esquematização
fala. Na teoria lingúística do estilo, de Jakobson, a sinédoque e a ironia são tratadas como espécies de daquela área de discurso, ainda que não do pensamento em tomo de seu objeto de estudo. O pensamento a
metonímia, a qual, por sua vez, é vista como o tropo fundamental da prosa “realista”. Assim, por exemplo, respeito do mundo físico continua essencial mente figurativo, avançando mediante todos os tipos de saltos e
Jakobson escreve: “O estudo dos tropos poéticos tem sido dirigido principalmente para a metáfora, e a pulos “irracionais” de uma teoria para outra - mas sempre dentro do modo metonímico. O problema para
chamada literatura realista, intimamente ligada ao princípio metonímico, ainda resiste à interpretação, o físico criativo é moldar suas percepções, inferidas por meios figurativos, no esquema de palavras
embora a mesma metodologia lingüística, que a poética usa ao analisar o estilo metafórico da poesia especificado para a comunicação com outros físicos comprometidos com o sistema terminológico matemá­
romântica, seja inteiramente aplicável à textura metonímica da prosa realista”. Ver Jakobson. “Linguistics tico fornecido por Newton.
and Poetícs”, p. 375. Na verdade, a análise da história do realismo no romance em função de seu conteúdo O problema fundamental da representação “realista” daquelas áreas da experiência nãoterminologicamente
essenciaimente metonímico foi feita por Stephen Ullmann. Style in the French Novel (Cambridge. 1967). disciplinadas do modo que é a física está em formular um adequado esquema de palavras para representar
Ullmann demonstra a progressiva “nominalização” do estilo essencial mente “verbal” do romance romântico o esquema de pensamentos que por suposição é a verdade acerca da realidade. Mas, quando se trata de
de Stendhal a Sartre. caracterizar uma área da experiência a respeito da qual não há concordância fundamentai em torno daquilo
Mas por mais fecunda que se tenha revelado a díade metafórico-metonímica para a análise do fenômeno em que ela consiste ou do que poderia ser sua verdadeira natureza, ou quando se trata de contestar uma
linguístico, seu emprego como arcabouço para caracterizar estilos literárias é, em minha opinião, limitada. caracterização convencional de um fenômeno como uma revolução, a distinção entre o que é legitimamente
Inclino-me a utilizara quádrupla concepçãodos tropos, convencional desde o Renascimento, para distinguir “esperado” e o que não é desaparece. O pensamento acerca do objeto por representar e as palavras a usar
as diversas convenções estilísticas dentro de uma única tradição de discurso. Como Émile Benveniste propôs na representação ou do objeto ou do pensamento acerca do objeto entregam-se aos uso>s d o discurso figurado.
em seu penetrante ensaio sobre a teoria da linguagem de Freud, “é antes o estilo que a linguagem que É imperioso, portanto, quando se analisam supostas representações “realistas” da realidade determinar o
tomaríamos como termo de comparação com as propriedades que Freud revelou como indicativas da modo poético dominante em que está vazado o discurso. Ao identificar o modo (ou os modos) dom inantes(s)
linguagem onírica (...). O inconsciente usa uma autêntica ‘retórica’ que, como o estilo, tem suas ‘figuras’, e do discurso, penetra-se naquele nível de consciência em que um mundo da experiência é constituído antes
o velho catálogo dos tropos forneceria um inventário apropriado aos dois tipos de expressão [simbólico e de ser analisado. E, retendo na memória a quádrupla distinção entre os “tropos mestres”, como lhes chama
significativo)”. Émile Benveniste, “Remarks on the Funclion ofLanguage in Freud ia n Theory”, em Problems Kenneth Burke, toma-se possível especificar os diversos “estilos de pensamento” que poderiam aparecer,
of General Linguistics (Coral Gables, Flórida, 1971), p. 75. Nesse ensaio Benveniste esvazia a distinção entre mais ou menos escondidos, em qualquer representação da realidade, seja ela manifestamente poética ou
linguagem poética e prosaica, entre a linguagem dos sonhos e a da consciência vígil. entre os pólos metafórico prosaica. Ver Burke, Grammar, Apêndice D, pp. 503-17. Cf. Paul Henle (Org), Language, Thought, and
e metonímico. Isso é compatível com a minha afirmação de que as similaridades entre representações Culture (Ann Arbor, Mich., 1966), pp. 173-95. A bibliografia sobre os tropos é variada e fustigada por
poéticas e discursivas da realidade são tão importantes quanto as diferenças. Pois o que se passa com as discordância congênita. Alguns dos problemas que há que enfrentar quando se tenta analisar as dimensões
ficções “realistas” passa-se com os sonhos: “A natureza do conteúdo faz com que todas as variedades de tropológicas do discurso podem ser vistos nas diversas caracterizações do6 tropos feitas em Alex Preminger
metáfora apareçam, pois os símbolos do inconsciente recebem seu significado e sua dificuldade da conversão et ai (Orgs.), Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetic, (Princeton, 1965).
metafórica. Também empregam o que a retórica tradicional chama de metonímia (o continente pelo Ter presente a quádrupla análise da linguagem figurada tem a vantagem adicional de impedir que incorra­
conteúdo) e sinédoque (a parte pelo todo) [ricj. e se a ‘sintaxe’ das sequências simbólicas faz aparecer um mos numa concepção essencialmente dualista dos estilos que a concepção bipolar de estilo-cum-linguagem
artifícip mais do que qualquer outro, é a elipse” (Ibid.). promove. De fato, a quádrupla classificação dos tropos permite o uso das possibilidades combinatórias de
Parte da dificuldade de passar de uma caracterização lingúística para uma caracterização estilística das uma classificação dual -binária dos estilos. Através do seu uso não somos forçados, como Jakobson é, a divid ir
formas de literatura realista talvez resida na incapacidade de explorar a distinção retórica convencional a história da literatura do século XIX entre uma tradição romântico-poético-metafórica de um lado e uma
entre tropos e figuras de um lado e entre tropos e esquemas do outro. Os retóricos do século XVI. seguindo tradição realístico-prosaico-metonímica de outro. Ambas as tradições podem ser vistas como elementos de
Petrus Ra mus, classificaram as figuras de linguagem em função dos quatro tropos (ou modos) da metáfora, uma única convenção de discurso em que todas as estratégias tropológicas de uso lingúístico estão presentes,
da metonímia, da sinédoque e da ironia, mas sem frisarsua mútua exclusão, assim fornecendo uma concepção mas presentes em diferentes graus em diversos escritores e pensadores.
META-HISTÓRIA 49
48 HAYDENWHETE

contrário, sugere-se que os “navios” são em certo sentido identificáveis com


prefigurativamente compreendidos e preparados para a apreensão consciente.
aquela parte deles mesmos sem a qual não podem operar.
Na metáfora (literalmente, “transferência”), por exemplo, os fenômenos podem
ser caracterizados em função de sua semelhança ou diferença com um outro, à Na metonímia os fenômenos são implicitamente apreendidos como tendo
maneira da analogia ou símile, como na frase “meu amor, uma rosa”. Através relações entre si na modalidade dos relacionamentos de parte com parte, com
da metonímia (literalmente, “troca de nome”), o nome de uma parte de uma base na qual se pode efetuar uma redução de uma das partes à condição de um
coisa pode substituir o nome do todo, como na expressão “cinqüenta velas” aspecto ou função da outra. Apreender qualquer conjunto dado de fenômenos
quando o que está indicado é “cinqüenta navios”. Com a sinédoque, que é como existente na modalidade de relações de parte com parte (não, como na
considerada por alguns teóricos como uma forma de metonímia, um fenômeno metáfora, relações objeto-objeto) é impor ao pensamento a tarefa de distinguir
pode ser caracterizado usando-se a parte para simbolizar alguma qualidade que entre aquelas partes que são representativas do todo e aquelas que são simples­
se presume seja inerente à totalidade, como na expressão “ele é todo coração”. mente aspectos dele. Assim, por exemplo, a expressão “o estrondo do trovão”
Através da ironia, finalmente, é possível caracterizar entidades por meio da é metonímica. Nessa expressão todo o processo pelo qual se produz o som do
negação no nível figurado do que é afirmado posUiyamente no nível literal. As trovão é primeiro dividido em dois tipos de fenômenos: o de uma causa por um
figuras de expressão manifestamente absurda (catacrese), como “bocas cegas”, lado (o trovão); e o de um efeito pelo Outro (o estrondo). Depois, feita essa
divisão, o trovão é relacionado com o estrondo na modalidade de uma redução
e de paradoxo explícito (oxímoro), como “fria paixão”, podem ser tomadas
como emblemas desse tropo. causa-efeito. O som significado pelo termo “trovão” é brindado com o aspecto
de um “estrondo” (tipo particular de som), o que permite que se fale (metoni­
Ironia, metonímia e sinédoque são tipos de metáfora, mas diferem umas
das outras nos tipos de reduções ou integrações que efetuam no nível literal de micamente) do “trovão que causa o estrondo”.
Pela metonímia, portanto, pode-se simultaneamente distinguir entre dois
suas significações e pelos tipos de iluminações que têm em mira no nível
fenômenos e reduzir um à condição dê manifestação do outro. Essa redução
figurado. A metáfora é essencialmente representacional, a metonímia é reducio-
pode tomar a forma de uma relação agente-ato (“o trovão estronda") ou uma
nista, a sinédoque é integrativa e a ironia é negacional.
relação causa-efeito (“o estrondo do trovão”). E, por meio de tais reduções,
Por exemplo, a expressão metafórica “meu amor, uma rosa” afirma a como assinalaram Vico, Hegel e Nietzsche, o mundo fenomênico pode ser
adequação da rosa como representação da(o) amada(o). Declara que existe povoado por uma profusão de agentes e agências que se presume existam por
semelhança entre dois objetos apesar de diferenças manifestas entre eles. Mas trás dele. Uma vez que o mundo dos fenômenos é separado em duas ordens do
a identificação do ser amado com a rosa é apenas literalmente declarada. A frase ser (agentes e causas de um lado, atos e efeitos do outro), a consciência primitiva
destina-se a ser tomadafiguradamente como indicação das qualidades de beleza, é presenteada, por meios puramente linguísticos apenas, com as categorias
preciosidade, delicadeza e assim por diante, possuídas pelo ser amado. O termo conceptuais (agentes, causas, espíritos, essências) necessárias para a teologia,
“amor” faz as vezes de signo de um determinado indivíduo, mas o termo “rosa” a ciência e a filosofia da reflexão civilizada.
é entendido como sendo uma “figura” ou um “símbolo” das qualidades atribuí­
Mas a relação essencialmente extrínseca que se presume caracterizar as
das ao ser amado. O ser amado é identificado com a rosa, mas de modo a
duas ordens de fenômenos em todas as reduções metonímicas pode, por siné­
sustentar a particularidade do ser amado enquanto sugere as qualidades que
doque, ser interpretada à maneira de uma relação intrínseca de qualidades
ela (ou ele) compartilha com a rosa. O ser amado não é reduzido a uma rosa,
compartilhadas. A metonímia afirma uma diferença entre fenômenos interpre­
como seria o caso se a frase fosse lida metonimicamente, nem a essência do ser
tada à maneira de relações parte-parte. A “parte” da experiência que é apreen­
amado é tomada como sendo idêntica à essência da rosa, como seria o caso se
dida como “efeito” relaciona-se com aquela “parte” que é apreendida como
a expressão fosse entendida como uma sinédoque. Nem, é óbvio, a expressão é
“causa” à maneira de uma redução. Pelo tropo da sinédoque, porém, é possível
tomada como negação implícita do que é explicitamente afirmado, como no
caso da ironia. interpretar as duas partes à maneira de uma integração dentro de um todo que
é qualitativamente diferente da soma das partes e do qual as partes são apenas
Um tipo semelhante de representação está contido na expressão metoní- réplicas microcósmicas.
mica “cinqüenta velas” quando usadas para significar “cinqüenta navios”. Mas
A título de ilustrar o que está subentendido no uso sinedóquico, analisarei
aqui o termo “vela” é substituto do termo “navio” de modo a reduzir o todo a
a expressão “Ele é todo coração”. Nessa expressão há o que parece ser uma
uma de suas partes. Dois objetos diferentes estão sendo implicitamente compa­
metonímia, isto é, o nome de uma parte do corpo é usado para caracterizar o
rados (como na frase “meu amor, uma rosa”), mas os objetos são explicitamente
concebidos para terem um com o outro uma relação da parte com o todo. A corpo todo do indivíduo. Mas o termo “coração” deve ser entendido figurada­
mente como designando, não uma parte do corpo, mas aquela qualidade de
modalidade dessa relação, porém, não é a de um microcosmo-macrocosmo,
caráter convencionalmente simbolizada pelo termo “coração” na cultura oci­
como seria verdadeira se o termo “vela” se destinasse a simbolizar a qualidade
dental. O termo “coração” não se destina a ser interpretado como designando
partilhada por “navios” e “velas”, caso em que seria uma sinédoque. Ao
50 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 51

uma parte da anatomia cuja função pode ser utilizada para caracterizar a função retórica da aporia (literalmente “dúvida”), em que o autor sinaliza de antemão
do corpo todo, como em “cinqüenta velas” para “cinqüenta navios”. Pelo uma descrença real ou fingida na verdade de seus próprios enunciados, poderia
contrário, deverá ser interpretado como símbolo de uma qualidade que é ser considerada a fórmula estilística predileta da linguagem irônica, tanto na
característica do indivíduo todo, considerado como uma combinação de ele­ ficção da espécie mais “realística” quanto nas histórias que são moldadas num
mentos físicos e espirituais, todos os quais participam dessa qualidade na tom autoconscientemente cético ou são “relativizantes” nas suas intenções.
modalidade de uma relação microcósmico-macrocósmica.
O alvo do enunciado irônico é afirmar tacitamente a negação do que no
Assim, na expressão “Ele é todo coração”, uma sinédoque se superpõe a nível literal é afirmado positivamente, ou o inverso. Pressupõe que o leitor ou
uma metonímia. Se fosse tomada em sentido literal, a expressão seria absurda. ouvinte já conhece, ou é capaz de reconhecer, a absurdez da caracterização da
Lida metonimicamente, seria redutiva, considerando que apenas implicaria o coisa designada na metáfora, na metonímia ou na sinédoque usada para lhe dar
reconhecimento da centralidade do coração para o funcionamento do organis­ forma. Assim, a expressão “Ele é todo coração” se torna irônica quando
mo a fim de ser mesmo sugestiva figuradamente. Mas lida sinedoquicamente - proferida num certo tom de voz ou num contexto em que a pessoa designada
isto é, como declaração que sugere uma relação qualitativa entre os elementos obviamente não possui as qualidades que lhe são atribuídas pelo uso dessa
de uma totalidade -, é antes integrativa que redutiva. Diferentemente da sinédoque.
expressão metonímica “cinqüenta velas”, usada como figura para “cinqüenta
navios”, destina-se a assinalar não somente uma “troca de nome” mas uma troca Pode-se ver de imediato que a ironia é em certo sentido metatropoló-
de nome designativa de uma totalidade (“Ele”) possuidora de alguma qualidade gica, pois desenrola-se na percepção autoconsciente do possível abuso da
(generosidade, compaixão etc.) que enche e constitui a natureza essencial de linguagem figurada. A ironia pressupõe a ocupação de uma perspectiva
todas as partes que a compõem. Como metonímia, sugere uma relação entre as “realística” da realidade, de onde se poderia oferecer uma representação
várias partes do corpo que deve ser entendida no plano da função central do não figurada do mundo da experiência. A ironia representa assim um estágio
coração entre aquelas partes. Como sinédoque, porém, a expressão sugere uma da consciência em que se reconhece a natureza problemática da própria
relação entre as partes do indivíduo, considerado como uma combinação de linguagem. Chama a atenção para a tolice potencial de todas as caracteriza­
atributos físicos e espirituais, que é de natureza qualitativa e da qual todas as ções lingüísticas da realidade, tanto quanto para a absurdidade das crenças
partes participam. que ela parodia. É portanto “dialética”, como observou Kenneth Burke,
Consideramos os três tropos até agora examinados como paradigmas, ainda que não tanto em sua apreensão do processo do mundo como em sua
supridos pela própria linguagem, das operações pelas quais a consciência pode apreensão da capacidade da linguagem para obscurecer mais do que aclarar
prefigurar áreas da experiência que são cognitivamente problemáticas a fim de em qualquer ato de figuração verbal. Na ironia a linguagem figurada torna
posteriormente submetê-las a análise e explicação. Isto é, no próprio uso a dobrar-se sobre si mesma e põe em questão suas próprias potencialidades
lingüístico, o pensamento se abastece de possíveis paradigmas alternativos de para distorcer a percepção. É por isso que as caracterizações do mundo
explicação. A metáfora é representacional no sentido em que poderá sê-lo o vazadas no modo irônico são amiúde consideradas intrinsecamente refinadas
formismo. A metonímia é redutiva à maneira mecanicista, enquanto a sinédoque e realistas. Parecem assinalar a ascensão do pensamento, numa dada área
é integrativa como o é o organicismo. A metáfora sanciona a prefiguração do da investigação, a um nível de autoconsciência no qual se torna possível uma
mundo da experiência no plano da relação objeto-objeto, a metonímia no da conceptualização do mundo e seus processos verdadeiramente “esclareci­
da”, isto é, autocrítica.
relação parte-parte e a sinédoque no da relação objeto-todo. Cada tropo
também promove o cultivo de um protocolo lingüístico único. Esses protocolos O tropo da ironia, portanto, proporciona um paradigma lingüístico de um
lingüísticos podem ser chamados de linguagens da identidade (metáfora), da modo de pensamento que é radicalmente autocrítico com respeito não só a uma
extrinsecalidade (metonímia) e da intrinsecalidade (sinédoque). dada caracterização do mundo da experiência mas também ao próprio esforço
Em contraste com esses três tropos, que qualifico de “ingênuos” (uma vez de captar adequadamente a verdade das coisas na linguagem. É, em resumo,
que só podem expandir-se na crença na capacidade da linguagem para apreen­ um modelo do protocolo lingüístico em que o ceticismo no pensamento e o
der a natureza das coisas em termos figurados), avulta o tropo da ironia como relativismo na ética são convencionalmente expressos. Como paradigma da
um equivalente “sentimental” (no sentido schilleriano de “autoconscientc”). forma que uma representação do processo do mundo poderia assumir, é
Diz-se que a ironia é essencialmente dialética, visto representar um uso auto- intrinsecamente hostil às formulações “ingênuas” das estratégias de explicação
consciente da metáfora a serviço da auto-anulação verbal. A tática figurada formistas, mecanicistas e organicistas. E sua forma ficcional, a sátira, é intrin­
básica da ironia é a catacrese (literalmente “abuso”), metáfora manifestamente secamente antagônica aos arquétipos da estória romanesca, da comédia e da
absurda destinada a inspirar reconsiderações irônicas acerca da natureza da tragédia como modos de representar as formas de desenvolvimento humano
coisa caracterizada ou da inadequação da própria caracterização. A figura significativo.
52 HAYDENWIHTE META-HISTÓRIA 53

Existencialmente projetada numa visão de mundo amadurecida, a ironia a sua Filosofia da História (1830-1831), identificou corretamente a principal
daria a impressão de ser transideológica. A ironia pode ser utilizada taticamente causa do cisma: as irredutíveis divergências entre um modo irônico e um modo
para defesa de posições ideológicas liberais ou conservadoras, dependendo de metafórico de apreender o campo histórico. Além disso, na sua filosofia da
estar o ironista falando contra formas sociais estabelecidas ou contra reforma­ história, Hegel apresentou uma justificação racional para concebê-lo no modo
dores “utópicos” que procuram alterar o status quo. E pode ser usada defensi­ sinedóquico.
vamente pelo anarquista e pelo radical para ridicularizar os ideais de seus Durante esse mesmo período, naturalmente, o racionalismo iluminista era
opositores liberais ou conservadores. Mas, como base de uma visão de mundo, submetido a revisão numa direção organicista pelos positivistas franceses. Na
a ironia tende a dissolver toda crença na possibilidade de ações políticas obra de Auguste Comte, cujo Cours de la philosophie positive começou a
positivas. Em sua apreensão da doidice ou absurdez essencial da condição aparecer em 1830, as teorias mecanicistas de explicação propostas pelo Ilumi-
humana, ela tende a engendrar crença na “loucura” da própria civilização e a nismo fundiram-se com uma concepção organicista do processo histórico. Isso
inspirar um desdém mandarinesco por aqueles que procuram compreender a permitiu que Comte pusesse em enredo a história como comédia, dissolvendo
natureza da realidade social através da ciência ou da arte. assim o mythos satírico que havia refletido o pessimismo da historiografia do
final do Iluminismo.

AS FASES DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA DO SÉCULO XIX Assim, durante o primeiro terço do século XIX, três “escolas” distintas
de reflexão histórica tomaram corpo: a “romântica”, a “idealista” e a “positi­
vista”. E ainda que discordassem entre si quanto ao método correto de estudar
A teoria dos tropos proporciona um meio de caracterizar os modos
e explicar a história, uniam-se no repúdio da atitude irônica com que os
dominantes da reflexão histórica que tomou forma na Europa no século XIX.
racionalistas do final do Iluminismo tinham abordado o estudo do passado. Essa
E, como base para uma teoria geral da linguagem poética, permite-me descrever
compartilhada antipatia pela ironia em todas as suas formas explica em grande
a estrutura profunda da imaginação histórica daquele período considerado
parte o entusiasmo pelos estudos históricos que foi característico da época e o
como produto de um ciclo encerrado. Pois cada um dos modos pode ser visto
tom autoconfiante da historiografia do começo do século XIX, que prevalecia
como uma fase, ou momento, dentro de uma tradição de discurso que evolui
a despeito de divergências cruciais sobre questões de “metodologia”.
das formas de percepção metafórica, metonímica e sinedóquica do mundo
histórico para uma apreensão irônica do irredutível relativismo de todo o Também explica o tom peculiar do pensamento histórico durante sua
conhecimento. segunda fase, “madura” ou “clássica”, que se estendeu de mais ou menos 1830
a 1870 aproximadamente. Esse período se distinguiu pelo debate travado em
A primeira fase da consciência histórica do século XIX tomou forma torno da teoria histórica e pela produção consistente de volumosos relatos
dentro do contexto de uma crise na refleíãoHstór^a^n^djíJlminiimo. narrativos de culturas e sociedades passadas. Foi durante essa fase que os
Pensadores como Voltaire, Gibbon, Hume, Kant e Robertson tinham chegado quatro grandes “mestres” da historiografia oitocentista - Michelet, Ranke,
finalmente a ver a história em termos essencialmente irônicos. Os pré-românti­ Tocqueville e Burckhardt - produziram suas principais obras.
cos - Rousseau, Justus Mõser, Edmund Burke, os poetas da natureza suíços, os
O que é mais admirável na historiografia dessa fase é o grau de autocons­
Stürmerund Dràngereem especial Herder - opuseram a essa concepção irônica
ciência teórica em que seus representantes levaram a cabo suas investigações
da história uma antítese autoconscientemente “ingênua”. Os princípios dessa do passado e compuseram suas narrações desse passado. Quase todos eles se
concepção da história não foram coerentemente elaborados nem receberam a inspiraram na esperança de criar uma perspectiva do processo histórico que
adesão uniforme dos diversos críticos do Iluminismo, mas todos eles partilha­ fosse tão “objetiva” quanto aquela pela qual os cientistas observavam o processo
vam da comum antipatia pelo racionalismp iluminista. Acreditavam na “empa-
da natureza e tão “realista” quanto aquela pela qual os estadistas do período
tia” enquanto método de investigação histórica e cultivavam certa simpatia por
dirigiam os destinos das nações. Durante essa fase, portanto, o debate tendeu
aqueles aspectos da história e da humanidade que os iluministas tinham enca­
a voltar-se para a questão dos critérios pelos quais se poderia julgar uma
rado com desprezo ou condescendência. Em conseqüência dessa oposição
concepção genuinamente “realista” da história. Como seus contemporâneos
produziu-se uma verdadeira crise na reflexão histórica, uma profunda^diyergên-
romancistas, os historiadores da época queriam produzir imagens da história
cia a respeito da atitude adequada para abordar o estudo d^^storía. Esse cisma
que fossem tão livres da abstratividade de seus predecessores iluministas quanto
ãcarretouineviTavelmZníFolnteresse peíáTeoffã KKtôríca, e,~na~ altura da
eram desprovidas das ilusões de seus precursores românticos. Mas também
primeira década do século XIX,' ÕT^prÔBIèrria do conhecimento histórico”
como os romancistas seus contemporâneos (Scott, Balzac, Stendhal, Flaubert e
passara a ocupar o centro das preocupações dos filósofos do período.
os Goncourt), só logravam produzir tantas espécies diferentes de “realismo”
Hegel foi o filósofo que deu a esse problema sua mais profunda formula­ quantas eram as modalidades de interpretar o mundo em discurso figurado. Em
ção. Durante o período situado entre a sua Fenomenologia do Espírito (1806) e confronto com o “realismo” irônico do Iluminismo, inventaram uma porção de
54 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 55

“realismos” concorrentes, projeção cada qual de um ou outro dos modos da Burckhardt como as bases do seu tipo peculiar de “realismo” foram autocons-
metáfora, da metonímia e da sinédoque. De fato, como irei mostrar, os “realis­ cientemente assumidos como problemas por Nietzsche. De mais a mais, foram
mos históricos” de Michelet, Tocqueville e Ranke consistiram em pouco mais considerados manifestações de um estado de decadência espiritual que iria ser
do que rebuscamentos críticos de perspectivas supridas por essas estratégias superado em parte pela libertação da consciência histórica do ideal impraticável
tropológicas para processar a experiência por meios especificamente “poéti­ de uma perspectiva transcendentalmente “realista” do mundo.
cos”. E, no “realismo” de Burckhardt, assiste-se à queda uma vez mais naquela Em suas primeiras obras filosóficas Nietzsche tomou como seu problema
condição irônica da qual o próprio “realismo” deveria libertar a consciência a consciência irônica de sua época e, como corolário disso, as formas específicas
histórica da época. de conceptualização histórica que a sustentavam. E, como Hegel antes dele
A esfoliação desses vários modos de conceptualização histórica não só se (embora num outro espírito e com outro alvo em mira), procurou dissolver essa
fez acompanhar mas em grande medida provocou nova reflexão sobre a filosofia ironia sem cair nas ilusões de um romantismo ingênuo. Mas Nietzsche não
da história. No curso dessa segunda fase, a filosofia da história tendeu a tomar representa um retorno à concepção romântica do processo histórico, porquanto
a forma de um ataque ao sistema de Hegel, mas, de modo geral, não conseguiu tentou assimilar o pensamento histórico a uma noção de arte que toma o modo
levar a reflexão sobre a consciência histórica mais além do ponto onde ele a metafórico como sua estratégia figurativa paradigmática. Nietzsche falava de
tinha deixado. A exceção a essa regra é, naturalmente, Marx, que tentou uma historiografia que é conscientemente meta-histórica em sua teoria e “su-
combinar as estratégias sinedóquicas de Hegel com as estratégias metonímicas per-histórica” em seu objetivo. A sua era, portanto, uma defesa de uma aper-
da economia política do seu tempo, com o fim de criar uma visão histórica que cc^oautoconscientementemetafórica do campo histórico, o que vale dizer que
fosse ao mesmo tempo “dialética” e “materialista” - isto é, simultaneamente era apenas metaforicamente irônica em sua intenção. No pensamento de Nietzs­
“histórica” e “mecanicista”. che sobre a história a psicologia da consciência histórica está aberta à análise;
Ojpróprio Mararepresentapesfprço mais consistente do século XIX no além disso, revelam-se suas origens numa apreensão especificamente poética
sentido de transformar o estudo histpripo numa ciência. Além disso, foi o seu da realidade. Por conseguinte, Nietzsche, tanto quanto Marx, forneceu as razões
esforço mais consistente de analisar a relação entre consciência histórica de um para aquela queda na “crise do historicismo” a que a reflexão histórica de sua
lado e as formas efetivas de existência histórica do outro. Em sua obra a teoria época sucumbiu.
e a prática de reflexão histórica estão intimamente ligadas à teoria e à prática
dasõcíedade em que surgiram. Mais cio que qualquer outro pensador, Marx foi Foi em reação à crise do historicismo que Benedetto Croce empreendeu
sensíveH implicãçaÔTdeologica de qualquer concepção da história que reivin­ suas monumentais investigações na estrutura profunda da consciência histórica.
dicasse o estatuto de visão “realista” do mundo. A própria concepção da história Como Nietzsche, Croce reconheceu que a crise refletia o triunfo de uma atitude
de Marx era tudo menos irônica, mas ele conseguiu revelar as implicações essencialmente irônica da mente. E, como ele, esperava depurar a reflexão
ideológicas de todas as concepções da história. E proporcionou por esse meio histórica dessa ironia assimilando-a à arte. Mas ao fazê-lo Croce foi levado a
razões mais do que abundantes para o mergulho na ironia que iria caracterizar inventar uma concepção particularmente irônica da própria arte. Em seus
a consciência histórica da última fase da reflexão histórica da época, a chamada esforços por assimilar o pensamento histórico à arte apenas conseguiu por fim
crise do historicismo que se desenvolveu no último terço do século. conduzir a consciência histórica a uma percepção mais profunda de sua própria
Mas o pensamento histórico não precisava de um Marx para projetá-lo condição irônica. Posteriormente tentou ele salvá-la do ceticismo, estimulado
em sua terceira fase, ou crise. O êxito mesmo dos historiadores da segunda fase por essa intensificada autoconsciência, assimilando a história à filosofia. Mas,
nesse esforço, conseguiu apenas historicizar. a filosofia, tornando-a assim tão
foi suficiente para mergulhar a consciência histórica naquele estado de ironia
que é o verdadeiro conteúdo da “crise do historicismo”. A consistente elabora­ ironicamente autoconsciente de suas limitações quanto já se tinha tornado a
ção de várias concepções igualmente abrangentes e plausíveis, ainda que na própria historiografia.
verdade mutuamente exclusivas, dos mesmos conjuntos de eventos era suficien­ Assim encarada, a evolução da filosofia da história - de Hegel, através de
te para solapar a confiança na pretensão dá história à “objetividade”, “cientifi- Marx e Nietzsche, a Croce - representa o mesmo desenvolvimento que se pode
cidade” e “realismo”. Essa perda de confiança já era perceptível na obra de ver na evolução da historiografia, desde Michelet, através de Ranke e Tocque-
Burckhardt, que é patentemeníe esteticista no espírito, cética no ponto de vista, villc, a Burckhardt. As mesmas modalidades básicas de conceptualização apa­
cínica no tom e pessimista em relação a qualquer esforço no sentido de conhecer recem tanto na filosofia da história quanto na historiografia, ainda que
a verdade “real” das coisas. apareçam numa seqüência diferente em suas formas plenamente articuladas. O
O equivalente filosófico do estado de espírito representado por Burck­ ponto importante é que, tomada como um todo, a filosofia da história termina
hardt na historiografia é, está claro, Friedrich Nietzsche. Mas o estcticismo, o na mesma situação irônica a que tinha chegado a historiografia no último terço
ceticismo, o cinismo e o pessimismo que foram simplesmente adotados por do século XIX. Essa situação irônica diferia de sua contraparte do final do
56 HAYDENWHITE
Parte I
Iluminismo apenas no refinamento com que foi interpretada na filosofia da
história e na amplitude da erudição que presidiu à sua elaboração na historio­ A TRADIÇÃO RECEBIDA
grafia da época.
0 ILUMINISMO E 0 PROBLEMA
DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

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1
A IMAGINAÇÃO HISTÓRICA
ENTRE A METÁFORA E A IRONIA

INTRODUÇÃO

A cultura européia do século XIX manifestou em toda parte entusiasmo


por uma apreensão realista do mundo. O termo “realista”, está claro, significava
algo diferente de uma compreensão “científica” do mundo, embora certos
autonomeados “realistas”, como os positivistas e darwinistas sociais, identifi­
cassem seu “realismo” com a espécie de compreensão dos processos naturais
que as ciências físicas proporcionavam. Mesmo aqui, porém, o termo “realis­
mo” tinha conotações que davam a entender que não se tratava só de uma
simples aplicação de “método científico” aos dados da história, da sociedade e
da natureza humana. Pois, a despeito de sua orientação em geral “cientística”,
as aspirações “realistas” de pensadores e artistas do século XIX eram informa­
das por uma percepção de que qualquer tentativa de entender o mundo
histórico apresentava problemas especiais, dificuldades não observadas no
esforço humano de compreender o mundo dos processos meramente físicos.
O mais importante desses problemas era criado pelo fato de que o
estudioso do processo histórico estava incluído nele ou nele envolvido de um
modo que o estudioso do processo natural não estava. Havia um sentido em que
se podia legitimamente sustentar que o homem estava ao mesmo tempo na
natureza e fora dela, que eleparticipava do processo natural, mas podia também
transcender esse processo na consciência, assumir uma posição fora dele e ver
esse processo tal como se manifestava naqueles níveis de integração natural que
eram demonstravelmente não-humanos ou pré-humanos. Mas, quando se tra­
tava da reflexão sobre a história, só o homem, dentre todos os seres da natureza,
60 HAYDENWHrTE METAHISTÓR1A 61

parecia ter uma história; para todos os fms práticos, o “processo histórico*’ só enfoque “realista” da realidade é mais ou menos a mesma que aquela contida
existia na forma de um processo em geral humano. E, já que a “humanidade” nas noções de “sanidade mental” e “saúde”. Tais noções se definem mais
constituía a única manifestação concebível daquele processo dito “histórico”, facilmente pelo que os homens de um dado tempo e lugar reconhecem como
parecia impossível fazer acerca do processo como um todo generalizações do noções opostas: “loucura” e “doença”. Assim, também, o conteúdo específico
tipo que podia ser lícito fazer acerca da “natureza” em suas dimensões pura­ da concepção de “realismo” de uma dada época se define mais facilmente pelo
mente físicas, químicas e biológicas. O “realismo” nas ciências naturais podia que tal época como um todo julgava ser “irrealismo” ou “utopismo”. E, quando
ser identificado com o “método científico” desenvolvido desde no mínimo se trata de tentar caracterizar a reflexão histórica de uma época em que muitas
Newton para a análise de processos naturais. Mas dizer em que poderia consistir concepções divergentes de “realismo histórico” lutavam pela hegemonia, é
uma concepção “realista” da história era um problema tão grave quanto a necessário perguntar qual era o ponto de concordância dessas concepções
definição de termos igualmente falazes como “homem”, “cultura” e “socieda­ diversas de “realismo” quanto a “irrealismo” ou “utopismo” na reflexão histó­
de”. Cada um dos mais importantes movimentos culturais e ideologias do século rica em geral.
XIX - positivismo, idealismo, naturalismo, realismo (literário), simbolismo, De modo geral os teóricos oitocentistas da história concordavam em que
vitalismo, anarquismo, liberalismo etc. - pretendia oferecer uma compreensão as principais formas de pensamento histórico do período imediatamente ante­
mais “realista” da realidade social do que seus concorrentes. Mesmo a afirma­ rior - isto é, as do Iluminismo - ministravam modelos dos perigos antepostos a
ção simbolista de que “o mundo é uma floresta de símbolos” e a recusa niilista qualquer teoria histórica que reivindique a autoridade de uma visão “realista”
a confiar em qualquer sistema de pensamento possível eram acompanhadas de do mundo. Isso não quer dizer que rejeitassem de plano toda a produtividade
argumentos em defesa da natureza “realista” de suas visões de mundo. historiográfica dos pensadores iluministas. De fato, alguns dos philosophes, e
Ser “realista” significava não apenas ver as coisas com clareza, como elas mais do que todos Voltaire, continuaram a exercer profunda influência durante
realmente eram, mas também extrair dessa clara apreensão da realidade con­ o período do romantismo, e o próprio Voltaire era encarado como um ideal
clusões apropriadas para levar uma possível vida com base nisso. Assim enten­ digno de emulação até por um historiador romanesco como Michelet. Apesar
didas, as pretensões a um “realismo” essencial eram ao mesmo tempo disso, de maneira geral, o que o pensamento histórico do século XIX almejava
epistemológicas e éticas. A qualquer um era dado sublinhar a natureza pura­ no tocante a uma historiografia “realista” pode ser mais bem caracterizado nos
mente analítica ou perceptual de seu “realismo”, como o fizeram os pintores termos do que reprovava em seus predecessores do século XVIII. E o que mais
impressionistas, ou as implicações morais e prescritivas de sua clareza de visão, reprovava na historiografia iluminista era sua ironia essencial, da mesma forma
como o fizeram em teoria política os neomaquiavelianos como Treitschke. Mas que o que mais reprovava na reflexão cultural iluminista era seu ceticismo.
a pretensão a representar uma posição “realista” em qualquer assunto impunha Não reprovava, note-se, o que se costuma considerar como a principal
a defesa dessa posição com base em pelo menos duas premissas: epistemológica característica da filosofia da história do Iluminismo - isto é, seu suposto
e ética. “otimismo” e a doutrina do progresso que habitualmente o acompanhava. Pois
Do nosso ponto de observação na oitava década do século XX podemos os pensadores da história durante a maior parte do século XIX estavam tão
agora ver que quase todas as importantes disputas teóricas e ideológicas trava­ interessados como seus homólogos do século XVIII em suprir as bases para a
das na Europa entre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial foram crença na possibilidade de “progresso” por um lado e algum tipo de justificação
na realidade disputas, que visavam determinar que grupo poderia reivindicar o para o “otimismo” histórico por outro lado. Para a maioria deles, o conceito de
direito de estabelecer em que poderia consistir uma representação “realista” “progresso” e o sentimento de “otimismo” eram compatíveis com a visão
da realidade social. A “realidade” de um homem era a “utopia” de outro, e o “realista” do mundo para a qual esperavam contribuir através de seus textos.
que parecia ser a quintessência de uma posição “realista” sobre determinada Para eles, o ponto importante era que o conceito de progresso e seu concomi­
questão poderia, de uma outra perspectiva, representar a quintessência da tante otimismo ainda não contavam com adequada justificação cognitiva. Al­
“ingenuidade” a respeito da mesma questão. O que é mais interessante em guns - notadamente Tocqueville e Burckhardt - temiam que tal justificação
jamais pudesse ser oferecida, e conseqüentemente impregna-lhes a obra um tom
relação a todo esse período, considerando-o como um drama de investigação e
expressão já encerrado, é a autoridade geral que a sua própria noção de um pouco mais sóbrio do que aquele que encontramos em espíritos mais
“realismo” inculcava. Pois cada época, mesmo a mais fideísta, como o período ardentes como Michelet (em suas primeiras obras) e Marx (na totalidade das
medieval, alcança sua consistência integral a partir da convicção de suas pró­ suas).
prias aptidões para conhecer a “realidade” e reagir aos desafios desta com Em geral, portanto, o “realismo” do pensamento histórico oitocentista
respostas adequadamente “realistas”. O desejo expresso de ser “realista”, consiste em sua busca de fundamentos adequados para crer em progresso e
então, deve refletir uma concepção específica não tanto do que é a essência do otimismo, tendo plena consciência de que os pensadores setecentistas da histó­
“realismo” como do que significa ser “irrealista”. A problemática de um ria foram incapazes de fornecer esses fundamentos. Se se quer entender a
62 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 63

natureza específica do realismo histórico do século XIX, considerado como a primeiro revelar a dinâmica tropológica da tradição historiográfica a que ela se
matriz de crenças compartilhadas que fazem das diversas escolas do pensamen­ opôs.
to histórico daquela época habitantes de um único universo de discurso, deve-se
particularizar a natureza do malogro do século XVIII na reflexão histórica. Esse
malogro, como argumentarei, não consistiu numa deficiência de realização AS CONCEPÇÕES CONVENCIONAIS DA HISTORIOGRAFIA
acadêmica- isto é, malogro do saber - nem numa inadequada teoria da reflexão
histórica. Pelo contrário, consistiu no modo irônico em que tanto a investigação
No século XVIII os pensadores convencionalmente distinguiam três es­
erudita quanto a síntese teórica foram moldadas pelos eminentes pensadores
iluministas da história. pécies de historiografia: fabulosa, verdadeira e satírica. Concebia-se a historio­
grafia fabulosa como sendo um produto de pura invenção; os fatos eram
organizados e apresentados sub specie historiae, mas com o intuito de distrair
ou recrear, conferindo àquilo em que a imaginação desejava acreditar a apa­
rência de uma realidade. É escusado dizer que, para pensadores como Bayle e
Voltaire, esse tipo de histoire romanesque estava abaixo da crítica, sendo
A DIALÉTICA DA HISTORIOGRAFIA ILUMINISTA
imprópria para a redação de um erudito ou a leitura de um homem sério. A
verdade era a matéria versada pelo historiador, e nada senão a verdade - assim
rezava a teoria. Dizia Bayle em seu Dicionário Histórico:
A reflexão histórica do século XVIII teve origem numa tentativa de aplicar
estratégias metonímicas de redução aos dados da história, de modo a justificar A história, de maneira geral, é a composição mais difícil que um autor pode empreender,
ou uma das mais difíceis. Requer grande discernimento, um estilo nobre, claro e conciso, uma boa
a crença na possibilidade de uma comunidade humana concebida no modo
consciência, perfeita probidade, muitos materiais excelentes e a arte de colocá-los em boa ordem,
sinedóquico. Dito de outro modo, o Iluminismo tentou justificar uma concepção e, acima de todas as coisas, o poder de resistir ao instinto do zelo religioso, que nos induz a
organicista da comunidade humana ideal com base numa análise do processo menosprezar o que pensamos ser verdadeiro [1,170].
social que era por natureza essencialmente mecanicista. Assim criticou a socie­ Observo que a verdade sendo a alma da história é uma coisa essencial para uma composição
dade à luz de um ideal que era moral e valorativo, mas intentou basear essa histórica estar isenta de mentiras; de modo que embora tenha todas as outras perfeições, não será
crítica numa análise puramente causal dos processos históricos. Como conse- história, mas mera fábula ou estória romanesca, se faltar verdade [173].
qüência, o fim para o qual a representação histórica se destinava a contribuir
era inconsistente com os meios realmente utilizados na construção das narrati­ Cabia então ao historiador ater-se à verdade, na medida do humanamente
vas históricas. O resultado desse conflito entre os meios da representação possível, evitando a todo custo o “fabuloso”, nada inventando que não fosse
histórica e o fim para o qual ela deve contribuir foi a instalação do pensamento justificado pelos fatos e reprimindo os próprios preconceitos e interesses
sobre a história numa posição que era notória e militantemente irônica. O que partidários para não se expor à acusação de difamação. Como dizia Bayle:
começou como uma tensão criativa na reflexão histórica dos primórdios do
Iluminismo, entre concepções cômicas e trágicas do enredo da história, entre A corrupção de costumes tem sido tão grande, tanto entre aqueles que vivem no mundo,
concepções mecanicistas e organicistas de seus processos e entre as implicações como entre aqueles que vivem fora dele, que quanto mais nos esforçamos por apresentar relatos
fiéis e verdadeiros, mais risco corremos de compor somente libelos difamatórios [História e Sátira].
conservadoras e radicais que poderiam ser inferidas destas, gradativamente
degenerou numa ambigüidade, e finalmente numa ambivalência, concernente a
todos os principais problemas da representação historiográfica e das metas O cinismo de Bayle não deve passar despercebido. Bayle insinua que
sociais gerais. Na altura do último quartel do século XVIII essa ambivalência qualquer descrição apenas veraz da humanidade está sujeita a assumir a apa­
se transformara em ironia, que se expressava numa epistemologia que era rência de difamação simplesmente porque a média geral do gênero humano é
extremamente cética e numa atitude ética, gerada pelo ceticismo, que era mais provavelmente torpe do que nobre, e que portanto a própria verdade tem
manifestamente relativista. No final do Iluminismo, pensadores como Gibbon, toda a possibilidade de assumir o aspecto de uma calúnia.
Hume e Kant tinham efetivamente dissolvido a distinção entre história e ficção Voltaire, escrevendo uma geração depois, adotou a mesma tática: “A
sobre a qual pensadores anteriores como Bayle e Voltaire haviam baseado suas história”, disse ele, “é a narração de fatos considerados verdadeiros. A fábula,
empresas historiográficas. Foi contra essa “ficcionalização” da história, essa ao contrário, é a narração de fatos considerados falsos” (Works, X, 61). Tudo
atitude irônica perante as tarefas “científicas” que os historiadores do início do perfeitamente simétrico. No entanto, Voltaire traçou a linha entre a represen­
século XVIII haviam imposto a si mesmos, que Herder, Burke e os Stürmer und tação verídica dos erros e das tolices humanas e as histórias escritas com o fim
Drangerst rebelaram. Mas, antes que se possa entender essa rebelião, é preciso de caluniar através da falsificação. Aludindo a umas “memórias fraudulentas”
64 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 65

(publicadas sob o nome de Madame de Maintenon) que acabavam de aparecer,


satírica e verídica). Em suma, a própria distinção entre três tipos de escrita da
Voltaire observou:
história, concebidos não em função de uma oposição do compíetamente verídi­
Quase todas as páginas estão poluídas por afirmações falsas e injúrias à família real e a
co ao totalmente inventado mas como diferentes mesclas de verdade e fantasia,
outras famílias ilustres do reino, sem que o autor dê mostras de emprestar alguma verossimilhança representa o incremento positivo da consciência histórica - um avanço em
a suas calúnias. Isto não é escrever história; é escrever difamações que fazem jus ao pelourinho relação à consciência do período anterior - que o Iluminismo pode legitima­
[Phil sict, Works, X, 86-87]. mente reivindicar.
A própria atitude do Iluminismo frente à escrita histórica em geral era
Em obras como a sua Filosofia da História, é claro, Voltaire não fugiu à irônica. Ele não somente usou o conhecimento histórico para fins partidários
apresentação tendenciosa dos fatos ou dos comentários que teceu sobre eles ou polêmicos - como todas as épocas anteriores haviam feito - como o fez com
em proveito da causa para a qual trabalhava, que era a da verdade contra a plena consciência da possibilidade de usá-lo desse modo e praticá-lo pelo
inverdade, a da razão contra a insensatez, a do esclarecimento contra a supers­ prazer de praticá-lo ou, como dizem, para si exclusivamente. A escrita da
tição e a ignorância. Mas aqui o interesse polêmico era patente, e suas reflexões história a serviço da verdade em si foi praticada-pelos grandes historiadores
sobre a história do mundo tomaram o aspecto de um ensaio crítico antes que amadores de antiguidades do século XVIII, Ludovico Antonio Muratori e La
de uma investigação erudita em torno do que era a verdade dos fatos. Os fatos Curne de Sainte-Palaye, notáveis expoentes da historiografia filológica, que se
foram usados simplesmente como oportunidades de indicar as verdades mais preocupavam acima de tudo com a edição e avaliação crítica de documentos
gerais que Voltaire queria pôr diante dos seus leitores numa forma adequada­ conforme princípios científicos. Mas os princípios críticos com base nos quais
mente colorida. as verdades morais ou intelectuais podiam ser inferidas do estudo de crônicas
É bem diferente o caso de uma obra como a História de Carlos XII, de ou anais, eles mesmos estabelecidos, consoante princípios “científicos”, como
Voltaire. Aqui, também, os fatos foram usados para fundamentar a proposição relatos fidedignos “do que tinha acontecido” no passado, não tinha sido teori­
segundo a qual é “loucura” um governante, ainda que poderoso e inteligente, camente assentados pelos grandes amadores de antiguidades.
buscar a “glória” através de conquistas e batalhas. Como salientou Lionel
Gossman, esta história foi escrita como uma “epopéia burlesca”, o que quer Os racionalistas do Iluminismo - Bayle, Voltaire, Montesquieu, Hume,
dizer que nela os acontecimentos que marcaram a vida de Carlos foram conce­ Gibbon e Kant - e o excêntrico a-racionalista Giambattista Vico reconheceram
bidos de modo a configurar uma quase-tragédia, uma tragédia que falhou em a necessidade dos princípios críticos, vale dizer meta-históricos, pelos quais as
virtude da “loucura” essencial dos objetivos que motivavam o protagonista. E verdades gerais inferidas da contemplação de fatos passados, em sua individua­
Voltaire não perdeu uma única oportunidade de comentar a loucura essencial lidade e concretude, podiam ser fundamentadas em premissas racionais. O fato
do que se poderia chamar de projeto ou busca de Carlos, ou de descrevê-la em de não terem conseguido ministrar tais princípios não foi conseqüência de seu
imagens que sugerem isso mesmo ao leitor sem dizê-lo explicitamente. Contudo, método de reflexão mas da matéria dela. Ao século XVIII faltou uma adequada
os fatos foram tratados como uma estrutura de relações objetivas que o histo­ teoria psicológica. Os philosophes careciam de uma teoria da consciência
riador não tem permissão de violar. Pode-se extrair certo número de conclusões humana em que a razão não se contrapusesse à imaginação como a base da
diferentes do exame de um dado conjunto de fatos, admitia Voltaire; mas o verdade contra a base do erro, mas em que se reconhecesse a continuidade entre
estabelecimento dos fatos, a verdade dos fatos, insistia ele, deve ficar separado razão e fantasia, se pudesse procurar a relação das duas como partes de um
das verdades - morais, estéticas e intelectuais - que se procura inferir da processo mais geral de investigação humana de um mundo incompletamente
reflexão sobre os fatos, para que não se venha a ser acusado de escrever uma conhecido, e se pudesse perceber o processo pelo qual a fantasia ou imaginação
história “fabulosa” ou “satírica”, e sim elogiado por escrever uma história contribuía, tanto quanto a própria razão, para a descoberta da verdade.
“verídica”. Os iluministas acreditavam que o fundamento de toda verdade era a razão
Há, evidentemente, uma ambigüidade contida na justaposição de história
e sua capacidade de julgar os produtos da experiência sensorial e extrair de tal
“verídica” à história “fabulosa” de um lado e à historiografia satírica do outro. experiência seu puro teor de verdade contra o que a imaginação desejava que
Isto parece sugerir que há três espécies do gênero “escrita da história”, duas fosse aquela experiência. Assim, como sustentou Voltaire em sua Filosofia da
impróprias e uma própria, sendo as diferenças entre elas evidentes por si História, parecia ser um assunto simples distinguir entre o verdadeiro e o falso
mesmas. Na realidade, porém, é óbvio que se faz necessário pressupor uma na história. Era necessário apenas usar o senso comum e a razão para distinguir
quarta espécie de consciência histórica no caso de serem admitidas como entre o verídico e o fabuloso, entre os produtos da experiência sensorial guiados
adequadas as distinções feitas; refiro-me à consciência meta-histórica que, pela razão e aqueles produtos que apareciam sob a influência da imaginação,
situada em posição superior, tem condições de julgar da validade dos direitos no registro histórico. Podia-se, portanto, separar os elementos verdadeiros dos
à atenção do leitor reclamados pelas três espécies de historiografia (fabulosa, fabulosos e depois escrever uma história em que só os elementos verdadeiros
66 HAYDENWHTTE META-HISTÓR1A 67

seriam tratados como os “fatos” dos quais podiam ser inferidas verdades mais HISTÓRIA, LINGUAGEM E ENREDO
gerais - intelectuais, morais e estéticas.
Num artigo sobre “linguagem figurada”, inserido no Dicionário Filosófico,
Isso significava que conjuntos completos de dados provenientes do pas­ Voltaire escreveu:
sado - tudo o que estava contido na lenda, no mito, na fábula - eram excluídos
como testemunho potencial para determinar a verdade acerca do passado, isto Imaginação ardente, paixão, desejo - frequentemente frustrado - produzem o estilo figu­
rado. Não o admitimos em história, porquanto metáforas em demasia são prejudiciais, não só à
é, aquele aspecto do passado que tais conjuntos de dados diretamente repre­
clareza, mas também à verdade, por dizerem mais ou menos do que a coisa em si [Wbrks, IX, 64].
sentavam para o historiador empenhado em reconstruir uma vida em sua
integridade e não somente em função de suas manifestações mais racionalistas.
Em seguida atacou os Padres da Igreja pelo uso excessivo da linguagem
Como os próprios iluministas eram devotados à razão e estavam interessados
figurada como meio de representar e explicar os processos do mundo. Pôs em
em firmar a autoridade dela contra a superstição, a ignorância e a tirania de sua
contraste esse abuso da linguagem figurada com os usos corretos por parte dos
própria época, eram eles incapazes de enxergar qualquer coisa mais do que o
poetas pagãos clássicos como Ovídio, que sabiá distinguir entre o mundo
mero testemunho da essencial irracionalidade das épocas passadas nos docu­
incontestavelmente verdadeiro e o mundo fabuloso de suas criações imaginárias
mentos em que aquelas épocas representavam suas verdades para si mesmas,
e que, como disse Voltaire, utilizava tropos e figuras de tal modo que não
em mitos, lendas, fábulas e outras coisas mais. Apenas Vico, em sua época,
“enganava” ninguém (Ibid., 73). A linguagem do historiador, segundo Voltaire,
percebeu que o problema histórico era precisamente o de determinar em que
tinha de ser austera como a razão que o guiava na busca da verdade sobre o
medida uma apreensão puramente “fabulosa” ou “mítica” do mundo podia ser
passado, literal, portanto, antes que figurada, em sua representação do mundo
adequada, por qualquer critério de racionalidade, como base para entender um
que o defrontava.
tipo específico de vida e ação histórica.
O estudo dos documentos históricos foi evidentemente levado a um alto nível
pelos grandes eruditos do período, mas - como Gossman demonstrou no estudo
O problema, como Vico o via, era descobrir a racionalidade implícita até
que fez de La Cume de Sainte-Palaye e dos círculos letrados em que ele se movia
nas mais irracionais das imaginações humanas, na medida em que tais imagina­
- esses homens não possuíam nenhum princípio crítico pelo qual pudessem sinte­
ções tinham de fato servido de base para a construção de instituições sociais e
tizar os fatos contidos nos seus anais de antiguidades em relatos históricos gerais
culturais graças às quais puderam os homens viver suas vidas com e contra a
dos processos refletidos nos próprios anais. Na melhor das hipóteses, entre os
própria natureza. A questão era: de que modo a racionalidade (como sua época
historiógrafos da época - mesmo na obra produzida pelo grande Edward Gibbon
a conhecia) se formou e emergiu da mais ampla irracionalidade pela qual,
há basicamente apenas um comentário sobre os remanescentes literários dos
devemos presumir, era guiado o homem da Antiguidade e com base na qual
grandes historiadores da Antiguidade clássica, comentário que é mais ou menos
construiu ele as formas originais da existência civilizada? Os iluministas, porque
irônico de acordo com a própria percepção de Gibbon da racionalidade do
viam a relação da razão com a fantasia mais no plano de uma oposição do que
historiador que ele está parafraseando ou comentando.
no de uma relação entre parte e todo, não souberam formular essa questão de
De fato, a concepção que os iluministas tinham do problema da represen­
um modo historiograficamente proveitoso.
tação histórica, da construção, num modelo verbal, do mundo do passado, quase
Os iluministas não contestavam os direitos da fantasia sobre a consciência não se elevava acima do nível de consciência refletido na preocupação deles em
humana, mas entendiam que o problema consistia, em determinar as áreas da torno de saber se determinado conjunto de eventos históricos devia ser posto
expressão humana em que era lícito permitir a plena atuação da fantasia e aquelas em enredo como epopéia, comédia ou tragédia. O problema de escolher o modo
em que lhe era vedada a entrada. E tendiam a pensar que a única área em que a apropriado de representação - proposto como alternativas que mutuamente se
fantasia podia reivindicar plena autoridade era na esfera da “arte”, esfera que excluíam - corresponde à distinção traçada no nível epistemológico entre
eles opunham à da própria “vida”, estabelecendo praticamente a mesma relação relatos fabulosos, satíricos e verazes do passado. A forma épica, concordavam
de oposição que, imaginavam, a “irracionalidade” mantinha com a “racionalida­ todos, não se prestava à representação de eventos históricos; e a Henríada de
de”. A “vida”, ao contrário da “arte”, tinha de ser governada pela razão, e mesmo Voltaire, poema épico da vida de Henrique IV, era comumente considerada
a arte devia ser praticada com plena consciência da distinção entre “verdade” e como um tourde force, um triunfo poético, embora não fosse levada a sério como
“fantasia”. E, visto que a história se ocupava “com a vida” em primeiro lugar e modelo a ser imitado por poetas ou historiadores em geral. Os iluministas
“com a arte” só secundariamente, devia ela ser escrita não apenas sob a direção percebiam intuitivamente (e de maneira correta) que a forma épica pressupu­
da razão mas também, em sua perspectiva mais ampla, “em torno da razão”, nha a cosmologia representada na filosofia de Leibniz, com sua doutrina da
usando todo o conhecimento que a história pudesse proporcionar sobre a continuidade servindo de princípio ontológico informador, sua crença no racio­
“desrazão” para promover a causa da razão na vida e na arte. cínio analógico como princípio epistemológico e sua noção de que todas as
META-HÍSTÓRIA 69
68 HAYDENWHITE

narração do declínio e queda de Roma. O relato que fez da transição do que


mudanças não são senão transformações graduais de um estado ou condição julgava ser o tempo mais feliz do homem anterior à sua própria época não é
para outro de uma “natureza” cuja essência não se altera. Todas essas idéias trágico; é, antes, a maior realização de ininterrupta ironia da história da litera­
estavam em visível oposição à lógica da contradição e ao princípio de identidade tura histórica. Termina em 1453, com uma descrição da queda de Bizâncio ante
que constituíam os princípios que a racionalidade, tal como era concebida, devia o turco fanático, na irônica apreensão, em resumo, do triunfo de um fanatismo
assumir no pensamento dominante na época. sobre outro. Essa apreensão, porém, é acolhida dentro do contexto do conhe­
Mas a escolha entre comédia e tragédia, como as únicas alternativas para cimento adquirido por Gibbon da revivescência do pensamento e das letras na
a elaboração de exposições narrativas do passado, é ela mesma oferecida - num Europa Ocidental, que produziu o Renascimento e preparou o terreno para a
pensador como Mably, por exemplo, cujo De la manière de Vécrire Vhistoire Idade da Razão que o próprio Gibbon representa. Em si mesmo, porém, o
apareceu quase no fim do século - ironicamente. Em sua maioria os iluministas Renascimento é concebido como produto do fato irônico de embasar-se no
não podiam realmente conceber que a história propiciasse muitas ocasiões para triunfo de um fanatismo sobre outro em Bizâncio, o que forçou a ida dos letrados
a composição de enredo no modo trágico, e isso porque, como Bayle dissera de Constantinopla para a Itália, para lá disseminarem o conhecimento da
antes, “a corrupção dos costumes tem sido tão grande (...) que quanto mais nos Antiguidade clássica, que no fim de contas iria servir (ironicamente) para
esforçamos por apresentar relatos fiéis e verdadeiros, mais riscos corremos de subverter a superstição cristã, a serviço da qual fora (ironicamente) usado pelos
compor somente libelos difamatórios”. O mais provável candidato que Voltaire monges da Idade Média.
podia imaginar como tema de uma história trágica era Carlos XII, mas o melhor Esse amontoado de ironias, que a imagem da história produzida por
que pôde produzir com base na reflexão sobre os acontecimentos da vida Gibbon invoca como seu princípio de explicação e representação, não podia
daquele soberano foi uma “epopéia burlesca” em prosa, porque a época, como deixar de gerar uma atitude irônica para com os valores e ideais a serviço dos
Edmund de Goncourt disse da sua, procurou em todas as partes a “verdade” quais estava o próprio Gibbon. No fim, ela devia conduzir ao mesmo debilitante
das coisas e, encontrando-a, só lhe restou perder a esperança. ceticismo a respeito da razão, contra o qual Hume procurara refúgio nos estudos
históricos, ceticismo que voltara a desafiá-lo mesmo ali, na vida de ação tanto
quanto na vida de pensamento de todas as épocas passadas.
CETICISMO E IRONIA Uma das mais óbvias ironias do desenvolvimento intelectual de Kant foi
o fato de se ter ele voltado, na velhice, para a meditação a respeito das
A forma cética que o racionalismo tomou ao refletir sobre sua época estava implicações morais do conhecimento histórico, tema que não julgou digno de
destinada a inspirar uma atitude puramente irônica com relação ao passado genuíno interesse filosófico na fase madura de sua atividade de filósofo. Sua
quando utilizado como princípio de reflexão histórica. O modo em que foram preocupação como filósofo, convém recordar, era dar crédito às percepções de
vazadas todas as grandes obras históricas do período foi o da ironia, daí Hume e Rousseau dos limites da razão, por um lado, e da legitimidade dos
resultando que todas tendessem para a forma da sátira, realização suprema da direitos das emoções contra a razão, por outro. Em oposição a Hume, procurou
sensibilidade literária daquela época. Quando Hume passou da filosofia para a defender a razão contra o ceticismo extremado aduzindo as premissas sobre as
história, porque sentia que a filosofia se tornara desinteressante em razão das quais o êxito manifesto da ciência no entender o mundo poderia ser compreen­
conclusões céticas a que fora compelido, trouxe para o estudo da história a dido. Contra Rousseau procurou construir um lugar na natureza humana para
mesma sensibilidade cética. Achou ele cada vez mais difícil, porém, manter o as emoções e paixões, dotá-las de autoridade como bases do juízo moral e
interesse por um processo que só lhe exibia o eterno retorno da mesma insen­ estético sem, com isso, derrubar a autoridade das verdades estabelecidas em
satez em muitas formas diferentes. Viu no registro histórico pouca coisa mais premissas científicas e racionais. É interessante notar como esses antigos adver­
do que o registro da loucura humana, o que o levou por fim a se sentir tão sários voltaram, sob formas adequadamente modificadas, a assediar Kant na
entediado com a história como já se sentira com a filosofia. velhice, quando, sob as pressões do pensamento de Herder acerca da história
Evidentemente não nos cabe duvidar da seriedade de Gibbon, o grande e dos acontecimentos históricos da Revolução, Kant se viu forçado a refletir
contemporâneo de Hume, mas tampouco devemos desconsiderar com excessiva sobre as bases epistemológicas, o valor moral e a significação cultural do
ligeireza a caracterização que o próprio Gibbon fez do seu Declínio e Queda do conhecimento histórico.
Império Romano como produto de uma tentativa de se entreter e divertir. A ameaça do ceticismo estava presente para Kant no fato de que os
Conta-nos Gibbon que o que o incitou a atacar o seu projeto foi a ironia do homens continuavam a estudar história, muito embora parecesse claro que não
espetáculo proporcionado por monges ignorantes a celebrar suas cerimônias se podia aprender na história nada que não se pudesse aprender no estudo da
religiosas numa igreja levantada no terreno onde outrora existira um templo humanidade em suas várias encarnações presentes, encarnações que, como
pagão. Esta anedota não somerite revela a atitude com que Gibbon se aproxi­ objeto de estudo, tinham a vantagem de ser diretamente acessíveis à observação
mou de sua tarefa como prefigura também a forma que tomou finalmente a sua
META-HISTÓR1A 71
70 HAYDENWHITE

de um modo que os eventos históricos não eram. A sombra de Rousseau se como espetáculo de degenerescência (e conceber o conhecimento histórico
estendia sobre a velhice de Kant na convicção, crescente em todo o período da como sendo, antes de tudo, conhecimento de um “espetáculo” que se desenrola
virada da Revolução rumo ao Terror e da difusão das impressões de que o diante dos olhos do historiador), viverei a história de modo a acarretar ao
mundo desmoronava, de que todo o processo histórico representava uma processo um fim degenerado. E analogamente, se eu conceber aquele espetá­
inevitável degeneração sob a aparência de progresso ou na visão (promovida culo como não sendo senão “uma sucessão de chateações”, agirei de modo a
pelas percepções de philosophes tardios) de que, embora as coisas possam tornar a época em que vivo uma época estática, na qual nenhum progresso será
mudar, não havia realmente nada de novo sob o sol, de queplus ça change, plus possível. Mas se, por outro lado, eu conceber o espetáculo da história, com
c’est la même chose. toda a sua insensatez, iniquidade, superstição, ignorância, violência e aflição,
Como Bayle e Voltaire antes dele, Kant reconhecia três concepções do como um processo em que a própria natureza humana se transforma de
processo histórico que o homem pode adotar como a verdade sobre o conjunto aptidão para criar esses males em aptidão para encetar a luta moral contra
do processo. Conforme sua denominação, essas três concepções são a eudemo- eles, enquanto projeto inconfundivelmente humano, então agirei de modo a
nística, a terrorística e a abderítica. A primeira acredita que a história descreve concretizar essa transformação. Além disso, há bons motivos extra-históri­
um processo de constante progresso nas condições materiais e espirituais da cos para adotar essa visão da história como sendo ao mesmo tempo vivida e
existência humana. A segunda sustenta que a história representa uma degene­ concebida no pensamento. Esses motivos são supridos pela filosofia, na qual
ração contínua, ou queda contínua, de um estado original de graça natural ou o conceito de razão é utilizado como justificação para conceber a natureza
espiritual. E a terceira segue a opinião atribuída à antiga seita abderita de como aquilo que, no homem, realiza as potencialidades nela contidas desde
filósofos cínicos, de que, embora as coisas pareçam desenvolver-se, na realidade suas origens.
todo movimento nada mais representa do que uma redisposição de elementos A concepção da história assim exposta por Kant é irônica, mas sua ironia
primitivos e não uma alteração fundamental na condição da existência humana. é moderada pelos princípios do sistema filosófico em que o ceticismo se detivera
à beira da rejeição da própria razão. No entanto, o pensamento de Kant sobre
Devo observar que essa divisão corresponde, em suas implicações para a
a história se mantém dentro dos limites do racionalismo iluminista num sentido
explicação e escrita da história, àquela feita antes entre os modos da comédia,
significativo. A modalidade de oposição, pela qual as coisas na história se
da tragédia e da epopéia respectivamente. A diferença na formulação kantiana
relacionam no pensamento, não deu lugar à modalidade de continuidade e
da distinção epistemológica - entre historiografia fabulosa, satírica e veraz - é
intercâmbio, que sozinha poderia gerar uma adequada compreensão da concre-
que Kant reputava todos os três modos de conceber o processo histórico
tude, individualidade e vividez de eventos históricos considerados exclusiva­
igualmente “fabulosos” ou igualmente “fictícios”. Representavam para ele o
mente em si mesmos. Kant concebia os dados históricos como fenômenos, que,
testemunho da capacidade da mente de impor diferentes modalidades de
à semelhança dos fenômenos naturais, são vistos sob o prisma da “natureza
coerência formal ao processo histórico, diferentes possibilidades de pô-lo em
submetida à lei” (mais especificamente, a natureza submetida a leis causais
enredo, produtos de diferentes apreensões estéticas do campo histórico.
universais e invariáveis). Isso significa que ele interpretava o campo histórico
Mas Kant sublinhou as implicações morais dessas opções estéticas, os metonimicamente, como uma oposição mediada por relações de causa-efeito,
efeitos que a decisão de pôr em enredo ou conceber o processo histórico de um vale dizer, extrínsecas. Não havia razão científica, nas condições de Kant, para
modo específicopoderia ter sobre o modo como se vivia a história, as implicações tentar, como fizera Leibniz, uma identificação sinedóquica das partes daquele
que teriam para a maneira como se concebia o presente e se projetava um futuro campo em sua função de componentes do todo. Ao cabo de tudo, Kant apreen­
para si e para outros homens. O conhecimento histórico não dá uma contribui­ deu o processo histórico menos como um desenvolvimento de um estágio a outro
ção importante para o problema de entender a natureza humana em geral, pois na vida da humanidade do que como simplesmente um conflito, um conflito
não nos mostra nada a respeito do homem que não possamos aprender no insolúvel, entre dois princípios etemamente opostos da natureza humana: racio­
estudo dos homens vivos considerados como indivíduos e como grupos. Mas nal de um lado, irracional do outro. Por isso viu-se compelido a concluir, mais
proporciona uma ocasião para compreender o problema, o problema moral, do uma vez em consonância com a tradição do racionalismo iluminista represen­
fim ou propósito com que uma vida deve ser vivida. tado por Bayle, Voltaire, Hume e Gibbon, que em última análise a história deve
A posição de Kant era aproximadamente esta: o modo como concebo o ser apreendida de um modo antes estético que científico. Só assim é possível
processo histórico, apreendido como processo de transição do passado para o convertê-la em drama, cuja resolução pode ser imaginada como uma consuma­
presente, a forma que imponho às minhas percepções desse processo, tudo isso ção cômica do conflito e não como uma derrota trágica ou uma epopéia
proporciona a orientação segundo a qual penetro num futuro com maior intemporal sem nenhum resultado específico. As razões de Kant para optar por
esperança ou desespero, em face das perspectivas que esse movimento conce- esta noção cômica do sentido de todo o processo eram fundamentalmente
bivelmente terá enquanto movimento em direção a uma meta desejável (ou na éticas. O espetáculo da história tinha de ser concebido como drama cômico; de
direção contrária a uma meta indesejável). Se eu conceber o processo histórico
72 HAWENWHITE META-HISTÓRIA 73

outro modo os homens falhariam em suas tentativas de levar adiante aqueles de de Gelehrter germânico de convicção positivista tendia a desprezar com
projetos trágicos que são os únicos capazes de transformar o caos num campo excessiva pressa, caracteriza-se por manter com a historiografia humanística do
expressivo do esforço humano. Renascimento a mesma relação que a “mitologia de salon dos poetas rococós”
A tendência dominante na historiografia racionalista do Iluminismo ori­ mantinha com “o paganismo robusto dos grandes poetas do Renascimento”
ginou-se no reconhecimento de que a história não deve ser escrita apenas para (Ibid., 412). Era, dizia Fueter, o equivalente historiográfico do “estilo galante”
entreter ou simplesmente no interesse de promover um parti pris de tipo da música da época (Ibid.),
confessional ou político. Os racionalistas reconheciam que era necessário con­ O que é notável nas quatro vertentes da reflexão histórica seiscentista
tar com um princípio crítico para guiar a reflexão sobre o registro histórico se identificadas por Fueter é a proporção em que as duas primeiras - a história
quisessem produzir algo mais do que crônicas ou anais. Começaram em oposi­ eclesiástica e a história etnográfica - são inspiradas por uma percepção opres­
ção consciente zoshistoriens romanesques ougalants do século anterior, ao tipo siva de um cisma fatal na comunidade humana: divisão religiosa no caso da
de história “recreativa” escrita pelo abade de Saint-Réal ou por Charles de história confessional, e separação racial e espacial no caso da história etnográ­
Saint-Évremond, o principal expoente da teoria histórica “libertina” e o protó­ fica (do tipo escrito por Las Casas, Oviedo, Herrera etc.). Aqui a história é
tipo da historiografia “esteticista” mais tarde representada por Walter Pater e escrita na apreensão de divisões que fornecem todas as provas de fatalmente
Egon Friedell. A história - reconheciam osphilosophes - devia ser “veraz” ou estorvarem a marcha da própria civilização.
não poderia pretender “instruir e esclarecer” o leitor no processo de o “entreter A forma analística que a escrita da história tendeu a assumir nas mãos dos
e deleitar”. O que estava em debate, então, era o critério pelo qual se devia grandes eruditos antiquários daquele mesmo século - Mabillon, Tillemont e,
reconhecer a verdade. Em suma, qual era a forma que a verdade tinha de um pouco mais tarde, Muratori - representa um esforço especificamente
assumir? Qual era o paradigma da verdade em geral, em comparação com o historiográfico na apreensão do tipo de continuidade que se poderia conceber
qual um relato verídico das coisas poderia ser reconhecido?
como capaz de fazer desta realidade dividida um todo, uma totalidade com­
Para entender as respostas que os racionalistas deram a essas perguntas preensível. Na forma analística da escrita histórica percebo não somente uma
não basta simplesmente apontar para a distinção que fizeram entre história paixão por algum gênero de ordem mas também a sugestão implícita de que a
“fabulosa” e “satírica” de um lado e história “verídica” do outro. Nem basta ordem da ocorrência temporal talvez seja o único princípio ordenador que
apenas apontar para a idéia geral de verdade assinalada pela dedicação formal poderia ser usado para tornar os anais um pouco compreensíveis. O desejo
deles aos princípios de estabelecimento empírico dos dados, crítica racional do de lidar com “a verdade e nada senão a verdade” e a necessidade compulsiva
testemunho e representação narrativa do “significado” do testemunho numa de tratar dos acontecimentos apenas em seus aspectos extrínsecos, seus aspec­
estória bem contada. Só poderemos entender o que tinham em mente conside­ tos enquanto funções de uma ordem serial, constituíam a base dos princípios
rando os tipos de pensamento histórico que eles rejeitaram ou não levaram a críticos dos eruditos; e isso fixou os limites à concepção do entendimento
sério como possíveis alternativas às suas próprias preconcepções irônicas e histórico. Como forma de representação histórica, os anais representaram um
propensões céticas. avanço na consciência crítica em relação à obra dos grandes historiadores
confessionais (como Foxe) e dos grandes etnógrafos (como Las Casas). Os
analistas procuravam alçar-se acima dos preconceitos e vieses partidários de
>15 PRINCIPAIS FORMAS DA HISTORIOGRAFIA PRÉ-ILUMINISTA uma historiografia escrita com o espírito voltado para as disputas religiosas e os
conflitos raciais. Ao caráter maniqueísta desta última eles opunham a ordem da
Em sua clássica sinopse da história da escrita histórica, Geschichte der serialidade temporal como modo de representação que ao menos deixava o
neuren Historiographie, Eduard Fueter identificou quatro grandes vertentes na historiador livre do vício da subjetividade e do discurso de defesa. Tentavam ser
tradição histórica do século XVII com base nas quais, e contra as quais, se tão frios e distantes quanto eram engajados os confessionalistas e etnógrafos
desenvolveu a historiografia “reflexiva” ou “crítica” dos iluministas. Eram a nas histórias que escreviam. Mas, no fim, foram capazes apenas de suprir os
história eclesiástica (e em grande parte “confessional”); a história etnográfica materiais com que se poderia escrever uma verdadeira história, e não de
produzida por missionários e estudiosos dos novos mundos que a Era da fornecer eles mesmos verdadeiras histórias. E o mesmo se pode dizer de seus
Exploração e Descoberta havia franqueado ao escrutínio científico e histórico; sucessores - inclusive La Curne de Sainte-Paelaye - no século seguinte.
a historiografia antiquaria dos grandes eruditos do período, amplamente filo­ Quando comparado com a paixão moral dos confessionalistas e a frieza
lógica quanto ao enfoque e dedicada à elaboração de cuidadosas crônicas e dos analistas, o cultivo de uma historiografia puramente esteticista da espécie
anais do passado remoto e próximo; e, finalmente, a historiographie galante ou produzida pelos historiens galants parece menos retrógrado do que Fueter
romanesque, baseada nos “romans de intrigas e amores” e escritas num espírito queria que acreditássemos. Se Saint-Réal pouco mais fez do que “divertir” seus
francamente beletrístico (Fueter, 413). Esta última, que Fueter em sua serieda­ leitores ao escrever “nouvelles amusantes et émouvantes”, suas histórias, como
74 HAYDENWHITE 75
META-H1STÓR1A

por exemplo Don Carlos (1672) e Conjuration des Espagnols contre la république é quase indistinguível de Sua criação. Esta maneira de conceber o mundo e a
de Venise en 1618 (1674), pelo menos assinalavam um desejo de alcançar uma relação das partes dele com a totalidade justifica uma representação analística
perspectiva crítica que ao mesmo tempo distanciasse os fenômenos a represen­ dos processos da história, não menos do que da natureza, considerados em sua
tar e os unisse num todo compreensível, ainda que o todo fosse pouco mais do realidade concreta individual e como momentos de um processo total que só
que uma estória emocionante. No entanto, como a única unidade que as parecem estar dispersos no tempo e no espaço. Leibniz podia escrever a história
histórias de Saint-Réal têm é a da estória, estória concebida como pouca coisa numa forma analística porque acreditava que a dispersividade dos fenômenos
mais do que um artifício para alcançar efeitos retóricos, as histórias que ele de era apenas aparente; em sua visão o mundo era indivisível e contínuo entre suas
fato escreveu são falhas pelo fato de que, segundo suas próprias palavras, partes. Nessa conformidade, sua concepção do processo histórico, em que
representam não uma ‘‘verdade” acerca do passado mas apenas uma “ficção” transição por graus infinitesimais pode ser representada em relatos analísticos
de como os fatos poderiam ter sido. Poderiam perfeitamente ter sido de outro de províncias finitas de ocorrência, não exigia que ele distinguisse entre provín­
modo, e poderiam perfeitamente ser representados como parte de uma estória cias maiores e menores. O mesmo processo de transição-na-unidade e unida-
(ou certo número de estórias) de tipo completamente diferente. de-na-transição opera em todas as partes, quer a parte individual seja
interpretada como sendo uma pessoa, uma família reinante, um principado,
uma nação, um império, quer seja toda a raça humana.
LEIBNIZ E OILUMINISMO Mas foi precisamente essa visão da unidade essencial da raça humana que
os iluministas julgaram ser o ideal ainda por realizar no tempo histórico. Eles
Na verdade a forma analística de representação histórica contara impli­ não podiam tomá-la como um pressuposto de sua escrita histórica, não apenas
citamente com uma refinada base teórica ministrada pela filosofia de Leibniz. porque os dados não a corroboravam, mas porque ela não correspondia à
Sustentou Fueter que Leibniz apenas aplicou o método dos analistas à escrita experiência que tinham de seus próprios mundos sociais. Para eles a unidade
da história, mas, ao contrário deles, fracassou na tentativa de conceber “anais da humanidade era um ideal que podiam projetar no futuro, mas não podiam
da Alemanha imperial”, limitando-se à construção de genealogias e cronologias usar esse ideal como paradigma para a explicação histórica ou a representação
de pequenas casas e Estados como o de Brunswick. “Em suma”, disse Fueter, histórica, porquanto era, em primeiro lugar, com vistas a esse ideal que estuda­
“coligiu os materiais, mas não os trabalhou” (Ibid., 393). Mas Fueter não soube vam e escreviam a história, como parte do esforço por levar a efeito tal
fazer justiça à obra de Leibniz. A forma analística de historiografia era consis­ unificação. O mundo que conheciam como fato de experiência obrigava-os a
tente com as concepções leibnizianas de continuidade, de transição por graus invocar um paradigma de representação e explicação que considerasse o fato
infinitesimais, da harmonia do todo em face da dispersão no tempo e no espaço do cisma e da separação, do conflito e do sofrimento, como realidades dadas.
dos elementos ou das partes. Leibniz foi talvez o único entre os grandes vultos A oposição de forças, da qual o cisma e o conflito são manifestações, determi­
do seu tempo a ter motivos para crer que a historiografia analística era um modo nava as modalidades da experiência iluminista da história concebida como
filosoficamente justificado de representação histórica. Sua Monadologia (1714), processo de transição do passado para o presente. O passado para eles era a
que continha a doutrina da continuidade, a teoria da evolução por graus, e a desrazão, o presente era um conflito de razão e desrazão, e só o futuro era o
concepção do acontecimento particular como um microcosmo do macrocosmo, tempo que podiam prefigurar como o do triunfo da razão sobre a desrazão, o
representava uma defesa formal daquele modo de compreensão que denomi­ tempo da perfeita unidade, da redenção.
namos sinédoque. Esse modo de compreensão recorre à relação microcósmi-
co-macrocósmica como a um paradigma de toda explicação e representação da
realidade. No pensamento histórico de Leibniz ele aparece como a crença em O CAMPO HISTÓRICO
que a representação de um evento em seu contexto total, sendo o próprio
contexto interpretado como um espaço pleno de eventos individuais unidos em Quando examinou o passado remoto Leibniz viu lá em ação as mesmas
sua diferença recíproca, é um meio adequado de imaginar o significado e a forças que via à sua volta no presente, e nas mesmas proporções. Essas forças
relação daquele evento com o todo. nem eram exatamente as da razão nem exclusivamente as da desrazão, mas,
O cosmo, como Leibniz o concebia, é um espaço pleno de mônadas antes, a harmonia dos opostos, o que faz da razão e da desrazão apenas
individuais, cada uma perfeita em si mesma, cuja unidade consiste na autonomia manifestações diferentes da mesma força ou poder unificado, que é em última
do todo considerado como processo de infinita criatividade. A perfeita harmo­ instância o de Deus. Quando examinavam o passado remoto, os iluministas eram
nia do todo, que domina e destrói a impressão de conflito e causalidade atormentados pelas diferenças entre ele e o mundo por eles próprios ocupado,
extrínseca que parece impossibilitar qualquer relação intrínseca entre as diver­ tanto assim que se sentiam quase propensos a idealizar sua própria época e a
sas partes, é validada pela bondade do Criador, cuja beneficência é tal que Ele colocá-la em contraste com o passado remoto como um oposto antitético.
76 HAYDENWHÍTE
META-HISTÓR1A 77

Foram salvos da inclinação para idealizar sua própria época - embora alguns
deles (notadamente Turgot e Condorcet) cedessem à tentação de fazê-lo - pelo A situação de escassez motivou uma luta entre os homens pelos bens da natureza
ceticismo que lhes norteava o uso da razão na crítica dos males do seu tempo. que uma tecnologia inadequada não podia aumentar com eficiência. Isso, por
Mas a consciência da oposição era suficientemente forte para impedir o esban­ seu turno, levou à “criação” da sociedade, que regulou o conflito humano pela
jamento de tolerância ou simpatia pelo homem arcaico, salvo naqueles raros força e manteve sua autoridade sobre os homens com o auxílio da religião, ela
casos em que, como Gibbon, eles julgavam perceber no passado algum protó­ mesma também produto da combinação de carência e ignorância. Assim, o
tipo do gênero de homens que se imaginavam ser ou desejavam poder se tornar. estado da própria sociedade veio a ser identificado como simultaneamente
Uma vez que sua relação com o passado remoto era concebida sob os auspícios causa e manifestação da desrazão no mundo. E o progresso foi concebido como
de um paradigma metonímico - isto é, no modo da separação ou da oposição o gradual desmascaramento da natureza irracional do estado social pelo peque­
extrínseca - e uma vez que o modo explicativo que a metonímia sugere para no grupo de homens racionais capazes de reconhecer-lhe o caráter intrinseca­
explicar a relação entre dois aspectos opostos do todo é o de causa-efeito, os mente tirânico. Desse modo, o significado do processo histórico iria ser
iluministas compreendiam o espetáculo da quase total ignorância, superstição encontrado, não no fato de a razão emergir da desrazão, mas no plano pura­
e violência daquelas idades passadas como quase por .completo causalmente mente quantitativo, como a expansão de uma razão originariamente limitada
determinado. para áreas da experiência formalmente ocupadas pelas paixões, emoções, igno­
Não tinham necessidade alguma de dar maior atenção à representação de rância e superstição. Não foi de maneira alguma um processo de transição.
eventos do passado remoto (como o dos antigos hebreus de que trata o Antigo Mas isso queria dizer que - de acordo com os princípios mecanicistas
Testamento), visto que todos aqueles eventos retratavam a verdade única de invocados - o florescimento da razão tinha de ser concebido como tendo
absoluta determinabilidade da humanidade daquele tempo. Tudo era concebi­ ocorrido a expensas de alguma outra coisa. Essa outra coisa era o próprio
do como manifestação de uma paixão, ignorância ou irracionalidade (muitas passado, como existia no presente enquanto tradição, costume e tudo o mais -
vezes qualificada por Voltaire de insanidade) essencial e absoluta. Atenção instituições, leis, artefatos culturais - que exigia consideração e respeito sim­
especial poderia merecer a representação de algum protótipo de homem racio­ plesmente porque era antiga. Os iluministas, portanto, escreviam a história
nal reverenciado como um ideal em seu próprio tempo, mas não podiam contra a própria história, ou pelo menos contra aquele segmento da história que
vivenciavam como “passado”. A simpatia deles pelo passado só era estendível
explicar o aparecimento desses homens racionais no meio de uma invariável
irracionalidade, da mesma forma que não podiam explicar o desabrochar da afinal, como observou Voltaire, ao passado próximo, onde podiam encontrar
razão no seio da própria desrazão. Ambas as coisas eram igualmente “miracu­ coisas para admirar e respeitar porque estas se assemelhavam muito a eles
mesmos. Essa investigação do passado próximo à cata de objetos próprios para
losas”, embora a segunda fosse vista como uma dádiva “providencial”, conside­
rando que a época presente e o futuro podiam ser concebidos como a representação histórica simpática permitiu zosphilosophes suas poucas incur­
beneficiários positivos do advento da Idade da Razão. sões pela representação sinedóquica (organicista e tipológica simpática).

Mas note-se: o eclodir da razão no interior de um estado de desrazão é Mas mesmo aqui suas aptidões para a simpatia e a tolerância eram
em última análise “irracional”, visto que a irracionalidade original do homem frustradas por sua contínua apreensão da falha, do elemento de desrazão ainda
não pode ser explicada com base na teoria da natureza essencialmente racional presente no homem supostamente racional. Isso se verificava sobretudo quando
da própria natureza. Pois, se a natureza é regida pela razão e é ela mesma atentavam para homens de ação, como por exemplo Carlos XII. No retrato que
intrinsecamente ordenada e harmoniosa em suas operações, por que então não Voltaire fez dele, Carlos foi apresentado como o mais inteligente, capaz e
é presumível que os primeiros homens de que temos notícia, homens que viviam talentoso governante conhecido na história do mundo; mas ele ainda era
irremediavelmente imperfeito como bem o mostrava sua paixão irracional pela
num estado de natureza, tivessem sido eles próprios racionais? Como produtos
imediatos de um sistema racional de processos causais invariantes, é de supor “glória da conquista”, considerada por Voltaire um resíduo de um passado
bárbaro que estupidamente via na guerra uma virtude em si mesma. Essa falha
que os primeiros homens tenham sido tão racionais em seu modo de existência
não era afinal uma falha trágica, uma função da excelência de Carlos; era um
quanto a própria natureza. Mas não somente são eles visivelmente irracionais;
defeito, uma infecção no cerne de um organismo que sob outros aspectos era
são - como aparecem nos registros de remota antiguidade - especialmente
irracionais. Como se pode explicar isso? esplendidamente saudável. A queda de Carlos, portanto, não era trágica; era
patética. Por isso sua história era apenas uma oportunidade de lamentar o poder
A tática dos iluministas era postular a existência de uma condição, ante­ da desrazão de impregnar, e destruir, até o mais forte dos homens.
rior às eras primitivas de que temos registro, em que os homens eram tão
racionais quanto a própria natureza, mas da qual decaíram em conscqüência O que Voltaire poderia ter concluído de sua análise da carreira de Carlos
de sua ignorância e da situação de escassez causada pela multiplicação da era que a desrazão é uma parte do mundo e do homem, tão inelutável e
espécie, o que por sua vez era fruto da beneficência e generosidade da natureza. irredutível como a própria razão, e uma força que não deverá ser eliminada mais
cedo ou mais tarde mas que cumpre domar, sublimar e direcionar para canais
78 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 79

criativos e humanamente úteis. Ele era incapaz de considerar essa possibilidade as causas em questão entendidas geralmente como as forças da razão e da
porque partilhava com sua época de uma concepção mecanicista da psique desrazão, cujos efeitos eram geralmente concebidos como sendo de um lado os
humana, concepção que exigia que ela fosse considerada um campo de batalha homens esclarecidos e do outro os supersticiosos ou ignorantes.
em que formas opostas, e mutuamente alternativas, de consciência, razão e Os elementos “lexicais” desse sistema eram homens, atuando como indi­
desrazão se enfrentassem em eterna luta até que uma desmantelasse totalmente víduos ou como grupos, “gramaticalmente” classificáveis nas principais catego­
o poder da outra. O mais perto que Voltaire ou os outros gênios da historiografia rias de portadores de valores supersticiosos ou irracionais e portadores de
da época - Hume e Gibbon - chegaram de entender as potencialidades criativas valores esclarecidos ou racionais. A “sintaxe” das relações pelas quais essas
da desrazão foi na crítica irônica que fizeram de si mesmos e nos esforços que duas classes de fenômenos históricos se vinculavam era a do incessante conflito
envidaram para compreender a história. Isso os levou a se verem a si mesmos de opostos; e o significado (semântico) desse conflito não era senão o triunfo
tão potencialmente imperfeitos como os aleijados que lhes pareciam estar destes sobre aqueles, ou o inverso. Mas nem a evidência oferecida pela reflexão
parodiando o espetáculo da história. sobre os tempos nem aquela proporcionada pela reflexão sobre a história era
realmente capaz de confirmar ou negar em definitivo essa concepção do signi­
ficado da história. Conseqüentemente, o pensamento histórico da principal
A REALIZAÇÃO HÍSTORIOGRÁFICA DO ILUMINISMO tradição do Iluminismo foi sendo cada vez mais obrigado a recuar de sua
primitiva apreensão metonímica do mundo para a compreensão irônica dele,
que a evidência exigia, admitidos em primeiro lugar os termos em que a pesquisa
Tendo indicado a natureza do avanço que a historiografia racionalista do
foi concebida. Pois, se começo por uma apreensão do campo da história humana
Iluminismo representa em relação às principais convenções da reflexão históri­
como uma área de acontecimento dominada por relações causa-efeito, sou
ca que a precedeu, e tendo registrado as falhas ou limitações daquela visão
então obrigado no fim de contas a considerar qualquer coisa deste campo,
histórica, especificarei agora o exato teor de sua realização. A historiografia do
qualquer homem, instituição, valor ou idéia, como sendo apenas um “efeito” de
século XVII começou por uma apreensão do campo histórico como um caos de
forças opostas, entre as quais o historiador tinha de optar e a serviço de uma ou algum nexo causal - isto é, como uma realidade contingente (portanto determi­
mais de uma delas escrever sua história. Isso aconteceu tanto com a historio­ nada) e, assim, irracional em sua essência.
grafia confessional do século XVII como com a historiografia etnográfica dos Em face dessa inevitabilidade, o pensamento do Iluminismo foi compeli­
missionários e conquistadores espanhóis. Essa historiografia do cisma essencial do, como o pensamento histórico do século anterior fora compelido, a conside­
teve como sucessoras, ou mobilizou, duas alternativas para si mesma. Uma rar a escrita histórica como uma espécie de arte. Mas, visto que a concepção de
delas, a tradição dos antiquários eruditos, emergiu de um desejo de perfeita arte dos iluministas era neoclássica - isto é, uma arte que colocava a causação
objetividade, que redundou na criação do modo analístico de explicação e e a lei no centro de sua apreensão do mundo tal como o fazia a ciência -, a
representação, cuja característica foi a concepção de ordem e unidade como historiografia da época foi necessariamente impelida na direção de um modo
mera serialidade, ou sucessão no tempo. A defesa tácita desse modo de escrita de representação puramente satírico, do mesmo modo que em geral o foi a
histórica, contida na Monadologia de Leibniz e na doutrina da continuidade ali literatura da época. Essa época não produziu nenhuma grande historiografia
exposta, era intrinsecamente hostil à concepção, sustentada pelosphilosophes, trágica e pela mesma razão que não produziu nenhum grande teatro trágico.
da realidade social como sendo inerentemente dividida e atomizada e em Faltavam nela as bases da crença na falha heróica trágica, concebida como um
contraste com a qual a própria doutrina leibniziana da harmonia essencial dos grau excessivo de virtude. Uma vez que todos os efeitos tinham presumivelmen­
opostos parecia ser tão ingênua quanto era “idealista”. A outra reação à te de ter as causas necessárias e suficientes para sua produção, a noção de um
historiografia do cisma essencial era puramente estética, representada pelos paradoxo existencial, de uma contradição dialética que era antes vivida que
historiens galants, que, ainda que simbolizassem o desejo de elevar-se acima da simplesmente pensada, dificilmente podia ser concebida pelos pensadores ou
história partidária, só se sentiam aptos a fazê-lo mediante a recusa a admitir que artistas dessa época. Por isso é que a comédia produzida pela época, mesmo a
a empresa historiográfica era parte da busca mais geral da “verdade” que de Molière, tende a corresponder antes à da nova, que à da velha, comédia ática;
motivava a ciência e o pensamento filosófico da época. enquadra-se mais na linha da farsa de Menandro do que na da seriedade
A alternativa a todas essas convenções historiográficas foi o modo irônico mimética elevada de Aristófanes, que é uma comédia baseada antes numa
de conceber a história, elaborado pelos philosophes, que se empenhavam em aceitação das verdades da tragédia que no abandono, ou na derrogação, daquelas
alcançar a objetividade e o descompromisso e, pelo menos tacitamente, reco­ verdades, como tendem a ser a de Menandro e a de Molière.
nheciam a impossibilidade de atingir essas metas. Dominados por uma concep­ Verlaine, ao que se diz, comentou que as belas damas pintadas por
ção de racionalismo derivada das ciências físicas (newtonianas), osphilosophes Reynolds e Gainsborough tinham a aparência de deusas que não acreditavam
encaravam o campo histórico como um espaço de relações causa-efeito, sendo em sua própria felicidade. O mesmo se pode dizer dos escritores, historiadores
META-HISTÓR1A 81
80 HAYDENWHTTE

O resultado dessa percepção iria conduzir o pensamento à consideração


e filósofos da era do Iluminismo; mas não porque não acreditassem na felicida­
da exeqüibilidade de moldar o processo histórico a um enredo trágico. Isso,
de, e sim porque não podiam crer que eles próprios fossem deuses ou mesmo
porém, foi prejudicado desde o início pela concepção da natureza humana como
heróis. Nem uma visão cômica nem trágica da história era plausível para eles, e
simplesmente um campo de determinações causais, o que faz de toda falha
por isso recorreram às representações satíricas e irônicas do mundo que
potencialmente trágica num protagonista uma verdadeira corrupção, antes que
habitavam e dos processos através dos quais ele se constituíra. Mas isso não
uma virtude que por excesso se transformou em vício. O resultado foi ter o
deve ser tomado como uma escolha ignóbil por parte deles. Tendo pré-critica-
pensamento histórico, a exemplo da sensibilidade filosófica e literária da
mente decidido, através da prefiguração do mundo como um campo fragmen­
época, enveredado pelo modo da sátira, que é a forma “ficcional” tomada pela
tado, de causas por um lado e efeitos por outro, que nenhuma unidade era
possível, foram progressivamente abandonando o ideal em favor da realidade. ironia.
Essa realidade apresentava-se para eles como uma irredutível mistura de razão Pode-se usar a sátira - e aqui penetro na área das implicações ideológicas
e desrazão, como beleza conspurcada e finalmente como obscuro destino tão - para fins conservadores ou liberais, dependendo de ser o objeto satirizado
incompreensível quanto inelutável. uma força social estabelecida ou emergente. O pensamento histórico do Ilumir
Posso agora caracterizar o aspecto geral do pensamento histórico do nismo, aquele produzido por seus melhores representantes, podia ter sido usado
Iluminismo como um todo. No plano principal percebo o estabelecimento para fins liberais ou conservadores, mas sem maior efeito a serviço de qualquer
de um paradigma da consciência histórica no modo da metonímia, ou das dos dois, porque, em sua ironia, reconhecia que as verdades específicas que
relações de causa e efeito, a serviço das quais tanto as identificações meta­ estabelecia eram ambíguas e não ensinavam verdades gerais, apenas que plus
fóricas (a nomeação dos objetos do campo histórico) quanto a caracteriza­ ça change, plus c*est la même çhose. No fim, as forças da democracia que iam
ção sinedóquica dos indivíduos em termos de espécies e gêneros foram surgindo no decurso do tempo pareciam tão repreensíveis e ameaçadoras aos
usadas para produzir um significado que era irônico em seu conteúdo olhos dosphilosophes como lhes tinham parecido as forças da aristocracia e do
específico. E posso dizer que, neste caso, uma compreensão irônica foi o fruto privilégio a que eles se tinham originariamente oposto, porque, da maneira
de uma investigação metafórica e sinedóquica de um campo que fora pré- como interpretavam a realidade, não podiam crer na possibilidade de genuína
criticamente apreendido e, portanto, interpretado no modo da metonímia. transformação de coisa alguma: sociedade, cultura ou eles mesmos.
Expresso como uma regra, isso redundaria numa generalização: aquele que A decisão de Kant de tratar a compreensão histórica como ficção, o que
aborda a história como um campo de relações de causa e efeito é conduzido, comportava diferentes implicações morais, representou a chegada à consciên­
pela lógica da própria operação linguística, à compreensão daquele campo cia da predisposição irônica da época. E, assim como na filosofia de Kant sua
em termos irônicos. defesa irônica da ciência preparou o terreno para o idealismo, também sua
análise irônica do pensamento histórico preparou o terreno para o renascimen­
Isso quer dizer que o pensamento histórico do Iluminismo passou, em seu to da concepção organicista da realidade ensinada por Leibniz. Kant não
modo explicativo, de apreensões nomológicas para compreensões topológicas, gostava do idealismo de Fichte, que era um desdobramento excêntrico do seu
o que vale dizer que o melhor que ele ofereceu ao entendimento histórico foi próprio sistema, porque fazia da ciência apenas uma projeção da vontade
uma sucessão de “tipos” de humanidade que tendiam a dividir-se em classes subjetiva. O que lhe desagradava no organicismo de Herder, que reviveu a
positivas ou negativas, neste caso, razão e desrazão, respectivamente. O modo doutrina leibniziana da continuidade e transformou-a na base de uma nova
de representação começou numa prefiguração épica do campo histórico, isto é, filosofia da história, era que ele fazia da mudança e transformação as bases
na apreensão de uma grande disputa entre os poderes da razão e da desrazão, mesmas da vida, cuja natureza agora exigia que nem sequer se suscitasse a
disputa inspirada pela esperança de que a história mostrasse o triunfo dos questão de saber se a história progredia ou não.
poderes heróicos sobre as figuras obstrutivas que eram indispensáveis à tensão
Numa obra que examinarei depois, como outro exemplo de abordagem
que conduz ao movimento do todo. Mas os historiadores logo chegaram a
irônica do conhecimento histórico (Uso e Abuso da História de Nietzsche),
reconhecer que, quando se trata de disputas sagradas, há que perder ou ganhar
traça-se uma distinção entre três tipos de sensibilidade histórica - a antiquá-
alguma coisa de modo absoluto no conflito, que não é uma questão simplesmen­
ria, a monumental e a crítica - com base no que se poderia chamar a forma
te de redistribuir as forças em ação no campo, que, em suma, nem a vida nem a
dominante da “aspiração temporal” que caracteriza cada uma. A história
história é um jogo. Isso, por sua vez, redundou na indagação dos possíveis
antiquária, disse Nietzsche, confere um valor absoluto ao que é velho, só
significados cômicos ou trágicos que a totalidade do processo histórico poderia
porque é velho, e atende à necessidade do homem de sentir que deita raízes
conferir à investigação. Mas reconheceu-se finalmente que uma representação
num mundo anterior e a suas aptidões para a reverência, sem o que ele não
cômica da ocorrência histórica só pode apoiar-se em elementos dogmáticos,
poderia viver. A história monumental, por contraste, procura não o velho
como Turgot e Condorcet tentaram apoiá-la, e nunca em elementos empíricos,
como Bayle e Voltaire esperavam fazer. mas o ostensivamente grandioso, o heróico, e o exibe como exemplo do poder
82 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 83

criador do homem para mudar ou transformar seu mundo; por isso é orientada na história concebida como um mistério humano, que Vico celebrou em sua
para o futuro e demolidora das devoções e preocupações práticas presentes dos “Ciência Nova”.
antiquários. A história crítica, por outro lado, procede ao julgamento tanto das
devoções herdadas como dos sonhos utópicos do futuro, operando a serviço das
necessidades e dos desejos sentidos no presente, preparando o terreno para A REBELIÃO DE HERDER
aquele esquecimento criativo, o refinamento da faculdade de “olvido”, sem CONTRA A HISTORIOGRAFIA DO ILUMINISMO
o que a ação no presente não é de modo algum possível.
O século XVIII produziu representantes dos três tipos de escrita da O pensamento de Herder é “mítico” porque procura escapar à metonímia
história, mas foi fraquíssimo na promoção da forma monumental, a serviço do e sua conseqüência irônica recorrendo ao tipo mais básico de explicação e
herói. A concepção da história como a estória dos heróis, do processo histórico representação, fundamento da própria compreensão mítica, a ingênua metáfo­
como “a essência de inumeráveis biografias”, tal como o conceberia Carlyle ra. Mas o pensamento de Herder não é “ingênuo”; é conscientemente dirigido
tempos depois, foi o feito especial da era romântica do início do século XIX. para a recuperação da individualidade do evento em sua particularidade,
Mas o Iluminismo não produziu nada parecido com isso, porque o Iluminismo singularidade e concretude em conjuntos discretos de identificações metafóri­
não tinha realmente muita confiança nos homens enquanto indivíduos - na cas. Assim, pode-se dizer que o pensamento de Herder começou por uma
humanidade, sim; no homem, não. A razão disto residia na perspectiva pela qual
apreensão do campo histórico como um conjunto efetivamente infinito de
os iluministas viam suas próprias tentativas de escrever a história, fosse na forma
particularidades, cujas origens ou causas presume-se que sejam totalmente
antiquária, fosse na forma monumental ou crítica.
incognoscíveis pela razão, portanto miraculosas, e cuja totalidade se apresen­
Os iluministas chegaram ao seu estudo da história partindo do quarto nível tava a seus olhos como um agitado e encapelado oceano de acontecimentos
de consciência que o próprio Nietzsche procurou promover, uma consciência visivelmente casuais. Mas Herder não podia contentar-se com o simples passa­
meta-histórica - uma consciência irônica - da limitação que a natureza impõe tempo dessa aleatoriedade como realidade última. Insistia - por razões religio­
a todas as ações humanas e da restrição que a finitude humana impõe a todos sas ou metafísicas - em que este campo do acontecimento tem um fundamento
os esforços de compreender o mundo pelo pensamento ou pela imaginação. ou propósito ontologicamente anterior e espiritualmente superior, um propó­
Mas não exploraram totalmente sua ascensão a esse nível de consciência. Não sito que lhe dava certeza da unidade, integração e harmonização última das
acreditaram nos seus próprios poderes prodigiosos de sonhar, que sua auto­ partes no todo.
consciência irônica devia ter liberado. Para eles, a imaginação era uma ameaça O pensamento de Herder esforçava-se por estabelecer o princípio em
à razão e só podia ser disseminada no mundo sob as mais rigorosas coerções virtude do qual esse indício de harmonia e integração pode ser justificado, mas
racionais. de modo a evitar sua especificação em termos meramente físicos ou causais (isto
A diferença entre os iluministas e Nietzsche estribava-se em que este é, metonímicos), a fim de não incidir na ironia que tal especificação inevitavel­
último estava cônscio da natureza “fictícia” de suas próprias percepções mente acarreta quando plenamente considerada numa reflexão que avança até
irônicas, e contra elas dirigia seus próprios poderes oníricos, usando a posição sua derradeira conclusão. Herder contentava-se com descobertas de coerências
“a-histórica”, a partir da qual podia inspecionar os esforços dos historiadores formais limitadas entre as individualidades que imaginava habitarem o campo
para “compreender” o processo histórico em termos antiquários, monumen­ histórico tal como é imediatamente dado - isto é, com a apreensão do que se
tais e críticos, como base para se elevar à posição “super-histórica”, na qual poderia chamar de universais putativamente concretos, que outra coisa não são
podiam ser gerados novos “mitos” da história, só que a serviço da vida e não que as espécies e gêneros encontrados no campo histórico mas tratados como
da morte. individualidades concretas em si mesmas: nações, povos, culturas. Por isso é que
Por sua vez os iluministas nunca atingiram a plena consciência das sua concepção da história pode ser vista como ao mesmo tempo individualista
possibilidades criativas contidas em sua própria apreensão irônica da natu­ e tipológica, e que todo o sistema de pensamento de Herder pode ser legitima­
reza “fictícia” da reflexão histórica. Esta é uma das razões por que nunca mente associado ao romantismo por um lado e ao idealismo por outro.
conseguiram entender as representações “fictícias” da verdade expostas nos Como sistema filosófico que tomou forma depois do mecanicismo ilumi-
mitos, nas lendas e nas fábulas de tempos primitivos. Eles não viam que as nista e em reação a ele, a filosofia organicista de Herder afirmava a um só tempo
fábulas podem ser as formas dadas a verdades incompletamente apreendidas o primado e a irredutibilidade do ser humano individual bem como das tipifi­
do mesmo modo que freqüentemente podem ser o conteúdo de falsificações cações dos modos de relacionamento dos indivíduos entre si. Herder não sentia
que são incompletamente reconhecidas. Assim, nunca se libertaram para necessidade alguma de decidir se o indivíduo concreto ou o tipo que ele
aquela imersão mítica no processo histórico concebido como o mistério representa é ontologicamente mais primordial, pois concebia o indivíduo e o
divino, que Herder celebrou em sua filosofia, ou para aquela imersão poética tipo como sendo igualmente “reais”. Ambos exprimiam igualmente a força
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espiritual ou potestade, que é em última instância responsável pela integridade Nessa citação podemos ver como Herder conseguiu encerrar dentro de
do indivíduo e do tipo, e pela harmonização deles dentro de uma totalidade mais uma apreensão da nobreza e harmonia do todo - e neutralizá-la - aquela
vasta, cósmica, ao longo do tempo. Pelas mesmas razões, o nascimento e a conclusão irônica a que há de ser conduzida uma apreensão simplesmente
extinção do indivíduo e das espécies e dos gêneros que elas representam não metonímica do mundo se for consistentemente elaborada e pensada até suas
constituíram problemas para ele, visto que presumia que esse processo de derradeiras implicações. A “contradição” da condição humana, o paradoxo
nascimento e extinção não deve ser definido como processo natural ou espiri­ segundo o qual o homem é o mais elevado dos seres vivos e ao mesmo tempo
tual, mas como um processo que é natural e espiritual ao mesmo tempo. Nascer está em constante conflito consigo mesmo, possui as mais altas faculdades e é
e morrer eram igualmente preciosos para ele como meios pelos quais a força ao mesmo tempo o único organismo animal que está em constante guerra com
orgânica unificada cumpre sua tarefa de finalmente integrar o ser consigo seu ambiente, a ironia do fato de que os mais nobres exemplares da espécie são
mesmo. os mais descontentes com sua sorte e são os menos eficientes nos esforços por
Assim, nem mesmo a morte era uma conclusão para Herder; ela não é enobrecer seus companheiros - tudo isso é invocado para explicar a “evidente
real, mas sim um ponto de transição de um estado de integração para outro. Nas bipolaridade” da natureza humana, que, por sua vez, é transformada numa base
Ideen zurPhilosophie der Geschichte des Menschheits (1784-1791), por exemplo, para crença na condição do homem como habitante de dois reinos, o natural e o
ele afirmou: espiritual, entre os quais ele forma o elo e a ponte, e a partir dos quais suas
aspirações como homem o impelem a uma ordem mais alta de integração para
além do tempo e do espaço. Tudo isso é o que justifica a dupla via que o
Tudo na natureza está ligado: um estado busca e prepara o seguinte. Se, então, o homem pensamento de Herder seguiu ao considerar o processo histórico: sua apreensão
for o último e mais alto elo, encerrando por assim dizer a cadeia da organização terrestre, deve
também iniciar a cadeia de uma ordem mais elevada de criaturas como seu elo mais baixo. É ele,
da estrutura do campo histórico no modo de identificação metafórica das
portanto, o anel do meio entre dois sistemas contíguos de Criação. (...) Esta visão das coisas (...) entidades individuais - seres humanos e grupos - que o constituem em sua
nos dá por si só uma chave do maravilhoso fenômeno do homem e portanto também de uma imediatez; e sua compreensão desse campo como um processo, como uma
possível filosofia da história humana. estrutura em processo de articulação no sentido da integração de todas as partes
Pois, se nos lembrarmos sempre desta perspectiva, ela nos ajudará a projetar luz sobre a num todo espiritual.
peculiar contradição que é inerente à condição humana. O homem considerado como animal é um
filho da terra e a ela está ligado como à sua habitação; mas considerado como ser humano, como Herder afastou a necessidade de caracterização metonímica do campo
criatura da Humanitat, tem dentro de si as sementes da imortalidade, e estas precisam ser plantadas histórico, dissolveu-o como campo de acontecimento causal e construiu um
em outro solo. Como animal pode satisfazer suas necessidades; há homens que não desejam mais dado com o que, nas filosofias mecanicistas da história, deve ser considerado
nada e por isso podem ser perfeitamente felizes aqui embaixo. Mas aqueles que procuram uma como a problema crucial, isto é, o problema à^mudança. Ao mesmo tempo não
finalidade mais nobre acham tudo à sua volta imperfeito e incompleto, porquanto o mais nobre nunca
foi alcançado comais puro raramente perdurou nesta terra. Isso é amplamente ilustrado pela história
renegou a justificação da conclusão irônica a que é levada uma análise metoní­
de nossa espécie, pelos inúmeros tentames e empreendimentos que o homem promoveu e pelos mica, isto é, a natureza aparentemente “contraditória” da história humana.
acontecimentos e revoluções que o surpreenderam. De vez em quando um homem sábio, um Simplesmente tomou aquela “contradição” como uma realidade “aparente”,
homem bom, apareceu para lançar idéias, preceitos e ações na corrente do tempo. Eles apenas coisa que não cabe tanto explicar como singelamente invalidar por meio de
agitaram a superfície das águas. (...) Os néscios sobrepujaram os conselhos dos sábios e os
explicações que apelem para a presumida harmonização das partes em última
perdulários herdaram os tesouros de sabedoria reunidos por seus antepassados. (...) Um animal
vive o seu tempo de vida, e mesmo que seus anos sejam demasiado breves para que possa atingir análise. Conseqüentemente seu pensamento oscilava entre a apreensão do
fins mais elevados, seu escopo mais profundo é alcançado; suas habilidades são o que são e ele é o indivíduo em sua concretude e integridade como particularidade caracterizada
que está destinado a ser. Só o homem, dentre todas as criaturas, está em conflito consigo mesmo e por intenção e movimento para um objetivo, o que tornou Herder valioso para
com o mundo. Mesmo sendo a mais perfeita dentre elas, no plano das potencialidades, ele é também
o que menos êxito alcança em desenvolvê-las em toda a plenitude, mesmo ao fim de uma vida longa os românticos que o seguiram, e a compreensão do todo como um espaço pleno
e ativa. Ele é o representante de dois mundos ao mesmo tempo, e daí deriva a evidente bipolaridade de tipificações sugeridoras da progressiva idealização da totalidade, o que o
de sua natureza. (...) Isto é certo: em cada um dos poderes do homem reside uma infinidade que tornou caro aos idealistas. O que o converteu em anátema para os filósofos
não pode se desenvolver em seu estado presente, onde é reprimida por outros poderes, por positivistas do seu tempo (como Kant, que em sua filosofia científica estabeleceu
tendências e apetites animais, e oprimida, por assim dizer, pelas forças e pressões de nossos
trabalhos cotidianos. (...) A expressão de Leibniz, de que a mente é o espelho do universo, contém o ponto de partida para um positivismo filosoficamente sólido) e aqueles que
uma verdade mais profunda do que comumente se supõe. Pois os poderes do universo que parecem vieram depois dele (como os comtianos) foi o ter sido a categoria de causalidade
estar escondidos na mente precisam somente de uma organização, ou de uma série de organizações, esvaziada de toda eficácia para a análise dos fenômenos humanos, ou melhor,
que os ponha em ação. (...) Para a mente, ainda em seus grilhões at uais, espaço e tempo são conceitos ter tido sua competência limitada à análise da natureza física e animal e daqueles
vazios. Eles apenas medem e denotam relações do corpo e não exercem influência sobre a eterna
capacidade da mente que transcende o espaço e o tempo [Herder, Ideen, 146-49 (trad. ingl. Barnard, aspectos do homem que estão submetidos a leis (agora epistemologicamente
280-81); grifos acrescentados]. insignificantes) de causação material.
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Mas se essa compreensão das diferentes esferas presididas por diferentes individualidades encontradas naquele campo ou a unidade superior de cuja
classes de ciências (as ciências físicas de um lado, as ciências humanas do outro) existência as aptidões delas para a auto-articulação davam testemunho.
lhe granjearam a estima dos idealistas e dos neokantianos do final do século * Eis aqui a real importância de Herder como metodologista histórico. Se
XIX e do nosso tempo, foi ela recebida com algo menos do que fervoroso o interesse do historiador estiver primordialmente voltado para as individuali­
entusiasmo por Hegel. O grande idealista crítico Hegel reconhecia que Herder dades ocupantes do campo, ele tenderá a escrever história no modo romanesco,
e outros como ele tinham corretamente percebido que a mudança era uma cuja natureza mítica ficou imediatamente patente para “realistas” sagazes da
categoria fundamental da análise histórica, mas Hegel também via que nem geração seguinte como Wilhelm von Humboldt, Ranke e Hegel. Se o historiador
Herder nem os idealistas absolutos (Fichte e Schelling), nem os positivistas quiser estudar as individualidades do campo a fim de determinar a natureza do
haviam oferecido uma teoria racional adequada para a determinação do que misterioso “espírito” de cuja existência a existência delas deve dar testemunho,
implicava para a vida humana em geral essa mudança, do que poderia ser o como fizeram Fichte, Schelling e Wilhelm von Schlegel, escreverá história
significado dessa mudança, sua direção e finalidade última. idealista, cuja natureza “mítica” era igualmente óbvia para aqueles mesmos
“realistas” da geração seguinte. Se, porém, o historiador separar a técnica de
Herder não apenas via o plano de todo o drama histórico como um plano investigação de Herder dos interesses espiritualistas mais gerais a que, na mente
cômico; também via cada ato desse drama como uma peça cômica em miniatura, dele, devia ela concebivelmente servir, e fizer da simultânea apreensão das
um pequeno mundo fechado em si mesmo, no qual as coisas são sempre coisas em sua individualidade e coerência formal o objeto de seu estudo do
exatamente o que devem ser e também o que manifestamente são. No entanto, campo histórico, de modo a definir uma explicação especificamente “histórica”
essa caracterização mesma da existência histórica como uma “contradição” e como uma descrição da coerência formal revelada por uma individualidade,
um paradoxo nega implicitamente o que ele consistentemente reiterava como quer como uma particularidade, quer como uma congérie de particularidades,
verdade estabelecida. E isso revela a limitação moral da concepção herderiana escreverá história no modo que passou a ser chamado de “historicismo” - que
da história, o formalismo para o qual ela se encaminhava como o mais alto recentemente chegou a ser considerado como uma visão de mundo caracterís­
gênero de conhecimento a que se pode aspirar na própria compreensão histó­ tica, com implicações ideológicas tão inelutáveis como as dos sistemas “míticos”
rica. Esse formalismo, que era a resposta de Herder à ironia da historiografia contra os quais foi originariamente proposto como antídoto.
do racionalismo tardio (cético), essa disposição de deter a apreensão da coe­
rência formal no processo histórico, assinalava a vontade de Herder de recons­
tituir miticamente os fundamentos sobre os quais se podem levar a cabo a
explicação e representação histórica, seu desejo de um novo paradigma da A IDÉIA DA HISTÓRIA DE HERDER
compreensão histórica.
Antes de passar à discussão das origens do historicismo e da caracteriza­
Herder partilhou esse desejo de um novo paradigma para conceber o ção de seu paradigma e de suas várias modalidades de articulação, registrarei,
campo histórico com a geração de escritores e pensadores que apareceram em para fins de elucidação, os modos pelos quais a visão de mundo de Herder
toda a Europa nessa época (os “pré-românticos” e os Stünner und Dranger), funciona como base para uma possível metodologia do estudo histórico. Come­
geração que procurava romper com todos os pressupostos do racionalismo çarei por mencionar a costumeira caracterização do trabalho de Herder como
iluminista na filosofia e na ciência e com o neoclassicismo na arte. O desejo deles pensador da história. Herderiano tardio e expoente da mesma inteligência
de romper com o racionalismo (pelo menos em sua forma mecanicista) e o sinedóquica que Herder representou no seu tempo (e, além disso, um herde­
materialismo (pelo menos em seu conceito não-evolutivo) pressagiava a iminen­ riano que expôs sua filosofia num espírito análogo, isto é, como meio de
te cristalização de um novo paradigma, com base no qual a explicação, a transcender a ironia de sua época), Ernst Cassirer afirmou que Herder “des­
representação e a implicação ideológica iriam ser postas em prática em campos manchou o feitiço do pensamento analítico e o princípio de identidade que
de ocorrência tão “caóticos” como o representado pela história. Por ter suposto haviam mantido a reflexão iluminista escravizada à análise causal no pensamen­
a mudança como imediatamente categorial em seu sistema e só proximamente to histórico”. A história, como Herder a concebia, escreveu Cassirer, “dissipa
ou finalmente derivada de um poder mais alto, imutável, Herder atendeu bem a ilusão da identidade; não conhece nada realmente idêntico, nada que alguma
à necessidade sentida por sua geração de reinvestigar os fenômenos de mudança vez reapareça da mesma forma. A história dá à luz novas criaturas em sucessão
histórica em geral. E já que ele se recusou a especificar qual poderia ser a ininterrupta, e a cada uma outorga, como direito inato, uma forma ímpar e um
agência reguladora superior, aqueles que compartilhavam de sua apreensão do modo independente de existência. Toda generalização abstrata é, portanto,
campo histórico - como uma congérie de individualidades concretas diversa­ impotente com relação à história, e nem uma norma genérica nem qualquer
mente empenhadas no processo de sua própria auto-articulação - podiam norma universal pode abarcar sua riqueza. Toda condição humana tem seu valor
utilizar seu modo de apreender o campo histórico no interesse de estudar as peculiar; toda fase particular da história tem sua validade e necessidade ima­
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nente” (Cassirer, 231). No entanto, ao mesmo tempo, continuou Cassirer, para Herder não se julgava situado acima de qualquer coisa que encontrasse
Herder, no registro histórico. Mesmo os desmazelados nativos da longínqua terra da
Califórnia, dos quais teve notícia através de um missionário, despertavam nele
Essas fases não estão separadas umas das outras; elas só existem no todo e em virtude do mais admiração do que a repulsa que teriam inspirado a Voltaire. Embora se
todo. Mas cada fase é igualmente indispensável. É dessa completa heterogeneidade que emerge a mudassem de casa “talvez cem vezes por ano”, dormissem onde quer que o sono
unidade real, que só é concebível como a unidade de um processo, não como uma similitude entre os vencesse, “sem se preocuparem com a sujeira do chão ou se darem ao
coisas existentes [Ibid.].
trabalho de se resguardar dos bichinhos nocivos”, e se alimentassem de grãos
que, “quando premidos pela penúria, saem catando (...) em seu próprio excre­
A sensibilidade de Herder para a diversidade das formas de vida, sua mento”, Herder ainda encontrava neles qualidades que resgatavam os defeitos.
percepção da unidade na diversidade e sua substituição da estrutura pelo
Pois estavam “sempre bem dispostos; brincando e rindo o tempo todo; bem-
processo como o modo de compreender a história em sua totalidade constituem
constituídos, desempenados e ativos”; levantavam pedras e outras coisas do
suas contribuições características para o senso histórico do século XIX. Mas, chão “com os dois dedos grandes dos pés”; e quando despertavam do sono,
quando apresentou seu sistema nas Ideen zur Philosophie der Geschichte des
“rifam], conversa[vam] e brincafvamj”, e assim continuavam, “até serem debi­
Menschheits, ele ousou demais. Procurou unir as esferas do natural e do
litados pela velhice, quando [enfrentavam] a morte com tranqüila indiferença”
histórico dentro do mesmo complexo de causas. Considerem-se, por exemplo,
(181 [9]).
os comentários seguintes, que vêm no fim de suas reflexões sobre as causas do
declínio e da queda de Roma: Herder não julgava nada. As coisas que pareciam ser funestas, pungentes,
danosas eram vistas por ele sempre a se julgarem a si mesmas; o perecer delas
A lei que sustentou o sistema terrestre, e formou cada cristal, cada verme, cada floco de era o juízo que formavam de si mesmas - elas simplesmente não resistiam. E,
neve, formou e sustentou também a espécie humana; ela fez de sua própria natureza a base de sua segundo Herder, o que acontecia com os grandes agentes da história acontecia
permanência e ação progressiva, enquanto os homens existirem. Todas as obras de Deus têm sua com os pequenos, com os romanos e com os californianos. “Os romanos”,
estabilidade em si mesmas c em sua formosa consistência; pois todas repousam, dentro de seus escreveu Herder, “foram precisamente o que foram capazes de se tornar; todo
limites determinados, no equilíbrio de forças opostas, graças à sua energia intrínseca, que reduz o perecível pertencente a eles pereceu, e o que era suscetível de permanência
estas à ordem. Guiado por esta indicação, percorro o labirinto da história e em toda parte diviso
perdurou” (394 [267-68]). Nada existia para, qualquer outra coisa, mas tudo era
a divina ordem harmoniosa; pois o que pode em qualquer parte ocorrer, ocorre; o que pode operar,
opera. Mas só a razão e a justiça perduram; a loucura e a inépcia destroem a Terra e a si mesmas parte indispensável do todo; a lei do todo era a norma da parte: “A história
[Herder, Ideen, 419 (Manuel (Org.), 116-17)]. natural não colheu vantagem alguma da filosofia das causas finais, cujos sectá­
rios tendem a satisfazer-se com a conjetura provável, em vez da investigação
O encanto imediato dessa passagem prende-se à imagem que evoca de paciente; e menos ainda colheu a história da humanidade, com seu maquinismo
um sistema que é ao mesmo tempo crescente e disciplinado, ativo e estável, infindavelmente complicado de causas que atuam mutuamente umas sobre as
dinâmico mas repousado, progressivo porém sistemático, infinito e no entanto outras" (393 [266-67]; grifos acrescentados). Na história, como na natureza,
limitado etc., tudo isso englobado na idéia de equilíbrio. A implicação desse concluiu Herder, “tudo, ou nada, é fortuito; tudo, ou nada, é arbitrário. (...) Este
trecho é que tudo que algum dia existiu era adequado às condições de sua é o único método filosófico de considerar a história, e tem sido até inconscicn-
existência. Herder deliciava-se com o fato de que “o que pode em qualquer temente praticado por todas as mentes pensantes” (392 [264-65]).
parte ocorrer, ocorre; o que pode operar, opera”. E com base nessa percepção Está claro que para Herder nada era fortuito, nada era arbitrário. Ele
premunia os leitores contra qualquer impulso de se enlearem em “preocupa­ acreditava que a agência reguladora que dá a tudo a forma que deve ter não é
ções” de caráter “previdente ou retrospectivo” (39). As coisas são sempre o que extrínseca ao processo histórico; no próprio processo, através de uma interação
devem ser, mas a necessidade de serem o que são nada mais é do que a relação mútua entre os elementos do processo, as coisas são levadas a ser o que devem
entre elas e o seu meio: “Tudo o que pode ser, é; tudo o que pode vir a ser, será; ser. Todas as agências da história carregam dentro de si a norma de sua própria
se não hoje, então amanhã”. O espetáculo do nascimento e da morte que o articulação, cuja operação é testemunhada nas coerências formais que as coisas
registro histórico revela à consciência não era para Herder motivo de desespero. individuais conseguem realmente alcançar. A humildade em presença da mul­
O tempo não o ameaçava, porque ele não levava o tempo a sério. As coisas se tiplicidade dessas formas é a regra de conduta do historiador, como é a do
extinguem quando chega o seu tempo, não quando o Tempo exige isso delas. O filósofo, e, na verdade, na concepção de Herder, como é a do cientista. Visto
tempo é internalizado no indivíduo; não exerce hegemonia alguma sobre a de dentro do próprio processo, e não de fora dele à luz de preconcepções
natureza orgânica: “Tudo o que veio a florescer sobre a terra era o que podia genéricas, o mundo histórico é uma pletora de formas singulares, universais
florescer; cada coisa no seu tempo e no seu meio; feneceu, e florescerá de novo concretos, nenhum dos quais é igual a qualquer outro, mas cada um dos quais
quando chegar sua hora”. dá testemunho da presença de um princípio informador dentro do todo.
90 HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 91

A limitação dessa concepção da história é facilmente discernível. Lovejoy regra de articulação podia estender-se a uma sociedade contemporânea, assim
assinalou que faltava a Herder qualquer princípio que lhe pudesse permitir como a ordens sociais passadas, num espírito aceitável para as faixas conserva­
explicar porque, se tudo era sempre adequado ao que a natureza exigia dele, as doras e liberais do espectro da ideologia política. A atitude que servia como
coisas tinham de mudar afinal (Lovejoy, Essays, 181). Incapaz de relacionar o base do historicismo quando dirigido para o passado era a mesma que servia
fato da mudança com o fato da duração de algum modo teoricamente convin­ como base do realismo quando voltado para o presente. A mesma “catolicidade
cente, Herder foi compelido, diz Lovejoy, a elevar a mudança e a duração à de apreciação e entendimento” que Herder prodigalizou sobre todos os aspec­
condição de sacramenta e considerar as manifestações de qualquer das duas tos da natureza e da história passada tornou-se, em espíritos tão diversos como
como epifanias de um poder misterioso, “a força orgânica unificada”, diante da Hegel, Balzac, Tocqueville e Ranke, a base de uma autoconsciência histórica
qual ele foi alternadamente reduzido a piedoso silêncio ou inspirado a compor distintivamente realística. Uma vez esvaziado de suas excessivas pretensões
hinos de louvor. Em sua resenha das Ideen, Kant, o incansável detector de como forma de explicação científica e mantido como atitude, o organicismo
metafísica, laconicamente expôs o caráter não científico das reflexões de Herder gerou todo um conjunto de perspectivas sobre o passado e o presente que eram
sobre a natureza e a história. A noção de uma força orgânica unificada como especialmente satisfatórias para os porta-vozes das classes estabelecidas na
“autoconstitutiva com respeito à multiformidadede todas as criaturas orgânicas ordem social, quer esses porta-vozes se considerassem liberais ou conservado­
e como subseqüentemente operante sobre órgãos segundo as diferenças entre res.
eles, de modo a estabelecer os muitos gêneros e espécies”, situava-se “totalmen­ Ao caracterizar a concepção de história de Herder, então, devo distinguir
te fora do campo da ciência natural empírica”, afirmou Kant. Tal “idéia” o ponto de vista a partir do qual ele observou os agentes e as agências históricas,
pertencia “exclusivamente à filosofia especulativa”, sustentou Kant, argumen­ a voz com que se dirigiu a seu público, a teoria formal do organicismo que ele
tando em seguida que “se ela tivesse acesso mesmo ali, provocaria grande ofereceu como explicação dos eventos *da história, a estória que contou a
devastação entre as concepções aceitas” (Kant, Sobre a História, 38). O desejo respeito da história e a estrutura de enredo que apóia essa estória e fez dela uma
de relacionar tudo a tudo o mais era negado à ciência, disse Kant; e num trecho estória de tipo particular. Se faço essas distinções, posso ver que Kant, embora
espirituoso sobre a tentativa de Herder de deduzir as funções das partes do estivesse correto ao proscrever o organicismo de Herder como teoria metafísi­
corpo de sua fisionomia geral, Kant pôs a nu o impulso metafísico de todo o ca, na realidade abalou apenas um dos cinco diferentes aspectos de todo o
sistema de Herder: sistema de Herder. Como narrador, Herder forneceu um modelo para um modo
de descrever a história que pode ser desprendido de sua base teórica formal e
Querer determinar o arranjo da cabeça, extemamente com respeito à sua forma e interna­ julgado em seus próprios termos como um protocolo metodológico que pode
mente com respeito a seu cérebro, como necessariamente associado a uma propensão para uma ser partilhado por românticos, realistas e historicistas indistintamente, partilha
postura ereta; ainda mais, querer determinar de que maneira uma organização simples dirigida essa que fez dos pensadores históricos que se lhe seguiram, fossem românticos,
exclusivamente para este fim poderia conter a capacidade de raciocinar (atividade portanto de que realistas ou historicistas, representantes de uma única família de atitudes.
o animal participa) - isso claramente excede toda razão humana. Pois a razão, assim concebida,
cambaleia no degrau mais alto da escada fisiológica e está a ponto de levantar vôo metafísico Antes de mais nada, a voz em que Herder apresentou sua concepção da
[38-39]. história era a de um celebrante eclesiástico de um mistério divino, não a do
profeta repreendendo seu povo por ter decaído do estado de graça e chaman­
O que Kant discerniu no sistema de Herder como um erro, porém, era do-o de volta à participação na lei. Herder falava mais em defesa da humanidade
precisamente o que seduzia os historiadores e filósofos da história que vieram do que contra os detratores da humanidade, mas não só em defesa da humani­
depois dele. Em primeiro lugar, o fato de ser o sistema de Herder antes dade em geral; ele falava também por seu público contemporâneo ou em nome
metafísico que científico era menos importante do que o modo de conceber a dele, ao qual se dirigia diretamente e de cujas atitudes e valores compartilhava.
história que ele promovia. Os aspectos metafísicos do sistema eram resultados Em segundo lugar, o ponto de vista assumido por Herder com respeito a seus
de uma abstração proveniente da metáfora fundamental que o escorava e materiais era o de quem não está abaixo nem acima deles em dignidade. Herder
sancionava uma determinada postura diante dos fatos da existência de um lado não acreditava na idéia de que ele e sua própria época fossem uma invenção
e um determinado modo de representar os processos naturais e históricos do insana de uma era mais nobre ou antecipações incompletas de uma era ainda
outro. A postura diante dos fatos que ela estimulava era especialmente atraente por vir. Embora sua atitude para com o passado fosse a de um celebrante da
para homens que tinham vivido no período da Revolução e suas seqüelas e que virtude inerente a esse passado, ele estendia essa mesma virtude ao seu tempo,
ardentemente desejavam algum princípio com base no qual pudessem afirmar de modo que a virtude que se presumia ter existido em tempos pretéritos e que
a adequação de sua própria realidade vivida contra as críticas extremistas a ela existiria nos tempos futuros também se presumisse estar presente no seu tempo.
dirigidas pelos reacionários de um lado e pelos radicais do outro. A aceitação Em terceiro lugar, a estória que ele contou foi a do nascimento e morte das coisas
por Herder de toda realidade como inerentemente possuidora de sua própria no tempo próprio delas\ era uma estória organizada em torno dos motivos de
92 HAYDENWHITE METAHISTÓR1A 93

mudança e duração e dos temas de geração, crescimento e realização, motivos distintivamente otimistas, mas que é também essencialmente ambíguo em suas
e temas que dependem, para sua plausibilidade, da aceitação da analogia entre implicações morais e políticas, vale dizer, ideológicas. Ambas as convenções
a vida humana e a vida vegetal, da identificação metafórica fundamental pre­ surgiram em oposição à historiografia “confessional” do século anterior, que se
sente no cerne da obra. Foi a abstração proveniente dessa metáfora que presumia carecer de objetividade; ao modo analístico de representação, ao qual,
forneceu a Herder a filosofia especificamente organicista, com sua concomitan­ como corretamente se percebia, faltavam colorido, conceptualização e poder
te estratégia de explicação e critério da verdade, que Kant em sua resenha interpretativo; e à concepção beletrística da tarefa do historiador, tal como a
tachou de pouco científica e metafísica. E, finalmente, a estrutura de enredo ou estimulavam os historiens galants ou romanesques do período rococó. Sugeri que
mito subjacente, que permitiu a Herder soldar os temas e motivos de sua estória o pleno desdobramento do mecanicismo em ironia por um lado e do organicis-
numa estória de tipo particular, era aquela que tem seu arquétipo na comédia, mo em autoconvicção por outro criou um cisma na consciência histórica da
no mito da Providência, o que possibilitou a Herder asseverar que, quando época que a expôs à ameaça de mitificação, ameaça que Kant denunciou e
devidamente entendido, todo testemunho de disjunções e conflito exposto no exemplificou em sua proposta no sentido de que a forma do processo histórico
registro histórico vem a significar um drama de reconciliação divina, humana e se fundamentasse em premissas estéticas por razões morais.
natural do tipo delineado no drama de redenção da Bíblia. FF’ ~ Essa tendência para a mitificação da consciência histórica foi levada a
Em todo o sistema de Herder, portanto, podem-se fazer distinções entre cabo no interesse de defender o indivíduo contra a coletividade no romantismo
o modo como ele aborda os dados da história e os converte em testemunho por e no interesse de defender a coletividade contra o indivíduo no idealismo. Esses
um lado e o modo como os explica e representa por outro. Sua abordagem dos dois movimentos representaram reações à ironia moral a que a historiografia
dados era a do piedoso celebrante da variedade e vitalidade desses dados, e ele racionalista fora conduzida desde Bayle até Gibbon e à ambigüidade ideológica
os trabalhava de modo a construir com eles uma estória em que a variedade e a que os pressupostos sinedóquicos do pensamento organicista de Herder o
a vitalidade são antes acentuadas que atenuadas. Variedade e vitalidade não tinham levado no início da década de 1790.
eram, para ele, categorias secundárias, mas sim primordiais, e a classe de Pode-se conceber o pensamento histórico romântico como uma tentativa
eventos que ele retratava na estória da história do mundo que escrevia destina­ de repensar o problema do conhecimento histórico no modo da metáfora e o
va-se a apresentar essas características como os dados a serem explicados. Eram problema do processo histórico em função da vontade do indivíduo entendido
explicados por estarem inseridos numa dupla ordem de estratégias explicativas, como o único agente de eficácia causal nesse processo. O idealismo pode ser
teóricas e metafísicas por um lado e poéticas e metafóricas por outro. Assim, visto por um prisma análogo. Também ele representa uma tentativa de conceber
nas Ideen de Herder o leitor vivência um duplo efeito explicativo: a teoria o conhecimento histórico e o processo histórico no modo da metáfora; mas ele
metafísica, que colide com a investigação filosófica formal, e em especial com concebe como único agente do processo histórico o espírito, não em sua
o criticismo kantiano, de seu tempo; e a identificação metafórica da doutrina individualidade, mas em sua essência genérica, como o Espírito do Mundo, em
da Providência com a vida do vegetal, o que possibilita a organização do material que todos os eventos históricos são vistos como efeitos de causas “espirituais”
da estória numa comédia típica. remotas, primeiras e finais.

DE HERDER AO ROMANTISMO E IDEALISMO


'-i
Ao caracterizar a historiografia do século XVIII distingui quatro modali­
dades de conceptualização histórica. Caracterizei a principal tradição do racio-
nalismo como metonímica e irônica em sua apreensão e compreensão,
respectivamente, do processo histórico, e mostrei como essa abordagem da
história justificava um modo essencialmente satírico de representação, cujas
implicações absurdistas concordavam perfeitamente com o ceticismo do pen­
samento e o relativismo da ética a que no fim de contas deve conduzir uma
apreensão consistentemente mecanicista do mundo. Em contraste com essa
tradição, indiquei, como convenção subdominante do pensamento histórico que
persistiu durante todo o século, de Leibniz a Herder, um modo metafórico-si-
nedóquico de conceptualização histórica que promove uma noção organicista
de explicação e um modo cômico de representação, que tem implicações
2
HEGEL
A POÉTICA DA HISTÓRIA
E O CAMINHO PARA ALÉM DA IRONIA

INTRODUÇÃO

O pensamento de Hegel sobre a história começou pela ironia. Ele pres­


supôs a história como um fato primeiro de consciência (como paradoxo) e
existência humana (como contradição) e em seguida passou a uma consideração
do que os modos metonímico e sinedóquico de compreensão podiam fazer de
um mundo assim apreendido. No percurso relegou a compreensão metonímica
à condição de base para explicações físicas e científicas do mundo e posterior­
mente limitou-a à explicação daquelas ocorrências que podem legitimamente
ser descritas no plano das relações de causa e efeito (mecânicas). Concebeu a
consciência sinedóquica como tendo aplicabilidade mais geral - isto é, aos
dados da natureza e da história-, visto que tanto o mundo físico quanto o mundo
humano podem ser legitimamente compreendidos em termos de hierarquias de
espécies, gêneros e classes, cujas inter-relações sugeriram a Hegel a possibili­
dade de uma representação sincrônica da realidade em geral, que é ela mesma
hierárquica por natureza, muito embora ele negasse a possibilidade de conceber
essa hierarquia como capaz de se expandir no tempo no mundo físico. Essa
posição era coerente com a ciência do tempo de Hegel, a qual não permitia que
fosse atribuída à natureza física ou orgânica a capacidade de evoluir; ele
ensinava a fixidez das espécies.
Portanto, Hegel foi obrigado a concluir que a coerência formal que o
homem percebe nos objetos físicos é só aquela - isto é, formal - e que a
aparência de conexão evolutiva entre eles que o homem julga discernir é uma
função do esforço da mente para compreender o mundo de relações puramente
96 HAYDENWHITE
METAHJSTÓRIA 97

espaciais sob o aspecto do tempo. Isso significa que, na medida em que Hegel cia natural e também histórica. Mas, desde que considerava as coerências
foi conduzido para a doutrina da evolução natural, ele o foi exclusivamente por formais em termos segundo os quais essa distinção era especificada como sendo
considerações lógicas. A mente organiza de modo adequado o mundo natural, essencialmente intemporal, o formalismo não possuía nenhum princípio pelo
concebido como uma hierarquia de formas cada vez mais abrangentes - do qual pudesse explicar a evolução delas, de formas inferiores para formas
indivíduo e da espécie ao gênero e à classe - e é impelida pela especulação a superiores de integração, e nenhum critério pelo qual pudesse avaliar a signifi­
imaginar a classe de todas as classes, que seria o aspecto formal da totalidade cação moral da evolução que poderia realmente ser vista como tendo ocorrido
do Ser. Mas o homem não tem elementos para imputar a essa hierarquia das na esfera histórica. Como o enfoque mecanicista da história, o enfoque forma-
formas uma evolução da inferior para a superior ou da superior para a inferior lista era obrigado a escolher entre a conclusão de que as coerências formais que
no tempo. Cada coerência formal apreendida é apenas uvaapressuposição lógica discernia na história apareciam e desapareciam ao acaso ou representavam a
da que está acima dela, assim como é a conseqüência lógica da que está abaixo eterna recorrência do mesmo conjunto de coerências formais durante todo o
dela. Mas nenhuma é a precedente real da outra, pois na natureza as próprias tempo. Era impossível deduzir da consideração delas um verdadeiro desenvol­
espécies não mudam nem evoluem; os indivíduos sim, e mudam ou evoluem no vimento evolutivo.
movimento de linhas retas (como na atração gravitacional) ou ciclõs (como nos
processos orgânicos de reprodução, nascimento, crescimento, decadência e Assim, formalismo e mecanicismo impunham uma escolha entre a supre­
morte), isto é, desenvolvem-se dentro dos limites de uma forma específica, não ma incoerência total de todos os processos históricos (pura contingência) e sua
através da espécie. suprema coerência total (pura determinação).
Para Hegel, todo exemplo de fecundação cruzada de espécies represen­ Mas, na opinião de Hegel, o formalismo era mais perigoso do que o
tava uma degeneração, uma corrupção das espécies, e não um aperfeiçoamento mecanicismo porque a atmosfera espiritual da época estimulava a adesão a seus
ou forma superior de vida. A natureza, portanto, existe para o homem nos diferentes modos de desenvolvimento, como apreensão da total incoerência ou
modos da metonímia e da sinédoque; e a consciência do homem é adequada à da total coerência nos dois movimentos culturais dominantes do período, o
plena compreensão de seus modos de existência quando ele desenvolve concei­ romantismo e o idealismo subjetivo, ambos desprezados por Hegel.
tos causais para explicar mudanças na natureza e sistemas tipológicos para
caracterizar a coerência formal e os níveis de integração ou dispersão que a Na sua introdução à Filosofia da História, Hegel caracterizou um tipo
natureza oferece à percepção guiada pela razão e pelo senso estético. Bem de raciocínio que utiliza exclusivamente processos formalistas nos seguintes
diferente é o caso da história, para a qual as explicações causais e caracteriza­ termos:
ções tipológicas de seus dados representam possíveis modos de conceber seus
níveis mais primitivos de ocorrência, mas que, se apenas eles são empregados Um (...) processo de raciocínio é adotado, em referência à correta asserção de que o gênio,
para sua compreensão, expõem o entendimento aos perigos do mecanicismo o talento, as virtudes morais e os sentimentos e a piedade podem ser encontrados em todas as
por um lado e do formalismo por outro. regiões, sob todas as condições e constituições políticas; para confirmá-lo apresentam-se exemplos
em abundância [65].
Hegel supunha serem óbvias as limitações de uma abordagem puramente
mecanicista da história, uma vez que a própria primazia que tal abordagem Essa é a modalidade de apreensão da qual Herder deduziu suas conclu­
concedia aos conceitos de explicação causal levavam inevitavelmente à conclu­ sões organicistas acerca da natureza do processo histórico. Mas em seguida
são não só de que toda a história era integralmente determinada mas também Hegel observou:
de que nenhuma mudança genuinamente significativa poderia ocorrer na his­
tória, devendo o visível desenvolvimento da cultura humana ali percebido ser Se nesta asserção as distinções concomitantes se destinam a ser repudiadas como desimpor-
interpretado como mero rearranjo de elementos primitivos em diferentes com­ tantes ou inessenciais, a reflexão evidentemente se limita a categorias abstratas; e- ignora os
binações. Tal visão não faz inteira justiça nem à óbvia evolução da consciência [atributos específicos] do objeto em questão, que certamente não se enquadram em nenhum
religiosa, artística, científica e filosófica nem à evolução da própria sociedade. princípio reconhecido por tais categorias [65-66].
Essa abordagem tinha de redundar na conclusão de que, de fato, não se
registrara nenhum progresso qualitativo da humanidade, nenhum avanço essen­ E depois assinalou:
cial da cultura e da sociedade, desde o tempo de sclvageria até o tempo de
Hegel, conclusão que era absurda à primeira vista. A posição intelectual que adota esses pontos de vista meramente formais apresenta um
vasto campo para indagações engenhosas, opiniões eruditas e comparações surpreendentes [66].
O formalismo era outra questão. Ele compreendia o processo histórico a
partir de uma distinção entre formas superiores c inferiores dc vida, na existên­ Mas, afirmou ele, tais “reflexões” são “brilhantes” somente
98 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 99

na medida em que o assunto a que se referem é indefinido, e são suscetíveis de novas e variadas encorajam, pelo menos não procuram ocultar a falta de sentido dos processos
formas em proporção inversa com a importância dos resultados que podem ser obtidos delas, e que elas explicam atrás da incômoda tagarelice a respeito da “beleza” de tudo
com a certeza e racionalidade de suas questões [íbid.]. isso. Talvez possam até servir de base para um tipo particular de apreensão
trágica do mundo - o tipo de tragédia produzida pelos gregos, em que o destino
Com base nesses elementos, insistiu Hegel, não podia haver certeza a é apreendido como “fado cego” - que por sua vez pode servir de base para uma
respeito da questão de saber se a humanidade progredira ou não ao longo do resolução estóica. Mas, no fim, o mecanicismo e o tipo de tragédia absurdista
tempo e no movimento de uma forma de civilização para outra. Além disso, tal concebida com base nele como princípio de representação artística podem,
formalismo continua a ser presa do relativismo moral do qual é o equivalente como na Grécia antiga, promover uma reação moral epicurista e também
epistemológico. estóica. A menos que haja algum princípio em virtude do qual todo o espetáculo
O mesmo acontece com relação àquele outro tipo de formalismo, fomen­ do acaso e da determinabilidade, da liberdade e da limitação humanas, possa
tado pelo romantismo, que considera o indivíduo em sua concretude e singula­ transformar-se em drama, com uma significação especificamente racional, e ao
ridade como uma coerência formal, em oposição à espécie, ao gênero e à classe mesmo tempo moral, a consciência irônica na qual o pensamento do próprio
a que o indivíduo pertence. Hegel também chamou a atenção para as implica­ tempo de Hegel começou sua reflexão irá terminar erir desespero - ou no tipo
ções amorais - ou imorais - desse ponto de vista. Isso “é algo meramente formal, de sibaritismo egoísta que provocaria o fim da própria civilização.
na medida em que a nada mais visa do que à análise do assunto, seja ele o que
for, em suas partes constituintes, e à compreensão destas em suas definições e
formas lógicas” (68). Assim, disse ele, naqueles filósofos (românticos) que LINGUAGEM, ARTE E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
afirmam encontrar “gênio, poesia e mesmo filosofia” em toda parte em igual
abundância (ou igual escassez), há uma incapacidade de distinguir entre forma Só raramente se observou que Hegel tratou da escrita histórica e de todo
e conteúdo e identificar este último como uma particularidade única juntamente o problema da historiografia (em oposição à filosofia da história) mais porme­
com a identificação da forma como preciosa evidência da difusão equitativa do norizada em sua Enciclopédia e em suas Conferências sobre Estética do que em
espírito por todo o mundo (67). É verdade, disse Hegel, que encontramos, suas Conferências sobre a Filosofia da História. A “ciência” da história que era
“entre todos os povos históricos do mundo, poesia, arte plástica, ciência, até seu objetivo estabelecer na Filosofia da História era, em sua conceptualização
filosofia”; mas, insistiu, dela, produto de uma consciência pós-histórica, da reflexão filosófica sobre as
obras realmente produzidas por historiadores “reflexivos”. Na Estética, porém,
não somente há uma diversidade de estilo e aspecto de modo geral, mas ainda mais notavelmente Hegel elaborou sua teoria da própria escrita histórica, que ele via como uma
de tema; e esta é uma diversidade do tipo mais importante, que influi sobre a racionalidade daquele
tema [69].
das artes verbais e, portanto, sujeita aos imperativos da consciência estética. É
proveitoso, portanto, considerar o que Hegel tinha a dizer sobre a escrita
histórica e a consciência histórica nesse contexto, como meio de tornar claro o
É portanto “inútil” uma “crítica estética pretensiosa exigir que não se faça
conteúdo específico de sua “teoria do trabalho histórico”.
do nosso bom gosto a norma para essa matéria - as partes substanciais do seu
Na terceira parte de suas Conferências sobre Estética Hegel tratou das
conteúdo - e sustentar que é a forma bela como tal, a sublimidade da fantasia,
artes verbais. Começou por uma caracterização da expressão poética em geral
e assim por diante, que a arte pura tem em vista, e que deve ser considerada e
e passou, em seguida, a estabelecer uma distinção entre poesia e prosa. A poesia,
fruída por um gosto liberal e uma mente cultivada” (íbid.). O intelecto saudável
não pode, afirmava Hegel, “tolerar tais abstrações”, porque “há não só uma disse ele,
forma clássica como também uma ordem clássica de assunto; e na obra de arte,
é mais antiga do que o discurso modelado na forma artística da prosa trabalhada. É a apreensão
forma e assunto estão tão intimamente unidos que a primeira só pode ser imaginativa original da verdade, uma forma de conhecimento que [1] não consegue ainda separar o
clássica na medida em que o segundo também o seja” (70). universal de sua existência viva no objeto particular, que [2] ainda não põe em contraste lei e
Tudo isso significa uma condenação do que é agora chamado o “método fenômeno, fim e meio, nem [3] relaciona um com o outro em subordinação ao processo da razão
comparativo” de análise histórica, que é a forma que a consciência metafórica humana, mas [4] compreende um exclusivamente no outro e em virtude do outro [IV, 22 (ed. alemã,
assume quando é projetada teoricamente num método. As objeções de Hegel 240); grifos acrescentados].
ao modo metafórico de representar a história eram ainda mais virulentas do que
suas objeções ao modo metonímico, pois os efeitos das explicações formalistas Essa caracterização da poesia como forma de conhecimento é precisa­
que oferece e as estruturas épicas de enredo que utiliza para caracterizar as mente a mesma de Vico, o que vale dizer que concebe a poesia como apreensão
estórias que conta são moralmente mais perigosas. As teorias mecanicistas de metafórica do mundo, e que contém dentro de si mesma o potencial de gerar os
explicação, e as maneiras absurdistas de pôr em enredo a história que elas outros modos de redução e expansão tropológica: metonímia, sinédoque e
META-HISTÓRIA 101
100 HAYDENWHITE

ironia respectivamente. Posteriormente Hegel afirmou: “O caráter desse modo adequadas às concepções e deduções do entendimento”, mas “reúne-as numa
de apreender, revestir e expressar o fato é sob todos os aspectos puramente totalidade livre” (25 [243]). Assim, a sinédoque projeta - em contraste e como
teórico {rein theoretisch]. Não é o fato em si e sua existência contemplativa, mas antítese ao mundo apreendido em termos metonímicos - um “novo mundo”.
a construção [Bilden] e a linguagem [Reden\ que são o objeto da poesia” (Ibid. Mas, visto que esse novo mundo só existe na consciência e não na realidade (ou
[241]). Na poesia, prosseguiu ele, o que é expressado é simplesmente utilizado pelo menos não se sente que exista lá), o problema da consciência reside em
para alcançar o ideal da “auto-expressão” verbal. E tomou como exemplo da relacionar esse novo mundo ao das coisas concretas. É tarefa do poeta, concluiu
poetização de um fato o dístico, registrado por Heródoto, em que os gregos Hegel, reconciliar o mundo existente no pensamento com o das coisas concre­
homenagearam a memória dos chacinados na Batalha das Termópilas, um tas, configurando o universal nos termos do particular e ó abstrato nos termos
acontecimento histórico. Diz a inscrição: do concreto.
A expressão poética procura assim restituir a um mundo prosaico a
Four thousand here from Pelops’ land consciência de sua idealidade intrínseca. Em tempos mais recuados, quando a
Against three million once did stand . distinção entre poesia e prosa não estava tão bem desenvolvida como veio a
[Herodotus, The Histories, livro. VII, cap. 228, p. 494.] estar com o avanço da ciência e da filosofia, o poeta enfrentava uma tarefa mais
fácil - isto é, simplesmente aprofundar tudo o que é “significativo e transparente
Hegel frisou que o conteúdo deste dístico é apenas o fato de que 4 000 nas formas da consciência usual”. Após o advento da civilização superior,
peloponésios lutaram contra três milhões num certo tempo e lugar. O principal porém, em que “a prosa da vida já apropriou no interior de seu modo de visão
interesse do dístico, porém, é a “composição” de uma inscrição que “comunica todo o conteúdo da vida consciente, pondo seu selo em tudo e em cada parte
à vida contemporânea e à posteridade o fato histórico, e está ali exclusivamente dele, a arte da poesia é obrigada a empreender a tarefa de fundir tudo outra vez
para fazê-lo” (Aesthetics, 23 [241]). O modo de expressão é “poético”, disse e re-cunhar o mesmo de outro modo” (26 [244]). Isso quer dizer que lhe cabe
Hegel, porque a inscrição “dá testemunho de si como uma criação [um poiein, não só
jtoteív}” que comunica o conteúdo em sua simplicidade e ao mesmo tempo
expressa esse conteúdo “com um propósito definido”. A linguagem em que a desfazer-se da aderência da consciência vulgar a tudo que é indiferente e contingente, e (...) alçar
idéia se concretiza, disse ele mais adiante, é “de valor tão intensificado” que “se a apreensão científica do cosmo do fato ao nível da penetração mais profunda da razão, ou (...)
fez uma tentativa de distingui-la da linguagem vulgar”, e portanto “temos um traduzir o pensamento especulativo nos termos da imaginação, dar corpo ao mesmo na esfera da
própria inteligência; deve, além disso, converter de muitas maneiras o modo de expressão comum
dístico em lugar de uma oração” (Ibid.). O conteúdo da oração, portanto, à consciência vulgar naquele apropriado à poesia; e, apesar de toda a intencionalidade imposta por
tornou-se mais vívido, mas imediatamente autoprojetivo, do que teria sido se tal contraste e tal processo, fazê-lo aparecer como se todo esse propósito estivesse ausente,
tivesse sido expresso como simples registro em prosa de um evento ocorrido preservando a liberdade original que é essencial a toda a arte [Ibid (244-45)].
num determinado tempo e lugar. Um enunciado “prosaico” do mesmo fato
deixaria inalterado o conteúdo, mas não se presentificaria como aquela união E, tendo especificado o conteúdo e a forma da consciência poética, Hegel
íntima de conteúdo e forma que é reconhecida como uma elocução especifica­ passou em seguida a “historicizar” a própria consciência poética, indicando
mente poética. seus vários períodos de esplendor e declínio dentro do arcabouço geral da
A linguagem prosaica, argumentou Hegel, pressupõe um modo “prosai­ história da consciência exposta na Fenomenologia do Espírito, na Filosofia do
co” de vida, que, deve-se presumir, se desenvolveu depois daquele estágio da Direito e na Filosofia da História.
consciência humana em que a linguagem era “poética sem intenção [conscien­ A poesia nasceu, então, da separação da consciência de seu objeto e da
te]” (Ibid.). A linguagem prosaica pressupõe a evolução de uma consciência necessidade (e tentativa) de efetuar uma união com ele mais uma vez. Essa
pós-metafórica, uma consciência que “lida com condições finitas e o mundo distinção essencial gera as duas principais classes de poesia: a clássica e a
objetivo em geral, isto é, as categorias limitadas da ciência ou do entendimento” romântica, que acentuam respectivamente o universal e o particular, a expres­
(24 [242]). O mundo em que a enunciação prosaica se desenvolveu é de supor são objetiva e a subjetiva. E, por sua vez, a tensão entre essas duas classes de
que tenha sido aquele em que a experiência se tornara atomizada e despojada poesia engendra as três espécies básicas de composição poética, a épica, a lírica
de sua idealidade e significação imediatamente apreendida, e esvaziado de sua e a dramática, as duas primeiras representando a externalidade e a internalida-
riqueza e vitalidade. Contra essa ameaça de atomicidade e determinação causal, de como perspectivas efetivamente estáveis sobre o mundo, a última represen­
a consciência erigiu um terceiro modo de apreender o mundo, o “pensamento tando o esforço da imaginação poética para encarar o movimento através do
especulativo”, que “não se satisfaz com as diferenciações e as relações externas qual se resolve essa tensão e se alcança a união do sujeito com o objeto.
A épica, disse Hegel, “nos dá um quadro mais extenso do mundo externo;
Da pátria de Pélope quatro mi! aqui!A três milhões souberam resistir (N. do T.). alonga-se até na descrição de acontecimentos e ações episódicas, com o que a
HAYDENWHITE META-H1STÓR1A 103
102

imaginativa o conteúdo variado dos acontecimentos e dos caracteres, recriá-los e tomá-los vívidos
unidade do todo, em virtude do maior isolamento das partes, parece sofrer para nossa inteligência com seu próprio gênio [38 (257)].
redução”. A lírica “varia de conformidade com a flutuação de seus tipos,
adapta-se a um modo de representação de extrema variedade: num momento é
mera narração, em outro exclusiva expressão de emoção ou contemplação, num Isso quer dizer, acima de tudo, que o historiador não pode “contentar-se
outro restringe sua visão” e assim sucessivamente. Em contraste com a épica e com o sentido meramente literal do fato particular”, mas deve antes esforçar-se
a lírica, o drama “exige uma conjunção mais rigorosa” de realidade externa e por “inscrever esse material num conjunto coordenado; deve conceber e abar­
interna, muito embora possa, numa corporificação específica, adotar ou o ponto car traços, ocorrências e ações singulares sob o conceito unificador” (Ibid.). O
de vista clássico ou o romântico como seu princípio constitutivo (37 [256-57]). enlace desses conteúdos com a forma de representação sob a qual eles são
Assim, o estudo da poesia por Hegel começou por um exame da linguagem adequadamente reunidos permitirá ao historiador construir uma narrativa, cuja
como instrumento de mediação do homem entre sua consciência e o mundo que ação é levada adiante pela tensão entre duas manifestações concretas de uma
ele habita; encaminhou-se para uma distinção entre os diversos modos pelos vida especificamente humana. Essas manifestações são tanto particulares quan­
quais o mundo pode ser apreendido, daí para uma distinção entre poesia e to gerais.
prosa, entre as formas clássicas e românticas de ambas, e entre as formas épicas A grande,narrativa histórica - da espécie produzida por Heródoto, Tucí-
e líricas destas; e terminou numa investigação do drama como a forma de arte dides, Xenofonte, Tácito “e alguns outros” - apresenta “uma imagem clara da
em que é concebida a modalidade do movimento através do qual se consolida nação, da época, das condições externas e da grandeza ou fraqueza espiritual
a fratura. É significativo que, tendo chegado a esse ponto, Hegel se lançasse dos indivíduos envolvidos na própria vida e caracterização que lhes diziam
incontinenti na análise da história como a forma de prosa mais próxima, por sua respeito”; ao mesmo tempo, afirma a partir de tais entidades concretas “o
imediatez, da poesia em geral e do drama em particular. De fato, Hegel não só vínculo de associação” em que as “várias partes da imagem” se transformam
historicizou a poesia e o drama como também poetizou e dramatizou a própria numa totalidade compreensível de “significação histórica ideal” (Ibid. [258]).
história. Isso implica que a análise histórica avança metonímica e sinedoquicamente, ao
mesmo tempo decompondo o tema em manifestações concretas das forças
causais de que se presume sejam efeitos e buscando as coerências que aglutinam
essas entidades numa hierarquia de unidades progressivamente espiritualiza­
HISTÓRIA, POESIA E RETÓRICA das. No entanto, o historiador não pode agir nem com a “liberdade” que o puro
poeta reclama para si nem com a intencionalidade do orador. O primeiro está
O exame formal a que Hegel submete a escrita da história como forma de livre para inventar os “fatos” que julgar convenientes, o segundo para usar os
arte situa-se entre sua análise da poesia e da oratória. A localização entre essas fatos seletivamente para os fins específicos do discurso que estiver compondo.
duas formas - uma relacionada com a expressão da idealidade no real, a outra A história se situa em alguma parte entre a poesia e a oratória porque, embora
relacionada com os usos pragmáticos dos instrumentos lingüísticos - sugere a sua forma seja poética, seu conteúdo é prosaico. Hegel o diz nestes termos: “Não
similaridade com o drama, que (como fizemos notar anteriormente) é a forma é exclusivamente a maneira como a história é escrita, mas a natureza do seu
de mediação assumida na arte entre as sensibilidades épica e lírica. A história conteúdo, que faz dela prosa” (39 [258]).
é a representação em prosa de um intercâmbio dialético entre externalidade e A história lida com a “prosa da vida”, com os materiais de uma “vida
internalidade, tal como esse intercâmbio é vivido, precisamente do mesmo comum” (Gemeinwesen) especificamente, quer considerada pelo lado das cren­
modo que o drama é a representação poética desse intercâmbio tal como é ças religiosas compartilhadas, quer pelo lado da constituição política com suas
imaginado. E, de fato, Hegel deixou bem pouca dúvida de que, em sua mente, leis, instituições e instrumentos para impor a adesão do indivíduo aos valores
os aspectos formais da representação histórica e dramática são os mesmos. da comunidade (Ibid.). Dessa vida comum, disse Hegel, emergem as forças que
“Pelo que toca à história”, disse ele, “não pode haver dúvida de que conduzem à “preservação ou mudança” da mesma, e para as quais devemos
encontramos aqui ampla oportunidade para um dos aspectos da genuína ativi­ presumir a existência de indivíduos aptos para ambas as tarefas. Em resumo, o
dade artística”, porquanto processo histórico é preeminentemente o produto de um conflito dentro do
contexto de um estilo de vida compartilhado e através de todo um conjunto
a evolução da vida humana, sob o aspecto da religião e da sociedade civil, os acontecimentos e os desses estilos de vida compartilhados, o conflito da forma realizada com uma
destinos dos mais renomados indivíduos e povos que se destacaram em um e outro campo [isto é, força que procura transformá-la ou de um poder estabelecido com algum
na religião e na vida civil], tudo isso pressupõe fins grandiosos na compilação de tal obra ou o indivíduo que a ele se opõe no interesse do que julga ser sua própria autonomia
completo malogro do que isso implica. A representação histórica de temas e conteúdos como estes
e liberdade. Eis, em suma, a situação clássica da tragédia clássica e da comédia
comporta verdadeira discriminação, meticulosidade e interesse; e por mais que nosso historiador
se esforce por reproduzir o fato histórico real, incumbe-lhe, não obstante, pôr diante de nossa visão
clássica.
104 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 105

A vida social do homem não é simplesmente uma vida épica que, apesar muito mais excentricidade e variação do que mostram as maravilhas da poesia,
de todo o movimento, colorido e violência da ação, continua a ser substancial­ que através de toda a diversidade deve permanecer fiel ao que é válido em todos
mente o que era todo o tempo. Indivíduos eminentes vêm ao proscênio, em os tempos e lugares” (Ibid. [259-60]).
contraste com o pano de fundo de uma vida comum compartilhada por homens Finalmente, a história tem a ver com a realização de projetos e objetivos
medianos e transformam essa situação épica num conflito trágico em que nem a por parte de indivíduos e grupos específicos, o que requer o trabalho enfadonho
mera beleza nem a mera força triunfa, mas em que dois direitos rivais, dois de achar meios adequados à tarefa, em si mesma uma atividade prosaica, porque
princípios morais igualmente justificáveis, travam combate a fim de determinar utilitária; e os testemunhos dessa atividade devem estar presentes no relato do
qual poderá ser a forma da vida humana numa encarnação social específica. Por historiador. Essa atenção aos detalhes da atividade prática, que deve derivar do
esse motivo, Hegel imaginava três categorias básicas de atores do drama estudo do registro histórico e não apenas ser pressuposta pelo historiador, num
histórico: grandes, pequenos e depravados (heróis, homens medianos e crimi­ estado de espírito poético ou especulativo, toma seu trabalho muito mais
nosos). prosaico do que o do poeta ou o do filósofo.
Segue-se, portanto, de acordo com Hegel, que o historiador não tem o
Esses indivíduos sâo grandes e eminentes na medida em que se mostram, através de sua direito de “expungir essas características prosaicas do seu conteúdo ou conver­
verdadeira personalidade, [estar] em cooperação com o fim geral que está subjacente à concepção tê-las em outras mais poéticas; sua narrativa deve abranger o que realmente está
ideal das condições que os defrontam; são pequenos quando não conseguem alçar-se à altura do diante dele e na forma em que ele o encontra, sem ampliação [o/tne umzudeuten]
que se exige de sua energia; são depravados quando, em lugar de se alistarem como combatentes
ou transformação poética” (41 [260]). Por mais que seu pensamento se esforce
das necessidades práticas dos tempos, se contentam simplesmente com dar rédea larga a uma força
individual que é, com seu capricho implícito, alheia a todos os fins comuns [40 (259)]. por apreender o significado ideal da forma das miríades de eventos percebidos,
ao historiador não é permitido “subordinar totalmente a tal fim as condições
Nesse catálogo de tipos de personalidades “históricas” encontra-se uma que lhe são apresentadas, os caracteres ou os acontecimentos”, muito embora
recapitulação das categorias de análise da própria poesia, mas sob o modo da lhe seja concedido “eliminar de seu estudo o que é inteiramente contingente e
metonímia, isto é, da eficácia causal. Mas, como Hegel indicou na Filosofia do desprovido de verdadeira significação” (Ibid.). O historiador “deve, em suma,
Direito, não se deve conceber o campo histórico como simplesmente um campo deixá-los aparecer em toda a sua contingência objetiva, dependência e miste­
da força bruta. Pois, onde tal força predomina, onde ela não está em conflito riosa fantasia” (Ibid.). Isso quer dizer que a imaginação do historiador deve
atuar em duas direções ao mesmo tempo: criticamente, de modo a lhe permitir
com um princípio mais geral - isto é, a “vida comum” do grupo -, não há conflito
decidir o que pode ser omitido de um relato (embora não possa inventar ou
genuinamente histórico e conseqüentemente nenhum “evento histórico” em
fazer acréscimos a fatos conhecidos); epoeticamente, de modo a pintar, em sua
termos específicos. Hegel deixou isso bem claro numa passagem que se segue
vitalidade e individualidade, a miscelânea de acontecimentos como se eles
àquela citada acima. Onde qualquer das três condições enumeradas prevalece
estivessem diante dos olhos do leitor. Em sua função crítica, a consciência
como a condição geral, onde temos a tirania de um único homem, a tirania do
histórica só é eficaz como agência excludente. Em sua função sintética, só atua
costume (que é a tirania do homem mediano), ou a tirania do caos, “não temos
para fazer inclusões. Pois, mesmo que o historiador possa adicionar a seus
nem um verdadeiro conteúdo [histórico] nem um estado do mundo tal como
estabelecemos na primeira parte de nossa investigação como essencial à arte da relatos suas reflexões particulares de filósofo,
poesia”, que é a condição de toda a criatividade especificamente humana
tentando assim apreender as razões absolutas de tais acontecimentos, (...) está, não obstante,
(Ibid.), porque:
privado, no que se refere à verdadeira conformação dos acontecimentos, daquele direito exclusivo
da poesia, a saber, aceitar essa resolução substantiva como o fato de máxima importância [42].
Mesmo no caso de grandeza pessoal, o fim substantivo de sua dedicação é em maior ou
menor grau algo que lhe é dado, pressuposto ou imposto, e nessa medida a unidade da individua­
O historiador não pode incorrer em meta-história, se bem que possa
lidade está excluída, no que o universal, a personalidade inteira, deve ser idêntico a si mesmo, um
fim exclusivamente para si, um todo independente, em suma. Pois por mais que esses indivíduos especulativamente apreender as razões pelas quais uma visão sintetizadora
descubram seus objetivos em seus próprios recursos, não é, apesar disso, a liberdade ou falta dela meta-histórica poderia ser possível, porque:
em suas almas e inteligência, mas o fim alcançado, e seu resultado tal como opera sobre o mundo
real já existente, e essencialmente independente de tal individualidade, que constitui o objeto [de À poesia somente é concedida a liberdade de dispor sem restrição do material que lhe é
estudo] da história [fbid.]. apresentado de tal modo que ele se toma, mesmo visto pelo lado da condição externa, conforme
com a verdade ideal [Ibid.].
Além disso, acrescentou Hegel, na história encontramos uma variedade
muito maior, mais contingências, mais subjetividade, reveladas na expressão de Nesse aspecto a oratória goza de maior liberdade do que a história, pois,
paixões, opiniões e destinos, “que nesse modo prosaico de vida apresentam já que a arte do orador é exercida como meio para a consecução de fins práticos,
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assim como a do poeta é exercida para a consecução de fins ideais, ao orador é são apresentados. Do mesmo modo que o filósofo da arte toma como seus
permitido utilizar os fatos históricos como lhe apraz, seletivamente e em res­ objetos de estudo as várias formas de obras de arte que apareceram na história
posta ao fim visado (43). do mundo, o filósofo da história toma como seus objetos as várias formas das
Assim, Hegel tornou a invocar a distinção, feita no começo de sua intro­ histórias realmente escritas pelos historiadores no curso da própria história. Ele
dução à Filosofia da História, entre historiografia “original” e “reflexiva”, com apreende essas histórias como sistemas formais que podem compor um relato
base na natureza essencialmente poética da primeira e na natureza cada vez de uma vida em qualquer dos quatro modos - poema épico, comédia, tragédia,
mais prosaica da segunda, e dentro da historiografia reflexiva, entre o tipo sátira - ou em qualquer combinação deles.
universal, o pragmático e o crítico. A história universal é, como ele observou, a
mais poética, tomando como seu tema todo o mundo histórico conhecido e Mas o épico não é uma forma adequada de historiografia, segundo Hegel,
modelando-o, em resposta a formas ideais apreendidas, por metáfora, num todo porque não pressupõe mudança substancial. E o mesmo se pode dizer da sátira
poético coerente. A historiografia pragmática, escrita sob o impulso de servir a porque, embora admita a mudança, não observa a base substancial em contraste
alguma causa, a algum fim prático, eleva-se acima da variedade universal, visto com a qual é possível medir as mudanças percebidas. Para o épico tudo é
que passa de um modo poético para um modo oratório de conceber sua tarefa, mudança concebida em contraste com uma apreensão básica de imutabilidade
da visão da idealidade do todo para uma consciência dos usos a que uma visão substancial; para a sátira, tudo é imutabilidade concebida à luz da percepção
do todo pode ser submetida. A produção de várias dessas visões conflitantes do de uma mutabilidade substancial (cf. os comentários de Hegel à Henríada de
processo histórico inspira uma reflexão “crítica” sobre a própria escrita histó­ Voltaire, 131-32). O mesmo acontece no gênero misto da (moderna) tragico-
rica, que por seu turno permite o crescimento da consciência da possível média romântica, que procura mediar entre as visões cômica e trágica do
idealidade do todo através da reflexão no modo da sinédoque. Isso preparou o mundo, mas só o faz formalmente - isto é, ao apresentar dentro da mesma ação
caminho para a própria história filosófica de Hegel, que se destinou a expor as os representantes de cada visão, sem combiná-los ou unificá-los, mas deixando
pressuposições e formas de pensamento pelas quais as percepções essencial­ o mundo tão dividido como o encontrou originalmente, sem fornecer nenhum
mente poéticas do historiador podem ser concentradas na consciência e trans­ princípio superior de unidade que a consciência pudesse transformar num
formadas numa visão cômica de todo o processo. Mas esta é a tarefa do filósofo objeto de contemplação para a promoção do saber acerca de um mundo assim
da história, não do historiador; como Tucídides, o historiador deve manter-se fragmentado em seu interior. Restam, portanto, apenas a comédia e a tragédia
mais próximo do modo poético de apreensão, mais próximo da identificação como modos de pôr em enredo os processos históricos, e o problema reside em
metafórica com seu objeto, mas ao mesmo tempo ser mais autocrítico, mais elaborar suas inter-relações como diferentes etapas de reflexão autoconsciente
ciente das modalidades de compreensão utilizadas para transformar uma per­ sobre a relação da consciência com o mundo.
cepção poética no conteúdo de um conhecimento mais racional.
Hegel afirmava que a ciência filosófica, quando voltada para a história,
comporta a mesma relação com a ciência histórica, quando voltada para os fatos
da história, que a visão cômica mantém com a visão trágica. Isto é, a filosofia
AS ESTRUTURAS DE ENREDO POSSÍVEIS faz a mediação entre as corporificações concretas da existência humana histó­
rica representada em histórias específicas como conteúdo para o qual procura
Isso me leva à teoria hegeliana da elaboração do enredo histórico. Quando encontrar uma forma de representação e um modo de construção de enredo
trato deste assunto passo da consideração da história como objeto, como adequados. E o encontra na própria visão cômica. A comédia é a forma que a
conteúdo, cuja forma há de ser percebida pelo historiador e convertida em reflexão assume após ter assimilado a si mesma as verdades da tragédia.
narrativa, para aquela em que a forma adotada, a narrativa realmente produzi­
da, se torna um conteúdo, um objeto de reflexão com base no qual se pode
sustentar em premissas racionais uma verdade acerca da história em geral. E TRAGÉDIA E COMÉDIA COMO ESTRUTURAS
isso suscita o problema do possível conteúdo dessa verdade e da forma que sua DE ENREDO GENÉRICAS
afirmação deve assumir. A solução de Hegel para esse problema pode ser
formulada da seguinte maneira. As verdades configuradas nas narrativas histó­ “N ação dramática”, escreveu Hegel, “não se limita à simples e tranqüila
ricas da espécie mais elevada são as verdades da tragédia, mas essas verdades realização de um desígnio definido, mas depende totalmente de situações de
estão apenas poeticamente configuradas ali como formas de representações conflito, paixão humana e caracteres, e redunda portanto em ações e reações,
históricas cujos conteúdos são os dramas da vida real vividos por indivíduos e que por sua vez exigem algum posterior apaziguamento do conflito e da ruptu­
povos em tempos e lugares específicos. Por isso, faz-se necessária a reflexão ra” (249). A ação dramática, portanto, tem as mesmas características formais
filosófica para extrair a verdade contida na forma em que os relatos históricos da ação histórica:
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META-H1STÓRIA

O que temos (...) diante de nós são fins definidos, individualizados em personalidades vivas
e situações prenhes de conflito; vemos estas quando se afirmam e perduram, quando atuam em
em si mesmas sua própria justificação e se realizam substantivamente na ativi­
cooperação ou oposição - tudo num momentâneo e caleidoscópico intercâmbio de expressão - c dade volitiva da humanidade” (295). Esse mundo substantivo é o da família, da
simultaneamente com isso, também, o resultado final pressuposto e decorrente da totalidade dessa vida social, política e religiosa da sociedade civilizada, mundo que, ao menos
emaranhada e conflitante meada de vida humana, movimento e realização, que tem, ainda assim, implicitamente, reconhece a legitimidade da aspiração individual à personali­
de alcançar seu tranquilo apaziguamento [249-50 (475-76)]. dade por um lado e as leis e a moral da coletividade por outro. A família, a
sociedade, a religião e a política ministram os fundamentos das ações que
Assim, a ação dramática sobreleva e compreende os pontos de vista épico chamamos “heróicas”:
ou objetivo e lírico ou subjetivo; o drama como tal não adota como posto de
observação nem um nem o outro, mas transita entre eles de modo a mantê-los É numa solidez e perfeição condizentes com estas que consistem os caracteres realmente
presentes diante da consciência. Pode-se dizer, então, que o drama transita no trágicos. Eles são sob todos os aspectos aquilo que a noção essencial de seu caráter os capacita e
modo da própria ironia, a troca dialética de ponto de vista nada mais sendo do compele a ser. Não são apenas uma variada totalidade concebida na série de perspectivas adequa­
que essa perspectiva irônica (251-52; cf. Burke, Grammar, 511-17). das à maneira épica.
De acordo com Hegel, o drama começa na apreensão da unilateralidade
de todas as perspectivas da realidade e busca a “resolução do aspecto unilateral Não são individualidades não mediatizadas, mas personalidades possui­
dessas forças, que descobrem sua auto-estabilidade na personagem dramática” doras de uma unidade de caráter que lhes permite portar-se como representan­
(Aesthetics, IV, 255). E, acrescentou Hegel, tes de diversos aspectos da “vida comum” ou como agentes livres à procura da
própria independência (295-96). E no conflito trágico, como no conflito histo­
isto é assim quer, como na tragédia, elas se oponham a tal de modo hostil, quer, como na comédia, ricamente significativo, a vida comum ou a personalidade em busca de indepen­
elas se manifestem no interior dessas próprias personagens, sem outra mediação, num estado de dência causa o próprio conflito.
apaziguamento [256]. O drama trágico, porém, não toma o conflito de si como seu objeto (como
tende a fazê-lo a épica) mas antes aquele estado de resolução, em que tanto o
Este último trecho é significativo, pois sugere que Hegel considera a herói quanto a vida comum são transformados, que se situa do outro lado desse
tragédia e a comédia não como modos opostos de encarar a realidade mas como conflito.
percepções de situações de conflito a partir de diferentes aspectos da ação. A
tragédia aborda o ponto culminante de uma ação, levada a cabo com uma Na tragédia os indivíduos são lançados em total confusão em virtude da natureza abstrata
intenção determinada, da perspectiva do agente que vê estendido diante de si de sua vontade e de seu caráter autênticos, ou sâo forçados a aceitar com resignação aquilo a que
um mundo que é ao mesmo tempo um meio e um obstáculo para a realização essencial mente se opõem [301].
de seu propósito. A comédia recorda os efeitos desse conflito situando-se além
do estado de apaziguamento através do qual a ação trágica transportou os A comédia, porém, chega a uma visão desse reconciliação como “uma
espectadores, ainda que a ação, em lugar de transportar para lá o protagonista, vitória da vida anímica totalmente pessoal, cujo riso resolve tudo, por meio e no
o tenha consumido enquanto se desenrolava. Assim, como as situações históri­ meio de tal vida” (Ibid.). Em suma, a base geral da comédia é
cas, as situações dramáticas começam na apreensão de um conflito entre um
um mundo em que o homem fez de si mesmo, em sua atividade consciente, senhor absoluto de
mundo já formado e modelado em seus aspectos materiais e sociais (o mundo tudo aquilo que de outro modo passa por ser o conteúdo de seu saber c de sua realização; um
manifestado imediatamente na epopéia) e uma consciência diferenciada dele e mundo cujos fins são consequentemente anulados por sua faita de solidez [Ibid].
individuada como uma personalidade resolvida a alcançar seus próprios obje­
tivos, satisfazer suas necessidades e saciar seus desejos (o mundo interior Dificilmente se poderia querer melhor caracterização do mundo que é
expresso na lírica). Mas, em vez de se deter na contemplação desse estado de contemplado, na Filosofia da História, do ponto de vista da reflexão filosófica
separação, o artista dramático passa a contemplar a modalidade dos conflitos sobre a tragédia de vidas históricas individuais. A essência da visão cômica há
que resultam dessa relação assintótica entre a consciência individual e seu de ser encontrada não na reflexão satírica sobre o contraste entre o que é e o
objeto. O modo de resolução e a profundidade do saber nele refletido produ­ que deve ser, esse contraste que é a base do conflito moral no interior do tema
zirão as ações de três tipos de formas pós-épicas e não-líricas de drama: a heróico, mas preferivelmente numa “infinita cordialidade e confiança capaz de
tragédia, a comédia e (o equivalente da sátira) a peça social, que é um gênero elevar-se acima de sua própria contradição sem experimentar nesse particular
misto que procura mediar entre as percepções da tragédia e as da comédia. nenhum travo de amargura ou sensação de infortúnio” (302).
O conteúdo da ação trágica, escreveu Hegel, é o mesmo que o da história: O estado de espírito cômico é “um vigoroso estado de alma que, plena­
nós o apreendemos imediatamente nos objetivos das personagens trágicas, mas mente consciente de si, pode suportar a dissolução de seus objetivos e realiza­
só o compreendemos plenamente como “o mundo daquelas forças que contêm ções” (Ibid.). Por isso é que, sugeriu Hegel, a ação da comédia requer uma
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“resolução” de maneira ainda mais imperativa do que a tragédia (304). “Em quais se aplicam suas objeções às limitações do mecanicismo e do formalismo.
outras palavras”, disse Hegel, “na ação da comédia é reafirmada mais funda­ Essas três classes de consciência histórica representam diferentes estágios de
mentalmente a contradição entre aquilo que é essencialmente verdadeiro e sua autoconsciência histórica. A primeira corresponde ao que se poderia chamar
realização específica” (Ibid.). E a razão disso, continuou ele, reside no fato de mera consciência histórica (consciência histórica em si), a segunda a uma
que, “vista como arte genuína”, a comédia consciência histórica que se reconhece como tal (consciência histórica para si),
e a terceira a uma consciência histórica que não só se conhece como tal mas que
não tem por missão mostrar por meio de sua apresentação o que é essencialmente racional como reflete sobre as condições de seu conhecimento - isto é, sua relação com seu
aquilo que é intrinsecamente despropositado e votado ao malogro, mas, ao contrário, como aquilo
objeto (o passado) - e sobre as conclusões acerca da natureza de todo o
que nem outorga a vitória nem, em última análise, concede qualquer apoio à insensatez e ao
absurdo, isto é, às falsas contradições e oposições que também fazem parte da realidade [/2>/d].
processo histórico que podem ser inferidas da reflexão sobre seus vários pro­
dutos, as obras históricas específicas (consciência histórica em epara si).
A mera consciência histórica, cujo produto é a historiografia “original”
Essa é a modalidade de consciência que é conquistada pelo agon da
(ursprünglich), emerge da simples percepção do próprio processo histórico, da
comédia de Aristófanes, que jamais calunia qualquer coisa que tenha impor­
tância verdadeiramente ética “na vida social de Atenas”, mas apenas expõe ao sensação da passagem do tempo e de uma compreensão dà possibilidade do
ridículo “o produto espúrio da democracia, em que desapareceram a antiga fé desenvolvimento da natureza humana. É encontrada em pensadores como
e a moral anterior” (Ibid.). Esta é também a consciência que informa a filosofia Heródoto e Tucídides, “cujas descrições geralmente se limitam a feitos, acon­
da história, em que “o modo de aparecimento adequado ao que é, por assim tecimentos e estados da sociedade que eles tinham diante dos olhos e de cujo
dizer, substantivo, desapareceu; e, se o que é essencialmente destituído de espírito partilhavam. Eles simplesmente transferiram o que se passava no
subsistência fundamental fracassa com sua pretensão de ser o que não é, o mundo circundante para o reino do intelecto re-presentativo”. Segundo Hegel,
indivíduo se afirma como responsável por essa dissolução e mantém-se no fundo esses historiadores trabalhavam como poetas que operam sobre material “for­
inviolado e satisfeito até o fim” (305). necido pelas emoções, projetando-o numa imagem para a faculdade conceptual
Que é este o modo de uma compreensão especificamente filosófica da [für die Vorstellung]” (Fil. da Hist., 1 [ed. alemã, 11]). Claro está que esses
historiadores podem ter utilizado relatos escritos por outros homens, mas
história, que é aquele a que a consciência responsável deve chegar sob a
fizeram uso deles do mesmo modo que qualquer um faz uso de uma “linguagem
orientação da razão, e que ele é a antítese da ironia, prova-o a virtual recusa de
Hegel a dar à forma satírica de representação dramática o estatuto de autêntico já modelada” - isto é, só como ingrediente. Para eles não há distinção entre a
gênero dramático. O drama satírico, no seu entender, é resultado de uma história que vivem e a história que escrevem (Ibid. [12]).
incapacidade de levar os lados opostos da existência humana, o subjetivo e o O que Hegel sugeria aqui é que os “historiadores originais” trabalham
objetivo, a qualquer resolução. O máximo que a sátira antiga e, na opinião de primordialmente no modo da caracterização metafórica: eles “aglutinam os
Hegel, a tragicomédia moderna (romântica) podem proporcionar não é “justa­ elementos fugidios da estória & os guardam como tesouros no Templo de
posição ou alternância desses pontos de vista contraditórios” mas uma “mútua Mnemósine” (Ibid., 2 [12]). Seu modo de explicação é a representação poética,
acomodação, que neutraliza a força de tal oposição” (306). Há uma tendência ainda que com esta diferença: o historiador original toma como seu conteúdo
em tal drama, como naquela “historiografia do criado pessoal” que pertence ao “o domínio da realidade - efetivamente vista ou capaz [em princípio] de ser
mesmo gênero, a contar com análises puramente pessoais, “psicológicas”, de vista”, não o domínio dos sonhos, fantasias e ilusões (Ibid.). Esses historiadores
caráter ou a fazer das “condições materiais” o fator decisório da ação, de modo “poéticos” realmente “criam” (schaffen) os “acontecimentos, as ações e os
que nada nobre pode ser finalmente afirmado ou negado dos homens nobres estados da sociedade” como um objeto (ein Werk) para a faculdade conceptual
(307). E pode-se dizer o mesmo daquela historiografia da época moderna, (Vorstellung) (Ibid ). Portanto, suas narrativas são restritas na amplitude e
romântica. O historiador romântico procura refugiar-se da realidade da perso­ limitadas no tempo. Seu objetivo principal é produzir uma “imagem” viva dos
nalidade e daquele “destino”, que não é senão a “vida comum” em que tem acontecimentos que eles conhecem em primeira mão ou através de fonte
origem, através da contemplação sentimental dos motivos do protagonista por autorizada. As “reflexões” não são para eles, pois eles vivem “no espírito do
um lado ou da materialidade de sua condição por outro. [seu] tema” (Ibid.). E, desde que partilham o mesmo espírito que informa os
acontecimentos descritos, podem, com total incolumidade à crítica, interpolar
os detalhes da narrativa - como os discursos que Tucídides pôs na boca de seus
HISTÓRIA EM SI E HISTÓRIA PARA SI protagonistas - que julgarem pertinentes, contanto que esses detalhes sejam
coerentes com o espírito do todo (Ibid.).
No começo da introdução à sua. Filosofia da História, Hegel distinguiu três Essa historiografia poética é tão rara entre os historiadores modernos,
classes de consciência histórica (original, reflexiva e filosófica), à segunda das disse Hegel, como era entre os antigos. Só pode ser produzida por espíritos que
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aliam aptidão para questões práticas em grande escala, participação nos acon­ instrução dos vivos. Tais histórias podem, como seus equivalentes universalistas,
tecimentos e talento poético, como foi o caso do cardeal de Retz ou de ser grandes obras de arte ou, como no caso de O Espírito das Leis de Montes-
Frederico, o Grande. Para penetrar nas verdades essenciais das obras produzi­ quieu, ser verdadeiramente iluminadoras; mas sua autoridade é limitada, não
das por esses “historiadores originais” é necessário longo estudo e paciente apenas porque as verdades em que fundamentam suas lições para o presente
reflexão, concluiu Hegel, porquanto suas obras representam uma forma de são tão fragmentárias e abstratas como as encontradas na história universal, mas
historiografia que é ao mesmo tempo uma história e um documento original dos também porque “o que a experiência e a história ensinam é isto: que os povos
tempos em que foram escritas. Aqui a identificação da alma do historiador e e governos jamais aprenderam qualquer coisa com a história nem agiram em
dos eventos acerca dos quais escreve (e nos quais tomou parte) é quase consonância com princípios deduzidos dela” (6). Hegel assim pensava porque:
completa, e, se queremos conhecer qualquer desses elementos - a poesia, os
acontecimentos ou as obras do historiador -, devemos procurar conhecê-los Cada período está envolto em circunstâncias tão peculiares, exibe um estado de coisas tão
rigorosamente idiossincrático, que sua conduta tem de ser regulada por considerações associadas
todos. Podemos lê-los em busca de inspiração poética ou alimento intelectual,
a si mesma, e a si somente. No meio da pressão de acontecimentos momentosos, um princípio geral
caberia acrescentar; mas submetê-los aos critérios que empregamos para a não dá ajuda alguma. É inútil reverter a circunstâncias idênticas no passado [Ibi<£]:
aferição da moderna historiografia “reflexiva”, a historiografia do erudito
profissional, é, sugeriu Hegel, uma demonstração não só de mau gosto como de E assim foi ele induzido a proferir um dos seus mais célebre apotegmas:
desconhecimento do que é a crítica científica.
Certas espécies de “histórias originais”, como as obras dos monges da As pálidas sombras da memória lutam em vão com a vida e a liberdade do presente [Jbid.J.
Idade Média, podem ser criticadas por seu caráter abstrato ou seu formalismo;
mas essas limitações resultam da grande distância que separa as vidas dos que A história, afirmou Paul Valéry num tom muito mais amargo quase um
as escreveram dos acontecimentos a respeito dos quais escreveram. Não temos século depois, “ensina precisamente nada”. Hegel, porém, teria dado ênfase ao
motivo para tentar empatizar com essas obras ou criticá-las; precisamos apenas “precisamente” e não, como fez Valéry, ao “nada”. É provável, então, que o
saqueá-las à procura dos dados fatuais que possam conter e usá-los para a leitor das histórias universal e pragmática se sinta “desgostoso” delas, em reação
construção de nossos relatos históricos do passado. ou à “arbitrariedade” ou à inutilidade, e se refugie no passatempo fornecido
A segunda classe de obras históricas, as histórias “reflexivas” - histórias pela simples “narrativa”, que não adota “nenhum ponto de vista específico”.
para si - é escrita não só em razão de uma apreensão da passagem do tempo O que registrei dos textos de Hegel até aqui resume-se nisto: nem pode­
mas também com pleno conhecimento da distância entre o historiador e seu mos conhecer a história in totum lendo os historiadores nem aprendemos com
objeto de estudo, distância que o historiador conscientemente tenta reduzir. eles muita coisa que seja útil para a solução dos nossos problemas. Qual é, então,
Esse esforço de reduzir a distância entre presente e passado é concebido como o objetivo de escrever história senão a fruição estética da criação poética que
um problema distinto. O espírito da história reflexiva, portanto, “transcende o acompanha a redação da história “original” ou o senso moral de servir a uma
presente [do próprio historiador]”, escreveu Hegel; e os vários estratagemas causa com que pode regozijar-se o autor da história pragmática?
teóricos de que lançam mão os historiadores para suprimir a distância que os De sua caracterização das outras duas formas de história “reflexiva”
separa do passado, penetrar nesse passado e captar sua essência ou conteúdo, pode-se depreender que, para Hegel, o motivo para escrever história há de ser
respondem pelas diversas espécies de história reflexiva que esse tipo de histo­ procurado nas transformações da consciência que a tentativa de fazê-lo promo­
riador produz. ve na mente dos próprios historiadores.
Hegel distinguiu quatro espécies de história reflexiva: universal, pragmá­ A “história crítica” alcança um nível de consciência histórica superior ao
tica, crítica e conceptual (Begriffsgeschichte). Todas as quatro espécies exibem que se manifesta nas outras duas espécies de historiografia reflexiva, pois aqui
os atributos - nas caracterizações que Hegel faz delas - do modo de compreen­ o problema de transpor a distância entre passado e presente é apreendido como
são mctonímico ou sinedóquico. A história universal lida, pela própria necessi­ um problema em si, isto é, um problema cuja solução não será proporcionada
dade de reduzir seus materiais, com abstrações e escorços, é arbitrária e por considerações gerais ou práticas (como na historiografia universal e prag­
fragmentária - não somente por força do alcance de seu assunto, mas também mática), mas pela inteligência teórica exclusivamente. Pois, na história crítica,
em virtude da necessidade de estabelecer causas sem razões suficientes e o historiador critica não só as fontes mas também outras narrações históricas
construir tipologias com base em dados inadequados. As histórias pragmáticas do assunto que está estudando, no esforço de extrair delas o conteúdo de
produzem o mesmo tipo de quadros do passado, mas, ao invés de fazê-lo no verdade real, a fim de evitar as ciladas da arbitrariedade, da fragmentação e do
interesse de conhecer todo o passado (que predomina na história universal), interesse subjetivo que prejudicam os tipos precedentes de historiografia. Se­
esforçam-se por servir ao presente, por iluminar o presente apresentando-lhe gundo Hegel, a escrita crítica da história poderia chamar-se mais adequada­
analogias oriundas do passado e por inferir lições morais para a edificação e mente “história da história”. Mas, observou Hegel, essa forma de reflexão
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histórica tem sido cultivada na ausência de qualquer critério convencionado por arbitrário e fragmentário de todo o conhecimento genuinamente histórico de
meio do qual se pudesse estabelecer a relação entre as histórias efetivamente partes particulares da história.
escritas e os objetos que elas representam. Isso tende a consumir toda a energia Como disse Hegel posteriormente, os historiadores devem lidar com
do historiador na operação crítica, de modo que, em lugar da história do eventos e temas em sua concretude e particularidade; traem sua vocação
assunto, tem-se uma história das histórias dos vários historiadores do assunto. quando deixam de fazê-lo. Mas isso significa que a perspectiva deles é sempre
A natureza intrinsecamente formalista dessa empresa é revelada pelo fato de limitada e restrita. Essa limitação é o preço que pagam por tentar re-presentar
que a chamada “crítica superior” da época de Hegel na Alemanha manifesta­ uma vida passada em toda a sua idealidade e concretude; servem melhor ao seu
mente substituiu o aparato conceptual, que uma história genuinamente crítica escopo quando não procuram elevar-se acima da simples reconstrução do
não só exibiria como também defenderia com argumentos racionais, por todas passado e aventurar-se a aduzir do seu conhecimento do evento concreto os
as espécies de fantasias subjetivas: “fantasias cujo mérito é medido por sua princípios universais que vinculam uma determinada vida passada a seu contex­
ousadia, isto é, na insuficiência das particularidades em que se baseiam e no to total.
tom peremptório com que desmentem os fatos mais bem estabelecidos da A história filosófica, porém, pergunta que princípios são necessários para
história” (7). compreender as representações das partes do mundo histórico oferecidas por
Assim, quando chegamos à última espécie de história reflexiva, a história diferentes histórias reflexivas. Pode-se definir a história filosófica, disse Hegel,
conceptual (as histórias da arte, da religião, do direito etc.), não temos por que simplesmente como “a consideração atenta” (die denkende Betrachtung) da
nos surpreendermos com o fato de que ela “anuncia seu caráter fragmentário história (Ibid. [20]). Isto é, não é a aplicação da razão aos fatos individuais da
à primeira vista” (Ibid.). A história conceptual adota uma “posição abstrata”, história com vistas a aduzir novos fatos oriundos dos já conhecidos, ou a corrigir
mas também “assume um ponto de vista geral”. Portanto fornece a base para os relatos feitos pelos historiadores “reflexivos” na execução de suas tarefas
uma transição para a história filosófica, a terceira classe de reflexão histórica a legítimas, embora limitadas; é a “reflexão atenta” sobre as obras produzidas por
que o próprio trabalho de Hegel deve ministrar os princípios (7-8), porque tais historiadores. Supunha Hegel que, se as obras produzidas por historiadores não
ramos da vida de uma nação ou de um povo, como sua arte, suas leis e sua podem ser sintetizadas à luz dos princípios gerais da razão, do modo como
religião, encontram-se na mais íntima relação com “todo o conjunto de seus podem sê-lo as obras dos físicos e químicos, a história não pode reclamar para
anais”, isto é, com o domínio da práxis social e cultural em geral. Por isso a si o estatuto de ciência. Pois, se o historiador fosse dizer que contribuiu para
história conceptual necessariamente suscita a questão da “conexão do todo” nosso conhecimento da humanidade, da cultura ou da sociedade na história que
(derZusammenhangdes Ganzen), que a história de uma nação representa como escreveu, mas depois negasse que o pensamento pode legitimamente generali­
uma realidade e não apenas como uma idéia ainda por realizar, ou não apenas zar acerca da significação das estruturas e dos processos verdadeiramente (mas
compreendida como uma abstração mas realmente vivida (9 [19]). A articulação incompletamente) representados naquelas histórias, isso equivaleria a impor à
dos princípios pelos quais o conteúdo da história de um povo e sua própria história e ao pensamento uma restrição que nem a ciência nem a filosofia
apreensão ideal de seu modo de vida hão de ser extraídos dos seus “anais” e os poderiam sancionar.
modos como as relações entre todos eles devem ser explicadas formam o
Importa notar que, ao salientar o caráter fragmentário e arbitrário de toda
objetivo da terceira classe de reflexão histórica, a filosófica, que é “o objeto da
obra histórica realmente produzida pelos historiadores, Hegel colocou-se den­
presente tarefa [de Hegel]” (8).
tro da posição irônica a que a reflexão iluminista fora impelida por sua apreen­
i são da natureza arbitrária de sua própria reflexão histórica. Mas, ao invés de
concluir, como os românticos, que se podia fazer da história o que se quisesse,
HISTÓRIA EM E PARA SI Hegel insistiu em que só a razão deve ter autoridade para extrair a verdade
(ainda que parcial) desses relatos imperfeitos do passado e, soldando-os,
Ora, é óbvio que as quatro espécies de história reflexiva oferecem uma convertê-los no alicerce de uma verdadeira ciência da história - não, notem
caracterização tipicamente hegeliana dos estágios da consciência histórica que bem, numa ciência da história, mas na base teórica de uma ciência da história.
são possíveis dentro da classe de consciência históricapara si. A história original Como ele mesmo disse, “o único pensamento que a filosofia traz para a
é produto da consciência histórica em si, e a história filosófica é produto da contemplação da história é a simples concepção de razão, que a razão poderia
mesma consciência em e para si. A história reflexiva pode ser decomposta nas ser a soberana do mundo e que a história do mundo portanto poderia apresen­
categorias do em-si (história universal), do para-si (história pragmática) e do tar-nos [o aspecto de] um processo racional” (Ibid.). Esta convicção, ele adverte,
em-e-para-si (história crítica), enquanto o quarto tipo (Begriffsgeschichte) serve “é uma hipótese no domínio da história como tal” (Ibid.). Não é assim na
de transição e base para a nova classe, a história filosófica. Isso é assim porque filosofia, pois, sem peremptoriamente pressupô-la, a própria filosofia não seria
a quarta espécie começa na apreensão (irônica) do caráter necessariamente possível. Se a Begriffsgeschichte funciona como etapa de transição entre a
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história reflexiva e a filosófica, deve ela ser interpretada no modo de simples o mundo da inteligência e da volição consciente não está abandonado ao acaso, mas deve mostrar-se
autoconsciência - isto é, como história filosófica em si. O problema de Hegel na luz da idéia autocognoscitiva (10 [22]).
cifrava-se em articular os princípios que informariam essa autoconsciência
histórica para si - isto é, no modo de a Begriffsgeschichte refletir sobre suas No entanto, insistia Hegel, ele não se “sentia compelido a fazer tal apelo
próprias operações e sua relação com seu tema. preliminar à fé [do leitor], pois “o que eu disse assim provisoriamente (...) deve
Conceber o problema dessa maneira é transitar da ironia ingênua de um ser considerado (...) como uma visão sumária do todo; resultado da investigação
modo de reflexão histórica que simplesmente assume a arbitrariedade e a que estamos prestes a encetar (...) resultado ulterior” de uma investigação que
natureza fragmentária de seus achados para aquela que se empenha em com­ “prosseguirá historicamente - empiricamente” (Ibid.). Isso quer dizer que se
preender a conexão interna pela qual os eventos adquirem uma historicidade deve “fielmente adotar tudo o que é histórico” como material para reflexão,
específica. Esse esforço inevitavelmente transportará o pensamento através da muito embora os termos “fielmente” e “adotar” sejam ambíguos ao extremo
consideração das caracterizações metafóricas, metonímicas e sinedóquicas dos (11). Que as hipóteses concernentes à racionalidade última do processo do
objetos que ocupam o campo histórico e das relações entre eles (causais e mundo devam ser aplicadas aos dados supridos pelos historiadores nos vários
tipológicas), para um estágio superior de auto-reflexão irônica, no'quaT‘Òs “modos” em que os historiadores refletem (Jbid.), Hegel entendia que isso não
significados essenciais da consciência histórica e do ser histórico são expostos era motivo de alarme, pois, na história como na ciência, mesmo o historiador
à reflexão filosófica sobre suas naturezas essenciais. Assim concebida, a finali­ mais “imparcial”, “que acredita e proclama que mantém uma atitude simples­
dade da filosofia da história é determinar a adequação da consciência histórica mente receptiva, submetendo-se aos dados que lhe são fornecidos, não é de
a seu objeto de tal maneira que o “sentido da história” é percebido como um forma alguma passivo com respeito ao exercício de seus poderes de reflexão.
fato de consciência e uma realidade vivida. Só então a consciência histórica terá Traz consigo suas categorias e observa os fenômenos apresentados à sua visão
sido alçada a um nível para além da ironia, a um nível de reflexão em que ela mental exclusivamente através desses meios” (Ibid.). O filósofo refletindo sobre
não somente será em si e para si mas também por, em e para si - isto é, em a história deve apenas estar seguro de manter sua razão viva e em plena atividade
harmonia com seu objeto. durante sua investigação. Dada a natureza da própria razão, o resultado deve
Evidentemente todas essas antevisões do nível para além da ironia a que ser uma exposição racional da história como um processo racionalmente com­
a consciência histórica poderia ascender foram articuladas em Hegel na plena preensível, pois, “para aquele que considera o mundo racionalmente, o mundo,
consciência da impossibilidade de alcançar tal estado de integração de sujeito por sua vez, apresenta um aspecto racional. A relação é mútua” (JbidJ. O
e objeto dentro do tempo histórico. A verdade mais alta da consciência histórica importante é que esse aspecto racional não seja considerado como uma coerên­
e do ser histórico, que é de supor que seja em última análise a mesma verdade, cia puramente formal. As leis que governam a história hão de ser apreendidas
a verdade do poder da razão sobre a história e do aspecto racional que a história como inerentes ao próprio processo histórico, na medida em que ele se
confere à consciência suficientemente reflexiva para apoderar-se de sua essên­ desenrola no tempo, do mesmo modo que, na ciência, as operações reais da
cia, é, finalmente, uma verdade da filosofia. Embora a arte possa apreender essa natureza são apreendidas racionalmente na forma das leis usadas para con-
verdade em sua concretude e coerência formai, e a religião possa nomeá-la ceptualizá-la (12).
como a verdade do governo de Deus sobre Seu mundo, a própria filosofia não O caminho para além da ironia conduz, por uma via que contorna a
pode nomeá-la, porque, como disse Hegel, a filosofia sabe que “a Verdade é o convicção simplesmente ingênua ou religiosa de que a história é governada pela
Todo” e “o Absoluto é a Vida”. , Providência, à demonstração científica - isto é, racional e empírica - da natureza
Mas todas essas considerações são inconseqüentes para o objetivo mais providencial da história, não pelo que toca a um homem ou um grupo em
modesto de elaborar as bases em que as verdades imperfeitas e fragmentárias particular, mas com relação à vida da espécie. O apelo à crença na Providência
oferecidas pelos historiadores individuais podem ser legitimamente considera­ está vedado, segundo Hegel, “porque a ciência de que temos de tratar propõe-se
das como o assunto de uma possível ciência da história. E são sobrepujadas pelo fornecer a prova (não realmente a Verdade abstrata da doutrina, mas) de sua
fato de que só o processo histórico nos provê de uma parte necessária dos exatidão quando comparada com os fatos”. E esta “exatidão quando compara­
materiais com base nos quais podemos imaginar uma ciência da natureza da com os fatos” exige que comecemos pelo reconhecimento de que, conside­
humana. A filosofia, escreveu Hegel, não é senão a tentativa de satisfazer “o rada empiricamente como apenas um campo de acontecimento singelamente
desejo de discernimento racional” (10). Não é “a ambição de acumular um mero percebido, a humanidade é, acima de tudo, governada pelas paixões. Isto
acervo de conhecimentos” - isto é, os dados que devem ser “pressupostos” significa que qualquer explicação da história deve ‘“retratar as paixões da
como o patrimônio de todo praticante de uma disciplina específica (Jbid.). humanidade, a índole, as forças ativas que desempenham seu papel no grande
palco”, e evidenciar, através de uma demonstração ao mesmo tempo racional
Sc a clara idéia de Razão já nâo está desenvolvida em nossa mente, ao começarmos o estudo e empírica, que esse caos de fatos pode ser concebido não somente como tendo
da história universal, devemos pelo menos ter a fé inabalável em que a Razáo existe ali; e em que uma forma mas que também patenteia realmente um plano (Endzweck) (13).
118 HAYDENWHTTE META-H1STÓRIA 119

Revelar o aspecto geral desse plano, pretender mostrar “o desenho fundamen­ aspecto de conjunto de fenômenos dos quais se espera que a inteligência crítica
tal do mundo”, implica a “definição abstrata” do “sentido” (Inhalt) desse extraia um sentido. Essas duas caracterizações são de natureza bem diferente
desenho e a apresentação da prova de sua concretização (Verwirklichung) no e recompensam o estudo acurado que se fizer para determinação de suas
tempo (16 [29]). características individuais.
Pois bem, nos parágrafos que se seguem, indicarei o desenvolvimento da Em sua primeira caracterização do campo histórico, Hegel considerou-o
reflexão de Hegel sobre a natureza daquele “espírito” que ele concebeu ser a como uma estrutura sincrônica, apreendida como um caos de paixões, interesses
agência pela qual as ironias de pensamento, sentimento e existência experimen­ pessoais, violência, esperanças destroçadas e planos e projetos frustrados. Em
tadas pelo homem são finalmente transcendidas na apreensão de uma possível sua segunda caracterização do campo histórico, ele o considerou como um
integração da consciência com o ser. Darei aqui apenas um rápido escorço de processo diacrônico, um campo que parece distinguir-se pela simples mudança.
sua doutrina do espírito, já que ela aparece em detalhe em outra parte - isto é, A primeira caracterização destinava-se a servir de base para a geração dos
em sua Fenomenologia, Lógica e Filosofia do Direito. O importante é que ele conceitos pelos quais o campo, considerado como um caos de paixões, pudesse
começou sua discussão acerca do espírito pela apreensão de uma antítese ser compreendido como um espetáculo de finalidade. A segunda caracterização
radical entre espírito e matéria. O termo “Mundo”, disse ele, “inclui a natureza destinava-se a servir de base para a geração dos conceitos pelos quais o campo,
física e psíquica”. Admitiu que a natureza física desempenha um papel na considerado como um caos de mudanças, pudesse ser compreendido como um
história do mundo e também admitiu que seria necessário fornecer uma descri­ processo de desenvolvimento.
ção das operações mecânicas nela ocorridas sempre que isso se relacionasse A primeira caracterização do campo histórico, como campo de fenôme­
com o tema por ele estudado. Mas seu tema era o espírito, cuja “natureza” pode nos, foi apresentada no modo metafórico, isto é, não como meros fenômenos
ser caracterizada em função de suas “características abstratas”: o “meio” que mas como fenômenos nomeados. Hegel caracterizou o campo histórico que se
ela usa para realizar sua idéia ou concretizar-se no tempo; e a “forma” que a oferece à intuição “externa e fenomenal” em função de sua forma estética, das
perfeita corporificação do espírito assumiria. implicações morais da forma apresentada e da questão filosófica que a combi­
O espírito, disse Hegel, pode ser entendido como o oposto de matéria, nação disso necessariamente suscita. Assim, disse ele:
cuja natureza deve ser determinada por algo extrínseco a ela mesma. O espírito
é “existência completa em si mesma” (bei-sich-selbst-sein), vale dizer, “liberda­ O primeiro relance de olhos pela história convence-nos de que as ações dos homens
dimanam de suas necessidades, suas paixões, seus caracteres e talentos, e inculca-nos a crença em
de”, pois liberdade não é senão independência ou autonomia, ausência de toda que tais necessidades, paixões e interesses são as únicas molas da ação - os agentes eficientes nesta
subordinação a, ou determinação por, qualquer coisa fora de si mesma. A cena de atividade [20].
existência completa em si mesma, continuou ele, é também autoconsciência -
consciência que se tem do próprio ser, isto é, consciência de que se é potencial­ Na verdade, observou Hegel, mesmo nesse nível de compreensão pode­
mente capaz de vir a ser. Hegel tomou essa definição abstrata de autoconsciên­ mos perfeitamente discernir ações e projetos empreendidos por dedicação a
cia como o análogo da própria idéia de história: “Pode-se dizer da história “objetivos de tipo liberal ou universal”, como “benevolência” ou “nobre patrio­
universal que é a exibição do espírito no processo de elaborar o conhecimento tismo”, mas tais “virtudes e visões gerais são simplesmente insignificantes
daquilo que ele potencialmente é” (17-18). E, na medida em que a história é quando comparadas com o mundo e seus atos”. A própria razão pode revelar
processo, realização no tempo, esta elaboração do conhecimento do que o seus efeitos ao entendimento, mas, baseados só nos dados, não temos motivo
espírito potencialmente é, é também a realização, ou atualização, do que ele é para negar que as “molas mais efetivas da ação humana” são “paixões, objetivos
potencialmente capaz de vir a ser. Já que a autoconsciência não é senão privados e a satisfação de desejos egoístas” (Ibid.).
liberdade, deve-se supor que a atualização do espírito no tempo representa o Quando refletimos sobre esse “espetáculo de paixões” (Schauspiel der
crescimento do princípio da liberdade. Assim, escreveu Hegel: “A história do Leidenschaften) e percebemos a irracionalidade essencial tanto do mal quanto
mundo não é senão o progresso da consciência de liberdade”. E essa percepção, dos “bons desígnios e objetivos virtuosos”, quando “vemos o mal, o vício, a ruína
disse ele, ministrava-lhe “a divisão natural da história universal e sugere o modo que sucedeu aos mais florescentes reinos que a mente do homem já criou”,
de discuti-la” (19). dificilmente podemos evitar que sejamos precipitados numa concepção essen­
cialmente absurdista do drama ali representado. Toda a história assim vista
parece levar a marca da “corrupção”, e, já que essa “decadência não é obra da
O CAMPO HISTÓRICO COMO ESTRUTURA natureza, mas da vontade humana”, “uma exasperação moral” (einer moralische
Betrübnis) e “uma revolta do bom espírito, se ele tem um lugar dentro de nós”
Há duas passagens cruciais na introdução à Filosofia da História em que podem surgir em nosso íntimo (20-21). Uma combinação puramente estética
Hegel caracteriza o campo histórico como problema a solucionar em seu ou, o que vem a dar no mesmo, “simplesmente verdadeira das atribulações que
120 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 121

esmagaram as mais nobres das nações e comunidades organizadas e os mais Hegel, portanto, aceitou como verdade a percepção da história que tinha
belos exemplares da virtude humana” forma “um quadro de aspecto tão horri­ levado os philosophes ao desespero e os românticos ao auge da animação e do
pilante” (furchtbarsten Gemàlde) e inspira emoções de tristeza tão profunda, entusiasmo - a saber, o fato de que a “paixão” por si só é a causa imediata de
que nos inclinamos a buscar refúgio no fatalismo e a isolar-nos cheios de asco todos os acontecimentos históricos. “Podemos afirmar peremptoriamente”,
“no ambiente mais agradável de nossa vida individual, no presente formado por disse ele, “que nada de grande foi realizado no mundo sem paixão [nichts
nossos propósitos e interesses privados” (21). Grosses in der Welt ohne Leidenschaft vollbracht worden irt]” (23 [38]). Tem
Mas essa resposta moral a uma percepção estética em si inspira reflexão assim o historiador como seu objeto de estudo precisamente o que aparece
sobre uma questão que “surge involuntariamente” dentro de qualquer cons­ diante dele: um panorama de pecado e sofrimento. Mas tem ele também seu
ciência em que a razão atua. A questão é: “A que princípio, a que propósito “conceito” [Begriff], que é a relação meios-fins, e sua “idéia” [Idee], que é a plena
final têm sido oferecidos esses enormes sacrifícios?” (Ibid.) realização, por atualização concreta, de todos os seres que aparecem na história
Quando chegamos a esse ponto, disse Hegel, o procedimento usual como entidades reconhecivelmente históricas (em contraste com as puramente
consiste em intentar o tipo de investigação que ele caracterizou como “história naturais), através dos quais pode extrair sentido desse panorama. Tanto a
reflexiva” - isto é, reduções causais e tipológicas pelas quais é possível ordenar redução metonímiça quanto a ironia devem ser evitadas mediante o grupamento
“arbitrariamente” e “fragmentariamente” o campo. Por outra parte, Hegel dos dados (o panorama de pecado e sofrimento) dentro do conceito adequado
pareceu resistir a essas estratégias redutivas ao tomar “esses fenômenos que à apreensão deles como meio para algum fim:
[compõem] um quadro tão sugestivo de emoções sombrias e reflexões profun­
Dois elementos, portanto, entram no objeto de nossa investigação: o primeiro, a idéia, o
das como o próprio quadro” [grifo de Hegel] que exibe os “meios [grifo acres­
segundo, o conjunto de paixões humanas; um, a urdidura, o outro, a trama do imenso pano de arras
centado] para alcançar (...) o destino essencial (...) ou (...) o verdadeiro da história [Ibid.].
resultado da história do mundo” (Ibid.). A reflexão moral, insistiu ele, não pode
servir de método de entendimento histórico. As reduções causais e tipológicas Assim, a paixão, “que é [convencionalmente] encarada como uma coisa
do campo histórico inspiradas por essa reflexão moral, muito embora tentadas de aspecto sinistro” e como “mais ou menos imoral”, é não somente reconhecida
no interesse de dissipar pelo entendimento a depressão, podem quando muito como um fato da existência humana mas é também elevada como condição
apenas justificar os fenômenos que pretendem explicar e no pior dos casos necessária e desejável para a realização de fins maiores do que qualquer um
apenas confirmar nossos temores quanto à absurdez essencial do quadro do que um homem ou grupo em particular, governado por interesses pessoais ou
todo. A história é um “panorama de pecado e sofrimento”, e qualquer concep­ traços de caráter, possa imaginar. Supera-se dessa maneira a separação entre a
ção da história que implique negar esse fato de percepção agride os princípios paixão e os fins humanos mais altos que indivíduos e grupos realizam de fato no
da arte, da ciência e da moral. Dessa maneira Hegel dava total crédito à tempo. O dualismo de razão e paixão que os iluministas não foram capazes de
percepção do campo histórico como “panorama de pecado e sofrimento”. Mas superar (pela análise metonímiça) é transcendido juntamente com o falso
pôs sua percepção desse panorama dentro da questão de meios e fins que, monismo da hegemonia da paixão sobre a razão (dos românticos) e o falso
insistiu, surgia na consciência em razão da reflexão moral sobre tal panorama monismo da absoluta hegemonia da razão sobre a paixão (dos idealistas subje­
(“a que princípio, a que propósito final têm sido oferecidos esses enormes tivos). O instrumento de mediação entre paixão e razão foi concebido por Hegel
sacrifícios”). como sendo o Estado - não o Estado mecanismo, que é apenas um meio dessa
Em resumo, “pecado e sofrimento” devem ser encarados como os meios mediação em existência concreta, mas o Estado em sua essência ideal, o Estado
para a realização de algum princípio que é superior a eles. Esse princípio como moral objetificada. “Meio concreto” e “união” da idéia e da paixão é “a
superior não é dado à percepção sensorial mas é considerado cognoscível em liberdade sob as condições da moral num Estado” (Ibid.).
princípio pela dedução transcendental das categorias pelas quais pode ser
inferido - o tipo de dedução que Kant levou a cabo com relação aos fenômenos
naturais e à ciência. Hegel caracterizou o fim do processo inteiro como “Prin­ O ESTADO. O INDIVÍDUO EA VISÃO TRÁGICA DA HISTÓRIA
cípio-Plano da Existência-Lei”, que, admitiu ele, é uma “essência oculta, não
desenvolvida, que como tal, embora verdadeira em si mesma, não é completa­ O Estado ideal, observou Hegel, seria aquele em que os interesses priva­
mente real [wirklich]” (22 [36]). A causa final concebível, ou princípio ainda por dos de seus cidadãos estão em perfeita harmonia com o interesse comum,
realizar na existência concreta, deve ser reconhecida como fundamentalmente “quando um encontra sua satisfação e realização no outro” (24). Mas todo
incognoscível para a ciência na medida em que está ainda no processo de Estado real, precisamente porque é um mecanismo concreto, uma atualização
atualização na história. O pensamento deve, portanto, começar pelos dados que mais do que apenas uma potencialidade ou uma realização do Estado ideal, é
estão lá diante dele e pela apreensão deles como meio para um fim maior. incapaz de consumar essa harmoniosa reconciliação dos interesses, desejos e
122 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 123

necessidades individuais com o bem comum. Essa incapacidade de qualquer Isso não quer dizer que o indivíduo esteja isento de um destino trágico na
Estado determinado de encarnar o ideal, porém, deve ser sentida antes como perseguição de seus objetivos. Pelo contrário, quer dizer que aqueles que
motivo de júbilo que de desespero, pois é precisamente esse desequilíbrio dos perseguem seus próprios objetivos com paixão, vontade e inteligência adequa­
interesses privados com os públicos (ou dos públicos com os privados) que das à consecução imediata desses objetivos - isto é, a transformação real de suas
propicia o espaço para o exercício de uma liberdade especificamente humana. sociedades à luz das suas concepções particulares do que poderia ser uma vida
Se qualquer Estado determinado fosse perfeito, não haveria base legítima para boa - serão figuras trágicas. O homem mediano, disse Hegel, apega-se ao que
a insatisfação que os homens sentem com os dons sociais e políticos recebidos, sua sociedade teima em lhe apresentar como sendo o limite dentro do qual ele
justificação para a indignação moral que provém da disparidade entre o que os pode realizar seus desejos e fazer valer seus interesses privados. O criminoso
homens desejam para si e sentem, porque é o único critério de direito que procura com subterfúgio burlar as leis e os limites estabelecidos pela moral
sentem imediatamente, ser um desejo moralmente justificável, e o que a comu­ pública, de modo a realizar seu desejo particular de satisfação material, mas
nidade em que nascem e são convidados a viver suas vidas insiste em que devem sem com isso efetuar quaisquer alterações nos cânones da moral pública e da
desejar. A liberdade humana, que é uma liberdade especificamente moral, se lei (Phil. of Hist., 28-29). Por contraste, os heróis da história são exatamente
manifesta no estado de coisas em que nenhum “presente” está jamais adequa­ aqueles cuja crença apaixonada na legitimidade de seus objetivos e interesses
damente “adaptado à realização de objetivos que [os homens] consideram particulares é tal que não lhes permite tolerar qualquer disparidade entre o que
corretos e justos”. Há sempre um contraste desfavorável entre “coisas como ido desejam para si mesmos e o que a moral pública e o sistema legal exigem dos
e coisas como devem ser” (35). Mas essa precondição da liberdade é também homens em geral. César, por exemplo, ao buscar a concretização da imagem
uma limitação ao exercício dela; toda tentativa de corrigir ou melhorar o Estado, ideal que tinha de si mesmo, conseguiu reconstituir completamente a sociedade
pela reforma ou pela revolução, consegue apenas estabelecer algum novo romana. Os grandes homens, observou Hegel, formulam “objetivos para satis­
mecanismo que, por mais superior que seja ao que veio antes, é igualmente fazer a si mesmos, não aos outros”, e são aqueles que não aprendem com os
limitado em sua capacidade de reconciliar interesses e desejos particulares com outros mas com quem os outros aprendem (30). Os grandes conflitos entre uma
o bem e as necessidades comuns. vontade individual, adequadamente dotada para sua tarefa, e a ordem social
O escopo, sugeriu Hegel, é manter a consciência da natureza irônica (isto recebida, cujos devotos parecem sustentar-lhe a forma alcançada, constituem
é, paradoxal e contraditória) dessa condição inconfundivelmente humana, que os eventos axiais da história do mundo; e é com as “relações abrangentes” que
é produto da própria distinção entre interesses privados e públicos. Pois só isso se delineiam nesses embates que a história do mundo (em a ver (29).
permite à consciência acreditar na possibilidade de seu próprio exercício de
Por essa razão, o espetáculo da história, quando visto de dentro do
liberdade e na legitimidade dos sentimentos de insatisfação que a impelem à processo do seu próprio desenrolar, do ponto de observação dos indivíduos que
perfeição ulterior das formas de comunidade humana em que todos os interes­ lograram mudar a forma de vida de um povo ou de muitos povos - ou,
ses particulares e o bem público podem identificar-se. poder-se-ia acrescentar, resistir aos esforços heróicos para efetuar tais trans­
Nada era mais comum em sua própria época, comentou Hegel, do que “a formações - é concebível como um drama trágico em termos específicos. Com
queixa de que os ideais que a imaginação estabelece não se cumprem, de que fundamento exclusivamente na consciência histórica, sem o acréscimo da hipó­
esses sonhos gloriosos são destruídos na fria realidade” (Ibid.). Mas essas tese que a reflexão filosófica traz para a história - isto é, com base apenas numa
queixas, insistia ele, são produtos de caráter meramente sentimental, se aqueles combinação de sensibilidade estética e moral - pode-se transformar a história
que as fazem condenam a situação social como tal simplesmente porque seus do mundo, de uma epopéia absurdista de conflito e discórdia insensatos, num
ideais não se realizaram em sua própria época. É mais fácil, disse Hegel, drama trágico de importância especificamente ética. Assim, escreveu Hegel:
encontrar deficiências em indivíduos, Estados, e em todo o processo histórico
do que “discernir-lhes a verdadeira significação e valor” (36). “Pois nessa crítica Se chegarmos a lançar um olhar para o destino das personalidades históricas mundiais (...)
puramente negativa assume-se uma postura orgulhosa”, e o aspecto positivo de verificaremos que não foi um destino feliz. Eles não lograram um contentamento tranquilo; toda
toda situação histórica, seu oferecimento das condições para a efetivação de a sua vida foi de trabalho e inquietação; toda a sua natureza não foi outra coisa senão sua paixão
uma liberdade limitada, é negligenciado (Ibid.). A perspectiva adotada por dominante. Quando alcançam o objeto caem como cascas vazias de amêndoa. Morrem cedo, como
Hegel destinava-se a revelar que “o mundo real”, com suas contradições e seus Alexandre; são assassinados, como César; transportados para Santa Helena, como Napoleão [31].
conflitos, sua liberdade limitada e seu sofrimento, “é como deve ser” para a
consecução de fins humanos por meios adequados à tarefa (Ibid.). O espírito Em suma, vivem suas vidas como os heróis de uma tragédia shakespearia-
dessa assertiva está de acordo com o aforismo de Sêneca com que Vico (citando na. E o perigo de uma reflexão puramente moral sobre essas vidas está em que
incorretamente) termina o livro V da Ciência Nova: “Pusilla res hic mundus est, poderia conduzir à conclusão, semelhante àquela que “qualquer relato siniples-
nisi id, quod quaerit, omnis mundus habeat” (1096: 415). mente verídico” do campo histórico inspira, de que tais vidas foram tão sem
124 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 125

sentido, tão inconseqüentes, como as vidas daqueles homens comuns que se estrutura sincrônica, aparecerá como um sistema coerente de troca entre o
contentaram com os papéis que o destino lhes reservara. princípio da selvageria e o da civilização.
Tal visão, porém, só é possível com base em elementos fornecidos pelo
modo metonímico de compreensão, o qual, fundamentando-se numa falsa
analogia entre a natureza e a história, vê toda ação apenas como efeito de alguma O CAMPO HISTÓRICO COMO PROCESSO
causa anterior, mecânica. Assim, o impulso subjetivo por trás do ato - a vontade,
a razão, ou as emoções do indivíduo que se esforça por alcançar algo de Isso nos leva ao nível de compreensão em que a consciência sinedóquica
grandioso - é reduzido à mesma natureza essencial que a do homem comum, substitui a explicação causal pela explicação tipológica e em que a imagem do
que não busca nenhuma grandeza e, conseqüentemente, não deixa marca na puro caos é substituída pela imagem de uma sucessão de formas ou tipos de
história salvo em sua função de unidade de um conjunto. Quase não admira, realização cultural, cuja apreensão imediata se dá sob o aspecto da tragédia.
comentou Hegel depois, que aqueles que começam por presumir que a história Foi aqui que Hegel fez o comentário que tem sido com tanta freqüência
é apenas a natureza num disfarce diferente sejam levados, pela lógica do modo, erroneamente interpretado como prova da natureza essencialmente formalista
de explicação próprio para compreender exclusivamente a natureza, à conclu­ de sua filosofia da história. Ele escreveu:
são de que a história não tem sentido, pois:
O historiador deverá conhecer a priori (se quisermos dizê-lo assim) todo o círculo de
O estado de natureza é [de fato] predomínantemente ode injustiça c violência, de impulsos concepções a que pertencem os princípios em questão - assim como Kepler (para citar o exemplo
naturais indomados, de ações e sentimentos humanos [41]. mais ilustre desse modo de filosofar) deve ter conhecido a priori elipses, cubos e quadrados, e as
idéias das respectivas relações antes que pudesse descobrir, a partir dos dados empíricos, aquelas
suas “Leis” imortais, que não são senão formas de pensamento próprias daquelas classes de
Se o homem fosse “só natureza”, seríamos incapazes de explicar a domes­ conceitos. Quem não conhece a ciência que adota essas concepções abstratas elementares é tão
ticação da humanidade em geral como somos incapazes de explicar a criação pouco capaz - ainda que tenha passado a vida inteira a observar o firmamento e os movimentos
daquele “estado social” que é o instrumento dessa domesticação. Além disso, dos corpos celestes -de entender aquelas Leis como de descobri-las [64; grifos acrescentados].
seríamos forçados a concluir que as realizações superiores de gênios individuais
na arte, na ciência, na religião e na filosofia foram produtos de uma consciência Aqui Hegel distinguia entre o “círculo de concepções” e os “princípios”
que não era essencialmente diferente daquela que caracteriza o homem em seu de caracterização, e entre as “formas de pensamento” e as “classes de concei­
estado selvagem; que elas refletem apenas novas combinações, antes que aper­ tos” que as formas de pensamento utilizam na explicação de dados de diferentes
feiçoamentos progressivos, de um número finito de elementos, todos os quais, espécies. Os princípios e as classes de conceitos que são permissíveis na
deve-se presumir, estiveram presentes no estado selvagem. caracterização do processo histórico derivam do círculo de concepções pelas
Mas a verdade é que o selvagem não cria nada que tenha significação quais várias formas de pensamento são simultaneamente diferenciadas umas
cultural especificamente elevada exceto a religião e uma forma rudimentar das outras e relacionadas umas com as outras. Se se há de evitar um método
(costumeira) de sociedade. Isso nos permite concluir que a “forma da religião” puramente a priori, pelo qual uma preconcepção inspirada por um preconceito
determina a forma do Estado que se ergue sobre os princípios da consciência simplesmente se impõe sobre o registro histórico como explicação dele, deve
que o informam (51) e dá à cultura de um povo seu aspecto característico (50). haver algum princípio pelo qual uma dada forma de pensamento possa ser
Mas presumir que a mesma forma de consciência que caracteriza a mente dirigida para a articulação das classes de conceitos necessárias à distinção entre
selvagem também caracteriza a mente civilizada é fazer pender a balança da o que é “essencial” e o que não o é num dado aspecto do processo do mundo.
análise apenas em favor da descobcrda de similaridades quando o que é No círculo de concepções, determinância e liberdade são concebidas com o fim
necessário é uma avaliação e uma explicação das diferenças entre os dois de gerar princípios, formas de pensamento e classes de conceitos adequados à
estados de consciência e seus produtos. Tal busca de similaridades à custa de caracterização e ao entendimento dos processos naturais e históricos respecti­
diferenças jaz na base de todos os mitos da Arcádia, mitos do feliz estado de vamente. É aqui que o pensamento acerca da história se expõe aos perigos do
natureza, que tantalizou os pensadores iluministas e inspirou os românticos a mecanicismo, em virtude de confusão de um processo histórico com um pro­
procurarem refúgio das dores da existência presente numa terra de nenhum cesso meramente natural, e à ameaça de formalismo, em virtude do simples
lugar onde nada, senão a felicidade, predomina. reconhecimento de uma sucessão de coerências formais no processo histórico.
O problema, então, reside em explicar os princípios pelos quais o desen­ Os conceitos que a consideração da história como processo de desenvol­
volvimento da humanidade através da história pode ser compreendido. Esse vimento requer são começo, meio e fim, mas não concebidos no modo pelo qual
desenvolvimento, considerado em seu aspecto diacrônico, aparecerá como uma tais processos são apreendidos na natureza física, isto é, como simplesmente
transição de uma condição inferior para uma superior e, em seu aspecto de início, extensão e expansão, e término. Os processos históricos devem ser
126 HAYDEN WHÍTE META-HISTÓRJA 127

encarados como análogos aos tipos de ações morais concluídas que apreciamos “explicação” - das raízes latinas ex e plicare, que, combinadas, comunicam a
na contemplação dos produtos superiores da arte e da religião - isto é, como idéia de um “alisamento” de dobras, como se faz com um pedaço de papel ou
processos que surgem como um “começo”, prosseguem como uma transforma­ pano amarrotado. A conotação é a de um desenrolar ou deslindar de conteúdos
ção “dialética” dos conteúdos e das formas da disposição original e culminam latentes.
numa “consumação ou resolução” que representa mais do que uma simples Mas a apreensão desse processo pelo que ele verdadeiramente é não pode
conclusão. ser proporcionada exclusivamente por expansões sinedóquicas. Isso é salienta­
A natureza física como tal não tem começo, meio ou fim; é sempre e do no trecho que se segue. Aqui é retomada a mesma transição da consciência,
eternamente o que deve ser. Podemos imaginá-la começando a existir num dado que passa de uma percepção estética, através de uma percepção moral, para
momento e terminando num dado momento, mas ela não se desenvolve em sua uma percepção intelectual que encontramos na caracterização original que
passagem de um instante para o outro, razão por que dizemos que ela existe Hegel fez do campo histórico nos modos da metáfora e da metonímia:
apenas no espaço (72). A natureza orgânica, é verdade, representa um tipo de
desenvolvimento que se pode conceber como uma realização do potencial de Se relancearmos os olhos à história do mundo em geral, veremos um vasto quadro de
crescimento contido na semente; mas o indivíduo pode realizar ou pode não mudanças e atos [Taten], de formas infinitamente numerosas de povos, Estados, indivíduos, em
realizar esse potencial. Se realiza, chega a um fim que é preordenado por lei inquietante sucessão \Aufeinanderfolge] [ibid.].
natural - de modo que todo processo de crescimento levado a seu término é
exatamente igual a todos os outros, não havendo desenvolvimento de um indiví­ Esse espetáculo da sucessão de formas suscita um estado emocional que é
duo para outro, e nenhum desenvolvimento na totalidade da vida orgânica de bem diferente daquele que o espetáculo do caos originalmente descrito suscita:
uma espécie para outra. Aqui, na medida em que há movimento de qualquer
modo, não há desenvolvimento, apenas recorrência cíclica. Tudo o que pode penetrar na alma do homem e interessá-la - toda a nossa sensibilidade
As transições significativas na história, porém, revelam o tipo de proveito para a bondade, beleza e grandeza - é chamado à ação [Ibid.].
que muitas vezes intuímos estar presente, mesmo quando não podemos especi­
ficar-lhe o conteúdo, no final de uma peça trágica ou de um diálogo filosófico Ainda vemos a “ação e o sofrimento humanos predominantes”, mas
conduzido no modo dialético. Nele, quando alguma coisa morre, alguma outra também vemos algo semelhante a nós mesmos que “estimula nosso interesse
coisa nasce; mas aquilo que nasce não é simplesmente a mesma coisa em sua pró ou contra”, quer esse “algo” atraia a nossa atenção por sua “beleza,
essência que aquilo que morreu, como é na vida vegetal e animal. É alguma coisa liberdade e abundante variedade”, quer por sua “energia” exclusivamente
nova em que a forma anterior de vida - a ação da peça, a argumentação do (Ibid.).
diálogo - está contida dentro da forma ulterior de vida como seu material ou
conteúdo; vale dizer que é convertida de fim em si num meio para a consecução Às vezes vemos a massa mais ampla de algum interesse geral avançando com relativa
de um fim superior apenas obscuramente apreendido nos derradeiros clarões lentidão, e subsequentemente sacrificada a uma infinita complicação de circunstâncias fúteis, e
da resolução. assim dissipada em átomos. Então mais uma vez, com um enorme dispêndio de energia, produz-se
Essa percepção da natureza do processo histórico é construída sobre a um resultado trivial; enquanto, do que parece insignificante, provém um enorme resultado. Por
expansão sinedóquica do campo, metaforicamente apreendido e metonimica- todos os lados há a mais heterogênea multidão de eventos a nos arrastar para dentro do círculo de
mente compreendido, do acontecer histórico originalmente percebido como seu interesse, e quando um agrupamento desaparece logo surge outro em seu lugar [Ibid.].
“um panorama de pecado e sofrimento”. A dinâmica dessa expansão sinedó­
quica está assinalada na segunda grande caracterização hegeliana de todo o O primeiro pensamento geral que desponta em resposta ao espetáculo
campo histórico, agora concebido não somente como caos mas como mudança assim apreendido, “a categoria que primeiro se apresenta nesta incessante
também. mutação de indivíduos e povos, existentes por um momento e em seguida
A segunda caracterização que Hegel faz do campo histórico se inicia pelo desvanecendo-se”, é o de “mudança geral” (díe Verãnderung überhaupt). Essa
famoso apotegma, apreensão logo se transmuta num sentimento de “tristeza”, tal como aquele que
poderíamos sentir em presença das ruínas de algum Estado pujante, como
A história em geral é portanto o desenvolvimento do espírito no tempo, como a natureza é Roma, Persépolis ou Cartago. Mas a “consideração seguinte, que se alia” à da
o desenvolvimento da idéia no «poço [Ibid.]. simples mudança e que se origina do reconhecimento das coerências formais a
serem vistas no espetáculo, é esta: “que embora importe em dissolução, a
A palavra que se verte convencionalmente em inglês por development mudança subentende ao mesmo tempo a ascensão de uma nova vida - que
(desenvolvimento) neste contexto é a alemã Auslegung, literalmente um “esten­ embora a morte seja a conseqüência da vida, a vida é também a consequência
der, espalhar, ou expor”, com associações secundárias de “explanação” ou da morte” (72-73).
128 HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 129

O problema que de imediato se impôs a Hegel foi o da modalidade pela O conceito abstrato de mera mudança dá lugar ao pensamento do espírito a manifestar,
qual se há de compreender essa sucessão de coerências formais - isto é, como desenvolver e aperfeiçoar seus poderes em todas as direções que sua natureza multiforme pode
se há de pôr em enredo a seqüência de formas. E nos parágrafos que se seguirão seguir {Ibid.:, grifo acrescentado].
pode-se ver a diferenciação que ele fez entre três diferentes estruturas de
enredo que poderiam ser utilizadas para caracterizar esse processo concebido Os poderes que o espírito que se deve presumir governar esse processo
como sucessão de formas, diversamente da estrutura de enredo épica, que inerentemente possui só podem ser conhecidos “em conseqüência da variedade
poderia ser empregada para pôr em enredo o espetáculo de simples mudança de produtos e formulações que ele gera” (Ibid.). Isto quer dizer que o processo
na apreensão original do campo histórico como caos. histórico deve ser visto, não como simples movimento, mudança ou sucessão,
mas como “atividade”: “Der Geist handelt wesentlich, ermacht sich zu dem, was
Revertendo à natureza (isto é, ao modo metonímico de caracterizar
eran sich ist, zu einer Tat, zu seinem Werk; so wird ersich Gegenstand, so hat er
mudanças como tais) em busca de um análogo, essa sucessão de formas poderia
sich ais ein Dasein vorsich” (72 [99]). Assim foi com individualidades históricas,
ser concebida em uma de duas maneiras, ambas as quais poderiam ser denomi­
aqueles heróis trágicos que conseguiram deixar suas sociedades ao menos
nadas trágicas na medida em que dão crédito à apreensão do fato de que, na
significativamente transformadas em conseqüência de suas ações; e assim é com
natureza humana pelo menos, “embora a morte seja a conseqüência da vida, a
povos e nações inteiras, que são ao mesmo tempo beneficiárias e cativas das
vida é também a conseqüência da morte” (grifo acrescentado). Por exemplo, a
formas espirituais em que suas ações contra o mundo e em favor do mundo se
sucessão de formas poderia ser posta em enredo como transferência de um
manifestam. Isso indica que a vida de cada povo ou nação é, como a vida de
conteúdo para uma nova forma, como na doutrina oriental da metempsicose;
cada indivíduo heróico na história, uma tragédia. E o modo apropriado de pô-la
ou poderia ser concebida, não como uma transferência, mas como uma inces­
em enredo, a apreensão dela como realidade histórica, é o do drama trágico.
sante re-criação de uma nova vida das cinzas da velha, como no mito de Fênix
(73). Hegel qualificou de “admirável” a percepção contida nas concepções De fato, Hegel pôs em enredo as histórias de todas as formas civilizacionais que
orientais do processo do mundo, mas negou-lhes o estatuto de verdades filosó­ discerniu na história do mundo em termos trágicos. E em sua Enciclopédia das
ficas adquiridas, por dois motivos. Primeiro, essa percepção (“que embora a Ciências Filosóficas e nas Conferências sobre Estética, forneceu a justificação
para esse modo de elaboração de enredo como a modalidade mais elevada de
morte seja a conseqüência da vida, a vida é também conseqüência da morte”)
só é geralmente verdadeira com relação à natureza, e não especificamente historiografia reflexiva.
verdadeira com relação às individualidades naturais. Segundo, as simples no­ Em sua Filosofia da História, porém, ele se limitou a aplicar esse modo de
ções de transferência e de recorrência sucessiva não fazem justiça à variedade imaginar o processo de criação, ascensão, dissolução e morte a civilizações
de formas de vida que o processo histórico, diferentemente do processo natural, individuais. Não procurou justificar o modo trágico de elaboração de enredo,
revela à percepção. Como disse Hegel: mas simplesmente o pressupôs como o modo apropriado para caracterizar os
processos de desenvolvimento que é possível discernir nos ciclos vitais de uma
civilização específica, como a grega ou a romana. É possível pressupor esse
O espírito - consumindo o invólucro de sua existência - não apenas se transforma em outro modo porque é aquele em que qualquer história geral de uma civilização cujo
invólucro, nem se ergue rejuvenescido das cinzas de sua forma anterior; aparece exaltado [erheben],
prazo de vida expirou é convencionalmente posta em enredo por historiadores
glorificado [verklãrt], um espírito mais puro {ein reinerer GetwJ. Ele certamente faz guerra a si
mesmo-consome sua própria existência; mas nesta mesma destruição transmuda aquela existência profissionais. O historiador filosoficamente não-autoconsciente poderia extrair
numa nova forma, e cada fase sucessiva toma-se por sua vez um material sobre o qual ele se eleva conclusões errôneas de sua reflexão sobre o padrão de ascensão e queda,
[erhebt] a uma nova qualidade [Bildung] [Ibid]. marcado pelo aspecto de destino e inevitabilidade. Poderia concluir que esse
padrão não podia ter sido diferente e que, devido ao que é, só pode ser
compreendido como uma tragédia en gros.
E isso sugere outro motivo por que todo esse processo não pode ainda ser
reconhecido como prefigurador de uma resolução cômica. Continuam inexpli- A contemplação do processo histórico induz realmente a apreendê-lo
cados os princípios em virtude dos quais poderia ser admitida a apreensão do como uma seqüência de tragédias. O que originalmente aparecia como um
enredo da sucessão de formas. A elucidação desses princípios requer uma visão “espetáculo de paixões” épico transmuda-se numa seqüência de derrotas trá­
a partir de uma perspectiva no interior do processo, a fim de que não seja gicas. Cada uma dessas derrotas trágicas, porém, é uma epifania da lei que
apreendido como apenas uma sucessão de coerências formalmente iguais, mas governa toda a seqüência. No entanto, essa lei do desenvolvimento histórico não
antes como um tipo de processo autônomo de automanipulação, ações exerci­ é concebida como sendo análoga às espécies de leis que determinam a evolução
das “em diferentes modos e direções”, em que a forma anterior serve de ou a interação dos corpos físicos; não é lei natural. É, antes, a lei da história,
material, e estímulo, para a criação de sua sucessora (Ibid.). Dessa perspectiva: que é a lei da liberdade imaginada em todo projeto humano que culmina numa
resolução trágica. E essa lei configura o resultado basicamente cômico de toda
130 HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 131

a sucessão de formas que é imediatamente apreendida sob a aparência de natureza do espírito humano permite. Ela nunca é plenamente atingida, e, nessa
tragédia. assimetria entre a intenção geral e os meios e atividades específicas utilizadas
O escopo de Hegel é justificar a transição que se verifica desde a com­ para assegurar-lhe a realização, reside a falha trágica no coração de cada forma
preensão da natureza trágica de cada civilização específica para a apreensão de existência civilizada. Essa falha é percebida como o que realmente é nos
cômica do desenrolar do drama de toda a história. Da mesma forma que, na estágios avançados de um ciclo de civilização; ou melhor, quando essa falha se
Fenomenologia do Espírito, ele sugeriu que a visão cômica de Aristófanes era torna perceptível como o que realmente é, a civilização evidencia uma forma de
superior ao discernimento moral contido na visão trágica de Eurípides, em sua vida deteriorada e torna-se iminentemente moribunda. Quando essa falha é
meditação sobre a história do mundo procurou dotar toda a história de um percebida como o que realmente é - isto é, como uma contradição entre o ideal
sentido cômico que se fundamenta nas implicações de uma concepção mera­ específico que a civilização encarna e as atualizações específicas daquele ideal
mente trágica do curso da vida histórica em geral, que é responsável perante elas na vida costumeira, institucional, social, política e cultural -, o cimento que une
e que, no entanto, as transcende. a sociedade na devoção ao ideal, ao senso de piedade, dever, moralidade,
começa a esboroar-se. E

ao mesmo tempo o isolamento dos indivíduos uns dos outros e em relação ao todo faz seu
DA TRAGÉDIA À COMÉDIA
aparecimento [Ibid.].

No ciclo de atitudes morais, a comédia é logicamente posterior à tragédia, O povo começa a falar em virtude em vez de praticá-la; quer saber as
pois representa uma afirmação das necessidades da vida e de seus direitos razões por que deve cumprir seus deveres e encontra razões para não cumpri-
contra a compreensão intuitiva trágica de que todas as coisas existentes no los; passa a viver ironicamente: falando da virtude em público, praticando o vício
tempo estão condenadas à destruição. A morte de uma civilização não é privadamente, mas cada vez mais abertamente (76-77).
estritamente análoga à morte de um indivíduo, mesmo a de um indivíduo Pela transformação da prática em vício, porém, essa separação do ideal
heróico. Pois, assim como o indivíduo heróico encontra uma espécie de imor­ em relação ao real é em si uma purificação do ideal, que dessa forma se livra
talidade nas mudanças que efetua nas formas de vida do povo que ele modela das malhas da existência atualizada, uma oportunidade para que mentes con­
à sua vontade, assim, também, um povo heróico encontra uma espécie de cretas possam apoderar-se do ideal em sua essência, conceptualizá-lo e figurá-
imortalidade nas mudanças que efetua nas formas de vida da raça. Um grande lo. Assim elas preparam o ideal para liberá-lo do tempo e do lugar em que
povo não morre “uma morte simplesmente natural”, escreveu Hegel, pois um atingiu sua atualização e transmiti-lo através do tempo e do espaço para outros
povo “não é um mero indivíduo isolado, mas uma vida espiritual, genérica”. As povos, que por sua vez podem usá-lo como o material com que poderão mais
mortes de todas as civilizações são mais como suicídios do que mortes naturais, adiante especificar a natureza da idealidade humana em sua pureza essencial.
continuou ele, porque como gêneros contêm dentro de si suas próprias negações
Assim, disse Hegel, se quisermos ter uma idéia específica do que os gregos
- “na própria generalidade que os caracteriza” (75).
eram, teremos de ir aos registros em que eles singelamente revelaram os modos
Um povo impõe a si mesmo uma tarefa, que, considerada em sentido geral, de suas relações práticas em sociedade. Mas se quisermos conhecer essa idéia
há de simplesmente ser alguma coisa de preferência a nada. Sua vida inteira está em sua generalidade, sua pura idealidade, iremos “achá-la em Sófocles e
presa à, e sua coerência formal característica se expressa em, sua dedicação Aristófanes, em Tucídides e Platão” (76). A escolha dessas testemunhas do ideal
(consciente e inconsciente) a essa tarefa. Mas, como tarefa, esse esforço de ser não é casual; elas representam as formas avançadas da consciência grega na
alguma coisa requer meios cuja especificidade está implícita na concretude da tragédia, na comédia, na historiografia e na filosofia, respectivamente, e devem
aplicação deles a problemas antes específicos que gerais. As tarefas gerais, ser distinguidas com bastante nitidez de seus predecessores “ingênuos” (Ésqui-
como apenas subsistir, reproduzir-se, cuidar dos filhos, proteger-se dos elemen­ lo, Heródoto, os filósofos pré-socráticos). A captação da idealidade de um povo
tos, atividades de povos pré-civilizados, realizam-se em respostas a inclinações ou civilização pela consciência é um ato que ao mesmo tempo o “preserva” e
e instintos humanos gerais representados pelo costume, “uma existência sensual “dignifica”. Ainda que o povo descambe em nulidade e catástrofe eventual,
meramente externa que cessou de se lançar entusiasticamente na direção de seu subsistindo como população mas declinando como nação poderosa (no sentido
objeto” (74-75). Mas, para cumprir a tarefa de se tornar algo particular e distinto político e também cultural), o espírito desse povo é assim salvo, através da
da grande maioria da humanidade, um povo precisa dar-se uma tarefa ideal e consciência, em pensamento e arte como uma forma ideal.
certas tarefas práticas, pois “o ponto mais alto do desenvolvimento de um povo
é este: ter alcançado uma concepção de sua [própria] vida e condição; ter Conquanto então, por um lado, o espírito anule a realidade, a permanência daquilo que
reduzido suas leis, suas idéias de justiça e moralidade a uma ciência” (76). Aqui ele é, ele ganha, por outro lado, a essência, o pensamento, o elemento universal daquilo que só
a unidade do ideal e do real é atingida tão completamente quanto a própria de foi [77].
META-HISTÓRJA 133
132 HAYDENWHITE

um homem virtuoso e como revelação de seu relacionamento com o povo


Essa captação, pela consciência, da essência interior de um modo finito ateniense, a quem ele ensinou um novo princípio de moralidade. Sócrates,
de atualização do espírito num povo heróico deve ser vista, não como apenas escreveu Hegel, foi o “inventor da moralidade”, e sua morte se tornou neces­
uma preservação, ou mumificação, do ideal que ele representa, mas antes como sária como um dos atos pelos quais aquele princípio foi confirmado como regra
a alteração do espírito do próprio povo-a elevação de seu princípio a um “outro prática de vida e não simplesmente afirmado como um ideal (269). Sua morte
princípio realmente superior”. É essa elevação, pela consciência e na consciên­ foi a um só tempo a morte do professor Sócrates e a elevação do princípio pelo
cia, do ideal a outro e superior princípio que oferece justificação para a crença qual ele viveu e morreu à condição de modelo concreto da atividade moral.
na natureza basicamente cômica, natureza providencial, do “panorama de Sua morte mostrou não somente que os homens podem viver de acordo com
pecado e sofrimento” que a percepção imediatamente encontra nos dados da um princípio moral mas também que, quando morrem em nome desse princí­
história como uma “combinação simplesmente verdadeira” dos fatos. E é da pio, transformam-no num ideal pelo qual outros podem viver. O reconheci­
“mais alta importância”, observou Hegel, que entendamos “o pensamento mento de que essa “morte” é também o meio para a transformação da vida
subentendido nessa transição [dieses Übergangs]”. O “pensamento” aludido é o humana e da própria moral em um nível de autoconsciência maior do que a
contido na contradição do crescimento e desenvolvimento humano, isto é, “vida” que conduziu a ela era, para Hegel, a intuição inspiradora da visão
aquele segundo o qual, embora o indivíduo continue a ser uma unidade ao longo cômica e da mais alta compreensão do processo histórico a que a mente finita
dos graus de seu desenvolvimento, na realidade ele se eleva a uma consciência pode aspirar.
superior de si e de fato passa de um estágio mais baixo e restrito de consciência A visão cômica, escreveu Hegel na Fenomenologia, transcende o medo do
para um mais alto e mais abrangente. Assim também, disse Hegel, um povo se “destino”. É
desenvolve, ao mesmo tempo continuando a ser o que foi em seu ser essencial
como povo determinado e desenvolvendo-se até que “alcança o grau da univer­
salidade”. Nesse ponto, concluiu Hegel, “reside a necessidade fundamental, a o retomo de tudo o que é universal à certeza de si, certeza que, em consequência, é esta completa
perda do medo de tudo que é estranho e desconhecido, e completa perda de realidade substancial
necessidade ideal de mudança [Verãnderung]”, que é “a alma, a consideração
da parte do que é desconhecido e externo. Tal certeza é um estado de boa saúde espiritual e de
essencial, da compreensão filosófica da história” (78). auto-abandono a ele, por parte da consciência, de modo que, fora desse tipo de comédia [aristofâ-
Essa “compreensão”, então, se funda numa apreensão do processo histó­ nica], não deverá ser encontrado em parte alguma [748-49].
rico como desenvolvimento rumo ao grau de universalidade, no qual o espírito
em geral “se eleva, e se completa, a uma totalidade autocompreensiva” (Tbid.). Esta última observação, de que o estado de “boa saúde espiritual e de
A necessidade da destruição última de toda civilização por suas próprias mãos é auto-abandono a ele (...) não deverá ser encontrado em parte alguma” fora de
sublimada numa apreensão das instituições e modos de vida daquela civilização uma certa visão cômica, sugere que a natureza cômica do próprio processo
como os únicos meios, modos abstratos de organização, pelos quais seus fins histórico só pode ser apreendida (nunca compreendida a não ser em termos
ideais se realizam. Não são realidades eternas e não devem ser consideradas abstratos) como uma possibilidade que goza do crédito, com base no testemu­
como tais. A morte delas, portanto, deve provocar menor “ansiedade” retros­
nho histórico racionalmente processado, de alta probabilidade, porque, como
pectiva do que a morte de um amigo ou mesmo a morte daqueles heróis trágicos disse Hegel na introdução à sua Filosofia da História, a história só tem a ver com
com cuja excelência pode ser identificada, a tal ponto que podemos sentir-lhes
o passado e o presente', quanto ao futuro não pode fazer afirmações. Entretanto,
a morte como uma indicação da nossa.
com base em nossa compreensão do processo histórico como um desenvolvi­
Hegel apresentou sua percepção das instituições e dos modos de vida na mento progressivo que, começando em tempos remotos, chegou ao nosso
seguinte metáfora: próprio presente, a natureza dual da história como ciclo e progressão se torna
clara para a consciência. Podemos agora ver que
A vida de um povo amadurece a gestar um certo fruto; sua atividade visa a completa
manifestação do princípio que ela encarna. Mas esse fruto não cai de volta no seio do povo que o
produziu e maturou; pelo contrário, toma-se uma poção venenosa para ele. Essa poção venenosa a vida do espírito sempre presente é um círculo de concretizações progressivas, que olhadas sob
ele não deixa em paz porque sente por ela uma sede insaciável: o gosto da poção é o aniquilamento um aspecto ainda existem umas ao lado das outras, e só quando olhadas de outro ponto de vista
dele, embora ao mesmo tempo seja a ascensão de um novo princípio [Ibid.]. aparecem como passadas [PhiL of Hist., 79].

A comparação desse trecho com aqueles em que Hegel descreveu e E isso significa que os “graus que o espírito parece ter deixado para trás”
comentou o significado da vida e morte de Sócrates para a cultura ateniense não estão perdidos e abandonados mas estão ainda vivos e são recuperáveis “nas
como um todo ilumina o uso da metáfora da “poção envenenada” que, uma profundezas do presente” (Ibid.). Essas palavras e essa esperança, com que
vez consumida, põe termo a uma vida velha e estabelece o princípio de uma Hegel concluiu a introdução à Filosofia da História, ecoam o parágrafo final da
vida superior. A morte de Sócrates foi trágica como espetáculo da morte de
134 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 135

Fenomenologia do Espírito, com que ele havia inaugurado a fase madura de sua através de uma redução metonímica e expansão sinedóquica do processo em
carreira filosófica: que seus diversos modos possíveis de relacionamento se explicam, para uma
compreensão irônica da ambigüidade do “sentido” do processo - até chegar a
A meta, que é o Conhecimento Absoluto ou o Espírito conhecendo-se a si mesmo como repousar, finalmente, na mais geral identificação sinedóquica de todo o proces­
Espírito, encontra sua senda na recordação de formas espirituais [Geister] como são em si mesmas so como um drama de significação essencialmente cômica.
e como completam a organização de seu reino espiritual. A conservação dessas formas, observada
pelo lado da existência delas em liberdade que aparecem na forma de contingência, é a História;
Assim, o modo de explicação de todos os eventos históricos é imediata­
observada pelo lado de sua organização intelectualmente compreendida, é a Ciência dos modos mente metonímico e sinedóquico, o que justifica a caracterização de qualquer
como o conhecimento aparece. Juntas as duas, ou a História [intelectualmente) compreendida ato total específico do drama como uma seqüência de coerências formais
[òegnflfen], formam ao mesmo tempo a recordação e o Gólgota do Espírito Absoluto, a realidade, governadas por leis causais (embora as leis de causalidade invocadas devam ser
a verdade, a certeza de seu trono, sem o que ele estaria inanimado, solitário e abandonado. Só as do espírito, ou liberdade, e não as da natureza, ou determinância). Por
conseguinte, a construção do enredo de qualquer segmento dado de todo o
O cálice deste reino de espíritos
processo deve realizar-se no modo trágico, que é o modo em que o conflito entre
Oferta a Deus a espuma de Sua Infinitude.
ser e consciência se resolve como uma elevação da consciência a uma percepção
mais alta de sua própria natureza e, simultaneamente, da natureza do ser, uma
Posso agora traçar o gráfico das dimensões e do vigor da concepção
epifania da lei. Mas as implicações ideológicas da história assim interpretada e
hegeliana do conhecimento histórico como modo de explicação, representação
assim posta em enredo continuam ambíguas, porque num sistema causal não há
e implicação ideológica. Começo por notar que o todo dessa concepção é um
nem certo nem errado, mas simplesmente causa e efeito, e num sistema formal
esforço continuado no sentido de manter a ironia essencial da condição humana
não há nem melhor nem pior, mas simplesmente o objetivo da coerência formal
sem rendição ao ceticismo e ao relativismo moral a que o racionalismo iluminista
e os meios de alcançá-lo.
tinha sido conduzido por um lado ou ao solipsismo a que fora levado o
intuicionismo romântico por outro. Esse objetivo é alcançado pela transforma­ Nessa interação de causas e efeitos e meios e fins, porém, a consciência
ção da ironia em método de análise, base para a representação do processo irônica percebe os efeitos de que toda a interação desses elementos é causa e o
histórico, e num meio de afirmar a ambigüidade essencial de todo o conheci­ fim de que é o meio - isto é, a progressiva elevação da própria humanidade
mento real. O que Hegel fez foi agrupar as estratégias metonímicas (causais) e através da consecução de formas superiores de autoconsciência, o reconheci­
metafóricas (formalistas) de reduzir os fenômenos à ordem dentro das modali­ mento de suas diferenças em relação à natureza, e a progressiva elucidação da
dades de caracterizações sinedóquicas por um lado e as certezas autodissolven- finalidade do esclarecimento racional, da liberação e da integração humana que
tes da ironia por outro. A principal certeza a dissolver-se, porém, é a certeza o processo que se estende do passado ao presente manifesta como tendência
intelectual, o tipo de certeza que alimenta o orgulho da posse de uma verdade inegável. Assim, toda a série de dramas patéticos, épicos e trágicos contidos no
putativamente absoluta acerca do todo. As únicas verdades “absolutas” permi­ registro histórico são anulados e incorporados num drama de significação
tidas à inteligência finita são verdades “gerais” como “A verdade é o todo” e essencialmente cômica, numa comédia humana, numa teodicéia que é uma
“O Absoluto é a vida”, ambas as quais são verdades antes liberadoras que justificação não tanto dos caminhos de Deus para o homem quanto dos cami­
repressivas, na medida em que tacitamente asseveram que a verdade absoluta nhos do próprio homem para si mesmo.
não é possuída por nenhum indivíduo isolado. Mas esse tipo de certeza se Assim é sugerido o desfecho essencialmente cômico, a condição basica­
dissolve de modo a promover aquele outro tipo de certeza, a autocerteza moral, mente integrativa e reconciliatória, para que tende todo o processo. O senso
que é exigida para a vivência de uma vida efetivamente “livre”, a verdade estético afirma isso como sendo a forma que o processo histórico assume na
existencial de que tudo é precisamente como deve ser, inclusive o desejo com consciência; o senso moral confirma-o como aquilo que a autocerteza humana
relação ao que “deve ser”, o que significa que o indivíduo está justificado ao exige que seja; e o senso intelectual, representado pela razão, explica os princí­
afirmar esses desejos como seu direito contra o todo social desde que tenha a pios pelos quais tanto a percepção quanto o desejo se tornam plausíveis. Em
vontade, a energia e os meios de fazê-lo. Ao mesmo tempo significa que a última análise, o máximo que a consciência pode extrair da reflexão sobre a
vontade do grupo, a concepção da coletividade daquilo “que deve ser”, que é história é apenas uma apreensão estética para a qual há bons fundamentos
habitualmente idêntico a “o que é”, é igualmente justificada, de modo que o morais e racionais. As leis que regem o todo, bem como a forma que o todo
conflito de individualidades finitas no terreno da história não pode ser prejul- finalmente assumirá, só podem ser especificadas pelo pensamento em seus
gado quanto a seu valor intelectual ou moral antes do conflito em que as termos mais gerais.
pretensões de domínio e a obediência da massa de homens sejam finalmente
arbitradas. No fim, então, pode-se ver que toda a filosofia da história de Hegel O cálice deste reino de espíritos
passou de uma caracterização metafórica original do processo do mundo, Oferta a Deus a espuma de Sua Infinitude.
136 HAYDENWHTTE META HISTÓRIA 137

Mas a “coruja de Minerva” só fará seu voo final no arremate do dia conjunto exaustivo de causas, a apenas uma coerência formal (isto é, caso
cósmico. Até lá o pensamento poderá falar da verdade da história apenas dentro genérico), ou a uma totalidade fechada de relacionamentos. Em outras palavras,
de províncias finitas de significado e na antevisão do momento em que a verdade a identificação de um estado de coisas histórico como constitutivo de uma fase,
do todo será antes vivida que simplesmente pensada. a explicação de por que ela é o que é, a caracterização de seus atributos formais,
e as relações que ela mantém com outras fases de todo o processo são global­
mente concebidas como tendo igual validade como elementos da caracterização
O ENREDO DA HISTÓRIA DO MUNDO total das fases e de todo o processo em que aparecem. Evidentemente, para
aqueles que consideram que Hegel não é senão um praticante do método
apriorístico de representação histórica, todas essas maneiras de caracterizar
Agora deve ser uma questão relativamente simples explanar os princípios
uma fase da história de uma civilização não são outra coisa senão projeções das
específicos de explicação e de elaboração de enredo que Hegel utilizou em sua
categorias da dialética: o em si (tese), o para si (antítese) e o em e para si
Filosofia da História propriamente dita. Esses princípios têm interesse em si
(síntese), seguida por uma negação da síntese, o que por si só implica uma nova
mesmos, como produtos de uma inteligência histórica profunda e bem-informa-
tese (que não é senão um novo em si), e assim por diante, indefinidamente.
da, cuja agudeza e cultura justificam por si sós seu estudo. Mas seu valor real
È verdade que se poderia efetuar tal redução conceptual do método de
reside na textura da narrativa, porquanto Hegel iluminou um ponto aqui,
análise de Hegel, e de uma forma que não ofendesse o próprio Hegel, desde
sombreou um contexto ali, encaixou adiante um aparte especulativo que as
que se considerassem essas categorias como fundamentais tanto para a lógica
gerações subseqüentes teriam de investigar anos a fio, e de modo geral dominou
quanto para a ontologia e como a chave para a compreensão de qualquer
o registro histórico com uma arrogância que só se justifica por sua profundida­
processo, seja do ser, seja da consciência.
de. No entanto, podemos com proveito alongar-nos sobre um ou dois pontos do
texto, não somente para aclarar as opiniões de Hegel sobre a natureza da Mas, de acordo com minha maneira de caracterizar seu pensamento, em
explicação e representação histórica em geral, mas também para demonstrar a função dos modos lingüísticos utilizados em suas caracterizações, não só dos
consistência com que ele aplicou seus próprios princípios explícitos de análise estágios do ser e da lógica, mas também da história, prefiro considerar essas
histórica. fases como conceptualizações de diferentes modos de relacionamento em geral
É um lugar-comum dizer que Hegel decompôs a história de qualquer tal como foram geradas pela percepção por parte de Hegel dos níveis em que
civilização determinada e da civilização em geral em quatro fases: o período de a linguagem, e portanto a própria consciência, tinha de operar.
nascimento e crescimento original, o de maturidade, o de “velhice” e o de Vale recordar que Hegel caracterizou Roma como “a prosa da vida”, em
dissolução e morte. Assim, por exemplo, a história de Roma é concebida como contraste com a “prístina poesia espontânea” do Oriente e “a poesia harmonio­
estendendo-se em sua primeira fase da fundação até a Segunda Guerra Púnica; sa” da maneira de viver dos gregos (Phil. of Hist. ,288 [350]). Essa caracterização
em sua segunda fase, da Segunda Guerra Púnica até a consolidação do princi­ lembra a distinção de Vico entre as idades dos deuses, dos heróis e dos homens.
pado por César; em sua terceira fase, dessa consolidação até o triunfo do Os romanos não viviam de modo “natural”, e sim “formal”, vale dizer, levavam
cristianismo; e, em sua última fase, do século III até a queda de Bizâncio. Esse uma vida de extrinsequidade e de relacionamentos mediatizados pela força e
movimento através de quatro fases representa quatro níveis de autoconsciência pelo ritual, uma vida fraturada que só se conservava unida graças ao empenho
civilizacional: as fases do em si, do para si, do em para si, e do por, em e para com que agiam nas esferas práticas da política, do direito positivo e da guerra,
si. Essas fases também podem ser tomadas como demarcadoras dos elementos o que lhes deixava pouca energia ou vontade para criar uma arte superior ou
de um drama clássico, com suas fases de pathos, agon, sparagmos e anagnorisis, uma religião ou filosofia profunda, como os gregos criaram. Em suma, os
que têm seus equivalentes espaciais na consolidação e dissolução dos elementos romanos apreendiam o mundo no modo da metonímia (isto é, em termos de
do espírito romano: conflito com inimigos estrangeiros, expansão exterior na contigüidades) e esforçavam-se por alcançar uma compreensão dele num siste­
criação de um império, uma meia-volta sobre si mesma, e uma dissolução que ma de relações puramente sinedóquico. A “realidade” romana não era senão
preparou o terreno para o advento de um novo poder, a cultura germânica, da um campo de força, sua idealidade um mundo de relacionamentos formalmente
qual a própria Roma foi vassala e vítima. ordenados - no tempo (culto dos antepassados; posse de filhos, mulheres e
É digno de nota que se possa encarar essas fases como indicadoras de filhas como propriedade do pater famílias; direito das sucessões etc.) e no
relações existenciais, como maneiras de explicar esses relacionamentos, como espaço (estradas, exércitos, procônsules, muralhas etc.). Ironicamente, tornou-
maneiras de representá-los, ou como maneiras de simbolizar-lhes o “significa­ se vítima de uma cosmovisão e de um espírito que apreendiam sua realidade e
do” dentro de todo o processo do desenvolvimento histórico romano. O impor­ seu ideal em termos precisamente opostos. O cristianismo representa a negação
tante é que, para Hegel, o que Roma foi em qualquer estágio determinado de da eficácia da força para a conquista do espaço e do tempo e a negação do valor
sua evolução não fosse considerado redutível ao que ela fez, a um efeito de um de quaisquer relações meramente formais. O cristão apreende o mundo como
138 HAYDENWHETE META-HISTÓRIA 139

um termo de uma metáfora, da qual o outro termo, dominante, aquele pelo qual unidade para a afirmação do ideal como individualidade - isto é, como causa
o mundo recebe seu sentido e identidade, é concebido como existente em outro autônoma-, vale dizer, redução metonímica. Como disse Hegel, “aquilo que no
mundo. E, longe de reconhecer os direitos de uma compreensão metonímica Oriente está dividido em dois extremos - o substancial como tal e a individua­
ou irônica do mundo, o cristão busca a transcendência de todas as tensões entre lidade absorvida nele - reúne-se aqui. Mas só imediatamente esses princípios
o ideal e a realidade que esses próprios modos de compreensão implicam. distintos estão em união; e conseqüentemente envolvem o mais alto grau de
Logo que percebemos a dinâmica do sistema através do qual Hegel contradição” (107). Por isso é que, na opinião de Hegel, a civilização grega só
caracterizou uma dada fase do processo histórico do mundo, podemos entender pareceu ser uma unidade concreta porque floresceu muito depressa, apenas
mais claramente em termos atuais como ele chegou a suas concepções da origem para definhar e morrer com a mesma rapidez com que tinha surgido. Faltou o
e evolução da história do mundo e por que dividiu-a em quatro períodos princípio em virtude do qual o próprio modo de conceber a união da parte com
principais. Essa divisão corresponde aos quatro modos de consciência repre­ o todo era possível. Roma concebeu esse modo de relacionamento, que era o
sentados pelas modalidades da própria projeção tropológica. Por exemplo, o da sinédoque, mas só formalmente, abstratamente, como dever, pujança, ou
estado de selvageria pode ser assimilado ao estágio em que a consciência poder. Sua “seriedade” representou a transição da história para a maioridade:
humana vive na apreensão de nenhuma diferença essencial entre ela mesma e “Pois a verdadeira maioridade não age nem de acordo com o capricho de um
o mundo da natureza; em que o costume dita a vida sem qualquer reconheci­ déspota, nem em obediência a um hábil capricho próprio; mas trabalha para o
mento das tensões interiores que poderiam ser geradas na sociedade pelo objetivo geral, objetivo em que o indivíduo perece e alcança seu objetivo
direito do indivíduo a aspirar a alguma outra coisa que não aquilo que o costume particular exclusivamente naquele objetivo geral” (Jbid.).
dita como possível aspiração; na ignorância, na superstição e no medo, sem Até aqui caracterizei as três primeiras fases de um enredo trágico clássico,
qualquer percepção de uma meta específica para o povo como uma totalidade; no qual a primeira fase representa opathos, ou estado geral do sentimento, que
sem noção alguma de história, mas num presente infindável; sem nenhuma dá início à ação; a segunda representa o agony ou conflito, que a leva adiante; e
consciência de qualquer idéia abstrata que pudesse gerar reflexão religiosa (em a terceira representa o dilaceramento do tema, o sparagmos, que cria as
contraste com a mítica), artística (em contraste com a artesanal) e filosófica (em condições do dénouement e leva a ação para uma resolução (anagnoriííj). As
contraste com a concreta); num estado antes de repressão que de moralidade, três fases desse drama não deverão, porém, ser resolvidas no modo da tragédia,
que implica a capacidade de escolher; e sem qualquer lei que não seja o domínio muito embora cada fase descreva um padrão de ascensão e queda trágica. A
do mais forte. fase da reconciliação (anagnorisis) para a qual a ação é impulsionada pela
A transição da selvageria para as grandes civilizações do Oriente e do contradição essencial da civilização romana e seu espírito é marcada, não pela
Oriente Próximo, as culturas arcaicas como são chamadas, pode ser assimilada epifania da lei férrea do destino ou da justiça que a tragédia grega clássica
reclamava como sua resolução, mas antes pela demarcação do que parece ser
ao despertar da consciência para a possibilidade da apreensão metafórica, que
é, ela mesma, inspirada pelo senso de diferença entre aquilo com que se está tal lei dentro da visão cristã (cômica) da libertação final do homem do seu
familiarizado e aquilo que é desconhecido. A metáfora é o modo de preencher mundo e de sua reconciliação final com Deus. A visão trágica é anulada na visão
a lacuna entre essas duas ordens de realidade apreendida, e nas civilizações do do todo, que transcende a ironia implícita na resolução da tragédia clássica, na
antigo Oriente estão exemplos do que é essencialmente um modo metafórico qual, embora algo novo se revele à consciência, esse algo novo está sempre
de vida e consciência. O Oriente, escreveu Hegel, é “consciência não reflexiva contrastando com o fundo de um mistério ainda maior, que é o Destino em si.
- existência substancial, objetiva, espiritual (...) com a qual o sujeito mantém Ainda que a fase da história representada pela cristalização de uma nova
uma relação sob a forma de fé, confiança, obediência” (105). Assim, quando civilização na Europa Ocidental pudesse dar a impressão de ser o ingresso da
Hegel equiparou o Oriente ao período de infância na história, sugeria - como humanidade em sua “velhice”, essa conclusão só se justificaria se o análogo
Vico sugerira antes - que o modo de compreender o mundo que emerge naquele adequado da história fosse o do processo natural. Mas, argumentou Hegel, a
lugar num momento determinado é o da simples identificação metafórica do história é, acima de tudo, “espírito”, o que significa que na história, em
sujeito com o objeto. contraposição à natureza, a “maturidade” é a modalidade de “força” e “união”
A transição da infância da história para sua adolescência segue o caminho entrevista na visão cristã da “Reconciliação” da Criação com o Criador (109).
da Ásia Central, onde a individualidade do sujeito se expressa no “tumulto” e A visão trágica é assim transcendida na apreensão de todo o processo do
“turbulência” das tribos que ali se levantaram e desafiaram a ordem monolítica mundo com base na analogia, não com a natureza ou a tragédia clássica ou
imposta pelo governante ao súdito, com base numa unidade que se percebe mesmo a comédia clássica (que somente afirma o direito da vida contra a visão
existir mas que ainda não tem seu fundamento na autoconsciência comum (Jbid., do destino oferecida na tragédia), mas com a “Divina Comédia” cristã, em que,
106). A transição para o mundo grego, a fase da adolescência, passou da no fim, na expressão épica que Dante deu à idéia informadora de sua obra,
apreensão do isolamento do indivíduo dentro da identificação metafórica da tudo afinal vem a repousar em seu lugar apropriado na hierarquia do ser. Mas
140 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 141

a visão cristã é, ela mesma, apenas uma apreensão metafórica da verdade do


todo. Sua articulação deve ser efetuada através do agon e sparagmos de sua é, intuitivamente, metaforicamente. Mas, uma vez que a união do homem com
relação com o mundo, o que leva a civilização ocidental através do conflito da a natureza, mediatizada apenas pelo costume, se rompe, e a consciência aban­
Igreja e Estado na Idade Média e do conflito das nações nos primórdios do dona as apreensões míticas (ou ingenuamente poéticas) do mundo e passa a
período moderno àquele ponto em que todo o processo da história é finalmen­ uma apreensão da distância entre a consciência e seu objeto (que é o pressu­
te compreendido em princípio como o drama da unificação do homem com posto da existência prosaica ingênua), pode-se dizer que tem início a história,
sua própria essência, vale dizer liberdade e razão, e aponta para o tempo em porque o desenvolvimento histórico, em contraste com a primitiva mudança e
que a perfeita liberdade será a perfeita razão e a razão liberdade, a verdade evolução, só é possível dentro do contexto de uma pressentida contradição entre
do todo, que é o Absoluto, o qual, como disse Hegel, não é senão a própria a consciência e seu objeto. A consciência humana vivência essa tensão como
vida na plena compreensão do que ela é. uma carência que ela procura superar pela imposição de uma ordem, cujas
Isso quer dizer que Hegel podia “colocar” seu próprio tempo dentro de quatro formas aparecem como as subfases do desenvolvimento histórico orien­
uma perspectiva que era manifestamente providencialista por sua natureza mas tal: chinesa, indiana, persa e egípcia sucessivamente.
que, pelo enfoque, não apelava para a fé ingênua ou a crença convencional; ao A própria sucessão dessas quatro fases da civilização oriental pode ser
contrário, fundamentava-se em dados empíricos e na apreensão racional do que compreendida tanto como um drama trágico em quatro atos quanto como um
esses dados significam. O período da Revolução representava para ele o ponto processo em que a consciência passa da apreensão puramente metafórica de
culminante de um período agonístico em que as nações tombavam desagregadas seus projetos civilizacionais, através da metonímia e da sinédoque, para a
em sua alteridade, mas levavam dentro de si os princípios da própria coerência divisão e dissolução irônica. Todo o processo deve ser concebido, de acordo
interna e dos relacionamentos intrínsecos entre elas. Esses princípios represen­ com Hegel, sob o aspecto da conquista da ordem através da imposição de uma
tavam, nas formas sinedoquicamente compreendidas em que Hegel os ordenou vontade arbitrária a materiais humanos (111). A China é, assim, caracterizada
como partes para o todo, as bases da crença na unificação última do mundo como um “despotismo teocrático” que opera no modo de identificação (meta­
numa nova forma de Estado, forma que só pode ser especificada conjetural­ fórica) do súdito (político) com o soberano. Nenhuma distinção formal se faz
mente. A América e a Rússia são prefiguradas como possibilidades para o na civilização chinesa entre as esferas privada e pública, entre moralidade e
desenvolvimento de novos tipos de Estados no futuro, mas o conhecimento legalidade, entre passado e presente, ou entre os mundos interior e exterior. Os
histórico e a compreensão filosófica desse conhecimento têm de deter-se ante imperadores chineses reivindicavam em princípio a soberania sobre o mundo,
o fato de que só são passíveis de consideração aquilo que já ocorreu e aquilo embora fossem incapazes de exercê-la. É um mundo de pura subjetividade,
que está ocorrendo. No máximo podem falar de possibilidades de desenvolvi­ ainda que essa subjetividade esteja concentrada, não nos indivíduos que formam
mento futuro por extensão lógica das tendências já discernidas em todo o o império chinês, mas no “chefe supremo do Estado”, que é o único livre
processo e podem sugerir as formas através das quais o desenvolvimento futuro (112-13).
deve passar na transição da corporificação concreta do espírito humano no
Estado-nação para o Estado-mundo que suas integrações realizadas auguram.
Mas, disse Hegel, no “segundo reino - o reino indiano - vemos a unidade
Que essas formas possuirão, vistas do contexto de um nível superior de da organização política (...) rompida. Os vários poderes da sociedade aparecem
integração de consciência e ser, os mesmos relacionamentos modais que aque­ divididos e livres uns em relação aos outros”. As castas estão definidas, mas
les por que têm passado as fases individuais de todo o processo histórico e por “considerando a doutrina religiosa que as estabeleceu, assumiam o aspecto de
que passou todo o processo histórico através dessas fases, Hegel sugeriu que distinções naturais”. Elas existem no modo da separação causalmente determi­
devia ser verdade, porquanto essas formas são as formas da própria consciên­ nada - isto é, metonímia - e em constante tensão agônica, em contraste com o
cia. A história do mundo só pode ser compreendida em tais termos, pois estas pathos que formalmente unia o governante e os governados, o sujeito e o objeto,
são as modalidades de consciência em suas dimensões de inteligência, emoção no reino chinês metaforicamente orientado. Assim, também, na índia, o despo­
e vontade. A dinâmica interna de uma única fase do processo simboliza a tismo teocrático deu lugar à aristocracia teocrática, com uma correspondente
dinâmica do todo. perda de ordem e direção. Visto que se presume ser a separação inerente à
Por exemplo, o “enredo” da história oriental é em si analisável em quatro própria natureza do cosmos, não pode haver ordem e direção comum na
fases. Hegel caracterizou-lhe o início como uma ruptura com os processos totalidade. O princípio dessa civilização “enuncia a mais severa antítese - a
puramente orgânicos da existência selvagem em que ocorreram a difusão da concepção da unidade puramente abstrata de Deus e dos poderes puramente
linguagem e a formação das raças. A consciência histórica como tal não conhece sensualistas da natureza. A conexão dos dois é apenas uma mudança constante
e não pode conhecer essa existência primitiva. O homem só a conhece como - um incessante precipitar-se de um extremo ao outro -, um furioso caos de
mito e só pode (deu a entender Hegel) compreendê-la no modo do mito - isto variação estéril, que deve parecer loucura a uma consciência inteligente, ade­
quadamente regulada” (113).
142 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 143

O princípio em virtude do qual é possível superar essa separação e afirmar caracterização do enigma da existência humana como adivinhação é ainda outro
a unidade do ser humano em bases mais adequadas à sua tradução em princípios meio de indicar a natureza essencialmente cômica de toda a indagação histórica.
sociais e políticos - isto é, a apreensão (sinedóquica) da natureza espiritual de Não é necessário aqui tratar de toda a articulação do drama da história
todo ser - apareceu na Pérsia, onde, porém, esse “espírito” era ainda imaginado humana que Hegel apresentou na Filosofia da História. O importante é assinalar
em termos de seu análogo material, a pura luz. Assim, escreveu Hegel: que Hegel propôs que nos considerássemos atores num drama que, embora
incognoscível em seu desfecho real, revela a ordem e continuidade de uma peça
A China é peculiarmente oriental; a índia poderíamos comparar com a Grécia; a Pérsia, bem-urdida ou de um argumento dialético, e que, portanto, nos fornece boas
por outro lado, com Roma [Jbid.]. razões para crer que a resolução desse drama não só não será insignificativa
como não será nem mesmo trágica. A visão trágica, é dado o que lhe é devido
Pois não somente o poder teocrático apareceu na Pérsia como monarquia como meio de iluminar determinado aspecto de nossa existência e determinada
como ainda o princípio de que se valia para exercer sua autoridade, o princípio fase tanto da evolução de uma cultura específica quanto da evolução da civili­
espiritual, era interpretado materialmente, e portanto não dispunha de meios para zação em geral. Mas ela é encerrada dentro da perspectiva superior da natureza
conceber seu ideal consciente, o regime da íei, em termos que realmente cômica do todo. Assim também os vários modos pelos quais apreendemos o
mundo e o compreendemos na consciência - os modos da metáfora, da meto-
permitissem o reconhecimento da dignidade do súdito. A unidade da Pérsia era
nímia e da sinédoque - recebem o que lhes é devido como meios a serviço da
concebida em função do “sol benfazejo” que brilha igualmente para todos,
aglutinando as partes no todo num relacionamento puramente extrínseco que consecução daquela consciência superior da natureza imperfeita e fragmentária
é, porém, entendido e vivenciado pelo súdito como benéfico (114). Como em de qualquer compreensão determinada do mundo que é a ironia.
qualquer coerência meramente formal em que o princípio da relação da parte Além dessa postura irônica não podemos ir à ciência, porque, visto que
com o todo é apreendido como fundamental, o império persa permitiu a existimos na história, jamais poderemos conhecer a verdade final a respeito da
cristalização e o desenvolvimento de povos diferenciados, como os judeus, no história. Podemos, porém, entrever a forma que aquela verdade assumirá - sua
entendimento equivocado de que é possível tolerar que tais partes se desenvol­ forma como harmonia, razão, liberdade, a unidade de consciência e ser que é
vam sem fraturar ou rebentar a unidade supostamente espiritual do todo (Ibid.). intuída na religião, metaforicamente figurada na arte, metonimicamente carac­
Que o desenvolvimento da parte de modo a não ameaçar a unidade do terizada na ciência, sinedoquicamente compreendida na filosofia e ironicamen­
todo é impossível provam-no dois fatos: a rebelião dos gregos da Jônia, que te distanciada e tornada objeto de maiores esforços de compreensão na própria
sustentaram o valor absoluto da individualidade contra uma universalidade consciência histórica. A justificação desses esforços de compreensão cada vez
especiosa; e a dos egípcios, que reafirmaram os direitos da materialidade contra maiores, em face da percepção irônica de sua inevitável limitação, é proporcio­
uma especiosa espiritualidade. nada pela própria arte, na visão cômica do caos de formas que se torna uma
festa, uma jubilosa afirmação do todo.
No Egito, disse Hegel, as “antíteses em sua forma abstrata se rompem;
ruptura que as anula” (115). Os egípcios apreendiam o mundo ironicamente, O movimento decorrente da percepção do mundo através das modalida­
como uma condição cismática em que a separação de espírito e matéria é des - religiosa, artística, científica, filosófica e histórica - de compreensão dele
vivenciada como dor e ansiedade profundas. Por isso, a cultura egípcia apre­ (cada modalidade de compreensão tomando a precedente como simplesmente
sentava o aspecto “dos princípios mais contraditórios, que ainda não são uma apreensão) reflete o movimento essencial do ser em sua atualização, e da
capazes de harmonizar-se, mas, propondo o nascimento dessa harmonia como consciência em sua realização, na história. A consciência histórica em si nasce
o problema a resolve?', transformam-se num “enigma” para si e para os outros. ao mesmo tempo que um modo especificamente histórico de existência na
O enigma seria resolvido finalmente - e com sua solução proporcionava-se o história da humanidade. Dos gregos até a época mesma de Hegel, essa cons­
princípio para a transição para um novo mundo - na Grécia. A solução do ciência histórica tornou-se “para si”, separando-se de outras formas de cons­
“enigma” era, evidentemente, a solução que Édipo deu ao enigma da Esfinge ciência, e foi utilizada por historiadores individuais para a produção dos vários
que ele encontrou na convergência das três estradas ao dirigir-se para Tebas tipos de histórias “reflexivas” que eles realmente escreveram. O ato mesmo de
(220-21). O enigma que os egípcios não sabiam resolver era o “homem”, mas o escrever a história cria a oportunidade para um terceiro tipo de reflexão
histórica - isto é, reflexão sobre a natureza da própria consciência histórica e
fato de que a solução tenha sido encontrada, não no Oriente, mas no Ocidente
sobre sua relação com o ser histórico - e promove aquelas que são efetivamente
(no mito de Édipo, a Esfinge viajou para a Grécia), dá a entender que o
as precondições de um tipo superior de consciência em geral dentro da cons­
incremento feito na consciência humana pela trágica ascensão e queda de uma
ciência religiosa, artística, científica e filosófica.
ou outra das encarnações da humanidade numa cultura específica é oferecido,
não à cultura em si, mas à cultura que o procura, à cultura que logra solver o A religião, a arte, a ciência e a filosofia refletem, elas mesmas, os diferentes
“enigma” criado pela consciência irônica da lei em sua própria estrutura. A estágios do confinamento de uma dada civilização (e da consciência-em-geral)
144 HAYDENWHITE
Parte II

com seu objeto (que, no caso da consciência em geral, é o puro ser). Estes
podem ser usados para caracterizar a qualidade da apreensão e compreensão, QUATRO TIPOS DE “REALISMO"
por uma cultura, de si mesma e de seu mundo na medida em que se desenvolvem NA ESCRITA HISTÓRICA
no tempo nas modalidades do em-, para-, em-e-para, e em-para-e-por-si, que
por sua vez suprem os modos de caracterização dos quatro estágios através dos DO SÉCULO XIX
quais todas as civilizações passam desde o nascimento até a morte. Mas a
apreensão da natureza desses quatro estágios pela história filosófica, do tipo
proposto por Hegel em sua obra, reflete o aparecimento de uma ordem ainda
mais alta de consciência que fornece o fundamento para transcender a natureza
“irônica” da relação da consciência com o ser em geral e do relacionamento da
civilização com suas várias encarnações na história do mundo. Esse novo modo
de consciência representa a subida à consciência da visão cômica do processo
do mundo, que agora não apenas afirma õ primado da vida sobre a morte em
face de qualquer situação trágica determinada como também conhece as razões
dessa afirmação.
MICHELET
0 REALISMO HISTÓRICO
COMO ESTÓRIA ROMANESCA

INTRODUÇÃO

Hegel, o crítico de todos os historiadores que o antecederam, foi a


consciência histórica da época que a ele se seguiu. Ninguém chegou perto de
alcançar o nível de perspicácia e profundidade de sua investigação do problema
da consciência histórica, nem mesmo Croce, o filósofo que mais se assemelhou
a ele no temperamento e na amplitude de interesses. Mas, nessa época, poucos
pensadores da história desejavam penetrar no interior de suas próprias precon-
cepções sobre a história e no tipo de conhecimento a extrair desse estudo.
Aqueles que tinham por profissão estudar a história estavam ocupados demais
em escrevê-la e não se detinham nq exame das bases teóricas de sua atividade.
A justificação do conhecimento histórico que Hegel procurara ministrar pare­
cia não só desnecessária como desnecessariamente prolixa. O estudo da história
profissionalizou-se ao longo dos mesmos anos que Hegel passou meditando
sobre o problema da justificação teórica desse estudo como forma especial de
consciência e tentando definir-lhe o relacionamento com a arte, a ciência, a
filosofia e a sensibilidade religiosa. E essa transformação da história, de área
geral de estudo, cultivada por amadores, diletantes e antiquários, numa disci­
plina profissional parecia justificação suficiente para o rompimento da historio­
grafia com as infindáveis especulações dos “filósofos da história”.
Cátedras de história foram criadas na Universidade de Berlim em 1810 e
na Sorbonne em 1812. Logo depois fundaram-se sociedades dedicadas à com­
pilação e publicação de documentos históricos: a sociedade dos Monumenta
Germaniae Histórica em 1819, a École des Chartes em 1821. As subvenções
148 IIAYDEN W1HTE META-H1STÓRIA 149

governamentais a essas sociedades vieram a seu devido tempo, na década de história maçante é geralmente má história, e teremos o mais alto apreço por
1830. Depois dos meados do século surgiram os grandes periódicos nacionais aqueles colaboradores que apresentarem suas pesquisas numa forma lúcida e
de estudos históricos: a Historische Zeitschrift em 1859, a Révue historique em eficaz”.
1876, a Rivista Storica Italiana em 1884 e a English Historical Review em 1886.
A idéia geral era que, dada a brecha que se abrira entre as ciências
Progressivamente a profissão academizou-se. O professorado formava uma
“rigorosas” (positivistas) e as artes “livres” (românticas) durante a primeira
clerezia voltada para a promoção e o cultivo de uma historiografia socialmente
metade do século XIX, a história poderia legitimamente pretender ocupar um
responsável; preparava e diplomava aprendizes, mantinha padrões de excelên­
terreno neutro intermediário com base no qual seria possível aproximar e reunir
cia, dirigia os órgãos de comunicação intraprofissional e em geral desfrutava de
as “duas culturas” no interesse comum das metas da sociedade civilizada. Assim
lugar privilegiado nos setores humanísticos e sociocientíficos das universidades.
se expressava a nota preliminar da EHR:
Nessa disciplinarização do campo da história, a Inglaterra atrasou-se em relação
às nações do continente. Oxford só em 1866 criou o Regius Professorship of Acreditamos que a história, num grau ainda mais elevado do que tem sido até aqui
History, que teve como primeiro titular Stubbs; Cambridge seguiu-lhe os passos reconhecido por seus cultores, é o ramo central dos estudos humanos, capaz de iluminar e
em 1869. Mas só a partir de 1875 os universitários ingleses puderam especiali­ enriquecer tudo o mais [Stem, Varieties, 177]r
zar-se em estudos históricos como área acadêmica específica.
Mas, a fim de atingir essa meta de iluminação e enriquecimento, era
Entretanto, se os estudos históricos se profissionalizaram nesse período, preciso que a história fosse cultivada num espírito que ultrapassasse os interes­
a base teórica dessa disciplinarização continuou indefinida. A transformação ses partidários e as fidelidades confessionais. Isso queria dizer que era neces­
do pensamento histórico, de atividade amadora em profissional, não foi acom­ sário manter as pesquisas e generalizações históricas dentro dos limites de uma
panhada pelo tipo de revolução conceptual que acompanhou tais transforma­ modéstia essencial, contornando os perigos de estreiteza por um lado e vagueza
ções em outros campos, como a física, a química e a biologia. A instrução no por outro. Como assinalou a EHR, duas visões da função da história prevaleciam
“método histórico” consistia essencialmente na recomendação de usar as téc­ em meados do século: uma, que era simplesmente outra forma de comentário
nicas filológicas mais refinadas na crítica dos documentos históricos, combinada político, e, outra, que era comentário sobre tudo o que tivesse algum dia
com um conjunto de prescrições acerca do que o historiador não devia tentar acontecido no tempo humano. A EHR propunha evitar os dois extremos esti­
fazer com base nos documentos assim criticados. Por exemplo, logo se tornou mulando a colaboração proveniente de “estudiosos de cada departamento
lugar-comum dizer que a história não era um ramo da metafísica ou da religião, especial” (175) de estudos históricos e, acima de tudo, “recusando colaborações
as quais, ao misturarem-se com o conhecimento histórico, levavam a consciência que discutem (...) questões relacionadas às controvérsias atuais” (176).
histórica a “incorrer” nas heresias da “filosofia da história”. Ao invés disso,
afirmava-se, a história devia ser vista como combinação de “ciência” e “arte”. Nessa proposta a EHR seguiu a orientação sugerida pela Révue historique
Mas os sentidos dos termos “ciência” e “arte” não eram claros. Sem dúvida era - isto é, “evitar controvérsias contemporâneas, tratar os assuntos (...) com a
evidente que o historiador devia tentar ser “científico” em sua investigação dos rigidez metodológica e a ausência de partidarismo que a ciência exige, e não
documentos e em seus esforços por determinar “o que de fato aconteceu” no procurar argumentos pró ou contra doutrinas que estão apenas indiretamente
passado, e que devia representar o passado “artisticamente” para seus leitores. envolvidas” (173). Mas esse apelo à “rigidez” metodológica e ao apartidarismo
Mas em geral admitia-se que a história não era uma ciência “rigorosa” (uma se fazia na ausência de qualquer noção, salvo as mais gerais, daquilo em que
disciplina aplicadora ou descobridora de leis) como a física e a química. Isto é, consistiriam. Na verdade, o objetivo era, como o prefácio ao primeiro número
a história não era uma ciência positivista, e o historiador devia contentar-se com da Historische Zeitschrift deixou bem claro, afastar o estudo histórico dos usos
uma concepção baconiana, empírica e indutivista da tarefa do cientista, o que a que estava sendo submetido por radicais e reacionários da cena política e
queria dizer que a historiografia devia permanecer uma ciência pré-newtoniana. servir - através da disciplinarização dos estudos históricos - aos interesses e
E o mesmo se dizia do componente “artístico” na representação histórica. valores das novas ordens e classes sociais que tinham chegado ao poder depois
Ainda que arte, a escrita histórica não devia ser encarada como o que se da Era Revolucionária.
chamava no início do século XIX uma “arte livre” - isto é, uma arte criativa do
tipo que os poetas e romancistas românticos cultivavam. Como forma de arte, A Historische Zeitschrift fez questão de se apresentar como um periódico
a escrita histórica poderia ser “vívida” e estimulante, até “recreativa”, contanto “científico”, cujo objetivo era “representar o verdadeiro método de pesquisa
que o historiador-artista não ousasse utilizar qualquer outra coisa que não histórica e apontar os desvios desse método”. Mas também fez questão de dizer
fossem as técnicas e estratagemas da novelística tradicional. Como diz a nota que não se imaginasse que seus interesses fossem estreitamente antiquários ou
preliminar do primeiro número da English Historical Review (EHR): “Assim, intrinsecamente políticos. “Não é nosso objetivo”, lê-se no prefácio a seu
longe de sustentarmos que a verdadeira história é maçante, acreditamos que primeiro número, “debater questões não resolvidas de política atual, nem
150 HAYDEN WHITE METAHISTÓRIA 151

comprometer-nos com um partido político em particular.” Não pareceu “con­ românticos foram eximidos da acusação. Enquanto os historiadores defletiam
traditório”, porém, excluir como enfoques legítimos do estudo histórico os a consciência para o estudo do passado, os poetas projetavam-na num futuro
pontos de vista representados pelo “feudalismo, que impõe elementos inanima­ indefinido, convertendo o presente em nada mais do que uma vaga antevisão
dos à vida progressiva; [pelo] radicalismo, que substitui o desenvolvimento do que poderia ter sido ou poderia ainda ser, mas em ambos os casos sugerindo
orgânico pelo capricho subjetivo; [e pelo] ultramontanismo, que sujeita a evo­ que os homens existentes não eram fins em si mesmos mas exclusivamente os
lução espiritual nacional à autoridade de uma Igreja forânea” (171-72). Tudo meios para alcançar uma Humanitàt obscuramente entrevista. Nem a história
isso queria dizer que a profissionalização dos estudos históricos tinha de fato “científica” nem a poesia “estética”, disse Heine,
implicações políticas e que a “teoria” em que sua cientização em última análise
se baseava não era senão a ideologia dos setores médios do espectro social, harmoniza-se plenamente com o nosso vigoroso sentimento da vida. Por um lado, não desejamos
representados pelos conservadores de um lado e pelos liberais do outro. ser incitados inutilmente e apostar o melhor que possuímos num passado vão. Por outro lado,
também exigimos que o presente vivo seja avaliado como merece c não sirva apenas de meio para
Realmente, tanto na França quanto na Alemanha o destino acadêmico de um fim distante. O fato é que nós nos consideramos mais importantes do que meros meios para
historiadores e filósofos de esquerda acompanhou o crescimento e o declínio um fim. Acreditamos que meios e fins não passam de conceitos convencionais, que o homem
do próprio radicalismo. Isso significou o decesso da maioria deles. Em 1818, meditabundo julgou ler na natureza e na história, e dos quais nada sabe o Criador. Pois toda criação
Victor Cousin e Guizot foram demitidos da Sorbonne por ensinarem “idéias” tem finalidade em si mesma e todo acontecimento é autocondicionado, e tudo - o próprio mundo
em lugar de “fatos” (Liard, II, 157-69). Feuerbach e D. F. Strauss tiveram suas todo - está aqui, por direito próprio [Ewcn ed., 810].
carreiras bloqueadas na academia alemã por suas idéias “radicais”. Em 1850 a
liberdade de ensino foi revogada nas universidades francesas em vista da E concluiu com um desafio aos conceitos anti-sépticos de história cultiva­
necessidade de proteger a “sociedade” contra a ameaça de “ateísmo e socialis­ dos pelos historiadores profissionais de um lado e à filosofia hospitalar dos
mo” (23). Michelet e Quinet e o poeta polonês Mickiewicz foram despedidos, poetas românticos do outro:
“livros perigosos” foram banidos e os historiadores foram especificamente
proibidos de se afastarem da ordem cronológica na apresentação de seus A vida não é nem meio nem fim. A vida é um direito. A vida deseja ratificar esse direito
materiais (246). E dessa vez Cousin e Thiers, vítimas anteriormente de discri­ contra as pretensões da morte petrificadora, contra o passado. Essa justificação da vida é a
Revolução. A indiferença elegíaca de historiadores e poetas não deverá paralisar nossas energias
minação política, apoiaram as medidas repressivas (234). Não admira que o
quando estivermos empenhados nessa empresa. Nem deverão as visões românticas daqueles que
poeta e revolucionário Heine reservasse algumas de suas farpas mais agudas nos prometem a felicidade no futuro induzir-nos a sacrificar os interesses do presente, a luta
para os historiadores profissionais e os cultores do humanismo acadêmico. imediata pelos direitos do homem, o direito à própria vida [809-10].
Escrevendo no exílio em Paris, Heine fustigou o professorado, que escon­
dia seu apoio a regimes repressivos por trás da máscara da objetividade e do Em sua justaposição dos direitos da vida às pretensões do passado morto
estudo desinteressado do passado, e assim iniciou uma ofensiva contra o saber e do futuro ainda não nascido, Heine precedeu o ataque de Nietzsche, na década
acadêmico que seria seguida por Marx e Nietzsche, da esquerda e da direita de 1870, a todas as formas de historiografia acadêmica, ataque que correu o
respectivamente, e que culminaria na última década do século numa revolta risco de se tornar um clichê na literatura nos anos de 1880 (Ibsen), 1890 (Gide,
generalizada de artistas e cientistas sociais contra o fardo da consciência Mann) e no início da década de 1900 (Valéry, Proust, Joyce, D. H. Lawrence).
histórica em geral.

Zu fragmentarisch ist Welt und Leben! OS CLÁSSICOS DA HISTORIOGRAFIA DO SÉCULO XIX


Ich will mich zum deutschen Professor begeben.
Der weiss das Leben zusammenzusetzen,
Und er macht ein verstândlich System daraus; Entretanto, o período compreendido entre 1821 (ano do ensaio de Wi-
Mit seinen Nachtmützen und Schlafrockfetzen lhelm von Humboldt, “Sobre a Tarefa do Historiador”) e 1868 (ano do Historik
Stopfterdie Lücken des Weltenbaus [Stôssinger ed., 116]. de Droysen) produziu as obras que ainda servem de modelos para o moderno
labor historiográfico de profissionais e amadores. Um simples arrolamento dos
Os filósofos da história, os filósofos da natureza, os estetas à moda de trabalhos de quatro mestres incontestes da historiografia do século XIX bastará
Goethe e os “sabichões” da escola histórica estavam todos envolvidos, sustentou para indicar o alcance e a profundidade desse esforço de compreender o
Heine, numa conspiração para refrear “a febre terçã de liberdade do povo passado de maneira a iluminar os problemas contemporâneos. Os mestres de
alemão”. Os historiadores em especial eram “bajuladores e intrigantes” (Ran~ que estamos falando são Jules Michelet (1798-1877), o gênio tutelar da escola
ken und Ranken) (98), que cultivavam um “fatalismo conveniente e apazigua­ romântica da historiografia; Leopold von Ranke (1795-1886), o fundador da
dor” como antídoto para a inquietação política. Nem mesmo os poetas escola histórica, o historicista par excellence, e o paradigma da historiografia
152 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 153

acadêmica; Alexis de Tocqueville (1806-1859), o virtual fundador da história gregos. Cada uma das quatro espécies de história reflexiva que tinham apareci­
social e protótipo dos modernos sociólogos históricos Émile Durkheim e Max do no desenvolvimento da reflexão histórica desde os gregos havia representado
Weber; e, finalmente, Jacob Burckhardt (1818-1897), o historiador cultural uma forma superior de autoconsciência histórica. A própria filosofia da história,
arquetípico, cultor de uma historiografia estética e expoente do estilo impres­ como Hegel a concebia, não era senão a explanação dos princípios subjacentes
sionista de representação histórica. As obras em apreço são: à “história reflexiva” e de sua sistemática aplicação ao problema de escrever a
história universal de uma maneira mais elevada, mais autoconscientemente
1824 Ranke, Histórias dos Povos Latinos e Germânicos “reflexiva”. Ele não sugeriu que os próprios historiadores tentassem escrever
1827 Michelet, tradução da Ciência Nova de Vico tal história universal, mas insistiu em que deixassem a composição dela para os
1828 Miçhelet, Compêndio de História Moderna filósofos, porque só os filósofos eram capazes de compreender o que estava
1829 Ranke, História da Revolução Sérvia implícito na realização da historiografia reflexiva, de alçar-lhe os princípios
1831 Michelet, Introdução à História Universal epistemológicos, estéticos e éticos à consciência, e portanto de os aplicar ao
1833- 1844 Michelet, História da França, seis volumes sobre a Idade Média problema da história da humanidade em geral.
1834- 1836 Ranke, História dos Papas Essa maneira de distinguir entre historiografia e filosofia da história não
1835- 1840 Tocqueville,/! Democracia na América'"'
era geralmente entendida ou, quando era entendida, admitida, pelos historia­
1839-1847 Ranke, História da Alemanha no Tempo da Reforma
1846 Michelet, O Povo dores oitocentistas. Para a maioria deles, a “filosofia da história” representava
1847 Ranke, Nove Livros de História Prussiana o esforço de escrever história com base em preconcepções filosóficas que
1847-1853 Michelet, História da Revolução Francesa exigiam a submissão dos dados ao esquema alcançado por um raciocínio
1852-1861 Ranke, História da França nos Séculos ÀT7 e XVII apriorístico. O “método histórico” - como os historiógrafos clássicos do século
1853 Burckhardt,/! Epoca de Constantino, o Grande XIX entendiam a expressão - consistia numa disposição de ir aos arquivos sem
1856 Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução i
quaisquer preconcepções, estudar os documentos lá encontrados e em seguida
1859-1868 Ranke, História da Inglaterra no Século XVII escrever uma estória acerca dos acontecimentos atestados pelos documentos
1860 Burckhardt,/! Civilização do Renascimento na Itália de modo a fazer da própria estória a explicação “do que tinha acontecido” no
1872-1873 Michelet, História do Século XIX
passado. A idéia era deixar a explicação emergir naturalmente dos próprios
documentos e depois exprimir seu significado em forma de estória.
As obras de muitos outros historiadores, quase tão eminentes, poderiam
ser acrescentadas a essa lista: as dos grandes historiadores clássicos Grote, A noção de que o próprio historiador punha em enredo os acontecimentos
Droysen, Mommsen e Fustel de Coulanges; dos medievalistas Stubbs e Mai- encontrados nos documentos era apenas vagamente intuída por pensadores
tland; dos nacionalistas Von Sybel e Treitschke; dos chamados doutrinários sensíveis ao elemento poético presente em todos os esforços de descrição
Thierry e Guizot; ou dos filósofos da história Comte, Spencer, Buckle, Gobi- narrativa - por um historiador como J. G. Droysen, por exemplo, e por filósofos
neau, Hegel, Feuerbach, Marx e Engels, Nietzsche eTaine. Mas nenhum desses, como Hegel e Nietzsche, mas por poucos outros. Ter insinuado que o historia­
exceto talvez os incluídos entre os filósofos da história, pode dizer-se possuidor dor punha em enredo suas estórias teria ofendido a maioria dos historiadores
da autoridade e prestígio dos quatro mestres: Michelet, Ranke, Tocqueville e oitocentistas. Que diferentes “pontos de vista” fossem aplicados ao passado
Burckhardt. Pois, embora os outros tenham criado campos inteiros de estudo e ninguém negava, mas esses “pontos de vista” eram encarados mais como vieses
possam ser vistos como representantes de diversos padrões de reflexão histórica a serem suprimidos do que como perspectivas poéticas que poderiam iluminar
do século XIX, só estes quatro - Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt - tanto quanto obscureciam. A idéia era “contar a estória” do “que tinha acon­
ainda servem de paradigmas de uma consciência histórica distintivamente tecido” sem resíduo conceptual significativo ou prcformação ideológica dos
moderna. Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt representam não somen­ materiais. Se a estória fosse contada corretamente, a explicação do que tinha
te realizações originais na escrita da história mas também modelos alternativos acontecido viria à superfície da narrativa, da mesma forma que a estrutura dc
do que uma historiografia “realista” poderia ser. uma paisagem seria delineada por um mapa adequadamente desenhado.
Uma história podia ter um componente explicativo, como a “legenda” de
um mapa, mas esse componente tinha de ser relegado a um lugar na periferia
A HISTORIOGRAFIA CONTRA A FILOSOFIA DA HISTÓRIA da própria narrativa, do mesmo modo que a legenda do mapa. A “legenda” de
uma história devia ser posta numa cercadura especial, por assim dizer, contida
Em sua Filosofia da História, Hegel procurou oferecer justificação teórica nas “observações gerais” com que os autores prefaciavam suas histórias ou as
a um tipo de reflexão histórica que ele considerava incomparável para a época concluíam. A verdadeira explicação residia na narração de uma estória que
moderna. O que chamava de “história original” existira desde o tempo dos fosse ao mesmo tempo precisa nos pormenores e convincente em seu significa­
154 HAYDENWHTTE META-HISTÓRIA 155

do. Mas a precisão dos pormenores muitas vezes se confundia com a verdade para o problema de como escrever história, tendo escolhido os modos da estória
do sentido da estória. Não se percebia que o sentido da estória era dado pelo romanesca, da comédia, da tragédia e da sátira para colocá-la em enredo. Mas
modo escolhido de elaboração do enredo para fazer da estória contada uma assumiram diferentes posições ideológicas diante do campo histórico: anarquis­
estória de tipo particular. Não se entendia que a própria escolha de um modo de ta, conservadora, liberal e reacionária respectivamente. Nenhum deles foi um
elaboração de enredo refletia o compromisso com uma filosofia da história, e radical. Os protocolos lingüísticos em que prefiguraram esse campo foram
que Hegel chamara a atenção para isso ao examinar a história como forma de também diversos: metafórico, sinedóquico, metonímico e irônico.
arte literária em sua Estética.
Qual era, então, a diferença entre “história” e “filosofia da história”? Os
quatro mestres historiadores do século XIX deram diferentes respostas a essa A HISTORIOGRAFIA ROMÂNTICA COMO “REALISMO”
pergunta, mas todos concordavam em que uma verdadeira história devia ser NO MODO METAFÓRICO
escrita sem preconcepções, objetivamente, por puro interesse pelos fatos do
passado, e sem nenhuma tendência apriorística a modelar os fatos num sistema Na introdução ao meu capítulo sobre o pensamento histórico do século
formal. No entanto, o atributo mais evidente das histórias escritas por esses XVIII sugeri que o “realismo” de seu equivalente oitocentista consistiu primor­
mestres era sua coerência formal, seu domínio conceptual do campo histórico. dialmente na tentativa de justificar a crença no progresso e no otimismo,
Dos quatro, Burckhardt foi o que melhor conseguiu dar a impressão de alguém evitando ao mesmo tempo a ironia a que osphilosophes tinham sido conduzidos.
que simplesmente deixa que os fatos “falem por si mesmos” e o que manteve os A historiografia romântica, sugiro agora, representa um retorno ao modo
princípios conceptuais de suas narrativas mais completamente enterrados na metafórico no que se refere à caracterização do campo histórico e seus proces­
textura de suas obras. Mas mesmo as histórias impressionistas de Burckhardt sos, mas sem a adoção da estratégia explicativa organicista com que Herder o
têm uma coerência formal própria, a coerência da “sátira”, a forma na qual a tinha sobrecarregado. Os românticos repudiaram todos os sistemas formais de
alma hipersensível representa a loucura do mundo. explicação e tentaram conseguir um efeito explicativo utilizando o modo meta­
Com exceção de Tocqueville, nenhum desses historiadores introduz o fórico para descrever o campo histórico e o mythos da estória romanesca para
argumento explicativo formal no primeiro plano da narrativa. Para extrair os representar-lhe os processos.
princípios de que eles se socorrem tem-se de inferir implicações do que é dito
na linha narrativa das histórias que escrevem. Isso quer dizer, porém, que o peso
do efeito explicativo é lançado sobre o modo de elaboração do enredo. E, de O CAMPO HISTÓRICO COMO CAOS DO SER
fato, o “historicismo” de que Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt são,
como hoje se reconhece, igualmente representantes pode ser de certo modo Esse repúdio de todos os sistemas formais de explicação não deve ser
caracterizado como simples substituição da argumentação como estratégia tomado ao pé da letra, porém, pois os românticos em sua maioria pressupunham
explicativa pela elaboração do enredo. Quando, à maneira de Ranke, preten­ uma teoria do conhecimento adequada à caracterização do campo histórico
diam estar simplesmente “contando o que de fato aconteceu” e explicando o como aquilo a que Carlyle deu o nome de “Caos do Ser”, a respeito do qual o
passado ao contar sua “estória”, estavam todos explicitamente adotando a historiador podia assumir uma postura como observador e agente dos processos
concepção da explicação pela descrição, mas na verdade estavam praticando a desse caos. Em românticos do tipo de Constant, Novalis e Carlyle, para tomar
arte da explicação pela elaboração do enredo. Cada um contou um tipo de três exemplos, essa noção de “Caos do Ser” da história inspirou três atitudes
estória diferente - estória romanesca, comédia, tragédia ou sátira - ou pelo distintas, cada uma das quais implicava uma concepção diferente da tarefa do
menos pressupôs uma ou outra dessas formas de estória como arcabouço geral historiador. A posição de Constant representa uma variante romântica do ponto
para o segmento de história que descrevia em detalhe. As “filosofias da história” de vista irônico herdado do final do século XVIII, mas que se tornou mais niilista
que eles representavam devem ser caracterizadas, então, não só em função das pelo tom da resposta dele aos acontecimentos da Revolução e da Reação. Uma
estratégias explicativas formais que adotavam mas também em função dos de suas caracterizações do mundo histórico pode ser tomada como representa­
modos de elaboração de enredo que escolhiam para armar ou informar a estória tiva do sentimento de apreensão que a reflexão histórica de sua época pretendia
que narravam. transcender. Num trecho que figura no ensaio “Sobre a Religião”, Constant
Mas ainda mais importante do que o modo de elaboração de enredo que escreveu:
escolhiam para dar forma às estórias que contavam é o modo de consciência em O homem, vencedor dos combates em que se empenhou, olha para um mundo despovoado
que prefiguravam o campo histórico como um domínio, a postura que assumiam de espíritos protetores e espanta-se com sua vitória. (...) Sua imaginação, ociosa agora e solitária,
perante essa estrutura, e o protocolo lingüístico em que o caracterizavam. Os volta-se para si mesma. Ele se vê sozinho numa terra que pode tragá-lo. Sobre essa terra as gerações
quatro mestres historiadores do século XIX representam diferentes soluções se sucedem, transitórias, fortuitas, isoladas; aparecem, sofrem, morrem. (...) Nenhuma voz das
156 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 157

raças que já não existem se prolonga na vida das raças ainda vivas, e a voz das raças vivas não tardará
a ser sorvida pelo mesmo silêncio eterno. Que há de fazer o homem, sem memória, sem esperança,
entre o passado que o abandona e o futuro que está fechado diante dele? Suas invocações já não Que o espectador honesto contemple serena e desapaixonadamente a nova era estatoclasta.
são ouvidas, suas orações não recebem resposta. Ele repeliu todos os pontos de apoio com que (...) Todos os vossos esteios serão demasiado fracos se o vosso Estado se mantiver inclinado para
seus predecessores o tinham cercado; está reduzido às suas próprias forças [citado em Poulet, a terra. Mas prendei-o por uma aspiração superior às altitudes celestes, estabelecei a relação dele
Studies, 212]. com o universo, e tereis nele uma mola infatigável, e vereis todos os vossos esforços abundante­
mente recompensados [56].

Essa passagem é claramente irônica. Sua ironia essencial é assinalada pela


Novalis punha sua esperança numa nova forma de cristianismo, nem
frase de abertura, em que uma humanidade aparentemente “vitoriosa” se
católico nem protestante, mas cosmopolita e unificador. E acreditava que
“espanta” com a realização daquilo por que tanto havia lutado e que afinal se
deveria encontrar uma justificação para sua esperança no estudo da história.
concretiza. Mas essa vitória se volta contra o próprio homem, porque agora o
“Eu vos remeto à história”, disse ele. “Procurai no seio de sua instrutiva
homem “se vê sozinho”, ocupante de um mundo “que pode tragá-lo”. A ameaça
coerência pontos paralelos do tempo e aprendei a usar a varinha mágica da
a que os homens estão agora expostos é identificada por Constant como
decorrente da descoberta da futilidade da história, da apreensão da absurda analogia” (Ibid.). Assim o homem finalmente descobriria o espírito da palavra
cristã e ultrapassaria a interminável substituição de uma “letra” por outra.
seqüência das gerações, que “se sucedem, transitórias, fortuitas, isoladas; apa­
recem, sofrem, morrem”. Nenhum consolo pode advir da reflexão sobre as “Deverá a letra dar lugar à letra?”, perguntou. “Estareis à procura do germe da
relações entre as gerações: as “vozes” das gerações passadas não proporcionam deterioração na velha ordem também, no velho espírito? E vos imaginais numa
posição melhor para o entendimento de um melhor espírito?” (Ibid.) A salva­
ajuda ou conselho aos vivos; e os vivos têm de enfrentar um mundo em que eles,
também, logo serão consumidos e relegados ao “mesmo silêncio eterno”. Os ção, insistiu Novalis, não estava nem numa volta sentimental à velha ordem nem
numa adesão doutrinária à “letra” de uma ordem nova, mas antes numa fé que
vivos estão assim colocados entre um “passado” que os “abandona” e um
tomasse o “espírito” mesmo da história como modelo.
“futuro” que está “fechado”; são obrigados a viver “sem memória, sem espe­
rança”. Todos os costumeiros “pontos de apoio” da vida comunal se desinte­
graram, e o homem está reduzido a “suas próprias forças”; mas essas forças, Oxalá o espírito das forças vitais vos insufle e desistais desse tolo afã de modelar a história
e a humanidade e dar a ela vossa orientação! Não é ela independente, não é ela dotada de energia
sugere claramente o texto transcrito, são inadequadas para o prosseguimento
própria, não é infinitamente amorável e profética? Estudá-la, segui-la, aprender com ela, marchar
das tarefas que todas as sociedades e civilizações anteriores estabeleceram para em cadência com ela, observar honestamente suas promessas e indicações - nisso ninguém pensa
si mesmas. A consciência humana é portanto dada como inapta não só para a [JbàZ.].
compreensão da realidade mas também para o exercício de qualquer controle
efetivo sobre ela. Os homens estão à deriva num mar histórico ainda mais As idéias de Novalis são tão “míticas” como as de Constant, isto é,
ameaçador do que o mundo natural com que os primitivos selvagens se defron­ representam uma disposição de espírito, um estado de alma, que foi elevada à
taram em sua ignorância e debilidade na aurora do tempo humano. condição de verdade. O misticismo histórico de um aparece em contraste direto
Era precisamente essa postura irônica diante da história que os sistemas com o pirronismo do outro, mas são igualmente dogmáticos. Este propôs
filosóficos dominantes do início do século XIX pretendiam superar e suplantar resolver o problema da vida afirmando a futilidade da história, aquele asseve­
com uma concepção teoricamente mais fundamentada das aptidões do homem rando que o único sentido que a vida pode ter deve vir da fé acrítica no poder
para controlar o próprio destino e dar sentido e direção à história. As tendências da história de suprir seu próprio sentido e a crença em que os homens devem
metafísicas da época, refletidas nos grandes sistemas do idealismo, do positivis­ “seguir” a história do mesmo modo que, no passado, tinham seguido a religião.
mo e do romantismo, procuravam dissolver o tipo de atitude irônica que A mesma condição que Constant vivenciou como pesadelo, Novalis apreendeu
pensadores como Constant, em seu desespero, julgavam ser a única forma que como material para um sonho de salvação.
o “realismo” podia assumir na época pós-revolucionária. Cumpre notar, porém, que as duas posições assim esboçadas gerariam o
A reação romântica a esse estado de angoisse tomou duas formas, uma mesmo tipo de historiografia. Em ambos os casos o acontecimento individual
predominantemente religiosa, a outra estética. Exemplo da reação religiosa é assumiria um valor que não teria numa historiografia regida por algum padrão
Novalis, que, em face do ceticismo e niilismo dos últimos momentos do Ilumi- crítico, em que o historiador tivesse de distinguir entre acontecimentos insigni­
nismo e do imediato período pós-revolucionário, simplesmente sustentava - ficantes e significativos no registro histórico. Para Constant, todos os aconteci­
bem à maneira de Herder - a natureza redentora do próprio processo histórico. mentos eram igualmente insignificantes como contribuição para a busca dc
Em Cristandade ou Europa, ele afirmou que a ansiedade da sua época provinha sentido empreendida pelo homem; para Novalis, todos os acontecimentos eram
da incapacidade de reconhecer a inadequação de qualquer solução puramente igualmente significativos como contribuições para o autoconhecimento do ho­
secular, ou puramente humana, dos problemas sociais. mem e a descoberta da significatividade da vida humana.
158 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 159

Uma forma também esteticista, mas eticamente mais responsável, de Diferentemente de Novalis e dos românticos religiosos, a rebelião de
romantismo apareceu no ensaio de Carlyle sobre BoswelTs Life of Johnson. Aqui Carlyle contra o ceticismo continha certa rejeição de qualquer tentativa de
Carlyle definiu o escopo da história como a tentativa de revogar “o Edito do localizar o sentido da vida humana fora da própria humanidade. A vida humana
Destino, de modo que o Tempo não tenha absolutamente, nem tão cedo e por em suas encarnações individuais era, para ele, um valor supremo; e a tarefa do
muitos séculos domínio sobre nós”. O intuito do historiador, na opinião de historiador, portanto, não consistia simplesmente em celebrar o próprio pro­
Carlyle, era transmudar as vozes dos grandes homens do passado em advertên­ cesso histórico, à la Novalis, mas antes em dar à vida humana uma consciência
cias, e inspirações, para os vivos. Na escrita histórica de peso, disse ele, “os que de sua natureza potencialmente heróica.
se foram estão ainda aqui; embora ocultos, eles se revelam; embora mortos, Mas Carlyle excluía qualquer possibilidade de ir além da percepção
ainda falam”. Eis a tarefa do historiador concebida como palingenesia, a (metafórica) de que cada vida é “como todas as outras” e ao mesmo tempo
piedosa reconstrução do passado em sua integridade, cujo espírito continua a “totalmente singular”. Excluía a possibilidade daquilo que reconheceríamos
dominar a historiografia nostálgica até o presente. Inspira-a o sentimento que como “explicação” caracteristicamente histórica do mundo. Se “cada aconteci­
G. B. Niebuhr exprimiu quando escreveu: mento singular é resultado (...) de todos os outros acontecimentos, anteriores
ou contemporâneos” e o campo histórico é um “Caos do Ser (...) no qual forma
Há uma coisa que produz felicidade: restituir a grandeza esquecida e negligenciada a uma após forma se corporifica a partir de inúmeros elementos”, parece impossível
posição onde se possa reconhecê-la. Aquele a quem isso é concedido pela fortuna entra numa conceber qualquer meio de reduzir esse “Caos” a ordem. Na opinião de Carlyle,
relação calorosa com espíritos desde muito desaparecidos, e sente-se ele próprio abençoado, porém, a compreensão do campo histórico é propiciada por um duplo movi­
quando a similaridade de ações e atitudes se une â ternura por eles, aquela ternura com que ele se
mento de pensamento e imaginação, ou “ciência” e “poesia”, graças ao qual as
afeiçoa a um grande homem como a um amigo [citado em Neff, Poetry of Hist., 104-5].
coisas são primeiro apreendidas em sua similaridade com outras coisas e depois
captadas em sua unicidade, ou diferença, de tudo o mais. O que Carlyle fez foi
Mas a concepção de história de Carlyle, como sua concepção de filosofia, encerrar as apreensões científica e poética do mundo dentro do modo da
era mais ativista que contemplativa, eticamente mais vigorosa e agressiva e, metáfora de modo a compreender o relacionamento entre elas como uma
surpreendentemente, mais resistente ao comodismo nostálgico do que as filo­ “transferência” natural de conceitos. O modo metafórico de interpretar o
sofias históricas dos primeiros românticos. No ensaio “Sobre a História”, ele campo histórico, prefigurado como “Caos do Ser”, exige que o historiador se
sustentou que posicione diante desse campo numa atitude de esperar e antegozar as riquezas
que ele lhe revelará, na firme convicção de que, desde que cada vida individual
na história vivida não é como na história escrita: os acontecimentos reais de modo nenhum se é como todas as outras, é “como a nossa portanto” e está, por conseguinte,
relacionam entre si como se relacionam progenitor e prole; cada acontecimento singular é resultado imediatamente presente na consciência em sua integridade e também em seu
não de um, mas de todos os outros acontecimentos, anteriores ou contemporâneos, e irá por sua
relacionamento com tudo o mais.
vez combinar-se com outros para dar origem a novos acontecimentos: é um Caos do Ser perma­
nentemente vivo e ativo, no qual forma após forma se corporifica a partir de inúmeros elementos Mas essa noção de história difere da de Herder, com a qual tem muitas
[59-60]. semelhanças, em virtude do fato de que o campo é entendido literalmente como
um Caos; não é visto como um caos aparente que se presume esteja operando
Esse “Caos do Ser” - disse Carlyle no ensaio “Sobre a Biografia” - há de em última instância no sentido de uma total integração de seus componentes
ser encarado pelo historiador numa disposição de espírito que ele qualificou de infinitamente numerosos. Na realidade, Carlyle, como a maioria dos últimos
simultaneamente científica e poética: românticos, via esse Caos como basicamente divisível em duas ordens do ser,
cujas naturezas são supridas pelas categorias da similaridade e da diferença que
Científica: porque cada mortal tem, posto diante de si, um Problema de Existência, o qual,
ele empregou para distinguir a compreensão científica da compreensão poética
não sendo só, o que para a maior parte é, o Problema de garantir a subsistência, deve ser até certo na passagem citada. A história como processo representa uma luta interminável
ponto original, diferente de todos os outros; e no entanto, ao mesmo tempo, muito parecido com da plebe contra o homem excepcional, o herói. Para Carlyle, então, adquire-se
todos os outros; como o nosso próprio, portanto; instrutivo, além disso, já que também estamos o conhecimento histórico mediante a simples perquirição do “Caos do Ser” a
contratados para viver. Um interesse poético mais ainda: pois precisamente essa mesma luta do fim de determinar os pontos em que determinados indivíduos excepcionais
Livre-Arbítrio humano contra a Necessidade material, que a Vida de todo homem, pela mera
apareceram e impuseram sua vontade a uma turba indolente e recalcitrante. O
circunstância de que o homem continua vivo, mais ou menos vitoriosamente irá revelar-é isso que
acima de tudo o mais, ou antes abrangendo tudo o mais, convoca a Simpatia dos corações mortais aparecimento de um herói representa uma “vitória” do “Livre-Arbítrio humano
à ação: e se se mostra na ação, no pensamento ou na escrita, não só é Poesia como é a única Poesia sobre a Necessidade”. A tarefa do historiador, nesse ponto, é compor um hino
possível [52-53]. em honra do herói, não, à la Novalis, cantar um hino de louvor à “história em
geral”.
160 HAYDENWHTTE META-HISTÓRIA 161

Carlyle, em resumo, possuía um princípio crítico, princípio que escolhia Para ele, uma sensibilidade poética, criticamente autoconsciente, proporciona­
o herói individual, o homem que realiza alguma coisa contra a história, como o va o acesso a uma apreensão especificamente “realista” do mundo.
objeto apropriado a uma historiografia humanamente responsável. O “Caos do Michelet negou explicitamente que fosse um romântico. O “movimento
Ser”, que Constant apreendia como um vazio aterrador e que Novalis via como romântico” o tinha ignorado; enquanto o movimento florescia, ele estava ocu­
uma plenitude indiferenciada de força vital, era concebido por Carlyle como pado nos arquivos, fundindo sua erudição e seu pensamento num novo método
sendo a situação que o indivíduo heróico enfrenta como campo a ser dominado, histórico, do quaM Ciência Nova de Vico podia ser considerada um protótipo.
ainda que só temporariamente e no pleno conhecimento da vitória última que Michelet caracterizou seu novo “método” como o de “concentração e reverbe­
esse “Caos” irá desfrutar sobre o homem que procurar dominá-lo. A “história”, ração”. Dizia que o método lhe assegurava “uma chama suficientemente intensa
no pensamento de Carlyle, estava dotada de maior significado intrínseco do que para fundir todas as diversidades aparentes, devolver-lhes na história a unidade
possuía no modo como Constant a apreendia. E a vida humana se investe de que tiveram em vida”. Como se vai ver, porém, esse novo método não era senão
maior valor precisamente na medida em que o indivíduo chama a si o encargo uma elaboração das implicações do modo da metáfora, concebida como meio
de impor forma a esse “Caos”, de dar à história a marca da própria aspiração de permitir ao historiador efetivamente adotar, ressuscitar e reviver o passado
do homem a ser alguma coisa mais do que znero.caos. em sua totalidade.
Contudo, a noção de “Caos do Ser” da história teve pelo menos a Michelet iniciou o esforço de escapar à ironia ao abandonar as táticas da
vantagem de libertar a consciência histórica do tipo de determinismo que havia metonímia e da sinédoque e assumir de imediato uma atitude de confiança na
conduzido o pensamento histórico do racionalismo iluminista à ironia e à sátira; adequação da caracterização metafórica do campo histórico e seus processos.
fez do campo histórico e do processo histórico um panorama do acontecer em Negou toda a validade das reduções mecanicistas (causais) e integrações for-
que o acento cai nos aspectos novos e emergentes, e não nos concluídos e malistas (topológicas) do campo histórico. A apreensão metafórica da similitu­
herdados, da vida cultural. Fez da história uma arena em que é possível ver o de essencial das coisas anula todas as outras considerações em sua escrita e
surgimento de coisas novas, ao invés daquela em que velhos elementos apenas diferencia-o de Carlyle e de outros cultores românticos do individualismo. Foi
se rearranjam incessantemente num conjunto finito de combinações possíveis. essa apreensão da similitude que lhe permitiu reivindicar para suas apaixonadas
Mas não ministrou nenhum critério pelo qual os elementos individuais que caracterizações da história o estatuto de verdades científicas, da mesma forma
aparecem no campo podem ser reunidos de modo a promover a confiança em que Vico havia reclamado estatuto científico para sua concepção essencialmen­
que todo o processo tem um sentido compreensível. Limitou-se a constituir o te “poética” da história. Michelet buscou uma fusão simbólica das diferentes
campo histórico como uma “folia de formas” a que o poeta pode recorrer em entidades ocupantes do campo histórico, e não apenas um meio de caracterizá-
busca de inspiração, a fim de pôr à prova sua capacidade de simpatia, de las como símbolos individuais. A unicidade acaso detectada na história era, na
discernimento e de avaliação. concepção de Michelet, a unicidade do todo, não das partes que compõem o
todo. A individualidade das partes é só aparente. A importância delas deriva
de sua condição de símbolos da unidade que todas as coisas - na história como
na natureza - almejam vir a ser.
MICHELET: A HISTORIOGRAFIA EXPLICADA COMO METÁFORA
Mas o simples fato de haver tal ânsia no mundo indica que essa unidade
E POSTA EM ENREDO COMO ESTÓRIA ROMANESCA
é uma meta a alcançar, mais do que uma condição passível de descrição. E isso
tem duas conseqüências para Michelet. Uma delas é que o historiador deve
Constant, Novalis e Carlyle foram todos pensadores manifestamente escrever suas histórias de modo a promover a unidade que todas as coisas
“românticos”, e suas reflexões sobre a história giraram em torno de sua apreen­ almejam vir a ser. E a outra é que tudo o que aparece na história deve ser
são do campo histórico como “Caos do Ser”, que eles em seguida passaram a avaliado conclusivamente em função da contribuição que traz para a consecu­
compreender respectivamente como apenas um caos, um espaço pleno de força ção da meta ou da capacidade de impedir tal consecução. Michelet portanto vai
criativa e um campo de luta entre homens heróicos e a própria história. Tais buscar no modo de elaboração de enredo da estória romanesca a forma narra­
modalidades de compreensão, porém, foram menos conquistadas que simples­ tiva a ser usada para compreender o processo histórico concebido como uma
mente asseveradas como verdades, a serem aceitas pela fé depositada na luta da virtude essencial contra um vício virulento, mas em última instância
sensibilidade poética de seus respectivos patronos. O francês Jules Michelet, transitório.
historiador e filósofo da história, representou uma posição diferente dentro do Como narrador, Michelet valeu-se das táticas dos dualistas. Para ele, só
movimento romântico com respeito à concepção que este possuía do processo havia realmente duas categorias em que era possível inscrever as entidades
histórico. Em primeiro lugar, Michelet pretendeu ter descoberto o meio de individuais que povoam o campo histórico. E, como em todos os sistemas
elevar a apreensão romântica do mundo à condição de um enfoque científico. dualistas de pensamento, não havia em sua teoria historiográfica meio algum de
162 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 163

senão o que insufla o puro amor da unidade. (...) A própria geografia está anulada. Não há mais
conceber o processo histórico como um progresso dialético ou mesmo diferen­
montanhas, rios, ou barreiras entre os homens. (...) Tal é o poder do amor. (...) Tempo e espaço,
cial em direção à meta desejada. Havia apenas um intercâmbio entre as forças as condições materiais a que a vida está sujeita, não existem mais. Uma estranha vita nuova,
do vício e as da virtude - entre tirania e justiça, ódio e amor, com momentos eminentemente espiritual, e que faz de toda a sua Revolução uma espécie de sonho, ora encantador,
ocasionais de conjunção, como o primeiro ano da Revolução Francesa - para ora terrível, começa agora para a França. Ela não conheceu nem tempo nem espaço. (...) Todos os
lhe sustentar a confiança na possibilidade de uma união final do homem com o velhos emblemas empalidecem, e os novos que são ensaiados têm pouca significação. Quer o povo
homem, com a natureza e com Deus. Nos limites extremos da aspiração humana jure sobre o velho altar, diante do Santíssimo Sacramento, quer preste juramento perante a fria
imagem da abstrata liberdade, o verdadeiro símbolo está em outra parte.
Michelet prefigurou a descoberta do símbolo supremo, da metáfora das metá­
A beleza, a grandeza, o etemo fascínio dessas festas, é que o símbolo é um símbolo vivo.
foras, que pode ser pré-criticamente apreendido como Natureza, Deus, Histó­ Este símbolo do homem é o homem [444-45].
ria, o Indivíduo, ou a Humanidade em geral.
Como o modo da metáfora e o mito da estória romanesca funcionam na E, em seguida, passando para uma voz que era ao mesmo tempo a sua e
historiografia de Michelet pode-se ver na sua História da Revolução Francesa. a do povo que acreditou na Revolução naquele dia, Michelet escreveu:
Sua descrição do espírito da França no primeiro ano da Revolução é uma
seqüência de identificações metafóricas que passa da caracterização da revolu­ Nós, adoradores do futuro, que pomos nossa fé na esperança e olhamos para o nascente;
ção como a luz que emerge das trevas para a descrição dela como o triunfo do nós, a quem o passado desfigurado e pervertido, tomado cada dia mais insuportável, expulsou de
impulso “natural” em favor da fraternidade sobre as forças “artificiais” que todos os templos; nós que, em razão de seu monopólio, estamos privados de templo e altar, e muitas
desde muito se opunham a ele, e acaba, finalmente, na contemplação dele como vezes nos sentimos tristes na solitária comunhão de nossos pensamentos, tivemos um templo
símbolo de pura simbolização. A França, escreveu Michelet, “avança corajosa­ naquele dia - um templo como nunca existira antes! Não uma igreja artificial, mas a igreja universal;
mente, através desse escuro inverno [de 1789-1790], para a primavera apetecida dos Vosges às Cévennes, e dos Alpes aos Pirenéus.
Nada de símbolo convencional. Só a natureza, o espírito, a verdade! [450-51]
que promete nova luz ao mundo”. Mas, perguntou Michelet, o que é essa “luz”?
Já não é, respondeu, a do “vago amor da liberdade”, mas antes a da “unidade
da terra natal” (440). O povo, “como crianças extraviadas, (...) encontrou por Era tudo, disse ele, “a maior diversidade (...) na mais perfeita unidade”
fim uma mãe” (441). Com a dissolução dos Estados provinciais em novembro (452).M
de 1789, declarou, todas as divisões entre homem e homem, homem e mulher, ichelet deu a suas histórias o enredo de dramas de revelação, da libera­
progenitor e filho, rico e pobre, aristocrata e plebeu estão anuladas. E o que ção de um poder espiritual em luta para se livrar das forças da treva, uma
resta? “A fraternidade eliminou todos os obstáculos, todas as federações estão redenção. E sua concepção de sua tarefa como historiador iria atuar como
em via de se confederarem, e a união tende à unidade. - Basta de federações! defensora do que é resgatado. Em seu livro O Povo, escrito em 1846, ele disse
São inúteis, só uma agora é necessária - a França; e ela aparece transfigurada de sua concepção da representação histórica:
na glória de julho” (441-42).
Que me seja reconhecido no futuro o ter, não alcançado, mas indicado, o objetivo da
Michelet então perguntou: “É um milagre tudo isso?” E, claro, sua história, o tê-lo chamado por um nome que ninguém lhe havia dado. Thieny chamou-o narração,
resposta foi “sim, e o maior e mais simples dos milagres, um retorno [do homem] e o sr. Guizot análise. Eu o denominei ressurreição, e esse nome ficará [citado em Stem, Varíeties,
à natureza”. Pois, considerando que “a base fundamental da natureza humana 117).
é a sociabilidade”, fora “necessário um mundo de invenções contra a natureza
para impedir que os homens vivessem juntos” (442). Todo o Antigo Regime era Essa concepção da história como “ressurreição” aplica-se tanto à estru­
visto como uma barreira artificial ao impulso natural dos homens para se unirem tura de enredo que as diversas histórias que Michelet escreveu pretendiam
uns aos outros. Toda a opressiva estrutura de alfândegas, impostos, taxas, leis, delinear como às estratégias explicativas nelas empregadas. Determina tanto o
regulamentos, pesos, medidas e dinheiro, todo o carcomido sistema de rivali­ conteúdo das histórias de Michelet como a forma. É seu “sentido” como
dades “cuidadosamente estimuladas e mantidas” entre “cidades, países e cor­ explicação e representação. Mas já que Michelet situou o ponto de resolução
porações - todos esses obstáculos, todos esses velhos baluartes, desagregam-se macro-histórico no momento em que, durante a Revolução, a perfeita liberdade
e caem num dia” (Ibid.). E, quando caem, “os homens se avistam, percebem e a perfeita unidade são realizadas pelo “povo” através da dissolução de todas
que são semelhantes, espantam-se de terem podido passar tanto tempo igno­ as forças inibidoras que se lhe antepunham, o tom de sua obra histórica estava
rando-se, deploram a insensata animosidade que os mantivera separados du­ fadado a tornar-se mais melancólico, mais elegíaco, na medida em que os ideais
rante tantos séculos, e redimem-se dela indo ao encontro uns dos outros e da Revolução em sua fase heróica refluíam para segundo plano entre as classes
abraçando-se num transporte de alegria” (Ibid.). Não existe nada, disse Miche­ sociais e as elites políticas que originariamente os tinham fomentado.
let, Michelet dominou o campo da historiografia na França durante a Monar­
quia de Julho: seu Précis d*histoire modeme (1827) foi o estudo padrão da
META-HISTÓR1A 165
164 HAYDENWHITE

A resolução cômica que sucedeu a esse estado de divisão foi a própria


história européia nas escolas francesas até 1850, quando uma nova onda de
Revolução. A disputa que precipitou a Revolução é caracterizada como uma
Reação levou o liberalismo a ingressar numa fase conservadora e com seu
luta “entre dois princípios, dois espíritos: o velho e o novo” (Michelet, Rev., 22).
ímpeto destruiu a carreira de Michelet na universidade. Sua História da Revo­
E o “novo” espírito, o espírito de justiça, vem “realizar, não abolir” (Ibid.). O
lução Francesa (em sete volumes, publicados no calor das paixões que os anos
espírito velho, o espírito de injustiça, existia exclusivamente para se opor à
de 1847-1853 geraram entre os franceses de todos os partidos) é prefaciada por
realização do novo. E esse princípio de oposição radical deu a Michelet a base
uma nota em que o tom elegíaco está associado às lembranças que Michelet
para caracterizar a Revolução numa única frase: “A Revolução não é senão a
guardava da morte de seu pai, ocorrida no momento em que ele acompanhava
reação tardia da justiça contra o governo do favor e a religião da graça” (27). A
com tristeza a morte lenta dos ideais da Revolução. Suas reflexões históricas,
Revolução foi uma inversão, uma substituição da tirania absoluta pela justiça
escreveu ele, tinham sido efetuadas “nas circunstâncias mais atrozes que podem
perfeita. Mas essa inversão foi menos explicada que simplesmente caracterizada
apresentar-se na vida humana, entre a morte e o túmulo, quando o sobrevivente,
como tal. Foi a “redenção” do povo de cuja história Michelet estivera indireta­
ele mesmo parcialmente morto, foi levado a julgamento entre dois mundos”
(Michelet, Rev., 14). O enredo romanesco micheletiano da história da França mente participando o tempo todo.
até a Revolução inseria-se assim numa percepção trágica mais ampla de sua Outra imagem utilizada por Michelet. para caracterizar a Revolução foi a
subseqüente desintegração. Essa compreensão da natureza trágica de seu do parto. Mas o parto imaginado era mais cesariano que natural. Durante suas
próprio tempo deu a Michelet outra razão para reivindicar o título de realista. viagens, escreveu ele, foi dar um passeio nas montanhas. Refletindo sobre um
pico de montanha que se tinha levantado vigorosamente “das entranhas da
Para ele essa condição era precisamente a mesma que existira na França na
década de 1780. terra”, disse Michelet, foi levado a devanear:
O Précis se encerra às vésperas da Revolução, com uma caracterização do
Quais foram então as revoluções ocorridas no interior da terra, que potências incalculáveis
estado de fragmentação a que havia chegado toda a sociedade francesa naquela combateram em seu seio, para que aquelas montanhas imponentes, perturbadoras, traspassando
época. Descreveu-o o próprio Michelet: rochas, despedaçando veios de mármore, irrompessem na superfície? Que convulsões, que agonia,
expeliram das entranhas do globo esse prodigioso gemido! [28]
Todo o mundo estava interessado no povo, amava o povo, escrevia para o povo; la
Bienfaisance était de bon ton, on faisait depetites aumônes et de grandes fêtes [395], Esses devaneios, disse ele, encheram-lhe o coração de violenta angústia,
pois “a natureza me fizera recordar com excessiva nitidez a história”. E a
Mas, enquanto a “alta sociedade” encenava de boa fé uma “comédie “história”, por sua vez, lhe lembrara a “justiça”, enterrada por muitos e muitos
sentimentale”, o “grande movimento do mundo” prosseguia numa direção que anos nas prisões das trevas:
iria em breve transformar tudo.
Que a justiça tivesse suportado por mil anos aquela montanha de dogma [cristão] sobre seu
coração e, esmagada sob esse peso, tivesse contado as horas, os dias, os anos, tantos anos infelizes
O verdadeiro confidente do público, o Fígaro de Beaumarchais, tomava-se cada dia mais - é, para aquele que sabe disso, uma fonte de lágrimas eternas. Aquele que por intermédio da
amargo; passava da comédia à sátira, da sátira ao drama trágico. A realeza, o Parlamento, a nobreza, história participou dessa longa tortura jamais irá recobrar-sc disso; aconteça o que acontecer,
todos cambaleavam de fraqueza; o mundo estava bêbado [commeiwe] [395-96}. estará triste; o sol, a alegria do mundo, nunca mais lhe trará conforto; ele viveu demasiado tempo
na tristeza e na escuridão; e meu próprio coração sangrou ao contemplar a longa resignação, a
docilidade, a paciência e os esforços da humanidade para amar aquele mundo de ódio e maldição
A própria filosofia adoecera da “ferroada” de Rousseau e Gilbert. “Nin­
sob o qual estava esmagada [Ibid].
guém acreditava mais em religião ou irreligião; todo o mundo, porém, gostaria
de acreditar; os espíritos mais animosos iam incógnitos buscar a crença nas
ilusões de Cagliostro e na tina de Mesmer.” No entanto, a França, como o resto Deve-se notar aqui uma diferença essencial entre os enfoques da história
de Herder e Michelet. Por um lado, Michelet por certo não se recusava a julgar
da Europa, envolveu-se no “diálogo interminável do ceticismo racional: contra
o niilismo de Hume erguia-se o aparente dogmatismo de Kant; e por toda parte as diversas figuras que divisava na paisagem histórica. Alem disso, não percebia
a majestosa voz poética de Goethe, harmoniosa, imoral e indiferente. A França, o processo histórico como uma harmonia essencial que manifesta sua bondade
e beneficência à humanidade em todas as suas operações. Como Ranke, Miche­
aturdida e dominada pela ansiedade, não entendia nada disso. A Alemanha
encenava a epopéia da ciência; a França produzia o drama social” (396). A let levava a luta e o conflito a sério, como aspectos inelutáveis da existência
histórica. Esse é outro sinal de seu “realismo”. Mas, desde que situou a
tristeza cômica (le triste comique) desses últimos dias da velha sociedade era
resolução desse drama num período e numa série de eventos que progressiva­
resultado do contraste entre as promessas grandiosas e a completa impotência
mente iam sendo despojados de sua condição de encarnações ideais da comu­
daqueles que as fizeram: “L 'impuissance est le traitcommun de tous les ministè-
nidade humana - isto é, na Revolução em sua fase popular (e, para ele,
res d’alors. Tous promettent, et nepeuvent rien” (Ibid.).
META-HISTÓR1A 167
166 HAYDENWHITE

que a Revolução exumou e levou a julgamento. A Revolução toi a ressurreição


anarquista) a apreensão essencialmente romanesca do processo histórico,
política e moral de tudo de bom e humano “enterrado” pelo velho regime.
por parte de Michelet, pouco a pouco tomou a cor de uma desconsolada
Assim considerada, a Revolução representava a vingança que a memória
apreensão de sua crescente falta de sentido como princípio em torno do qual
- isto é, a “história” - toma da imolação seletiva de homens vivos e da anulação
se pode organizar a história em geral. Ele continuou a professar sua crença nos
dos direitos dos mortos. Na Bastilha os homens não eram simplesmente assas­
ideais da Revolução e na visão social que justificava a crença e o ideal, mas seu
sinados, escreveu Michelet; eram, ao invés - o que era mais horrendo ainda na
tom se tornou cada vez mais desesperado na medida em que os acontecimentos
opinião de Michelet -, simplesmente “esquecidos”.
de 1789 recuavam no tempo.
A situação histórica da qual ele considerava em retrospecto o período da
Esquecidos! Terrível palavra! Que uma alma pereça entre almas! Não tinha aquele que
Revolução, situação em que as forças da tirania haviam mais uma vez assumido Deus criou para a vida o direito de viver pelo menos na memória? Que mortal ousará infligir,
o controle da vida nacional e internacional, impôs-lhe uma apreensão cada vez mesmo ao mais culpado, esta que é a pior das mortes - a de ser etemamente esquecido? [73]
mais irônica do processo histórico, um sentimento do eterno retorno do mal e
da divisão na vida humana. Mas ele resolutamente interpretou esse eterno Mas, num passo que revela sua própria concepção da santidade da tarefa
retorno do mal e da divisão como uma condição temporária para a humanidade do historiador, Michelet insistiu:
a longo prazo. A dúvida que o reconhecimento de sua própria condição inspirou
dentro dele foi transformada por um ato de vontade na precondição da espe­
Não, não creais nisso. Nada é esquecido - nem homem nem coisa. O que uma vez existiu
rança - na verdade, foi identificada com a esperança. Podia ele dizer a si mesmo, não pode ser assim aniquilado. As próprias muralhas não esquecem, o pavimento se tomará
como disse “do povo” às vésperas da Revolução, quando a vida parecia mais cúmplice, e transmitem sinais e ruídos; o ar não esquecerá [Ibid.].
sombria para esse mesmo povo:
Longe de incorrer na contemplação irônica da vida como prisão, Michelet
Não vos alarmeis com vossa dúvida. Essa dúvida já é fé. Acreditai, tende esperança! O tomou a si o encargo de “lembrar” os mortos vivos e os ideais da Revolução,
direito, embora postergado, terá seu advento; virá submeter a julgamento o dogma e o mundo. E que tivera por objetivo restituir os mortos vivos a seu legítimo lugar entre os
esse dia de julgamento se chamará Revolução [30]. vivos.
Às vésperas da Revolução - como no mundo que Michelet foi obrigado a
Assim, a estrutura de enredo romanesco de todo o processo histórico habitar depois da renovada imolação do ideal revolucionário por Napóleão III
permaneceu intacta. As condições de tragédia e ironia podiam instalar-se - “o mundo [estava] coberto de prisões, de Spielberg à Sibéria, de Spandau ao
dentro dela como fases do processo total, a serem anuladas no fogo da Revolu­ Mont-St.-Michel. O mundo [era] uma prisão!” (Ibid.) E, escrevendo a história
ção que suas próprias histórias pretendiam manter aceso. do advento da Revolução, Michelet solidariamente entrou no movimento po­
Ao contrário de Herder, que concebia a história como uma transformação pular que dentro em pouco explodiria em violência contra essa ofensa à memó­
gradual da humanidade, de um conjunto único de particularidades para outro, ria e à vida, reviveu-o:
Michelet concebia-a como uma série de inversões cataclísmicas causadas por
tensões crescentes que compelem a humanidade a colocar-se em campos Do padre ao rei, da Inquisição à Bastilha, a estrada é reta mas longa. Santa, santa Revolução,
opostos. Nessas inversões, a falsa justiça é substituída pela verdadeira justiça, o como tu vens devagar! - Eu, que venho esperando por ti há mil anos nas leiras da Idade Média -,
quê? devo esperar mais? - Oh. como o tempo demora a passar! Oh! como tenho contado as horas!
amor inconstante pelo amor verdadeiro, e a falsa religião do amor, o cristianis­
Tu nunca chegarás? [79]
mo, tirano que “cobriu o mundo com [um] mar de sangue”, por sua verdadeira
antítese, o espírito da Revolução (31). E seu propósito, disse Michelet, era
E quando as mulheres e crianças atacaram a Bastilha para libertar seus
testemunhar contra os aduladores de monarcas e sacerdotes, “afogar a falsa
maridos, filhos, amantes e irmãos lá aprisionados, Michçlet explodiu num grito
história e os bajuladores assalariados do homicídio, tapar-lhes a boca perjura”
de alegria: “Ó França, estás salva! Ó mundo, estás salvo!”
(33).
Essa salvação redundou numa dissolução de todas as diferenças entre os
O emblema da velha monarquia era, no relato de Michelet, a Bastilha; era homens, entre homens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, que transfor­
ela o símbolo da condição irônica em que um “governo da graça” mostrava sua
mou finalmente a nação num povo. Esse estado de perfeita integração era
“boa índole” concedendo lettres de cachet a favoritos por mero capricho e aos simbolizado pela imagem de Joana d’Arc: “Novamente vejo nos céus minha
inimigos da justiça por dinheiro. O crime mais nefando do velho regime era estrela juvenil em que por tanto tempo depositei minha esperança: Joana
condenar homens a uma existência que não era nem vida nem morte, mas “um
d’Arc”. Mas em seguida, em outras dessas efusões líricas, em que ofendeu a
meio-termo entre a vida e a morte: uma vida inanimada, enterrada”, um mundo
razão e a ciência, mas não a metáfora, Michelet exclamou: “Que importa se a
organizado “expressamente para o olvido”, a Bastilha. Foi essa vida “enterrada”
168 HAYDENWHTTE META-HISTÓRIA 169

donzela, mudando de sexo, se tornou um moço, Hoche, Marceau, Joubert ou de se elevar acima de tais “emoções” não deve ocultar o fato de que suas
Kleber” (Ibid.). próprias histórias não são menos marcadas por indícios de preferência pessoal
Em seu entusiasmo pelos acontecimentos que descrevia, Michelet dissol­ e inclinações partidárias do que as de Michelet. O importante é que ambos os
veu todo o senso de diferença entre homens, instituições e valores. Sua metafó­ historiadores agiam como guardiães da memória da raça, contra qualquer
rica identificação de coisas que parecem ser diferentes pôs de lado qualquer tirania que tivesse ofendido essa memória através de sistemática supressão da
senso das diferenças entre coisas, que é, para começar, o momento mesmo para verdade.
o emprego da metáfora. Toda diferença foi dissolvida em sua apreensão da Michelet concebia a tarefa do historiador como sendo exatamente seme­
unidade do todo. Assim, escreveu Michelet, “os mais belicosos dos homens” lhante à daquelas mulheres que invadiram a Bastilha para restaurar os direitos
tornam-se os “arautos da paz”; e a “Graça, em cujo nome a Tirania nos oprimiu, dos prisioneiros “esquecidos”. O historiador, disse Michelet num de seus
mostra-se consoante, identificada, com a Justiça”. Concebida como processo, momentos mais autocríticos, não é “nem César nem Cláudio, mas muitas vezes
a Revolução, disse ele, não é senão a “reação da eqüidade, o tardio advento da em seus sonhos vê uma multidão que chora e lamenta sua condição, a multidão
Eterna Justiça”; em sua essência, é “verdadeiramente Amor, e idêntica à daqueles que ainda não morreram, que gostariam de viver outra vez [qui
Graça” (80). i voudraient revivre]” (fragmento escrito por Michelet em 1842, citado por
Essas fusões de uma abstração com outra não foram conquistadas diale- Barthes, 92). Esses mortos não pedem apenas uma “urna e lágrimas”, e não
ticamente; foram meramente declaradas. Mas não foram vividas por Michelet basta somente repetir seus “suspiros”. O que exigem, disse Michelet, é
nem como abstrações nem como fusões, mas como identificações da única
essência que é tanto a substância da história quanto a causa em cujo nome um Édipo que decifre para eles o enigma que lhes foi incompreensível, um Édipo que lhes explique
Michelet trabalhava como historiador. “Amor” e “Graça” eram para ele “Jus­ as palavras que proferiram, as ações que praticaram e que não entenderam [Ibid.].
tiça”, que dizia ser sua “mãe”, e “Direito”, que dizia ser seu “pai”. Mas mesmo
a justiça e o direito eram demasiado distintos para ele, e assim ele os identificou
Isso parece sugerir que o historiador, escrevendo em nome dos mortos,
com Deus (“vós que sois um com Deus”) (Ibid.).
está escrevendo também para os mortos, não para leitores vivos do presente ou
Assim, finalmente, Deus amparou Michelet no serviço prestado à história
do futuro.
e garantiu-lhe a objetividade, que era apenas outra forma de “Justiça” e
“Graça”. No final da introdução à suz História da Revolução Francesa Michelet Mas em seguida Michelet mais uma vez trocou de imagem, e substituiu a
dirigiu-se a Deus diretamente, como antes se dirigira à “Revolução”: figura de Édipo pela de Prometeu. Como Prometeu, o historiador levará aos
mortos um fogo suficientemente intenso para derreter o gelo em que suas
E como és Justiça, hás de me amparar neste livro, onde meu caminho tem sido balizado “vozes” foram “congeladas”, para que os mortos possam “falar uma vez mais”
pelas emoções de meu coração e não por interesse pessoal, nem por qualquer consideração a esse por eles mesmos.
mundo terreno. Serás justo comigo, e eu o serei com todos. Pois para quem escrevi isto, senão para Mas nem isso basta. O historiador precisa ser capaz de ouvir e entender
ti, Eterna Justiça? [Ibid.]
“palavras que nunca foram pronunciadas, palavras que ficaram nos abismos dos
corações [dos mortos]”. É tarefa do historiador, finalmente, “fazer falar os
Ora, não se pode negar que o tom e o ponto de vista da obra de Michelet silêncios da história, aquelas terríveis pausas [points d’orgue] que nunca soarão
se colocam em total contraste com os de seu colega alemão mais “realista”, o de novo e que são exatamente seus tons mais trágicos”. Somente quando as vozes
judicioso Ranke, que constantemente insistia em sua relutância em “julgar” o dos mortos, e seus silêncios, forem devolvidas à vida
passado ou legislar para o futuro. Mas, na questão da “objetividade”, as
principais diferenças entre Michelet e Ranke são mais superficiais do que reais.
Elas residem no fato de que os princípios do amor, da graça e da justiça, que os mortos repousarão tranqüilos em seus túmulos. (Só então] começarão a compreender seu
destino, a modular suas dissonâncias numa harmonia mais suave, a dizer a si mesmo e em voz baixa
informavam o enfoque micheletiano do estudo da história, eram trunfos ocultos
as últimas palavras de Édipo: “Sede felizes por todo o tempo que há de vir”. As almas são saudadas
e expressamente encarnados nos princípios da “nação, do povo e da Revolução” e apaziguadas. Permitem que se fechem suas umas. (...) Preciosa uma de tempos esquecidos, os
mais do que implicitamente reverenciados e identificados com “o Estado, a sacerdotes da história - com que unção, com que solicitude eles a vão carregando e passando
Igreja e a sociedade estabelecida” como em Ranke. Michelet não estava menos adiante! (...) como carregariam as cinzas do próprio pai ou do filho. O filho? Mas não são eles
interessado do que Ranke na representação verídica do passado, em toda a sua mesmos? [Ibid.]
particularidade e unidade; mas acreditava que se podia escrever história, não
movido por qualquer “interesse particular” nem influenciado “por qualquer Mais uma vez, em 1872, no fim da vida, no prefácio à sua Histoire du XIX e
consideração a esse mundo terreno”, mas apenas seguindo o “caminho balizado siècle (II, 11), Michelet falou do papel do historiador como sendo essencialmente
pelas emoções de [seu] coração”. Que Ranke se declarasse guiado pelo desejo o de um guardião da “memória” dos mortos.
170 HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 171

Sim, cada pessoa morta deixa algum bem, sua memória, e exige que alguém cuide dele. Para as forças que são superadas em qualquer avanço ocorrido na sociedade ou na
quem não tem amigos, um magistrado deve cncarregar-se disso. Para a lei, a justiça é mais digna
consciência são úteis como materiais que entram na modelagem da nova
de confiança do que nossas ternuras desatentas, nossas lágrimas logo estancadas.
Esse magistrado é a História. (...) Nunca em toda a minha existência perdi isso de vista, o
sociedade e consciência. Como observou Michelet na introdução à sua tradução
dever do Historiador. Dei a muitos dos mortos cedo demais esquecidos o auxílio de que eu mesmo de A Ciência Nova, “Princípios da Filosofia da História”, a fé na natureza
terei necessidade. providencial do processo histórico é assegurada, não pela crença somente, mas
Eu os exumei para uma segunda vida [citado por Barthes, 91J. pela própria sociedade:

Essa concepção do dever do historiador não conflitava de modo algum O milagre da constituição (da sociedade] reside no fato de que em cada uma de suas
com a noção que Michelet tinha da necessidade de “franca e vigorosa parciali­ revoluções, ela encontra na própria corrupção do estado precedente os elementos da nova forma
dade pelo direito e pela verdade” por parte do historiador. A falsa parcialidade que é capaz de a redimir. É assim absolutamente necessário que lhe seja atribuída uma sabedoria
acima do homem (...) [au-dessus dt 1’homme] [xiv].
só penetrava na história quando os historiadores escreviam com medo ou na
esperança de agradar a autoridade estabelecida. O historiador mais honrado,
insistiu Michelet em 1856, na conclusão de sua História da França, tinha de Essa “sabedoria” não nos governa por meio de “leis positivas”, continuou
perder todo o “respeito” por certas coisas e certos homens a fim de servir de ele, mas serve a si mesma ao regular os “usos que seguimos livremente”. Assim,
juiz e redentor do mundo. Mas essa perda de respeito permitiria ao historiador concluiu Michelet, o princípio central do entendimento histórico reside nas
perceber até que ponto, “dans íensemble des siècles et Vharmonie totale de la idéias que Vico expôs em/l Ciência Nova:
vie de Vhumanité”, “o fato e o direito coincidem ao fim de tudo, e não contradizem
um ao outro”. Mas, advertiu, os homens mesmos fizeram o mundo social tal como é [tcl qu ’il esr]; mas este mundo não é menos
produto de uma inteligência, muitas vezes contrária, e sempre superior, aos fins particulares que
os homens fixaram para si mesmos [xlv].
situar nos pormenores, no conflito, este ópio fatal da filosofia da história, esses ménagemcnts de
uma falsa paz, é inserir a morte na vida, matar a história e a moral, ter de dizer, à maneira de alma
indiferente: “Que é o mal? Que é o bem?” [90] Repetiu então a lista de bens públicos (resultantes de interesses privada­
mente projetados) que assinalam o curso do avanço humano da selvageria à
Michelet admitia abertamente a orientação “moral” de sua obra, mas sua civilização e concluiu observando que “mesmo quando as nações tentam des­
pesquisa, insistia, lhe permitiria ver a verdadeira “fisionomia” dos séculos que truir-se, dispersam-se na solidão (...) e a Fênix da sociedade renasce das cinzas”
estudara; e ele havia pelo menos oferecido “une impression vraie” dela (Ibid.). (xlvi).
Michelet mencionou Vico como o pensador que ministrara a teoria da Essa imagem da Fênix é importante porque sua sugestão de um eterno
interação da consciência com a sociedade, graças à qual o fato da simples retorno aponta para a tendência inerentemente antiprogressista contida em
sucessão de formas sociais podia ser admitido como um processo providencial qualquer sistema de caracterização tropológica não informada por um firme
de natureza puramente secular. A teoria de Vico possibilitou a Michelet dissol­ senso dialético. O modo metafórico promove a degenerescência da concepção
ver todas as coletividades formais visíveis em particularidades e, depois disso, do processo histórico num “caos de formas” quando uma suposição da integri­
caracterizar em termos puramente metafóricos a natureza essencial tanto das dade metafórica da história começa a definhar. Logo que a fé de Michelet
particularidades quanto dos processos em que elas têm lugar. A desconfiança passou a se dissipar, na medida em que as forças anti-revolucionárias se
de Ranke acerca das teorias abrangentes de qualquer tipo predispunha-o a tornavam preponderantes, não lhe restou outra saída senão incorrer na reflexão
suspender a busca de sentido e ordem na história com a apreensão das formas melancólica sobre a derrota do ideal cujo triunfo inicial ele havia narrado em
acabadas da sociedade e da cultura que haviam tomado corpo em seu próprio suas primeiras histórias.
tempo e a usar essas formas como padrão para qualquer sentido que a história As principais diferenças entre a concepção da história de Michelet e a de
em geral pudesse ter. Assim, esses dois historiadores, que tinham tanto em Herder podem agora ser especificadas. Herder caracterizou os objetos ocupan­
comum na maneira como prefiguravam o campo histórico e seus processos, tes do campo histórico no modo da metáfora e depois passou para uma
tendiam para modos alternativos de caracterização que lhes permitiam escapar integração sinedóquica do campo através das estratégias explicativas do orga-
à ameaça da ironia. nicismo e das estratégias de enredo da comédia. Michelet começou da mesma
Michelet encontrou apoio no modo da metáfora, e pôs em enredo a maneira, mas os padrões de integração que ele discerniu naquele campo eram
história como estória romanesca, porque seu sentido da coerência de todo o representados sob uma perspectiva que lhe era dada por sua percepção irônica
processo era sustentado por uma crença na natureza unitária das partes. da natureza evanescente e transitória desses padrões. A estória romanesca da
Michelet captou a questão essencial que Vico havia suscitado acerca de qual­ luta do povo francês contra a tirania e a divisão e da consecução de uma perfeita
quer concepção especificamente histórica da realidade humana - a saber, que unidade durante o primeiro ano da Revolução é pouco a pouco afastada pela
172 HAYDENWHITE
META-H1STÓR1A 173

compreensão crescente em Michelet da ressurgência e vitória (ao menos tem­


aquele momento de pura conjunção que pensou ter visto na história da França
porária) das forças bloqueadoras. Michelet continuou a escrever história como
no decorrer de um único ano, 1789. No fim, pôde louvar aqueles indivíduos que
o defensor dos inocentes e justos, mas sua devoção a eles pouco a pouco se
identificou como soldados a serviço do ideal, e pôde dedicar sua vida a narrar
enrijeceu, tornou-se mais “realista”, ao compenetrar-se do fato de que o
a estória deles num tom e modo que viessem a promover o ideal no futuro. Mas
resultado desejado ainda estava por alcançar. Ao contrário de Herder, que
o próprio ideal nunca poderia realizar-se no tempo, na história, pois era tão
estava disposto a acreditar que toda resolução de um conflito histórico era
evanescente quanto o estado de anarquia que pressupunha para sua realização.
desejável simplesmente porque era uma resolução, Michelet reconhecia que o
historiador deve assumir uma posição pró ou contra as forças em ação nos
diferentes atos do drama histórico. Sua própria perspectiva dos agentes e
agências do processo histórico era irônica; ele distinguia entre os que eram bons
e os que eram maus, muito embora fosse dominado pela esperança de que o
conflito entre os representantes desses agentes produzisse o tipo de resultado
triunfal para as forças do bem que julgava ter sido conseguido na França em
1789. O suposto “realismo” de seu método consistia em sua inclinação a
caracterizar numa linguagem densamente carregada de metáfora os represen­
tantes dos dois tipos de forças presentes no processo histórico. Diferentemente
de seus predecessores setecentistas, Michelet imaginava que sua tarefa como
historiador era a de guardião dos mortos, fossem eles, no seu entender, bons ou
maus, mesmo que o fim visado fosse o de servir àquela justiça segundo a qual
os bons são definitivamente libertados da “prisão” do olvido humano pelo
próprio historiador.
Muito embora Michelet se tivesse na conta de liberal e escrevesse história
para servir à causa liberal como ele a entendia, na realidade as implicações de
sua concepção da história são anarquistas. Como se pode ver no modo como
caracterizou em sua História da Revolução Francesa a condição a que chegou o
povo francês em 1789, ele concebeu o estado ideal como sendo aquele em que
todos os homens estão natural e espontaneamente unidos em comunidades de
emoção e atividades compartilhadas que não requerem nenhuma direção for­
mal (ou artificial). No estado ideal da humanidade as distinções entre coisas, e
entre coisas e suas significações, estão dissolvidas (...) em puro símbolo, como
ele mesmo o expressou, em unidade, graça perfeita. Qualquer divisão entre
homem e homem é vista como estado de opressão, que os justos e virtuosos
procurarão dissolver. As diversas unidades intermediárias representadas por
Estados, nações, Igrejas etc., consideradas por Herder como manifestações da
comunidade humana essencial e vistas por Ranke como meios para a unificação,
eram encaradas por Michelet como impedimentos ao desejado estado de
anarquia, que, para ele, seria o único a assinalar o surgimento de uma verdadeira
humanidade.

Dada a concepção micheletiana da única forma ideal possível de comu­


nidade humana, parece improvável que ele se dispusesse a ver em qualquer
forma específica de organização social efetivamente registrada na história uma
aproximação mesmo longínqua do ideal. Enquanto Herder era compelido, pela
lógica de sua concepção da história, a aceitar tudo, a nada criticar e a louvar
qualquer coisa simplesmente por ter existido, Michelet era incapaz, pela lógica
de sua concepção da história, de encontrar virtude em qualquer coisa salvo
2

RANKE
0 REALISMO HISTÓRICO COMO COMÉDIA

INTRODUÇÃO

Numa passagem que se tomou canônica no credo da ortodoxia da profis­


são historiográfica, o historiador prussiano Leopold von Ranke caracteriza o
método histórico, de que foi fundador, nos termos de oposição aos princípios
de representação encontrados nos romances de aventura de Sir Walter Scott.
Ranke ficara encantado com os quadros que Scott havia pintado da época da
cavalaria. Eles lhe tinham inspirado o desejo de conhecer mais amplamente
aquela época, de vivê-la de maneira mais imediata. E por isso fora às fontes de
história medieval, aos documentos e aos relatos contemporâneos da vida na­
quele tempo. Escandalizou-se ao descobrir não só que os quadros de Scott eram
em grande parte produtos da fantasia mas também que a vida real da Idade
Média era mais fascinante do que qualquer descrição novelística dela jamais
poderia ser. Ranke descobrira que a verdade era mais estranha do que a ficção
e, para ele, infinitamente mais satisfatória. Resolveu, por isso, limitar-se no
futuro apenas à representação daqueles fatos que eram atestados pelo testemu­
nho documental, reprimir os impulsos “românticos” de sua própria natureza
sentimental e escrever história para relatar exclusivamente o que houvesse de
fato sucedido no passado. Esse repúdio do romantismo foi a base da marca da
historiografia realista de Ranke, marca que, desde a popularização do termo
por Meinecke, veio a ser chamada de “historicismo” e que ainda serve como
modelo daquilo a que uma historiografia realista e profissionalmente responsá­
vel deve aspirar.
176 HAYDENWHITE METAHISTÓRIA 177

Mas a concepção de história de Ranke não se baseou só na rejeição do que sua obra aspirava, “o acontecimento em sua inteligibilidade humana, sua
romantismo. Ela se cercou também de várias outras rejeições: o filosofar unidade e sua diversidade”, só poderia ser atingido por um movimento do
apriorístico de Hegel, os princípios mecanicistas de explicação que predomina­ particular ao geral, nunca pelo procedimento inverso (57). Posteriormente, nos
vam nas ciências físicas e nas escolas positivistas de teoria social da época e o anos 1830, ele discorreu sobre as únicas “duas maneiras de adquirir conheci­
dogmatismo dos credos religiosos oficiais. Em suma, Ranke rejeitava qualquer mento acerca das coisas humanas”, ao alcance de uma consciência humana
coisa que impedisse o historiador de ver o campo histórico em seu caráter puramente secular: aquela que avançava “através da percepção do particular”
imediato, particular e vívido. O que ele considerava como método histórico e aquela que procedia “por abstração”. A primeira era, dizia ele, o “método”
adequadamente realista era o que restava à consciência realizar depois de ter da história; a segunda era o da filosofia (58-59). Além disso, indicou as duas
rejeitado os métodos da arte romântica, da ciência positivista e da filosofia “qualidades” sem as quais, no seu entender, ninguém podia aspirar ao ofício de
idealista do seu tempo. historiador: amor ao “particular por si mesmo” e resistência à autoridade de
“idéias preconcebidas” (59). Só através da “reflexão sobre o particular”, o curso
Isso não queria dizer, como concluíram alguns dos intérpretes de Ranke, “do desenvolvimento do mundo em geral (...) se torna visível” (Ibid.).
que sua concepção de objetividade se aproximava da do empirista ingênuo. Mas o curso do desenvolvimento não podia ser caracterizado em função
Muito mais do que isso estava em jogo na visão de mundo que desde então daqueles “conceitos universais” com que o filósofo legitimamente opera: “A
passou a ser chamada de historicismo. Essa visão de mundo está escudada em tarefa da história é a observação desta vida que não pode ser descrita por Um
várias preconcepções peculiares a setores específicos da comunidade acadêmi­ só pensamento ou Uma só palavra” (60). Ao mesmo tempo era inegável que o
ca da época de Ranke. A fim de distinguir a concepção peculiar de “realismo” mundo apresentava sinais de ser governado por um poder espiritual no qual as
que ela promovia naquele tempo e diferenciá-la das concepções românticas, particularidades da história devem no fim de contas encontrar sua unidade
idealistas e positivistas de “realismo” contra as quais foi proposta, eu a chamarei como partes de um todo (Ibid.). A presença deste espírito justificava a crença
de “realismo doutrinário”, pois ela supõe ser o realismo um ponto de vista que em que a história era mais do que um espetáculo de “força bruta”. E a natureza
não deriva de preconcepções explícitas sobre a natureza do mundo e seus desse espírito só poderia ser entrevista por uma consciência religiosa, à qual
processos, mas que presume que a realidade pode ser conhecida “realistica­ não se podia recorrer em busca de soluções para problemas históricos especí­
mente” por um repúdio consciente e consistente das formas em que uma arte, ficos. Mas uma forma sublimada dessa apreensão religiosa do mundo era
uma ciência e uma filosofia distintivamente “modernas” aparecem. imprescindível a uma adequada apreciação das partes e da relação das partes
com o todo. Como Ranke escreveu em outro fragmento durante os anos 1860,

o estudo das particularidades, mesmo de um único detalhe, tem seu valor, se é bem feito. (...) Mas
AS BASES EPISTEMOLÓGICAS DO MÉTODO (...) o estudo especializado, também, estará relacionado com um contexto maior. (...) O alvo final
HISTÓRICO DE RANKE - ainda não atingido - permanece sempre a concepção e composição de uma história da humani­
dade [61].

Comenta-se com freqüência que a concepção de explicação e represen­ Os estudos especializados poderiam certamente obscurecer a unidade de
tação histórica de Ranke estava definitivamente estabelecida por volta de 1850 todo o processo histórico, mas não era preciso, insistiu Ranke, “temer que
e que não se alterou nem evoluiu (na verdade tendeu a degenerar num sistema cheguemos no fim às vagas generalidades com que se satisfaziam as gerações
aplicado mecanicamente) nos trinta anos seguintes. As revoluções de 1848-1851 anteriores”. De fato:
e 1870-1871 não tiveram efeito algum sobre ele; não lhe deram nenhum indício
das fraquezas ou imperfeições essenciais do sistema de organização social e Depois do êxito e da eficácia dos estudos que em todas as partes têm sido empreendidos
cultural que a Europa forjara, nas décadas de 1830 e 1840, ao cabo de quase com perseverança e seriedade, essas generalidades já não podem ser apresentadas. Nem podemos
voltar às categorias abstratas que em várias épocas as pessoas costumavam acolher. Também é
dois milênios de luta. A visão cômica continuava incólume, como Droysen viu
improvável que um acúmulo de apontamentos históricos, com julgamento superficial do caráter e
com toda a clareza no estudo crítico que fez de Ranke em 1868. da moral humanos, redunde em conhecimento cabal e satisfatório [62].
No prefácio às suas Histórias das Nações Latinas e Germânicas de 1495 a
1514, que apareceram em 1824, Ranke declarou que seu escopo fora narrar as Assim, o labor histórico tinha de avançar em dois níveis simultaneamente:
histórias das nações “em sua unidade” (Stern, 56-57). Mas a compreensão “a investigação dos fatores vigentes nos acontecimentos históricos e o entendi­
daquela unidade só podia vir, sustentou, através do estudo das particularidades. mento de seu relacionamento universal”. Compreender “o todo” embora “obe­
Admitiu que sua concentração em “particularidades” podia dar à sua narrativa decendo aos ditames da pesquisa metódica” seria sempre a “meta ideal, pois
uma aparência “rude, desconexa, incolor e maçante”. Mas o “sublime ideal” a abarcaria um entendimento solidamente enraizado de toda a história do ho­
178 HAYDENWHUE METAHISTÓR1A 179

mem”. A pesquisa histórica não sofreria, concluiu, “com sua conexão com o subjetiva. Ao mesmo tempo, não se podia impelir o pensamento com excessiva
universal”, pois, sem “este elo”, a pesquisa se tornaria “debilitada”. Ao mesmo precipitação para o modo sinedóquico de compreensão, que sancionava a
tempo, “sem pesquisa metódica, a concepção do universal degeneraria num procura de coerências formais no sistema histórico, sem ter de suportar a
fantasma” (Ibid.). acusação de idealismo, que lhe teria sido tão fatal quanto a própria acusação
Citam-se com freqüência essas observações para indicar até que ponto o de romantismo. Assim, Ranke prefigurou o campo histórico no modo da
ideal concebido por Ranke violava os princípios metodológicos que o guiavam metáfora, que sancionava um interesse primordial pelos acontecimentos em sua
em suas pesquisas. Por exemplo, Von Laue distinguiu entre “as conclusões mais particularidade e singularidade, sua nitidez, colorido e variedade, e depois
amplas da historiografia de Ranke, seus subentendidos religiosos e sua ambição sugeriu a compreensão sinedóquica dele como campo de coerências formais,
filosófica de captar as intenções divinas da história”, e seu “método”, tendo este cuja unidade fundamental ou final podia ser apresentada por analogia com a
sobrevivido enquanto aqueles foram rejeitados. O fato é que, disse Von Laue, natureza das partes. Isso não só livrava Ranke de ter de procurar leis causais e
Ranke relacionais universais na história, de tipo sincrônico (positivista) ou dialético
(hegeliano), como também lhe permitia acreditar que a modalidade mais
deixou uma grande escola de historiadores que estão em acordo fundamental sobre padrões elevada de explicação a que a história poderia aspirar era a de uma descrição
comuns de objetividade. Por toda parte os historiadores acadêmicos ainda insistem na necessidade narrativa do processo histórico. O que Ranke não viu foi que se poderia
de estudar criticamente as fontes mais originais, de penetrar em todos os detalhes, de chegar a perfeitamente rejeitar um enfoque romântico da história em nome da objetivi­
generalizações e à síntese a partir de fatos primários. Ainda se apegam aos ideais de objetividade
dade, mas que, enquanto a história fosse concebida como explicação por narra­
e subordinação do historiador a seus materiais [138].
ção , seria necessário trazer para a tarefa de narração o mito, ou estrutura de
enredo, arquetípico, o único pelo qual se poderia dar forma àquela narrativa.
Tudo isso é correto, mas não indica adequadamente até que ponto as
noções de “objetividade”, “estudo crítico” e “penetração nos detalhes” e a
produção de generalizações a partir do exame de “fatos primários”pressupõem
O PROCESSO HISTÓRICO COMO COMÉDIA
concepções da natureza da verdade e da realidade sobre as quais o tipo de
“conclusões mais amplas”, que Ranke afirmava inferir de seu estudo dos mate­
riais, podem ser justificadas. A enorme produtividade de Ranke (suas obras O mythos cômico serviu de estrutura de enredo para a maioria das obras
completas estendem-se por mais de sessenta volumes), que reflete um padrão históricas de Ranke e de arcabouço dentro do qual cada uma dessas obras pode
uniformemente alto de pesquisa e talento para a representação narrativa, só é ser encarada como um ato individual de um drama macrocósmico. Esse mythos
compreensível em função da certeza que ele levou para o exame dos materiais permitiu a Ranke concentrar-se nos detalhes individuais das cenas que narrava,
e de sua confiança na adequação do critério que usou para distinguir na massa mas proceder com resoluta autoconfiança através da profusão de documentos
de dados õ testemunho histórico significativo e o irrelevante. Foi a confiança à seleção segura daqueles que eram significativos e daqueles que eram insigni­
em seu critério, cuja natureza foi por ele concebida como capaz de diferenciar ficantes como testemunho. Sua objetividade, seus princípios críticos, sua tole­
seu enfoque da história do dos positivistas, românticos e idealistas, que caiu no rância e simpatia por todos os lados dos conflitos com que deparava em todo o
gosto dos historiadores - conservadores e liberais, profissionais e amadores - registro histórico eram distribuídos dentro da atmosfera sustentadora de uma
prefiguração meta-histórica do campo histórico como conjunto de conflitos que
de sua época, e de modo a fazer dele o modelo do que devia ser uma consciência
devem necessariamente terminar em resoluções harmoniosas, resoluções em
histórica “realista”.
que a “natureza” é finalmente suplantada por uma “sociedade” que é tão justa
Ranke compreendeu intuitivamente que a historiografia da nova época,
quanto estável. Assim, em seu ensaio “As Grandes Forças”, Ranke escreveu:
se devia servir aos propósitos que seus valores exigiam que servisse, tinha de
começar pelo repúdio preliminar do modo metonímico, com sua concepção A história do mundo não apresenta um tumulto tão caótico, sucessão contraditória e casual
mecanicista de causação e suas irônicas implicações para os valores e os ideais de Estados e povos como parece à primeira vista. Nem é o quase sempre dúbio avanço da civilização
sublimes. Esse repúdio não precisava ser defendido formalmente, porquanto sua única significação. Existem forças e na verdade forças espirituais, vivificantes, criativas, ou
Herder já o tinha justificado. Além disso, a Revolução e a Reação haviam melhor, a própria vida, e há energias morais, cujo desenvolvimento vemos. Elas não podem ser
confirmado a falência de qualquer enfoque abstrato da realidade social, e o definidas ou colocadas em termos abstratos, mas c possível contemplá-las e observá-las. Pode-se
romantismo, em sua poesia e arte, ilustrara a justificação dos impulsos irracio­ chegar a ter simpatia por sua existência. Elas se expandem, apreendem o mundo, aparecem em
numerosas expressões, opõem-se e reprimem-se e sobrepujam umas às outras. Em sua interação
nais do homem. Mas tampouco podia o pensamento histórico reverter a um e sucessão, em sua vida, em seu declínio c rejuvenescimento, o que portanto abarca uma plenitude
modo meramente metafórico de caracterizar o campo histórico e ainda assim cada vez maior, uma importância mais elevada e mais ampla extensão - nisso reside o segredo da
reclamar o título de “ciência” com que Ranke pretendia vê-lo contemplado se história do mundo [Von Laue (Org.), 217].
lhe fosse permitido fazer jus a uma consideração maior do que a da opinião
180 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 181

Aqui a metáfora sancionadora é manifestamente organicista, a ênfase vez criam instituições específicas (Igrejas e Estados) para a realização de seus
incide no próprio processo; mas o processo denotado não é um simples surgi­ destinos como nações. Os seres humanos, como indivíduos e como povos, eram
mento e desaparecimento das coisas no tempo, em seu próprio tempo. O tempo concebidos como sendo governados pela paixão natural, ou animal, e conse-
em si é dotado de valor em virtude da percepção de uma progressão para uma qüentemente como sendo por natureza desregrados e destrutivos. Mas, de
meta, muito embora a própria meta permaneça indeterminada e seja caracteri­ acordo com Ranke, em duas instituições, a Igreja e o Estado, encontram-se
zada apenas como a realização da coerência formal em geral. instrumentos através dos quais as energias sem direção dos povos podem ser
O fim ou meta para que aponta todo o desenvolvimento é, porém, espe­ canalizadas para projetos humanamente benéficos.
cificado no “Diálogo sobre a Política” de Ranke. Aludindo aos Estados-nações Ranke não se preocupava com especulações inúteis sobre as origens de
que se formaram no decorrer da longa passagem do fim dos tempos medievais Igrejas e Estados ou a maneira pela qual se constituíram no início. O caráter
até a Restauração, Ranke invocou a metáfora de um sistema celestial para geralmente benéfico dessas duas instituições era por ele considerado um fato da
caracterizar o resultado do processo histórico na Europa: história, uma verdade estabelecida não só pela reflexão histórica mas também
pela experiência cotidiana. Pessoalmente estava convencido de que essas insti­
Essa inúmeras comunidades separadas, terreno-espirituais, impulsionadas por energia tuições tinham sido fundadas por Deus para impor ordem a uma humanidade
moral, crescendo irresistivelmente, avançando em meioa toda a turbulência do mundo para o ideal, desregrada; e pensava que um estudo imparcial da história confirmaria o papel
cada qual em sua própria rota! Contemplai-os, a esses corpos celestes, em seus ciclos, em sua mútua
geralmente benéfico desempenhado por essas duas instituições na vida humana,
gravitação, seus sistemas! [180J
que poderia sugerir ao piedoso a origem divina de ambas. Mas não era neces­
sário acreditar na divindade delas para reconhecer-lhes a função ordenadora
Aqui a percepção organicista utilizada para caracterizar o processo de
nas vidas dos povos. Elas constituem os únicos princípios ordenadores no tempo
crescimento e desenvolvimento dá lugar a uma percepção mecânica mais
histórico; é através delas que um “povo” pode dirigir suas energias espirituais
adequada à caracterização de um sistema em equilíbrio. A imagem do sistema
e físicas para a constituição de si mesmo como “nação”.
solar tem a vantagem de sugerir movimento contínuo dentro do sistema. A
Assim encaradas, as forças da ordem e da desordem que constituem as
história não é concebida como se chegasse a um fim na própria época de Ranke,
condições primeiras do processo do mundo encontram suas formas históricas
mas o movimento é agora regrado, ordenado. É movimento dentro dos limites
em Igrejas e Estados de um lado e em povos do outro. Essas categorias não se
de um sistema acabado de relações que por sua vez já não é concebido como
excluem mutuamente porque Igrejas e Estados são equipados por seres huma­
sujeito à mudança.
nos assim como os povos se compõem de seres humanos que partilham um
Ranke percebia o período anterior à Revolução Francesa como aquele
domicílio comum e um dote cultural comum em matéria de língua, conjuntos
em que as forças em ação tentavam encontrar um lugar que lhes fosse adequado
específicos de costumes, usos, hábitos etc. A conseqüência desse fato é que
num sistema; o próprio sistema estava sendo constituído, ou se constituía a si
Igrejas e Estados nem sempre militam em nome dos princípios da ordem e do
mesmo, por um processo de conflito e mediação. Ranke encarava seu próprio progresso pacífico, mas de tempos em tempos procuram exceder suas esferas
tempo, o período pós-revolucionário, como o tempo em que a constituição do naturais de autoridade. Por exemplo, os eclesiásticos podem tentar usurpar a
sistema estava afinal concluída; em que o sistema se tornava um mecanismo autoridade do Estado, daí resultando o declínio da força política de um povo;
auto-equilibrador, cuja forma geral apropriada estava terminada. O movimento,
ou os estadistas procuram usurpar toda a autoridade espiritual, acarretando a
o crescimento e o desenvolvimento deveriam continuar, mas numa base bem diminuição da energia espiritual da vontade do povo e a degenerescência da
diferente de que existira antes que os elementos do sistema estivessem plena­ vida privada dos cidadãos e da moral em geral. Em tais ocasiões a nação será
mente constituídos. A sociedade finalmente substituía a natureza como o meio
abalada pela guerra civil e incitará à conquista as nações vizinhas que, pelo fato
dentro do qual a história devia operar com vistas à realização de sua meta
de terem atingido um equilíbrio mais adequado de autoridade política e ecle­
imanente, a consecução de uma humanidade integral.
siástica dentro dos termos de suas “idéias” nacionais específicas, poderão
imprimir forma e direção unitária a seu impulso intrínseco de crescimento e
expansão à custa da nação enfraquecida. E, a menos que uma nação assim
A “GRAMÁTICA” DA ANÁLISE HISTÓRICA ameaçada possa apelar para reservas de força espiritual ou física em tais
períodos de crise, a menos que possa instituir reformas e restabelecer o relacio­
Para Ranke o processo histórico per se, diferentemente do processo total namento entre instituições eclesiásticas e políticas exigido pela “idéia” que a
do mundo, era um campo perfeitamente estável (sua estabilidade era garantida informa, o desastre ocorrerá e o povo daquela nação desaparecerá da história
por Deus), povoado por objetos discretos (seres humanos, cada qual individual­ para sempre.
mente constituído por Deus) que se juntam e se combinam em diferentes
entidades (povos, também individualmente constituídos por Deus), que por sua
182 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 183

Também uma concepção específica do Estado ou da Igreja pode adquirir modo característico de organização social do sistema europeu de Estados-na­
poder excessivo sobre a imaginação dos homens em todas as partes e pode ções. Esse modo encontrou sua expressão nítida no aparecimento do princípio
expandir seu poder para além dos limites do povo para o qual exclusivamente do equilíbrio de poder como corolário da diferenciação nacional.
é adequada, constituindo-se como uma “Igreja universal” (como a católica Da mesma forma que uma nação encontrava em sua “idéia” o mecanismo
romana) ou um “Estado universal” (como o Sacrum Imperium do povo alemão). para ajustar as relações internamente, entre povo, Igreja e Estado, também a
Isso, de fato, foi o que aconteceu na Idade Média, acreditava Ranke, resultando “idéia” de Europa funcionava como mecanismo regulador para ajustar as
daí que - como escreveu ele - o “progresso pacífico” se tornou lento, a relações externamente, entre as diversas “nações” que haviam tomado forma
transformação dos povos em nações encontrou obstáculos e a cultura definhou no seio do mundo amorfo e heterogêneo da Idade Média. Ao contrário de
numa escuridão gótica de indecisão, ansiedade e medo. Mas, no fim, aparece­ muitos conservadores arcaístas que viam apenas perversidade na Revolução
ram reformadores entre todos os vários povos que juntos constituíam a civiliza­ Francesa, Ranke admitia que muita coisa boa resultara dela. Por exemplo, em
ção européia, e esses reformadores atacaram tanto a idéia de uma Igreja consequência da Revolução, as nações haviam ingressado num estágio final de
universal quanto a de um Estado universal. Além disso, conquanto se apegassem autoconsciência, as grandes potências tinham divisado um escopo comum na
à verdade essencial da religião cristã e à unidade essencial da cultura européia, manutenção de cada uma por todas as outras, e a civilização européia penetrara
esses reformadores arquitetaram formas de organização eclesiástica e política, finalmente em seu milênio, no qual o “progresso pacífico” podia prosseguir
e das relações entre elas, que eram adequadas à expressão das necessidades indefinidamente sem temor real de revolução vinda de baixo ou de guerras de
específicas desses vários povos, de acordo com as “idéias” nacionais que os aniquilação total vindas de fora. Assim, na introdução a seu ensaio “As Grandes
informavam. Forças”, Ranke escreveu:
Essa era a verdadeira significação do Renascimento e da Reforma e do
período das guerras religiosas que se seguiram. Durante esse período a “idéia” Se o principal acontecimento dos cem anos que precederam a Revolução Francesa foi a
da nação emergiu como o princípio autoconscientemente orientador dos diver­ ascensão das grandes potências em defesa da independência européia, também o principal acon­
tecimento do período que se lhe seguiu é o fato de que as nacionalidades rejuvenesceram,
sos povos da Europa, que se constituíram como nações distintas com destinos
revigoraram-se e voltaram a desenvolver-se [215].
históricos inconfundíveis e fundaram Igrejas e Estados adequados à direção de
suas energias por caminhos regulares e humanamente benéficos.
Sua própria época, disse ele, tinha

promovido uma grande libertação, não totalmente no sentido de dissolução mas antes num sentido
A “SINTAXE” DO ACONTECIMENTO HISTÓRICO criador, unificante. Não basta dizer que deu vida às grandes potências. Também renovou o princípio
fundamental de todos os Estados, isto é, a religião e a lei, e deu nova vida ao princípio de cada
Estado individual [216].
Logo que os povos da Europa se tinham constituído em nações, com
Igrejas e Estados exclusivamente adequados a suas necessidades espirituais e
políticas específicas, e dentro do contexto geral europeu de certos atributos Dir-se-ia que, para Ranke, a constituição de nacionalidades auto-regula­
culturais e religiosos compartilhados, a civilização européia entrou numa fase doras unidas numa comunidade mais ampla de relações de poder auto-regula­
qualitativamente nova de desenvolvimento histórico. A constituição dos povos doras representava um fim para a história tal como os homens a tinham
da Europa em Estados-nações diferenciados criou as condições para o apare­ conhecido até aquela época. Em suma, para ele a história terminava no presente;
cimento de um sistema de organização cultural completamente autônomo, com a constituição da Europa em meados do século XIX, fixava-se a forma
progressista e auto-regulador. Tão logo as várias “idéias” das várias nações básica de todo o desenvolvimento futuro. O sistema achava-se em equilíbrio
afloraram à consciência dos vários povos da Europa, foram automaticamente quase perfeito; de tempos em tempos poderia haver necessidade de ajustes,
estabelecidos os controles destinados a regular as relações entre o povo, a Igreja assim como o sistema de Newton reclamava a intervenção ocasional do relojoei­
e o Estado dentro das nações por um lado e entre as diversas nações assim ro divino para retificá-lo, e esses ajustes tomariam a forma de ocasionais
constituídas por outro. O sistema não foi completamente elaborado durante distúrbios civis ou guerras limitadas entre os Estados.
quase três séculos e, antes que estivesse terminado, teve de resistir a ataques É óbvio que a concepção de Ranke do desenvolvimento histórico europeu
procedentes dos equivalentes seculares do velho conceito universalista medie­ pode ser dissociada dos postulados possibilitadores de sua visão total do mundo
val de organização social, às tentativas de hegemonia européia e até mundial e julgada por seus próprios méritos como interpretação ou como esquema para
por parte de chefes políticos como Carlos V, Filipe II, Luís XIV, os jacobinos organizar o estudo da história européia. E, ao empregar seu próprio método de
e Napoleão. Mas esses ensaios de hegemonia política foram frustrados pelas crítica das fontes e determinação objetiva dos fatos, outro historiador poderia
operações do princípio de diversidade-na-unidade que Ranke julgava ser o discordar dele a respeito do que constituía os componentes do campo histórico
184 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 185

e os possíveis modos de relacionamento entre eles. O próprio Ranke foi social fossem consideradas tentativas imperfeitas de realizar o que ele imagina­
generoso com os críticos de sua obra, que dirigiram a atenção dele não só para va ter sido conseguido em seu próprio presente. E foi por conseguinte obrigado
“fatos” que havia negligenciado ao caracterizar determinados períodos, Esta­ a sustentar que, já que este presente se concretizou, nenhuma outra forma de
dos, indivíduos, idéias e assim por diante, mas também para categorias inteiras organização social pode emergir. Como Hegel, Tocqueville e Marx, a única
de fatos, como os econômicos, que originariamente não tinham lugar em seu forma alternativa de organização social que ele podia conceber era internacio­
sistema. É, porém, importante reconhecer que um elemento em seu sistema de nal, ou transnacional, baseada em algum princípio cosmopolita ou universal.
interpretação histórica funcionava como mais do que um dado puramente histó­ Mas excluiu essa possibilidade com o auxílio da própria história: tais formas
rico; refiro-me à sua noção da “idéia da nação”. universais tinham sido tentadas na Idade Média - na Igreja universal e no
Sacrum Imperium - e se tinham revelado deficientes; portanto, tinham sido
permanentemente postas de lado. Ranke admitiu a possibilidade de tentativas
A “SEMÂNTICA” DA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA de reviver essas formas universalistas de comunidade no futuro; e viu tais
tentativas no liberalismo, na democracia, no socialismo e no comunismo. Mas
A redundância de minha caracterização da “noção” da “idéia da nação” julgava que tais movimentos eram, como a própria guerra, apenas ocasiões de
é exigida pela função que essa noção desempenha no sistema de Ranke, pois a fortalecimento e ulterior articulação da “idéia” nacional eternamente viável.
“idéia da nação” não é apenas uma idéia entre muitas que os homens podem
ter dos meios de organizar a sociedade humana; é o único princípio possível de
organizá-las para a realização do “progresso pacífico”. Em resumo, a “idéia da AS IMPLICAÇÕES CONSERVADORAS DA IDÉIA
nação” era para Ranke não apenas um dado mas também um valor; mais, era o DA HISTÓRIA DE RANKE
princípio em virtude do qual se podia atribuir a tudo na história uma significação
positiva ou negativa. Ranke demonstrou-o quando caracterizou a “idéia da NoPolitische Gesprache, Ranke argumentou que as guerras não determi­
nação” como eterna, imutável, um pensamento de Deus. Admitiu que os povos nam “as formas de organização política interna” mas apenas “suas modifica­
podem vir e ir, as Igrejas podem formar-se e desaparecer, e os Estados podem ções”. Em “As Grandes Forças”, equiparou sua própria época à do período
surgir e extinguir-se; e que é tarefa do historiador narrar a passagem deles ou, helenístico. O período helenístico, escreveu,
em épocas mais recentes, reconstruí-los em sua individualidade e singularidade.
Mas captar-lhes a essência, perceber-lhes a individualidade e singularidade, é oferece muitas semelhanças com o nosso: uma cultura comum extremamente desenvolvida, ciência
apreender a “idéia” que os informou, que lhes deu o ser como existentes militar, e ação e interação de intrincadas relações exteriores, além da grande importância dos
históricos específicos, e encontrar o princípio unitário que fez deles alguma interesses comerciais e das finanças, rivalidade de indústrias e florescimento das ciências exatas
coisa em vez de uma coisa qualquer. E isso só é possível porque a “idéia” de baseadas na matemática. Mas aqueles Estados [helenísticos], produzidos pelo arrojo de um
conquistador e pela dissensão entre seus sucessores, nem tinham possuído nem sido capazes de
uma nação é intemporal e eterna. forjar quaisquer princípios individuais de existência. Baseavam-se em soldados e dinheiro exclusi­
Mas em princípio essa “idéia” só é cognoscível quando se atualiza numa vamente. Foi por esse simples motivo que logo se dissolveram e afinal desapareceram por completo
forma histórica específica - isto é, só na medida em que um povo consegue RH.
realmente tornar-se uma nação específica. Isso sugere que todos os povos e
todas as civilizações que ainda não chegaram ao estágio de auto-realização Em contraste, a época mesma de Ranke fora estimulada a alcançar o
representado pelo Estado-nação existem numa espécie de noite proto-histórica poder criador da “força moral” e do “princípio de nacionalidade”. “Que teria
anterior à verdadeira aurora histórica da moderna história européia no século acontecido a nossos Estados”, perguntou ele, “se não tivessem recebido vida
XVI. E, para levar essa metáfora diurna à sua conclusão lógica, segue-se que o nova do princípio nacional em que se baseavam? É inconcebível que qualquer
meio-dia da história é localizado no próprio presente de Ranke, quando, saído Estado pudesse existir sem ele” (Ibid.). Era assim concebível, Ranke dava a
do trauma da Revolução, o sistema auto-regulador de Estados-nações europeus entender, que, enquanto o princípio de auto-identidade nacional fosse mantido,
plenamente constituídos alcançou uma forma final. Ele admitiu a possibilidade também continuaria a existir o sistema de Estados-nações auto-reguladores.
de verdadeira transformação, revolução, convulsão, apenas para épocas ante­ Ranke deixou claro que considerava caber ao historiador escrever história
riores à sua; mas para ele o futuro era tão-somente uma indefinida extensão de de modo a reforçar o princípio de nacionalidade como única salvaguarda contra
seu próprio presente. o afundamento na barbárie. E, numa passagem que ele mesmo posteriormente
Uma vez que a criação de um sistema de Estados-nações auto-reguladores omitiu ao preparar a edição de suas Obras Reunidas, esclareceu que, para ele,
era a meta para a qual tudo tende, a estase final para a qual todo movimento um sistema de Estados-nações podia, como uma conversa entre os deuses, durar
aponta, Ranke forçosamente exigia que todas as outras formas de organização para sempre. À indagação de se o sistema de Estados-nações não poderia
186 HAYDENWHHE META-HISTÓR1A 187

impedir o desenvolvimento de uma comunidade mundial, respondeu que a nacionais que têm como princípios informadores “idéias” nacionais particula­
própria civilização dependia de diversidade e divisão. res, seu ideal de investigação histórica “objetiva” era perfeitamente satisfatório.
Mas, em qualquer ponto do registro histórico onde entidades como Estados,
Haveria apenas uma desagradável monotonia se as diversas literaturas deixassem que seus Igrejas, povos e nações constituíssem antes “problemas” que “dados”, seu
característicos individuais se misturassem e se fundissem. Não, a união de todos deve assentar na método empírico possivelmente não funcionaria. A investigação histórica po­
independência de cada um. Podem então estimular uns aos outros de maneira vigorosa, sem que deria avançar com base no método rankiano onde as instituições sociais já
um domine ou prejudique os outros.
estivessem estabelecidas com tal solidez que pudessem oferecer sua concepção
Dá-se o mesmo com Estados e nações. Definido, o predomínio de um levaria os demais à
ruína. A mescla de todos eles destruiria a essência de cada um. Da separação e do desenvolvimento do que constituía a natureza real do homem, do Estado e da Igreja como critério
independente emergirá a verdadeira harmonia [218]. pré-criticamente firmado de direção da pesquisa do historiador. Onde tais
instituições sociais ainda não tivessem tomado forma ou começassem a debili­
Em resumo, Ranke não contemplava a possibilidade de novas formas de tar-se ou a desmoronar, e os princípios de organização social não mais fossem
comunidade em que os homens estivessem politicamente unidos e livres das evidentes para os profissionais da história, e fosse suscitado o problema do que
restrições a eles impostas por Estados e Igrejas nacionais. Esta é a um só tempo constituía a melhor forma de comunidade humana, seria necessário ir buscar
a medida e a forma do seu conservadorismo. Uma vez que a “idéia da nação” outros métodos de investigar o passado e o presente, outras categorias concep­
funciona como valor absoluto em sua teoria da história, as próprias noções de tuais destinadas a caracterizar o processo histórico. A procura desses outros
universalidade e liberdade individual são vistas como alternativas à própria métodos e dessas outras categorias conceptuais deu origem às novas ciências
história. Estas se identificam - como mais tarde em Camus - com os princípios sociais que se formaram nos três últimos decênios do século XIX. Essas novas
do totalitarismo de um lado e da anarquia do outro. E, de igual modo, a “idéia ciências sociais geralmcntc se preocupavam com os problemas históricos, mas
da nação” funciona para desencorajar qualquer busca (sociocientífica) de leis eram uniformemente hostis ao que por aquela época passara a ser chamado de
universais de associação e comportamento humano. Tal busca poria necessa­ método histórico. Pois, a essa altura, o método histórico era o método rankiano,
riamente em questão o valor de características nacionalmente estatuídas, reve­ não apenas com seu inducionismo ingênuo, mas acima de tudo com seu pressu­
laria em suma a natureza puramente histórica das características nacionais e posto de que a nação era a única unidade possível de organização social (e a
exigiria que a própria “idéia da nação” fosse tratada como apenas uma idéia. única desejável) e sua convicção de que, portanto, os grupos nacionais consti­
Isto é, exigiria que a “idéia da nação” fosse tratada como o que, de fato, é, um tuíam as únicas unidades viáveis de investigação histórica.
conceito de associação que tomou forma durante um período particular da
história do mundo, num determinado tempo e lugar; que assumiu uma forma
institucional e cultural específica entre os séculos XVI e XIX; e que, portanto, A HISTÓRIA POSTA EM ENREDO COMO COMÉDIA
poderia concebivelmente dar lugar a algum outro conceito de associação hu­
mana, como classe, raça, ou simplesmente aptidões humanas para a sublimação Cumpre notar que num sentido Ranke se presta mais facilmente à carac­
criativa das energias destrutivas do homem no futuro. terização geral do que Michclet, e no entanto, em outro sentido, menos facil­
Ranke considerava os problemas humanos solúveis apenas dentro do mente. Isso porque a estrutura de enredo da história escrita no modo cômico é
contexto da nação e das instituições formadas nela para refrear aqueles impul­ formalmente mais coerente no nível de estória da narrativa do que a história
sos que julgava serem inevitavelmente destrutivos em suas formas imediatas de romântica tem probabilidade de ser. O enredo da história da França de Miche-
expressão. Via em qualquer coisa que ameaçasse a autoridade da Igreja (como let descreve a ascensão gradual do protagonista (o povo francês) a uma percep­
o materialismo e o racionalismo), do Estado (como o capitalismo, imperialismo, ção plena de sua própria natureza essencial e a uma realização integral, ainda
racismo ou liberalismo), ou da nação (como o socialismo, comunismo ou a que momentânea, de sua unidade intrínseca contra as figuras, instituições e
religião ecumênica) uma ameaça à própria civilização. A seus olhos, qualquer tradições obstaculizadoras que procuravam frustrar-lhe o crescimento e a
movimento que depositasse fé numa natureza humana liberada pouco mais era auto-realização. Mas a pureza dessa linha ascendente é obscurecida pela carac­
do que humanitarismo sentimental. E, na medida em que tais movimentos terização metafórica de seus pontos componentes, cada um dos quais deve ser
procurassem estabelecer-se por meios revolucionários, ele os via como forças mais deslumbrante, mais extremo, mais abrangente e intenso, a fim de simboli­
que o Estado e a Igreja tinham sido instituídos para reprimir. zar o estágio superior a que chega o protagonista após cada um dos seus
Assim, visto que Ranke tomou a Igreja e o Estado, por um lado, e o povo, sucessivos triunfos. Alem disso, uma vez que Michelet escreveu a história desse
por outro, como dados em seu sistema, como entidades discretas com caracte­ processo ascendente colocando-se no lado oposto dc seu ponto culminante,
rísticas observáveis e determináveis, e incumbiu o historiador de reconstruir os tendo consciência dc uma subseqüentc queda do ápice atingido, em virtude da
modos pelos quais essas entidades se conjugaram para formar comunidades traição aos ideais da Revolução, o esforço dc captar a pureza, o esplendor e a
188 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 189

santidade do instante do clímax só pôde ser mantido por meio das mais tortuosas A civilização européia ocidental é dividida em seus substratos culturais
projeções poéticas sobre um litoral cada vez mais distante onde se desenrolavam alatinados e germânicos, e estes por sua vez se dividem nas famílias de línguas
os acontecimentos. encontradas em cada um deles. Tais famílias lingüísticas fornecem a base do
Como Ranke, Michelet foi um historiador da Restauração, se bem que relacionamento simbiótico, entre cultura e natureza, em diferentes lugares da
vivenciasse o período da história em que escrevia de maneira oposta à de Ranke. Europa, por meio do qual os povos se constituem. Em seguida postulam-se,
O que Michelet sentiu como abjuração do ideal, depressão pós-coito, por assim dentro das nações, formas específicas de organização política e eclesiástica,
dizer, Ranke saboreou como consumação, mas uma consumação no sentido adequadas ao estabelecimento e à expressão das virtudes e poderes peculiares
literal do termo. Não foi, como na concepção micheletiana do momento revo­ aos diversos povos. Depois invoca-se, entre as próprias nações, uma modalidade
lucionário, um ponto em que a unidade foi alcançada mediante a eliminação particular de relacionamento - expressa na noção do equilíbrio de poder - como
das barreiras que tinham sido artificialmente erigidas para proibir a união do o fim para o qual todos os conflitos entre as nações vêm apontando. No curso
povo consigo mesmo, mas foi, ao contrário, uma verdadeira integração de da narrativa efetivamente escrita analisam-se partes, destacadas dos todos, e
elementos outrora conflitantes entre si e uns com os outros dentro de uma forma depois reconstituem-se os todos, destacados das partes, de modo que a revela­
superior de comunidade, o Estado-nação e o sistema internacional em que cada ção gradual do relacionamento que as partes mantêm com os todos é apreen­
Estado-nação tinha seu lugar e funcionava como parte necessária do todo. dida como a explicação do motivo por que as coisas aconteceram como
aconteceram.
A apreensão organicista do processo histórico proposta por Hcrdcr
estava ainda presente na obra de Ranke como a metáfora pela qual o processo O modo de caracterização tropológica que sanciona essas estratégias de
como um todo devia ser compreendido. Mas fora sublimada na estrutura de explicação é a sinédoque. A “projeção metodológica” desse tropo é aquele
enredo cômica por meio da qual a estória contada acerca da história européia organicismo que os modernos historiadores do pensamento histórico identifi­
devia ser compreendida como estória que supunha uma significação específica. caram como “historicismo”. As explicações de Ranke do motivo por que as
Essa estrutura de enredo era em si mais complexa do que aquela que informava coisas aconteceram como aconteceram assemelhavam-se assim às de Michelet
e conferia um sentido secundário às histórias romanescas de Michelet. num determinado nível, aquele em que o acontecimento a explicar é inserido
em seu contexto pela identificação de todos os elementos que conferem ao
Michelet imaginou o enredo da história como um conflito maniqueísta em acontecimento a “textura” de uma particularidade. Mas a caracterização de um
que protagonista e antagonista estão empenhados num combate mortal cerrado determinado contexto - como o da “Idade Média”, ou da “Reforma”, ou do
e em que um ou o outro deve ser eliminado a fim de que a estória atinja seu “século XVII” e assim por diante - oferece ao leitor o sentido de uma sucessão
ponto culminante, como epifania de redenção ou de danação. Mas Ranke de coerências formais através das quais a ação se desenrola de modo a sugerir
encaixou o espetáculo do conflito dentro de uma apreensão das unidades mais a integração das partes num todo histórico mais vasto, que é a forma da própria
amplas que as lutas entre protagonistas e antagonistas ocasionam, e sublinhou civilização européia em sua fase mais recente.
o que seria ganho pela ordem social em geral em consequência da própria luta.
Assim como a narrativa tem elementos de relato que dão respostas às
A imagem da unidade definitiva da humanidade foi deslocada para um ponto
perguntas “Que aconteceu depois?” e “Como é que terminou tudo isso?”, além
no fim do tempo histórico para fazer as vezes da meta prefigurada em direção
de elementos de enredo que respondem à pergunta “Que sentido tem tudo
à qual pode a fé ou a imaginação supor que se move o processo; e atribuiu-se isso?”, também a explicação avança em dois níveis. Num nível, a pergunta “Que
primordial significação às formas de unidade social já alcançadas nas institui­
aconteceu?” é respondida pela inserção de um evento ou série de eventos dentro
ções e nações oriundas do processo de conflito milenário que se estendeu da
de um contexto através da discriminação dos fios que ligam o evento a outros
Alta Idade Média até a própria Restauração.
eventos, propiciando dessa forma a impressão de uma rica textura de ocorrência
O movimento ternário da comédia, que se inicia num estado de paz que não é passível de qualquer explicação nomológica. Em outro nível, a
aparente, prossegue na revelação do conflito e culmina na resolução do conflito, pergunta “Por que aconteceu como aconteceu?” é respondida pelo movimento
isto é, no estabelecimento de uma ordem social genuinamente pacífica, permitiu que parte de um contexto, considerado como uma forma realizada, para outro
a Ranke delinear, de maneira autoconfiante e convincente, as principais unida­ de modo a mostrar a integração superior dos fenômenos entre si em cada etapa
des de tempo em que se pode dividir o conjunto do processo histórico. O fato sucessiva - no modo do organicismo. Negar que a forma das formas pode ser
de que o processo temporal pode ser posto em enredo com tal margem de conhecida pelo historiador tem o efeito de conferir à etapa mais recente do
segurança inspira confiança na aceitação, por parte de Ranke, das formas processo, aquela em que é postulada a coerência formal alcançada pela época
políticas e sociais de sua época como unidades naturais de análise histórica, do próprio historiador, o estatuto de suposto telos, fim, ou propósito, de todas
graças às quais é possível mapear o campo histórico considerado como estrutura as etapas precedentes. Em suma, o campo histórico é primeiramente demarca­
espacial, ou sincrônica. do como um complexo de eventos dispersos relacionados entre si apenas pelos
190 H4YDENWHITE META-HISTÓRIA 191

fios e meadas que fazem deles um pano de arrás de relacionamentos evento- A “verdade interior” desses feixes de acontecimentos é a “forma” que o
contexto; o campo é em seguida mapeado como padrão de totalidades integra­ historiador, utilizando uma faculdade mais ou menos parecida com a do poeta,
das que mantêm entre si o relacionamento de microcosmo-macrocosmo, ou lhes atribui. Como disse Humboldt, o historiador deve usar sua “imaginação”
parte-todo - e sempre de modo a sugerir que a mais recente coerência formal para “revelar a verdade de um acontecimento por meio da apresentação, ao
discernível na história é a forma suprema de organização sociocultural que pode completar e encadear os fragmentos desarticulados da observação direta”. Mas,
ser legitimamente percebida no processo em geral. diferentemente do poeta, o historiador não pode usar a “pura fantasia”. Deve,
Ranke concebia a história, então, no modo da sinédoque. Traduzida em ao contrário, ater-se a um modo de compreensão exclusivamente histórico, que
método, este lhe permitia pô-la em enredo no modo da comédia e explicá-la à Humboldt chamou de “capacidade conectiva” (58-59). Essa capacidade conec-
maneira do organicismo. Se, porém, desejarmos uma defesa formal tanto do tiva é produto, sugeriu Humboldt, da aplicação, pelo historiador, das “leis da
modo de construção do enredo quanto do modo de explicação que dão à necessidade” que atuam como freio às operações da “faculdade intuitiva”
historiografia de Ranke suas características próprias como ciência supostamen­ (Ibid.)t o que significa que o historiador há de seguir “dois métodos (...)
te “realista”, teremos de procurá-la em outras partes que não as obras de Ranke. simultaneamente na abordagem da verdade histórica: (...) a investigação preci­
Essa defesa foi oferecida já em 1821 pelo estadista, filósofo e cientista Wilhelm sa, imparcial, crítica dos acontecimentos (...) [e] a conexão dos eventos explo­
von Humboldt num ensaio (originariamente lido como conferência em Berlim) rados” (59).
intitulado “Sobre as Tarefas do Historiador”. Mas a capacidade conectiva não deve estender-se a todo o processo
histórico, porque o campo histórico é uma

vasta, densa barafunda das coisas deste mundo, em parte decorrentes da natureza do solo, da
A DEFESA FORMAL DO ORGANICISMO COMO
natureza humana c do caráter das nações e dos indivíduos, em parte surgidas não se sabe de onde,
MÉTODO HISTÓRICO como se implantadas por um milagre, dependentes de poderes obscuramente percebidos e visivel­
mente ativados por idéias eternas profundamente enraizadas na alma do homem - tudo [isso]
Momigliano qualificou Ranke, ao lado de Boeckh e Droysen, de “aluno compõe uma infinitude que a mente não poderá nunca comprimir numa forma única [60].
ideal” de Humboldt (105). E recentemente George Iggers expôs as similitudes
dos pontos de vista deles a respeito de temas como a natureza do pensamento E a disposição do historiador de se abster de impor uma forma única a
histórico, o Estado, a sociedade e o futuro da cultura européia (capítulos todo o campo histórico, contentando-se com a imposição de coerências formais
III-IV). Mas o ensaio de Humboldt ainda não se exauriu como defesa formal provisórias, de médio alcance, a províncias finitas do campo, faz do seu um
dos princípios explicativos que Ranke combinou com o enredo cômico da mister especificamente “realista”.
história para extrair princípios ideológicos especificamente conservadores da Cabe ao historiador, disse Humboldt, empenhar-se em “despertar e
consideração “objetiva” dos “dados” da história. estimular uma sensibilidade para a realidade”. Com efeito, sustentou ele, “o
Humboldt começou por negar expressamente que o historiador pudesse elemento essencial” em que os historiadores operam é “o senso de realidade”,
aspirar a uma compreensão nomológica da história; ao invés disso, o máximo que é definido como “a consciência da transitoriedade da existência no tempo
que o historiador pode esperar é “uma simples apresentação” daquilo “que de e da dependência de causas passadas e presentes” e, ao mesmo tempo, “a
fato sucedeu” (57). Isso não quer dizer, naturalmente, que o historiador é consciência de liberdade espiritual e o reconhecimento da razão”. Só essa
“exclusivamente receptivo e reprodutivo”. Pelo contrário, deve ele ser “ativo e percepção dual de transitoriedade temporal e causalidade de um lado e cons­
criativo” porque: os acontecimentos são apenas “parcialmente visíveis no mun­ ciência de liberdade espiritual do outro permite ao historiador “compor a
do dos sentidos; o resto tem de ser acrescentado por intuição, inferência e narrativa dos acontecimentos de tal modo que as emoções do leitor sejam
conjetura”; as “manifestações de um acontecimento são esparsas, desarticula­ avivadas por ela como se o fossem pela realidade mesma” (Ibid.).
das, isoladas”; e a “unidade” essencial desse “mosaico” de acontecimentos O aspecto mais interessante dessa concepção de realismo histórico é que,
“permanece distante da observação direta” (57-58). A observação sozinha, a julgar pela aparência, ela quase não difere da noção romântica do “Caos do
frisou Humboldt, pode fornecer somente “as circunstâncias concomitantes ou Ser” da história proposta por Carlyle. O realismo do conhecimento histórico
sucessivas”; não penetra no “nexo causal interno” do qual a “verdade interior” parece consistir em o historiador manter na mente do leitor o paradoxo de que
de uma série de acontecimentos “é a única dependente” (58). O que a observa­ a vida humana é a um só tempo livre e determinada. De fato, Humboldt negou
ção revela é um campo de objetos incompletamente percebidos e um complexo explicitamente que o conhecimento histórico pudesse ser usado para instruir o
de relacionamentos que são ostensivamente ambíguos, os feixes individuais de presente quanto a “o que fazer e o que evitar”. Mas, ao mesmo tempo,
acontecimentos aparecendo, “por assim dizer, como as nuvens que só à distân­ recusou-se a aceitar a noção de que o conhecimento histórico consiste exclusi­
cia assumem forma para o olho” (Ibid.). vamente naquela “simpatia” que a concepção “poética” dos românticos pôs no
192 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 193

seu centro. A história, disse Humboldt, é útil em virtude de “seu poder de (64). Em história, “entendimento” é “o produto combinado da constituição [do
estimular e aprimorar nossa consciência de atuação sobre a realidade”, mas esse evento] e da sensibilidade aplicada pelo observador” (Ibid.). Existe, sugeriu ele,
poder se manifesta mais no suprimento da “forma atribuída aos eventos” do uma afinidade eletiva entre a natureza dos eventos históricos e os modos de
que na simples apreensão dos próprios eventos (61). E aqui se tornam evidentes compreensão que o historiador aplica a esses eventos. Os eventos históricos são
os pressupostos sinedóquicos de sua concepção da explicação histórica. Uma manifestações das tensões que existem entre formas realizadas de vida e ten­
explicação histórica, afirmou ele, é a representação da forma a ser discernida dências conducentes às transformações dessas formas; a compreensão histórica
numa série de eventos, uma representação em que “cada evento” é visto como consiste na dupla apreensão das “forças” que conduzem à produção de inova­
“parte de um todo”, ou em que “cada evento descrito” é apresentado de modo ções na sociedade e na cultura e das “tendências” que aglutinam individualida­
a revelar a “forma da história per se" (Ibid.). des em unidades mais amplas de pensamento, sentimento e vontade (Ibid.). Por
Embora Humboldt concebesse a representação histórica como se esta isso é que a “verdade histórica” é, “de maneira geral, muito mais ameaçada pela
consistisse na revelação da “verdadeira forma dos acontecimentos” e da “estru­ manipulação filosófica do que pela manipulação artística” (Ibid.).
tura interna” da totalidade do conjunto de acontecimentos contidos numa A filosofia, no entender de Humboldt, procura sempre reduzir a totalida­
narrativa, é óbvio que o que ele intentava era uma operação sinedóquica em que de à condição de realização de um processo integrativo que é teleológico por
se imagina que todos os acontecimentos mantêm uma relação com o todo, que natureza. O historiador, por outro lado, não deve lidar com fins ou realizações
é a de microcosmo para macrocosmo. Mas ele percebeu que, em seu ponto de últimas, e sim com tendências e processos. E, ao tratar dessas tendências e
vista, uma representação histórica, ou mimese, deve ser uma reprodução, não processos, não deve impor-lhes suas noções do que eles poderiam em última
dos próprios acontecimentos em sua particularidade, mas da coerência formal análise significar, mas deve, isto sim, permitir que as “idéias” que lhes dão sua
do tecido total dos acontecimentos, que, se levada a cabo integralmente, resul­ coerência formal “emerjam da massa dos próprios eventos, ou, para sermos
taria em “filosofia da história”. Por isso é que ele distinguiu entre dois tipos de mais precisos, surjam na mente através da contemplação desses eventos em­
mimese: a simples cópia da forma externa de uma coisa e o delineamento de preendida com verdadeiro espírito histórico” (Ibid.). Deve, portanto, o histo­
sua “forma interior”. A primeira operação limita-se a reproduzir os contornos riador ao mesmo tempo “levar” as formas das “idéias” a suas “observações”
de um objeto, como o faria um desenhista, ao passo que a segunda oferece um dos eventos da história do mundo e “abstrair” aquela “forma dos próprios
modelo da proporção e da simetria desse objeto, como o faz o verdadeiro artista eventos” (Ibid.). Isso pode parecer uma “contradição”, admitiu Humboldt, mas
(61-62). Esta última operação exige que o próprio artista produza a “idéia” que na verdade, disse ele, todo “entendimento” pressupõe uma “congruidade ori­
pode transformar um corpo de dados numa coerência formal específica. Foi ginal, antecedente, entre sujeito e objeto”; consiste sempre na “aplicação de
essa “idéia” que permitiu a Humboldt fazer distinção entre a verdade de uma uma idéia geral preexistente a algo novo e específico” (65). E, no caso do
reprodução fotográfica por um lado e a “verdade da forma” por outro (63). entendimento histórico, aquela idéia geral preexistente consiste nas operações
Quando aplicada à representação histórica, evidentemente, essa distinção ex­ do “coração humano”, que proporcionam ao mesmo tempo as bases da existên­
põe o historiador ao tipo de subjetividade e relativismo que românticos como cia histórica e as da consciência necessária para a compreensão dela (Ibid.).
Michelet invocavam para justificar suas concepções de “simpatia” como guia
adequado ao entendimento histórico. Mas Humboldt resistiu a essa incursão na Só o crítico mais generoso poderia conceder a esse argumento qualquer
subjetividade ao suscitar a questão de saber “se há idéias capazes de guiar o direito ao rigor que uma genuína análise filosófica deve revelar. Na realidade,
historiador e, se há, de que tipo são elas” (Ibid.). ele repetidamente suscita a possibilidade de uma concepção científica da
Nas passagens que vêm logo em seguida às aqui citadas, Humboldt revelou explicação histórica só para dissolver essa possibilidade na negação da adequa­
as bases essencialmente clássicas e, em última análise, aristotclicas, de sua ção de qualquer explicação causal, ou nomológica, à obtenção da verdade
concepção do conhecimento histórico ao distinguir entre “idéias” num sentido histórica. Foi este o principal impulso do desejo de Humboldt de separar a
estético, filosófico, e num sentido histórico. E o fez de modo a permitir a reflexão histórica da filosofia e aproximá-la mais de sua concepção da arte como
identificação do conhecimento histórico com o tipo de conhecimento que atividade estritamente mimética. Ele situou o conhecimento histórico entre o
Aristóteles consignou especificamente à poesia. O tipo de entendimento que o caos de dados que o registro não processado apresenta à percepção e o ideal
historiador tem da realidade, argumentou, não é o tipo reivindicado pelo artista de uma ciência das leis pelas quais aquele caos pudesse ser submetido a ordem
romântico, que é um conhecimento puramente subjetivo, ou uma expressão de e compreensão, e em seguida negou ao historiador a possibilidade de aspirar a
um estado emocional subjetivo, mas sim uma apreensão do mundo que poderia qualquer compreensão nomológica das forças que dominam o processo histó­
ter existido no interior dos acontecimentos que aparecem no registro histórico. rico. Recorreu a uma analogia entre arte e historiografia, mas invocou uma
concepção de arte que presume a adequação das idéias de forma contidas na
Os historiadores, disse Humboldt, procuram a verdade de um aconteci­ imaginação à representação das formas das coisas encontradas no ser indivi-
mento “de maneira semelhante ao artista”, que procura “a verdade da forma” duado. A teoria do conhecimento histórico daí resultante era formista quanto
194 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 195

à natureza e tipológica na implicação, mas o mistério do ser histórico continuou uma “arte mais livre” entre os gregos (68). Humboldt julgava o feito grego em
indissolvido e seu caos foi reduzido a uma coerência formal geral da espécie especial miraculoso; não pode haver “explicação” para ele, pois representa uma
considerada pela arte neoclássica como a meta mais alta a que podia aspirar. A realização puramente “individual” de “individualidade”. A tarefa do historia­
concepção romântica e idealista subjetiva do poder que é dado à mente para dor, em presença desse milagre, não é explicá-lo, então, mas simplesmente
impor forma à percepção, e, nessa distorção da realidade, alcançar sua huma­ representá-lo pelo que é - isto é, manifestação de uma liberdade humana
nização, foi desprezada. Humboldt reafirmou a ficção da perfeita consonância essencial (Ibid.). Ao mesmo tempo deve o historiador admitir que esse milagre
de consciência e ser, promovida por Leibniz e Herder, numa forma muito menos não durou, que a cultura grega degenerou e extinguiu-se. Sua dissolução é
metafísica e menos rígida. atribuída ao envolvimento de sua idéia nas formas da existência fenomenal, e
Assim, sustentou Humboldt, o historiador “concebe para si mesmo um assim uma explicação material e causal dessa dissolução é tacitamente sancio­
quadro geral da forma da conexão de todos os eventos” de que pode inferir um nada por Humboldt (Ibid.),
quadro da conexão essencial dos eventos que compõem o processo histórico A noção é curiosa, visto que como fenômenos são concebidos como sendo
(Ibid.; grifos acrescentados). Mas excluiu três concepções de conectividade na governadqs.por uma regra em seu processo de realização e por outra em seu
história como inadequadas à correta compreensão de seu tema de estudo. processo de dissolução, por uma força inconfundivelmente “espiritual” no
Foram elas as abordagens mecanicista, fisiológica e psicológica da história, que, primeiro caso e por forças especificamente materiais, fisiológicas e psicológicas
segundo ele, se concentram na conexão causal para explicar o que de fato no segundo. Isso tem o efeito de conferir ao processo de germinação, nascimen­
acontece no processo histórico (66-67). As objeções de Humboldt a essas três to e crescimento maior valor do que o concedido à maturação, degenerescência
abordagens giravam em torno da incapacidade delas de atingir um ponto de e dissolução, estranha assimetria que só é explicável pela suposição de uma
vista “fora do alcance do finito”, do qual “cada parte da história do mundo” necessidade de fazer pender a consciência histórica numa direção explicitamen­
pode ser compreendida e dominada (67). Nesse ponto ele apresentou sua te otimista e confiante. “O primeiro passo dado, o primeiro clarão da centelha”
própria doutrina das idéias, baseada na noção da adequação de generalizações, - isto é, a realidade que surge - é “miraculoso” na história grega, não aquilo
derivadas da reflexão sobre a totalidade das operações do coração humano, à que penetra na obscuridade ao mesmo tempo em que o novo faz seu apareci­
totalidade dos eventos contidos na história do mundo, como base para uma mento. Sem esse “primeiro passo”, disse Humboldt, “as circunstâncias favorá­
apreensão distintivamente “histórica” da realidade. veis não poderiam tornar-se operativas, e nenhuma acumulação de prática ou
As partes da história do mundo devem ser - disse Humboldt - integradas de aperfeiçoamento gradativo, mesmo durante séculos, redundaria em qual­
numa visão do todo, concebido com fundamento numa noção de “governo do quer realização” (Ibid.).
mundo” ou na idéia de que a totalidade do processo histórico manifesta as O valor atribuído à novidade emergente leva à concepção do processo
operações de um princípio superior de unidade, cuja natureza precisa não pode histórico como aquele em que o espírito pode ser contraposto à matéria como
ser especificada mas cuja existência pode ser inferida da evidência que é histori­ a forma ao conteúdo, cujo intercâmbio é regido pelo poder anômalo do primei­
camente entendida. ro. Humboldt queria enviar o “sentimento de peso do sentido” de volta aos
Dir-se-ia então que o historiador não pode aspirar mais à identificação primeiros estágios do processo. Mas esse desejo não foi plenamente justificado
das condições necessárias da inovação emergente do que à identificação das por sua caracterização do processo de nascimento, crescimento e decadência
condições suficientes. Em princípio afirma-se que as próprias circunstâncias no tempo histórico.
não podem explicar o aparecimento de novas formas no processo histórico. E, A “idéia” de uma coisa, disse ele, deve ficar aos cuidados de uma “força
uma vez que é objetivo da ciência determinar tanto as condições necessárias espiritual individual”. Sua individuação, porém, é o ensejo de sua dissolução,
quanto as suficientes para a ocorrência de um evento, tem-se a impressão de uma vez que através de sua própria individuação a força espiritual se submete
que a busca de tais condições pelo historiador está excluída desde o começo. O à influência das leis que regem a existência fenomenal. Seu valor eterno é
que resta ao historiador que se vê diante dessas inovações é o pasmo e a tarefa difundido numa finitude temporal e vinculado a um processo degenerativo.
de “representá-las” no plano da coerência formal que oferecem a uma cons­ Mas, insistiu Humboldt, seu perecimento no tempo deve ser concebido, não
ciência historicamente condicionada à sua apreensão. como testemunho da natureza determinada da existência histórica, mas antes
Mas, se esse método convém à apreciação do aparecimento de tais como epifania da capacidade do espírito de procurar sua articulação na esfera
inovações na história, não tem meio - como não tinha Herder - de explicar a fenomenal; sua articulação e sua dissolução são vistas como prova da “indepen­
dissolução delas. dência” da causalidade fenomenal do espírito, não como prova das operações,
Humboldt deu como exemplos da “criação de energias, de fenômenos nele, de leis causais (69). O movimento da idéia rumo à sua plena articulação
para cuja explicação as circunstâncias concomitantes são insuficientes”, o sur­ no tempo e no espaço é concebido, não como desenvolvimento no tempo e
gimento da arte “em sua forma pura” no Egito e o súbito desenvolvimento de espaço, mas como movimento do ser “interior”para o ser “exterior”.
META-HISTÓRIA 197
196 HAYDENWHITE

tuada” por sua incapacidade de dominar por completo a “matéria ativamentê


Humboldt queria estabelecer esse movimento do interior para o exterior
resistente” em que busca sua atualização (Ibid.). Mas que a série de tragédias
como a forma do desenvolvimento histórico sem especificar o fim para que
que a incapacidade da idéia de se atualizar pode produzir deva ser concebida
tende todo o desenvolvimento e incorrer portanto no idealismo e numa concep­
como um processo fundamentalmente cômico foi uma conclusão prevista por
ção “filosófica” do conhecimento histórico. O que parecia dizer era que o
ele, uma vez que “nenhum acontecimento está separado totalmente do nexo
pensamento permite-nos conceber a história de maneira “idealista” mas não
geral das coisas”; o todo é governado por uma liberdade que a parte apenas
compreender as várias formas de existência histórica sob as condições de uma
vagamente supõe em seu processo de atualização. Assim, a ênfase é transferida
visão idealista do todo. Aqui nos deparamos com aquele “formalismo” no
para a liberdade contida no todo - isto é, para os fenômenos de mudança e
pensamento histórico que Hegel condenou em virtude da ambiguidade intelec­
emergência - e proporciona mais razão ainda para resistir ao interesse por
tual e moral que promovia. Essa ambiguidade se tornou ostensiva no pensamen­
qualquer “busca do padrão coerente do todo”. Buscar o padrão do todo seria
to de Humboldt quando, na conclusão de seu ensaio, ele admitiu que podemos
imputar-lhe determinância.
perceber, através das tendências e das energias emergentes que aparecem na
Podemos ver por esse exame da concepção da história de Humboldt o
história, “formas ideais que, embora não constituam a individualidade humana,
relacionamento que Ranke e a historiografia que ele representa mantêm com o
com ela se relacionam, ainda que só indiretamente”. Ele declarou perceber tais
enfoque organicista de Herder. Houve uma mudança de ênfase. Essa mudança
formas ideais na própria linguagem, que “reflete” tanto “o espírito de seu povo”
consiste numa diminuição do impulso de procurar provas de uma integração
como “uma base anterior, mais independente”, que é “mais influente do que
total do mundo histórico que ainda predominava no pensamento de Herder.
influenciada”, de modo que “cada linguagem importante aparece como veículo
Uma concepção formista de explicação substituiu a concepção organicista que
inconfundível da criação e comunicação de idéias” (70). E partindo dessa
Herder abertamente preconizava. Por conseguinte, há um afrouxamento da
analogia, Humboldt chegou a comentar a respeito da maneira como “as idéias
textura do campo histórico e uma atenuação do impulso de buscar o entendi­
originais e eternas de tudo o que pode concebivelmente alcançar existência e
mento geral dos processos que o caracterizam como campo total de aconteci­
poder” fazem isso “de modo ainda mais puro e completo: elas instauram a
mento ou ocorrência. Mas o arcabouço geral, a significação mítica, a natureza
beleza em todas as formas espirituais e corpóreas, a verdade na atuação inelu­
essencialmente cômica do modo pelo qual aqueles processos devem ser postos
tável de cada força conforme sua lei inata, e a justiça no processo inexorável de
em enredo, continua intacto. Pode-se caracterizar a transição como modificação
acontecimentos que eternamente se julgam e se punem a si mesmos" (Ibid.;
em que o impulso para a explicação é sublimado num desejo de simplesmente
grifos acrescentados).
descrever o processo como se desenrola diante do olhar do historiador. O sentido
Mas ele contestou a capacidade do discernimento humano de perceber do processo ainda é o mesmo. É concebido como um drama cômico, cuja
os “planos do governo do mundo diretamente”. No máximo, disse ele, pode resolução ainda está por realizar-se. Mas a manutenção da moldura cômica,
“adivinhá-los nas idéias através das quais eles se manifestam” (Ibid.). Isso o agora pressuposta, permite que os acontecimentos que ocorrem dentro da
autorizou a concluir que “a meta da história” deve ser “a atualização da idéia moldura sejam apreendidos num estado de espírito explicitamente otimista. Ao
que há de ser realizada pela humanidade de todas as maneiras e em todas as deixar indeterminado o desfecho do drama, embora afirmando ao mesmo
configurações em que a forma finita pode entrar em união com a idéia”. Todo tempo a necessidade de acreditar que todo o processo implica um drama de
o processo só pode terminar no ponto em que “a forma finita” e “a idéia” se resolução especificamente cômica, a luta e o conflito podem ser considerados
unem e “onde as duas não são mais capazes de ulterior integração mútua” (Ibid.; como elementos genuínos da realidade histórica, sem de maneira nenhuma
grifos acrescentados). atribuir a esses elementos a possibilidade de seu triunfo na história no fim de
Voltando depois à comparação inicial do historiador com o artista, Hum­ contas. Cada derrota de uma aspiração é encarada como tão-somente um ensejo
boldt afirmou que “o que o conhecimento da natureza e (...) das estruturas de novo desenvolvimento da idéia nela contida, de modo que seu triunfo
orgânicas são para este, a investigação das forças que aparecem na vida como definitivo na realidade estará assegurado.
[princípios] ativos e orientadores é para o primeiro”. O que o artista percebe
como “proporção, simetria e o conceito de forma pura”, o historiador percebe O mal, a dor e o sofrimento podem ser assumidos simplesmente como
como “as idéias que se desdobram (...) no nexo dos acontecimentos do mundo ocasiões para o espírito alcançar suas muitas atualizações possíveis no tempo.
sem, porém, fazer parte [desses acontecimentos]” (Ibid.). E isso forneceu a As personagens obstrutoras presentes no drama histórico são bastante reais,
Humboldt a base para sua “solução definitiva, e no entanto a mais simples, para mas sua função é percebida agora como sendo a de proporcionar as oportuni­
o [problema da] tarefa do historiador”, que é “a apresentação da luta de uma dades em que o espírito consegue dominar as condições de sua própria atuali­
ideia para realizar-se em ato” (Ibid.). zação. Todos os conflitos passados entre homem e homem, nação e nação, ou
classe e classe podem ser postos à distância e contemplados na plena convicção
Deve-se dar ênfase à palavra “luta”, pois, como disse Humboldt, a idéia do triunfo da beleza, da verdade e da justiça no fim de tudo. A significação
nem sempre logrará realizar-se na primeira tentativa; pode ela vir a ser “desvir­
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cômica de todo o drama não se toma objeto de reflexão, como no pensamento produzir uma série de quadros discretos do passado, mas antes alçar-se a uma
de Hegel, mas simplesmente pressuposta como um fim que podemos apreender conceptualização superior dos relacionamentos delineados no processo, do
de dentro da nossa posição no interior da história, cuja compreensão real deve qual esses quadros representam apenas partes ou fragmentos. A reflexão
aguardar a “integração” de “configurações finitas” e “forma” na última cena do histórica, disse Humboldt, é inspirada por preocupações especificamente mo­
último ato. Como atua todo o processo só em termos gerais é conhecido e rais, pela necessidade do homem de conhecer de algum modo o que é a sua
cognoscível. O máximo a que o historiador pode aspirar é à representação natureza a fim de poder agir com vistas à construção de um futuro melhor do
narrativa dos processos em que uma coerência formal transitória é alcançada que sua vida presente lhe oferece. O que está em debate é como o contexto
em diferentes momentos e lugares no mundo. O aparecimento de novas formas dentro do qual os sucessos históricos ocorrem, a moldura ou o solo em que
continua a ser um “milagre”, um objeto de percepção mas não de compreensão. acontecem, deve ser concebido, e se o processo delineado pela concatenação
A dissolução de formas acabadas é atribuída ao envolvimento de suas dos eventos no tempo deve ser julgado animador ou desalentador em suas
idéias diretrizes nas condições de sua especificação - isto é, a leis de mudança implicações morais.
e dissolução física. Mas o sistema de Humboldt não podia dar conta da ascensão
e triunfo do que chamou de “estados anormais de vida, como em tipos de
doença”, pois lhe era inimaginável que o mal, o erro e a injustiça pudessem ter CONCLUSÃO
suas formas “ideais” do mesmo modo que a bondade, a verdade e a justiça.
Indubitavelmente, disse ele, há alguma espécie de analogia entre estados “anor­ No pensamento de Ranke acerca do processo histórico deparamos com
mais” e “normais” de vida, analogia de tendências “que se manifestam de súbito
idéias que assinalam um rompimento definitivo com alguns dos principais
ou pouco a pouco sem causas explicáveis, que parecem seguir leis próprias e
pressupostos do romantismo literário. Os impulsos românticos por trás dos
concernir a uma conexão oculta de todas as coisas”. Mas ele era incapaz de
exercícios historiográficos de Ranke não podem, evidentemente, ser negados;
imaginar como essas tendências poderiam fazer parte do drama histórico tal
ele mesmo deu testemunho da influência deles sobre seu pensamento durante
como o concebia. Esse lado obscuro do processo histórico permanecia miste­
sua juventude. Estão presentes em seu interesse pelo evento individual único e
rioso para ele, e, afirmou Humboldt, “talvez se passe ainda muito tempo até que
concreto, em sua concepção da explicação histórica como narração e em sua
[seus princípios] venham a ser úteis à história” (69).
preocupação de penetrar no interior da consciência dos atores do drama
Ao conceber a transição de Herder através de Humboldt até Ranke em histórico, para vê-los como eles se viam a si mesmos e reconstruir os mundos
função da mudança de uma estratégia explicativa organicista para outra formis- que eles enfrentavam no tempo e no lugar que lhes eram próprios. Mas ao
ta, em que o modo essencialmente cômico de elaboração de enredo continua mesmo tempo Ranke combateu resolutamente o impulso para a glória na “festa
intacto, permito-me prescindir da terminologia usual, atualmente transformada de formas” que o registro histórico parece representar para o olho acrítico. Em
em clichê, na qual as disputas historiográficas do início do século XIX são seu modo de ver, a história - apesar de sua natureza aparentemente caótica -
convencionalmente estudadas. Pode-se ver que os pontos controversos não apresenta à consciência histórica adequadamente condicionada um sentido e
giram tanto em torno do problema da oposição do individual ao geral, ou do compreensibilidade que ficam um pouco abaixo da certeza total de seu sentido
concreto ao abstrato, ou sequer sobre a questão de saber se a história deve ser último que a sensibilidade religiosa pode extrair da reflexão sobre ela. Esse
filosoficamente concebida ou empiricamente inferida, ou se é mais uma ciência “sentido” consiste na apreensão da coerência formal de segmentos finitos do
do que uma arte. O ponto em debate em todas as análises em que tais termos processo histórico, na apreensão das estruturas que se sucedem umas às outras
são empregados é o que se entende pelos próprios termos, os modos como a como integrações cada vez mais abrangentes da vida e da sociedade humana.
arte, a ciência e a filosofia são concebidas, por um lado, e a natureza do Em suma, para Ranke, o sentido que a história revela à consciência é puramente
relacionamento entre o evento individual e seu contexto, por outro. organicista. Não é, porem, o organicismo holístico que Novalis pretendeu
Na verdade, Humboldt, como Ranke, sustentava que a história é o conhe­ enxergar no processo todo, mas o do relacionamento parte-todo que permite
cimento do acontecimento individual em sua realização concreta e que o ao observador ver no microcosmo uma indicação da coerência mais ampla
problema que o historiador enfrenta é o de relacionar o individual com o contida na totalidade. Ranke confiou a apreensão adequada da natureza dessa
contexto em que aparece e cumpre seu destino. Além disso, ele e Ranke coerência mais ampla a uma sensibilidade especificamente religiosa e negou-a
afirmavam que a história é em última análise uma forma de arte, e especifica­ à consciência histórica corretamente entendida. Mas ao historiador concedeu
mente uma forma de arte clássica, vale dizer, uma forma de arte mimética um tipo de discernimento que produz um sentido, ou vários sentidos, que podem
voltada para a representação da realidade como esta “efetivamente” aparece superar o desespero sofrido por Constant, de um lado, e o tipo de fé ingênua
num dado tempo e lugar. De mais a mais, ele asseverava que o escopo do estudo professada por Novalis, do outro. Encontrar as formas em que a realidade
histórico, afinal, é adivinhar o sentido de todo o processo histórico, e não apenas histórica se manifesta cm diferentes épocas e lugares, nos esforços da raça para
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realizar uma comunidade humana - tal era a concepção dc Rankc da tarefa do cesso que é representado como drama cômico por um historiador pode ser
historiador. E essa doutrina organicista constituiu a principal contribuição de representado como drama trágico ou processo absurdo por outro. Quando tais
Ranke para a teoria pela qual a história se estabeleceu como disciplina autôno­ enredos alternativos se oferecem a um público que já perdeu a fé em sua própria
ma no segundo quartel do século XIX. capacidade de fornecer a resolução cômica do drama em que desempenha o
É verdade que disputas como as travadas entre Ranke e o discípulo de papel de principal protagonista, o interesse pelas explicações organicistas da
Hcgcl, Hcinrich Leo, giram em torno de questões como a de saber se o história pode ceder o lugar a um desejo de técnicas explicativas mecanicistas ou
entendimento deve proceder do particular para o geral ou do geral para o contextualistas. E isso foi o que ocorreu em vastos setores do mundo culto no
particular; mas essas disputas se travam a partir do interior da pressuposição último quartel do século XIX, com o advento do positivismo e do marxismo de
compartilhada de que o campo histórico é o lugar onde o geral e o particular, um lado e do esteticismo de outro.
o universal e o individual, se encontram e se fundem no processo histórico em Mas, em tais circunstâncias, não é necessário abandonar o organicismo;
geral. A verdadeira questão tem a ver com a exigência de rigor na conceptuali- basta apenas passar da representação do processo histórico como drama cômi­
zação, por um lado (a posição representada por Hegel), e a possibilidade de co para a representação dele como drama absurdista para refletir a perda de
resistir a uma rigorosa conceptualização das bases do conhecimento histórico, vigor das classes dominantes de uma sociedade quando suaj>rópria capacidade
por outro (a posição representada por Humboldt e Ranke). Na cdncepção de compreender cientificamente a realidade se dissipou. E isso foi o que
organicista de explicação, a obscuridade em algum ponto da análise é um valor Burckhardt realizou.
inquestionado, é exigida pela apreensão do campo histórico como lugar onde a A importância do ensaio de Humboldt residia não em sua concepção da
novidade essencial se intromete sob condições e impulsos que são intrinseca­ explicação histórica, que era menos do que adequada do ponto de vista lógico
mente incognoscíveis. Esse é o verdadeiro teor da defesa feita por Ranke e seus e científico, mas na confiança que manifestava na adequação de uma abordagem
seguidores do método “empírico” na pesquisa histórica. Mas esse “empirismo” organicista do estudo histórico. O que sugeria era que, se a representação
provém menos de uma rigorosa observação de particularidades do que de uma histórica fosse respaldada pela convicção da definitiva coerência formal de todo
decisão de tratar certos tipos de processos como intrinsecamente resistentes à o processo, o pensamento histórico poderia ser salvo da noção de “Caos do Ser”
análise - e certos tipos de compreensão como intrinsecamente limitados. dos românticos, por um lado, e da noção de sua perfeita compreensibilidade
Essa apreensão da natureza fundamentalmente misteriosa (ou miraculo­ proposta pelos idealistas e positivistas, por outro. Em suma, representava um
sa, se se preferir) do acontecer histórico é salva do obscurantismo a que é compromisso com o modo sinedóquico de compreensão.
naturalmente propensa por força da crença que a acompanha na estrutura de Omythos da sinédoque é o drama da comédia, a apreensão de um mundo
enredo essencialmente cômica desenhada em cada estória que poderia ser em que todas as lutas, discórdias e conflitos se dissolvem na realização de uma
contada sobre o processo histórico em suas dimensões macroscópicas. Essa perfeita harmonia, na instauração de um estado em que o crime, o vício e a
apreensão da natureza fundamentalmente cômica do processo está subjacente insânia finalmente se revelam como meios para o estabelecimento da ordem
ao chamado otimismo da imagem historicista do mundo. O que as denomina­ social que é alcançada no final da peça. Mas a resolução cômica pode assumir
ções das preconcepções “otimistas” do historicismo rankiano obscurecem é o duas formas: o triunfo do protagonista sobre a sociedade que lhe bloqueia a
grau em que uma atitude meramente otimista é vivenciada como noção pueril caminhada para a meta, ou a reafirmação dos direitos da coletividade sobre o
quando não se faz acompanhar de um fundamento lógico pelo qual a crença em indivíduo que se ergueu para desafiá-la como forma definitiva de comunidade.
sua verdade é justificada. Na consciência sinedóquica de Humboldt e Ranke, À primeira modalidade de construção de enredo cômico pode-se chamar
esse fundamento lógico é umapreconcepção, ela mesma não analisada critica­ comédia do desejo, à segunda comédia do dever e da obrigação. Michelet
mente e injustificada, mas simplesmente afirmada com a atitude com que os escreveu suas histórias da França até a Revolução na primeira modalidade;
homens são moralmente compelidos a encarar a história se não pretendem Ranke escreveu suas histórias de todas as nações da Europa na segunda. O que
entregar-se ao desespero. Mas a justificação para acreditar nisso é oferecida os ligava como representantes da nova, ou “realista”, historiografia do segundo
representação real do processo do mundo em que uma estruturação cômica quartel do século XIX era a convicção que partilhavam: de que a simples
do enredo do processo total passa no teste de plausibilidade. descrição do processo histórico em toda a sua minúcia e variedade iria delinear
A ameaça a que o historicismo estava exposto não cra teórica, uma vez um drama de realização, plenitude e ordem ideal de modo a fazer da narração
que uma concepção organicista de explicação não pode ser atacada de fora do da estória uma explicação do por que ele aconteceu como aconteceu. Por trás
âmbito de seus próprios postulados habilitadores. O que se fazia necessário para dessa disposição de se engolfarem no caos de dados e eventos contidos no
debilitar esses postulados não era uma demonstração de que o registro histórico registro histórico estava a convicção de que uma descrição precisa dos aconte­
pode ser compreendido por modos de explicação mecanicistas, formistas ou cimentos em sua particularidade redundará, não numa imagem de caos, mas
contextualistas, mas, de preferência, uma demonstração de que o mesmo pro­ numa visão de uma coerência formal que nem a ciência nem a filosofia é capaz
202 HAYDENWHITE
3
de apreender e muito menos de captar numa representação verbal. Buscavam
ambos colher a essência de uma “idéia” no centro do processo de desenvolvi­ TOCQUÊVILLE
mento que pretendiam primeiro capturar na prosa narrativa. 0 REALISMO HISTÓRICO COMO TRAGÉDIA

INTRODUÇÃO

A consistência do pensamento histórico de Michelet provinha da cons­


tância com que ele aplicava seu talento para a caracterização metafórica dos
indivíduos e dos processos que discernia no campo histórico. A apreensão
formista, por parte de Michelet, dos objetos ocupantes do campo histórico
escorava-se no mito da estória romanesca que ele empregou para pôr em enredo
a seqüência de acontecimentos que culminaram na Revolução de 1789. Uma
inconsistência fundamental de seu pensamento residia no esforço de inferir
implicações expressamente liberais de uma concepção do processo histórico
que era de natureza essencialmente anarquista. Nenhuma inconsistência seme­
lhante prejudicou o pensamento e a obra de Ranke. Sua teoria do conhecimento
era organicista, seu modo de elaboração de enredo, cômico, sua posição ideo­
lógica, conservadora. Consequentemente, quando lemos Ranke, por mais que
nos impressionemos com seu saber e seus poderes de narrador, nos damos conta
da ausência, em tudo quanto escreveu, do tipo de tensão que associamos à
grande poesia, à grande literatura, à grande filosofia - e mesmo à grande
historiografia. Talvez seja esta uma das razões por que é possível, de tempos em
tempos, renovar o interesse por um historiador como Michelet de úm modo que
é quase impossível com relação a um historiador como Ranke. Admiramos o
feito deste último, mas respondemos de imediato e com simpatia ao agon
daquele.
Quando se trata de cartografar a história do homem e da sociedade em
grande escala, ninguém se permite o tipo de certeza que parece informar a obra
204 HAYDEN WHITE
METAHISTÓRIA 205

de Ranke. O conhecimento é produto de um corpo a corpo não só com os fatos


mas também com o próprio ego. Onde as visões alternativas da realidade não social e político da França orleanista. Sua estatura de importante precursor do
são acolhidas como possibilidades autênticas, o fruto do pensamento tende para moderno pensamento sociológico está bem estabelecida, e suas contribuições
a amenidade e a autoconfiança gratuita. De certo modo respondemos a Ranke para o liberalismo e o conservadorismo são agora pontos pacíficos. Não é meu
como estamos inclinados a responder a Goethe; nenhum pensador foi levado a propósito fazer acréscimos ao entendimento desses aspectos do pensamento,
tentar qualquer coisa que ele já não soubesse no íntimo que podia realizar. A da obra e da vida de Tocqueville. Estou bem mais interessado em analisar seu
tranqüilidade que intuímos existir no centro da consciência de Ranke era uma pensamento sobre a história como modelo de um estilo específico de reflexão
função da coerência entre sua visão e a aplicação daquela visão à sua obra de histórica.
historiador. Essa coerência faltou a Michelet no nível em que ele procurou Nessas duas obras, a forma ostensiva que o conhecimento da realidade
passar de sua visão da história para a posição ideológica com que estava social assume é tipológica, o que poderia sugerir que, no fim de contas, o
conscientemente comprometido, mas que era inconsistente com aquela mesma propósito de Tocqueville era efetuar ou uma dispersão formista ou uma unifi­
visão. Sua obra é por isso mais turbulenta, mais apaixonada e mais imediata para cação organicista dos processos e das forças identificados em função dos tipos
nós que vivemos numa'época em que a autoconfiança moral, se não impossível, realmente construídos. Mas, ao contrário de Michelet por um lado e de Ranke
pelo menos parece tão perigosa quanto é desejável. por outro, nem uma festa de formas nem uma síntese de forças rivais era
Turbulência semelhante àquela que apreendemos em Michelet está pre­ admitida por Tocqueville como verdadeira possibilidade para o futuro da
sente no cerne da obra de seu grande contemporâneo e compatriota Alexis de Europa. Para ele, o futuro comportava pouca possibilidade de reconciliação do
Tocqueville. Essa turbulência tem sua fonte em duas emoções que Tocqucville homem com o homem na sociedade. As forças em ação na história, que faziam
partilhava com Michelet: uma decisiva capacidade de simpatizar com homens dela uma arena de conflito irremissível, não são reconciliáveis, nem na socieda­
diferentes dele mesmo e um temor da destruição das coisas que ele mais de nem no coração do próprio homem. O homem está, como escreveu Tocque­
estimava no passado e no presente. Vimos como Michelet tendeu para uma ville, “na divisa entre dois abismos”, um constituído por aquela ordem social
concepção cada vez mais irônica da história em geral na medida em que a vida sem a qual ele não pode ser homem, o outro constituído por aquela natureza
política francesa foi se distanciando das condições em que uma união ideal da demoníaca dentro dele que o impede de se tornar plenamente humano. É à
nação fora alcançada, ao menos do ponto de vista de Michelet, na euforia de consciência dessa existência “na divisa entre dois abismos” que o homem
1789. Quando o ponto culminante da história francesa desapareceu no passado, regressa constantemente ao cabo de cada esforço para se elevar acima do animal
o mito romântico que Michelet utilizou para dar contorno e forma à história da e fazer florescer o “anjo” que reside dentro dele, reprimido, aprisionado e
França até 1789 passou a ser progressivamente sublimado, reprimido, tratado incapaz de conquistar ascendência na espécie.
como uma insinuação do que poderia ainda ser o resultado da história francesa Esse estilo não é exaustivamente descritível nos termos de um determina­
se o historiador simplesmente conseguisse realizar seu trabalho de reconstrução do rótulo ideológico (como liberal ou conservador) ou especificamente disci­
e ressurreição do passado em sua integridade, cor, intensidade e vida. Na plinar (como “sociológico”). De fato, o ponto por mim sustentado é que a
evolução do pensamento histórico de Tocqueville assistimos a um idêntico verdadeira implicação lógica da obra de Tocqueville como historiador é radical.
deslizamento para a ironia quando acompanhamos o desenvolvimento de sua Visto que estudou a história com o fim de determinar as leis causais que regem
reflexão sobre a história, e sobre a história francesa em geral, desde a Democra­ suas operações como processo, ele se comprometeu implicitamente com uma
cia na América (1835) até os Souvenirs (escritos nos anos que precederam sua concepção a respeito da manipulação do processo social, do tipo que associa­
morte em 1859). Mas o ponto em que Tocqueville iniciou sua descida é diferente mos ao radicalismo em sua forma moderna, materialista. Esse radicalismo
daquele em que Michelet iniciou a sua. Enquanto Michelet começou pela implícito está refletido no mythos trágico que inspira e fornece o contexto
estória romanesca, passou por uma apreensão trágica dos destinos que atrai­
macro-histórico das duas mais importantes obras de Tocqueville, Democracia
çoam os ideais para os quais trabalhou como historiador e veio por fim repousar na América e O Antigo Regime e a Revolução.
naquele amálgama de romantismo sublimado e manifesta ironia com que viu a
história da França depois de 1789, Tocqueville começou por uma tentativa de Fundamental em todo o pensamento de Tocqueville é a apreensão de um
sustentar uma visão explicitamente trágica da história e depois paulatinamente caos primordial que faz da ordem encontrada na história, na sociedade e na
deixou-se cair numa resignação irônica a uma condição da qual via pouca cultura em parte um enigma e em parte uma bênção. Como seu grande contem­
possibilidade de libertação, cedo ou tarde. porâneo, o romancista Balzac, Tocqueville exultava no mistério do fato de que
Os estudos recentes sobre Tocqueville revelaram totalmente as bases o homem “tem” uma história; mas sua concepção dos escuros abismos de onde
intelectuais e emocionais de seu pensamento; as “influências” exercidas sobre o homem provém, e contra os quais ele ergue a “sociedade” como barreira ao
ele, por pensadores do passado e contemporâneos; e sua posição no mundo caos total, não lhe permitia esperar senão modestos ganhos, de tempos em
tempos, em seu conhecimento das forças que no fim de contas governam o
206 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 207

processo do mundo. Como, para ele (ao contrário de Marx), o próprio ser era crática e aristocrática. E sua concepção da história da moderna civilização
um mistério, Tocqueville não podia fazer avançar seu pensamento até a con­ ocidental, desde o fim da Idade Média até sua própria época, girava em torno
templação da autêntica ciência da história que sua organização tipológica dos do problema de como esses dois tipos de sociedade tinham surgido dentro
fenômenos históricos parecia sancionar. Esse indigerível resíduo de mistério daquela civilização, da natureza do relacionamento e interação entre elas e da
vedava sua conceptualização das leis do processo que poderiam ter-lhe permi­ avaliação das perspectivas do futuro de cada uma. A pergunta a que Tocqueville
tido explicar o fato de que a própria história parece decompor-se em tipos tinha de responder era esta: Qual é a natureza do processo dentro do qual esses
mutuamente exclusivos, mas recorrentes, de fenômenos sociais. dois tipos imutáveis de sociedade se manifestam, interagem e conflitam um com
o outro?
Mas, diferentemente dos ironistas puros que o antecederam no Iluminis- Na verdade Tocqueville não tratou dessa questão diretamente. Intentou
mo e que lhe sucederam no fim do século XIX, Tocqueville não se permitiu discernir tendências de longo alcance, de natureza política, social e histórico-
acreditar que a história não tem nenhum sentido geral. O que o agon trágico cultural, que indicavam, no seu modo de ver, o declínio de um dos tipos de
revela, repetidas vezes, é que o segredo da história não é outra coisa senão a sociedade (o aristocrático) e a ascensão do outro (o democrático). E deu a
eterna luta do homem consigo mesmo e o eterno retomo a si mesmo. O mistério entender que o declínio do tipo aristocrático é função da ascensão do tipo
da história é, assim, concebido ora à maneira de Ésquilo, ora à maneira de democrático, o que significa que via todo o processo histórico como um sistema
Sófocles, primeiro como auxílio à ação autoconfiante no presente em nome de fechado, que continha uma quantidade finita de energia utilizável, em que tudo
um futuro melhor, depois como um memento dos riscos de uma exclusão o que é ganho em qualquer processo de crescimento deve ser custeado por
prematura de possibilidades ou de um precipitado compromisso com progra­ alguma perda em outra parte do sistema. O sistema como um todo, considerado
mas sociais ou pessoais incompletamente compreendidos. E essa perspectiva como um processo, era, assim, concebido de maneira mecanicista, e as relações
dual da história era a base do liberalismo de Tocqueville. Só perto do fim da entre as partes eram concebidas em termos mecânico-causais.
vida o tom e a índole de suas reflexões sobre a história absorveram-se na Se fosse um pensador idealista (ou organicista), Tocqueville seria compe­
convicção irônica de Eurípides ou do último Shakespeare, convicção de que a lido a ver nessa troca de energia o ensejo de um crescimento positivo na
vida pode não ter mesmo sentido algum. Quando essa convicção se insinuou, consciência humana em geral, crescimento que seria perceptível na elevação do
Tocqueville reprimiu-a, por razões morais, com medo de seu efeito debilitador refinamento de reflexão e expressão em sua época em comparação com todos
sobre os homens que precisam empenhar-se, com todas as forças, para fazer os períodos anteriores - à maneira de Hegel ou, quanto a isso, de Ranke. Mas
dos mesquinhos materiais que o destino lhes oferece uma vida de alguma o crescimento que Tocqueville percebeu no processo não deve ser encontrado
espécie. E chegou até a atacar seu amigo Gobineau por atrever-se, em nome da propriamente no progresso da consciência em geral mas no poder das forças
verdade, a disseminar uma concepção da história que iria contribuir para a que foram as únicas a tirar proveito do declínio da aristocracia e da ascensão
promoção de um temor que cabe ao filósofo e ao historiador dissipar. da democracia: o poder do Estado centralizado, por um lado, e o poder das
massas, por outro. E, do seu ponto de vista, essas duas forças agregam-se e
Se Tocqueville tivesse afirmado ou que a história não tem sentido algum combinam-se para apresentar uma ameaça crítica, não só para a civilização e a
e portanto não oferece base nenhuma para a esperança, ou, inversamente, que cultura como ele as concebia, mas também para a própria humanidade. Além
ela tem um sentido e que esse sentido pode ser integralmente conhecido pelo disso, o crescimento dessas forças foi visto por ele, não como um processo
homem, teria sido impelido ou para a posição reacionária de seu sucessor esporádico ou casual, mas como uma erosão sistemática e constante de precisos
Burckhardt ou para a posição radical de seu contemporâneo Marx. Mas ele
recursos humanos - intelectuais, morais e emocionais.
queria acreditar que a história tem um sentido e que esse sentido há de ser
encontrado na natureza misteriosa do próprio homem. Foi o valor que Tocque­ Todo o processo tem a inevitabilidade de um drama trágico, e as primeiras
ville conferiu a esse mistério que o converteu no porta-voz da posição ideológica reflexões de Tocqueville sobre a história e o conhecimento histórico imaginam
explicitamente a tarefa do historiador como a de um mediador entre as novas
que tem sido chamada de liberal, a despeito do fato de que sua concepção da
forças conquistadoras que aparecem nos horizontes temporais do próprio
natureza nomológica do processo histórico poderia tê-lo induzido a adotar uma
historiador e os antigos e desfalecentes ideais culturais que elas ameaçam com
posição radical sobre a maioria das importantes questões sociais da época.
sua ascensão. Tocqueville habitava um mundo dividido. Seu escopo era socor­
O estudo “científico” que Tocqueville fez da história resultou na distri­ rê-lo da melhor maneira possível, de modo que as fendas e rachaduras pudes­
buição dos eventos históricos em tipos, classes, gêneros, espécies e assim por sem ser remendadas, senão completamente corrigidas.
diante. Os dados se transformavam em conhecimento quando se tinha levado a Tocqueville tomou para contexto mais amplo de sua reflexão toda a
cabo sua localização numa série finita de tipos de fenômenos sociais, políticos história da civilização ocidental, na qual situou suas análises das variações das
e culturais. Por exemplo, Tocqueville analisou dois tipos de sociedade: demo­ espécies européia e americana dessa civilização como exemplos de tipos relati-
208 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 209

vamente puros de potencialidades contidas na totalidade como futuros possíveis ANT1DIALÉTICA


para sua própria geração. Conseqüentemente, tanto o ponto de vista sob o qual
observou as histórias dos dois tipos quanto o tom de voz em que narrou as Na obra de Tocqueville, ao contrário da de Ranke, há muito pouca
histórias diferem significativamente. O ponto de vista assumido para a observa­ percepção de uma transformação dialética do campo histórico; a percepção
ção da democracia americana é o do observador que é superior aos agentes e dominante é a de uma constante queda de uma posição de superioridade e uma
agências que compõem aquele tipo de sociedade. O estado de espírito é de incapacidade de explorar determinadas possibilidades. O dualismo das forças
benevolente ironia, ao menos no primeiro volume de Democracia na América, históricas que Ranke via como a precondição da conciliação social de fato
visto que Tocqueville escrevia com o propósito de alertar seus leitores europeus realizada em sua própria época, Tocqueville via como uma ameaça fundamental
para as forças e as fraquezas dessa potencialidade que a sociedade européia à própria civilização. Com efeito, toda a realização historiográfica de Tocque­
continha dentro de si como possível futuro. Já em O Antigo Regime o tom e o ville foi fruto de seu empenho em determinar se alguma coisa na iminência do
ponto de vista mudaram, na direção assinalada pelo segundo volume de Demo­ desastre total podia ser salva do conflito de forças que, no seu entender,
cracia na América, que é mais nitidamente analítico das instituições, dos costu­ pareciam ser irreconciliáveis.
mes e das crenças americanas e mais diretamente crítico da ameaça que O dualismo que para Tocqueville caracterizava o processo histórico
representam para componentes eternamente valiosos da vida cultural européia. refletia-se em sua concepção da própria natureza humana ou projetava-se dessa
O ponto de vista é muito mais o do participante de um processo, mas partici­ concepção. Como ele escreveu a um amigo em 1836:
pante que deve esforçar-se ao máximo para sair desse processo a fim de
predizer-lhe o movimento ou tendência geral, prever-lhe o fim ou a direção e Não importa o que façamos, não podemos impedir que os homens tenham um corpo e
advertir os que nele estão envolvidos dos perigos que os rondam. O tom mudou também uma alma. (...) Você sabe que o animal não está mais domado em mim do que na maioria
também para harmonizar-se com a mudança de ponto de vista. O estado de das pessoas, [mas] adoro o anjo e daria qualquer coisa para vê-lo prevalecer. Estou, portanto,
continuamente ocupado em descobrir o meio-termo que os homens podem seguir sem se tomarem
espírito é mais sombrio; o mythos trágico determina que a forma da narrativa
discípulos quer de Heliogábalo quer de São Jerônimo; pois estou convencido de que a imensa
fique mais próxima da superfície. A linguagem é predominantemente metoní- maioria jamais será persuadida a imitar qualquer dos dois, e menos o santo do que o imperador
mica, como é no segundo volume da Democracia na América, mas as imagens [Memoir, 1,318].
do processo são muito mais conspícuas, e o fluxo do tempo e o senso de
desenvolvimento são evocados de maneira mais insistente. O mesmo dualismo foi transportado para os princípios políticos de Toc­
Entre o primeiro volume de Democracia na América e CMnrigo Regime queville e redundou numa busca de idêntico “meio-termo” ali também. Sobre
houve importante mudança de ênfase, que passou da consideração da estrutura sua posição política observou certa vez:
para a consideração do processo, daí resultando que a sensação do peso do
sentido se deslocou mais abertamente para o nível narrativo da representação Imputam-me alternadamente preconceitos aristocráticos e democráticos. (...) Mas acontece
na obra posterior. O processo da história da Europa Ocidental desde a Reforma que o meu nascimento me predispôs a ser cauteloso com ambas. (...) Quando vim ao mundo a
até mais ou menos 1830 foi simplesmente assumido como contexto para a aristocracia estava morta e a democracia ainda não tinha nascido. Meu instinto, portanto, não
análise, levada a cabo na obra anterior, da estrutura da democracia americana. poderia conduzir-me ccgamente para uma ou para a outra. (...) Equilibrado entre o passado e o
futuro, sem atração natural instintiva para qualquer dos dois, podia sem esforço observar com
Dentro desse processo, a democracia americana aparece como uma estrutura
tranquilidade cada lado da questão [Ibid., II, 91].
rígida cujo único movimento ou crescimento está na articulação de seus elemen­
tos componentes e suas relações. Em O Antigo Regime, ao contrário, a distinção
entre processo e estrutura está quase dissolvido. O efeito é, por conseguinte, Tocqueville assemelhava-se a Maquiavel em sua convicção de que sua
mais literário, o viés ideológico também mais ostensivamente rebuscado. Mas própria época sofria de uma incapacidade de escolher entre sistemas sociais e
as implicações das duas obras convergem para uma única imagem de estase, ideais culturais alternativos. Desde a queda de Napoleão, acreditava ele, a
determinação, frustração, opressão e desumanização. O impulso predominante Europa ficara suspensa entre o velho sistema aristocrático e o novo sistema
democrático; nem abandonara totalmente o primeiro nem abraçara completa­
por trás de toda a obra de Tocqueville era a visão de derrota e desespero
mente o segundo, e, embora atormentada pelas falhas de ambos, não gozava dos
inexplicados que inspira o mythos irônico onde quer que apareça. Tocqueville
benefícios de nenhum dos dois. O principal problema, como Tocqueville o
foi impedido de sucumbir a esse desespero apenas por um ato de vontade, o
encarava, cifrava-se em pesar as vantagens e desvantagens dos dois sistemas,
tipo de ato que lhe permitiu continuar a falar como um liberal até o fim, quando
avaliar as perspectivas de futuro de cada um e incentivar a escolha de tudo o
tudo quanto escreveu acerca da história devia levá-lo ou à rebelião radical por
um lado ou ao niilismo reacionário por outro. que parecesse inevitável, de modo a melhor promover a causa de liberdade e
criatividade humana. Parte dessa investigação tinha de ser histórica, mas ne­
nhum exame histórico convencional poderia servir adequadamente às necessi­
210 HAYDENWHJTE META-H1STÓRIA 211

dades da época. Esta reclamava uma visão histórica que não fosse nem “aristo­ Se fosse totalmentc ignorante de si mesmo, o homem não comportaria nenhuma poesia;
pois é impossível descrever o que a mente não concebe. Se o homem distinguisse claramente sua
crática” nem “democrática” per se, mas que fosse capaz de julgar ambos os
própria natureza, sua imaginação permaneceria ociosa e nada teria a acrescentar ao quadro. Mas
sistemas objetivamente e de salvar o que neles houvesse de útil para o futuro. a natureza do homem se revela o bastante para que ele conheça alguma coisa de si mesmo, e é
Da mesma forma, a cultura de sua própria época, acreditava Tocqueville, suficientemente obscura para que todo o resto fique mergulhado em espessa treva, na qual ele
vacilava entre o idealismo do velho período aristocrático e o materialismo da procura às cegas etemamente, e etemamente em vão, apoderar-se de alguma idéia mais completa
emergente época democrática. O Iluminismo criticara o idealismo aristocrático de seu ser pbíd.).
e volvera a atenção dos homens para “o mundo real e visível” como objeto
próprio de estudo. A princípio, pensamento e arte se tinham concentrado Era necessário, pensava Tocqueville, manter o desespero e a aspiração
exclusivamente no mundo físico, no mundo “externo ao homem”. Mas essa presentes à consciência humana, manter a mente dos homens dirigida para o
fascinação pela natureza não era nem o único interesse possível da época nem futuro, mas ao mesmo tempo fazê-los recordar que um futuro melhor e mais
realmente apropriado a ela; convinha, disse Tocqueville, “apenas a um período humano não poderia ser conquistado contra o sofrimento mais desapiedado e
de transição”. Na era que se aproximava, previu ele em Democracia na América, com o esforço m^is penoso. Para a época vindoura, portanto, ele antevia uma
pensamento e imaginação iriam fixar-se no “homem exclusivamente” e mais arte que passara do modo épico do período aristocrático, através do modo lírico
especificamente no futuro da humanidade (II, 76-77). da etapa de transição, para uma nova percepção trágica da condição humana.
Ao contrário das aristocracias, que tendem a idolatrar o passado, as E em sua visão a filosofia passaria do velho idealismo, através do materialismo
democracias “são obsedadas por visões do que será; nessa direção sua ilimitada da era de transição, para um novo humanismo mais realista. O sistema social
imaginação cresce e se dilata além de toda medida” (78). Assim, embora a adequado a essa nova visão do homem não era exclusivamente aristocrático ou
natureza materialista e utilitária da cultura democrática inevitavelmente pro­ democrático, mas uma combinação dos dois: igualitário, materialista e utilitário
movesse a desespiritualização do homem, ao mesmo tempo pelo menos estimu­ em consonância com os princípios da democracia; individualista, idealista e
lava a esperança no futuro. Por exemplo, “no meio de um povo democrático a heróico de acordo com os princípios da aristocracia. Era tarefa do historiador
poesia não se nutrirá de lendas nem dos monumentos comemorativos de velhas auxiliar na criação desse novo sistema social mostrando como os princípios da
tradições. O poeta não tentará povoar o universo de seres sobrenaturais, em aristocracia e da democracia eram finalidades do único impulso duradouro da
que seus leitores e sua própria fantasia deixaram de acreditar, nem friamente civilização européia, o desejo de liberdade que tinha caracterizado a cultura
personificará virtudes e vícios, que são mais bem recebidos sob suas próprias ocidental desde os seus primórdios.
feições” (80). O vasto âmbito de possíveis temas de poesia que tinham sido Devo acentuar neste ponto que a concepção de Tocqueville do papel
oferecidos pela febril imaginação aristocrática de repente se contrai, a imagi­ mediador do historiador pressagiava a disposição de espírito irônica em que ele
nação recua sobre si mesma e para dentro de si mesma, e o poeta encontra na incorreu no curso de suas reflexões históricas subseqüentes. No início de sua
natureza humana seu único objeto adequado. “Todos esses recursos lhe faltam; carreira de historiador, ele tinha o propósito de alcançar uma visão trágica da
mas o Homem permanece, e o poeta não precisa de mais” (80-81). história, o que pressupõe uma percepção das leis que regem a natureza em sua
Se o próprio homem podia converter-se em objeto e medida de todo o competição com o destino e, a fortiori, das leis que regem o processo social em
pensamento e toda a arte, seria possível, acreditava Tocqueville, criar uma nova geral. Se, de fato, essas leis podem ser descobertas pela investigação histórica,
visão cultural que não fosse nem idealista nem materialista, mas que fosse uma então em princípio devem ser aplicáveis ao esforço no sentido de produzir as
combinação das duas, heróica e realista ao mesmo tempo. Assim, escreveu ele: situações e circunstâncias que são inevitáveis no desenvolvimento humano com
o mínimo de dor e sofrimento - como Tucídides sugeriu na famosa seção inicial
Não preciso atravessar a terra e o céu para descobrir maravilhosos objetos tecidos de
de As Guerras do Peloponeso. Mas o otimismo que a possibilidade de descobrir
contrastes, de infinita grandeza e pequenez, de intensa escuridão e surpreendente claridade, tais leis do processo histórico devia promover é decisivamente limitado pela
capazes ao mesmo tempo de despertar piedade, admiração, terror, desprezo. Preciso apenas olhar concepção daquela natureza humana no interesse da qual elas deviam ser
para mim mesmo. O homem provém do nada, cruza o tempo e desaparece para sempre no seio de aplicadas. Se se concebe o próprio homem como sendo crucialmente imperfei­
Deus; é visto apenas por um momento, caminhando à beira de dois abismos, e lá ele está perdido to, por exemplo, em razão da presença nele de forças irracionais que poderiam
[80]. impedi-lo de agir em função de seus melhores interesses enquanto ser racional­
mente concebido, a descoberta das leis que governam suas ações como ser social
Essa existência “à beira de dois abismos” produz uma sensação de sofri­ deve ser vista como iluminadora, não de uma liberdade essencial, mas de uma
mento, ou desespero, inconfundivelmente humano, mas também gera uma determinância fatal. E é essa concepção de uma natureza humana fatalmente
aspiração inconfundivelmente humana, um impulso para conhecer e criar. imperfeita, de uma humanidade que nunca está consigo mesma mas sempre, de
algum modo, fora de si mesma, que proibiu Tocqueville de assumir uma posição
212 HAYDENWHITE META HISTÓRIA 213

ideológica radical, para a qual sua busca das leis da história originariamente o satisfatória do real, porque o historiador aristocrático e o democrático forçosa­
impelia. mente procuram, e vêem, coisas diferentes quando exploram o registro históri­
Na realidade Tocqueville reprimiu as implicações radicais de sua concep­ co. Por exemplo:
ção nomológica da história e progressivamente abandonou a busca de leis em
benefício da construção de tipologias. Esse movimento no nível epistemológico Quando o historiador das épocas aristocráticas observa o teatro do mundo, imediatamente
foi copiado no nível estético pela troca de uma estrutura de enredo que era percebe um número reduzidíssimo de atores eminentes que conduzem toda a peça. Essas grandes
personagens, que ocupam a frente do palco, prendem a atenção e a concentram sobre si mesmas;
implicitamente trágica por outra cada vez mais satírica. Nos últimos estágios de
e enquanto o historiador se esforça por penetrar nos motivos secretos que levam essas pessoas a
seu pensamento Tocqueville foi levado a refletir sobre o quanto os homens estão falar e agir, os outros lhe fogem da memória [90].
presos às condições em que têm de lutar para conquistar o reino da terra e sobre
a impossibilidade de efetivamente o conquistarem um dia. E a crescente pressão Os historiadores aristocráticos tendem a “reportar todas as ocorrências à
dessa percepção irônica para chegar ao primeiro plano confirma seu liberalismo
vontade e ao caráter particular de certos indivíduos; e estão sempre dispostos
essencial como ideólogo.
a atribuir as mais importantes revoluções a acidentes insignificantes” (Ibid.). O
As lealdades de Tocqueville eram - e continuaram a ser - aristocráticas, resultado é que, embora sejam freqüentemente capazes de “esboçar as menores
o que justifica a rotulação de sua/orzna mentis como essencialmente conserva­ causas com sagacidade”, com a mesma freqüência “deixam inobservadas as
dora por aqueles que o estudaram por esse prisma. No entanto Tocqueville maiores” (Ibid.). É bem diferente o caso dos historiadores democráticos. De
resistiu à típica satisfação do conservador com as coisas como estão. Sob alguns fato, exibem “características precisamente opostas”. Tendem a “quase não
aspectos, como indicarei mais adiante, sua insatisfação com sua própria época atribuir qualquer influência ao indivíduo sobre o destino da raça, ou aos
assemelhava-se à do reacionário conde de Gobineau. Mas, ao contrário de cidadãos sobre o destino de um povo; mas, por outro lado, atribuem grandes
Gobineau, Tocqueville não sucumbiu à tentação de afirmar o que o seu respeito causas gerais a todos os incidentes triviais” (Ibid.). O historiador aristocrático,
pelas virtudes da cultura aristocrática lhe impunha - a saber, a convicção de que embora idealize menos do que o poeta, ainda se distingue exclusivamente ao
sua época representava um declínio absoluto a contar de uma era ideal anterior. descrever o quanto os indivíduos controlam seus próprios destinos; é insensível
Como mais tarde Croce, Tocqueville insistia em ver em cada realidade ideal ou à força que as causas gerais exercem sobre o indivíduo, como o frustram e o
social passada as falhas que exigiam fosse ela ultrapassada e suplantada por submetem à sua vontade. Já o historiador democrático trata de descobrir algum
outra forma mais vigorosa de vida histórica. Isso significava que era obrigado a sentido mais amplo na massa de pormenores fúteis que distingue na cena
ver a aristocracia e a democracia ironicamente em última análise. Mas ele nunca histórica. É levado a referir tudo, não aos indivíduos, mas apenas às grandes
chegou a admitir publicamente as implicações de sua sensibilidade irônica. forças abstratas e gerais. Tende portanto a encarar a história como uma estória
Continuou formalmente comprometido com uma visão trágica da história, mas deprimente da incapacidade do homem para controlar o próprio futuro, e
traía essa visão com sua relutância em especificar as leis da história que eram inspira ou um cinismo desalentador ou uma esperança infundada de que as
implicitamente pressupostas pelo enredo que elaborou para dar conta do curso coisas se resolverão por si mesmas.
da história européia como drama trágico e em sua resistência a extrair as A essas duas idéias da história eu chamaria formista e mecanicista e
conclusões radicais que sua concepção nomológica da história exigia. encararia como funções de dois modos de consciência, o metafórico e o meto-
nímico. “Ironicamente”, Tocqueville se distanciou desses dois modos de cons­
ciência histórica, salientando (corretamente) que, como os concebia, nenhum
POESIA E HISTÓRIA EM DOIS MODOS deles podia explicar o fato do desenvolvimento histórico, a evolução de um
estado ou condição saído de outro, diferente. A índole aristocrática não capta
Que Tocqueville visionava uma historiografia capaz de ministrar as leis sendo movimento, cor, agitação no campo histórico, e portanto não pode
do processo social -à la Marx - mostram-no sua investigação em Democracia registrar duração e continuidade. A índole democrática capta a mesma coisa
na América sobre a relação entre história e poesia e sua concepção das moda­ por trás de todo movimento e mudança aparente, e portanto não pode perceber
lidades de consciência histórica exposta no segundo volume daquela obra. qualquer desenvolvimento essencial.
Como ele observou, enquanto a poesia é “a procura, o delineamento, do O que Tocqueville propôs como alternativa a essas formas conflitantes e
ideal’* (75), a história deve dizer a verdade sobre o mundo dos afazeres huma­ inadequadas de consciência histórica não foi uma terceira forma e sim uma
nos, revelar as forças reais encontradas em qualquer tentativa de concretizar o combinação das formas aristocrática e democrática. Cada uma é válida a seu
ideal, e cartografar as reais possibilidades para o futuro de uma sociedade. Mas, modo, sugeriu ele, mas cada uma tem de ser empregada para a análise de um
argumentou Tocqueville, nem uma idéia aristocrática nem uma idéia democrá­ tipo específico de sociedade. Há uma espécie de afinidade eletiva entre o modo
tica da história pode sozinha oferecer uma visão completamente verdadeira e de consciência histórica a usar no estudo de uma dada sociedade e a estrutura
214 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 215

social da época ou cultura em análise. De fato, Tocqueville deu a entender que oferecidas por lealdades a outro sistema social. Isso queria dizer que sua tarefa
há duas ordens de causação em funcionamento no processo histórico, uma consistia em mediar entre dois modos de consciência, o metafórico e o metoní-
endêmica à sociedade aristocrática, a outra à sociedade democrática. Assim, mico, de maneira a corroborar as pretensões de cada um a um tipo de “realis­
escreveu: mo”. Dadas as inclinações intelectuais do próprio Tocqueville, o terreno em
que essa mediação devia ser levada a cabo era a ironia. Mas ele estava impedido
Sou dc opinião que, cm todos 06 tempos, uma parcela de acontecimentos deste mundo é de passar diretamente para a assunção de uma concepção irônica da história por
atribuível a fatos bastante gerais e outra a influências especiais. Essas duas modalidades de causas força de considerações morais. A concepção cômica da história, com sua
estão sempre em operação; só a proporção delas é que varia. Os fatO6 gerais servem para explicar sancionadora consciência sinedóquica, não podia ser aceita de modo algum,
mais coisas nas épocas democráticas do que nas aristocráticas, e menos coisas são então atribuíveis porquanto ele não habitava um mundo de forças sociais supostamente reconci­
a influências individuais. Durante períodos de aristocracia acontece o inverso: as influências
liadas. A visão cômica não era sequer considerada como possível opção por ele,
especiais são mais fortes, as causas gerais, mais fracas; a menos que, na verdade, consideremos
como causa geral o fato mesmo da desigualdade de condição, que permite a alguns indivíduos e, como dão a entender seus comentários sobre Fichte e Hegel, para ele teria
furtar-se às tendências naturais de todo o resto [91]. sido imoral impingir tal idéia da história a uma época tão perturbada como a
sua.
Isso sugere que Tocqueville julgava desnecessário optar entre as concep­ Mas isso também se aplica à idéia “democrática” da história e à consciên­
ções individualistas e deterministas, caóticas e providenciais do processo cia metonímica que a apóia. Embora estivesse formalmente comprometido com
histórico que então disputavam o predomínio. Tratava-se apenas de achar o a busca das causas através das quais se pudesse explicar a forma específica de
princípio causal dominante em operação no tipo de sociedade em estudo. sua época, Tocqueville julgava a procura de causas gerais limitada como pro­
Assim, grama de estudo e moralmente debilitadora em seus efeitos sobre aqueles que
a empreendessem unilateralmente. Assim, assinalou:
os historiadores que procuram descrever o que ocorre nas sociedades democráticas estão certos
(...) ao atribuir muita importância às causas gerais e dedicar sua atenção a descobri-las; mas estão Quando os vestígios da ação individual sobre as nações desaparecem, acontece frequente­
totalmente errados ao negar a influência real dos indivíduos porque não podem descobri-la ou mente que vemos o mundo mover-se sem que a força impulsionadora se manifeste. Como se toma
segui-la [91-92]. extremamente difícil discernir e analisar as razões que, atuando separadamente sobre a vontade
de cada membro da comunidade, concorrem no fim de tudo para produzir o movimento na massa
inteira, os homens são levados a crer que esse movimento é involuntário e que as sociedades
Mas o problema que se coloca quando se tenta aplicar esse princípio de
inconscientemente obedecem a alguma força superior que as governa. Mas mesmo quando se supõe
interpretação aos estudos históricos é que ele toma como solução de um descobrir o fato geral que governa a volição privada de todos os indivíduos sobre a terra, não se
problema o que é na realidade o próprio problema. Se desejo explicar o declínio assegura o princípio do livre-arbítrio humano. Uma causa suficientemente extensiva para influir
de uma sociedade aristocrática, não atingirei um nível significativo de informa­ sobre milhões de homens ao mesmo tempo c suficientemente forte para dirigir-lhes os passos na
ção se me limitar a aplicar a própria concepção que aquela sociedade tem da mesma direção pode parecer totalmcnte irresistível; tendo visto que a humanidade dc fato se
verdadeira natureza da realidade histórica aos fenômenos que me cabe analisar. submete a ela, a mente está prestes a inferir que a humanidade não pode resistir [92].
Isso seria aceitar ao pé da letra a utilidade heurística da ideologia da classe
dominante de uma determinada sociedade. No fim de contas, o problema de O pensamento histórico de sua época, acreditava (erroneamente) Toc­
Tocqueville era explicar a uma classe aristocrática desalojada porque ela fora queville, lograra apenas produzir uma história que negava “que a minoria tem
desalojada, problema que o porta-voz dessa classe não fora capaz de resolver todo o poder de influir no destino de um povo” e que o próprio povo tem lodo
satisfatoriamente pela aplicação do modo de consciência histórica que era o “poder de modificar sua própria condição” (Ibid.). Em toda parte os histo­
“natural” a ela em virtude de sua natureza “aristocrática”. riadores haviam sucumbido à crença em que a história era governada ou por
E diga-se o mesmo do problema do advento da “democracia” na época uma “Providência inflexível” ou por “alguma necessidade cega” (93). Tocque­
moderna. Se o escopo de Tocqueville era revelar - a democratas e aristocratas ville receava que caso essa doutrina passasse dos historiadores para seus leitores
- a verdadeira natureza dessa nova forma de sociedade e explicar-lhe o triunfo poderia “contaminar a massa da comunidade” e “até paralisar a atividade da
em tempos pós-revolucionários, a invocação de um modo de consciência histó­ sociedade moderna” (Ibid.).
rica endêmico a sociedades que já haviam sido democratizadas não poderia O propósito de Tocqueville, então, era afiançar a ação das “causas gerais”
servir de explicação para aqueles membros da aristocracia que viam na socie­ na história, mas de maneira a limitar a eficácia de tais causas a tipos específicos
dade analisada e no modo de consciência por ela produzido desastres perfeitos. de sociedades, por um lado, e portanto a épocas e lugares, por outro. Numa
O que Tocqueville procurava era algum meio de traduzir percepções sociedade democrática, como aquela que no seu tempo tomara forma na
dadas do interior de um sistema social cm termos compreensíveis para homens América, a busca de causas gerais era justificada porque a própria sociedade
que estavam propensos a olhar o processo do mundo a partir de perspectivas era produto dessas causas gerais. Na Europa, ao contrário, a busca dessas causas
216 HAYDENWHWE METAHISTÓRIA 217

gerais era não só intelectualmente mas também moralmente questionável, A MÁSCARA LIBERAL
porque a sociedade européia era - ou ao menos parecia ser nos anos de 1830 -
uma mistura de elementos democráticos e aristocráticos. Para Tocqueville, isso Importa notar que a caracterização de Tocqueville dos interesses dos
queria dizer que era possível analisar-lhe os processos em função de dois historiadores contemporâneos só pelo “dia seguinte” em contraste com seu
conjuntos de leis, gerais e específicas, ou melhor, em função de dois tipos de próprio interesse por “todo o futuro” estava, a julgar pela aparência, errada, ou
agências causais, de um lado as genericamente culturais e do outro as indivi­ era pelo menos um flagrante exagero. Na verdade, a maior parte da historiogra­
dualmente humanas. O senso de conflito entre essas duas espécies de agências fia digna de nota do seu tempo, salvo o trabalho especializado de acadêmicos
causais, cada uma das quais é encarada como sendo igualmente legítima quanto antiquários, foi empreendida numa tentativa de explicar o presente e preparar
à autoridade moral e quase igualmente autônoma dentro do processo histórico, a sociedade contemporânea para um movimento “realista” em direção ao
deu às primeiras reflexões de Tocqueville sobre a história o aspecto de uma futuro. Mas a distinção entre uma historiografia do futuro imediato e uma
visão trágica. historiografia que se dirige a “todo o futuro” é uma das bases em que se pode
Tocqueville considerava a tarefa do historiador essencialmente semelhan­ construir uma ideologia liberal em sua fase pós-revolucionária. Permite que o
te àquela que Ésquilo concebia ser a tarefa do poeta trágico, ou seja, terapêu­ historiador reivindique para suas próprias reflexões sobre as possibilidades
tica. Uma casta consciência histórica ajudaria a exorcizar o medo dos velhos daquele futuro um caráter científico ou objetivo que é negado às observações
deuses e preparar os homens para assumir a responsabilidade por seus próprios utilitárias e pragmáticas de seus congêneres socialmente engajados de maneira
destinos através da construção de instituições e leis adequadas ao cultivo de mais imediata. Mill reconheceu esse viés em Tocqueville - e suas implicações
suas mais nobres aptidões. O refinamento de tal consciência histórica, porém, essencialmente antilibertárias - na resenha que fez de Democracia na América
reclamava especificamente a salvação do ponto de vista aristocrático, não tanto em 1836.
como base da organização social, mas como possível perspectiva de realidade, Tocqueville dizia não ter dúvida alguma de que um futuro diferente de
como antídoto aos efeitos moralmente debilitadores de uma idéia “democráti­ qualquer coisa conhecida no passado ou no presente era possível; nisso ele se
ca” da história. distinguia dos conservadores, com quem é às vezes agrupado por comentadores
A idéia aristocrática da história, que ensinava que “para ser dono do seu que enxergam apenas seu desejo de salvar o que era louvável no Antigo Regime.
destino e governar seus semelhantes, o homem precisa apenas ser dono de si Entretanto, que o futuro seria um futuro histórico, que seria contínuo com o
mesmo”, tinha de ser contraposta à idéia democrática, que sustentava que “o passado e o presente, ainda que diferenciado de ambos - estas eram as convic­
homem é totalmente impotente diante de si mesmo e de tudo quanto o cerca”. ções que o colocavam solidamente na tradição liberal. Ele participava dessa
Seria possível, perguntava Tocqueville, combinar a historiografia aristocrática, tradição ao recusar-se a predizer a forma precisa que o futuro assumiria e por
que ensinava os homens “apenas a comandar”, e a democrática, que promovia sua inclinação a ir do estudo do passado para a delineação de todos os futuros
o instinto de “apenas obedecer”? Concluiu que era possível não somente possíveis que se abriam para o presente, e depois retornar ao presente para
combinar essas duas concepções da história num novo tipo de historiografia salientar a necessidade da escolha humana para a determinação do futuro
como até ir além de ambos, tramar a história de modo a fundi-la com a poesia, específico que iria realmente acontecer. Tocqueville utilizou o pensamento
o real com o ideal, o verdadeiro com o belo e o bom. Só assim, disse ele, podia histórico para estabelecer os homens viventes numa situação de escolha, para
o pensamento “elevar as faculdades do homem” ao invés de “completar-lhes a alertá-los para as possibilidades de escolher, e para informá-los das dificuldades
prostração” (Ibid.). Tocqueville portanto apresentou Democracia na América concomitantes à escolha que pudessem fazer. Esse movimento constante, da
como um livro que apregoava não privilegiar “nenhum ponto de vista em celebração da capacidade do homem para construir o próprio futuro, para a
particular, e (...) não nutria nenhum desígnio de servir ou atacar qualquer recordação de que toda ação comporta certos perigos e certos sofrimentos, e
facção”. Não se tinha “proposto ver de maneira diferente de outros”, disse ele, de volta mais uma vez à celebração da luta e do esforço, fez de Tocqueville um
“mas olhar mais longe”. Afirmava ter acrescentado uma nova dimensão à liberal e um “realista” trágico.
história; pois, enquanto outros historiadores se tinham “ocupado só com o dia
seguinte”, ele voltara seus pensamentos “para todo o futuro” (I, 17). De fato,
tentara tratar o futuro como história.
A HISTORIOGRAFIA DA MEDIAÇÃO SOCIAL

Tocqueville entendeu como sua tarefa, portanto, mediar não somente


entre conceitos alternativos de sociedade e entre o passado e o presente, mas
também entre o presente e o futuro. Entre os pólos da aristocracia e da
democracia, numerosas possibilidades apresentam-se à consideração, indo da
218 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 219

tirania da elite à tirania da multidão. A tarefa do historiador era mostrar como que provocou” (I, 3, 7). O crescimento da democracia, disse ele, tinha a
essas possibilidades se tinham cristalizado como alternativas distintas do futuro aparência de “um fato providencial. (...) É universal, é duradouro, elude cons­
e inspirar mediante uma articulação da natureza trágica da existência histórica tantemente toda interferência humana, e todos os sucessos assim como todos
uma mescla apropriada de seriedade e esperança diante dessas opções. Toc­ os homens contribuem para seu progresso” (6). Estava na natureza de um
queville não duvidou em nenhum momento de que a democracia numa forma destino trágico. A sociedade européia já havia sentido os primeiros choques
ou noutra era inevitável para a Europa; mas permanecia uma questão em aberto, dessa revolução democrática, mas “sem aquela concomitante mudança nas leis,
saber como os homens iriam modelar sua existência nesse futuro democrático. nas idéias, nos costumes e na ética que era necessária para tornar tal revolução
Ou assim acreditava ele em 1835 quando em carta a um crítico de Democracia benéfica” (8). A Europa desbravara o caminho para uma nova sociedade, mas
na América escreveu que se tinha agora hesitava em entrar nela; “destruímos uma aristocracia, e parecemos
dispostos a inspecionar as ruínas com complacência e aceitá-las” (11).
empenhado em fazer com que [seus leitores] aceitassem um futuro irresistível; a fim de que, sendo Era natural, frisou Tocqueville, que os homens se apegassem a memórias
o impulso num setor e a resistência em outro menos violentos, possa a sociedade avançar idealizadas do passado depois que esfriara o primeiro entusiasmo revolucioná­
pacificamente para a realização de seu destino. Esta é a idéia dominante do livro - uma idéia que
abarca todas as outras [Memoir, 1,398]. rio: “Postos no meio de üma corrente impetuosa, fixamos obstinadamente os
olhos nas ruínas que ainda podem ser avistadas na praia que abandonamos,
Esse “destino” não seria nem aristocrático nem democrático como tal, ele enquanto a corrente nos leva rapidamente para longe e nos arrasta de volta para
esperava, mas uma combinação dos dois que conservasse a independência de o abismo” (7). Mas não era possível retornar: “Estou persuadido de que todos
os que tentam, nos tempos em que estamos ingressando, basear a liberdade
espírito da velha ordem e o respeito pelos direitos de todos da nova.
sobre o privilégio aristocrático fracassarão; que todos os que tentam chamar a
O impulso de Tocqueville, portanto, era nessa época dialético; ele procu­
si e reter a autoridade dentro de uma única classe fracassarão” (II, 340).
rava algum meio de justificar a crença na possibilidade de uma síntese entre
Seguia-se portanto que o problema enfrentado pela época era, “não como
elementos antitéticos na história. Mas o método de análise que usou impedia
reconstruir a sociedade aristocrática, mas como fazer com que a liberdade surja
qualquer possibilidade de síntese; ele propunha um método tipológico de
daquele estado democrático da sociedade em que Deus nos colocou” (Ibid.).
análise, mas construiu uma tipologia redutiva, dualista. Por isso, quanto mais
perfeita era a execução de sua análise, mais remota se tornava a possibilidade Tocqueville não era, porém, um defensor do que parecia ser o inevitável.
de qualquer síntese dos elementos conflitantes. Tendo concebido a história em Acreditava que o “princípio da igualdade” estava prenhe de perigos para a
termos metonímicos, seu pensamento era conduzido forçosamente à percepção “independência da humanidade”; de fato, “esses perigos são os mais temíveis
da impossibilidade de unir os principais componentes discernidos na análise e também os menos previstos de todos os que a futuridade mantém de reserva”
num sistema imaginável de pensamento ou práxis. (348). Mas esses perigos não eram, esperava, insuperáveis. Nas sociedades
Vista da maneira mais superficial, Democracia na América de Tocqueville democráticas os homens se mostrariam “intolerantes com regulamentação” e
não se qualifica como narrativa histórica. A moldura cronológica é simplesmen­ “enfastiados da permanência da condição que eles mesmos preferem”; apai­
te pressuposta; o conhecimento dela em detalhe não é exigido para a compreen­ xonados pelo poder, propensos a odiar os que o exercessem, seriam capazes
são das categorias de análise empregadas na explanação dos fenômenos da de burlar o controle dos que o tivessem (Ibid.). Entretanto, esforçava-se por
sociedade democrática. O desenvolvimento, ou evolução, da democracia nos acreditar que não havia nisso nada de intrinsecamente aterrador. “Essas
Estados Unidos é simplesmente tomado como axioma; a idéia de evolução não predisposições”, Sustentava, “irão manifestar-se sempre; (...) têm origem na
é, portanto, um princípio organizador da exposição. Tudo o que aconteceu nos base da sociedade, que não sofrerá mudança alguma; durante muito tempo
Estados Unidos, desde o momento do assentamento original dos primeiros impedirão o estabelecimento do despotismo e fornecerão novas armas a cada
colonos europeus até a era jacksoniana, representa apenas uma purificação ou geração sucessiva que lutar em favor da liberdade da humanidade” (Ibid.). Era
articulação de elementos imutáveis presentes no sistema, de maneira que o que então importante manter uma perspectiva histórica adequada do que aconte­
é finalmente produzido na conclusão do processo - a própria época de Tocque­ cia no presente e
ville - dificilmente pode ser concebido como qualquer coisa mais do que uma
monstruosidade, um sistema monolítico em que todos os elementos que pode­
riam ter servido de freios e contrapesos dentro dele foram expungidos. não julgar o estado da sociedade que começa agora a existir segundo noções derivadas de um estado
Tocqueville disse na introdução à Democracia na América que escrevera da sociedade que não existe mais; pois como esses estados da sociedade são excessivamente
diferentes cm sua estrutura, não podem ser submetidos a uma comparação justa ou serena.
a obra “sob a influência de uma espécie de temor religioso”, produzido pela Tampouco seria mais razoável exigir de nossos contemporâneos as virtudes peculiares que tiveram
reflexão sobre “a grande revolução democrática” que “avançou durante séculos origem nas condições sociais de seus antepassados, visto que aquela condição social desmoronou
a despeito de todos os obstáculos e que ainda está avançando no meio das ruínas e arrastou para o interior de uma ruína promíscua o bem e o mal que lhe pertenciam [351].
220 HAYDENWHJTE META-HISTÓR1A 221

Era impossível determinar de antemão se o emergente estado do mundo tasse todo o seu potencial de criatividade e destrutividade no ideal de liberdade.
seria melhor ou pior do que o anterior; virtudes e vícios estavam presentes em Assim, os Estados Unidos proporcionavam uma espécie de ambiente de estufa
ambos. Os homens da nova era e os da antiga eram como “duas ordens distintas para o pleno desenvolvimento de um sistema social que estava apenas come­
de seres humanos, cada qual tem seus méritos e defeitos, suas vantagens e seus çando a tomar forma numa Europa “obstruída pelos remanescentes de um
próprios males” (Ibid.). Em seu tempo, observou Tocqueville, alguns homens mundo que está sumindo na decadência” (II, 349). Mas era precisamente a
não podiam “perceber no princípio de igualdade nada senão as tendências existência desses remanescentes históricos de uma sociedade mais antiga que
anárquicas que ele engendra”. Estes “temem sua própria liberdade de ação, fornecia a possibilidade de criar na Europa um sistema social melhor do que
têm medo de si mesmos”. Outros adotavam a atitude oposta: “Ao lado daquela aquele que tomara forma na América.
rota que parte do princípio de igualdade para terminar na anarquia, descobri­ No momento em que o segundo volume de Democracia na América estava
ram por fim a estrada que parece conduzir os homens à servidão inevitável. sendo redigido, a sociedade norte-americana começava a exibir certas imper­
Modelam suas almas antecipadamente para essa condição necessária; e, per­ feições potencialmente fatais no modo de ver de Tocqueville. A mais evidente
dendo a esperança de continuarem livres, já prestam obediência em seus delas era sua tendência a mudar sem se desenvolver. Tocqueville notou uma
corações ao senhor qué em brêve irá aparecer. Os primeiros abandonam a estase depressiva na vida sociocultural norte-americana, uma resistência à
liberdade porque a julgam perigosa; os últimos, porque a julgam impossível” inovação, uma incapacidade de converter mudança em progresso. Assim, disse
(348). Tocqueville buscava elementos para rejeitar ambas as alternativas. Uma ele, o povo norte-americano se mostra ao observador contemporâneo essencial­
visão correta e suficientemente extensiva da história poderia mostrar a insensa­ mente na mesma condição em que havia chegado da Europa dois séculos antes
tez de uma fé ingênua no princípio de igualdade assim como do irrefletido medo (7). Ele também se sentia deprimido pelo materialismo endêmico da vida
dele. Tocqueville concluiu Democracia na América com uma exortação ao leitor norte-americana, e em muitos lugares expressou o receio de que se formasse
no sentido de “encarar o futuro com o temor salutar que faz com que os homens nos Estados Unidos uma plutocracia que, embora solapasse o ideal da igualda­
se mantenham vigilantes em defesa da liberdade, não com o lânguido e infun­ de, fosse incapaz de se substituir à saudável independência de pensamento e
dado terror que deprime e enerva o coração” (Ibid.). ação que havia caracterizado a aristocracia na Europa durante sua fase criativa
inicial.
Que a Europa estava potencialmente ameaçada por idênticos perigos
A “SINTAXE” DOS PROCESSOS HISTÓRICOS SIGNIFICA TIVOS indicava-o a afirmação de Tocqueville de que não há nada de essencialmente
“americano” na democracia americana. Todos os aspectos da vida americana
tinham suas origens, dizia ele, na Europa. Assim, escreveu:
Tocqueville disse que não encetou seu estudo da democracia na América
“apenas para satisfazer uma curiosidade”, mas sim, em primeiro lugar, para
Sc examinarmos cuidadosamente o estado social e político dos Estados Unidos, após termos
obter uma “imagem da própria democracia, com suas inclinações, seu caráter, estudado sua história, ficaremos totalmente convencidos de que nem uma opinião, nem um
seus preconceitos, a fim de verificar o que devemos temer ou esperar de seu costume, nem uma lei, poderia mesmo dizer nem um só acontecimento se conhece que a origem
progresso” (I, 14, 17), e, em segundo lugar, para oferecer uma base à “nova [européia] daquele povo não possa explicar [I, 29].
ciência da política” que seria “necessária para um novo mundo” (7). Seu
verdadeiro tema era o ideal de liberdade que informara a vida cultural européia E atribuía o caráter estático da vida norte-americana em grande parte à
desde o início e para o qual tanto a aristocracia quanto a democracia, cada qual falta de uma tradição de “revolução democrática”, graças à qual o sistema social
a seu modo, haviam contribuído. estabelecido pudesse ser submetido a crítica e avaliação periódica e o impulso
Mas a concepção de Tocqueville da democracia nos Estados Unidos era para a transformação progressiva do sistema pudesse ser bem conduzido (7).
a de uma espécie de monstruosidade. Para ele, a democracia norte-americana Era essa falta de uma tradição revolucionária que realmente distinguia a
representava uma cisão, um cisma, no tecido da civilização ocidental, o desdo­ vida social norte-americana da européia. Ao passo que nos Estados Unidos o
bramento unilateral e extremado de uma tendência que existira na Europa ideal democrático estava simplesmente estabelecido, na Europa esse ideal teve
desde a desintegração da comunidade feudal no século XVI. Os Estados Unidos de se estabelecer contra a oposição da aristocracia e contra um Estado centrali­
ofereciam um exemplo do tipo puro de democracia; ali, “pela primeira vez, (...) zado, que era inimigo tanto da aristocracia quanto da democracia. Essa oposi­
teorias até agora desconhecidas, ou julgadas irrealizáveis, iriam exibir um ção obrigou certos segmentos da cultura aristocrática a abraçar o ideal
espetáculo para o qual o mundo não fora preparado pela história do passado” democrático, o que redundou na fusão do princípio de igualdade com o impulso
(26). As vastas riquezas naturais dos Estados Unidos e a ausência de qualquer revolucionário e criou portanto aquela tradição de revolução democrática por
ordem social preexistente possibilitaram que uma tradição de pensamento e meio da qual a Europa adquiriu um potencial de transformação progressiva que
ação que permanecera recessiva na Europa germinasse, florescesse e manifes­ estava faltando na democracia norte-americana. Assim, enquanto apenas dois
222 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 223

fatores tinham de ser levados em conta na compreensão da história dos Estados que poderia gerar uma tirania da maioria (13). Na Europa a tradição da
Unidos (o ideal social informador e o ambiente natural em que ele se desenvol­ independência aristocrática e a da revolução proporcionavam freios ao desen­
ve), na compreensão da história européia quatro fatores precisavam ser estu­ volvimento do ideal democrático que podiam ser danosos ou benéficos, depen­
dados. Eram eles o ideal social aristocrático, o ideal social democrático, o dendo de como fossem aplicados. Assim, Tocqueville assinalou para seus
Estado centralizado e a tradição da revolução. E, enquanto o drama dos Estados contemporâneos da Europa, “as nações do nosso tempo não podem impedir
Unidos se revelava, em última análise, uma luta dos homens contra a natureza que as condições dos homens se tornem iguais”, mas ainda depende “deles
exclusivamente pelo estabelecimento do princípio da igualdade, e por isso uma mesmos saber se o princípio de igualdade irá levá-los à servidão ou à liberdade,
luta patética, o drama europeu era essencialmente sócio-político, que envolvia ao conhecimento ou à barbárie, à prosperidade ou à miséria” (352).
idéias conflitantes de sociedade, um poder estatal que transcendia e combatia Nas reflexões de Tocqueville sobre a América, portanto, há muito pouca
essas idéias e usava-as em seu próprio benefício, e a tradição revolucionária que coisa que se pode tomar como louvor incondicional e muita coisa que se pode
por sua vez se opunha ao princípio do poder estatal e periodicamente o dissolvia tomar como crítica. Sua atitude para com ela era irônica ao extremo. Ele se
a serviço do ideal de liberdade. Isto é, o drama europeu, em contraste com o colocou acima dela e julgou-a em todos os seus aspectos e viu-a como um
norte-americano, tinha todos os ingredientes de uma tragédia real. complexo de condições é processos que forneciam pouquíssima razão para
esperar que ela pudesse produzir qualquer coisa proveitosa para a humanidade
em geral. Tocqueville pôs em enredo a história norte-americana não como
A “SEMÂNTICA”DA HISTÓRIA NORTE-AMERICANA alguma escalada romanesca, ou mesmo como uma ascensão e queda trágica em
que o protagonista cresce em conscientização à custa dos sofrimentos que
suporta. A democracia em sua forma americana - vale dizer, sem restrições a
Tudo isso é esboçado nos capítulos iniciais do segundo volume de Demo­
seus impulsos intrínsecos para a tirania - só poderia chegar, a longo prazo, a
cracia na América. Ali Tocqueville fez remontar os princípios fundamentais do
pensamento democrático nos Estados Unidos e na Europa aos reformadores um resultado patético.
religiosos do século XVI. Mas assinalou que, enquanto o espírito de indepen­ Sem dúvida Tocqueville nos fez lembrar que as nações nunca são inteira­
dência de julgamento e crítica continuou a se desenvolver na Europa - de mente governadas por “algum poder invencível e ininteligente resultante de
Lutero, passando por Descartes, a Voltaire nos Estados Unidos esse espírito eventos anteriores, da raça ou do solo e do clima de seus países”. Tocqueville
degenerou numa aceitação da opinião comum. Assim, na Europa havia uma qualificou de “falsa e covarde” a crença em tais princípios deterministas; ela só
tradição filosófica democrática, que alimentou e socorreu a tradição revolucio­ podia produzir “homens fracos e nações pusilânimes”. Embora a Providência
nária em cultura, política e religião, ao passo que nos Estados Unidos quase não não houvesse criado a humanidade completamente independente ou perfeita­
havia tradição filosófica ou mesmo interesse pela filosofia. A sociedade norte- mente livre, era possível imaginar uma área de liberdade em que cada homem
americana, nascida de convicções religiosas, aceitara essas convicções “sem era seu próprio senhor. Cabia ao historiador mostrar que, embora “em tomo
exame” e era “obrigada a aceitar do mesmo modo numerosas verdades morais de cada homem tenha sido traçado um círculo fatal que ele não pode ultrapas­
nela surgidas e a ela associadas” (II, 7). Já na Europa o desenvolvimento da sar”, ainda assim “dentro do amplo limite desse círculo ele é poderoso e livre”.
filosofia e da religião era fomentado pela resistência ao princípio de igualdade E “o que é válido para os homens, é válido também para as comunidades”
nas classes aristocráticas e no Estado centralizado. Por conseguinte, tanto a (Ibid.). Mas Tocqueville ofereceu pouquíssima justificação para qualquer um
tradição da autocrítica especulativa quanto a tradição da crítica pela ação investir muita esperança no futuro da América, ou no da democracia, o que
revolucionária se tinham mantido vivas lá. E ofereciam a possibilidade de criar provavelmente explica a falta de interesse por sua obra no país ao longo da
uma nova sociedade que, embora igualitária em princípio, ainda promovia certa segunda metade do século XIX. Mill reconheceu essa implícita hostilidade à
individualidade de pensamento e ação que faltava nos Estados Unidos. democracia no pensamento de Tocqueville; e, embora o elogiasse pela profun­
didade das intuições históricas e das observações sociológicas, contestou a
No fim, portanto, os Estados Unidos representavam um tipo de desenvol­
legitimidade das implicações delineadas pelo aristocrata francês quanto ao
vimento grotesco de apenas metade da tradição européia de liberdade. A
futuro da democracia nos Estados Unidos e na Europa.
civilização européia desabrochara no conflito de dois ideais sociais (aristocrá­
tico e democrático) e duas tendências políticas (centralização do Estado e
revolução). Em contraste, a civilização norte-americana precisava do ideal
social aristocrático para contrabalançar os ideais democráticos, e da tradição O DRAMA DA HISTÓRIA EUROPÉIA
da revolução para contrabalançar a centralização do Estado. O principal perigo
para o futuro da liberdade nos Estados Unidos residia portanto na possível Com respeito ao drama da civilização européia, Tocqueville acreditava
união do princípio da centralização do Estado com o ideal social democrático, estar vivendo a última cena do primeiro ato, ou ato aristocrático, e ter visto nos
224 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 225

Estados Unidos um possível desfecho do nascente segundo ato, ou ato demo­ e em que difere do sistema social que o precedeu; e determinar o que se perdeu
crático. Seu escopo era mostrar como aquele ato podia ser encenado na Europa e o que se ganhou com essa vasta convulsão” (xi). Assim, observou:
com uma resolução antes cômica que trágica. Seu estudo da democracia nos
Estados Unidos pretendia ser não apenas uma descrição hipotética da próxima Todas as vezes que encontrei em nossos antepassados quaisquer daquelas virtudes tão vitais
era européia mas também uma contribuição no sentido de fazer a Europa evitar para uma nação e agora quase extintas - espírito de saudável independência, ambições elevadas,
fé em si mesmo e numa causa - dei-lhes destaque. Da mesma forma, todas as vezes que encontrei
um destino monoliticamente democrático.
vestígios daqueles vícios que após destruírem a velha ordem ainda contaminam o organismo
A civilização ocidental, como ele a via em sua época, existia de uma forma político, eu os assinalei; pois é à luz dos males a que em tempos passados deram origem que
cindida, cismática: de um lado do Atlântico, o monstro norte-americano; do podemos avaliar o mal que ainda podem fazer [xii].
outro, a Europa dilacerada por ideais conflitantes e incapaz dè escolher entre
eles, incerta de seus poderes, desatenta a seus próprios recursos de renovação, Aqui, então, mais uma vez, o estudo do Antigo Regime não pretendia ser
vacilante, indecisa, insegura. Tendo completado o diagnóstico da sociedade apenas um exercício de reconstrução histórica como um fim em si; a finalidade
norte-americana e o prognóstico de sua iminente degeneração em tirania de era ajudar a época de Tocqueville a libertar-se de uma raiva estéril pelo que já
multidão, Tocqueville voltou-se para a análise da sociedade européia, para uma havia acontecido no passado e de uma satisfação igualmente estéril e acrítica
avaliação do que continuava vivo e do que estava morto de suas tradições com sua própria realização no presente. O ponto de vista era manifestamente
milenares e para a determinação das possibilidades européias no futuro. Seu O liberal, mas o tom era conservador. A disposição de espírito, ainda que osten­
Antigo Regime e a Revolução, primeiro de um projetado estudo em muitos sivamente objetiva e imparcial, passava de uma aceitação trágica do inevitável
volumes do impacto da Revolução sobre a sociedade européia, foi concebido para uma advertência irônica aos partidários da velha ordem para que consul­
como uma defesa dos ideais culturais aristocráticos. A estratégia do livro era a tassem seus melhores interesses e agissem nessa conformidade.
mesma de Democracia na América, mas as táticas eram um pouco diferentes. O
A Revolução foi apresentada por Tocqueville não como produto de algum
estudo sobre a democracia norte-americana fora injetado no mundo estático da
processo meta-histórico inelutável nem como possibilidade monoliticamente
França orleanista como antídoto ao medo da democracia por um lado e à
devoção leviana à democracia por outro. Destinava-se a aplacar os temores dos determinante para o futuro. Ao contrário, foi, insistiu ele, um produto de
escolhas humanas diante de alternativas oferecidas pela natureza e por condi­
reacionários mostrando o quanto a democracia era endêmica na história euro­
péia, e ao mesmo tempo moderar o entusiasmo dos radicais revelando as ções sociais específicas. A Revolução, como o próprio Antigo Regime, foi um
imperfeições da democracia pura que se desenvolvera no Novo Mundo. O evento histórico; foi um passado definido com uma fisionomia e um estilo de
vida característicos, com vícios a deplorar e virtudes a exaltar. Como o Antigo
Antigo Regime tinha igualmente um duplo objetivo. Por um lado abrandava o
Regime, A Revolução teve motivos para acontecer, motivos para acabar ou
entusiasmo dos democratas ao mostrar como sua preciosa tradição revolucio­
tomar a forma que assumira na mente dos homens vivos. Mas Tocqueville
nária era, ela mesma, uma criação da sociedade aristocrática e como (ironica­
procurou mostrar como a transição do Antigo Regime tinha ocorrido, não
mente) a Revolução fora um produto do próprio sistema social que ela tentara
dialeticamente, mas antes cataclismicamente, num processo através do qual a
demolir. Por outro lado, porém, acentuava (ironicamente) os elementos de
consciência humana se reconcilia com as condições de sua existência social e
continuidade entre o velho regime e o novo, especialmente no crescimento do
apesar das intenções específicas dos diversos atores que tomaram parte naquele
Estado centralizado, que ameaçava o princípio da liberdade em nome do qual
drama de transição.
os revolucionários haviam combatido. A convicção de que o relógio da história
não pode nunca recuar para um tempo anterior mantinha-se intacta, e o desejo O Antigo Regime, portanto, foi um ensaio de conservação. O escopo de
de atrasá-lo era reprimido sempre que aflorava na mente de Tocqueville. Mas Tocqueville não era fazer a Europa recuar para um tempo anterior ou detê-la
o preço que os homens devem pagar pelo igualitarismo era friamente estabele­ no presente, mas fazer do futuro democrático um futuro mais livre, mais
cido, e as perdas para a cultura humana que os ganhos em matéria de progresso humano. Mas esse futuro mais humano era concebido em termos fundamental­
social através do igualitarismo acarretam eram insistentemente incutidas na mente aristocráticos. Num notável comentário sobre Burke, Tocqueville expli­
consciência. citou esse objetivo:

“Desejais corrigir os abusos do vosso governo”, disse [Burke] aos franceses, “mas por que
inventar novidades? Por que não retomar a vossas velhas tradições?” (...) Burke não percebeu
PONTO DE VISTA LIBERAL, TOM CONSERVADOR que o que estava sucedendo diante de seus olhos era uma revolução cujo alvo era justamente
abolir aquele “antigo direito consuetudinário da Europa" e que não se podia cogitar de atrasar
Na introdução a O Antigo Regime Tocqueville escreveu que seu livro o relógio [21].
pretendia “tornar claro em que aspectos [o presente sistema social] se parece
226 HAYDENWHITE META-HJSTÓRIA 227

A Revolução pusera em xeque “todo o sistema social”; era uma tentativa nativas de um dilema criado pela lógica da centralização do Estado, de um lado,
da parte do povo francês de “romper com o passado, operar, por assim dizer, e pela lógica da aspiração humana, do outro. Mostrou como o Antigo Regime
uma cisão em sua vida e criar um abismo intransponível entre tudo o que tinha tentou numerosas reformas com vistas a melhorar as condições em que as
sido até então e tudo o que almejava ser” (vii). Mas o importante foi que essa pessoas de todas as classes tinham de viver, mas como, repetidamente, as
tentativa não se cumpriu, e o estudo mostraria que, “por mais radical que tivesse reformas propostas entraram em colisão com os compromissos contraditórios
sido, a Revolução realizou bem menos mudanças do que realmente se supõe” do regime com parcelas determinadas da ordem social; e como, ao ser imple­
(20). Ao mesmo tempo, o malogro da tentativa de romper completamente com mentada, uma dada reforma apenas promovia a exigência de outras reformas
o passado não podia ser interpretado como argumento contra a Revolução. ao invés de satisfazer à classe ou ao grupo em cujo benefício fora adotada. Às
Pois, mesmo que a Revolução não tivesse ocorrido, disse Tocqueville vésperas da Revolução, a França era uma teia de contradições e paradoxos que
fomentavam na população um sentimento uniforme de hostilidade ao sistema
a velha estrutura social teria, ainda assim, rachado em todos os pontos, mais cedo ou mais tarde. social que nada senão uma tentativa de renovação total poderia aplacar.
A única diferença teria sido que, ao invés de desabar com tâo tremenda brusquidão, teria
desmoronado pouco a pouco. De um só golpe, sem aviso, sem transição, e sem remorso, a
Por um lado havia uma nação em que o amor à riqueza e ao luxo se difundia continuamente;
Revolução realizou o que de qualquer modo devia acontecer, ainda que paulatinamente [Ibid.].
por outro lado, um governo que, embora estimulasse constantemente essa paixão, ao mesmo tempo
frustrava-a - e com essa fatal inconsistência selava seu próprio destino [179].
Para Tocqueville a Revolução era compreensível como manifestação de
uma lógica superior presente na história, mas na história francesa em particular: Durante muitos séculos, escreveu Tocqueville, o povo francês sentira
“Foi o desfecho inevitável de um longo período de gestação, a abrupta e violenta
conclusão de um processo em que seis gerações haviam desempenhado um um desejo, crônico e incontrolável, de destruir por completo instituições que sobreviviam desde a
papel intermitente”. Tocqueville apresentou assim a Revolução como “uma Idade Média, e, tendo limpado o terreno, construir uma sociedade nova em que os homens fossem
realidade imanente” no Antigo Regime, uma “presença na soleira da porta” tanto quanto possível iguais em seu estatuto, ressalvadas as diferenças inatas entre os indivíduos.
(Ibid.). Longe de ser a ruptura radical que seus líderes pretendiam que fosse e A outra paixão dominante, mais recente e menos profundamente enraizada, era o desejo de viver
que seus inimigos acreditavam que era, a Revolução foi na realidade “a conse­ não só em condições de igualdade mas também como homens livres.
quência natural da própria ordem social que ela se apressou em destruir”. Assim Nos últimos momentos do Antigo Regime essas duas paixões eram sentidas com a mesma
sinceridade e pareciam igualmente atuantes. Quando a Revolução eclodiu, elas entraram em
entendida, a Revolução não era nem divina nem diabólica, mas quintessencial-
contato, uniram as forças, fundiram-se e mutuamente se robusteceram, levando o fervor revolu­
mente um acontecimento histórico - isto é, um produto do passado, um presente cionário da nação a arder em chamas [208].
por direito próprio e um elemento necessário na prescrição de qualquer futuro
para a Europa. Assim, enquanto quase todos os seus contemporâneos, liberais Apresentada dessa maneira, a Revolução foi um produto do conflito entre
e conservadores, começavam a chegar a um consenso sobre os efeitos unifor­ a consciência humana e o sistema social; e, em sua natureza mais geral, foi uma
memente perversos de qualquer “desenfreamento” das massas, e em especial expressão da tentativa justificada de restabelecer a harmonia entre pensamento
de seu desenfreamento durante a Revolução, Tocqueville continuava a cultivar e sentimento de um lado e instituições jurídicas e políticas do outro. Não era
o respeito do realista pela Revolução e pelas massas, acima de tudo porque elas produto nem de fatores puramente espirituais nem de fatores puramente
existiam (e portanto deviam ser levadas em conta), e, em segundo lugar, por materiais; tampouco era manifestação de algum poder meta-histórico autôno­
causa do que revelavam acercá* dos homens em geral e das relações entre mo e determinante. A causa principal da Revolução foi uma súbita percepção
indivíduos de todas as classes e os sistemas sociais criados para servir a suas por parte dos franceses de que suas aspirações ideais já não estavam em
necessidades. consonância com o sistema social que lhes tinha servido adequadamente duran­
te os dois últimos séculos.
Em grande parte essa separação entre consciência e sociedade era o
O CONFLITO TRÁGICO SOBA PERSPECTIVA IRÔNICA
resultado, escreveu Tocqueville, da crítica dos intelectuais do Antigo Regime.
Suas visões utópicas tiveram o efeito de afastar as massas da ordem social que
O protagonista de O Antigo Regime era o próprio Antigo Regime, apa­ melhor pretendia servi-las. Assim,
nhado entre o peso morto de seu passado e a percepção das mudanças neces­
sárias para sua contínua sobrevivência. E exagero dizer que Tocqueville
ao lado do tradicional c confuso, para não dizer caótico, sistema social da época havia, construída
realmente fez do Antigo Regime não só a personagem como o herói trágico de pouco a pouco na mente dos homens, uma sociedade ideal imaginária em que tudo era simples,
sua estória, mas há certo ar de Rei Lear nesse dilema. Tocqueville pintou a uniforme, coerente, equitativo e racional na mais lata acepção da palavra. Foi essa visão do Estado
monarquia e as instituições que a sustentavam como que empaladas nas alter­ perfeito que incendiou a imaginação das massas e gradualmente as afastou do aqui-e-agora.
228 HAYDEN WHFTE META-HISTÓRIA 229

Distanciando-se do mundo real que as circundava, entregaram-se aos sonhos de um mundo muito eclipse. No reinado de Luís XVI as mais triviais alfinetadas do poder arbitrário causaram mais
melhor e terminaram por viver, espiritualmente, no mundo ideal inventado pelos escritores [146]. rancor do que o extremo despotismo de Luís XIV. A curta detenção de Beaumarchais horrorizou
Paris mais do que as dragonnades de 1685.
Esse utopismo não se justificava, sugeriu Tocqueville, não porque o Em 1780 não se podia mais dizer que a França estava em decadência; ao contrário, parecia
Antigo Regime não fosse caótico (pois era), mas porque a condição objetiva do que não se podia impor limite a seu avanço. E foi então que entraram em voga as teorias da
perfectibilidade do homem e do progresso ininterrupto. Vinte ano6 antes não havia esperança de
povo francês era melhor nos anos anteriores à Revolução do que foi durante futuro; em 1789 ele não provocava ansiedade. Deslumbrada com a possibilidade de uma felicidade
muitas décadas depois da Revolução. “Um estudo de estatística comparada”, insuspeitada até então e agora a seu alcance, a população estava cega para a melhoria real que se
escreveu Tocqueville, “esclarece que em nenhuma das décadas imediatamente verificara e ansiosa por precipitar os acontecimentos [177].
subseqüentes à Revolução nossa prosperidade nacional fez progressos tão
rápidos quanto nas duas que a antecederam” (174). O “paradoxo” da situação O que esses trechos sugerem é uma concepção das leis de mudança social
era que esse incremento de prosperidade funcionou em detrimento do regime semelhantes às encontradas na tragédia grega, leis segundo as quais aqueles
que o promoveu. Assim, numa passagem característica Tocqueville observou: cuja condição de vida está melhorando devem tomar cuidado com a vinda de
um»- .... alguma calamidade, em geral produto da superexpansão da própria capacidade
A crença em que a grandeza e o poder de uma nação são produtos exclusivamente de sua
limitada de entender o mundo ou de encará-lo e a si mesmos “realisticamente”.
máquina administrativa é, no mínimo, míope; por mais perfeita que seja a máquina, a força motriz
que a impulsiona é o que conta. Precisamos apenas olhar para a Inglaterra, onde o sistema Ao mesmo tempo, Tocqueville invocou uma metáfora organicista para caracte­
constitucional é infinitamente mais complicado, lerdo e mutável do que o da França hoje. Entre­ rizar os poderes do Antigo Regime e as forças que lhe faltaram no momento de
tanto, haverá outro país europeu cuja riqueza nacional seja maior, onde a propriedade privada seja sua provação.
mais difundida, assuma tantas formas e esteja tão segura; onde a prosperidade individual e um
sistema social estável estejam tão bem combinados? Isso não se deve aos méritos de leis especiais
Dir-se-ia que em todas as instituições humanas, como no corpo humano, há uma fonte
mas ao espírito que anima a Constituição inglesa como um todo. Que certos órgãos sejam
oculta de energia, o princípio mesmo da vida, independentemente dos órgãos que cumprem as
defeituosos importa pouco quando a força vital do corpo político tem tanto vigor [175].
várias funções necessárias à sobrevivência; logo que esta chama vital arrefece, o organismo inteiro
se debilita e definha, e embora os órgãos pareçam funcionar como antes, não servem a nenhum
Prosseguindo, indicou o efeito, sobre a população em geral, da “prospe­ propósito útil [79].
ridade cada vez maior” da França nos anos que antecederam de perto a
Revolução. Essa crescente prosperidade “promoveu em toda parte um espírito Assim que essa “fonte oculta de energia” secou, o Antigo Regime foi
de inquietação”, afirmou. “O grande público tornou-se cada vez mais hostil a impelido para um caminho que conduzia à autodestruição; não importa o que
todas as instituições antigas, cada vez mais descontente; na verdade, ficou fizesse, só lhe restava colaborar para o próprio desaparecimento. Os esforços
bastante evidente que a nação avançava para uma revolução” (Tb/d .). no sentido de melhorar sua situação criaram aquele estado social de atomização
Daí Tocqueville passou a considerar a situação social de regiões especí­ contra o qual os homens tendiam naturalmente a rebelar-se.
ficas, contrastando a Ile-de-France, onde a velha ordem era mais velozmenlc
destruída pelas exigências de reforma, com as áreas da França onde os métodos
Tão logo o burguês se separou por completo do nobre, e o camponês de ambos, e idêntica
do passado se mantinham mais rígidos, e assinalando que “era precisamente diferenciação ocorreu dentro de cada uma dessas três classes, daí resultando que cada uma se
naquelas partes da França mais beneficiadas por melhoramentos que o descon­ dividisse em diversos pequenos grupos quase totalmente segregados uns dos outros, a consequên­
tentamento popular era mais intenso” (176). Continuando, comentou: cia inevitável foi que, embora a nação chegasse a parecer um todo homogêneo, suas partes já não
se conservavam unidas. Não restava nada que pudesse embaraçar o governo central, mas também
Isso pode parecer ilógico - mas a história está recheada desses paradoxos. Pois nem sempre nada podia escorá-lo. Eis por que o grandioso edifício construído pelos nossos reis estava
quando as coisas vão de mal a pior é que rebentam as revoluções. Pelo contrário, mais frequente­ condenado a ruir como um castelo de cartas assim que surgissem turbulências dentro da ordem
mente acontece que quando um povo que, suportou sem protesto um regime opressivo durante social em que estava alicerçado [136-37].
um longo período, de repente vê o governo relaxar a pressão, pega em armas contra ele. Assim a
ordem social derrubada por uma revolução é quase sempre melhor do que a imediatamente E, partindo dessas generalizações, Tocqueville passou a comentar ironi­
anterior a ela, e a experiência nos ensina que, de modo geral, o momento mais perigoso para um
camente a incapacidade de sua própria geração de extrair alguma lição dessas
mau governo é aquele em que procura corrigir-se. Só a perfeita arte de governar pode capacitar
um rei a salvar seu trono quando após um longo período de poder opressivo trata de melhorar a experiências:
vida de seus súditos. Pacientemente suportada enquanto parecia irreparável, uma injustiça vem a
mostrar-se intolerável tão logo a possibilidade de eliminá-la cruza a mente dos homens. Pois o Conseqüentementc essa nação, que porsi mesma parece ter extraído uma lição de sabedoria
simples fato de que certos abusos foram remediados chama a atenção para os outros e estes dos erros e defeitos de seus antigos governantes, não foi capaz, apesar de ter sabido livrar-se da
parecem então mais exasperantes; o povo talvez sofra menos, mas sua sensibilidade está exacerba­ dominação deles, de se desfazer das falsas noções, dos maus hábitos c das tendências perniciosas
da. No auge de seu poder o feudalismo não inspirava tanto ódio como inspirou às vésperas de seu que eles lhe tinham transmitido ou lhe tinham permitido adquirir. Algumas vezes, realmente,
230 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 231

vemo-la exigir uma mentalidade de escrava no exercício mesmo de sua liberdade, e tão incapaz de Dificilmente parece possível que tenha existido algum dia qualquer outro povo tão cheio
se governar a si mesma como foi outrora indócil diante de seus senhores [137]. de contrastes e tão descomedido em todas as suas ações, tão excessivamente guiado por suas
emoções e tão insuficientemente por princípios estáveis, sempre se comportando melhor, ou pior,
do que dele se espera. Em certa época ele se coloca acima, em outra abaixo, da norma da
Essas citações revelam a capacidade de Tocqueville para passar com
humanidade. (...) Enquanto ninguém pensa em resistir, pode-se puxar [o francês] por um fio, mas
serena segurança dos fatores econômicos para os sociais e políticos, conside­ tão logo um movimento revolucionário está em cogitação, nada pode impedi-lo de tomar parte
rando-os todos como diferentes aspectos de um só processo histórico, dando a nele. (...) Assim os franceses constituem a mais brilhante e a mais perigosa de todas as nações
cada um o peso que lhe é próprio, e, em princípio, não excluindo nenhum como européias, e a mais apta a tomar-sc, aos olhos de outros povos, objeto de admiração, de ódio, de
força ativa. Mas elas contêm vários postulados acerca das ações dos indivíduos compaixão, ou alarme - nunca de indiferença [210-11].
como funções unicamente de sua inserção numa classe, sinais de preconcepção
metodologicamente limitadoras no que se refere a uma natureza humana Em sua imprevisibilidade, em sua infinita variedade, e em seu extremismo,
estática, e indícios de lealdade de classe e preferência ideológica. Tocqueville os franceses constituem um autêntico antitipo para o povo norte-americano, e
pretendia manter-se acima da refrega, e conseguiu. Mas não foi de modo algum Tocqueville não deixou dúvida de que encontrava neles muita coisa elogiável.
o observador compreensivo de todas as forças empenhadas na luta. Foi, isto sim, Mas não revestiu o povo francês das características de um mistério divino, como
o juiz imparcial de pessoas enredadas nas operações de forças e situações de fez Michelet. A natureza anômala do povo francês tinha suas origens em causas
que não tinham a menor compreensão. históricas discerníveis, algumas das quais Tocqueville descreveu em O Antigo
Regime. Mas ele via os franceses como os guardiães par excellence da tradição
revolucionária que poderia salvar a Europa da anarquia e da tirania. Essa
A RESOLUÇÃO IRÔNICA DO DRAMA REVOLUCIONÁRIO tradição era o solvente adequado para os vícios do igualitarismo em sua forma
extrema, um contrapeso aos excessos da centralização política, um antídoto
contra qualquer impulso de retorno ao passado ou de contentamento com o
Ao mesmo tempo, contudo, Tocqueville apresentou a transição do velho
presente, e o melhor fiador do contínuo crescimento da liberdade humana no
para o novo como um processo em que os piores elementos do passado seriam
futuro.
salvos como aspectos do presente alcançado. Como Michelet e Ranke, Tocque­
ville descobriu as linhas de continuidade que encadeavam sua época à do Antigo
Regime. Mas essa continuidade constituía um dúbio legado; era formada pela
tendência para a centralização do Estado e pelo amor da igualdade. Infelizmen- A TENTA TIVA DE RESISTIR ÀS IMPLICAÇÕES IDEOLÓGICAS
te, frisou ele, esses dois fatores não são antitéticos. A nação francesa, sustentou DO PONTO DE VISTA IRÔNICO
ele, estava sujeita, em qualquer governo, a “práticas e princípios que são, de
fato, instrumentos de despotismo” enquanto esse governo “favorecer e lisonjear Tocqueville valorizava a ordem mais do que valorizava a liberdade, mas
esse desejo de igualdade” (210). nunca permitiu que seu amor da ordem aparecesse como argumento significa­
Outro fio mais tênue foi concebido com o fim de ligar o presente ao tivo em favor da resistência à mudança social, como fizera Burke anteriormente
passado, fio tecido com o que Tocqueville chamou “o desejo de liberdade” e como fazia a direita hegeliana na época mesma de Tocqueville. Na realidade,
(Ibid.). Embora o impulso para a centralização do Estado e o amor da igualdade a admiração pessoal de Tocqueville pela filosofia moral de Hegel ficou seria­
tivessem sido contínuos e crescentes, o desejo de liberdade crescera e diminuíra: mente abalada quando, durante uma visita à Alemanha em 1854, ele viu os usos
“Em diversas ocasiões durante o período que se estendeu da eclosão da a que o pensamento de Hegel tinha sido submetido pelos “poderes reinantes”
Revolução até os nossos dias vimos o desejo de liberdade reviver, sucumbir, na Prússia. Em carta escrita naquele ano, ele assinalou que o hegelianismo,
depois ressurgir, tão-somente para desaparecer mais uma vez e daí a pouco consoante a interpretação corrente, “afirmava que, num sentido político, todos
inflamar-se novamente” (Ibid.). Nem a centralização do Estado nem o amor da os fatos comprovados deviam ser apresentados como legítimos, e que a circuns­
igualdade foi o indispensável portador do desejo de liberdade, aquela por tância mesma de sua existência era suficiente para fazer da obediência a eles
razões óbvias, este porque seus partidários tendiam a ser ardorosos, obstinados um dever” (Memoir, II, 270). Em suma, o hegelianismo, como Tocqueville o
e “quase sempre cegos, prontos a fazer todas as concessões àqueles que o encontrou um quarto de século depois da morte de Hegel, parecia fazer do
contentavam” (Ibid.). status quo uma deidade. E isso ofendia a convicção tocquevilliana da historici­
Em que ponto, então, estava a esperança de liberdade no futuro? Tocque­ dade essencial de tudo, do direito dos homens de proferir julgamento sobre
ville imaginou encontrá-lo no caráter anômalo do próprio povo francês, caráter qualquer coisa recebida do passado e revisá-lo à luz de circunstâncias e neces­
que havia dado origem e prestado socorro à tradição da Revolução. sidades humanas mutáveis. E repugnavam-lhe igualmente as doutrinas racistas
de seu amigo Gobineau, mas por uma outra razão. Gobineau fez de um passado
232 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 233

remoto e mítico uma deidade não menos tirânica do que o presente “hegeliani- tes vossa juventude e que alcançastes agora a idade do declínio. Vosso outono é mais vigoroso,
indubitavelmente, do que tem sido a decrepitude do resto do mundo, mas, ainda assim, é outono;
zado” da Prússia. o inverno virá e não tereis filhos [Gobineau a Tocqueville, 1856, em Tocqueville, ER, 284-85].
A historiografia irônica do final do Iluminismo não se extinguiu com a
transição para o período do Sturm und Drang e do romantismo; foi apenas
empurrada para o fundo da cena. Uma concepção irônica da história está O contraste entre o estado de espírito deste trecho e o de Constant, citado
subjacente às jeremiadas anti-revolucionárias de De Maistre, às desconsoladas anteriormente como exemplo do niilismo do desespero pós-revolucionário, é
reflexões de Chateaubriand sobre a queda da Europa no concernente à fé cristã, evidente. O tom de Constant era melancólico, o de Gobineau perversamente
à neo-ortodoxia de Kierkegaard, ao niilismo de Stirner, e à filosofia de Schopen- frio e objetivista. Enquanto aquele transmitia uma impressão, este sustentava
hauer, que, em grande parte, é pouco mais do que a resposta irônica ao enredo uma verdade científica. Gobineau, como muitos outros historiadores da década
cômico no qual Hegel enquadrou todo o processo do mundo. Mas a abordagem de 1850 e dos anos subseqüentes, dizia estar agindo apenas como diagnosticador
irônica da história só logrou firmar-se como alternativa séria às abordagens de processos sociais, não como poeta ou profeta:
romântica e cômica depois do meado do século, quando, como a própria
filosofia de Schopenhauer, se estabeleceu como alternativa à “ingenuidade” de Ao revelar-vos o que está acontecendo e o que vai acontecer, estarei subtraindo alguma
historiadores como Michelet e Ranke e à “filosofia da história”, conceptual­ coisa de vós? Não sou um assassino; nem oé o médico que anuncia a aproximação do fim. Se estiver
errado, nada restará dos meus quatro volumes. Se estiver certo, os fatos não serão atenuados pelo
mente sobredeterminada, de Marx e Engels. Na atmosfera de “realismo” que desejo daqueles que não querem encará-los [285].
caracterizou o saber acadêmico, a arte e a literatura da Europa depois das
revoluções de 1848-1851, a perspectiva irônica da história sucedeu em toda
As principais objeções de Tocqueville às teorias de Gobineau eram éticas;
parte às perspectivas romântica e cômica como o modo dominante de pen­
ele temia o efeito que teriam sobre o espírito de sua época. Em 1853 Tocqueville
samento e expressão. E essa perspectiva sancionou a escola de “Staatraison” da
escreveu a Gobineau: “Não percebeis como são inerentes à vossa doutrina os
historiografia nacionalista representada por Treitschke e Von Sybel; a escola
males produzidos pela desigualdade permanente: orgulho, violência, desdém
“positivista” representada por Taine, Buckle e pelos darwinistas sociais; e a
pelos semelhantes, tirania e abjeção e todas as suas formas?” (229) As doutrinas
escola “esteticista” representada por Renan, Burckhardt e Pater.
de Gobineau, argumentou Tocqueville, eram apenas uma versão moderna,
Tocqueville reconheceu plenamente o apelo de uma concepção irônica
materialista, do fatalismo calvinista (227). “Acreditais realmente”, perguntou
da história e previu-lhe o advento. No início da década de 1850 ele a entreviu
Tocqueville a Gobineau,
na obra de seu amigo Arthur de Gobineau e tentou imaginar uma concepção
alternativa, trágica, da história que, embora admitindo a justificação da percep­
ção irônica, pudesse transcendê-la e proporcionar à sua própria geração, pelo que ao delinear o destino dos povos segundo essa orientação podeis aclarar de fato a história? E
que o nosso conhecimento dos seres humanos se toma mais preciso quando abandonamos a prática
menos, os fundamentos de uma modesta esperança. seguida desde o começo dos tempos pelos inúmeros grandes espíritos que procuraram encontrar
a causa dos acontecimentos humanos na influência de certos homens, de certas emoções, de certos
pensamentos e de certas crenças? [228].
CRÍTICA A GOBINEAU
A diferença entre a abordagem da história do próprio Tocqueville e a de
Em seu hoje famoso Essai sur Tinégalité des races humaines, Gobineau Gobineau era a diferença, insistiu Tocqueville, entre um método que se apoiava
rejeitou terminantemente os mitos de progresso que sustentavam as concepções em “fatos” e um que se apoiava só em “teorias” (Carta de 1855,268). O primeiro
romântica e cômica da história. Longe de considerar ou o passado imediato produzia a verdade, o segundo somente opinião, uma opinião, além disso, que
(revolucionário) ou seu próprio presente como ponto culminante de um longo era característica de gerações obrigadas a ajustar-se a condições pós-revolucio-
drama da libertação humana, Gobineau via toda a história como uma longa nárias que inspiravam sentimentos de depressão e pessimismo sem nenhuma
“queda”, desde uma suposta era de pureza racial, na situação degenerada de incitação por parte de historiadores (Carta de 1853, 231).
corrupção racial e “mestiçagem” universal. A voz com que Gobineau falava era A essas objeções, Gobineau respondeu que, pelo contrário, era ele que se
a do puro ironista, com sua insistência no realismo inflexível do escritor e no dedicava aos “fatos” mais do que às implicações morais das verdades reveladas
inabalável reconhecimento dos “fatos” da vida e da história. Em resposta a através de sua descoberta dos fatos. Numa carta datada de 1856, escreveu: “Meu
críticas à natureza “corruptora” de seu livro Gobineau escreveu: livro é pesquisa, exposição, apresentação de fatos. Esses fatos existem ou não
existem. Não há nada mais a dizer” (Gobineau a Tocqueville, 1856,286). A isso
Se estou de fato corrompendo, corrompo com ácidos e não com perfumes. Acreditai que
este nào é de modo algum o propósito de meu livro. Não estou dizendo às pessoas: “Estais
Tocqueville respondeu:
absolvidos” ou “Estais condenados"; digo-lhes: “Estais morrendo”. (...) O que digo é que dissipas­
234 HAYDENWHITE META-H1STÓR1A 235

Desconfiais profundamente do gênero humano, pelo menos do nosso gênero; acreditais que “definitivo”. Tudo o que restara no ancien régime, de seus vícios e suas virtudes,
ele é não só decadente mas também incapaz de se reerguer algum dia. Nossa própria constituição
física, no vosso entender, nos condena à servidão. É, então, perfeitamente lógico que, para manter
se dissolvera. Tal era a “physionomie générale de cette époque" (30).
alguma ordem em tal multidão, o governo da espada e até da chibata parece ter algum mérito a O estado de espírito de Souvenirs é diferente daquele que permeia
vossos olhos. (...) Quanto a mim, não creio que tenha o direito ou a propensão de alimentar tais Democracia na América, publicado quinze anos antes. E é diferente do que
opiniões acerca da minha raça e do meu país. Acredito que não cabe desesperar deles. Para mim, impregna a correspondência com Gobineau. Pois, em Souvenirs, a perspectiva
as sociedades humanas, como as pessoas, só se tomam alguma coisa digna através do uso que fazem irônica substituiu o ponto de vista trágico sob o qual foi escrito Democracia na
da liberdade. Tenho dito sempre que é mais difícil estabilizar e manter a liberdade em nossas novas América. Em Souvenirs, Tocqueville deu vazão ao desespero que se obrigara a
sociedades democráticas do que em certas sociedades aristocráticas do passado. Mas nunca me
ocultar de Gobineau e a que se recusou dar plena expressão em suas reflexões
atreverei a pensar que é impossível. E rogo a Deus para que não me incuta a idéia de que seria
possível desistir de tentar. Não, não quero acreditar que esta raça humana, que está à frente de públicas sobre a história francesa. Seus Souvenirs, anotou Tocqueville, não
toda a criação visível, se tenha tomado o degradado rebanho de carneiros que dizeis que ela é, e pretendiam ser “une peinture que je destine au publique", mas apenas “un
que só resta entregá-la sem futuro e sem esperança a um pequeno número de pastores que, afinal, délassement de mon esprit et non point une oeuvre de littérature”. A obra sobre a
não são animais melhores do que somos nós, os carneiros humanos, e que, na verdade, são Revolução que o historiador planejava apresentar ao público devia “avaliar”
frequentemente piores [Tocqueville a Gobineau, 1857,309-10]. objetivamente o que se ganhara e o que se perdera com a própria Revolução.
Em Democracia na América (1835-1840), Tocqueville tinha feito questão
Este último trecho índica as bases essencialmente éticas da própria de assinalar que muita coisa se perdera com o crescimento do “princípio
concepção de Tocqueville do conhecimento histórico, que, longe de ser uma democrático” na Europa e nos Estados Unidos, mas que também se ganhara
desinteressada investigação dos fatos “unicamente pelo que eles são”, não era muito com isso; pesando os prós e os contras, afirmou, os ganhos contrabalan­
senão aquela busca do ponto de vista super-histórico que o escritor trágico trata çavam as perdas. Assim, podia-se ver na agitação que tomou conta da Europa
de conquistar para si e para seus leitores e de cujo exame poderia resultar a nos anos de 1789-1830 a eclosão não apenas de uma nova ordem social mas
reconciliação dos representantes dos diversos partidos presentes na arena também de uma espécie de sabedoria social capaz de guiar os homens para a
política com o caráter limitado de todo conhecimento humano e a natureza compreensão de uma vida nova e melhor. Mas no momento em que iniciava os
provisória de todas as soluções para o problema da construção social. planos para o segundo volume de sua história da queda do Antigo Regime e do
Se a concepção cômica da história produz a historiografia da acomodação advento da Revolução, sua primeira esperança e a resignação estóica que a
social, a concepção trágica é a base do que se poderia chamar a historiografia substituíra haviam dado lugar a um desespero próximo daquele que permeia as
da mediação social. A perspectiva irônica tem um aspecto mediativo, quando reflexões de Gobineau sobre a história em geral.
escrita no espírito de sátira benévola, que é o ponto de vista que se inicia do Em 1856, ano da publicação do primeiro volume de O Antigo Regime e a
outro lado da resolução cômica. Mas, em geral, a historiografia irônica começa Revolução, o tom mediador arrefecera bastante. O escopo declarado dessa obra
do outro lado da tragédia, com aquele segundo olhar que o escritor lança depois era “tornar claro em que aspectos [o atual sistema social] se assemelha ao
que as verdades da tragédia foram registradas e até a inexatidão delas foi sistema social que o precedeu e em que difere dele; e determinar o que se perdeu
percebida. Tocqueville procurava resistir à possibilidade de cair, de uma con­ e o que se ganhou com essa imensa convulsão social” (xi). O contexto social que
dição de reconciliação trágica com as ásperas verdades reveladas pela reflexão parecia justificar o moderado otimismo dos anos 1830 mudara tanto nos anos
sobre a história da idade moderna, naquele ressentimento que estava na base 1850, na opinião de Tocqueville, que agora ele tinha dificuldade de justificar
da historiografia irônica de Gobineau e naquele espírito de acomodação às pouca coisa mais do que um cauteloso pessimismo. No entanto a fé do autor
“coisas como são” que inspirou a historiografia cômica de Ranke. trágico continuava viva. Ele estava convencido de que a queda do Antigo
Regime, A Revolução e suas sequelas refletiam as operações de processos
sociais que, se determinados objetivamente, podiam ainda ser instrutivos e
moderadores das paixões e preconceitos que engendraram. Havia ainda certa
A QUEDA NA IRONIA aceitação da Revolução e seus ideais como manifestações de processos sociais
que não podiam ser desconsiderados e em relação aos quais seria loucura
Em seus Souvenirs, escritos em 1850, Tocqueville recordou a história de guardar ressentimento e leviandade tentar contornar. A esperança do primeiro
seu país de 1789 a 1830. Essa história lhe aparecia, disse ele, “comme le tableau livro cedera o lugar à resignação no segundo.
d’une lutte achamée qui s*était livrée pendant quarante et un ans entre Vancien Em suas notas sobre a Revolução, porém, Tocqueville escreveu: “Uma
régime, ses traditions, ses souvenirs, ses espérances et ses hommes représentéspar coisa nova e terrível surgiu no mundo, uma enorme espécie nova de revolução
Varistocratie, et la France nouvelle conduite par la classe moyenne”. Em 1830, cujos agentes mais vigorosos são as classes menos instruídas e mais vulgares,
observou Tocqueville, o triunfo da “classe moyenne" sobre a “aristocratie” era embora sejam instigadas e tenham suas leis formuladas por intelectuais” (ER,
236 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 237

161). Algo novo tinha nascido, mas não o sistema social auto-ajustável e CONCLUSÃO
auto-regulador que Ranke, de seu seguro posto de observação em Berlim,
avistou no lado oposto da Revolução - uma “coisa nova e terrível” com Elogiei Tocqueville como expoente de uma concepção trágico-realista da
potencialidades para o bem e para o mal. Determinar a natureza dessa “coisa história e como herdeiro daquele historicismo sintético-analítico que encontrou
nova e terrível” e as leis que a regiam, de modo a poder prever seu provável sua mais alta expressão teórica em Hegel. Como Hegel, Tocqueville fez de sua
desenvolvimento futuro, continuou a ser o objetivo do trabalho de Tocque­ visão do nexo social o fenômeno primordial do processo histórico; mas encon­
ville em toda a sua carreira de historiador. O tom e o clima de sua obra trou nele basicamente o ponto em que a consciência humana e as exigências
tendiam consistentemente para a ironia e o pessimismo, mas o ponto de vista externas se defrontam, se chocam e se mostram incapazes de alcançar sua
trágico não se alterou. A lei que o espetáculo exibia à consciência histórica resolução numa expansão essencialmente progressiva da liberdade humana.
não era observada com o humor perverso de Gobineau, que se regalava na Todo pensamento de causa sobrenatural ou transcendental foi exorcizado de
devastação que ela pressagiava para a Europa e o mundo, mas no esforço suas reflexões históricas, mas ao mesmo tempo Tocqueville resistiu à tentação
permanente de levá-la à consciência a fim de fazê-la voltar-se para o bem de explicar as ações humanas fazendo-as depender de impulsos físico-químicos.
social. Para ele, a natureza desempenhava um papel na-história, mas como palco, meio,
restrição passiva a possibilidades sociais, mas não determinante. De acordo com
Tocqueville procurou resistir, até o fim, ao impulso de fazer de uma
Tocqueville, a consciência, a razão e a vontade humana operam como as
determinada época do registro histórico o critério pelo qual todas as outras
principais forças da história, atuando sempre contra o tecido social herdado de
pudessem ser julgadas e condenadas. E tratou de manter a mesma largueza
épocas passadas, procurando transformá-lo à luz de um imperfeito conheci­
de espírito diante de todas as classes sociais. Mas, ainda que manifestasse
mento humano em proveito futuro. Embora individualista em seus ideais éticos,
esperança com relação às ordens inferiores, não depositava fé nelas. Em
Tocqueville resistiu às concepções prometéicas e sisíficas das possibilidades
1848, num estado de espírito que só se pode qualificar de ceticismo benigno,
humanas que informaram o pensamento romântico em suas duas fases princi­
escreveu:
pais. Na concepção da história de Tocqueville, como na de seu grande homólogo
no romance, Balzac, o homem brota da natureza, cria com sua razão e vontade
Nossa situação é de fato muito séria; mas o bom senso e o sentimento das massas deixam
uma sociedade adequada a suas necessidades imediatas e depois trava um
certo espaço para a esperança. Até agora a conduta delas esteve acima de qualquer elogio; e se
ao menos contassem com líderes capazes de fazer uso dessas disposições, e de dirigi-las, em combate fatal com esta que é sua própria criação a fim de produzir o drama da
breve estaríamos livres de todas essas teorias perigosas e impraticáveis e estabeleceríamos a mutação histórica. O conhecimento histórico atua, como atuou para Hegel,
República sobre o único alicerce durável, o da liberdade e do direito [Memoír, II, 91]. como fator no desfecho desse combate em momentos e lugares determinados.
Pondo o homem no seu presente e informando-o das forças com as quais e
contra as quais deve pelejar pela vitória de seu reino aqui na terra, o conheci­
Porque era um liberal em suas convicções políticas pessoais (e portanto mento histórico avança da contemplação do passado como coisa morta para o
acolhia a mudança em princípio) e um aristocrata que sobrevivera a muitas passado como coisa viva no presente, dirige a atenção do homem para esse
revoluções (e portanto sabia por experiência que não podia haver mudança demônio que o assedia, e trata de exorcizar-lhe o temor que ele lhe inspira,
sem sofrimento), Tocqueville levou para suas reflexões sobre a história uma mostrando-o como sua própria criação e portanto potencialmente sujeito à sua
atitude mais “realista” do que Michelet. Mas, como em Michelet, o tom de vontade. Mas, no fim, Tocqueville viu-se obrigado a admitir que o drama da
sua obra se tornou mais melancólico nos seus últimos anos de vida e, por isso história humana não erá nem trágico nem cômico, mas um drama de degenera­
mesmo, mais reacionário. E a razão por que Tocqueville não contou com a ção, o mesmo tipo de drama que o levara a criticar Gobineau por encená-lo à
consideração da geração que lhe sucedeu não é difícil de encontrar. O vista do público.
realismo trágico cultivado por ele desde o início era demasiado ambíguo
para ser apreciado por uma época em que a ambigüidade não tinha vez. As Freqüentemente se nega a Tocqueville o título de historiador, relegando-o
revoluções de 1848 destruíram a posição intermediária em que o liberalismo ou elevando-o à posição de sociólogo, em grande parte porque seu interesse
florescera desde o século XVIII. No período seguinte os historiadores, como pelos pormenores históricos continuamente se dissolve num interesse mais
toda gente, tiveram de tomar partido pró ou contra a revolução e decidir ler intenso por tipologias, ou porque ele parecia mais interessado por estrutura e
a história com uma visão conservadora ou radical. A atitude de Tocqueville, continuidade do que por processo ou variação diacrônica. Mas, embora distin­
como a de Hegel, parecia demasiado flexível, ambivalente, tolerante, para ções como estas entre historiadores e sociólogos sejam úteis no sentido de
pensadores que sentiam a necessidade de escolher em filosofia entre Scho- localizar o ponto de emergência de novas disciplinas na história das ciências
penhauer e Spencer, em literatura entre Baudelaire e Zola, e no pensamento humanas, são potencialmente odiosas e quase sempre destrutivas de uma
histórico entre Ranke e Marx. avaliação adequada da contribuição de um determinado pensador para o
238 METAHJSTÓR1A 239
HAYDENWWTE

pensamento humano. No caso de Tocqueville, a tentativa de situá-lo definitiva­ que o historicismo mediador de Tocqueville, uma vez que coloca o “sentido”
mente entre os historiadores ou entre os sociólogos é de fato anacrônica, visto de eventos históricos como a Revolução e a ascensão da democracia, não no
que em sua própria época não havia nada de inconsistente no esforço de um passado ou no presente, mas no futuro, no futuro escolhido pelo indivíduo que
historiador para elevar-se acima de um mero interesse pelo passado em busca foi purificado pela revelação da ambiguidade intrínseca do passado.
de uma análise teórica das forças que fazem de eventos individuais elementos A concepção, intuída de Tocqueville, da escrita histórica como des-nomi­
de processos gerais. Esse esforço estava na melhor tradição da historiografia nação criativa, nos interesses da ambiguidade moral, fez dele no fim de contas
pré-romântica e era perfeitamente consistente com a análise de Hegel do que um liberal - na companhia de seu grande contemporâneo britânico J. S. Mill.
os historiadores realmente faziam na construção de suas narrativas. Mais Em seu ensaio “Natureza”, Mill escreveu:
importante: era hegeliano na recusa a contentar-se com a simples contemplação
de como isto decorreu daquilo, no desejo de descobrir os princípios gerais que A única teoria moral admissível da Criação é que o Princípio de Deus não pode de uma vez
ligavam o presente vivido com o passado conhecido e de denominar esses por todas subjugar os poderes do mal, quer físico quer moral; não pôde colocar a humanidade num
mundo livre da necessidade de uma luta incessante com os poderes maléficos, nem tomá-la sempre
princípios em termos de princípios clássicos derivados da consciência trágica vitoriosa nessa luta, mas pôde tomá-la?e tomou-se capaz de prosseguir na luta com vigor e com
da luta do homem com formas sociais herdadas. êxito cada vez maior [386].
Antes de Tocqueville, muitos historiadores liberais, conservadores e ra­
dicais contentavam-se em tomar o fato da Revolução como um dado e entrega­ Tal teoria, sustentou Mill, “parece muito mais apta a encorajar [o indiví­
rem-se, inconscientemente, à construção de relatos alternativos - duo] ao esforço do que uma vaga e inconsistente confiança num Autor do Bem
doutrinariamente liberais, conservadores, radicais ou reacionários - de como a que se supõe ser também o autor do Mal” (387). E, em seu ensaio “A Utilidade
Revolução tinha acontecido e, no melhor dos casos, por que aconteceu como da Religião”, Mill lembrou que há “só uma forma de crença no sobrenatural”
aconteceu. Tocqueville fez o debate recuar um passo, para a questão prévia de que
saber se a Revolução tinha de fato ocorrido ou não - isto é, para a questão de
saber se uma revolução tinha realmente ocorrido ou não. E suscitou essa questão aparece totalmente livre de contradições intelectuais e de obliqüidade moral. É aquela que,
não como um exercício de semântica mas como uma genuína inquirição da renunciando irrevogavelmente à idéia de um criador onipotente, considera a Natureza e a Vida
natureza última das coisas no mundo histórico, como uma investigação sobre os não como a expressão permanente de um caráter e propósito moral da Divindade, mas como o
modos pelos quais as coisas devem ser nomeadas. Essa des-nominação de produto de uma luta entre a bondade maquinadora e um material intratável, como acreditava
eventos complexos como a Revolução ou a democracia norte-americana, esse Platão, ou um Princípio do Mal, como era a doutrina dos maniqueus [428].
intento de desnudar as complexidades obscurecidas pelo uso linguístico prema­
turo ou imperfeito, era muito mais radical do que qualquer abordagem doutri­ Em tal concepção dualista do processo do mundo, afirmava Mill,
nária do “que aconteceu realmente” em diferentes épocas e lugares podia ser.
Pois, enquanto este último exercício deixa intocadas as bases ideológicas do um ser humano virtuoso assume (...) o caráter exaltado de um companheiro de trabalho do
desacordo sobre “o que realmente sucedeu”, e serve apenas a uma função Altíssimo, um companheiro de combate na grande luta, contribuindo com seu pouco, que pela
confirmadora dos partidos para os quais e em cujo nome se está escrevendo, o agregação de homens como ele se toma muito, para a progressiva ascendência e por rimo completo
triunfo do bem sobre o mal que é o ponto para o qual a história se dirige e que esta doutrina nos
questionamento de Tocqueville do uso lingüístico tradicional na caracterização ensina a considerar como planejado pelo Ser a quem devemos toda a benevolente maquinação que
de eventos históricos complexos dirige o pensamento para as margens da contemplamos na natureza [Ibid.].
escolha humana, priva o indivíduo das comodidades do uso corrente e força o
leitor a decidir por si mesmo “o que realmente sucedeu” em função do que Citei essas passagens de Mill porque, a despeito de suas impecáveis
deseja que aconteça em seu próprio futuro, pedindo a esse mesmo leitor que credenciais como fontes liberais, poderiam perfeitamente ter sido escritas por
escolha entre um cômodo deixar-se levar pelo fluxo da história e uma luta contra Tocqueville. Tocqueville encontrou lugar no panteão liberal em virtude de seu
suas correntes.
acréscimo de uma dimensão histórica a esse maniqueísmo ético tipicamente
As análises históricas de Tocqueville, ao contrário da opinião generaliza­ liberal. A idéia da história de Tocqueville sugere um dualismo cujos termos
da de que ele sociologizou a história, são, em seu efeito, des-reificadoras da constituintes estão dialeticamente relacionados mas em que não há possibilida­
linguagem. Tal é o efeito de qualquer concepção genuinamente irônica da de de uma síntese final especificável. As vantagens humanas desse dualismo são
história. Pois, na interação dos componentes de sua visão fraturada do presente, patentes, pois, como disse Mill do credo maniqueu, a evidência para ele é vaga
a ironia convida o leitor que é sensível a seu apelo a dar nome ao passado e insubstancial (isto é, não-dogmática) e as promessas de recompensa que
mediante a escolha de um futuro que leve em conta suas presentes necessidades, oferece aos homens são distantes e incertas (e por isso encerram pouco atrativo
desejos e aspirações imediatamente sentidas. Nada podia ser mais liberador do para o simples egoísmo).
240 HAYDENWHITE

É impossível questionar os motivos ou os objetivos do maniqueu ético.


Suspenso entre forças conflitantes, privado de qualquer esperança de vitória BURCKHARDT
fácil, o fiel deste credo põe todo o talento que possui e todo o poder que sua
0 REALISMO HISTÓRICO COMO SÁTIRA*
profissão ou vocação lhe dá a serviço do bem como o vê. Ao mesmo tempo
reconhece a legitimidade e verdade do que lhe parece ser o mal. Pendente entre
dois abismos, poderá apegar-se à hipótese indemonstrável da vida depois da
morte; mas julga que esta é uma possibilidade franqueada tanto a seus inimigos
como a si mesmo. E, se o maniqueu consegue tornar-se um liberal, abandona
essa hipótese e contenta-se com o serviço a uma humanidade que não tem nem
origem conhecida nem meta perceptível, mas apenas um conjunto de tarefas
colocadas logo à sua frente, geração após geração. Através de suas opções, o
liberal constitui essa humanidade como essência. Mediante a autocrítica e a
crítica feita por outros, procura assegurar o desenvolvimento gradual de uma
complexa herança humana. Pela des-nominação progressiva, pelas sucessivas
revelações da realidade complexa que está subjacente aos nomes correntes,
herdados com a bagagem institucional que especificam, o historicista liberal vai
em socorro de uma visão trágico-realista do mundo, e, ao dissolver o impulso
para o compromisso absoluto, trabalha ironicamente por uma liberdade mínima
mas promissora para seus herdeiros.

INTRODUÇÃO

Quando passamos das representações romanescas e cômicas para as


representações trágicas e irônicas da história, e da história processional, ou
diacrônica, para a história estrutural, ou sincrônica, o elemento tema tende a se
sobrepor ao elemento enredo, ao menos na medida em que se pode conceber
o enredo como a estratégia pela qual se articula o desenrolar de uma estória.
Michelet e Ranke encararam a história como uma estória que se desenvolve.
Tocqueville concebeu-a como um intercâmbio entre elementos irreconciliáveis
da natureza humana e da sociedade; para ele, a história avançava para a colisão
de grandes forças no presente ou no futuro imediato do historiador. Burckhardt,
porém, não via nada em desenvolvimento; para ele, as coisas coalesciam de
modo a formar um tecido de maior ou menor brilho e intensidade, maior ou
menor liberdade ou opressão, maior ou menor movimento. De tempos em
tempos as condições conspiravam com o gênio para produzir um brilhante
espetáculo de criatividade, em que mesmo a política e a religião tomavam o
aspecto de “artes”. Mas, na avaliação de Burckhardt, não havia evolução
progressiva na sensibilidade artística, e no fim nada senão a opressão provinha
dos impulsos políticos e religiosos. As verdades ensinadas pela história eram

• Em alguns pontos deste capítulo, notadamente na citação de breves trechos de Burckhardt que no originai
remetem ao título Force and Freedom, o tradutor se valeu da edição brasileira do livro deJacob Burckhardt,
Reflexões sobre a História (trad. direta do alemão e notas de Leo Gilson Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1961) (ff. doT.).
242 HAYDENWHTTE META-HJSTÓR1A 243

melancólicas. Não conduziam nem à esperança nem à ação. Nem sequer “A ironia é o resíduo não-heróico da tragédia”, continua Frye, “centrado
insinuavam que a própria humanidade iria durar. num tema de derrota perplexa” (224 [trad. bras., 220)]. Em sua forma benigna,
“A ironia”, disse Vico ao estudar os tropos, “não poderia ter surgido senão encontrada no primeiro Hume, ela acolhe o espetáculo da frustração e inade­
no período da reflexão, porque é moldada em falsidade por força de uma quação humana dentro da moldura de uma satisfação geral com o estabeleci­
reflexão que usa a máscara da verdade” (7VS, 408:131). Em sua teoria dos ciclos mento social vigente. E nessa forma, tende para o modo cômico,
(corsí) pelos quais as civilizações passam desde as origens até o desaparecimen­ concentrando-se no “desmascaramento” da insensatez onde quer que apareça
to (a era dos deuses, e dos heróis e a dos homens), a ironia é o modo de e contentando-se com a verdade geral, segundo a qual, mesmo na personalidade
consciência que assinala a dissolução final. Assim, disse Vico na conclusão da mais heróica, pode-se encontrar vestígio de pelo menos uma loucura mínima.
Ciência Nova, falando de épocas como a do fim do Império Romano: Em sua forma mais extrema, porém, quando a ironia se manifesta numa atmos­
fera de decomposição social ou colapso cultural, tende para uma visão absur-
dista do mundo. Nada é mais irônico do que a filosofia existencialista inicial de
Quando as condições populares se corromperam, também se corromperam as filosofias, Sartre, em que a cada passo se dá ênfase à capacidade do homem para a
que descambaram em ceticismo. Tolos eruditos puscram-se a caluniar a verdade. Nasceu uma falsa
“má-fé”, para a traição a si mesmo e aos outros; em que o mundo é concebido
eloqüência, pronta a defender indiferentemente qualquer dos dois lados opostos de uma causa.
Assim, aconteceu que, por abuso de eloquência semelhante ao dos tribunos da plebe em Roma, como um espetáculo de auto-servidão brutal, e a obrigação para os “outros” é
quando os cidadãos já não se contentavam em fazer da riqueza a base da ascensão social, trataram vista como uma forma de morte.
de convertê-la em instrumento de poder. E como os furiosos ventos do sul açoitam o mar, assim
Os estilos irônicos predominam em geral durante os períodos de guerras
esses cidadãos provocaram guerras civis em suas repúblicas e as arrastaram para a total desordem.
Dessa maneira fizeram com que as repúblicas desabassem do alto de uma liberdade perfeita na contra a superstição, sejam as superstições em questão identificadas como fé
perfeita tirania da anarquia ou na liberdade desenfreada dos povos livres, que é a pior de todas as religiosa ingênua, o poder da monarquia, os privilégios da aristocracia, ou a
tiranias [1102: 423]. auto-satisfação da burguesia. A ironia representa a transição da era dos heróis
e da capacidade de crer em heroísmo. Esse anti-heroísmo é o que faz dela a
Cumpre notar que Vico incluiu a ironia entre os quatro principais tropos “antítese” do romantismo. Quando se inicia, porém, do outro lado de uma
com que é possível constituir um tipo específico de protocolo lingüístico, aquele apreensão trágica do mundo, com uma vista geral do que restou depois do agon
em que se tornou habitual “dizer uma coisa e denotar outra”. A ironia é do herói com os deuses, o destino ou seus semelhantes, tende a realçar o sombrio
moldada, frisou ele, “em falsidade”, por força de “uma reflexão que usa a lado inferior da vida, o que se vê “de baixo”. Sob essa perspectiva, observa Frye,
máscara da verdade”. Prova da cristalização de uma linguagem irônica é a a ironia sublinha o aspecto “humano, demasiado humano” do que era visto
ascendência do ceticismo em filosofia, da sofística na oratória pública e do tipo anteriormente como heróico e o aspecto destrutivo de todos os recontros
de argumento que Platão chamou “erístico” na eloqüência política. Subjacente aparentemente épicos. Esta é a ironia em sua fase “realista” (237 [ trad. bras.,
a esse modo de falar está um reconhecimento da natureza fraturada do ser 232]). Tocqueville representou essa fase da atitude irônica em sua última obra
social, da duplicidade e interessismo dos políticos, de um egoísmo que governa - em seus Souvenirs e nas notas sobre a Revolução escritas pouco antes de sua
todas as profissões relacionadas com o bem comum, da prática pura e simples morte.
do poder (kratos) enquanto são invocadas a lei e a moral (ethos) para justificar Quando as implicações da ironia “do outro lado da tragédia” são levadas
as ações. A linguagem irônica, como Hegel observou tempos depois, é uma a suas conclusões lógicas, e o elemento fatalista da vida humana é elevado à
expressão da “consciência infeliz” do homem que age como se fosse livre mas condição de crença metafísica, o pensamento tende a reverter à imagética da
sabe que está atado a um poder fora de si mesmo, sendo este poder um tirano roda, eterna recorrência, ciclos fechados de que não há como escapar, e nela
que está tão pouco interessado na liberdade do súdito como está na saúde da ver o mundo. A essa apreensão do mundo Frye chama ironia da servidão; este
res publica em geral. é antes o pesadelo da tirania social que o sonho de redenção, uma “epifania
Um tema central da literatura irônica, observa Frye, é o desaparecimento demoníaca” (238-39 [trad. bras., 234]). A consciência se volta para a contem­
do heróico (Anatomy, 228). Há um elemento de ironia em todo estilo ou modo plação da “cidade da terrível noite” e ironicamente destrói toda a crença tanto
literário - na tragédia e na comédia em virtude da “dupla visão” que as informa, na meta ideal do homem quanto na busca de substituto para o ideal perdido.
sem dúvida, mas também na estória romanesca em certa medida, pelo menos Por isso é que podemos dizer, com Frye, que o “sparagmos, ou o senso de que
até o ponto em que o autor romanesco leva o fato da luta suficientemente a sério o heroísmo e a ação eficaz estão ausentes, desorganizados ou predestinados à
para permitir que seus leitores considerem a possibilidade do triunfo final das derrota, e de que a confusão e a anarquia reinam sobre o mundo, é o tema
forças obstaculizadoras. Mas na literatura irônica em geral, essa dupla visão arquetípico da ironia e da sátira” (192 [trad. bras., 190]).
degenera (ou se eleva) numa segunda natureza debilitadora, que procura o O modo lingüístico da consciência irônica reflete uma dúvida na capaci­
verme na fruta em toda parte, e o encontra. dade da própria linguagem para exprimir adequadamente o que a percepção
244 HAYDENWHITE METAHISTÓRIA 245

oferece e o pensamento constrói acerca da natureza da realidade. Desenvolve- da nacionalização, industrialização e massificação da sociedade. A outra o vê
se no contexto de uma compreensão da fatal assimetria entre os processos da como uma inteligência superior dotada de uma visão inadequada da história
realidade e qualquer caracterização verbal desses processos. Assim, como comoprocesso de desenvolvimento e análise causal resultante de uma concepção
indica Frye, tende para um tipo de simbolismo, do mesmo modo que o roman­ schopenhaueriana não profundamente absorvida da natureza, do mundo e do
tismo. Mas, ao contrário do romantismo, a ironia não procura a metáfora conhecimento. A primeira opinião propende a perdoar as deficiências de
suprema, a metáfora das metáforas, para com ela significar a essência da vida. Burckhardt no interesse de enaltecer-lhe a “percepção”, e faz de sua doutrina
Pois, como se despiu de todas as “ilusões”, perdeu toda crença nas próprias do “ver” (Anschauen) um método histórico de valor intemporal. A segunda
“essências”. Por isso a ironia tende no fim a voltar-se para o jogo de palavras, opinião concentra-se nas insuficiências de Burckhardt como filósofo e teórico
a tornar-se uma linguagem sobre a linguagem, a fim de anular o enfeitiçamento social, critica a unilateralidade de suas idéias históricas, e também éticas, e tende
da consciência produzido pela própria linguagem. Suspeitando de todas as antes a relegá-lo à condição de representante de sua época que a levar a sério
fórmulas, deleita-se na exposição dos paradoxos contidos em toda tentativa de suas idéias a respeito da natureza do processo histórico.
captar a experiência na linguagem. Inclina-se para empregar os frutos da A verdade não reside “entre” essas duas opiniões mas embaixo delas. Pois
consciência em aforismos, apotegmas, enunciados gnômicos que se viram con­ a primeira concepção, exaltadora do feito de Burckhardt, obscurece as impli­
tra eles mesmos e dissolvem sua própria verdade e justeza aparente. No fim, cações éticas e ideológicas da posição epistemológica que fornece a Burckhardt
concebe o mundo como que capturado no interior de uma prisão feita de a originalidade de sua concepção da história e a autenticidade de sua maneira
linguagem, o mundo como uma “floresta de símbolos”. Não vê a saída dessa de escrevê-la. E a segunda concepção, depreciadora do feito de Burckhardt,
floresta, e assim se contenta com a explosão de todas as fórmulas, de todos os obscurece a justificação estética dos princípios éticos que corretamente denun­
mitos, no interesse da pura “contemplação” e da resignação ao mundo das cia como prova do niilismo essencial, do egotismo e da postura ideológica
“coisas como são”. reacionária de Burckhardt.
A visão histórica de Burckhardt começou naquele estado de ironia em
que a de Tocqueville terminou. O entusiasmo da estória romanesca, o otimismo
da comédia e a resignação de uma apreensão trágica do mundo não eram para
BURCKHARDT: A VISÃO IRÔNICA ele. Burckhardt observou um mundo em que a virtude era habitualmente traída,
o talento pervertido e o poder posto a serviço da causa mais torpe. Viu muito
pouca virtude em sua própria época, e não viu nada a que pudesse dar adesão
O filósofo e historiador das idéias alemão Karl Lowith afirmou que foi só irrestrita. Sua única devoção era à “cultura da velha Europa”. Mas considerava
com Burckhardt que a “idéia da história” finalmente se libertou do mito, e essa cultura da velha Europa como uma ruína. Ela era para ele algo como um
daquela nefanda “filosofia da história” engendrada pela confusão de mito e daqueles monumentos romanos em desagregação que se destacam no meio de
conhecimento histórico que havia dominado o pensamento histórico desde a uma paisagem de Poussin, todo coberto de videiras e relva, resistindo ao
Alta Idade Média até os meados do século XIX (Meaning, 26). Lowith não reconfisco pela “natureza” contra a qual tinha sido erigido. Ela não alimentava
percebeu que a urbanidade, a finura, o “realismo”, o desejo de ver as “coisas nenhuma esperança de restaurar essa ruína. Satisfazia-se simplesmente com
como são”, e as implicações reacionárias do conhecimento como puro “ver” recordá-la.
que Burckhardt promoveu eram em si mesmos elementos de um tipo específico Mas a atitude de Burckhardt para com o passado não era acrítica. Ao
de consciência mítica. Burckhardt libertou a reflexão histórica não do mito mas contrário de Herder (a quem aludia com freqüência, e com aprovação), ele não
só dos mitos da história que haviam conquistado a imaginação de sua época, os era um defensor acrítico de tudo o que era velho. Ao contrário de Ranke, não
mitos da estória romanesca, da comédia e da tragédia. Mas no processo de nutria ilusões de que as coisas sempre se resolviam pelo melhor no fim de contas
libertar desses mitos o pensamento, ele o confiou aos cuidados de outro, o e de modo a traduzir o vício privado em benefício público. Ao contrário de
mythos da sátira, em que o conhecimento histórico se divorcia em definitivo de Tocqueville, não guardava só para si seus piores temores pessoais, na esperança
qualquer pertinência para os problemas sociais e culturais de seu próprio tempo de que a razão e a linguagem judiciosa pudessem contribuir para o salvamento
e lugar. Na sátira, a história se torna uma “obra de arte”, mas o conceito de arte de algo de valor em meio aos conflitos correntes. E - nem é preciso dizer - ao
pressuposto nessa fórmula é puramente “contemplativo” - mais sisífico que contrário de Michelet, não sentia entusiasmo por coisa alguma, nem pela luta
prometéico, mais passivo que ativo, mais resignado que heroicamente voltado nem pela recompensa. Burckhardt era irônico a respeito de tudo, até de si
para a iluminação da vida humana corrente. mesmo. De fato não acreditava em sua própria seriedade.
Em geral há duas opiniões sobre Burckhardt como historiador. Uma o vê Na juventude, Burckhardt flertou com as causas liberais. Perdeu a fé
como um comentador sensível da degenerescência da cultura em conseqüência protestante de seus pais, e moço ainda passou a ver na herança liberal um
246 HAYDENWWE META-HISTÓRIA 247

apropriado substituto da religião. Mas seu novo liberalismo era - como tinham Europa precipitar-se para a ruína, assistia ao fracasso do liberalismo, diagnos­
sido suas velhas convicções religiosas - um compromisso intelectual, mais do ticava-lhe as causas e predizia-lhe como conseqüência o niilismo. Mas negava-se
que existencial. Desprezava a política por julgá-la incompatível com os gostos a entrar na luta. Do seu desencanto extraiu uma teoria da sociedade e da história
de um cavalheiro; como os negócios, a política desviava o indivíduo daquele que era tão precisa na previsão das crises do futuro quanto era sintomática das
assíduo culto da elegância na vida que admirava nos antigos gregos e nos doenças que iriam produzi-las. Burckhardt julgava seu afastamento do mundo
italianos do Renascimento. “Nunca”, escreveu em 1842, “pensaria em me tornar um ato que o absolvia de qualquer responsabilidade ulterior pelo caos vindouro.
um agitador ou um revolucionário” (Letters, 71). Assim, no transcurso da década Na realidade isso apenas refletia a falta de energia do homem de cultura
de 1840, o período da “euforia liberal” como tem sido chamado, Burckhardt europeu que terminou por deixar sem oposição as forças que iriam finalmente
entreteve-se com o estudo da história da arte, da música, do desenho, e com o lançar a civilização européia no abismo do terror totalitário.
bei monde de Paris, Roma e Berlim, ao mesmo tempo em que se inculcava de As principais obras históricas de Burckhardt sãoyl Época de Constantino,
liberal e considerava “o espírito de liberdade” como “a mais alta concepção da o Grande (1852) e A Civilização do Renascimento na Itália (1860), ambas
história da humanidade” e sua “principal convicção” pessoal (74). publicadas durante sua vida, &A História da Cultura Grega e Reflexões sobre a
As revoluções que puseram um fecho à década de 1840 abalaram-lhe a fé História, publicadas postumamente com base em notas de aula. Constantino,
até as raízes. Sua querida Basiléia, para onde fora com o fim de ensinar na estudo do declínio cultural, buscava conscientemente a comparação da queda
universidade, foi violentamente sacudida pela guerra civil, e ele viu que tudo do Império Romano com o fim próximo da civilização européia. O Renascimen­
quanto valorizava na cultura da velha Europa oscilava e era arrasada por to foi um tourde force em que Burckhardt quase sozinho criou o quadro daquela
“radicais”. Sobre esses acontecimentos escreveu com certa petulância: “Não és época de florescimento cultural conhecido pela moderna erudição. Mas ambos
capaz de imaginar como esse tipo de coisa é extremamente devastador para o os livros, um do declínio, o outro do renascimento, tratavam de um único
espírito e põe qualquer um de mau humor. Não se pode sequer trabalhar, problema: o destino da cultura em tempos de crise, sua sujeição às grandes
quanto mais fazer coisas melhores” (93). E depois que os acontecimentos forças (Potenzen) compulsivas da história do mundo e sua libertação delas, a
completaram seu curso, observou com amargura: religião e o Estado, na concepção de Burckhardt. Constantino mostrou a cultura
libertada do domínio do Estado absoluto do mundo antigo mas atada pelos laços
A palavra liberdade é sonora e bela, mas não deve falar nela quem não viu nem viveu o constritores da religião na Idade Média. O Renascimento abordou o colapso do
cativeiro instalado pelas massas vociferadoras, denominadas “o povo”, não viu com os próprios espírito religioso e o florescimento da cultura individualista do Renascimento
olhos nem suportou a agitação civil. (...) Tenho demasiado conhecimento da história para saber antes da fundação do moderno Estado potência no século XVIII.
que não devo esperar do despotismo das massas senão uma tirania futura, que significará o fim da
história [Ibid.].
Em seus livros os heróis de Burckhardt, representantes da cultura, são
sempre personalidades dinâmicas que se regem por sua própria visão interior
do mundo e que se elevam acima da concepção mundana de virtude. Eles ou se
Como muitos de seus ilustrados contemporâneos liberais, Burckhardt
retiram do mundo (como ele mesmo) e cultivam em segredo suas próprias
fora bruscamente arrancado da tranqüilidade de seu gabinete e exposto às cruas
personalidades autônomas ou se erguem acima da condição humana vulgar por
realidades da praça da feira onde imperava o poder sem disfarces, e o espetá­
meio de atos supremos de vontade e submetem o mundo ao domínio de seus
culo lhe pareceu insuportável. “Quero livrar-me de todos eles”, escreveu, “dos
egos criativos. Burckhardt encontrou o primeiro tipo representado nos pitagó-
radicais, dos comunistas, dos industriais, dos intelectuais, dos presunçosos, dos
ricos da antiga Grécia e nos anacoretas da Idade Média; o segundo tipo era
argumentadores, do abstrato, do absoluto, dos filósofos, dos sofistas, do Estado,
representado pelos artistas e príncipes do Renascimento. Em resumo, o tema
dos fanáticos, dos idealistas, dos ‘istas’ e dos ‘ismos’ de toda espécie” (96). E
geral de Burckhardt era a interação de grandes personalidades e das forças
assim mais uma vez fez o voto que já fizera quando jovem: “Pretendo ser um
compulsivas da sociedade, tema que foi alvo de amplo tratamento teórico em
bom particular, um amigo afetuoso, uma boa alma; (...) Não posso ter nada que
suas Reflexões sobre a História.
ver com a sociedade em geral” (Ibid.). E acrescentou a esse voto: “Talvez
pereçamos todos; mas pelo menos quero descobrir o interesse pelo qual devo Burckhardt sempre negou que tivesse uma “filosofia da história”, e falou
perecer, isto é, a velha cultura da Europa” (97). com ostensivo desdém de Hegel, que tivera a presunção de enunciar um
De fato, Burckhardt enclausurou-se. Insulado em Basiléia, ensinava aos Weltplan que tudo explicava e tudo colocava dentro de uma moldura intelectual
poucos estudantes que freqüentavam a combalida universidade, fazia conferên­ preestabelecida. No entanto em suas cartas Burckhardt elogiou Taine, cujo
cias para os moradores da cidade, cortou todas as relações com as sociedades objetivo geral era mais ou menos o mesmo de Hegel e cuja “filosofia da história”
científicas e até recusou-se a publicar depois de 1860. A essa altura, porém, já era bem menos sutil e elástica. Para Burckhardt a diferença essencial entre
era uma celebridade. Ofertas de postos mais prestigiosos lhe chegavam a toda Hegel e Taine residia no fato de que a filosofia da história do primeiro admitia,
hora, mas ele as recusava. Do seu ponto de observação no alto Reno via a na verdade convidava, conclusões radicais, ao passo que a do segundo as
248 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 249

desencorajava. Na realidade, como Burckhardt bem sabia pelo exemplo de do sofrimento humano. Dos cinco, dois continuaram fiéis a Schopenhauer até
Ranke, negar a possibilidade de uma filosofia da história é de fato afirmar outra o fim: Wagner e Burckhardt.
filosofia de uma espécie particularmente conservadora. Pois negar a possibili­ Schopenhauer não dispunha de teoria social ou filosofia da história. No
dade de uma filosofia da história é negar ou a capacidade da razão para entanto, todo o seu sistema era uma tentativa sistemática de mostrar por que
encontrar um padrão nos acontecimentos ou o direito da vontade de impor-lhes as preocupações sociais e os interesses históricos são desnecessários. Assim,
um padrão. A exemplo de seu mestre Ranke, Burckhardt queria retirar a tinha ele uma teoria negativa de ambos. Proporcionava uma alternativa ao
história das contendas da época ou pelo menos mostrar que o estudo da história historicismo sob qualquer forma. Gyõrgy Lukács vê em Schopenhauer o
eliminava qualquer probabilidade de extrair dela doutrinas políticas - o que ideólogo da burguesia alemã depois de 1848, quando o naturalismo liberal,
seria uma dádiva para a causa conservadora. Assim Burckhardt chamou sua humanista, de Feuerbach foi definitivamente abandonado, e uma visão de
“filosofia da história” de “teoria” da história e formulou-a como simples arranjo mundo reacionária, pessimista e egoísta era exigida pela época e pela situação
“arbitrário” dos materiais para fins de apresentação e análise. Não podia tentar em que a classe média alemã se encontrava. Schopenhauer não foi, porém, um
oferecer a “natureza real” dos acontecimentos porque seu pessimismo lhe simples ideólogo, como foi Spencer na Inglaterra e Prévost-Paradol na França.
negava o luxo de admitir que os acontecimentos tivessem afinal qualquer De acordo com Lukács, Schopenhauer foi um apologista indireto do estilo de
“natureza”. Na mente de Burckhardt esse pessimismo encontrou sua justifica­ vida de uma classe que, em face de seus ideais afirmados, precisava encontrar
ção intelectual na filosofia de Schopenhauer. O que Feuerbach foi para Marx e alguma razão que justificasse sua incapacidade de agir, e que negasse, em face
para a esquerda política, Schopenhauer foi para Burckhardt e a direita política. de seu discurso anterior sobre progresso e esclarecimento, a possibilidade de
nova reforma (Hist. Novel, 178-81).
Num único sentido, é claro, Schopenhauer foi o crítico impiedoso dos
valores burgueses - isto é, do interesse na atividade prática, da paixão pela
O PESSIMISMO COMO VISÃO DO MUNDO: segurança e da adesão meramente formal à moral cristã. Contestou todos os
A FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER lemas da teoria capitalista do laissez-faire e do pio historicismo de Ranke, a
noção de que uma mão oculta orienta a sociedade para a realização de um bem
Embora tenha aparecido numa forma preliminar já em 1818, a filosofia geral, de que a competição subordinada à lei é realmente capaz de promover a
de Schopenhauer recebeu pouquíssima atenção até a década de 1840. Depois cooperação e outras coisas mais. Em vez disso, propôs-se a revelar a vida como
de 1850, porém, passou a ocupar o próprio centro da vida intelectual européia, efetivamente é: uma terrível, absurda busca de imortalidade, um espantoso
não tanto entre filósofos profissionais como entre artistas, escritores, historia­ isolamento do homem em relação ao homem, uma tremenda sujeição ao desejo,
dores e publicistas: entre intelectuais cujos interesses confinavam com os filo­ sem finalidade, propósito, ou qualquer possibilidade real de êxito. Mas, ao cabo
sóficos ou que achavam que o que faziam exigia alguma fundamentação num de tudo, a visão geral do mundo de Schopenhauer deixa completamente into­
sistema filosófico formal. A concepção do mundo de Schopenhauer convinha cado o que quer que possa acontecer em qualquer época determinada, debili­
especialmente às necessidades dos intelectuais do terceiro quartel do século. tando qualquer impulso para agir por força de qualquer motivo, seja ele qual
Era materialista mas não determinista; permitia que se fizesse uso da termino­ for, egoísta ou altruísta.
logia da arte romântica e que se falasse do “espírito”, do “belo” e assim por Um atrativo do sistema de Schopenhauer para os intelectuais do final do
diante, mas não reclamava que se concedesse a essas idéias estatuto sobrenatu­ século XIX consistia na capacidade desse sistema para ajustar-se ao quadro
ral. Além disso, era moralmente cínica em grau máximo. Permitia que todo o darwiniano da natureza. A natureza de Darwin era desprovida de finalidade,
prazer que se obtivesse da situação presente fosse justificado como bálsamo como era a de Schopenhauer. Por extensão, o homem era também desprovido
necessário para uma alma atordoada, mas admitia que a dor e o sofrimento de de finalidade. O mundo social de Schopenhauer era um agregado de indivíduos
outros parecessem não só necessários mas também desejáveis de modo que não atômicos, cada qual aprisionado dentro dos próprios desejos, indivíduos coli­
era preciso dedicar-lhes cuidado ou atenção especial. Reconciliava a pessoa dindo uns nos outros em movimento aleatório, cada um parecendo simplesmen­
com o ennui existencial da classe média alta e também com o sofrimento das te um possível meio de satisfação egoísta para todos os outros. Marx reconheceu
classes mais baixas. Era egoísta ao extremo. essa alienação do homem em relação à natureza, do homem em relação ao
A filosofia de Schopenhauer constituía, portanto, o ponto de partida e a homem, e do homem em relação a si mesmo, mas viu-a como algo que poderia
barreira a ser transposta por muitos jovens escritores e pensadores do último ser, em última análise, vivido com vistas à consecução de uma genuína reunião
quartel do século. Nietzsche, Wagner, Freud, Mann e Burckhardt educaram-se com a natureza, os outros homens e o próprio eu. E a teoria de Marx da mudança
nela e encontraram em Schopenhauer um professor que explicava a insatisfação social na história lhe permitia acreditar que certas conjunções provisórias de
com a vida que sentia cada um deles enquanto artistas criadores e estudiosos esforço, pensamento e crença podiam realizar-se em certos casos restritos.
250 HAYDEN WWTE META-HISTÓRJA 251

Schopenhauer negava tudo isso: todas as aparentes comunhões são em­ Fiado nesse argumento, Schopenhauer teve de considerar a possibilidade
bustes; toda ostentação de amor é uma fraude; todo o evidente progresso na de autodestruição como saída de uma vida que não era senão desejo frustrado.
criação de entendimento manifestamente mais humano é puro mito. Marx Mas excluiu essa alternativa porque, para ele, era menos uma solução para o
assentou a alienação do homem numa relação específica com a natureza num problema da existência humana do que uma prova de que se estava levando a
tempo e lugar determinado, e visionou a transcendência dessa alienação e a vida demasiadamente a sério. O suicida ama a vida mas não pode suportar as
consecução da comunhão humana universal no tempo. Schopenhauer, porém, condições em que a vida deve ser vivida. Não renuncia à» vontade de viver;
sustentava que a separação entre homem e homem funda-se nas bases ontoló­ renuncia só à vida. “O suicida nega só o indivíduo, não a espécie” (Schope­
gicas da própria natureza e é portanto inerente à sociedade; também afirmava nhauer, 325).
que essa separação só pode ser transcendida nuns poucos gênios isolados, que
comungam não com outros homens mas com eles mesmos num estado de O objetivo de Schopenhauer era “negar a espécie”. E ele via o poder de
consciência caracterizado pela destruição da vontade dirigida para qualquer representação imagística do homem como o meio pelo qual isso podia ser
ação, seja ela qual for. realizado. A verdadeira liberdade do homem está em sua aptidão para elaborar
imagens. A vontade encontra sua jiberdade nessa capacidade de modelar um
Schopenhauer concordava com Feuerbach em que a realidade e sensua­ mundo com as percepções que escolher. Experimenta sua natureza determina­
lidade são a mesma coisa. E concordava com Feuerbach em que o homem é da só quando procura agir com base nessas fantasias. Segue-se, então, que o
aquela fase da natureza em que a vida alcança a consciência. Mas, para alvo mais alto da vontade individual é pôr à prova sua liberdade, e que, se a
Schopenhauer, a consciência era tanto um fardo quanto uma libertação, pois única maneira de fazê-lo é através do exercício de sua faculdade imaginativa, a
para ele era a fonte da distinção entre presente e futuro, conseqüentemente de melhor vida é aquela que utiliza os fenômenos unicamente como material de
esperança e remorso, e finalmente, portanto, do sentimento humano básico de recriação fictícia.
sofrimento.
O pensamento histórico está destinado a ocupar uma posição secundária
O homem não apenas sente dor, como todos os animais, mas também sabe
que sente dor - isto é, sofre - e é assim vítima de uma dor dupla, a própria dor em tal esquema, porque presume que existe uma coisa como o tempo real, que
e o conhecimento de que poderia não estar sofrendo aquela dor. É o impulso os acontecimentos humanos têm uma realidade objetiva independentemente da
de aliviar a dor através da ação que leva ao esforço especificamente humano no consciência que os percebe, e que a imaginação está restrita ao uso de categorias
mundo. Mas o esforço para aliviar a dor ou satisfazer o desejo revela-se no fim causais quando procura apreender a significação desses acontecimentos. Tal
totalmente infrutífero. Pois um esforço é ou bem-sucedido ou malsucedido. Se como é vivida, a existência histórica é um imutável jogo do desejo, o esforço
é malsucedido, intensifica a dor original; se é bem-sucedido, suplanta a dor para saciar o desejo, a capacidade ou incapacidade de o conseguir, e o conse-
original, sentida como carência, com outra dor, sentida como saciedade e sua qüente impulso para novo desejo quando é bem-sucedido, para a dor quando
não é. É um caos de ações conflitantes, todas elas dissimuladas atrás de motivos,
conseqüência, o tédio - instituindo portanto outro ciclo caracterizado por uma
declarações e formas que a análise pode mostrar que nada mais são do que
busca de algo a desejar para aliviar o tédio sentido em decorrência de ter obtido
o que originariamente faltava. vontade cega, egoísta.

Assim, todo o esforço humano funda-se num ciclo de atos de vontade que Os limites exteriores do ciclo são demarcados pela dor e pelo tédio. Isso
é absolutamente desprovido de finalidade ou sentido, insatisfatório, embora quer dizer que os grandes acontecimentos sociais, como guerras, revoluções e
compulsivo, até que a morte largue o indivíduo no terreno natural comum a outros mais têm suas causas reais em alguma insatisfação sentida pelas vontades
partir do qual todas as vontades individuadas se cristalizam. Schopenhauer individuais, e que os slogans sob os quais se apresentam são meras fachadas
descobriu que o senso de Streben, de aspiração, que havia sido triunfalmente (152-55). Mas em sua natureza mais pura o gênio não se revela no envolvimento
exibido ao homem por Feuerbach como constitutivo de sua humanidade e no processo histórico mas na capacidade de continuar a ser puro espectador.
justificação de seu orgulho, era ao mesmo tempo o fato fundamental e o fardo O objetivo do gênio é completar na imaginação a forma que se esboça no
fundamental da existência humana. A razão e o conhecimento humanos não fenômeno. Com relação à história, isso significa fazer o que se quer com os
eram interpretados por ele como instrumentos de mediação do processo de materiais históricos, aceitando-os ou rejeitando-os à vontade, a fim de conver­
crescimento humano através de ação cooperadora ou atos de amor. A razão tê-los numa imagem agradável de contemplar.
apenas nos informa de nossa condição determinada; situa a vontade no tempo Assim concebido, o conhecimento histórico é uma forma de cognição de
e no espaço, esfera de total determinância, e portanto destrói no indivíduo segunda ordem, pois, uma vez que dirige a atenção para coisas em sua existência
qualquer sentimento de que pode agir como vontade. A razão consente que o detalhada, impede que se passe facilmente do fenômeno para a contemplação
homem examine sua condição em abstrato, mas não permite esperar que de sua idéia imanente. A reflexão histórica é assim mais notável na medida em
qualquer tentativa de aliviar o sofrimento e a dor tenha bom êxito. que se aproxima da poesia - isto é, abandona o detalhe que obriga a uma
252 HAYDENWHJTE META-HISTÓRL4 253

apreensão da falha em todas as coisas e eleva-se à contemplação da “verdade A história engendra uma certa consciência da espécie ao estimular a busca de
íntima” dos detalhes. variantes da idéia humana que cada malogro na tentativa de atingir uma meta
Desse modo, os historiadores antigos que, como Tucídides, inventavam sugere à consciência. Na medida em que nos fala dessas variantes, porém, a
os discursos dos agentes históricos de acordo com o que deviam ter dito na história é a narrativa de sucessivos desastres. Proporciona um sentido de
ocasião, em vez de relatar o que de fato disseram, eram mais esclarecidos do consciência da espécie somente na medida em que somos capazes de completar
que os rankianos que se detinham onde os documentos terminavam ou que se na imaginação as formas de que os eventos individuais são provas de fracassos.
limitavam à reconstrução do que realmente aconteceu. O conhecimento é Assim, alcançamos a humanidade autêntica através da nossa transcendência,
dignificante e libertador somente na medida em que ele próprio se liberta dos não só em relação à história como também em relação ao próprio tempo.
fatos, por um lado, e da consideração das categorias que ligam as coisas em sua Tudo isso quer dizer que as distinções usuais feitas pelos historiadores
mútua determinação no mundo do tempo e do espaço, por outro. para organizar seus materiais, cronológicos e causais, são elas mesmas total­
mente inúteis salvo como etapas na consecução da verdade ensinada pelos
Assim, Schopenhauer classificava as artes em função do quanto elas
poetas trágicos, que, segundo Schopenhauer, é: “O maior crime do homem é o
abandonavam a tentativa de copiar a realidade e efetivamente transcendiam as
de ter nascido”. E irrelevante falar da humanidade em evolução ou desenvolvi­
limitações espaciais e temporais.
mento; de fato, é irrelevante falar de mudança. É ainda mais irrelevante dizer
A fantasia é superior ao fato, o que quer dizer que a poesia é superior à que os homens têm projetos que empreendem em comum a fim de construir
história. Dentro de uma dada forma de arte pode ser feita a mesma classificação; uma sociedade compartilhada de maior ou menor alcance. A visão da história
assim a tragédia é superior à comédia, a comédia ao poema épico e assim por de Schopenhauer era construída com necessidades e recursos puramente pes­
diante. O mesmo se pode dizer das artes plásticas e visuais. A arquitetura é soais. Para ele, a única história que contava era aquela que realçava em sua
inferior à escultura, uma vez que os interesses práticos da primeira inibem-lhe própria mente a necessidade de desprezar a história completamente.
a aspiração à consistência formal. E a escultura é inferior à pintura, já que na
escultura a determinação espacial é maior. De igual modo, a poesia é superior Assim, Schopenhauer mantinha-se acima da disputa entre Hegel e Ranke
à pintura porque as palavras podem ser combinadas mais livremente do que as em torno de questões como a classe “historicamente significativa” e a época
imagens visuais. Mas a poesia é inferior à música, visto que esta última se liberta “historicamente significativa”. Pois, segundo ele, todos os homens são basica­
completamente das palavras e aspira à contemplação da pura forma além dos mente iguais; alguns têm uma capacidade de se retraírem da ação, e estes são
limites do tempo. E assim continua, até a forma artística mais elevada de todas, os bem-aventurados. Os que agem, falham. Também falham os que se negam a
que nunca é traduzida em termos espaciais ou sequer enunciada, mas perma­ agir, mas estes pelo menos podem aspirar ao prazer de contemplar a pura forma.
nece pura e inviolada na mente do artista como uma sentida união com as formas
subjacentes de todas as coisas, que é o objetivo do mundo, como vontade, Do mesmo modo, quaisquer distinções entre passado, presente e futuro
reconciliar-se com ele mesmo. se dissolvem no pensamento de Schopenhauer. Só há presente. Passado e futuro
É óbvio que, para Schopenhauer, qualquer possibilidade de salvação são simplesmente modos de organizar mentalmente uma expectativa de mudan­
oferecida ao indivíduo só podia ser individual, nunca comunal. Estamos irre­ ça. E a mensagem de Schopenhauer para o presente é a mesma para todos:
mediavelmente separados dos outros indivíduos, que só podemos contemplar exercitem-se para querer só o que possam ter e o que possam desfrutar
como vontades contrapostas que nos vêem como objetos em seus campos enquanto viverem. Esse querer deve ser direcionado para o imaterial, pois as
visuais. Todas as instituições sociais são assim despojadas de seu valor intrínse­ coisas materiais mudam. Deve ser puramente pessoal, de vez que, se é depen­
co, e todos os impulsos sociais gerais são encarados como erros e falhas. Mas dente de qualquer outra coisa, pode ser retirado. Assim, a filosofia de Schope­
Schopenhauer recusava-se a crer que qualquer teoria geral, física ou psicológi­ nhauer acaba por ser perfeitamente narcisista. Na contemplação da concepção
ca, pudesse mediar entre o que somos e o que gostaríamos de ser. A ciência é pessoal da forma manifestada pelo fenômeno, chega-se ao estado almejado pelo
apenas uma maneira provisória, e essencialmente inferior, de ordenar a reali­ sábio budista: o Nirvana. No prazer absoluto propiciado pela contemplação do
dade sob as modalidades do tempo e do espaço e as categorias de determinação reino imutável da forma pessoalmente projetada, aguarda-se o próprio retorno
com vistas à consecução de fins práticos imediatos necessários à sobrevivência final à natureza cega que vomitou o homem no espaço da dolorosa individuação.
do organismo. A antítese da ciência, a arte, não é unificadora mas isoladora, Desse modo Schopenhauer transcendeu as dores da existência histórica e social
porquanto a visão artística é uma visão cujo valor é exclusivamente privado, lamentadas por Rousseau. Para ele as tensões anunciadas pelos realistas em sua
conhecido e cognoscível apenas para a mente que o concebe. Assim, tanto a concepção de um mundo tríplice composto de natureza, consciência e socieda­
arte como a ciência são por sua própria natureza alienadoras - a primeira por de estavam inteiramente superadas. O todo estava disperso num caos. Schope­
intensificar nosso desejo de nos retrairmos da ação, a segunda por tratar o nhauer, portanto, dissolveu a história ao negar não apenas a humanidade mas
mundo como constituído de coisas com o fito de as manipular para fins práticos. também a natureza.
254 HAYDENWHITE METAHISTÓRIA 255

A visão de mundo de Schopenhauer ajustava-se perfeitamente às neces­ como entorpecente, que Burckhardt conquistou afinal para sua visão da histó­
sidades daqueles segmentos da sociedade que queriam ignorar por completo ria. Por aquele tempo Nietzsche já havia descoberto o verme no centro da
as questões sociais. Para quem achava penoso demais contemplar de um lado filosofia schopenhaueriana e o expusera para que todos o vissem como o
as tensões entre as classes e do outro as tensões entre os imperativos da tradição simples medo de viver. Tentara prevenir Burckhardt dos perigos nela contidos
e da inovação, a filosofia de Schopenhauer faria acreditar que era de resto inútil e dera a entender que, embora a história de Burckhardt indicasse o caminho
contemplá-las. Ao mesmo tempo, permitia aos ainda oprimidos pela necessida­ para uma nova concepção de sociedade que poderia opor-se às tendências
de de estudar o gênero humano como meio de definir sua própria humanidade niveladoras de Marx e Ranke, isso não bastava. Burckhardt negou-se a respon­
- como meio de evitar o solipsismo- estudar somente aquelas partes da história der à crítica de Nietzsche. Isso tem sido com freqüência atribuído a uma
que lhes dessem prazer; ou, melhor ainda, estudar apenas aqueles aspectos de louvável relutância em se envolver em estéreis disputas filosóficas, mas não há
uma determinada época que lhes reforçassem o prazer em suas próprias nada de elogiável nisso. Burckhardt recusava-se a envolver-se em disputas
concepções de si mesmos. Burckhardt escreveu seu quadro unilateral e distor­ intelectuais porque não gostava de disputas de espécie alguma. Schopenhauer
cido da Itália do século XV sob a influência dessas preconcepções; o estudo de mostrara-lhe que todo afã era inútil e que vivia bem o homem que só fazia o
Nietzsche da tragédia grega foi um produto delas; à “forma de arte total” de que lhe agradava, no pensamento e também na ação.
Wagner foi composta sob sua égide; c Os Buddenbrooks de Thomas Mann foram
por elas justificados.
O que era típico de todos esses pensadores era a visível repugnância pela O ESTILO SATÍRICO
sociedade em que viviam, não obstante a recusa a aprovar a idéia de que
qualquer ação pública ou privada pudesse talvez mudar a sociedade para
Burckhardt começou sua obra mais célebre, A Civilização do Renasci­
melhor. Todos eles tornaram patente o impulso para refugiar-se da realidade
mento na Itália, com esta introdução:
na experiência artística, concebida não como algo que unifica o homem com o
homem em apreensões compartilhadas de uma humanidade mínima mas como Esta obra leva o título de ensaio na acepção mais rigorosa da palavra. (...) A cada olho,
algo que o isola no interior de sua própria intimidade e veda qualquer comuni­ talvez, os contornos de uma dada civilização apresentam um quadro diferente; e ao tratar de uma
cação com a sociedade. Nietzsche e Mann mais tarde repudiaram sua inicial civilização que é a mãe da nossa, e cuja influência ainda se faz sentir entre nós, é inevitável que o
concepção schopenhaueriana da arte, vendo corretamente que ela era escapista julgamento e a impressão individuais denunciem a cada instante o autor e o leitor. No vasto oceano
e incoerente com a noção de arte como atividade humana. Wagner continuou em que nos aventuramos, as rotas e direções possíveis são muitas; e os mesmos estudos que
fiel à visão schopenhaueriana até o fim, explorando-lhe as aptidões para a serviram para esta obra poderiam facilmente, em outras mãos, receber tratamento e aplicação
totalmente diferentes e até conduzir a conclusões essencialmente distintas [1-2].
auto-ilusão com perfeita maestria e segurança. E fiel se manteve também Jacob
Burckhardt, talvez o mais talentoso historiador da segunda metade do século
XIX. Assinalou em seguida sua intenção original de incluir uma seção especial
sobre a “Arte do Renascimento” e sua incapacidade de fazê-lo. E então, sem
mais delonga, enveredou pela história da Itália nos séculos XII e XIII, como
prelúdio à análise da cultura e do saber renascentistas.
O PESSIMISMO COMO BASE DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA O que se seguiu foi uma brilhante sinopse, à maneira de um daqueles
desenhos de um mestre impressionista, em que se esboçavam as linhas princi­
Como Schopenhauer, Burckhardt não foi muito apreciado em seu tempo. pais do desenvolvimento político da Itália. Os contornos gerais das histórias das
Em sua maioria os historiadores achavam que ele era por demais irresponsável, várias cidades italianas independentes estavam traçados, a natureza da política
por demais subjetivo, para ser digno de atenção. Foi só quase no fim do século, internacional estava indicada, e o caráter inconfundível da vida política da época
quando se tornou evidente que a abordagem rankiana deixava muitas perguntas estava vigorosamente sintetizado. Esse era o conteúdo da famosa seção de
sem respostas, e quando pensadores interessados nas questões históricas come­ abertura, “O Estado como Obra de Arte”. Depois de breve exame da posição
çaram a perceber que teriam de escolher entre as atitudes de Marx e as de do papado na vida política italiana, a seção terminava por uma caracterização
Schopenhauer, que a estrela de Burckhardt começou a despontar. Revela-nos sucinta da natureza do patriotismo da época. A idéia central era que a natureza
alguma coisa acerca de Burckhardt e da erudição do final do século XIX o fato da vida política italiana era de molde a “despertar nos melhores espíritos do
de que esse pessimista schopenhaueriano que via a história como exercício tempo repulsa e oposição patriótica” (79). Burckhardt pôs em contraste a
artístico egoísta tenha sido reconhecido nessa época. situação política italiana com a da Alemanha, França e Espanha. Cada uma
Foi uma época marcada por um sentimento de prostração e declínio mas dessas nações tinha um inimigo externo com que lutar e contra o qual uma
relutante em admiti-lo, uma época que buscava refúgio numa concepção da arte monarquia podia unir seu povo e modelar uma unificação a partir do caos
256 HAYDENWH1TE METAHISTÓR1A 257

feudal. Na Itália a situação era diferente. Ali a existência do papado, um “Estado


eclesiástico”, continuava a ser “um obstáculo permanente à unificação nacio­ A seção sobre “A Revitalização da Antiguidade” terminou com um
nal” (80). Assim, a vida política italiana perdeu a oportunidade de unificação e comentário sobre a perda de controle dos humanistas sobre as academias e a
integração. No momento em que a idéia de unidade nacional se firmou na Itália, banalização da cultura que resultou disso. O breve parágrafo final conclui com
já era tarde demais. O país fora inundado por franceses e espanhóis. Pode-se esta observação críptica: “O destino do palco italiano, e posteriormente da
dizer que o “senso de patriotismo local” tomara o lugar de um genuíno senti­ ópera, esteve muito tempo nas mãos dessas associações [provincianas]” (170).
mento nacional, mas, como escreveu Burckhardt, “era apenas um pobre equi­ As seções “Sociedade e Festas” e “Moral e Religião” findaram sem comentário
valente dele” (Ibid.). A seção, portanto, terminava por uma nota de melancolia, algum, exceto um, oblíquo, sugerido por citações extraídas das fontes. A pri­
uma consciência de oportunidades perdidas, de objetivos nacionais atraiçoados, meira se encerrou com um trecho da célebre “Oração sobre a Dignidade do
de ocasiões favoráveis desperdiçadas, de nobres tarefas negligenciadas. Homem”, de Pico delia Mirandola, que, posta no lugar que lhe foi destinado,
A seção intitulada “O Estado como Obra de Arte” era uma das seis partes só pode sugerir o quanto essa sublime concepção da natureza humana não foi
do livro; cada uma delas consistia numa análise de um aspecto diferente da honrada no mundo que sucedeu ao do seu autor. A segunda, por contraste,
cultura da Itália durante o Renascimento, cultura concebida em seu sentido terminou com uma estrofe de Lourenço, o Magnífico:
mais amplo, naturalmente - isto é, como costumes, usos sociais, lei, religião,
literatura, drama, festas, cerimônias, e assim por diante - e sempre atenta às É bela a juventude,
vastas caracterizações das categorias sob as quais estava organizada a profusão Mas passageira!
de dados: “O Desenvolvimento do Indivíduo”, “A Revitalização da Antiguida­ Quem quiser alegria, que a tenha;
de”, “A Descoberta do Mundo e do Homem”, “Sociedade e Festas” e “Moral Do amanhã não há certeza [260].
e Religião”. O livro estava portanto organizado segundo uma rubrica mais tarde
analisada por Burckhardt em suas Reflexões sobre a História: os mundos da Finalmente a seção “Moral e Religião”, última do livro, termina sem
política e da religião “determinados” pela “cultura”. O Renascimento, na nenhuma recapitulação da tese de toda a obra, mas apenas com um exame do
opinião de Burckhardt, foi um período em que o momento “cultural” se libertou “Espírito Geral de Dúvida” e um comentário sobre o platonismo de Ficino e a
da subordinação à política e à religião para sobrelevar, dominar e determinar Academia de Florença:
as formas que elas assumiriam. Tudo o que importava nas esferas mais munda­
nas da existência humana transformou-se numa arte, o que quer dizer que se Ecos do misticismo medieval confluem aqui numa única corrente com as doutrinas platô­
amoldou ao esforço por alcançar sua própria e intrínseca forma sublime, a nicas e com um espírito caracteristicamente moderno. Um dos preciosos frutos do conhecimento
perfeita combinação de interesses práticos e estéticos. Tudo o que importava do mundo e do homem atinge aqui a maturidade, e só por essa razão se deve chamar o Renasci­
na vida da sociedade livrara-se da servidão à praticidade por um lado e da mento italiano de guia da Idade Moderna [341].
aspiração transcendental por outro. Tudo procurava ser o que era “em si
mesmo”, não ser pervertido por considerações que destruíssem a perfeição de Assim termina o “ensaio” de Burckhardt sobre o Renascimento. O ensaio
seu próprio perfil essencial. As coisas passaram a ser vistas claramente, e a vida não tinha propriamente começo nem fim, pelo menos um fim que fosse a
era vivida exclusivamente com vistas à realização da consistência formal. consumação ou resolução de um drama. Era todo transição. E como tal dizia de
Entretanto, a exposição feita por Burckhardt de cada um dos temas de fato muito mais acerca do que veio antes dele (a Idade Média) e do que veio
que tratou - o individualismo, a revitalização da Antiguidade, o humanismo, o depois dele do que acerca de seu tema ostensivo, o próprio “Renascimento”.
relacionamento social e a religião - findou na mesma nota melancólica que Não que não dissesse muito acerca do Renascimento na Itália; pois o “ensaio”
marcou a conclusão da parte sobre política. Essa nota melancólica era como estava repleto de informações, intuições, brilhantes aperçus e argutas avaliações
um sino de vésperas a convidar os fiéis a uma meditação piedosa ao cair da tarde. da distância entre ideais e realidades nesse período de florescimento e atividade
O tema era introduzido e levado à sua plena realização em alguma figura cultural. Mas não havia nenhuma “estória” do Renascimento, nenhum desen­
representativa ou algum evento decisivo, mas só para ser modulado pelo me­ volvimento integrado que permitisse uma caracterização sumária de sua essên­
mento de que todas as coisas humanas se encaminham para o nada. A seção cia. De fato, como Burckhardt deixou bem claro em seus Julgamentos sobre a
sobre o desenvolvimento do indivíduo se encerrou com uma observação do História e os Historiadores, notas de aula para o curso sobre a Época das
engenhoso e “irônico” Aretino. Dele disse Burckhardt: Revoluções, o Renascimento representou um interlúdio, um entracte, entre dois
grandes períodos de opressão: a Idade Média, em que a cultura e a política
É bom sinal para o atual espírito da Itália que tal personagem e tal carreira se tenham estavam subordinadas aos imperativos da religião; e a Idade Moderna, em que
tomado mil vezes impossíveis. Mas a crítica histórica sempre encontrará em Aretino um estudo cultura e religião pouco a pouco se tornaram subordinadas ao Estado e aos
importante [103]. imperativos do poder político.
258 HAYDENWWTE METAHISTÓRIA 259

Assim concebido, o Renascimento não foi senão o “jogo livre” do momen­ registro cronológico em segmentos discretos de províncias de ocorrência. Por
to cultural no intervalo entre duas tiranias. Como era jogo livre, não podia ser exemplo, assim como no século XIV algo novo e misterioso fez seu aparecimen­
submetido ao mesmo tipo de análise a que estava sujeita a Idade Média ou a to nas cidades italianas independentes, também “nas últimas décadas que
Idade Moderna. Seus produtos só podiam ser colhidos em pleno voo, por assim precederam a Revolução Francesa, os eventos e as personalidades são de um
dizer, contemplados em sua individualidade e reunidos em certas categorias tipo caracteristicamente novo” (163). Isso quer dizer que o período situado
muito amplas e gerais, exclusivamente para fins representacionais, embora não entre o Renascimento e a Revolução Francesa teve, em princípio, a mesma
narrativos. Não era fácil discernir onde começava e onde acabava. Seus produ­ espécie de coerência perceptível, embora basicamente indefinível, que marcou
tos eram como a crista das vagas quando quebram entre dois rochedos. Seria o próprio Renascimento. “Em relação aos notáveis primórdios do mundo
impróprio dizer que acabava, porque simplesmente se deixava cair. Suas sub- moderno a época posterior a 1450 é uma continuação; em relação à era da
seqüentes e fracas pulsações (mudas, mas não completamente paralisadas) revolução é apenas o término de um período anterior e uma preparação para o
assemelhavam-se ao marulhar das ondas num quebra-mar de pedra, erguido de seguinte” (165). Também é um “entreato ou, melhor, um interlúdio” (Ibid.).
maneira quase perversa por voluntariosos homens de poder que pareciam Mas a Era da Revolução foi para Burckhardt, como tinha sido para
incapazes de conviver com a vibrante variedade, o brilho e a fecundidade dela. Tocqueville, “uma coisa nova e terrível”. A Revolução, escreveu ele, “destravou,
Esse quebra-mar, no entender de Burckhardt, era a Revolução Francesa, e era primeiro, todos os ideais e aspirações, depois todas as paixões e egoísmos.
feito do materialismo, do filistinismo e da banalidade da “Idade Moderna”. Herdou e praticou um despotismo que servirá de modelo a todos os despotismos
O quadro do Renascimento produzido por Burckhardt lembra uma com­ por toda a eternidade” (219). Não houve nada que se assemelhasse à tentativa
binação dos temas de uma pintura de Piero di Cosimo e Rafael, pintura banhada de Tocqueville de aquilatar “o que se ganhou e o que se perdeu” em consequên­
na luz fatigada de Burne-Jones e Rossetti. O tom é elegíaco, mas os temas do cia do nascimento dessa coisa nova e terrível. Para Burckhardt tudo era perda.
quadro são a um só tempo selvagens e sublimes. O “realismo” do assunto Recordando o período em que Tocqueville escreveu, disse:
provém da recusa a esconder o que há de cru ou violento, mas durante todo o
tempo o leitor é levado a recordar as flores que cresciam nesse monte de esterco Sem dúvida nas três décadas em que nascemos e crescemos era possível acreditar que a
da imperfeição humana. A finalidade, porém, é irônica. Ao longo da obra, a Revolução era algo concluído, que por isso mesmo podia ser descrito objetivamente.
antítese tácita dessa época de realização e brilho é o mundo cinzento do próprio Naquele tempo apareceram esses livros, bem escritos e até clássicos, que tentaram apre­
historiador, a sociedade européia da segunda metade do século XIX. Compa­ sentar uma visão geral dos anos de 1789-1815, como se se tratasse de um período encerrado - não
rativamente, nem mesmo a Idade Média sofreu do mesmo modo que a Idade imparciais, sem dúvida, mas procurando ser justos e discretamente convincentes. Agora, porém,
sabemos que aquela mesma tempestade que abala a humanidade desde 1789 nos impele para a
Moderna sofre. O Renascimento era tudo o que o mundo moderno não é. Ou, frente também. Podemos afirmar nossa imparcialidade de boa-fé e no entanto inconscientemente
melhor, a Idade Moderna representa o desenvolvimento unilateral de todos ser apanhados em extrema parcialidade [225].
aqueles traços da natureza humana que foram sublimados numa grande reali­
zação cultural durante o período do Renascimento. A Idade Moderna é um Pois “a novidade decisiva que se introduziu no mundo através da Revolu­
produto de perdas humanas. Algo foi posto fora do lugar durante o período ção Francesa é a permissão e a vontade de mudar coisas, tendo o bem-estar
compreendido entre 1600 e 1815, e esse “algo” é a “cultura”. público como meta”. E o resultado foi a elevação da política à posição mais alta,
mas sem princípio algum a guiá-la, exceto a anarquia, de um lado, e a tirania,
do outro - “constantemente comprometida pelo desejo de revisão, ou como
A “SINTAXE" DO PROCESSO HISTÓRICO reação despótica após o colapso das formas políticas” (229).
A força motriz por trás dessa “demoninharia” era a “ilusão” da “bondade
Em suas aulas de história moderna, dadas na Universidade de Basiléia de da natureza humana” (230). “Mentalidades idealistas” haviam permitido a seus
1865 a 1885, Burckhardt considerou o século XVI um período de inauguração, “desejos e fantasias se banquetearem com uma visão radiante do futuro em que
que foi seguido, disse ele, por uma série de “metástases”, isto é, de súbitos o mundo espiritual estará reconciliado com a natureza, e o pensamento e a vida
deslocamentos irracionais de poderes e sintomas de um órgão ou parte do corpo seriam uma coisa só”, e assim por diante (231). Mas tudo isso é produto da
social para outro (Judgements, 66). Este conceito de “metástase” era uma “ilusão”, disse Burckhardt. Um realista não acredita nisso, e um historiador pelo
metáfora central na reflexão de Burckhardt sobre a história. Ele não se julgava menos sabe que o “desejo” não produz nada semelhante. O objetivo de Burck­
capaz de explicar essas transferências, ou deslocamentos; eram misteriosos. hardt era dissolver essas ilusões e reencaminhar a consciência humana ao
Suas causas não podiam ser especificadas, mas seus efeitos eram manifestos. reconhecimento de suas próprias limitações, de sua finitude e de sua incapaci­
Por isso é que, embora não se possa oferecer explicação definitiva da razão por dade até de encontrar a felicidade neste mundo (Ibid.). “Nossa tarefa”, disse
que a história se desenvolve como o faz, pode-se pelo menos decompor o ele, “em lugar de tudo desejar, é libertar-nos tanto quanto possível de alegrias
META-HISTÓR1A 261
260 HAYDENWHITE

Elas surgem de vibrações misteriosas comunicadas à alma. O que é liberado por essas
e temores descabidos e aplicar-nos ao entendimento do desenvolvimento histó­ vibrações deixa de ser individual e temporal e se toma simbolicamente significativo e imortal
rico” (231-32). Reconhecia a dificuldade dessa tarefa, pois a objetividade é a [TbW.].
mais difícil de todas as perspectivas na história, “a menos científica de todas as
ciências” {Force and Freedom, 199), tanto mais que, “tão logo nos damos conta Ao lado da vida prática representada pelo Estado e da vida ilusória
de nossa posição” em nosso tempo, “vemo-nos a bordo de um navio defeituoso representada pela religião, a cultura faz surgir uma “segunda criação ideal, a
que vai à deriva sobre uma onda entre milhões”. E, lembrava a seus ouvintes, única coisa perdurável sobre a terra, isenta das limitações da temporalidade
“também se poderia dizer que nós mesmos somos, em parte, essa onda” individual, uma imortalidade terrena, uma linguagem para todas as nações”
{Judgements, 232). O melhor que podemos esperar, pois, não é certamente a (128). A forma exterior dessa “criação ideal” é material e portanto está sujeita
profecia, mas o estabelecimento de nosso lugar dentro de um segmento da às devastações do tempo, mas basta um fragmento para sugerir “a liberdade,
história que começou com a Revolução; a forma que nosso entendimento da inspiração e unidade espiritual” das imagens que originariamente os inspira­
história deve tomar nada mais é do que a identificação da “onda do imenso mar ram. De fato, disse Burckhardt, o fragmento é “particularmente estimulante”,
tempestuoso sobre a qual vamos à deriva” (252)____ ____ porque a arte ainda é arte “mesmo no excerto, no esboço, na mera alusão”. E
Onda e metástase: essas duas imagens resumem a concepção burckhard- podemos, “com o auxílio da analogia”, adivinhar “o todo por seus fragmentos”
tiana do processo histórico. A primeira imagem sugere a noção de mudança {Ibid.).
constante, a segunda, a falta de continuidade entre os impulsos. Sua concepção A linguagem empregada por Burckhardt era a linguagem da ironia, tanto
não é cíclica; não há rejuvenescimentos necessários depois de uma queda (27). na forma em que era apresentada quanto no conteúdo para o qual ela dirigia a
Mas as quedas são necessárias, ou pelo menos inevitáveis em alguma ocasião. atenção, conteúdo julgado digno da mais alta estima. E a maneira burckhard-
O que precisa ser explicado na história são os momentos de esplendor e tiana de representar o Renascimento foi a do perito que contempla uma pilha
realização cultural; eles constituem o problema. de fragmentos recolhidos de uma escavação arqueológica, cujo contexto ele
A vontade de potência (a base da conquista política) e o desejo de adivinha “por analogia” ao observar a parte. Mas a forma do contexto pode ser
redenção ( a base do compromisso religioso) não precisam de explicação; são apenas indicada, e não especificada. É como as “coisas em si” que Kant
as bases fundamentais da natureza humana. E elas fluem e refluem constante­ sustentava que devemos postular a fim de explicarmos nossa ciência, mas sobre
mente, tanto em quantidade como em qualidade numa dada civilização. Em as quais não podemos dizer nada. A voz com que Burckhardt se diriga a seu
contraste com isso, afirmou Burckhardt, a cultura é tanto descontínua em seus público era a do ironista, do possuidor de um saber mais elevado, mais doloroso
momentos quanto incrementativa. Isto é, produz momentos qualitativamente do que o possuído pelo próprio público. Ele via seu objeto de estudo, o campo
iguais de esplendor e clareza de visão, mas um número infinito deles, e com um histórico, ironicamente, como um campo cujo significado é esquivo, indetermi-
efeito que alarga constantemente o espírito humano. Mas a cultura só pode nável, só perceptível para a inteligência refinada, sutil demais para ser tomado
florescer quando os poderes “coercivos”, o Estado e a religião, estão tão de assalto e sublime demais para ser desconsiderado. Ele apreendia o mundo
enfraquecidos que não lhe podem frustrar os impulsos mais íntimos, e quando dos objetos históricos como uma satura literal, uma salgalhada ou miscelânea,
as condições materiais são propícias a esse florescimento {Force and Freedom, fragmentos de objetos destacados de seus contextos originais ou cujos contextos
127). são incognoscíveis, capazes de ser agrupados de várias maneiras diferentes, de
simbolizar um grande número de diferentes sentidos possíveis, e igualmente
válidos. “Afinal”, disse ele em Força e Liberdade, nossas sínteses históricas são,
A “SEMÂNTICA"DA HISTÓRIA na maioria dos casos, meras construções intelectuais” (74). Podemos juntar os
fragmentos de mil maneiras, embora não devamos juntá-los de modo a acalentar
Isso é o que parece ter acontecido, na avaliação de Burckhardt, durante ilusões ou distrair a atenção do aqui e agora. A estória que ele contou foi irônica,
o Renascimento na Itália. Nenhuma explicação formal desse período de flores­ em estilo aforístico, a que não faltavam o anedótico e o descarte sumário (as
cimento cultural é oferecida, salvo a noção geral de cultura como momento revoluções de 1848 foram causadas peloennuíe, Napoleão foi derrotado por sua
eterno da natureza humana que desabrocha quando os poderes coercivos são própria “impaciência” etc.). A estrutura de enredo dessa estória era irônica; vale
fracos. Vale dizer, postula-se apenas uma condição negativa: porque a Igreja e dizer, o “ponto principal disso tudo” era que não havia “ponto principal” para
o Estado eram fracos na Itália ao mesmo tempo, e como resultado de uma o qual as coisas em geral tendem, nem epifanias da lei, nem reconciliação última,
disputa milenar que a ambos esgotara, a cultura encontrou espaço para germi­ nem transcendência. Em sua epistemologia, Burckhardt era um cético; em sua
nar, expandir-se e florir. Mas o próprio florescimento é um mistério, ou assim psicologia, era um pessimista. Sentia um prazer sombrio em oferecer resistência
parece. Pois as fontes da cultura têm suas origens nas vibrações mais profundas às forças que prevaleciam em sua época e ao rumo que, a seu ver, elas tomavam.
da alma humana, e isto se aplica especialmente às artes: Não tinha respeito algum pela “simples narração”, como dizia, porque não
262 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 263

somente se recusava a profetizar como “as coisas ocorrerão no final” (Judge- artefato com os meios em que surgiu. De fato, a decisão de Burckhardt de excluir
ments, 29), mas também porque nem mesmo via qualquer conclusão provisória qualquer abordagem das artes visuais de sua Civilização do Renascimento na
basicamente significativa no ambíguo intervalo entre um início incognoscível e Itália pode perfeitamente ter sido produto de seu desejo de desencorajar a idéia
um fim imprevisível. de que a grande arte dependia de maneira significativa das circunstâncias
Entretanto, se havia algo de constante no pensamento de Burckhardt, externas em que era criada.
eram os inimigos a que ele se opunha. Esses inimigos eram para ele, como para Em seus estudos sobre os artistas do Renascimento, Burckhardt esteve
todos os ironistas, as “ilusões”, e elas se manifestavam em duas formas princi­ sempre interessado em determinar até que ponto o conteúdo ou a forma de uma
pais: a redução metafórica, que dá origem à alegoria, e a simbolização excessiva, dada obra artística era produzido pelos interesses e pressões dos mecenas. E
que dá origem à metafísica. De fato, sua teoria formal da história, com a suas abordagens da arte medieval foram realizadas sob o pressuposto de que,
concepção da tríplice interação de cultura, religião e Estado, era realmente um embora um grande artista pudesse elevar-se acima dela, a arte gerada sob
reflexo de sua teoria da cultura, que consistia, em sua perspectiva, numa tríplice pressões extra-artísticas, como a religião e a política, é quase sempre uma arte
ação das sensibilidades alegórica, simbólica e histórica. Essa teoria da cultura, imperfeita.
que era a própria quintessência do tipo de realismo de Burckhardt, não foi É interessante observar que esse que é o menos “histórico” dos livros de
explicitada em nenhuma de suas obras formalmente teóricas, e provavelmente Burckhardt é o que superficialmente está organizado do modo mais completo
não era sequer admitida por ele como uma teoria. Mas estava presente, e foi com base em princípios cronológicos. O Cicerone divide-se em três partes,
apresentada de modo bastante claro, na seção sobre pintura italiana de seu arquitetura, escultura e pintura, que, de acordo com a estética de Schope-
Cicerone, um guia para a “fruição” das obras de arte da Itália, publicado em nhauer, descrevem uma hierarquia de “espiritualidade” ascendente (ver o
1855.
prefácio à Ia edição). Cada uma das seções é precedida por um estudo que
abarca desde o período clássico e paleocristão até o período do barroco, que
para Burckhardt se estendeu ao século XVIII. A estória narrada é a de uma
A ESTRUTURA DE ENREDO DA “SATURA” gradativa elevação, até a condição de excelência representada pelo alto Renas­
cimento, e da subseqüente queda ou dissolução da harmonia e do equilíbrio
Burckhardt exprimiu-se de maneira mais direta, menos autoconsciente, alcançados ali em todos os três campos. Os períodos terminais, porém, são
como historiador na qualidade de apreciador da arte, e em especial da arte caracterizados em termos antes patéticos que trágicos. O tom ou estado de
italiana. Esse era o assunto mais grato a seu coração, e em seu guia da arte da espírito das passagens finais de cada uma das três partes é elegíaco, melancólico.
Itália, O Cicerone, subintitulado Guia para Fruição das Obras de Arte da Itália A seção dedicada à arquitetura termina por uma descrição de “vilas e jardins”
(Eine Anleitung zum Genuss der Kunstwerke Italiens) (1855), escrito no ano (especificamente, uma breve descrição das vilas do lago de Como); a de
seguinte ao da publicação de sua mais importante produção histórica, A Era de escultura finda com um exame da obra de Canova (explicitamente, o monumen­
Constantino, o Grande (1852), Burckhardt revelou-se no melhor de sua forma to funerário de Clemente XIV); e a seção sobre pintura se encerra com reflexões
- e plcnamente engagé. O Cicerone deu a Burckhardt a oportunidade de sobre as paisagens de Poussin e Claude Lorraine (especialmente, suas paisagens
entregar-se a reflexões diretas e sumamente pessoais sobre objetos históricos da Campanha Romana).
de um modo que as reflexões sobre a vida do passado não lhe permitiam A seção sobre arquitetura exerceu o impacto mais imediato sobre o
entregar-se. Todo o universo dos produtos artísticos apresentava-se diretamente público de Burckhardt, mas a seção sobre pintura é a mais reveladora dos
a ele como objetos de percepção; seus conteúdos ou significados não eram princípios de sensibilidade histórica e narração que o próprio Burckhardt
mediatizados pela linguagem, pelo menos não o eram pela linguagem verbal. aplicou aos dados da história em geral. As fases paleocristã e bizantina da arte
Não precisava adivinhar o que o meio dizia antes de passar a considerar seu ocidental foram consideradas inferiores em virtude das tendências para a “mera
significado. Para Burckhardt, no que dizia respeito a objetos de arte, o meio e repetição mecânica” que o dogma e a autoridade impunham aos artistas do
a mensagem eram - ou deviam ser - literalmente indistinguíveis. Bastava apenas tempo. A arte do período romanesco foi considerada primordialmente mítica
defrontar o objeto de prte em sua integridade e extrair dele sua coerência e simbólica, se bem que indícios de uma saúde essencial estivessem contidos,
formal. Idêntica operação sobre a história em geral não era possível, pensava segundo a avaliação de Burckhardt, na aparência de um estilo “narrativo
Burckhardt, porque os próprios documentos poderiam ser formalmente coe­ simples” (The Cicerone, Clough (Org.), 18). O período gótico da arte italiana
rentes sem comportar qualquer relação essencial com a natureza dos aconteci­ (distinto de seu equivalente setentrional) foi apresentado como sinalizador do
mentos que pretendiam representar. Os objetos dc arte eram auto-referentes, nascimento do naturalismo que floresceu no Renascimento. A pintura estava
e embora o caráter, a índole, o estilo, dc uma época pudessem estar refletidos livre da servidão à arquitetura; e, embora continuasse a serviço da religião,
neles, para fruí-los não era necessário considerar o problema das relações do estava liberada para desenvolver suas inconfundíveis potencialidades de repre­
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sentação, especialmente em Giotto, que era visto por Burckhardt como a base de, e usadas isoladamente em conexão com alegorias. (...) (Dante também faz o maior uso desse
na qual as altas realizações de Michelangelo e Rafael finalmente tomaria forma. modo de representação.) Tais figuras (...) continuam a ser meras curiosidades; dão a medida do
conhecimento histórico ingênuo da época [39-40].
O trabalho de Giotto não foi definido em primeiro lugar em função de um
objetivo de “expressar a beleza ideal” ou em função de seu “poder de execução
realista”, coisas em que foi superado por artistas contemporâneos e modernos Em suma, ele pôs a ingenuidade do saber histórico da época em confronto
(32). Distinguia-o, sobretudo, a capacidade de “narrador”, de contador de com as tendências para uma caracterização metafórica do mundo. E mostrou a
estórias. Giotto “contribuiu com o que faltava para tornar a estória clara, medida do impulso de escapar à armadilha da metáfora no desenvolvimento,
simples e bela” (33). Giotto, portanto, mostrou-se a Burckhardt como um por parte de Giotto, de um estilo de representação especificamente “narrativo”.
mestre da cena histórica, narrador dos acontecimentos da vida de Cristo, São Não se deve, porém, confundir o elemento alegórico numa obra de arte
Francisco e da Igreja que a gente de sua época julgava serem ocorrências com o elemento simbólico. O simbolismo é necessário, indicou Burckhardt, para
históricas reais. As figuras dos grandes afrescos e painéis de Pádua, Assis e de a expressão de “idéias sublimes” que “não podem corporificar-se em qualquer
outros lugares existem com o único objetivo de ilustrar uma estória (35); não composição meramente histórica e se voltam então para a arte em busca de sua
funcionam fundamentalmente como ícones. Não aludem nem se referem a algo mais alta representação”. A obra de arte que tentar expressar essas “idéias
fora delas. Tudo nelas existe em benefício da estória que está sendo contada, sublimes” será portanto “mais impressionante na medida em que contiver
visam contribuir para a explicação da ação no quadro (Ibid.). Sem dúvida, o menos alegoria e mais nítida ação vivificante” (40).
elemento alegórico não está completamente eliminado da arte de Giotto, como Essas idéias sublimes têm a ver com “tudo o que está associado ao mundo
não está eliminado da arte de Dante; e justamente na medida em que persistia de além-túmulo” e, acrescentou ele, para além das “profecias” do Evangelho e
é que, do ponto de vista de Burckhardt, se debilitava, exposto aos perigos da do Apocalipse, os gêneros de considerações que informam a Comédia de Dante.
alegoria, dos quais quase não lograra escapar. Esse elemento alegórico, com Mas, advertiu Burckhardt, esse interesse nas idéias sublimes deve ser mediati-
sua tendência para a corrupção metafórica do tema, constituía, na avaliação de zado por um interesse pela “representação artística de incidentes isolados”.
Burckhardt, a ameaça à arte do Renascimento. Rafael foi o supremo represen­
tante do Renascimento porque dominou o elemento alegórico em sua arte, o O sentido simbólico da Divina Commedia (...) só é válido como literatura c história, não
como poesia. O valor poético repousa inteiramente na soberba representação artística de inciden­
utilizou para seus próprios fins em vez de se deixar prender por ele. Para
tes isolados, no cadenciado estilo grandioso através do qual Dante se tomou o pai da poesia
Burckhardt a alegoria representava submissão ao elemento “mistério” (39) que ocidental [JfcW.].
é, por sua vez, uma falha de “visão”, isto é, de percepção (Anschaueri).
A história da arte ocidental, portanto, é vista a desenvolver-se dentro de
uma tríplice tensão gerada pelas tendências para a representação alegórica,
AANTIMETÁFORA histórica e simbólica. E o estilo do Renascimento, afinal, é visto como produto
da gradual dissolução do impulso alegórico, ou metafórico, de sua tradição,
A marca do triunfo do misterioso sobre o esforço de perceber com clareza impulso que foi sustentado pela “tendência teológica” da civilização medieval.
a realidade e transmiti-la íntegra é a metáfora, que, na opinião de Burckhardt, Uma vez suprimida essa tendência teológica, a grande arte do Renascimento
sempre destrói a arte e a verdade. Assim, disse ele em seus comentários sobre podia entregar-se à tensão criadora entre dois tipos de representação, as idéias
Giotto: sublimes por um lado (atividade simbólica) e a narração (atividade “histórica”)
por outro.
Representar o voto de pobreza como um casamento com ela é uma metáfora, e uma obra
de arte não deve nunca fundar-se numa metáfora, isto é, numa idéia transladada para uma nova
realidade fictícia, que produz um resultado necessariamente falso numa pintura. (...) Tão logo as
figuras alegóricas são postas em ação, nada se pode fazer sem a metáfora, e com ela nascem O REALISMO COMO IRONIA
verdadeiros absurdos [Ibid.].
A eliminação da metáfora, mesmo guardando fidelidade à dupla tarefa de
Burckhardt sugeriu um pouco mais adiante que todo o triunfo do Renas­ narração histórica e simbolização de “idéias sublimes”, constituiu a essência do
cimento podia caracterizar-se em função de sua intuição dos perigos das “realismo” renascentista. Burckhardt começou seu estudo da arte do Quattro-
figurações metafóricas do mundo. cento com uma análise desse elemento realista, expresso no desejo de represen­
tar detalhes da forma humana (em contraposição à tentativa de representar o
A insuficiência de toda alegoria não podia deixar de se fazer sentir na arte. Como comple­ tipo), na expansão e movimento da figura humana em ação, e na descoberta das
mento produziram-se as representações de idéias abstratas geralmente procedentes da Antiguida­ leis da perspectiva (57-58). Tudo isso era resultado, não de dependência quanto
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a modelos antigos, mas sobretudo do estudo da natureza (58). Mas esse interes­ da Gioconda (perturbador para Burckhardt) e refletia uma reversão à alegoria
se pela realidade externa não se exercitava num vácuo; desenvolvia-se na plena (114). Em Michelangelo, por outro lado, o elemento “histórico” tendia a dar
consciência daquelas “idéias sublimes” que permitem ao “tato” estabelecer lugar ao simbólico. Tudo era demasiado sublime; não havia contrapeso para
limites para o “fantasioso”: isso, nenhum detalhe concreto “de tudo aquilo que nos toma cara a vida”, daí
resultando que, em sua obra, “o simplesmente sublime e belo na natureza” era
[O Renascimento] possuía, como dom original do céu, o tato indispensável para imitar a “exagerado” (123).
realidade externa não em todos os detalhes, mas só na medida em que a verdade poética superior O que faltava à pintura de Michelangelo, como Burckhardt deixou claro
não fosse prejudicada por isso. Ali onde há excessiva riqueza de detalhes há superabundância de em seu estudo sobre os afrescos da Capela Sistina, era “história” (125). Isso ao
arquitetura e decoração, e de belos estofos, não dos prosaicos acidentes da vida externa. A mesmo tempo lhe conferia “grandeza” e assinalava o aparecimento do iminente
impressão, portanto, não é de lassidão, mas de esplendor. Poucos apresentam as partes essenciais
declínio após a perfeição da arte de Rafael. A falta de tato de Michelangelo
de maneira suntuosa e nobre; muitos se perdem no fantasioso, que é a tendência geral do século
XV, mas a imponência geral das formas dá a suas fantasias um caráter requintado e mesmo evidenciava-se no seu Juízo Final, que, deu a entender Burckhardt, não era um
deleitável [59]. assunto digno de representação, quer quanto à possibilidade, quer quanto à
desejabilidade (Ibid.). “Michelangelo deleita-se no prazer prometéico de dar
vida a todas as possibilidades de movimento, postura, escorço, agrupamento de
Aí está a definição de Burckhardt do tipo mais desejável de “realismo”,
forma humana pura” (126). Essa era a tendência que se manifestava, como
o tipo de realismo que ele gostaria de reivindicar para seus próprios estudos
históricos, concebidos como obras de arte à maneira renascentista. Esse realis­ defeito, no maneirismo (128). E, no fim de contas, o juízo de Burckhardt sobre
Michelangelo foi, apesar de lhe prodigalizar todos os elogios devidos a um
mo aparecia em perfeito contraste com seus congêneres do século XIX, que, na
sua opinião, consistiam apenas num vulgar interesse pela reprodução fotográ­ gênio, um juízo negativo. “Depois de sua morte todo e qualquer princípio em
fica dos detalhes e não se pautavam por uma norma geral de devoção às “idéias todas as diversas artes estava demolido; todos queriam alcançar o absoluto
porque não entendiam que o que nele parecia incontrolado, na verdade tomava
sublimes”. Assim, num desmentido às suas invectivas contra a “filosofia da
história”, sua própria concepção de historiografia realista reclamava uma con­ forma por emergir do mais profundo de sua personalidade” (Ibid.).
cepção geral precisa, ainda que reprimida, da natureza da realidade, bem Dir-se-ia então que o gênio de Leonardo extraviou-se (se tal é possível)
distinta de qualquer conhecimento de detalhes concretos e, contudo, sublima­ no rumo do fantasioso, enquanto o de Michelangelo extraviou-se no rumo do
da, pela qual se pudesse conferir a uma obra histórica uma coerência formal simbolismo. Em Rafael, por outro lado, o fantasioso foi eliminado e registrou-se
desejável. Se bem que ele se recusasse a apresentar essa concepção geral como o equilíbrio perfeito entre simbolismo e história. “Em Rafael o pormenor
uma teoria formal, a não ser do tipo mais vago, ela constituía, apesar disso, o impressiona tão poderosamente que se pensa que é a parte essencial; no
limite à sua apreensão dos fatos da existência histórica, de modo que fosse entanto, a beleza do todo é infinitamente o ponto mais característico” (139).
alcançado um realismo discreto, um realismo que não degenerasse no “fanta­ Mas o senso do todo era uma perfeição formal, não um simbolismo tosco. Nos
sioso”. Como a própria arte do Renascimento, a historiografia de Burckhardt primeiros retratos florentinos, disse Burckhardt, Rafael já se revelava um
se desenvolveu no meio-termo entre simbolismo e narração. Sua principal “grande pintor histórico” (Ibid.). Mesmo em seus quadros da Virgem, afirmou
inimiga era a metáfora e a forma que a metáfora assume na representação da Burckhardt, Rafael “usa sempre tão pouco simbolismo quanto possível; sua arte
realidade, a alegoria. não depende de associações que estão além da esfera da forma, tão absoluto já
O Renascimento, disse Burckhardt, “surge de repente” no Cinquecento, era o domínio que tinha da expressão do simbólico no lugar apropriado, como
“como um relâmpago, (...) como uma dádiva do céu. O tempo era chegado. (...) demonstram os afrescos do Vaticano” (143). Ainda em>l Visão de Ezequiel,
Os grandes mestres agora colhem verdades eternas para imperecíveis obras de Rafael tomou um assunto de há muito convencionalizado na arte medieval e
arte. Cada um faz o que quer, de modo que uma beleza não exclui a outra, mas “transformou-o no espírito da maior beleza, tanto quanto lhe permitia a vulga­
todas juntas compõem uma revelação multiforme do altíssimo”. Sem dúvida, ridade do símbolo” (144). Nos afrescos da Camera delia Segnatura no Vaticano,
como acontece com todas as coisas belas, “o tempo da plena florescência é na finalmente, Rafael fez uso de temas alegóricos e históricos que lhe foram
verdade muito breve. (...) Podemos dizer que a curta vida de Rafael [1483-1520] impostos pela tradição e a autoridade, separou-os para tratamento individual -
testemunhou a ascensão de tudo o que foi mais perfeito, e que imediatamente de modo a evitar que se misturassem no olho do observador - e depois
depois dele, mesmo com os maiores que a ele sobreviveram, começou o declínio representou as cenas históricas de maneira que se ajustassem a seu gênio
(Hl). peculiarmente equilibrado.
Esse declínio já fora assinalado na obra de dois grandes contemporâneos As figuras da Disputa, por exemplo, são “tratadas de acordo com motivos
de Rafael: Leonardo e Michelangclo. O primeiro tornara-se excessivamente puramente pictóricos. São quase totalmente figuras pertencentes a um passado,
dependente do “auxílio da paisagem”, que produzia aquele “efeito sonhador” mais ou menos distante, que já haviam deixado de viver salvo na lembrança
268 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 269

idealizadora” (150). A Escola de Atenas é inteiramente “sem mistério”, o fundo Em todos os tentames de caráter ideal essa pintura moderna não atinge os objetivos mais
sendo um “símbolo conscientemente intencional da saudável harmonia entre as altos, porque visa a uma representação e ilusão demasiado direta, c no entanto, como produto de
potências da alma e da mente”, e o arranjo das figuras sendo uma “completa um período tardio de cultura, não pode ser sublime somente com ingenuidade. Procura tomar real
harmonia dos motivos pitorescos e dramáticos” (151). A Camera delia Segnatu­ tudo aquilo que existe c acontece; julga que esta é a primeira condição de todo efeito, sem levar
ra, concluiu Burckhardt, “é a primeira obra de arte de grandes proporções em conta o sentimento íntimo do espectador, que está acostumado a buscar emoções de tipo bem
inteiramente harmoniosa na forma e idéia” (152). E, em sua caracterização geral diferente [ 235].
de Rafael nesse período, Burckhardt revelou sua idéia definitiva de perfeição
artística: Burckhardt analisou os defeitos específicos da escola moderna sem
simpatia ou tolerância. Nos quadros narrativos inclui-se o que houver de
Rafael é o primeiro em quem a forma é inteiramente bela, nobre e ao mesmo tempo “impressivo” (237), e em geral isso redunda em simples “vulgaridade”, como
intelectualmente viva, sem prejuízo do efeito do todo. Nenhum pormenor se salienta, é demasiado no Santo Tomás de Guercino (240). Na pintura histórica, disse Burckhardt,
conspícuo; o artista compreende exatamente a vida delicada de seus grandes temas simbólicos e tudo recua diante de um interesse sangrento pelos martírios, e quanto mais
sabe com que facilidade o interesse especial prevalece sobre o todo. E apesar disso, suas figuras “naturalista” melhor. Falando da Medusa de Caravaggio, disse Burckhardt
isoladas se tornaram o mais valioso objeto de estudo de toda a pintura subsequente [152-53].
que o elemento horror é tal que suscita mais repugnância do que emoção
profunda (241). Assuntos sacros são apresentados no “bom estilo e nas
Nos grandes ciclos da Stanza di Eliodoro, da Stanza dellTncendio e da Sala formas comedidas da sociedade contemporânea” (242). A expressão exclu­
di Costantino, ndiSLogge do Vaticano e nos cartões para as tapeçarias, continuou sivamente, e não a forma, é utilizada para representar as emoções (243);
Burckhardt, os poderes de Rafael como historiador e dramaturgo se consolida­ mulheres desfalecentes predominam nas representações de êxtases e glórias,
ram e aprofundaram. Acima de tudo, em sua versão da Batalha de Constantino, e os assuntos mais sagrados e profanos se fundem, empapados no mesmo
Rafael captou com perfeita vividez e idealidade o que Burckhardt denominou naturalismo supersensual (249). Para Burckhardt, a pintura de gênero,
“momento histórico ideal” (157). Trabalhando sob as ordens do papa, premido criada por Caravaggio, tendia a ser “repulsivamente jocosa ou horrivel­
por exigências de tratamentos específicos de temas e figuras, Rafael soube mente dramática” (252). Só na paisagem o gênio se expressava de forma
utilizar todos os condicionamentos internos e externos em proveito do seu gênio. plena e direta, embora a paisagem italiana imortalizada no estilo moderno
Mantendo-se fiel simultaneamente à história e à arte, criou obras de beleza e fosse em sua maior parte uma criação de artistas não-italianos. Em Poussin
eterno interesse para os olhos. “A alma do homem moderno não conta, na região e nos que o seguiram, disse Burckhardt, vê-se “uma natureza virgem, em
da forma bela, com mestre e guardião mais excelso do que ele”, concluiu que os traços do trabalho humano só aparecem como arquitetura, sobre­
Burckhardt, “pois o objeto de arte antiga só chegou até nós como ruína, e seu tudo como ruínas de tempos antigos, também como simples choupanas. A
espírito não é nunca o nosso espírito” (164). Foi a capacidade de Rafael de se raça humana que imaginamos ou vemos representada ali pertence ou ao
manter fiel simultaneamente ao senso histórico e ao senso estético, insistiu velho mundo da fábula, ou à história sagrada ou à vida pastoril; de modo
Burckhardt, que fez dele um gênio quintessencialmente “moral”, mais do que que a impressão total é pastoral heróica” (257). Claude Lorraine, final­
meramente “estético”. E a avaliação desse artista ideal terminou, de modo mente, pintou uma natureza que falava numa voz própria para “consolar
tipicamente burckhardtiano, com uma nota elegíaca: a raça humana”. E, concluiu Burckhardt, o guia para fruição da arte
italiana, “para quem se enterra em seus quadros (...) nenhuma palavra
Esse predicado moral tê-lo-ia acompanhado até a velhice, caso tivesse vivido mais. Se mais é necessária” (Ibid.).
considerarmos o colossal poder de criação dos seus derradeiros anos, sentiremos o que, ficou
perdido para sempre com sua morte prematura [Ibid.J.

Depois dessa homenagem a Rafael, a estória da arte italiana de Burck­ HISTÓRIA E POESIA
hardt é a de um declínio ininterrupto. Ticiano e Tintoretto apresentaram altas
qualidades, cada um a seu modo, mas a queda na mediocridade e vulgaridade “A rivalidade entre história e poesia”, disse Burckhardt em Força e
era inexorável. Burckhardt encontrou numerosos outros exemplos de elevada Liberdade, “foi defmitivamente resolvida por Schopenhauer. A poesia faz mais
artesania, de talento numa ou noutra direção, mas nada que finalmente detives­ pelo conhecimento da natureza humana (...) [e] a história deve à poesia a
se o movimento para a decadência que redundou no que chamou de “escola compreensão da natureza da humanidade como um todo.” Além disso, o “fim
moderna”. para o qual [a poesia] é criada é muito mais sublime do que a história” (136).
O atributo dominante da escola moderna, em sua opinião, era a tendência Mas isso claramente significa que a poesia proporciona os princípios pelos quais
para o realismo vulgar. as visões históricas dos acontecimentos em sua particularidade se relacionam
entre si para formar uma interpretação que é mais ou menos adequada à
META-HISTÓRJA 271
270 HAYDEN WHITE

representação do conteúdo íntimo ou da forma essencial daqueles aconteci­ O rápido delineamento de um campo e das figuras que o ocupam sugere
mentos. E Burckhardt não deixou dúvida alguma de que os documentos mais as ágeis pinceladas dos pintores impressionistas, em que a impressão resulta de
informativos de qualquer civilização, os documentos em que sua verdadeira um simples registro de percepções separadas que no total formam um tema,
natureza recôndita mais nitidamente se revela, são poéticos: “A história encon­ não uma tese (184). A estrutura do parágrafo inteiro, como a estrutura das
tra na poesia uma de suas fontes não só mais importantes mas também mais seções que compõem as partes, e das próprias partes, é paratática. Parece haver
puras e belas” (Ibid.). uma consciente supressão de todo impulso para a construção hipotática dos
Mas a ameaça à expressão poética pura é a mesma que paira sobre o eventos de modo a sugerir um argumento. A seção que se segue, sobre o tema
“realismo” discreto. Pois, embora a poesia, na avaliação de Burckhardt, tenha de “A Descoberta do Homem”, tem uma tese explícita e foi rotulada como tal
originariamente aparecido “como a voz da religtòo”, logo se tornou o veículo de por Burckhardt (185), mas ele sedutoramente admitiu que “os fatos que citare­
expressão da própria “personalidade” do poeta (139). Esse rompimento com a mos em abono de nossa tese serão poucos em número”. Nesse ponto, ele disse:
religião por parte da poesia representou, para Burckhardt, uma aspiração da
O autor está cônscio de que está palmilhando o perigoso terreno da conjectura, e (...) de
vontade humana para o sublime, que teve seu ponto alto no drama ático de
que o que lhe parece uma clara, ainda que delicada e gradual, transição no movimento intelectual
Ésquilo e Sófocles, cujo objetivo “era fazer falar figuras ideais com a voz de toda dos séculos XIV e XV, pode não ser igualmente evidente para outros. O gradativo despertar da
a humanidade” (142). Contrastando com isso, a poesia da Idade Média era alma de um povo é um fenômeno que pode produzir impressão diversa em cada espectador. O
“parte da liturgia e obrigada a seguir um relato definido”, ao passo que a da tempo decidirá qual dessas impressões é a mais fiel [Ibid.].
Idade Moderna era sacudida pelos impulsos de uma “ ‘moralidade’ alegórica e
satírica” (143). A seguir, depois de numerosos exemplos do novo espírito expresso na
A historiografia de Burckhardt “não pretende ser sistemática”; seus poesia, Burckhardt resumiu a impressão do todo: “Assim, o mundo do senti­
quadros históricos, ele admitia francamente, eram “meros reflexos de nós mento italiano surge diante de nós numa série de quadros claros, concisos e
mesmos” (74-75). Mas é bem evidente que ele considerava as percepções que extremamente eficazes em sua brevidade” (187). É óbvio que Burckhardt estava
a narração histórica pode oferecer à consciência como sendo essencialmente contrapondo não apenas suas “impressões” às impressões de outros, mas
da mesma natureza daquelas da poesia adequadamente escrita. A história, também seu senso do sublime a outros mais imperfeitos. Mas ao invés de
como a poesia, e mais ainda como a poesia visual de Rafael, evita os perigos da defender sua posição com argumentos, ele se limitou a afirmá-la. Sua força
excessiva alegorização por um lado e do excessivo simbolismo por outro. Isso como explicação do que acontecia no campo histórico para o qual dirigia nossa
de fato se reduz a um ataque a todas as formas de caracterização metafórica atenção era uma função da sensibilidade poética do próprio Burckhardt, sensi­
dos objetos que ocupam o campo histórico e dos relacionamentos que presu­ bilidade que, segundo ele, se libertara definitivamente da metáfora como dis­
mivelmente prevalecem entre esses objetos. E essa atitude antimetafórica é a positivo de descrição e explicação. Era a antítese da concepção romântica da
quintessência da ironia de Burckhardt, como é a quintessência da atitude de poesia e da história, e em suas expressões mais puras resistia à tentação de se
todo ironista. Por isso vemos a aparente “pureza” do estilo de Burckhardt. É entregar não só à metonímia mas também à sinédoque.
ele rico em orações declarativas simples, e a forma verbal mais freqüentemente A teoria burckhardtiana da ascensão e queda da arte do Renascimento
escolhida, quase até o ponto de expungir a voz ativa das caracterizações de oferece indicações decisivas de sua concepção da historiografia como obra de
eventos e processos feitas por Burckhardt, é a simples copulativa. Seus parágra­ arte. As duas ameaças à arte da história eram para ele as mesmas que atormen­
fos representam variações virtuosísticas sobre a simples noção de ser. Um trecho taram a arte do Renascimento: alegoria e simbolização - a dedução de impli­
escolhido ao acaso, da seção sobre “A Descoberta do Mundo e do Homem”, cações morais dos fatos históricos por um lado e a sublimação da realidade
do livro A Civilização do Renascimento, ilustra o que tenho em mente: concreta em sinais de forças espirituais intemporais por outro.yl Cidade de Deus
de Santo Agostinho representava a primeira ameaça, a redução de eventos
A segunda grande época da poesia italiana, que se seguiu ao fim do século XV c começo do históricos ao estatuto de manifestações de forças morais que se presume dirijam
século XVI, assim como da poesia latina do mesmo período, é rica de provas do poderoso efeito
o universo. O livro de Agostinho representava a escravização da consciência
da natureza sobre a mente humana. O primeiro relance de olhos aos poetas líricos daquele tempo
bastará para nos convencer. Descrições minuciosas da paisagem natural, é verdade, são muito raras, histórica a um dos “poderes coercivos”, neste caso a religião, embora a história
pela simples razão de que, nessa época movimentada, as novelas e a poesia lírica e épica tinham escrita a serviço de uma ideologia específica também se qualificasse perfeita­
mais com que se ocupar. Boiardo e Ariosto pintam a natureza com todo o vigor, mas com a maior mente como exemplo de historiografia “alegórica”. Do outro lado, Hcgcl
parcimônia possível, e não se esforçam por apelar com suas descrições para os sentimentos do representava os perigos da excessiva simbolização, da dissolução de eventos
leitor, que se empenham em atingir exclusivamente com sua narrativa e suas personagens. Os históricos concretos com vistas à promoção de algum sistema formal, metafísica
epistológrafos c os autores de diálogos filosóficos constituem, de fato, melhor indício do crescente
amor à natureza do que os poetas [183].
por natureza, pelo qual todos os acontecimentos seriam despojados de sua
particularidade e traduzidos em membros de classes, gêneros e espécies. A
272 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 273

genuína historiografia, como a arte de Rafael, representava uma subordinação obras históricas, mas ela estava geralmente reservada para a caracterização dos
dos impulsos alegóricos e simbolizantes presentes na consciência do historiador grandes momentos da hegemonia da cultura sobre os poderes coercivos do
às necessidades da exposição “realista”. Esse “realismo”, por sua vez, era Estado e da Igreja, ou da política e da religião. Há uma consistência e coerência
concebido como tendo dois componentes: a apreensão do campo histórico interna entre as partes de uma obra de arte perfeita - e de uma vida individual
como um conjunto de eventos discretos, dos quais não há dois que se asseme­ vivida como uma obra de arte - que se coloca cm oposição direta ao modo de
lhem com precisão; e a compreensão dele como um tecido de relações. O senso relacionamento da própria cultura com a política e a religião. Este relaciona­
de estrutura devia parecer-se com o palco em que Rafael colocou suas figuras mento é concebido metonimicamente, como um estado fraturado, um estado
na Escola de Atenas ou na Batalha de Constantino ou na Missa de Bolsena. de cisma e conflito de interesses, uma luta irremissível de forças que têm suas
Mesmo aqueles períodos em que prevalecia a força bruta, quando a cultura era origens nas profundezas da natureza humana e são, em última análise, misterio­
escrava da política, têm certa coerência formal quando narrado pelo mestre sas em suas operações. Só é possível lidar com os produtos desse conflito
historiador, como o senso da forma que nasce da contemplação do Incêndio do “fenomenologicamente”, como se diria hoje. Pode-se escrever a “história”
Burgo, que é todo movimento e agitação aparentes, mas é na realidade uma desses produtos na forma de uma “narrativa”, mas essa narrativa não descreverá
obra-prima de coerência formal, tanto em suas partes como no todo. Mas os uma linha de desenvolvimento conducente a uma redenção, uma reconciliação,
diferentes períodos do processo histórico são tão destacáveis uns dos outros ou uma epifania da lei que é salutar em virtude de sua revelação.
quanto os vários quadros que Rafael pintou. Cada quadro é diferente, quanto A estória que Burckhardt contou do passado foi sempre a estória de uma
ao conteúdo e quanto ao problema formal que sua composição resolveu. Os “queda” da alta realização para a servidão. Tudo o que sobra para a conside­
critérios são estritamente estéticos. Os elementos de uma descrição histórica ração do historiador, depois que ocorre essa “queda”, é o artefato histórico,
podem ser tão variados como os elementos de qualquer pintura “histórica”. Não concebido como “fragmentos” e “ruínas”, cujo pathos deriva do grito contido
há regras para determinar o que deve entrar na descrição como seu conteúdo, dentro deles a favor da “busca do tempo perdido”. Essa busca do tempo perdido
se bem que o historiador não possa, naturalmente, inventar as personagens mais é a única obrigação do historiador. Não se exige dele que imponha aos fragmen­
do que Rafael se permitiu fazer na Batalha de Constantino. O que o historiador tos fábulas capazes de inspirar heroísmo no presente. Não lhe é permitido
“inventa” são as relações formais que prevalecem entre os elementos da descri­ “dramatizá-los” de modo a instigar a fé na capacidade curativa da ação social
ção. Esses elementos se relacionam como evento com o contexto, antes que cooperante. E lhe é especificamente vedado procurar as leis gerais do processo
como microcosmo com o macrocosmo. Não é possível distinguir com precisão histórico e cósmico que pudessem dar às gerações vivas alguma confiança na
absoluta entre um evento e seu contexto mais do que é possível distinguir entre própria capacidade de reanimar seus debilitados poderes e levar adiante a luta
o Incêndio do Burgo e os elementos pintados na interpretação do fato dada por por uma humanidade autêntica.
Rafael. E, nem é preciso dizer, das “causas” que fazem com que um aconteci­ Burckhardt declarou encontrar na história uma sugestão das verdades da
mento seja o que é não se chega mesmo a cogitar. tragédia, mas sua concepção da tragédia era a de Schopenhauer. A única moral
que ele pôde formular foi a conclusão desalentadora de que “era melhor não
ter nascido”. Ou, no mínimo, fez da alegria da vida uma possibilidade apenas
CONCLUSÃO para os homens de épocas passadas, e, ainda assim, só de algumas épocas
passadas. Admitia a possibilidade de um renascimento da cultura no futuro, mas
não alimentava nenhuma esperança de que os homens pudessem contribuir
Seja qual for a teoria formal da explicação histórica que Burckhardt nos
ofereceu, é ela somente uma teoria da “moldura” em que os acontecimentos para esse renascimento através de qualquer ação positiva que realizassem no
históricos se desenvolvem. Não é uma teoria do relacionamento entre os acon­ presente. Previu para o futuro imediato uma série de guerras entre os vários
tecimentos e a própria moldura. Ou, melhor, a teoria do relacionamento representantes da realidade política corrente, guerras de que não esperava que
funda-se na apreensão da impossibilidade de distinguir finalmente entre um resultasse nada de positivo. Sua visão do futuro era a mesma de Spengler,
acontecimento e a moldura histórica mais ampla em que ele ocorre. Essa teoria embora Burckhardt tivesse chegado a ela por outros meios. A única decisão que
é contextualista, pois supõe que uma explicação dos acontecimentos históricos a alma sensível podia tomar era recolher-se, cultivar seu jardim, buscar o tempo
está dada quando os vários fios que compõem a tapeçaria de uma era histórica perdido e esperar que a loucura presente se dissipasse por ela mesma. Depois,
quem sabe, do outro lado do holocausto, a cultura mais uma vez poderia ser
estão diferenciados e as conexões entre os eventos, que fazem do campo
revigorada. Por enquanto, nada havia a fazer senão deixar a cidade pelo campo,
histórico um “tecido”, estão expostas. O relacionamento entre um acontecimen­
to e seu contexto não é, porém, de tipo sinedóquico, aquele da relação da parte esperar, cultivar a conversa com alguns seletos espíritos afins e um consistente
com o todo concebida como uma relação do microcosmo com o macrocosmo. desdém pelas atividades dos homens “práticos”.
É verdade que Burckhardt empregou essa linguagem com freqüência em suas
274 HAYDENWHITE
Parte 111
O pessimismo de Burckhardt ocultava um germe de fé no potencial
criativo básico da humanidade. Ele amava demais a vida para negar completa­ 0 REPÚDIO DO “REALISMO”
mente o ideal de cultura que lhe tinha vindo do Iluminismo. Como observou
Croce, a fraqueza de Burckhardt era moral, não intelectual. “Como em todos NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
os pessismistas”, escreveu Croce, “havia em Burckhardt um fundo de eudemo- DO FINAL DO SÉCULO XIX
nismo insatisfeito” (History as the Story of Liberty, 96 [trad. bras., A História:
Pensamento eAção, 86]). E foi isso que o fez querer fugir do mundo em vez de
enfrentá-lo e atuar nele para salvar aquelas coisas que mais prezava nele. É
talvez por isso que tanto os seus livros como a sua vida foram concebidos como
“obras de arte” em defesa de “obras de arte”. Entretanto, apesar de todo o seu
esteticismo, Burckhardt foi muito mais do que um simples diletante. Sua sensi­
bilidade às tensões e pressões de sua época fizeram dele um extraordinário
analista dos fenômenos de declínio cultural. Ele diferia do esteta pelo desejo de
justificar sua fuga do mundo em termos de história mundial. Acreditou ter visto
o rumo para o qual o mundo tendia, mas faltou-lhe a vontade necessária para
se opor àquela tendência de maneira ativa. Nessa falência da vontade, diferiu
fundamentalmente de seu amigo e colega Nietzsche.
1

A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E O
RENASCIMENTO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA

O século XVIII havia distinguido convencionalmente três tipos de histo­


riografia: verdadeira, fabulosa e satírica, sendo a filosofia da história conside­
rada apenas como uma reflexão judiciosa sobre as implicações para a
humanidade dos fatos oferecidos pela primeira, ou verdadeira, variedade de
representação histórica. O século XIX tendeu a ressaltar as diferenças entre a
“verdadeira” historiografia de um lado e a “filosofia da história” do outro. Para
ser admitida como tal, sustentava-se, a historiografia precisava ser um relato
fidedigno do que sucedera no passado, sem nenhuma atenção para com o
fantasioso per se, e precisava ser apresentada num espírito de objetividade e a
partir de um ponto de observação situado acima de toda disputa partidária
contemporânea, sem as distorções e o grau de abstração que uma genuína
reflexão “filosófica” sobre o significado delas poderia produzir. Hegel defendeu
a distinção entre historiografia e filosofia da história, embora estivesse mais
interessado em determinar o quanto a primeira podia ser submetida à análise
com base na segunda do que em sublinhar a distância que as separava como
setores distintos de pesquisa. Ao mesmo tempo, contudo, sua análise das
diversas formas que uma representação estritamente histórica do passado
poderia assumir parecia condenar a historiografia à condição de protociência
apenas, se não se invocasse a filosofia para encontrar a ordem no caos dos
relatos conflitantes do passado que a historiografia forçosamente engendrava.
A distinção de Hegel entre as diversas formas de historiografia - universal,
pragmática, crítica e conceptual - não foi, porém, assumida como um princípio
pelo qual se pudesse distinguir entre os diferentes tipos de historiografia que o
século XIX subsequentemente produziu. De fato, os historiadores distinguiam
278 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 279

entre os princípios sobre os quais deviam ser escritas as histórias locais e considerada pela linha tronco dos historiógrafos profissionais como sendo um
nacionais e aqueles sobre os quais se poderia encetar um estudo da história do desvio dos princípios da “verdadeira” história, um despencar naquela “filosofia
mundo ou “universal”. E faziam distinção entre os relatos originais de um dado da história” de que a história se libertara através de sua profissionalização.
conjunto de acontecimentos históricos, os documentos e observações dos acon­
Dentro da linha tronco formaram-se diversas “escolas” de historiografia,
tecimentos estudados, e a reconstrução, pelo historiador, do que “realmente”
conhecidas por denominações “nacionais” (a escola prussiana, a escola Klein-
sucedeu no momento da ocorrência dos acontecimentos tal como estes apare­
deutsche, a escola francesa, a escola inglesa etc.) ou rótulos de gênero mais
ciam em suas narrativas. Mas uma distinção mais importante era a que se voltava
particularmente político, rótulos indicativos da coloração ideológica dos histo­
para as diferenças entre um relato “verdadeiro” do passado, por um lado, e os
riadores (conservadores, liberais, radicais, socialistas etc.). Essas “escolas” de
relatos do passado produzidos em razão do compromisso com concepções
historiografia pretendiam, porém, assinalar interesses em campos específicos
apriorísticas do que “devia ter sucedido” no passado - isto é, “filosofia da
de estudo ou assunto, ou indicar diferentes concepções da urgência do labor
história” - e idéias do que “deve ter sucedido” - isto é, história ideológica ou,
historiográfico para as preocupações mais prementes das sociedades nas quais
como era chamada, “doutrinária” - por outro lado.
e para as quais os historiadores escreviam. Não eram consideradas ameaça séria
ao esforço de escrever histórias “fidedignas” do passado, ao contrário do que
À parte essa distinção entre história “verdadeira” e história “filosófica”,
se dizia da “filosofia da história”. Assim, quando, no decorrer da primeira
os historiadores do século XIX salientavam a noção de que, fosse o que fosse
década do século XX, apareceram três importantes estudos críticos sobre a
aquilo em que consistiria um relato histórico fidedigno, não podia ele ser
historiografia dos cem anos anteriores - os de Fueter, Gooch e Croce a
construído com base em princípios “artísticos”, por um lado, ou com vistas a
produzir o gênero de leis com que trabalhavam as ciências físicas, por outro. distinção entre historiografia e filosofia da história foi assumida pelos três como
princípio incontestável de diferenciação entre historiografia legítima e ilegítima.
Isso não queria dizer que a história “verdadeira” não contivesse elementos
científicos, filosóficos e artísticos; de fato, a direção principal do labor historio- Fueter, em sua Geschichte der neuren Historiographie (1911), discerniu
gráfico no século XIX sublinhava a dependência do historiador de princípios quatro variedades ou fases no pensamento histórico do período posterior à
que eram ao mesmo tempo científicos, filosóficos e artísticos. Mas a pretensão Revolução Francesa: romântica, liberal, realista e científica - esta última inicia­
da história ao estatuto de disciplina autônoma, com objetivos, métodos e tema da um pouco depois de 1870 e no espírito do que o próprio Fueter intentava
próprios, dependia em grande parte da convicção de que os elementos cientí­ escrever. Croce, em Teoria e Storia delia Storiografia (1912-1913), distinguiu
ficos, filosóficos e artísticos inerentes a ela não eram os da ciência, da filosofia entre historiografia romântica, idealista e positivista, todas tidas por ele como
e da arte do início do século XIX, período em que se presumia ter uma imperfeitas em virtude dos resquícios que nelas havia das “filosofias da história”
“verdadeira” historiografia tomado forma pela primeira vez. Vale dizer, a que esses nomes indicavam, e a nova (ou correta) historiografia, em que afinal
ciência na historiografia não devia ser positivista, a filosofia nela não devia ser se estabelecera a relação adequada da filosofia da ciência e da arte com a
idealista, e a arte nela não devia ser romântica. Tudo isso queria dizer, no fim história, e da qual ele próprio era o principal expoente. E, em History and
de contas, que os esforços dos historiadores no sentido de oferecerem um relato Historians in the Nineteenth Century (1913), Gooch utilizou o sistema “natural”
fidedigno do que sucedera no passado tinham de ser envidados com base numa de classificação dos historiadores por escola “nacional” e por assunto, mas
ciência, numa filosofia e numa arte que estavam em essência e por natureza também atribuiu à sua própria época a tarefa de finalmente sintetizar, em
imbuídas de senso comum e convencionalismo. Não seria demasiado dizer que, termos apropriadamente “histórico-científicos”, a realização do século ante­
na medida em que a história na principal linha do pensamento oitocentista rior.
continha elementos científicos, filosóficos e artísticos, ela permanecia fechada
nas concepções mais antigas, pré-newtonianas e pré-hegelianas, mais especifi­ O que mais chama a atenção nessas três abordagens da escrita histórica
camente aristotélicas, daquilo em que consistiam tais elementos. Sua ciência era é a extensão do descaso que todas elas demonstraram pelas reflexões sobre a
“empírica” e “indutiva”, sua filosofia era “realista” e sua arte era antes “mimé- história e a escrita histórica de dois dos críticos mais profundos das formas
tica”, ou imitativa, que expressiva ou projetiva. acadêmicas ou profissionais dessa disciplina: Marx e Nietzsche. No livro de
Fueter, Marx foi mencionado uma vez como crítico de Proudhon, e Nietzsche
Isso não quer dizer, é claro, que não se escrevesse historiografia positivis­ foi lembrado apenas para acentuar as divergências entre ele e Burckhardt.
ta, idealista e romântica, pois todas as três variedades de historiografia flores­ Gooch citou ambos os pensadores apenas em breves digressões. E Croce,
ceram ao longo do século - como os nomes de Comte, Buckle e Taine; Heinrich embora ignorando Nietzsche por completo, descartou-se de Marx ao identifi­
Leo, Strauss e Feuerbach; Chateaubriand, Carlyle, Froude e Trevelyan são cá-lo como membro da escola romântica de historiografia. No entanto, todos os
suficientes para sugerir. Mas na medida em que a historiografia de fato escrita três lamentaram - ou fingiram lamentar - o quanto a filosofia da história (ou,
podia ser identificada como sendo ou positivista, idealista ou romântica, era ela no caso de Croce, a “teoria da história”) se atrasara em relação à escrita da
280 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 281

história por não ter sabido formular alguma coisa que se assemelhasse a leis e as perspectivas para uma autêntica ciência do homem e da sociedade nunca
gerais do processo histórico ou orientações de método e análise histórica. foram mais promissoras do que pareciam ser na década de 1860. Além disso, o
Fueter aguardava confiante o aparecimento de alguém capaz de fazer pelo movimento romântico em literatura dera lugar, pelo menos no final da década
estudo da história o que a obra de Darwin havia feito pela biologia e etnologia, de 1840, ao realismo no romance, de modo que a ameaça à objetividade do
enquanto Gooch ressaltava o trabalho ainda por fazer no sentido de aproximar historiador, que originariamente parecia provir do romancista e do poeta, era
as diversas tradições do labor historiográfico, de modo a possibilitar a constru­ agora moderada, ou ao menos limitada aos círculos de expressão poética
ção de princípios científicos gerais de análise histórica. Croce, é claro, com ocupados pelos simbolistas. Assim, era compreensível que Droysen visse na
característico desdém pela falsa modéstia, deu a entender que sua própria obra exigência de cientização da história - procedente tanto de positivistas e marxis­
consistia precisamente em tal construção. Mas, dentre os três, somente Croce tas quanto de darwinistas sociais - a principal ameaça à preciosa autonomia da
reconheceu que, se a filosofia da história não podia fazer as vezes de ciência história. È era mais compreensível ainda que ele supusesse que, no reconheci­
geral ou teoria da historiografia, os princípios da síntese histórica, pela qual o mento da assimilação da história à arte, talvez se encontrasse uma maneira de
pensamento da época ansiava, tinham de ser inferidos das diversas tradições de afirmar ao mesmo tempo a objetividade da historiografia e sua diferença com
historiografia que a hostilidade do século XIX à ciência, à filosofia e à arte relação à ciência do seu tempo. Assim, podia explicar as diferentes interpreta­
modernas havia produzido. ções do mesmo conjunto de acontecimentos que meio século de historiografia
Em 1868, evidentemente, fora feito um esforço nesse sentido pelo histo­ “objetiva” havia produzido, enquanto ao mesmo tempo lhes assegurava a
riador prussiano J. G. Droysen (1808-1884). Em seu Historik: Vorlesungen über condição de verdadeiras contribuições ao conhecimento humano. O que Droy­
Enzyklopãdie und Methodologie der Geschichte, Droysen tentou caracterizar as sen sugeria era que os historiadores forçosamente oferecem relatos parciais e
principais formas que a interpretação histórica podia tomar e os padrões de fragmentários do passado, dependendo da maneira como eles invadem o campo
representação apropriados a cada uma delas. A intenção do livro era fazer pelos histórico, mas que os modos como eles poderiam legitimamente invadir esse
estudos históricos o que Aristóteles fizera em seus Tópicos pela dialética, em campo estavam limitados a quatro tipos gerais, cada um dos quais iluminava
sua Lógica pela demonstração, em sua Retórica pela oratória e em sua Poética uma área distinta da existência histórica, cuja representação inevitavelmente
pela arte literária. Daí o título, Histórica, e o subtítulo, que poderia ser mais redundava em relatos contrastantes (ainda que não necessariamente conflitan­
adequadamente traduzido como*‘Lições sobre a Anatomia e a Metodologia da tes) da mesma série de acontecimentos.
História”. Como Hegel, Droysen estabeleceu distinção entre quatro tipos de Droysen trouxe para sua consideração dos aspectos científicos, filosóficos
interpretação histórica: o biográfico, o pragmático, o condicional e o que chama e artísticos do campo histórico uma concepção nitidamente aristotélica do que
de “interpretação de idéias”. Esses quatro modos de interpretação correspon­ a ciência, a filosofia e a arte, como são utilizadas na historiografia, devem ser.
dem ao que hoje chamaríamos respectivamente de abordagens psicológica, Sua abordagem da historiografia dividia-se em três partes principais: método
causal, teleológica e ética da história. O que é notável na obra de Droysen - e de investigação (Methodik), análise sistemática dos materiais desenterrados na
no resumo dela, o Grundriss der Historik, publicado em 1868, embora circulasse investigação (Systematik) e técnicas de representação (Topik), que correspon­
em manuscrito havia mais de dez anos - é o quanto ela anteviu a “crise do diam às dimensões científica, filosófica e artística da empresa do historiador. O
historicismo” em que iria afundar a reflexão histórica impelida pelo próprio problema da interpretação surge desde o início, quando o historiador é forçado
êxito da historiografia oitocentista e pelos gêneros de reconsiderações acerca a escolher um meio de examinar os documentos, monumentos e artefatos
das pretensões da história ao estatuto de ciência expressos por pensadores como literários que deve constituir como testemunho; Se procura informação acerca
Fueter, Croce e Gooch na década que precedeu a Primeira Guerra Mundial. dos agentes humanos dos sucessos que lhe interessam, irá pender para a
Como Wilhelm von Humboldt e Leopold von Ranke na primeira metade interpretação biográfica. Se procura as causas dos sucessos, se considera os
do século XIX, Droysen começou por admitir que a historiografia deve ser sucessos como funções de séries de nexos causais, irá pender para uma inter­
considerada um campo autônomo de estudo e uma disciplina dotada de objeti­ pretação pragmática. Se considera as circunstâncias ou condições que tornaram
vos, métodos e tema próprios e que por isso deve distinguir-se da ciência provável ou necessária uma seqüência geral de acontecimentos, em função dos
positivista, da filosofia idealista e da arte romântica. Mas ele escrevia numa fatores sociais, culturais e naturais que predominavam nos meios em que os
outra atmosfera intelectual e espiritual. A filosofia não era mais identificada, acontecimentos se verificaram, irá encaminhar-se para uma interpretação con­
mesmo na Alemanha, somente com o idealismo. O positivismo já não era dicional. E, se considera os eventos como partes de um processo* moral ou
considerado como um simples resíduo de um entusiasmo antiquado pelo racio- ideacional mais amplo e em andamento, irá pender para uma interpretação
nalismo e pelos modos mecanicistas de explicação, apropriados para a análise ética.
da matéria físico-química mas inadequados para a caracterização de processos O que o historiador de fato faz com os materiais assim ordenados numa
biológicos e humanos. O darwinismo dera nova vida ao movimento positivista, forma preliminar dependerá de quatro fatores: o conteúdo dos materiais, as
282 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 283

formas em que aparecem, os meios de articulação histórica e o fim ou propósito as partes na disputa e que delineia o nascimento de uma nova sociedade que
de tal articulação. Aqui também está em ação a orientação pessoal ou subjetiva emerge da antiga, corresponde ao modo cômico na arte literária. E o modo
do historiador, e o perigo de distorção está sempre presente; mas ao mesmo pragmático, que enfatiza o império da lei, e de maneira a sugerir que os
tempo se oferece o ensejo, em virtude da própria explicitação do problema do acontecimentos estão fadados a seguir o curso que de fato seguem, corresponde
entendimento, para que o historiador empenhe seus mais altos dotes morais, ao modo da sátira. Esses modos de explanação abarcam portanto as formas
científicos e filosóficos. A recompensa de todos os esforços, porém, só aparece literárias adequadas à representação de processos concebidos como sendo
na terceira fase do trabalho, quando o historiador deve escolher o modo de governados pelas forças identificadas, na fase interpretativa das operações do
representação mediante o qual dará aos leitores a oportunidade de reviver não historiador, como diferentes tipos de agências causais: individuais, morais,
somente a realidade do curso original dos eventos, como se apresenta na sociais e naturais.
narrativa, mas também as operações pelas quais o próprio historiador chegou O esquema quádruplo de Droysen para classificar os diversos modos de
a entendê-los. explicação e representação em historiografia lembra outros esquemas seme­
Droysen distinguia quatro modos de representação: interrogativo, didáti­ lhantes. Já deparamos com a classificação quádrupla na caracterização hege-
co e discursivo, todos os quais intrometem o historiador entre o leitor e o assunto liana das espécies de história reflexiva (universal, pragmática, crítica e
e procuram conduzir o leitor a alguma conclusão geral ou a alcançar alguma conceptual). Lembramo-nos da caracterização crociana das principais formas
impressão que o próprio historiador inculca, e (a forma que Droysen obviamen­ do pensamento histórico oitocentista (romântica, idealista, positivista e
te acreditava ser a mais apropriada para a verdadeira historiografia) o recitativo “nova”) e das categorias de Fueter (romântica, liberal, realista e científica).
(die erzáhlende Darstellung). Na representação recitativa, observou ele, tenta-se Um tipo análogo de esquema classificatório foi elaborado por Wilhelm Dilthey
“expor os resultados da investigação como uma sucessão de eventos através da durante a primeira década do século XX. Em seu DerAujbau der Geschichtli-
imitação [mimese] de seu desenvolvimento real. Ela toma os resultados [da chen Welt in den Geisteswissenchaften, Dilthey identificou em Ranke, Carlyle e
investigação] e confígura-os numa imagem da gênese dos fatos históricos sobre Tocqueville os três autores da principal contribuição para a tradição historio-
os quais se processou a investigação” (ed. inglesa, 91:52). Mas essa mimese não gráfica das primeiras décadas do século XIX e deu a entender que a sua
deve ser entendida como uma reprodução fotográfica dos eventos nem como Einleitung in die Geisteswissenschaften (1883) representava, na tradição da
uma operação em que se permitem aos eventos “falar por si mesmos”. Pois, “filosofia da história”, o início de um esforço sério no sentido de apresentar uma
insistia Droysen , “sem o narrador a fazê-los falar, eles estariam mudos”. E, “Kritik derhistorischen Vemunft” do tipo que os historiadores reclamavam desde
longe de procurar ser objetivo, acrescentou ele, não é “a objetividade que é a o estabelecimento de sua área de atividade como disciplina autônoma (117-18).
maior glória do historiador. Sua validez consiste em procurar compreender” E convém recordar, finalmente, a quádrupla classificação nietzschiana das
(Jbid.). formas de consciência histórica em seu “Uso e Abuso da História”: antiquária,
A “compreensão” pode manifestar-se em quatro formas distintas, corres­ monumental, crítica, e sua própria visão “super-histórica” dessas formas.
pondentes aos modos de interpretação esboçados na primeira seção do livro de A recorrência de um esquema quádruplo de classificação da reflexão
Droysen. Nessa seção decisiva, as distinções feitas entre os modos biográfico, histórica não é notável por si só, visto que a história cultural do século XIX pode
monográfico, catastrófico e pragmático chamam a atenção para a possibilidade ser dividida em quatro grandes movimentos - romantismo, idealismo, natura­
de diferentes posições de onde observar os eventos dentro da própria narrativa lismo e simbolismo - e que as diversas concepções de história podiam ser vistas
e explicar as tendências para pôr em enredo os eventos de diversas maneiras, como nada mais do que abstrações das diversas visões de mundo representadas
como diferentes tipos de estórias.
por esses movimentos, visões projetadas no problema do conhecimento histó­
Droysen negou explicitamente que as “formas de representação” tenham rico e estendidas ao campo histórico de maneira a produzir as quatro concep­
sido “determinadas segundo a analogia da composição épica, lírica ou dramá­ ções conflitantes de história que os analistas da época tentavam caracterizar em
tica”, da maneira como Georg Gottfried Gervinus, em seus Grundzüge der seus vários esquemas de classificação. Cada movimento trouxe consigo suas
Historik (1837) havia proposto (Ibid.). Mas é bastante evidente, a julgar por sua próprias concepções exclusivas do que a “ciência”, a “filosofia” e a “arte”
análise das quatro formas de exposição recitativa, que são abstrações proceden­ devem ser; e não é de surpreender que os teorizadores da história tenham
tes das estruturas básicas de enredo da tradição literária ocidental. Assim, o embutido em suas conceptualizações do problema do relacionamento da histó­
modo biográfico de exposição, realçando a personalidade como a força causal ria com essas outras áreas suas predileções por uma ou outra das diferentes
decisiva na história, pode ser identificado com a forma narrativa da estória noções acerca dessas áreas, sancionadas pelos diversos movimentos culturais a
romanesca. O modo monográfico, que é teleológico em princípio, sublinhando que eles pertenciam. O problema cifra-se em colocar-se por trás dessas precon-
as condições que permitiam o desabrochar de um destino e uma epifania da lei, cepções a fim de procurar um outro modo de caracterização que lhes identifique
corresponde à tragédia. O modo catastrófico, que ilumina o “direito” de todas as preconcepções compartilhadas, de maneira a mostrar que elas são compo-
284 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 285

nentes de uma única família de valores e atitudes para com a história, e ao produzidos mais pelo peso dado a um ou outro dos níveis de constituição
mesmo tempo elucidar as dessemelhanças de ênfase e subordinação que exis­ lingüística do que pela eliminação de qualquer dos níveis de significado.
tem entre elas e que fazem delas fases diferentes, ou variantes, da específica Se o discurso historiográfico se mantém, com demasiada rigidez, limitado
tradição de pensamento que representam. à simples nomeação dos objetos que ocupam o campo histórico e apenas os
Aqui retomo à minha formulação inicial do problema básico do pensa­ ordena numa seqüência temporal pela ordem de aparecimento desses objetos
mento histórico, que é construir um modelo verbal do processo histórico, ou de no campo, a obra histórica degenera em crônica. Se, porém, rarefaz o detalhe
alguma parte dele, modelo que, por força de sua condição de artefato lingüís- fatual no interesse de esclarecer as relações que se presume existam entre todos
tico, pode ser analisado nos níveis do léxico, da gramática, da sintaxe e da os objetos históricos de todas as classes, o resultado é que o Danto chamou de
semântica. Se avanço nesse caminho, permito-me afirmar que diferentes histo­ “narrativa conceptual” ou “filosofia da história”. Isto é, um relato histórico
riadores salientam diferentes aspectos do mesmo campo histórico, da mesma “verdadeiro” do que realmente sucedeu na história seria aquele que se manti­
série ou seqüência de eventos, porque realmente veem diferentes objetos nesse vesse nos níveis de classificação sincrônica dos dados por um lado e de repre­
campo, provisoriamente os agrupam em diferentes classes e espécies de exis­ sentação diacrônica desses dados por outro. Isso explicaria a tendência de
tência histórica, concebem as relações entre elas em diferentes termos, e historiógrafos situados na linha mestra da convenção profissional do século XIX
explicam de diferentes maneiras as transformações dessas relações, com vistas a considerar as caracterizações formalistas do campo histórico e as representações
a emprestar-lhes diferentes significados através da estrutura das narrativas que narrativas de seu processo como o método correto de escrever “história”. E
escrevem sobre elas. Assim concebidas, as histórias são tentativas de usar a forneceria um meio de definir-lhes a própria caracterização de “historiografia”
linguagem (linguagem corrente ou técnica, mas habitualmente a primeira) de como um gênero de discurso que se insere entre a vacuidade da simples crônica
maneira a constituir diferentes universos de discurso em que podem ser formu­ de um lado e a execrável “filosofia da história”, do outro.
ladas proposições acerca do sentido da história em geral ou de diferentes
segmentos de todo o processo histórico. Concebido dessa maneira, um “relato histórico” seria qualquer narração
do passado em que os eventos que ocupavam o campo histórico estivessem
Os diversos níveis de integração lingüística - desde a simples operação
adequadamente nomeados, agrupados em espécies e classes de tipo inequivo­
nomeativa, através do esquema classificatório sincrônico de um lado e do
camente “histórico”, e, além disso, conectados por concepções gerais de cau-
esquema diacrônico do outro, pelos quais podem ser estabelecidas as classes
sação mediante as quais as mudanças em seus relacionamentos pudessem ser
de fenômenos históricos e as relações que mantêm entre si, até o “significado”
explicadas. Essas operações pressuporiam uma concepção geral do sentido
que têm para o entendimento de todo o processo histórico - gerariam, eles
histórico, uma idéia ou noção da natureza do campo histórico e seus processos;
mesmos, diferentes concepções da tarefa do historiador, de acordo com a
em suma, implicariam uma “filosofia da história”. Mas essa “filosofia da histó­
importância que o historiador concedesse a uma ou outra das diferentes ope­
ria” estaria presente num dado relato “historiográfico” do passado só enquanto
rações necessárias à constituição de uma abrangente “linguagem do discurso
“deslocada”, sublimada, ou suspensa. Apareceria só no modo de explicação
histórico”. O historiador que se concentrasse no nível lexical representaria um
realmente utilizado para justificar “o que sucedeu” no campo histórico e na
dos extremos e produziria essencialmente crônicas - embora muito mais “com­
estrutura de enredo empregada para transformar a estória realmente contada na
pletas” do que as produzidas por seus congêneres medievais -, enquanto o
narrativa numa estória de tipo particular. Essa “filosofia da história” deslocada,
historiador que levasse a cabo com demasiada rapidez a descoberta do sentido
pressuposta em qualquer relato moderadamente abrangente do passado ou do
último (semântica) de todo o campo histórico produziria “filosofias da história”.
presente, seria o elemento “ideológico” identificado pelos críticos de qualquer
Se eu considerasse as operações léxicas como um pólo da atividade “interpretação” dada do passado ou do presente, ou de qualquer conjunto de
historiográfica e as operações semânticas como o outro pólo, veria então que o eventos de especial interesse para os grupos empenhados na arena política de
que os historiadores acadêmicos do século XIX entendiam por história “verda­ qualquer período dado. Mas, já que não haveria meio algum de arbitrar entre
deira” estaria situada em algum lugar entre esses dois extremos, no nível os diversos modos de explicação que poderiam ser escolhidos por um determi­
gramatical, onde predominam operações classificatórias gerais e onde é visada nado historiador (organicismo, contextualismo, mecanicismo, formismo), por
a representação da estrutura sincrônica do campo histórico, ou no nível sintáti­ um lado, ou entre os diversos modos de elaboração de enredo que ele poderia
co, onde a dinâmica do campo considerado como processo seria o principal usar para estruturar sua narrativa (estória romanesca, comedia, tragédia, sáti­
objeto de análise e onde seria apreendida a representação das dimensões ra), por outro, o campo da historiografia pareceria rico e criativo precisamente
diacrônicas do ser histórico. Está claro que toda obra histórica, simplesmente na proporção em que gerasse muitos e diferentes relatos possíveis da mesma
porque objetiva a construção de um adequado universo de discurso dentro do série de eventos e muitos e diferentes meios de simbolizar seus múltiplos
qual é possível falar de maneira significativa do processo histórico em geral, sentidos. Ao mesmo tempo, a historiografia derivaria qualquer integridade que
operaria em todos os quatro níveis. E diferentes tipos de historiografia seriam devesse ter de sua resistência a qualquer impulso para passar ao nível da
METAHISTÓR1A 287
286 HAYDENWHITE

Mas a própria diversidade de interpretações do mesmo conjunto de


imediata conceptualização do campo histórico, tal como tendia a fazer o filósofo
eventos históricos, que essa noção de historiografia como uma espécie de
da história, ou para incorrer em apreensões dç caos, como fazia o cronista.
universo de discurso da língua natural permitia, não podia deixar de sugerir aos
A filosofia da história, por conseguinte, seria uma ameaça à historiografia
observadores mais filosoficamente argutos que as “regras do jogo” poderiam
na medida em que o filósofo da história é impelido a explicitar as estratégias
ser interpretadas de outro modo e que poderia ser perfeitamente concebível um
explicativas e narrativas que permanecem implícitas na obra do historiógrafo
outro universo de discurso para a caracterização do campo histórico. E em Marx
profissional. Mas o filósofo da história representa uma ameaça maior também,
e Nietzsche essa conceptualização da natureza do conhecimento histórico foi
porque a filosofia da história é caracteristicamente o produto de um desejo de
levada a suas conclusões lógicas. Ambos procuraram alterar as regras lingüísti-
mudar as estratégias profissionalmente sancionadas através das quais se confere
cas do jogo historiográfico, Marx com base numa crítica do componente cien­
sentido à história. A virulência da oposição do historiador profissional oitocen­
tífico da reflexão histórica, Nietzsche por meio de uma crítica do componente
tista à filosofia da história e o desdém com que os filósofos da história da época
artístico. Pondo a questão em termos hegelianos, então, o que Marx e Nietzsche
viam os historiógrafos profissionais tinham a ver, em grande parte, com a
tentaram fazer, cada qual à sua maneira, foi realizar a recomendação (hegelia-
insistência dos filósofos da história em que a historiografia profissional é tão
na) de converter as percepções dos diversos tipos de história reflexiva em uma
axiologicamente comprometida e tão conceptualmente determinada quanto a
base para uma história genuinamente filosófica, uma história que não somente
própria “filosofia da história”. Os críticos mais inflexíveis da historiografia
sabe alguma coisa acerca do processo histórico mas sabe como sabe disso, e que
acadêmica ou profissional compreendiam que a “disciplinarização” da história
é capaz de defender seu modo de saber em termos filosoficamente justificáveis.
consistia principalmente na exclusão de certos tipos de conceitos explicativos
por um lado e no emprego de certos modos de elaboração de enredo por outro. As principais formas de filosofia da história que apareceram entre Hegel
Os ataques de Nietzsche à “banalidade” dos historiadores profissionais são de e Croce representaram esforços no sentido de evitar (ou transcender) as
fato, em última análise, uma crítica à concepção filistina que eles tinham da arte, implicações de uma historiografia concebida como exercício de explicação por
assim como os ataques de Marx ao “servilismo” desses mesmos historiadores meio de descrição. Os dois mais profundos representantes da filosofia da
são, em última análise, uma crítica à concepção burguesa que eles tinham da história durante esse período, Karl Marx e Friedrich Nietzsche, iniciaram suas
ciência. reflexões sobre o conhecimento histórico pelo pleno reconhecimento das impli­
cações irônicas da ortodoxia profissional oficial do pensamento histórico (que
Esses ataques fazem dos trabalhos de Marx e Nietzsche denúncias “radi­
Ranke e seus seguidores representavam) e das formas aceitáveis de desviacio-
cais” da reflexão histórica acadêmica. Pois, enquanto outros filósofos da história
nismo em relação às normas ortodoxas (representado por Michelet, Tocqueville
- como Comte e Buckle - haviam procurado importar idéias e técnicas de
e Burckhardt). Evidentemente, nem para Marx nem para Nietzsche era possível
representação dos campos da arte e da ciência para a história e aplicá-las
o apelo a uma historiografia romântica, como não o foi para Ranke, Tocqueville
mecanicamente aos mesmos dados que os profissionais tinham apresentado em
ou Burckhardt. Como seus homólogos na historiografia, Marx e Nietzsche
suas “narrativas”, Marx e Nietzsche contestaram as próprias concepções de arte
entendiam que seu “realismo” consistia no esforço de elevar-se acima do
e ciência das quais toda a alta cultura do século XIX recebeu sua forma e com
subjetivismo do enfoque romântico da história, por um lado, e do ingênuo
base nas quais preconcebeu o problema de correlatar a ciência à arte. Isso
mecanicismo de seu antecessor racionalista do final do Iluminismo, por outro.
sugere que os estudos históricos, ao se profissionalizarem, também se tornam
Nessa concepção de “realismo” seguiam o caminho balizado por Hegel.
uma atividade normalizada, da mesma maneira que a própria linguagem se
normaliza quando lexicógrafos e gramáticos refletem sobre os usos da fala Mas, como Hegel também, eles concebiam o conhecimento histórico
corrente a fim de expor as normas daquela fala e depois definir o bom uso como como um problema de consciência, e não simplesmente de “metodologia”.
a fala que segue essas normas. Dentro do conceito de bom uso assim consagrado Além disso, como ele, Marx e Nietzsche insistiam na necessidade de voltar o
como uma ortodoxia, muitas estratégias estilísticas diferentes se tornam possí­ conhecimento histórico para as necessidades da vida social e cultural presente.
veis, e todas elas podem conformar-se mais ou menos às “regras” assim estabe­ Nem um nem outro desejava um conhecimento “contemplativo” do passado.
lecidas. Ambos estavam cientes dos efeitos debilitadores, para não dizer trágicos, que
resultariam de uma historiografia puramente contemplativa. Viam claramente,
Na reflexão histórica do século XIX, os diversos protocolos estilísticos
de uma maneira que Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt apenas entre­
que alcançaram o estatuto de ortodoxia foram representados por Michelet,
viram, que o modo de pensar o passado tinha sérias implicações sobre o modo
Ranke, Tocqueville e Burckhardt respectivamente. Cada um deles orgulhava-se
de pensar o presente e o futuro. E punham o problema da consciência histórica
de seu “realismo” e de sua descoberta do meio mais apropriado de caracterizar
diretamente no centro de suas respectivas filosofias. No século XIX não houve
um campo de ocorrência histórica dentro dos limites fixados pelo conceito de
dois pensadores, com exceção do próprio Hegel, tão obsedados pelo problema
uso “correto” acatado pela sociedade historiograficamcntc “letrada” de seu
da história, ou antes, com o problema do “problema” da história. E as realiza­
tempo.
288 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 289

ções de ambos como filósofos podem ser entendidas, em grande parte, em mente um estado de espírito, uma necessidade por ele profundamente sentida,
função de sua busca dos fundamentos sobre os quais o problema do “problema” que ditava tudo quanto ele tentava a título de justificação histórica. Não havia
da história podia ser solvido. base para otimismo em Tocqueville ou Burckhardt. Marx e Nietzsche criticavam
Mas o que de fato alcançaram pouco mais foi do que uma justificação o otimismo tanto dos românticos quanto dos pretensos realistas da academia,
teórica para os modos alternativos de reflexão histórica elaborados por Miche- bem como o pessimismo dos seus similares diletantescos. Procuravam reenca-
let, Ranke, Tocqueville e Burckhardt considerados como membros de uma minhar o pensamento histórico ao estudo das categorias através das quais só ele
única tradição de prática lingüística. Marx exprimiu-se no idioma da metonímia pode reclamar o estatuto de ciência (em Marx) ou de arte (em Nietzsche). A
em sua análise da história e em sua crítica aos historiadores acadêmicos e aos rebelião de Marx contra Hegel (que foi primordialmente uma revisão antes que
diletantes a quem por desprezo chamava de “ideologistas”. Mas seu propósito uma revolução) e a de Nietzsche contra Schopenhauer (que também teve mais
último era mostrar como as divisões e conflitos da história podem estar suspen­ de uma revisão do que de um repúdio) tinham metas idênticas. Ambos procu­
sos de tal modo que o estágio seguinte do desenvolvimento humano pode ser ravam o pensamento sintético acerca do campo histórico e seus processos, o
realisticamente concebido como um campo de unidades sinedóquicas. Em que se poderia chamar de construção de uma gramática e uma sintaxe da análise
resumo, o propósito de Marx era traduzir ironia em tragédia e, em última histórica, graças às quais o “sentido” da história pudesse receber uma clara
análise, tragédia em comédia. formulação científica por um lado ou uma clara representação artística por
Já Nietzsche encarava tragédia e comédia “ironicamente”, tomando am­ outro.
bas as visões como construções da própria consciência humana mais do que No pensamento de Marx o problema da história girava em torno do
como resíduos de uma percepção “realista” da realidade. Ao mesmo tempo, problema do modo de explicação a empregar na caracterização de suas estru­
afirmava a natureza ficcional de todas as supostas leis da história e a subordi­ turas e processos. Isso se harmonizava com sua concepção da história como
nação do conhecimento humano a algum sistema de valores anterior a elas. Ao ciência. Já no pensamento de Nietzsche o problema cifrava-se no modo de
desmascarar a natureza mítica da tragédia e da comédia por um lado e todas as elaboração de enredo a escolher para a explanação criativa de um campo
formas de ciência por outro, Nietzsche procurava devolver a consciência a suas fenomenal que parecia não ser governado por lei alguma. Cada um reconhecia
próprias origens na vontade humana. Buscava curar essa vontade de todas as que a escolha entre os diversos modos de explicação e elaboração de enredo à
dúvidas que alimentasse acerca de suas próprias aptidões, tanto para conceber disposição do pensador da história devia obedecer à utilização de algum
a realidade de maneira vivificante quanto para atuar sobre ela no melhor princípio ou critério extra-histórico. Para nenhum dos dois havia qualquer coisa
interesse dela mesma. Assim, embora iniciasse suas análises do processo histó­ que se assemelhasse a um fundamento axiologicamente inócuo, sobre o qual se
rico por uma caracterização preliminar deste como uma condição essencial­ pudesse objetivamente justificar a escolha entre as diversas estratégias de
mente irônica - isto é, inteiramente caótica e não governada por norma alguma explicação e elaboração de enredo. Em conseqüência de tudo isso veio à tona
salvo a chamada vontade de potência Nietzsche visava em última instância a questão do que se entende por “objetividade”.
pôr em enredo a história do homem como um drama romântico, drama de As contribuições de Marx e Nietzsche para a “crise do historicismo” do
autotranscendência humana e redenção individual, ainda que a redenção não final do século XIX, portanto, consistiram na historicização do conceito mesmo
fosse a partir de uma “natureza” férrea ou na direção de uma aterradora de objetividade. Para eles, o pensamento histórico não era o resultado de um
divindade transcendental, mas a partir do próprio homem, do homem como tem critério de objetividade que se pudesse simplesmente “aplicar” aos dados do
sido na história, na direção do homem como ele poderia ser em sua condição campo histórico. Foi a natureza da própria objetividade que eles puseram em
auto-reconciliada. Como Marx, então, Nietzsche prefigurava uma libertação em questão.
relação à história que era simultaneamente uma libertação em relação à socie­
dade. Mas a forma que essa libertação assumiria, nos termos em que ele a
apresentava, não era a de uma comunidade humana revivificada; era antes
puramente individual, possível para o super-homem mas negada ao rebanho,
que Nietzsche uma vez mais acorrentava à natureza e à história.
Marx e Nietzsche indagavam como era possível conceber o nascimento de
uma vida histórica saudável a partir de um estado de sofrimento e conflito.
Ambos eram supremos otimistas, de um modo não igualado por seus homólogos
da historiografia. O otimismo de Ranke não se apoiava em premissas teóricas
que justificassem a possível transformação do vício privado em benefícios
públicos. O otimismo de Michelet não tinha apoio algum; representava simples­
2

MARX
A DEFESA FILOSÓFICA DA HISTÓRIA
NO MODO METONÍMICO*

INTRODUÇÃO

Marx apreendeu o campo histórico no modo metonímico. Suas categorias


de prefiguração foram as categorias do cisma, da divisão e da alienação. O
processo histórico lhe apareceu, portanto, como aquele “panorama de pecado
e sofrimento” que Tocqueville e Burckhardt afirmaram ser o verdadeiro sentido
da história logo que suas análises desse processo estavam concluídas. Marx
começou onde eles terminaram. A ironia de ambos foi seu ponto de partida.
Seu escopo era determinar até que ponto se pode realisticamente confiar na
integração definitiva das forças e dos objetos que ocupam o campo histórico.
Marx considerava ilusórios os tipos de tendências integrativas que Michelet e
Ranke supunham ter encontrado no processo histórico; via-os como falsas
integrações ou integrações apenas parciais, cujos benefícios eram compartilha­
dos somente por um fragmento de toda a espécie humana. E estava interessado
em determinar se essa fragmentação da humanidade devia ser tida como a
condição inelutável do animal humano.

• A indicação “trad. bras.” que aparece em seguida a citações de Marx neste capítulo refere-se aos textos de
“Teses contra Feuerbach”, tradução de José ArthurGíannotti, eO18 Brumário de Luís Bonaparte, tradução
revista por Leandro Konder, incluídos em Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos e Outros Textos
Escolhidos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores). Quanto à versão das citações de O
Capital, o tradutor encontrou valioso auxílio em Karl Marx, O Capital: Crítica da Economia Política, Vol. I,
livro primeiro, O Processo de Produção do Capital, tomo I; tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe; 3.
ed., São Paulo, Nova Cultural, 1988 (Os Economistas) (N. do T.).
METAHISTÓR1A 293
292 HAYDENWHITE

implicações sociais; e 3) até que ponto as teorias de Marx, tomadas em sua


A concepção cômica da história, exposta por Hegel, baseava-se em última totalidade e como quer que sejam interpretadas, se classificam como uma
análise em sua crença no direito da vida sobre a morte; a “vida” garantia a Hegel contribuição positiva para as ciências sociais. Vários críticos modernos fizeram
a possibilidade de uma forma cada vez mais adequada de vida social por todo da reflexão de problemas como esses uma indústria, e devemos ser-lhes gratos
o futuro histórico. Marx levou essa concepção cômica ainda mais longe; prefi­ por sua elucidação do relacionamento de Marx com as principais figuras do
gurou nada menos do que a dissolução daquela “sociedade” em que a contra­ mundo do pensamento no qual, e contra o qual, tomou forma seu sistema
dição entre consciência e ser tinha de ser alimentada como uma fatalidade para definitivo.
todos os homens em todos os tempos. Não seria, então, injusto qualificar de São fundamentais para as preocupações desses críticos questões como a
romântica a visão final da história que inspirou Marx em sua teorização histórica consistência do trabalho de Marx como filósofo, a pertinência de seu pensamen­
e social. Mas sua concepção não figurava a redenção da humanidade como uma to para a análise de problemas sociais contemporâneos e a validade de sua visão
libertação em relação ao próprio tempo. Mais exatamente, essa redenção do curso que a história deve seguir no futuro. Para os teóricos marxistas
tomava a forma de uma reconciliação do homem com uma natureza desnudada contemporâneos, assim como para seus opositores, é imperioso decidir se o
de seus poderes fantásticos e aterrorizantes, submetida ao domínio da técnica marxismo é ou não é o sistema científico de análise social que pretende ser, se
e voltada para a criação de uma autêntica comunidade, a fim de gerar indivíduos a análise marxista das crises sociais é aplicável às crises contemporâneas e se a
que são livres porque já não têm de lutar uns com os outros por sua individua­ teoria econômica marxista representa o melhor modo de explicar os sistemas
lidade, mas só com eles mesmos. Assim concebida, a idéia marxiana da história de troca surgidos na esteira do moderno capitalismo industrial.
representava uma perfeita sinédoque: as partes fundiam-se num todo que é Minha abordagem do estudo do pensamento de Marx desloca muitas
qualitativamente superior a qualquer das entidades que o compõem. dessas questões para a periferia da discussão. Meu objetivo é especificar o estilo
dominante do pensamento de Marx acerca das estruturas e processos da história
No pensamento de Marx o problema que fora proposto por Vico, atacado
em geral. Estou interessado em Marx primordialmente como representante de
por Rousseau, contornado por Burke e formulado como importante problema
uma modalidade definida de consciência histórica, representante que deve ser
filosófico por Hegel - isto é, o “problema da sociedade” ou a “natureza
encarado como nem mais nem menos “verdadeiro” do que os melhores repre­
problemática da existência social” - avançou para o centro da investigação
sentantes de outras modalidades com as quais ela disputou a hegemonia na
histórica. Para Marx, a sociedade não era mais a única barreira protetora entre
consciência do homem europeu do século XIX. Em minha opinião, a “história”,
uma humanidade sitiada e uma natureza caótica (como era para Burke) nem a
como uma pletora de documentos que atestam a ocorrência dos eventos, pode
barreira obstrutiva entre os homens individualmente considerados e sua verda­
ser construída num certo número de narrativas dissímeis e igualmente plausíveis
deira “natureza íntima” (como era para Rousseau e os românticos). Para Marx,
do “que sucedeu no passado”, narrativas de que o leitor, ou o próprio historia­
como para Hegel, a sociedade era essas duas coisas, isto é, o instrumento para
dor, pode extrair conclusões diversas sobre “o que deve ser feito” no presente.
o homem se libertar da natureza e a causa da separação entre os homens. A
Com a filosofia marxista da história não se pode fazer nem mais nem menos do
sociedade unificava e dividia, libertava e oprimia, a um só tempo. O escopo da
que se pode fazer com outras filosofias da história, como as de Hegel, Nietzsche
investigação histórica, como a concebia Marx, era, em primeiro lugar, mostrar
e Croce, muito embora se possa estar propenso a fazer diferentes espécies de
como a sociedade funciona dessa maneira dual na vida do homem e, depois,
coisas com base na crença em uma verdade da filosofia.
demonstrar como o paradoxo representado por essa situação deve ser resolvido
mais cedo ou mais tarde. «..• Quer dizer, pode-se ou adotar a filosofia da história de Marx como
provedora da perspectiva a partir da qual se quer ver a própria posição na
corrente do devir histórico ou pode-se rejeitá-la com fundamentos igualmente
voluntaristas. Apreendemos o passado e todo o espetáculo da história em geral
O PROBLEMA DOS ESTUDOS MARXIANOS em termos de necessidades e aspirações sentidas que são basicamente pessoais,
relacionadas com os modos como vemos nossas próprias posições no estabele­
cimento social vigente, com as nossas esperanças e os nossos temores quanto
É convencional hoje estudar os textos de Marx para determinar: 1) a ao futuro, e com a imagem do tipo de humanidade que gostaríamos de acreditar
continuidade ou descontinuidade entre sua produção inicial, representada que representamos. Quando essas necessidades e aspirações sentidas mudam,
acima de tudo pelos Manuscritos Económico-Filosóficos (1844) e opúsculos ajustamos concomitantemente nossa concepção da história em geral. Não
como A Ideologia Alemã (1845), e a obra de maturidade, representada pelo acontece com a história o que acontece com a natureza. Não temos escolha com
Manifesto Comunista, a Contribuição à Crítica da Economia Política, O 18 respeito aos princípios do conhecimento que temos de adotar para operar
Brumário de Luís Bonaparte e O Capital', 2) o quanto o pensamento de Marx transformações no mundo físico ou exercer controle sobre ele. Ou empregamos
pode ser qualificado de “humanista” ou, inversamente, “totalitário” em suas
294 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 295

princípios científicos de análise e entendimento das operações da natureza ou devessem tentar entender o mundo mas que o único critério para avaliar-lhes o
falhamos em nossas tentativas de exercer controle sobre ela. entendimento era a capacidade que demonstrassem para mudá-lo. Assim pôs
É diferente no caso da história. Há diversas maneiras possíveis de com­ cerco a todos os planos de criar uma historiografia meramente contemplativa
preender os fenômenos históricos porque há diversas maneiras, igualmente como aquela que, sob o nome de Ranke, fora erigida em ortodoxia nas acade­
plausíveis, de organizar o mundo social que nós criamos e que nos fornece uma mias de toda a Europa. A ciência para Marx era conhecimento transformador,
das bases de nossa experiência da própria história. Como salientou Lucien o transformador da natureza na esfera física, o transformador da consciência e
Goldmann, é do interesse de todas as classes modernas, e, na realidade, de todos práxis humana na esfera social. E ele imaginava sua teoria da história como meio
os indivíduos, promover o crescimento das ciências físicas objetivas, pois é do de libertar os homens da série infinita de enfoques infinitesimais de uma
interesse de todas as classes da sociedade contemporânea estender o controle autêntica humanidade - série que pensadores como Hegel e Tocqueville con­
do homem sobre a “natureza” que se acha diante dele sob a forma dos recursos cebiam estender-se indefinidamente no futuro-, de modo que pudessem enfim
com que se há de construir uma “sociedade”. Mas, como seres sociais, temos alcançar plenamente sua humanidade. Para Marx, a história corretamente com­
diferentes interesses nos diferentes tipos de sociedade que imaginamos serem preendida não somente fornecia uma imagem do homem entrado na posse de
potencialmente realizáveis em conseqüência de nossa exploração científica da seu reino na terra; era também um dos instrumentos com que esse reino iria ser
natureza. Isso quer dizer que o tipo de ciência social que tenderemos a promo­ finalmente conquistado.
ver se caracterizará por certas limitações cruciais sobre o que podemos imaginar Dentro do contexto de considerações como essas estudarei o problema
como possibilidades daquela ciência para favorecer ou frustrar o crescimento da continuidade entre as primeiras e as últimas obras de Marx. Sustento que,
de um determinado tipo de sociedade. no que toca à teoria geral da história de Marx, este é um pseudoproblema. Pode
Assim, é de esperar que haja maneiras alternativas e até radicalmente ser interessante especular sobre os efeitos que os acontecimentos da época e o
incompatíveis de conceber a forma que uma ciência social adequada deve encontro de Marx com determinados pensadores durante a década de 1840
assumir. Entre essas maneiras reconhecemos a legitimidade de uma concepção exerceram sobre a constituição de seu sistema tal como o representam O 18
explicitamente radical de análise social, de que Marx foi sem dúvida o maior Brumário ou O Capital. Mas essas são preocupações hagiográficas, não teóricas.
expoente no século XIX, mas ao lado desta devemos colocar as variedades O que tenho a dizer é que, considerado como representativo de um estilo
anarquista, liberal e conservadora. Cada uma dessas noções de análise social característico de abordagem filosófica da história, o pensamento de Marx revela
comporta, ou engendra, uma concepção específica do processo histórico e de a consistente utilização de um conjunto de estruturas tropológicas que dão à
suas estruturas mais significativas, a que um determinado indivíduo pode ser sua reflexão atributos inconfundíveis, presentes desdeX Ideologia Alemã (1845)
arrastado por considerações epistemológicas, estéticas ou éticas. É inútil, por­ até O Capital (1867).
tanto, ao menos em minha opinião, tentar arbitrar entre concepções opostas da
natureza do processo histórico sobre bases cognitivas que pretendam ser em
essência axiologicamente neutras, como tanto os teóricos marxistas como os A ESSÊNCIA DO PENSAMENTO DE MARX SOBRE A HISTÓRIA
não-marxistas procuram fazer. As melhores razões para ser um marxista são
morais, como são morais as melhores razões para ser um liberal, conservador A essência do pensamento de Marx sobre a história, suas estruturas e
ou anarquista. A visão marxista da história não é nem confirmável nem descon- processos, consiste menos numa tentativa de combinar o que julgava fosse válido
firmável por meio de “testemunho histórico”, pois o que está em debate entre no pensamento de Hegel, de Feuerbach, dos economistas políticos britânicos e
uma visão marxista e uma visão não-marxista da história é a questão de saber dos socialistas utópicos do que em seu esforço por sintetizar as estratégias
precisamente o que conta como testemunho e o que não conta, de que maneira tropológicas da metonímia e da sinédoque numa imagem abrangente do mundo
os dados devem ser constituídos como testemunho, e que implicações para a histórico. Esse modo de caracterizar a obra de Marx me permite explicitar a
compreensão da realidade social presente devem ser inferidas do testemunho relação que existe em seu pensamento entre os elementos mecanicístico-mate-
assim constituído. rialistas por um lado e os elementos organicístico-idealistas por outro, o positi­
Marx escreveu história não com fins de mediação social (à maneira de vismo que ele deve ter colhido no estudo dos economistas políticos britânicos e
Tocqueville) nem com fins de acomodação social (à maneira de Ranke). Ele foi o método dialético que deve ter tomado de empréstimo a Hegel. Também me
um profeta da inovação social e concebeu a consciência histórica como instru­ permite distinguir entre as táticas que Marx usou para criticar os adversários e
mento da libertação humana de um modo que nenhum outro pensador oitocen­ aquelas que empregou para expor as verdades da história que supôs encontrar
tista de igual estatura tentou fazer. Quando escreveu em suas “Teses contra no registro histórico.
Feuerbach” que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, O pensamento de Marx transitava entre apreensões metonímicas da
cabe transformá-lo” (69; trad. bras., 53), queria dizer não que os homens não situação dividida da humanidade em seu estado social e insinuações sinedóqui-
296 HAYDENWHITE METAHISTÓR1A 297

cas da unidade que ele divisava no fim de todo o processo histórico. Como pode com o homem é constituída. E isso quer dizer que, para Marx, a história devia
o homem ser imediatamente determinado e potencialmente livre? Como pode ser posta em enredo de duas maneiras simultaneamente: no modo da tragédia
ele ser cindido e fragmentado em seu devir, embora íntegro e uno em seu ser? e no modo da comédia. Pois, embora vivo tragicamente, visto que suas tentativas
Essas são as questões que preocupavam Marx. Ele precisava de dois tipos de de construir uma comunidade humana viável são continuamente frustradas
linguagem para caracterizar esses diferentes estados ou condições. E efetiva­ pelas leis que regem a história enquanto ele permanecer no estado social, o
mente dividiu o registro histórico em duas ordens de fenômenos, horizontal­ homem também vive comicamente, porquanto essa interação entre homem e
mente, por assim dizer, uma das quais era correlacionada integralmente por sociedade progressivamente o impele para uma situação em que a própria
estratégias metonímicas de caracterização, a outra correlacionada por estraté­ sociedade será dissolvida e uma autêntica comunidade, um modo comunístico
gias sinedóquicas de caracterização. O problema de Marx, então, consistia em de existência, se constituirá como seu verdadeiro destino histórico.
articular as duas ordens assim distinguidas.
Ele as articulou, de fato, metonimicamente, numa relação causa-efeito; e
essa é a marca e também a medida da concepção basilarmente materialista da O MODELO BÁSICO DE ANÁLISE
história de Marx. Quando dizia que sua concepção da história era materialista-
dialética, o que Marx queria dizer era que concebia os processos da infra-es­
O modelo da estratégia analítica que Marx empregou para abarcar todos
trutura da sociedade mecanicisticamente e os processos da superestrutura
os fenômenos históricos recebeu uma de suas mais claras formulações no
organicisticamente. Essa combinação por si só permitia-lhe acreditar que, em
capítulo I de O Capital, onde o autor expôs a teoria do valor como expressão do
última análise, uma estrutura de relações humanas que é por natureza essen­
trabalho com o fim de obter uma distinção entre o “conteúdo” e a “forma” de
cialmente extrínseca e mecânica pode resultar numa estrutura qualitativamente
valor de todas as mercadorias produzidas pelo homem. Esse capítulo, intitulado
diferente, intrínseca e orgânica no modo de relacionar as partes com os todos.
“Mercadorias”, divide-se em quatro partes, das quais as duas primeiras tratam
Marx portanto elaborou o enredo dos processos históricos em dois níveis, do conteúdo do valor das mercadorias e as duas últimas tratam da forma que o
o da infra-estrutura e o da superestrutura. No nível da infra-estrutura não há valor assume em diferentes sistemas de troca.
senão uma sucessão de diferenciados meios de produção e dos modos de suas As mercadorias, disse Marx, são as “unidades elementares” da “riqueza
relações, sucessão que é regida por precisas leis causais semelhantes às que das sociedades em que prevalece o método capitalista de produção” (Capital,
prevalecem na natureza. No nível da superestrutura, porém, há um genuíno Paul (Org.), 3). E em seguida ele distinguiu, com base na teoria do valor como
progressus, uma evolução de modalidades de relacionar o homem com o homem. expressão do trabalho, entre o valor de uso e o valor de troca de uma mercadoria,
No nível da infra-estrutura, onde os modos de produção tomam forma, há um nos termos da distinção entre o conteúdo e a forma fenomenal de qualquer
progressus, certamente: o conhecimento e controle cada vez mais nítido, por mercadoria oferecida para troca em qualquer sistema econômico, primitivo ou
parte do homem, sobre o mundo físico e seus processos. Já no nível superestru- avançado. O valor de uso de uma mercadoria, afirmou Marx, é fornecido pelo
tural o progressus consiste num aprofundamento da percepção, pela consciência “trabalho humano abstrato que foi nele concretizado ou materializado”. O
humana, de alienação do homem a respeito de si mesmo e de seu semelhante e
homem pode medir esse valor, disse Marx, por meio da “quantidade da subs­
um correspondente desenvolvimento das condições sociais em que é possível
tância ‘criadora de valor* nele contida - a quantidade de trabalho” (7). Isso quer
transcender essa alienação.
dizer que, “enquanto valores, as mercadorias nada mais são do que massas
Assim, como a concebia Marx, a história da humanidade em geral repre­ determinadas de tempo de trabalho congelado” (8).
senta uma dupla evolução: um ascenso, na medida em que o homem adquire Ressaltou Marx, porém, que o valor de troca de uma mercadoria não é o
controle cada vez maior sobre a natureza e seus recursos mediante o desenvol­ mesmo que o valor a ela atribuído num dado sistema de troca. Em qualquer
vimento da ciência e da tecnologia; e um descenso, na medida em que o homem sistema real de troca, as mercadorias têm valores que aparentemente não
se torna cada vez mais alienado de si mesmo e de seu semelhante. Esse duplo guardam relação alguma com as quantidades de trabalho requeridas para sua
movimento permitiu a Marx acreditar que toda a história se encaminhava para produção. Os homens trocam mercadorias dentro de sistemas que as dotam de
uma crise decisiva, um conflito em que o homem ou entraria em seu reino na um valor de troca diferente daquele através do qual seus valores de uso
terra ou se destruiria a si mesmo e à natureza da qual emergira e à qual se opunha poderiam ser determinados com exatidão. Isso significa que as formas dos
na luta por sua própria humanidade. valores que as mercadorias representam num dado sistema de troca são dife­
Isso significa que a filosofia da história de Marx comporta uma análise rentes de seus valores de uso reais, ou conteúdos de valor. As mercadorias têm
sincrônica de uma estrutura básica de relações que permanece constante ao para fins de troca valores diferentes dos que têm para fins de uso. E o problema,
longo da história e uma análise diacrônica do movimento significativo pelo qual como Marx o via, consiste em explicar esse diferencial entre a forma (o valor de
essa estrutura é ultrapassada e uma nova modalidade de relacionar o homem troca) e o conteúdo (o valor de uso) das mercadorias. Se logramos explicar o
298 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 299

diferencial, podemos oferecer um método de distinguir entre as mutáveis acabado, do resultado visível do processo evolutivo. Os caracteres que assinalam os produtos do
formas fenomenais do valor de um lado e o imutável conteúdo do valor das trabalho como mercadorias, caracteres que elas devem possuir antes que possam circular como
mercadorias do outro. A concepção de Marx era que, embora o valor de uso de mercadorias, já adquiriram a fixidez de formas naturais da vida social, quando os economistas
começam a estudar-lhes, não propriamente a história (...), mas o significado. Assim, foi somente a
uma mercadoria seja constante, dado pela quantidade de trabalho socialmente análise dos preços das mercadorias que levou à determinação da grandeza dos valores, foi só a
necessário exigido para sua produção, o valor de troca é variável e mutável, dado expressão comum de todas as mercadorias cm dinheiro que as levou a serem reconhecidas como
pelas relações reais que prevalecem dentro de diferentes situações históricas, “valores”. Mas essa forma acabada do mundo das mercadorias, essa forma dinheiro, é a coisa
ou sistemas de troca, em diferentes épocas e diferentes lugares. mesma que vela, em vez de revelar, o caráter social do trabalho privado e individual, e com isso
O que me interessa aqui é a análise de Marx das diversas formas que o oculta as relações sociais entre os produtores individuais. Quando digo que casacos ou botas e não
sei que mais se relacionam com o linho como a corporificação geral de trabalho humano abstrato,
aspecto fenomenal do valor de uma mercadoria assume e as relações entre essas
a declaração parece manifestamente absurda. Entretanto, quando os produtores de casacos, botas
formas e o valor atual, ou real, de qualquer mercadoria que, do ponto de vista etc., põem essas mercadorias em relação com o linho como equivalente geral (ou com o ouro ou a
marxiano, permanece constante sejam quais forem as mudanças sofridas pela prata como equivalente geral, pois a natureza da situação é a mesma), é precisamente nessa forma
forma fenomenal. Pois essas duas modalidades de relações, entre as formas do absurda [verrückten Form] que a relação entre seu trabalho privado e o trabalho coletivo da
valor de um lado e entre.as formas e o conteúdo constante do valor do outro, são sociedade se revela para eles [49 (ed. alemã, 89-90); grifos acrescentados].
rigorosamente análogas às relações que ele supõe que existam entre as formas
fenomenais do ser histórico (social) de um lado e seu conteúdo constante Deve-se notar que Marx caracterizou a forma dinheiro do valor como
(humano) do outro. “absurda”. É absurda porque os homens, pelo menos, no mundo burguês,
Em primeiro lugar, Marx insistia em que, embora o valor real de qualquer insistem em caracterizar o valor das mercadorias que produzem e trocam em
mercadoria seja fixado pela quantidade de trabalho socialmente necessário termos de seu valor de troca por ouro, o menos útil de todos os metais na opinião
despendido em sua produção, a forma fenomenal do valor de qualquer merca­ de Marx. Todo o peso da análise marxiana do conteúdo e da forma do valor das
doria, seu valor de troca, varia e pode assumir qualquer uma das quatro formas mercadorias iria revelar o absurdo desse impulso para equiparar o valor de uma
seguintes: a forma simples (singular ou acidental) de valor, a forma total (ou mercadoria a seu equivalente em ouro. Isso é o que Marx queria dizer quando
desdobrada), a forma geral e a forma dinheiro (Geldform). Na primeira forma, caracterizou a sociedade burguesa como tendo sido fundada no “mistério” do
o valor de uma mercadoria é equiparado ao valor que se presume existir em fetichismo das mercadorias. Na sociedade burguesa os homens fazem questão
alguma outra mercadoria. Na segunda, o valor de uma mercadoria é, no dizer de obscurecer o quanto o, valor das mercadorias reside na quantidade de
de Marx, “expresso nos termos de inumeráveis outros elementos do mundo das trabalho socialmente necessário despendido em sua produção, e de equiparar
mercadorias” (34), de tal modo que o valor de uma mercadoria pode ser esse valor a seu valor de troca por ouro. A instituição de uma mercadoria
expresso numa “série interminável” de outras mercadorias. Na terceira forma, socialmente inútil, como o ouro, como critério para determinar o valor de
o valor de todas as mercadorias pode ser expresso em termos de uma mercadoria mercadorias produzidas pelo trabalho humano, é, de acordo com Marx, evidên­
da série, como quando se considera que um casaco, quantidades determinadas cia da insanidade do tipo de sociedade que se organiza segundo diretrizes
de chá, café, trigo, ouro, ferro etc. “valem” uma certa quantidade de alguma burguesas em resposta aos imperativos do modo de produção capitalista.
outra mercadoria, como linho, de modo que o valor comum de todas, a quanti­ Na perspectiva de Marx, as mercadorias existem na realidade como um
dade de trabalho necessário para sua produção, pode ser equiparado em termos conjunto de entidades individuais, cujo valor real é determinável pelas quanti­
de apenas uma outra mercadoria. E, na quarta forma, o valor surge quando a dades específicas de trabalho socialmente necessário aplicado em sua produ­
mercadoria específica, ouro, se impõe como o padrão pelo qual o presumido ção. Mas existem na consciência dos homens somente na medida em que têm
valor de todas as outras mercadorias pode ser estabelecido e determinado. um valor de troca por outras mercadorias, e especificamente pela mercadoria
No entender de Marx, essa quarta forma do valor, a forma dinheiro, ouro. Como se pode explicar esse estranho fato?
representa o ponto de partida obrigatório de todas as análises do valor real das . No capítulo I, parte 3, de O Capital, Marx discorreu sobre a fornia do valor
mercadorias. A forma dinheiro do valor é o “mistério” que cumpre resolver na - isto é, do valor de troca das mercadorias - com o fito de explicar o desenvol­
análise econômica, mistério que consiste no fato de que os homens, que com vimento da forma dinheiro do valor, por um lado, e preparar os leitores para
seu trabalho criam o valor que é inerente às mercadorias como valor de uso, sua solução do “mistério do caráter fetichista das mercadorias”, por outro. Na
insistem em interpretar o valor das mercadorias em termos de seu valor de troca, introdução a essa seção de sua obra ele escreveu:
e especificamente em termos de seu valor de troca em ouro. Como disse o
próprio Marx: Compete-nos descobrir a origem da forma dinheiro; acompanhar o desenvolvimento da
expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, de modo a avançar de sua
O pensamento do homem sobre as formas de vida social, sua análise científica dessas configuração mais simples e mais obscura até a esplendidamente óbvia forma dinheiro. Então o
formas, contrapõe-se ao curso real da evolução social. O homem começa por um exame do produto enigma do dinheiro deixará de ser um enigma [17 (62)].
300 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 301

Em seguida estabeleceu a distinção entre as quatro formas de valor: a determinantes um do outro, e inseparáveis; mas ao mesmo tempo são mutua­
forma simples (ou acidental), a forma total (ou desdobrada), a forma geral e a mente exclusivos ou extremos contrastados, opostos polares da mesma expres­
forma dinheiro. são de valor” (Ibid.). Como concluiu Marx:
O que me interessa na análise de Marx é a estratégia que ele utilizou para
deduzir o suposto fato do fetichismo do ouro do fato de uma equação ordinária, Sc uma mercadoria se situa na forma relativa de valor, ou na forma oposta, equivalente,
e natural, de valores de uso relativos na forma original de troca. Pois essa depende apenas da posição que por acaso ela ocupe na expressão do valor - depende de se ela é a
mercadoria cujo valor é expresso, ou é a mercadoria em função da qual o valor de alguma outra
estratégia pode servir de modelo do método de Marx de analisar as transforma­
mercadoria é expresso [Ibid.; grifos acrescentados].
ções que ocorrem no nível fenomenal de todos os processos de desenvolvimento
que são especificamente sociais e históricos (antes que naturais).
Em suma, na linguagem da valorização, se uma mercadoria é dotada de
A estratégia pode ser considerada dialética na essência, no sentido hege- valor relativo ou equivalente depende de sua posição num lado ou no outro de
liano desse termo; e as quatro formas de valor podem ser consideradas, se se uma expressão metafórica. A metáfora que reside no coração de toda expressão
quiser, como valor em si, valor para si, valor em e para si, e valor por, em e para atribui um valor a uma mercadoria em função de alguma outra mercadoria, que
si. Mas é óbvio - como observou Michel Foucault - que a análise dialética é a chave de “todo o mistério da forma de valor”. A metáfora fornece a chave
empreendida por Marx da forma fenomenal do valor representa pouco mais do para entender como entidades puramente materiais ou quantitativas chegam a
que uma extensa exegese da palavra “valor” (Foucault, 298), e que o que Marx ser dotadas de atributos espirituais ou qualitativos. E o entendimento da
realizou foi uma análise tropológica do modo como o conceito “valor” é metáfora proporcionou a Marx o método capaz de pôr a nu a falsa espirituali­
apreendido pelos homens em diferentes estágios de sua evolução social.
dade de todas as mercadorias, e especialmente do ouro.
Por exemplo, o modelo de Marx da forma simples (ou acidental) de valor Que as diferentes formas de valor (em contraste com o verdadeiro con­
é o de uma equação construída como uma relação metafórica entre duas teúdo do valor de qualquer mercadoria dada, a quantidade de trabalho social­
mercadorias quaisquer. Disse ele:
mente necessário empregado em sua produção) são produtos de modos de
consciência é evidente em razão do que Marx disse em sua análise da forma
Escrevemos x mercadoria A = y mercadoria B\ ou dizemos que x mercadoria A “vale” y
mercadoria B. No concreto, escrevemos 20 varas de linho = 1 casaco; ou dizemos que 20 varas de relativa de valor. Se queremos descobrir como a expressão simples do valor de
linho “valem” um casaco [Capital, Pau! (Org.), 18). uma mercadoria “se oculta na relação de valor entre duas mercadorias”, disse
Marx, devemos “começar por considerar a relação independentemente de seu
Mas esse tipo de equação não é o simples enunciado de um equivalente aspecto quantitativo”. Ele criticou aqueles que “seguem o caminho oposto,
aritmético. Uma relação mais forte, mais profunda, esconde-se dentro de sua vendo numa relação de valor nada mais do que a proporção em que quantidades
forma aparentemente aritmética. Marx afirmou que “todo o mistério da forma definidas de dois tipos diferentes de mercadorias podem ser equiparadas”. No
do valor oculta-se nessa forma elementar” (Ibid.). Pois, como ele disse, no entender de Marx, tal análise esconde o fato de que as “grandezas de coisas
enunciado da equivalência de A eB: diferentes não podem ser qualitativamente comparadas enquanto não forem
expressas em termos da mesma unidade” (19; grifos acrescentados). Em expres­
A c B, dois tipos diferentes de mercadoria (linho e casaco em nosso exemplo concreto), sões metafóricas esta mesma unidade pressuposta está oculta, e a atenção se
desempenham papéis obviamente distintos. O linho expressa o valor do casaco; o casaco serve de volta exclusivamente para os atributos externos dos objetos comparados na
meio para a expressão desse valor. A primeira mercadoria desempenha um papel ativo-, a segunda, equação. Mas o que é essa mesma unidade oculta?
um papel passivo. O valor da primeira mercadoria é apresentado como valor relativo ou compara­
tivo, ou aparece numa forma relativa. A segunda mercadoria funciona como equivalente ou aparece
Podemos expor a questão deste modo. Como valores, as mercadorias são meras gelatinas
numa forma equivalente [Ibid.-, grifos acrescentados].
[Gallerten] de trabalho humano, e por esse motivo nossa análise as reduz a valor em abstrato, mas
não lhes confere nenhuma forma de valor diferente de sua forma material. Dá-se o contrário
Em suma, a cópula que liga A e B numa relação de aparente equivalência quando lidamos com a relação de valor entre uma mercadoria e outra. Então o caráter do valor da
é transitiva, ativa e, em termos mais específicos, anaclasticamente apropriadora. primeira mercadoria se manifesta em virtude de sua relação com a segunda [20 (65)].
Na expressão “A = B”, o valor da mercadoria simbolizada por A é
“apresentado como relativo ou comparativo”, enquanto o da mercadoria sim­ A mercadoria A e a mercadoria B são, na realidade, sustentou Marx,
bolizada por B é “equivalente”. A cópula estabelece uma relação metafórica formas “concretizadas” de uma “gelatina de trabalho humano”, que é o conteú­
entre as coisas comparadas. Expressa a um só tempo uma diferença e uma do oculto de todo produto humano. Quando se equipara um casaco a uma
similaridade, ou “uma forma relativa de valor” e uma “forma equivalente”, que, mercadoria de linho, numa expressão de uma forma de valor, “a alfaiataria é na
nas palavras de Marx, “são fatores reciprocamente dependentes, mutuamente realidade reduzida àquilo que é idêntico nos dois tipos de trabalho” exigido
para a produção de ambas as mercadorias, vale dizer, “é reduzida a seu caráter
302 HAYDENWHITE METAHISTÓRIA 303

homens. O homem Pedro apreende sua relação consigo mesmo como ser humano através da
comum de trabalho humano”. Dessa “maneira indireta”, Marx estava, de fato,
tomada dc consciência de sua relação com o homem Paulo como um ser seu semelhante. Em
“dizendo que a tecelagem, na medida em que tece valor, não pode diferenciar-se consequência disso, Paulo, de carne e osso, com toda a sua corporeidade paulínia, toma-se para
da alfaiataria, porquanto é trabalho humano abstrato”. Esse trabalho humano Pedro a forma fenomenal do gênero humano [23, n.l].
abstrato está expresso na afirmação de uma equivalência entre duas mercado­
rias quaisquer. E essa afirmação reduz “os diversos tipos de trabalho corpori- Interessavam a Marx as relações entre coisas, aquelas relações pelas quais
ficados nas diversas mercadorias àquilo que é comum a todas elas, ao trabalho as coisas são capazes de assumir um aspecto fenomenal diferente do que elas
humano em abstrato” (20-21). são “em si mesmas”. Os homens não gozam de “humanidade” específica, salvo
Por meios lingüísticos, portanto, os homens obliquamente rendem tributo em suas relações recíprocas. Assim, também, uma pista para o entendimento
a seu próprio trabalho como aquilo que dá valor a todas as mercadorias. do valor das mercadorias encontra-se na posição de qualquer mercadoria numa
Consequentemente, apreender a natureza da redução lingüística é apreender a relação metafórica com alguma outra mercadoria na mente dos homens. Como
natureza do que Marx chamou “a linguagem das mercadorias” (der Warenspra- disse Marx:
che) (22 [66]), e ao mesmo tempo entender as formas fenomenais que o valor
assume em diferentes sistemas de troca. Essa linguagem das mercadorias é uma Vemos que tudo o que nos disse nossa análise do valor das mercadorias é revelado pelo
linguagem de relações extrínsecas, mascarando o que é na realidade uma relação próprio linho assim que entra em relação com outra mercadoria. Ele nos comunica seus pensa­
intrínseca (o elemento comum do trabalho inerente a todas as mercadorias) mentos na única linguagem que conhece - a linguagem das mercadorias. Para nos dizer que seu
próprio valor é criado pelo trabalho na forma abstrata de trabalho humano, ele diz que o casaco,
entre duas mercadorias quaisquer que poderiam ser comparadas uma com a
na medida em que lhe é equivalente, é também valor e consiste no mesmo trabalho que o linho.
outra como base para qualquer ato de troca. Assim, escreveu Marx: Para nos dizer que sua realidade sublimada como valor difere de seu corpo entretelado, ele diz que
o valor se assemelha a um casaco e que, consequentemente, na medida em que o linho é um valor,
Na produção do casaco despendeu-se trabalho humano na forma de alfaiataria. Nele, ele e o casaco se parecem como duas gotas d’água. Permitam-me dizer de passagem que a linguagem
portanto, armazenou-se trabalho humano. Sob esse aspecto, o casaco é um “depositário de valor”, das mercadorias tem muitos outros dialetos mais ou menos corretos além do hebraico. O alemão
ainda que tal qualidade de depositário continue oculta mesmo que ele esteja surrado pelo uso. Por wertsein, por exemplo, expressa (ainda que menos convincentemente que o verbo neolatino valere,
mais rigorosamente abotoado que esteja o casaco, o linho olha para dentro e reconhece no casaco valer, valoir) o fato de que a equiparação da mercadoria B à mercadoria A é o modo de A expressar
a bela alma de valor aparentada à do próprio linho. Mas o casaco não pode expressar valor em seu valor. “Paris vaut bien une messe” [22-23].
relação ao linho, a menos que, do ponto de vista do linho, esse valor assuma a forma de um casaco.
Da mesma maneira, A não pode assumir o aspecto da majestade de um rei perante B a menos que,
Por meio então da “relação de valor” representada na expressão metafó­
aos olhos de B, a idéia de “majestade” se associe à forma corpórea de A - o que significa que
“majestade” terá de modificar as feições, o cabelo e outras características corporais quando um
rica “X = B”, a “forma natural da mercadoria B torna-se assim a forma de valor
novo rei subir ao trono. (...) Como um valor de uso, o linho é algo que para nossos sentidos é da mercadoria A, ou o corpo da mercadoria B atua como um espelho para o
obviamente diferente do casaco; como valor é o equivalente do casaco, e portanto parece com um valor da mercadoria/T. E, na medida em que “a mercadoria^ se relaciona com
casaco. Desse modo adquire uma forma de valor diferente de sua forma física. A essência de seu a mercadoria B como a corporificação de valor, como trabalho humano mate­
valor é manifesta em sua semelhança com o casaco, assim como a natureza ovina do cristão é rializado, faz com que o valor de uso B sirva de material para a expressão de seu
manifesta em sua semelhança com o Cordeiro de Deus [Ibid.].
próprio valor. O valor da mercadoria A, assim expresso no valor de uso da
mercadoria B, toma a forma de valor relativo” (23).
O fantasioso da linguagem de Marx nessas passagens não deve ser des­ Frisei a distinção de Marx entre a “forma” e o “conteúdo” do valor contido
cartado como irrelevante para o objetivo de sua análise das formas dè valot. em qualquer mercadoria dada porque é precisamente análoga à distinção que
Essa fantasia é necessária para comunicar sua concepção do modo como a ele queria estabelecer em sua filosofia da história entre os “fenômenos” do
consciência funciona com o fim de dotar as coisas, os processos e acontecimen­ processo histórico e seu “sentido” interno, ou oculto. A forma fenomenal da
tos de (falso) sentido. O mundo das coisas, na perspectiva de Marx, é um mundo história é a sucessão de diferentes tipos de sociedade atestados pelo registro
de individualidades isoladas, particularidades que parecem não ter nenhuma histórico em sua forma não-analisada. As formas da sociedade mudam do
relação essencial umas com as outras. O valor realmente atribuído a uma dada mesmo modo que as formas de valor, mas seu sentido, a significação dessas
mercadoria como base para um ato de troca é um produto da consciência. Mar< mudanças, permanece tão constante quanto a “gelatina” de trabalho que dota
deu a entender que os homens conferem sentidos às coisas, da mesma f< >rrra todas as mercadorias de seu valor verdadeiro ou essencial. Isso quer dizer que
que, através do trabalho, criam mercadorias e dotam-nas de valor. Dc fato, as formas de sociedade produzidas pelo processo histórico estão para as formas
numa nota de rodapé Marx disse que, de valor como os modos de produção que determinam as formas de sociedade
estão para o conteúdo de valor das mercadorias. As formas da existência histórica
de certo modo, acontece com o ser humano o que acontece com a mercadoria. Visto que o w.r
humano não vem ao mundo trazendo consigo um espelho, nem tampouco como um filósofo
são dadas na superestrutura; o conteúdo da existência histórica é dado na
fichtiano que é capaz de dizer “eu sou eu”, ele se reconhece primeiro como refletido em outros infra-estrutura (nos modos de produção). E as formas de existência histórica,
304 HAYDENWTJTTE META-HISTÓRIA 305

as formas fundamentais da sociedade, são as mesmas em número que as formas produção das mercadorias individuais. Mas, em virtude da propensão dos
de valor. homens envolvidos em sistemas específicos de troca a esconder de si mesmos o
Há quatro formas básicas de valor e também de sociedade. As formas de verdadeiro conteúdo do valor que percebem ser inerente a todas as mercado­
valor são a forma simples, a total, a geral e a forma dinheiro. As formas de rias, o valor compartilhado que é inerente a todo o conjunto de mercadorias é
sociedade são a comunista primitiva, a escravista, a feudal e a capitalista. E a sinedoquicamente unificado como a quantidade em ouro a que as mercadorias
questão que se coloca é esta: serão as formas de sociedade e os modos de podem fazer jus no sistema de troca. E essa “absurda” atribuição ao ouro do
transição de uma forma de sociedade para outra análogos às formas de valor e poder de representar o valor de todas as mercadorias em qualquer sistema de
aos modos de transição de uma forma de valor para outra (apresentados em O troca explica o “fetichismo do ouro” que caracteriza os sistemas avançados de
Capital como a solução do “enigma” do fetichismo do ouro)? Se forem, de fato, troca.
análogos, teremos descoberto uma pista para o correto entendimento da teoria Assim, a trajetória ou evolução das formas de valor, levando da caracte­
da história de Marx e, ao mesmo tempo, teremos estabelecido a continuidade rização originária (metafórica) do valor de uma mercadoria em termos de sua
conceptual entre suas primeiras e suas últimas obras. equivalência com alguma outra mercadoria para a caracterização (irônica) do
valor de uma mercadoria em função da quantidade de ouro (ou dinheiro) que
Mais especificamente: para Marx, como escreveu em O Capital, as formas
ela rende no sistema de troca, prossegue por meio das duas estratégias tropo-
de valor eram concebidas como sendo geradas pela expressão primitiva, origi­
lógicas de redução e integração que esperávamos: pela metonímia, de um lado,
nária, ou metafórica de equivalência, de modo a explicar o fetichismo do ouro
e pela sinédoque, do outro. A última forma de valor analisada por Marx nessa
que caracteriza os sistemas avançados de troca. Mas o verdadeiro conteúdo do
seção de O Capital, a da forma dinheiro, é irônica precisamente na medida em
valor de todas as mercadorias continua essencialmente o mesmo: o trabalho
que, na explicação dada por ele, o trabalho necessário despendido em sua
despendido na produção das mercadorias. O mesmo ocorre na história das
produção é encoberto pela atribuição a esse trabalho de um valor concebido na
sociedades. Suas formas mudam, mas o conteúdo subjacente a essas mudanças
forma de um equivalente em dinheiro (ou ouro). É irônico também na medida
da forma permanece constante. Esse conteúdo compreende os modos de
em que a caracterização do valor de uma mercadoria em termos de seu
produção pelos quais o homem se relaciona com a natureza. Os componentes
equivalente em dinheiro contém ao mesmo tempo uma verdade e um erro. A
desses sistemas podem mudar, impondo desse modo transformações nas rela­
verdade nela contida reflete-se no impulso de considerar todas as mercadorias
ções sociais criadas com base neles. Mas a verdadeira significação dessas
em termos de um padrão universal de avaliação; o erro consiste na identificação
mudanças não há de ser encontrada na contemplação da forma fundamental da
desse padrão como o equivalente em dinheiro a que uma mercadoria poderia
sociedade em estudo; ela reside nas transformações que ocorrem nos modos de
produção. fazer jus dentro de um dado sistema de troca. A natureza fetichista da identifi­
cação do valor de todas as mercadorias com seu equivalente em ouro é ao
Cumpre salientar que, logo que analisou a forma simples do valor e mesmo tempo a condição do auto-engano dos mais avançados sistemas de troca
revelou sua natureza essencialmente metafórica, Marx passou a expor a natu­ e a precondição da libertação da consciência para a apreensão da verdadeira
reza de cada uma das outras três formas de valor, culminando no fetichismo do base de atribuição de valor a qualquer mercadoria, a teoria do valor como
ouro, em termos puramente tropológicos. A forma total, ou desdobrada, de expressão do trabalho que Marx utilizou como o fundamento de sua análise,
valor nada mais é do que a conceptualização do valor das mercadorias na tanto das forças quanto das fraquezas do sistema de troca conhecido como
modalidade da metonímia. Aqui as relações entre mercadorias são concebidas capitalismo.
com base na apreensão de sua posição numa série que é infinitamente extensível,
A segunda metade do primeiro capítulo de O Capital, portanto, é um
de modo que as mercadorias se relacionam com todas as outras mercadorias na
exercício de ironia, que consiste como realmente consiste no desmascaramento
forma do conjunto: “A = B”, “B = C”, “C = D”, = E”,... n, sendo o valor
da natureza puramente ficcional de todas as concepções do valor das mercado­
de qualquer mercadoria apreendido como equivalente a uma específica quan­
rias que não começam pela apreensão da verdade da teoria do valor como
tidade de qualquer outra mercadoria no sistema de troca. Mas essa apreensão
expressão do trabalho. Em resumo, a teoria do valor como expressão do
da existência de mercadorias dentro de uma série extensa sugere, pela própria
trabalho serve de linha de base a partir da qual é possível superar todas as
extensividade do conjunto, a possibilidade de um valor que é partilhado em
comum por todas elas. Em suma, a possibilidade da forma geral de valor é concepções errôneas do valor.
sugerida pelo próprio fato de que as mercadorias podem ser organizadas de Cabe ressaltar, porém, que Marx não insistiu em que as várias formas de
modo a serem partes de um sistema total de relações puramente extrínsecas. valor fornecidas pelas reduções tropológicas são totalmente errôneas. Cada
Assim, por sinédoque, a série de mercadorias metonimicamente proporcionada uma contém uma importante visão da natureza do valor em geral. Essas visões
pode ser dotada dos atributos de partes de um todo. Na visão de Marx, esse decorrem do impulso legítimo no sentido de descobrir a verdadeira natureza
valor de todo o conjunto não é senão o trabalho “congelado” despendido na do valor que as mercadorias têm em qualquer sistema de troca. Mas a verda­
30ó HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 307

deira base de todo valor é obscurecida e permanece oculta à percepção em Desse postulado ele passou a sustentar que o primeiro ato histórico não
qualquer análise que parta de uma consideração da forma e não do conteúdo. é espiritual, mas puramente animal: “A produção da própria vida material”.
Assim, a história do pensamento acerca das formas do valor descreve uma Isso permitiu a Marx criticar todas as tentativas anteriores de descobrir uma
ininterrupta descida da consciência nos abismos de sua própria capacidade de distinção “essencial” entre uma natureza genericamente animal e uma natureza
auto-engano e alienação. O ponto mais baixo dessa descida é a situação em que especificamente humana. Assim, escreveu: “Os homens podem distinguir-se
os homens negam a si mesmos o mérito de seu próprio trabalho, que é ocultado dos animais pela consciência, pela religião, ou por qualquer coisa que se queira.
como o verdadeiro conteúdo dos valores de todas as mercadorias, a fim de dotar Eles mesmos começam a distinguir-se dos animais logo que começam a produzir
um metal insignificante, o ouro, das virtudes do poder incomparável que os seus meios de subsistência” (53). A natureza dessa produção, argumentou
homens têm de criar o valor em si. Marx, é “determinada” pela constituição física dos homens. Ao produzir seus
Mas qual é a natureza da relação entre a teoria do valor como expressão meios de subsistência, os homens indiretamente produzem “sua vida material
do trabalho, com base na qual Marx criticou todas as outras concepções do valor real”. Assim entendida, a consciência humana é simplesmente o meio peculiar
das mercadorias, e aquelas outras formas falsas, ou ilusórias, de valor que ele que o homem tem à sua disposição, como parte de seu dote natural, para
analisou? Dir-se-ia ser uma relação metonímica e inevitavelmente, portanto, explorar seu meio ambiente e dele se nutrir. Posteriormente, em O Capital
redutiva. Pois Marx insistiu em que os fenômenos de troca de mercadorias (1867), Marx estendeu-se sobre essa idéia:
fossem divididos em duas ordens do ser: sua forma, por um lado, e seu verda­
deiro conteúdo, por outro - em suma, nas ordens fenomenal e numenal do ser. O trabalho é, cm primeiro lugar, um processo em que participam o homem e a natureza, e
Admitida essa distinção, é necessário investigar os fundamentos que justificam em que o homem espontaneamente inicia, comanda e controla as relações materiais entre ele
pensar que se relacionam na prática. Por que o verdadeiro conteúdo do valor mesmo e a natureza. Ele se opõe à natureza como uma de suas forças, pondo em movimento braços
de todas as mercadorias é reprimido pela consciência em benefício das várias e pernas, cabeça e mãos, as forças naturais do seu corpo, a fim de se apropriar das produções da
natureza deforma adaptada às suas carências. Assim atuando sobre o mundo externo e modifican­
formas fenomenais analisadas por Marx? Esse problema é a um só tempo do-o, ele ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desperta seus poderes adormecidos e
psicológico, sociológico e histórico: e, para compreendermos a solução que lhe os força a agir em obediência ao seu comando. Não nos ocupamos agora com aquelas primitivas
deu Marx, temos de recorrer a uma análise de sua teoria da consciência, de um formas instintivas de trabalho que nos fazem recordar o simples animal. Um incomensurável
lado, e de sua filosofia da história, do outro. intervalo de tempo separa a situação em que um homem leva sua força de trabalho ao mercado
para vender como mercadoria, da situação em que o trabalho humano estava ainda em seu primeiro
estágio instintivo [Bottomore (Org.), 88 (192); grifos acrescentados].

A “GRAMÁTICA” DA EXISTÊNCIA HISTÓRICA Na dinâmica do esforço humano, portanto, uma natureza especificamente
humana está potencialmente presente. Assim, escreveu Marx:
Marx concebeu as linhas gerais de sua teoria da história nos fins da década
de 1840, enquanto tentava fazer face às principais escolas de pensamento social Pressupomos o trabalho numa forma que o caracteriza como exclusivamente humano. Uma
da geração anterior: o idealismo alemão, o socialismo francês e a economia aranha realiza operações que se assemelham às do tecelão, e uma abelha mete muito arquiteto no
chinelo ao construir seus alvéolos. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é o
política inglesa. Fundamental para sua posição nessa época - posição que ele e
fato de que o arquiteto edifica sua estrutura na imaginação antes de erigi-la na realidade. No final
Engels iriam considerar cientificamente confirmada por Darwin mais tarde - de todo o processo de trabalho obtemos um resultado que já existia na imaginação do trabalhador
era a convicção de que a consciência no homem é apenas uma capacidade mais desde o início. Ele não somente efetua uma mudança de forma no material em que trabalha como
eficiente, antes que qualitativamente diferente, de regular as relações entre o também alcança um objetivo próprio que fornece a lei a seu modus operandi e à qual sua própria
animal humano e seu ambiente com vistas à satisfação de necessidades primá­ vontade deve subordinar-se. E essa subordinação não é um ato apenas momentâneo. Além do
rias (físicas) e secundárias (emocionais). E ele seguiu Feuerbach ao colocar no esforço dos órgãos corporais, o processo exige que, durante toda a operação, a vontade do
trabalhador esteja em firme consonância com seu objetivo. Isso significa atenção contínua. Quanto
centro mesmo de sua reflexão o fato de que embora a natureza possa existir sem
menos é ele atraído pela natureza do trabalho, e pelo modo como é executado, e quanto menos,
a consciência, a consciência não pode existir sem a natureza. Assim, em A portanto, aprecia esse trabalho como algo que dá liberdade de ação a seus poderes corporais e
Ideologia Alemã, Marx escreveu: mentais, mais redobrada tem de ser a sua atenção [88-89 (192-93)].

Devemos começar por enunciar o primeiro pressuposto de toda a existência humana, e E daí se seguía, como Marx já havia observado em^4 Ideologia Alemã, que
portanto de toda a história, a saber, que os homens devem estar em condições de viver para “fazer
história”. Mas a vida implica, antes de tudo o mais, comer e beber, habitação, roupa e muitas outras
a maneira pela qual os homens produzem seus meios de subsistência depende em primeiro lugar
coisas [Bottomore (Org.), 62].
da natureza dos meios existentes que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser
considerado simplesmente como a reprodução da existência física dos indivíduos. É já uma forma
308 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 309

definida de atividade desses indivíduos, um definido modo de vida. Assim como os indivíduos Assim como a forma simples (ou acidental) do valor contém “todo o
expressam sua vida, assim eles são. O que eles são, portanto, coincide com sua produção, com o mistério da forma do valor” em geral, assim também a forma simples de
que produzem e com o modo como o produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das sociedade e sua concomitante forma de consciência contêm o mistério da forma
condições materiais de sua produção [Bottomore (Org.), 53-54].
de sociedade em geral. No Manifesto Comunista, efetivamente, Marx falou em
três formas principais de organização social (escravista, feudal e capitalista); e
Essa redução permitiu que Marx deduzisse os três pressupostos (ou, como foi só numa nota acrescentada por Engels que se fez alusão a uma quarta forma,
ele os denominou numa referência irônica à prática dos filósofos alemães da a do comunismo primitivo. Mas já na Ideologia Alemã Marx havia caracterizado
época, os “momentos”) da consciência humana. São eles: primeiro, o impulso o modo de consciência dessa forma primitiva de organização social como
de satisfazer necessidades (primárias e secundárias); em seguida, a capacidade metafórica. Assim, escreveu:
de reproduzir outros homens e manter a vida da espécie, da qual deriva o
primeiro grupo social, a família; e, finalmente, a constituição dos modos de Aqui, como em toda parte, a identidade de natureza e homem aparece de tal modo que a
produção adequados à manutenção da vida humana em diferentes ambientes. relação restrita dos dois determina a relação restrita dos homens com a natureza, precisamente
Assim, concluiu ele, para que cheguemos a conceber a existência da consciência porque a natureza por enquanto quase não está historicamente modificada; e,por outro lado, a
humana, devemos postular uma conexão natural entre o animal humano e seu consciência que o homem tem da necessidade de se associar com os indivíduos à sua volta é o início
meio ambiente e uma conexão social por meio da qual os homens entram em da consciência de estar vivendo em sociedade. Esse início é tão animal quanto a própria vida social
nessa etapa. É mera consciência de rebanho, e nesse ponto o homem só se distingue do carneiro
atividade cooperante com outros homens, dentro das famílias e entre elas. Esse pelo fato de que nele a consciência toma o lugar do instinto ou de que seu instinto é consciente
postulado permitiu a Marx combinar em sua teoria da história sua metafísica [71].
materialista por um lado com sua teoria dialética do desenvolvimento social por
outro.
Marx portanto postulou como precondição de todo desenvolvimento
Marx buscou a relação íntima que existe em todas as sociedades entre a genuinamente histórico um estágio original no desenvolvimento humano em que
consciência humana, o mundo material e os modos vigentes de produção. Por os homens vivem numa condição de consciência que é estritamente metafórica
isso escreveu: em sua modalidade. Os homens existem na simultânea apreensão de sua seme­
lhança e diferença com a natureza. E a consciência da humanidade nessa etapa
Daí se segue que um determinado modo de produção, ou estágio industrial, está sempre se assemelha a uma consciência “animal”, uma consciência “ovina” ou “de
estreitamente ligado a um determinado modo de cooperação, ou estágio social, e este modo de rebanho”, que serve para consolidar a existência humana na primeira forma de
cooperação é ele mesmo uma “força produtiva”. Segue-se também que a massa de forças produtivas sociedade, que é tribal, e na qual é de supor, conforme entende Marx, tenha
acessíveis aos homens determina a condição da sociedade, e que a “história da humanidade” deve existido uma espécie de comunismo primitivo como forma dominante de orga­
portanto sempre ser estudada e tratada em relação com a história da indústria e da troca [621.
nização econômica. Durante essa etapa os homens vivem parasitariamente da
natureza, como caçadores e coletores de alimentos, o que vale dizer que
Marx sublinhou que os “momentos” que analiticamente mostrara estarem participam de uma forma de produção e consumo que é a mesma que a de outros
subjacentes a qualquer concepção de uma consciência distintivamente humana animais dotados de instintos e aptidões físicas similares.
devem ser considerados como apenas logicamente anteriores àquela consciên­ Mas Marx parecia acreditar que um fator na vida humana trabalha para
cia, não existencialmente diferenciados dela; têm existido contemporaneamen­ transformar essa modalidade metafórica de relação entre consciência humana
te com a consciência “desde o alvorecer da história e desde os primeiros e natureza e entre os homens e outros homens, um fator econômico que
homens” e “ainda se fazem valer hoje em dia” (Ibid.). originariamente nada mais era do que uma função de diferenciação sexual; e
Mesmo assim, continuou ele, a consciência do homem não é “uma cons­ esse fator é a divisão do trabalho. A divisão do trabalho, atuando mecanicisti-
ciência original, ‘pura’ ”. Desde o início “o ‘espírito’ é atormentado pelo ‘peso’ camente, como diríamos, sobre as formas de relação social, produz uma mu­
da matéria”. A princípio, a consciência é dança na maneira como os homens se relacionam com a natureza e,
conseqüentemente, com os outros homens. Assim, escreveu Marx:
simplesmente uma percepção do ambiente sensível imediato e da limitada conexão com outras
pessoas e coisas fora do indivíduo que se toma autoconsciente. Ao mesmo tempo é uma consciência Essa consciência ovina ou tribal recebe seu ulterior desenvolvimento e expansão através do
da natureza, que primeiro aparece aos homens como uma força completamente estranha, onipo­ incremento da produtividade, do aumento das necessidades, e, o que é fundamental para ambas,
tente e inexpugnável, com a qual as relações dos homens são puramente animais e pela qual eles do crescimento da população. Com esses incrementos desenvolve-se a divisão do trabalho no ato
são intimidados como bichos; é assim uma consciência puramente animal da natureza (religião sexual, depois aquela divisão do trabalho que se desenvolve espontaneamente ou “naturalmente”
natural) [70-71]. em virtude de predisposição natural (por exemplo, força física), necessidades, acidentes etc., etc.
[72-73; grifos acrescentados].
310 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 311

Isso quer dizer, do ponto de vista de Marx, que a expressão social dessa
Em suma, a divisão da humanidade é ocasionada por fatores puramente condição de separação é a escravidão.
físicos, diferenças de sexo, por um lado, e de poder, por outro. Essas modalida­
des de divisão dentro da espécie dissolvem a identificação original do homem Essa escravidão latente na família, embora ainda muito tosca, é a primeira propriedade,
com a natureza e com seu semelhante, que produziu a primitiva união tribal. mas mesmo nesse estágio inicial corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas
que chamam a isso o poder de dispor da força de trabalho dos outros. Divisão do trabalho e
Essa divisão original da espécie com base em atributos físicos, ou geneticamente
propriedade privada são, além disso, expressões idênticas; numa a mesma coisa é afirmada com
supridos, dá lugar então, sugeriu Marx, a outro cisma muito mais fundamental referência à atividade enquanto é afirmada na outra com referência ao produto da atividade
dentro da espécie, aquele que se exprime na distinção entre “trabalho material [253-54].
e mental”.
“A divisão do trabalho”, disse Marx, “só se torna verdadeiramente tal” Assim, a unidade primordial, expressa na modalidade do comunismo
quando essa divisão aparece na sociedade. primitivo, dá lugar a uma condição fraturada. O que antes estivera unificado,
na consciência e na práxis, está agora dividido; e a humanidade, outrora
Desse momento em diante a consciência pode realmente acreditar que é alguma outra coisa unificada dentro de si mesma contra a natureza, está agora cindida dentro de si
que a consciência prática existente, que está realmmte concebendo alguma coisa sem conceber mesma em dois tipos de produtores, e portanto em dois tipos de consumidores,
alguma coisa real-, de agora em diante a consciência está numa posição de se emancipar do mundo
e, por conseguinte, em dois tipos de humanidade, duas classes. Com isso começa
e de passar à formação de uma teoria, teologia, filosofia, ética etc., “pura” [Feuer (Org.), 252-53].
a história da sociedade humana, que em suas várias fases existe na modalidade
de oposição de parte a parte, em conflito, luta e exploração do homem pelo
Em outras palavras, em conseqüência de uma divisão do trabalho, causada
homem. Os homens agora existem num modo de relacionamento mútuo como
por fatores puramente mecânicos na distribuição de atributos e poderes físicos,
senhor e escravo, na consciência assim como na realidade, condição em que as
a humanidade toma o caminho da alienação de si mesma e de seus poderes
diferenças entre um segmento da humanidade e outro são apreendidas como
criativos, e é impelida a atribuir esses poderes a “espíritos” imaginários do tipo
sendo mais básicas e importantes do que quaisquer semelhanças que a posse de
postulado pela “teoria, teologia, filosofia, ética etc., ‘pura’ ”.
atributos comuns à espécie poderia sugerir.
Os homens agora começam a existir contiguamente, como seres isolados e
Mas essa transformação da consciência e dos modos de relacionamento
separados, como membros de classes distintas, e de modo a excluir a crença na
social não é vista como tendo sido causada por uma transformação dialética da
possibilidade de uma reconciliação última das partes dentro do todo que é uma
própria consciência. A passagem do estágio tribal primitivo para o antigo
única espécie. Assim, escreveu Marx:
estágio escravista da organização social é causada por fatores puramente ma­
teriais, um fator genético por um lado (a diferenciação sexual) e uma diferen­
é totalmente insignificante o que a consciência começa a fazer por sua conta [isto é, como
ciação funcional por outro (uma divisão do trabalho). E a divisão do trabalho,
consciência individual]: de toda essa mixórdia extraímos a única inferência de que esses três
momentos, as forças de produção, o estado da sociedade e a consciência,podem e devem entrar em a causa da diferenciação social entre os homens, atua como a base do “enobre­
contradição uns com os outros, porque a divisão do trabalho implica a possibilidade - ou antes, o cimento” da consciência do próprio homem, da “elevação” do homem em sua
fato - de que a atividade intelectual e a material - prazer e trabalho, produção e consumo - consciência acima da natureza.
competem a diferentes indivíduos e de que a única probabilidade de não entrarem em contradição Resultante da divisão de função no ato sexual é a divisão do trabalho na
reside na negação por sua vez da divisão do trabalho [253; grifos acrescentados].
sociedade primitiva entre aqueles que executam trabalho manual e aqueles cujo
trabalho é sobretudo mental, entre trabalhadores e sacerdotes. Desse momento
Com a divisão do trabalho, então, dissolve-se a relação metafórica entre em diante, disse Marx, “a consciência pode realmente acreditar que é alguma
homem e homem, por um lado, e entre homem e natureza, por outro, estabele­ outra coisa que a consciência da prática existente (...); de agora em diante a
ce-se uma relação metonímica, e, em vez de existirem uns com os outros na consciência está numa posição de se emancipar do mundo” (252-53), porque
modalidade da identidade, como acontecia na sociedade primitiva, os homens pode voltar a atenção para si mesma, hipostasiar suas fantasias acerca de si
passam a existir na modalidade da contigiiidade. Ou, como disse Marx: mesma em seus aspectos exclusivamente humanos - isto é, mentais - e tratar
essas fantasias como se fossem reais, e até deificar e adorar as imagens delas.
Com a divisão do trabalho (...) e a separação da sociedade em famílias individuais opostas Mas, por meio desse mesmo processo de hipostatização, o pensamento se
umas às outras, ocorre simultaneamente a distribuição, e na verdade a distribuição desigual
prepara para a descoberta e a reintegração daquilo que faz do homem uma
(quantitativa e qualitativa), do trabalho e de seus produtos, conseqüentemente da propriedade; o
núcleo, a primeira forma, dessa distribuição encontra-se na família, onde a mulher e os filhos são espécie potencialmente unificável. O pensamento está pronto para a unificação
os escravos do marido [Ibid.]. sinedóquica dos fragmentos de humanidade como elementos de um todo que é
maior do que a soma das partes. Assim nasce toda aquela teologia, filosofia e
312 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 313

teoria “pura” de que o homem se orgulha desde a aurora da civilização, e para nos meios de produção não são funções de alterações da ordem social ou da
a qual desde então ele se volta em busca da determinação de seus fins e objetivos dotação cultural oficialmente reconhecida (a filosofia, a religião, a arte etc.) de
propriamente humanos na vida. uma dada sociedade. A relação entre a infra-estrutura e a superestrutura é
portanto não somente unidirecional mas também estritamente mecanicista. Não
há nada de dialético nessa relação.
A “SINTAXE” DO PROCESSO HISTÓRICO As formas fundamentais da superestrutura, porém, revelam as mesmas
características categoriais que as formas de valor na análise marxiana das
mercadorias em O Capital. São em número de quatro, são de igual modo
Pode-se notar que, já em A Ideologia Alemã, Marx havia prefigurado a
gramática e a sintaxe da teoria da história que lhe serviria até o fim de seus dias tropológicas nas definições que delas oferece Marx e sucedem-se umas às outras
da mesma maneira que é concebida a sucessão das formas de valor em O Capital.
de pensador. A partir desse ponto pôde ele dividir todos os fenômenos históri­
Essas quatro formas de sociedade (comunista primitiva, escravista, feudal e
cos que lhe caíam sob os olhos em categorias de infra-estrutura e superestrutura.
capitalista) contêm assim as categorias básicas em que devem ser agrupados os
A infra-estrutura compreende: 1) os meios de produção (definidos por Marx
fenômenos da história considerada como um processo diacrônico. E a sucessão
como [a] os recursos naturais à disposição de um determinado grupo humano
num determinado tempo e lugar, [b] a força de trabalho ou população poten­ delas constitui os atos do drama de ocorrência histórica significativa para o qual
cialmente capaz de executar trabalho produtivo, e [c] o equipamento tecnoló­ Marx pretendia fornecer a estrutura de enredo subjacente (em que se pode
expor o sentido de todo o processo) em suas obras históricas.
gico disponível) e 2) os modos de produção - isto é, os índices reais de
Cabe frisar neste ponto que Marx não afirmou que o mundo externo
capacidade humanamente utilizável fornecida pelos meios num tempo e lugar
determina o conteúdo específico dos processos mentais individuais. Como o
específicos. A superestrutura compreende as existentes divisões de classes
também materialista Hobbes antes dele, Marx admitia que a fantasia individual
geradas nela luta pelo controle dos meios de produção numa situação de
penúria material, as instituições, as leis, as formas de organização do Estado pode exteriorizar um número infinito de imagens possíveis do mundo que talvez
etc., que a divisão do trabalho toma inevitáveis. À superestrutura também não tenham relação alguma com o mundo exterior mas exprimam apenas os
pertence todo o conjunto de costumes, usos e práticas populares que sancionam anelos íntimos do coração humano. Mas negava que tais criações da fantasia
individual se pudessem converter em forças sociais significativas, salvo na
as formas sociais reais, por um lado, e a esfera da alta cultura - religião, ciência,
medida em que se conformassem aos modos de produção e seus corresponden­
filosofia, arte e assim por diante - que fornece racionalizações da estrutura
social corrente, por outro. Os dados da história, sob a forma de fatos atomizados tes produtos sociais.
ou atestados documentais das ocorrências de certos tipos de acontecimentos - Mais importante: as mudanças nas formas publicamente autenticadas de
os elementos lexicais do registro histórico, por assim dizer -, só se tornam consciência humana resultam exclusivamente de mudanças no fundamento de
compreensíveis, na perspectiva de Marx, por serem suscetíveis de inclusão nas todas as formas de sociedade humana, isto é, nos modos de produção. Estes
duas categorias de evento historicamente significativo proporcionadas pelos ocasionam mudanças na dependente superestrutura social e cultural. Quando
conceitos de infra-estrutura e superestrutura. a necessidade de mudanças na ordem social se torna evidente, os produtos
individuais da consciência “pura” se tornam possíveis candidatos à admissão à
Consumada essa classificação gramatical dos fenômenos históricos, tor­
consciência de grupo que é publicamente autenticadora. Essa era a base da lei
na-se possível aplicar princípios sintáticos para “explicar” por que ocorrem
marxiana fundamental da mudança histórica em todas as suas dimensões, lei
mudanças nas áreas da práxis humana que essas categorias conceptualmente
que ele expôs no prefácio à sua Contribuição à Crítica da Economia Política em
representam. Esses princípios sintáticos são nada menos que as leis àtcausação
1859, o ponto médio aproximado entre suas primeiras reflexões filosóficas na
mecânica que regem as relações entre a infra-estrutura e a superestrutura
década de 1840 e sua morte em 1883.
erguida sobre ela. O princípio sintático central no sistema de análise histórica
de Marx, por meio do qual se há de oferecer o “sentido” ou a “significação” de
Na produção social que os homens empreendem eles entram em relações definidas que são
todo o processo histórico, simplesmente afirma que, embora as mudanças na indispensáveis e independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um
infra-estrutura determinem as mudanças na superestrutura, a recíproca não é estágio definido de desenvolvimento de suas potencialidades materiais de produção. A totalidade
verdadeira, isto é, as mudanças nas dimensões sociais e culturais da existência dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade - o fundamento real,
histórica não provocam mudanças na infra-estrutura. sobre o qual se erguem as superestruturas legais e políticas e a que correspondem as formas
Sem dúvida a inventividade ou a ação humana pode causar mudanças nos definidas de consciência social. O modo de produção da vida material determina o caráter geral
dos processos sociais, políticos e espirituais da vida. Não é a consciência dos homens que lhes
meios de produção. As guerras exaurem a força de trabalho, como a fome e a determina o ser, mas, ao contrário, seu ser social é que determina sua consciência. Em certo estágio
peste; as invenções alteram a natureza do equipamento tecnológico; os recursos de seu desenvolvimento, as forças materiais de produção na sociedade entram em conflito com as
naturais se esgotam com o uso, e assim por diante. Mas as mudanças causadas relações de produção existentes, ou - o que é apenas uma expressão jurídica da mesma coisa - com
314 HAYDEtyWHITE META-HISTÓRIA 315

as relações de propriedade dentro das quais elas vinham operando antes. De formas de desenvol­ herdadas a respeito do que deve ser a realidade, revelaria ser a autêntica
vimento das forças de produção essas relações se transformam em seus grilhões. Ocorre então um
realidade social daquela época.
período de revolução social. Com a mudança do fundamento econômico, toda a imensa superes­
trutura sofre uma transformação mais ou menos rápida. Ao considerar tais transformações deve-se
Como teoria das transformações da consciência na história, a Fenomeno-
sempre fazer distinção entre a transformação material das condições econômicas de produção, que logia do Espírito de Hegel teve para Marx o valor de um modelo do método
podem ser determinadas com a precisão da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, analítico. Os estados de consciência (formas publicamente sancionadas de
religiosas, estéticas ou filosóficas - em suma, ideológicas- em que os homens se tomam conscientes consciência) relacionam-se entre si dialeticamente, por afirmação, negação e
desse conflito e o resolvem pela luta. Assim como nossa opinião a respeito de um indivíduo não se negação da negação, e assim por diante; mas esses estados de consciência
baseia no que ele pensa de si mesmo, assim também não podemos julgar tal período de transfor­ representam apenas as formas fenomenais do ser histórico. O verdadeiro con­
mação segundo sua própria consciência; pelo contrário, essa consciência deve de preferência ser
explicada a partir das contradições da vida material, a partir do conflito existente entre as forças
teúdo do ser histórico, aquilo que o torna sujeito à análise científica - isto é,
sociais de produção e os modos de produção. Nenhuma ordem social jamais desaparece antes que análise causal nomológica - há de ser encontrado nos modos de produção de
se desenvolvam todas as forças produtivas para as quais há espaço nela; e novas e superiores que as formas fenomenais são meros reflexos.
relações de produção nunca aparecem antes que as condições materiais de sua existência tenham Os homens se relacionam em sua própria mente com a natureza e com
amadurecido no ventre da velha sociedade [51-52; grifos acrescentados). outros homens dialeticamente, mas estão realmente relacionados com a nature­
za, insistia Marx, na modalidade da causalidade mecânica. Sua apreensão do
Como se pode ver por essa passagem, para Marx a eficácia causal signifi­ mundo é mediatizada pela consciência, mas sua existência no mundo é determi­
cativa procede da infra-estrutura para a superestrutura por uma via direta, não nada pelas efetivas relações que mantêm com os mundos natural e social; e essas
dialética. Há uma defasagem entre as forças causais que promovem as transfor­ relações efetivas, por sua vez, são de natureza estritamente causal e determinis­
mações sociais e entre as transformações sociais e as mudanças culturais; mas ta. É esse o sentido do aforismo de Marx tantas vezes citado; “A vida não é
essa defasagem é inercial, causada pela incapacidade da consciência humana determinada pela consciência, mas a consciência pela vida” (German Ideology,
em situações de transformações fundamentais na infra-estrutura de abandonar Feuer (Org.), 247).
os modos de conceber a realidade herdados, porque dependentes, de modos As mudanças que ocorrem na infra-estrutura não são, então, produtos de
anteriores de produtividade. Só depois que um novo modo de produção se uma interação dos modos de produção e do mundo natural; pelo contrário, as
estabelece como dominante numa dada sociedade podem as formas publica­ mudanças nos modos de produção são ocasionadas por leis mecânicas rígidas.
mente sancionadas da consciência e da práxis estabelecer-se em novas leis, nova A exaustão do solo, a redução demográfica, as invenções de novas técnicas para
forma de organização do Estado, nova religião, nova arte etc. a explotação da natureza - todas essas mudanças nos meios de produção
resultam de mudanças explicáveis por conceitos científicos naturais de relações
O que é dialético em tudo isso - e aqui se tem a medida da dívida de Marx causais. A invenção de uma nova máquina como a locomotiva a vapor, que podia
para com o idealismo alemão - é o modo de transição de uma forma de transformar a relação entre a dotação tecnológica e a força de trabalho, é
consciência publicamente sancionada para outra. O ajustamento na consciência concebida como uma função da inteligência dedicada à solução de problemas
humana e na superestrutura às transformações causadas pelas mudanças na práticos’, e representa não um processo dialético mas sobretudo a aplicação de
infra-estrutura é um processo dialético e é precisamente análogo ao tipo de um modo de pensamento, o mecanismo, à solução de um problema específico
mudança tropológica que ocorre quando a consciência primitiva se afasta de sugerido pela necessidade de aumentar a produtividade para consumo ou troca.
uma relação metafórica com a natureza e a humanidade em geral e incorre numa Além disso, a transformação da infra-estrutura é estritamente mecânica
apreensão metonímica dessas relações. Da consciência metafórica, para a e diferencial, não dialética. Seu efeito sobre a superestrutura é tal que estabelece
metonímica, para a sinedóquica - eis as fases por que passa a humanidade por uma interação dialética entre as formas sociais herdadas, e seus concomitantes
transformação dialética dos modos como ela se relaciona com seus contextos modos de consciência, e as novas formas impulsionadas pelas transformações
(naturais e sociais) em sua passagem da consciência selvagem para a consciência em curso na infra-estrutura. Mas mesmo esse efeito sobre a superestrutura é
civilizada adiantada. mecânico em sua natureza, não dialético. Pois, como salientou Marx em sua
Contribuição, as formas de consciência que obterão o beneplácito público, em
Mas exatamente porque essas transformações da consciência são dialeti- resposta às mudanças exigidas da sociedade pelas mudanças havidas na infra-
camente engendradas por princípios que regem as operações da própria cons­
estrutura, são predeterminadas por essas mudanças. Portanto, disse ele,
ciência, não podemos, como disse Marx, julgar um período de transformação
pela consciência que ele tem de si mesmo - como os historiadores convencio­ a humanidade só se propõe os problemas que pode resolver, visto que. num exame mais acurado,
nais, procurando reconstituir a consciência de uma época nos termos propostos se tomará sempre evidente que o problema mesmo só se manifesta quando as condições materiais
por ela, tendem a fazer. A consciência de uma época é sempre mais ou menos necessárias para sua solução já existem ou estão pelo menos em via de formação [52; grifos
do que aquilo que a pura percepção, não fosse ela toldada por preconcepções acrescentados).
316 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 317

Em síntese, todos os “problemas” sociais publicamente relevantes não inteiros e a necessidade de funcionar como instrumentos especializados de
são, a bem dizer, problemas e sim “enigmas”, na medida em que, na perspectiva produção. “Essa cristalização da atividade social” em esferas funcionalmente
de Marx, tais “problemas” podem sempre ser presumivelmente solucionáveis e diferenciadas tinha sido, acreditava Marx, “um dos principais fatores do desen­
pôr à disposição dos que tentam resolvê-los os meios para sua solução no tempo volvimento histórico até agora” (Ibid.). E no conflito dentro dos indivíduos entre
e no lugar em que se manifestam. Não há nada de “dialético” no processo que suas aspirações humanas e seus papéis socialmente demarcados, e na sociedade
gera os problemas cruciais com que a humanidade tem de se defrontar em em geral entre interesses individuais e comunitários, Marx encontrou a força
diferentes estágios do processo histórico. E não há nada de “dialético” nos motriz acionadora da criação do Estado. Assim, disse ele, embora o Estado seja
meios que os homens devem utilizar em diferentes situações históricas nos seus sempre “baseado sobre os liames reais existentes em cada família e conglome-
esforços para solucionar esses problemas. O que é “dialética” é a sucessão das ração tribal (...) e especialmente sobre as classes já determinadas pela divisão
“formas” de sociedade e cultura que a consciência constrói na esteira das do trabalho, que em cada uma dessas massas de homens impõe separações, e
soluções que encontra para os problemas sociais causados pelas transformações dentre as quais uma domina todas as outras” (255), uma forma particular de
verificadas na infra-estrutura. E utilizou o método “dialético” para analisar o Estado é realmente uma expressão dos interesses específicos de uma classe
verdadeiro conteúdo das formas de existência social e cultural que aparecem específica, que se apresenta como expressão definitiva dos interessés gerais da
na história, do mesmo modo que usou esse método para revelar o verdadeiro humanidade como um todo.
conteúdo das formas de valor no capítulo de abertura de O Capital. Por isso é que, em última instância, todo pretenso “interesse geral” é
sempre vivenciado tanto pelas classes dominantes quanto pelas subalternas
O conceito da divisão do trabalho serviu de idéia organizadora da teoria
como algo exterior, superior, ou estranho aos homens - estranho mas benévolo
social de Marx do mesmo modo que a teoria do valor como expressão do
no caso das classes dominantes (uma vez que estabelece o caráter “natural” de
trabalho serviu de idéia organizadora de suas teorias econômicas. É a divisão
seu poder e seus privilégios), estranho mas malévolo no caso das classes
do trabalho que atira a humanidade naquele estado de cisão e auto-alienação
subalternas (uma vez que lhes frustra o impulso para realizar plcnamente seus
de que o registro histórico dá testemunho como se fosse a condição natural da
interesses individuais e de classe). “Justamente porque os indivíduos procuram
existência do homem. Assim, escreveu Marx emA Ideologia Alemã:
somente seu interesse particular, />., aquele que não coincide com seu interesse
comunitário (...), este lhes será imposto, por sua vez, como especial, peculiar
Com a divisão do trabalho (...) se dá simultaneamente a distribuição e na verdade a “interesse geral” (Ibid.). Por outro lado, “a lu ta prática desses interesses parti­
distribuição desigual (quantitativa e qualitativa) do trabalho e seus produtos, e, consequentemente, culares que constantemente na realidade se contrapõem aos interesses comuni­
da propriedade, cujo núcleo, cuja primeira forma, reside na família, onde a mulher e os filhos são
escravos do marido. tários e comunitários ilusórios, torna necessários a intervenção e o controle
práticos através do ilusório ‘interesse geral’ sob a forma de Estado” (Ibid.).
Assim, “o poder social, í.e., a multiplicada força social, que surge graças à
E logo adiante denominou essa escravidão “primeira propriedade” e cooperação de diferentes indivíduos como é determinada dentro da divisão do
definiu a propriedade, de acordo com as convenções da economia política trabalho, aparece a esses indivíduos, já que sua cooperação não é voluntária
contemporânea, como “o poder de dispor da força de trabalho de outros”. E mas natural, não como seu próprio poder unido mas como uma força estranha
concluiu que “a divisão do trabalho e a propriedade privada são (...) expressões que existe fora deles” (Ibid.), como uma força abstrata que os “vivifica”, e não
idênticas; numa a mesma coisa é afirmada com referência à atividade enquanto como o que é na verdade, sua própria força, objetificada e reificada e voltada
na outra é afirmada com referência ao produto da atividade” (253-54). *Na para fins comunais.
divisão do trabalho, também, Marx encontrou as origens daquela cisão na vida
social entre interesses privados e públicos, individuais e gerais. Evidentemente Essa reificação gera aquele “terror” que o homem sentiu em todas as
admitiu que a própria natureza da vida humana gera a distinção. O interesse tentativas anteriores de apreender a significação da história. Já que a força
comunal, disse ele, existe “antes de tudo na realidade, como a mútua interde­ social é percebida como força natural, “cuja origem e cujo fim [os homens]
pendência dos indivíduos entre os quais se divide o trabalho”. Mas logo que o ignoram, que por isso não podem controlar, que ao contrário passa por uma
trabalho é dividido, insistiu ele, “cada homem tem uma esfera particular, série peculiar de fases e estágios independentes da vontade e da ação do homem,
exclusiva, de atividade, que lhe é imposta e da qual não pode escapar. É caçador, e sendo até a principal regente destas”, o homem tende a ver-se a si mesmo
pescador, pastor, ou um crítico em posição crítica, e deve continuar assim se como vítima em vez de regente da história. Assim nascem todas as teorias
não quiser perder o ganha-pão” (254). Dessa maneira os homens se tornam deterministas da história que reduzem o homem à condição de servo de forças
escravos de sua própria criação, instrumentos do próprio poder que havia dado mais poderosas do que ele mesmo, contribuindo dessa maneira para a degra­
à espécie em geral controle sobre a natureza. A humanidade se torna fragmen­ dação da maioria dos homens enquanto simultaneamente justificam a elevação
tada e atomizada; e os indivíduos se cindem entre o desejo de serem homens de uns poucos: o determinismo teológico de Santo Agostinho, o determinismo
318 HAYDEN WHITE META-HISTÓRIA 319

metafísico de Hegel, a determinação tradicionalista de Burke, o cru determi­ revela-o como um filósofo determinista na tradição de Hobbes, e afasta-o de
nismo materialista da economia política britânica e até, em princípio, o deter­ pensadores genuinamente dialéticos como Hegel, para quem a “agência” e o
minismo sociológico de Tocqueville. Essa é também a origem de todas aquelas “escopo” desempenham maiores papéis na compreensão da verdadeira signifi­
ingênuas rebeliões de bem-intencionados humanitaristas, humanistas, estetas, cação da história.
românticos e socialistas utópicos que afirmam a liberdade da vontade individual A análise de Burke é bastante correta no seu gênero, mas obscurece o
e a capacidade do homem para mudar seu mundo através da transformação da quanto, no Manifesto como em outros lugares, o pensamento de Marx operava
sensibilidade com que ele o apreende. simultaneamente em dois níveis, recorrendo simultaneamente a concepções
Nenhuma dessas concepções do processo histórico, porém, enfrenta a mecanicistas e organicistas da realidade, e utilizava dois protocolos lingüísticos
verdade essencial: a simultânea necessidade e transitoriedade, o poder coativo fundamentalmente diferentes, o metonímico de um lado e o sinedóquico do
e liberador, da própria ordem social. Nenhuma, em suma, compreende a outro. Assim, também, Marx pôs em enredo o processo histórico de dois modos,
dinâmica da sociedade e o padrão de desenvolvimento de todo o processo o trágico e o cômico, simultaneamente, mas de maneira a fazer da primeira
histórico. Uma justifica a liberdade do homem em face de uma necessidade elaboração de enredo uma fase dentro da segunda, e assim permitir-se reivin­
vivida que o guia no início e exige a subordinação férrea dos interesses do dicar o título de “realista” ao mesmo tempo em que defendia seu sonho de uma
indivíduo ao grupo; outra simplesmente lamenta essa necessidade e refugia-se utópica reconciliação do homem com o homem para além do Estado social. A
em sonhos pueris de uma liberdade que será realizável somente quando, e se, a suspensão da condição trágica, que prevaleceu na história desde a queda do
própria sociedade se dissolver. homem na sociedade através da divisão do trabalho, constituiu, no pensamento
de Marx, a justificação científica da posição política radical que ele pretendeu
derivar de seu estudo da história.
A “SEMÂNTICA"DA HISTÓRIA Uma rápida análise da teoria da história exposta na primeira parte do
Manifesto ilustrará o que eu tinha em mente ao caracterizar a idéia da história
Marx, ao contrário, afirmava ter encontrado na relação mecanicista rei­ de Marx nos termos precedentes.
nante entre a infra-estrutura e a superestrutura a base conceptual de uma O Manifesto inicia-se por uma caracterização da natureza específica da
ciência dinâmica da história e o instrumento para predizer o resultado da estrutura de todos os períodos anteriores da história. “A história de toda a
história em sua fase social transitória. O “materialismo dialético”, combinação sociedade até agora existente é a história da luta de classes.” As várias classes
da lógica de Hegel com a convicção feuerbachiana de que todo conhecimento de todas as sociedades anteriores “estiveram em constante oposição umas às
deve começar pela experiência sensível, a “Ciência Nova” de Marx, ministra a outras” e “travaram um combate ininterrupto, ora latente, ora ostensivo” (7).
justificação científica da convicção de que a vida “social”, tal como a conhece­ Esse combate ininterrupto, afirmou Marx, resultava na erupção, de tempos em
ram todas as fases da história desde os tempos primitivos, deve desaparecer. Mais tempos, de cruciais reconstituições revolucionárias de toda a ordem social.
ainda, situa na sociedade burguesa, forma superestrutural do modo capitalista Mas nenhuma paz resultou de qualquer dessas reconstituições; cada uma
de organizar os meios de produção, tanto a última fase quanto a força de simplesmente colocou “novas classes, novas condições de opressão, novas
destruição dessa vida social. Se toda a história anterior é a história da luta de formas de luta no lugar das antigas” (8). Apesar de tudo, o processo redundou
classes, como proclama o Manifesto Comunista, na “simplificação” dos “antagonismos de classes”. Progressivamente a socie­
dade cindiu-se em dois campos, nos quais duas grandes classes se defrontam:
as relações burguesas de produção são a última forma antagonística do processo social de produção. a burguesia e o proletariado.
(...) Ao mesmo tempo as forças produtivas em desenvolvimento no útero da sociedade burguesa A relação estrutural básica na história é a oposição, mas a relação entre
criam as condições materiais para a solução desse antagonismo. Com essa formação social, as fases do processo de desenvolvimento é dialética. Assim, disse Marx da
portanto, a pré-história da sociedade humana chega ao fim [Contribution, 52-53].
sucessão das classes:
A dinâmica desse processo de transformação, em que a própria sociedade Dos servos da Idade Média brotaram [hervorspringen] os habitantes privilegiados dos
é ultrapassada, está exposta com a máxima clareza no Manifesto do Partido primeiros burgos. Desses cidadãos provieram [entwickelten] os primeiros elementos da burguesia
Comunista (1848). Em A Grammar of Motives, Kenneth Burke analisou o [Ibid.; grifos acrescentados].
Manifesto em termos “dramatúrgicos”, salientando o quanto, na apresentação
marxiana da história nessa obra, o elemento “cena” determina e proporciona o As imagens do desenvolvimento são organicistas; o modo de relaciona­
entendimento dos “agentes, atos e agências” que parecem constituir a matéria mento é sinedóquico. A modalidade das relações entre as diferentes fases da
bruta do processo histórico. Na opinião de Burke, essa elevação da “cena” sobre evolução da infra-estrutura, porém, é caracterizada em outros termos.
o “agente” revela a concepção essencialmente materialista da história de Marx,
320 HAYDEN WHITE METAHISTÓRIA 321

O sistema feudal de indústria (...) já não bastava para as crescentes necessidades dos novos verdadeiramente prometéico, na exposição marxiana de sua ascensão e desen­
mercados. O sistema manufatureiro lhe tomou o lugar [antreíen]. Os mestres das guildas foram
volvimento, mas sua situação atual é de contradição interna: a necessidade de
postos de lado [verdrãngt]; a divisão do trabalho entre as guildas corporativas desapareceu diante
da divisão do trabalho em cada oficina isolada [Ibidr, grifos acrescentados]. mercados em contínua expansão faz com que a burguesia se revolte contra “as
relações de propriedade que são as condições da existência da burguesia e de
Aqui a imagística é mecanicista, o modo da relação das partes é metoní- seu domínio” (13). Dessa situação paradoxal nascem as “crises” que periodica­
mico, e as condições para a ulterior transformação da ordem social vêm mente irrompem nos sistemas econômicos capitalistas mais desenvolvidos.
descritas no que é essencialmente a linguagem da causalidade mecânica: As contradições internas da vida burguesa geram “epidemias”, e especial­
mente um tipo de epidemia, que “teria parecido um absurdo em todas as épocas
Enquanto isso os mercados cresciam cada vez mais [immerwuchsen]; a demanda aumentava anteriores”: a epidemia da superprodução” (Ibid.). E, ironicamente, os trata­
sem parar [immer síeígí]. Mesmo a manufatura já não era suficiente. O lugar da manufatura foi mentos encontrados pela burguesia para essas epidemias promovem surtos
tomado [antreten] pela gigantesca indústria moderna, o lugar da classe média industrial pelos ainda mais virulentos da doença no futuro:
milionários industriais, pelos comandantes de exércitos industriais inteiros, pelo moderno burguês
[Ibid.; grifos acrescentados]. * Ecomo a burguesia vence essas crises? De um lado, pela destruição forçada de grande parte
das forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração intensiva dos
E Marx concluiu essa introdução a seu ensaio, seu quadro dos elementos antigos. Isto é, preparando o terreno para crises mais extensas e mais destrutivas e diminuindo os
do campo histórico e sua classificação desses elementos em tipos no que diz meios de impedir as crises [Ibid.].
respeito a suas funções históricas, desta maneira:
O resultado de tudo isso é que as armas mesmas com que a burguesia
Vemos, portanto, de que modo a moderna burguesia é, ela mesma, o produto de uma “derrubou” a velha ordem feudal “se voltam contra a própria burguesia” (Ibid.).
longa trajetória de desenvolvimento, de uma série de revoluções nos modos de produção e de Mas a força engendrada pela burguesia, a força por meio da qual se produzirá
troca [Ibid, 9]. sua própria destruição, não surge como efeito de alguma causa a operar
mecanicamente em seu meio ambiente, da maneira como se criam novos siste­
Passou em seguida a caracterizar o desenvolvimento da moderna burgue­ mas de produção. A força que provocará a destruição da burguesia será
sia, e de maneira a pintá-la como uma forma de organização social que carrega constituída por todos os alienados de todas as classes que foram reduzidas à
dentro de si as sementes de sua própria dissolução e autotransformação. condição de simples “mercadorias” - isto é, a uma condição puramente não
Ironicamente descreveu os meios pelos quais a moderna classe média, em sua humana ou natural, pelas operações de exploração promovidas pelos membros
busca de lucros, conseguiu efetivamente subverter, enlouquecer e exaurir seus mais eficientes da própria classe burguesa. Essa nova classe do “refugo” radi­
próprios recursos ideológicos, suas próprias crenças e lealdades conscientes calmente alienado do sistema capitalista é o proletariado, “recrutado em todas
mais intensamente acalentadas. Esse desenvolvimento, afirmou ele, não somen­ as classes da população”.
te põe “fim a todas as relações feudais, patriarcais, idílicas” e “afoga os mais As origens do proletariado, portanto, são as mais diversas que se pode
celestiais êxtases de fervor religioso, de entusiasmo cavalheiresco, de sentimen­ imaginar. Ele existe originariamente na situação de total dispersão, sem ter
talismo filisteu na água gelada do cálculo egoísta”, como também “converte o sequer consciência de sua condição de “refugo”. No processo de seu desenvol­
mérito pessoal em valor de troca” e “substitui a exploração, encoberta por vimento, porém, esse refugo é transformado em ouro; com os desgraçados da
ilusões religiosas e políticas, (...) pela exploração franca, descarada, brutal, terra modela-se o instrumento da libertação humana.
direta” (9-10). Em suma, a burguesia produz as condições em que o homem Assim, embora Marx concebesse o enredo da história da burguesia como
deve enfim encarar o estado depravado de sua existência milenar em “socieda­ uma tragédia, o do proletariado é inserido na moldura maior de uma comédia,
de” com um olhar penetrante e límpido. Dessa maneira ela constitui o modo de cuja resolução consiste na dissolução de todas as classes e na transformação da
consciência em que um “realismo” a respeito da verdadeira natureza da ordem humanidade em um todo orgânico. Não é de surpreender que Marx tenha
social pode tomar forma, realismo tão poderoso em sua capacidade de trans­ elaborado o enredo dessa comédia como um drama em quatro atos que corres­
formar a própria “realidade” quanto aquele que propiciou a constituição da pondem aos estágios do drama clássico: pathos, agon, sparagmos e anagnorisis
ciência para a exploração do mundo material. sucessivamente.
A ironia da sociedade burguesa, lembrou Marx, está em que ela não pode A ação do drama é levada adiante pela luta com a burguesia, mas no
existir “sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e por­ primeiro ato a “disputa é conduzida por trabalhadores individuais” que “for­
tanto as relações de produção, e com elas todas as relações da sociedade” (10). mam uma massa incoerente” e que nem mesmo conhecem seu inimigo real, a
Esse impulso revolucionário é inspirado pela “necessidade de um mercado em burguesia, mas lutam, em vez disso, contra “os inimigos de seus inimigos, os
contínua expansão” (Ibid.). O feito da burguesia é verdadeiramente heróico, remanescentes da monarquia absoluta” (15). Nessa etapa a consciência do
HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 323
322

dos ideólogos burgueses, que se alçaram ao nível de compreender teoricamente o movimento


proletariado é apenas um estado de espírito (pathos). O proletariado simples­
histórico em sua totalidade [ZbzW.].
mente existe em si, não existe para si nem na consciência de outros. Com o
advento da indústria, porém, “o proletariado não somente cresce em número;
E o resultado desse crescimento e transformação da consciência é que o
concentra-se também em grandes massas, sua força aumenta, e ele sente mais
proletariado se torna a única “classe realmente revolucionária”, uma superclas-
sua força”. Os trabalhadores começam a formar “associações (sindicatos)
se, a classe de todas as classes, de modo que, enquanto as “outras classes decaem
contra a burguesia” e a envolver seus exploradores em combates frontais tendo
e finalmente desaparecem diante da indústria moderna”, o proletariado se
em vista seus próprios interesses (16). Esses combates consolidam os trabalha­
converte no “produto especial e essencial” dessa indústria (Ibid.). A natureza
dores em partidos políticos, grupos organizados para a luta na arena política.
“especial e essencial” dessa classe revolucionária se manifestará, escreveu
Esse é o estágio agônico; aqui o proletariado existe em oposição consciente à
Marx, no fato de que o proletariado ocupará na sociedade e na história uma
burguesia. Existe para si, portanto, habita um mundo que ele sabe estar fendido
posição em que será incapaz de “fortalecer [sua] situação já adquirida por meio
e no qual o poder em estado bruto é reconhecido como o meio para o único fim
da subordinação da sociedade em geral a [seus] poderes de apropriação” (18).
que as massas podem visionar, a melhoria de sua condição material contra a
ameaça dos outros (Ibid.).
Os proletários não podem tomar-se senhores das forças produtivas da sociedade e não ser
Essa “organização dos proletários numa classe e conseqüentemente num abolindo-lhes o modo anterior de apropriação e por isso também todos os outros modos anteriores
partido político” é, contudo, constantemente perturbada “pela competição de apropriação [Tfetá.].
entre os próprios trabalhadores”. O estágio agônico é assim seguido de sparag-
mos, a desagregação do proletariado em seus vários elementos. Ess,a desagre­ Isso porque o proletariado, ironicamente, “[não tem] nada de [seu] para
gação, no entanto, é necessária (em termos hegelianos) para que o proletariado defender e reforçar; [sua] missão é destruir todas as defesas e garantias da
adquira consciência de sua unificação potencial. O proletariado, disse Marx, propriedade individual” (Ibid.). E, quando o proletariado tomar posse do que
“ressurge sempre mais forte, mais firme, mais poderoso” (17). Esse recorrente é seu, o resultado será o comunismo, estado da sociedade em que “o livre
ressurgir do proletariado da condição de dispersão em que decai em conse- desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”
qüência de seu agon é ajudado pelas divisões que têm lugar dentro da própria (29).
burguesia. É óbvio que esse quádruplo movimento do proletariado é uma descrição
A burguesia, premida pelos remanescentes da velha ordem aristocrática histórica não das etapas reais pelas quais o proletariado já havia passado mas
e por elementos de si mesma que passaram a antagonizá-la, é compelida a das etapas pelas quais Marx imaginava que ele deve passar, se o tipo de
convocar o proletariado de tempos em tempos a ajudá-la na luta contra seus sociedade que o próprio Marx vislumbrou como o fim de todo o desenvolvimen­
inimigos. A educação política do proletariado prossegue automaticamente. to histórico vier a realizar-se. Quais eram os fundamentos, afora os propósitos
Aqueles elementos da aristocracia e da burguesia que são vítimas dos elementos visivelmente polêmicos do ensaio, da caracterização dessas quatro etapas do
mais fortes dentro da ordem burguesa são rebaixados à condição do proletaria­ modo como Marx de fato o fez?
do, unem-se a ele, fazem da causa do proletariado sua causa e “suprem o O que expus nas passagens acima é a estrutura de enredo, em embrião,
proletariado de novos subsídios para a ilustração e o progresso” (Ibid.). Assim, de todos os processos significativos na história, vazada em termos que
o proletariado paulatinamente se transforma, não só no depósito do rebotalho permitiriam a Marx postular a etapa final do desenvolvimento proletário
de todas as outras classes, mas também na classe que se sabe ser este depósito, como uma união sinedóquica das partes no todo. A análise está moldada no
e por isso se torna cosmopolita e não-classista em suas aspirações. Converte-se modo metonímico, isto é, em termos manifestamente mecânicos, ou causais.
em uma classe que não é apenas em si e para si mas em e para si simultanea­ Mas o que está sendo descrito é a transformação de uma condição caracte­
mente, e portanto é uma classe genuinamente revolucionária, a classe que rizada originariamente no modo metafórico, através de uma descrição dela
soluciona o “enigma da história”. Esse processo de transformação foi descrito em seu estado metonimicamente reduzido, na de uma união sinedóquica das
por Marx nestes termos: partes num todo. Marx escreveu história do ponto de vista de um pensador
que estava conscientemente comprometido com as estratégias metonímicas
de reduzir um campo de ocorrências à matriz de agências causais mecani-
Finalmente, nos tempos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo cistas que efetuam as transformações do campo em termos estritamente
de dissolução em curso no interior da classe dominante, na verdade no interior de toda a esfera da deterministas. Mas isentou a ordem social de completa determinação por
velha sociedade, assume um caráter tão violento, tão fulgurante, que um pequeno setor da classe forças causais como meio de compreender a dinâmica de seus atributos
dominante se desgarra dela e se junta à classe revolucionária, a classe que tem o futuro em suas
mãos. Assim como, num período anterior, um setor da nobreza passou para o lado da burguesia,
estruturais internos. Ainda que toda a ordem social acompanhe e seja
assim agora uma parte da burguesia passa para o lado do proletariado, e em particular uma parte determinada em sua configuração geral pelas causas que operam mecanica-
324 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 325

mente na infra-estrutura (os modos de produção), a dinâmica interna da Mas no drama da história, como realmente o concebia Marx, diferentes
superestrutura deve ser compreendida no modo das reações sinedóquicas. atores dominam os vários atos: primeiro, o senhor e o escravo, depois o nobre
E o comunismo, na mente de Marx, nada mais era do que a ordem social e o servo, fmalmente a burguesia e o proletariado. Mas ao proletariado está
concebida no modo de uma perfeita integração sinedóquica. reservado um papel e um ser que fazem dele o verdadeiro protagonista de todo
As similaridades estruturais entre o método de Marx de analisar a história o drama, drama que todo o processo histórico desde o início lutou por se tornar.
e seu método de analisar as mercadorias (no capítulo I de O Capital) devem ser Pela maneira como caracterizou o proletariado, é óbvio que para Marx é ele o
óbvias. O registro histórico é dividido em um nível manifesto e um nível oculto todo da humanidade, que as diferentes partes da humanidade no processo
de sentido, que se relacionam um com o outro como a forma fenomenal com o histórico vêm (sem êxito) tentando tornar-se em suas várias encarnações. E em
verdadeiro conteúdo. O conteúdo da história muda diferencialmente - isto é, virtude do lugar especial dado ao proletariado, Marx foi obrigado a atribuir à
quantitativamente - através de mudanças nos meios de produção que exigem própria burguesia um papel especial no drama histórico.
transformação nos modos de produção. Mas a primazia dos modos de produção A burguesia se toma, no enredo construído para a história por Marx, o
como agência causal, determinando as formas que aparecem na superestrutura, herói trágico através de cuja queda o proletariado alcança a consciência de seu
permanece constante no decorrer de todas as mudanças. Os diferentes meios destino inconfundivelmente cômico na história do mundo. Vale dizer, em
pelos quais os homens se relacionam com o mundo natural, em seus esforços virtude do fato de que o proletariado é não apenas a vítima, mas também o
para prover as necessidades da espécie, determinam as formas que suas relações espectador, da ascensão e queda da burguesia, é possível suprir todo o processo
sociais devem assumir. Alterações fundamentais nos modos de produção, como histórico de uma resolução cômica como seu fim predeterminado. Da mesma
a passagem do comunismo primitivo para um sistema agrário explorador do maneira que, em O Capital, a explanação das formas do valor foi realizada no
trabalho escravo, ou deste para uma organização feudal da força de trabalho, interesse de justificar a teoria do valor como expressão do trabalho, assim
ou desta para o moderno capitalismo comercial, fornecem os critérios para também, no Manifesto, a explanação das formas da sociedade foi levada a cabo
delinear os vários “atos” do drama histórico tal como é visto de um nível no interesse de justificar o iminente triunfo do proletariado sobre a sociedade
macrocósmico de conceptualização. O trajeto que a consciência segue em e a própria história. Isso é o que estava por trás da decisão de Marx de relegar
resposta a essas alterações fundamentais nos modos de produção é o que leva o que convencionalmente se chamava “história” à condição de “pré-história”.
da consciência metafórica, através da consciência metonímica e sinedóquica, a A verdadeira história do homem, predisse Marx, só começará com o triunfo do
uma apreensão irônica da natureza essencialmente paradoxal de uma organi­ proletariado sobre seus opressores burgueses, a dissolução das diferenças de
zação social que gera a pobreza no meio da fartura, a guerra numa situação em classe, o desaparecimento do Estado e o estabelecimento do socialismo como
que a paz é possível, a escassez (material e psíquica) no meio de prosperidade. o sistema de troca baseado na aceitação da teoria do valor como expressão do
E essa percepção irônica da condição do homem moderno prepara o terreno trabalho.
para uma transição da consciência para uma forma nova e mais alta (porque é
mais autoconsciente) de união metafórica do homem com a natureza, com os
outros homens e consigo mesmo - a condição da consciência em que o comu­ O MÉTODO DE MARX APLICADO
nismo se torna uma possibilidade realística para os homens na etapa seguinte A EVENTOS HISTÓRICOS CONCRETOS
de seu desenvolvimento.

Em resumo, a condição irônica em que se encontram os homens modernos Até aqui analisei partes de>4 Ideologia Alemã, do Manifesto e de O Capital
é rigorosamente análoga àquela que se torna possível, na perspectiva de Marx, visando identificar as estruturas fundamentais do método analítico de Marx. No
logo que se reconhece o fetichismo do ouro pelo que ele verdadeiramente é desenrolar de minha análise de seu pensamento sublinhei a natureza tropológi-
depois que se acompanhou a análise levada a cabo no capítulo inicial de O ca do que comumente é tido como seu método “dialético”. Fosse o que fosse
Capital. E possível uma análise dialética das formas do valor porque Marx que Marx pretendia analisar, sugeri, fossem as etapas da evolução da sociedade,
distinguiu entre forma e conteúdo com base numa crença na teoria do valor as formas do valor, ou as formas do próprio socialismo, ele tendia a decompor
como expressão do trabalho. Assim também é possível uma análise dialética das o fenômeno em estudo em quatro categorias ou classes, correspondentes aos
formas do processo histórico porque Marx distinguiu entre forma e conteúdo tropos denominados metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. Assim, para dar
da história com base em sua crença no primado da infra-estrutura como agência mais outro exemplo, no final do Manifesto, ao classificar as diferentes formas
de mudança histórica significativa. Essa análise dialética constitui o argumento de consciência socialista, referiu-se a quatro tipos importantes: reacionário,
formal em defesa de sua inigualável explicação do verdadeiro sentido da história conservador (ou burguês), utópico e comunista (o seu socialismo “científico”).
e justifica que no Manifesto o processo histórico seja posto em enredo como A evolução da consciência socialista faz um percurso que vai de um tipo original
uma imagem da forma da história em geral. metafórico (reacionário), passando pelas variedades metonímica (burguesa) e
HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 327
326

sinedóquica (utópica), para a cristalização daquela modalidade científica de serviço do desenvolvimento da consciência do próprio proletariado, por via da
consciência socialista (a sua), segundo a qual todas as formas anteriores podem negação, oposição, ou antítese. Só a criação de um partido contra-revolucioná­
ser identificadas como fragmentárias, incompletas ou imperfeitas. Assim, dizia rio permitiu ao partido revolucionário definir-se tanto em sua semelhança com
Marx, enquanto os socialistas utópicos ainda “se esforçam (...) por abrandar a o partido contra-revolucionário quanto em sua diferença em relação a ele.
luta de classes e reconciliar os antagonismos de classes (...)”, os comunistas Marx demonstrou, de fato, que a natureza da consciência do proletariado
“lutam pela realização dos interesses permanentes da classe trabalhadora (...) e sua condição histórica real exigiam sua derrota. Pois já que
[e] em toda parte apoiam todos os movimentos revolucionários contra a ordem
os proletários com toda a razão se consideravam como os vitoriosos de fevereiro, (...) precisavam
de coisa social e política existente” (Manifesto, 41). Esse trecho sugere que, ser vencidos nas ruas, precisavam ter uma demonstração de que seriam derrotados caso não
mesmo no entusiasmo de 1848, Marx não alimentava nenhuma ilusão de que a lutassemeom a burguesia, mascontra a burguesia. (...) De armas na mão, a burguesia teve de refutar
revolução do proletariado pudesse realizar-se naquele momento. as exigências do proletariado. E o verdadeiro berço da república burguesa não é a vitória de
Os comunistas “ironicamente” se associam a todos os movimentos revo­ fevereiro; é a derrota de junho [303].
lucionários visando promover a vitória definitiva do proletariado. Essa atitude
irônica, não só com respeito à burguesia mas também com respeito aos movi­ Esse desvendar dos acontecimentos de junho como o verdadeiro berço
mentos revolucionários dirigidos contra ela, defendia Marx de qualquer ilusão da república burguesa, como a derrota de seu “verdadeiro” inimigo, o proleta­
otimista de que houvesse chegado o momento da vitória final. O Manifesto, não riado, que combatera ao lado dela em fevereiro para depor Luís Filipe, asseme­
obstante o brado às armas dirigido ao proletariado, é ele mesmo um documento lha-se de certo modo à análise dialética da forma dinheiro do valor que
irônico, uma vez que o próprio Marx na época de sua redação alimentava poucas encontramos em O Capital. Isto é, é ao mesmo tempo uma redução e uma
esperanças na consumação da revolução que o texto entusiasticamente procla­ clarificação através de uma redução. A falsa equivalência enunciada na forma
mava. Marx sabia que a revolução não podia consumar-se porque sabia que o explícita da metáfora “a revolução = a insurreição de fevereiro” é corrigida
estágio sinedóquico da consciência, pressuposto pelos objetivos que ela tinha pela negação irônica “a revolução - o triunfo da burguesia”. Assim, disse Marx:
em vista, ainda não fora alcançado pelo proletariado da Europa. De fato, em A
Sagrada Família (1845), Marx definira o comunismo como A revolução de fevereiro foi a bela revolução, a revolução da concordância, porque os
antagonismos que nela se inflamaram contra a monarquia adormeceram pacificamente lado a lado,
ainda não desenvolvidos, porque a luta social que formava seu substrato conquistara apenas uma
a abolição positiva da propriedade privada, da auto-alienação humana, e, assim, a real apropriação
existência imaterial, uma existência de frases, ou palavras [305].
da natureza humana, através do homem e para o homem. É portanto o retomo do próprio homem
como ser social, isto é, realmente humano; um retomo completo e consciente que assimila toda a
riqueza do desenvolvimento anterior [243-44; grifos acrescentados]. Por contraste:

O todo assimila a si e transforma numa unidade a totalidade das partes. ^.revolução de junho é a revolução feia, a revolução repulsiva, porque os atos tomaram o
lugar das frases, porque a república revelou a cabeça do próprio monstro ao fazer saltar a coroa
Que tal assimilação e tal transformação dificilmente estavam iminentes nos
que a protegia e escondia [/bid.J.
levantes de 1848 assinalou-o o próprio Marx ao afirmar que a consciência
comunista naquele ano abarcava apenas objetivos limitados. Assinalou-o tam­
O verdadeiro beneficiário, então, da insurreição de junho foi a burguesia,
bém nas análises de A Luta de Classes na França, 1849 a 1850, escritas neste
que, porque havia triunfado em Paris, elevava agora sua “autoconfiança” acima
último ano como uma série de artigos que comentavam os acontecimentos na
de toda a Europa. Conseqüentemente, sustentou Marx, o triunfo da burguesia
medida em que se desenrolavam diante de seus olhos.
em junho de 1848 firmou o alicerce para a derrubada da própria burguesia
Na introdução que escreveu em 1891 para o livro de Marx,/1 Guerra Civil precisamente porque a revelava tal como era, um monstro. Seu caráter mons­
na França (1871), Engels comentou a capacidade de Marx de apreender “cla­ truoso se patenteava nas contradições contidas na nova Constituição que a
ramente o caráter, o alcance e as conseqüências inevitáveis de grandes aconte­ Assembléia Nacional Constituinte havia reunido.
cimentos históricos, num momento em que esses acontecimentos ainda estão se
A “mais ampla contradição dessa Constituição” consistia, segundo Marx,
desenrolando diante de nossos olhos ou acabaram de ocorrer” (349). Em A no modo como distribuiu o poder entre as várias classes da França.
Luta de Classes na França, Marx caracterizou o movimento revolucionário de
1848 como uma “tragicomédia”, que só serviu aos interesses do proletariado na Às classes cuja escravidão social a Constituição irá perpetuar, o proletariado, o campesina­
medida em que trouxe à cena uma “contra-revolução poderosa e unida” e criou to, a pequena burguesia, ela dá a posse do poder político através do sufrágio universal. E da classe
portanto “um opositor, em combate contra o qual, unicamente, o partido da cujo antigo poder social é sancionado, a burguesia, ela retira as garantias políticas desse poder.
revolta alcançou a maturidade de um partido verdadeiramente revolucionário” Impõe condições democráticas ao domínio político da burguesia, o que a todo instante contribui
(281). Em suma, aqui a revolução foi descrita como estando basicamente a para a vitória das classes hostis e põe em risco os próprios fundamentos da sociedade burguesa.
328 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 329

Daquelas classes exige que não avancem da emancipação política para a emancipação social; das O problema de Marx era literário: apresentar “o que de fato sucedeu” numa
outras, que não recuem da restauração social para a restauração política [313]. narrativa convincente.
A resposta formal de Marx à pergunta “O que de fato sucedeu?” não deve
Em tal situação contraditória só uma nulidade como Luís Bonaparte confundir-se com o método analítico que ele empregou para chegar a uma
apelaria para os vastos setores do eleitorado francês. Assim, ironicamente, resposta a essa pergunta. Formalmente, Marx apenas afirmou que a vitória de
aconteceu Luís Bonaparte foi uma conseqüência do temor burguês ao proletariado, aliado
ao ressentimento camponês contra a burguesia e o proletariado [332,339; trad.
que o homem mais simplório da França adquiriu a mais multifária significação. Exatamente porque bras., 342,348]. As causas desse temor de um lado e do ressentimento do outro
ele não era nada poderia ele significar tudo, menos ele mesmo [315].
são apresentadas como as “condições materiais” que sustentavam e informavam
as relações entre a burguesia, o proletariado, o campesinato e a forma bonapar-
Por conseguinte, a situação da França sob o remado de Luís Bonaparte tista de governo em 1850. Aqui, como na análise do valor em O Capital,
era precisamente a mesma da moderna sociedade capitalista sob a influência tratava-se de distinguir entre a forma e o conteúdo do fenômeno a analisar.
do “fetichismo do ouro”. Uma entidade totalmente desprezível foi identificada Mas a questão de como esses vários fatores se aglutinaram para ministrar
com os interesses de todos os grupós exatamente porque o interesse específico a forma específica de seu relacionamento no tempo do Segundo Império exigia
de cada grupo foi anulado por maquinações constitucionais. A sociedade que Marx revelasse a “verdadeira estória” por trás dos acontecimentos que
francesa foi relegada àquela condição “farsesca” que se tornaria o tema de uma
compuseram a crônica de ocorrências históricas significativas na França entre
análise mais abrangente no clássico de Marx, 018 Brumário de Luís Bonaparte.
1848 e 1851. E, por sua vez, a exposição dessa verdadeira estória obrigava a pôr
em enredo os acontecimentos como uma estória de tipo particular. Essa estória
já fora caracterizada como uma “farsa” nas observações iniciais de Marx, o que
A HISTÓRIA COMO FARSA quer dizer que ele vazara a estória no modo da sátira. Nada, em suma, havia de
trágico nos acontecimentos de 1848-1851, em que a França se entregara aos
O 18 Brumário se inicia com um célebre apotegma: cuidados de “três cavalheiros de indústria”. Os acontecimentos que na descri­
ção de Marx conduziram da revolução de fevereiro ao estabelecimento do
Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande impor­ Segundo Império narram uma queda ininterrupta num estado de servidão não
tância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: mitigado por qualquer evidência do tipo de nobre aspiração que teria permitido
a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa [320; trad. bras., 329].
caracterizá-los como verdadeira tragédia.
Isso difere da maneira como Marx caracterizou os eventos de 1789, as
O golpe de Luís Bonaparte é assim prefigurado no primeiro parágrafo da
atividades da burguesia no curso da Revolução Francesa. Referindo-se à revo­
obra de Marx como uma anáclase irônica dos acontecimentos verdadeiramente
lução de 1789, Marx escreveu:
trágicos que haviam levado Napoleão I ao poder na grande revolução burguesa
de 1789. Embora a sociedade francesa em 1848 julgasse estar executando o Mas por menos heróica que se mostre a sociedade burguesa, foram não obstante necessários
programa revolucionário de 1789, na realidade, no modo de ver de Marx, estava heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para tomá-la uma realidade. E nas
ela retrocedendo a um ponto “antes de seu ponto de partida” [323; trad. bras., tradições classicamente austeras da República romana, seus gladiadores encontraram os ideais e
331]. Todo o conjunto de acontecimentos ocorridos de 24 de fevereiro de 1848 as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações do
a dezembro de 1851 caracterizou-o Marx, como já o fizera em>4 Luta de Classes conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica
[321-22; trad. bras., 330; grifos acrescentados].
na França, como uma “tragicomédia”, um simulacro de revolução, que deixou
a nação francesa num estado de servidão mais opressivo do que aquele do qual
ela se libertara em 1789. A revolução burguesa de 1789 foi trágica porque permaneceu oculta a
Além disso, Marx negava que se pudesse legitimamente dizer, “como disparidade entre os ideais e as realidades. A revolução de 1848-1851 foi bem
fazem os franceses, que a nação fora tomada de surpresa. (...) O enigma não é diferente. Foi “farsesca” precisamente porque os ideais foram subordinados às
solucionado por tais jogos de palavras; é apenas formulado de maneira diferen­ realidades. Conseqüentemente:
te”. O verdadeiro problema, afirmava, consiste em explicar “como uma nação
Longe de ser a própria sociedade que conquista para si mesma um novo conteúdo, é o Estado
de trinta e seis milhões de habitantes pôde ser surpreendida e entregue sem que parece voltar à sua forma mais antiga, ao domínio desavergonhadamente simples do sabre e
resistência ao cativeiro por três cavalheiros de indústria” [325; trad. bras., 333]. da sotaina. Esta é a resposta que dá ao coup de main de fevereiro de 1848 o coup de téte de dezembro
Certamente este não era na verdade um problema para Marx. Pelo menos, de 1851. O que se ganha facilmente se entrega facilmente [323; trad. bras., 331].
não era um problema analítico, pois ele já conhecia a resposta a esse problema.
330 HAYDENWWE META-H1STÓRIA 331

O estabelecimento do Segundo Império, então, representou a fase final 333]. A situação de estase em que tombou a nação depois do êxito do golpe
de uma seqüência de acontecimentos que se iniciara na insurreição de fevereiro contra Luís Filipe constituiu para Marx prova suficiente da existência de uma
de 1848. Era o dado que reclamava explicação, e Marx explicou-o dividindo-lhe contradição prática que só podia ser resolvida pela força.
a “história” em quatro fases de desenvolvimento: o período de fevereiro; o E foi resolvida, de acordo com Marx, durante a segunda fase, o período
período da Assembléia Nacional Constituinte, 4 de maio de 1848 a 28 de maio da Assembléia Nacional Constituinte, que durou de 4 de maio de 1848 a 28 de
de 1849; o período da Assembléia Nacional Legislativa, 28 de maio de 1849 a 2 maio de 1849, o período da “república burguesa (...), um protesto vivo contra
de dezembro de 1851; e, finalmente, o próprio Segundo Império, que durou de as pretensões das jornadas de fevereiro” [327; trad. bras., 334]. A função da
2 de dezembro de 1851 até sua derrocada nos dias da Comuna de Paris em 1871. Assembléia Nacional, disse Marx, era “reduzir os resultados da revolução à
A caracterização de Marx dessas fases corresponde àquela que é apre­ escala burguesa” [Ibid:, trad. bras., 334; grifos acrescentados]. Em suma, o
sentada na análise das quatro formas do valor em O Capital. Assim, Marx escopo da segunda fase foi resolver as contradições contidas na primeira fase
classificou o período de fevereiro de “prólogo da revolução” [326; trad. bras., reduzindo o conteúdo geral da revolução a um conteúdo particular, o domínio
333], visto que, durante esse tempo, todos os envolvidos na insurreição eram geral ao da burguesia.
inspirados somente por objetivos revolucionários “gerais”, e não específicos.
As reivindicações do proletariado de Paris são devaneios utópicos, a que se deve pôr um
Em nenhum período (...) encontramos uma mistura mais confusa de frases altissonantes e paradeiro. A essa declaração da Assembléia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respon­
efetiva incerteza e imperícia, aspirações mais entusiastas de inovação c um domínio mais arraigado deu com a insurreição de junho, o acontecimento de maior envergadura na história das guerras
da velha rotina, maior harmonia aparente em toda a sociedade e mais profunda discordância entre civis da Europa [Ibid.\ trad. bras., 334].
seus elementos [326-27; Trad. bras., 334].
Mas, ironicamente, esse “acontecimento de maior envergadura na história
As aparências e as realidades da situação revolucionária existiam no mais das guerras civis da Europa” foi historicamente significativo, na opinião de
flagrante contraste entre si, mas não erampercebidas como tais, do mesmo modo Marx, em primeiro lugar por causa do seu fracasso. Só através da derrota do
que, na forma simples do valor, a disparidade entre conteúdo e forma é proletariado o proletariado triunfaria.
obscurecida em detrimento do primeiro. Conseqüentemente, todos os “elemen­
tos que haviam preparado ou feito a revolução (...) encontraram provisoriamen­ A república burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a burgue­
te seu lugar no governo de fevereiro” [326; trad. bras., 333]. “Cada partido sia industrial, a classe média, a pequena burguesia, o exército, o lumpemproletariado organizado
em Guarda Móvel, os intelectuais de prestígio, o clero e a população rural. Do lado do proletariado
interpretava [a revolução] a seu modo.” O proletariado, tendo conseguido
de Paris não havia senão ele próprio. Mais de três mil insurretos foram massacrados depois da
armas afinal, “imprimiu-lhe sua chancela e proclamou-a uma república social”, vitória e quinze mil foram deportados sem julgamento. Com essa derrota, o proletariado passa
assim indicando o “conteúdo geral da revolução moderna”, mas um conteúdo para o fundo da cena revolucionária [327-28; trad. bras., 334].
que, nas circunstâncias, “estava na mais singular contradição com tudo o que
(...) podia ser imediatamente realizado na prática” \Ibid:, trad. bras., 333-34]. A derrota dos insurretos de junho foi assim caracterizada como um
Enquanto isso, as velhas forças da sociedade se haviam reagrupado, “reunido, acontecimento lamentável, mas dificilmente trágico, na medida em que sua
concertado e encontrado o apoio inesperado da massa da nação: os camponeses resistência à burguesia não foi informada por uma clara noção de seus objetivos
e a pequena burguesia, que se precipitaram de golpe sobre a cena política” [327; nem por qualquer avaliação de suas possibilidades de vitória. Não surpreendia,
trad. bras., 334]. na perspectiva de Marx, que as tentativas de revivificar a causa proletária fossem
Esse contraste entre o ideal da revolução e o que “podia ser imediatamen­ sistematicamente frustradas. O proletariado “parece incapaz de descobrir no­
te realizado na prática” corresponde à “forma” do valor e seu verdadeiro vamente em si a grandeza revolucionária ou de retirar novas energias dos novos
“conteúdo” como vem exposto em O Capital. O verdadeiro conteúdo da situa­ vínculos que criou [com outros grupos], até que todas as classes contra as quais
ção em 1848 é mascarado por um estado geral de consciência que poderia ser lutou em junho estejam, elas próprias, prostradas ao seu lado” [328; trad. bras.,
chamado metafórico em sentido estrito. O que está escondido está também 335] - até, em resumo, que todas as classes se tornem uma única com ele. O fato
presente, mas presente de forma distorcida. O verdadeiro conteúdo da revolu­ de que o proletariado “pelo menos sucumbe com as honras de uma grande luta
ção há de ser encontrado nas condições materiais que tornaram possível a histórico-universal” não pode ocultar o fato mais importante de que sua derrota
insurreição de fevereiro, mas esse conteúdo existe em contradição com as “aplainou o terreno sobre o qual a república burguesa podia ser fundada e
formas de ação social presentes na cena em 1848. Que isso era implicitamente edificada” [Ibid.; trad. bras., 335]. A natureza redutora da ordem burguesa
reconhecido pelos partidos da revolução mostra-o o fato de ter sido o regime revela-se no fato de que, para ela, “a sociedade é salva tantas vezes quantas se
de fevereiro denominado “provisório”. “Nada e ninguém”, disse Marx, “se contrai o círculo de seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe
atrevia a reclamar para si o direito de existência e de ação real” [326; trad. bras., ao mais amplo” [329; trad. bras., 336].
332 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 333

A evolução da sociedade burguesa foi assinalada pela sistemática traição Esse “Poder Executivo” (Bonaparte) ocupava diante da nação francesa,
dos ideais em nome dos quais ela havia levado a cabo a revolução de 1789. Esses com suas várias classes, a mesma posição que o linho diante de todas as outras
mesmos ideais, quando invocados pelos porta-vozes do proletariado, tentando mercadorias na análise de Marx da forma gerai do valor em O Capital. Assim,
obter para seu eleitorado as mesmas “liberdades” e os “órgãos de progresso” escreveu Marx:
que haviam levado a burguesia ao poder, eram então estigmatizados como
“socialistas”. Seus próprios ideais eram repelidos como ameaça ao “domínio de A França, portanto, parece ter escapado ao despotismo de uma classe apenas para cair sob
classe” que a burguesia procurava estabelecer. Mas, ironicamente, salientou o despotismo de um indivíduo [Ibid.-, trad. bras., ibid.].
Marx, a burguesia não se dava conta de que “seu próprio regime parlamentar,
seu poder político de maneira geral” seria considerado “socialista” por aqueles Mas, ironicamente, caíra sob a autoridade de “um indivíduo sem autori­
elementos de suas próprias fileiras que agora desejavam “tranquilidade” acima dade. A luta parece resolver-se de tal maneira que todas as classes, igualmente
de tudo [332; trad. br as., 360). A burguesia, em outros tempos defensora da impotentes e igualmente mudas, caem de joelhos diante da culatra do fuzil”
competição, da discussão, do debate, do governo da maioria etc., já não podia [Ibid.; trad. bras., Ibid.]. Dessa maneira, a condição “total” ou “desdobrada” do
aprovar tais processos porquanto eram reclamados por outros. Via-se, portan­ conflito de classes, característica da república burguesa, dava lugar agora à
to, forçada a rechaçá-los e a rechaçar também o compromisso com os ideais de condição “geral” da ditadura burguesa, e de tal modo que, embora figurando
“liberdade, igualdade e fraternidade” e com o princípio da democracia parla­ no primeiro plano como a classe dominante da sociedade, a burguesia se via
mentar. Ironicamente, despojada daquele mesmo poder político a que aspirava em 1789. Todo o poder
político fora investido num único indivíduo, Bonaparte: “A máquina do Estado
consolidou a tal ponto a sua posição em face da sociedade civil que lhe basta
denunciando agora como “socialista” tudo o que anteriormente exaltara como “liberal”, a burgue­
ter à frente [Bonaparte]” [337; trad. bras., 396].
sia reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se ac« perigos do autogoverno] que, a
fim de restaurar a calma no país, épreciso, antes de tudo, restabelecer a calma no seu Parlamento Marx afirmou que o sucesso de Bonaparte dependia do apoio dos peque­
burguês-, que, a fim de preservar intato o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado; que nos camponeses da França, mas observou que esse sucesso não se fez acompa­
o burguês particular só pode continuar a explorar as outras classes (...) sob a condição de que sua nhar do ascenso dessa classe ao poder político. Da mesma maneira que, na
classe seja condenada (...) à (...) nulidade política; que, a fim de salvar sua bolsa, deve abrir mão análise das formas de valor, o fetichismo do ouro sucedeu à forma geral do valor,
da coroa, e que a espada que a deve salvaguardar é fatalmente também uma espada de Dâmocles na sucessão das formas políticas, o fetichismo de Bonaparte sucedeu à forma
suspensa sobre sua cabeça [333; trad. bras., 361).
geral do poder político representado pelo posto presidencial ocupado por
Bonaparte. Bonaparte, “um aventureiro surgido de fora, glorificado por uma
Essa série de inversões irônicas proporcionou o princípio dramático pelo soldadesca embriagada, comprada com aguardente e salsichas” [Ibid.; trad.
qual Marx “dialeticamente” explicou as operações autodestrutivas da burguesia bras., Ibid.], traiu não somente o campesinato mas todas as outras ordens.
e do proletariado que servem à “astúcia da história”. A transição da primeira Considerando-se “representante da classe média, (...) ele só é alguém devido
para a segunda fase da revolução é a transição de um modo metafórico para um ao fato de ter quebrado o poder político dessa classe média e de quebrá-lo
modo metonímico de existência. Na segunda fase, ou fase burguesa, a “socie­ novamente todos os dias” [345; trad. bras., 402]. Considerando-se “represen­
dade” é metonimicamente identificada com a “burguesia”; a parte tomou o tante dos camponeses” e do “lumpemproletariado”, traiu-os também, insistindo
lugar do todo. “A república parlamentar, juntamente com a burguesia, apossa- em que deviam aprender a ser felizes “dentro da estrutura a sociedade burgue­
se de todo o cenário; goza a vida em toda a sua plenitude” [Ibid.; trad. bras., sa” [346; trad. bras., Ibid.].
393]. Mas em 2 de dezembro de 1851 a república foi enterrada “sob o acompa­ O programa de Bonaparte era uma obra-prima de duplicidade e contra­
nhamento do grito de agonia dos monarquistas coligados: ‘Viva a República!’ ” dição. Tinha então razão a burguesia francesa quando proclamava (como Marx
[333-34; trad. bras., Ibid.]. E foi enterrada por Luís Bonaparte, que propiciou a a faz dizer): “Só o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro pode ainda salvar a
transição da fase metonímica para a fase sinedóquica (geral) da revolução. Marx sociedade burguesa! Só o roubo pode salvar a propriedade; só o perjúrio, a
descreveu assim a transição: religião; só a bastardia, a família; a desordem, a ordem!” [345; trad. bras., Ibid.].
A mesma “absurdez” que Marx subseqüentemente imputou ao “fetichismo do
No Parlamento a nação tornou a lei a sua vontade geral, isto é, tomou sua vontade geral a ouro” foi aqui imputada a toda a sociedade. Assim, por exemplo, escreveu ele
lei da classe dominante. Renuncia, agora, ante o Poder Executivo, a toda a vontade própria e com referência ao relacionamento contraditório de Bonaparte com as várias
submete-se aos ditames superiores de uma vontade estranha, curva-se diante da autoridade. O classes da sociedade:
Poder Executivo, em contraste com o Poder Legislativo, expressa a heteronomia da nação, em
contraste com sua autonomia [336; trad. bras., 395]. Essa tarefa contraditória do homem explica as contradições do seu governo, esse confuso
tatear que ora procura conquistar, ora humilhar, primeiro uma classe, depois outra, e alinha todas
334 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 335

elas uniformemente contra ele, essa insegurança pratica constitui um contraste altamente cômico seria a sociedade comunista do futuro. Como escreveu Engels em 1891: “Muito
com o estilo imperioso e categórico de seus decretos governamentais, estilo copiado fielmente do
bem, senhores, querem saber que aspecto tem [a ditadura do proletariado]?
tio [346; trad. bras., Ibid.}.
Olhem para a Comuna de Paris. Aquilo era a ditadura do proletariado” (362).
E no entanto, aqui, como em 1848, a revolução estava predestinada à
As contradições do regime de Bonaparte são rigorosamente análogas às
derrota, não só porque as condições materiais ainda não eram satisfatórias para
contradições que informam, e tornam congenitamente instável, a forma dinhei­
o estabelecimento de uma sociedade comunista mas também porque “a maioria
ro do valor. E isso é o que permite a Marx predizer, com absoluta autoconfiança,
da Comuna não era de modo algum socialista, nem podia ser” (Marx a F.
a dissolução última do regime. Marx concluiu O 18 Brumário com uma carac­
Domela-Nieuwenhuis, 1881,391). O grito por uma “república social” era apenas
terização do regime que pressagiava o juízo que emitiria sobre ele retrospecti­
uma metáfora, que encerrava dentro de si um conteúdo não especificado, que
vamente em seu livro Guerras Civis na França, de 1871. O 18 Brumário termina
era o “socialismo”, mas que aparecia sob a vaga designação de “domínio de
assim:
classe”. A idéia da Comuna teria de passar pelo agon da redução metonímica
antes que pudesse emergir purificada e autoconscientemente socialista em sua
Impelido pelas exigências contraditórias de sua situação e estando ao mesmo tempo, como
um prestidigitador, ante a necessidade de manter os olhares do público fixados sobre ele, (...) por
próxima encarnação. A Terceira República, instaurada pela força dos exércitos
meio de surpresas constantes, isto c, ante a necessidade de executar diariamente um golpe de prussianos, era a forma social que essa redução assumia. Suas contradições não
Estado em miniatura, Bonaparte lança a confusão em toda a economia burguesa, viola tudo o que eram menos flagrantes do que as do Segundo Império, que ela suplantou. E ela
parecia inviolável à Revolução de 1848, toma alguns tolerantes em face da Revolução, outros não era mais estável. Talvez fosse até mais mórbida, existindo na verdade como
desejosos de revolução, e produz uma verdadeira anarquia em nome da ordem, ao mesmo tempo um difícil meio-termo entre uma burguesia assustada e um proletariado mais
em que despoja de seu halo toda a máquina do Estado, profana-a e toma-a ao mesmo tempo consciente de si como classe revolucionária, pois que contava com a experiência
desprezível e ridícula [348; trad. bras., 404].
histórica da Comuna para nela encontrar inspiração. Que iria tornar-se mais
“absurda” com o passar do tempo, Marx não tinha dúvida alguma. Estava tão
Em 1871, então, tudo o que faltava para desnudar a “podridão” do regime fadada à absurdez quanto aquele sistema econômico que confundia valor com
e da sociedade a que ele fingia servir era a espetadela da baioneta prussiana
ouro.
(The Civil Wars in France, 365). À desintegração dessa forma “farsesca” de
governo seguiu-se inevitavelmente sua “antítese direta” - isto é, a Comuna de
Paris - que lançou a sociedade francesa num novo ciclo de desenvolvimento.
A Comuna também lançou o proletariado num novo ciclo de consciência. CONCLUSÃO
Assim, escreveu Marx em As Guerras Civis na França'.
Posso agora sintetizar a idéia da história de Marx, concebida não só como
O grito de “república social”, com que a revolução de fevereiro foi anunciada pelo método de análise mas também como estratégia de representação. Já indiquei
proletariado de Paris, não exprimiu uma vaga aspiração para uma república que devia não somente que, no meu entender, a visão da história de Marx tem duas dimensões, ou dois
suplantar a forma monárquica de domínio de classe mas também o próprio domínio de classe. A eixos de conceptualização: um sincrônico, que tem a ver com as relações
Comuna era [portanto] a forma positiva daquela república [Zí»W.]. intemporais que se presume existam entre a infra-estrutura e a superestrutura;
o outro diacrônico, que tem a ver com as transformações que ocorrem ao longo
A positividade da reclamada “república social” refletia-se, afirmou Marx, do tempo nas duas. Marx rompeu com Hegel ao persistir em afirmar que a base
na tentativa de construir uma ordem social maior do que a soma das partes que fundamental do ser histórico é a natureza, e não a consciência, e ao manifestar
a compunham. Assim, por exemplo, a Comuna foi “enfaticamente internacio­ a convicção de que as formas, publicamente sancionadas de consciência são
nal” (373), conferindo a “todos os estrangeiros a honra de morrer por sua causa determinadas de maneira mecanicista pelos modos de produção, dos quais elas
imortal” (374). Marx chegou mesmo ao ponto de asseverar que o crime era são reflexos. Essa relação causal é unilinear e concebivelmente inevitável através
praticamente inexistente em Paris no apogeu da Comuna: “Não se vêem mais da história. Mas ele permanecia ligado a Hegel em seu emprego do método
cadáveres na morgue, nem arrombamentos noturnos, raramente se registram “dialético” para analisar a sucessão de formas que aparecem na superestrutura.
furtos” (376). Em contraste com os sobejos decadentes do regime anterior, Aqui suas categorias são as mesmas de Hegel, e sua concepção das relações
agora reunidos em Versalhes e tentando subverter a Comuna, Paris era um entre as entidades classificadas em suas respectivas rubricas é idêntica. A
virtual paraíso: “Em oposição ao novo mundo em Paris, vede o velho mundo em “lógica” hegeliana torna assim a caber a tarefa de analisar as formas fundamen­
Versalhes. (...) Paris todo verdade, Versalhes todo mentira; e a mentira esgui­ tais de autoconceptualização humana e das matrizes sociais dentro das quais
chada da boca de Thiers” (377). Em Paris, durante a Comuna, um grupo de essas formas de autoconceptualização ganham crédito público. Além disso,
homens logrou por um momento criar, de acordo com Marx, um modelo do que tanto as categorias usadas para caracterizar as formas e matrizes quanto as
336 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 337

usadas para caracterizar as relações entre elas foram inferidas da percepção de e derrota verdadeiramente trágicos. Mas, se são autenticamente heróicos em
Marx da natureza essencialmente tropológica das categorias da Lógica de sua aspiração, os homens podem contribuir com seus fracassos e derrotas para
Hegel. Os tipos de autoconceptualização humana e as projeções sociais de tais o conhecimento humano das leis que regem a natureza e a história. E seu
conceptualizações são dados nos modos de caracterizar a realidade ministrados conhecimento de tais leis fornece a base para a transcendência humana das
pela linguagem em geral, e são em última análise limitados a esses modos como limitações que elas impõem à humanidade.
são as modalidades de transformação desses tipos e projeções. A metáfora, a A acusação convencionalmente dirigida contra Marx por historiadores
metonímia, a sinédoque e a ironia oferecem não apenas os meios de autocon­ liberais e conservadores, a de ser cruelmente reducionista, não chega sequer,
ceptualização humana mas também as categorias de análise graças às quais pelo que se pode ver, a ser uma meia verdade. Pelo contrário, Marx era tudo
essas autoconceptualizações devem ser compreendidas como estágios na histó­ menos reducionista em seu método, muito embora sua concepção da história
ria de qualquer aspecto da superestrutura. Se analisava um microevento, como fosse dominada por uma visão das tendências integrativas discerníveis nas
a revolução de 1848-1851 na França, ou um macroevento, como a evolução dimensões macrocósmicas dessa mesma história. Possivelmente Ranke era
inteira da humanidade, Marx sempre recorria à tropologia como base para sua muito mais reducionista do que Marx, muito mais cativo de um mito, ainda que
categorização das classes de eventos e dos estágios por que passam ao evoluírem sua obra pareça ter sido orientada para a apreciação de fenômenos históricos
de uma fase inicial para a terminal. em sua particularidade e singularidade. Na realidade, deve ser óbvio a esta
Assim, também, como em Hegel, os tropos proporcionavam a base da altura que o pendor para estratégias dispersivas de representação, em contra­
quádrupla análise empreendida por Marx, em termos dramatúrgicos, das séries posição às integrativas, representa um viés ideológico nem mais nem menos
de fenômenos historicamente significativos. A estrutura de enredo de cada conceptualmente sobredeterminado do que aquele que inspirou Marx em sua
seqüência historicamente significativa de eventos - do pathos, através do agon busca de solução para “o enigma da história”. Concluir, como fez Burckhardt,
e do sparagmos, à anagnorisis - representa um movimento ou para a libertação que a história não é suscetível de análise racional, salvo no plano das categorias
ou para a servidão, para uma transcendência “romântica” do mundo da expe­ mais gerais, e que seus processos não podem ser compreendidos como algo mais
riência ou para uma condição “irônica” de servidão. Marx, porém, negava que uma seqüência de transformações “metastáticas”, não é nem mais nem
ambos os extremos; a humanidade não está presa nem à total servidão nem à menos meitopoéico do que as conclusões a que Marx foi levado por suas
transcendência absoluta. Sua visão histórica, como a de Hegel, oscilava entre reflexões sobre a história. A crença em que o sentido da história consiste em
apreensões do resultado trágico de cada ato do drama histórico e compreensões não ter ela sentido algum, ou que é injustificado conceptualizá-Ia de modo a lhe
do resultado cômico do processo como um todo. Para Marx, como para Hegel, atribuir um sentido específico, não é apenas um juízo cognitivo; é também um
a humanidade conquista a condição de uma reconciliação cômica, consigo e juízo ideológico. O que Marx procurou fazer foi encontrar um método analítico
com a natureza,por meio de conflitos trágicos que, em si mesmos, não parecem e uma estratégia de representação que lhe permitisse escrever sobre a história
oferecer senão as consolações de uma compreensão filosófica da nobreza deles. na voz ativa, e não na voz passiva. A voz ativa é a voz do radicalismo. Mas o
Assim, da mesma maneira que em suas “explicações” da história Marx transi­ radicalismo de Marx era o da esquerda, e era distinguível de seu honiólogo da
tava entre um modo mecanicista e um modo organicista de argumentação, direita pela insistência em que a história não é em princípio mais misteriosa do
também, em suas “representações” dela, transitava entre uma concepção trági­ que é a própria natureza, e em que o estudo da história conduz à descoberta de
ca e uma concepção cômica de sua forma fundamental. leis graças às quais é possível compreender tanto o seu sentido quanto a direção
geral do seu desenvolvimento. Com isso põe o leitor numa situação de escolha
Esse duplo movimento distingue o historiador radical do conservador entre possíveis alternativas sem especificar qual tem de ser sua decisão numa
(distingue Hegel e Marx de Ranke), muito embora ambos os tipos de historiador dada circunstância. Mais importante, coloca o leitor numa posição em que,
terminem por uma concepção cômica de todo o processo histórico. Hegel e qualquer que seja a escolha que faça, é obrigado a fazê-la num estado de
Marx levaram o conflito a sério, de um modo que Ranke não levou. Hegel e autoconsciência mais profunda do que se tivesse tomado sua decisão com base
Marx sabiam que as coisas nunca se definem pelo melhor no melhor dos mundos na apreensão rankiana de coisas que se encaminham para o melhor, indepen­
possíveis, que a humanidade suporta perdas e mutilações autênticas em suas dentemente do que fizermos, ou com base na crença burckhardtiana em que,
tentativas de afirmar-se contra um cosmo que é tão intratável quanto é, em seja o que for que fizermos, não tem importância alguma.
diferentes épocas e lugares, incognoscível. Mas esse cosmo pode, na avaliação
de ambos, ser conhecido', as leis que o regem podem ser progressivamente
divisadas. Mas as leis que regem o cosmo só podem ser conhecidas através da
prática, através da ação, através de afirmações heróicas - para não dizer
prometéicas - da vontade. Tais afirmações são tão perigosas para indivíduos e
grupos como são problemáticas. Carregam consigo a possibilidade de malogro
3

NIETZSCHE
A DEFESA POÉTICA DA HISTÓRIA NO
MODO METAFÓRICO

INTRODUÇÃO

No pensamento histórico, como em quase tudo o mais na atividade


cultural do século XIX, Friedrich Nietzsche representou um momento decisivo,
porquanto rejeitou as categorias de análise histórica que os historiadores
vinham utilizando desde a década de 1830 e contestou a realidade de qualquer
coisa a que se pudesse dar o nome de processo histórico, no qual se apoiassem
essas categorias. Isso não quer dizer que Nietzsche não se interessasse pelas
questões históricas. Pelo contrário, quase todas as suas obras filosóficas ba-
seiam-se no estudo de problemas históricos e em sua maioria poderiam mesmo
ser consideradas históricas em seus métodos. Por exemplo, O Nascimento da
Tragédia do Espírito da Música (1871) é não apenas um ensaio sobre a estética
da tragédia mas também - e talvez mais importante - uma história da ascensão
e queda do espírito trágico na Grécia clássica; eA Genealogia da Moral (1887)
não é só um prolegômeno a uma ética niilista mas também - e, outra vez, mais
importante - um ensaio ousado e original sobre a história das idéias de bem e
mal na civilização ocidental. Além disso, em sua quase totalidade, as obras de
Nietzsche contêm um discurso sobre a consciência histórica ou extensas refe­
rências a ela, assim como críticas à reflexão histórica convencional e sugestões
no sentido de aplicar as idéias históricas a finalidades criativas. Portanto, há
mais do que apenas um grão de verdade no comentário que Burckhardt fez a
Nietzsche em 1882: “Fundamentalmente, é claro, você está sempre ensinando
história” (Burckhardt, Briefe, 427).
340 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 341

No entanto a idéia da história de Nietzsche era tão pouco apreciada pelos cientemente, mantendo aberto o acesso para a força da rida, mas permitindo a
historiadores profissionais quanto as de Hegel, não porque suas reflexões sobre liberação daquelas forças em quanta assimiláveis de energia.
a história fossem turvadas por uma linguagem técnica do tipo usado por Hegel,
mas porque o sentido do que dizia era demasiado claro e obviamente também Quando refletia sobre a história, portanto, Nietzsche se preocupava sem­
demasiado ameaçador para as concepções profissionais da competência da pre em determinar como a própria história podia transformar-se numa forma
história. O escopo de Nietzsche era destruir a crença num passado histórico no similarmente criativa de sonho, como, em suma, podia transmudar-se num tipo
qual os homens pudessem aprender qualquer verdade única e substancial. Para de arte trágica. Essa preocupação ele compartilhava com Hegel; mas em última
Nietzsche, como para Burckhardt, havia tantas “verdades” acerca do passado análise Nietzsche diferia de Hegel em sua concepção do que a tragédia ensina.
quantas fossem as perspectivas a respeito dele. Em sua opinião, o estudo da Para Nietzsche, a tragédia não oferece nenhum “ponto de vista superior”, como
história não devia constituir um fim em si mesmo; devia servir de meio para Hegel pensava, mas caracteriza-se pelo impulso de dissolver todos esses pontos
algum fim ou objetivo vital. Os homens encaravam o mundo por ópticas que se de vista antes que se enrijeçam em conceitos restritivos da rida. Assim entendi­
harmonizavam com os propósitos que os motivavam; e exigiam diferentes visões das, as reflexões de Nietzsche sobre a história são uma extensão de suas
da história para justificar os vários projetos que deviam empreender a fim de reflexões sobre a tragédia. Se quisermos compreender o objetivo de seu “Uso
realizar plenamente sua humanidade. Basicamente, portanto, Nietzsche dividia e Abuso da História” (1874), teremos primeiro que compreender alguma coisa
as maneiras como os homens encaravam a história em dois tipos: um tipo da obra da qual proveio esse trabalho, O Nascimento da Tragédia.
negador da vida, que pretendia encontrar o único modo eternamente verdadei­
ro, ou “correto”, de considerar o passado; e um tipo afirmador da rida, que
estimulava tantas visões dissímeis da história quantos projetos houvesse de MITO E HISTÓRIA
alcançar uma consciência de si nos seres humanos individuais. O desejo de
acreditar que havia uma única idéia eternamente verdadeira, ou “correta”, da
história era, na opinião de Nietzsche, outro vestígio da necessidade cristã de Em 1886, Nietzsche escreveu novo prefácio para O Nascimento da Tragé­
acreditar no único Deus verdadeiro ~ ou da contraparte secular do cristianismo, dia, livro lançado em 1871. O prefácio recebeu o título de “Versuch einer
a ciência positivista, com sua necessidade de crer num único, completo e Selbstkritik” (“Ensaio de Autocrítica”), e nele Nietzsche indicou os dois pontos
completamente verdadeiro código de leis naturais. A essas duas concepções de vista que, retrospectivamente, lhe pareciam ter sido os verdadeiros alvos de
essencialmente constritivas da verdade e a seus equivalentes na arte - roman­ sua polêmica juvenil. Esses alvos eram a ironia e o romantismo. “Eu começava
tismo e naturalismo - opunha Nietzsche sua própria concepção da relatividade então”, disse Nietzsche, “a atacar um problema perigoso (...) o problema da
de toda visão do real. investigação erudita. Pela primeira vez na história alguém travava um corpo a
corpo com o saber!” (5) Via a ironia como o principal atributo dos sábios; sob
a capa “da ‘mente inquiridora’ ”, a ironia se disseminara por todo o mundo do
Mas Nietzsche não estava desligado da arte e da ciência do seu tempo. pensamento e da imaginação como “um engenhoso baluarte erigido contra a
Desde o início aceitou as implicações niilistas de ambas. Celebrou a afirmação verdade” (4-5). “Terá sido este talvez o teu segredo, grande Sócrates?”, per­
pela ciência positivista da essencial falta de sentido do processo natural e a guntou Nietzsche. “Misteriosíssimo ironista, terá sido esta a tua mais profunda
concepção, formulada pela arte simbolista, do caráter basicamente construti- ironia? (5) Quanto ao romantismo, fora ele encarnado, aos olhos do jovem
vista de qualquer forma, significação ou conteúdo que os homens encontraram Nietzsche, em Richard Wagner e sua música. Os anos decorridos,, porém,
no mundo. Para Nietzsche a forma, o significado e o conteúdo de toda ciência haviam ensinado a Nietzsche pelo menos uma coisa: “Adotar uma atitude isenta
e de toda religião eram estéticas na origem, produtos de uma necessidade de esperança e piedade para com aquela ‘índole alemã’, idem para com a música
humana de se refugiar da realidade no sonho, de impor ordem à experiência na alemã, que agora reconheço pelo que realmente é: um rematado romantismo,
ausência de qualquer sentido ou conteúdo substantivo. Ele sustentava que todas a menos grega de todas as formas de arte e, além disso, um entorpecente da pior
as “verdades” eram perversões do impulso estético originário, perversões na espécie” (13).
medida em que tomavam os sonhos pela realidade informe e tentavam congelar O nome de Nietzsche está naturalmente associado ao renascimento do
a rida na forma suprida pelo sonho. O impulso estético era dinâmico por interesse pelo pensamento mítico que ocorreu no final do último século, e
natureza - eu diria dialético transitando incessantemente entre o sonho e a especialmente ao mito do “eterno retorno”, que Nietzsche opôs ao mito cristão,
realidade, constantemente dissolvendo sonhos atrofiados mediante contatos da redenção e à doutrina burguesa do progresso. Lõwith, por exemplo, insiste
renovados com o caos primígeno e gerando novos sonhos para sustentar a em que, embora o mito da eterna recorrência tenha sido apresentado emyl Gaia
vontade de vida. A mais elevada modalidade de arte, a tragédia, efetuava esse Ciência apenas como a base de um imperativo ético, em Assim Falou Zaratustra
movimento dialético do sonho para a realidade e de volta ao sonho autocons- a idéia foi exposta como uma “verdade metafísica” (Meaning, 216-17). De fato,
342 HAYDENWHITE MEIA-HISTÓRIA 343

diz Lõwith, a doutrina da eterna recorrência constitui “o pensamento funda­ sua estratégia era rigorosamente o oposto da de Marx. Pois, enquanto Marx
mental na última obra [de Nietzsche]” (209). procurava justificar uma concepção prometéica das tarefas de humanidade em
Outra visão do pensamento de Nietzsche percebe no filósofo o criador de favor do futuro mediante uma revisão dos conceitos de lei e causalidade na
outro mito, o do infindável intercâmbio entre as faculdades dionisíacas e história, Nietzsche tentava elaborar esse mesmo tipo de justificação através da
apolíneas do homem, e conseqüentemente o defensor de uma filosofia dualista, demolição desses mesmos conceitos.
de uma concepção maniqueísta da vida que não é cíclica em seu movimento No início do que qualificou de seu trabalho mais “histórico”, A Genealo­
total, mas de duração ilimitada, uma oscilação conveniente. gia da Moraly Nietzsche escreveu: “Felizmente aprendi em boa hora a divorciar
Ambas as visões são plausíveis, e cada uma tem suas implicações para um o preconceito teológico do moral e a não mais procurar a origem do mal atrás
correto entendimento do pensamento de Nietzsche sobre a história. Mas eu do mundo” (151). Quase todas as ilusões letais do homem moderno, não menos
afirmo que nem a doutrina da eterna recorrência nem a do dualismo dionisía- do que do primitivo, resultavam de uma tendência para reduções metonímicas
co-apolíneo conduz a um entendimento do pensamento de Nietzsche sobre a de eventos a agencias, ou de “fenômenos” a “manifestações” de imaginadas
existência histórica, o conhecimento histórico e o processo histórico. Os dois substâncias “numerais”.
mitos são produtos de uma crítica prévia do conhecimento histórico, resultados
dos esforços de Nietzsche, antes de tudo, parà traduzir a história em arte e, em Pois, assim como a superstição popular divorcia o relâmpago de seu clarão, vendo neste
uma atividade cujo sujeito é o relâmpago, também a moralidade popular divorcia a força de suas
segundo lugar, para traduzir a visão estética numa apreensão da vida em termos manifestações, como se houvesse atrás do forte um agente neutro, livre para manifestar sua força
trágicos e cômicos simultaneamente. e contê-la. Mas tal agente não existe; não há ser atrás do fazer, agir, vir-a-ser; o “fazedor” foi
O escopo de Nietzsche como filósofo era ultrapassar a ironia libertando simplesmente adicionado ao feito pela imaginação - o fazer é tudo. O homem comum rcalmcnte
a consciência de todas as apreensões metonímicas do mundo (que engendraram duplica o fazer fazendo o raio relampejar, ele enuncia o mesmo evento uma vez como causa e depois
as doutrinas da causalidade mecânica e uma ciência desumanizadora) por um novamente como efeito. Nâo são melhores os cientistas naturais quando dizem que “a energia
move”, “a energia causa”. Apesar de todo o seu distanciamento e de sua isenção de emoção, nossa
lado e todas as sublimações sinedóquicas do mundo (que geraram as doutrinas ciência é ainda o joguete de hábitos linguísticos; até agora não se livrou daquelas crianças trocadas
de causas “superiores”, deuses, espíritos e ética) por outro, e restituir à cons­ ao nascer chamadas “sujeitos” [178-79].
ciência a fruição de seus poderes metafóricos, de sua capacidade de “deleitar-se
nas imagens”, de considerar o mundo como puros fenômenos, e de liberar, desse Dissolver a crença nesses imaginados números, substâncias, agentes espi­
modo, a consciência poética do homem para uma atividade mais pura, ainda rituais etc., era o principal objetivo de Nietzsche como filósofo. Expor as ilusões
que mais autoconsciente, do que a ingênua metáfora do homem primitivo. produzidas pelo que era, no fim de contas, apenas um hábito linguístico, libertar
Assim, em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche opôs-se a dois tipos de a consciência de seus próprios poderes de ilusionismo, de maneira que a
falsa sensibilidade trágica: o que interpreta a visão trágica no modo irônico e o imaginação pudesse uma vez mais “deleitar-se nas imagens” sem enrijecer essas
que a interpreta no modo romântico. Sua demolição dessas duas falsas concep­ imagens em conceitos destruidores da vida - eis as metas supremas de Nietzsche
ções da consciência trágica forneceram-lhe os meios de reinterpretar a tragédia como professor de sua época.
como combinação de percepções dionisíacas e apolíneas, como apreensões Os mais perigosos desses conceitos destruidores da vida são aqueles que
trágicas do mundo a desaguarem em compreensões cômicas dele-eo contrário. constituem a base de toda a moralidade: o bem e o mal. Por meio da metonímia
Seus comentários sobre a consciência histórica, esparsos por toda a sua obra, os homens criam agentes e agências atrás dos fenômenos; por meio da sinédo-
mas expostos com maior profundidade em “O Uso e Abuso da História” e A que dotam esses agentes e agências de qualidades específicas, e muito especial­
Genealogia da Moral, tinham em vista realizar a mesma operação cirúrgica no mente da qualidade de serem alguma outra coisa que aquilo que são. Causa
pensamento histórico do seu tempo. A história, como a tragédia, tem aspectos pouco espanto, disse Nietzsche, que “emoções reprimidas e latentes de vingan­
falsos e aspectos verdadeiros, aspectos destrutivos e aspectos liberadores. E ça e ódio” tirem proveito da superstição de seres numerais por trás dos
veremos que, para Nietzsche, as variedades falsas eram irônicas e românticas, fenômenos e “de fato não abracem nenhuma crença mais ardentemente do que
ao passo que a versão verdadeira era aquela combinação de tragédia e comédia, convém ao forte ser fraco, à ave de rapina ser um cordeiro” (179). Com esse
que ele tentou realizar em O Nascimento da Tragédia do Espírito da Música. “sublime passe de mágica que dá à fraqueza a aparência de uma livre escolha e
Marx intentara reintroduzir os conceitos de lei e causação na reflexão à disposição natural de qualquer um a distinção do mérito” (180), os fracos se
histórica, mas de maneira a possibilitar uma confrontação heróica dos males do identificam com os fortes, os rancorosos com os generosos de espírito, e o “mal”
seu presente e uma projeção auspiciosa do homem em seu futuro possível. com o “bem”.
Nietzsche era motivado pelo mesmo desejo de renascimento do heroísmo numa Na opinião de Nietzsche, a natureza supremamente irônica de seu próprio
época de mediocridade e resignação cultural, e ansiava restabelecer, sobre tempo havia afinal demonstrado que esses passes de mágica nada mais eram do
novas premissas, a base para uma projeção otimista do homem num futuro.. Mas que manipulações de linguagem para proveito dos fracos da terra. Por conse­
344 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 345

guinte, a época se manteve equilibrada à beira do caos, colocada diante da


possibilidade de um niilismo mais aterrador do que qualquer coisa que o homem O resultado é a criação de uma “memória da vontade” - não de uma
primitivo pode ter sido obrigado a enfrentar na aurora da consciência humana. simples “sujeição passiva a impressões passadas” mas de um “contínuo querer
Como ele escreveu no final de O Nascimento da Tragédia'. o que outrora foi querido, (...) de modo que entre a primitiva determinação e a
efetiva realização da coisa querida pode interpor-se todo um mundo de coisas
Temos aqui nossa época atual, resultado de um socratismo consagrado ao extermínio do e condições novas, e até novos atos volitivos, sem que se rompa a longa cadeia
mito. O homem hoje, desprovido de mito, sente-se faminto em meio a todo o seu passado e
da vontade”. Mas tudo isso pressupõe, disse Nietzsche, uma consciência que
entrega-se à busca frenética de raízes, mesmo entre as mais remotas antiguidades. Que significa
nossa imensa fome histórica, nossa apropriação de inúmeras outras culturas, nosso absorvente esteja condicionada a “separar atos necessários de acidentais; pensar causal­
desejo de conhecer, senão a perda do mito, de uma pátria mítica, do útero mítico? [137] mente; ver coisas distantes como se estivessem ao alcance da mão; distinguir
meios de fins”. Em suma, o homem não-heróico é aquele que “deve ter-se
A alardeada “consciência histórica” da época era assim um sintoma do tomado não só calculador, mas calculável ele próprio, metódico até para suas
triunfo do modo irônico de compreender o mundo. Mas era mais do que isso próprias percepções”. Só assim pode ele “caucionar seu próprio futuro como
também. Pois a “consciência histórica”, argumentou Nietzsche, é ela mesma faz um fiador” (190).
uma das fontes alimentadoras da doença atual, da própria “moralidade”. É óbvio que Nietzsche via nessa capacidade do homem de prolongar um
O Nascimento da Tragédia encerra-se com uma análise da oposição do ato de vontade realizado num instante temporal até algum instante futuro,
“senso histórico” à consciência “mítica”. Nietzsche queria libertar o homem não nessa capacidade de recordar, um poder perigoso. Para ele, era o equivalente
do mito mas das “ilusões” de que a “história” ou o “processo histórico” era de uma postura vis-à-vis ao futuro que se manifesta na consciência histórica
representante. vis-à-vis ao passado. A moralidade ou “consciência” auto-obrigativa era mera­
mente uma forma específica de consciência histórica. E o problema para
Pode-se afirmar que uma nação, como um indivíduo, só é valiosa na medida em que é capaz Nietzsche era como romper o poder da vontade voltada para a coerência, que
de imprimir na experiência cotidiana o selo do eterno. Só dessa forma consegue expressar sua todas as formas de pensar que não são por natureza metafóricas impõem ao
profunda, ainda que inconsciente, convicção da relatividade do tempo e do sentido metafísico da homem.
vida. Acontece o contrário quando uma nação começa a ver-sc a si mesma historicamente e a
O Nascimento da Tragédia, disse Nietzsche, era uma tentativa de analisar
demolir as muralhas míticas que a circundam [139].
o espírito trágico da Grécia clássica em termos puramente estéticos, de vê-lo
como uma criação de uma faculdade de que a “música” era outra manifestação;
Expressões como “história” e “processo histórico” eram ficções, o que e, acima de tudo, de distinguir a tragédia pura de suas falsas ou enlouquecidas
Nietzsche distinguia, com todo o rigor, de “mito”. Seu escopo era determinar o
contrapartes “moralizantes”. Era evidente que, para ele, o verdadeiro espírito
quanto podia o homem ainda uma vez, e desta vez autoconscientemente,
trágico, aquele que informava a obra de Ésquilo, Sófocles e Aristófanes, em
reingressar no mundo das apreensões míticas e recuperar a liberdade que contraposição à de Eurípides e dos autores da nova comédia, era um produto
somente a consciência metafórica concede à vida humana.
da pura consciência metafórica. O espírito trágico foi traído, pensava Nietzsche,
O segundo ensaio de A Genealogia da Moral começa por um exame da por Eurípides e pelos autores da nova comédia por um lado e por Sócrates e
fenomenologia do “prometer”, isto é, do processo humano de “recordar” um Platão por outro, pela “redução” do sentido do agon trágico a termos causais
juramento ou uma obrigação ao longo do tempo, de transportar para “o ou por sua “inflação” em termos morais. Isto é, a tragédia foi traída no momento
presente” um compromisso assumido “no passado”, de modo que esse presen­ em que se passou a entender que o sentido da peça residia em algum “princípio”
te se torna, não um “futuro”, mas uma recapitulação daquele “passado” mais que não fosse a simples interação entre o poder apolíneo de criar imagens e as
remoto. Nietzsche opunha a esse poder de “recordar” o poder de “esquecer” explosões dionisíacas dessas imagens. Da mesma maneira que o “sentido” da
ou “olvido”. Esse poder, disse ele, permite ao homem “fechar temporariamente música (não-recitativa) residia na simples combinação de melodia* ritmo e
as portas e janelas da consciência” a perturbadoras lembranças de estados harmonia, também a tragédia pura nada mais era do que uma imagem do
passados para que possa “entrar” em seu presente livremente, possa responder intercâmbio de formas apolíneas e percepções dionisíacas quando atuavam
a uma situação e nela atuar com perfeita clareza de visão e força de vontade. O para levar a efeito a “entrada” do homem “em” seu “presente”, e sua saída
poder de lembrar torna o homem não-heróico, isto é,previsível. “dele”, nos momentos adequados.
Para Nietzsche, os gregos tinham sido os primeiros a reconhecer quanto
Agora esse animal naturalmente desmemoriado, para quem o olvido representa um poder,
uma forma de boa saúde, criou para si mesmo um poder oposto, o de lembrar, com cuja ajuda, em
a vida humana dependia das faculdades mitopoéicas do homem, de sua capaci­
certos casos, é possível suspender o olvido - especialmente nos casos em que se trata de promessas dade dc se dedicar a um sonho de saúde e beleza em face de sua própria
[189-90]. aniquilação iminente. A cultura grega, em sua idade de ouro, acreditava ele,
346 HAYDENWHITE META-H1STÓR1A 347

desenvolveu-se com plena consciência dos fundamentos fictícios em que repou­ humana, mas aprofundar demasiadamente a investigação da natureza das coi­
sava. Ele comparava essa cultura a um templo erguido sobre estacas enterradas sas, entender demais, destrói a vontade de agir. “Para agir”, disse Nietzsche,
na lama viscosa da laguna veneziana; isso gerava uma ilusão de permanência e
auto-suficiência, e portanto permitia que a vida continuasse, mas coloria cada precisamos do véu da ilusão; tal é a doutrina de Hamlet, que não se há dc confundir com a sabedoria
barata de um João Sonhador, que, por excesso de reflexão, como se houvesse um excedente de
ato realizado dentro do edifício de um contido sentimento da tenuidade essen­
possibilidades, jamais chega a agir. O que (...) no caso dc Hamlet (...) pesa mais do que qualquer
cial da vida, de sua impiedosa finitude. motivo conducente à ação é, não a reflexão, mas o entendimento, a apreensão da verdade c seu
Mas a cultura grega não proporcionava fácil evasão para regiões idílicas terror. Uma vez avistada a verdade, o homem se dá conta em toda parte do medonho absurdo da
nem a fuga para longe do caos primordial. Na arte trágica os gregos encontraram existência (...) a náusea o invade [Birth ofTragedy, 51).
um meio de recordar a si mesmos que a cultura humana era quando muito um
complexo de ilusões, que era no máximo uma realização delicada, que debaixo Felizmente, porém, prosseguiu Nietzsche, o homem também possui a
dela estendia-se o vazio do qual todas as coisas provinham e ao qual deviam faculdade de esquecer o que sabe - mais até, uma aptidão para negar o que sabe;
finalmente retornar, que um determinado conjunto de ilusões precisava ser conta com uma capacidade de sonhar, de se deleitar nas imagens, e de revestir
continuamente posto à prova e substituído por novos conjuntos e que só era o terror, a dor e o sofrimento causados pela consciência de sua finitude com
possível uma vida criativa quando caos e forma fossem abarcados por uma nova sugestões oníricas de imortalidade. Ele pode embruxar-se, evadir-se para o
consciência de sua mútua interdependência. A cultura grega em sua idade de interior de uma metáfora, oferecer uma ordem e uma forma críveis à sua vida,
ouro, sustentava Nietzsche, renunciou ao impulso de encontrar o mundo ideal agir como se a metáfora fosse a verdade, e converter a consciência de sua
a fim de gozar os benefícios de um mundo ideal. Os gregos elevaram a vida iminente destruição numa ocasião de afirmação heróica. Nessa capacidade de
humana acima de uma barbárie “selvagem”, mas não aspiravam a uma ideali­ embruxar-se, de descarregar percepções dionisíacas em imagens apolíneas,
dade impossível. Alcançaram um equilíbrio precário entre a forma perfeita e o reside a faculdade do homem de se superar, de agir e não apenas contemplar,
caos total ao manter consistentemente viva na consciência a percepção de e de vir a ser mais do que simplesmente ser.
ambas as possibilidades. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche caracterizou essa aptidão in­
confundivelmente humana para a auto-ilusão numa brilhante inversão de figu­
A arte trágica reflete assim o abandono pelos gregos de qualquer impulso ras que faz lembrar a metáfora do sol no início àzFilosofia da História de Hegel:
de copiar o concreto ou real, concebido quer como uma esfera ideal de essência
para além do espaço e do tempo, quer como o número infinito de fenômenos Depois de uma vigorosa tentativa dc fitarmos o sol, e tão logo desviamos a vista, temos,
que se oferecem aos sentidos no espaço e no tempo. A arte trágica é ao mesmo quase como um remédio, pontos escuros diante dos nossos olhos. Inversamente, as imagens
tempo realisticamente ilusionista e criativamente destruidora de suas próprias luminosas dos heróis sofoclianos - aquelas máscaras apolíneas - são as produções necessárias de
ilusões. Ao transformar o hoiror do vazio primordial em belas imagens de vidas uma visão profunda do horror da natureza; pont06 brilhantes, por assim dizer, destinados a curar
humanas superiores e em seguida destruí-las, a tragédia destrói os velhos sonhos um olho ferido pela treva insondável [59-60].
em que se baseia a cultura humana e prepara o terreno para a construção de
novos sonhos através do quais novas necessidades humanas podem ser satisfei­ Mais tarde, em A Genealogia da Moral, Nietzsche explicitaria uma idéia
tas. À vida do indivíduo livre é dada oportunidade para a criativa produção de aqui implícita; definiria o impulso para a beleza como um reflexo provocado
ilusões nos interstícios de sistemas alternantes de ilusões, e a dotação cultural por uma prévia percepção do feio. O ponto importante a reter por enquanto é
que protege a visão do homem da escuridão do abismo é impedida de se que para Nietzsche o belo era, não um reflexo de um reino transcendental ou
converter num envoltório rijo porque constantemente a tragédia lembra aos uma interiorização dele, mas uma reação a ele, uma criação da vontade humana
homens que toda forma não é senão uma criação puramente humana, mesmo de vida apenas, uma ação reflexa ante a descoberta da verdade do mundo - isto
no momento em que a oferece como base para o movimento em direção ao é, que ele não tinha verdade alguma. Isso é o que Nietzsche quis dizer com sua
futuro. Assim, a arte trágica é a arte dialética par excellence. Só ela é capaz, máxima: “Temos a arte para não morrermos da verdade”, isto é, para não
afirmou Nietzsche, de impelir o homem a colisões heróicas com a realidade e morrermos da descoberta de que não há uma verdade única, universal.
também de reabilitar o homem para a vida depois dessas colisões. Um dos objetivos de O Nascimento da Tragédia era expor o agon trágico
sem recorrer a categorias éticas ou religiosas (no sentido de transcendentais).
Tudo isso se baseia na crença de Nietzsche em que a força peculiar do Nietzsche queria mostrar que o processo dialético pelo qual um ser humano
homem, bem como sua atordoante fraqueza, é sua consciência. A consciência passa da mera existência através da alienação para a reconciliação com o mundo
ao mesmo tempo permite ao homem construir uma vida especificamente huma­ é uma função unicamente de impulsos estéticos inteligíveis. Escritores mais
na e corrói o impulso de mudar aquela vida uma vez construída. Porque pode antigos - em especial Hegel - tinham visto a arte trágica como um produto do
investigar a natureza das coisas pode o homem agir de maneira especificamente conflito entre o indivíduo voluntarioso e a ordem social ou o processo cósmico,
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entre aidos, de um lado, e nomos, moira ou physis, do outro. E a catarse que se lhe cabiam sobre todas as formas de vida seria possível abandonar as formas
seguia à contemplação da queda do herói servira não só para iluminar alguma que já haviam perdido a utilidade e criar outras mais sensíveis às múltiplas
verdade moralmente significativa acerca da natureza do universo, mas também necessidades e interesses da vida.
para indicar um vago, mas real, sentido transpessoal para a vida. Mesmo Nietzsche não recomendava, está claro, a adoração exclusiva de Dioniso;
Schopenhauer admitira que a tragédia contribuía para o reconhecimento da o triunfo total de Dioniso, a vontade de caos, sobre Apoio, redundaria mima
verdade fundamental de que “o melhor mesmo era não ter nascido”. regressão àquela “barbárie selvagem” da qual os gregos só se tinham alçado à
Nietzsche condenava o falso pessimismo dessa visão não menos do que o custa dos esforços mais ingentes. Mas o predomínio incontestado das faculda­
falso otimismo daquela, e encontrou a essência do espírito da tragédia na des apolíneas no homem significava rigidez, opressão, repressão, a vida do
elevada consciência que ela conferiu ao conflito entre a apreensão pelo homem sonâmbulo. Sem a capacidade apolínea de alimentar o sonho do Parnaso, o
da natureza essencialmente caótica da existência e a capacidade dele de conti­ homem não podia viver; mas o impulso de tomar uma forma específica pela
nuar vivendo em sonhos autofabricados. Assim encarada, a arte trágica era um realidade, de voltar contra o próprio homem a capacidade de produzir imagens,
produto do movimento do homem em direção ao abismo do qual emergira era em última instância tão destruidor da vida humana quanto o domínio de
através da manipulação de imagens que o tinham sustentado anteriormente e Dioniso. Além disso, o predomínio indiscutido de Apoio pressagiava uma
de um contramovimento de recuo a uma nova série de imagens saturadas de um reação do tipo mais violento quando Dioniso mais uma vez fizesse valer seus
conhecimento recalcado do caráter ilusório de to da forma. Esse movimento do direitos.
caos à forma e de novo ao caos distingue a tragédia de todas as outras formas De acordo com Nietzsche, a forma mais destrutiva de ilusionismo é a que
depoesis (como a epopéia e a poesia lírica) e de todos os sistemas de conheci­ transforma uma imagem num conceito e depois congela a imaginação dentro
mento e crença (como a ciência e a religião). Todas as outras prospecções da dos limites estabelecidos pelo conceito. Toda forma é em última análise meta­
existência humana tendem a congelar a vida numa apreensão do caos ou da fórica, não substantiva, argumentou Nietzsche, e, quando criativamente usada,
forma; só a tragédia requer uma constante alternância da consciência do caos pelo poeta trágico, por exemplo, a metáfora faz as vezes de “uma imagem
com a vontade de forma no interesse da vida. “Apoio vence o sofrimento representativa que se ergue concretamente diante dele em lugar de um concei­
individual por meio da gloriosa apoteose do que é eterno na aparência: aqui a to” (55). Uma personagem de uma peça não é, então, simplesmente “uma
beleza se sobrepõe ao sofrimento que é inerente a toda a existência, e a dor é, coleção de traços isolados laboriosamente reunidos, mas uma pessoa persisten­
em certo sentido, enganosamente eliminada da face da natureza” (102). Já temente viva diante dos olhos do poeta, diferindo da imagem concebida pelo
Dioniso “nos faz compreender que tudo o que é gerado deve preparar-se para pintor por sua capacidade de continuar viva e atuante” (Ibid.). Esse poder
enfrentar sua penosa dissolução. Força-nos a aprofundar o olhar no horror da dinâmico de produzir imagens é um dom de Apoio e Dioniso, e é por conse­
existência individual, sem que no entanto a visão nos deixe petrificados: uma guinte uma síntese viva de forma e movimento, estrutura e processo. A imagem
consolação metafísica momentaneamente nos ergue acima do turbilhão de formada pelo poeta que compreende os usos da metáfora é um produto do
fenômenos cambiantes”. Agora vemos, continuou Nietzsche, “a luta, a dor, a poder de Apoio de tranqüilizar o indivíduo mediante o “traçado de linhas de
destruição das aparências, como necessárias, por causa da constante prolifera­ fronteira” dentro, através ou em volta do caos essencial; mas o poeta sabe que
ção de formas empenhadas em ter vida própria, por causa da imoderada a imagem contida na metáfora deve ser explodida por Dioniso para impedir
fecundidade da vontade do mundo” (102-3). Em conseqüência dessas duas “que a tendência apolínea a congelar todas as formas numa rigidez egípcia” (65)
experiências do mundo fenomenal, uma que vê no transitório o eternamente triunfe completamente e obstrua os acessos às forças sustentadoras da vida.
belo, a outra que vê no belo o eternamente transitório, emergimos da contem­ Quando uma imagem fica congelada num conceito, a vida em geral não é
plação doagon trágico com uma aceitação cômica da vida: “Apesar da piedade prejudicada (pois a própria vida não pode ser negada), mas a vida humana é.
e do terror, gozamos da imensa felicidade de viver não enquanto indivíduos mas
A hipostatização de Apoio ou de Dioniso é destruidora da humanidade, pois a
enquanto parte da força vital com cujo apetite procriativo nos tornamos uma humanidade só pode existir na linha de fronteira que divide os reinos dos dois
coisa só” (103). deuses. Nesse esquema, a consciência humana atua como uma espécie de
Evidentemente Nietzsche preconizava não uma arte em que ou Dioniso contrapeso entre duas grandes potências; ao lançar suas parcas forças ora numa
ou Apoio finalmente triunfasse, mas uma arte que admitisse a mútua interde­ direção, ora na outra, os homens impedem que os dois deuses se destruam
pendência dos dois. É verdade que acreditava que sua própria época esquecera reciprocamente e prosperam no espaço entre os dois, como Israel entre a
Dioniso e se entregara a uma excessiva adoração de Apoio, a vontade de forma Assíria e o Egito. Mas às vezes, desgraçadamente, os resultados são tão desas­
a todo custo. Mas o custo não era difícil de calcular, julgava Nietzsche; a trosos como aqueles que sucederam a Israel.
promoção da ilusão de uma forma e ordem permanente era destruidora da A morte do senso trágico na Grécia antiga, sustentou Nietzsche, decorreu
própria vida. E só se os homens se recordassem de Dioniso e dos direitos que do triunfo da ironia (“idéias frígidas, paradoxais”) sobre “a contemplação
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apolínea” de um lado e das “fogosas emoções” românticas sobre os “arrebata­ da vida; primeiro uma, depois a outra, se revezam na tarefa de degradar o
mentos dionisíacos” do outro. Essas traições ao espírito trágico foram promo­ homem.
vidas por Sócrates e Eurípides. Em Sócrates, “a tendência apolínea se enrijece Assim a história da consciência ocidental parece não ser senão uma
em esquematismo lógico”; em Eurípides houve “uma correspondente tradução oscilação oportuna, um eterno retorno sisífico de duas concepções igualmente
da emoção dionisíaca em emoção naturalista” (88). destrutivas das aptidões do homem para viver e pensar, um ciclo de possibili­
dades negadoras da vida, sem esperança alguma de fuga num futuro distante.
A traição socrática foi particularmente destrutiva, pois inspirou no ho­ Mais tarde, em A Genealogia da Moral, Nietzsche encontraria um valor positivo
mem um falso otimismo. Esse otimismo baseava-se nas três ilusões socráticas: em toda essa automutilação humana no crescimento de uma argúcia intelectual
“A virtude é a sabedoria; todos os pecados provêm da ignorância; só os virtuosos que, quando voltada contra os mitos sustentadores da ciência e da religião,
são felizes” (Ibid). Sob a influência dessas ilusões, os homens foram incitados revelaria a pobreza de ambas. Em O Nascimento da Tragédia, porém, ele se
a crer “que o pensamento, guiado pelo fio da causação, podia sondar os abismos contentou em salientar o fato do aniquilamento da religião pela ciência e da
mais profundos do ser e até corrigi-lo” (93). Foi essa uma reviravolta fatal na ciência pela filosofia crítica como prova de um processo histórico milenar de
vida cultural grega, pois lançou os gregos na busca infrutífera de verdades finais desmitificação e degradação cultural. E explicou a intensificada autoconsciên­
e controle total sobre a vida. E com isso Dioniso, que “nos faz compreender que cia histórica do homem moderno ao observar a dissolução de todos os funda­
tudo o que é gerado deve estar preparado para enfrentar sua penosa dissolu­ mentos míticos, tanto repressivos como liberadores, pelas mãos da ciência.
ção”, foi esquecido (102). Examinando-se esse ciclo, essa oscilação, frisou ele, vêem-se sinais de um
Mesmo o malogro da tentativa socrática de tornar bons os homens tor­ autêntico desenvolvimento, de um progressus, se bem que até então puramente
nando-os racionais não obrigou o mundo clássico a ver a insensatez dessa busca negativo, a destruição da auto-ilusão pelos próprios instrumentos de auto-ilu-
de absolutos. Em Platão eles encontraram um pensador capaz de ajudá-los são, a consciência e crítica histórica. Assim, de acordo com Nietzsche, o enredo
nessa loucura, desviando-lhes a atenção da vida tal qual é vivida aqui na terra dessa história é irônico, uma vez que os próprios fatores que destruíram a
para a procura de uma “bondade”, “verdade” e “beleza” supostamente existen­ capacidade do homem para gozar a vida se voltaram então contra eles mesmos.
tes além do tempo e do espaço e que só poderiam ser alcançadas através da E o resultado é irônico, em sentido específico, pois que o homem agora vive
negação de todo impulso animal presente no corpo humano. Essa crença ironicamente, com plena consciência de sua própria penúria, tanto de mito
platônica preparou o caminho para o cristianismo, que completou a degradação quanto de crítica.
do homem ao negar-lhe o poder da vontade e da razão de alcançar o repouso e Nietzsche concluiu seu ensaio afirmando que a vida não se justifica nem
estabilidade final visionado por Sócrates. Na esperança cristã de salvação final pode justificar-se; ela não precisa fazê-lo. Só o homem sente necessidade de
encontraram os homens um substituto para a razão que os tinha abandonado, justificar sua existência, porque só o homem, de todos os animais, está conscien­
mas só mediante a negação de sua vontade de viver no aqui e agora. O triunfo te do absurdo de seu ser. E, afirmou Nietzsche, só a arte pode justificar a vida
do cristianismo representou uma fuga para um tipo peculiarmente opressivo de para o homem, mas não qualquer arte “realista”, não uma arte que seja
antiidílio, um idílio não de alegria mas de sofrimento, fundado, não na “crença meramente imitativa da natureza. O realismo fotográfico é apenas outra forma
numa existência primordial de homens puros, artisticamente sensíveis”, mas na de ciência. Do que se precisa, disse ele, é de uma arte que tenha consciência de
crença na enfermidade, fraqueza e incapacidade essencial do homem. seu escopo metafísico; pois só a arte, não a filosofia nem a ciência, pode oferecer
uma justificação metafísica da vida para o homem. “A arte não é uma imitação
Essa linha de reflexão forneceu as bases para a história “subterrânea” do
da natureza, mas seu complemento metafísico, erguido ao lado dela para
homem ocidental concebida por Nietzsche. Desde o tempo dos gregos, afirmava
suplantá-la” (142). Além disso, a arte proporciona a única transcendência que
Nietzsche, a história do homem ocidental tem sido a história de enfermidades
o homem pode esperar, e proporciona-a não só ao criar o sonho mas ao dissolver
auto-induzidas. Desde aquela época, o homem, outrora uma ponte entre o caos
a pseudo-realidade do sonho que se atrofiou. A verdadeira arte logo diz ao
e a forma, assumiu o aspecto de um touro abatido suspenso entre os dois postes
homem “ ‘Veja! Veja bem! Esta é a sua vida. Este é o ponteiro das horas do
de sua auto-ilusão. Num poste está o cristianismo com sua negação dos direitos
relógio de sua existência’ ” (Ibid.), e ao mesmo tempo transmuta a fealdade e a
da vida sobre o homem e sua insistência em que o homem encontra suas metas
desarmonia num “jogo estético que a vontade, em sua extrema exuberância, joga
em outro mundo, que só lhe será revelado no fim dos tempos; no outro poste consigo mesma” (143).
está a ciência positivista, que sente prazer em desumanizar o homem reduzin­
do-o à condição de um animal, concebendo-o como simples instrumento de Que é o homem, perguntou Nietzsche, senão “uma encarnação da disso­
forças mecânicas sobre as quais ele não pode exercer nenhum controle e das nância”? E, se é isso, o homem tem necessidade de uma prodigiosa ilusão para
quais não pode libertar-se. E a história do homem ocidental desde o declínio cobrir essa dissonância com um véu de beleza. Nietzsche entendia que sua
do espírito trágico descreve uma alternância dessas duas tendências negadoras própria época havia chegado ao termo de um longo processo de auto-alienação
352 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 353

humana; estava pronta para ingressar num novo período de crítica destruidora
barbárie diferiria da primeira pelo ponto a que poderiam chegar os homens na
de todas as suas ilusões atrofiadas. Esse período de destruição pressagiava uma
conquista de um tipo de liberdade e poder que nunca haviam desfrutado na
era de violência e discórdia que o mundo ocidental só vira igual antes na idade
antiga barbárie selvagem. O Super-Homem de Nietzsche, como ele mesmo
helenística, quando, em face da dissolução do senso trágico, os homens come­
disse, não seria mero destruidor, mas um criador também, que vive sua vida
çaram a descer a longa estrada da automutilação que os fez “modernos”. Assim,
como uma obra de arte, que encarna em si mesmo a dissonância e forma que os
disse ele:
gregos tinham sido capazes de encarnar apenas em imagens no palco trágico.
Hoje sentimos a mesma sede extravagante de saber, a mesma curiosidade insaciável, a
Se essa é uma idéia cíclica da história, é na verdade um “ciclo” estranhís­
mesma secularização drástica, a errância nômade, a sôfrega corrida a mesas estranhas [como a simo. Para Nietzsche, a descida e a subida só superficialmente eram o mesmo
idade helenística], a frívola apoteose do presente, ou a estupefata negação dele, e tudo sub spccic caminho; sua convicção era que descemos a fim de emergir purificados, limpos
saeculi - como sintomas que apontam para uma análoga carência em nossa própria cultura, que e despojados de nossas anteriores ilusões destruidoras da vida. Em resumo, para
também destruiu o mito [139-40]. Nietzsche toda a história do homem ocidental desde os tempos primitivos era
um grande e progressivo movimento desde a mera existência, passando pela
Mas ele encarava o futuro com otimismo. “Sempre que as forças dioni­ alienação, até a reconciliação, exatamente como era no palco o agon trágico.
síacas se tornam turbulentas demais”, escreveu, “pode-se estar certo de que Mas a reconciliação que ele imaginava não era com a “natureza” ou com a
Apoio está bem pertinho, embora envolto numa nuvem, e de que os abundantes “sociedade” mas com o eu. E o benefício desse agon deveria ser encontrado na
efeitos de sua beleza serão presenciados por uma geração subsequente” (145- consecução de um novo nível de autoconsciência graças ao qual um super-ho­
46). mem à maneira de Zaratustra pratica seu jogo com o caos.
Essa referência à alternância de processos dionisíacos e apolíneos pelas Assim considerada, a história não é, portanto, um movimento dialético
gerações retrata a idéia de história que inspira grande parte do pensamento de que tende para um absoluto além do tempo e do espaço. O único “absoluto”
Nietzsche. Como foi anteriormente observado, afirma-se às vezes que Nietzsche que Nietzsche reconhecia era o indivíduo livre, completamente liberto de
via na história um movimento cíclico, um movimento de eterna recorrência, o qualquer impulso espiritual-transcendental, que encontra sua meta na capaci­
que era um antídoto às noções ingênuas de progresso linear correntes em seu dade de se superar, que imprime em sua vida uma tensão dialética ao fixar novas
tempo. Nenhum pensamento tão singelo sequer se aproxima da verdade. Em tarefas para si mesmo e que se converte num exemplar humano do tipo de vida
primeiro lugar, mesmo em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche distinguiu que os gregos julgavam que só podia ser vivido pelos deuses.
entre o espírito dionisíaco da “barbárie selvagem” e o espírito dionisíaco dos
gregos pós-homéricos, e imaginou umprogressus de um para o outro através de É fácil ver que a interpretação de Nietzsche do espírito da tragédia
uma fase intermediária, apolínea ou épica, da cultura. As diferenças entre essas começa por uma negação das concepções românticas e irônicas da natureza da
três etapas do desenvolvimento da vontade de vida poderiam ser caracterizadas realidade. Em segundo lugar, consiste numa fusão da concepção convencional
como as diferenças entre a vontade em si, a vontade para si e a vontade em e da tragédia com a da comédia, de sorte que as duas verdades separadamente
para si: essas eram as “etapas imediatas” do espírito trágico para Nietzsche. ensinadas por cada uma delas combinam-se então numa única e multíplice
Corresponderiam, em termos kierkegaardianos, aos estágios da vontade que aceitação da vida e da morte. Finalmente, essa visão tragicômica é esvaziada de
sonha, vontade que desperta e vontade que quer. A vontade consciente de si todas as implicações morais. A visão tragicômica é identificada com “o espírito
enquanto vontade fornece a base da pura tragédia. Em suma, temos aqui um da música” - isto é, com a música não-recitativa, a música que não expõe
crescimento da consciência na própria vontade. enunciado algum sobre o mundo mas que simplesmente existe ao lado do mundo
Além disso, no esquema de Nietzsche, o declínio da tragédia grega foi da experiência como pura forma e movimento. O equivalente verbal e literário
do espírito da música é a metáfora. Por identificação metafórica, os fenômenos
seguido não de uma queda para trás na barbárie “selvagem” mas de um
se transformam em imagens que não têm “significações” fora delas. Como
movimento de avanço para a decadência, que passou por três estágios: helenís-
imagens, apenas se assemelham a tudo ou diferem de tudo quanto as circunda.
tico, romano e cristão - isto é, pelas fases científica, militar e religiosa. Essas
fases foram consideradas decadentes por Nietzsche porque, ao invés de liberar Na metáfora, oprinqpiu/n individuationis é afirmado e negado a um só e mesmo
tempo, como é no pensamento mítico. E a fim de reingressar no mundo do mito,
a vontade para a obra de destruição ou criação, cada uma delas castigou a
vontade, disciplinou-a e finalmente fê-la voltar seus poderes contra si mesma. sem o que a ação heróica parece impossível, Nietzsche recomendou a revisão
do conceito de tragédia em termos puramente metafóricos. O retomo à cons­
A moderna civilização ocidental, na opinião de Nietzsche, está passando
ciência metafórica seria um renascimento da inocência. Imporia o repúdio dos
por esse processo na ordem inversa, realmente: da extraterrenalidade “cristã”
modos metonímicos e sinedóquicos de consciência, o abandono de busca de
ao militarismo “romano”, à crítica “helenística”, a uma nova idade trágica, e de
agentes e agências detrás dos fenômenos e do hábito de dotá-los de qualidades
lá, presumivelmente, a uma nova barbárie. Mas, acreditava Nietzsche, a nova
espirituais de modo a diminuir o valor da vida humana.
354 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 355

Nietzsche procurava devolver o homem a um confronto direto com o se livrar da consciência e de responder exclusivamente ao instinto animal -, na
mundo fenomenal, com sua visão purificada mas com sua capacidade intacta de realidade Nietzsche acreditava que o esquecer humano é totalmente diferente
fabricar ilusões criativas; Acreditava que somente as aptidões do homem para do olvido animal. Na verdade não faz sentido falar na capacidade do animal de
as transformações metafóricas do mundo da experiência pode expurgar tanto a esquecer, porque um animal não tem impulso prévio para lembrar. O animal
memória quanto o olvido de seus efeitos potencialmente destrutivos na vida bravio, observou Nietzsche no início de “O Uso e Abuso da História”, vive num
humana. O paradigma da consciência metafórica, a faculdade de ver semelhan­ eterno presente, desconhecendo a saciedade e a dor, sem consciência, portanto,
ça na diferença e diferença na semelhança, servia, por sua vez, de modelo da e sem o impulso peculiarmente humano para esquecer, que é um ato de vontade.
imagem dionisíaco-apolínea que Nietzsche utilizou como o princípio organiza­ Assim, escreveu Nietzsche, o homem, refletindo sobre os animais bravios,
dor de sua “história” da ascensão e queda do espírito trágico. pode perguntar ao bruto: “ ‘Por que me olhas e não me falas da tua felicidade?’
Essa “história” foi escrita num tom irônico; Nietzsche dirigiu-se a seu O bruto quer responder: ‘Porque eu sempre esqueço o que desejo dizer’; mas
público com uma mescla de solicitude e desdém. Mas com relação a seu objeto, esquece essa resposta também e cala; resta ao homem refletir”. E o homem
que é o espírito trágico, ela é tudo menos irônica. Pois a “história” do espírito “reflete sobre si mesmo - que não pode aprender a esquecer, mas está preso ao
da tragédia é ao mesmo tempo trágica e cômica, -trágica em sua estrutura de passado; por mais longe que vá e por mais rápido que corra, aquela cadeia corre
enredo mas cômica em suas implicações. A história da ascensão e queda do com ele” (5). Em suma, o homem vive historicamente', está cônscio de seu
espírito trágico é posta em enredo como um agon que cria as condições para contínuo vir-a-ser, da dissolução de todos os seus presentes num passado fixo.
um retorno à “gaia ciência” da consciência cômica. Embora escrita no ardor da O passado está constantemente diante do homem como imagem de coisas feitas,
admiração de Nietzsche por Schopenhauer e Wagner, a obra conclui com uma acabadas, completas, imutáveis. A intratabilidade desse passado é a fonte da
nota inteiramente alheia a qualquer um desses “românticos”, uma nota cômica, desonestidade do homem consigo mesmo e é a força motriz por trás de sua
que comemora a libertação da consciência humana em relação à causalidade e automutilação.
à especificação formal, em relação ao pessimismo e ao otimismo ingênuo. O homem gostaria de “entrar em” seu presente, vivê-lo plena e imediata­
Mas tudo isso anunciava a filosofia plenamente elaborada que apareceu mente; este é seu impulso dominante. Mas “o peso imenso e cada vez maior do
em obras subseqüentes, em especial em Assim Falou Zaratustra. Para além do passado (...) força-o a curvar os ombros”. Esse passado viaja com o homem; é
Bem e do Mal eA Genealogia da Moral. Meu interesse imediato é pela concep­ “um fardo escuro e invisível que ele pode plausivelmente não reconhecer como
ção de Nietzsche de como o pensamento histórico pode contribuir para a seu, e não é senão com a maior alegria que deixa de reconhecê-lo em conversa
introdução da nova era e pelo que ele acreditava fosse necessário para dar ao com seus semelhantes - para despertar-lhes a inveja”. Mas o homem inveja o
pensamento histórico o poder liberador da arte trágica. Devo, por isso, dirigir bruto, que não carrega consigo esse fardo, ou a criança, “que ainda não tem
a atenção para a coda histórica que Nietzsche acrescentou a O Nascimento da nada a renegar do passado e brinca numa feliz cegueira entre as muralhas do
Tragédia'. “O Uso e Abuso da História”. passado e do futuro” (Ibid.).
A criança difere do bruto, porém, por só poder gozar esse paraíso da
desmemória por pouco tempo. Tão logo aprende as palavras “era uma vez”
MEMÓRIA E HISTÓRIA expõe-se a tudo quanto é “batalha, sofrimento e cansaço da humanidade” e ao
conhecimento de que a existência humana é só de fato “um tempo imperfeito
Em O Nascimento da Tragédia. Nietzsche situou a vida humana entre uma que nunca se torna um presente”. Apenas a morte traz o “desejado esqueci­
consciência do caos e a vontade de forma; em “O Uso e Abuso da História” mento” para o homem; “ela abole de uma só vez a vida e o ser, e põe o selo sobre
examinou as implicações dessa idéia sob o aspecto do tempo. “O Uso e Abuso o conhecimento de que ‘ser’ é simplesmente um contínuo ‘tem sido’, uma coisa
da História” trata da dinâmica do lembrar e do esquecer, que Nietzsche via que vive negando e destruindo e contradizendo a si própria” (Ibid.. 5-6).
como o atributo inconfundível do animal humano. O agon trágico que se O problema para o homem criativo reside em aprender a esquecer, em
desenrola no palco grego é, no fim de contas, intemporal; existe fora da esfera “defender um único ponto (...) sem medo nem leviandade” - não negar o
temporal. O homem que pretende viver sua vida como uma obra de arte deverá passado e a si mesmo como foi no passado, mas esquecê-lo. O caso extremo de
fazê-lo dando-se conta permanentemente da passagem do tempo; deverá viver busca do tempo perdido seria “o homem (...) que é condenado a ver o ‘devir’
na história. O problema, portanto, consiste em determinar como o senso da em toda parte” (6). Tal homem - como Roquentin em>l Náusea de Sartre - já
história, o sentimento da passagem do tempo, atua criativa e destrutivamente não creria em sua própria existência, mas, em vez disso, veria tudo passar voando
na dialética peculiarmente humana de lembrar e esquecer. numa eterna sucessão e se perderia na corrente do devir. Sem o esquecimento
Embora freqüentemente se expressasse como se a aptidão do homem para nenhuma ação é possível, nenhuma vida é concebível, “assim como não somente
agir dependesse de sua capacidade de esquecer - isto é, de sua capacidade de a luz mas também a treva está estreitamente ligada à vida de todo organismo”
META-HISTÓRIA 357
356 HAYDENWHÍTE

simplesmente de um estado de inconsciência temporal. Já o homem, por sua


(6-7). A vida sem mais nada 6 possível sem rememoração, como demonstra o vez, esquece e lembra, e essa dicotomia é inconfundivelmente humana; o
exemplo do bruto, mas “a vida em qualquer sentido verdadeiro é totalmente esquecer humano é diferente do esquecer animal, pois é necessário apagar os
impossível sem o esquecimento” (7). vestígios mnemónicos que permitem a um homem remoer esterilmente sua vida
Essas citações revelam um aspecto do pensamento de Nietzsche que é passada.
muitas vezes negligenciado nas análises contemporâneas desse pensamento. Como crítico do seu tempo, Nietzsche indagava como se pode consolidar
Nietzsche estava estudando um problema peculiarmente humano, o problema um esquecimento criativo em oposição ao irresistível impulso rememorativo
de aprender a esquecer, que não é um problema animal de modo algum; que solapa a vontade de agir criativamente, e até que ponto é possível colocar
aprender a esquecer pressupõe a faculdade prévia de lembrar, que é só do a própria consciência histórica a serviço do poder criativo do homem, de seu
homem. Em resumo, nesse ensaio a consciência histórica é postulada; não poder de autotranscendência. Isso quer dizer que o próprio conhecimento
precisa ser explicada e é simplesmente admitida. Mais tarde, emy4 Genealogia histórico precisa estar preso a um poder anterior, ou, como escreveu Nietzsche:
da Moral, Nietzsche decidiu explicar, apoiado em fundamentos históricos e “O estudo histórico só será profícuo se seguir uma vigorosa influência vivificante
psicológicos, como essa faculdade de lembrar deitou raízes no homem; mas em - só, portanto, se for guiado e dominado por uma força superior, e não guiar e
“O Uso e Abuso da História” aceitou-a como verdadeira e indagou o que ela dominar sozinho” (11-12). O propósito*ultimo de Nietzsche, então, era - como
significa para a existência de uma vida humana criativa. O “problema” do bruto o de Hegel e Marx - reinserir o conhecimento histórico dentro dos limites das
é não recordar; o “problema” do homem é recordar até bem demais. Dessa necessidades humanas, tomá-lo servo, e não senhor, das necessidades humanas.
aptidão para relembrar o passado emergem todas as construções especifica­ Pois a vida precisa do serviço da história, disse ele: só um excesso de história é
mente humanas. Não se trata de saber se o homem necessita de memória; o fato prejudicial à vida.
irrecusável de ter memória é a glória e perdição do homem. Portanto, ele tem Nietzsche, por conseguinte, admitia que o homem necessita da história, e
história, queira ou não queira. A questão, por isso mesmo, cifra-se em saber se de três maneiras: “Com respeito à sua ação e luta”, como ajuda a seus pendores
essa faculdade de lembrar não se desenvolveu excessivamente e se tornou uma reverenciais e conservadores e como lenitivo a seu sofrimento e desejo de
ameaça à própria vida. E não se trata tanto de destruir a história como de salvação. Essas três necessidades do homem geram três tipos de história:
aprender quando o homem está autorizado a esquecê-la: monumental, antiquária e crítica. Todas elas nutrem - e ameaçam - as faculda­
des peculiarmente humanas.
Entusiasmo, uma boa consciência, crença no futuro, a ação prazerosa - tudo depende, no
indivíduo como na nação, de haver uma linha que divide o visível e definido do vago c indistinto: A história monumental fornece exemplares de nobreza humana e ensina
devemos saber qual é o momento certo de esquecer assim como o momento certo de lembrar, e que, visto ter havido outrora um grande feito, era ele, portanto, possível, e assim
instintivamente vemos quando é necessário sentir historicamente c quando a-historicamente poderia ser possível outra vez. A história monumental, história estudada acima
[Zfc/W.]. de tudo como a estória dos grandes homens - à maneira de Carlyle -, pode usar
o passado para condenar a mesquinhez do presente e projetar o próprio
Portanto, o “ponto que o leitor é convidado a considerar” é que “o historiador na batalha por um futuro melhor. Mas essa abordagem da história
aistórico e o histórico são igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de tem suas falhas; pode ser ilusória. Sua fraqueza maior reside em descrever
uma comunidade e de um sistema de cultura” (7-8). efeitos a expensas das causas; ela se vale de falsas analogias para encontrar uma
É preciso salientar que Nietzsche situou o problema da importância da grandeza comum em todos os grandes indivíduos. Por isso obscurece o “verda­
história (e, a fortiori, da memória) no problema do valor ou necessidade a que deiro nexo histórico de causa e efeito”, destrói a diferença essencial de todos
serve. Lembrar, insistiu ele, é, como ver, sempre um lembrar algo, não uma os grandes feitos, e tende a romantizar o passado. Como aguilhão da vida, de
atividade generalizada; lembrar é portanto um ato de vontade, com um propó­ fato, os romances românticos podem servir ao mesmo propósito da história
sito ou fim ou objeto. Além disso, o homem resolve lembrar de um modo monumental; e, nas mãos de um fraco, esse tipo de história pode voltar-se
determinado, e o modo como resolve lembrar uma coisa demonstra se sua contra o presente e o futuro. Pode minar a autoconfiança dos vivos ao ensinar-
atitude a respeito de si mesmo é destrutiva ou construtiva. Um olhar retrospec­ lhes que não se precisa buscar a grandeza, porquanto todas as formas de
tivo a seu passado é um modo de definir seu presente e seu futuro; a maneira grandeza já foram alcançadas no passado.
como esculpe o passado, o tipo de imagem que o homem lhe impõe, é prepara­ O impulso de fugir do presente numa atitude de piedosa reverência pelo
tória ao ato de se lançar no futuro. Pode o homem decidir caminhar heroica­ passado tem sua forma extrema na história antiquária, que, porém, tem suas
mente a largos passos para o futuro ou entrar nele recuando, mas não pode características próprias e também seus aspectos criativos e destrutivos. Criati­
evitá-lo. O problema, então, consiste em purificar essa faculdade de lembrar de vamente, a história antiquária engendra certo respeito pelas origens; é como
qualquer autodestrutividade que pudesse informá-la. O olvido, também, é uma
faculdade humana, peculiarmente humana. O bruto não quer esquecer, desfruta
358 HAYDENWHTTE META-HISTÓRIA 359

o sentimento da árvore que se aferra às raízes, a felicidade de saber ser o próprio crescimento não contraste com aquele do qual provimos - sempre uma tentativa perigosa, visto que é difícil achar
apenas arbitrário e fortuito mas a herança, o fruto e a floração de um passado que não só justifica um limite à negação do passado, e as segundas naturezas são em geral mais fracas do que as
mas também coroa o presente - isso é o que nós hoje preferimos chamar o verdadeiro senso primeiras [Ibid.].
histórico [19].
Todas as formas de história nos fazem constantemente recordar esse fato;
Mas, em excesso, essa atitude antiquária tende a nivelar tudo através da no entanto persistimos no esforço de criar “segundas naturezas” e cultivá-las.
valorização indiscriminada de todas as coisas, grandes ou pequenas. Além disso, Quando o conseguimos, disse Nietzsche, o historiador crítico é justificado, pois
atribui valor especial a tudo o que é velho, só porque é velho, e inspira um ele nos mostrou que essa “primeira natureza” foi outrora uma “segunda natu­
sentimento de desconfiança por tudo o que é novo ou se afasta do convencional. reza” - “e que toda ‘segunda natureza’ conquistadora se torna uma primeira”
Quando “seca a fonte de piedade”, a atitude antiquária pode persistir e entre­ (22).
gar-se completamente à preservação do que já está vivo e opor-se à criação de Essa tríplice divisão das formas de consciência histórica pode ser enten­
novas vidas (20). dida como uma análise dos modos da metonímia, sinédoque e ironia respecti-
O^antídoto para essas duas espécies de história - a monumental, que, .vamente. É óbvio que, para Nietzsche, uma historiografia monumentalista
criativamente, orienta os homens para o futuro com base no respeito pela concebe o mundo em função das categorias de contigüidade e divisão, do
grandeza passada e, destrutivamente, enfraquece-lhes o impulso para a gran­ isolamento dos grandes homens, não só de uns em relação aos outros, mas de
deza; e a antiquária, que, criativamente, engendra piedoso respeito pelas ori­ todos em relação à massa, em função de agências causais inferiores e superiores
gens e, destrutivamente, se opõe à necessidade ou ao desejo presente - é a no processo histórico. O monumentalismo é criativo quando sublinha as reali­
história crítica. A história crítica aparece em meio ao impulso de “demolir o zações dos grandes homens, mas destrutivo quando acentua as diferenças entre
passado e utilizá-lo, também, para viver” (42). O historiador crítico interessa-se grandeza passada e presente ou futura. Já a historiografia antiquária é a história
em “levar o passado à barra do tribunal, interrogá-lo impiedosamente e por fim concebida no modo da sinédoque, de continuidades e unificações, de relações
condená-lo” (Ibid.). O historiador crítico tem o poder de penetrar nos mitos de entre tudo o que um dia existiu e o que quer que exista presentemente. Torna
grandeza e valores do passado, calcar aos pés as devoções e contestar os tudo igual em valor e significação histórica. É criativa quando recorda aos
pretensos direitos do passado sobre o presente. Evidentemente o espírito crítico homens que todo ser humano presente é tuna resultante de coisas passadas, e
também tem seu lado destrutivo, que, quando levado longe demais, acaba numa destrutiva quando faz de todas as coisas presentes nada mais do que conseqüên-
deificação da trivialidade presente por contumácia, por ter demonstrado que cias de coisas passadas. Por contraste, a historiografia crítica é a história no
nada é nobre. Como disse Nietzsche posteriormente, “a tomada de contas modo da ironia, pensamento histórico elaborado na convicção de que tudo é
histórica revela tanta coisa falsa e absurda, violenta e inumana, que a situação frágil e passível de ser condenado, de que há uma imperfeição em toda realiza­
de piedosa ilusão se pulveriza” (Ibid.). A história crítica engendra uma “auto­ ção humana, verdade em toda falsidade, e falsidade em toda verdade. Esse
consciência irônica” quando comete excessos (Ibid.). Conduz à terrível verdade modo de conceber a história é criativo quando atua a serviço de necessidades
que diz que “tudo o que nasce merece ser destruído”, e isso pode induzir à presentes e abala a autoridade do passado e do futuro. É destrutivo quando
conclusão de que “melhor fora então que nada nascesse” - ao pessimismo lembra ao presente ator do drama histórico que também ele é imperfeito e não
schopenhaueriano e ao nojo da vida (Ibid.). Como advertiu Nietzsche, “requer deve aspirar a uma estatura heróica nem reverenciar coisa alguma.
grande força ser capaz de viver e esquecer [o que a história crítica ensina] o O antídoto proposto por Nietzsche para todas essas formas de consciência
quanto vida e injustiça são uma coisa só” (21). histórica em seus aspectos extremos, ou destrutivos, é a consciência histórica
Assim, de acordo com Nietzsche, os perigos da consciência histórica terão que opera no modo da metáfora. A noção nietzschiana de história como uma
de ser encontrados nos excessos da história antiquária, crítica e monumental; forma de arte é uma noção da história como uma arte trágica e, além disso, como
arcaísmo, presentismo e futurismo, respectivamente. Do que se precisa é de aquela arte trágica pura que ele defendeu em O Nascimento da Tragédia do
alguma síntese de todas as três maneiras de ler o passado, e não de alguma forma Espírito da Música. A história concebida no modo metafórico é realmente o que
de escapar ao passado, pois ao passado não se escapa. está por trás de sua defesa do que chamou de pontos de vista “super-históricos”
e “aistóricos” na última parte de “O Uso e Abuso da História”.
Pois na medida em que somos simplesmente a resultante de gerações anteriores, somos Na parte IV de “O Uso e Abuso da História”, Nietzsche sustentou que a
também a resultante de seus erros, paixões e crimes; é impossível desembaraçarmo-nos dessa história pode servir à vida tornando-se uma forma de arte. Insistiu em que a
cadeia. Embora condenemos os erros e pensemos que escapamos deles, não podemos escapar do tendência a transformar a história numa ciência é fatal à sua função vivificante.
fato de que provimos deles. Quando muito, daí resulta um conflito entre nossa natureza inata, “O conhecimento do passado só é desejado para servir ao futuro e ao presente,
herdada e nosso conhecimento, entre uma disciplina severa, nova, e uma tradição antiga; e
implantamos um novo modo de vida, um novo instinto, uma segunda natureza, que estiola a
não para enfraquecer o presente ou minar um futuro vivo”. A história concebida
primeira. É uma tentativa de ganhar um passado a posteriori, do qual pudéssemos provir, em como uma forma de arte a serviço da vida será orientada, não para servir à
360 HAYDENWHITE META-HISTÓR1A 361

verdade ou à justiça, mas à “objetividade”. Entretanto, por “objetividade”, obscura e insolúvel, nada mais é do que o conhecimento mais comum. A
Nietzsche não entendia a “tolerância” do humanista ou a “imparcialidade” do experiência, por mais modesta que seja, irá ensinar-lhe” (39). Seria o mesmo
cientista; entendia, isso sim, o “interesse” autoconsciente do artista. que supor que o valor do drama residisse apenas em sua cena final. O valor da
Ao falar em “objetividade histórica”, disse Nietzsche, pensava em obra do historiador não está em suas generalizações, mas:

um certo ponto de vista do historiador que vê o cortejo de motivo e consequência com demasiada Pelo contrário, seu valor real está em inventar engenhosas variações sobre um tema
clareza para que isso tenha efeito sobre sua própria personalidade. Pensamos no fenômeno estético provavelmente banal, em alçar a melodia popular a um símbolo universal e mostrar que mundo de
do distanciamento em relação a toda preocupação pessoal com que o pintor vê o quadro e esquece profundeza, força e beleza existe nele [Ibid.].
de si mesmo (...); e exigimos do historiador a mesma visão artística e absorção em seu objeto [37].
O bom historiador deve ter o poder de cunhar para o já conhecido uma coisa nunca ouvida
Mas, insistiu Nietzsche, antes e proclamar o universal de maneira tão simples e profunda que osimples se perca no profundo
e o profundo no simples [40].
é apenas uma superstição dizer que a imagem oferecida a tal homem pelo objeto mostra a verdade
das coisas. A não ser que se espere que os objetos em tais momentos pintem ou fotografem a si O historiador assim concebido é o mestre de identificações metafóricas
mesmos graças à sua própria atividade sobre um meio puramente passivo! [Ibid.] de objetos que ocupam o campo histórico. Mediante a transformação de coisas
usuais em inusitadas, tornando-as “estranhas” e “misteriosas” uma vez mais,
Pelo contrário, afirmou ele, a objetividade é “composição” em sua forma revela-se que o “universal” existe no “particular” e o “particular”, no “univer­
mais elevada, “cujo resultado será uma imagem artisticamente, mas não histo­ sal”. O “simples” esconde-se no “profundo” e o “profundo”, no “simples”. Mas
ricamente, verdadeira”, porque: esse esconder-se é ao mesmo tempo uma revelação, revelação do poder do
homem de ingressar em seu presente e fazer o que quer com a história.
Pensar objetivamente, nesse sentido, na história é trabalho do dramaturgo: pensar uma Quais são os princípios pelos quais se deve guiar tal consciência histórica?
coisa com outra, e tecer os elementos num todo único, pressupondo que a unidade do plano deve
ser inserida nos objetos se já não estiver lá [37-38).
Nietzsche foi bastante explícito na resposta a esta pergunta: “Só podeis explicar
o passado pelo que é mais forte no presente”. “A linguagem do passado”, disse
ele, “é sempre oracular. só a entendereis enquanto construtores do futuro que
Isso significa que o saber histórico, que se distingue do conhecimento ou
conheceis o presente (...) só aquele que está construindo o futuro tem o direito
de informação histórica, é percepção, fabulação dramática ou, como eu a
de julgar o passado”. Mas esse julgamento do passado não produziria quaisquer
denominei, “elaboração de enredo”. De fato, sustentou Nietzsche, “poderia
regras para predizer o futuro: “Tendes o suficiente para refletir e descobrir
haver uma espécie de escrita história que não contivesse um pingo de realidade
enquanto refletis sobre a vida do futuro; (...) não peçais à história que vos mostre
e que no entanto fizesse jus a ser considerada objetiva no mais alto grau” (38).
os meios e o instrumento para isso”. Mas, “voltando o pensamento” para suas
E citou o comentário de Grillparzer, segundo o qual
verdadeiras necessidades, o homem criativo encontra a razão para livrar-se de
todas as “falsas necessidades” (Ibid.). Através da destruição daquela “auto­
a história não é senão a maneira pela qual o espírito do homem apreende fatos que para ele são
obscuros, associa coisas cuja conexão só Deus sabe qual é, substitui o ininteligível por algo consciência irônica” promovida pela erudição histórica convencional é possível
inteligível, põe suas idéias de causação no mundo externo, idéias que talvez só se expliquem a partir firmar as bases para uma nova e heróica visão histórica.
do mundo interior, e admite a existência do acaso onde milhares de pequenas causas podem estar Os tipos de consciência histórica que afligiam a Alemanha em particular e a
realmente em ação [Ibid.]. Europa em geral tomavam três formas, na opinião de Nietzsche: hegelianismo,
darwinismo e a chamada filosofia do inconsciente, tal como era representada
Contudo, preveniu Nietzsche, essas concepções de “objetividade” deve por Eduard von Hartmann. O hegelianismo - como Nietzsche o entendia - era
ser usada com cautela. Não se deve presumir que haja alguma “oposição” entre racionalista e presentista; convertia “na prática todo e qualquer momento num
a “ação humana e o processo do mundo” (38-39). Eles são a mesma coisa! mero embasbacar ante o sucesso, numa idolatria do real para o qual des­
Além disso, não se deve procurar algum sujeito por trás dos fenômenos. cobrimos agora a expressão característica ‘adaptemo-nos às circunstâncias’ ”
Os fenômenos são, eles mesmos, os sujeitos que o historiador procura. O (52). O darwinismo amalgamava a história da natureza e a história do homem
historiador, na verdade, deixa de ser instrutivo quando generaliza acerca de seus de modo a produzir o mesmo efeito; permitia a uma dada geração de homens
dados. Enquanto em outras disciplinas “as generalizações são as coisas mais acreditar que ela era a meta definitiva e o fim de todo o processo cósmico - e
importantes”, porque “contêm as leis”, as generalizações do historiador, na contentar-se com o que era no presente ao invés de esforçar-se para ser algo
medida em que poderiam até legitimamente reclamar o estatuto de leis, são melhor. A doutrina hartmanniana do inconsciente fazia de um incessante e
insignificantes, porque “o resíduo de verdade, depois de eliminada a parte misterioso devir a força motriz da história, o que retirava do homem toda a
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responsabilidade por si mesmo e investia-a num poder irresistível que o homem “O aistórico e o super-histórico são os antídotos naturais contra o domínio
devia simplesmente acatar, mas nunca tentar controlar ou dominar (56-57). Tal esmagador da vida pela história; são os medicamentos da doença histórica”
doutrina, afirmava Nietzsche, resulta numa fantástica paródia da história, já que (70).
nega a própria história. Produz uma imagem da história como um disparatado Tão logo estejamos agasalhados na arte e no mito, talvez possamos
fluxo e refluxo de forcas metafísicas. Em tal visão o homem “nada tem a fazer retornar ao estudo criativo da história “e sob a direção da vida fazer uso do
senão continuar a viver como tem vivido, amar o que tem amado, odiar o que passado daquela tríplice maneira - monumental, antiquária ou crítica”, pois
tem odiado e ler os jornais que sempre leu. O único pecado para ele é viver de “todas as coisas vivas precisam de uma atmosfera, uma bruma misteriosa, em
um modo diferente do que tem vivido” (58). A filosofia de Hartmann nega as tomo delas. Se se retira esse véu e se condena uma religião, uma arte ou um
verdades conhecidas do ego e se submete às exigências do id, para usarmos os gênio a girar feito uma estrela sem uma atmosfera, não se deve ficar surpreso
termos freudianos. Exige “ ‘a total rendição da personalidade do indivíduo ao se ele se tomar duro e improdutivo e logo definhar” (44).
processo do mundo’, em proveito de seu fim, ‘a redenção do mundo* ” (Ibid.). A cultura moderna assemelha-se a isto: perdeu todos os sentimentos de
A doutrina hartmanniana da soberania do inconsciente é, portanto, tão estranheza ou assombro; está contente com tudo e por isso nem ama nem odeia
perigosa quanto a doutrina hegeliana do “Espírito do Mundo” e a natureza nada em seu próprio interesse. O resultado é uma geração de homens que
apoteosada de Darwin. Representa um enrijecimento dà vontade de forma em perderam seus lares, duvidam de todas as idéias, de todos os princípios morais.
detrimento da vontade de vida. É necessário renunciar a todos esses esquemas Sabendo que “era diferente em todas as épocas”, o homem historicamente
gerais se se quer que a história sirva às necessidades de homens vivos: “Chegará orientado também sabe que “o que se é não tem importância” (45). Assim, visto
o tempo em que nos manteremos afastados de todas as construções do processo que a arte se opõe à história, somente “se a história se transformar em pura obra
do mundo, ou até da história do homem - um tempo em que já não olharemos de arte” será capaz de “preservar os instintos e despertá-los” (42). Mas uma
para as massas mas para indivíduos que formam uma espécie de ponte sobre a visão da história “que simplesmente destrói sem nenhum impulso para construir
corrente exangue do vir-a-ser” (59). Nesse tempo, predisse ele, “a tarefa da deixará no fim de contas seus instrumentos cansados da vida; pois tais homens
história” será mediar entre grandes indivíduos, “e até oferecer o motivo e a destroem ilusões, e aquele que destrói ilusões em si mesmo e nos outros é punido
possibilidade de produzir o grande homem” (Ibid.). Então reconhecer-se-á que pelo último tirano, a natureza” (Ibid.).
“o objetivo da humanidade só pode em última análise residir em seus exemplos
“O Uso e Abuso da História” é mais analítico em seu método do que a
mais elevados” (Ibid.). O tipo de franca tolerância que o historicismo rankiano,
maior parte das obras de Nietzsche; implicitamente investe mais confiança na
absorvido em excesso, instiga num homem é no fim de contas prejudicial:
crítica filosófica convencional do que o modo cada vez mais ditirâmbico de suas
“Admitir tudo objetivamente, não se encolerizar com nada, não amar coisa
criações subseqüentes. E no entanto, apropriadamente, esse trabalho analítico
alguma, entender tudo - torna a pessoa branda e dócil” (53). Pode mesmo ser
é de resto apenas destrutivo. Em si mesmo oferece pouca noção do que poderia
fatal. Mas “felizmente a história também conserva viva para nós a memória dos
ser uma historiografia artística trágica. Sem dúvida, uma vez que foi escrito na
grandes ‘combatentes contra a história’, isto é, contra o poder cego do real”, aura do Nascimento da Tragédia de Nietzsche, podia-se supor que um exemplo
qualquer que seja ele (54).
de tal historiografia estivesse presente à consciência dos possíveis leitores do
Em última análise, concluiu Nietzsche, o antídoto para o “mal da história”
ensaio. De fato, os dois trabalhos são complementares, e “O Uso e Abuso da
deve ser a própria história. É outra ironia que a cura para a cultura historicizada História” pode ser visto como uma operação retrospectiva de limpeza do
deva ser homeopática:
terreno; prepara o acesso para o novo tipo de historiografia revelado em O
Nascimento da Tragédia. Mas o segundo trabalho torna possível, ao criar o
Pois a origem da cultura histórica, c de seu antagonismo absolutamente radical ao espírito
de um novo tempo e de uma “consciência moderna”, deve ela mesma ser conhecida através de um desejo por ela, apenas uma arte trágica do tipo que apareceu na Grécia durante
processo histórico. (...) A ciência deverá voltar seu ferrão contra si mesma (51). o século V a.C. Afirma a necessidade de uma nova explicação histórica da
tragédia grega e movimenta-se no sentido de fornecer tal explicação. Até põe a
Quando a própria história mostrar as origens históricas de uma cultura tragédia em contraste com a história tal como é correntemente concebida como
histórica, estará aberto o caminho para se atingir aquele posto de observação meio para a construção de tal explicação nova da tragédia grega.
“aistórico” ou “super-histórico” a partir do qual os poderes mitopoéticos da Mas essa justaposição da tragédia grega antiga às várias formas da mo­
arte podem realizar sua obra. O que é o aistórico? É simplesmente “o poder da derna visão poética (inclusive a wagneriana, que, na época, Nietzsche ainda
arte, de esquecer e de traçar um horizonte limitado em torno de si mesmo” (69). exaltava) é basicamente apenas isso, uma justaposição. O processo pelo qual a
E o que é o super-histórico? É apenas o poder de volver “os olhos do processo visão trágica grega se transmutou na degenerada visão poética moderna conti­
do puro vir-a-ser para aquilo que confere à existência um caráter eterno e nua obscuro. Muito embora lamentasse o declínio e queda da tragédia antiga,
estável - para a arte e a religião”, Dioniso e Apoio juntos (Ibid.). Enr resumo, e designasse como seu antitipo a moderna consciência histórica, Nietzsche não
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META-HISTÓR1A 365

formulou em O Nascimento da Tragédia uma teoria do processo histórico por


meio da qual fosse possível explicar a transformação da primeira na segunda. anarquia. Chamou a essa condição anárquica “heroísmo” ou “super-humani-
Esteve a um passo de tal teoria, porém; isso se vê pela operação de resgate dade”, mas ela é, ainda assim, anarquia. De mais a mais, é uma anarquia tornada
empreendida em “O Uso e Abuso da História*’ e pela teoria da dialética do mais terrível pela dissolução de todos os “valores” que se presume estejam
lembrar e do esquecer que inspira sua distinção entre as várias formas de subjacentes a ela.
historicismo - a monumental, a antiquária e a crítica - e, dentro delas, entre Isso não quer dizer que Nietzsche, mais do que Rousseau ou Marx, tenha
suas formas criativas e destrutivas. negado a necessidade do estágio social como preliminar ao estágio final, criativo
Contudo, em “O Uso e Abuso da História”, Nietzsche limitou-se a dizer (ou heróico). Pelo contrário, sustentou que o homem precisava desse segundo
o que não seria uma historiografia criativa, a serviço da vida; não disse como estágio a fim de avivar seus atributos peculiarmente humanos, sua vontade e
seria ele. Seria estrutural ou narrativa, sincrônica ou diacrônica, quanto à razão humana (167). Mas Nietzsche viu esse estágio social, o estágio da abne­
concepção? Seria uma “estória” de homens individuais em disputa com o gação, do sacrifício da vontade, da moderação, como tendo sido dissolvido pelos
destino, ou uma avaliação de uma seqüência concluída de eventos, ou, por outro próprios poderes críticos do homem e como preparação do homem para o
lado, uma evocação metafórica de possibilidades heróicas? Nietzsche disse que desmoronamento da razão e da sociedade, e portanto como liberação da
poderia ser todas essas coisas simultaneamente, ou qualquer delas isoladamente vontade para um tipo novo e superior de “barbárie” em que o indivíduo viveria
ou em combinação, dependendo das necessidades dos homens como o historia­ sua vida como uma obra de arte. Assim, escreveu ele sua história na voz do eiron,
doras concebe. Em suma, Nietzsche conferiu a autoridade de determinar tanto mas colocou-a em enredo como uma espécie de comédia.
o escopo de uma dada obra histórica quanto a forma que ela assumirá à própria O primeiro ensaio de/l Genealogia da Moral examina as dicotomias “bem
sensibilidade do historiador para as necessidades vitais do seu tempo. Ao e mal” e “bom e mau”. Inicia-se com um ataque aos moralistas utilitaristas
historiador é vedado apenas deificar o passado à custa do presente e o presente ingleses, que Nietzsche ironicamente chama “historiadores da ética”, isto é,
à custa do futuro - isto é, escrever história monumental acrítica ou história eruditos que se limitam a narrar atitudes éticas convencionais sem submetê-las
antiquária acrítica, ou, inversamente, história crítica não-heróica e irreverente. a qualquer tipo de crítica. Na verdade, disse ele, foram todos “abandonados
O modelo de tal historiografia a serviço da vida foi oferecido pelo próprio pelo verdadeiro espírito da história. Todos, sem exceção, pensam aistoricamen-
Nietzsche numa obra que praticamente encerrou sua carreira, A Genealogia da te” (159).
Moral. Mas o que significa “pensar historicamente”? Nesse caso, é pensar a si
mesmo reintroduzido na consciência de uma livre, nobre e forte aristocracia
que avoca a si o direito de “nomear” as coisas que lhe dão prazer e as que não
MORALIDADE E HISTÓRIA lhe dão prazer:

A origem dos opostos bom e mau há de ser encontrada no pathos de nobreza e distância,
A Genealogia da Moral (1887) pode ser vista como uma aplicação do representando a índole predominante de uma classe superior, dirigente, em relação a uma inferior,
proposto método “super-histórico” de Nietzsche a um problema ao mesmo dependente. O direito de dar nomes é tal que quase nos autoriza a ver a origem da própria
tempo histórico e filosófico. Ela procura determinar a origem e a significação linguagem como expressão do poder dos governantes. Eles dizem [metaforicamente]: “Isto é isso
da moralidade, do senso moral do homem, sua consciência, sua crença em ou aquilo”; eles cercam cada coisa c cada ação com um som e desse modo tomam posse simbólica
dela [160].
qualidades como “bem” e “mal”. O ensaio começa por uma crítica à concepção
rousseauísta da história, em que uma humanidade basicamente “boa” é vista
como tendo sido corrompida por uma “queda” no çstado social. Ao contrário, A linguagem da nobreza é portanto direta, inocente, inalterável, singela;
afirmou Nietzsche, o homem não é basicamente coisa alguma; e se decaiu em designa as coisas sem dissimular, musicalmente por assim dizer, sem admitir
alguma condição foi na “bondade”, da qual decorrem todos os descontenta­ dúvidas.
mentos peculiarmente humanos com o homem-animal. Todavia, nesse ensaio A linguagem dos fracos, ao contrário, é sempre uma linguagem sujeita a
Nietzsche apresentou um esquema para pôr em enredo a história da moralidade reconsiderações, uma linguagem de intenções tortuosas e de objetivos secretos.
ocidental de modo a permitir a predição de uma iminente emancipação do “Quando um nobre sente indignação, é esta absorvida em sua reação instantâ­
homem de sua constritiva “bondade”. Essa emancipação representa, como nea e portanto não o envenena.” Mas, disse Nietzsche, imaginemos como o
representou para Marx, uma libertação ante a condição “social”. Mas Nietzsche “inimigo” é concebido pelo homem rancoroso, recalcado, fraco. Ele precisa
não a prefigurou como uma emancipação no seio da “comunidade”. Viu-a, conceber o “inimigo” como “uma idéia fundamental”, como “o Maligno”, e
antes, como uma emancipação frente a toda necessária associação com outros “depois como complemento concebe o Bom - ele próprio” (173).
homens, um sonho de auto-suficiência individual que nada mais é do que a Aqui a diferença entre o nobre e o fraco é concebida no plano de uma
distinção entre os capazes de pensar metaforicamente e os forçados a pensar
366 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 367

conceptualmente. Os primeiros usam a linguagem da arte; os últimos usam a da linguagem metafórica - gera os dois instrumentos de opressão que o homem
ciência, filosofia ou religião. volta contra si mesmo: a ciência e a religião.
Em busca de apoio para essas generalizações, Nietzsche voltou-se para a Nietzsche não percebeu de todo que estava utilizando uma teoria tropo-
etimologia, para as histórias dos termos “bom”, “mau” e “mal”, e argumentou lógica da linguagem para explicar a moralidade e a cultura em sua “história” de
que os termos para “bom em todas as línguas indicam a classe social como ambas em A Genealogia da Moral. Numa espécie de reflexão tardia, em nota
origem de, todos os valores” (162). A rebelião contra a amoralidade egoística da apensa ao primeiro ensaio, ele propôs a seguinte questão para posterior consi­
aristocracia primitiva é comandada por uma nova antiaristocracia, cujos chefes deração: “Que luz a ciência da lingüística, especialmente o estudo da etimolo­
- os sacerdotes - separam-se da aristocracia primitiva dos fortes e se convertem gia, projeta sobre a evolução das idéias morais?” (188) Havia respondido a essa
em seu oposto. Essa nova aristocracia do rebanho tem como seu atributo básico pergunta em seu primeiro ensaio, ao investigar o quanto as dimensões metoní-
a qualidade essencial dos fracos onde quer que apareçam - a saber, o rancor. micas e sinedóquicas da linguagem poética fazem as vezes de motores da
Mas estabelece seu poder sobre as massas e também sobre os fortes graças a consciência, na operação auto-repressora desta última, ao longo da história. O
um estratagema lingüístico; simplesmente chama a seu rancor “amor”. pleno desenvolvimento dessas possibilidades linguísticas redundara, no fim de
■ contas, na consciência irônica de que padeciam sua época e sua civilização. Ele
Esse rancor tem sua origem na repressão e sublimação da vontade de não compreendeu que, ao firmar o pé na concepção da criatividade essencial
potência dos componentes do rebanho. Sublimado, esse rancor toma a forma da linguagem metafórica, presumia estar resolvida a questão do papel repre­
de uma transmutação de atributos novos: enquanto o nobre qualifica de “boas” sentado pela própria metáfora nas propensões do homem para a auto-repres-
as suas ações e de “más” as que delas diferem, o fraco começa por designar as são. Mas esse historicismo lingüístico, que concede à consciência metafórica
ações de seus superiores como “o mal” e as suas como “o bem”. Assim a uma função puramente criativa, deu a Nietzsche uma base para criticar a
dicotomia “bom e mau” é suplantada pela dicotomia “bem e mal”; e, ao passo consciência histórica, em suas várias formas (metonímica, sinedóquica e irôni­
que a primeira dicotomia é completamente amoral, sendo apenas uma afirma­ ca), de sua própria época.
ção da experiência do prazer ou da dor sentida pelo indivíduo, a segunda é
quintessencialmente metafísica e moralista, atribuindo uma substância qualita­ Nietzsche tinha formação filológica, o que significa que as transformações
tivamente maligna a ações que diferem daquelas da pessoa ou grupo que da linguagem devem ter estado presentes em seu pensamento como modelo
estabelece a definição. para entender a transformação da própria consciência. Isso sugere que sua
concepção do ciclo por que passa a consciência pode perfeitamente ter sido
Nietzsche procurou ir além do moralismo metafísico implícito na lingua­ uma projeção de sua concepção do ciclo lingüístico que passa da metáfora
gem do “bem e mal” ao firmar-se na idéia de saúde, que ele definiu como através da metonímia e da sinédoque à ironia. O retorno à inocência da
qualquer expressão direta e imediata de emoção. A saúde está para o organismo consciência foi, então, necessariamente concebido nos termos de um retorno
físico assim como a consciência metafórica está para o estado mental. Ali onde ao estágio metafórico da linguagem. Em todo caso, é óbvio que todo o problema
uma emoção não encontra saída direta e imediata, observou ele, cria uma de esquecer e lembrar, prometer e vincular-se a um passado ou futuro fictício,
reserva de energia represada que se expressa indiretamente, como rancor. Esse estava associado em sua mente às falácias das apreensões mctonímicas e
rancor, por sua vez, exprime-se em atividade antes mental que física, especifi­ sinedóquicas do mundo. A “queda” na “bondade”, na moralidade e na auto-
camente mima busca da causa que explique o represamento, e vai encontrá-la mutilação, não era, no fim de contas, senão uma queda nas esferas mais distantes
- com toda a razão - no forte. Mas, a fim de explicar sua própria fraqueza, o da possibilidade lingüística.
rancoroso acusa o forte de possuir mais do que mera força - o atributo, força, O segundo ensaio de A Genealogia da Moral, sobre “culpa”, “má cons­
traduz-se assim numa qualidade, mal.
ciência” e “assuntos correlatos”, começa por um reexame da faculdade inequi­
A transformação de um atributo (como força ou fraqueza) numa qualida­ vocamente humana de recordar. E aqui, como antes, Nietzsche caracterizou a
de (como mal ou paciência) é efetuada por uma escamoteação lingüística. Na memória como uma espécie de perversa intencionalidade pela qual os homens
seção XIV do primeiro ensaio incluído em A Genealogia da Moral, Nietzsche assumem compromissos com um futuro específico e também com um passado
descreveu ironicamente como ocorre essa transmutação de valores; é exclusi­ fixo. Essa capacidade de se comprometer com um futuro específico e um
vamente lingüística. Os fracos transmutam “fraqueza em mérito. (...) A impo­ passado fixo é precisamente o que se entende por consciência, afirmou. A
tência, que não pode retaliar, em bondade; a covardia, em humildade”, e assim capacidade de lembrar confere a um juramento feito no passado o poder de
por diante (180). Desse modo toda a história da moralidade é vista como um influenciar e determinar o presente e o futuro. O juramento prestado, lembrado
produto das operações da consciência mctonímica e sinedóquica à custa da e assumido impõe uma espécie de ordem à vida humana, mas uma ordem bem
“inocente” apreensão metafórica do mundo. A procura de causas e essências - diferente da imposta a ela pela faculdade de esquecer. A faculdade de esquecer
de agencias atrás, e qualidades além, dos fenômenos captados em imagens pela permite-nos viver num presente; funciona para “fechar temporariamente as
368 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 369

portas e janelas da consciência; proteger-nos do barulho e da agitação com que Sempre que o homem achou necessário criar uma memória para si, seu esforço foi
acompanhado de tortura, sangue, sacrifício. Os sacrifícios e compromissos mais horrendos, inclu-
os nossos órgãos inferiores trabalham em benefício ou detrimento uns dos
sive o sacrifício do recém-nascido; as mutilações mais repulsivas, como a castração; os rituais mais
outros; introduzir um pouco de calma em nossa consciência de modo a dar lugar cruéis de todos os cultos religiosos (e todas as religiões são no fundo sistemas de crueldade) - tudo
às funções e funcionários mais nobres de nosso organismo que têm a incumbên­ isso tem origem no instinto que adivinhou ser a dor o mais forte auxílio à mncmotécnica [193].
cia de comandar e fazer funcionar” (189). Quando “esquecemos” o passado e
o futuro, podemos “ver” o presente com clareza. Quando o olvido é suspenso
pela recordação, “expressamente nos casos que envolvem promessas”, a vonta­ No princípio da história humana, quando a memória da humanidade
de se torna prisioneira de uma condição e de um desejo anteriores; e continua ainda não estava tão solidamente desenvolvida, recorria-se aos métodos mais
a afirmar aquela condição e aquele desejo, mesmo à custa de sua própria saúde terríveis de avivar a memória: “A severidade de todos os códigos penais
(189-90). primitivos nos dá alguma idéia de como deve ter sido difícil para o homem
Em resumo, a capacidade de prometer é justamente da mesma natureza superar seu esquecimento e incutir nesses escravos de caprichos e desejos
da capacidade de lembrar. Ao prometer, exerce-se a vontade para a frente, para momentâneos algumas exigências básicas da vida comunitária” (Ibid.). Graças
impor uma forma fictícia ao futuro; ao recordar, exerce-se a vontade para trás, aos métodos mais cruéis o indivíduo aprendeu alguns “Não quero” que “o
para impor uma forma fictícia ao passado. Para Nietzsche, o importante no habilitaram a participar dos benefícios da sociedade; e de fato, com a ajuda
prometer e no lembrar era o interesse em nome do qual essas formas fictícias dessa memória, todos terminaram por ‘tomar juízo’ ” (194).
são impostas ao futuro e ao passado respectivamente. A má consciência não é Qual é, então, a origem da má consciência? Nietzsche encontrou uma pista
senão a incapacidade do indivíduo de aceitar atos passados como seus, o no fato de que o termo “culpa” (Schuld) tem sua origem num termo que significa
impulso de vê-los como produtos de algum outro agente ou agência que não sua uma relação material, “estar em débito” (Schulderi). Em suma, a idéia de culpa
própria vontade, de considerá-los como manifestações de alguma “qualidade” surge não numa doutrina tardia da liberdade da vontade mas na noção de
inacessível, ou superior, a seu próprio ser. A boa consciência, ao contrário, nada compensação. A relação entre dano e dor, disse ele, apareceu “relação contra­
mais é do que o poder de dizer que, seja o que for que tenha acontecido ou tual entre credor e devedor, que é tão antiga quanto a noção mesma de ‘questões
venha a acontecer no futuro, aconteceu ou acontecerá por meio de minha de direito’ e que por sua vez remete às práticas elementares de compra, venda,
própria ação, como manifestação de minhas próprias qualidades. O olvido troca e comércio” (195). O credor recebe um tipo de pagamento do devedor
criativo, sustentou Nietzsche, é ao mesmo tempo recordação criativa. Pois o através do prazer que obtém ao fazer sofrer. A natureza desse prazer é estética:
olvido criativo não é senão uma recordação de nossa própria vontade, de nossos é o prazer que vem de se ser capaz de exercer poder sobre outrem, prazer que
próprios poderes e talentos. E aplica-se a gerações inteiras o que se aplica ao faz com que o punidor se sinta “nobre”, superior à vítima indefesa. Basicamente
indivíduo. Sermos nós mesmos é negarmos as obrigações que tanto o passado é sádico. E o sadismo, sustentou Nietzsche, é a base de todas as hierarquias
como o futuro nos impõem, exceto aquelas obrigações que escolhemos por nós “artificiais” (196).
mesmos e honramos simplesmente porque as consideramos “boas”. No segundo
Nietzsche viu a origem do Estado na relação devedor-credor. Nos tempos
ensaio de A Genealogia da Moral, Nietzsche retomou a questão que presumiu
primitivos, disse ele, “a comunidade aparecia a seus membros na relação de
estar resolvida em “O Uso e Abuso da História”: “Como criar uma memória
credor para devedor” (203-4). A princípio, quem se recusava a pagar as dívidas
para o animal humano? Como fazer para imprimir qualquer coisa nessa meio
ou quem usava de violência com seu credor era simplesmente desterrado; cada
obtusa e meio volúvel inteligência humana - nessa encarnação do olvido - de
vez mais, porém, tornou-se praxe impor um preço específico ao crime. Em
modo a fixá-la?” (192). Encontre-se a resposta a essa pergunta, disse ele, e não
apenas se terá solvido o enigma da consciência; também estarão ao mesmo resumo, na medida em que a sociedade ficava mais rica, ia traduzindo um prazer
tempo solucionados os enigmas da sociedade, da cultura e da consciência sádico numa mercadoria com valor de troca. A dor, infligida ou sofrida, pode
histórica destrutiva. O restante de A Genealogia da Moral é um ensaio sobre a ser armazenada, sacada, tributada, nacionalizada ou socializada. Nietzsche até
história da cultura, da sociedade e da moralidade em função de uma teoria pensou na possibilidade de uma sociedade tão rica em dor acumulada que nem
psicológica da repressão e sublimação. Nele a sensação de um passado único, teria necessidade de punir seus criminosos, limitando-se a perdoá-los. Isso seria
irrecuperável, e o terror são identificados como sendo essencialmente a mesma o milênio para a sociedade historicamente constituída.
coisa. Tudo isso, porém, era apenas ironicamente sugerido, pois o verdadeiro
A criação da memória só pode realizar-se através da dor, disse Nietzsche; propósito de Nietzsche era usar a noção da capitalização da dor para explicar
daí se segue que a memória da cultura, como a memória pessoal, é um produto o surgimento da idéia de justiça a partir de uma existência humana intrinseca­
da dor, não do prazer. mente amoral. Na realidade, afirmou ele:
370 HAYDENWH1TE META-HISTÓRIA 371

Falar de certo e errado per se não faz sentido algum. Nenhum ato de violência, estupro, Não há conjunto de máximas mais importante para o historiador do que este: que as causas
exploração, destruição é intrinsecamente “injusto”, uma vez que a própria vida é violenta, preda­ reais das origens de uma coisa e os subsequentes usos dela, a maneira como ela se incorpora num
tória, exploradora e destrutiva e não pode ser concebida de outra maneira [208]. sistema de finalidades, são mundos separados; que tudo o que existe, não importa qual a sua origem,
é periodicamente reinterpretado pelos que estão no poder em função de novas intenções; que todos
os processos no mundo orgânico são processos de superação e dominação, e que, por sua vez, toda
Como, então, explicar o aparecimento da idéia de justiça no início da
superação e dominação significam reinterpretação, recomposição, no curso da qual o significado
existência civilizada? e o objetivo mais antigo forçosamente se obscurecem ou se perdem [209].
A justiça, argumentou Nietzsche, foi originariamente um instrumento
usado pelos fortes para atenuar o rancor dos fracos. A regulamentação do
rancor Essa passagem constitui nada menos que uma rejeição das concepções
mecanicista, organicista e contextualista da explicação histórica, de uma só vez.
é levada a cabo arrancando-se das mãos vingativas o objeto do rancor, ou substituindo-se a vingança
O processo histórico é visto como sendo não um processo mas uma série de
pela luta contra os inimigos da paz e da ordem, ou imaginando, propondo e, se necessário, fazendo momentos, cada um dos quais se relaciona com o anterior e com o que se seguirá
respeitar acordos, ou estabelecendo uma escala normativa de equivalentes para indenizações em através das intenções dos agentes que ocupam a cena nessa ocasião. A idéia é
que poderão ser classificadas todas as queixas futuras [207]. destruir não só toda teleologia mas também toda causalidade.
O que Nietzsche fez aqui foi desembaraçar a “evolução” de uma coisa de
O estabelecimento de tal coleção de equivalentes - isto é, de normas -
seus “usos” pelos que estão no poder em qualquer momento dado, situando o
despoja o ato de vingança de seu caráter de afronta pessoal e de sua particula­
“sentido” daquela evolução nas intenções daqueles que controlam os instru­
ridade e transforma-o numa relação objetiva. E essa transformação opera uma
mentos de percepção pública no presente. Em lugar de uma seqüência de
mudança na natureza mesma da percepção:
relações de causa e efeito como o modelo empregado na observação da evolução
ou desenvolvimento de qualquer fenômeno biológico ou social dado, Nietzsche
Assim as normas desviam a atenção de seus súditos da injustiça sofrida e, a longo prazo, adotou a noção de um conjunto de confiscos retroativos. Assim, disse ele, “toda
alcançam o fim oposto ao visado pela vingança, que procura fazer prevalecer exclusivamente o
ponto de vista da pessoa prejudicada. Daí em diante o olho é ensinado a ver o fato de maneira cada a história de uma coisa, de um órgão, de um costume, se torna uma contínua
vez mais impessoal - mesmo o olho da pessoa ofendida, embora esta, como dissemos, seja a última cadeia de reinterpretações e recomposições”. Essas reinterpretações e recom­
a ser afetada [208]. posições “não precisam estar causalmente articuladas entre si”, mas podem
“simplesmente seguir-se umas às outras”, o que significa que a evolução “de
Em suma, a justiça tem origem numa diferenciação arbitrária entre “boas” uma coisa, de um costume, de um órgão”, não é necessariamente seu “progressus
e “más” ações, e seu efeito consiste em reorientar as percepções de toda gente, para uma meta, menos ainda o progressus mais lógico e mais curto, exigindo o
do ofendido e do ofensor, de modo que o próprio sentimento de individualidade mínimo de energia e despesa”. É, antes, “uma seqüência de processos de
é neutralizado. Isso induziu Nietzsche à conclusão de que “de um ponto de vista apropriação mais ou menos profundos, mais ou menos independentes, incluin­
biológico as condições legais são necessariamente condições excepcionais, visto do as resistências usadas em cada situação, as transformações tentadas com fins
que limitam a radical vontade de vida concentrada no poder e devem finalmente de defesa e reação, assim como os resultados de bem-sucedidos contra-ata­
favorecer, como meios, o escopo coletivo da vida, que é criar maiores constela­ ques”. E acrescentou que, se “as formas são fluidas, seu ‘sentido’ o é mais ainda”
ções de poder”. E seu efeito de longo alcance sobre a espécie, sustentou ele, é (210).U
acarretar “a completa desmobilização do homem e, indiretamente, o reino do ma vez desembrulhados, esses comentários crípticos proporcionam
niilismo”. A legalidade, insistiu ele, é uma “arma contra a luta” (Ibid.). importantes indícios da concepção nietzschiana de semântica de todos os
Essa passagem sobre a origem da justiça é crucial para um entendimento processos históricos. Como ele mesmo o resumiu, o argumento se reduz à
da abordagem psicologística nietzschiana da história cultural. Que o próprio afirmação de que “a parcial dessuetude, a atrofia, e a degeneração, a perda de
Nietzsche estava cônscio da conexão revela-o o fato de que essa passagem é sentido e finalidade - em suma, a morte - devem ser computadas entre as
seguida imediatamente por uma análise do modo pelo qual o historiador pode condições de qualquer verdadeiro progressus, que no fim aparece sempre sob a
atravessar a nuvem de ideologia que engolfa a auto-imagem de toda cultura e forma da vontade e visa a maior poder e se realiza à custa de numerosos poderes
as avaliações que ela mesma faz de seus princípios espirituais. Assim, no menores”. Isso equivale a nada menos do que uma afirmação da noção conven­
capítulo XII do segundo ensaio de A Genealogia da Moral, Nietzsche expôs a cional de tragédia: “O alcance de qualquer ‘progresso’ é medido por tudo o que
base ontológica do verdadeiro método histórico. Começou pela seguinte obser­ deve ser sacrificado em seu proveito”. E Nietzsche chegou a dizer: “Sacrificar
vação: a humanidade enquanto massa ao bem-estar de uma única espécie humana mais
forte na verdade constituiria progresso” (Ibid.).
372 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 373

Entretanto, seria errôneo concluir com demasiado açodamento que o que distribuição desigual dos bens produzidos, Nietzsche situou o princípio propul­
Nietzsche chamou “esta questão de método histórico” é exaustivamente descri- sor num fator psicológico, a vontade de potência, uma força que ele considerava
tível nos termos da noção convencional de tragédia. O contexto em que foi mais poderosa do que a vontade de vida e que explicava não só a dominação do
exposta sugere que foi oferecida basicamente como alternativa à noção burgue­ homem e a exploração de outros homens mas também sua capacidade de
sa de “adaptação”, que dominava boa parte do pensamento acerca de processos autodestruição. De que outra maneira seria possível explicar os excessos da
evolutivos correntes na época de Nietzsche. Nietzsche pretendia substituir o classe exploradora até em meio à abundância, ou a efetiva aceitação pelas
conceito de adaptação pelo conceito de atividade no pensamento acerca do classes exploradas de sua condição de servidão, se não por uma predisposição
processo evolutivo, quer na sociedade quer na natureza (211). psicológica da humanidade em que a imposição de castigo é vivenciada como
Esse comentário sobre o método histórico permitiu a Nietzsche retornar um prazer inegável e o ato de sofrê-lo é concebido como uma necessidade entre
à sua análise da relação entre dor e consciência. Ele observou que a punição aqueles que não têm outra escolha? De que outro modo se poderia explicar a
aumenta o medo, a circunspeção, o controle sobre os instintos, que repousa na auto-repressão dos instintos animais e sua dupla expressão na relação dicotô­
base da existência civilizada e que tem sido a base da civilização desde o mica de “bom e mau” de um lado e “bem e mal” do outro? Finalmente, como
princípio. A aplicação do castigo até fornece o elo de um vínculo secreto entre seriã possível explicar, além dos limites de qualquer relação tão-somente entre
o criminoso e o juiz, que, ao punir o criminoso por seus crimes, lhe mostra que explorador e explorado, aquela transmutação de valores pela qual a dicotomia
nenhuma ação, nem mesmo o homicídio, é má em si mesma; somente aquelas “bom e mau”, que deve ter prevalecido entre os fortes no princípio da história
ações que são cometidas em certas circunstâncias são más. Essa é a descoberta humana, foi suplantada pela dicotomia “bem e mal” dos fracos, que triunfou
libertadora feita por Julien Sorel em O Vermelho e o Negro de Stendhal ao ser em toda a parte no período histórico? Todas as respostas de Nietzsche a essas
julgado por uma “boa” sociedade. A reação de Julien Sorel à sua condenação perguntas estão contidas na teoria psicológica da repressão que ele extraiu do
por “homens morais” é negar aos outros o direito de lhe prescreverem morali­ conceito básico da vontade de potência e que o distingue como um psicólogo
dade. Faz questão de dizer que não há uma coisa chamada mal substantivo; e da história tão grande, se não maior do que o próprio Freud.
não reconhecerá uma “má consciência”. Descobre que a “má consciência” é Digo “se não maior do que o próprio Freud” porque, em sua descrição
aprendida. E também foi assim com Nietzsche: “A má consciência [é] (...) uma da origem da consciência na humanidade, Nietzsche não precisou, como Freud
doença arraigada a que o homem sucumbiu sob a pressão da transformação em Totem e Tabu, da postulação de um “crime” primordial generalizado através
mais profunda a que já se submeteu: aquela que fez dele de uma vez por todas do qual uma experiência socialmente condicionada como o complexo de Édipo
uma criatura social e pacífica” (217). Atrás da formação dessa má consciência é vivida por toda a espécie. Encontrou a base para a emergência da consciência
existe um sistemático represamento dos instintos, e uma resultante “interiori- num impulso puramente estético entre os fortes e na reação analogamente
zação” que por si só “fornece o solo para o crescimento do que mais tarde se estética dos fracos a esse impulso, ambos os quais eram expressões da única e
chamou a alma do homem” (Ibid.). A presumida existência dessa alma é por partilhada vontade de potência da espécie. Assim, postulou Nietzsche, com
sua vez a origem do impulso do homem para á automutilação através da relação ao início da história humana, uma aristocracia guerreira que dominava
invenção de todos aqueles “espíritos” que se imagina estarem ressentidos com pelo terror uma vasta, amorfa e inepta massa de súditos. Esses aristocratas
a existência de impulsos animais no homem. Aqui, também, está a origem da necessária e instintivamente deram forma a essa massa, o que permitiu a
religião. Como disse Nietzsche: Nietzsche saudá-los como os artistas “mais espontâneos, mas inconscientes”
que já existiram. Mas, ao invés de trabalharem os que desde então passaram a
o fenômeno de uma alma animal voltando-se contra si mesma, insurgindo-se contra si mesma, era ser os materiais artísticos convencionais, esses artistas primitivos trabalharam
tão novo, tão profundo, misterioso, contraditório e rico de possibilidades, que toda a feição do os próprios homens. A má consciência surgiu não neles mas em seus súditos,
universo se alterou em razão disso. O espetáculo (...) exigia uma platéia divina para lhe dar o justo que, impelidos por uma vontade de potência tão forte quanto a de seus senhores,
valor [218}.
mas impedidos de expressá-la diretamente, tiveram de ocultar esse instinto, de
dirigi-lo contra si mesmos, tornando-o, sob a forma da declaração “eu sou feio”,
E assim os deuses foram inventados para servir de eterna platéia perante uma base para definir a idéia do belo. Por conseguinte, a idéia do “belo”, como
a qual esse drama de mutilação cósmica podia ser encenado, ter sua “nobreza” a do “bom” e a do “verdadeiro”, é um produto da consciência que não age, mas
assegurada e seu “valor” autenticado. é alvo da ação de outrem. Aqueles que vivem vidas boas, verdadeiras e belas
É notável a estreita correlação entre o texto de Nietzsche sobre as origens não têm necessidade desses conceitos, pois tais conceitos são apenas meios de
da sociedade, da consciência e da religião e o texto de Marx em A Ideologia caracterizar o que as coisas más, falsas e feias não são. Os “conceitos” do bom,
Alemã. Mas há uma diferença significativa: enquanto Marx fundamentou todas do verdadeiro e do belo são, portanto, produtos de vontades fraturadas, de
elas nas exigências de sobrevivência humana e explicou-as pelo estado de indivíduos que encontram em sua degradação real, em contraste com sua
escassez que ao mesmo tempo reclamava a divisão do trabalho e conduzia à
HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 375
374

natural aspiração de poder e fruição da vida, uma distinção entre o que é e o


que deve ser. Nietzsche descreveu a transmutação desse conhecimento original E assim como o homem herdou de seus primitivos antepassados as noções
em consciência no primeiro ensaio de A Genealogia da Moral. No segundo de bom e mau, “juntamente com uma propensão psicológica para hierarquias,
ensaio mostrou como essa transmutação se traduziu na base da moralidade também herdou das tribos, juntamente com os deuses tribais, um encargo de
social. dívida pendente e o desejo de fazer a restituição definitiva” (223). Essa é a
Aqui também Nietzsche foi tão austero quanto Marx, e caracteristicamen- origem de todas as religiões redentoras que cortaram o nó górdio com os
te mais psicologístico. E, além disso, antecipou Freud. Mas Freud situou a ancestrais mediante a imputação aos homens tanto da responsabilidade indivi­
origem da consciência na economia da sexualidade, na luta dos filhos do clã dual quanto da culpa individual, mas que ao mesmo tempo fixaram como preço
pelas mulheres disponíveis monopolizadas pelo pai, e no subseqüente assassi­ dessa redenção a renúncia permanente aos frutos da terra. Assim, disse Nietzs­
nato do pai pelos filhos. Mas em seguida, surpreendentemente, Freud invocou che, o cristianismo representa o triunfo do mais alto sentimento de dívida e culpa
a noção de uma espécie de mentalidade de corretor da Bolsa no homem já concebido. Ele via a consumação do cristianismo, porém, como uma ocasião
primitivo, por meio da qual os filhos de repente perceberam a vantagem, a longo de regozijo.
prazo, de dividirem as mulheres entre eles, estabelecendo sobre elas direitos de
Sc temos razão de presumir que iniciamos agora o desenvolvimento inverso, é evidente que
propriedade e justificando esse confisco pela improvisação da religião totêmica.
o continuado declínio da crença num deus cristão deve acarretar um correspondente declínio da
Nietzsche, caracteristicamente, subordinou o impulso sexual à pulsão do consciência de culpa do homem. (...) Uma vitória completa e definitiva do ateísmo poderia libertar
poder, o que o próprio Freud poderia ter feito não estivesse obsedado pela inteiramente a humanidade de seu sentimento de dívida para com seus primórdios, sua causa prima.
necessidade de encontrar prova da universalidade do complexo de Édipo. O ateísmo e uma espécie de “segunda inocência’’ andam juntos [225].
Nietzsche encontrou as origens da consciência social numa simples relação de
poder. Assim como a idéia de responsabilidade no indivíduo foi inspirada pela
sistemática inculcação de uma mentalidade de devedor, assim também a conti­ VERDADE E HISTÓRIA
nuidade moral da sociedade é vista como função de uma relação devedor-cre­
dor, que se imagina existir entre as gerações, entre os homens vivos e seus Dir-se-ia então que o senso de obrigação geracional e a “consciência
antepassados. histórica” reduzem-se à mesma coisa. A capacidade de “recordar” permanece
Entre os povos primitivos, notou Nietzsche com bem maior penetração no coração de ambos. E escapar da obrigação geracional implica escapar da
do que Freud, cada geração experimenta para com os ancestrais um sentimento consciência histórica. Se os homens não devem sucumbir à mentalidade de
de obrigação jurídica que é muito mais forte do que qualquer obrigação emo­ devedor que os impede de viver para si mesmos exclusivamente, lembrar deve
cional. “As primeiras sociedades estavam convencidas de que sua permanência ser substituído por um esquecimento seletivo.
era garantida exclusivamente pelos sacrifícios e empreendimentos de seus No terceiro ensaio de A Genealogia da Moral, “Que Significam os Ideais
ancestrais e que era necessário pagar esses sacrifícios e empreendimentos.” Ascéticos?”, Nietzsche esboçou uma história dos efeitos da capacidade de
Mas, evidentemente, disse Nietzsche, jamais poderiam ser totalmente pagos. automutilação do homem sobre a humanidade em geral. Viu o desenvolvimento
De fato, uma lógica curiosa - mas perfeitamente compreensível - operava na dos ideais ascéticos como indicativo de um poder humano especial - não,
sociedade primitiva e por essa lógica qualquer êxito entre os vivos aumentava- evidentemente, um poder espiritual, mas um impulso da vontade humana, “seu
lhes a dependência perante os mortos: “O temor ao antepassado e a seu poder temor do vazio” (231). A vontade do homem, disse ele, requer \im objetivo. Toda
e a consciência do débito aumentam na proporção direta em que aumenta o vontade é uma vontade de alguma coisa. E onde falta um objetivo, a vontade
poder da própria tribo, na medida em que ela se torna mais bem-sucedida na pode tomar o vazio mesmo como sua meta. Assim, quando não são capazes de
batalha, mais independente, respeitada e temida. Nunca o contrário”. Por extravasar completamente suas paixões animais, os homens podem fazer da
contraste, o fracasso, o declínio, a derrota operam na outra direção, redundando necessidade uma virtude e transformar a castidade em meta, finalidade ou valor
numa diminuição do respeito pelos antepassados, mas não necessariamente no ideal. E nascem os ideais ascéticos, a deificação da dor e da mutilação.
renascimento, pois a regeneração é função exclusivamente da ruptura com o Todo o reino da cultura superior é, de acordo com Nietzsche, um produto
sentimento de dívida para com qualquer um que não seja o próprio indivíduo. da sublimação desse impulso ascético. Na arte esse impulso alcança o apogeu
Assim: na noção do artista destituído de vontade, do desinteressado espectador do
mundo, do tipo postulado por Kant, para quem a beleza, e logo'ela, é “prazer
Seguindo esse tipo de lógica até sua conclusão natural, chegamos a uma situação em que os desinteressado”, como se pudesse haver tal coisa. Schopenhauer deu a essa
ancestrais das tribos mais poderosas se tomaram tão temíveis para a imaginação que acabaram
concepção kantiana da beleza uma interpretação explicitamente decadente ao
mergulhados numa sombra luminosa: o antepassado se toma um deus. Talvez seja esse o modo
como nasceram todos os deuses, do medo (222). glorificar a beleza como “libertação frente à vontade” e “sedativo da vontade”.
376 HAYDENWHTTE META-HISTÓRLA 377

A esse modo de ver, porém, Nietzsche opôs a noção stendhaliana de beleza se exige que não tenha direção, que revogue suas potencialidades ativas e
como “precisamente a excitação da vontade, do ‘interesse’, através da beleza” interpretativas - precisamente aquelas potencialidades que fazem da visão a
(240). Assim, o triunfo da estética kantiana e schopenhaueriana foi o sinal do visão de alguma coisa”. Esse ideal obscurece o fato de que
triunfo do intelecto sobre a vontade, da capacidade repressiva do homem sobre
a vontade de potência, do ideal do espectador sobre o do ator. Foi, em suma, o toda visão é essencialmente perspectiva, como o é também todo conhecimento. Quanto mais
triunfo do conceito sobre a imagem. Como tal constituiu a causa da consciência emoções deixamos falar numa dada questão, mais óculos diferentes podemos usar para ver um
irônica que caracterizou a cultura da época. dado espetáculo, mais completa é a nossa concepção dele, maior a nossa objetividade [Ibid.].
Mas, afirmou Nietzsche, essa cultura ascética, com seu ideal de desinteres-
sismo, é simplesmente um subterfúgio com que os filósofos expressam sua A vontade de verdade, portanto, é essencialmente uma maneira de negar
invertida vontade de potência. As “virtudes” dos filósofos, argumentou a apreensão das verdades das coisas. A vontade de verdade, como o ideal de
Nietzsche, são apenas meios para o fim da auto-expressão considerada como “objetividade” que concebe a objetividade como a percepção do conhecedor
pura intelecção, a única forma de expressão franqueado ao homem reprimido. desprovido de vontade, é a inimiga tanto da verdade como da vontade.
Assim interpretada, a filosofia herdada de Platão é pouco mais do que uma Significativamente, para meus objetivos, Nietzsche considerou os histo­
extensão da perversão original da apolínea vontade de forma. Não se deve riadores modernos como a encarnação mesma desse ideal do conhecedor
censurar o que os filósofos foram capazes de realizar, disse Nietzsche, e admitiu destituído de vontade. Eles se colocam diante do passado histórico como
que um certo ascetismo é necessário para qualquer atividade intelectual con­ involuntários e desinteressados “espelhos” de eventos: “Repelem a teleologia;
tinuada (247). Mas é imprescindível, insistiu, determinar se o incremento de já não querem ‘provar’ nada; desdenham de representar o papel de juízes (...);
capacidade intelectual valeu o que custou em energia animal, pois “nada jamais não afirmam nem negam, apenas averiguam, descrevem” (293). Esses historia­
foi comprado por um preço mais alto do que a pequena porção de razão e dores “objetivos” têm uma contraparte decadente em “estetas” como Renan.
liberdade humana que é hoje nosso orgulho” (250). No entanto Nietzsche estava Esse é do “tipo epicurista, galanteador, que lança à vida os mesmos olhares
mais interessado em indagar como se deu a substituição da energia animal pela lânguidos que lança ao ideal ascético, que usa a palavra ‘artista’ como uma luva
intelecção e o que isso pressagiava para o futuro da cultura que ela sustentava. de pelica e que monopolizou inteiramente o louvor à contemplação” (293-94).
Esses espectadores par excellence, disse Nietzsche, ostentam a “hipócrita ‘pro­
Se o impulso que induz a filosofar é em última análise estético - isto é, se
bidade’ da impotência” (295).
o anseio de filosofar tem origem no desejo de impor forma ao mundo -, como Mas na opinião de Nietzsche a cultura européia alcançara os limites
se explica o fato de que o filósofo assume convencionalmente um semblante exteriores de sua própria alienação. Alguma coisa fora conquistada; a vontade
ascético e até a crença em valores ascéticos? Tudo isso começou - presumia tinha sido salva, ainda que só para o vazio. É a isso afinal que se reduz o ideal
Nietzsche - como meio de sobreviver à ira dos sacerdotes em culturas religiosas ascético. É uma “reação à vida, uma rebelião contra as principais condições da
orientadas para o ascetismo. O filósofo é por natureza o inimigo do sacerdote, vida. E no entanto, apesar de tudo, é e continua a ser uma vontade”. Resta
mas, como no início lhe faltava o prestígio do sacerdote, foi-lhe necessário apenas elevar essa vontade de nada à autoconsciência, fazer dela antes um
adotar um disfarce sacerdotal. Infelizmente, o disfarce logo se apoderou do ator programa que um expediente, golpear e destruir com os poderes desse super-
e transformou o impulso filosófico de liberdade em face da religião num novo refmado intelecto todos os fardos colocados sobre o homem por suas sensitivi-
tipo de religião não menos ascética do que aquela contra a qual se insurgira dades asceticamente induzidas. Isso e só isso liberaria a vontade para uma
originariamente. E o resultado foi o desaparecimento de uma filosofia autenti­
vblição efetiva. Nessa obra de destruição e criação a história também teria um
camente colocada a serviço da vida.
papel, tornando-se a arte super-histórica exposta pelo próprio Nietzsche em sua
Isso é mostrado pelo triunfo de um impulso çádico na filosofia não menos Genealogia da Moral.
do que na arte. Da mesma forma que a arte moderna enaltece o artista destituído Deve agora estar patente que A Genealogia da Moral é um apanhado
de vontade, também a filosofia moderna enaltece o pensador claudicante. histórico-psicológico das origens da trindade do humanismo convencional: o
Seguramente, disse Nietzsche, é o ponto culminante do prazer sádico o momen­ belo, o bom e o verdadeiro; uma análise do papel que a consciência histórica
to “em que a razão em seu desprezo e escárnio por si mesma decreta que o reino convencional teve na sustentação da crença na realidade substantiva dessa
da verdade existe realmente mas que a razão está excluída dele”, como no trindade; e um convite através do exemplo à formação de uma consciência
pensamento de Kant (254-55). O ideal filosófico do seu tempo, disse Nietzsche, histórica nova, purificada e a serviço da vida, o que possibilita lançar fora esse
imagina um “conhecedor puro, a salvo da vontade, da dor, do tempo”, que tem fardo de substancialismo. Esse novo historicismo servidor da vida pressupõe
o objetivo de alcançar uma “razão pura, um conhecimento absoluto, uma uma nova psicologia que engloba a vontade, tanto quanto a razão e os sentidos,
inteligência absoluta” (255). Mas todos esses conceitos, sustentou Nietzsche, como seu tema e faz da dinâmica da vontade seu objeto central. Inspirando e
“pressupõem um olho tal como nenhum ser vivo pode imaginar, um olho do qual amparando essa desejada psicologia está a convicção de que o homem é
378 HAYDEN WHITE METAHJSTÓRIA 379

basicamente um animal fabricador de imagens, um animal que impõe forma ao basicamente em duas modalidades: as dos homens fortes e as dos homens fracos.
caos das impressões sensoriais que o bombardeiam em qualquer apreensão A sintaxe das relações entre esses dois tipos de agentes históricos é complicada,
meramente animal de seu mundo, e faz suas imagens com uma finalidade. Mas porém, pelo fato de que a lei básica que as rege, a vontade de potência, é
essa finalidade presume-se ser individual e subjetiva e ter seu único objetivo mediada por uma faculdade unicamente humana, a consciência. A capacidade
possível no mundo, não fora dele. Além disso, no pensamento de Nietzsche, essa de reflexão do homem, e, acima de tudo, sua aptidão para dar nome às coisas,
finalidade libertou-se completamente de qualquer obrigação para com os po­ para confiscar as coisas por meios lingüísticos, redunda na edificação de um
deres que a precederam, existem com ela, ou a ela se seguirão. Encontra suas mundo segundo, ummundtf ilusório, paralelamente ao mundo original de puras
limitações práticas não em forças abstratas que concebivelmente a inspiram ou relações de poder. A história da cultura aparece, assim, como um processo em
informam, ou que emergem no processo do mundo como um todo, mas exclu­ que os fracos competem com os fortes pela autoridade de determinar como será
sivamente nas próprias ações da vontade, na interação com outras finalidades caracterizado esse segundo mundo. E a história da consciência humana descre­
colimadas por outras vontades que também se emanciparam de sujeições ve um processo em que a formação original da imagem do mundo em função
abstratas e portanto estão igualmente livres. Nem espírito, sociedade, o Estado, das categorias “bom e mau” dá lugar a diferentes maneiras de conceptualizá-la
os modos de produção, nem a cultura podem alimentar qualquer pretensão a em função das categorias de “bom e mau” por um lado e das categorias de
comandar essa vontade; menos ainda podem refreá-la os sacerdotes. Pois, ainda “causa e efeito” por outro. Assim, a história da consciência humana pode ser
que se possa dizer que espírito, sociedade, o Estado, os modos de produção e posta em enredo como uma “queda”, do modo original, metafórico, de apreen­
a cultura existem, são vistos unicamente como produtos da humanidade, de sua der o mundo, nos modos sinedóquicos e metonímicos de compreendê-lo.
força e de sua capacidade plástica. Quanto a Deus, não se pode dizer que exista; Nietzsche caracterizou essa “queda” como uma transição da música, da poesia
embora possa ser visto como produto da imaginação humana, pode ser posto e do mito para os mundos áridos da ciência, religião e filosofia.
de lado como apenas isso e dissolvido por um ato da própria imaginação. Há, porém, uma intrínseca ironia nessa “queda”, pois a plena utilização
Nietzsche valeu-se assim da consciência histórica para cortar os últimos dos modos sinedóquico e metonímico de compreensão opera em prejuízo de
laços que unem os homens a outros homens em empreendimentos compartilha­ ambos. A religião nega a arte, a ciência nega a religião e a filosofia nega a ciência,
dos. Concebeu a dissolução última da própria história, e mais radicalmente do de modo que o homem moderno se vê arremessado nas profundezas de uma
que o fizera Marx. Como Marx, percebeu para além do entulho deixado por consciência especificamente irônica, privado de fé na razão, na imaginação e na
aquela dissolução a formação de uma nova humanidade. Mas ela não seria vontade e finalmente levado a desesperar da própria vida.
alistada a serviço de uma nova comunidade ou de uma cultura purificada, pois Na perspectiva de Nietzsche, esse desespero explicava a obsessão de sua
Nietzsche dissolvera os conceitos de comunidade e cultura, juntamente com os época com a história. A moderna mentalidade historicista é um produto da
do passado e do futuro, no interesse de criar o indivíduo autônomo. Para esperança de que o passado fornecesse modelos para o comportamento no
Nietzsche havia só o presente. O homem está sozinho nele, e arca com a presente, ou de que o “processo histórico” hipostasiado pudesse por meio de
responsabilidade de viver todo presente como se este devesse ser sua eternida­ suas operações efetuar a redenção desejada pelo homem. Como isso não se
de. Tal é o sentido do mito do “eterno retorno” pregado por Zaratustra. verifica, torna-se um divertimento, um passatempo, um narcótico. O pensamen­
to histórico nos modos da metonímia, da sinédoque e da ironia, então, não
somente é um sintoma da doença do homem moderno como é também uma
CONCLUSÃO causa alimentadora dessa doença, pois a consciência histórica nesses modos
simplesmente lembra ao homem sua escravização a forças e processos situados
fora dele, suas obrigações para com as gerações passadas e futuras, sua servidão
O escopo de Nietzsche como filósofo da história era destruir a noção de
a poderes superiores ou inferiores a ele mesmo. A consciência histórica proíbe
que o processo histórico deve ser explicado ou posto em enredo de algum modo
o homem de “entrar em” seu presente e desse modo reforça a condição mesma
determinado. Dissolvidas estão as próprias noções de explicação e colocação
que se pretende superar. O problema imediato, então, consiste em dissolver a
em enredo; elas cedem o lugar à noção de representação histórica como pura
autoridade de todos os modos herdados de conceber a história, em remeter a
estória, fabulação, mito concebido como o equivalente verbal do espírito da
reflexão histórica a um modo poético e especificamente metafórico de com­
música. No entanto essa concepção de representação histórica tem seus alicer­
preender o mundo - isto é, promover uma aptidão para o esquecimento criativo,
ces conceptuais; pressupõe um léxico, uma gramática, uma sintaxe e um sistema
de maneira que o pensamento e a imaginação possam responder imediatamente
semântico através do qual o campo histórico pode receber um certo número de
ao mundo que jaz ali diante deles como um caos, a ser tratado como exigem o
significados possíveis. .
desejo e a necessidade correntes.
Quando explorou o campo histórico Nietzsche encontrou nele apenas
manifestações das operações da vontade humana e agrupou essas manifestações
380 HAYDENWHITE META-H1STÓR1A 381

O retorno do pensamento histórico ao modo metafórico lhe permitirá natureza e de seus processos, ainda possuiria o potencial para se formar em
desobrigar-se de todos os esforços que visem encontrar qualquer sentido comunidades de amor e respeito mútuo. Nietzsche deixou o mundo no estado
definitivo na história. Ver-se-á que os elementos do campo histórico se prestam fraturado em que se encontrava, dividido entre os fortes, que se destinam a
a combinação num número infinito de maneiras, da mesma forma que os dominá-lo no futuro, e os fracos, que estão fadados a fazer as vezes do “material”
elementos da percepção se prestam a combinação pelo artista livre. O impor­ com que os liberados artistas do poder modelarão suas “obras de arte”. Esse
tante é que o campo histórico seja considerado, da mesma maneira que é o estado de cisma é não somente aceito mas também categoricamente apresen­
campo perceptual, como uma ocasião para a produção de imagens, não como tado como estado desejável. O pensamento histórico depurou-se de suas ilu­
material para a conceptualização. Nesse processo oblitera-se a noção mesma sões; os produtos de seus sonhos foram transformados em conceitos, mas foram
de semântica da história. A própria crônica de eventos é destituída de sua colocados a serviço da vontade de potência; e a humanidade foi consignada às
autoridade como condição limitadora do que o historiador pode fazer na operações de um mundo em que o decoro artístico é a única coisa interposta
construção de suas imagens do passado. Assim como a poesia é ela mesma o entre ela e a descida ao fundo de uma noite pavorosa onde a morte é soberana.
meio pelo qual são transcendidas as regras da linguagem, também a historio­ Pode-se agora caracterizar a natureza especificamente “radical” da idéia
grafia metafórica é o meio pelo qual são abolidas as regras convencionais de da história de Nietzsche. Ele representa um repúdio pelos esforços no sentido
explicação histórica e elaboração de enredo. Só os elementos lexicais do campo tanto de explicar a história quanto de colocá-la em enredo como um drama
permanecem, devendo ser tratados como o historiador, comandado agora pelo dotado de qualquer sentido geral. Preconizou para o processo histórico um
“espírito da música”, desejar. A dissolução da noção de uma semântica da enredo de tragédia, mas redefiniu o conceito de tragédia a ponto de privá-lo de
história é, ao mesmo tempo, a dissolução do sonho de um método pelo qual a toda e qualquer implicação moral. As estratégias explicativas que Ranke, Marx,
história em geral pode ser suprida com algum sentido. O historiador está Tocqueville e até Burckhardt apregoaram se perderam, visto que a explicação
desonerado da obrigação de dizer alguma coisa a respeito do passado; o passado já não lhe interessava. A explicação, como a elaboração do enredo, é apenas
é apenas uma oportunidade para a invenção de engenhosas “melodias”. A uma tática, não um fim ou meta a que o historiador deve aspirar.
representação histórica torna-se uma vez mais unicamente estória, sem enredo, A posição de Nietzsche sobre todas essas questões era a mais próxima
nem explicação, nem implicação ideológica de espécie alguma - isto é, “mito” possível da de Burckhardt, mas ele levou as implicações da concepção burck-
em seu significado original como Nietzsche o entendia, “fabulaçâo”. hardtiana da história como forma de arte muito mais longe do que este último
Contudo, essa concepção de conhecimento histórico tem na realidade teria admitido. Burckhardt era ainda inspirado pela noção do “sublime” como
implicações ideológicas específicas, que são as do niilismo, como Nietzsche controle sobre o que era permissível à percepção encontrar no campo histórico,
mesmo reconheceu. Qualquer tentativa de interpretar o pensamento de assim como no campo visual. Em Nietzsche a noção do “sublime” é substituída
Nietzsche como uma forma mais pura e mais consistente das posições ideoló­ pela do “belo”, e o belo é definido como qualquer coisa que a soberana vontade
gicas convencionais - conservadora, liberal, reacionária, radical, ou mesmo considera “boa” para ela. O “bom”, por sua vez, é contrastado não com o “mal”
anarquista - deve encarar o fato de que, na concepção nietzschiana da história, mas somente com o “mau” - isto é, com aquilo que a soberana vontade acha
são resolutamente rejeitadas as perspectivas de qualquer comunidade, seja ela desagradável na experiência.
qual for. Em Nietzsche não existem alicerces históricos para a construção de Assim, tanto quanto a filosofia, a ciência e a própria religião, o conheci­
qualquer postura política específica, salvo a da própria antipolítica. O pensa­ mento histórico é submetido à regra do princípio do prazer. É uma ironia
mento está exonerado de responsabilidade perante qualquer coisa fora do ego suprema que Nietzsche, o inimigo dos “estetas” do seu tempo, não só tenha
e da vontade do indivíduo, seja o passado, o presente ou o futuro. Sob esse terminado por deificar uma concepção puramente estética da história mas
aspecto Nietzsche apenas representa uma afirmação heróica da condição irô­ também tenha subordinado a sensibilidade estética aos imperativos da vontade
nica da cultura de sua própria época. de potência, desse modo tornando aqueles estetas mais arrogantes e mais
Ele via em tal afirmação heróica um meio de libertar a imaginação perigosos do que teriam sido sem essa subordinação.
criadora de restrições impostas a ela pelo próprio pensamento. Assim, sua É aqui que se pode encontrar a base da oposição fundamental de Nietzs­
antevisão do renascimento da consciência metafórica resiste à regressão à visão che a Hegel. Enquanto Hegel via na consciência histórica o espaço da mediação
de mundo especificamente romântica que parece exigir. Um pensador como entre os impulsos estéticos e morais do homem, Nietzsche instaurou uma
Michelet, ele mesmo praticante de uma historiografia metafórica, estava ainda dicotomia entre sensibilidade estética e moralidade e em seguida tratou de
convencido da possibilidade de extrair o sentido essencial da história do con­ encontrar um meio de libertar a primeira da segunda mediante a dissolução da
junto total de identificações metafóricas que estruturavam as estórias por ele própria consciência histórica. Nesse processo, porém, acolheu e levou à conclu­
contadas. Por trás da aposta de Michelet no método metafórico havia a convic­ são uma intuição que estava subjacente à reflexão de Hegel sobre o conheci­
ção de que a humanidade, liberta das garras de falsas conceptualizações de sua mento histórico - isto é, o quanto as regras que governam o pensamento acerca
382 HAYDENWHITE
4

da história tinham suas origens em hábitos e convenções lingüísticas. Mas ao


estabelecer uma dicotomia dentro da própria linguagem, opondo radicalmcnte CROCE
a linguagem poética à linguagem conceptual, e vendo nesta uma “queda” do A DEFESA FILOSÓFICA DA
alto da inocência daquela, frustrou qualquer possibilidade de encontrar um HISTÓRIA NO MODO IRÔNICO
espaço em que as intuições artísticas e o conhecimento científico confluíssem
para a tarefa única de apreender a significação do processo histórico e nele
determinar o lugar do homem. Ao separar a arte da ciência, da religião e da
filosofia, Nietzsche pensou que a estivesse devolvendo à união com a “vida”. Na
realidade, forneceu as bases para voltá-la contra a vida humana, pois, visto que
para ele a vida nada mais era do que a vontade de potência, ligou a sensibilidade
artística a essa vontade e desviou a vida daquele conhecimento do mundo sem
o qual ela não pode produzir nenhum benefício prático para ninguém.

INTRODUÇÃO

Já assinalei o componente irônico de todos os filósofos da história, e


indiquei em que ele difere da ironia que está implicitamente presente na
tentativa de todo historiador de extrair dos documentos a verdade sobre o
passado. A ironia do historiador é uma função do ceticismo que o obriga a
submeter os documentos a minucioso exame crítico. O historiador precisa tratar
o registro histórico ironicamente em algum ponto do seu trabalho, precisa
admitir que os documentos querem dizer alguma coisa que não é o que dizem,
ou que estão dizendo alguma coisa que não é o que pretendem dizer, e que lhe
é possível distinguir entre dizer e querer dizer, pois do contrário não haveria
razão para escrever uma história. Bastaria compilar uma coleção de documen­
tos e deixar que eles proclamassem suas verdades em seus próprios termos. É
claro que a ironia do historiador pode ser apenas uma arma tática, funcionando
como elemento metodológico no estágio preliminar de pesquisa e reduzindo
cada vez mais sua presença na medida em que a “verdade” ou as “verdades”
contidas nos documentos se tornam nítidas. Tão logo achar que extraiu a
verdade dos documentos, poderá o historiador abandonar sua postura irônica
e escrever suas histórias num ou noutro dos modos que já analisei, tendo a firme
convicção de que está dizendo a verdade sobre “o que realmente sucedeu” no
passado, com maior ou menor condescendência irônica para com seus leitores,
mas não com relação ao que ele mesmo agora “sabe”. Poderá manter uma
atitude irônica para com seus materiais de um lado e seus leitores do outro; mas,
quando mantém uma atitude irônica a respeito de sua própria empresa, como
384 HAYDEN WHITE META-H1STÓRIA 385

fez Burckhardt, o resultado é a história posta em enredo como sátira, em que a ta” do que seus equivalentes na historiografia, na medida em que cada um deles
ironia é erigida em princípio de representação histórica. estava ao mesmo tempo autorizado a afirmar a natureza essencialmente “trági­
ca” de todo existente histórico finito. Em Hegel, Marx e Nietzsche a tensão entre
A situação do filósofo da história é diferente da do historiador. O filósofo uma visão trágica e uma visão cômica do processo do mundo foi mantida, muito
da história assume uma atitude irônica (ou, se se desejar, cética), não só com embora estivesse encerrada dentro da concepção do conhecimento humano, e
relação ao registro histórico, mas também com relação a toda a empresa do fosse finalmente resolvida mediante o recurso a essa mesma concepção, que
historiador. Procura ele determinar até que ponto a obra de um historiador (e, cada um presumia ser a mais abalizada forma da verdade: filosófica, científica
na verdade, toda a empresa historiográfica) pode ainda estar escorada em e poética respectivamente.
postulados e pressupostos inadmitidos - vale dizer, identificar o elemento Com Nietzsche, porém, as categorias da análise começaram a dissolver-se.
ingênuo na reflexão histórica, o grau de incapacidade de uma dada obra As “formas” que Hegel encontrou na história, não menos que as “leis” encon­
histórica para observar uma atitude crítica a respeito de si mesma. Assim, tradas por Marx, foram definidas por Nietzsche como nada senão ficções,
embora a filosofia da história seja irônica no que se refere à obra de qualquer produtos da imaginação poética, mais ou menos úteis ou convenientes para
historiador, seu objetivo é expor à consciência, criticar e eliminar a possibilidade nortear um tipo determinado de vida, mas de modo nenhum adequados para a
de uma historiografia irônica. descoberta da verdade da vida humana. Para Nietzsche, a plena autoridade para
Qualquer obra histórica dada - na realidade, todas as obras históricas - estabelecer que “formas” e que “leis” serão tratadas como se fossem a “verda­
pode ser declarada imperfeita ou falha em certa medida, mas o filósofo da de” cabe ao ego ou à vontade soberana, que não admite lei alguma salvo seus
história quer mostrar que, apesar desse fato, não se deve adotar uma opinião interesses vitais ou vontade de potência. Nietzsche até dissolveu a distinção
irônica com relação à empresa historiográfica em geral, que razões para con­ entre as visões cômica e trágica da vida. Em seu pensamento a tragédia é
fiança e crença na utilidade da reflexão histórica para a vida são admissíveis. concebida como sendo de dois tipos gerais: o tipo irônico convencional, que
Mesmo Nietzsche, que encarava com ironia todos os produtos do pensamento, prega a resignação às “coisas como são”; e o novo tipo cômico, apolíneo-dioni-
pretendia salvar a reflexão histórica para a vida ao reduzi-la ao mesmo nível síaco, que preconiza uma superação radical de todas as situações em benefício
ficcional da ciência e da filosofia, alicerçando-a na imaginação poética junto apenas da força vital. Em suma, a ironia é assimilada à tragédia, e a tragédia à
com estas, e desse modo libertando-a da aderência a um ideal irrealizável de comédia, de modo a tornar despropositadas as distinções entre elas, da mesma
objetividade e imparcialidade. Assim, como eu já disse, conquanto comece pela maneira que as distinções entre ciência, filosofia e poesia são dissolvidas por
ironia, a filosofia da história procura ir além da ironia, procura descobrir as sua progressiva assimilação a esta última.
razões pelas quais o historiador poderia eliminar o elemento irônico de seu Mas o pensamento acerca da história ainda permanece dividido, fragmen­
relato do passado e dispor-se a dizer, com total autoconfiança, “o que de fato tado, internamente ferido. Entre os historiadores há acordo geral sobre a
estava acontecendo” naquele passado. Pelo menos, tal era o caso dos melhores impossibilidade e indesejabilidade de buscar leis de causação histórica, mas
filósofos da história do século XIX. persiste a cisão sobre se o conhecimento histórico é conhecimento do geral (dos
tipos) ou conhecimento do particular (das individualidades). Além disso, sobre
Hegel tratou de ultrapassar a ironia na reflexão histórica, através de uma
a questão da colocação em enredo do processo histórico, há discordância sobre
análise sinedóquica das diferentes formas da historiografia, como preliminar a
se a história deve ser posta em enredo no modo de estória romanesca, da
uma síntese dialética dos vários tipos de resultados de pesquisas historiográficas
comédia, da tragédia, da sátira, ou de alguma combinação delas.
numa história filosófica. Marx buscou o caminho para uma história filosófica
através de uma análise metonímica e de uma síntese sinedóquica dos fatos Além disso, em oposição aos historiadores levantam-se os filósofos da
contidos no registro histórico e na obra de outros historiadores de modo a história, que em geral condenam a tentativa de explicação por descrição e
substituir o relativismo da historiografia ideologicamente motivada por um antevêem as consequências irônicas de uma convenção historiográfica despro­
sistema nomológico de explicação. Nietzsche, por outro lado, buscou uma saída vida de qualquer base teórica sólida para a defesa das descrições efetivamente
da ironia da reflexão histórica de sua época ao levar a posição irônica à sua apresentadas como explicações nas narrativas. Mas não há acordo entre esses
conclusão lógica, afirmando a natureza essencialmente metafórica de todo filósofos da história em torno daquilo em que deve consistir essa base teórica.
conhecimento do mundo, e dissolvendo toda dúvida ao estabelecer a superio­ Hegel defendeu a autoridade do modo sinedóquico de caracterizar o
ridade da intuição poética sobre todas as outras formas de compreensão. campo histórico, de explicação por classificação tipológjca e construção de
enredo por uma combinação de tragédia e comédia. Marx defendeu o modo
Essas diversas estratégias críticas deram aos três filósofos da história a metonímico, com explicação por análise nomológica ou causal e construção de
justificação de que precisavam para pôr em enredo a história em geral como enredo - como em Hegel - por uma combinação de tragédia e comédia.
comedia romântica ou estória romanesca cômica, mas de maneira mais “realis­ Nietzsche defendeu o modo metafórico, com explicação pela intuição artística
386 HAYDENWHrTE META-HISTÓRIA 387

e construção de enredo na combinação de tragédia e comédia peculiar à sua certeza de julgamento que são ou magistrais ou exasperadoras, dependendo da
teoria do antigo mythos. Restava apenas a um filósofo da história refletir sobre avaliação que o leitor fizer da justificação de ambas. O importante é que Croce
essa condição dividida da consciência histórica e concluir que o próprio conhe­ coerentemente pressupunha a total adequação de sua “Filosofia do Espírito”
cimento histórico não era senão a projeção do modo irônico para completar o às necessidades espirituais de sua época. Do interior dessa filosofia ele estendia
ciclo de possíveis atitudes históricas na filosofia da história vivida até o fim na sobre os sistemas conflitantes e sobre os que o tinham precedido o mesmo olhar
historiografia na transição de Michelet a Burckhardt. O problema seria então: irônico que os grandes cínicos partilham com os grandes fanáticos. Croce sabia
como viver com uma história explicada e posta em enredo no modo irônico sem (ou sempre dizia saber) precisamente “o que está vivo e o que está morto” em
incorrer naquele estado de desespero que Nietzsche só conseguira evitar retro­ qualquer atitude que diferisse da sua. No entanto, taticamente negava que
cedendo ao irracionalismo? O filósofo da história que tentou resolver esse houvesse alguém capaz de adivinhar o que estava vivo e o que estava morto em
problema, dentro das condições fixadas por essa análise da situação a que a seu próprio sistema porque sua filosofia era quintessencialmente um organon
reflexão histórica havia chegado por volta da década de 1880, foi Benedetto de “crítica”, uma filosofia crítica par excellence; daí ser ela, além de crítica de
Croce, o mais talentoso historiador de todos os filósofos da história do século. outras filosofias, crítica também de si mesma, e daí precaver-se contra o “falso
pessimismo” e o “falso otimismo” que haviam jogado por terra todos os
sistemas anteriores.
A FILOSOFIA DA HISTÓRIA COMO CRÍTICA A revista que Croce fundou em 1902 e editou até um ano antes de sua
morte em 1952 chamou-se, caracteristicamente, La Critica; c em suas páginas
Croce manteve uma vigilância crítica sobre o domínio que havia demarcado
Croce não começou como filósofo, ou mesmo como um erudito profissio­
para si mesmo na Estética e nos outros livros da “Filosofia do Espírito” que a
nal. Não concluiu a universidade e nunca ocupou um posto acadêmico. Na
ela se seguiram. E de fato Croce tomara o elemento irônico que está presente
verdade, sua opinião sobre a cultura acadêmica do seu tempo era muito
em toda operação crítica e elevara-o à condição de princípio metafísico e
parecida com a de Nietzsche e Burckhardt, beirando o desprezo. Ele era - como
epistemológico, graças ao qual todo o acervo cultural do século XIX, e em
Burckhardt - um cavalheiro erudito, um amador que se voltara para o estudo
especial seus elementos “radicais”, podia ser avaliado, julgado insuficiente e
da história como meio de escapar ao sofrimento pessoal e ao tédio da vida
transferido à “história”. Seu problema, como ele bem sabia, era estabelecer essa
pública. Sua obra inicial foi a de um antiquário na acepção rigorosa do termo,
atitude irônica como a única possível “sabedoria” da época moderna sem
mais arqueológica do que histórica, que consistia em estudos do folclore, da
vida e da arquitetura da velha Nápoles. Em 1893, porém, Croce ingressou no arremessar o pensamento no ceticismo e no pessimismo que uma consciência
campo da filosofia da história com um ensaio intitulado “A História Subsumida sistematicamente irônica inevitavelmente promovia.
no Conceito Geral da Arte”. Sua defesa e desenvolvimento das idéias expostas Os ensaios de Croce sobre história cultural começavam e terminavam
nesse ensaio lançou-o em sua carreira de filósofo. Nos dez anos seguintes sempre pela apreensão da natureza essencialmente imperfeita de todo empreen­
sustentou o conceito de arte que sua defesa da idéia da história como uma forma dimento humano; era a sua uma filosofia que detectava a insuficiência em todas
de arte o levara a explanar nesse ensaio. as coisas do passado para que os homens considerassem possível viver com as
Em 1902, Croce publicou >1 Estética como Ciência da Expressão e Linguís­ insuficiências do presente. Ele era especialmente inflexível quando se tratava
tica Geral, um dos livros mais influentes de sua geração. A este se seguiram, em de julgar a .civilização européia do século XIX, as concepções da história que a
1905, A Lógica como Ciência do Puro Conceito’, em, 1908, Filosofia da Prática: inspiraram (sobretudo a doutrina do progresso) e as teorias da história de seus
Economia e Ética; e, em 1917, Teoria e História da Historiografia. As quatro melhores pensadores. Estava disposto a admitir que os pensadores oitocentistas
obras juntas constituem o que Croce chamou a “Filosofia do Espírito”, que ele da história representavam um avanço em relação aos pensadores iluministas,
considerava como uma espécie de summa humanistica para o mundo moderno. renascentistas, medievais e clássicos. Mas, em última análise, apesar de toda a
É significativo que a primeira obra da tetralogia tenha sido inspirada pela alardeada historicidade da época, encontrava muito pouca coisa em seu pensa­
necessidade de defender uma posição originariamente assumida na filosofia da mento e em sua escrita histórica que pudesse recomendar sem restrições.
história - isto é, a história considerada como uma forma de arte — e que a última A seção “histórica” de sua Teoria e História da Historiografia se lê como
obra, o coroamento do sistema, por assim dizer, não seja senão uma análise uma litania de erros, falsas interpretações, superextensões e disparates. Sua
sistemática da natureza do conhecimento histórico. crítica aos pensadores oitocentistas da história era caracteristicamente irônica:
A estrutura dos dois livros é a mesma, e consiste numa discussão teórica os filósofos da história tinham bem pouco senso “histórico”; os historiadores
dos pontos principais, em estética e historiografia respectivamente, seguida por careciam de entendimento “filosófico”. Embora condenassem a abominável
uma história da reflexão anterior sobre os assuntos tratados. As seções teóricas “filosofia da história”, os historiadores da época, dizia Croce, permaneciam
e históricas de cada obra são desenvolvidas com uma autoconfiança e uma cativos das ilusões disseminadas por ela e escreviam histórias que extraíam sua
META-HISTÓRIA 389
388 HAYDENWHJTE

sistemática suas idéias acerca da relação entre história e arte. O ensaio deve ser
forma das “filosofias da história” soterradas profundamente na consciência lido dentro do contexto do debate então em andamento, especialmente na
daqueles que mais se ufanavam de objetividade e empirismo. Contudo» ironica­ Alemanha, entre os neokantianos, encabeçados por Wilhelm Windelband, e os
mente, ele também afirmava que essa simultânea repulsa e submissão à filosofia neo-hegelianos, comandados por Wilhelm Dilthey, em torno do estatuto epis-
da história, que marcava até a obra do próprio Ranke, continha um germe de temológico do conhecimento histórico. Em poucas palavras, Windelband sus­
justificação. tentava que o conhecimento histórico se distinguia do conhecimento científico,
Pois, ironicamente, sustentava Croce, a história era filosofia e a filosofia não pelos objetos que tomava para estudo, mas por seu escopo ou finalidade.
era história, e não se podia fazer história sem consciência filosófica, tanto quanto O conhecimento histórico era “idiográfico” ou “produtor de imagens”, ao passo
não se podia fazer filosofia sem consciência histórica. O século XIX fracassara que o conhecimento científico era “nomotético” ou “ideador de leis”. Dilthey,
porque não havia entendido a verdadeira natureza dessas atividades. Tudo o por outro lado, afirmava que a história pertencia às Geisteswissenschaften, ou
que era necessário para aclarar a questão, portanto, era elucidar a verdadeira “ciências do espírito”, enquanto disciplinas como a física e a biologia perten­
natureza da filosofia e da história, estabelecer as distinções entre elas e em ciam às Naturwissenschaften, ou “ciências da natureza”. As diferenças entre
seguida combiná-las de modo a produzir uma visão de mundo mais sensata, mais essas duas modalidades de ciências resultavam do fato de que elas envolviam
saudável, do que o século XIX fora capaz de imaginar. diferentes objetos de estudo, os produtos do espírito humano (mente, vontade
Croce pretendia mostrar que a história era o “assunto” da filosofia, assim e emoções), por um lado, e os produtos de processos puramente físico-quími­
como a filosofia era o “método” da história. A abominável “filosofia da histó­ cos, por outro. O ensaio de 1893 de Croce pretendia contribuir para esse debate.
ria”, que Croce muitas vezes chamava uma “contradictio in adiecto”, era na Collingwood atribuía grande originalidade ao ensaio de 1893, indicando
realidade um pleonasmo. Pois, na opinião de Croce, “a história não era outra que ele conduziu o debate entre Dilthey e Windelband para muito além do
coisa senão filosofia”, enquanto “a filosofia não era outra coisa senão história”. ponto a que os dois o haviam levado, desenvolvendo-o sobretudo na linha
O conteúdo concreto da filosofia era histórico por natureza, assim como a forma iniciada por Dilthey. Na verdade, não fez nada disso. Visivelmente deslocou da
das proposições históricas era adequadamente suprida pelas categorias do ciência para a arte o terreno do debate sobre a natureza da história, mas, ao
entendimento filosófico. fazê-lo, definiu a arte de maneira a não diferenciá-la praticamente daquela
Está claro que Croce insistia em que a filosofia tinha seu método próprio, “ciência idiográfica” invocada por Windelband como a ciência do indivíduo.
que era a lógica, “a ciência do puro conceito”. E a história utilizava um método
Como Windelband, Croce afirmou que havia dois tipos de cognição, um
inconfundivelmente seu no trabalho de investigação que antecedia a composi­
generalizante e conceptual, o outro individualizante e intuitivo, em seus méto­
ção da narrativa histórica. Os historiadores precisavam empregar métodos
dos. Mas, ao invés de chamar esses dois modos de cognição diferentes tipos de
filológicos para criticar os documentos e percepções preconceptuais, “intuiti­
ciências, como Windelband se inclinava a fazer, Croce chamou ao primeiro
vas” ou artísticas para apreender os objetos que ocupavam o campo histórico.
ciência e ao segundo arte. A tática foi eficaz porque golpeou um pressuposto
Isso queria dizer que o conhecimento histórico começava na apreensão artística
compartilhado por vitalistas e mecanicistas, que, fossem quais fossem suas
das particularidades que habitavam o campo histórico, e nessa fase de suas
divergências, concordavam em que a arte era menos uma forma de conhecimen­
operações seu método correto era o da “arte”, o que valia dizer “intuição”. Mas,
to do que uma “expressão” do mundo ou “reação” a ele, e não uma atividade
dizia Croce, a história avançava até o ponto de emitir julgamentos sobre a
cognitiva. Croce julgava que os mecanicistas consideravam a experiência esté­
natureza das particularidades discernidas no campo histórico. Esses juízos eram
tica como uma “vibração” dos sentidos, enquanto os vitalistas viam-na como
“sintéticos a priori”, isto é, caracterizações de particularidades nos termos dos
manifestação, direta ou sublimada, de impulsos animais. Para aqueles, a arte
conceitos gerais explanados na filosofia, e não combinações de declarações
era uma registradora da realidade; para estes, era uma insensata fuga da
existenciais com as leis causais gerais que se presume governarem as relações realidade. Croce contestou ambas as opiniões. Em vez disso, definiu a arte como
entre os objetos pressupostos pela intuição. O importante era que o conheci­
um tipo de conhecimento, conhecimento do mundo em sua particularidade e
mento científico não se introduzia na concepção do conhecimento histórico. O
concretude, conhecimento que era diferente do conhecimento conceptual do
que começava por uma apreensão estética do campo histórico terminava numa mundo proporcionado pela ciência, mas complementar a esse mesmo conheci­
espécie de compreensão filosófica desse campo. mento.
O ensaio de 1893 gira em torno de uma dicotomia e de uma distinção. A
dicotomia é traçada dentro da consciência entre o conhecimento como ciência
“A HISTÓRIA SUBSUMIDA NO CONCEITO GERAL DE ARTE” e o conhecimento como arte; a distinção é traçada entre a arte em geral e a arte
da história em particular. Tanto a dicotomia quanto a distinção decorriam da
Para entender o que Croce tinha em mente seria proveitoso examinar mais objeção de Croce ao positivismo. O principal erro dos positivistas, disse Croce,
detidamente o ensaio de 1893 em que ele pela primeira vez expôs de maneira
390 HAYDENWHFTE META-HISTÓRIA 391

era presumir que rodo conhecimento válido era científico por natureza. De fato, em geral e a arte da história em particular com base em diferentes tipos de
asseverou Croce, em sua maior parte o saber humano não é de modo algum intuições, a intuição do possível no caso da arte em geral, a intuição do real no
científico, mas meramente convencional, cheio de bom senso, ou quando muito caso da história. Para ele, como para Aristóteles, a distinção entre a arte em
de regras pragmáticas, que provêm das tarefas diárias que a humanidade geral e a arte da história em particular consistia numa diferença quanto ao
executa para não morrer de fome. Os positivistas sabiam que o conhecimento objetivo. Enquanto a arte em geral procurava intuir as possibilidades totais da
científico diferia formalmente do saber convencional ou baseado no senso existência individual, a arte da história procurava determinar o que realmente
comum, mas não viam que isso fazia dele um tipo diferente de conhecimento. se cristalizara como particularidades existenciais no mundo. Em suma, a dife­
A ciência corretamente entendida era um meio de compreender o mundo rença entre arte e história consistia numa distinção epistemológica, e não
conceptualmente; era “a procura de verdades gerais por meio de conceitos” ontológica.
(Storia Ridotta, 16). O outro meio de compreender o mundo - isto é, o meio A fim de sustentar esse argumento, Croce recorreu à sua anterior dicoto-
não-conceptual, imediato e individualizante - não era uma ciência, mas a arte, mização de arte e ciência. “Na ciência”, disse ele, “o conteúdo é o todo: a ciência
com padrões de verdade e verificação diferentes dos glorificados na ciência mas busca reduzir toda manifestação isolada do real à categoria em que ela tem um
tão rigorosos quantoeles. lugar. O escôpò da ciência é reduzir o todo a conceitos” (30). A arte, também,
Assim, na opinião de Croce, a arte e a ciência eram modos de cognição procurava representar o todo, uma vez que era um modo de cognição; mas, ao
diferentes, para não dizer diametralmente opostos. Como ele mesmo disse, “ou invés de tentar reduzir o todo a um conjunto limitado de conceitos, a arte tratava
se faz ciência, (...) ou se faz arte. Se se subsume o particular no geral, faz-se de expandi-lo mediante a descoberta de todas as formas possíveis que a existên­
ciência; se se representa o particular como tal, faz-se arte” (23-24). Os dois cia poderia assumir. Enquanto a ciência seguia um percurso na direção do geral
modos de cognição se diferenciavam pelas formas que conferiam a suas respec­ e do universal, a arte circunscrevia áreas distintas da realidade ao mesmo tempo
tivas percepções do mundo; e, já que parecia óbvio que a história “não elaborava em que suprimia a percepção de outras, a fim de representar com maior clareza
conceitos” de espécie alguma, já que nem procurava nem admitia leis gerais, e precisão aquelas que foram circunscritas. A ciência quer conhecer tudo, dizia
mas simplesmente “contava o que acontecia”, não podia ela ser caracterizada Croce; mas, embora “seja importante conhecer as leis da realidade”, não é
como ciência em nenhuma acepção digna de nota (17-19). necessário nem desejável conhecer tudo de uma vez ou reunir dados indiscrimi­
O desejo de colocar a história entre as ciências emanava, supunha Croce, nadamente. A arte circunscreve o mundo da experiência, alçando nossa sensibi­
de duas falsas crenças; que todo conhecimento tinha de ser conhecimento lidade a certas partes dela, enquanto reduz nossa sensibilidade a outras partes,
científico e que a arte não era um modo de cognição mas unicamente um e mostrando-nos em que consistiam as partes circunscritas, individual e direta­
estimulante dos sentidos ou, inversamente, um narcótico. Para deslindar a mente.
questão bastava apenas demonstrar que a arte era conhecimento não-conceptual A questão então vinha a ser: Como saberemos que partes do mundo
do mundo, conhecimento do mundo em sua particularidade e concretude, devemos querer conhecer? Com base em que princípio escolheremos uma área
salientar o fato de que a história era um exemplo desse tipo de conhecimento do mundo para circunscrição e representação em sua imediatez e individuali­
do mundo e em seguida distinguir a história da arte em geral com base no dade? Croce repelia as respostas sensualistas, racionalistas e formalistas a essas
conteúdo das respectivas representações. perguntas; nem o “prazer”, nem a “idealidade”, nem a “consistência formal”
Até que ponto, como eu já disse, Croce não havia levado o debate sobre fazia de um objeto per se um objeto estético. Em vez disso, fundamentou sua
a natureza do conhecimento histórico além do ponto a que Dilthey e Windel- posição no que chamava de “estética do idealismo concreto”, teoria que des­
band o tinham trazido. Ele se limitara a pôr o termo “arte” no lugar de “ciência cendia de Hegel e encontrara sua mais elegante expressão moderna, no enten­
idiográfica”, que Wildelband empregara para caracterizar as disciplinas histó­ der de Croce, nas hipóteses de Karl Koestlin.
ricas. Collingwood errou, portanto, quando insinuou que Croce estava mais Koestlin, disse Croce, demonstrara corretamente que “o conteúdo da
próximo de Dilthey do que de Windelband em sua visão geral da questão, pois estética é o interessante: o que quer que interesse ao homem enquanto homem,
Croce ainda não distinguira entre os dois possíveis objetos dos modos de seja do ponto de vista teórico ou prático, seja o pensamento, o sentimento ou a
cognição diferenciados por ele como arte e ciência. Para Croce, em contraste vontade, o que nós conhecemos e o que não conhecemos, o que nos deleita e
com Dilthey, a diferença entre os dois residia na direção tomada no processo nos entristece - em suma, todo o mundo do interesse humano” (32-33). Mais
de investigação, da intuição do mundo em sua particularidade para a represen­ importante talvez, Koestlin havia mostrado que quanto mais generalizado é o
tação do mundo como uma congérie de pormenores no caso da arte, da intuição interesse, maior o valor estético do conteúdo. Assim, era possível construir uma
do mundo em sua particularidade para a subsunção dos pormenores em concei­ hierarquia de interesses. No ápice dessa hierarquia estavam aqueles conteúdos
tos no caso da ciência, não em qualquer diferença entre seus objetos. A que diziam respeito ao homem como homem; abaixo destes estavam aqueles
contribuição original de Croce surgiu quando ele tentou distinguir entre a arte que tinham a ver com o homem enquanto integrante de uma determinada raça,
392 HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 393

nação ou religião; em seguida vinham aqueles que se relacionavam com o Isso era especialmente verdadeiro em história, porque o historiador trabalhava
homem enquanto membro de uma classe ou de um grupo específico; e assim sob o imperativo de dizer a verdade acerca de acontecimentos passados apesar
por diante até aqueles que tinham que ver com o homem apenas na medida em de dados incompletos. No maior número de casos, disse Croce, os historiadores
que ele era um indivíduo. Em suma, o conteúdo da arte era “a realidade em teriam de contentar-se com o que não passava essencialmente de “estudos
geral até o ponto em que a realidade suscita interesse por várias formas, preparatórios ou exposições fragmentárias prejudicadas por discussões, dúvi­
intelectuais, morais, religiosas, políticas e pelas formas estéticas propriamente das e ressalvas”. O historiador era obrigado a olhar o mundo na luz parcial da
ditas” (33). O conteúdo da arte, então, concluiu Croce, era tudo o que não lua nova, “não na plenitude do sol do meio-dia, como o artista” (38). Assim, era
aborrecia os homens, ou tudo o que lhes “interessava”, fosse qual fosse a razão. possível indicar muitas págjnas perfeitas de história mas nem uma só obra
Deixando de lado o tom schopenhaueriano dessa definição do conteúdo perfeita. A única história perfeita imaginável só podia ser escrita por Deus; mas,
da arte como “o interessante” como tal, para não mencionar a implícita assimi­ como não havia Deus, o historiador devia substituí-lo da melhor maneira
lação da filosofia e da ciência à estética, vejo aqui a base para a tentativa possível. Cumpria-lhe trabalhar, porém, com a consciência fáustica de que “o
posterior de Croce de definir o “verdadeiro” historicismo como o humanismo livro do passado está selado com sete selos” (39). Ao historiador, disse Croce,
tornado historicamente autoconsciente, pois a definição crociana do conteúdo era dado “romper um selo aqui e ali e ler alguma parte daquele livro”, o qual,
da arte nada mais é do que o humanista “nihil humani a me alienum puto” porém, nunca lhe seria revelado em toda a sua integridade (Ibid.).
reenunciado em termos um pouco diferentes. Para ele, o conteúdo da arte e o É difícil não ver na “revolução” operada por Croce na sensibilidade
conteúdo do conhecimento humano reduzem-se à mesma coisa: tudo o que é histórica um retrocesso, uma vez que teve o efeito de separar a historiografia
humanamente interessante. Não surpreende, portanto, que ele tenha definido de qualquer participação no esforço - que começava naquele tempo a fazer
o “historicamente interessante” como tudo quanto já aconteceu - isto é, o real algum progresso como sociologia - de construir uma ciência geral da sociedade.
e não o possível. Isso era puro aristotelismo, até na terminologia, pois, na opinião Mas teve implicações ainda mais deletérias para a reflexão dos historiadores
de Croce, a história “aparece como a representação do que efetivamente sobre o aspecto artístico de seu trabalho. Pois, embora Croce estivesse correto
aconteceu em contraste com [a representação do] possível” (35). em sua percepção de que a arte é um meio de conhecer o mundo, e não
Isso queria dizer que, enquanto era lícito ao artista projetar, com base na simplesmente uma reação física a ele ou uma imediata experiência dele, sua
imaginação, o mundo de eventos que poderiam ter ocorrido ou poderiam ainda concepção da arte como representação literal do real efetivamente isolou o
ocorrer, o historiador limitava-se à representação de eventos que tinham real­ historiador como artista dos avanços mais recentes - e cada vez mais dominantes
mente sucedido. O artista devia respeitar certos critérios de verdade, evidente­ - feitos no representar os diferentes níveis de consciência pelos simbolistas e
mente, mas esses critérios seriam encontrados no que a imaginação lhes pós-impressionistas em toda a Europa.
permitisse visionar. Já o historiador era guiado por critérios de verdade pres­ A concepção crociana da arte era dominada pelos pressupostos do pers-
supostos pelo empenho de representar o real. Assim, o principal perigo para o pectivismo renascentista - isto é, pelo figuralismo visual. Se bem que conside­
historiador era não a falsificação mas a imaginação, a especulação infundada, rasse a imaginação como a fonte e origem da apreensão estética do mundo, a
vôos para além dos fatos contidos nos registros de passadas realidades - isto é, aversão de Croce ao irracionalismo vitalista e ao abstracionismo positivista
a filosofia da história sob qualquer forma. levou-o a classificar a arte não-representacional como arte simplesmente má
Uma vez que a tarefa magna do historiador é a representação do real, a ou, o que equivalia à mesma coisa em sua opinião, como representação do “feio”
triagem dos documentos é apenas preparatória à consecução de seu principal e, conseqüentemente, inexistente como arte.
objetivo: a narração. A pesquisa, a crítica dos documentos, a interpretação dos Croce tinha mau ouvido para a música, e em poesia seu gosto se inclinava
documentos, e entendê-los - tudo isso era propedêutico à construção da narra­ para as formas clássicas. O romantismo em todas as suas manifestações era para
tiva; e nada disso era história propriamente dita, tanto quanto os esboços e ele pura indigência de forma, ou arte imperfeita. E assim sua resistência a
rascunhos preliminares de um artista não podiam ser chamados propriamente qualquer modalidade de arte pós-impressionista, simbolista ou expressionista
de obras de arte. Onde não há narrativa, disse Croce, não há historiografia. Em é compreensível. Como a maioria dos estetas mediterrâneos, ele valorizava a
resumo, os historiadores não escreviam com o fito de “explicar”; escreviam com linha sobre a cor, o claro-escuro sobre os efeitos pictóricos. Onde não havia
o fito de “representar”, de dizer o que efetivamente sucedera no passado - tal linha, não havia arte, pois a arte era o desenho de uma linha através do caos dàs
como Ranke havia dito que deviam tentar fazer. impressões sensoriais, a imposição de uma forma à realidade informe oferecida
Obviamente Croce admitia que, na maior parte dos casos, o historiador aos sentidos, o cinzelar de imagens estáveis, concretas, num mundo que a todo
não lograva produzir algo que se parecesse com uma narrativa perfeita; as instante ameaçava descair num processo desprovido de significação. Portanto,
grandes obras-primas eram tão raras em historiografia como eram em pintura, para ele, se a arte era um modo de cognição e a história era uma forma de arte,
e de resto igualmente imperfeitas em suas aproximações do tipo ideal do gênero. seguia-se que as representações históricas só eram “verdadeiras” na medida em
394 HAYDENWHITE METAHISTÓRIA 395

que eram representações “claras” e “precisas” do real - isto é, a única base articulações com algum ato imaginativo e não desejava ele dar a suas narrativas
epistemológica aceitável para a historiografia era um empirismo do tipo que a mesma integridade e consistência interna a que aspirava o romancista?
Ranke interpretara como o único princípio aceitável da pesquisa histórica. O conflito entre o romancista romântico e o historiador se mostrava mais
Evidentemente Croce não aceitava os princípios pré-críticos, ou postula­ decisivo precisamente no ponto em que a imaginação era obrigada a se substituir
dos legitimadores, do tipo de empirismo de Ranke; e, emA História: Pensamen­ à crônica, no ponto em que era necessário perguntar: “O que os fatos dados na
to e Ação, acusou Ranke de falta de “clareza” e escassez de consciência crônica significam?” E se ao historiador fosse permitido dizer, como tantas
filosófica. Mas, no fim de contas, era a realização, e não o escopo, da obra de vezes ele disse, ao romancista romântico: “O que dizeis talvez tenha acontecido,
Ranke que irritava Croce. Ranke era um pensador desorientado que se valia de poderia ter acontecido, mas não aconteceu da maneira como dizeis que aconte­
conceitos imperfeitamente definidos para exprimir seus juízos sobre épocas, ceu”, deveria então haver algum conhecimento de como o mundo “realmente”
indivíduos, instituições e valores específicos do passado e do presente. Todavia, operava, por meio do qual tal juízo, mesmo diante da ausência de testemunhos
no desejo de unicamente “contar o que aconteceu” em sua individualidade e para dirimir a questão de um modo ou de outro com base nos fatos, pudesse
concretude, como realmente aconteceu, numa agradável forma narrativa, Ranke firmar-se e decidir em favor do historiador. Em suma, o juízo histórico exigia o
cumpriu a tarefa que fazja da história uma forma específica de arte e não uma apoio de alguma teoria de como a “realidade” funcionava, um conhecimento
forma de filosofia, ciência ou religião. do mundo e, mais especificamente, um acontecimento do mundo das questões
Em seu trabalho posterior, Croce sublinhou o liame entre conhecimento humanas, que desse ao historiador uma impressão de que o mundo que lhe
histórico e filosofia, mas mesmo aqui se pôs a serviço de sua convicção de que aparecia como passado era provavelmente o que lhe parecia ser e não o que era
a história era uma representação clara do real em sua concretude e particulari­ imaginado serpeio romancista.
dade. A filosofia era, passou ele a sustentar na década de 1900, o “método” da
história, visto que proporcionava os conceitos críticos graças aos quais podiam Na concepção de Croce havia dois possíveis candidatos para o papel de
ser expressos juízos históricos adequados. Mas esses juízos eram singulares por árbitro do que era real e do que era apenas imaginário na história: o materia­
natureza, limitados a segmentos finitos, distintamente delineados do passado lismo e o idealismo, ou, mais especificamente, o materialismo em sua forma
histórico; em nenhuma hipótese podiam ser estendidos para fazer as vezes de marxista e o idealismo em sua forma hegeliana. Ambos ofereciam filosofias da
juízos sobre a história em geral. Pois a história em geral era, como a própria história plenamente articuladas que afirmavam dispor de critérios pelos quais
“filosofia da história”, uma contradição na economia filosófica de Croce. O podia o historiador distinguir entre dados significativos e dados irrelevantes na
motivo por que sustentou essa opinião, que minava a autoridade tanto da história e pelos quais era possível atribuir um “sentido” preciso a qualquer
sociologia como da filosofia como guias possíveis para a construção de uma seqüência de eventos históricos em qualquer setor da sociedade ou da cultura.
ciência da história, já era evidente no ensaio de 1893. Ambos pretendiam ir além da tentativa rankiana de apenas dizer o que sucedera
e oferecer um aparato conceptual capaz de dizer não somente por que sucedeu
No ensaio de 1893 e nas defesas desse ensaio que apareceram nos nove mas também o que isso prenunciava para o futuro da humanidade.
anos seguintes, Croce continuou a afirmar que a arte era uma forma de cognição
e que a história podia ser subsumida no conceito geral de arte. Mas tornou-se Dada a convicção de Croce de que a história tíra uma apreensão intuitiva
cada vez mais claro para ele que, se a arte em geral era a representação do da realidade em sua individualidade e concretude, torna-se óbvia a razão por
possível, e a história era a representação do real, devia haver algum critério pelo que ele não podia acatar na íntegra as opiniões de Marx ou Hegel. Mas não
qual pudesse o historiador distinguir entre o possível e o real. Em que critério podia ignorá-las, pois tais opiniões eram as principais alternativas a uma inade­
se apoiava o historiador quando dizia ao romancista romântico: “O que dizeis quada defesa da autonomia da história por parte de Ranke e a uma inadequada
que aconteceu na Idade Média é apenas uma invenção da vossa imaginação; o defesa da concepção esteticista da história apresentada por Nietzsche. Marx e
que nos dizeis é interessante e poderia ter acontecido, mas não aconteceu como Hegel pelo menos encaravam a história como a atividade cognitiva que ela era,
acreditais que tenha acontecido, e sim desta maneira. Isto é o que de fato mesmo que não reconhecessem que era uma forma de arte; Nietzsche reconhe-
aconteceu na Idade Média”? cia-a como uma forma de arte, mas não compreendia que ela era também uma
O historicismo rankiano afirmava que esse critério era ministrado pelos forma de cognição. Fazia-se necessária, portanto, uma crítica ao aparato con­
documentos, mas um grande romancista romântico poderia conhecer os docu­ ceptual do materialismo e do idealismo, pelo qual era dada uma forma dema­
mentos tão intimamente quanto o historiador, poderia ter incluído em sua siado restritiva ao conhecimento histórico. Ao transferir o aparato conceptual
narrativa tudo o que aparecia nos documentos sem nada omitir e poderia ter do materialismo da parte baixa do mundo para o alto, e o do idealismo do alto
recorrido à imaginação apenas para preencher os interstícios da narrativa, do mundo para a parte baixa, talvez fosse possível situá-los na faixa média da
suprir transições e articulações#e dar ao todo a forma agradável exigida por seus existência - entre a matéria e a mente - onde o homem operava e fazia sua
leitores. Além disso, não tinha o próprio historiador de suprir transições e história, revelá-los como as generalizações sociológicas e os universais filosóficos
396 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 397

que respectivamente eles eram e desse modo estabelecer-lhes as funções cor­


retas na expressão dos juízos históricos. No capítulo final da seção teórica de sua Estética, Croce empenhou-se em
justificar o subtítulo dessa obra: “Como Ciência da Expressão e de Linguística
Geral”. Os historiadores do pensamento histórico tendem a descurar a impor­
tância de um aspecto da obra de Croce sublinhando a noção “expressiva” de
A ESTÉTICA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA arte que é anunciada no subtítulo e desprezando as implicações do aspecto
“lingüístico”. Mas, embora seja importante enfatizar a concepção crociana da
Contra a teoria estética em voga no seu tempo, que contrapunha a arte à história como forma de arte, e da arte como forma de expressão (mais do que
ciência, filosofia e história, Croce tratou de estabelecer a arte como a base de como simples ação reflexa), é igualmente importante notar a insistência de
toda cognição, e por conseguinte como o momento primígeno em todas as Croce no que chamava “A identidade de lingüística e estética”. Como ele o
caracterizações da realidade - filosóficas, científicas e históricas indistintamen­ exprimiu no capítulo final da Estética'. filosofia da linguagem e a filosofia da
te. Mas seu escopo último era remover a história da posição ambígua, entre a arte são a mesma coisa” (234). Isso significa que, para Croce, a lingüística
arte de um lado e a ciência do outro, em que a tinham colocado os principais fornece o modelo pelo qual se há de entender o que queremos dizer com
teóricos da história do seu tempo. O que ele fez, evidentemente, foi retirá-la de “conhecimento histórico”. Pois, se a linguística oferece o modelo do que
uma posição ambígua, entre a arte e a ciência, apenas para colocá-la em outra, queremos dizer com arte, e a história é uma forma de arte, segue-se que a
entre a arte e a filosofia. lingüística nos dá um modelo para compreendermos o que se entende por
A história não é, insistiu Croce em sua Estética, um modo específico de conhecimento histórico. A teoria crociana da linguagem situa-se, então, no
consciência mas uma combinação de dois modos distintos, consciência artística centro de toda a sua filosofia da história.
e consciência filosófica. Para defender essa concepção da história, Croce teve
A teoria da linguagem proposta por Croce é holística, organicista e em
de traçar uma distinção rigorosa, equivalente quase a uma oposição dualística,
última análise mimética. Como ele assinalou: “A expressão é um todo indivisível.
entre arte e filosofia, a arte não era senão intuição; a filosofia não era senão a
Nome e verbo não existem em si mesmos, mas são abstrações produzidas por
ciência dos puros conceitos. Os historiadores empregavam conceitos para dar
destruirmos a única realidade lingüística, que é a proposição” (240). Isso
forma e ordem a suas intuições. Portanto, a história não tinha “forma” peculiar
significa que a pista para entendermos a linguagem é a sintaxe. Palavras, ou seus
a seus possíveis modos de expressão. Não era, de modo algum, uma “forma”.
componentes, fonemas e morfemas, ou regras gramaticais não fornecem a chave
para entendermos a linguagem; chave que é fornecida só pelas orações comple­
A história não é forma, mas conteúdo: como forma, não é senão intuição ou fato estético.
tas, ou seus equivalentes.
A história não busca leis nem forma conceitos; não emprega indução nem dedução; é dirigido
ad narrandum, non ad demonstrandum; não constrói universais e abstrações, mas enuncia Pelo termo “proposição” Croce dizia entender “um organismo expressivo
intuições [44].
de sentido completo, desde uma exclamação a um poema” (Ibid.). E passou a
argumentar que a língua é idêntica à fala, que é impossível distinguir adequa­
Isso não queria dizer que os historiadores não “usavam” conceitos; tinham damente entre as regras formais da língua e a fala efetivamente usada no
de usá-los a fim de “enunciar” intuições, isto é, construir proposições acerca do discurso: “As línguas não têm realidade para além das proposições e dos
que de fato sucedera no passado. Mas essa era uma função do fato de que o conjuntos de proposições realmente escritas e proferidas por determinados
historiador tinha de empregar a linguagem e, além disso, o discurso em prosa povos durante períodos definidos” (241). Daí ele concluiu que é impossível
de preferência a expressões poéticas, para exprimir suas verdades. O importan­ construir uma gramática normativa para qualquer língua, uma língua modelo
te era que a história não buscava leis, não formava conceitos, não construía para todas as línguas, ou uma classificação das línguas. Chegou mesmo a
universais nem abstrações. Utilizava os conceitos da linguagem corrente para sustentar que é impossível a “tradução” de uma língua para outra, ou de uma
caracterizar seus dados, para contar suas estórias, ou construir seus dramas. proposição de uma forma de expressão para outra, porque a única realidade
Mas esses conceitos, como Croce esclareceu na Estética, nada mais eram do que lingüística é aquela que é falada por falantes individuais daquela língua na
as regras de gramática e sintaxe necessárias para a construção de orações construção de proposições completas.
expressivas na linguagem corrente. Confundir essas regras com leis, universais
ou abstrações, e, mais particularmente, imaginar que essas regras podiam ser Não há duas proposições que sejam idênticas, visto que a elocução de
extraídas das narrativas de fato escritas, para servir de base a uma putativa qualquer palavra retroativamente “transforma” os sentidos de todas as palavras
ciência da história, era não somente interpretar mal a natureza do conhecimento que vieram antes dela (238). Isso quer dizer que as línguas se desenvolvem por
histórico mas também revelar profunda incompreensão da natureza da lingua­ meio de algo semelhante àquele processo de confisco e reinterpretação que
gem. Nietzsche dizia ser o aspecto mais importante da compreensão histórica de
todos os processos tanto na natureza quanto na história.
HAYDEN WHITE META-HISTÓR1A 399
398

Essa teoria da linguagem tem implicações importantes para o entendi­ E o mesmo se aplica às obras históricas. Cada obra nova representa uma
mento da estética de Croce e, a fortiori, de sua teoria da história, porquanto complementação das possibilidades de expressão dos protocolos lingüísticos da
dirige a atenção para as dimensões sintáticas de ambas - isto é, para as regras forma de expressão dita “histórica”, essa combinação de arte e filosofia através
de combinação pelas quais as unidades básicas do sistema lingüístico (lexical e da qual as intuições são simultaneamente afirmadas e julgadas sob as categorias
gramatical) e do sistema histórico (homens enquanto indivíduos e seus agrupa­ do provável ou verossímil. A história se interessa não por possibilidades mas
mentos institucionais) devem ser compreendidas como processos dinâmicos. por realidades, pelo que realmente sucedeu. Por conseguinte, requer algum
Normalmente tais regras de combinação são concebidas como ‘Íeis” lingüísticas critério pelo qual seja possível distinguir as intuições imaginadas das intuições
ou sociais, conforme o caso. Mas Croce recusava-se a admitir que a sintaxe reais. As exposições históricas não são simplesmente expressões de uma intui­
linguística fosse compreensível como operação “normativizada”. Todo o uso ção, mas expressões de intuições de realidades, ou, para sermos mais precisos,
lingüístico é “transformador da norma” por sua própria natureza. Croce obli­ de realizações. A história ocupa-se de eventos reais, de fatos, e não de eventos
terou a distinção entre língua e fala. A única língua que existe é a que é imaginados. Portanto exige uma sintaxe própria para delinear suas explanações
efetivamente falada. E a elocução de qualquer oração é tal que sempre altera em torno do que os fatos significam. E essa sintaxe não é senão o conjunto de
toda a dotação lingüística da comunidade de fala em que é proferida, da mesma regras do discurso em prosa corrente da cultura ou civilização a que o próprio
maneira que, na elocução de uma oração, cada palavra sucessiva transforma historiador pertence.
retroativamente a função de todas as palavras vindas antes dela até que se ponha
De algum modo que não está claro, a língua corrente simboliza para Croce
no fim um ponto final ou de exclamação. A oração assim criada constitui um
a memória da sabedoria da raça. Só se pode dizer dos eventos históricos o que
universo fechado de significação, cujo sentido nada mais é do que a forma de
é possível dizer no discurso em prosa corrente da língua materna. E Croce, como
sua elocução.
Wittgenstein mais tarde, mas com outra intenção, sustentou que o que não pode
Assim, também, em sua teoria da arte como intuição (percepção), que é ser dito não pode ser dito; e tampouco pode ser assobiado ou dançado. Essa é
ao mesmo tempo expressão, e como expressão, que é ao mesmo tempo uma a base da hostilidade de Croce a todas as formas de jargão ou linguagem técnica
intuição, onde não há intuição não pode haver expressão, e vice-versa. O sentido que poderiam ser introduzidas numa explanação histórica. Muito mais do que
da obra de arte é a forma que ela finalmente assume quando o artista a dá por caracterizar uma simples confusão de ciência, filosofia ou religião com história,
concluída. Ela não tem sentido fora de si mesma; épura expressão, a represen­ a introdução de qualquer forma de terminologia artificial no discurso histórico
tação de uma intuição regida apenas pela idéia do que é imaginavelmente caracterizava para ele uma prova inegável de analfabetismo historiográfico, uma
possível. Pode ser um produto de pura fantasia ou uma tentativa de expor uma falta de entendimento da sintaxe do discurso histórico, uma falência da fé na
reação imaginativa à realidade externa. Não cabe, portanto, indagar do objeto capacidade da linguagem corrente para representar o mundo real efetivamente
de arte se é “verdadeiro” ou “bom” ou “útil”, mas somente se é “belo”. E o estendido diante da consciência como um conjunto de realizações concretas ou
critério de beleza que aqui se invoca é precisamente o mesmo que o usado para questões de fato.
determinar se uma oração é expressiva ou não - isto é, se expressa uma intuição
adequadamente ou não. O filósofo poderia refletir sobre o pensamento tal como é expresso na
linguagem e discorrer sobre a natureza dos conceitos graças aos quais o pensa­
Cada obra de arte está para todas as outras obras de arte precisamente mento construiu sistemas coerentes e logicamente consistentes de explicação e
na mesma relação que todas as orações já proferidas estão para todas as outras entendimento. De fato, na lógica, que Croce definiu como a ciência dos concei­
orações. Podemos perguntar apenas se era possível proferir tal oração e, se era tos puros, o filósofo possuía uma metodologia e uma sintaxe para a expressão
possível proferi-la, como ela influencia, modifica, altera ou aumenta as possibi­ das verdades conceptuais descobertas por tal reflexão, vérités de raison em
lidades sintáticas do protocolo lingüístico que todo um conjunto de formulações oposição às vérités de fait de que se ocupa o historiador. Mas a aplicação das
artísticas representam. verdades derivadas pela análise lógica de conceitos puros às verdades derivadas
Toda nova obra de arte representa uma redefinição retroativa de todas as pela intuição de fatos concretos, a fim de enquadrá-los à força nos padrões de
obras de arte que a precederam, pois representa - se verdadeiramente é uma encadeamento lógico fornecidos pela reflexão filosófica, não produzia senão
obra de arte e não uma descontrolada ejaculação de emoções - uma contribui­ erros, monstruosidades ou fantasias. Todos os erros em história, não menos do
ção para nosso conhecimento do que esse protocolo lingüístico é capaz de que na crítica de arte, começam, dizia Croce, “quando tentamos deduzir a
permitir aos artistas expressar. Assim, cada nova obra de arte representa uma expressão do conceito” (59). Podemos encontrar “semelhanças” entre obras de
complemcntação de nosso conhecimento do que é possível ao espírito humano arte isoladas, mas essas são “semelhanças de família” (119), não genéricas ou
imaginar e é, portanto, uma justificação adicional de nossa fé em nossos poderes típicas. Em história, como na arte, simplesmente “empregamos vocábulos e
imaginativos. frases; não estabelecemos leis e definições” (63).
400 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 401

Essa concepção do discurso em prosa corrente como paradigma do comparação com o número de ocasiões em que apreende a verdade” (Ibid.). E
discurso histórico constitui nada menos do que uma defesa do senso comum isso permitiu a Croce concluir:
como a “teoria” ou o “método” da síntese histórica. Fornece não apenas um
modelo da forma que todas as exposições históricas devem assumir mas também Por isso é que o senso comum (buon senso) tem razão, contra os inteiectualistas, de acreditar
um modelo da natureza de todo o processo histórico. O processo histórico é na história, que é, não uma “fábula convencionada”, mas aquilo que o indivíduo e a humanidade
recordam de seu passado [TbzW.].
como uma oração ainda em processo de articulação. Vivemos, por assim dizer,
dentro de uma oração cósmica ainda não concluída, cuja significação última
ainda não podemos conhecer, uma vez que não sabemos que “palavras” serão Podia-se, “num espírito de paradoxo”, duvidar de que a Grécia ou Roma
proferidas no futuro, mas cuja ordem e harmonia podemos inferir de nossa tivesse existido, ou de que Alexandre tivesse vivido ou de que uma Revolução
tivesse estourado em 14 de julho de 1789, na França. Mas contra tal dúvida
capacidade de compreender o que tem “sido falado” até agora de acordo com
Croce levantava a seguinte objeção: “ ‘Que prova dás tu de tudo isto?’, pergunta
os cânones do senso comum e da nossa aptidão para caracterizar “o que
o sofista, ironicamente. A humanidade responde: ‘Eu me lembro’ ” (49).
aconteceu” na fala habitual. O que podemos derivar da reflexão sobre as
Isso não equivale inteiramente a dizer, com os autores de 1066 and All
palavras que já foram pronunciadas é a gramática e a sintaxe daquele “espírito”
que se manifesta e, por assim dizer, fala através do pensamento e da ação That, que os únicos fatos importantes são aqueles que a gente pode recordar,
mas aproxima-se bastante disso. Na verdade sugere, ao ligar o saber histórico
humana, embora distinguir entre esse “espírito” e suas manifestações no pen­
ao senso comum e à memória comum, que a única coisa que pode importar
samento e na ação humana fosse um erro, na perspectiva de Croce, análogo
como fato histórico é o que o próprio senso comum pode reconhecer como
precisamente àquele erro que aparece quando tentamos distinguir entre o que
“autêntica” intuição da “verdadeira” realidade. Não isenta totalmente a refle­
uma obra de arte é e o que ela significa. Seu ser é seu significado.
xão histórica de qualquer obrigação para com os princípios críticos da filosofia
E assim como é no reino da arte, é no reino do ser histórico. Os homens e da ciência, em especial na medida em que Croce expressamente concedeu à
são o que pensam, sentem e fazem; o que pensam, sentem e fazem é sua filosofia o conhecimento do mundo numenal configurado nos fenômenos reco­
história. Essa história é a única “natureza” que eles têm. E o único significado nhecidos pelo senso comum como realidade histórica, mas chega quase a isso
que sua história tem há de ser encontrado no que a memória conserva daquilo também. O fato é que o pensamento histórico é definitivamente desligado do
que pensaram, sentiram e fizeram e do que o historiador, refletindo sobre as gênero de operações tipológicas que associamos às ciências sociais por um lado
memórias do passado, é capaz de dizer acerca do que pensaram, sentiram e e do tipo de análises nomológicas que associamos às ciências físicas por outro
fizeram em termos aceitáveis pelo senso comum e exprimíveis no discurso lado (48 e ss.). Esses dois tipos de compreensão são relegados à condição de
culto corrente. Os únicos princípios críticos que o historiador pode usar na algo que é diferente do senso comum, o que certamente eles pretendem ser, mas
construção de suas narrativas, e os únicos princípios críticos que podem ser ao mesmo tempo lhes é vedada a entrada na reflexão histórica ou são nela
invocados para aferir-lhes a conformidade, são os da “verossimilitude e da admitidos apenas como formas de erro.
probabilidade” (47). “A verdadeira ciência”, disse Croce, “não pode ser senão a filosofia.” As
ciências naturais “não [são] ciências perfeitas; são conjuntos de conhecimentos,
arbitrariamente abstraídos e fixados” (49). Os “conceitos de ciência natural são,
sem dúvida, utilíssimos, mas não se pode extrair deles aquele sistema que
A NATUREZA DO CONHECIMENTO: pertence exclusivamente ao espírito” (50-51). Daí concluiu Croce que as únicas
A JUSTIFICAÇÃO DO SENSO COMUM “formas puras e fundamentais de conhecimento são duas: a intuição e o concei­
to; ou a arte e a filosofia (52). A história tem um lugar entre essas duas formas
A análise histórica nada mais é do que a tentativa de determinar qual é o puras de conhecimento, sendo, “por assim dizer, o produto da intuição posto
testemunho mais fidedigno. Mas, perguntou Croce, qual é “o testemunho mais em contato com o conceito, isto é, da arte que acolhe em si mesma distinções
fidedigno senão o dos melhores observadores, isto é, daqueles que mais recor­ filosóficas, embora permaneça concreta e individual”. Todas as outras formas
dam e (fique subentendido) não desejam falsificar” (Ibid.). E daí se segue, de conhecimento são, insistiu ele, “impuras, estando mescladas com elementos
admitiu ele, que as razões do cético histórico se tornam plausíveis, uma vez que estranhos de origem prática” (Ibid.).
a certeza da história não é “nunca a da ciência” (48). A certeza do historiador E, de fato, sustentou Croce que todas as generalizações científicas se
é digna de consideração, mas é indemonstrável. “A convicção do historiador é compõem de pseudoconceitos, ao passo que todos os conceitos sociocientíficos
a convicção indemonstrável do jurado, que ouviu as testemunhas, escutou consistem em pseudotipificações. Quanto à natureza do mundo real, ele acre­
atentamente os argumentos e pediu ao Céu que o inspirasse. Às vezes sem ditava somente no que o senso comum lhe concedia acreditar - a saber, que há
dúvida ele se equivoca, mas os equívocos são numericamente insignificantes em apenas entidades individuais no universo e que todas as caracterizações daque­
402 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 403

las entidades que afirmam qualquer coisa mais do que aquilo que o senso mo, e assim por diante. Por fim, porém, disse ele, todos esses dualismos foram
comum e o discurso corrente permitem dizer acerca delas são “fictícias”. A transcendidos numa nova filosofia, que fornecerá a base para uma “nova
história não é “uma fábula convencionada”, está claro, mas os “mitos” religio­ historiografia”.
sos, as “leis” científicas e as “generalizações” sociocientíficas são “fabulosas” ' Essa nova filosofia outra coisa não era, evidentemente, que a própria
por natureza. O máximo que podem pretender é a conveniência ou utilidade “Filosofia do Espírito” de Croce, que ele vinha refinando numa sucessão de
para a realização de certas tarefas práticas. A autoridade delas é limitada, livros e artigos desde o início da década de 1890. Croce caracterizou essa
portanto, temporal e espacialmente de um modo que as narrativas históricas filosofia no fecho do seu livro sobre teoria histórica. Apresentou-a como uma
não são. Como a grande arte, a grande história (a história que é o produto de visão de mundo que resolve todos os paradoxos ao simplesmente identificar seus
uma nobre intuição) é eternamente válida. elementos conflitantes como diferentes aspectos ou momentos de um único
A grande história é eternamente válida, mas inevitavelmente imperfeita. “espírito”. Assim, parece fornecer a base para uma concepção cômica da
Além disso, é manietada de forma decisiva, pois Croce não admitia que o história. Por exemplo, Croce escreveu:
conhecimento histórico pudesse contribuir significativamente para qualquer
outra coisa que não fosse o nosso conhecimento do passado. Jamais poderá Na filosofia que temos delineado, a realidade é afirmada ser espírito, não do gênero que
emitir qualquer juízo de natureza especificamente histórica sobre “o presente”, está acima do mundo ou vagueia pelo mundo, mas que coincide com o mundo; e a natureza tem
porquanto o próprio historiador existe sempre no interior de um processo que sido apresentada como um momento e um produto desse mesmo espírito, e assim o dualismo (ao
menos aquele que vem atormentando o pensamento desde Tales até Spencer) é suplantado, e a
se assemelha a uma oração incompleta. Aquela mesma combinação de senso transcendência de todos os tipos, materialista ou teológica em sua origem, foi suplantada também
comum, memória da raça e autoconsciência filosófica que autoriza o historiador com ele [312].
a expor com autoconfiança suas “intuições” do passado não pode ser usada para
formular um juízo sobre a natureza do mundo do próprio historiador, porque, Esse “espírito”, segundo Croce, tem todos os atributos tanto da natureza
no presente, como em todo o processo histórico, não há ação concluída que ele física quanto da consciência. É “ao mesmo tempo uno e diverso, uma solução
possa intuir ou perceber. eterna e um problema eterno, e sua autoconsciência é a filosofia, que é a sua
O próprio Croce manteve-se fiel a essa restrição. Todas as suas obras história, ou a história, que é a sua filosofia, cada uma substancialmente idêntica
históricas, recheadas de juízos dos tipos mais abrangentes e sobre os assuntos à outra” (Ibid.). Essa maravilhosa identificação de coisas ou conceitos que se
mais profundos, culminam em ambigüidade na medida em que se aproximam pensa serem antitéticos, ou mutuamente excludentes, decorre claramente do
do presente do historiador. E diga-se o mesmo das seções históricas de suas fato de que “a consciência é idêntica à autoconsciência - isto é, distinta e una
obras teóricas, como a Estética e Teoria e História da Historiografia. Nessas obras com ela ao mesmo tempo, como vida e pensamento” (312-13). Esse reconheci­
a história do pensamento acerca da estética de um lado e da história do outro mento da natureza unitária da consciência, do espírito e do conhecimento é o
é tratada com absoluta confiança, os períodos são delineados e caracterizados, que sancionava, na perspectiva de Croce, sua esperança de um renascimento
a natureza das transições de um para outro período é definida, e é explanado o ou transformação geral da consciência histórica, cuja prova Croce pretendia ver
sentido de todo o processo. Mas os capítulos conclusivos dessas obras acabam em torno dele - em sua própria obra, mas também na de outros, como Friedrich
sempre por louvar a “Filosofia do Espírito” do próprio Croce como o principal Meinecke.
repositório da sabedoria da filosofia e do senso comum para os vivos. E o que Mas, ao mesmo tempo, disse Croce, é impossível “escrever a história dessa
essa filosofia ensina é que nem a filosofia nem a história pode dar conselho sobre filosofia e dessa historiografia”, porque ele constitui o estilo ou a forma de vida
como viver a vida individual presente, salvo no imperativo categórico geral de de uma época inteira; e, desde que essa época, ou período, não está encerrada,
vivê-la de algum modo. mas está apenas começando, “não podemos traçar seu contorno cronológico e
geográfico, porque desconhecemos que duração terá, (...) [e] que número de
países abarcará” (313-14). Além disso, insistiu ele, “somos incapazes de limitar
A NATUREZA PARADOXAL DO CONHECIMENTO HISTÓRICO logjcamente qual poderá ser seu valor fora dessas considerações”, visto que o
homem do presente é incapaz ainda de descrever as limitações da nova filosofia
Assim, por exemplo, a mais importante contribuição de Croce para o e da nova historiografia, limitações que derivarão precisamente das soluções que
pensamento histórico, A Teoria e História da Historiografia, termina com um elas apontem para as questões ou problemas por elas delineados. “Estamos nós
paradoxo. No último capítulo do livro Croce passou em revista o pensamento mesmos sobre as ondas e não ferramos nossas velas em porto preparatório para
histórico do século passado, expondo os dualismos, antíteses e conflitos que nova viagem” (314).
caracterizaram os esforços no sentido de relacionar a história com a arte, Assim, a nova filosofia permite que os homens da época de Croce alimen­
reconciliar a história e a filosofia da história, mediar entre idealismo e positivis­ tem a expectativa de uma nova era de realização do pensamento e da cultura, e
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que inventem uma “nova historiografia” inteiramente superior a qualquer uma Croce vedou apenas aquilo que já tinha sido “transcendido”, isto é, os
que tenha existido antes dela. Mas ao mesmo tempo não lhes é permitido dirigir mitos do século XIX: ativismo, comunismo, transcendentalismo, chauvinismo
essa nova consciência histórica para o estudo de sua própria época. A consciên­ etc. Na década de 1920, porém, ele considerou a revivescência dessas formas
cia histórica avança porque pode contar com uma nova fase filosófica e teórica, de irracionalismo como prova de uma “energia” essencial, de uma vontade
mas, paradoxalmente, descobre-se que a prova de seu avanço reside no reco­ voltada para um futuro, e portanto como oportunidades para ações em prol de
nhecimento de que a consciência nada pode dizer a respeito da época em que uma nova vida para a “liberdade”. E sua história do século XIX se encerra
realiza esse avanço. O tom é cômico, mas cauteloso; o estado de espírito é fazendo soar uma nota já ouvida na Teoria e História da Historiografia - isto é,
otimista, mas condicional. A ironia é manifesta, mas indulgente. uma advertência no sentido de ser suspenso qualquer julgamento do todo
Essa concepção da condição da consciência histórica ocidental anteci­ enquanto se está lidando praticamente, nas condições do dia-a-dia, com seus
pou a caracterização crociana da cultura e da sociedade européias depois da vários aspectos.
Primeira Guerra Mundial. Sua Jfòtória da Europa no SéculoXIX (1931) trouxe
um epílogo em que ele se viu compelido a admitir que todas as forças da Tudo isso, em rápido escorço, não éprofecia, pois que isso nos é interditado a todos pela
violência, do sadismo, doir racionalismo e do egoísmo existentes no século XIX simples razão de que seria inútil; é apenas uma sugestão acerca dos caminhos que a consciência
pareciam ter reemergido da Primeira Guerra Mundial antes revigoradas que moral e a observação do presente podem delinear para aqueles que em seus conceitos diretores e
reduzidas. em sua interpretação dos acontecimentos do século XIX concordam com a narrativa dada deles
nesta história [362; grifos acrescentados].

Até o pessimismo e as vozes da decadência, que se faziam ouvir na literatura de pré-guerra,


fazem-se ouvir agora mais uma vez e estão pregando a derrocada do Ocidente ou mesmo da raça Outros, norteados por outros ideais, veriam a situação de maneira dife­
humana, que, após tentar elevar-se do animal ao homem, está prestes a recair (de acordo com os rente e por isso mesmo agiriam de outro modo. Seja qual for o caminho que
novos filósofos e profetas) na vida do bruto [353]. escolham, porém, “se o fizerem com uma mente pura, em obediência a um
comando interior, também estarão preparando bem o futuro” (Ibid.) Não se
Tudo isso era “um fato”, dizia Croce, e seria inútil negá-lo ou restringir pode censurá-los, qualquer que seja a trajetória que venham a escolher, pois:
sua importância a um único país, grupo social, ou círculo de intelectuais. Mas
justamente por ser “fato”, oferecia ensejo para esperança. Como fato, essa Uma história inspirada pela idéia liberal não pode, mesmo em seu corolário prático e moral,
concluir pela rejeição e condenação peremptórias daqueles que sentem e pensam de modo
situação “deve preencher uma função no desenvolvimento do espírito, no
diferente. Ela apenas diz aos que com ele concordam: “Trabalhai em conformidade com a diretriz
progresso social e humano, se não como criadora direta de novos valores, ao que aqui vos é traçada, com todo o vosso ser, cada dia, cada hora, em cada ato vosso; e confiai na
menos como material e estímulo para o fortalecimento, o aprofundamento e o divina Providência, que sabe mais do que nós, indivíduos, sabemos e opera conosco, dentro de nós
alargamento de antigos valores” (353-54). Essa “função”, porém, só podia ser e acima de nós”. Palavras como essas, que tantas vezes ouvimos e pronunciamos em nossa educação
vista por algum futuro historiador, “que verá diante de si, quando ela tiver e vida cristã, têm seu lugar, como outras da mesma fonte, na “religião da liberdade” [Ibid.].
alcançado o fim de seu período, o movimento em que estamos empenhados e
aquilo em que redundou”. Mas “isso não pode ser conhecido nem julgado por
nós pela simples razão de que estamos empenhados no movimento”. Seremos AS IMPLICAÇÕES IDEOLÓGICAS DA
capazes, disse Croce, de observar e entender “muitas coisas”, mas não podemos IDÉIA DA HISTÓRIA DE CROCE
nunca perceber “aquela que ainda não ocorreu e cuja história conseqüentemen-
te não nos é dado conceber” (354). Croce foi muito criticado por liberais, radicais e até conservadores em
Assim, parece que, embora saibamos que representamos uma nova era virtude da ambigüidade de sua postura moral a respeito das “novas forças” que
tanto na consciência quanto na prática, estamos impedidos, em virtude de dominavam a vida de seu tempo, em especial o fascismo, a que ele resistiu com
nossa participação nela, de saber em que poderia consistir essa nova era. Não seu exemplo mas que não podia condenar de forma inequívoca por princípio.
podemos emitir nenhum juízo digno de confiança sobre a época em que nós Por ser um “fato”, o fascismo tinha portanto de ser considerado um fator na
mesmos somos atores ou protagonistas. De mais a mais, Croce dizia que não nova vida que presumivelmente tomaria forma “para além” de sua vida transi­
importa que estejamos tão limitados em nossa faculdade de emitir juízo. O que tória. Qual, perguntavam seus críticos, era a utilidade de uma “autoconsciência”
“importa” é que era ao mesmo tempo “filosófica” e “histórica”, se não podia enunciar
nenhum juízo sobre nada que não fosse eterno por um lado e passado, por outro,
que devemos tomar parte em [nossa própria época histórica] não por meio da contemplação do e que conferia a qualquer um a autoridade de agir como bem entendesse no
que não pode ser contemplado, mas por meio da ação de acordo com o papel que cabe a cada um presente, com base na convicção de que, fizesse o que fizesse, desde que agisse
de nós e que a consciência determina e o dever impõe [Ibid.]. com suficiente convicção “interior”, estaria em última análise contribuindo para
406 HAYDENWHITE META-H1STÓRIA 407

uma vida mais livre no futuro? Que acontecera à certeza moral e ao otimismo fatos históricos, e as generalizações imaginadas pudessem fazer-se acompanhar
do filósofo que anunciara antes da guerra o nascimento de uma nova consciên­ de pretensos exemplos colhidos na história para ilustrar esses princípios, na
cia, superior a qualquer coisa produzida no século XIX pelo fato de ter realidade, sustentou Croce, não se podia nem conceptualizar a história nem
suplantado todo dualismo e toda transcendência? generalizar a partir dela. O conhecimento histórico não era senão conhecimento
O fato é que os críticos de Croce deixaram de registrar adequadamente a de eventos particulares do passado, dados elevados ao estatuto de conhecimen­
restrição que ele havia feito à capacidade da filosofia para conhecer a realidade to pelo historiador, que os identifica como classes de fenômenos, e organizados
e ao poder da história de representá-la verazmente. Na conclusão de sua Teoria como elementos de uma narrativa. Como tal, a história era uma combinação de
e História da Historiografia, Croce negou que os homens pudessem julgar com conhecimento filosófico (conhecimento de conceitos) e arte (intuições de par­
alguma certeza o caráter de sua própria época. Em sua Filosofia da Prática, o ticularidades).
presente é submetido ao domínio do quarto dos “momentos” em que o espírito Os relatos históricos nada mais eram do que séries de afirmações existen­
se manifesta de outro modo que não seja como o bom, o verdadeiro e o belo. ciais, do tipo “algo aconteceu”, encadeadas de maneira a constituir uma narra­
Croce chamava esse quarto momento do espírito, que em sua opinião era sua tiva. Assim, eram, primeiro, identificações (do que aconteceu) e, segundo,
contribuição mais original para a filosofia, o momento do “prático”. No viver representações (de como as coisas aconteceram). Isso queria dizer, finalmente,
cotidiano de suas vidas os homens não podiam esperar orientação alguma da que a história era uma forma especial de arte, que diferia da arte “pura” em
arte, da filosofia, da história ou da ciência. Tinham de reger-se pela apreensão virtude do fato de que o historiador utilizava as categorias de “real-irreal” além
de seus próprios interesses, necessidades e desejos, reger-se só por sua intuição das categorias artísticas normais de “possível-impossível”. O historiador como
da “praticidade” ou “impraticidade” de qualquer projeto que pudessem estar dispensador de conhecimento podia fazer uso do pensamento apenas até a
examinando como linha de ação. A sensibilidade artística entregava-lhes o declaração de que tal coisa tinha acontecido ou não tinha acontecido. Ele não
mundo que tinham diante de si em “intuições” ou percepções individuais podia nunca discorrer sobre o que poderia ter acontecido no passado se isso e
organizadas como formas. A ciência lhes permitia organizar essas intuições sob aquilo não tivessem acontecido e, mais importante, sobre o que poderia ainda
as categorias de relações de causa e efeito para a execução de certas tarefas acontecer no futuro se alguém fez isso e aquilo no presente. O historiador nunca
práticas. A filosofia, ciência dos conceitos puros, dava-lhes os poderes críticos falava no indicativo presente ou no subjuntivo, mas só no pretérito perfeito
para utilizar essas intuições para outros fins, não-práticos, puramente intelec­ simples (mais precisamente, no aoristo grego) e no modo declarativo.
tuais. O conhecimento histórico autorizava-os a contemplar os esforços huma­ Embora o poeta organizasse suas intuições em função das categorias de
nos anteriores a fim de compreender o mundo e agir nele e contra ele, e possibilidade/impossibilidade, o historiador organizava suas intuições sob as
proporcionava-lhes o material para o estudo das operações do pensamento e categorias de probabilidade/improbabilidade, mas estas eram as únicas diferen­
da ação humana em diferentes épocas, lugares e circunstâncias de modo a ças. A classe de assunto (intuições) era a mesma para ambos, e os objetivos (a
permitir generalizações acerca da natureza da consciência (ou espírito) em representação dessas intuições) eram semelhantes. Porque o meio de represen­
termos conceptuais (filosóficos). tação (a linguagem) era o mesmo, os “métodos” eram idênticos. O método que
Mas a história não podia ministrar orientação para a ação no presente, a poesia compartilhava com a história não eram senão as regras sintáticas da
porque a história como forma de conhecimento era conhecimento apenas do fala corrente.
particular, nunca do universal, e nem mesmo do geral. Aqueles que tentavam As implicações dessa concepção do método histórico eram realmente
generalizar acerca de todo o conjunto de fatos particulares que compunham o significativas para o debate sobre a história em que Croce entrou no início da
relato histórico, por abstração ou agregação estatística, à maneira dos sociólo­ década de 1890. Essa noção de método histórico implicava que o conhecimento
gos, na verdade empenhavam-se numa forma pseudocientífica de reflexão. Suas histórico não podia ser usado para iluminar situações presentes ou dirigir a ação
generalizações tinham de ser aferidas no plano das considerações práticas que no futuro. A consciência histórica não podia, à la Hegel, servir como o espaço
os impeliam a sistematizar um dado grupo de fatos de um modo e não de outro. de mediação entre interesses particulares e públicos, entre tradição e desejo
A relevância de tais generalizações, então, não era histórica, e sim apenas presente, entre elementos inovadores e conservadores na ordem cultural vigen­
sociológica. te. Não podia, à la Marx, ser invocada como meio de obtenção de uma perspec­
Mais ou menos a mesma coisa se podia dizer dos que tentavam submeter tiva sobre a verdadeira natureza da situação social ou histórica corrente para
os dados da história à conceptualização de maneira a extrair um conteúdo que se pudesse avaliar o relativo “realismo” de programas alternativos de ação
“universal” de sua forma fenomênica como um caos, seguindo os passos de naquele presente. E não podia, à la Nietzsche, fornecer os alicerces para uma
Hegel ou Comte. Aqui, também, o tipo de autoridade a que realmente se construção ficcional do mundo com base na qual os impulsos exagerados ou
recorria era não-histórica, e especificamente filosófica. Muito embora os prin­ suplantadores da vontade fossem liberados para realizar sua obra de construção
cípios conceptuais organizadores da análise pudessem ser dirigidos para os ou destruição, conforme o caso.
408 HAYDENWHITE META-HISTÓRL4 409

A história não “ensinava” coisa alguma, dizia Croce; e a única coisa que totalitários do século XX, consideraram naturalmente essa posição como mo­
a teoria da história podia legitimamente ensinar era que a história, embora desse ralmente agnóstica ou como um movimento tático que visava desacreditar a
informação sobre o passado, não sabia dizer nada a respeito da verdadeira historiografia “científica” da esquerda marxista. E assim parece na minha
natureza do mundo presente. Podia oferecer vislumbres do que estava vivo e do perspectiva. Mas cumpre lembrar que o objetivo de Croce na época era preci­
que estava morrendo em qualquer época passada, mas nada podia dizer acerca samente despojar a história da autoridade que lhe era reconhecida por todos os
do que estava vivo e do que estava morto na época presente. Os homens setores do espectro ideológico e recambiar os estudos históricos à condição de
poderiam determinar o que era criativo e o que era destrutivo em sua própria uma forma de cognição importante, mas, em última análise, de segunda ordem.
época com base em preocupações pessoalmente aceitas sobre o que o mundo Esse objetivo servia bem aos interesses de classes e grupos sociais estabelecidos,
era ou devia ser, no plano econômico, religioso, filosófico, político ou psicoló­ para os quais qualquer análise conceptual dos processos sociais e históricos
gico; mas jamais poderiam encontrar, recorrendo à história, alguma justificativa constituía uma ameaça na medida em que poderia permitir a formulação de
para qualquer linha de ação. qualquer juízo sobre o que consideravam como sua posição e seus privilégios
O estudo que o homens encetam sobre o passado, a história, talvez até “naturais”. Se se pudesse desembaraçar a história da polêmica política, da
tivesse origem em algurii interesse, problema ou preocupação presente; de fato, ciência, da filosofia em suas formas tradicionais, e também da religião, e
afirmou Croce, todo interesse pelo passado era uma função de tais preocupa­ devolvê-la ao santuário da “arte”, seria possível domesticá-la como fator nos
ções ou problemas presentes. Mas na medida em que tais preocupações e conflitos ideológicos correntes.
problemas ditavam a forma que o conhecimento do passado assumia numa Mas, para que essa domesticação fosse eficaz, era necessário domesticar
narrativa histórica, só podiam gerar erros. a própria arte, extirpar-lhe os impulsos “dionisíacos” que Nietzsche pusera no
Ainda que pudesse tomar as preocupações presentes como ponto de centro mesmo da sensibilidade artística. Assim, a domesticação do pensamento
partida para suas investigações do passado, o historiador não estava autorizado histórico que Croce levou a cabo exigiu, finalmente, a defesa de uma estética
a deduzir do estudo do passado quaisquer conclusões gerais ou a extrair que era totalmente incapaz até de reconhecer como arte toda a realização do
implicações do passado para o presente. Pois, uma vez que o conhecimento pós-impressionismo na pintura e do movimento simbolista em literatura. Croce
histórico não era senão conhecimento do particular apresentado num apanhado mostrou como a reflexão histórica podia libertar-se de uma atitude irônica com
narrativo do que de fato sucedera no passado, não se podiam inferir conclusões relação ao passado, como podia tomar-se ingênua, até pietista, no que concernia
gerais de seu estudo salvo talvez a conclusão manifestamente irônica de que ao passado, mas só à custa de forçar o historiador a assumir a mais extrema
ironia com respeito a tudo em seu próprio presente social e cultural.
a história não é cxatamcnte um idílio, tampouco é uma “tragédia dc horrores”, mas sim um drama
no qual todas as ações, todas as personagens, todos os componentes do coro são, no sentido
Isso levou muitos dos seguidores de Croce a concluir que a sua era uma
aristotélico, “medíocres", culpados-inculpados, mistos dc bem e de mal [Hist as the Story ofLiberty, teoria puramente relativista do conhecimento histórico, uma vez que, embora
60; trad. bras., 50). o produto final fosse “filosófico” quanto à natureza, as intuições originais em
que esse conhecimento se baseava eram “artísticas”. Mas as intenções de Croce
Ou, como Croce escreveu em Teoria e História da Historiografia: estavam bem longe de entronizar o relativismo no lugar do empirismo ingênuo
do historiador convencional por um lado e as especulações meta-históricas dos
Não só (...) é a história incapaz de discriminarcntre fatos que são bons c fatos que são maus, filósofos da história por outro. Suas principais batalhas filosóficas se davam no
e entre épocas que são progressistas e aquelas que são regressistas, como não começa enquanto terreno da teoria estética. Do princípio ao fim, o escopo de Croce foi redefinir
tais antíteses não são ultrapassadas e substituídas por um ato de espírito que procura averiguar a natureza das percepções artísticas de modo a constituí-las como a base de
que função o fato ou a época anteriormente condenada preencheu ~ isto é, o que produziu de seu
no curso do desenvolvimento e portanto o que produziu. E desde que todos os fatos e épocas são
qualquer conhecimento que os homens pudessem ter do mundo real.
produtivos à sua maneira, não só não se há de condenar nenhum deles à luz da história como todos Isso explica em parte a extrema hostilidade, raiando pelo desprezo, que
devem ser enaltecidos e venerados [90; grifos acrescentados). Croce demonstrou por Burckhardt em sua A História: Pensamento e Ação
(1938), hostilidade que era muito maior do que aquela que revelou por Ranke,
Ao estetizar a história, Croce deseticizou-a, embora, está claro, acreditas­ condenado apenas pela ingenuidade de seu entendimento “filosófico”. Burck­
se que a tinha alçado ao nível de autoconsciência moral que era o mais alto a hardt não errara ao conceber a história como uma forma de arte; errara em sua
que podia aspirar um homem de estudos, e achava que a tinha elevado a uma concepção do que era a arte ao vê-la como uma forma de jogo ou narcótico. Em
situação “para além do bem e do mal” e que de fato a havia desideologizado certo sentido, então, o inimigo primeiro de Croce era Nietzsche e seu gênero
permanentemente. de filósofo, que interpretou mal a natureza da arte, encarando-a como fantasia
Mais recentemente, filósofos da história, operando sob a sentida necessi­ ou bebida inebriante, e que, por conseguinte, atraiçoou sua quase sempre
dade de aduzir alguma condenação historicamente justificada dos regimes verdadeira percepção da base “artística” de todo conhecimento.
410 HAYDENWHÍTE META-HISTÓRIA 411

Posso agora caracterizar a natureza da crítica de Croce a todos os histo­ irracionalistas e intelectualistas da época pudessem ter pensado a respeito
riadores e filósofos da história que o precederam. Essa crítica seguiu o método deles.
de isolar na obra de um determinado historiador os elementos sinedóquicos Se a “Era Liberal” (1871-1914), parecia “prosaica”, disse Croce, era só
(tipológicos), metonímicos (causais) e metafóricos (poéticos) nela presentes; porque os intelectualistas, irracionalistas, socialistas e decadentes eram incapa­
de determinar os papéis que esses modos de consciência desempenhavam ao zes de apreciar as realizações do homem comum, que fazia o que podia para se
ditar a forma da narrativa e seu conteúdo; de designar esses modos de concep- desincumbir de suas tarefas e deveres diários. Se “falsos ideais” tinham passado
tualização como as causas de desvio do historiador do seu devido papel de autor a predominar na vida prática, isso se devia em grande parte à incapacidade dos
de narrativas constituídas de fatos concretos por um lado e senso comum guiado intelectualistas e críticos, dos poetas e filósofos da época, para acolher calorosa
por princípios filosóficos apropriados (crocianos) por outro; e, finalmente, de e solidariamente os portadores da vida prática do tempo (History of Europe,
diferenciar entre o “o que está vivo” e “o que está morto” no pensamento do 323). “Falsos ideais”, “irracionalismo”, “enfraquecimento espiritual” e “confu­
historiador ou filósofo da história em estudo. Esse princípio crítico no nível da são interior” “poderiam ter sido superados pela crítica e a educação” ou
epistemologia deu a Croce um critério para identificar erros de elaboração de poderiam ter simplesmente “se extinguido”, não lhes houvessem insuflado nova
enredo. Ao narrador é permitido pôr em enredo o processo histórico não como vida as rivalidades imperialistas da cena internacional (Ibidfy
se fosse uma estória romanesca, uma tragédia ou uma sátira, mas só como se Assim, a Primeira Guerra Mundial não apareceu como um acontecimento
fosse uma comédia vazada no tom da ironia, comédia irônica, ou sátira cômica, “epocal”, mas sim como resultado da combinação de um mal-estar moral
conforme o caso.
generalizado, por um lado, e das operações de uma irracional vontade de
A forma apropriada de toda elaboração de enredo histórico é cômica na potência, por outro. E, longe de ser uma nova mudança de rumo nas questões
medida em que o historiador é coagido sempre a mostrar o que vivia e crescia, européias, a guerra, “que fora anunciada aos povos com a promessa de uma
reproduzia-se e germinava, mesmo nas circunstâncias mais “decadentes”; deve catarse geral, em seu curso e em seu fim foi completamente infiel à sua
escrever sobre o que lograva continuar vivo, mesmo nas condições mais opres­ promessa” (350). Assim, a própria guerra não foi trágica, nem na sua deflagra­
sivas. Deve mostrar que “na morte há vida assim como na vida há morte”, mas ção nem no curso que seguiu; foi apenas patética. Croce encarava-a, como
com ênfase mais no primeiro paradoxo do que no segundo, visto que a “história” encarava toda a história do século que a precedeu, como o pathos da ironia.
trata da vida e não da morte exceto como fator na vida. O elemento irônico Esse pathos era benevolente, porém, pois, em sua opinião, a guerra - como a
provém do fato de que “a vida é morte” também, e de que tudo o que nasce época que a antecedeu - oferecia outro “ensejo” ao esforço criativo. Como tal,
deve morrer, mas não tragicamente, porquanto a morte é um “fato” da vida e, devia ser (condicionalmente) respeitada e (condicionalmente) criticada a um
como todos os fatos, há de ser visto como “oportunidade” para a preservação só e mesmo tempo, que era tudo o que o historiador e o filósofo podiam fazer.
da própria vida.

Mas, por outro lado, o historiador não deve celebrar a “vida” com
excessivo entusiasmo, não deve pôr em enredo suas histórias como se tivessem O MÉTODO HISTÓRICO APLICADO:
sido alcançadas ou pudessem algum dia ser alcançadas resoluções reais e O EFEITO DOMESTICADOR DA IRONIA
duradouras dos conflitos sociais. Croce recusava-se a começar ou terminar suas
principais obras históricas com reflexões sobre o que outros historiadores
chamariam de eventos “epocais”, no sentido rigoroso desse termo, epokhê, Explicação como senso comum, elaboração de enredo no modo da comé­
“parada, estação, ponto/Zro no tempo”. Suas histórias - como as de Burckhardt dia irônica - estas representam a essência da idéia da história de Croce. Os
- são exclusivamente transição, moderadas, gradualísticas, baixo-miméticas e vieses antiintelectuais e anti-radicais são evidentes. Essa idéia da história inspira
não primam por eventos inaugurais ou resoluções dignas de nota. a crítica crociana a todos os grandes filósofos da história que o antecederam,
dos quais os mais importantes eram, em sua opinião, Hegel e Vico, que
Por exemplo, sua História da Europa no Século XIX começa após a queda representavam exemplos dos erros de reflexão histórica “filosófica” e “poética”
de Napoleão, na atmosfera morna da Restauração, e finda antes da Primeira respectivamente. Mas antes que se aventurasse na crítica a Hegel e Vico, Croce
Guerra Mundial, na atmosfera igualmente morna da era eduardiana. Era se defrontou com Marx, que representava, no seu entender, o esforço mais
intenção de Croce destruir a impressão de que está em ação algum processo pernicioso de construção de uma história “científica” no pensamento do século
teleológico, como os associados aos mithoi da estória romanesca, da comédia e XIX. As diferenças entre o modo como Croce se houve com Marx, de um lado,
da tragédia. O efeito era tornar desimportante tudo o que os “entusiastas” e o modo como ele se ocupou de Hegel e Vico, do outro, são instrutivas.
julgavam importante, e elevar os aspectos mais insípidos e mais mundanos da Demonstram a natureza essenciaímente domesticadora de todo o seu pensa­
vida cotidiana ao estatuto de autênticas realizações, contra o que quer que os mento sobre a história.
412 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 413

CROCE CONTRA MARX sante basicamente porque iluminava a relação entre trabalhadores e proprietá­
rios na sociedade capitalista - isto é, em virtude de sua informação histórica
Croce começou a enfrentar Marx só depois de 1895, quando seu professor exclusivamente. Quanto à doutrina da mais-valia, era esta o “resultado de uma
Antonio Labriola, tendo abandonado seu herbartianismo inicial, reapareceu no comparação elíptica entre uma abstração, a sociedade totalmente obreira, que
horizonte de Croce como paladino do materialismo dialético em filosofia e do funcionava como um tipo, e uma sociedade [real], a do capital privado” (31). E
socialismo em política. Croce proclamava ter concedido a Marx ampla oportu­ quanto à pretensão de Marx de ser ao mesmo tempo um filósofo e um cientista,
nidade de defesa, mas, dada a posição sobre a natureza “artística” do conheci­ ele não era nenhum dos dois. Se era alguma coisa, afirmou Croce, era “um
mento histórico a que Croce tinha chegado em 1893, Marx tinha tão pouca talento político arrogante, ou talvez um gênio revolucionário, que dera impulso
chance de exercer influência real sobre Croce quanto tinha Lênin de converter e consistência ao movimento operário armando-o com uma doutrina historio-
a aristocracia russa. Croce parece ter levado Marx a sério apenas em atenção a gráfica e econômica construída expressamente para ele” (37). Na realidade,
Labriola. Isso deu ao repúdio do marxismo um traço emocional, pois tinha como prosseguiu Croce, se Marx tivesse querido um exemplo de uma pseudociência
consequência o repúdio do velho “mestre” Labriola; mas a controvérsia teve e de uma pseudofilosofia, ou de uma ideologia de classe, não precisaria ir
desde o início um determinante intelectual. Toda a empresa de Marx, voltada procurá-ló èm Descartes, Spinoza, Kant ou Hegel: “Bastaria olhar para sua
para a elaboração de leis do desenvolvimento histórico, era alheia à concepção própria obra” {Ibid.). Afinal, afirmou Croce, Marx era apenas o criador de uma
crociana da história como o estudo da realidade em sua individualidade e da nova religião, um apóstolo do proletariado, mas com um evangelho que era
historiografia como narrativa. Contudo, o embate com o marxismo é instrutivo, exclusivamente destrutivo, porquanto ameaçava “toda a idealidade da vida
pois nele se revela claramente a estratégia crítica que Croce iria aplicar a todas humana” {Ibid.),
as filosofias da história que veio a enfrentar depois; além disso, é bem evidente Mais uma vez Labriola respondeu à crítica de Croce, desta vez dirigindo
o caráter psicológico do uso dessa estratégia como uma repetição-compulsão, o ataque ao preconceito ideológico, e especificamente burguês, nela embutido.
semelhante àquela que era empregada pelos defensores da velha Europa contra Na verdade, disse Labriola, Croce discutia consigo mesmo, não com Marx; seu
qualquer credo radical. interesse único era pelo uso que podia fazer do marxismo, não pela descoberta
A primeira reação de Croce ao estudo do marxismo foi julgá-lo “dupla­ daquilo de que tratava o marxismo. Não fosse assim, observou, teria sido
mente falaz”: em primeiro lugar porque era “materialista”; em segundo lugar absurdo Croce sustentar que Marx não tinha plena e precisa consciência do que
porque concebia “o curso da história de acordo com um desenho predetermi­ fazia (39). Mas Croce buscou refúgio no posto do filósofo. O próprio Labriola,
nado” que era pouco mais do que uma “variante da filosofia hegeliana da disse ele, se interessava pelo uso que se podia fazer das teorias marxistas a fim
história” {Come Nac que, 28). Croce admitiu que a ênfase de Marx na importân­ de alcançar os objetivos do socialismo, enquanto ele, Croce, era constrangido
cia das forças econômicas na vida humana tinha sido salutar, dada a grande a determinar “o que estava vivo e o que estava morto” no marxismo, conside­
distância que separava a geração contemporânea de estudiosos acadêmicos das rando-o de um ponto de vista puramente filosófico, ou teórico. E o único
realidades da vida cotidiana das massas. Mas no fim de contas o marxismo não elemento “vivo” no marxismo era sua advertência aos historiadores para que
era nem uma filosofia válida da história nem uma filosofia respeitável em geral. levassem a atividade econômica em conta nos seus estudos do passado humano.
Era apenas “um cânone de interpretação empírica, uma recomendação aos Já os elementos “mortos” eram a teoria econômica da mais-valia, que pretendia
historiadores para que dessem atenção (...) à atividade econômica na vida dos denunciar a injustiça das práticas econômicas capitalistas, e a doutrina filosófi­
povos e às fantasias ingênuas ou artificiais causadas por ela”, nada mais e nada co-histórica do materialismo dialético, que fornecia uma explicação racional
menos (30). para a transformação revolucionária da sociedade capitalista.
Labriola opôs-se às conclusões de Croce. Acusou Croce de ser “um Posteriormente, Croce argumentou que a “crise do marxismo” que irrom­
intelectual”, de ser “indiferente às batalhas da vida”, de estar interessado peu no final da década de 1890 supriu a prova empírica de suas insuficiências
somente em “debates de idéias em livros” e, mais sarcasticamente, de ser “um filosóficas. A disputa revisionista foi um resultado necessário de um exame
homem empenhado em estudar e escrever apenas para escapar ao tédio que o filosoficamente pertinente das doutrinas de Marx. Enquanto o marxismo foi
ameaçava” (27-28). Também acusou Croce de ser escravo de um “pressuposto estudado somente por operários autodidatas e seus entusiásticos patrocinado­
[puramente] formal, ou antes, um preconceito” que não conseguiu superar e res intelectuais, suas insuficiências filosóficas permaneceram ocultas. Logo que
que o levou a predecidir o debate entre ele mesmo e Marx. críticos refinados como Sorel, Bernstein e o próprio Croce passaram a analisá-
lo, sua importância filosófica se dissolveu. Nem mesmo o recrudescimento do
Em resposta às críticas de Labriola, Croce retornou ao estudo das dou­
marxismo entre 1917 e 1938 mudou os pontos dc vista dc Croce sobre a questão.
trinas econômicas e filosóficas de Marx. Mas saiu desses estudos com um
Escrevendo nesse último ano, ele disse que o reflorescimento do marxismo
julgamento que era ainda mais severo do que o anterior. Como economista,
disse Croce, Marx não havia fundado uma nova doutrina; sua obra era interes­
414 HAYDEN WWE META-H1STÓRIA 415

apenas refletia as atividades propagandísticas dos bolchevistas e o baixo nível tão equivocada quanto as tentativas de Marx de tratar as generalizações sociais
da cultura filosófica que predominava na Rússia. e econômicas empíricas como universais. As generalizações de Marx eram
Croce reclamava crédito parcial pelo que julgava ser a dissolução defini­ válidas somente na medida em que cobriam práticas sociais e econômicas reais
tiva do marxismo como teoria filosófica e científica. Continuou a escrever contra numa dada sociedade histórica; as generalizações de Hegel cobriam o campo
ele, mas explorando sempre o mesmo filão. De fato, seu método crítico funcio­ muito mais vasto das operações da mente. Mas nenhuma delas podia ser usada
nava como uma forma de inoculação cultural que era muito mais eficaz do que como instrumento de generalização histórica, onde o impulso universalizante
o repúdio em bloco dos críticos antimarxistas do século XIX. Ao conceder ao só era permitido nas condições mais cuidadosamente matizadas.
marxismo um mínimo de pertinência para o estudo da história podia mostrar-se Todavia, Hegel abriu o caminho para um humanismo caracteristicamente
compreensivo enquanto simultaneamente o expungia das próprias doutrinas moderno porque historicamente autoconsciente. Em princípio Hegel fora o
que faziam dele uma cosmovisão nitidamente radical. Essa tática de admitir que inimigo coerente de todo transcendentalismo, o imanentista par excellence e
havia alguma coisa “viva” em cada tentativa de explicar a história, e de denomi­ portanto um pensador essencialmente historicista. Acima de tudo, enxergara
nar “morto” o que quer que desse a essa tentativa o aspecto de um movimento através das falácias de todas as soluções monísticas e dualísticas do problema
novo ou radical, era a força daquele novo historicismo do qual Croce foi o da relação entre aparências e realidade. Hegel descobrira que o único objeto
principal teórico oitocentista. Em última análise era uma forma de castração do pensamento e da ação não era alguma estrutura unitária submundana da
por historicização; permitia a uma classe e a uma cultura atacadas interna e qual a mente era um epifenômeno, nem algum espírito transmundano do qual
externamente tratar tudo o que fosse antagônico como se já estivesse “morto”, a matéria era um fraco reflexo ou manifestação, nem, finalmente, uma fraturada
como se já tivesse sido consignado à história, com lugar estabelecido e prestígio totalidade dividida entre mente e matéria ou entre espírito e corpo. O objeto
como credo para os vivos negado. “universal” procurado pela filosofia desde o início não estava além, debaixo ou
abaixo da experiência humana; era o próprio mundo em sua concretude.
Ao mesmo tempo, contudo, Hegel conservara as verdades - as verdades
CROCE CONTRA HEGEL parciais - contidas tanto no monismo quanto no dualismo. A unidade do mundo
percebida pelos monistas e os conjuntos de opostos postulados pelos dualistas
eram concepções válidas do mundo. Mas a unidade e a oposição eram aspectos
Em retrospecto, o repúdio de Croce pelo marxismo parece inevitável.
Levando-se em conta seu temperamento, suas lealdades de classe e sua convic­ diferentes da única realidade em evolução ou desenvolvimento. O mundo era
tanto uno como internamente diferenciado. A unidade do mundo não contra­
ção de que a história era uma forma de arte, a repulsa a Marx parece previsível
dizia o fato de sua oposição interna; mais exatamente, o mundo era uma unidade
antes que tivesse ocorrido. Seu recontro com Hegel é algo mais difícil de
com oposição dentro dela (Croce, Saggio, 15).
caracterizar. Croce fora uma espécie de idealista desde o início, muito embora
se considerasse um idealista “realista”, isto é, um idealista que negava a exis­ Essa diferenciação interna das partes dentro do todo explicava a capaci­
tência de qualquer esfera transmundana de essências pairando sobre o mundo dade do mundo para evoluir e fazia do mundo um devir, uma história. Unidade
dado pela percepção sensorial. Em que, então, consistia seu idealismo realista? e oposição aparecem assim no pensamento de Hegel como aspectos de uma
Croce respondeu a essa pergunta em 1906, em seu livro O Que Está Vivo e o totalidade que tem três momentos: ser, nada e devir (17). A subsunção de
Que Está Morto na Filosofia de Hegel, que o deixou um pouco mais perto da unidade e oposição, ser e nada, afirmação e negação num terceiro termo,
consolidação de sua postura final, graças àquele processo de moderada rejeição “síntese” - isto é, devir - foi a glória, e também o ônus, da filosofia hegeliana.
que o caracterizava e à sua época. Na verdade dessa percepção residia a eficácia da dialética hegeliana como a
No julgamento de Croce, Hegel foi e continuou a ser o filósofo, como lógica da realidade; ao mesmo tempo, a mecânica aplicação por Hegel de seu
Schopenhauer o fora para Burckhardt. Para Croce, Hegel era uma inteligência tríplice esquema aos dados da natureza e da história gerou todos aqueles falsos
naturalmente filosófica; de fato, talvez até ele fosse filosófico demais, pois tratava sistemas totalísticos de que Croce e sua geração foram inimigos irreconciliáveis.
de universais, isto é, conceitos a priori, que eram os únicos objetos possíveis da Segundo Croce, os intérpretes de Hegel o tinham uniformemente enten­
reflexão filosófica, como princípios de interpretação histórica. Hegel não per­ dido mal. Não tinham percebido a concepção trágica da realidade, vendo
cebera que a filosofia lida unicamente com conceitos e as relações formais entre somente o otimismo de Hegel (40); tinham tomado por conservadorismo essa
conceitos; que a filosofia tem método próprio de investigação, a lógica, ciência visão sublime, transpolítica (44-45); e tinham-no consistentemente rotulado de
de conceitos puros; e que as generalizações filosóficas têm de se limitar a idealista, quando na realidade ele era um dos historicistas mais puristas que já
conceitos e não podem ser estendidas para cobrir eventos. A tentativa de Hegel existiram (46-47). Entre os filósofos mais antigos somente Vico estivera perto
de baixar do conhecimento de conceitos para os eventos reais - naturais, sociais, de se antecipar às intuições de Hegel em profundidade e amplitude (50-52).
humanos - por dedução, de tentar impor um padrão aos eventos históricos, era Havia, porém, um erro no centro de todo o sistema de Hegel: a tentativa de
META-HISTÓRLA 417
416 HAYDENWUWE

Toda a série de entidades distintas que formam o processo histórico, disse


aplicar a eventos concretos do mundo a verdade filosófica contida na descoberta
ainda Croce, constitui “um nexo e um ritmo” que as teorias correntes de
de que a realidade era una e intemamente diferenciada. “No sistema de Hegel”
classificação não podem caracterizar adequadamente. Nos sistemas convencio­
disse Croce, “onde o infinito e o finito se fundem num só, e o bem e o mal
nais de classificação postula-se um conceito e depois introduz-se outro conceito
constituem um único processo, a história é a realidade da Idéia, e o espírito não
estranho ao primeiro; em seguida os dois conceitos são usados como a base de
existe fora de seu desenvolvimento histórico.” Essa percepção fazia de cada fato
uma divisão. Usa-se o segundo conceito, disse Croce,
da história, porque era um “fato da idéia”, um fato “sagrado” para Hegel. Isso
forçava os historiadores a dedicarem a cada fato a mesma consideração e o
quase como uma faca com que se corta um bolo (ie,, o primeiro conceito) em vários pedaços, que
mesmo estudo acurado e promovia uma verdadeira valorização historicista da
permanecem separados uns dos outros. O procedimento gera o resultado, o desaparecimento da
história. Esse era o lado “sadio” da filosofia de Hegel, mas era preciso distin­ unidade do universal. A realidade divide-se em diversos elementos estranhos, cada um dos quais
gui-lo rigorosamente do lado “enfermo”, que consistia na tentativa de aplicar o é indiferente aos outros; e a filosofia, o pensamento da unidade, se toma irrealizável [57].
tríplice esquema do modelo dialético à análise das relações entre os muitos fatos
concretos que compõem a história. Esse lado “enfermo” gerou aquela multidão Croce denominou o meio correto de discernir entre as entidades indivi­
de “filosofias da vida” - desde o “misticismo neurótico” e a “religiosidade duais que formam a realidade, e de uni-las ao mesmo tempo numa unidade, o
insincera”, passando por uma “barbárie anti-histórica”, até o “positivismo” e o “esquema classificatório de graus”, creditando-o a Hegel. Nesse esquema as
“novo jacobinismo” - que afligiram a Europa na aurora do século XX (48-54). unidades são unidas, não extrínseca e indiferentemente, mas por “implicação”
De acordo com Croce, portanto, para resgatar “o que estava vivo” em de um grau mais baixo num mais alto. Esse esquema classificatório foi a fonte
Hegel não bastava apenas distinguir o Hegel filósofo do Hegel historiador e da capacidade de Hegel de correlacionar assuntos tão diversos como literatura,
cientista, como procurara a escola hegeliana convencional (54). Pelo contrário, direito, moral, política, religião etc. Triunfou na análise filosófica, pois nela os
os erros de Hegel como historiador e cientista eram produtos de um equívoco conceitos básicos do pensamento eram ao mesmo tempo opostos entre si e
filosófico fundamental. Esse equívoco devia ser denunciado, e Croce pretendia unidos dialeticamente.
denunciá-lo empregando o método crítico que chamou de método da distinzione
Hegel mostrou que as modalidades fundamentais da experiência humana
- distinção - e que constituiria a base de sua filosofia geral e de sua filosofia da
devem ser estudadas com diferentes mecanismos conceptuais. Assim:
história durante o meio século seguinte.
O método da “distinção” exigia o reconhecimento de que embora os
O verdadeiro não está para o falso na mesma relação em que está para o bem; nem o belo
conceitos pudessem ser opostos - por exemplo, como o bem ao mal ou o certo para o feio na mesma relação em que está para a verdade filosófica. A vida sem a morte e a morte
ao errado -, as coisas só podiam ser diferenciadas uma da outra. Isso não atingia sem a vida são duas ilusões opostas, cuja verdade é a vida, um nexo de vida e morte, [uma
a unidade essencial do todo; apenas lembrava que eram necessários diferentes combinação] de si mesmo c de seu oposto. Mas verdade sem bondade e bondade sem verdade não
meios de caracterizar o todo quando se falava de coisas e quando se falava de são duas ilusões que se anulam num terceiro termo: são falsas concepções que se resolvem num
conceitos. “Por exemplo”, disse Croce, nexo de graus, num nexo em que verdade e bondade são distintas e ao mesmo tempo unidas. Assim,
demasiada bondade sem verdade é impossível, tanto quanto é impossível querer o bem sem
reflexão; a verdade sem a bondade é possível, mas só no sentido que se harmoniza com a teoria
falamos do espírito ou da atividade espiritual em geral; mas também falamos a cada momento das
filosófica da precedência do espírito teórico sobre o prático, com os teoremas da autonomia da
formas particulares dessa atividade espiritual. E conquanto consideremos que todas são constitu­
arte e da autonomia da ciência [61-62].
tivas da completa espiritualidade (...), preocupamo-nos em não confundir uma com a outra; assim,
criticamos quem julga a arte por critérios morais, ou a moralidade por critérios artísticos, ou a
verdade por critérios de utilidade, e assim por diante [56]. Essa teoria das entidades individuais serve de base para o holismo orga-
nísmico de Croce, que por sua vez é a base de sua simultânea rejeição e aceitação
Se, no processo de tentar captar o todo, tendemos a esquecer a necessi­ de todas as teorias do todo na história da filosofia. “O organismo”, disse ele,
dade da “distinção”, precisamos apenas lançar os olhos à vida para nos lembrar­
mos disso imediatamente. Pois a “vida” sempre se apresenta diante de nós como é uma luta da vida contra a morte; mas os membros do organismo não estão portanto em luta uns
esferas de atividade, que se distinguem extrinsecamente umas das outras como contra os outros, a mão contra o pé, ou o olho contra a mão. O espírito é desenvolvimento, história,
econômicas, científicas, morais e artísticas, e como homens individuais, que se e por isso ser e não-ser conjuntamente, isto é, vir-a-ser. Mas o espírito sub specie aetemi que é o
assunto da filosofia, é história ideal, ctema e extra-temporal, a série de formas eternas daquele
distinguem entre si por suas profissões enquanto poetas, operários, estadistas, nascimento e morte, que, como disse Hegel, em si mesmo nunca nasce e nunca morre [62].
filósofos etc. Nem mesmo a filosofia existe per se, mas é sempre oferecida como
um aspecto específico da filosofia: como estética, lógica, ética e assim por
Esquecer este “punto essenziale”, advertiu Croce, é correr o risco de
diante. Na verdade, a totalidade da filosofia é internamente diferenciável; cada
filosofia é uma filosofia distinta de todas as outras. incorrer em erro crasso.
418 HAYDEN WHITE
META-HISTÓRIA 419

Mas Hegel esquecera-se disso; não conseguira manter nítida a diferença é, a filosofia. Também, admitiu Croce, as considerações históricas poderiam
entre opostos e distintos (distinti). “Concebeu o nexo de gradações no modo de redundar em filosofia se nos decidíssemos a passar do particular para os
opostos dialéticos; e aplicou a esse nexo a forma triádica que [só] é adequada à “elementos teóricos” que sustentam e tornam possível a consideração do
síntese dos opostos” (64). Em outras palavras, aplicou à história um modo de
particular. Mas a barreira entre reflexão sobre o universal e percepção do
análise só apropriadamente aplicado a conceitos filosóficos. “A teoria das
particular é intransponível. Assim, disse ele, ou se faz filosofia ou se faz história;
distinções e a teoria dos opostos tornaram-se a mesma coisa para ele” (Ibid.).
uma “filosofia da história” é uma contradição. A tentativa de produzir tal
O resultado foi que, em suas exposições sobre a história da filosofia, da natureza,
monstrengo só podia resultar na negação da espécie de história escrita pelos
e da história propriamente dita, Hegel tentou reduzir os dados complexos dos
historiadores, que era, na opinião de Croce, precisamente aquilo a que se
seus respectivos campos ao esquema triádico de tese, antítese e síntese. E, em
reduzia a filosofia da história de Hegel.
quatro capítulos de seu ensaio sobre Hegel, Croce fez a crônica do que chamou
Hegel tentara manter-se fiel aos fatos, mas sua dedicação ao esforço de
“a metamorfose de erros” nos campos da filosofia, da arte e da linguagem, da
“conceber” a história dialeticamente negava seu objetivo a cada passo. Disso
filosofia natural e da história na obra de Hegel.
advinha o valor fragmentário e temporário que ele concedia a cada nação,
A crítica de Croce dos lugares em que a filosofia da história de Hegel se
religião, povo e indivíduo com que lidava; para ele, oelemento negativo anulava
extraviou tem especial importância para o presente estudo. É escusado dizer
sempre o elemento positivo do que levavam a cabo. Tais realizações eram
que ela girava em torno da acusação de que Hegel, tendo deixado de perceber
inevitavelmente aufgehoben (transcendistas, anuladas) e portanto tinham de ser
a autonomia da arte, deixara forçosamente de entender a autonomia da história.
julgadas como fracassos no fim de contas. Disso também provinha o providen-
Mas, nessa crítica, Croce sublinhou a relação dialética do conceito de história
cialismo que Hegel inseriu em suas narrações do passado sob a forma da
com o conceito de filosofia. “A história”, escreveu, “diferentemente da arte,
“astúcia da razão”, que lhe permitia sustentar que todo erro era uma espécie de
pressupõe como sua base o pensamento filosófico” (89); vale dizer, a história
verdade, todo mal uma espécie de bondade, toda fealdade uma espécie de beleza,
pressupõe o todo que é a realidade em sua concretude. Mas, prosseguiu, “como
e vice-versa. Ele não podia achar a saída desse dilema. Seu conselho aos
a arte, a história encontra seu material por intuição” (Ibid.) - isto é, pela
historiadores para que estudassem os documentos c fossem fieis aos fatos eram
percepção de entidades individuais concretas. E é por isso que, concluiu ele, “a
“só palavras”, visto que, “diante de seus princípios estabelecidos, não havia
história é sempre narração” (o contar uma estória), “e nunca teoria e sistema,
meio de fazer uso de fatos e documentos” (94).
embora tenha sua base em teoria e sistema” (Ibid.). Eis por que se podia insistir
em que os historiadores estudassem os documentos por um lado e formulassem A fim de justificar seu uso de conceitos filosóficos para detectar o “senti­
claramente suas idéias sobre a realidade e a vida, por outro, “em especial do” da história, Hegel viu-se forçado a fazer uma redução após outra: de história
aqueles aspectos da vida que eles selecionam para tratamento histórico” (89- do espírito para história do Estado, de civilização em geral para civilização num
90). Isso autorizou Croce a dizer que a historiografia não poderia deixar de ser dado tempo e lugar, de homens individuais para o estatuto de instrumentos da
“cientificamente rigorosa” num de seus aspectos, isto é, em sua recolha preli­ razão etc. (95-97). Hegel deixou de reconhecer que “da mesma maneira que a
minar de dados, muito embora continuasse a ser “uma obra de arte” no outro, realidade não tem nem miolo nem casca, mas é feita de uma só peça, que o
isto é, em sua narração do que houvesse encontrado. Mas era necessário interno e o externo são a mesma coisa, (...) assim também a massa de fatos é
distinguir entre o conteúdo da narrativa histórica e sua forma. “Se todas as obras uma massa compacta, que não pode ser dividida em um miolo essencial e uma
de história”, observou Croce, “fossem reduzidas à sua expressão mais simples”, casca inessencial” (98). Assim, “faminta de história e nutrida pela história”, a
seria possível exprimi-las na forma do “juízo histórico”, cujo paradigma é filosofia de Hegel tornou-se um legado ambíguo para a reflexão histórica
“alguma coisa aconteceu (por exemplo, César foi assassinado, Alarico saqueou subsequente (Ibid.). Por ter “sacralizado” todos os eventos ao interpretá-los
Roma, Dante compôs a Divina Comédia etc.)” (90). A análise dessas proposi­ como manifestações concretas da Ideia, ele incitou uma geração inteira de
ções, afirmou Croce, revela que cada uma delas contém grandes historiadores a recriações complacentes de épocas e idades passadas.
Mas, por ter ensinado que as manifestações do espírito podiam estar sujeitas à
um elemento intuitivo, que funciona como sujeito, e elementos lógicos, que funcionam como mesma conceptualização, à mesma manipulação lógica, que aquela a que o
predicados. O primeiro seria, por exemplo, César, Roma, Dante, a Divina Comédia e assim por espírito em sua forma abstrata podia estar sujeito, também inspirou aquela
diante; os últimos, os conceitos de assassinato, saque, composição artística etc. [Ibid.]. massa de “impertinentes e cômicos aviltadores da história, que rejeitavam a
autoridade dos fatos e faziam do registro histórico o que lhes dava na telha
O fato era que a história podia produzir uma “ciência conceptual” de fazer” (Ibid.).
natureza puramente empírica, uma sociologia, se nos decidíssemos a elaborar
Assim, em última instância, Hegel não conseguiu escapar ao dualismo que
uma teoria de tipos e classes de fenômenos históricos; mas tal ciência não podia
substituir-se à ciência conceptual que inspira e constitui os próprios dados - isto era seu inimigo confesso. Esse dualismo se revelou da maneira mais espalhafa­
tosa em sua dicotomização de espírito e natureza. No autentico pensamento de
420 HAYDENWHITE
META-HISTÓRIA 421

Hegel, “espírito e natureza são duas realidades: uma existindo antes da outra,
ou uma servindo de base da outra, mas em todo caso uma distinta da outra” possíveis; e constantemente reprime sua imaginação com um juízo filosófico
(131). Para reunir esses dois domínios, Hegel foi obrigado a postular uma sobre suas percepções, de modo que o real se separa do meramente aparente
terceira realidade, o logos, a razão universal, que era a um só tempo a base e o que sua imaginação sempre procura pôr no lugar do testemunho contido nos
fim do espírito e da natureza. Houvesse Hegel concebido o espírito e a natureza documentos.
apenas como conceitos, o que eles eram, e não como duas “realidades concre­ O que, então, estava “vivo” e o que estava “morto” no hegelianismo? A
tas”, teria visto que o esquema triádico lhes era inaplicável. E teria sido capaz resposta de Croce a essa pergunta consolidou sua resistência a toda tentativa
de evitar o panlogismo que ele tentou ler em todos os aspectos da história e da de apreender a significação do registro histórico recorrendo a supostos univer­
natureza, e que não deixava lugar para o “irracional” em parte alguma do sais ou generalizações. Por um lado era necessário preservar e cultivar os
mundo. descortinos básicos de Hegel: sua noção de que o objeto da reflexão filosófica
Por conseguinte, o hegelianismo não deixou de ser uma combinação não era a realidade total, o universal concreto; sua convicção de que a dialética dos
resolvida de uma filosofia do espírito por um lado e uma filosofia da matéria opostos era o instrumento próprio da reflexão filosófica; e sua doutrina dos
por outro. Enquanto o termo “natureza” tem um conteúdo específico - a saber, graus de realidade, que autorizavam a crença tanto na autonomia das várias
“a totalidade da natureza, como a descrevem as [teorias] físicas e matemáticas” formas do espírito quanto na sua necessária conexão e unidade. Por outro lado,
produzidas pelas ciências - e o termo “espírito” também tem tal conteúdo porém, era preciso repudiar todas as formas de panlogismo, todas as tentativas
específico - isto é, “por um lado, psicologia, e por outro filosofia do direito, da de tornar a realidade em suas manifestações empíricas sujeita à subsunção nas
arte, religião, e do espírito absoluto ou Idéia” -, o termo logos não tem nenhum regras que governam a razão in abstracto, e por conseguinte qualquer intento
conteúdo adequado (132). É apenas uma abstração de uma abstração - isto é, de interpretar a realidade histórica dialeticamente. Em resumo, mesmo susten­
a razão considerada abstratamente e “dada de empréstimo à” natureza e ao tando o império da razão sobre a filosofia e aceitando-lhe a autoridade como
espírito, distorcendo-os e restringindo-os, e usada para criticar as inexatidões policial de qualquer uso de conceitos em juízos históricos, era imperioso
de todas as outras filosofias. Em sua tentativa de suprir o termo “logos” de um contestar a autoridade da razão para interpretar a história em geral. Cumpria
conteúdo específico, Hegel dirigiu-se à história e acabou por conceber história proteger a história contra o uso irrestrito da imaginação artística, da generali­
e logos como a mesma coisa. zação científica e da conceptualização filosófica simultaneamente. O juízo
histórico pressupunha claros conceitos filosóficos (como bem, mal, beleza,
Mas, asseverou Croce, a história não é simplesmente logos - isto é, razão; verdade, utilidade etc.) e consistia em combinações de conceitos e fatos empí­
é também desrazão; mais precisamente, é onde a razão humana e a desrazão ricos. Os fatos eram discernidos por intuição artística, os conceitos construídos
humana se revelam numa interação que faz a história. Mas essa história não é por reflexão filosófica, mas a combinação deles era uma atividade especifica­
uma totalidade discernível; é apenas o somatório dos vários atos humanos que mente histórica, cujo paradigma era que isto aconteceu naquele tempo e lugar,
exibem a tensão entre razão e desrazão no homem. Esses atos são individuais e atividade que nem a intuição artística nem a reflexão filosófica sozinhas podiam
singulares, e, ainda que a reflexão sobre eles possa produzir teorias gerais da sancionar.
razão por um lado e da desrazão por outro - isto é, filosofia e psicologia
respectivamente -, nem a filosofia nem a psicologia podem fazer as vezes da Com base em numerosas exposições históricas específicas, era possível
ciência geral do homem, graças à qual o caráter específico de um dado ato generalizar e dizer, por exemplo, que em certos tipos de épocas e lugares, certos
humano pode ser previsto antes que aconteça de fato. tipos de coisas tendem a acontecer, e chegar por esse meio à sociologia. Mas
tratar tais generalizações como leis ou universais era o que Ryle recentemente
A história, portanto, tende sempre a demolir as generalizações acerca do chamou um “erro de categoria”; estas eram abstrações oriundas de juízos
homem construídas pela filosofia, psicologia e sociologia, ou pelo menos exige históricos individuais, não afirmações acerca do que realmente aconteceu em toda
interminável revisão de suas generalizações. Pois a história sempre revela novos parte, em todas as épocas e lugares. Tais generalizações não podiam substituir
dados a respeito da interação de razão e desrazão no homem que as ciências enunciados filosóficos acerca de conceitos, os únicos universais, ou conjuntos
generalizadoras são incapazes de antever. Os historiadores precisam usar ge­ de juízos históricos discretos a respeito do que realmente tinha acontecido. O
neralizações filosóficas, sociológicas e psicológicas para caracterizar atos his­ acontecimento histórico deteve-se na recuperação do registro de ações huma­
tóricos específicos - isto é, ligar sujeito a predicado num juízo concreto. Mas nas passadas, do que os homens já haviam feito; não avançou para discorrer
essa ligação de sujeito a predicado num determinado juízo histórico é em si uma sobre o que faziam atualmente ou o que podiam ou deviam fazer no futuro.
operação intuitiva, ou estética. Por meio de tal operação o historiador confere
clareza, ordem e forma a uma área do registro histórico que era antes obscura, Outros tipos de juízos poderiam ser utilizados para dar conta da signifi­
desordenada e caótica. Ele faz a mesma coisa que faz o artista, muito embora cação de acontecimentos atuais, juízos políticos, juízos morais, juízos econômi­
suas formulações se relacionem mais com eventos reais do que com eventos cos e assim por diante; mas estes não podiam aspirar à sanção da história. Eram
propostas, planos, projetos oferecidos aos homens para a organização de suas
422 HAYDEN WHITE META-H1STÓR1A 423

vidas aqui e agora, não conhecimento adquirido. Essas propostas, planos, história e julgou que a havia encontrado. Criticar Vico, então, significava
projetos etc. precisavam conquistar a aprovação humana nos mercados e Par­ separar as percepções estéticas presentes em sua filosofia da aplicação dessas
lamentos das nações, por méritos próprios e conforme sua manifesta pertinên­ percepções ao estudo da história como metodologia. E isso foi o que Croce
cia para os problemas presentes; procuravam uma falsa autoridade quando intentou fazer em seu livro de 1911 sobre Vico.
eram justificados por recorrerem à história, ou quando eram apresentados No capítulo III de A Filosofia de Giambattista Vico, intitulado “A Estru­
como conclusões necessárias derivadas do estudo da história. A história era tura Interna da Ciência Nova”, Croce expôs os princípios críticos que o guiavam
assim posta de quarentena como guia da atividade presente e da aspiração em sua leitura definitiva de Vico. Todo o sistema de Vico, explicou Croce,
futura. A única coisa que a história ensinava era que o homem tinha o poder de abarca três diferentes “classes de indagação: filosófica, histórica e empírica; e
ser qualquer coisa que pretendesse. Os perigos de tentar extrair lições da no conjunto contém uma filosofia do espírito, uma história (ou um acervo de
história eram portanto óbvios, e em nenhuma parte eram mais óbvios do que no histórias) e uma ciência social” (37-38). A primeira classe de indagação diz
mau uso da história feito pelo pensador que Croce considerava como o maior respeito a “idéias” sobre fantasia, mito, religião, juízo moral, força e direito, o
gênio produzido pela moderna cultura italiana, Giambattista Vico, tema da mais certo e o verdadeiro, as paixões, a providência e assim por diante - em outras
difícil empresa crítica de Croce, >4 Filosofia de Giambattista Vico (1911). palavras, a “todas as (...) determinações que influem no curso ou desenvolvi­
mento necessário da mente humana ou espírito” (Ibid.). Essa primeira seção, a
teoria estética de Vico, era válida e verdadeira. À segunda classe pertencem o
CROCE CONTRA VICO plano geral de Vico da história universal do homem depois do Dilúvio, as origens
das diversas civilizações, a descrição das idades heróicas da Grécia e de Roma
Em sua Estética, Croce concedeu a Vico o crédito de ter resgatado a e o estudo de costumes, direito, linguagem e constituições políticas, bem como
poesia das regiões inferiores do espírito a que Platão a tinha relegado. Vico, de poesia primitiva, lutas de classes sociais, e o colapso de civilizações e seu
disse Croce, “pela primeira vez revelou a verdadeira natureza da arte e da retorno a uma segunda barbárie, como na Alta Idade Média da Europa.
poesia” (277). Essa revelação tomou a forma da descoberta de que “a poesia Finalmente a terceira classe de indagação tem a ver com a tentativa de Vico de
vem antes do intelecto, mas depois do sentimento” (Ibid.). Platão, como seus “estabelecer um curso (corso) uniforme de história nacional” e lida com a
modernos equivalentes “vitalistas” e “irracionalistas”, confundira poesia com sucessão de formas políticas e mudanças correlatas tanto na vida teórica quanto
sentimento. Os homens sentem, disse Vico, antes de observarem; sua observa­ na vida prática, e também com as generalizações viquianas sobre o patriciado,
ção é dirigida por seu sentimento, ou nele encontra justificação. Segue-se, a plebe, a família patriarcal, a lei simbólica, a linguagem metafórica, a escrita
portanto, disse Croce, que, “sendo a poesia composta de paixão e sentimento, hieroglífica etc.
quanto mais se aproxima do particular, mais verdadeira é ela, enquanto preci­ O argumento de Croce é que Vico confundiu esses três tipos de indagação,
samente o contrário se pode dizer da filosofia” (277-78). Aqui, concluiu Croce, embaralhou-os em suas descrições e cometeu um grande número de “erros de
“temos uma formulação profunda da linha de demarcação entre ciência e arte. categoria” no processo de defini-los na Scienza Nuova. A obscuridade da
Elas não podem ser novamente confundidas'1 (278). Scienza Nuova resulta, afirmou ele, não da profundidade do discernimento
A concepção viquiana da diferença entre poesia e história era, continou básico, mas de uma confusão intrínseca - isto é, da “obscuridade de suas idéias
Croce, “um pouco menos clara”, tão pouco clara, na verdade, que Vico termi­ [de Vico], de uma deficiente compreensão de certas conexões; de, vale dizer,
nou “identificando poesia e história” (279). Essa identificação deu a Vico a base um elemento de arbitrariedade que Vico introduz em seu pensamento, ou, mais
para em primeiro lugar compreender a natureza do mito como “a visão espon­ simplesmente, de erros patentes” (39). Vico não fora capaz de ver corretamente
tânea da verdade como aparece ao homem primitivo” (Ibid.), capacitando-o a “relação entre filosofia, história e ciência empírica” (40). Tendia poeticamente
assim a conceber a imaginação como o modo criativo da consciência (281). Ao a “converter” uma na outra. Assim, tratou a “filosofia do espírito” ora como
mesmo tempo, porém, levou-o a confundir a “história ideal do espírito huma­ ciência empírica, ora como história; tratou a ciência empírica às vezes como
no”, entendida como a sucessão das eternas etapas da demanda da verdade, filosofia e às vezes como história; e frequentemente atribuiu a simples exposi­
com a história real efetivamente vivida de ponta a ponta por indivíduos em ções históricas a universalidade de conceitos filosóficos ou a generalidade de
diferentes épocas e lugares no passado. Assim, embora merecesse reconheci­ esquemas empíricos. A confusão de conceitos com fatos e vice-versa - incriti-
mento por suas percepções genuinamente originais e verdadeiras da natureza cável num poeta - foi desastrosa para o historiador Vico. Por exemplo, observou
da arte e da poesia, e acima de tudo por sua descoberta da identificação da Croce, quando lhe faltava um documento, Vico tendia a recorrer a um princípio
poesia com a linguagem, Vico fora presa fácil da perversa “filosofia da história”. filosófico geral para imaginar (poeticamente) o que o documento teria dito se
Da mesma forma que Marx sonhara equivocadamente com uma ciência da estivesse em seu poder, ou, quando deparava com um fato duvidoso, confirma­
história e Hegel com uma filosofia da história, Vico sonhou com uma poética da va-o ou negava-o apelando para alguma (imaginada) lei empírica. E, mesmo
424 HAYDENWHITE METAHISTÓRIA 425

quando tinha em seu poder documentos e fatos, muitas vezes não conseguia romano por seu feitio pagão. A insuficiência da lei de Vico foi demonstrada,
deixá-los contar sua própria história - como deve fazer o verdadeiro historiador porém, pelo grande número de exceções a ela que o próprio Vico teve de admitir
mas, ao contrário, interpretava-os de maneira a ajustá-los aos propósitos que que existiam. Se Vico não se tivesse deixado extraviar pela lealdade à sua
tinha em mente - isto é, de maneira a ajustá-los às suas generalizações socioló­ tendenciosa leitura da história romana, a “teoria empírica dos ricorsi” não teria
gicas intencionalmente concebidas. sido forçada a admitir tantas restrições a suas operações. E, livre da necessidade
Croce declarou preferir a crônica mais banal a essa premeditada manipu­ de encaixar à força outras sociedades no molde fornecido pelo exemplo romano,
lação do registro histórico. Podia perdoar a Vico os numerosos erros fatuais Vico poderia ter tido condições de aplicar a verdade geral contida na teoria dos
que pululavam em sua obra. Impreciso em pequenas questões, Vico compensa­ ricorsi às histórias dessas sociedades.
va esse defeito com sua amplitude de visão e seu entendimento do modo como A verdade geral implicitamente contida na teoria era de ordem filosófica,
o espírito humano operava para criar um mundo especificamente humano. Mas a saber, que
Croce não podia perdoar a causa da confusão de Vico, sua identificação poética
da filosofia com a ciência e a história. Essa “tendência de confusão (...) ou o espírito, tendo atravessado seus estágios progressivos, depois de se ter sucessivamente elevado
confusão de tendências” foi fatal à presunção de Vico de haver fundado uma da sensação ao universal imaginativo e racional, da violência à equidade, deve em conformidade
“ciência” da cultura e foi a causa de sua “queda” nas malhas da “filosofia da com sua natureza eterna reconstituir sua trajetória, reincidir na violência e na sensação, e portanto
história” (43). Uma leitura apropriada de Vico, portanto, exigia cuidadosa renovar seu movimento ascendente, recomeçar seu curso [136].
separação do “ouro” filosófico de sua obra, escondido na ganga pseudocientí-
fica e pseudo-histórica. E Croce entregou-se a essa tarefa de separação (ou Como guia geral para o estudo de sociedades históricas específicas, essa
transmutação, pois isso é o que realmente foi) nos capítulos subseqüentes com verdade dirige a atenção para “o nexo entre períodos predominantemente
uma tenacidade só excedida por sua confiança em que, em sua própria filosofia, imaginativos e predominantemente intelectuais, espontâneos e reflexivos, estes
detinha em seu poder a pedra filosofal, que permitia a correta determinação últimos períodos provindo dos primeiros por um acréscimo de energia, e
“do que está vivo e do que está morto” em qualquer sistema. No afã de julgar, regressando a eles por degeneração e decomposição”. Mas a teoria descreve
e até de perdoar, Vico à luz dos doutos padrões que prevaleciam no século somente o que geralmente acontece em todas as sociedades; não preceitua o que
XVIII, Croce estava disposto a estender sua caridade historicista aos tentames deve acontecer em determinadas épocas e lugares nem prediz o resultado de
filosóficos de Vico. uma tendência determinada. Generalizações como as admitidas por Croce,
como a que enuncia a relação entre “períodos predominantemente imaginativos
Exemplo perfeito - e teste crucial - do método crítico de Croce aparece
e predominantemente intelectuais”, são, disse Croce, “em larga medida quan­
no capítulo XI de A Filosofia de Giambattista Vico, onde a lei da mudança
titativas e feitas por pura conveniência” (134). Não têm força de lei. Vico era
civilizacional, a chamada lei do ricorso, é examinada. Sucintamente resumida,
culpado, portanto, de um erro e de uma ilusão: errou ao tentar estender uma
essa lei afirma que todos os povos pagãos devem passar por um “curso”
generalização empírica a todas as classes que se assemelhavam àquela a que se
específico de relações sociais com correspondentes instituições políticas e
podia legitimamente aplicar a generalização; e se deixou iludir pela esperança
culturais e que, encerrado o curso, devem, se não foram aniquilados, reconsti­
de tratar uma percepção filosófica como cânone de interpretação histórica que
tuir esse curso num plano de existência ou nível de autoconsciência análogo,
seria válido para todas as sociedades em todos os tempos e lugares.
ainda que significativamente metamorfoseado. Se estiverem destruídos no fim
Croce deteve-se em duas possíveis objeções a essa crítica a Vico. Por um
do ciclo, serão substituídos por outro povo que vivenciará o curso na mesma
lado, disse ele, podia-se argumentar que Vico justificou as exceções à sua lei ao
seqüência geral de estágios e até o mesmo fim geral.
reportar-se a influências externas ou circunstâncias contingentes que faziam
Croce afirmou que essa “lei” é apenas uma forma generalizada do padrão com que um determinado povo ficasse aquém de sua meta ou desaparecesse no
que Vico julgou ter descoberto na história romana. Vico estendeu gratuitamen­ corso de outro povo e se tornasse parte dele. Por outro lado, observou ele, com
te essa lei com vista a abarcar todas as sociedades pagãs, o que o obrigou a base na própria interpretação crociana do verdadeiro valor da “lei”, podia-se
comprimir os fatos num molde que só se aplicava, se tanto, ao exemplo romano. afirmar que, uma vez que a lei realmente trata do corso do espírito e não do da
Essa “rarefação” da história romana numa teoria geral da dinâmica cultural sociedade ou da cultura, nenhuma quantidade de dados empíricos poderia
revelou, segundo Croce, a falsa noção viquiana de como se originam as leis contestá-la. Croce descartou sumariamente a segunda objeção por considerá-la
empíricas. Ao invés de generalizar a partir de casos concretos e portanto descabida. “O que se discute”, disse ele,
imaginar uma descrição sumária dos atributos partilhados por todos os exem­
plos do conjunto, em contraste com os quais podiam ser delineadas as diferen­ é (...) exatamente o aspecto empírico dessa lei, não o filosófico; e a verdadeira resposta nos parece
ças entre os exemplos, Vico tratou de estender as características gerais do ser, como já sugerimos, que Vico não podia e não devia ter levado em conta outras circunstâncias,
conjunto romano a fim de abranger todos os conjuntos que se assemelhavam ao da mesma forma que, para lembrar um único exemplo, alguém que está estudando as diversas fases
426 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 427

da vida descreve as primeiras manifestações do desejo sexual nas vagas fantasias e fenômenos Daí a pressão do apelo de Croce à analogia de alguém que está “estudando as
análogos da puberdade e não toma em consideração os meios pelos quais os menos experientes diversas fases da vida” para que se limite a apreciar “as leis fisiológicas do
podem ser iniciados no amor pelos mais experientes, visto que está pretendendo tratar não das leis desenvolvimento orgânico” e deixe de lado as “leis sociais da imitação” (JPhil.
sociais da imitação mas sim das leis fisiológicas do desenvolvimento orgânico [Ibid.].
ofVico, 136).
Mas a analogia trai o viés de Croce na crítica. Pois, para seguir corretamen­
Em suma, a “lei” de Vico ou prevalece universalmente - como as “leis te a analogia, o que está em discussão no caso de Vico não é uma miscelânea de
fisiológicas do desenvolvimento orgânico” - ou não; uma única exceção é leis que operam num processo ao lado de leis que operam em outro, mas a
suficiente para invalidá-la. convergência de dois sistemas, cada um dos quais é governado por leis idênticas,
Era, porém, curioso que Croce seguisse esse raciocínio, pois que exigia um anulando ou abortando as operações do outro. Por exemplo, mesmo uma
que ele aplicasse à “lei” de Vico critérios de adequação mais parecidos com os pessoa que está estudando as várias fases da vida não deve deixar-se confundir
reclamados pelos positivistas do que com os prescritos pela própria concepção pelo fato de que um dado indivíduo não alcança a puberdade mas, digamos,
crociana das leis físico-científicas expostas em Lógica (1909). Aqui ele havia morre. A morte de uma pessoa antes da puberdade não invalida as “leis fisioló­
criticado os positivistas por não verem que a função das leis na ciência era gicas do desenvolvimento orgânico”; apenas exige que, se queremos explicar a
“coadjuvante”, e não “constitutiva” (204). As leis da ciência física nada mais incapacidade de alcançar a puberdade, temos de invocar outras leis, expressa­
eram do que ficções ou pseudoconceitos, ideados pelos homens ou grupos de mente aquelas que dão a razão da morte do organismo, para explicar por que a
homens em resposta a necessidades geradas por projetos práticos em diferentes previsão de que a puberdade normalmente ocorreria não se confirmou.
épocas e lugares, cuja importância era limitada, portanto, à duração desses
Dá-se o mesmo com as civilizações. Nossa caracterização do “curso” que
projetos. Croce negava especificamente que as ciências naturais fizessem prog­
predizemos que irão seguir não é anulada pela incapacidade de qualquer
nósticos em qualquer sentido significativo; a crença em seu poder vaticinador
civilização de completar esse curso se se pode explicar o malogro invocando-se
representava a ressurgência de um desejo primitivo de profetizar ou predizer o
futuro, o que nunca poderia ser feito. Tais crenças apoiavam-se na infundada outra lei, aquela que explica a desintegração das civilizações antes que perfaçam
seu prazo normal. Assim, número nenhum de sociedades que deixam de com­
suposição de que a natureza era regular em todas as suas operações, quando na
pletar o corso descrito pelo modelo romano utilizado por Vico como arquétipo
realidade o único fenômeno “regular” na natureza era o da mente no esforço
pode servir para invalidar a “lei” de Vico, pois a “lei dos ricorsi" não é afinal
de compreender a natureza (228). As chamadas “leis da natureza” eram objeto
uma “lei”; é simplesmente uma teoria ou uma interpretação - isto é, uma série
de constante violação e objeção. Daí se seguia que, longe de poderem fazer jus
de leis cuja utilidade, para fins proféticos, requer especificação das condições
à predizibilidade, as ciências naturais eram muito mais dependentes de um
limitativas dentro das quais as leis se aplicam. Em princípio não há nada de
conhecimento histórico (da natureza) do que mesmo as ciências humanas, que
errado no fato de Vico ter escolhido o exemplo romano como paradigma de
pelo menos dispunham dos fenômenos constantes da mente para a partir deles
generalizar. crescimento civilizacional em comparação com o qual o crescimento de todas
as outras civilizações que lhe eram conhecidas, excetuadas a judaica e a cristã,
Mas, se essa é a verdadeira natureza da lei nas ciências físicas, deve ser
podia ser aferido. É procedimento sociocientífico perfeitamente válido, por
também a verdadeira natureza de quantas leis forem possíveis nas ciências
mais imperfeitamente realizado que tenha sido o procedimento no caso de Vico.
sociais; e, sendo assim, que objeção possível poderia haver à utilização, por
O que Croce impugnava era qualquer tipo de procedimento sociocientífico,
parte de Vico, da lei dos ricorsi para caracterizar o processo evolutivo de todas
pois, do seu ponto de vista, representava um esforço no sentido de tratar um
as sociedades e orientar a pesquisa em torno delas tendo em consideração a
produto do espírito “livre” como causalmente determinado. E assim ele aplica­
amplitude de seu afastamento do modelo romano? A objeção pareceria assen­
va um padrão de adequação inadmissivelmente rigoroso - padrão que ele
tar exclusivamente na hostilidade de Croce a qualquer tentativa de tratar a
mesmo repudiara expressamente ao rejeitar as teses positivistas em relação às
sociedade e a cultura, que ele julgava serem produtos do espírito, como se
ciências físicas - à tentativa de Vico de construir uma ciência das sociedades.
fossem efeitos mecanicamente determinados de causas físicas. Ao tentar carac­
Essa inconsistência de Croce no emprego do conceito de “lei” só pode ser
terizar as operações do espírito em suas manifestações concretas, nas formas
explicada por seu desejo de contar com a sanção de Vico para sua própria
sociais que assumiam, em termos de leis, Vico parecia estar inadvertidamente
maneira de filosofar, ao mesmo tempo em que negava aos modernos cientistas
materializando-as ou naturalizando-as, e portanto despojando-as de seu esta­
sociais o direito de seguir o estilo de análise social de Vico.
tuto de criações do espírito. Ao menos era assim que Croce o via. Vico tratava
a sociedade e a cultura como se fossem produtos de um processo material Mais defensável é a crítica de Croce aos esforços de Vico no sentido de
invariável (desse modo, aliás, denunciando sua má compreensão da verdadeira construir uma história universal, ou filosofia da história do mundo. Aqui parece
natureza da natureza); e Croce exigia dele que, uma vez que optou por esse ter ocorrido uma autêntica mistura de categorias. Por um lado, salientou Croce
tratamento, fosse coerente e ficlmente considerasse o processo como invariável. corretamente, Vico quis usar a teoria dos ricorsi como modelo para todo
META-HISTÓRIA 429
428 HAYDENWHITE

cultura liberal-humanística no primeiro quarto do século XX nos diz acerca do


crescimento dvilizacional; por outro, quis excetuar os exemplos judaico e cristão
estado de ânimo, dos temores e das aspirações desse período em toda a Europa?
ao atribuir-lhes respectivamente uma memória especial e uma capacidade especial
Em minha opinião, é possível dar às duas perguntas uma única resposta. Para
de renovação, que impediam o término de suas histórias antes do fim do mundo.
um importante segmento da sociedade européia culta entre aproximadamente
Essa distinção era gratuita, e Croce estava evidentemente correto quando a locali­
1900 e 1930, uma sociedade ameaçada pelo que parecia ser a progénie de Marx
zou no conflito entre o crente cristão que se ocultava no peito de Vico e o cientista
de um lado e os herdeiros de Nietzsche do outro, uma sociedade que encontrava
social que triunfara em sua cabeça. Mas, como assinalam quase todos os comenta­
pouca coisa que lhe desse alento em Ranke ou em Burckhardt, principais
dores de Vico, mesmo sua inconsistência não nega o esforço, consistentemente
modelos do pensamento histórico da academia, Croce parecia oferecer uma
envidado no lado sociocientífico de sua obra, de construir uma filosofia universal
autêntica alternativa, uma idéia da história que era ao mesmo tempo progres­
da história. Admitiu-o o próprio Croce quando, comentando a tentativa de Vico
sista e socialmente responsável.
de traçar semelhanças entre Homero e Dante, admitiu que tais classificações eram
Em muitos aspectos Croce tentava fazer pelo liberalismo clássico o que
as bases necessárias de qualquer história verdadeira; pois, como escreveu, “sem a
Ranke havia feito pelo conservadorismo clássico meio século antes - isto é,
percepção da semelhança, como se conseguiria estabelecer as diferenças?” (156)
fortificá-lo com argumentos contra qualquer forma de radicalismo. Continuou
Mas aqui também deplorou à busca de semelhanças como um fim em si; o,afã de
a ser um liberal em sua convicção de que a sociedade e a cultura não podiam
classificar, de construir tipos, disse ele, proibira Vico de levar a cabo a tarefa do
historiador, que é “representar e narrar” (257). manter a forma e o conteúdo de nenhuma de suas encarnações específicas mas
tinham de mudar. Entretanto, em sua convicção de que toda mudança tinha de
A atitude essencialmente irônica de Croce com relação ao pensamento de
ser gradual, não planejada, resultado espontâneo dos esforços de homens
Marx, Hegel e Vico revela-se não só em sua insistência na própria aptidão para
individuais a mediar entre tradições recebidas, reivindicações presentes e aspi­
distinguir entre o que estava vivo e o que estava morto nas concepções de história
rações futuras, ele falava especialmente pela maioria dos apreensivos liberais
desses autores, mas também na sua decisão de remeter partes ‘Vivas” das teorias
de sua geração. Ao apresentar a história como o eterno retorno do homem à
dos três a setores separados, e na verdade até isolados, da vida da mente. O
tarefa de construir uma arena em que pudesse exibir sua individualidade, Croce
tratamento que dispensou a Marx foi excepcional, na medida em que nem sequer
acalmou os temores daqueles filhos da burguesia para quem o individualismo
lhe concedeu o estatuto de pensador importante. Na avaliação de Croce, Marx
era um valor eterno; ao apresentar o conhecimento histórico como conhecimen­
contribuíra apenas com uma advertência aos historiadores para que levassem em
to da individualidade humana, ergueu uma barreira contra a prematura assimi­
consideração o fator econômico na vida dos homens. Croce conferiu a Hegel um
lação dessa individualidade às verdades gerais da ciência por um lado e às
lugar permanente na história da filosofia em virtude das contribuições para a
verdades universais da filosofia por outro.
lógica e a teoria das ciências humanas, mas negou-lhe qualquer genuína realiza­
ção como filósofo da história. Croce reconheceu a contribuição permanente de Mas fez mais. Pressentiu o poder daquela atmosfera de senescens saecu-
Vico para a teoria estética, mas negou-lhe qualquer talento quer como historia­ lum que dominou a geração da década de 1890. Todo o seu sistema era um
dor quer como teórico social. Isso equivalia a um distanciar-se de todo o esforço sublimado da consciência que sua geração adquirira do traspasse de uma era,
dos pensadores do passado para elevar o pensamento histórico ao estatuto de a Era da Europa, do humanismo, e daquela combinação de valores aristocráti­
ciência, como quer que fosse concebido o termo “ciência”. cos e burgueses que deram aos grupos dirigentes da Europa oitocentista seu
Ao mesmo tempo, embora defendesse a idéia de que a história era uma característico estilo de vida.
forma de arte, Croce realizou uma operação pela qual a história era impedida Os intelectuais europeus ingressaram no século XX com a convicção de
de contribuir para aquele processo de criatividade imaginativa, ou imaginação que, já que todo sistema total de explicação continha em si uma falha, o
criadora, que ele admitia para a arte em geral. As verdades poéticas da histo­ desespero não podia pretender ter mais autoridade sobre os homens do que o
riografia tornavam-se prosaicas justamente à proporção que eram submetidas otimismo; e que, tendo a competição entre desespero e otimismo chegado a um
à crítica pelo senso comum e à caracterização no plano da linguagem corrente. empate, o otimismo era tão justificado quanto o desespero - e muito mais
confortador. Ele conquistara o direito ao otimismo num combate real com a
morte; fora literalmente com muita luta que conseguira abrir caminho para sair
A HISTÓRIA COMO IDEOLOGIA BURGUESA do túmulo quando ainda jovem; e sua vitoriosa saída do túmulo lhe assegurou,
achava ele, um olho infalível para detectar o que estava “ainda vivo” em
qualquer coisa que estivesse superficialmente agonizante. Talvez seja por isso
O que havia por trás dessa rejeição geral, ainda que atenuada, de toda a
que suas histórias são dominadas por uma busca de sinais de vida que repontam
anterior filosofia da história e desse idealismo mitigado, ainda que geral, que
no campo de batalha das esperanças frustradas e aspirações destroçadas. Sua
Croce finalmente erigiu como base de seus estudos históricos? Mais importante:
vida lhe ensinara que o próprio tempo, quando vivido como história, é para si
o que o reconhecimento geral da autoridade de Croce como porta-voz da
430 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 431

mesmo “o Dionísio dos mistérios e o Christus paciens do pecado e da redenção” instante?” Nessa mesma obra, Croce definiu o “progresso cósmico” como não
(Hist. as the Story ofLiberty, 28; trad. bras., 24). sendo senão o “contínuo triunfo da Vida sobre a Morte” e a vida como pura
Apenas duas imagens marcantes ocorrem nas raras reflexões públicas de “atividade”, o “desdobrar-se da atividade sobre a passividade. (...) Em toda
Croce sobre sua complexa, e complexamente obscura, vida particular. Uma é a situação nova o indivíduo começa a vida outra vez”. A realidade última, o
imagem do Vesúvio, que nos dias de inverno modorrava placidamente sob uma “Deus” que os homens vinham buscando desde o início do tempo humano, não
cobertura de neve, mas que em silêncio acumulava forças para sua erupção era uma força externa mas apenas esse poder regenerativo do homem, “essa
quando Nápoles e os napolitanos estivessem menos preparados para ela. Se­ atividade que é tanto Vida quanto Morte” (252).
gundo Nicolini, Croce valia-se dessa imagem para caracterizar a si mesmo. A A capacidade do homem para “retornar”, o poder regenerativo do ho­
outra imagem era a de um pacífico claustro monástico, cujas altas paredes mem, era, na opinião de Croce, ao mesmo tempo a fonte da glória do homem e
vedavam a entrada do ruído do mundo público e mansamente ecoavam a queda a causa de seu sofrimento inconfundivelmente humano. Para Croce, não menos
da água de uma fonte, local saturado do perfume de limoeiros. Essa imagem do que para Hegel, Marx e Nietzsche, a “prisão” do homem no ciclo vida-e-
representava o retiro a que Croce desejava recolher-se quando seu ascético morte era também o “privilégio” do homem, a base de sua aristocracia. A
programa de trabalho e pensamento o tivesse esgotado. identificação da vida com a morte e o inverso permitiam a Croce assestar seus
canhões contra os inimigos da vida e os negadores da morte indistintamente -
As duas imagens são, evidentemente, complementares. Elas evocam vi­ isto é, contra meros pessimistas e meros otimistas indiferentemente. Assim,
sões de treva, caos e violência de um lado, e luz, ordem e repouso do outro. escreveu ele em A Filosofia da Prática'.
Renuncio à tentação de interpretá-las à maneira freudiana como falo e útero,
não porque Croce condenava toda tentativa de historiografia psicanalítica, Essa concepção Ma realidade, que reconhece o liame indissolúvel entre bem e mal, está ela
rotulando-a de “história de criado de quarto” e qualificando seus praticantes mesma além do bem e do mal e conseqüentemente ultrapassa os ângulos visuais do otimismo e do
de pseudo-estudiosos à procura de interpretação barata sem o trabalho exigido pessimismo: do otimismo que não descobre o mal na vida e apresenta-o como uma ilusão, ou como
pela verdadeira compreensão histórica; mas porque, em conformidade com seu um elemento pequeníssimo ou contingente, ou tem esperança numa vida futura (na terra ou no
céu) em que o mal será eliminado; e do pessimismo, que vê só o mal e faz do mundo um infinito e
preconceito, Croce se recusou a revelar suficientemente sua vida particular, não
eterno espasmo de dor, que se dilacera intemamente e não gera nada [251].
permitindo assim a reunião de dados pormenorizados que são os únicos capazes
de tornar convincente uma interpretação psicanalítica. De qualquer modo, o
Essa concepção da unidade paradoxal de vida e morte era o antídoto de
testemunho privado não é imprescindível para que se possa adivinhar o molde
Croce para o radicalismo utópico e o desespero reacionário no pensamento
geral da psique de Croce e as experiências que deram a ela sua fisionomia
histórico. Tal concepção tinha suas origens psicológicas na experiência pessoal
peculiar. As declarações públicas de Croce, que se estendem por mais de oitenta
da vida e da morte de Croce. Essa experiência foi decisiva em seu desenvolvi­
volumes, fornecem amplas pistas a respeito da significação dessas duas imagens
mento intelectual; também fez dele o perfeito porta-voz de uma civilização que,
para sua visão total do mundo. Elas configuram as principais categorias da
do fim do século XIX em diante, afundaria na morte repetidas vezes e “eterna­
filosofia de Croce; telegrafam os problemas psicológicos para os quais a filosofia
mente retornaria”, não como o proletário marxista nem como o super-homem
constituía as soluções.
de Nietzsche, mas como a combinação mesma de idealismo aristocrático e
Por baixo dessas imagens ocultava-se a experiência da morte e retorno da praticidade classe-média. Estes, de fato, eram os equivalentes sociais das
morte de Croce; acima deles elevava-se a tentada unificação de vida e morte em principais categorias filosóficas abstratas de Croce: o princípio da Vida nada
que a vitalidade individual se amalgama com a experiência universal da morte mais era do que uma sublimação do heroísmo aristocrático; o da Morte nada
como solução para o eterno problema da filosofia. Havia boa razão para Croce mais era do que a aceitação burguesa da exigência prática. A interação dos dois
tentar essa fusão. Afinal, Croce vivenciara vários sepultamentos e renascimen­ constituía a concepção de cultura de Croce, e a estória dessa interação era sua
tos: em primeiro lugar, como sucessor de uma criança que tinha o seu nome e idéia da história.
que morreu antes que ele nascesse; em segundo lugar, como alguém que
emergira do sepultamento nas ruínas de um terremoto; depois, como prisionei­
ro da melancolia que fora libertado pelo jovem filósofo Labriola em Roma; e,
finalmente, como prisioneiro das “cavernas” dos arquivos de Nápoles que se
tinha libertado para a luz da filosofia. Tudo isso proporcionava abundantes
motivos para que o homem maduro, o autor de A Filosofia da Prática (1908),
escrevesse: “Na verdade, não há necessidade de opor um panegírico da Vida a
um panegírico da Morte porquanto o panegírico da Vida é também um pane­
gírico da Morte; pois como poderíamos viver, se não morrêssemos a cada
CONCLUSÃO

Em minha análise das principais formas de consciência histórica do século


XIX utilizei uma teoria geral da estrutura da obra histórica. Afirmei que o estilo
de um determinado historiador pode ser caracterizado em função do protocolo
lingüístico que ele usou para prefigurar o campo histórico antes de submetê-los
às várias estratégias “explicativas” que empregou para elaborar uma “estória”
a partir da “crônica” de eventos contidos no registro histórico. Esses protocolos
lingüísticos, assinalei, podem ser ainda caracterizados no nível dos quatro
principais modos de discurso poético. Servindo-me dos tropos da metáfora,
metonímia, sinédoque e ironia, tomados como tipos básicos de prefiguração
lingüística, investiguei os modos de consciência em que os historiadores podem
implícita ou explicitamente justificar a adesão a diferentes estratégias explica­
tivas nos planos da argumentação, da elaboração de enredo e da implicação
ideológica respectivamente. Recorrendo à teoria da “hipótese do mundo” de
Stephen C. Pepper, identifiquei quatro diferentes teorias da verdade (ou com­
binações delas) nos pensadores da história estudados: formismo, mecanicismo,
organicismo e contextualismo. Seguindo a teoria das ficções de Northrop Frye,
identifiquei quatro diferentes estruturas arquetípicas de enredo através das
quais podem os historiadores configurar processos históricos em suas narrativas
como estórias de um tipo determinado: estória romanesca, tragédia, comédia e
sátira. E, valendo-me da teoria da ideologia formulada por Karl Mannheim,
diferenciei quatro estratégias distintas de implicação ideológica por meio das
quais podem os historiadores sugerir a seus leitores a importância de seus
estudos do passado para a compreensão do presente: anarquismo, radicalismo,
conservantismo e liberalismo.
434 HAYDENWHTTE META-H1STÓRIA 435

Dei a entender que um determinado historiador estará inclinado a esco­ Entendidas essas relações, toma-se possível, em minha opinião, distinguir
lher um ou outro dos diversos modos de explicação, no nível da argumentação, entre o historiador propriamente dito e o filósofo da história com base na
da elaboração de enredo ou da implicação ideológica, em resposta aos impera­ segunda ordem de consciência em que este leva a cabo seus esforços com vistas
tivos do tropo que informa o protocolo lingüístico que tiver usado para prefigu­ a compreender o processo histórico. O filósofo da história procura não somente
rar o campo de ocorrência histórica selecionado por ele para investigação. entender o que aconteceu na história mas também especificar os critérios pelos
Sugeri, em suma, uma afinidade eletiva entre o ato de prefiguração do campo quais pode saber quando logrou apreender-íhe o sentido ou a significação.
histórico e as estratégias explicativas utilizadas pelo historiador numa dada Corretamente entendida, então, a filosofia da história é um comentário não só
obra. sobre o registro histórico mas também sobre a atividade pela qual uma dada
codificação do campo histórico pode fazer jus ao estatuto de conhecimento. Em
Essas correlações das estratégias tropológicas de prefiguração com os minha opinião, não é por acaso que os eminentes filósofos da história do século
variados modos de explicação empregados pelos historiadores em suas obras XIX eram, com a possível exceção de Marx, quintessencialmente filósofos da
me forneceram um meio de caracterizar os estilos de certos historiadores. E me linguagem. Tampouco^é um acidente o fato de que Hegel, Nietzsche e Croce
permitiram encarar os diversos debates sobre como se deve escrever a história, eram todos dialéticos. Pois, no meu modo de ver, a dialética não é senão uma
debates ocorridos ao longo do século XIX, como essencialmente questões de formalização de um vislumbre da natureza tropológica de todas as formas de
variante estilística dentro de um único universo de discurso. Além disso, permi­ discurso que não estão formalmente comprometidas com a articulação de uma
tiram-me abandonar as categorias usuais de designação das diversas “escolas” visão de mundo dentro dos limites de uma única modalidade de uso lingüístico
de escrita histórica que surgiram no decurso do século, categorias convencio­ - como as ciências naturais passaram a ser depois de sua adesão ao uso
nalmente extraídas de movimentos culturais mais gerais, como romantismo, metonímico no século XVII.
idealismo e positivismo, e de movimentos ideológicos específicos, como libera­
lismo, radicalismo e conservantismo. Afirmei, de fato, que simplesmente rotular Insinuei que a natureza não-científica ou protocientífica dos estudos
a obra de um determinado historiador de “romântica” ou “idealista” ou “libe­ históricos se manifesta na incapacidade dos historiadores de entrar em acordo
ral” ou “conservadora” esconde mais do que revela a dinâmica dos Drocessos - como os cientistas naturais do século XVII foram capazes de fazer - sobre um
de pensamento que o levaram a redigir suas histórias de uma certa maneira. modo específico de discurso. A história, como as ciências humanas em geral,
Meu método analítico me permite especificar, nos diferentes níveis de compro­ continuou dependente dos caprichos, mas também da capacidade generativa,
misso - epistemológico, estético, ético e lingüístico -, precisamente em que da linguagem natural durante todo o século XIX - e é dependente ainda hoje.
consiste o “liberalismo” ou “romantismo” ou “idealismo” de um dado historia­ Em conseqüência disso, a historiografia permaneceu presa à criação de inter­
dor e até que ponto isso determinou a estrutura das obras que ele escreveu. pretações mutuamente exclusivas, embora igualmente legítimas, da mesma série
de eventos históricos ou do mesmo segmento do processo histórico. O que o
Além disso, sustentei que minha abordagem do problema da consciência presente estudo mostra é que, dentro de uma dada tradição de discurso, em que
histórica do século XIX me autoriza a não levar em conta a distinção, agora um conjunto partilhado,de problemas e uma coleção comum de conteúdos são
pouco mais do que um clichê pré-criticamente aceito, entre a história propria­ considerados os problemas cruciais a resolver num dado período de tempo,
mente dita e a filosofia da história. Creio ter penetrado no nível meta-histórico pode-se pelo menos empregar quatro possíveis estratégias interpretativas, con­
em que a história propriamente dita e a filosofia especulativa da história têm sistentes com os tipos de protocolos lingüísticos sancionados pelos tropos
uma origem comum em qualquer tentativa de compreender a história em geral. dominantes da falá corrente. Afirmei que os tipos de historiografia produzidos
Indiquei que a história propriamente dita e a filosofia especulativa da história pelo século XIX correspondem, no nível meta-histórico, aos tipos de filosofia
só são distinguíveis na ênfase, não em seus respectivos conteúdos. Na história da história produzidos durante aquela mesma época.
propriamente dita, o elemento do constructo é deslocado para o interior da
narrativa, enquanto o elemento dos dados “encontrados” é autorizado a ocupar Enquanto os mestres historiadores do século XIX escreviam história nos
a posição de relevo no próprio desenrolar da estória. Na filosofia especulativa modos da metáfora, da metonímia, da sinédoque e da ironia, os filósofos da
da história acontece o inverso. Aqui o elemento do constructo conceptual é história escreviam sobre a escrita da história firmados em posições articuladas
levado para o primeiro plano, explicitamente formulado e sistematicamente desde o interior do mesmo conjunto de modalidades. O que fez com que os
defendido, sendo os dados usados basicamente para fins de ilustração ou filósofos da história parecessem estar cientizando ou estetizando a historiogra­
exemplificação. Concluo, portanto, que toda filosofia da história contém dentro fia de maneira radical foi o esforço que empregaram para impor à reflexão
de si os elementos de uma história propriamente dita, da mesma forma que toda histórica os protocolos lingüísticos sancionados por um uso tropológico especí­
história propriamente dita carrega consigo os elementos de uma filosofia da fico. Hegel, Marx, Nietzsche e Croce melindraram os historiadores convencio­
história plenamente desenvolvida. nais com suas tentativas de ministrar uma linguagem técnica em que se pudesse
META-HISTÓRIA 437
436 HAYDENWH1TE

formas especificamente humanas que tal impulso pode assumir. Muita coisa
ou conversar a respeito da história ou conversar acerca da conversa dos histo­
depende de até onde se pretende levar a investigação de motivo e intenção.
riadores a respeito da história.
Pode-se tentar penetrar no interior da consciência, onde motivos e intenções
Os mestres historiadores do século XIX intuíram que a história não podia fundem-se primeiro com processos psicológicos, depois com processos bioló­
tornar-se nem uma ciência rigorosa nem uma arte pura enquanto não fossem gicos e finalmente com processos físico-químicos nas profundezas do ser huma­
aclarados os conceitos epistemológjcos e estéticos que davam suporte à com­ no. Mas isso exporia o pensamento à ameaça de uma regressão infinita. A
posição de suas narrativas. E muitos deles reconheceram que, para se qualificar decisão de um historiador convencional de tomar ao pé da letra as declarações
como ciência, a história precisaria munir-se de uma linguagem técnica através de intenção consciente de agentes históricos não é mais nem menos legítima do
da qual pudesse comunicar descobertas. Sem tal linguagem, seriam irrealizáveis que a decisão do determinista materialista de reduzir a intenção consciente à
sínteses gerais semelhantes às que se vêem nas ciências físicas. Entretanto condição de efeito de uma causa mais básica, psicofísica, ou a do idealista de
nenhum protocolo linguístico logrou prevalecer entre os historiadores (ou entre interpretá-la como função de um mais geral “espírito da época”. Essas decisões
as ciências sociais em geral) da maneira que a matemática e a lógica haviam têm origem em concepções mais básicas da forma que as teorias históricas
feito nas ciências físicas desde o tempo de Newton. Visto que a história resistia devem presumivelmente assumir. Assim, os historiadores forçosamente discor­
a todo esforço de formalização do discurso, os historiadores se entregaram à dam não somente em tomo da pergunta “Quais são os dados?”, mas também
pluralidade de estratégias contidas nos usos da linguagem corrente em todo o quanto à forma das teorias através das quais esses dados são constituídos como
decurso do século XIX. “problemas” e depois são “resolvidos” ao se fundirem com elas para compor
“explicações”.
Não sei se as quatro estratégias interpretativas que identifiquei esgotam
Em história, como assinalei, o campo histórico é constituído como
todas as possibilidades existentes na linguagem para a representação de fenô­
possível domínio de análise num ato lingüístico que é tropológico por natu­
menos históricos. Mas insisto em dizer que minha tipologia de estratégias
reza. O tropo dominante em que esse ato constitutivo se perfaz irá determi­
interpretativas me permite explicar o prestígio desfrutado por historiadores e
nar tanto os tipos de objetos que estão autorizados a aparecer nesse campo
filósofos da história durante diversos períodos do pensamento oitocentista e
quanto os dados e as possíveis relações que concebivelmente devem predo­
entre diferentes públicos dentro de um dado período desse pensamento. Afirmo
minar entre elas. As teorias subseqüentemente formuladas para dar conta
que o liame entre um determinado historiador e seu público potencial se forja
das mudanças que ocorrem no campo só podem adquirir autoridade como
no nível pré-teórico, e especificamente lingüístico, da consciência. E isso sugere
explicações do “que aconteceu” na medida em que estejam em harmonia
que o prestígio gozado por um historiador ou filósofo da história junto a um
com o modo lingüístico em que o campo foi prefigurado como possível objeto
público específico é atribuível ao fundamento lingüístico pré-criticamente esta­
belecido, sobre o qual se realiza a prefiguração do campo histórico. de percepção mental. Assim, qualquer teoria modelada num determinado
modo está predestinada ao malogro em qualquer público que esteja com­
Em minha opinião, nenhuma dada teoria da história é convincente ou prometido com um modo diferente de prefiguração. Um historiador como
irresistível para um determinado público apenas com base em sua suficiência Marx, que emprega uma teoria explicativa mecanicista, não tem autoridade
como explicação dos “dados” contidos nessa narrativa, porque, em história, num público que está pré-criticamente comprometido com a prefiguração
como nas ciências sociais em geral, não há como preestabelecer o que contará do campo histórico no modo da ironia, da sinédoque ou da metáfora. De
como “dado” e o que contará como “teoria” por meio da qual se possa explicar modo análogo, um historiador como Burckhardt, que estava pré-criticamen­
o que os dados “significam”. De outra parte, não há acordo em torno do que te comprometido Com a prefiguração do campo histórico no modo irônico,
contará como “dado” especificamente histórico. A resolução desse problema não tem autoridade num público que está pré-criticamente comprometido
requer uma metateoria, que estabelecerá sobre fundamentos meta-históricos a com a prefiguração do campo histórico no modo metonímico. Esses com­
distinção entre fenômenos meramente “naturais” e fenômenos especificamente promissos pré-críticos com diferentes modos de discurso e suas estratégias
“históricos”. tropológicas constitutivas respondem pela geração das diversas interpreta­
Diz-se com frequência, é claro, que os dados históricos consistem em ções da história que identifiquei neste estudo sobre a consciência histórica
do século XIX.
todos os artefatos, monumentos e documentos criados pelos homens, e que o
problema da reflexão histórica reside em classificar as formas desses fenômenos Teria sido tentador procurar correlacionar as quatro formas básicas de
e justificar-lhes o aparecimento no tempo histórico identificando os motivos ou consciência histórica com correspondentes tipos de personalidade, mas decidi-
intenções por trás de sua criação. Mas não é difícil apenas distinguir entre um me contra isso por duas razões. Uma é que a psicologia atual se encontra no
fenômeno natural e um fenômeno histórico em certos casos críticos (nas guer­ mesmo estado de anarquia conceptual em que se achava a história no século
ras, por exemplo); também é difícil distinguir, na determinação de motivos, XIX. No meu entender, parece provável que uma análise do pensamento
entre um impulso genericamente animal num agente histórico específico e as
438 HAYDEN WHTTE META-HJSTÓRIA 439

psicológico contemporâneo revelaria o mesmo conjunto de estratégias interpre- adequados, entre as diferentes maneiras de ver a história que essas estratégias
tativas (cada qual se inculcando como a ciência definitiva de seu assunto) que interpretativas alternativas sancionavam.
descobri em minha análise do pensamento histórico. Vale dizer, uma vez que a Assim contemplada, pode-se dizer que a história da reflexão histórica
psicologia não alcançou o tipo de sistematização que caracteriza as ciências oitocentista descreve um círculo completo, indo de uma rebelião contra a visão
físicas, mas permanece dividida em “escolas” conflitantes de interpretação, eu histórica irônica do fim do Iluminismo ao retomo à preeminência de uma
provavelmente acabaria duplicando as conclusões a que cheguei em meu estudo idêntica visão irônica às vésperas do século XX. A era clássica do pensamento
da reflexão histórica. histórico europeu, de Hegel a Croce, representou um esforço no sentido de
Mas, o que é mais importante, recuso-me a admitir que a compreensão constituir a história como o fundamento de uma ciência “realística” do homem,
do pensamento de um determinado escritor tenha muito a ganhar com a da sociedade e da cultura. Esse realismo iria ser alicerçado numa consciência
revelação do tipo de personalidade que sustentava e dava forma à sua obra. que se libertara do inerente ceticismo e pessimismo da ironia do final do
Revelar a “personalidade radical” por trás das “teorias revolucionárias” de Iluminismo por um lado e da fé cognitivamente irresponsável dos primórdios
Marx não me parece aclarar de maneira significativa nem o problema da/omia do movimento romântico, por outro. Mas, nas obras dos seus maiores historia­
específica que seus textos tomaram nem a atração que esses textos exercem sobre dores e filósofos da história, a Europa oitocentista conseguiu produzir apenas
públicos tanto de mentalidade “revolucionária” quanto de mentalidade generi­ uma multidão de “realismos” conflitantes, cada um dos quais estava munido de
camente “liberal”. Com respeito ao chamado enfoque psicobiográfico da his­ um aparato teórico e escorado numa erudição que tornava impossível a qual­
tória intelectual, constato os seguintes problemas. Quando se trata de abordar quer um negar-lhe o direito a uma aceitação pelo menos provisória.
um pensador ou escritor de gênio reconhecido, a aplicação de uma teoria como O prestígio dos vários pensadores que estudei cresceu e minguou de
a psicanálise, que foi concebida para o estudo de neuróticos e psicóticos, parece acordo com as transformações havidas nos estados de espírito dos públicos que
ser um equívoco. De resto, o neurótico é alguém que por definição está os liam. Por sua vez, esses estados de espírito sancionavam a prefiguração do
desequipado para sublimar com êxito as obsessões que constituem o complexo campo histórico em diferentes modalidades de discurso. Não cabe dizer, por­
que determina a estrutura de sua personalidade. No caso de gênios como Hegel, tanto, que a concepção da história de Michelet foi refutada ou demolida pela
Marx, Tocqueville, Michelet ou mesmo Nietzsche, porém, suas obras são prova concepção mais “científica” ou “empírica” ou “realística” de Ranke; ou que a
de sua capacidade sublimadora. Um estudo das biografias de tais gênios poderia obra de Ranke, por sua vez, foi invalidada pelo ainda mais “científico” ou
explicar o interesse deles por certos tipos de problemas, mas pouco faria para “realístico” Tocqueville; ou que todos esses três foram eclipsados pelo “realis­
ajudar a entender as formas específicas de suas obras, as relações precisas entre mo” intrínseco de Burckhardt. Tampouco é possível dizer, com qualquer
a teoria e os dados que existem nelas, e o fascínio que essas obras exercem sobre certeza teórica, que Marx foi mais “científico” do que Hegel em sua abordagem
aqueles públicos cujas propensões psicológicas diferem das dos autores. da história, ou que Nietzsche foi mais “profundo” em suas discorrências sobre
a consciência histórica do que qualquer um deles. Pois o que estava em
Limitei portanto o presente estudo a uma análise da relação entre o nível
manifesto das narrativas históricas, onde são expostos os conceitos teóricos que discussão em todo o século XIX, na história como na arte e nas ciências sociais,
foram usados para explicar os dados, e o nível latente, considerado como o solo era a forma que uma autêntica “representação realística da realidade histórica”
lingüístico em que esses conceitos são pré-criticamente constituídos. Isso foi devia assumir. Tampouco, finalmente, se pode dizer, com qualquer confiança
suficiente para me permitir caracterizar, da maneira que julgo ser axiologica- no julgamento, que houve progresso genuíno na evolução da teoria histórica
mente neutra e puramente formal, as diversas estratégias interpretativas que desde o tempo de Hegel até o de Croce, porquanto cada um dos mestres
foram elaboradas pelos historiadores e filósofos da história do século XIX. historiadores e filósofos da história que estudei revelou um talento para a
Além do mais, permite-me explicar por que é que, embora estudassem cuida­ narrativa histórica ou uma coerência de visão que fez de sua obra um sistema
de pensamento realmente fechado, incomensurável com todos os outros que
dosa e completamente, dentro dos limites de suas variadas competências, os
apareceram em disputa com ele.
mesmos “dados” presentes no registro histórico, os pensadores históricos do
século XIX chegaram a conclusões tão diferentes e, ao que parece, mutuamente Eu poderia, comprometendo-me com uma determinada concepção de
exclusivas acerca do sentido e da significação desses “dados” para suas respec­ ciência, insistir em que Tocqueville foi um historiador mais “científico” do que
tivas épocas. Ao constituírem o campo histórico de maneiras alternativas, Michelet ou Ranke, ou em que Marx foi um teórico social mais “realista” do
implicitamente comprometiam-se com diferentes estratégias de explicação, que Hegel ou Croce. Mas, para formular tal juízo, teria de ignorar o fato de que
construção de enredo e implicação ideológica pelas quais podiam discernir-lhe no plano exclusivamente histórico não tenho base para preferir uma concepção
o verdadeiro “sentido”. A “crise do historicismo” em que a reflexão histórica da “ciência” da história à outra. Tal juízo se limitaria a refletir uma preferência
entrou no decorrer das últimas décadas do século XIX foi, então, pouco mais logicamente anterior, ou pelo modo lingüístico em que Tocqueville e Marx
do que a percepção da impossibilidade de escolher, sobre fundamentos teóricos prefiguraram o campo histórico ou pelas implicações ideológicas de suas con­
440 HAYDENWHITE META-HISTÓRIA 441

figurações específicas do processo histórico. Nas ciências humanas trata-se Tal recomendação, vindo no fim de um livro que se declara axiologica-
ainda não apenas de expressar preferência por um ou outro modo de conceber mente neutro e puramente formalista em suas reflexões sobre o pensamento
as tarefas da análise mas também de escolher entre noções conflitantes do que histórico em seu período áureo, pode parecer incoerente com a ironia intrínseca
poderia ser uma ciência humana satisfatória. de sua própria caracterização da história da consciência histórica. Não nego
No entanto, a reflexão sobre a evolução da sensibilidade histórica do que o próprio formalismo de minha abordagem da história do pensamento
século XIX me permite situar a atual historiografia dentro de uma fase especí­ histórico reflete a condição irônica em cujo interior é gerada a maior parte da
fica da história da consciência histórica em geral. Boa parte da melhor reflexão moderna historiografia acadêmica. Mas sustento que o reconhecimento dessa
histórica do século XX tem-se preocupado, como sua contraparte no início do perspectiva irônica proporciona os fundamentos para transcendê-la. Se se
século XIX, em superar a situação de ironia em que a consciência histórica puder mostrar que a ironia é somente uma dentre numerosas perspectivas da
mergulhou no final do século XIX. Em minha opinião, essa preocupação explica história, cada uma das quais tem boas razões de existência num nível de
a popularidade da atual filosofia especulativa da história e também a revives­ consciência poética e moral, a atitude irônica começará a perder sua condição
cência do interesse pela obra dos grandes teóricos da história do período de perspectiva necessária à consideração do processo histórico. Os historiado­
pré-irônico: Hegel, Marx e> Nietzsche. Embora a historiografia acadêmica res e filósofos da^história estarão então livres para conceptualizar a história,
contemporânea permaneça aprisionada na perspectiva irônica que produziu a perceber-lhe os conteúdos e construir narrativas dos processos históricos na
crise do historicismo no final do século XIX e não cesse de lamentar qualquer modalidade de consciência que seja mais coerente com suas próprias aspi­
interesse pela filosofia especulativa da história por parte tanto de não-profis- rações morais e estéticas. E a consciência histórica estará aberta ao restabe­
sionais como de profissionais, a reflexão histórica em geral continua a conceber lecimento de seus vínculos com as grandes preocupações poéticas,
sistemas de “historiologia” que contestam a perspectiva irônica. científicas e filosóficas que inspiraram os praticantes e teóricos clássicos de
sua idade de ouro no século XIX.
O moderno pensamento histórico ataca essa perspectiva irônica por dois
lados. Procura superar seu ceticismo intrínseco, que passa por sábia cautela e
empirismo, e seu agnosticismo moral, que passa por objetividade e neutralidade
transideológica. Na obra de escritores e pensadores tão diversos como Malraux,
Yeats, Joyce, Spengler, Toynbee, Wells, Jaspers, Heidegger, Sartre, Benjamin,
Foucault, Lukács e uma infinidade de outros, a reflexão histórica contemporâ­
nea expõe ao lado da ironia da historiografia profissional, e como possíveis
alternativas a ela, concepções dos processos históricos que são vazadas nos
modos da metáfora, da metonímia e da sinédoque, cada qual com suas próprias
estratégias de explicação e cada qual com uma implicação ideológica que lhe é
peculiar. Quando se trata de optar entre essas visões alternativas da história, os
únicos motivos para preferir uma à outra são morais ou estéticos.

O falecido R. G. Collingwood gostava de dizer que o tipo de história que


alguém escrevia, ou o modo como refletia sobre a história, era em última análise
uma função do tipo de homem que se era. Mas o inverso também é verdadeiro.
Postos diante das visões alternativas que os intérpretes da história propõem à
nossa consideração, e desprovidos de quaisquer fundamentos teóricos apodic-
ticamente oferecidos para nortear nossa preferência por uma e não por outra,
somos conduzidos de volta às razões morais e estéticas da escolha de uma visão
em contraposição a outra como a mais “realística”. Em suma, tinha razão o
provecto Kant; temos liberdade de conceber a “história” como nos aprouver,
assim como temos liberdade de fazer dela o que quisermos. E, se desejamos
transcender o agnosticismo que uma perspectiva irônica da história impinge-
nos tomada como o único “realismo” e “objetividade” possível a que podemos
aspirar nos estudos históricos, cabe-nos apenas rechaçar essa perspectiva irô­
nica e querer considerar a história de uma outra perspectiva, antiirônica.
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Anarquismo: Julgamentos sobre a História
como modo ideológico, 38-40 e os Historiadores, 257 e s.
em Michelet, 172 e s. Lôwith sobre, 244
Argumentação, modos de, 20-23,26-36,285 o elemento da estória em, 261
e s. o elemento do enredo em, 261 e s.
Pepper sobre, 28-36 o elemento metonímico em, 272 e s.
Auerbach, 3 n.4 o elemento trágico em, 273
o estilo narrativo de, 270-273
o liberalismo de, 245-247
Baylc, Pierre, 62 e s., 80 e s. o pessimismo de, 254 e s., 273 e s.
Benveniste, Emile, 46 n. 13 o viés antimetafísico de, 264-266
Berlin, Isaiah, 33 principais obras de, 152,247
Burckhardt, Jacob: ’£• Rafael como modelo para, 272
a ironia de, 241 e s., 261 e s. Reflexões sobre a História, 2A1 e s.
a sátira em, 154,244,255-258 sobre a alegoria na história, 271 e ss.
a semântica histórica de, 260 e ss. sobre a alegoria na pintura, 262-266
Cicerone, 262-269 sobre a arte renascentista, 263-269
Civilização do Renascimento, 255-258,263, sobre a época moderna, 257-259
270 e ss. sobre a historiografia, 269 e s.
como inimigo de Hegel, 271 e s. sobre a narrativa histórica, 272 e s.
como realista, 265-268 sobre a sintaxe do processo
comparado a Tocqueville, 245 e s. histórico, 258-260
contextualidade, 42 e s. sobre Giotto como narrador, 263 e s.
Croce sobre, 274,409 sobre o realismo, 271-273
e Nietzsche, 274,339-341 sobre o Renascimento, 255-258
e Ranke, 248 sobre o Renascimento como época realis­
e Schopenhauer, 245,248, 254 c s., 263,273 ta, 265 e s.
e Spengler, 273 sobre o simbolismo, 265
450 HAYDENWHTTE META-HISTÓRIA 451

Burke, Edmund, 29 n. 7 Cousin, Victor, 150 elaboração de: Gooch, G. P., sobre a historiografia
e Mane, 292 Croce, Benedctto: modos de, 21-27,67 e s., 285,384 e s. do século XIX, 279 e s.
Burke, Kenneth, 19 n. 4, 29 n. 8,47 n. 13,108 A Filosofia de Giambattista Vico, 422-428 teoria de Hegel sobre a, 107-110 Gossmann, Lionel, 64,67
sobre o Manifesto Comunista, 318 c s. “A História Subsumida no Conceito em Burckhardt, 262-269
Geral da Arte”, 388-393 em Marx, 323 e s. Hartmann, Eduard von, Nietzsche sobre,
a ideologia de, 405 e ss. Épica: 361 es.
Campo histórico: a ironia em, 387 e s., 410 e s. como estrutura de enredo, 67 e s. Hegel, G. W. E:
como “Caos do Ser”, 155-160 a teoria linguística de, 397-400 conceito hegeliano da, 106 c s. a comédia em, 106,128-136
como estrutura, em Hegel, 118-136 e Labriola, 412 e s. Escola histórica, Heine sobre a, 150 e s. a consciência sinedóquica de, 95,134 e s.,
como processo, em Hegel, 125-136 Estética, 396-402 Espírito, doutrina de Hegel do, 118,128 e s. 385 es.
concepção nietzschiana do, 378 e s. “Filosofia do Espírito”, 386 e s., 402 e s. Estória: a tragédia em, 130-136
“Caos do Ser”, no pensamento histórico História da Europa no Século XIX, 404 e s. como elemento da obra histórica, 21-23, como anti-romântico, 98
romântico, 155-160 o elemento cômico em, 403 e s., 410 e s. 73 c s., 285 e s. como crítico da historiografia romântica,
Carlos XII: o liberalismo de, 405,428 e s. e enredo na narrativa histórica, 153-155 110 es.
Voltaire sobre, 77 e s. O Que Está Vivo e o Que Está Morto em Burckhardt, 261 e s. crítica de Croce a, 414-422
Carlyte, Thomas: em Hegel, 414-422 em Herder, 91 e s. crítica de Tocqueville a, 231 c s.
sobre a história como biografia, 82 obras de, 386 tipos de, na narrativa histórica, 285 e s. e Herder, 86 e s.
sobre a história como palingenesia, 158 paradoxo em, 402-405 Estória romanesca: e Marx, 292,315,335 e s.
Cassirer, Emst: sobre a ciência, 390 e s. como modo de elaboração de enredo e Nietzsche, 340 e s., 381 e s.
sobre a idéia da história de Herder, 88 sobre a história e as ciências, 393 e s. na teoria de Frye, 23-27 Estética, 99,101-103
Causalidade: sobre a história c o romance, 394 e s. Filosofia da História, 97
mito da, em Michelet, 161-164
em Herder, 85 sobre a historiografia do século XIX, 279 Filosofia do Direito, 104
em Nietzsche, 371 e s., 282 e s. Nietzsche sobre, 361 e s.
Feuerbach, Ludwig, 150,250
Ceticismo, no Iluminismo, 62 sobre a representação histórica, 407 e s. rejeição por Ranke de, 176
Filosofia da história:
Ciências naturais, e realismo, 60 sobre Burckhardt, 274,409 sobre a distinção entre historiografia
como desafio à historiografia, 286
Collingwood, R. G., 440 sobre Hegel, 414-422 e filosofia da história, 277 e s.
como falsa forma de historiografia, 152-
sobre Croce, 388 e s. sobre história e filosofia, 387 e s., 399402 sobre a distinção entre historiografia
154,277 e s.
Comédia: sobre Marx, 411-415 “original” e “reflexiva”, 106
concepção de Hegel da, 116-118
como estrutura de enredo, 67 e s. sobre os conceitos históricos, 395-397, sobre a distinção entre prosa e poesia,
de Kant, 69-72
e a Providência, 92 406 e s. 99-102
de Leibniz, 74 c s. sobre a épica, 102
e a sinédoque, 201 e s. sobre poesia e história, 407 inevitável ironia da, 383 e s.
em Hegel, 107-110,128-136 sobre Ranke, 394,409 sobre a historiografia “original”, 111
no Iluminismo, 61,75-77 sobre a historiografia “reflexiva”, 112-114
em Herder, 86 e s., 92 Teoria e História da Historiografia, 387, no século XIX, 61, 285-287 sobre a ironia, 110,115-118,122,384
em Humboldt, 197 e s. 402-404
cm Kant, 71 Formalistas, 21 e s. n. 5 sobre a liberdade, 118,122
tropos em, 409 e s.
em Marx, 292, 297, 319,336 e s. Formismo: sobre a lírica, 102
Crônica, como elemento da obra histórica,
em Michelet, 171 e s. como modo de argumentação, 29 sobre a mudança, 132 e s.
21-23
em Nietzsche, 364 e s., 384 e s. em Humboldt, 196-198 sobre a natureza, 124,126
em Ranke, 42 e s., 179 e s., 187-189 Dante, Burckhardt sobre, 265 Foucault, Michel, 19 n. 4 sobre a natureza “dramática” da história,
Frye sobre a, 23-26 Freud, Sigmund, comparado com Nietzsche, 107-109
Danto, Arthur C.» 19 n. 4, 285
na teoria da história de Croce, 402-404, Darwin, Charles, e Schopenhaucr, 249 e s. 373 cs. sobre a natureza trágica da história, 104 e
410 es. Dialética: Frye, Northrop, 19 n. 4 s., 123-125
rejeição por Tocqueville da, 214 c s. como método, 435 sobre a ironia, 242-244 sobre a paixão, 121
Com te, Auguste, 53,286 em Marx, 300 teoria dos enredos de, 23 n. 6,23-26,426 sobre a periodização, 136-144
Consciência histórica: Dilthey, Wilhelm: Fueter, Eduard: sobre a “prosa da vida”, 103
fases oitocentistas da, 52-56,438 e s. e Windelband, 389-391 sobre a historiografia do século XIX, 279 e sobre a Providência, 117
Nietzsche sobre a, 343 e s., 360-363,375 sobre a historiografia do século XIX, 283 s., 283 sobre a recorrência cíclica, 128
Tocqueville sobre a, 212-217 Droysen, J. G.: sobre a historiografia do século XVII, sobre a sátira, 107,110
Conservadorismo: Grundriss der Historik, 280-283 72 es. sobre as espécies de consciência histó­
como modo ideológico, 38-43 Historik, 280-283 sobre Leibniz, 74 e s. rica, 106
em Herder, 90 e s. sobre Ranke, 176 sobre o campo histórico, 118-136
. em Ranke, 184-187 Gallie, W. B., 19 n.4 sobre o espírito, 118,128 c s.
Constant, Benjamin: École des Chartes, 148 Gibbon, Edward, 62,78 sobre o Estado, 121 e s.
sobre o processo histórico, 155-158,233 English Historical Review, 149 ceticismo de, 76 sobre o formalismo, 95-97
Contextualismo: Enredo: como ironista, 67-69 sobre o gênero dramático, 101
como modo de argumentação, 32-36 como explicação, 27 e s. Gobineau, Arthur de, e Tocqueville, 231-234 sobre o indivíduo na história, 123-125
cm Burckhardt, 42-44 e a estória na narrativa histórica, 153 e s. Gombrich, E. H., 18 n. 4 sobre o mecanicismo, 96 e s.
META-HISTÓRIA 453
452 HAYDENWHITE

Herder como inimigo da, 83 e s. a periodização da história do mundo de,


sobre os conceitos históricos, 125-130 a concepção cômica da história em, na filosofia da história, 383 e s. 319-324
sobre os heróis da história, 123 e s. 197-199 na historiografia do século XIX, 287 e s. a semântica histórica de, 318-325
sobre os modos de elaboração do a sinédoque em, 191 na idéia da história de Constant, 156 a sinédoque em, 292,295-297, 323-325
enredo histórico, 106-110 e Ranke, 190 na visão de mundo do Iluminismo, 61, a sintaxe histórica de, 312-318
sobre tipos de pensamento histórico, o formismo de, 196-198 68 e s. a teoria da consciência de, 308 e s.
llles. “Sobre as Tarefas do Historiador”, nos historiadores, 383 e s. a tragédia em, 296 e s., 319,321-323,329,
tropos em, 99-101 190-199 Vico sobre a, 242 336 c s.
Heine, Heinrich, 150 e s. crítica de Croce a, 411-414
Herder, J. G.: Idealismo: Jakobson, Roman, 46 n. 13 e Danvin, 306 e s.
a comédia em, 86-91 como tipo de historiografia, 87 e Hegel, 292,335 e s.
a ideologia de, 91 e organicismo, 92 e s. e Nietzsche, 287-289,342 e s., 372-374,378
Kant, Immanuel:
a sinédoque em, 87 c s. em Leibniz, 78 Manifesto Comunista, 318-326
Nietzsche como crítico de, 375-377
Cassirer sobre, 87 e s. Idealistas, e Herder, 86 e s. 018 Brumário de Luís Bonaparte, 328-335
sobre a filosofia da história, 68-72
como antiironista, 83 e s. Ideologia, 21-23,36-43 sobre a natureza fictícia da história, 70,81 o elemento metonímico em, 291,295 e s.,
como crítico do Iluminismo, 83-87 anarquista, 38-40 323 e s., 385
sobre Herder, 69,90 e s.
como metodologista histórico, 86 e s. conservadora, 38-41 o “materialismo dialético” de, 296,318
sobre tipos de historiografia, 70
e Burckhardt, 245 de Herder, 90 e s. visão cômica da história de, 71 o mecanicismo em, 295 e s., 318-320, 323 e
e Kant, 90 e s. de Maix, 333,336 c s. s., 335 e s.
Koestlin, Karl, 391 e s.
c os idealistas, 86 e s. de Nietzsche, 380 e s. o método analítico de, 297-306, 299-302,
e os neokantianos, 86 de Tocqueville, 205,217-220,224-226, 325- 328
231 es. Labriola, Antonio, c Croce, 412 e s. o organicismo de, 295 e s., 319
e os pré-românticos, 86
do Iluminismo, 80 e s. Laue,Theodorvon, sobre Ranke, 178 o radicalismo de, 285-289,294 e s., 319, 337
e os românticos, 85
e realismo, 60 Leibniz, G. W. von, 81 Schopenhauer comparado com, 249-251
Lovejoy sobre, 90
e tropos, 51 e s. a filosofia da história de, 73-75 sobre a burguesia como herói trágico, 325
Michelet comparado com, 165 e s., 171-173 a sinédoque em, 74
liberal, 38-43 sobre a consciência primitiva, 308-312
o organicismo de, 81,83 e s., 91 como idealista, 78 e s.
teoria de Mannheim da, 36-43 sobre a divisão do trabalho, 310 e s.
relação de Hegel com, 86 e a forma épica de historiografia, 67 e s.
Iggers, Georgc, sobre Ranke e sobre a evolução social, 304-306, 308-313
sobre a causalidade, 85 e Kant, 71 e s.
Humboldt, 190 sobre a relação entre a infra-estrutura
sobre o tempo, 88 Fueter sobre, 74
Iluminismo: e a superestrutura, 313 e s.
Heródoto, 100,111 Monadologia, 78
a filosofia da história do, 61 sobre a sociedade burguesa, 318 e s.
História: Lévi-Strauss, Claude, 46 n. 13
a ironia no, 68 e s. sobre as fases da revolução de 1848-1851,
antipatia dos iluministas pela, 77 e s. Liberalismo:
a realização historiográfica do, 64-68, 78-83 326- 331
como disciplina acadêmica, 147 e s. como modo ideológico, 38-43
a sátira no, 80 sobre as formas das sociedades, 304
como forma trágica de arte, em Hegel, de Burckhardt, 245-247
e a doutrina do progresso, 61 sobre as formas de socialismo, 325 e s.
103-105 de Michelet, 172 e s.
Herder como crítico do, 83-87 sobre as formas do valor, 297-306
conceito de Carlyle de, 158-160 em Croce, 404 e s., 428-430
impulsos metonímicos no, 62,79 sobre as mercadorias, 297-306
diversidade de interpretações na, 286 e s. e Tocqueville, 217-220, 239-240 sobre forma e conteúdo das socieda­
o ceticismo do, 62
e calúnia, segundo Voltaire, 63 e s. Liberdade, doutrina hegeliana da, 118,122 des, 298
o racionalismo do, 76-79
e fábula, cm Voltaire, 63 c s. Linguagem figurada, Voltaire sobre a, 67 sobre forma e conteúdo na história,
Iluministas, a idéia da história dos, 74-78
e filosofia, Croce sobre, 387 c s. Lovejoy, A. O., sobre Herder, 90 328-330
Impressionismo, como realismo, 60
e poesia, Burckhardt sobre, 269-272 Indivíduo: Lõwith, Karl: sobre forma e conteúdo na mercado­
“ficcionalização” da, 62 Hegel sobre o papel do, na história, sobre Burckhardt, 244 ria, 298
Nietzsche sobre tipos de, 357-359,377 e s. 122es. sobre Nietzsche, 341 e s. sobrd forma e conteúdo na revolução
oposta ao mito por Nietzsche, 343 c s. Ironia: Lukács, Georg, sobre Schopenhauer, 249 de 1848-1851, 330 es.
Tocqueville sobre a, 211-214 definição de, 50-52 sobre o caráter farsesco de Bonaparte,
Historiografia: e romantismo, 156,243 e s. Mann, Thomas, 21 n. 5 328-335
clássicos oitocentistas da, 151 e s. cm Burckhardt, 261 e s. Mannheim, Karl: sobre o fetichismo do ouro, 299, 304 e s.,
concepção de Burckhardt da, 270 em Croce, 387 e s., 411 teoria da ideologia de, 37-43,433 e s. 333 e s.
Croce sobre, 279 e s., 283 em Gibbon, 67 e s. Marx, Karl: sobre o proletariado como herói cômico,
Dilthey sobre tipos de, 283 em Kant, 70-72 a comédia em, 292,297,319,336 321-326
Droysen sobre, 280-283 em Mane, 305, 324,332 a dialética em, 300 sobre os modos de produção, 303 e s.,
estilos de, 43 e s. em Nietzsche, 341-344,351, 379,384 a gramática histórica de, 306-312 307 es.
forma analística da, 73 em Tocqueville, 204, 208, 211 e s., 226-230, a interpretação de K. Burke de, 318 e s. Materialismo dialético, 318
Fueter sobre, 279 e s., 283 234-237 a ironia em, 305, 324,332 e s. Mecanicismo:
Nietzsche sobre tipos de, 81 e s. Frye sobre a, 242-244 a natureza tropológica da teoria a rebelião de Herder contra o, 83 e s.
Historische Zeitschrift, 148 e s. Hegel sobre a, 108,111,115 e s., 121 e s., histórica de, 314, 335 e s. ataque de Hegel ao. 96 e s.
Humboldt, Wilhelm von: 139 es, 142-144,384
454 HAWENWHTTE META-HISTÓRIA 455

como modo de argumentação, 31 e s. Narrativa: Obra histórica: “Diálogo sobre a Política”, 180
em Marx, 295-297,318-320, 323 e s., elementos da, 153-155 a argumentação como elemento da, 21 e s. c Burckhardt, 248
334-336 histórica, 434 e s. a crônica como elemento da, 21 c s. e Hegel, 176
na historiografia de Voltaire, 77 c s. a filosofia da história como fase como ícone verbal, 284-287 e Michelet, 167-169,170-173,189 e s.,
no pensamento do Iluminismo, 76 c s. implícita da,284, 286 Croce sobre a, 284-286, 399 203 es.
Meinecke, Friedrich, 403 idéia de Burckhardt da, 272-274 o elemento da estória na, 285 e s. e o romantismo, 175 e s., 198-200
Natureza, doutrina de Hegel da, 124,126 teoria da, 19-22,284 e s. Histórias das Nações Latinas e Germâni­
Memória, e história cm Nietzsche, 354-364
Neokantianos, c Herder, 85 Organicismo: cas, 176-178
Metáfora:
Niebuhr, G. B., sobre a história como como modo de argumentação, 30-32 implicações conservadoras das teorias
definição de, 48
palingenesia, 158 e idealismo, 92 e s. históricas de, 185-187
em Marx, 300-304,308 e s., 323 e s.
Nietzsche, Friedrich: e romantismo, 92 e s. Nietzsche como inimigo de, 361-363
em Michelet, 171 e s.
a ideologia de, 380 em Herder, 81,83 e s., 91 e s. o elemento cômico em, 41-43,176,181,
em Nietzsche, 343 e s., 347 e s., 350,352-
a ironia em, 341-344,351,378-380,383 e em Marx, 295-297,318-320 187-189
354,358-360,378-381
a visão cômica de, 365,384 e s. em Michelet, 171 e s. o organicismo em, 187-189,189 e s.,
no conceito de história de Carlyle, 159-160
como filósofo da história, 378 e s. na historiografia de Ranke, 187-190, 199-201
Método histórico:
“ e Freud, 373 e s. 199 es. principais obras de, 152
concepção de Ranke do, 177 e s.
e Hegel, 340 e s., 361 e s., 381 e s. sobre a Revolução Francesa, 182-184
redefinição de Nietzsche do, 370-372
e Kant, 375-378 Pensamento histórico, Schopenhauer Von Laue sobre, 178
Metonímia:
c Marx, 287-289,342 e s., 372-374,378 sobre o, 251 Realismo:
concepção de Nietzsche da, 342-344, 353
e o romantismo, 341-343 Pepper, Stephen C., sobre os modos de ar­ como um problema da história intelectual
es., 366-368
e os iluministas, 82 gumentação, 28-36,38 n. 12 do Ocidente, 18 n.4
definição de, 49 e s. concepção de Burckhardt do, 265-268,
em Burckhardt, 272 e s. e Ranke, 362 Periodização:
e Schopenhauer, 254 c s., 375 e s. da história social, em Marx, 313 271-273
em Hegel, 137 c s. concepção romântica de, 154-160
em Marx, 291,295-297,310-312, 323 e s, Genealogia da Moral, 364-378 em Hegel, 136-144
Lõwith sobre, 341 e s. no Manifesto Comunista, 319-324 concepções oitocentistas de, 59-62
385 cs. de Tocqueville, 217
no pensamento do Iluminismo, 62,75, Nascimento da Tragédia, 341-355 Pessimismo, em Burckhardt, 254 e s., 273 e s.
o escopo da teoria histórica de, 287-289 e consciência histórica, 53 e s.
78-81 Philosophes, 65
o método super-histórico de, 364 e s. e ideologia, 60
oposição de Herder à, 83-85 o pensamento histórico dos, 78 e s.
o niilismo de, 380 es. e impressionismo, 60
Michelet, Jules, 286-289 Poesia, e história:
o radicalismo da filosofia de, 285-289 e o problema da história, 59
a metáfora em, 166-168,171 e s. em Burckhardt, 269-273
“O Uso e Abuso da História”, 81 e s., e os positivistas, 59
como anarquista, 172 e s. em Croce, 407 e s.
354-364 e utopismo, 61
como antiironista, 166 e s. Popper, Kart, 18 n. 4 na historiografia do século XIX, 62,
sobre a causação, 370 e s. Positivistas:
como romântico, 165 e s. 286 es.
sobre a consciência histórica, 344, 358 e ataque de Croce aos, 389 e s.
como um liberal, 171-173 nas ciências naturais, 60
360-363,375 es. como realistas, 59
comparado com Herder, 171-173 Nietzsche sobre o, 350 eT.
sobre a evolução, 370-372 Pré-românticos, e Herder, 86 e s.
comparado com Nietzsche, 381 tipo micheletiano de, 171 e s.
sobre a interpretação, 340 Progresso, doutrina do, no Iluminismo, 61
comparado com Ranke, 168 e s., 170 e s., tipo rankiano de, 176
sobre a memória, 344-346, 354-364
187-189,203 e s. Providência Renascimento, Burckhardt sobre o, 255-258
sobre a metáfora, 344,349, 353 e s., 359 como mito da comédia, 92
comparado com Tocqueville, 204-206 Révue historique, 148
e s-, 379-381
eVico, 161,170 es. em Herder, 92 Rivista Storica Italiana, 148
sobre a objetividade, 360 e s. no sistema de Hegel, 117 e s.
e Voltaire, 61 Românticos:
sobre a sinédoque, 343 e s., 353, 360 visão iluminista da, 76 e s.
Histoire du XlJfsiècle, 169 e s. crítica de Hegel aos, 115 e s.
sobre a tragédia, 345-348, 363 e s., 371
História da França, 169 e s. e a ironia, 156
es., 385
História da Revolução Francesa, 163-170 Radicalismo: e Marx, 292 e s.
sobre as origens da religião, 372
o elemento cômico cm, 171 e s. como modo ideológico, 38-43 relação de Herder com os, 85
sobre as origens da sociedade, 369-373
o organicismo de, 171 e s. de Marx, 318 e s. Romantismo:
sobre moralidade e história, 364-375
O Povo, 163 de Tocqueville, 211 e s. “como realismo, 155-161
sobre o campo histórico, 378 e s.
o realismo de, 171 e s. sobre o método histórico, 370 e s. e os estudos históricos, 149-151 crítica de Hegel ao, 98
Précis d 'histoire modeme, 163-165 sobre o valor da história, 356 e s. Ranke, Leopold von: e a ironia, 243 e s.
principais obras de, 152 sobre os tipos de historiografia, 357-359 a epistemologia de, 176-179 e o modo metafórico em Hegel, 98 e s.
sobre a história como ressurreição, 163-170 sobre von Hartmann, 361 e s. a gramática histórica de, 180-182 e o organicismo, 92 e s.
Mill, John Stuart, 239 Niilismo, em Nietzsche, 379-381 a sinédoque em, 188 c s. Nietzsche como inimigo do, 341-343
Mink, Louis O., 18 n. 2 e n. 4 Novalis (Friedrich von Hardenberg), a sintaxe histórica de, 182-184 rejeição por Ranke do, 175 e s.t 198-200
Mito, Nietzsche sobre o, 344 sobre a história, 157 “As Grandes Forças”, 179
Momigliano, Arnaldo, sobre Ranke, 190 como realista, 176 Sátira:
Monumenta Germaniac Histórica, 147 e s. Objetividade, Nietzsche sobre a, 360 e s. crítica de Croce a, 393 e s., 409 e s. como modo historiográfico, 63
456 HAYDENWHITE

em Burckhardt, 244,255-258 o pensamento antidialético de, 209 e s.


Frye sobre a, 23-26 o radicalismo de, 212
Hcgel sobre a, 106 e s., 110 e s. o realismo de, 216
implicações ideológicas da, 80 e s. principais obras de, 152
no Iluminismo, 79 c s. sobre a poesia, 212 c s.
Schopenhauer, Arthur. sobre a Revolução Francesa, 223-231
a filosofia de, 248-254 sobre os tipos de consciência histórica,
a ideologia de, 249 212-216
a influência de, 248 e s., 253 e s. Souvenirs, 235
comparado com Marx, 250 Tragédia:
e Burckhardt, 245 e s., 248,254 e s., 262 e a concepção de Nietzsche da, 345-348, 359
s., 273 e s. es., 363 es., 371 es., 385
e Feuerbach, 250 em Marx,297,319,336es.
e Nietzsche, 255,375 e s. em Tocqueville, 206 e s., 215 e s., 226-230
e o darwinismo, 249 Frye sobre a, 23-26
Lukács sobre, 249 Hcgel sobre a, 103 e s., 106-110,123-125,
sobre a natureza humana, 250 e s. 130-136, 340es.
sobre as artes, 252-254 na teoria histórica de Burckhardt, 273
sobre o pensamento histórico, 251-253 Tropos:
sobre o suicídio, 249 Benveniste sobre os, 46 n. 13
sobre o tempo, 253 e s. e ideologia, 51 e s.
teoria da história de, 253 e s. em Croce, 410 e s.
Sinédoque: em Hegel, 116
como modo de consciência histórica, em Marx, 314,323-327,335 e s.
105 e s. em Nietzsche, 359
definição de, 48-50 Jakobson sobre os, 46 n. 13
e a comédia, 201 e s. K. Burke sobre os, 46 n. 13
em Hcgel, 95,126-130,133-135,385 Lacan sobre os, 46 n. 13
em Herder, 87 e s. Lévi-Strauss sobre os, 46 n. 13
em Humboldt, 191 e s. teoria dos, 45-52,434
em Marx, 292 e s., 295 e s., 323 e s. Ullmann sobre os, 46 n. 13
em Ranke, 188-190 Vico sobre os, 46 n. 13
na historiografia do Iluminismo, 77 e s. Tucídides, 106,111,252
na obra de Leibniz, 74 e s.
Nietzsche sobre a, 343 e s., 353 e s., 366 e s. Ullmann, Stephen, 46 n. 13
Utopismo, e realismo, 61
Tempo:
em Herder, 88
Vico, Giambattista, 65,137
em Schopenhauer, 253
Tocqueville, Alexis de:
como critico do racionalismo, 66 COLEÇÃO PONTA
comparado com Hegel, 99 e s.
a concepção cômica da história de, 215
Croce sobre, 422-428
a ideologia de, 205,217-220,224-232, 1. Wittgenstein e a Filosofia Austríaca: Questões
e Marx, 292 e s.
238-240
e Michelet, 161,170 e s. Rudolf Haller
a ironia de, 204, 208,211 e s., 226-230,234-
sobre a ironia, 242 e s. 2. Antigos Cultos de Mistério
236,243 e s.
teoria dos tropos de, 46 n. 13
a semântica histórica de, 222 e s. Walter Burkert
Voltaire, 80
a sintaxe histórica de, 220-222
como critico do fabuloso, 63 3. Fundamentos da Composição Musical
a visão trágica de, 206 e s., 215 e s., 226-230
Filosofia da História, 64-66 Amold Schoenberg
Democracia na América, 218-222
Henríada, 107
dualismo em, 208-211 4. Meta-História
História de Carlos XII, 64, 68,77
e Burckhardt, 245 Hayden White
sobre a linguagem figurada, 67
e Gobineau, 231-235
sobre o passado, 76-78 5. Metodologia Econômica
c Michelet, 204 e s.
e o hegelianismo, 231 e s. Mark Blaug
O Antigo Regime, 224-231 Walsh, W. H„ 33
o liberalismo de, 217-220,239 e s. 6. Homo Hierarchicus
Windeiband, Wilhelm, 389
Louis Dumont
Formato 15,5 x 23 cm
Número de Páginas 464
.'4 Projeto Gráfico Marina Mayumi Watanabc
Capa Marina Mayumi Watanabc
Foto da Capa Osvaldo Gomes da Silva
Editora de Texto Alice Kyoko Miyashiro
Revisão de Texto Alice Kyoko Miyashiro
Revisão de Provas Shizuka Kuchiki
Mirian Scnra
Bcth Honorato
Liscna Fujimura
Valéria Franco Jacintho
Ricardo Ondir
Arte-final Julia Yagi
Secretaria Editorial Rose Pires
Mine Akiyoshi
Divulgação Yuri Brancoli
José Carlos Antonio
Flávia Banchcr
Mancha 27 x 46,5 paicas
Tipologia Times Roman 10/12,5
Fotolito Quadri-Color
Impressão Imcsp
Papel Cartão Supremo 240 g/m2 (capa)
Wcstcrprint 75 g/m2 (miolo)
Tiragem 1500
história - é, numa palavra, seu caráter de mzta-Ais-
tória.
Haydcn White descobre nas formulações meta-
históricas, então, um processo análogo ao da meta-
linguagem, e aplica, sobre o discurso do historia­
dor, os tropos linguísticos que nele atuam como
prefigurações do real. Isso lhe permite ver, por
exemplo, como o modo mtlonimico pelo qual Marx
apreende os fatos é determinante de uma concep­
ção de mundo que oscila entre o mecanicismo c a
dialética.
O rigor atingido pela inovadora formalização
linguística de Haydcn White, todavia, nào deságua
na sentenciosidade dos sistemas fechados, em que
a partida está ganha de antemão. Pelo contrário, ele
toca no ponto nevrálgico da historiografia moder­
na: se a linguagem é a materialidade mais imediata
do historiador, a especulação metódica sobre a
escrita não seria entretanto um afastamento irônico
daquilo que a linguagem nomeia - um afastamento
dos fatos? Não é essa a cilada em que caíram os
céticos pensadores de nossa modernidade - Spen-
gler, Heidegger, Benjamin, Foucault, Lukács? Em
sua premeditada inconclusão, portanto, Meta-Histó-
ria nos convida a pensar que o reconhecimento das
estratégias narrativas é o primeiro passo que nos
permitirá transcender a evanescência irônica dos
discursos e retornar ao teatro dos acontecimentos
históricos - recuperando, assim, a herança reflexiva
dos clássicos do século XIX.

10596990^214
907.204 W584 1992 • Hayden White é professor de Estudos Históricos da
BPH t.1839-9 Universidade da Califórnia, Santa Cruz.

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