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C O L E ^ Ä O O HOMEM E A HISTORIA

Braudel, h\ O Espa^o e a Historia no Mediterraneo


Braudel, F. — Os Homens e a Heranca no Mediterraneo
Duhy, C . — A Kuropa na Idade Media
Wolff, P. — Oiitono da Idade Media ou Primavera dos Tempos Modernos?
/•'erro M. ~ A Hislöria Vigiada
CHRISTOPHER HILL
l'inley, M. I — Uso e Abuso da Historia
hinley. M. I. — Kconomia e Sociedade na Grecia Antiga ORIGENS
Braudel, /-'. — (Jramälica das Civiii/avöes
Duby, G. — A Sociedade Cavaieiresca INTELECTUAIS
Duby, G. — S ä o Bernardo e a Arle Cislerciense
l.e Goff, J. — A Hislöria Nova DA REVOLUCÄO
Duby, G. — Senliores e Camponeses
Dakirun, J. — Amor e Celibato na Igreja Medieval
INGLESA
l'inley, M. !. — (Jrecia Primiliva: Idade do Bronze e Idade Arcaica
l'inley. M. I. — Aspeclos da An(ij«uidade
Grimal, P. — () Amor em Roma
Mazzarino, 5. — O Kim do Mundo Anligo
Hunt, L . — \a Hislöria Cullural
/////. C. — Origens Intelecluais da Kevolu^äo Inglesa

Pröximos lan(;anientos
Dauniard. A. — Os Bur^ueses e a Burguesia na Kran^a
Le Goff, J. — O Apo^eu da Cidade Medieval
Braudel, h. — Kscritos Sobre a Hislöria TRADU^ÄO
JEFKERSON Luis C A M A R G O

Martins Fontes
1

INTRODUgÄO

Quando se considerar que ... as vicissitudes das coisas


determinadas pcla Providencia exigem uma predisposi-
fäo geral no cora^ao dos homens que os leve a coope-
rar com o destino no que diz respeito as transforma-
föes fadadas a se concretizar em seu devido tempo, pa-
recerä menos cstranho que a Inglaterra, ate ontem um
cenario de guerra e desola5:äo, seja hoje escola das artes
e corte de lodas as Musas.... Esta mudan^a foi concreti-
zada pela reforma [das condi^öes do conhecimento], nao
pelo desejo de mudan^as que preiendeu a reforma.

W. C H A R L E T O N ,
The Imrnortality of the Human Soul, 1657, pp. 49-52.

Meu titulo tem a inten^ao de evocar Les Origines Intel-


Iectuelles de la Revolution fran^aise. Nesse livro, M . Mornet
discutia Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rousseau — as in-
fluencias intelectuais que todos os historiadores reconhe-
cem quando tentam explicar a Revolu^äo Francesa. Este ti-
tulo sempre me pareceu algo como um desafio. Talvez nao
seja täo heretico agora, como era ha trinta anos, afirmar que
houve mais coisas em comum entre a Revolufäo Inglesa no
seculo X V I I e a Revolu^ao Francesa de 1789 do que admi-
tia a historiografia inglesa tradicional, e que as compara^öes
8 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU(^ÄO INGLESA INTRODU(;AO 9

e OS contrastes entre ambas podem ser prolificos e revela- valeu-se das ideias de Knox e Buchanan. O republicano Henry
dores. Ha, porem, um fato sobre o qual ha consenso geral Nevile referia-se ao *'honesto Joäo Calvino" como a fönte
entre os historiadores: o de que a Revolu^äo Inglesa näo de suas ideias e das de seus pares.^ Se voltarmos nosso olhar
teve origens intelectuais. Ela simplesmente aconteceu, da para alem dos fatos meramente politicos, lembraremos que
forma empirica tipicamente britänica em que sempre gos- no seculo X V I I foi consumada a revolufäo cientifica na In-
tamos de nos imaginär: num acesso de distra9äo. '*A Revo- glaterra, uma revolufäo que o professor Butterfield ve co-
lufäo Inglesa näo teve nenhum Jean-Jacques Rousseau ou mo o mais importante marco divisorio desde a ascensäo do
Karl Marx." Para fazer tal afirma^äo, eu poderia ter citado Cristianismo.^ Na Batalha dos Livros entre antigos e mo-
inümeros historiadores; na verdade, o que fiz foi citar mi- dernos, entre os que acreditavam ser impossivel aperfeifoar
nhas proprias palavras. E, no entanto, quase que por defi- a sabedoria da Antiguidade Classica e os que viam o conhe-
nifäo, uma grande revolufäo näo pode ocorrer sem ideias. cimento como algo cumulativo — nesta batalha, por volta
Para matar ou morrer, a maioria dos homens precisa acre- do final do seculo X V I I , a vitoria ficou com os modernos.
ditar intensamente em algum ideal. Se näo houve nenhum Nos dois campos de batalha, o nome crucial e o de Francis
Rousseau, näo terao existido Montesquieus, Voltaires e Di- Bacon: a ligafäo entre o baconismo e a causa parlamenta-
derots da Revolu^ao Inglesa? rista e um tema que retomarei adiante.
A resposta e afirmativa. A Biblia, em especial a Biblia A'lguns cuidados preliminares. Primeiramente, sou ce-
de Genebra, com suas notas marginais extremamente poli- tico quanto a linhagens de ideias — A e influenciado por
tizadas, esteve bem perto de se Converter, e näo pela ültima B, que foi buscar suas ideias em C, e isso explica a a^äo Z.
vez, num manual revolucionario. Dizem que o sr. Hamp- Quando se conhece aquilo que se vai explicar, e sempre fa-
den tinha seu vade mecum na History of the Civil Wars of cil elaborar seqüencias de causas."^ As ideias tambem näo se
France de Davila'. O vade mecum de sir John Eliot era Pre- desenvolvem num vacuo. "Os grandes filösofos", escreveu
rogative of Parliaments, de sir Walter Ralegh; History of the Mornet ao concluir suas Origines intellectuelles, **näo esta-
World, de Ralegh, e o ünico livro que se sabe ter sido reco- vam revelando terras desconhecidas: estavam mapeando aque-
mendado por Oliver Cromwell. John Lilburne tinha a Bi- las de que ja se tinha conhecimento. Se o Antigo Regime
blia numa das mäos e os escritos de sir Edward Coke na fosse amea^ado apenas por ideias, näo teria corrido nenhum
outra. Levellers'''Q t//ggers"""'voltavam os olhos para a tradi- risco. A pobreza do povo e a malaise politica tambem fo-
9äo herege, para os lollardos e os martires de Foxe. Milton ram necessarias para dar poder e influencia as ideias. Mas
foram as ideias que puseram os homens em afäo."^
1. Sir Philip Warwick, Memoirs of theReign ofKing Charles I{nn), p. 265.
Ver abaixo, p. 376. As ideias näo avanfam simplesmente por sua propna
* Levellers. Literalmente "niveladores". Movimento radical secular, formado logica. Ha uma nitida rela^äo entre a doutrina de Lutero
por artesaos e pequenos proprletärios, surgido por volta do fim da Guerra Civil.
Eram contra os monopölios, defendiam a liberdade de expressao, a funda^ao de
acerca do sacerdocio de todos os crentes e a pratica da pre-
uma repüblica com parlamentos anuais, a desceniralizafäo do governo, etc. (N.R.)
** I^^gS^^- Liieralmente "escavadores". Grupo de camponeses que ocupou 2. Ver abaixo, pp. 279-82, 385-6.
as terras comunais de St. George's Hill. Eram liderados por Gerrard Winstanley, 3. H . Butterfield, Origins of Modem Science (1949), p. 174.
que achava que a maior parte das afli^öes humanas tinha origem na institui^ao 4. Cf. C . H . e K. George, The Protestant Mind of the English Reformation,
da propriedade privada. Tambem conhecidos como True Levellers (os verdadei- 1570-1640 {Vrmccion, 1961), p. 398.
ros niveladores), defendiam uma utopia sem distinfoes de classe, propriedade privada 5. D. Mornet, Les Origines intellectuelles de la Revolution franfaise (Paris, 1933),
e dinheiro. (N.R.) p. 476. Fiz uma tradu^äo bastante livre.
10 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^ÄO INGLESA INTRODUC^ÄO 11

gagäo laica desenvolvida por muhas seitas na decada de 1640, toria intelectual, espero conseguir deixar bem claro que os
que incluia ate mesmo a prega^äo feita por mulheres. N o pensadores näo eram pessoas isoladas de suas sociedades. To-
entanto, ha um longo periodo de tempo entre a exposi9äo marei por modelo aqui um de meus antecessores nestas con-
do principio por Lutero e as prega^öes bombasticas da sra. ferencias, o professor Tawney, que foi sabio demais para
Attaway. A demora pode ser explicada pela capacidade de näo estudar a religiäo e a ascensäo do capitalismo, exceto
repressäo da Igreja; contudo, outra maneira de colocar a ques- em sua mais estreita ligafäo com a questäo agraria do secu-
täo e dizer que as implicagoes logicas da doutrina de Lute- lo X V I e com a usura, e que associou a interpretafao feita
ro näo podiam ser postas em pratica na Inglaterra enquan- por Harrington sobre a sua epoca ä ascensäo da pequena
to as circunstäncias politicas — o colapso da hierarquia e nobreza e ä atividade comercial e politica sob Jaime 1. Con-
do governo central — näo fossem propicias. As ideias eram tudo, espero näo esquecer que a historia intelectual inglesa
importantissimas para os individuos que se punham a agir deve ser associada ä "crise geral do seculo X V I I " . ^ A crise
em funfäo delas; o historiador, porem, deve atribuir igual intelectual inglesa faz parte de um movimento europeu mais
importäncia äs circunstäncias que deram a essas ideias a pos- vasto, que tem em si alguma rela^äo com uma crise econo-
sibilidade de se concretizar. As revolu^öes nao säo feitas sem mica e social. Uma vez que meu tema e a Inglaterra, posso
ideias, mas tampouco säo feitas por intelectuais. O vapor dar a impressäo de näo me referir com a freqüencia devida
e essencial para fazer andar uma locomotiva, mas nem uma ao pano de fundo europeu. Pretendo, contudo, retoma-lo
locomotiva, nem uma estrada permanente podem ser fei- no Ultimo capitulo, e espero que sua presenga esteja impli-
tas de vapor. Neste livro, tratarei do vapor. cita, mesmo quando näo especificamente mencionada.
N o entanto, uma abordagem sociologica da historia in- Em segundo lugar, a tentativa de estabelecer paralelos
telectual tem seus proprios riscos. O proprio Marx näo in- entre a revolufäo inglesa e a francesa tem os seus perigos.
cidiu no erro de pensar que as ideias dos homens fossem Os homens de 1789 tinham a experiencia inglesa para to-
simplesmente um reflexo palido de suas necessidades eco- mar como modelo, a experiencia de uma revolu^äo bem-
nomicas, sem uma historia propna; mas alguns de seus su- sucedida que culminou em 1688, o contrario da anarquia
cessores, inclusive muitos que näo se diriam marxistas, tem subversiva. Mas a Inglaterra do seculo X V I I quase näo ti-
pensado em termos de determinismo economico muito mais nha para onde voltar os olhos. Discutirei, mais tarde, a in-
que Marx. Parece-me que qualquer corpo de ideias com um fluencia consideravel que a revolta dos Paises Baixos e as
papel importante na historia — o de Lutero, o de Rousseau, guerras religiosas da Franca exerceram sobre a Inglaterra.'^
o do proprio Marx ~ "funciona" porque vai ao encontro Mas a revolta holandesa foi dirigida contra um rei estran-
das necessidades de grupos significativos da sociedade em que geiro e papista. Na Franca, os huguenotes estavam apoian-
adquirem notoriedade. Isto equivale ao extremo oposto de do inicialmente o herdeiro do trono, e depois o rei legiti-
afirmar que täo logo tenhamos associado as ideias de um Lu- mo. Em ambos os casos, portanto, os problemas eram dife-
tero ä sua sociedade, podemos p6-las de parte. Existe o peri- rentes da Inglaterra do seculo XVIL Nenhum deles estimu-
go de que os historiadores, apanhados na armadilha do me- lou o pensamento revolucionario consciente como o fez a
todo de Namier, possam supor levianamente que as ideias
que inflamaram homens e mulheres no passado podem ser 6. E. Hobsbawn, "The General Crisis of the European Economy in the 17'''
rejeitadas como hipocrisia, racionaliza^öes ou irreleväncias. Century", P. and P., n? 5 e 6; H . R. Trevor-Roper, "The General Crisis of the
17''' Century", ibid., n? 16; e uma discussao geral, ibid., n? 18.
Assim, embora este livro va ocupar-se muito mais da his- 7. Ver abaixo, pp. 376-86.
12 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^ÄO INGLESA INTRODU(;AO 13

experiencia inglesa, mesmo como sintetizada por Locke, na execuföes como um risco profissional dos reis, mas isso so
Franfa do seculo XVIIL Portanto, nao devemos esperar uma se tornou verdade nos ultimos 170 anos. U m grande nü-
grande sutileza politica dos pensadores revolucionärios in- mero de reis medievais havia sido assassinado, nem sempre
gleses. Na verdade, devemos lembrar que mesmo Montes- de maneira sutil, mas a santidade que envolvia um rei nun-
quieu, Diderot e Voltaire, por mais radicais que fossem suas ca fora violada publicamente. A execu^äo de Maria, rainha
criticas contra o Antigo Regime, tinham expectativa de re- da Escocia, em 1587, esteve perigosamente a ponto de criar
forma, e näo de revolu^äo. um precedente: a boa rainha Bess teria, muito naturalmen-
A historia das ideias lida necessariamente com tenden- te, preferido o velho metodo ingles do assassinato. O ato
cias para as quais existem exceföes individuais. Pretendo afir- de 1649 teve tamanho impacto que, segundo dizem, ao sa-
mar que, como um todo, as ideias dos cientistas favoreciam berem do fato, **mulheres abortaram, homens cairam em
a causa puritana e parlamentar. N ä o ficarei muito desapon- profunda melancolia e alguns, de tanto pesar, expiraram".^'
tado se replicarem que catolicos como Nicholas H i l l (se e A verdade e que os homens näo rejeitam levianamente o
que ele realmente o era)^ ofereceram importantes contri- passado: para desafiar os padröes convencionalmente acei-
buiföes ao novo espirito, ou que um parlamentarista como tos, eles precisam do apoio de um corpo alternativo de ideias.
William Prynne dirigiu ataques contra Copernico'^ ou, ainda, O puritanismo e o mais obvio desses corpos de ideias:
que o medico de Carlos I , William Harvey, foi um realista. era permitido desafiar o rei da Inglaterra quando se estava
durante a guerra civil. Alguns puritanos, como Richard obedecendo as ordens do Rei dos Reis. Näo me proponho
Holdsworth^°, e adeptos da toleräncia religiosa, como Wil- a abordar diretamente o puritanismo. Ha uma vasta litera-
liam Chilingworth, tambem ficaram do lado do rei: contu- tura sobre o tema desde que Gardiner inventou a *'revolu-
do, de modo geral, temos de admitir que o puritanismo e fäo puritana", um seculo aträs. As obras Religion and the
a toleräncia religiosa foram mais incentivados depois da vi- Rise of Capitalism, de Tawney, e Rise ofPuritanism, de Hal-
toria do parlamento do que jamais o haviam sido sob o Antigo ler, alem de outras obras recentes sobre as causas sociais e
Regime. economicas da guerra civil, mostram como o puritanismo
O problema que pretendo discutir e täo obvio que ten- atraiu e organizou as classes anonimas e sem privilegios da
demos a negligenciä-lo. Sempre haviam existido reis, lor- cidade e do campo, que forneceram a maior parte dos vo-
des e bispos na Inglaterra. A influencia dominante sobre luntarios para os exercitos parlamentares e que os financia-
o pensamento ingles era exercida pela Igreja oficial. N o en- ram. O puritanismo talvez tenha sido o mais importante
tanto, em menos de uma decada uma guerra vitoriosa foi dentre os complexos de ideias que prepararam o espirito
movida contra o rei; os bispos e a Cämara dos Lordes fo- dos homens para a revolu^äo, mas näo foi o ünico. Depois
ram abolidos e Carlos I foi executado em nome de seu po- de duas decadas de interpreta^öes economicas da guerra ci-
vo. Onde teriam os homens ido buscar a fibra necessaria
para realizar coisas täo extraordinarias? Passamos a ver as 11. W. Sanderson,^ Compicte History of the Life and Raignc üf King Charles
(1658), p. 1139; cf. Memom of the Life of Mr. Amhrose Barnes (org. W.H.D. Longs-
taffe, Surtees Soc, 1867), pp. 108-9. Entre os que, supostamcnte, "de tanto pesar,
8. Quanto a Hill, ver abaixo, pp. 196-7. expiraram", estavam James Gordon, o visconde Aboyne e John Gerec, o sacer-
9. W. M. Lamont, Margina! Prynne (1963), pp. 13-14. dote puritano (D.N.B.). (Devo as tres primeiras referencias ao Dr. C . V . Wedg-
10. Quanto a Harvey, ver, de minha autoria, "William Harvey and the Idea wood, e ao sr. K. V. Thomas a referencia a Geree). Eikon Basilike (\h49) deu ori-
of Monarchy", P. and P., n? 27; quanto a Holdsworth, ver abaixo, pp. 79, 414-15. gem ao häbito de comparar Carlos, o Martir, com Jesus Cristo.
I
INTRODU(;ÄO 15
14 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU^AO INGLESA

vil inglesa, creio que o tempo e propicio para o refloresci- tremamente confuso. As ideias tradicionais batiam em reti-
mento do interesse pelas ideias que motivaram os revolu- rada, mas näo havia nenhuma sintese nova para substitui-
cionärios do seculo XVIL las. O humanismo, com seu interesse voltado para a educa-
Assim, deixando de lado o puritanismo, proponho-me fäo de uma classe dominante e para os clässicos ä exclusäo
a discutir algumas das outras ideias que me parecem rele- do vernäculo, näo podia exercer atra^äo alguma sobre os
vantes, voltando minha aten^äo especificamente para aquelas "setores medios"; no entanto, a enfase humanista na edu-
que exerceram maior atra^äo sobre os "setores medios" da cayäo do indivtduo, a exemplo da enfase protestante na cons-
populai^äo, OS mercadores, os artesaos e pequenos proprie- ciencia individual, prestava-se a interpretaföes mais demo-
tärios rurais. Säo duas as razöes que me levam a isso. Em cräticas. O modo de vida urbano, pragmatico, utilitario e
primeiro lugar, o parlamento jamais teria derrotado o rei individualista, em que as coisas importavam mais que as pa-
sem o seu entusiästico apoio. "Os proprietärios e os comer- lavras, e a experiencia mais que a autoridade, estava em har-
ciantes constituem o esteio da religiäo e da ordern social no monia com as novas tendencias do pensamento protestante
pais", escreveu Richard Baxter.^- Os que citam este trecho, e cientifico. Nada, porem, estava claro e bem definido. A
inclusive eu, talvez tenham negligenciado a importäncia das quimica paracelsista, com sua enfase na experimenta^äo, es-
palavras que coloquei em itälico. Em segundo lugar, e a ex- tava ainda muito presa ä alquimia. Alguns magos e astrolo-
pansäo dessas classes, em nümero e prosperidade, que ofe- gos aceitavam o sistema heliocemrico. Existe na historia da
rece o fato social mais obviamente novo na Inglaterra, no ciencia o perigo de enaltecermos quem estava "certo" —
seculo anterior a 1640. Ao longo de toda a Idade Media, Copernico, por exemplo, cujas ideias so foram comprova-
OS tecelÖes estiveram associados ä heresia, e os pobres das das cientificamente no seculo X V I I — e de rejeitarmos quem
äreas urbanas ä revolta milenarista. Porem, as heresias e as estava "errado" — os astrologos e alquimistas, por exem-
revoltas foram suprimidas antes que as ideias a elas associa- plo, esquecendo que o eminente matemätico John Dee era
das adquirissem a dignidade de um sistema — pelo menos, astrologo e que Robert Boyle viria a transmutar a alquimia
ate onde nosso conhecimento dos fatos e exato e confiävel: em quimica, esquecendo que havia membros da Royal So-
OS derrotados deixam poucos sinais de sua passagem. No ciety que acreditavam em feiticeiras, esquecendo que tanto
seculo X V I , porem, gra^as ao crescente poderio do elemento Napier quanto Newton atribuiam mais importäncia äs suas
industrial na sociedade, ä inven^äo da imprensa c ä Refor- pesquisas sobre o Apocalipse do que aos logantmos ou ä lei
ma, novos corpos de ideias come^aram a ser formulados, da gravitafäo.'-'' Pelo menos no que diz respeito aos nos-
num desafio äqueles tradicionalmente aceitos. Isto aplicava-se SOS objetivos, aquilo que foi declarado "certo" pela histo-
ä ciencia, näo menos que ä teologia: Paracelso e Copernico ria subseqüente näo tem importäncia: a obsessäo de New-
foram contemporäneos de Lutero, e Paracelso apoiou os cam- ton pelos problemas de cronologia biblica foram quase que
poneses alemäes em 1525. certamente um estimulo para a sua imagina^äo cientifica.
Os ingleses de classe media do seculo X V I , encorajados Assim, o trafo mais surpreendente da vida intelectual
a se alfabetizar para que pudessem 1er a Biblia, educados nas
13. Houve vinte e uma edivöes da PLinc Discovery of the Whole Revelation
escolas que os mercadores haviam fundado para libertär a of St. John, de Napier, entre 1593 c 1700, segundo Napier, o Ultimo ano em que
educafäo do controle clerical, cresceram num mundo ex- o mundo poderia sobreviver. Newton deve ter parccido muito mais exccntrico
no final do seculo do que Napier no come^'o. Ambos tinham interesse tambem
12. R. Baxter, Reliqume Baxterianae (org. M. Sylvester, 1696), i. 89. pcla alquimia.
16 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU(;ÄO INGLESA INTRODUQÄO 17

da Inglaterra pre-revolucionäria e sua perplexidade e efer- rintos. De que vale tudo o que sabemos, em comparagäo
vescencia. " A visao da realidade que sustentara a conscien- com o que ignoramos?"'^ Logo depois de Donne, Dray-
cia racional do hörnern durante mll anos estava deixando ton disse:
de existir."''^ N u m exame retrospectivo, o Renascimento
e a Reforma, a descoberta da America e a nova astronomia
serviram mais para debilitar os velhos pressupostos e pre-
Por certo encontram-se muito poucos agora
conceitos do que para substituir as antigas verdades. Algu-
Que sabem o que aprovar ou desaprovar;
mas das novas ideias — as de Maquiavel e Giordano Bruno,
Tudo estä confuso, nada e o que e;
por exemplo — devem ter parecido terrivelmente perver- Como no proverbio, tudo estä de ponta-cabefa...
sas para os tradicionalistas timidos. (E, por certo, como de- O inferno virou ceu, e o ceu virou inferno.^^
monstram os nomes que citei hä pouco, näo se trata de um
fenomeno exclusivamente ingles: estamos na era de Mon-
taigne). Näo e necessario citar os inevitaveis versos de Donne
para mostrar que a nova filosofia punha tuäo em duvida "Ja vimos o melhor de nosso tempo", dizia Glouces-
— de postulados sobre a sociedade a hipoteses sobre o uni- ter, em Rei Lear, depois de uma fala bastante parecida.'^
verso — ou que toda coerencia desaparecera. Muito antes "Nosso tempo foi de ferro, mas foi enferrujado tambem",
de Donne, Gabriel Harvey escrevera que " inventavam no- concluiu Donne.
vas opiniöes todos os dias: heresias na teologia, na filoso- Näo devemos subestimar a profundidade dessa crise es-
fia, nas humanidades e nas maneiras, em grande parte fun- piritual em que os homens se encontravam. A enfase sobre
damentadas em rumores; o desprezo dos doutores: o texto o "cora^äo dividido" do homem e familiär aos que estu-
conhecido pela maioria, entendido por poucos, enakecido dam a literatura da epoca.^° O desespero descrito em tan-
por todos, praticado por ninguem"J^ Em 1623, Drum- tas autobiografias da epoca e atribuido com excessiva facili-
mond de Hawthornden fazia eco a Donne ao afirmar: " O dade ä teologia calvinista: os calvinistas viam-no como uma
elemento fogo encontra-se inteiramente extinto, o ar näo
passa de ägua rarefeita, descobriu-se que a Terra se move
16. W. Drummond, " A Cypresse Grove", in Poetical Works (org. L.E. Kastner,
e näo e mais o centro do universo, tendo-se transformado
1913), ii, 78.
num magneto; as estrelas näo säo fixas, mas vagam pelo es- 17. M. Drayton, " T o my noble friend Master William Browne, of the evil
pa^o Celeste, os cometas cavalgam por cima dos planelas; time", in Works (org. J.W. Hebel, 1961), iii. 209-11.
hä quem afirme a existencia de um outro mundo de homens 18. Rei Lear, Ato I, cena ü.
19. Donne, " A n Anatomie of the World", in Complete Poetry and Selected
e criaturas animadas... na lua; o sol extraviou-sc. ... Assim
Prose {192% p. 208.
as ciencias, gra9as aos variados movimentos deste globo que 20. W. Perkins, Workes (\609-\3), ii. 5; R. Sibbes, TheSoules Conßict {\6:S5),
e o cerebro humano, estäo se transformando em suposiyoes, p. 469; Joseph Hall, Works (1837-9), viü. 147; Donne, Complete Poetry and Selec-
ou melhor, em erros, lan^ando a imagina^äo em mil labi- ted Prose, p. 285; F. Greville, Poems and Dramas (org. G . Bullough, s.d., ?1939),
i. 194-5; R. Burton, Anatomy of Melancholy {Everyman), i. 11-13; Sir F. Beau-
mont, Poems (org. E. Robinson, 1914), p. 13; A. Marvell, Poems (org. H.M. Mar-
14. M.H. Carrc. Phasc-s uf Thnugbt in England (1949). p. 224. goliouth, 1927), p. 20; A. Cowley, Poems (org. A.R. Waller, 1905), p. 113;]. Bun-
15. Ciiado por H . Haydn, Thv Couriter-Rcnaisiancv (Nova York, 1950), yan, Works (org. G . Offor. 1860), iü. 253-4. Ver, de minha autoria, Puritanism
p. 13. and Revolution (1958), pp. 340-2.
18 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^ÄO INGLESA INTRODU(;ÄO 19

caracteristica dos anabatistas.^* Ele foi com certeza tanto A esta perplexidade e falta de firmeza da intelectualida-
sintoma quanto causa da melancolia que Robert Burton se de tradicional, devemos contrapor as realiza^oes politicas
propos a dissecar. Durante o Interregno, o grande medico e artisticas da nova Inglaterra que nossos artesaos e merca-
William Harvey disse a um futuro bispo que se havia depa- dores, autodidatas e cheios de ideias, estavam ajudando a
rado com mais doen^as de origem mental do que de qual- criar, e na qual haviam crescido. Os cinqüenta e tantos anos
que separam a derrota da armada espanhola de 1640 dividem-se
quer outro tipo. Uma observafäo semelhante seria feita com
em dois periodos nitidamente contrastantes. Os vinte e seis
referencia ä Revolufäo Francesa.^^
anos que vao de 1588 ä publica^äo da History of the World
Enquanto os intelectuais se desesperavam e dissecavam, de Ralegh testemunharam a uniäo pacifica das coroas da In-
enquanto os medicos receitavam presas de elefantes como glaterra e da Escocia, a derrota da Espanha, a sujeifäo da
remedio contra a melancolia, nossos mercadores e artesaos, Irlanda, o inicio da colonizafäo da America e a funda^äo
seguros da sua capacidade de lidar com fatos, e ocupados, da Companhia das Indias Orientais. Testemunharam, tam-
como demonstrou o professor Jordan, em modernizar as bem, a publicafäo de The Faerie Queene, da Arcadia e dos
instituiföes de sua sociedade^^, estavam em busca de uma poemas de sir Philip Sidney, grande parte da poesia de Dray-
ideologia. Como era de esperar, foram procurä-la em pri- ton, Daniel, Campion, e os primordios da poesia satirica
meiro lugar e com mais insistencia na Igreja: dai o anseio inglesa, enquanto os poemas de Donne e Ralegh circulavam
por sermöes que tao bem caracteriza o periodo. Em geral, em forma de manuscritos; viram tambem a publica^äo dos
porem, essas tentativas foram em väo. Os pärocos mal re- contos de Deloney e Nashe, a representa^äo de todas as pe-
munerados raramente tinham uma educafäö superior ä dos fas de Shakespeare, Marlowe, Greene, Chapman, Tourneur
membros de suas congrega^öes urbanas: Whitgift, Bancroft e Marston, e das melhores pe^as de Jonson, Middleton, Dek-
e Laud eram häbeis em silenciar os pregadores mais ardo- ker, Beaumont e Fletcher, e Webster; as pe^as de Fulke Gre-
rosos, que expressavam ideias nao convencionais.^"^ Eles vol- ville e Life of Sidney ja haviam sido escritas. Foram tam-
taram seus olhares em väo para as universidades, que ainda bem os anos de publica^äo dos panfletos de Marprelate, das
eram seminärios para a educafäo de pastores, e estavam se obras de Perkins e Hooker, da Versäo Autorizada da Bi-
convertendo em escolas de aperfeifoamento para a peque- blia, dos Essays de Bacon e dos Reports de Coke e da funda-
na nobreza. Havia muitos, muitissimos jovens inteligentes fäo da Biblioteca Bodleiana. O orgulho pelos feitos histo-
em Oxford e Cambridge, mas poucas ideias novas. As que ricos da Inglaterra estava condensado na edifäo completa
pretendo analisar vieram de leigos, näo de clerigos, e de ho- de Common-welth of England, de Sir Thomas Smith (1589),
mens desvinculados do ensino universitärio.^^ em Principal Navigations, de Hakluyt, em Remaines... Con-
cerning Britaine e em Britannia, de Camden (tradufäo in-
glesa de 1610), em History of Great Britaine, de Speed, em
21. Cartwright referia-se, em 1609, ao "erro do desespero por parte dos ana- Survay of London, de Stow, em Historie of England, de Da-
batistas" {org. A. Peel e L . H . Carlson, Cartwrightiana, 1951, p. 77). Cf. tambem niel, em History of the World, de Ralegh, e nas inümeras
Bacon, Works, viü. 93.
ediföes dos Acts and Monuments de John Foxe, publicado
22. T . H . Buckle, Miscellaneous and Posthumous Works (1872), iii. 631.
23. W.K. Jordan, Philanthropy in England, 1480-1660 (1959), passim. pela primeira vez em 1563. Este periodo tambem presen-
24. Ver, de minha autoria, Society and Puritanism (1964), pp. 40, 51. ciou o apogeu do teatro populär, e as pe^as historicas esta-
25. Ver Apendice.
20 ORIGENS INTELECTUAIS DA REV0LUQ40 INGLESA INTRODUC^ÄO 21

vam entre as mais populäres de seu repertorio.^^ O vernä- rios dos modernos contra os antigos, da ciencia contra a
culo entrou em cena com um vigor inesperado: as obras Arte escolästica.^^
of English Poesie de Puttenham e Defence of Poesie de Sid- A desgra^a nacional provocou ou pelo menos acompa-
ney proclamavam o seu direito de ser respeitado. nhou a transforma9äo. Houve o massacre de Amboyna, que
Esta enumera9äo um tanto monotona foi necessaria para näo foi vingado enquanto durou a monarquia, o fiasco da
estabelecer o contraste com os vinte e cinco anos seguin- politica inglesa na Guerra dos Trinta Anos, seguido pela
tes, entre cujas publica^öes so podemos selecionar os poe- guerra contra a Escocia; a coloniza9äo da America foi in-
mas de George Herbert (liberados depois de prolongadas teiramente feita pela iniciativa privada, sem nenhum apoio
discussoes com o censor), Comus e Lyciäas, e algumas pe- do Estado. A politica real destruiu a sübita prosperidade
fas de Jonson, Middleton, Massinger e Ford, muito embo- iniciada com a paz de 1604. Na corte, esses anos foram mar-
ra, para uma rela^ao mais completa, devamos tambem men- cados por escändalos. Um favorito do rei foi condenado por
cionar Wither, Quarles, George Sandys, Randolph e Ca- envenenamento; outro tornou-se suspeito da pratica de vi-
rew. Excetuando Milton e Herrick (cujos poemas perma- cio antinatural; um Lorde Tesoureiro e um Presidente da
neceram ineditos em sua maior parte), houve pouca origi- Cämara dos Lordes foram destituidos depois de sucessivas
nalidade; os poetas valiam-se das tradiföes estabelecidas por condena96es por corrup9äo; lorde Audley foi condenado
Spenser, Jonson, Donne e Shakespeare.^^ Em prosa, as obras ä morte por "sodomia, adulterio antinatural e incesto*\^°
representativas foram os Sermons de Donne e Andrewes e e, para completar, ainda era papista. Na corte, vendiam-se
a Anatomy of Melancholy de Bunon. Grande parte da obra cargos e honrarias abertamente, e juizes eram demitidos por
de Bacon, Ralegh e Coke so foi publicada depois de 1640. se recusarem a dar os vereditos desejados pelo governo. A
A exuberäncia intempestiva e o orgulho nacional do perio- politica economica oscilava do desastre do Projeto Cokay-
do anterior cederam lugar ä melancolia e ä introspec^ao ca- ne ao abuso dos monopölios. Numa epoca em que a maio-
racteristicas do final do reinado de Jaime I e do reinado de ria dos ingleses via o papismo como contrario aos Interes-
Carlos I , em que o otimismo confiante de Bacon e Hake- ses nacionais, as rela9Öes diplomäticas com o Vaticano fo-
will parecia dtslocado, e em que o inquieto e presun^oso ram reatadas. Acreditava-se que o absolutismo segundo o
Samuel Purchas arvorava-se em herdeiro do dedicado pa- modelo continental representasse uma amea9a. Life of Sid-
triota Richard Hakluyt. Durante esses anos, a ideia da pro- ney, de Fulke Greville, provavelmente escrita entre 1610 e
gressiva deteriora^äo da natureza foi expressada e defendi- 1614, ja apontava um contraste nitido entre as glorias do
da como nunca antes.^*^ Esta ideia, como veremos, foi um final da era elisabetana com a era "decrepita", "efemina-
dos alvos das criticas de Bacon, Hakewill e dos partidä- da" e degenerada que veio a conhecer o amigo de Sidney.^'
A glonfica9äo de Elisabete logo entraria em voga entre os
26. A. Harbage, Shakespeare and the Rival Traditions (Nova York, 1952), pp.
85, 260. 29. Ver adiante. pp. 136. 267-273, 300.
27. Devo esta ideia ao sr. Charles Hobday. 30. Cito a partir do escandalizado rcgistro do puritano E. Burghall, Provi-
28. V. Harris, All Coherence Gone (Chicago, 1949), pp. 148-9. O sr. Harris dence Improvcd (org. J. Hall, Lancashire e Cheshire Record Soc, 1889), p. 4.
situa o surgimento de uma atmosfera mais olimista a partir da terceira edifäo 31. Cf. D. Bush, English Literature in the Earlier Seventeenth Century {1*. ed.,
da Apologie for the Provulence of God, de Hakewill, em 1635. Todos os seus exemplos, 1962), pp. 230-1. Muito naturalmente, a Life s6 veio a ser publicada depois da
porem, säo posteriores a 1640. qucda da monarquia.
22 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUi^ÄO INGLESA INTRODU^AO 23

puritanos. A melancolia que se seguiu ä morte do principe retiravam para "uma solidäo eremitica" como homens "fracos,
Henrique em 1612 parece exagerada, por mais importante ... indolentes e desleais" que "prejudicam seu pai's e seus
amigos".^^
que ele tenha sido em muitas esferas da vida intelectual; os
George Herbert e Nicholas Ferrar abandonaram a cor-
homens, porem, percebiam que uma epoca havia chegado
te e a cidade em busca de Deus. Shakespeare parou de es-
ao fim.^^
crever para o teatro depois de completar quarenta anos, quan-
O contraste entre os dois periodos mostra-se especial- do o teatro populär e barato deixou de existir e a identifica-
mente notävel quando examinamos a tendencia social da 9äo entre corte e palco tornou-se mais profunda. "Os seto-
literatura. Nao temos noticia de panfletos e contos populä- res elegantes e palacianos do püblico londrino estavam, en-
res do segundo periodo que se assemelhem aos de Marpre- täo, distanciando-se dos demais.... Os dramaturgos tendiam
late, Deloney e Dekker ou de obras religiosas populäres como agora a identificar-se com os setores dominantes de seu pü-
Piain Maus Pathway to Heavcn, de Arthur Dent (1601), blico, constitui'do por partidärios do rei. A era do teatro
e Practice ofPiety, de Lewis Bayley (1612 ou 1613). Hä uma nacional estava encerrada."-''' Isso pode ter acontecido, em
enorme diferen^a entre a poesia pastoral de Sidney, Spen- parte, devido ao endurecimento da censura durante o pe-
riodo pre-revolucionärio, que levou muitos autores a se abs-
ser, Wither, Browne (e Milton) — com inten^äo conscien-
terem de publicar suas obras. Boa parte dos melhores tex-
te de transmitir uma mensagem^^ — e o mero escapismo tos era hostil ä corte — Massinger, Middleton, Wither, Mil-
a que recorriam cada vez mais os doutos e alguns fidal- ton.^** Por volta de 1613, a inspira^äo tambem abandonara
gos rurais. A senhorita R</)stvig situa, com muita precisao, a müsica inglesa.^** Chegava tambem ao fim a era de uma
"entre 1612 e 1616", a primeira manifesta^ao do "tema es- Igreja nacional. A Versäo Autorizada, produto da coopera-
toico da felicidade da vida no campo". " O apogeu do neo- ^äo entre sacerdotes de todas as vertentes de opiniäo, foi
estoicismo ingles deu-se no segundo quartel do seculo o Ultimo grande ato de uma Igreja a que praticamente to-
XVII."^"^ A importäncia de tal fato para os objetivos a que dos os ingleses desejavam pertencer. Vinte anos mais tarde,
nos propomos aqui consiste no fato de a senhorita R^stvig Laud, pelos padröes elisabetanos, era uma pessoa tao limi-
identificar seus neo-estoicos com os partidärios dos antigos, tada e unilateral quanto William Prynne. Tanto na religiäo
quanto na literatura, causas mais profundas do que a repressäo
os oponentes da ciencia moderna e dos puritanos.-^^ Embora
governamental estavam dividindo a na^äo. E este o nosso
fosse capaz de produzir ocasionalmente um poema em lou- ponto de partida.
vor da fuga para o campo, o parlamentarista e puritano George
Wither denunciava inequivocamente aqueles que se
36. G. Wither, Ahuses Stript and Whipt (1622), in Juvenilia (reeditado pela
Spencer Soc., s.d.), \ 272.
32. Ver abaixo, pp. 286-294. 37. L . G . Salingar, "The Social Setiing", in The Age of Shakespeare (org. B.
Ford, Penguin Books, 1955), p. 45; cf. pp. 110, 429. 440. Cf. Harbage, Shakespea-
33. Greville deixa claro que a forma alegörica de obras como Arcadia e The
re and the Rival Traditions, passim; Glynnc Wickham, Early English Stages, ii,
Faerie Queene tem como imuito "capacitar os homens de espirito livre para os 1576-1660, Parte I (1963), passitn.
grandes negöcios de Estado" {Life of Sidney, org. N. Smith, 1907, pp. 2-3. Publi- 38. Devo esta informa^ao ao sr. Hobday. Deveri'amos acrescentar os panfle-
cado pela primeira vez em 1652). tos de Thomas Scott (ver abaixo, pp. 277-9).
34. Maren-Sofie R^stvig, The Happy Man (Oslo, 1954), pp. 101. 113, 120. 39. Devo esta ideia äs discussoes mantidas com o dr. H.K. Andrews. Cf. "um.i
nova tendencia" na pintura inglesa por volta de 1616, provocada pelo declinio
35. Ibid., pp. 53-56; cf., de minha autoria, Puritanism and Revolution, pp.
das iluminuras (E. Mercer, English Art, 1553-1625, 1962, pp. 184-5, 205-10).
349-53.
ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQÄO INGLESA
116

impossivel cumprir, "e voltar para casa com as mesmas ha-


bilidades que tinham antes".^'^^
Assim, com exce^äo da oligarquia medica dominante,
todos tinham excelentes razöes para ver com simpatia a causa
parlamentar. "Tens um cora^ao fetido e podre", vociferou
um boticario de Grantham quando um homem Ihe disse
que apoiaria o rei contra o parlamento. Para a Cämara dos
Comuns, porem, esse homem foi longe demais ao propor
a deposifäo de Carlos.^'^^
3

F R A N C I S B A C O N E OS P A R L A M E N T A R I S T A S

Nossos melhores e mais sublimes conhecimentos tem


por objetivo a a9äo; e os estudos cujo proposito explici-
to näo seja sua aplica9äo pratica podem ser justamente
considerados estereis.

J O H N W I L K I N S , Mathemalicall Magick (1648), p. 2.

Qualquer arte ou ciencia incapaz de beneficiar a huma-


nidade, seja para levar sua alma para perto de Deus, ou
para libertär seu corpo dos grilhöes da corrupfäo, nao
deve em absoluto ser levada em conta, pois, mesmo na-
quilo que tem de melhor, nao passa de um desvio do
espirito.

A Seusonuhle Discourse written by Mr. John D«ry (1649),


pp. 10-11.

Francis Bacon viveu de 1561 a 1627. Ascendeu lenta-


340 Aveling, English Midwives, p. 89. A ünica fönte de que dispomos neste mente durante o reinado de Elisabete, apesar de sua posi-
caso, e näo muito confiävel, e a da sra. Cellier, em 1687; contudo, ela escrevia ^äo inicial bastante vantajosa como filho de um Guarda-
sobre fatos dos quais ainda tinha uma recorda^äo viva, e nao ha mdica^oes de Selos. N o entanto, esteve sempre proximo ao centro do po-
que tenha sido refutada. . -, j D
341. Harleian MSS. 163 f. 623 a. Devo esta referencia a gentileza do sr. Ko- der, e durante o reinado de Jaime I subiu ao posto de Lor-
bin Clifton. de Chanceier. Foi uma figura proeminente no governo ate
118 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON EOS PARLAMENTARISTAS 119
cair em desgrafa em 1621, acusado de aceitar suborno. Ele pavam o espirito daqueles teologos do seculo X V I I que se
tinha esperan^as de usar sua influencia na corte para conse- preocupavam com a ressurreifäo fisica de um missionario
guir que seus projetos cientificos fossem adotados: e provä- que tivera a desventura de ser comido por canibais. Bacon
vel que o ünico resultado tenha sido a demora do parlamento incorporou seus antecessores da mesma forma que os cani-
em reconhece-los.^ bais incorporaram o missionario: pode ser injusto o fato de
Estamos interessados, porem, e no Bacon pensador, que nos referirmos ä sua influencia quando, na verdade, estamos
talvez possamos agora situar numa perspectiva historica. Ele nos referindo ä influencia de toda uma gerafäo; imagino, po-
era duplamente ligado a sir Thomas Gresham. O pai de Ba- rem, que este tipo de canibalismo historico seja inevitävel.^
con casou-se com a irmä da esposa de Gresham (ela, porem, Bacon foi tanto um pensador social quanto cientifico.
näo era mäe de Francis), e o meio-irmäo de Francis despo- Grabas a seu poderoso senso historico, percebeu que algo
sou a filha de Gresham. A rela^äo intelectual de Bacon com novo estava acontecendo, näo so na ciencia como tambem
o Gresham College era muito parecida: vinculos estreitos, na sociedade: ele definiu o que era esse algo novo, e mos-
mas nenhuma descendencia direta. Bacon näo foi um pen- trou como podia ser utilizado conscientemente para a me-
sador cientifico original; näo deu a devida importäncia äs lhoria da condigäo humana. " A atividade dos artifices faz
realiza^öes de alguns de seus contemporäneos, em especial alguns progressos no que diz respeito äs invenföes, e nos
experimentos o acaso as.vezes nos coloca subitamente dian-
äs de Gilbert. Grande parte do que foi dito por Bacon em
te de algo que e novo: no entanto, todas as controversias
sua critica de Aristoteles e dos filösofos escolästicos e em
mantidas pelos homens cultos jamais trouxeram ä luz
seus escritos favoräveis ä cooperafäo entre os cientistas, os
uma ünica propriedade da natureza que fosse anteriormen-
seus pressupostos utiÜtärios, cren^a nos projetos financia-
te desconhecida." A imprensa, a polvora e a büssola, as tres
dos pelo Estado para a melhoria da condifäo humana —
grandes invenföes dos modernos artesaos, foram "aciden-
grande parte de tudo isso ja fora proclamado antes pelos
tes, descobertas feitas por acaso"; e, no entanto, haviam trans-
escritores cientificos populäres cuja importäncia na Ingla- formado o mundo. Se tudo isso podia ser realizado pelo me-
terra estivemos considerando. Alem de seu brilho como ex- todo "cego e estüpido" da experimentafäo nao coordena-
perimentador, Gilbert tambem criticara a escolästica e es- da, mais semelhante a "uma especie de cafa pelo faro do que
peculara sobre " u m novo estilo de filosofar", destinado a ^ uma ciencia", quäo superiores seriam os progressos obti-
homens "que näo buscam nos livros o seu conhecimento, dos se as experiencias fossem planejadas e dirigidas, e nao
mas nas coisas em si". N o entanto, embora Gilbert combi- aleatorias, como haviam sido inclusive as de Gilbert. Quan-
nasse experimento e generaliza^äo, ele ainda näo consegui- do "a experiencia aprendesse a 1er e a escrever", uma filoso-
ra unificä-los em um sistema ünico e abrangente.^ fia do conhecimento claramente definida e voltada para a
Assim, vemo-nos diante de dificuldades para estabele- afäo poderia permitir que o homem se libertasse das con-
cer a influencia de Bacon. Dificuldades muito parecidas ocu- tingencias a e e impostas pela natureza.'^

1. Ver abaixo, p. 159. 3. Cf. H.P. Bayon, "William Gilbert (1544-1603), Robert Fludd (1576-1637)
2. W. Gilbert, De Magnete, Prefäcio. Recentemente teve inicio uma rea^äo e William Harvey (1578-1657) como representantes da doutrina baconiana na me-
contra as tentativas de minimizar a contribui^äo original de Bacon ao pensamen- dicina", Proceedings of the Royal Society of Medicine, xxxii. 39.
to cientifico. Ver. J.R. Partington, "Chemistry as Rationalized Alchemy", Bulle- 4. Bacon, In Praise of Knowledge, in Works (1826), ii. 118-21. Sobre a inade-
tin of the British Society for the History of Science, i. 131-2; History of Chemistry, qua9äo da ciencia academica medieval, por sua dissociajäo da tecnologia, ver A . C .
ii (1961), 389-414. Crombie, "Quamification in Mediaeval Physics", Isis, lü. 154, 159-60.
120 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 121
Esta filosofia era **o resultado do tempo, e näo do en- criarmos o progresso cientifico que agora se tornou possi-
genho. Fazia parte dos designios de Deus que *'a abertura vel para a humanidade, devemos expandir a nossa mente
do mundo atraves da navegaf äo e do comercio e as novas para que ela compreenda o universo em sua plenitude: em
descobertas do conhecimento viessem a coincidir em algum funfäo deste objetivo, o filosofo deve cooperar com o tra-
tempo".^ Assim, Bacon ofereceu um programa cooperati- balho do artesäo.''
vo e um senso de proposito aos mercadores, artesaos " O destino da rafa humana e o objetivo (da minha obra),
e filösofos, algo que ate entao eles so haviam conhecido par- e este objetivo e tal que, no presente estado de sua capaci-
cialmente. Foi esta a sua primeira grande realizafao. Em se- dade de discernimento, os homens teräo muita dificuldade
gundo lugar, Bacon acertou as contas com a religiäo, esta- para compreende-lo e avaliä-lo. Pois o que estä em jogo nao
belecendo que a investiga^äo cientifica näo so näo entrava e simplesmente uma felicidade contemplativa, mas a reali-
em conflito com a teologia como era positivamente virtuo- dade mesma do bem-estar humano e de toda a capacidade
sa.^ Isso foi muito importante para a conquista do apoio de afäo do homem. O homem e o auxiliar e o interprete
dos parlamentaristas puritanos, sem o qual a vitoria da cien- da Natureza. Ele so pode agir e compreender ä medida que,
cia na Inglaterra teria sido retardada por muito mais tem- manipulando-a ou observando-a, vier a perceber sua ordem.
po. Em terceiro lugar, enquanto o pensamento cientifico ... Näo hä outra forma de conquistar a Natureza, a nao ser
anterior estava inextricavelmente ligado ä magia e ä alqui- obedecendo-a. Por conseqüencia, estas duas coisas precio-
mia num homem como Dee, e era banal, prätico e abur- sas e identicas, o conhecimento e o poder humanos, aca-
guesado no Gresham College, com Bacon ele alcan^ou näo bam por transformar-se numa ünica coisa. Ignorar as cau-
apenas dignidade social, mas tambem a for^a de um siste- sas e frustrar a afäo."^
ma filosofico. Näo foi sem importäncia o fato de ele ter es-
crito filosofia na condifäo de Lorde Chanceier. Bacon ele- Havia se estabelecido em Londres um contato mais es-
vou ä condifäo de sistema intelectual coerente aquilo que treito entre cientistas e artesaos. Homens como Recorde,
ate entäo eram apenas pressupostos parcialmente expressa- Dee, Digges, Hood, Gilbert e Briggs haviam utilizado no-
dos pelos homens präticos. Era isso que Bacon tinha em vos metodos e vislumbrado algumas de suas possibilidades.
mente quando afirmava nao ser mais que o porta-voz arti- Bacon, porem, ofereceu ao homem um programa nobre e
culado das for^as Inarticuladas de sua epoca. abrangente de afäo cooperativa, em que ate mesmo o mais
humilde dos artifices tinha um papel a representar. " M i -
**0 verdadeiro e legitimo objetivo das ciencias nao e
nha forma de descobrir ciencias contribui muito para equi-
outro senäo este, ou seja, enriquecer a existencia humana
parar a inteligencia dos homens, deixando muito pouco ä
com novos poderes e invenfÖes. Em sua grande maioria,
superioridade individual, pois suas realiza^öes se däo atra-
porem, as pessoas nao se däo conta disso, pois säo apenas
ves das mais solidas regras e demonstraföes."^ Podemos fa-
mercenärios e pedantes. So em ocasiöes muito raras vemos
zer ideia da mudanfa que Bacon representa se comparar-
algum artesäo de inteligencia incomum e ansioso por hon-
mos a esperan9a manifestada por Dee em 1570, de que "os
rarias dedicar-se a uma nova inven9äo, o que ele faz, quase
sempre, ä custa de sua propria riqueza." Entretanto, para
7. Bacon, Works, iv. 79. Utilizei, aqui e ali, a tradufäo do professor B. Far-
rington {Francis Bacon, Philosopher of Industrial Science, 1951, p. 91).
5. Bacon, Works, iv. 11, 77; iii. 221. 8. Bacon, Works, iv.32
6. Ver abaixo, pp. 125-30. 9. Ibid. iii. 221.
122 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 123

artesaos comuns" fossem capazes de "conceber novas obras, nharäs o päo com o suor do teu rosto" era conseqüencia
mecanismos e instrumentos desconhecidos" com a visao que do pecado original: o trabalho era, simultaneamente, a mal-
Milton teve de Londres em 1644, como "uma cidade de re- difäo e a salva^ao do homem. Pois "atraves de muitos es-
fügio, o solar da liberdade", onde os homens estavam "len- for^os (näo, por certo, atraves de controversias ou ritos mä-
do, fazendo todos os tipos de experiencias, aquiescendo ä gicos inüteis, mas atraves de muitos esfor^osy\ natureza
for^a da razao e da convicfäo".^^ Cinco anos depois, John poderia ser "finalmente, e ate certo ponto, dominada, para
Hall viu "os mais elevados espiritos ocupados com os mais atender äs... necessidades da vida humana". Quanto ao fu-
grandiosos temas, e, a despeito dos tumultos e problemas turo, porem, a esperan^a de Bacon era "podermos legar aos
que OS cercam por todos os lados, sempre äs voltas com al- homens o dominio do seu destino, quando o conhecimen-
gum trabalho de cuja grandeza eles proprios näo se däo con- to houver se emancipado — quando houver, por assim di-
ta, e tentando, com uma coragem maravilhosa, descobrir zer, atingido a maioridade". Em conseqüencia, "deve ne-
um novo mundo do conhecimento". Dee queria que os ar- cessariamente ocorrer uma melhoria da condi^äo humana,
tesaos tivessem a oportunidade de Inventar engenhos üteis; e um aumento de seu poder sobre a natureza".
Mihon e Hall imaginavam que toda a comunidade estava Esta empolgante visao utopica retoma ideias que durante
progredindo em conhecimento, sabedoria, poder e virtu- muito tempo haviam obcecado os paracelsistas e alquimis-
de, "afugentando ... as sombras antes do romper do grande tas.^'^ O programa de Bacon, porem, näo se fundamentava
dia".^' N o espafo entre esses dois momentos, Bacon (e a apenas na pedra filosofal, mas tambem nos fatos da produ-
Revolufäo) haviam surgido para oferecer a maior ousadia, fäo industrial. Ele propunha a reversao de todo o curso da
a disposifäo para experimentar tudo, a confian^a. historia humana, da forma como esta fora ate entäo enten-
A mais surpreendente das aspira^öes de Bacon era o de- dida. Quando Karl Marx expos suas esperan9as de uma so-
sejo de que seu metodo cientifico, sob certos aspectos, vies- ciedade igualitäria e sem classes para os explorados, a ideia
se libertär a humanidade das conseqüencias do pecado ori- de progresso ja se tornara um lugar-comum. Bacon, porem,
ginal. Ele esperava por "uma restitui^äo e o reforfo (em dirigia-se a homens para os quais, durante seculos, o dog-
grande parte) da soberania e do poder ... que o homem pos- ma do desamparo da humanidade decaida fora axiomätico,
suira no estado inicial de sua criafäo".^^ 77ye Great Instau- A pratica naturalmente entrava em conflito com a teona,
ration tinha por objetivo devolver ä sua perfeifäo original, Os artesaos dos quais ate aqui nos ocupamos e os cientistas
ou a algo semelhante, o intercämbio da mente com as coi- que para eles escreveram eram otimistas na prätica.^ Bacon,
sas. "Pois, com o pecado original, o homem perdeu ao mes- porem, ofereceu-lhes uma teoria que aliava um otimismo
mo tempo o seu estado de inocencia e o seu dominio sobre coerente para com a humanidade e uma critica de Aristote-
as coisas criadas. Ambas as perdas podem ser, mesmo du- les e dos escolästicos, fundamentada näo apenas na sua inu-
rante a sua vida, parcialmente reparadas: a primeira, pela tilidade, mas tambem em sua maldade. "Tais ensinamen-
fe e pela rehgiäo, e a segunda pelas artes e ciencias." "Ga- tos, quando devidamente avaliados, revelar-se-ao como na-
da menos que um esforfo perverso para reduzir o poder
10. Milton, Complete Prose Works (Yale), ii. 553-4.
11. J. Hall, An Humble Motion to the Parliament of England conceming the 13. Works, iv. 21, 247-8.
Advancement ofLeaming and the Reformation of the Universities (org. A.K. Cros- 14. Haydn, The Counter-Renaissance, pp. 191, 250-1, 516-19. Ver tambem G . H .
ton), 1953, p. 21. Publicado pela primeira vez em 1649. Williams, The Radical Reformation (Filadelfia, 1962), pp. 375-7, 857, a proposito
12. Valerius Terminus, passim, in Works, iii. 217-52. da ideia de "restituifäo" no pensamento anabatista. Ver abaixo, pp. 131, 400-1.
124 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 125

humano sobre a natureza e criar um desespero dehberado löes na eleifäo dos ministros, tambem pensava que " o ob-
e artificial. Este desespero, por sua vez, perturba o princi- jetivo ... do saber" era "restaurar as ruinas de nossos pri-
pio vital da esperan^a, reduz a nada os mananciais e susten- meiros pais".^^
taculos da indüstria e predispöe os homens contra os riscos
e acasos inerentes ä experiencia."^^ n
Isso ia muito alem da critica a Aristoteles e ä filosofia
escolästica, que ja se havia tornado um procedimento qua- Das convicföes religiosas de seus pais e do mundo ao
se trivial entre os protestantes radicais; voltava-se contra os seu redor, Bacon herdou e assimilou os pressupostos calvi-
oponentes teologicos da nova ciencia, e no entanto Bacon nistas a respeito da prioridade da fe sobre a razao (a razäo
afirmava, com razao, estar apenas dando voz a opiniöes que dos escolästicos — Bacon via Aristoteles como o Anticris-
eram um produto do tempo, e näo do engenho. Ele deseja- to)^^ e tambem a respeito da necessidade do esfor^o ärduo
va formular " u m registro das mais elevadas realizaföes fisi- e persistente. "Todo conhecimento deve ser limitado pela
cas e mentais da humanidade, para compensar as miserias religiäo e voltar-se sempre para a utilidade e a afäo."^° O
humanas täo abundantemente mencionadas por filösofos e conhecimento especulativo e uma contradi9äo. Calvino exal-
teologos".Assim, Bacon desfraldou a bandeira filosofica tou o poder de Deus, ao mesmo tempo em que desencora-
dos modernos, näo apenas contra os antigos e seus defen- java a excessiva especula^äo sobre sua natureza e seus atri-
sores nas universidades, mas tambem contra os teologos. butos, que säo incognosciveis, e sobre os quais a autorida-
Hakewill acompanhou Bacon ao admitir que "a assimila- de da Biblia e definitiva. Deus e lei.^^ O poder de Deus, po-
fäo da verdade [natural] ajuda-nos a reparar ... o pecado ori- rem, encontra-se manifesto em sua cria^ao. Para Bacon, "as
ginal", e que " o primeiro passo para que um homem reali- obras de Deus ... revelam sua onipotencia e sabedoria, mas
ze grandes feitos e deixar-se convencer de que atraves dos näo compartilham da imagem do Criador", e dessa forma
seus esforfos ele pode realizä-los". Ä afirmagäo de Good- a ciencia näo nos pode ensinar nada sobre os misterios di-
man, segundo a qual "as pessoas rüsticas do campo pode- vinos.^^ "Se algum homem imaginär que, atraves da con-
riäm tornar-se cada vez mais insubordinadas" caso nos re- templafäo e do exame dessas coisas materiais e tangiveis,
ferissemos aos antigos com descredito e menosprezo, Ha- ele poderi chegar a alguma forma de ilumina^äo que Ihe
kewill repHcou que havia mais probabilidades de instaurar- revele a natureza ou os designios de Deus, estara causando
se um espirito de insubordinafäo se as pessoas do campo seriös prejuizos a si proprio. Aproximar-se dos segredos e
"viessem a ser convencidas de que a diligencia e incapaz de misterios de Deus, e peneträ-los" foi o que ocasionou o pe-
melhorar o que quer que seja".^^ E Milton, que defendeu cado original. " A contemplafäo das criaturas de Deus tem,
o direito de participafäo dos carpinteiros, ferreiros e tece-
18. Milton, Complete Prose Works (Yale), i. 934; ii. 366-7.
19. Bacon, Works, iii. 567. Ver abaixo, p. 166.
15. Bacon, Works, iii. 592-4; cf. iv. 90; v. 317-18. 20. Ibid. iii. 218.
21. J. Calvino, Institutes of the Christian Religion (trad. H . Beveridge, 1949),
16. Ibid. iv. 11, 77, 314-35.
i. 57, 235-7; ii. 227, 577. Cf. Lutero: " U m homem tornou-se teologo vivendo,
17. Hakewill, Apologie, p. 17, sig. a 3, ii. 132; cf.^pp. 20-23, ii. 319. Em mi- näo morrendo e sendo condenado; näo pensando, lendo ou especulando." (M.
nha opiniäo, o ponto de vista äs vezes expressado, segundo o qual Hakewill pou- Lutero, Werke, Weimar, 1883, v. 163, citado por E . H . Erikson, YoungMan Lu-
co deve a Bacon, näo reslste a um exame mais aprofundado. As cita?Öes diretas ther, 1959, p. 245; cf. p. 222).
säo relativamente poucas (e.g. pp. 42, 221, 261, 302), mas, da mesma forma que 22. F . H . Anderson, The Philosophy of Francis Bacon (Chicago U.P., 1948),
nos trechos acima, o espirito baconiano e uma presenja constante. pp. 153, 212, e referencias ali citadas.
126 OR!GENS INTELECTUAIS DA REVOLUQÄO INGLESA FRANCIS BACON EOS PARLAMENTARISTAS 127

por finalidade,... quanto ä natureza de Deus, nao o conhe- suspeitas, näo sem fundamento, de feitigaria, alquimia, as-
cimento, mas apenas a admira^ao".^^ "Que nunca venha- trologia e ateismo. Quando sir Walter Ralegh afirmou: "Te-
mos a ... imaginär ou sustentar que um homem pode levar mos principios em nossa matematica", e quis aplicä-los a
täo longe as suas buscas ou ser por demais versado no livro uma discussäo da alma humana e da existencia de Deus,
da palavra de Deus ou no livro das obras de Deus." Mas tornou-se, muito naturalmente, suspeito de ateismo.^^ Ba-
— e, teologicamente, este era de fato um grande mas — "que con inverteu os papeis, e criou a atmosfera mental que per-
OS homens tomem o cuidado de aplicar ambos [o estudo mitiu a John Wilkins afirmar: " A astronomia comprova
da Biblia e o estudo da natureza] ä caridade, e näo ä arro- a existencia de Deus e de uma Providencia", e confirma a
gäncia; ä utilidade pratica, e näo ä ostenta^äo, e, volto a dize- veracidade das Escrituras.^^ E gra^as a Bacon que o funda-
lo, que näo misturem^ ou confundam grosseiramente esses dor da Royal Society "pode ser considerado o padrinho in-
conhecimentos".^^ "E infinito o prejuizo do conhecimen- gles da religiäo natural ou moral".^^ Näo demorou muito
to divino e do humano quando um e outro säo confundi- para que sir William Petty pudesse referir-se a um anfitea-
dos." " A o desejarem elevar-se ao trono do poder, os anjos tro de anatomia como "(sem metäfora) um templo de
transgrediram e cairam; ao ter a pretensäo de penetrar no Deus".^2
oräculo do conhecimento, o homem transgrediu e caiu; no Assim, Bacon deu äs atividades dos cientistas uma san-
entanto, em busca ... do ... amor ... nem o homem, nem fäo moral mais socialmente aceitävel do que o mero utili-
o espirito jamais transgrediram."^^ Oferecer novos pode- tarismo. Embora, como ja vimos, houvesse liga^öes entre
res e novas obras ä condigäo e ä vida do homem era um o puritanismo e o espirito cientifico,^^ seus caminhos ha-
dever religioso.^^ viam se afastado. Bacon justificou esta separa^äo e mostrou,
Isso faz parte de uma longa tendencia do pensamento para o contentamento da gera^äo subseqüente, que nao ha-
protestante, de Lutero em diante, que equiparava a carida- via quaisquer motivos para temer a ciencia, pois, em seus
de äs obras realizadas com o proposito de beneficiar a co- respectivos oficios, tanto os cientistas quanto os pastores
munidade ou a humanidade;^^ assim, a separa^äo estabele- trabalhavam igualmente pela gloria de Deus. A religiäo, por-
cida por Bacon entre a ciencia e a religiäo, tao vital para tanto, ao contrario de opor-se ä ciencia, "deveria empenhar-
o futuro progresso da ciencia, estava inserida na melhor tra- se em proteger todos os avanfos do conhecimento natural".
di^äo protestante.28 Ela ajudou a inocentar os cientistas de Somente a superstifäo ignorante ou o entusiasmo fanätico
— o papismo ou o anabatismo — podiam opor-se ä pesqui-
23. Bacon, Works, iii. 218.
24. Anderson, op. cit., pp. 54-55, e referencias ali citadas. sa cientifica.^"^ Estaria Boyle escrevendo como protestante
25. Bacon, Works, iii. 217.
26. Ibid. iii. 298; iv. 24, 104, 114. 29. Ed. G.ß. Harrison, Wtllobie His Avisa (1594) (1926), p. 267. Cf. abaixo,
27. Ver, de minha autoria, "Protestantism and the Rise of Capitalism", in pp. 231-2.
Essays in the Social and Economic History ofTudor and Early Stuart England, apre- 30. J. Wilkins, A Discourse conceming a New Planet {\M0), p. 237-40, citado
sentado a R . H . Tawney (1961), pp. 15-39. por G. McColley, "The Ross-Wilkins Controversy", /4«Ws of Science, iii. 161. Como
vimos acima (p. 96), Wilkins era menos seguro quanto ä verdade literal da Biblia.
28. Isso näo era proprio de Bacon. Nicholas Hill, em sua Philosophia Epicu-
31. McColley, op. cit., pp. 155,186. Wilkins tornou-se bispo, e sua obra pos-
rea (1601), estava convencido de que a religiäo organlzada era hostil ä investiga-
tuma Of the Principles and Duties of Natural Religion foi publicada em 1675 pelo
9äo cientifica. Os homens deveriam "aceitar a revelafäo angelica, mas rejeitar as
futuro arcebispo Tillotson. Teve seis edi9Öes em trinta e cinco anos.
tradifoes eclesiasticas" (citado por G . McColley, "Nicholas Hill and the Philoso-
32. Org. Lansdowne, Petty Papers (1927), ii. 172.
phia Epicurea", Annais of Science, iv. 400). Esta e uma das muitas passagens que
33. Ver acima, pp. 35-43.
nos levam a duvidar do suposto catolicismo de Hill. Ver abaixo, p. 197. 34. Anderson, op. cit., p. 95.
128 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQAO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 129

radical ou como cientista, quando referiu-se aos membros Bacon näo professava o estreito utilitarismo que mais
do Colegio Invisivel como "pessoas que se esforyam para tarde passou a ser associado ao seu nome. A esse respeito,
desconcertar a intoleräncia, atraves da pratica de uma cari- ele era täo pouco baconiano quanto Karl Marx era marxis-
dade täo irrestrita que se estende a tudo o que chamamos ta. Ao atacar a separa9äo academica entre teoria e pratica,
homem, e nada menos que uma boa vontade universal e ele enfatizava que "na filosofia natural, os resultados präti-
capaz de satisfaze-la. E eles, de fato, preocupam-se tanto com cos näo säo apenas o meio de aperfeifoar o bem-estar do
a necessidade de boas obras que a humanidade inteira torna- homem. Säo tambem a garantia da verdade. ... A ciencia
se objeto de suas preocupaföes"?^^ Puritanos e cientistas ja tambem deve ser conhecida por suas obras. E pelo teste-
tinham inimigos comuns havia muito tempo. Agora eles munho das obras, e näo pela logica, ou mesmo pela obser-
compartilhavam uma causa e um idealismo. Näo foi por va9äo, que a verdade e revelada e estabelecida. Decorre dai
acaso que Bacon sempre defendeu uma atitude moderada que o aperfeifoamento do destino humano e o aperfeifoa-
para com os puritanos, e em 1624 apelou a Buckingham para mento da inteligencia humana säo a mesma coisa". A pra-
"näo privar de vosso favor estes homens, que sao hones- tica, Bacon näo se cansava de repetir, e a ünica forma de
tos e religiosos", simplesmente porque os papistas os cha- comprova^äo da verdade; "se o conhecimento e possivel ou
mam "puritanos". "Pois e desta especie a grande maioria näo, e algo que deve ser estabelecido näo pelos argumen-
dos süditos."^^ tos, mas pela experiencia".^^ Mas as obras "em si mesmas
E importante compreender que este elemento religio- säo de maior valor enquanto garantias da verdade do que
so da fase inicial do baconismo era autentico, embora tenha- como contribuiföes para os confortos da vida". Todo co-
se prestado täo facilmente a desenvolvimentos secularistas nhecimento desvinculado e corrupto. Bacon fazia uma dis-
posteriores. Bacon näo estava procedendo a uma separafäo tinfäo entre a ambifäo "vulgär e degenerada" daqueles que
entre religiäo e ciencia por ser um ateu disfarfado que de- so buscam o proprio poder, a mais digna, "embora näo me-
sejava ser livre para discutir a ciencia sem a interferencia nos interesseira" ambi^äo daqueles que trabalham para au-
de padres ignorantes. A separa^äo teve origem nas suas cren- mentar o poder e o dominio de seu proprio pais, e, por ou-
fas protestantes e foi uma conseqüencia inseparavel de to- tro lado, o seu empenho para "estabelecer e estender o po-
da a sua filosofia. O proprio Calvino admitiu a importän- der e o dominio da rafa humana por todo o universo".
cia das causas finais e formais, e deu importäncia incomum O conhecimento nao deveria ser buscado como " u m leito
äs causas materiais e eficientes. Este era tambem o ponto para o repouso de um espirito curioso e inquieto, como um
de partida da logica de Ramus, que Bacon conhecia bem.^'' terrafo onde uma inteligencia irrequieta e inconstante po-
O que Bacon desaprovava eram as "controversias religio- de vagar contemplando uma bela paisagem, como uma tor-
sas", que no seu entender "sempre colocam obstäculos ao re a cujo cimo pode-se al^ar uma mente orgulhosa, uma for-
progresso da ciencia". taleza ou campo de batalha, proprios para o combate e a
contenda, ou, ainda, como uma loja para lucros e vendas".
35. R. Boyle, carta de 1647, in Works (1744), i. 20. Deve, pelo contrario, ser " u m rico armazem, para a gloria
36. Bacon, Works, xiv. 448-9. do Criador, e o alivio da condi^äo do homem". "Quando
37. Com referencia a um exemplo precoce do emprego reljgioso do baco-
nismo, ver uma carta do dr. William Gilbert ao arcebispo Ussher (1638), in Parr,
Lifeof... Usher, II, 493-4. 39. Farrington, op. cit., pp. 68, 97-98.
38. Carta de 10 de outubro de 1609 a Tobie Mathews, in Works, xi. 138. 40. Ibid., pp. 45, 148- 7.
130 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA
FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 131

falo de utilidade e a^ao, näo estou me referindo ä ... aplica- dos intelectuais, das inteligencias brilhantes, dos poetas dos
fäo do conhecimento ä aquisi^ao de lucros". Os homens Inns of Court, das universidades, minha sugestao ve-se con-
deveriam buscar o conhecimento "para o beneficio e utili- firmada, mas o mesmo näo pode ser dito, como agora po-
dade da vida, e ... aperfeifoä-lo e dirigi-lo para a caridade".'*^ demos ver, no que diz respeito aos nossos inquietos arte-
saos e mercadores, täo seguros de sua capacidade de aumentar
Ainda näo estamos em dia com Bacon.
a riqueza da na^ao, de reformular suas instituiföes e levar
Em meu primeiro capitulo, quando tentei oferecer um
o seu comercio para regiöes desconhecidas — desde que o
panorama do mundo em que cresceram os nossos artesaos
governo näo Ihes colocasse obstäculos. O que Bacon expres-
e mercadores autodidatas, ansiosos e seguros de si, fiz uma
sava era exatamente essa confian^a no poder de expansäo
distinfäo entre duas geraföes: uma anterior e outra poste-
da indüstria e da ciencia, uma confianga que irrompeu em
rior a 1614. Tratava-se, sem duvida, de uma data arbiträria,
forma de acaloradas especukfÖes e discussoes tao logo a cen-
mas creio que realmente existe uma diferen^a bem nitida
sura prelaticia foi derrubada.
entre as turbulentas realizaföes da gera^äo posterior ä der- Portanto, talvez agora possamos resolver de alguma for-
rota da Armada, quando os ingleses subitamente percebe- ma o paradoxo que foi nosso ponto de partida.''^ Antes que
ram que eram cidadaos de uma nafäo ä altura de qualquer Bacon come^asse a escrever, a Inglaterra fora palco de gran-
outra, o periodo em que foi escrito quase tudo aquilo que des avan^os na matematica e na astronomia, cujo centro foi
chamamos literatura elisabetana, e o segundo periodo, de Londres, especialmente ao redor do Gresham College. U m
recessäo economica, humilhafäo nacional na politica, du- desenvolvimento similar ocorrera na alquimia, tradicional-
vida e busca de identidade na literatura. Esta falta de vigor mente associada aos artesaos, que acabou por se transfor-
e ousadia dos intelectuais tradicionais foi refor^ada pela cen- mar na medicina paracelsista, estimulada pelas novas indüs-
sura cada vez mais rigorosa, "este impertinente jugo da pre- trias e pelo emprego de novas drogas medicinais. Estas duas
latura, sob cuja estupidez inquisitorial e tiränica o brilho tendencias cientificas haviam sido expressadas numa litera-
do espirito ve-se inteiramente impossibilitado de flores- tura cientifica populär que era antiaristotelica, utilitäria e
cer".'*^ Sugeri que, nessas decadas, o confiante otimismo de otimista. Havia tambem uma poderosa tradifäo puritana,
Bacon (e Hakewill) parecia estranhamente dissociado do es- que era igualmente antiautoritäria, opunha-se a Aristoteles
tado de espirito dominante. Quanto ao espirito dominante e aos escolästicos e tendia a separar razäo e fe. As duas tra-
diföes cientificas e a tradifäo puritana parecem ter atraido
41. Anderson, op. cit., p. 96, e referencias ai citadas. Neste utilitarismo reli- as simpatias dos mercadores e artesaos, especialmente em
giosa Bacon faz lembrar Fulke Greville, que escreveu:
Antes, portanto, a utilidade que o prazer,
Londres. O que Bacon fez foi unir as tres tradiföes e trans-
Os ativos odeiam um instrumento esteril: formä-las num sistema intelectual. Ao faze-lo, deu ao mo-
Assim deve o mundo fazer com os tolos indolentes, vimento cientifico uma forfa incomensurävel.
Que näo servem senao äs Escolas...
E u queria vivas lodas as ciencias.
O que ele fortaleceu, porem, era um corpo de ideias que
{F. Greville, A Treatie of Humane Learning, havia aberto seu caminho a partir de baixo. Isto se aplica
in Poems and Dramas, org. G. Bullough, 1. 170). especialmente äs ideias dos paracelsistas. As universidades
Cf. G. Bullough, "Bacon and the Defence of Learning", in 17^' Century Studiespre-
continuavam a ser um reduto do aristotelismo. Bacon
sented to sir Herbert Grierson (1938): "Musophilus antecede condignamente The Advan-
cement ofLeaming" (p. 13). A proposito de Greville, ver abaixo, pp. 182-6, 238.
43. Ver acima, p. 26.
42. Milton, Complete Prose Works (Yale), i. 820.
132 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 133
expressou-se de forma cautelosa, porem sincera, quando "nos nidades com as dos parlamentaristas do que com as dos reis
homens de conduta piedosa" percebeu "uma tendencia pa- aos quais serviu. Ele compartilhava o desejo de uma guerra
ra levar as pessoas a dependerem tanto mais de Deus quan- naval com a Espanha, expressado por muitos membros do
to menos familiarizadas estivessem com as causas secundä- parlamento, alem de Ralegh e Coke, uma vez que era favo-
rias, e para repudiar a atividade filosofica, com receio de ravel ao "livre comercio em todas as regiöes, quer das In-
que esta possa conduzir a uma inovafäo na teologia ou des- dias Orientais, quer das Indias Ocidentais".'*^ " A riqueza
cobrir materia para contradifoes na teologia". Estas opiniöes de ambas as Indias", observou ele no ensaio "Da verdadei-
säo " o mais forte obstäculo ä filosofia natural e ä inven- ra grandeza dos reinos e Estados", "parece ser em grande
^äo".'^'' Com esta afirma^äo, Bacon estava devolvendo o ata- parte uma simples conseqüencia do dominio dos mares".'*^
que aos conservadores politicos e direitos adquiridos, que Por esta razäo, Bacon compartilhava com Ralegh a mesma
eram os principais adversärios da ciencia populär. Oxford atitude ambivalente para com os Paises Baixos: " N ä o po-
e Cambridge, aqueles redutos clericais, näo tinham grande deriamos abandonä-los por causa de nossa seguranfa, nem
interesse para Bacon antes de serem expurgados. U m ou ou- mante-los em funfäo de nossos lucros."49 N ä o obstante ele
tro jovem com posiföes radicais, como Milton, podia de- expressou, a exemplo de Ralegh, uma grande admira^ao pela
fender o baconismo na decada de 1620; um ex-professor de sua organizafäo politica e economica.^^ Ele enahecia, em
Gresham como Richard Holdsworth pode ter recomenda- especial, o fato de que nos Paises Baixos "a riqueza estava
do algumas das obras de Bacon a seus discipulos de Cam- espalhada por muitas maos", sendo que essas mäos eram
bridge.'*^ N o entanto, as provas importantes e inequivocas aquelas "em que se verificam as maiores probabilidades da
da influencia de Bacon so podem ser obtidas a partir de 1640. mäxima economia e desenvolvimento, e näo aquelas mäos
Näo sabemos ainda ate que ponto esse atraso foi o resulta- que costumam ser responsäveis pelos maiores desperdicios
do direto da censura clerical e da desalentadora atmosfera e esbanjamentos". Pois "os Estados menos aptos a patro-
intelectual do periodo laudiano. cinar e custear grandes despesas para as guerras ou outros
gastos püblicos säo aqueles cuja riqueza se concentra nas
mäos dos nobres e fidalgos". Bacon queria uma Inglaterra
em que as riquezas "estivessem nas maos dos mercadores,
m
burgueses, comerciantes, proprietärios, fazendeiros e con-
generes
Ate o momento näo fiz menfäo ä carreira politica de
Bacon, embora haja muito a ser dito sobre a mesma. Para
47. Bacon, Works, xiv. 22-28, 446, 460-5, 469-505. A proposito de Ralegh e
Gardiner, ele foi o Turgot da Revolu^äo Inglesa, o ünico
Coke, ver abaixo, pp. 208-24, 314-6.
homem que poderia te-la evitado, um homem cujo pensa- 48. Ibid., vi. 451. Cf. Ralegh, citado abaixo, pp. 227-8.
mento politico näo era inferior ao seu pensamento cientifi- 49. Ibid. vii. 177. Ver abaixo, pp. 218-9.
50. Ibid. vi., p. 405, 410. Ver abaixo, pp. 218, 227, 378.
co.'*^ Em muitos aspectos, as ideias de Bacon tem mais afi-
51. Ibid. vii. 60-61; vi. 406, 446-7; viü. 172-4. Cf. a famosa passagem em The
History ofKing Henry VII, sobre a classe dos pequenos proprietärios rurais {yeo-
44. Bacon, Works, iii. 500. Ver abaixo, p. 250. manry), com as concepfÖes de Ralegh sobre o assunto (abaixo, pp. 263-4). " E con-
45. Milton, segunda e terceira das Prolusions; Curtis, Oxford and Cambridge tudo", observou Bacon, "quando os homens de grande fortuna condescendem
in Transition, p. 133. Ver Apendice. em dedicar-se ä agricultura, o resuhado e uma enorme multiplica9äo da riqueza"
46. D.N.B., Bacon. (Bacon, Works, vi. 461).
134 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^ÄO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 135
A uma afirma9äo inflexivel da prioridade dos interes- Suas proprias concepföes politicas visavam ä auto-
ses burgueses, Bacon aliava uma defesa do liberalismo eco- suficiencia economica. Ele queria que as regiöes selvagens
nomico — pelo menos quando nao atuava como porta-voz da Escocia fossem colonizadas, que a Irlanda fosse civiliza-
do governo.^2 Aumentar os pre^os do trigo, disse ele em da, e que os Päises Baixos e o seu imperio fossem anexa-
1592, seria um estimulo muito mais eficaz para transformar dos.^° Compartilhava o ponto de vista de Hakluyt, segun-
pastagens em lavouras, do que todas as leis penais que pu- do o qual a superpopula^ao da Inglaterra era apenas relati-
dessem ser aprovadas.^^ Ele nao aprovava o Projeto Cokay- va: uma politica decidida de drenagem dos päntanos, culti-
ne e instou para que fosse abandonado imediatamente.^'* vo das terras ociosas e comunais, coloniza9äo da Irlanda,
Sua observa^äo ao rei Jaime, de que *'a atividade comer- expansäo da indüstria pesqueira, do comercio ultramarino
cial nas companhias e mais compativel com a natureza dos e do transpone mostraria, em brave, que o problema era
ingleses", em oposifäo ao "comercio livre ou nao sujeito "antes a escassez que o excesso de pessoas".^^ Este ponto
a condiföes", deve ser considerada dentro do seu contexto. de vista so se difundiu na Inglaterra nos finais do seculo
Bacon estava contrastando a Inglaterra com " o carater ge- X V I I ; na Nova Atläntida, porem, o crescimento da popu-
ral de uma repüblica, presente entre o povo holandes e que
la9äo era visto favoravelmente.^^
serve ao mesmo, em vez de uma companhia ' }^ Fica implici-
A defesa de Bacon dos privilegios da Cämara ~dos Co-
to que uma repüblica prestar-se-ia mais ao comercio. Em
muns, em 1593, e sua recusa em retratar-se, prejudicaram
vista desse liberalismo, e ironico que a campanha que le-
sua carreira durante o reinado de Elisabete. Em 1612, ele
vou ä queda de Bacon tenha come^ado com um ataque aos
afirmou ao rei Jaime que, a despeito de ser " u m perfeito
monopölios e depois prosseguido com a violenta investida
e convicto realista","nunca estivera, por uma hora que fosse,
de Cranfield e Coke contra a prote^äo oferecida pelo Tri-
bunal do Lorde Chanceier aos devedores insolventes.^ Bacon em descredito junto ä Cämara Baixa".^^ Quando, em 1614,
näo "antipatizava inteiramente com os bancos", mas sabia a Cämara dos Comuns decidiu que nenhum procurador da
que eles eram considerados incompativeis com uma monar- coroa nela teria assento, foi aberta uma excefäo para Ba-
quia: "dificilmente serao tolerados, em fun9äo de determinadas con. Mesmo em 1617, Bacon era "decididamente favoravel
suspeitas".^'' "As artes mecänicas e o comercio" florescem a um Parlamento".^ Em sua Proposition touching... amend-
"no periodo de decadencia de um Estado", pensava Bacon, e ment of the common law, de 1616, ele recomendava que a
citou, sem comentärios, o ponto de vista de que o reinado reforma proposta ficasse a cargo de uma comissäo nomea-
de Elisabete viu "o declinio de uma monarquia".^^ Suas expli- da pelo parlamento, e näo a indicada pelo rei Jaime.^^ Por-
cafoes para a insubordinafäo contra o Estado e as soluföes tanto, Bacon tinha razao ao considerar-se um autentico ho-
para a mesma eram quase todas de cunho economico.
60. Ibid. iii, 144; xi 74. Os remanescentes do expurgo parlamentar fizeram
o melhor que puderam para levar a cabo esse projeto.
52. Comparar Bacon, Works, xi. 97-104, com x. 308, 346-61.
53. W.H.R. Curiler, Endosure and Redistnbution of Our Und (1929), p. 123. 61. Ibid. X. 312-13. Ver abaixo, pp. 210, 402.
54. Bacon, Works, xii. 171-2,236-8,256-9; xiii. 171. 62. Ibid. iii, 149. Ver M. Campbell, " O f People either too few or too many",
55. Bacon, Works, xii. 259. Os grifos säo meus. in Conßict in Stuart England: Essays in honour of Wallace Notestein (org. W.A.
56. R.C.Johnson, "Francis Bacon and Lionel Cranfield", H.L.Q. xxiii. 311-12. Aiken e B.D. Henning, 1960), pp. 169-202.
57. Bacon, Works, vi. 476. 63. Bacon, Works, xi. 280.
58. Ibid. vi. 517. 64. Ibid. xii. 31-33; xiii. 233.
59. Ibid. vi. 409-10, 430. 65. Ibid. xiii. 61 ss.
136 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUCAO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 137

mem da Cämara dos Comuns. C o n t u d o , n u m periodo an- vey, medico da familia real, era u m irrepreensivel h o m e m
terior ele tivera pressentimentos de "guerras civis que me do rei, mas sua descoberta, anunciada em 1616 e publicada
parecem estar prestes a se alastrar por muitos paises — de- em 1628, teve pouca repercussao na Inglaterra — pelo me-
vido a certos modos de vida introduzidos hd nao muito tem- nos segundo nos indicam os registros escritos — antes de
po".^^ Ele esperava que o progresso do saber pudesse refrear 1640. Durante o Interregno, m u i t o ironicamente, a desco-
as paixöes religiosas e evitar as convulsoes sociais. berta f o i alvo de aclama^ao geral.)
Bacon esfor^ou-se desesperadamente para obter o apoio Eram baconianos o bispo Williams, responsavel pelo
real para seus projetos cientificos, os quais, disse ele ao rei testamento literario de Bacon, que caiu em desgra^a em 1625;
Jaime sem (neste caso) qualquer espirito de adula^ao, " p o - nobres da oposi^ao, como lorde Brooke, que tanto citava
dem representar para esta obra [o Novum Organum] u m Copernico, Kleper e Galileu quanto Bacon;^° sir John Eliot,
avanfo de quase u m seculo no tempo, pois estou convenci- que se encontrava na T o r r e . Quando, na decada de 1630,
do de que a obra sera aceita pelos homens em algumas ge- H a r t l i b , D u r y e C o m e n i o tentaram colocar em pratica
raföes; ao agracia-la com seu favor, p o r e m , este tempo po- os projetos de Bacon, seu mais fervoroso adepto f o i John
de ser sensivelmente reduzido".^^ Jaime, porem, intelectual P y m , apoiado pelos condes de Bedford, Essex, Leicester,
escolastico experimentado que era, nao via utilidade para Pembroke, Salisbury e W a r w i c k , por lorde Brooke, lorde
o l i v r o de Bacon: *'E como a paz de Deus, que extrapola Mandeville, lorde W h a r t o n , sir Thomas Roe, sir Benjamin
toda a compreensäo."^^ Quando, em 1608, Bacon fez uma Rudyerd, sir Thomas Barrington, sir Nathaniel Rieh, sir
r e k f äo de provaveis defensores, esta nao incluia nenhum W i l l i a m Waller, sir A r t h u r Annesley, sir John C l o t w o r t h y ,
membro dos escalöes politicos superiores — sir Thomas Cha- John Seiden, Oliver St. John. Trata-se, praticamente, de uma
loner, administrador da casa do principe H e n r i q u e , atraves rela^äo dos membros da Companhia da Ilha de Providen-
do qual o principe poderia demonstrar seu interesse; sir Wal- ce. E uma rela^äo dos lideres da oposifäo no Parlamento
ter Ralegh e o conde de N o r t h u m b e r l a n d , embora ambos Longo/i
estivessem presos na T o r r e e Ralegh viesse a ser executado
em 1618; Thomas Hariot, protegido de ambos; Lancelot A n - IV
drewes ( m o r t o em 1626), e o arcebispo A b b o t , que caiu em
desgrafa em 1627.^^ E quando Jaime Ihe faltou, o que po- E preciso que nos detenhamos por alguns momentos
diam u m Carlos I , u m Buckingham ou u m Laud fazer dos sobre o grupo comeniano. H a r t l i b e Haak estavam ligados
projetos de Bacon, se e que alguma vez chegaram mesmo ao projeto patrocinado por quatro eminentes teologos pu-
a le-ios? ( O fato de nao estarmos lidando aqui com alguma ritanos, Thomas T a y l o r , Richard Sibbes, John Davenport
contingencia pessoal que houvesse atingido Bacon, mas com e W i l l i a m Gouge, cujo objetivo era angariar fundos para
causas sociais, e sugerido pelo destino semelhante que teve auxiliar os refugiados calvinistas do Palatinado: Briggs pa-
a descoberta da circulafäo do sangue, feita por Harvey. Har-
70. Bush, English Literature in the Earlier Seventeenth Century {2^ ed., 1962),
66. A n d e r s o n , op. cit., p. 11. O s grifos sao meus. p. 358.
67. Bacon, Works, xiv. 120. 71. R . F . Y o u n g , Comenius in England (1932), pp. 6, 41-46, 59-60; cf. Y o u n g ,
68. O r g . N . E . M c C l u r e , Letters of John Chamberlain, ii. 339. Comenius and the Indians of New England (1929), pp. 6-10, 23; G . H . T u r n b u l l ,
69. Bacon, Works, xi. 23. A proposito de C h a l o n e r , N o r t h u m b e r l a n d e H a - Hartlib, Dury and Comenius (1947), passim. D u r y casou-se c o m uma parenta de
riot, ver abaixo, pp. 287, 189-97. sir J o h n C l o t w o r t h y . Leicester era sobrinho de sir P h i l i p Sidney.
138 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA
FRANCIS BACONE OS PARLAMENTARISTAS 139
rece ter sido seu representante em O x f o r d . Os quatro teo-
governamental em 1634. E m seu testamento, deixou vinte
logos foram admoestados pelo Conselho Privado.''^ Geor-
e cinco libras para H a r t l i b , e a parte restante para o Emma-
ge H a r w o o d , mercador e Feoffee for Impropriations*, John
nuel College. Tambem era partidario de Dury.^° H a r t l i b
Bastwick, o martir independente, e John W h i t e , o Patriar-
viera para a Inglaterra como mercador e, ao se casar, conse-
ca de Dorchester, tambem foram partidarios de D u r y e Har-
guiu contatos m u i t o üteis com fidalgos e homens da City.
t l i b / ^ E m 1634, quando D u r y foi ä Suecia em busca da uni-
Parece ter se relacionado principalmente com os Indepen-
dade protestante, contou com o apoio de u m grupo de trinta
dentes. E m 1644, incentivou uma replica ao ataque de Tho-
e o i t o eminentes teologos puritanos do qual fazia parte R i -
mas Edwards contra os cinco teologos independentes.^^ N o '
chard Holdsworth,^"^ o qual, segundo dizem, recomenda-
periodo revolucionario, teve uma carreira intensa como pro-
va os textos de C o m e n i o a seus discipulos.^^ Mais tarde,
H a r t l i b teve contato com Alexander Henderson, comissa- pagandista e panfletario, o que Ihe valeu doaföes da Cäma-
rio escoces em Londres/^ E m maio de 1639, H a r t l i b f o i ra dos Comuns que chegaram a quatrocentas libras, alem
preso e interrogado como parte de medidas para " i n q u i r i r de uma recomenda^äo para u m cargo na Universidade de
patifes puritanos, investigar seus documentos sediciosos e O x f o r d , em reconhecimento da gratidäo que Ihe era devi-
descobrir suas conspiraföes e infämias".^'' Quando o Par- da nao so pelo parlamento, mas por "todas as pessoas afei-
lamento Longo se reuniu, inverteram-se os papeis, e Har- 9oadas a causa do progresso do s a b e r " . D u r a n t e toda a
tlib foi uma das testemunhas contra Laud, em seu julgamento sua vida, H a r t l i b manteve u m interesse apaixonado pela ma-
por alta traifäo/^ H a r t l i b era amigo de John Stoughton, tematica e pela ciencia. E m 1640-1, seu amigo Hezekiah
u m puritano convicto do Enimanuel College, que se refe- W o o d w a r d publicou alguns panfletos baconianos e come-
ria a Bacon como u m dos mais importantes pioneiros da nianos. H a r t l i b provavelmente ja conhecia Samuel Foster
nova epoca, que tambem era partidario de C o m e n i o / ^ Sus-
peito de atividade subversiva, Stoughton esteve sob vigiläncia 80. J . C . W h i t e b r o o k , " D r . J o h n Stoughton the E i d e r " , Trans. Congregatio-
nal Hist. Soc, v i . 96, 105-7, 182-5. Stoughton tambem esteve associado a J o h n
White de Dorchester, na tentativa de levantar fundos para os pastores afastados,
72. T u r n b u l l , Samuel Hartlib (1920), p. 34; cf. pp. 77, 128, a proposito das
inclusive os da N o v a Inglaterra. O i r m ä o de Stoughton emigrou para a N o v a
liga^öes de H a r t l i b com ministros puritanos; J . M . Batten, John Dury (Chicago
U . P . , 1944), p. 52, sobre as ligaföes de D u r y . Inglaterra, retornou em 1643 e serviu c o m o tenente-coronel no exercito Parla-

*. M e m b r o de uma associa^ao puritana que comprava de leigos o direito a mentär. O p r ö p r i o Stoughton era padrasto de R a l p h C u d w o r t h , e nao mediu es-
dizimos anteriormente destinados ä Igreja. A renda era usada para financiar con- forfos para sua educa^ao. O u t r o enteado de Stoughton, James C u d w o r t h , emi-
ferencistas puritanos. ( N . R . ) grou para Massachusetts em 1632 (ibid., pp. 92-99, 179-84). R a l p h C u d w o r t h , u m
73. T u r n b u l l , Hartlib, Dury and Comenius, pp. 20,128, 187; F . R o s e - T r o u p , puritano convicto durante o reinado de C a r l o s I, pregou diante da C ä m a r a dos
John White, the Patriarch of Dorchester ( N o v a Y o r k , 1930), p. 47. C o m u n s em 1647, e permaneceu estreitamente ligado a C r o m w e l l e T h u r l o e na
74. G . Westin, Negotiations about Church Unity, 1628-34 (Uppsala U n i v e r - decada de 1650. T i n h a u m profundo interesse pela ciencia, e tornou-se m e m b r o
sitets A r s s k r i f t , 1932, Band I), p. 207: cf. Massachusetts Hist. Soc. CoUections, vü. da R o y a l Society. C o m o outros platonicos de Cambridge, ansiava pela c r i a f ä o
504. de uma filosofia que pudesse aceitar as descobertas da ciencia moderna. T i n h a
75. C u r t i s , op. cit., p. 132; ver abaixo, pp. 414-5. liga^öes c o m L o c k e e N e w t o n ( T u l l o c h , op. cit., i i . 203-10; J . A . Passmore, Ralph
76. D . Massen, Life of John Milton (1859-94), i i i . 219-20. Cudworth, 1951, pp. 2, 79). A proposito das rela9Öes de H a n l i b com C u d w o r t h
77. T u r n b u l l , Samuel Hartlib, p. 16. e More, ver tambem The Diary and Correspondence of Dr. John Worthington, org.
78. P r y n n e , Canterburies Doome, pp. 539-42. J . C r o s s l e y , i ( C h e t h a m S o c , 1847), passim; T u l l o c h , op. cit., ii. 90, 427.
79. J . Stoughton, Felicitas Ultimi Saeculi (1640), p. 34 e passim, uma carta
81. Masson, Life of Milton, i i i . 193, 230-1.
a T o l n a i , publicada p e r H a r t l i b apos a morte de Stoughton, c o m dedicatöria a
82. C.J. iv. 588; v. 131. H a n l i b nao foi indicado para n e n h u m cargo em O x -
George R a k o s i . V e r acima, p. 82.
ford.
140 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU(;ÄO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 141

desde 1639,^^ e tambem era amigo de sir Kenelm D i g b y , cipe Henrique.^^ Foi ele quem ''praticamente deu inicio ä
Robert Boyle, Seth W a r d e John Wallis; admirava o prefa- campanha a f a v o r " da admissao dos judeus na Inglaterra.^^
cio escrito por Dee para o Euclide de Billingsley e o traba- Sobre este assunto, manteve correspondencia com Menas-
Iho desenvolvido por Jeremiah Horrocks em astronomia.^"* seh ben Israel, u m velho amigo de Roben Boyle (tio de D u r y
E m 1649, H a r t l i b tentou conseguir alunos para a Acade- por casamento), que mais tarde veio a ser amigo de H e n r y
mia de sir Bakhazar Gerbier, cujo curriculo incluia uma dis- O l d e m b u r g (genro de Dury).^^ E m 1653, D u r y acompa-
ciplina denominada "filosofia natural experimental".^^ nhou Whitelocke a Suecia. Ele exercia uma influencia con-
John D u r y era u m rebelde congenito, cujo pai escoces fo- sideravel sobre a politica exterior de C r o m w e l l , e atuou co-
ra pastor da congregafäo presbiteriana de refugiados ingle-
mo representante diplomatico näo-oficial do Protetor na Sue-
ses e escoceses em Leiden. O p r o p r i o D u r y f o i educado na
cia, na Suifa, na Alemanha e nos Paises Baixos.^'^ Achava
Universidade de L e i d e n . T i n h a antigas ligaföes com o
que missöes estrangeiras deviam acompanhar os mercado-
Gresham College, pelo qual intercedeu em 1639, ao tentar
res ä medida que estes iam expandindo as fronteiras do co-
convencer u m erudito sueco a legar seus iivros e manuscri-
tos a institui9äo.^'^ E m 1642, ele sugeriu que fossem criadas mercio ingles.^^ A enfase dada por D u r y a teologia prati-
cadeiras de teologia pratica nas duas universidades e em Lon- ca, a moral e a etica, em detrimento das controversias teo-
dres, no Sion ou no Gresham College, e que tambem se crias- logicas, faz dele, ao lado de John W i l k i n s , u m precursor do
se em Londres u m curso populär "para ensinar as pessoas pensamento latitudinario do final do seculo X V I I e do se-
c o m u n s " a utilizar as Escrituras.^^ O parlamento indicou- culo X V I I I . 9 6
o como t u t o r dos filhos menores do rei, que estavam sob O programa em que Comenio, D u r y e H a r t l i b haviam
OS cuidados do decimo conde de N o r t h u m b e r l a n d , f i l h o do trabalhado durante a decada de 1630 fazia uma fusäo de ob-
associado de R a l e g h . E m 1648, D u r y f o i censurado pela jetivos religiosos e baconianos. E m 1631, D u r y anunciou
Assembleia dos Teologos (da qual era membro) por coope- que os propositos de suas viagens incluiam a observa^äo de
rar com o radical John G o o d w i n na publica^ao de Satans "todas as invenföes e realizaföes praticas em todas as cien-
Stratagems de Aconcio, uma obra que favorecia a tolerän- cias, ... que possam trazer vantagens a saüde do corpo, ä
cia religiosa.^° Apos a execufäo de Carlos I , D u r y atuou
preservafäo e ao aumento das riquezas atraves dos oficios
como propagandista da Republica, a qual exieia submissäo.
e das atividades mecänicas e de todas as "artes e cien-
Traduziu o Eikonoklastes de M i l t o n para o frances. D u r y
cias filosoficas, quimicas e mecänicas, as quais nao apenas
foi indicado para cuidar da biblioteca que pertencera ao prin-

83. T u r n b u l l , " S a m u e l Hartlib's Influence on the early history of the R o y a l 91. V e r abaixo, p. 288.
Society", Notes and Records of the Royal Society, x. 108. 92. L . Wolf, Menasseh'ben Israel's Mission to Oliver Cromwell (Jewish Histo-
84. R . T . Petersson, Sir Kenelm Digby, p. 259; W o r t h i n g t o n , Diary, i. 59-60, rical S o c , 1901), pp. xxii-xxviii, xliii; Harleain Miscellany (1744-56), vii. 240-4 —
124-5, 130-1; ii. 226; B u s c h , op. cit., pp. 18-20. O s primeiros membros da R o y a l carta de D u r y a H a r t l i b .
Society compartilhavam o interesse de H a r t l i b por H o r r o c k s ( A d d . M S S . 6193, 93. Balten, op. cit., pp. 140-1; C . R o t h , The Resettlement of the Jews in 1656
ff. 114-15). A s obras postumas de H o r r o c k s foram publicadas por Wallis em 1673.
(Jewish Historical S o c , 1960, pp. 12,23). E m 1659, D u r y e o batista H e n r y Jacie
85. H . R . W i l U a m s o n , Tour Stuart Portraits 1949), p. 52.
estavam irabalhando juntos para levantar fundos para os judeus que corriam pe-
86. Batten, John Dury, pp. 12-14.
rigo devido a guerra entre a Suecia e a Polonia ( A n ö n . , The Life and Death of
87. T u r n b u l l , Hartlib, Dury and Comenius, p. 196.
Mr. Henry Jessey, 1671, pp. 75-77).
88. D u r y , . ' ! Motion Tendingto the Publick Good of This Age and of Posteritie
(publicado por S. H a r t l i b , 1642), sig. C 3-3v. 94. Batten, op. cit., Capi'tulos V I I - V I I I , passim.
89. Batten, op. cit., p. 113. V e r abaixo, p. 194. 95. Ibid., p. 139.
90. Ibid., pp. 110-11. V e r abaixo, p. 237. 96. Ibid., pp. 92, 132. A proposito de W i l k i n s , ver acima, p. 127.
142 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 143

revelam com harmonia e concisao os segredos das discipli- de Ussher, arcebispo de A r m a g h que em breve seria convi-
nas, mas tambem, segundo se acredita, revelam os segredos dado a fazer parte da Assembleia de Teologos de Westmins-
da natureza".^'' Ele esperava entrar em contato com "as me- ter,^°^ de lorde Brooke, John Seiden e John P y m , agora H-
Ihores experiencias das praticas industriais na agricultura e der da Cämara dos Comuns. D u r y e Comenio viriam a mo-
nas manufaturas, e tambem em outras invenföes ... que con- dificar a educayao inglesa. As provas de religiäo ja haviam
corram para o bem desta na^ao". C o m e n i o considerava a sido abolidas nas universidades. E m 15 de j u n h o de 1641,
Instauratio Magna de Bacon "a obra filosofica mais instru- a Cämara dos Comuns decidiu que todas as terras confisca-
tiva do seculo que se inicia". A Bacon "devemos a primei- das aos deaos e capi'tulos seriam dedicadas ao "progresso
ra sugestäo e oportunidade de conselhos sensatos para a re- do saber e da devofäo".^^^ A expressao baconiana fala por
forma universal das ciencias".^^ Os comenianos defendiam si propria: o mesmo acontece com o conceito baconiano
u m sistema de educafäo universal, embora com gradaföes de intervenfäo do Estado para fomentar a educa^ao. O pro-
sociais, juntamente com uma revolucao dos metodos edu- p r i o C o m e n i o acreditava que o Parlamento financiaria " o
cacionais, cuja enfase incidiria nao mais sobre as palavras, projeto do grande Verulam, de fundar em alguma parte u m
mas sim sobre as coisas, e nos quais o aprendizado nao mais colegio universal inteiramente dedicado ä promo^äo das cien-
seria uma atividade mecänica, mas estaria voltado para a ex- cias".^^^ Macaridy do protegido de H a r t l i b , Gabriel Plattes,
periencia, a observafäo e a pratica no ensino das linguas e foi dedicada ao parlamento em o u t u b r o de 1641, na expec-
da ciencia.^^ D u r y queria que fosse criada uma instituifäo tativa de que "aquela ilustre corte venha a assentar a pedra
voltada para o progresso do saber universal, que deveria ser fundamental da felicidade do m u n d o " . Macaria defendia,
ao mesmo tempo u m instituto de pesquisas educacionais com entre outros projetos baconianos, a pesquisa medica.
a sua propria imprensa, u m ministerio da educajao que su- Comenio recebeu para exame os projetos e inventarios
pervisionasse todas as escolas e professores, e u m centro de de inümeros colegios, para que u m deles Ihe fosse confiado
intercämbio internacional para "solucionar questöes ainda e aos seus colaboradores, o f u t u r o colegio universal que fa-
nao estudadas pelas ciencias".^°° ria da Inglaterra o centro do saber europeu. O Chelsea C o l -
lege f o i o escolhido, e em 1667 Carlos I I cedeu o edifi'cio
N u m sermäo dirigido a Cämara dos Comuns no p r i -
ä Royal Society. N u m panfleto dedicado a esta em 1668,
meiro mes de existencia do Parlamento Longo, John Gau-
Comenio fazia referencia a esse fato ao afirmar que " o ter-
den, capeläo do conde de W a r w i c k , manifestou o desejo de
r i t o r i o a nos oferecido para buscarmos a luz passou aos seus
que D u r y e C o m e n i o fossem convidados a visitar a Ingla-
cuidados, em conformidade com a grandiosa Palavra de Cris-
terra. O i t o meses depois, em j u l h o de 1641, o convite f o i
to (aplicavel, nessa ocasiao, no sentido p r o p r i o do termo);
feito, sob o patrocinio de W i l l i a m , agora arcebispo de Y o r k ,
' O u t r o s trabalharam, e passais agora a compartilhar de seus
esforfos' O panfleto que essa dedicatöria introduzia, o
97. T u r n b u l l , Samuel Hartlib, pp. 10-13.
98. S.S. Laurie, yo/j« Amos Comenius (1899), pp. 69, 92; R . H . Syfret, " T h e
O r i g i n s of the R o y a l S o c i e t y " , Notes and Records of the Royal Society, v. 103-4, 101. A proposito do interesse de Ussher pelos projetos comenianos, ver Parr,
112-13. Life ofüsher, i i . 546, 557, 623-4. Q u a n t o aos bispos " p u r i t a n o s " inclusive Bedell,
99. Dury, ASeasonabie Discourse {1649), p. 8; Bauen, op. cit., pp. 92-93, 112-13, que os apoiou, ver C.S.PD., 1640, pp. 568-70; T u r n b u l l , "Letters written by J o h n
136-7. D u r y in Sweden, 1636-38", Kyrkohistorisk Arsskrift, 1949, pp. 225 ss.
100. D u r y , The Reformed Library Keeper (org. R . S . G r a n n i s s , Boston, 1906), 102. C.J. i i . 176. H o u v e varias outras resoluföes c o m o mesmo objetivo.
p. 49 (publicado pela primeira vez em 1650); A Seasonable Discourse, sig. D - V 4v. 103. Y o u n g , Comenius in England, pp. 53-55.
144 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQAO INGLESA FRANCIS BACONE OS PARLAMENTARISTAS 145

Via Lucis, havia sido escrito na Inglaterra em 1641-2, desti- respondente do grupo de Gresham. E m 1643-4, Haak f o i
nado ä circula^äo privada; ao publica-lo, C o m e n i o imagi- emissario do parlamento na Dinamarca, ansioso, em suas
nava que o trabalho da Royal Society seria "a pane mais proprias palavras, "para dar o melhor de m i m a uma causa
auspiciosa daquelas previsöes" feitas no Via Lucis.^^"^ Har- täo boa quanto a do parlamento". O Parlamento Longo
t l i b tambem afirmou, em dezembro de 1660, que a Royal concedeu-lhe uma pensäo "para o progresso das artes e do
Society, entäo em processo de formafäo, era um resultado saber", e — a exemplo de D u r y — sua lealdade nao esmore-
concreto do "grande p r o j e t o " que ele tantas vezes pleitea- ceu depois da execufäo de Carlos I . Haak f o i remunerado
ra.i05
para trabalhar como correspondente e tradutor para a Re-
Assim, e licito admitir que o grupo comeniano lanfou, publica e o Protetorado.^°^ E m 1645, a Assembleia de Teo-
em 1641, as sementes que viriam a originär a Royal Society. logos de Westminster (cujo escrivao auxiliar era John Wal-
F o i o protegido de H a r t l i b , Theodore Haak, amigo de lis, tambem m e m b r o do grupo de Gresham, e mais tarde
Briggs,^^^ Greaves e outros professores de Gresham Colle- membro da Royal Society) encarregou Haak da tradu^ao
ge, bem como de Hunneades, O u g h t r e d e Thomas A l l e n , para o ingles da Biblia holandesa e das suas notas margi-
quem t o m o u a iniciativa, em 1645, de congregar u m grupo nais, trabalho que f o i publicado em 1 6 5 5 . H a a k tambem
cientifico originärio do circulo de Gresham. Wallis, Wal-
se t o r n o u membro da Royal Society. Todos os estagios de
kins e muitos outros futuros membros da Royal Society fa-
sua carreira ilustram a liga^ao entre puritanismo, parlamen-
ziam parte desse grupo, que se reunia nos aposentos do ami-
tarismo e c i e n c i a . A correspondencia com cientistas es-
go de H a n l i b no Gresham College, Samuel Foster. Esse gru-
trangeiros, ä qual Bacon e os comenianos haviam atribuido
po distinguia-se tanto do Colegio Invisivel de Boyle quan-
tanta importäncia, ficou a cargo de H e n r y O l d e n b u r g na
to dos muitos outros grupos interligados que discutiam cien-
Royal Society, " o herdeiro direto da tradi^äo de Comenio
cia e reforma social nos meados da decada de 1640, dos quais
e H a r t l i b na Inglaterra". O l d e n b u r g era outro protestante
H a r t l i b , nas palavras de Boyle, era "parteira e ama-seca".
alemäo que foi para a Inglaterra na decada de 1640. Ele man-
E quase ceno, porem, que Haak via sua iniciativa como pane
teve contatos com H a r t l i b nessa epoca, e com Petty e Boy-
de suas atividades comenianas.'°^
le em O x f o r d , em 1654-6. Tornou-se secretärio de D u r y ,
Haak ja era m e m b r o do grupo comeniano desde pelo
menos 1638: em 1639-40, ele se correspondia com Mersen-
108. P . R . Barnett, Theodore Haak, passim, esp. pp. 52-53, 65, 91-93, 107-11.
ne em nome desse grupo sobre temas cientificos e outros. D e fato, nos estagios iniciais da Revolucao, antes de criar a sua propria estrutura
N o final da decada de 1640, trabalhou como secretärio cor- burocrätica, o parlamento dependia muito dos estrangeiros. D a Dinamarca, H a a k
mandava informaföes a seu amigo, o poeta alemäo W e c k h e r l i n , Secretärio da C o -
104. Syfret, op. cit., pp. 116-17; neste paragrafo, e nos quatro seguintes, uti- missäo de A m b o s os Reinos e Secretärio de L a t i m — u m posto em que precedeu
lizei substancialmente esse extraordinario artigo. e sucedeu M i l t o n . W e c k h e r l i n tambem era amigo de H a r t l i b . V e r abaixo, p. 238,
105. W o r t h i n g t o n , Dtary, i . 248-9; cf. p. 342. a proposito de outro exemplo — Dorislaus. Pesquisas adicionais a respeito desse
106. O s comentarios manuscritos de Briggs sobre a Geometry de R a m u s es- aspecto internacional da Revolucao Inglesa poderiam ser produtivas.
tavam em posse de H a a k (Barnett, Theodore Haak, H a i a , 1962, p. 79). 109. Antes da guerra civil, Haak havia traduzido obras religiosas inglesas para
107. T u r n b u l l , " S a m u e l H a r t h b ' s I n f l u e n c e " , passim; Syfret, op. cit., pp. o alemäo; ele tambem traduziu pelo menos os tres primeiros livros do Paraiso
120-37; ßarnett, " T h e o d o r e H a a k and the early years of the R o y a l S oc i e t y" , An- Perdido para esta mesma lingua (Barnett, op. cit., pp. 13, 71-12, 115, Capi'tulos
nais of Science, xiii. 212; J o h n s o n , " G r e s h a m C o l l e g e " , / . / / . / . l, passim; Batten, XIII-XV, passim).
op. cit., p. 134; H a r c o u r t B r o w n , Scientific Organizations in 17'' Century France, 110. C f . tambem Syfret, op. cit., pp. 89, 129; T u r n b u l l , Samuel Hartlib, pp.
p. 274. 48-51; " S a m u e l H a r t l i b ' s influence", p. 105.
146 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^ÄO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 147

e mais tarde seu genro.^^' U m indicio adicional da influen- protestante (juntamente com a Eastland Company* e a
cia de Comenio sobre os fundadores da Royal Society e seus Corporafäo dos Negociantes de Tecidos); tambem contri-
assoeiados e o interesse de W i l k i n s , W a r d , Petty, H a r t l i b , buiu generosamente para a assistencia a H a r t l i b , "seu i n t i -
Haak, Pell, Webster e outros, pelo projeto de C o m e n i o pa- mo amigo e companheiro".^^'* E m 1636, P y m disse a Har-
ra " u m verdadeiro caräter". Mais tarde, a Royal Society viria tlib que ficaria feliz em ser " u m instrumento de todo e qual-
a apoiar projetos semelhantes.^^^ quer incentivo aquele h o m e m digno, Comenio, no que diz
Dada a importäncia do grupo comeniano nas origens respeito as obras e aos designios por ele concebidos para
da Royal Society, as rela^öes de seus membros com o Gres- o bem püblico. Assim que aprouver a Deus devolver-nos
ham College, por u m lado, e com P y m e a oposi^äo Parla- a liberdade de comercio e intercämbio, estarei ansioso por
mentär por o u t r o , adquirem uma nova significa^ao. M u i - vos consultar sobre as possiveis maneiras de concretizar m i -
tas vezes pressupöe-se que a atra^ao exercida pelos projetos
nhas intenföes". Apenas o temor de que sua carta viesse
de Comenio sobre os lideres parlamentaristas era basicamen-
a ser interceptada impediu que P y m fosse mais especifico
te de cunho religioso, mas isso dificilmente resistirä a u m
ainda. Ele estava "tao impressionado" com as "reaHzafoes"
exame mais aprofundado. Os aspectos religiosos e cientifi-
de Comenio, conforme assegurou a H a r t l i b dois anos mais
cos do programa dos comenianos estavam estreitamente l i -
tarde, "que, se assim o pudesse, patrocinaria todas sozinho,
gados; o p r o p r i o H a r t l i b , n u m dos inümeros textos inedi-
e rezo a Deus para que estimule aqueles que podem faze-lo
tos em que demonstrava sua preocupaf ao com o Gresham
com facilidade, para que os mesmos p o n h a m nelas t o d o o
College, pedia a abolifäo dos cursos de teologia, direito e
seu empenho".^^^
retorica dessa escola e a substituifäo dos mesmos por cur-
sos de tecnologia.i^^ N e n h u m a das biografias clässicas de O interesse de P y m voltava-se para os aspectos cientifi-
P y m , nem os livros de A . P . N e w t o n ou do professor Hex- cos e educacionais, bem como religiosos, da obra de Co-
ter mencionam o interesse de P y m pela ciencia, ou mesmo menio. P y m era u m grande admirador de Bacon, especial-
suas ligaföes com o grupo comeniano. N a verdade, toda a mente do Novum Organum.^^^ E m 1637, ele patrocinou
sua correspondencia com H a r t l i b ainda permanece inedi- uma escola em B r i l l , Buckinghamshire.^^'^ E m 1638-9, man-
ta. C o n t u d o , desde 1947, ja dispomos de material impresso teve uma correspondencia entusiasmada com H a r t l i b sobre
suficiente para demonstrar a necessidade de se proceder a u m projeto para drenar minas de carväo.^^^ U m dia antes
uma reconsiderafäo deste aspecto da carreira de P y m . P y m
contribuiu com dinheiro para o projeto de D u r y de uniäo *. C o m p a n h i a fundada em 1579, reunindo os comerciantes que operavam
no Bältico e que teve monopolio para as operafoes mercantis inglesas na regiäo
ate 1671. ( N . R . )
111. H a r c o u r t B r o w n , op. eh., p. 96; Syfret, op. cit., pp. 129-37; Barnett, 114. T u r n b u l l . Hartlib, Dury and Comenius, pp. 20-27. A s palavras säo de
Annais of Science, xiii. 213. D u r y . A proposito dos documentos de H a r t l i b , ver ibid., pp. v-ii.
112. B. D e M o t t , " C o m e n i u s and the Real Character in E n g l a n d " , P.M.LA. 115. A s Ephemerides de H a r t l i b , das quais o professor T r e v o r - R o p e r teve a
Ixx. 1074-8; C a r r e , Phases ofThought in England, p. 278; Barnett, Theodore Haak, gentileza de ceder-me uma transcrifäo, citadas c o m a permissao de lorde Delame-
pp. 108-9, 138. Pelo menos no caso de Webster, esse interesse estava ligado äs re. Parcialmente publicado em T u r n b u l l , Hartlib, Dury and Comenius, pp. 187,
teorias mägicas sobre os hieroglifos egi'pcios {Academiarum Examen, 1654, p. 24). 342, 346.
113. T u r n b u l l , Samuel Hartlib, p. 49. E m 1649, H a r t l i b tentou conseguir a 116. Ephemerides.
indica^äo de Petty para que o mesmo desse novo impulso ao conhecimento expe- 117. Jordan, Tbe Rural Charities of England, p. 57.
rimental e mecänico no G r e s h a m College.
118. Ephemerides, P y m a H a n l i b , 14 e 22 de novembro de 1639.
148 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUCAO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 149

de Comenio deixar definitivamente a Inglaterra, em j u n h o solicitado a criafäo de uma universidade, " u m a vez que mui-
de 1642, no auge dos preparativos militares e economicos tos espiritos consumados e promissores encontram-se intei-
para a guerra c i v i l , P y m encontrou tempo para escrever a ramente perdidos, por nao terem onde se educar". Petiföes
H a r t l i b , pedindo-lhe para "consultar o sr. C o m e n i o , caso semelhantes vieram de Y o r k em 1641 e 1648. Tambem f o i
ele ainda se encontre entre nos, como de fato gostaria que proposta a cria9äo de universidades no Pais de Gales, em
N o r w i c h e D u r h a m . Apenas nesta ültima localidade f o i cria-
estivesse", sobre as descobertas astronomicas do capitäo Mar-
do u m colegio "para a difusäo de todas as ciencias e da lite-
maduke Nielson e seu projeto de construir u m pequeno mo-
ratura", tendo Flartlib entre os membros de sua comissao.
delo do sistema solar "sem todas aquelas quimeras de epici-
D u r o u de 1657 a 1660.'^^ E m 1658, retomou-se o projeto
clos e excentricidades por meio das quais as mentes de nos-
de uma instituifäo de ensino o u colegio filosofico, no qual
sos jovens discipulos acabam sendo m u i t o mais aterroriza-
estavam envolvidos H a r t l i b , D u r y , Boyle e "nosso especial
das do que instruidas".^^^ Caso vejamos os comenianos,
a m i g o " Benjamin Worsley, e que, diziam, contava com a
juntamente com o Gresham College, como agentes ativos
simpatia de Richard Cromwell. N o ano seguinte, propos-
na aglutinafäo do grupo que mais tarde formaria a Royal
se a criafäo de u m Colegio para Westminster, que ensina-
Society, o que me parece correto, entäo tambem se faz ne-
ria (inter alia) otica, mecänica, medicina, anatomia, q u i m i -
cessärio ver John P y m como u m dos pais adotivos da Ro- ca e as filosofias de Descartes e Gassendi.^^'* A Restaurajao,
yal Society. p o r e m , veio acabar com todos esses planos.
Comenio so abandonou a Inglaterra quando a amea^a
de guerra civil havia claramente adiado a concretizafäo das
esperanfas dos baconianos. E m 1641, a Cämara dos Comuns V
resolveu designar uma Comissao para o progresso do Co-
Bacon tinha a esperanfa de "fazer soar o sino que arre-
nhecimento, mas, aparentemente, nada de parecido existiu
gimentaria as pessoas de espir ito". Foram e ainda sao escri-
de fato ate 1653, quando Jonathan Goddard era u m de seus
membros.'^o E m 1643, a Assembleia de Westminster, da 122. O r g . G . W . Johnson, Fairfax Correspondence (1848), i i . 271-80; M . Ja-
qual D u r y era m e m b r o , e Wallis o escrivao assistente, mes, Social Policy during the Puritan Revolution (1930), pp. 324-5; V.C.H., York,
mostrou-se favoravel ä criaf ao de uma Universidade em Lon- p. 199; T u r n b u l l , Samuel HartUb, p. 63; Abbott, Writings and Speeches of Oliver
Cromwell, ii. 397.
dres. A n t h o n y Burges, anteriormente preceptor de Wallis 123. R . F . Jones, Ancients and Modems, pp. 171-2, 317-18. B e nja m in Wors-
no Emmanuel College, acrescentou a esperan^a de que po- ley, possi'vel autor da L e i de N a v e g a f ä o de 1651, Superintendente da Irlanda e
Secretärio dos C o n s e l h o s do C o m e r c i o de C r o m w e l l e C a r l o s I I , era amigo de
deriam ser cortadas "algumas fatias dos deados e capitulos
H a n l i b e John H a l l . E m 1661, ele "era muito ouvido pelo lorde chanceler". H a n l i b
para o favorecimento de jovens estudantes".^^^ E m 1641, disse a J o h n W i n i h r o p que Worsley era favoravel a " t o d o beneficio publico, to-
OS cidadäos de Manchester, com o apoio de Fairfax, haviam da legitima liberdade de consciencia e todo progresso decorrente da imagina^ao
c r i a d o r a " . Se o seu projeto de ser enviado c o m o "agente ou representante junto
a todas as c o l o n i a s " houvesse sido bem-sucedido depois da Restauratao, "gran-
119. T u r n b u l l , Hartlib, Dury and Comenius, p. 365. A s ültimas palavras sao
des contingentes de pessoas honestas" teriam emigrado ( R . C . W i n t h r o p , Corres-
de uma petifäo que N i e l s o n submeteu ao Parlamento atraves de P y m . N i e l s o n
pondence of Hartlib, Haak, Oldenbourg and others of the Founders of the Royal So-
afirmava ter criado u m metodo para descobrir a longitude no mar. U m a petifäo
ciety with Govemor Winthrop, 1661-72, Proceedings of the Massachusetts H i s t o -
anterior, de 1636, fora submetida a uma comissao da qual faziam parte Seiden,
rical S o c , 1878, pp. 12-13; T u r n b u l l , Hartlib, Dury and Comenius, passim; " J o h n
G e l l i b r a n d e O u g h t r e d , mas seus resultados parecem ter sido nulos.
H a l l ' s Letters to Samuel H a n l i b " , Review ofEnglish Studies, N e w Series, iv. 228-9;
120. CJ. v i i . 287.
G . L . Beer, The Old Colonial System, 1660-88, N o v a Y o r k , 1912, i. 244. 248).
121. Citado por W . H . G . Armytage, "Prejudice and P r o m i s e " , 1600^0", The
124. G . B . T a t h a m , The Purttans in Power (1913), pp. 190-1.
Universities Review, xxiii. 114.
150 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 151

tos livros a respeito de sua influencia: ja nos referimos a O metodo cientifico de Bacon e o metodo de ensaio e
uma parte dela. Alguns pontos, p o r e m , podem ser reuni- erro dos artesaos elevado ä categoria de principio. Suas teo-
dos para justificar a associafäo de sua influencia com rias sugeriam que a realidade poderia ser modificada pelo
a revolufäo Inglesa. A enfase de Bacon sobre as causas se- esforfo humano. Ele chamou a aten^ao dos homens para
cundärias e a remofäo da intervenfäo divina direta para u m o m u n d o real em que viviam e tornou-os ceticos quanto
passado historico m u i t o distante sao coisas que fortalece- as teorizaföes sem fundamentos na pratica. A mera ativi-
ram e deram u m significado mais p r o f u n d o ä preferencia dade intelectual dissociada da pratica e uma f o r m a de ocio
Parlamentär pelo p r e d o m i n i o da lei em oposifäo a arbitra- e escapismo: "gastar tempo demais em estudos e indolen-
riedade. O p r o p r i o Bacon tentou desenvolver uma ciencia cia".^2^ A q u i , uma vez mais, o paralelo com o esfor^o p u -
universal da jurisprudencia. Pode-se perceber uma tenden- ritano de concretizar na terra o reino de Deus e välido.
cia analoga na escola dominante dos teologos puritanos do A atitude mental baconiana era hostil a toda a autori-
reinado de Carlos I , Preston e Ames, que enfatiza a obe- dade que nao se submetesse ao crivo da utilidade e da expe-
diencia a leis como sendo propria da natureza do universo. riencia. Da mesma f o r m a que Nicholas H i l l , Bacon insistia
A nova ciencia, alem do mais, combinava o respeito ä que OS homens precisam proceder a u m reexame das coisas
lei com uma disposifäo para inovar que deve ter ajudado que parecem prescindir de comprovafao, o aparentemente
OS radicais a se libertärem do peso m o r t o da tradif äo e dos obvio e o evidente por si mesmo, e faze-lo com a mente
precedentes que paralisavam o p r i m i t i v o pensamento poli- livre de toda e qualquer ideia preconcebida. Se u m h o m e m
tico Parlamentär. The Newe Attractive, de Robert N o r m a n , impregnado do baconismo aplicasse o metodo ä politica,
a Physiologia Nova, de Gilbert (inedito), e o Novum Orga- ele nao se tornaria u m defensor cego e incondicional do Status
num de Bacon sao apenas tres exemplos, dentre os muitos quo. Seria cetico em rela^ao ä maior parte das coisas, exce-
que poderiam ser citados, de uma enfase sobre o novo.^^^ t o a confirma9äo pratica — pelas suas obras, vos os conhe-
E m sua obra Discovery of a World in the Moon, de 1638, cereis. " E s t o u seguro de minha forma de proceder, mas i n -
John W i l k i n s afirmava que fora o demonio quem levara a seguro quanto a minha p o s i f ä o " , Bacon afirmou, assim co-
humanidade a crer que a inova^ao fosse u m indicio de er- mo C r o m w e l l diria mais tarde que era capaz de identificar
r o . i 2 6 A ligafäo do Üvro de W i l k i n s com o radicalismo po- aquilo que nao queria, embora nao soubesse dizer o que que-
litico fica bem clara nos versos de Heath. ria. Os principios de Bacon nao ofereceriam quaisquer
dogmas politicos, mas podiam ser u m guia para a afäo. Mes-
N a d a a l e m de belos e u t o p i c o s mundos lunares mo OS seus erros tiveram uma importäncia historica. Ele
D e v e r ä o ser criados pela revolucao. subestimou grosseiramente a complexidade das tarefas que
estava atribuindo ä humanidade. " A cria^äo de todas as cau-
125. V e r L y n n T h o r n d i k e , " N e w n e s s in \7'^ Century S c i e n c e " , / . / / . / . X I , sas e ciencias seria o trabalho de nao mais que alguns
585-98, a proposito de muitos outros exemplos. O fato de que o Novum Orga-
num fazia parte da Instauratio Magna mostra c o m o Bacon combinava um ponto anos."^^° M a r x incorreu n u m erro semelhante, ao pensar
de vista retrogrado e u m progressista. " A obstinada manutengäo dos costumes que a revolufäo mundial era iminente, e L e n i n , ao imagi-
e u m a coisa täo turbulenta quanto a i n o v a f ä o " , disse ele em seu ensaio On Inno-
vations ( W o r k s , v i . 433).
128. Bacon, Works, vi. 497.
126. O p . cit., (3? edifäo, 1640), p. 2.
129. Ibid. V. 559; Sir P h i l i p W a r w i c k , Memoirs of the Reign ofKing Charles
127. R o b e n H e a t h , ClarastelU, 1650, citado por Marjorie N i c o l s o n , " E n - the First {\%\^), p. 194.
glish A l m a n a c s and the ' N e w A s t r o n o m y ' " , Annais of Science, iv. 21. 130. C i t a d o in H . Butterfield, The Origins of Modem Science (1949), p. 90.
152 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU(;ÄO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 155

nar que a sociedade sem classes podia concretizar-se ainda no ter, u m fervoroso baconiano da decada de 1650, achava que
periodo de vida dos homens que fizeram a Revolucao Rus- a teologia näo devia ser ensinada nas escolas, uma vez que
sa: em todos os tres casos, porem, a visäo apocahptica agiu as verdades religiosas manifestam-se somente atraves do es-
como u m estimulo a afäo que se justificava por si p r o p r i o . p i r i t o de Deus.^^^
Se o professor Butterfield estiver certo ao considerar o A teoria de Copernico "democratizou o u n i v e r s o " , ao
surgimento de uma nova civiliza^ao cientifica no final do abalar a estrutura hierarquica dos ceus; H ar vey " d e m o -
seculo X V I I como o maior dos marcos divisorios desde a c r a t i z o u " o corpo humano ao destronar o corafäo.^-'^ N a
ascensäo do cristianismo,'^^ entao, no que diz respeito a I n - esfera social, o metodo de Bacon c o n t r i b u i u " m u i t o para
glaterra, Bacon e claramente a figura decisiva, e assim f o i equiparar a inteligencia dos homens, deixando muito pouco
reconhecido no seculo X V I I (como o foi na Franca, no se- ä superioridade individual".^-'^ (E de interesse o fato de N i -
culo X V I I I ) . Suas ideias exerceram enorme influencia du- cholas H i l l ter aprovado o "governo por assembleias").^^^
rante aquilo que costumava ser chamado a Revolufäo Pu- A nova filosofia experimental, a de Robert N o r m a n näo
ritana; contudo, sua tendencia fundamental voltava-se para menos que a de Bacon, tornava todos os homens iguais,
" u m a colossal seculariza^äo do pensamento, em todos os como Hobbes nao demoraria a proclamar. U m pesquisa-
dominios possiveis das i d e i a s " . O paradoxo e mais apa- dor era tao b o m quanto o u t r o , e ambos melhores que
rente do que real. Ja tentei sugerir a correspondencia entre qualquer simples erudito contemplativo. Cada homem po-
algumas das ideias centrais de Bacon e a ortodoxia protes- dia ser seu p r o p r i o mestre. Exatamente da mesma f or ma,
tante em meio ä qual ele cresceu. O contrario disso seria OS radicais usavam a doutrina protestante do sacerdocio
mostrar que o corpo de ideias que chamamos " p u r i t a n a s " de todos OS crentes para justificar a predica feita por lei-
era, na verdade, m u i t o mais complexo e m u i t o mais ligado gos, e näo apenas por especialistas treinados nas univer-
as questöes deste m u n d o do que comumente se imagi- sidades. Bacon queria que as carreiras fossem abertas aos
nou.^^^ N a o e o caso de pensarmos em cientistas que por talentos, recomendando ao jovem sir George Villiers "aquilo
acaso säo puritanos (ou catolicos, se bem que isso fosse mais que penso nunca ter sido feito desde que nasci, ... que e i n -
centivar, encorajar e fazer progredir todos os homens ca-
raro), nem em puritanos cuja teologia "anseia pelo deismo",
pazes, de todos os tipos, categorias e profissÖes".^'^^ Foi
como impotentemente dizemos: devemos estar conscientes
uma l i f äo que o duque de Buckingham nunca aprendeu, mas
de uma ünica sociedade, na qual Bacon reaimente acredita-
O l i v e r C r o m w e l l , sim.
va que a ciencia "e u m amparo excepcional e uma protefäo
O metodo de Bacon baseia-se na observafäo pessoal e
contra a descrenja e o erro".^^^ O reverendo John Webs-
na experiencia pessoal, em oposifäo a autoridade dos livros
131. Ibid., p. 174. O professor Butterfield tem o cuidado de afirmar que esta
ou dos eruditos. "Temos a experiencia como nosso infali-
foi tanto uma revolucao s i x i a l quanto intelectual: "as mudan(;as que ocorreram
136. Webster, Academiarum Examen (1654).
na hisioria do pensamento desse periodo ... nao sao mais notaveis que aquelas
137. V e r , de minha autoria, " W i l l i a m H a r v e y and the Idea of M o n a r c h y " ,
ocorridas na vida e na sociedade" (ibid., p. 169). C f . O r n s i c i n , The Role of Scienti-
passim. H a r v e y tinha consciencia de uma analogia entre as descobertas astrono-
fic Societies in the 17'' Century, pp. 3-20.
micas e anatomicas.
132. J . G . C r o w t h e r , Francis Bacon (1960), p. 4.
138. Bacon, Works, iii. 221.
133. Butterfield, op. cit., p. 166.
139. M c C o l l e y , " N i c h o l a s H i l l and ihe Philosophia Epicurea", Annais of Scien-
134. A p r o f u n d o a discussao desse assunto em meu Society and Puritanism. ce, iv. 403-4.
135. Bacon, Works, i i i . 221. 140. Cabala (1654), ü. 71.
154 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 155

vel e irrefreavel preceptor", escreveu em 1636 o capitao Sal- A s u a l o g i c a n a o v a i a l e m de n o m e s e p a l a v r a s , s e m q u a l q u e r


u t i l i d a d e p r a t i c a . . . . M a s , t r a d u z a m - s e estes p a r a o i n g l e s , e n a o se-
tonstail, *'que näo passou todos os seus dias trancado em
r a p r e c i s o i r a C a m b r i d g e p a r a a p r e n d e r o q u e e n s i n a m . ... T o d o
algum imperturbävel gabinete."^'^^ " D e acordo com sua
o s e u c o n h e c i m e n t o d e s a p a r e c e q u a n d o se fala e m i n g l e s c l a r o . Ö
opiniäo", disse intempestivamente o bispo Goodman a Ha- vos, mercadores, d e d i c a i - v o s c o m m a o s f i r m e s ao c o m e r c i o , em
k e w i l l , "a experiencia pessoal de u m h o m e m e o que hä de f u n f S o desta l o g i c a . . . . A v e r d a d e i r a arte c u Ü n ä r i a n ä o e saber c o n -
melhor em seu conhecimento."^'*^ Essa doutrina e de u m d i m e n t a r e p r e p a r a r t o d a s as c a r n e s , m a s , a n t e s , c o n h e c e r ... o q u e

individualismo extremo, e corresponde estritamente a exi- e especie e o que e genero. ... A sua logica manteve-os por tanto
t e m p o a p r e n d e n d o as c o i s a s q u e d e v e r i a m a p r e n d e r , q u e a c a b a r a m
gencia puritana de uma experiencia religiosa direta, em opo-
realizando pouco, ou absolutamente nada.
sifäo äs tradifOes dos homens. Os teologos das Universida-
des pregavam " u m a doutrina m o r t a " , afirmou W i l l i a m Dell,
Isto näo f o i escrito por u m cientista, e sim por Robert
"enunciada por outros homens, mas da qual näo tiveram
Browne, o pai do congregacionalismo.^'*'' Tais trechos
qualquer experiencia".^'*^ " A s palavras dos homens devem
trazem-nos ä memoria aquilo que W a l w y n viria a escrever
relatar a sua experiencia, näo pensamentos", concordava
em 1644: " O grupo que agora esta armado para nos trans-
Winstanley.^'*'* " Q u e m quer que fale sobre uma erva, uma formar em escravos e constituido ... principalmente por
planta, a arte ou a natureza humana, näo deve falar nada aqueles que sempre tiveram em grande estima os maiores
que tenha por base a imaginafäo, mas sim aquilo que ele eruditos do reino."^'*^
descobriu pelo seu esforjo e pela sua observafäo durante Examinemos agora o conselho oferecido em 1604 pelo
a experiencia."^'*^ puritano H u g h Broughton a Jaime I , sobre a tradufäo da
A ciencia, como a religiäo, e uma atividade cooperati- Biblia:
va: a prova da veracidade dos experimentos e social, nas con-
gregaföes religiosas näo menos que na comunidade cienti- S e r i a u i i l q u e m u i t o s o u t r o s ( m e c ä n i c o s e arti'fices) tambem
p a r t i c i p a s s e m deste t r a b a l h o ; ... g e o m e t r a s , c a r p i n t e i r o s e p e d r e i -
fica. " A fidelidade ao experimento nao e uma pratica m u i -
r o s [eles a j u d a r i a m a e n c o n t r a r o s t e r m o s e x a t o s p a r a a d e s c r i f ä o ]
to diferente da fidelidade a experiencia", disse recentemen-
d o t e m p l o de S a l o m a o , . . . e o m e s m o f a r i a m o s j a r d i n e i r o s n o q u e
te u m professor de quimica.^'*^ Examinemos o trecho a se-
d i z r e s p e i t o aos g a l h o s e r a m o s da a r v o r e de E z e q u i e l .
guir, escrito em 1582:
Deveriam ser ministradas aulas no Gresham College "so-
141. C . Saltonstail, The Navigator (1636), citado por T a y l o r , Mathematical bre OS trechos de maior dificuldade, ... cuja discussao esta-
Practitioners, p. 77. ria aberta a todos".^'*^ M u i t o naturalmente, Jaime nao acei-
142. H a k e w i l l , Apologie, i i . 129.
143. W . D e l l , Several Sermons and Discourses (1709), p. 640. Publicado pela 147. O r g . A . Peel e L . H . C a r l s o n , The Wnting of Robert Hamson and Ro-
primeira vez em 1652. bert Browne (1953), pp. 177, 18. C f . o testemunho de J o h n G r a y , preso em virtu-
de de suas relacoes c o m o primeiro conventiculo ingles em 1550: " O s eruditos
144. G . Winstanley, Truth Lifting up its Head above Scandals (1649), in G . H .
foran? responsaveis por todos os e r r o s " ( C . Burrage, The Early English Dissenters,
Sabine, Ue Works of Gerrard Winstanley ( C o r n e l l U . P . , 1941), p. 125.
1912, i i . 2).
145. Ibid., p. 564; cf. pp. 579-80. A s instruföes sao para os professores d o m i - 148. W . W a l w y n , The Compassionate Samantan (1644), p. 35, in W . H a l l e r ,
nicais de ciencia do Estado ideal de Winstanley: ver abaixo, p. 165. Tracts on Liberty in the Puritan Revolution, i i i . 82.
146. H . C . Longuet-Higgins, in Times Literary Supplement, 25 de outubro de 149. J . Strype, Life of Whitgift (1822), ii. 529. A proposito de Broughton,
1963. ver abaixo, p. 231.
156 ORIGENS INTELECTUAIS DA REV0LU(;A0 INGLESA
FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 157
tou o conselho. John Robinson, pastor dos Pais Peregrinos
T a m p o u c o c h e g u e i a esta c e r t e z a
na Holanda, afirmou que os ministros nunca deveriam "ser P o r m e i o de a p o t e g m a s c o l h i d o s e m r e
obedecidos em fungao da autoridade, mas sim da racionali- N o s s o s velhos e venerados filosofos.
dade dos preceitos''.^^^ Isto nos faz lembrar do dictum de M e u s ditos säo t ä o meus quanto seus:
Harvey: " P r o p o n h o que a anatomia seja ensinada e apren- P o i s , seja o q u e f o r q u e deles se d i s s e r ,
dida näo a partir de livros, mas de disseca^Öes, nao a partir E x p e r i m e n t e i - o s tao b e m q u a n t o eles.^^^
daquilo que pensam os filosofos, mas da constituifäo da na-
tureza."^^^ " O verdadeiro conhecimento de C r i s t o " , escre- E aqui temos, de n o v o , u m mercador religioso, N i c h o -
veu Thomas Taylor , "e experimental." Sua aquisifäo e feita las Ferrar, no t o m previsivel de reprova9äo de quem se con-
" n ä o ... pela leitura, nem atraves dos livros o u relatos, co- verteu a uma religiäo de cerimonias: " N a verdade, nossa
mo o medico conhece a virtude dos livros pela leitura; e epoca assumiu como u m principio fundamental de sabedo-
preciso buscä-lo na experiencia p e s s o a l " . " C o n h e c i m e n t o ria näo dar credito a nada ... que näo perten^a ä esfera da
sem pratica näo e conhecimento", escreveu o autor das no- experiencia pessoal."^^^ Finalmente, o digger Gerrard Wins-
tas de rodape dos Workes de Greenham.^^^ Para o conver- tanley, o mais radical dos pensadores politicos e religiosos:
t i d o , dizia Thomas H o o k e r , "as coisas se parecem com o " T u d o aquilo que escrevi sobre cavar a terra'' nunca foi por
que säo.... Tal pessoa näo julga pelas aparencias, como cos- m i m lido em l i v r o algum, nem assimilado a partir de afir-
t u m a m fazer os homens de mente corrupta, mas pela expe- ma^öes alheias ... antes que eu p r o p r i o visse a sua luz nas-
riencia, por aquilo que descobriram e sentiram em seus pro- cer dentro de m i m . " ! ^ ^ Quando M i h o n , n u m trecho mag-
prios coraföes".!^'* Näo nos deve surpreender o fato de que, nifico Areopagitica, denunciou o h o m e m abastado que
na N o v a Inglaterra, " o clero p u r i t a n o ... era o principal pa- toma a decisäo de "descobrir para si algum fator a cujo cui-
trocinador e incentivador da nova astronomia, e de outras dado e credito ele possa consignar toda a orientafäo de suas
descobertas cientificas".^^^ atividades religiosas", renunciando a " t o d o o repositorio
A q u i temos mais uma vez u m cientista, John W i l k i n s : de sua religiäo", ele estava fazendo eco a Bacon, conscien-
"Seria m u i t o melhor para a comunidade do saber se funda- temente ou näo. " Q u a n d o os homens delegam aos outros
mentassemos os nossos principios na pratica constante da a sua capacidade de j u l g a r " , Bacon havia escrito, "e ... con-
experiencia, e näo na mera autoridade alheia."^^^ As pala- cordam em apoiar as opinioes de uma outra pessoa, deixam
vras abaixo säo de u m politico religioso, George W i t h e r : a partir dai de trazer qualquer engrandecimento a causa da
ciencia, entregando-se ao trabalho servil de glorificar cer-
150. C i t a d o in P. Miller, Errand into the Wildemess ( H a r v a r d U . P . 1956),
p. 21; cf. o primeiro pastor batista de B u n y a n , o piedoso sr. G i f f o r d , que insistiu tos autores e aumentar-lhes o sequito."^^°
com ele para nao aceitar de boa-fe nenhuma verdade, mas para buscar suas con-
vicfoes pessoais no E s p i r i t o Santo que fala atraves das Escrituras (Grace Ahoun-
ding, in Works, 1860, i. 20). 157. Wither, Juvenilia (Spencer S o c ) , i. 444.
151. W . H a r v e y , Works (m?), p. 7. 158. O r g . B. Blackstone, Ferrar Papers (1938), p. 191.
* V e r N . R . na pägina 8 ( N . R . )
152. T . T a y l o r , Works (1653), p. 411.
159. G . Winstanley, ReliQious Works (1649), I n t r o d u f ä o , datada de 20 de de-
153. R . G r e e n h a m , Works (1612), p. 196; cf. p. 343.
zembro de 1649, p. 4. A introduv'äo desse volume, nao impressa por Sabine, pode
154. T . H o o k e r , The Application ofRedemption (1657), p. 557, citado in P.
ser encontrada em The Law of Freedom and Other Writings (Pelican Classic, 1973).
Miller e T . H . J o h n s o n , The Puritans ( N o v a Y o r k , 1938), pp. 39-40.
160. M i l t o n , Complete Prose IFor^s (Yale), ii. 544; Bacon, Works, iv. 14. M i l -
155. S . E . M o r i s o n , " A s t r o n o m y at C o l o n i a l H a r v a r d " , New England Quar-
terly, v i i . 13. ton havia, de fato, citado Bacon uma ou duas päginas antes. Deve-se sem düvida
a uma coincidencia o fato de a metäfora de M i l t o n ser tao francamente burguesa
156. C i t a d o por J . G . G r o w t h e r , Founders of British Science (1960), p. 27.
quanto a de Bacon e feudal.
158 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU(;ÄO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS ;•,„ ' 159

Podemos seguir o curso da influencia exercida por Ba- significativos sejam os pressupostos baconianos que per-
con (ou pelo espirito cientifico que ele sintetizava) sobre meiam os escritos de jornalistas populäres do Interregno, co-
pensadores täo influentes quanto George H a k e w i l l , i ^ i John mo Marchamont Nedham, e de ensaistas como Francis Osborn.
Robinson, W i l l i a m Ames,!^^ H e n r y Jacie, ^^'^ H u g h Pe- As decadas decisivas para a populariza9äo das ideias ba-
ter, W i l h a m D e l U ^ ^ Thomas G o o d w i n , Samuel conianas e cientificas na Inglaterra parecem ter sido as de
Gott^^^ e Richard Baxter,!^^ bem como sobre personaüda- 1640 e 1650. E m 1640-1, f o r a m publicadas mais obras de
des mais claramente politicas como sir Waher Ralegh,i^° Bacon do que em todos os catorze anos que se seguiram
George W i t h e r , i ^ i sir John E l i o t , i 7 2 lorde Brooke,!^^ j ^ h ^ a sua morte.^^^ E m sua maioria, tratavam mais de temas po-
M i l t o n , i 7 4 W i l l i a m W a l w y n , i ^ 5 Richard O v e r t o n , i 7 6 Ger- liticos e religiosos do que cientificos, mas seu t o m ajudaria
rard Winstanley,i77 j o ^ ^ Sakmarsh,!^^ A n t h o n y Burges,!^^ a estabelecer a boa-fe de Bacon j u n t o aos parlamentaristas.
W i l l i a m Pettyi^o e James H a r r i n g t o n . i ^ i Talvez ainda mais A t e entäo, e provavel que o registro de sua atividade p o l i t i -
ca e a sua estreita ligafäo com a corte houvessem-no afasta-
161. V e r abaixo, pp. 268-73.
162. A . Barker, Milton and the Puritan Dilemma ( T o r o n t o U . P . , 1942), p p . do daquele que deveria ter sido o seu publico natural. Os
86, 358. Essays, que ja tinham dezessete ediföes em 1639, näo v i r i a m
163. V e r trechos citados por P. Miller, The New EnglandMind: from Colony
to Province ( H a r v a r d U . P . , 1953), p p . 12-13. a alterar a imagem de u m h o m e m cetico e mundano. De-
164. CoUections of the Massachusetts Historical Soc, vi. 456-7: o interesse de pois de 1640, o nome de Bacon aparece freqüentemente nos
Jacie pela astronomia.
almanaques, o que e m u i t o raro antes desta data. Isto se pas-
165. H . Peter, Good Work for a Good Magistrate (1651), passim; e ver abaixo
p. 163. sou numa epoca em que os almanaques come^avam a atin-
166. V e r abaixo, pp. 163, 168-9. gir u m püblico maior e a refletir uma atitude mais decidi-
167. T . G o o d w i n , Works (1861-3), iv. 541: " S i r F r a n c i s Bacon, aquele ho-
m e m extraordinario e admiravelmente c u h o . " damente politica. W i l k i n s parece ter sido o homem que mais
168. [S. G o t t ] , Nova Solyma (trad. W . Begley, 1902), i. 162-73, e passim. P u - fez para popularizar Bacon (e tambem Galileu). Por volta
blicado em 1648.
de 1649, D u r y podia afirmar que " o progresso do saber tem
169. Citado por R . K . Merton, "Science, Technology and Society in IT**" C e n -
t u r y E n g l a n d " , Osiris, iv. 435, 453. sido com maior freqüencia, e de forma mais püblica, pelo
170. V e r abaixo, pp. 197-203, 298-300.
menos mencionado nesta naf äo, nos ühimos tempos, do que
171. G . Wxther, Juvenilia (Spenser S o c ) , i. 252-3: conhecimentos para rever-
ter as conseqüencias do pecado original. nos tempos antigos, devido em parte a publica^äo daquelas
172. Sir J . E l i o t , The Monarchie ofMan (org. A . B . G r o s a r t , 1879), i i . 224-7.
173. L o r d Brooke, The Nature of Truth (1640), pp. 28-29, 125-7, 142-3; A Dis-
course ... of... Episcopacie (1641), pp. 1-2. 182. H . R . T r e v o r - R o p e r , " F r a n c i s B a c o n " , Encounter, n ? 101, p. 76. A s se-
174. M i l t o n , Third, Fifth and Seventh Prolusions. guintes datas de publica^ao säo relevantes:
175. W . W a l w y n , A Whisper in the Eare of Mr. Thomas Edwards (1646), p. 1640 Certain Considerations touching the Church (reeditado em 1642).
6; ver abaixo, pp. 165, 170. The Advancement of Leaming (tradu^äo inglesa, duas edi9oes).
176. V e r abaixo, p. 164. 1641 A Discourse conceming Church Affairs (duas ediföes). Advertisement con-
177. O r g . Sabine, Works of Gerrard Winstanley, pp. 563-8, 580. ceming the Controversies of the Church of England. The History of Henry VII. Three
178. J. Saltmarsh, Examinations, or a Disarvery of some Dangerom Pomom (1643). Speeches conceming Union with Scotland. Cases ofTreason. Confession ofFaith (tres
179. A . Burges, The Doctrine of Original Sin (1659), p. 201.
edigöes 1641-2).
180. Sir W . Petty, Economic Writings (org. Hüll), i. Ixiü-lxiv. 1642 The OJfice of Constable. Reading on the Statute of Uses.
/ 1 T i !^^• ^ ^ ' ' " " g ^ o n , The Art ofLawgiving (1659), in The Oceana and other Works 1643 Nova Atlantis ( t r a d u f ä o inglesa 1659).
(1737), pp. 429-34; cf. abaixo, p. 163. B a c o n , G r o i i u s e Maquiavel säo os tres no-
E m seus panfletos, M i l t o n referia-se especificamente äs obras de Bacon publica-
mes que ocorrem com mais freqüencia nos escritos de H ä r r i n e t o n ( R . W . G i b -
das apos 1640 — Certain Considerations, Advertisement, New Atlantis.
son, Supplement to a Bacon Bibliography, 1959, p. 9). Considerei S . B . L . Penrose,
The Reputation and Influence of Francis Bacon in the IT'' Century ( N o v a Y o r k , 183. M . N i c o l s o n , " E n g l i s h A l m a n a c s and the ' N e w A s t r o n o m y ' " , Annais
1934) pouco relevante para os objetivos deste trabalho. of Science, iv. 7-8, 16-17, 32-33.
160 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^AO INGLESA 161
FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS

excelentes obras de lorde V e r u l a m " . S i r W i l l i a m Tem- tos".^^^ " A t e por volta de 1649", diz-nos com precisäo A u -
ple, em algum m o m e m o emre 1690 e 1696, a f i r m o u que brey, "considerava-se uma presun^ao excentrica um homem
"a nova filosofia enraizara-se nestas partes do m u n d o " nos tentar efetuar uma inova^ao na esfera do saber." As guer-
Ultimos cinqüenta ou sessenta anos.'^^ Foi so depois de ras civis, ele acrescentou, " n ä o acabam somente com a reli-
1650 que Thomas Bushell, antigo criado, amigo e discipulo giäo e as leis, mas tambem com a superstifäo".^^^ E m 1651,
de Bacon, pensou que seria vantajoso afirmar que seu mes- Harvey desafiou claramente, pela primeira vez, a cren^a tra-
tre o havia instruido " n a arte dos minerais". Mas, dai em dicional na geragäo espontänea (enfatizada inclusive por Ba-
diante, a afirma^ao degenerou em autopropaganda.^^^ E m con) com o seu omnia ex ow.^^^
sua Britannia Baconica (1661), John Childrey confessou que O epicurista Walter Charleton, f u t u r o membro da Ro-
"(Secundum Deum) ele deve todo o seu novo conhecimen- yal Society, fez men^äo, em 1657, "aquelas inteligencias he-
t o a lorde Bacon".!**^ roicas, dentre nossos concidadäos, que se entregaram a re-
Antes de 1640, poucos autores de almanaques populä- forma e expansäo das artes e ciencias, e realizaram u m pro-
res queriam comprometer-se com o sistema de Coperni- gresso muito maior na conquista desse objetivo glorioso do
co,^^^ mas o colapso da censura deixou-os mais confiantes que aquele a que podiam aspirar muitas das epocas anterio-
e predispostos a especulagao. Por volta da decada de 1650, res a eles". Grandes avanfos na filosofia natural, na medi-
o sistema ptolomaico estava m o r t o . A partir dai, a ünica cina, na otica, na astronomia, na geometria e na quimica
pergunta resumia-se em saber qual sistema viria sucede-lo, realizaram-se "atraves do engenho e dos esforfos de homens
o de Copernico ou o de Tycho Brahe. Tanto Aubrey quanto que atualmente vivem na Inglaterra e que se encontram ainda
sir W i l l i a m Temple situam nas decadas revolucionarias o na plenitude de sua for^a e no frescor de seus anos".^^^
final da cren^a em "fadas, espiritos, feitifaria e encantamen- Tambem ocorrera uma mudan^a de habitos intelectuais.
" C o m o nossas ültimas guerras e cismas afastaram quase que
inteiramente as pessoas do estudo da teologia e levaram o
184. D u r y , A Seasonable Discourse, sig. D - D 2. O s grifos sao meus.
185. T e m p l e , " S o m e Thoughts upon R e v i e w i n g the Essay of Ancient and
189. O ensaio " O f Poetry", de T e m p l e , escrito em algum periodo entre 1681
M o d e r n L e a r n i n g " , in FiveMiscellaneous Essays {or^. S . H . M o n k , Michigan U . P . ,
e sua publica^'äo na segunda parte de sua Miscellanea (1690, p. 285) situam essa
1963), p. 72.
data n u m a fase anterior, trinta ou quarenta anos antes: A u b r e y , Brief Lives, i i .
186. J . W . G o u g h , The Superlative Prodigall: a Life of Thomas Bushell (1932),
318. Charles E d w a r d s , do Jesus College e Llanrhaiadr, atribuia o silenciar dos
pp. 87-88; cf. pp. 117-21. C f . Farrington, Francis Bacon, pp. 10-12, que leva mais
duendes e fantasmas ao advento dos novos conhecimentos ( T . Richards, Religious
a serio as alegafoes de Bushell. Legi'timas ou nao, valia a pena faze-las depois
Developments in Wales (1654-62), 1923, p. 297).
da guerra civil. Bushell havia apoiado o rei, o que dificilmente poderia ter dei-
190. J . A u b r e y , Natural History of Wiltshire {W7), p. 5; Remaines of Genti-
xado de fazer, u m a vez que arrendava minas de c h u m b o n o Pais de Gales, en-
lisme and Judaisme (1881), p. 21.
tao ocupado pelos partidarios do rei. Suas concepföes, porem, eram puritanas
191. H a r v e y , IFor^s (1847), pp. 454-66; irontispicio de De Generatione Ani',
(ver, dele, The Miners Contemplative Prayers), e nao teve dificuldades em acei-
malium (1651).
tar o Estado e o Protetorado. C r o m w e l l renovou o seu contrato de arrenda-
192. W . C h a r l e t o n , 7 ? J e ' / m o r t d / i > y o / / / 7 e / / « m u « 5 o « / ( 1 6 5 7 ) , p p . 32-46. C h a r -
mento.
leton foi discipulo de W i l k i n s em Magdalen Hall, mas parece ter sido um indepen-
187. J . C h i l d r e y , Britannia Baconica: or The Natural Rarities of England, Sco- dente c o m simpatias realistas durante a guerra civil. Seu dialogo tem lugar em Pa-
tland and Wales (1661), sig. B 7. ris, entre realistas ingleses emigres, O proprio C h a r l e t o n fala atraves do persona-
188. Nicolson. " E n g l i s h Almanacs", esp. pp. 16-17,20-23, 32-33; cf. G . M c C o l - gem Athanasius, que deseja convencer os exilados dos progressos realizados pela
ley, " T h e R o s s - W i l k i n s C o n t r o v e r s y " , Annais of Science, \n. 183. Inglaterra revolucionaria, referindo-se, especialmente, aos cientistas de O x f o r d .
162 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS ' * 163

direito civil a ser olhado com desprezo, a maioria dos jo- VI


vens estudantes de nossas universidades passou a dedicar-se
a medicina."^^^ Marchamont Nedham concordava que, des- N a verdade poderiamos sugerir, ainda que m u i t o hipo-
de o Advancement of Learning de Bacon, a profissäo medi- teticamente, uma liga9äo entre tipos de interesse cientifico
ca havia feito mais progressos " d o que em qualquer perio- e graus de radicalismo politico e religioso. U m dos primei-
do anterior da historia do m u n d o " , quando os homens se ros seguidores de Bacon f o i John Robinson, pastor dos Pais
Peregrinos nos Paises Baixos.^^*^ H u g h Peter, capeläo do
limitavam a comentar os medicos gregos e arabes. "Basta
exercito de C r o m w e l l , disse ao Parlamento em 1646 que
que nos voltemos para vinte anos atras" — isto f o i escrito
o Estado deveria estimular "a nova filosofia experimen-
em 1665 — "para constatarmos que nenhuma outra ane o u
tal". Webster, que na decada de 1650 recomendou c o m
ciencia no m u n d o passou p o r tao grandes avan^os e trans-
insistencia a introdu9äo do ensino de quimica nas universi-
formaföes em täo breve espafo de tempo."^^"^
dades, tambem era capeläo do exercito e defensor da tole-
1642 f o i " o ano das d e s c o b e r t a s " . Q u a n d o os secta-
räncia religiosa; D e l l e James H a r r i n g t o n eram outros par-
rios sairam da clandestinidade e passaram a se reunir publi-
tidarios da iatromecänica.^°° Culpeper era u m radical, tan-
camente, täo logo a hierarquia e n t r o u em colapso e a cen- to em politica quanto em medicina. E m 1649, tinha espe-
sura laudiana f o i suprimida, as obras de Bacon, Coke, Ra-, ranfas de que, " d e n t r o de poucos anos" a liberdade inglesa
legh e muitas mais passaram a ser publicadas, discutidas e fosse assimilada por "todos os paises da Europa". "Por acaso
comentadas livremente. Os cidadäos londrinos e os "seto- pensam que o tempo do conhecimento nao chegara?", t r o -
res medios", que constituiam a espinha dos exercitos par- vejou ele perante o Colegio dos Medicos.^^^ O regicida
lamentares, ja vinham havia quase u m seculo discutindo John C o o k sugeriu que se oferecesse tratamento medico gra-
as novas ideias cientificas e reivindicando o direito de ele- t u i t o para os pobres; o batista Samuel H e r i n g propos que
ger OS ministros. Eles haviam aprendido a rejeitar tanto a OS servifos medicos fossem subvencionados pelo Estado.^o^
autoridade de Aristoteles quanto a dos bispos, a confiar Chamberlen, o u t r o radical da medicina, observou que "os
nos experimentos cientificos, na experiencia religiosa e na homens ricos nao se encontram, de m o d o algum, entre os
comprovafäo independente de seu p r o p r i o senso critico. maiores inimigos da m o n a r q u i a " , e pediu a realizafäo de
" N ä o acreditam em nada, a nao ser naquilo que v e e m " , obras püblicas como forma de atenuar o problema do de-
dizia D u r y sobre os Independentes.'^^ Q u e m preferia os semprego.2°^ Näo e por acaso que os tres homens que Mar-
"argumentos racionais", aos "experimentos enganadores"
era a duquesa de Newcastle, casada com o p r o t o t i p o do 198. V e r acima, p. 158.
199. H . Peter, Gods Döings and Mans Duty, sermao pregado perante as duas Cama-
realista.^^^ ras do Parlamento, a Assembleia de Westminster, o Prefeito e os Vereadores de L o n -
dres, 2 de abril de 1646; cf. Good Work for a Good Magistrate (1651), esp. pp. 74-78.
200. J . H a r r i n g t o n , The Mechanics of Nature, i n Oceana and Other Works
193. Ibid., p. 49.
(1737), pp. xlii-xliv. Sou grate ao sr. D . N a n d y por ter chamado m i n h a aten^ao
194. M . N [ e d h a m ] , Meäela Medicinae, p. 215; cf. K e e v i l , The Stranger's Son,
para este fato.
p. 138.
20\.A Physicall Directory, or A translation of the London Dispensatory (tra-
195. Harleian Miscellany (1744-56), vi. 119. duzido por N . Culpeper, 1649), sig. A . ; 3? ed., 1651, sig. A - A v .
196. C i t a d o por Merton, "Science, Technology and Society in 17"^ Century 202. J . C o o k , Unum Necessarium (1648), passim; org. J . N i c k o l l s , Original
E n g l a n d " , Osiris, iv. 453. " C o n h e c e r e v e r " . L o c k e nao demoraria muito a afirmar. Letters... aääressed to Oliver Cromwell (1743), p. 101.
197. C a r r e , Phases of Thought in England^ p. 231. 203. P. C h a m b e r l e n , The Poore Mans Advocate (1649), p. 21.
164 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUCAO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 165

garet James destacou como reaimente desejosos de melho- Tycho Brahe e Ambrose Pare, sugeriu (näo muito seriamen-
rar a sorte dos pobres durante a Revolufäo — H a r t l i b , te) a realizafäo de uma experiencia que pusesse a prova a
Chamberlen e Gerbier — tenham todos u m lugar em nos- imortalidade da alma.^o^ O u t r o leveller, W i l l i a m W a l w y n ,
so relato-^^"* explicava a experiencia religiosa em termos psicofisicos: o
O Conselho de Estado da Republica, em setembro de jejum excessivo podia resultar em visoes e extases.^°^ Os
1650, declarou-se disposto a receber e a de todos os modos quacres Edward Burrough e George Fox pediram uma ana-
possiveis apoiar as propostas que tivessem por objetivo uma lise de laboratorio que comprovasse se o päo e o vinho po-
reformula9äo das escolas.^^-'' O Parlamento de Barebones t i - diam de fato transubstanciar-se em corpo e sangue.^'° As
nha sua comissao para o progresso do saber. O exercito i n - tropas que guardavam Carlos I chamavam-no de " A c a r i -
dependente tentou impedir que a Igreja Nacional da Esco- ciador", " p o r causa do d o m que Ihe fora conferido por Deus,
cia perseguisse as bruxas, e o governo de C r o m w e l l levou e que Ihe dava o poder de curar as escrofulas pela imposi-
a u m aumento das verbas destinadas äs universidades esco-
fäo das mäos".^^' Winstanley, poÜticamente o mais radi-
cesas e a cnafäo de uma escola de medicina em Edimburgo.
cal de todos, queria que o sermao dominical de todas as pa-
Foram aumentados os salarios dos professores de astrono-
roquias fosse substituido por cursos de ciencia natural nos
mia e de medicina de Oxford.^^^ O Moderate, u m jornal le-
moldes daqueles oferecidos em Gresham.^'^ Se nos lembrar-
veller, trouxe o p r i m e i r o artigo sobre aviafäo a aparecer na
mos da analogia estabelecida entre os sermoes dos confe-
imprensa inglesa. O relato (originärio de Varsovia) sobre
rencistas do seculo X V I I e u m curso atual de educafäo de
o projeto de uma maquina voadora f o i apresentado seria-
adultos,^^^ podemos ver a ideia de Winstanley como u m de-
mente como " u m m o t i v o de prazer e deleite", principal-
senvolvimento logico do puritanismo radical.
mente para aqueles que "estudaram matematica". A con-
C o m a Republica, os " m e c ä n i c o s " viram com grande
clusäo era perfeitamente baconiana, se näo perdermos de
vista que os leitores do Moderate seriam, em sua maior par- prazer o expurgo dos realistas e parasitas das universidades;
te, artesaos londrinos: " A experiencia nos mostra a cada dia O x f o r d , antigo baluarte do clericalismo e reduto dos rea-
que nada e impossivel para o h o m e m , mas que, atraves de
208. R . O v e r t o n , Mans Mortalitie (Amsterdam, 1643), pp. 11-13, 18, 33.
seu esforfo e trabalho, e possivel realizar ate mesmo as coi- 209. W . W a l w y n , The Vamties of the present Churches (1649), in W . H a l l e r
sas mais dificeis."^^'' e G . Davies, The Leveller Tracts, 1647-53 ( C o l u m b i a U . P . , 1944), p. 259. C f . aci-
ma, p. 158. G i l b e r t Burnet, mais tarde bispo de Salisbury, chegou a conclusÖes
O leveller Kxchzrd O v e r t o n , que havia lido Copernico, parecidas na decada de 1660 (org. H . C . Foxcroft, A Supplement to Bumet's His-
tory of My Own Time, 1902. p. 474).
204. M. ]imes, Social Policy äunng the Puntan Revolution {\9}Q), pp. 279-81.
210. W . e T . Evans, Edward Burrough [mX^pp. 251-2; G . F o x . Gospel Truth
U m quarto nome talvez pudesse ser acrescentado — Peter C o r n e l i u s P l o c k h o y ,
u m protegido de H a r t l i b { L . e M . H ä r d e r , Plockhoy from Zurik-Zee, Mennonite Demonstrated {1706), p. 1088. F o x tinha um grande interesse pela ciencia natural,
Historical Series. N ? 2, N e w t o n , Kansas, 1952, pp. 37-41). e deixou propriedades na Filadelfia, para que nas mesmas se criasse u m jardim

205. W . A . L . V i n c e n t , The State and School Education, 1640-60, in England b o t ä n i c o . Penn referiu-se a ele c o m o " t e ö l o g o e naturaUsta" ( R . B . Schlauer, So-
and Wales (1950), p. 80, e passim. cial Ideas of Religious Leaders, 1660-88, 1940, p. 241). O s mais famosos fabricantes
206. J . S i m o n . " E d u c a c i o n a l Policies and P r o g r a m m e s " , The Modem Quar- de relögios do final do seculo X V I I eram quacres ( A . Raistrick, Quakers in Scien-
terly, iv (1949), 165. H . R . T r e v o r - R o p e r , "Scotland and the Puritan R e v o l u t i o n " , ce and Industry, 1950, pp. 223-41).
in Histoncal Essays, 1600-1750, presented to David Ogg (org. H . E . Beil e R . L . O l - 2\\.Mercurius Elencticus, 7 de fevereiro de 1649.
lard, 1963). pp. 107-8. 127, 114-15; CS.P.D, 1658-9, pp. 66, 243, 263-4. 212. Sabine, op. cit., pp. 564-6.
207. The Moderate, 12-19 de dezembro de 1648, pp. 207 ss., citado in J . F r a n k , 213. G . R . G r a g g , Puritanism in the Period of the Great Persecution (1957),
The Beginnings of the English Newspaper 1620-60 (Harvard U . P . , 1961), pp. 158-60. pp. 210. 165; cf., de m i n h a autoria, Society and Puritanism, pp. 86-87.
166 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^AO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS \, , , 167

listas, transformou-se n u m centro de ciencia baconiana. Po- das, as quais sugeri ao associar a matematica e a astronomia
demos entender as profundas raizes historicas do desprezo aos mercadores de Londres e ao Gresham College, e a qui-
que muitos radicais sentiam por O x f o r d e Cambridge. Os mica aos artesaos e radicais religiosos.^^^ N a o havia cadei-
academicos tentavam fingir que se tratava de mero radica- ra de quimica em Gresham. Pelo contrario: John A r g e n t ,
lismo, a hostilidade do vulgo ignorante contra o saber en- professor de medicina em Gresham de 1615 a 1655, era tam-
quanto tal; na verdade, era m u i t o mais uma hostilidade vol- bem presidente do Colegio dos Medicos. Os cientistas liga-
tada contra a manuten^äo dos direitos adquiridos que se opu-
dos a causa parlamentar que "greshamizaram" O x f o r d näo
nham äs novas ideias, e contra a enfase dada ä educafäo for-
pensavam em introduzir o ensino da quimica nesta univer-
mal, em detrimento da experiencia, no treinamento dos m i -
sidade. W a r d via "a agricukura, a quimica mecänica e con-
nistros. Näo era nem mesmo uma hostilidade ditada sim-
generes" como disciplinas inadequadas para os filhos da no-
plesmente pelo fanatismo religioso: dizia m u i t o mais res-
breza e da pequena nobreza agraria.^^'' O arrogante sir W i l -
peito äs tradiföes paracelsistas e utilitarias da ciencia popu-
lär de Londres. " Q u e m säo os nossos carcereiros.^", pergun- liam Temple "sempre considerou a alquimia na filosofia na-
tava Nicholas Culpeper em 1651. " E m minha opiniäo, säo tural como algo semelhante ao arrebatamento na teologia,
OS eruditos."2i4 e que ja havia perturbado o m u n d o com propositos bem
parecidos".^^^ Excluida das universidades, a quimica näo foi
Podemos tecer considerafoes semelhantes a respeito da capaz de se livrar nem de sua aura subversiva de baixo n i -
aparente desconfian^a de Bacon quanto a formula^äo de teo- vel social, nem de suas fantasias alquimicas e magicas.^^^
rias pela razäo, e sua insistencia no primado da experiencia Muitos dos cnticos das universidades eram homens mo-
e da observafäo direta das coisas materiais. " A razäo" derados. John H a l l era amigo tanto de Hobbes quanto de
tornara-se täo inextricavelmente ligada ä escolastica que a H a n l i b . O titulo de sua obra. An HumbleMotion to thePar-
distinfäo era täo natural e necessaria quanto havia sido na liament of England conceming the Advancement of Leaming
Reforma.215 Sem qualquer düvida, Bacon teria concorda-
and Reformation of the Universities (Modesta proposta ao
do com a afirma9äo de M i h o n : " A b a i x o a razäo, o u , pelo
Parlamento da Inglaterra a proposito do progresso do sa-
menos, abaixo os raciocinios inüteis." Grande parte da d i -
ber e da reforma das universidades), de 1649, ja e u m indi-
famafäo dirigida aos baconianos do Interregno pelos defen-
cio de sua abordagem baconiana. H a l l queria que se crias-
sores das universidades provinha dai. Os historiadores acei-
sem novas cadeiras de quimica e anatomia, e que se desti-
taram m u i t o facilmente o argumento de que homens co-
nassem fundos para a pesquisa, principalmente em mate-
mo Hartlib e seu amigo John H a l l , George Snell, John Webs-
matica, ciencia e medicina.^^^ (Os bispos haviam sido con-
ter, N o a h Biggs, W i l l i a m D e l l , Nicholas Culpeper, John
Sahmarsh, George Stanley, W i l l i a m Sprigge, H u g h Peter,
216. A proposito das liga^öes entre o protestantismo radical e a alquimia,
W i l h a m W a l w y n e Gerrard Winstanley näo passavam de ver A . Stella, " R i c e r c h e sul socinianesimo", Bolletino delT htituto di Storia Ve-
fanaticos religiosos. neziano, i i i . 77-120. C f . M . West, " N o t e s on the Importance of A l c h e m y to Me-
dical Science in the Writings of Francis Bacon and Robert B o y l e " , Amhix, ix.
N o entanto, ha distinföes que precisam ser estabeleci- 102-14.
217. V e r acima, p. 78.
214. N . Culpeper, A Directory for Miä-wives (1651), Epistola ao Leitor. 218. T e m p l e , Five Miscellaneous Essays, p. 87.
215. A proposito de dificuldades semelhantes, entre a " r a z ä o " e a lei, ver 219. V e r abaixo, p. 401.
abaixo, pp. 337-45. 220. J . H a l l , v4« Humble Motion (org. A . K . C r o s t o n , 1953), pp. 27, 29, 3 9 4 3 .
168 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLU<^AO INGLESA FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS

inclusive por seus inimigos) a oferta de melhores Of^ortuni-


trarios ä pesquisa nas universidades,22i e ate mesmo Bacon
pensara na casa de Salomao como u m instituto autonomo dades educacionais para "os filhos dos homens das cida-
de pesquisa.) H a l l tambem era u m critico do desprezo que des".^^^ E m 1648, Petty, que mais tarde veio a ser superin-
as universidades dispensavam ä historia, e escreveu Of the tendente da Republica na Irlanda e professor de anatomia
Aävantageous reading of History em 1657.^^^ Opunha-se ä na O x f o r d ja depurada, propos (a H a r t l i b ) a criafäo de uma
censura e queria que a Inglaterra imitasse os holandeses, que universidade em Londres. Tambem recomendou "oficinas
importavam eruditos do exterior. Era u m admirador de Sa- de letras" para criangas pobres, e "colegios de artifices" onde
muel W a r d e de outros puritanos de Cambridge.^^3 } ^ ^ \ mecänicos de talento teriam suas experiencias subsidiadas
atuou como contato entre H a r t l i b e os platonicos de Cam- pelo governo. Queria tambem que o treinamento vocacio-
bridge.224 EJe proprio traduziu algumas obras de Comenio. nal fosse intensificado.^^° H a r t l i b , por sua vez, esperava que
Durante a Republica, f o i u m panfletario oficial do gover- Petty fosse apoiado pelo Gresham College para desenvol-
no, com u m salario de cem libras anuais. E m 1649, contra- ver ali seu trabalho com a ciencia experimental. E m 1650,
t o u o astrologo W i l l i a m L i l l y para dirigir o jornal do go- ele se t o r n o u professor de müsica em Gresham.
verno, Mercurius Rusticus.^^^ Quando Bacon atacou os teologos que insistiam no ir-
Webster citou o Prefacio de Dee para o Euclide de Bil- resistivel poder do pecado, seu interesse fundamental era
lingsley, e fez o elogio de Briggs, Napier, G i l b e r t H a r v e y preparar o terreno para o avan^o cientifico e industrial, sem
e Hobbes, alem de Bacon e Comenio.^^^ Queria que as uni- tirar dai quaisquer conclusöes politicas. O mesmo näo fize-
versidades criassem "laboratorios e bibliotecas, e que tra- ram seus sucessores quando, na atmosfera mais livre das de-
balhassem com o fogo, alem de construirem castelos no ar",
cadas revolucionarias, o pecado se t o r n o u o grande obstä-
Mais tarde, defendeu a Royal Society e atacou a cren^a em
culo dos pregadores conservadores. "So Deus e os anjos tem
feiticeiras.^^^ D e l l tinha esperan^as de ver instituida a edu-
o direito de serem espectadores", escreveu Bacon, critican-
cafäo universal, com novas universidades mantidas pelo Es-
do a enfase dada por Aristoteles a contemplafäo. M i l t o n
tado em Londres, Y o r k , Bristol, Exeter, N o r w i c h e outras
sem düvida tinha o trecho em mente quando, no auge da
cidades. Nestas universidades, o trabalho intelectual deve-
guerra c i v i l , recusou-se a louvar uma virtude efemera e en-
ria ser desenvolvido em combina^ao com o trabalho ma-
nual.228 Sua principal preocupafäo era (e f o i reconhecida clausurada que mantinha os homens afastados das lutas po-
l i t i c a s . P r o c u r a r uma primeira causa para alem da cadeia
221. V e r abaixo, p. 420. das causas naturais significa abandonar o principio de cau-
222. C f . T u r n b u l l , Hartlib, Dury and Comenius, p. 74.
223. V e r os poemas que dedicou a eles in G . Saintsbury, Caroline Poets
salidade, pensara Bacon, e passar do conhecimento logico
(1905-21), ii. 203,209. A proposito do interesse de W a r d por matematica, ver abaixo,
p. 422. 229. [Seth W a r d ] , Vindiciae Academiarum, pp. 62-64.
224. G . H . T u r n b u l l , " J o h n Hall's Letters to Samuel H a r t l i b " , Review of En- 230. The Advice of William Petty to Samuel Hartlib (1648), passim.
glish Studies, N e w Series, iv. 221-30.
231. Bacon, Works, v. 8. E possivel que M i l t o n nao estivesse fazendo eco
225. H a l l , An Humble Motion, p. v i i . A proposito de L i l l y , ver acima, p. 64.
a Bacon: no seu caso, trata-se de uma aplica^äo politica do vigoroso senso de pro-
226. Webster, Academiarum Examen, pp. 20, 41, 44, 51-52, 74, 99. C f . N o a h
posito que o puritanismo calvinista oferecia aos seus adeptos. A o criticar u m a
Biggs, The Vamty of the Craft of Physick (1651), sig. b, pp. 230-1.
filosofia contemplaiiva e impassivel, Bacon fundamenta-se basicamente na mes-
227. Webster, op. cit., pp. 106-8; The Display ofSupposed Witchcraft (1677),
ma atitude. Estamos, aqui, diante das raizes da contribuigao protestante ä cien-,
pp. 4, 14, e passim.
cia, bem c o m o ä causa parlamentar.
228. l>t\\,Several Sermons and Discourses [XlCf)),^^. 645-8. V e r acima, pp. 148-9.
170 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQIO INGLESA
FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 171

para o reino da famasia.232 Winstanley levou a ideia ainda mo " o historiador do Gresham College", e muitos outros
mais longe: falavam do Gresham College quando, na verdade, queriam
referir-se ä Royal Society.^^'^ Depois de ter dado origem ä
C h e g a r a D e u s p a r a a l e m d a C r i a f ä o , o u s a b e r de q u e f o r m a Royal Society, o Gresham College entrou em declinio en-
E l e a g i r a c o m u m h o m e m d e p o i s q u e o m e s m o e s t i v e r m o r t o , ca- quanto instituifäo independente — como se ja houvesse cum-
so a l g u m a c o i s a m a i s ele fa^a a l e m de r e d u z i - l o äs e s s e n c i a s de fo-
prido sua missäo.
go, ä g u a , t e r r a e a r das q u a i s e c o m p o s t o , e u m c o n h e c i m e m o que
Assim, os radicais f or am derrotados, mas a ciencia so-
e x t r a p o l a a c a p a c i d a d e de a p r e e n s ä o d o h o m e m e n q u a n t o ele v i v e
e m seu c o r p o composto.^^-'
breviveu. " T u d o o que vem antes de 1'650 e a n t i g o " , decla-
ra o historiador da tecnologia, "e tudo o que vem depois
O desejo utopico de Bacon, de anular as conseqüencias e moderno."^^^ Carlos I I , mais säbio do que seu pai e seu
do pecado original, restringia-se ä atividade cientifica. Wins- avo, tornou-se o patrono da ciencia. Näo apenas os bispos
tanley, p o r e m , perguntava: ' T o r que näo podemos ter o deixaram de se opor ao avan^o da ciencia, como tambem
nosso ceu aqui (isto e, uma vida confortavel na terra) e o OS cientistas mais importantes — entre eles o cunhado de
ceu na outra vida tambem?"^^'* C r o m w e l l — tornaram-se bispos: "para lan^ar no esqueci-
mento os seus erros passados", disse Burnet, explicando "as
exageradas concepföes de rigoroso c o n f o r m i s m o " adotadas
VII por Seth W a r d depois de 1660; "para a prevenfäo daqueles
terrores e pänicos infundados", afirmou Joseph G l a n v i l l ,
Foi bastante natural que, apos terem sido expulsos de pensando na necessidade de assegurar aos homens de espi-
O x f o r d em 1660, os cientistas viessem a reagrupar-se em r i t o retrogrado que a ciencia agora era respeitävel.^^^ E m
t o r n o do Gresham College, e que quatro dos doze mem- 1663, u m bispo ainda podia rejeitar a hipotese copernica-
bros fundadores da Royal Society se tornassem professores na;240 no final do seculo, p o r e m , o arcebispo de Cantuaria

de Gresham. As reuniöes da Sociedade eram simbolicamente era u m baconiano.^^i Robert Boyle disse a cientistas de po-
realizadas no edificio "que outrora f o i a residencia senho- sifäo social elevada que os mesmos deviam "conversar com
rial de u m dos maiores mercadores que ja existiram na I n - OS comerciantes em suas oficinas e lojas". A recusa em apren-
glaterra".235 A filosofia natural, observou Hobbes, der com OS artesaos era " p u e r i l e ... indigna de u m filoso-
"transferiu-se de O x f o r d e Cambridge para o Gresham Col-
lege de Londres, e passou a ser aprendida nos jornais que 237. S. Butler, Charakters and Passages from Notebooks (org. A . R . Waller, 1908),
pp. 406, 424. C f . H e n r y Power, Experimental Philosophy {m4), pp. 83, 149 ( " T h e
o mesmo publica".^^^ Samuel Butler referia-se a Sprat co-
R o y a l Society at G r e s h a m " ) ; org. L a n s d o w n e , The Petty-Southwell Corresponden-
ce 1676-87 {m%), pp. 11, 26, 87; sir W . T e m p l e , Five Miscellaneous Essays, p. 73.
232. A n d e r s o n , The Philosophy of Francis Bacon, p. 291. 238. C . Singer, Technology and History {L.'X. Hobhouse Memorial T r u s t L e c -
233. Sabine, op. cit., p. 565.
ture, 1952), p. 16.
234. Ibid., p. 409. W a l w y n tambem pensava que o pecado original podia ser 239. G . Burnet, History ofhis own Time (org. O . A i r y , 1897), Parte I, i. 343;
redimido na T e r r a { W . Haller, Tracts on Liberty in the Puritan Revolution, Co-
J . G l a n v i l l e , Plus Ultra (1668), Prefacio.
lumbia U . P . , 1934, i. 40, 62).
240. W . L u c y , Observations, Censures and Confutations of... Mr. Hobbes (1663)
235. Sprat, History of the Royal Society, p. 93.
p. 49, citado por S.I. M i n t z , The Hunting of Leviathan (1962), p. 65.
236. T . H o b b e s , Behemoth (1679), in Works (org. Molesworth), v i . 348.
241. T [ h o m a s ] T[enison], Baconiana (1679), pp. 3-5.
FRANCIS BACON EOS PARLAMENTARISTAS 173
172 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^AO INGLESA

bora näo tantos quanto haviam pretendido. E m 16'50, Har-


f o " 242 " J S J Q inicio do terceiro quartel do seculo", Bacon tlib havia perdido as esperan^as de modificar a atitude mental
"fazia jus ao apelido de 'ditador' da filosofia que Ihe havia dos ingleses adultos, e colocava todo o seu empenho na edu-
sido dado por seus opositores." C o m Locke, " o mais nota- cafäo da gera^äo mais nova.^'*^ Durante a Restaura^äo, po-
vel dos discipulos filosoficos de Bacon", o baconismo su-
rem, todas as reformas parlamentaristas nesta esfera foram
perou todos os seus rivais.^'*^ John Ray, nascido em 1627,
abolidas, e a Royal Society pouco tinha a dizer sobre o pro-
disse em 1690 que a substitui^ao do vazio e f r i v o l o escolas-
grama educacional de seu mestre. Apos 1660, ela cai para
ticismo por uma nova e solida filosofia, fundamentada no
o segundo plano.^'*^ O x f o r d e Cambridge sobreviveram
experimento, havia ocorrido durante o seu periodo de v i -
praticamente inalteradas, e livraram-se dos cientistas. Os ra-
da.244
dicais em questöes cientificas como Webster foram lan^a-
A vida intelectual da Inglaterra f o i mais livre depois, dos no submundo näo-conformista. O honoravel Robert
e por causa da Revolufäo, do que havia sido antes. Tome- Boyle cortou relacoes com H a r t l i b durante a Restaurafäo,
mos o marques de Halifax por testemunha: devido äs rela^öes deste com os radicais, e tanto H a r t l i b
quanto D u r y näo conseguiram tornar-se membros da Ro-
A l i b e r d a d e d o s U l t i m o s t e m p o s d e u aos h o m e n s t a n t a l u z e yal Society.^"^^ F o i armado u m vigoroso ataque contra os
d i f u n d i u - a tao u n i v e r s a l m e n t e e n t r e as p e s s o a s , q u e n a o se p o d e
cientistas, basicamente por causa de suas liga9Öes parlamen-
m a i s l i d a r c o m elas c o m o se p o d i a n u m a e p o c a de m e n o s q u e s t i o -
taristas. A tendencia de seus opositores era atribuir todas
n a m e n t o s . ... A c a p a c i d a d e de e n t e n d i m e n t o ... t o r n o u - s e menos
p r o s a i c a d o q u e o f o r a n o p a s s a d o , q u a n d o o s h o m e n s de negro
as manifestafoes revolucionarias, tanto religiosas quanto po-
h a v i a m t r a n s f o r m a d o o s a b e r n u m p e c a d o t ä o t e r r i v e l p a r a o s lei- liticas, ä revolta contra o pensamento tradicional. Bacon,
gos q u e estes, p e l o r e c e i o de e s t a r e m i n c o r r e n i d o e m o f e n s a , t i n h a m afirmou o renegado H e n r y Stubbe, criara " n o cora^äo dos
e s c r u p u l o s d e c o n s c i e n c i a p e l o f a t o de a p r e n d e r e m a 1er. A g o r a , ingleses u m desejo de inova^öes täo grande que tocava as
p o r e m , o m u n d o t o r n o u - s e p r e p o t e n t e , e e s p e r a q u e se I h e ofere- raias do desprezo pela antiga jurisdigao eclesiastica e civil
9 a m r a z Ö e s , e r a z o e s s o H d a s , antes de a b r i r m a o de suas p r o p r i a s e pelo antigo governo, bem como pelos governantes do rei-
o p i n i o e s f r e n t e aos d i t a m e s q u e I h e s ä o i m p o s t o s p e l o s o u t r o s h o - no; e as raizes de todas as perturba^öes de hoje foram plan-
m e n s , o que t a m b e m nao mais e feito tao autoritariamente.^'*^
tadas por sua mäo".^^^ Robert South, antigo encomiasta de
O l i v e r C r o m w e l l , aproveitou o ensejo da consagragao do
E, no entanto, o baconismo näo triunfara por inteiro. Sheldonian Theatre de O x f o r d (construido por u m certo
A Royal Society era uma organiza^äo privada: a Casa de
Salomäo de Bacon havia controlado a economia e toda a
247. H a r t l i b , Prefacio de The Reformed School de D u r y (1650).
ordem social.^^6 Q entusiasmo educacional dos baconianos 248. A näo ser por algumas observa^öes eventuais feitas por Petty, e.g. in
f o i responsavel por grandes feitos durante a Revolufäo, em- Economic Writings^ (org. H u l l ) , i. 20. C f . Irene Parker, Dissenting Academies in
England (1914): " E provavel que n e n h u m acontecimento da historia inglesa te-
242. C i t a d o por C r o w t h e r , Founders of British Science, pp. 54-35. nha tido um efeito tao abrangente e desastroso sobre a educa^ao quanto a Restau-
243. A n d e r s o n , The Philosophy of Francis Bacon, pp. 293, 299, 302-3. r a f ä o " (p. 43).
244. J . R a y , Synopsis Methodica Stirpium Bntannicarum (1690), Praefatio, sig. 249. Jones, Ancients and Modems, pp. 181, 322.
A 4v; cf. Jones, Ancients and Modems, pp. 48-49, 65, 122. 250. H . Stubbe, The Lord Bacon's Relation of the Sweating-sickness examined
245. H.C. Foxcroft, The Life and Letters ofSir George Savile, Bart., First Mar- (1671), Prefacio. Dizia-se que Stubbe havia sido pago por u m eminente m e m b r o
quess of Halifax (1898), ii. 308; cf. A u b r e y , Remaines of Gentilisme and Judaisme, do Colegio dos Medicos para atacar a R o y a l Society (Keevil, The Stranger's Son,
pp. 67-68. pp. 138-9, 178-80).
246. C r o w t h e r , Francis Bacon, p. 3.
174 ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUQiO INGLESA
FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS 175
F.R.S.) para lan9ar invectivas sarcästicas "contra C r o m w e l l , A Royal Society tornou-se mais utilitäria do 'que Ba-
os fanaticos, a Royal Society e a nova filosofia".^^! "Ple- con o teria desejado, levando ao extremo a atitude implici-
beus e mecänicos", afirmou o bispo Parker, "aderiram a
ta na observaf äo de Boyle sobre seus assoeiados comenia-
u m a filosofia de principios hereticos, e proclamam o seu
nos: "Nosso Colegio näo valoriza nenhum t i p o de conhe-
ateismo nas ruas e nas estradas".252
cimento, a näo ser aquele que possua aplicafäo pratica."^^^
O patrocinio real, aristocrätico e episcopal fazia-se ne- A o mesmo tempo, porem, a Royal Society adquiriu tam-
cessärio antes que a Royal Society conquistasse uma posi- bem u m carater mais amadoristico. O patriotismo tacanho
fäo segura: a propaganda da History de Sprat, m i n i m i z a n - que se percebe na History de Sprat contrasta de forma es-
do o papel do Gresham College e dos parlamentaristas na tranha com a teoria de Bacon (se näo com sua pratica) e
forma^äo da Royal Society, foi uma pane necessaria da cam- com o internacionahsta e antiimperialista^nge/«5 Pacis de
panha, por mais desconcenante que os historiadores tenham Comenio, publicado no mesmo ano de 1667.257 ^ medi-
considerado as discrepäncias entre ela e os demais relatos, da que o seculo avan^ava — talvez em reafäo ao utilitaris-
tanto OS menos oficiais quanto os que foram publicados m o e ao diletantismo dos amadores — a ciencia dos profis-
quando ja näo havia mais perigo.-^^^ N o entanto, f o i alto sionais deixou-se dominar cada vez mais pela matematica
o p r e f o a pagar. Sprat teve de enfatizar que a ciencia expe- abstrata. Tratava-se tambem de uma enfase m u i t o diferen-
rimental näo representava nenhuma ameafa ä Igreja A n g l i - te da de Bacon, com sua visao unificada da ciencia a servifo
cana, ä nobreza e ä pequena nobreza agräria; calou as aspi- da gloria de Deus e da melhoria da condifäo humana. A
raföes educacionais dos baconianos durante a Revolufäo, Royal Society pos em contato alguns grandes cientistas no
chegando mesmo a afirmar que os cientistas salvaram O x - final do seculo X V I I , com beneficios para todos, mas näo
ford da destruifäo puritana.254 A pequena nobreza foi atrai- foi capaz de instituir a utopia com a qual haviam sonhado
da para a Royal Society, que dela necessitava por razoes f i - Bacon, M i k o n e C o m e n i o , e menos ainda aquela com que
nanceiras e sociais. Qualquer u m c o m o t i t u l o de barao era Winstanley sonhara. F o r a m as academias de dissidentes, e
automaticamente aceito, caso desejasse honrar a Sociedade näo a Royal Society, que levaram a tradifäo baconiana ra-
tornando-se u m de seus membros. Alguns destes — sir John
Berkenhead, p o r exemplo — iriam se destacar mais por sua 256. C i t a d o por T a y l o r , Mathematical Practitioners, p. 84. C f . a dedicatöria
a Carlos I I , Micrographia de R o b e r t H o o k e (1662), c o m sua enfase ruidosa so-
oposifäo do que p o r seu interesse pela ciencia.^^s
bre o lucro como movel. V e r M . 'Espinasse, " T h e D e c l i n e and F a l l of Restora-
tion S c i e n c e " , P and P, n? 14, pp. 71-89.

251. Wallis dirigindo-se a B o y l e , 17 de julho de 1669, in B o y l e , Works (1744), 257. Neste panfleto, C o m e n i o pedia o fim de todas as guerras, por motivos
V. 514. economicos ("Sera välido pescar c o m u m anzol de o u r o ? " ) e morais, e expressa-
va a esperan^a de " q u e em toda a ra9a h u m a n a haja, finalmente, u m a ünica voz
252. S. P a r k e r , / ! Demonstration of the Divine Authority of the Law of Natu-
a reger todas as questöes, que se chegue a u m consenso entre os desejos, e que
re and ofthe Christian Religion (1681), pp. iii-iv. ( D e v o esta referencia ao sr. D .
se h a r m o n i z e m os esforjos voltados para o bem c o m u m " . E l e estava convencido
N a n d y ) . Parker era rival e alvo de zombarias de A n d r e w M a r v e l l .
de que "estas viagens dos europeus a paises estrangeiros trouxeram o infortünio
253. P o r essa razäo, o carater tardio do testemunho de Wallis, muitas vezes
tanto para os europeus quanto para aqueles povos dos quais obtemos bens mate-
invocado como motivo para que o mesmo seja rejeitado quando coniradiz Sprat,
r i a i s " G - A . C o m e n i o , Angelus Paäs, Praga, 1926, pp. 132-49). " S o m o s todos con-
pode na verdade ser u m motivo para aumentar sua i m p o r t ä n c i a . C f . The Diary
cidadäos de u m s6 m u n d o , temos todos o mesmo sangue, somos todos seres hu-
ofthe Rev. John Ward, p. 116.
manos. Q u e m irä nos impedir de nos u n i r m o s em u m a republica? Diante de nos
254. Sprat, History of the Royal Society, p. 54
apresenta-se u m ünico objetivo: o bem da humanidade, e colocaremos de lado
255. P . W . Thornzs, Sir John Berkenhead, 1617-1679 {O^ordV.P., 1969), p p .
todas as consideraföes de interesse p r ö p r i o , nacionalidade e sectarismo" ( C o m e -
233-4. C f . Sprat, op. cit., pp. 72-73.
nio, Panegersia, citado in The Teacher ofNations, org. J . N e e d h a m , 1941, p. 6).
176 FRANCIS BACON E OS PARLAMENTARISTAS \77
ORIGENS INTELECTUAIS DA REVOLUC^ÄO INGLESA

plificafäo das predicas, e seus tratados cientificos estabele-


dical ate a Revoluf ao Industrial, parcialmente prevista p o r
Bacon. ceram u m exemplo seguido por m u i t o s . O professor
Bush observou que poderiamos considerar alegorico o fato
N o entanto, u m aspecto do legado cientifico pre-
baconiano f o i empreendido pela Royal Society com mais de que este pai da Royal Society f o i sogro de Tillotson.262
eficacia do que pelo p r o p r i o Bacon. Sprat definiu o ideal A alegoria fica mais completa se refletirmos que W i l k i n s
de prosa da Royal Society como sendo de "clareza mate- tambem era neto do grande pregador e panfletario purita-
matica a linguagem dos artesaos, homens do campo e no Decalogue D o d , bisneto do sabatista Nicholas Bownde
m e r c a d o r e s " . A descri9äo nao retrata o estilo conciso, — alem de cunhado de O l i v e r C r o m w e l l . A q u i , tambem,
mas fecundo, de Bacon — embora Sprat se referisse ao mes- o t r i u n f o da ciencia presenciou o t r i u n f o dos criterios do
m o com aprovafäo. N a verdade, trata-se de uma descri^äo homem c o m u m sobre aqueles dos que Ihe eram socialmen-
literal da prosa dos cientistas populäres, que escreviam de te superiores, e o ingles tornou-se uma lingua na qual Bun-
maneira simples e direta, uma vez que se dirigiam a " h o - yan, Defoe e Swift puderam escrever.
mens simples e incultos".^^^ N e l a tambem se descreve o 261. Sir E . Gosse, History of 18^ Century Literature (1889), pp. 75-76, foi u m
melhor da prosa reunida por Richard H a k l u y t em seu epi- dos primeiros a enfatizar a participa^ao pioneira de W i l k i n s na criafäo da nova
co, mais uma vez uma prosa escrita p o r simples mercado- prosa. C f . W . T . Costello, The Scholastic Curriculum at early 17^ Century Cam-
bridge ( H a r v a r d U . P . , 1958), p. 57; H o w e l l , Logic and Rhetoric in England^
res e navegantes, para ser lida por seus companheiros. Ja 1500-1700, pp. 117-18, 385-91. O professor H o w e l l chama a t e n f ä o para a influen-
em 1628 Earle percebeu a ligafäo entre a ciencia e a nova cia de R a m u s na simplifica^ao da prosa. Webster tambem defendia uma prosa
prosa. O " h o m e m presunfoso" a que ele se refere "prefere clara e concisa [Academiarius Examen, p. 88).
262. Bush, English Literature in the Earlier Seventeenth Century (segunda edi-
Ramus a Aristoteles, Paracelso a Galeno, e Lipsius, com seu
9äo, 1962), p. 329. T i l l o t s o n , c o m o B r i ^ s e sir H e n r y Savile, era de Halifax.
estilo saltitante, a T u l i o ou Quintiliano".^^^
Nota Suplementar. A Ode to the Royal Society de C o w l e y e admirävel ^ l a manei-
Os teologos puritanos, e mais tarde os panfletarios le- ra c o m o o poeta realista enfatiza o papel revolucionario de Bacon: sera tanto mais
admirävel se as metäforas forem inconscientes:
vellers, diggers e sectarios tambem tiveram de dominar o es-
Espiritos exaltados produziu tal era,
t i l o dos mercadores e artesaos, pois era para eles que escre- Q u e lutaram pela liberdade...
viam. Richard H o l d s w o r t h , que ensinava a seus alunos u m D a ... cativa Filosofia;
C h a m o u - s e pela rebeliao, para lutar
"estilo claro, fäcil e c o m u m " , situa-se na confluencia das
P o r u m direito tantas vezes negado.
tendencias do Gresham College e dos puritanos, que pos- Ergueu-se por fim Bacon, h o m e m poderoso...
tulavam uma prosa mais simples. Da mesma forma, W i l - A autoridade ... expulsou de nossas vistas, ...
Bacon venceu a deidade-espantalho
kins personifica a fusao das influencias puritanas e cientifi- e reintegrou a humanidade ao estado em que se encontrava antes do pecado. O s
cas. Seu Ecclesiastes (1646) f o i u m manual populär de sim- homens nao mais lentariam ver o bem e o mal " s e m o auxilio dos sentidos".
Pois B a c o n voltou nossos estudos para " o caminho m e c ä n i c o " , para as coisas,
258. Sprat, History of the Royal Society, p. 113. e näo para as palavras. N o prefacio de seus Poems ( 1 6 5 6 ) , C o w l e y afirmava que
259. C f . R . K . M e n o n , "Science, T e c h n o l o g y and S o c i e t y " , Osins, iv. 378-9; os realistas deviam expurgar sua causa " d e todas as obras e fortifica^öes do espiri-
to e da razäo atraves das quais a defendemos no passado" [Poems, org. A . R . W a l -
J o h n s o n , Astronomical Thought, pp. 292-3. E m De Magnete {\6Q0), G i l b e r t havia
ler, 1905, pp. 448-50, 455). Suas Prepositions for the Advancement of Experimental
atacado o uso do jargao erudito por parte dos filosofos academicos {pp. 47-49).
Philosophy (1661) sao puro baconismo; em seu Essay of Agriculture ele louvou a
A f i r m a v a " n a o ter trazido para sua obra quaisquer requintes retöricos ou elegän-
diligencia e o espirito püblico de H a r t l i b . D a mesma forma, J o h n H o u g h t o n atri-
cia v e r b a l " : usara apenas " o s termos que se fazem necessärios para tornar aquilo
buiu o progresso da agricultura na Inglaterra " ä operosidade e aos esforf os obsti-
que se diz claramente inteligi'vel" (Prefacio). E m b o r a tenha escrito em latim, esta
nados do sr. H a r t l i b e de alguns o u t r o s " (Husbandry and Trade Improv'd, 1728,
c o n c e p f ä o da fun^ao da prosa e similar ä que estamos discutindo.
iv. 56, 85).
260. J . E a r l e , Microcosmographie, " A Seif-conceited M a n " .

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