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e a hipocrisia política, O masoquismo nacional do burguês pétainista ~
ou, quinze anos mais tarde, a exaltação nacionalista da «Argélia fran- i
cesa» levam ao mesmo sistema de justificações intelectuais e morais,
í
de que apenas as modalidades variaram com o acontecimento. Porque
privilegiar então hoje a ideologia de esquerda e o intelectual de esquerda?
É que a última grande batalha da ideologia de direita foi empreendida
- e perdida - pelo fascismo: desde o fim da guerra, a elaboração
ideológica tornou-se por este facto quase um monopólio da esquerda.
Como Raymond Aron mostrou, esta esquerda vitoriosa a quem
a história «dava razão» abusou loucamente do famoso tribunal hege-
liano, tornado «o ópio dos intelectuais», antes mesmo que o tribunal
político-moral do estalinismo se desmantelasse com a morte de Esta-
line. Combinavam-se aí certeza histórica e juízo moral, reforçando-se
mutuamente: ora, os dois elementos deste apogeu da idade ideológica
foram atingidos ao mesmo tempo pela evolução do mundo contem-
porâneo.
A desestalinização pôs em causa justiça e verdade no interior do
mundo socialista: os «indecentes» não eram unicamente os burgueses,
e a União Soviética não estava forçosamente, sempre e por essência,
na vanguarda da história humana. Primeira diáspora dos intelectuais
comunistas e progressistas: um mundo inteiro desfazia-se -lembro-me
disso, eu estava lá. Varsóvia, Budapeste, o cisma chinês apenas vieram
acentuar o processo, consagrando o fim de um marxismo-leninismo
ao mesmo tempo encarnado e universal. Mas é justamente nestes anos
que uma nova miragem universalista, que um messianismo de substi-
tuição se ofereceu aos intelectuais revolucionários, o da luta do Terceiro
Mundo pela sua independência, isto é, no contexto francês, o apoio
da F.L.N. na guerra da Argélia. Esta experiência suplementar do extre-
mismo ideológico foi tanto mais característica dos meios de intelectuais
de esquerda quanto foi vivida no isolamento social, desacreditada pelo
Partido Comunista, incompreendida pela classe operária: o vínculo
(mítico) do intelectual ocidental com os oprimidos e os agentes da
revolução mundial era procurado para além das fronteiras, num adver-
sário por definição supostamente socialista e internacionalista. O felá
muçulmano cantado por Fanon tinha-se tornado o último aliado em
data do derrotismo revolucionário de tipo leninista, Sabe-se o segui-
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* Maitresse, em francês, tem dois sentidos, que o autor aqui refere simulta-
neamente: o de «mestra» (de escola) e o de amante, eventualmente infiel. (N. do R.)
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sempre, pelo menos em tudo o que não diz respeito ao período contem-
porâneo. Em contrapartida, porém, quantos testemunhos não escri-
tos cujo inventário e descrição sistemáticos estão ainda por fazer!
O habita! rural, a disposição das terras de cultura, a iconografia reli-
giosa ou profana, a organização do antigo espaço urbano, o arranjo
interior das casas - seria interminável a lista de todos os elementos
de civilização cujo inventário e classificação minuciosos permitiriam a
constituição de séries cronológicas novas e poriam à disposição do
historiador um material inédito, que reclama o alargamento conceptual
da disciplina. É que não são as fontes que definem a sua problemática,
mas é, sim, a sua problemática que define as fontes.
Não se deve sem dúvida desenvolver demasiado este tipo de argu-
mentação. Existem, em história, do ponto de vista das exigências docu-
mentais de certas ciências sociais contemporâneas, lacunas irreparáveis:
não se vê que fontes de substituição ou que extrapolações possam
encher as colunas de um quadro de input-output da economia francesa
na época de Henrique IV, para já não falar de períodos mais recuados.
Mas isto significa sobretudo que, conceptualmente, a história não é
redutível à economia política. Na realidade, para o historiador, o pro-
blema das fontes é menos o das lacunas absolutas do que o das séries
incompletas: não só por causa das dificuldades de interpolação ou
extrapolação, mas em consequência das ilusões cronológicas que são
susceptíveis de acarretar.
Tomarei o exemplo clássico das revoltas populares na França no
ínicio do século XVII: em consequência da grande abundância das fontes
administrativas sobre este assunto, na primeira metade do século XVII,
este período tornou-se o sector cronológico mais bem conhecido da
história das revoltas camponesas, entre o fim da Idade Média e 1789.
Os acasos da conservação fizeram até com que uma grande parte destes
arquivos (o fundo Séguier) fosse parar finalmente a Leninegrado, e
permitisse desta forma a alguns historiadores soviéticos avançar uma
interpretação marxista do «Antigo Regime» francês que suscitou uma
polémica e valorizou tanto os arquivos. Mas existe um problema que
precede o debate de interpretação - o exame da hipótese implícita
comum às duas interpretações: a de que se produz, neste período, isto
é, no momento da construção do Estado absolutista e de um cresci-
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modo, conforme ao modelo malthusiano, esse modelo que Malthus
descobre e eterniza quando precisamente deixa de ser verdadeiro, no
momento do take-off inglês: a economia do antigo Languedoc rural
é dominada a longo prazo pela relação da produção agrícola com o
número dos homens; a incapacidade da sociedade para elevar a produ-
tividade agrária, o impasse fundiário, isto é, a ausência de uma reserva
indefinida de boas terras, constituem, pela mesma razão que a famosa
«escassez monetária» cara aos historiadores dos preços, outros tantos
bloqueios estruturais a um crescimento decisivo. Ao perder o seu papel
central, a explicação monetária é assim integrada num sistema múlti-
plo e unificado de interpretação.
Esta estrutura da economia antiga age a longo prazo como uma
regra de funcionamento interno. No entanto, não impede que no inte-
rior do sistema as diferentes variáveis descritas - número dos homens,
evolução da propriedade, repartição da renda fundiária, movimento
da produtividade e dos preços, etc. - permitam referenciar períodos,
segundo o lugar que cada uma delas ocupa em relação ao conjunto,
segundo os ritmos anuais e os ciclos que cada curva particular traduz.
Assim, a estrutura inclui cronologicamente "Váriostipos de combinações
de séries, quer dizer, diversas conjunturas. E é até a partir do exame
atento destas sucessivas conjunturas e dos seus traços diferentes e
comuns que esta estrutura é revelada. Isto, seja dito de passagem,
talvez permita esclarecer o debate entre sincronia e diacronia que separa
muitas vezes antropólogos e historiadores e que está neste momento no
cerne da evolução das ciências sociais. O movimento periódico, a curto
e a médio prazo, que constitui o «acontecimento» na ordem econó-
mica, não é necessariamente contraditório com uma teoria do equilí-
brio geral. A sua descrição empírica pode permitir, pelo contrário,
determinar as condições teóricas deste equilíbrio: a elasticidade que
manifesta indica os limites em que se inscreve.
3. Mas o exemplo precedente - o Languedoc de Le Roy Ladurie
- é um exemplo privilegiado na medida em que a correlação entre as
diferentes séries demográficas e económicas é feita no interior de um
espaço regional relativamente homogéneo e de um sector delimitado da
actividade humana que é a economia agrária. Na realidade, a história
serial «sectorial», mas estendida a espaços diferentes, leva à análise
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Da história-narrativa à história-problema *
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estudo, mas por um tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo não
tem de facto outro sentido que dizer que dispõe todos os objectos que
estuda no tempo: fazer história é contar uma história.
t Contar é, na realidade, dizer «aquilo que aconteceu»: a alguém
t, ou a alguma coisa, a um indivíduo, a um país, a uma instituição, aos
i homens que viveram antes do instante em ql:e se narra e aos produtos
~ da sua actividade. É restituir o caos de acontecimentos que constituem
o tecido de uma existência, a trama de uma vida. O seu modelo é muito
naturalmente a narrativa biográfica, porque conta algo que se apresenta
!
dos grandes acontecimentos entre esse início e esse fim. A divisão do
tempo é portanto aqui inseparável do carácter empírico do «assunto»
da história.
Uma história «de França» ou de qualquer outro país obedece no
fundo à mesma lógica: não pode, por definição, começar senão pelas
origens da França, contar em seguida as fases do crescimento e da
aventura nacional por meio de cortes cronológicos. A única diferença
está em que uma tal história permanece aberta ao futuro: mas a narração
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simplesmente técnicas, mas que implicam em cada fase escolhas meto- .1
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constituídos de uma vez por todas no século XIX com o depósito público
de arquivos: têm uma elasticidade quase indefinida, e muitos vezes
é a curiosidade do historiador, o problema que ele põe a si próprio,
que revela a sua existência. O exemplo clássico neste campo é o dos
registos de paróquia, que dormiram nas freguesias francesas, durante
séculos, até que o nascimento recente da demografia histórica, nos
anos cinquenta, viesse descobrir o seu imenso valor. Por outro lado,
o historiador que não encontra, para responder às questões que se coloca,
dados constituídos directamente pertinentes pode na maioria dos casos
contornar o obstáculo com um tratamento prévio desses dados, que lhe
permita a sua utilização em segundo grau.
Deste ponto de vista, existe sempre uma possibilidade de utilização
substitutiva dos dados históricos. Distingui, num artigo recente, três
tipos de dados seriais: o primeiro, o mais simples e mais fácil de manejar,
é aquele que agrupa os dados quantitativos disponíveis constituídos
de modo a responder directamente à pergunta que o investigador põe.
É o caso, por exemplo, dos nascimentos, casamentos e óbitos nos
registos de paróquia para o historiador demógrafo: deles se extraem,
com uma manipulação mínima e estandardizada (a técnica da recons-
tituição das famílias), cálculos clássicos de taxas demográficas. Ou ainda
resultados eleitorais para o especialista da história das atitudes políticas.
O segundo tipo de fontes inclui igualmente dados quantitativos, mas
utilizados de modo substitutivo, para responder a questões comple-
tamente diferentes das razões por que tinham sido agrupados esses
dados. É o caso, por exemplo, do historiador que utiliza o cálculo dos
intervalos entre nascimentos para estudar a difusão da contracepção
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É por isso que este tipo de história é marcado ao mesmo tempo, e con-
traditoriamente, pelo curto prazo e pela teleologia; como o aconteci-
mento, irrupção brusca do único e do novo no encadeamento do tempo,
não pode ser comparado com nenhum antecedente, o único meio de
o integrar na história é dar-lhe uma finalidade. E como a história se
desenvolveu como modo de interiorização e de conceptualização do
sentimento do progresso, o «acontecimento» constitui a maior parte
das vezes a etapa de um advento: República, liberdade, democracia,
razão. O «facto» histórico que por excelência constitui, apesar de ser
reconstituído com inesgotável paciência e regras de erudição muito
restritas, continua a retirar o seu sentido apenas de uma história global
definida exteriormente e independentemente dele. O tempo dessa histó-
ria é feito de uma série de descontinuidades descritas sobre o modo do
contínuo: a matéria clássica de uma narrativa. .
A história «não evenemencial» recusa a narrativa - pelo menos
esse tipo literário de narrativa - na medida em que define antes de tudo
problemas. Vivendo de empréstimos às ciências sociais contempo-
râneas - demografia, geografia, sociologia, etc. -, renovou a curiosi-
dade histórica, especificando-a. O seu primeiro movimento consiste em
decompor os vários níveis da realidade histórica para reter apenas alguns
deles, ou um só, e descrevê-lots) o mais sistematicamente possível, ou
seja, isoladamente. Por isso constrói «factos» históricos duplamente
diferentes dos da história «evenemencial»: estranhos, na maioria dos
casos, ao campo clássico das grandes mutações políticas e já não defi-
nidos pelo seu carácter único, mas pelo seu valor comparativo com
os que o antecedem e os que lhe sucedem. O «facto» já não é o aconte-
cimento escolhido porque marca os tempos fortes de uma história cujo
«sentido» foi provavelmente constituído, mas sim um fenómeno selec-
cionado e construído em função do seu carácter repetitivo, e portanto
comparável num dado lapso de tempo. O documento, os «factos» já
não existem por si, mas em relação à série que os antecede e lhes sucede;
é o seu valor relativo que se torna objectivo, e não a sua relação com
uma incompreensível substância «real». Daí que a história renove as
suas curiosidades e os seus métodos. Os corpus históricos são, por
definição, de natureza tão diversa que o historiador pode reconstruí-I os
segundo as suas preferências ou competências, tratá-los como econo-
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4 Tiro estas informações sobre o colégio de Juil1y de uma tese muito recente
(1978), ainda inédita, de Etienne Broglin: De T'Académie royale à t'instttution, le
Collêge de Juilly, 1745-1828.
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uma disciplina suspeita, que deve ser mantida sob a estreita vrgi-
lância dos poderes públicos não só nos estabelecimentos de ensino
secundário, como também nas faculdades de letras, cujas conferên-
cias são nessa altura acontecimentos políticos e mundanos. Enquanto
a história vegeta nos colégios, Guizot enobrece a Sorbonne atacando
o regime de Villêle em nome do terceiro estado, da antiga monar-
quia e da marcha da civilização. Quando é destituído, em 1822, é
de novo a antiga grande burguesia do terceiro estado, a tradição pro-
testante, a liberdade, 1789 enfim, que são atingidos por intermédio
dele. A queda de Villêle, em 1827, consagra também a desforra da
história, que não tarda a ser emancipada da tutela das humanidades,
sendo-lhe atribuído, nas classes secundárias, um professor especial
(cedo admitido por agregação particular).
Mas é em 1830, com o regime de Julho, que se abre um período
decisivo para o ensino da história. Não só, evidentemente, porque os
dois maiores historiadores franceses do século XIX, Guizot e Michelet,
brilham então com todo o seu esplendor, um no poder (o que, injus-
tamente aliás, vai comprometer a sua fama de bistoriador), o outro
na oposição erudita e republicana do Collêge de France. Mas sobretudo
porque o regime de Orléans, nascido da sublevação parisiense, tem por
única legitimidade a que retira ao mesmo tempo do Antigo Regime e da
Revolução Francesa. Ao contrário do bonapartismo, não dispõe, para
esconder a sua miséria jurídica, de nenbuma lenda, de nenhum assen-
timento prévio ao despotismo. Tem de se situar no ponto exacto em que
se justapõem e se somam as duas tradições liberais da história nacional,
a da nobreza e a da burguesia, ou seja, re-estabelecer 1789, mas como
traço de união entre o passado e o futuro e não como linha de divisão
e despojo de guerra civil. Louis-Pbilippe transforma o palácio de Ver-
sailles em museu das glórias nacionais e manda regressar o caixão do
Imperador aos Invalides. A história de França toma-se assim a grande
instância de legitimação do regime, que a envolve em atenções como
criança mimada, e testemunho disso é o enorme esforço de conservação
do património arquivista nacional que foi empreendido nesses anos.
Essa vontade política traduz-se igualmente ao nível do ensino. Em
1838, o ministro da Instrução Pública, Salvandy, remodela os programas
de história deslocando-os cronologicamente 'para: história sagrada,
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O que faz portanto com que a história seja, no fim do século XIX,
uma matéria ensinável de pleno direito é inseparavelmente um método
científico, uma concepção da evolução e ainda a eleição de um campo
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A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA
São essas tradições distintas que o século XIX vai remodelar profun-
damente e especificar para delas fazer, no início da Hl República, a
história que se ensina aos jovens franceses. Remodelar significa antes
de mais excluir. A cultura clássica tinha indicado o caminho come-
çando por colocar fora da história certos sectores do imenso espectá-
culo dado pelas sociedades humanas. As «viagens» representam um
inventário do espaço, antes de se tomarem geografia e antropologia.
As civilizações não europeias, do passado e do presente, que exigem
investimentos linguísticos especiais, tendem a constituir campos espe-
cíficos. Esta tendência prossegue com a Restauração e a Monarquia
de Julho, como se pode ver ao nível do ensino mais elevado, no Collêge
de France. A história das religiões, na mesma época, separa-se igual-
mente do tronco geral da história para se tomar um campo separado
da erudição. Em sentido inverso, em razão da decadência do latim
como língua escolar, a história erudita tende a recuperar progressiva-
mente a Antiguidade greco-romana como matéria que deve ser ensi-
nada sob um ângulo que não seja o de um modelo literário. Aquilo
que constitui a identidade cultural da Europa das letras tomou-se agora
a sua geneaIogia.
É que a grande mutação do século XIX, e em particular dos anos
1820 e 1830, está aí: a história é a árvore genealógica das nações euro-
peias e da civilização de que são portadoras. Guizot ainda tem como
modelos a França e a Inglaterra, Michelet já só tem a França. A partir
do momento em que o discurso enciclopédico do século XVIII recebe
essa significação, a história nacional é liberta da maldição «feudal»
que a Revolução fez pesar sobre ela e da condenação que a envolvia.
Constitui ao mesmo tempo uma imagem privilegiada (mas não única)
do progresso da humanidade e uma «matéria» que deve ser estudada,
um património de textos, de fontes, de monumentos que permitem
a reconstituição exacta do passado. É na confluência dessas duas ideias
que se instala a «revolução» positivista: dá-Ihes, às duas, a bênção
da ciência. A história dali em diante já tem o seu campo e o seu método.
Toma-se, sob os dois aspectos, a pedagogia central do cidadão.
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A «Lioraria» * do Reino de França
no século XVIII**
Para o historiador, o livro é sempre um objecto de perplexidade.
Envolto no seu título como numa definição intemporal, está para sem-
pre fechado e não cessa de revestir apesar disso sucessivas significações.
Produto de uma elaboração individual por excelência, supõe a comuni-
dade de uma linguagem e de todo um sistema de cumplicidade social.
É duplamente misterioso, como invenção e como familiaridade; de
facto, o seu estudo cristaliza todas as dificuldades do ofício de histo-
riador: a passagem do individual ao colectivo, a relação do individual
com o social, os juízos do tempo sobre o tempo, a medida da inova-
ção e da inércia. Mesmo quando está coberta por tantas sedimentações
críticas, a escrita dos homens está longe de ter sido decifrada em termos
de história.
Há cento e cinquenta anos que a tradição literária segue de perto
os segredos do livro a dois níveis: simultaneamente do interior, pelo
estudo do próprio texto, e do exterior, pela erudição biográfica. É assim
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A OFlOINA DA HIST(JRIA
1 O exemplo foi dado neste campo pela obra de L. Febvre e H.-J. Martin,
Le Livre (col. «Evolution de I'Humanité»),
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A OFICINA DA HISTóRIA
nos registos dos pedidos e assim os cortados pela censura não escapam à
enumeração global. Tradicionalmente, a autorização pedida é um pri-
vilégio ou uma simples licença da chancela. A primeira, mais onerosa 3,
confere ao requerente um monopólio sobre a obra por um período
determinado. A segunda não é exclusiva, mas evita as despesas do
privilégio. Ambas são públicas, explicitamente indicadas na obra e
equivalentes a um acórdão do Conselho. O código da biblioteca de
1723 reafirmou este procedimento que já existia há mais de um século.
Os dois tipos de licença são revogáveis e temporários, por conseguinte
renováveis; ao expirar o prazo coberto pelo privilégio, o impressor que
quiser manter o seu monopólio ou preparar uma reedição pede uma
renovação ou uma continuação do privilégio, que figura no mesmo
registo e constitui assim um indicador do sucesso da obra.
Esta tendência para a perpetuação dos privilégios de impressão,
que faz a felicidade dos livreiros parisienses, simultaneamente mais
próximos do poder e dos autores, alimenta no século XVIII uma pro-
longada polémica. Os livreiros de província opõem-se, não aos privi-
légios, mas à sua prorrogação; num texto célebre, Diderot defende os
de Paris, em nome do direito de propriedade+, Neste debate em que se
elabora lentamente a noção moderna de direito de autor, é decidido
por Luís XVI em 30 de Agosto de 1777 através de uma série de impor-
tantes acórdãos: doravante, o autor que reserve o privilégio em seu nome
e venda a sua obra poderá transmitir aos seus herdeiros um direito
perpétuo sobre essa obra. Todavia, a cedência do manuscrito a um
terceiro torna essa propriedade transitória, porque o privilégio atri-
buído aos livreiros só durará enquanto viver o autor, e, em qualquer
dos casos, um mínimo de dez anos. É portanto o fim da perpetuação
dos privilégios, que desde então desaparecem dos nossos registos.
Aliás, parece que os acórdãos de 1777 levam ao aparecimento de
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A H18T6RIA NA OULTURA OLA88IOA
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A HISTORIA NA OULTURA OLÁSSICA
Licenças tácitas
Ms. Fr. 21990 1718-1746
Ms. Fr. 21994 1750-1760
Ms. Fr. 21992 1760-1763
Ms. Fr. 21991 1763-1766
Ms. Fr. 21993 1766-1772
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A HIST6RIA NA OULTURA OLASSIOA
seguintes mostram uma subida anual muito rápida: 156 livros por ano
entre Março de 1760 ,e Outubro de 1763; 396 de Outubro de 1763 a
Novembro de 1766. A partir de 1767, as fontes permitem estabelecer
uma contabilidade anual que situa o volume dos pedidos de licenças
tácitas quase ao mesmo nível dos registos de privilégios. A curva que
se estabeleeeu é testemunho disso.
Mas se os dois movimentos estão muito próximos um do outro
a partir do fim dos anos 1760, só o segundo apresenta elementos variáveis
de comparação interna desde o início do século, em função da estabi-
lidade relativa do seu volume anual global. De facto, para uma média
secular (1723-1789) de 463 livros por ano, recenseiam-se 456 até 1750
e 469 de 1750 a 1789: o corte tão característico dos registos de licen-
ças tácitas é aqui inexistente. Não é portanto possível misturar os tes-
temunhos das duas práticas administrativas que não são comparáveis,
visto que uma é a instituição tradicional e a outra, por muito tempo
inconfessável e inconfessada, só se desenvolve nos anos 1760.
O problema permanece aliás em saber se e como, nos decênios
anteriores, as centenas de obras anuais que aparecem tardiamente
chegavam a ser impressas. No seu quarto Mémoire SUl' Ia librairie,
que podemos datar do início de 1759, Malesherbes indica que desde
«há trinta anos que o uso das licenças tácitas se tornou quase tão comum
como o das licenças públicas». Há trinta anos? Desde os anos 1730?
A afirmação pode surpreender se a relacionarmos com a imensa dispa-
ridade dos números anuais revelada pelas duas séries de registos da
biblioteca na primeira metade do século. No entanto, é difícil recusá-
-Ia completamente, já que provém de um homem tão bem colocado
para o dizer. Podemos presumir ao mesmo tempo que a frase é exces-
siva? e que, no entanto, um número importante de livros beneficiaram
durante esse período de licenças tão «tácitas» que não deixaram sequer
rasto escrito. É aliás isso que deu Malesherbes a entender, no último
Mémoire já citado, quando, distinguindo as licenças tácitas e as simples
tolerâncias das quais não resta qualquer vestígio, acrescenta: «As pri-
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A OFICINA DA HISTóRIA
meiras licenças tácitas dadas foram com certeza deste tipo; acontece
por vezes ainda que se dêem licenças dessas por causa da falta de prin-
cípios fixos em virtude dos quais o censor possa considerar-se ao abrigo
de qualquer protesto. Mas as verdadeiras licenças tácitas são muito
diferentes desses actos de tolerância ou mesmo de conivência.»
Assim, é provável que, até aos anos 1750, toda uma literatura
ilegal, apesar de tudo distinta da que era propriamente clandestina
e perseguida pela polícia real, tenha sido simplesmente tolerada pelo
poder, sem que possamos localizá-Ia nos registos da livraria.
Na charneira do meio século, um simples exemplo mostra toda
a incerteza da jurisprudência. Em 1748, Montesquieu manda impri-
mir em Genebra, sem nome de autor, L' Esprit des lois, cuja repercussão
imediata em França indica a sua grande difusão. Jesuítas e jansenistas,
os Mémoires de Trévoux e as Nouvelles ecclésiastiques, dedicam-lhe
cada um dois artigos no ano seguinte. O jornal jansenista, que ful-
mina o livro, conclui o seu segundo artigo, datado de 16 de Outubro
de 1749, acusando explicitamente a autoridade pública: «Mandarão
queimar pela mão do carracco as Nouve/les ecclésiastiques cujo único
e perpétuo fim é confirmar os homens na posse das verdades que fazem
o verdadeiro cristão e o fiel súbdito do rei; e deixarão divulgar um
deplorável escrito que ensina os homens a olhar a virtude como um
móbil inútil na monarquia, e todas as religiões, mesmo a verdadeira,
como um assunto de política, uma pura consequência do clima, ete.
Seja-nos permitido perguntar: um não será punição do outro?» Em
Agosto de 1750, a Sorbonne intervém, por sua vez, para substituir
post eventum a censura administrativa que a obra não solicitou. Propõe
um certo número de cortes, que Montesquieu rejeita através de um
apelo à opinião pública: «Toda a Europa leu o meu livro e toda a gente
reconhece que nele não se podia descobrir se eu pendia mais para o
governo republicano ou para o governo monárquico [... J.» De facto,
a acreditar em Malesherbes 1 O, o seu livro consegue de pronto uma
146
1
147
A OFICINA DA HISTORIA
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ii.•...
A HISTóRIA NA OULTURA OLABBIOA
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A OFIOINA DA HIBTORIA
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A HISTóRIA NA OULTURA OLASBIOA
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1
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A OFICINA DA HISTóRIA
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A HIST(jRIA NA OULTURA OLASBIOA
C. Teologia e Apologética:
1) Católica 20
2) Não Católica
D. Liturgia e Devoção ê !
j:
P HISTÓRIA 25
A. História Eclesiástica êv
153
A OFICINA DA HIBT6RIA
B. História Profana:
1) Antiga
2) Moderna (por Estados)
3) Ciências Auxiliares
(Genealogia, Numismática, Inscrições, etc.)
C. Geografia, Viagens e Cartografia
B. Ciências:
1) Física
2) Matemáticas:
a) Astronomia
b) Mecânica
c) Álgebra, Aritmética, Geometria
d) Ciências, Matemática Aplicada
3) Naturais:
a) Botânica
b) Mineralogia
c) Zoologia
d) Química
154
A HIST6RIA NA CULTURA CLÁSSICA
E. Artes Liberais ê -
F. Artes Mecânicas 3 3
G. Artes Especializadas++
H. Diversos
5.° BELAS-LETRAS35
A. Dicionários 3 6
B. Gramática e Filologia
C. Poesia:
1) Poesia
2) Arte Dramática
3) Romances
4) Correspondência 37
155
"'~.'..-
A OFICINA DA [[[ST6RIA
D. Oradores
E. Facécias
F. Jornais e Periódicos
G. Almanaques t"
H. Miscelâneas
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A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSICA
157
A OFICINA DA HISTôRIA
40 Nas quais, os «usos» das dioceses intervêm apenas como uma unidade:
escolha arbitrária, mas inevitável.
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..,
159
A OFIOINA DA HIST6RIA
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A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSICA
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A OFICINA DA HISTÓRIA
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A HISTóRIA NA CULTURA CLASSIOA
163
A OFICINA DA HIST6RIA
Mas perante todos estes livros de tradição, que nos dizem as li-
cenças tácitas?
A comparação só é possível para a segunda metade do século;
mas por isso mesmo as três sondagens operadas nas licenças tácitas
são relativamente mais importantes. Fazem transparecer desde o início
dos anos 1750 a queda vertiginosa das percentagens dos livros de reli-
gião e de direito, que se situam entre 2 % e 3 % do total - número
que não vai variar muito até 1788: dupla verificação do carácter tradi-
cionalista deste tipo de obras e do destino específico das licenças tácitas.
A inovação intelectual e aquilo a que hoje se chamaria a «moda» estão
aí artificialmente majoradas em relação aos hábitos intelectuais e so-
ciais+ê,
Porquê, então, obras de religião, mesmo em número reduzido?
A literatura litúrgica desapareceu, a de devoção é muita rara. É a teo-
logia que domina, geralmente empenhada em combater os «erros domi-
nantes» da época e os filósofos. As numerosas sondagens que foram
efectuadas nessas obras - quanto existem na Biblioteca Nacional
- revelam geralmente de novo a inspiração e o vocabulário jansenistas.
Sob os Pensées morales adaptées aux figures de I'Ancien Testament
qui représentent Jésus-Christ, obra que obtém uma licença tácita em
1788, revela-se, por exemplo, um autor anónimo de estilo rigorista
que evoca o da grande época dos solitários; a violência da polémica
antifilosófica lembra igualmente a das Nouve/les ecc/ésiastiques.
Mas independentemente destes livros de religião e de direito, dema-
siado escassos para suscitar comentários que não sejam individualizados,
as licenças tácitas são quase exclusivamente o domínio da história,
das ciências e das artes e das belas-letras. Campos mais fluidos do
que nos pedidos de licenças, não só porque as percentagens obtidas
para cada grande categoria variam mais, mas sobretudo porque as
relações das suas estruturas internas surgem de uma secção para outra
43 Esta majoração é tanto mais forte quanto as três sondagens, para se man-
terem coerentes e comparáveis, não tomaram em conta os «livros entrados pela
câmara» que só aparecem entre 1767 e 1778. Ora, esses livros já impressos, vindos
da província ou do estrangeiro, são de géneros mais variados do que os manuscritos
que escolheram deliberadamente o circuito das licenças tácitas.
164
BELAS-LETRAS
11931ivroo 2728livroo 228~ Iívros '13 IiYrol 821 liYrol 724 livros
12 indelerminad08 72 indetenniDadoo 49 indctennjoadoo 100 % Miscelftneas
100%: Almanaqu<s
Teologia Jornaís
Di~ito 80 Facécias
80 Oradores
Hiatória
Poesia
60
Gramática
20 Filologia
l.ctras
o Dicionários
o ••• 1723-27 11»-54 1184-88 Diversas
1123-27 11»-54 1184-8a 100 % A. especializada.
A. mecânicas
Artes liberais
LICENÇAS PÚBLIcAs Agricultura
Política
40
Ciências
20
Filosofia
o
330 livros 686 liYrol 742 livros
mNCIAS E ARTES
1082 livros 1863 livros 2165 JiYroI BELAS-LETRAS
55 indeterminados 71 iodeterminados 94 indeterminados
100 % Teologia
Direito
Hist6ria 80
80
CiO
60 Ci&>ciaa e Arfa
40
40
BeI••. LeIru 20
20
Onunática
o Dicionários
o 17»-59 1770-74 1'/80-84
A. cspecializadas
1710-74 1180-84 100 %
Div(..TSOS A. m«Jinicas
Artes liberais
LICENÇAS TÁCITAS 80-
AgriclJ!Lurc!. '
PoHtica
CiO
Ciências
FilO6Ofia
CI~NCIAS E ARTES
A OFICINA DA HISTóRIA
100,----------------
80
Licenças
tácitas,
Ciências-
e Artes
20
Livros
de política
1770 71 72 73 74 1784 8S 86 87 88
loo.-----~----~----._----_r----~----~--~
~r---~-----+----~----+-----~--~
- Livros de privilégios
_ Livros de licenças tácitas
•••••••.•• Livros de licenças tácitas
JO~ + ~.ívros «entrados
~~ pela __ L_cAmara» L_ L_ L_ __ ~
1720 30 40 50 70 80 88
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A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSICA
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A OFIOINA DA HISTóRIA
168
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA
169
A OFICINA DA HISTORIA
MANUSCRITOS
Licenças
Privilégios Momet
tácitas
1741-1745 74 18 205
1751-1755 123 193 199
170
A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA
171
e'tW
A OFICINA DA HISTóRIA
172
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA
173
Duas legitimações históricas da sociedade
francesa no século XVIII:
Mably e Boulainvilliers*
175
A OFICINA DA HISTCJRIA
A segunda questão não tem nada a ver - pelo menos até à Revo-
lução Francesa - com esse racionalismo profético. Vai antes buscar
as suas fontes ao mal-estar da sociedade francesa perante o absolu-
tismo, e é natural então que se nos deparem os primeiros ecos durante
as guerras de religião e, na altura da Fronde, nas duas crises anteriores
do absolutismo. A interrogação: que é a nação? implica efectivamente
uma consciência autónoma da sociedade civil em relação ao poder.
Inclui a ideia de direitos: se um reino é um conjunto de súbditos, uma
nação é uma colectividade de cidadãos. Um reino é uma propriedade,
uma nação é um contrato. À história compete revelar-lhe as cláu-
sulas, afirmar-lhe a imprescritibilidade, verificar-lhe a execução, denun-
ciar-lhe o abandono. Está investida, em vez e no lugar de uma Provi-
dência enfraquecida, da missão geral de verificação dos títulos: os do
rei e os da nação. Se não for depositária do contrato original, será
apenas uma cronologia do despotismo: outro modo de dizer que a nação
é a liberdade.
Mas que é, ao certo, essa nação? Todo o problema reside nesta
pergunta. É que se a sociedade francesa manifesta muito cedo, a partir
de 1715, uma vontade turbulenta de transformar as suas relações com
o poder real, não consegue pensar-se a si própria como uma colecti-
vidade política.
Muito mais do que submetida, foi verdadeiramente quebrada pela
tirania de Luís XIV, de que nunca exorciza a recordação. Com todo o
tipo de meios, diferentes nos princípios mas convergentes nos resulta-
dos, por razões intelectuais, políticas, fiscais, o Grande Rei misturou
todas as categorias. A servidão geral, a venda ou a renegociação dos
títulos e privilégios, a arbitrariedade das promoções burocráticas pri-
varam a nobreza não tanto do seu papel como da sua própria defi-
nição. Todavia, enquanto a destruía nos seus princípios, a monarquia
absoluta manteve, e até «castifícou» nas suas aparências, a sociedade
das ordens; o protocolo inflexível da Corte recobre na realidade um
Estado e uma sociedade que já não têm a mesma legitimidade comum.
Por outro lado, modificaram-se as condições intelectuais para
pensar uma nova legitimidade. A partir do início do século XVII!, o
político e o social são incluídos no campo do pensamento crítico e a
justificação providencial e organicista da hierarquia social não basta
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A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA
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A OFIOINA DA HIST6RIA
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A HISTÓRIA NA CULTURA CLASSICA
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A OFlOINA DA HIBT6RIA
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A HISTCJRIA NA OULTURA OLÁSSICA
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A OFIOINA DA HISTaRIA
10 Mably, Observation sur les Grecs, Genebra, pela Compagnie des Libraires,
1749: «Sabe-se hoje o que se deve pensar desses leitos de verdura, dessas coroas de
flores, desses concertos, desse doce lazer [... [.»
11 Boulainvilliers, Mémoire sur Ia noblesse de Ia France, ms. Bibl. de Angou-
lême, n. o 23. Boulainvilliers tem uma palavra de comiseração para com os homens
livres que, de repente, a conquista torna escravos. Mas para acrescentar logo a seguir
que «tendo-se defendido mal, sofreram justamente a lei do vencedor».
12 Boulainvilliers, Histoire de l'Ancten Gouvemement de Ia France, op, cit.:
«Como se uma posse incontestada de 700 anos parecesse titulo assim medíocre!
Esta fraqueza é tanto mais perigosa quanto gerou o falso e o ridículo sistema daque-
les que dizem que Hugo Capeto abandona aos seus novos súbditos a propriedade
das terras, dos feudos e dos imóveis para compensá-los do facto de eles lhe terem,
atribuído a Realeza. Sistema de que se retirou a mais abominável consequência,
a saber, que todos os bens pertencem ao rei, que só pode deixar aos seus súbditos
a parte que ele quiser.»
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A HISTORIA NA CULTURA CLASSICA
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A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSIOA
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A OFICINA DA HIST6RIA
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Nessa Paris das Luzes onde Gibbon foi beber uma grande parte
da sua inspiração intelectual, o século tinha começado com uma querela
literária que não parece ter sido muito viva até ele, se bem que esteja
no coração da sua vida intelectual: a querela dos Antigos e dos Moder-
nos. O que está em causa, neste debate, a partir do fim do reinado de
Luís XIV, é esse sentimento de uma identidade cultural entre antigo
e moderno que constituía o património comum da intelligentsia europeia
desde o Renascimento. Não é que os «Modernos» recusem a filiação,
ou a herança da Antiguidade; mas já não aceitam que a sua própria
contribuição seja apenas a redescoberta do modelo greco-romano.
Afirmam a superioridade do «moderno» sobre o «antigo», em especial
no que respeita ao progresso dos conhecimentos, o rigor do racio-
cínio, a busca da verdade; deste modo, rompem com uma concepção
cíc1ica da história e afirmam, pelo contrário, o valor criador do tempo,
que separa progressivamente o erro da verdade.
Este afastamento do conceito de moderno em relação à Antiguidade
constitui a pouco e pouco, no século XVIII, uma história evolucionista
e uma teoria do progresso. Depois da história providencialista da Igreja,
depois da história cíc1ica dos Humanistas e dos Reformados, é chegado
o momento de uma história aberta, indefinidamente aberta; a angústia
195
A OFICINA DA HIBTORIA
196
A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSIOA
ção dos séculos XVI e XVII: Roma é um modelo de civilização que não
foi ultrapassado. Esta proposição central não é em Gibbon de ordem
filosófica. Não tem teoria sobre o homem em sociedade, sobre a lei
natural, sobre o contrato social. Não se interessa por uma das interro-
gações essenciais do seu século: Que é um «selvagem»? Como incluir
o selvagem na história da humanidade? É espontaneamente, totalmente
historiador, ou seja, empirista, narrativo, e espontaneamente, total-
mente eurocêntrico, no interior de um mundo no qual só contam a
Antiguidade greco-romana, a tradição judeu-cristã e a sua filha: a
Europa.
A superioridade de Roma não é portanto tema de demonstração:
é da ordem da evidência, da constatação. Tem a ver com uma experiên-
cia singular, que se deve descrever, e não com o jogo das leis históricas.
Gibbon leu e admira Montesquieu, mas as duas obras têm finalmente
pouco em comum. Para Montesquieu, a história romana é apenas
um case study de uma tipologia geral dos regimes políticos: as mesmas
causas que fizeram a grandeza de Roma estão na origem da sua queda,
quando a extensão do império torna um governo monárquico incom-
patível com as leis que no entanto o tornaram necessário. Gibbon,
fazendo eco, por intermitência, da teoria do seu predecessor, não é um
espírito inclinado para uma conceptualização rigorosa. É um ecléctico;
não só multiplica as explicações possíveis para a grandeza e a queda de
Roma, mas até os tipos de explicação. É que a história de Roma não
é aos seus olhos um laboratório de experiências; é simplesmente a que
atinge, no século 11 d. C., o cume da história humana, «lhe period in lhe
history of lhe world, during which lhe condition of the human race was
most happy and prosperousn+, É mais um momento do que um conceito.
Então, esse momento privilegiado não se pode integrar numa his-
tória linear do progresso da humanidade, como a que escreve Con-
dorcet no fim do século. Caracteriza, pelo contrário, uma concepção
cíclica da história, segundo a qual a civilização não é um dever-ser
para o qual conduzem a pouco e pouco os progressos acumulados da
humanidade, mas encarna-se, pelo contrário, numa série descontínua
198
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A HIBTtJRIA NA OULTURA OLABBIOA
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~_.,...._ ...•,~,----"~
9 Histoire de I'Amérique.
10 Histoire des Indes. Citação in M. Duchet, Anthropologie et Histoire au siêcle
des Lumiêres, Paris, Flammarion, 1971.
203
rr A OFIOIN A DA HISTóRIA
f
f
l
mais temíveis inimigos de Roma. Nem cidades, nem letras, nem artes,
nem moeda, eis os traços negativos que definem aquilo a que chamou
«savage state». Quando chega ao famoso tema das liberdades germâ-
nicas, tão importantes na historiografia do seu tempo, em particular
em Montesquieu e Mably, que leu atentamente, a descrição do sistema
das assembleias e da independência dos soldados não faz vibrar nele
qualquer simpatia «democrática». No fundo, o estado atrasado dos
costumes, das letras e das artes implica no seu espírito uma condenação;
e qualifica várias vezes as tribos germânicas de «selvagens», para chegar
a esta conclusão que define exactamente o seu pensamento: «Modern
nations are fixed and permanent societies, connected among themselves
by laws and government, bound to their na tive soil by arts and agricul-
fure. The German tribes were voluntary and fluctuating associations of
soldiers, almost of savages»
Juízo extraordinário, num leitor tão apaixonado pela historiogra-
fia do seu tempo, testemunho do debate central da historiografia fran-
cesa sobre as origens da nação: romanas ou francas? Em momento
algum Gibbon parece ter-se interesado pelo que constituiu na Europa,
desde o século XVI, uma das próprias razões de ser da história e como
que a sua pulsão fundamental: a procura das origens, o contrato ori-
ginal de que emanou a nação. É que, das duas questões que o século XVIII
coloca à história - Que é a nação? Que é a civilização? -, só se inte-
ressa pela segunda. Leu Boulainvilliers, Montesquieu, Dubos, Mably,
mas como puro erudito, como etnólogo dos Francos, não como her-
deiro. A partir do momento em que esses povos germânicos são despo-
jados da sua dignidade fundamental, passam a existir apenas como
«quase-selvagens».
Não se teria grande dificuldade em encontrar o mesmo tipo de
juízo a propósito de outros povos, cujos movimentos ameaçam Roma.
Por exemplo, no capítulo XXVI, em que Gibbon descreve as tribos
nómadas do extremo leste, cuja avançada vai finalmente destruir o
império, impelindo para oeste os Godos «and so many hostile tribes
more savage than themselves». A propósito dessas populações de pas-
tores nómadas, Gibbon nota que aquilo que toma o seu estudo rela-
tivamente simples é a sua proximidade da animalidade: «It is much
easier to ascertain the appetites of a quadruped than the speculations of
204
A HIBTORIA NA OULTURA OLABBIOA
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A OFIOINA DA HISTóRIA
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Á HISTóRIA NA OULTURA OLASSIOA
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INDICE
Prefácio 7
A HISTÓRIA, HOJE
o quantitativo em história 39