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Nuno Gonçalo Monteiro

Elites e Poder
Entre o Antigo Regime
e o Liberalismo
Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociais


da Universidade de Lisboa

Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9


1600-189 Lisboa – Portugal
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Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na Publicação


Monteiro, Nuno Gonçalo
Elites e poder : entre o antigo regime e o liberalismo / Nuno Gonçalo Monteiro.
- 3.ª ed. – Lisboa : ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2012
ISBN 978-972-671-192-6
CDU 94(469)

Composição e Paginação: Instituto de Ciências Sociais / Celeste Pires


Revisão: Soares de Almeida
Capa: João Segurado
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depósito legal: 340813/12
1.ª edição: Dezembro de 2006
2.ª edição: Abril de 2007
3.ª edição: Março de 2012
ÍNDICE

Introdução……………………………………………………………………….. 13

I PARTE

ELITES E PODERES

1. Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno (sé-


culos XVII e XVIII)................................................................................................ 19

2. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime.. 37


Os problemas e os contextos.................................................................................... 37
Os municípios na recente historiografia portuguesa............................................. 37
A construção das categorias da análise histórica e as «oligarquias municipais»..... 43
A mobilidade social e a cultura política do Antigo Regime.................................... 47
Um retrato das elites locais nos finais do Antigo Regime....................................... 51
Governanças municipais e trajectórias sociais......................................................... 66
Elites locais e modelos de reprodução social........................................................... 75
Recapitulações.......................................................................................................... 80

3. O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança. Algumas


notas sobre casa e serviço ao rei........................................................................ 83
Questões preliminares.............................................................................................. 83
A aristocracia de corte da dinastia de Bragança...................................................... 86
O ethos aristocrático: a casa..................................................................................... 89
O ethos aristocrático: o serviço real......................................................................... 93
As doações régias e a cristilização aristocrática...................................................... 97
4. Poderes e circulação das elites em Portugal: 1640-1820................................. 105
Perspectivas e mutações historiográficas................................................................. 105
Poderes e nobrezas antes da Restauração................................................................. 107
A constituição da nobreza de corte dos Bragança.................................................... 110
A evolução política e institucional........................................................................... 113
A circulação das elites.............................................................................................. 115
Conclusões............................................................................................................... 137

5. Nobreza, revolução e liberalismo: Portugal no contexto da Península Ibé-


rica....................................................................................................................... 139
Os problemas a discutir............................................................................................ 139
A aristocracia nos finais do Antigo Regime............................................................. 144
A revolução liberal e o destino das velhas casas da aristocracia da corte............... 151
O impacto económico da revolução......................................................................... 153
Bens da coroa e ordens.......................................................................................... 153
Os bens patrimoniais............................................................................................. 155
Declínio político....................................................................................................... 157
A nova nobreza........................................................................................................ 159

6. Proprietário, propriedade e revolução liberal. Algumas notas...................... 163

II PARTE

REGIME SENHORIAL E REVOLUÇÃO LIBERAL

1. «A questão dos forais» na conjuntura vintista................................................ 179


Introdução................................................................................................................. 179
«Feudalidade» e revolução: algumas reflexões a partir dos casos francês e espa-
nhol....................................................................................................................... 180
A «questão dos forais»: o discurso e a legislação do vintismo................................ 188

2. A geografia das petições e dos conflitos (1821-1824)...................................... 207


3. Lavradores, frades e forais: revolução liberal e regime senhorial na comar-
ca de Alcobaça (1820-1824)............................................................................... 215
Revolução liberal e «reacção senhorial» (1820-1824)............................................. 218
O impacto local do vintismo.................................................................................... 219
A resposta à «reacção senhorial»............................................................................. 232
Concelhos, paróquias, comunidades........................................................................ 244
A comarca de Alcobaça nos finais do Antigo Regime............................................ 253
Regime senhorial e petições das câmaras: o inquérito de 1824............................... 262
Epílogo e conclusão................................................................................................. 288
Hipóteses para uma perspectiva comparada............................................................ 296

4. Geografia e tipologia dos direitos de foral....................................................... 301


Objecto e fontes....................................................................................................... 301
Critérios seguidos na elaboração do mapa............................................................... 303
Tipologia dos direitos............................................................................................... 305
Uma imagem de conjunto........................................................................................ 309

5. Conclusões.......................................................................................................... 313

Nota final................................................................................................................ 317

Índice onomástico................................................................................................... 319


ÍNDICE DE QUADROS

I PARTE

N.º 1 Rendimento/fortuna dos elegíveis para vereadores nas sedes de comarca. 54


N.º 2 Estatuto dos arrolados para vereador………………………………….…. 59
N.º 3 Rendimento/fortuna dos elegíveis para vereadores……………………… 63
N.º 4 Estatuto dos arrolados para vereadores…………………………………... 64
N.º 5 Campanha de 1706 da guerra da sucessão de Espanha………………….. 118
N.º 6 Relação dos oficiais da 1.ª plana da corte em 1764……………………… 119
N.º 7 Relação dos oficiais da 1.ª plana da corte em 1777……………………… 121
N.º 8 Oficiais superiores do exército em 1805…………………………………. 122
N.º 9 Proveniência e ordem de nascimento dos vice-reis da Índia (nomeações
1630-1810)……………………………………………………………….. 123
N.º 10 Proveniência e ordem de nascimento dos vice-reis e governadores-gerais
do Brasil (1630-1810)……………………………………………………. 124
N.º 11 Recrutamento dos secretários de Estado (1640-1807)…………………… 129
N.º 12 Prelados das arquidioceses e dioceses principais (1500-1820)………….. 130
N.º 13 Prelados das dioceses secundárias…………………………….………… 130
N.º 14 Prelados de todas as arquidioceses e dioceses do continente português… 131
N.º 15 Casas titulares existentes em Portugal (1761-1832)……………………... 145
N.º 16 Títulos nobiliárquicos em Portugal (1761-1832)………………………… 147
N.º 17 Distribuição dos rendimentos de casas por categorias de bens………….. 148
N.º 18 Enfiteuse e «propriedade plena»………………………………………… 149
N.º 19 Rendimentos da casa dos marqueses de Abrantes……………………….. 154
N.º 20 Elite política (1834-1910)………………………………………………... 158
N.º 21 Casas titulares em 1855, em 1887 e em 1905………………………….… 160

II PARTE

N.º 1 Distribuição geográfica do movimento peticionário anti-senhorial vintista.. 209


N.º 2 Direitos principais que pagavam as povoações peticionárias……………. 209
N.º 3 Senhorios referidos em petições remetidas às cortes vintistas…………... 210
N.º 4 Recenseamento eleitoral da comarca de Alcobaça em 1826…………….. 249
N.º 5 Camaristas e eleitores (1824-1826)……………………………………… 252
N.º 6 Categorias sócio-profissionais dos cabeças-de-fogo e percentagem de
fogos com «fazenda» na comarca de Alcobaça segundo os mapas das
companhias de ordenanças de 1775……………………………………… 259
N.º 7 Peticionários de Évora de Alcobaça……………………………………... 278
N.º 8 Rendimentos do Mosteiro de Alcobaça em 1821-1822………………….. 281
INTRODUÇÃO

Reúnem-se neste livro estudos publicados há mais de década e meia


com outros escritos ou editados há pouco tempo. O leque cronológico e
temático é também, de resto, bastante diversificado. Finalmente, é desi-
gual a extensão dos textos, bem como o nível da sua fundamentação
empírica.
Creio, no entanto, que a pluralidade antes referida não retira coerência
ao conjunto. Desde logo, porque traduz algumas das grandes áreas de
investigação (regime senhorial, elites nobiliárquicas, poderes locais) do
percurso do seu autor. Mas, sobretudo, porque os trabalhos recolhidos
correspondem à preocupação de questionar dimensões essenciais da his-
tória social e institucional de Portugal durante a dinastia de Bragança
(1640-1832). Embora a ordem de publicação não seja essa, o caminho
foi percorrido regressivamente. Partiu-se do interesse inicial pelo tema
dos comportamentos do meio rural no contexto da revolução liberal para,
de seguida, se estudar o regime senhorial nos finais do Antigo Regime
político1, o qual, por seu turno, contribuiu para suscitar a investigação
sobre as categorias sociais envolvidas na teia de relações que lhe estavam
associadas. O estudo dos poderes e das elites na época moderna foi a
sequência normal desse trajecto de pesquisa2, que, ao dilatar-se no tempo,
permitiu surpreender algumas das notáveis continuidades que se ve-
rificam na sociedade portuguesa ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Mas, também, destacar descontinuidades. Em primeiro lugar, natural-

1 É uma parcela significativa dos estudos realizados sobre o assunto que se publica
na II parte deste livro.
2 Cf. os primeiros quatro textos da I parte deste livro.

13
Elites e Poder

mente, aquela que, contra uma persistente tradição historiográfica, se


deve reconhecer na maior ruptura institucional e política da história por-
tuguesa, consubstanciada na revolução liberal vitoriosa em 1832-1834.
Em seguida, dentro embora das matrizes institucionais remotas que
balizam algumas das marcas peculiares do Antigo Regime em Portugal,
foi igualmente possível identificar um diverso equilíbrio de poderes e
distintas modalidades de circulação das elites quando se consolidou a
dinastia nascida da sedição de 1640. De alguma forma, as dimensões
analisadas conferem uma apreciável unidade ao período estudado. E abrem
novas perspectivas para investigações já em curso.
Naturalmente, as exigências de espaço do editor e as próprias impo-
sições de legibilidade e coerência conduziram à escolha, de entre o con-
junto dos textos editados e outros inéditos, daqueles que aqui se apresen-
tam. Desde logo, excluíram-se os estudos já publicados em livros com
ampla difusão editorial3. Também trabalhos com significativa relevância
no trajecto do autor, mas que, pelo menos em parte, se podem conside-
rar ultrapassados pelas investigações ulteriores4. De igual modo, deixa-
ram-se de lado textos sobre temas (como os comendadores das ordens
militares ou os governadores do império colonial) que virão a ser objec-
to de trabalhos mais desenvolvidos do que aqueles até agora publica-
dos5, ou que, como aqueles que se reportam à história dominantemente

3 Em particular, Nuno Gonçalo F. Monteiro, «Concelhos e comunidades» e «Poder


senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia», in História de Portugal, dir. de José
Mattoso, 4.º vol., O Antigo Regime (1620-1807), coord. de António M. Hespanha,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1993 (coord.), «Os poderes locais no Antigo Regime»,
in César Oliveira (dir.), História dos Municípios e do Poder Local em Portugal
(Dos Finais da Idade Média à União Europeia), Lisboa, Círculo de Leitores e
Temas e Debates, 1996, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da
Aristocracia em Portugal (1750-1850), Lisboa, Imprensa Nacional, 1998, e «Aristo-
cratic succession in Portugal (16th-19th centuries)», in João Pina Cabral e Antónia
Pedroso de Lima (dir.), Elites. Choice, Leadership and Sucession, Oxford, Berg,
2000.
4 Refiro-me, em particular, a Nuno G. Monteiro, «Notas sobre nobreza, fidalguia e
titulares nos finais do Antigo Regime», in Ler História, n.º 10, 1987.
5 Temas que têm sido estudados em projectos de investigação conjunta nos quais
têm participado Mafalda Soares da Cunha, Fernando Dores Costa e Pedro Cardim.

14
Introdução

política, constituem terreno de futuros projectos de trabalho6. Com crité-


rio editorial, seguiu-se o de respeitar escrupulosamente as edições origi-
nais, suprimindo-se apenas um ou outro lapso ou repetição de texto. As
referências bibliográficas ulteriores foram assinaladas de forma desta-
cada7.
Seria demasiado extenso enumerar todas as pessoas e instituições às
quais devo agradecimentos. Limitar-me-ei, por isso, a salientar aquelas que
de forma directa contribuíram para a produção deste volume. À Imprensa
de Ciências Sociais, na pessoa do Doutor António Barreto, que aceitou
promover a sua publicação. Às Dr.as Ana Fernandes Pinto e Zélia Perei-
ra, que me auxiliaram na fixação e revisão dos textos. E, por fim, à Isa-
bel dos Guimarães Sá pelos seus comentários críticos.
Poucos anos volvidos depois da primeira edição, este livro esgotou.
Nesta reedição houve apenas a preocupação de se corrigirem alguns lap-
sos da edição original, pelo que se contou com a colaboração de Maria
Inês Versos, a quem se agradece.

Gostaria de dedicar este livro à memória de minha mãe.

Lisboa, Março de 2007

Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

6 Estão nesse caso, entre outros, Nuno G. Monteiro, «Societat rural i actituds políti-
ques a Portugal (1820-1834)», in J. M. Fradera, J. Millan e R. Garrabou (eds.), Carlisme
i moviments absolutistes, Eumo Editorial, Girona, 1990, «Identificação da política sete-
centista. Notas sobre Portugal no início do período joanino», in Análise Social, n.º 157,
2001, e «Pombal, a monarquia e as nobrezas», in Actas do Colóquio sobre o Marquês de
Pombal, Pombal/Oeiras, Câmaras Municipais de Oeiras e de Pombal, 2001.
7 Só se acrescentaram títulos mais recentes quando tal se julgou estritamente indispen-
sável, assinalando-se essas notas com [ ], de forma a destacarem-se das restantes.

15
I Parte

ELITES E PODERES
1. MONARQUIA, PODERES LOCAIS E CORPOS
INTERMÉDIOS NO PORTUGAL MODERNO
(SÉCULOS XVII E XVIII)*

1. Com esta minha intervenção pretendo, em primeiro lugar, sinteti-


zar as recentes contribuições da historiografia sobre os poderes locais e
intermédios e, em seguida, destacar quais possam ser as singularidades
portuguesas nesse terreno e quais as suas implicações, designadamente,
no período que vai de 1640 a 1807. O objectivo principal não é, assim, o
de delimitar as etapas da centralização ou de identificar os seus limites.
Acima de tudo, pretendo salientar especificidades históricas portuguesas
e explicá-las. No essencial, vou retomar, resumir e sistematizar argu-
mentos apresentados em anteriores trabalhos1.

* Originariamente publicado, em versões parcialmente diversas, em Nuno G. Mon-


teiro, «Poder local e corpos intermédios: especificidades do Portugal moderno numa
perspectiva histórica comparada», in Luís Espinha da Silveira (coord.), Poder Central,
Poder Regional, Poder Local. Uma Perspectiva Histórica, Lisboa, 1997, pp. 47-61, e
«Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno (séculos XVII e
XVIII)», in Centralização e Descentralização na Península Ibérica, Actas dos IV Cursos
de Verão de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1998, pp. 113-123.
1 Retomam-se aqui argumentos anteriormente apresentados nos seguintes textos:
Nuno G. Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oliveira (dir.),
História dos Municípios e do Poder Local em Portugal (Dos Finais da Idade Média à
União Europeia), Lisboa, 1996, e «Cultural miths and Portuguese national identity», in
António C. Pinto (ed.), Modern Portugal, Palo Alto, 1997, pp. 206-217 (com António
Costa Pinto).

19
Elites e Poderes

2. A discussão do tema proposto deve fazer-se num quadro proble-


mático bem definido, delimitando um conjunto de perspectivas que con-
dicionam as formas de abordar o mesmo.
O debate sobre o problema da centralização remete sempre para as
relações de um centro institucional com outros pólos, geralmente repu-
tados periféricos. Nos textos das ciências sociais, «centro» e «periferia(s)»
são expressões que se vulgarizaram para designar, não necessariamente
espaços geográficos circunscritos, mas, por um lado, a «zona central»,
onde se definem os símbolos, valores e crenças «que governam a socie-
dade», e, por outro, as grandes massas da população que se encontram
mais ou menos distanciadas desse centro2. Se falamos de «centro» para
designar o conjunto das instituições centrais das monarquias modernas,
deve sublinhar-se que se trata apenas de uma conveniência de lingua-
gem, pois não existia necessariamente uma actuação concertada entre
esses diferentes órgãos e, no caso português, nem sequer se pode falar,
até meados do século XVIII, da existência de «governo», no sentido
moderno da expressão. A sociedade sobre a qual falamos possuía um
centro, o qual se identificava com o rei, ou com as instituições e perso-
nagens que lhe davam corpo. Daqui não se deve inferir, porém, que esse
centro se relacionava com o conjunto da sociedade de forma análoga à
dos nossos dias, ou seja, de acordo com os atributos inerentes à noção
liberal e contemporânea do Estado-nação. Mas também não podemos
negar, por outro lado, que alguns dos instrumentos fundamentais, desig-
nadamente jurídicos, dos Estados contemporâneos se começaram a dese-
nhar no período em análise. Desta dupla constatação têm resultado duas
perspectivas, em muitos casos contrapostas, outras vezes complementa-
res, sobre as formas peculiares de organização e exercício dos poderes
do Ocidente no período «moderno».
Numa primeira perspectiva, o eixo da análise é colocado na transição
para as formas contemporâneas de organização do poder político, o que
quer dizer que a época moderna é analisada na óptica da formação dos
referidos Estados-nações europeus. A ênfase pode ser conferida, por
exemplo, aos mecanismos de interiorização da disciplina, ao recalca-
mento das pulsões e à gradual domesticação dos comportamentos indi-

2 Cf., por exemplo, Edward Shils, Centro e Periferia, Lisboa, 1992.

20
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

viduais violentos (o «processo de civilização»3), ou, alternativamente,


aos processos de acumulação de recursos em riqueza e força militar4.
Permanece como ponto comum, em todo o caso, o acento tónico na
mudança e na transição e o horizonte do Estado-nação como meta de
chegada.
Um outro ponto de vista é aquele que procura estudar as instituições
de Antigo Regime como um sistema estável e coerente, sublinhando
sobretudo a sua diferença face às do Ocidente contemporâneo. Em
alguns casos, rejeita-se enfaticamente o uso da palavra «Estado» para
lidar com os universos institucionais estudados5, embora isso não seja
obrigatório.
Outro tópico de reflexão e de investigação tem sido o problema das
identidades nacionais. Contra as perspectivas mais tradicionais, que ten-
diam a projectar num tempo remoto a existência das nações, diversos tra-
balhos dos anos 80 acentuaram a dimensão contemporânea dos fenóme-
nos nacionais 6 . Também entre nós, em contraposição a uma pertinaz
herança nacionalista, se procurou realçar o carácter plural dos sentimen-
tos de pertença no Antigo Regime7. No entanto, sob o impacto da revi-
vescência nacionalista no Leste europeu dos anos 90, estudos recentes
têm vindo a acentuar, pelo menos, as raízes medievais e modernas das
nações contemporâneas. Estes pontos de vista obtiveram eco em Portu-

3 Cf. Norbert Elias, A Sociedade de Corte (concluído em 1933), Lisboa, 1987, e La


dynamique de l’Occident (l.ª ed., 1939), Paris, 1975 (existe tradução portuguesa).
4 Cf., por exemplo, as propostas de Charles Tilly (dir.), The Formation of National
States in Western Europe, Princeton, 1975, e Coercion, Capital, and European States,
AD 990-1990, Oxford, 1990.
5 Cf., entre outros, os diversos trabalhos de Bartolomé Clavero, como Tantas Perso-
nas como Estados. Por Una Antropologia Politica de la Historia Europea, Madrid,
1986, os de Pablo Fernandez Albaladejo, designadamente os reunidos em Fragmentos
de Monarquia, Madrid, 1994, e, entre nós, os de António M. Hespanha, adiante citados.
6 Cf., em especial, dois textos dos quais existem edições portuguesas: Ernest Gell-
ner, Nations and Nationalism, Oxford, 1983; Eric J. Hobsbawm, Nations and Na-
tionalism since 1780, Cambridge, 1990.
7 Cf. Ana Cristina Nogueira da Silva e António M. Hespanha, «A identidade portugue-
sa», in História de Portugal, dir. de José Mattoso, 4.º vol., O Antigo Regime (1620-
-1807), coord. de António M. Hespanha, Lisboa, 1993, pp. 18-37.

21
Elites e Poderes

gal, conduzindo a uma revalorização das teses tradicionais sobre a exis-


tência remota da nação8.
Por fim, importa não esquecer que uma análise dos poderes periféri-
cos e intermédios no Antigo Regime, se é verdade que contribui em lar-
ga medida para discutir aspectos da evolução histórica ulterior, não é
menos certo que se revela indispensável para uma correcta caracteriza-
ção da forma dos conflitos institucionais e políticos no período moderno
tardio, ou seja, quando sob o impacto da «centralização» seiscentista os
poderes corporativos se debilitam, sem desaparecerem completamente.
Uma vez mais, trata-se de saber até que ponto existem peculiaridades
portuguesas nesse terreno.

3. Com uma cronologia variável de uns países para os outros, os


espaços políticos locais e os poderes corporativos tradicionais começa-
ram a ser postos em causa antes mesmo da plena consagração das for-
mas contemporâneas do Estado-nação oitocentista. No entanto, se os
problemas que se devem discutir quando se estuda a realidade portugue-
sa não divergem apreciavelmente dos de outras monarquias europeias,
importará saber até que ponto existirão singularidades portuguesas, tal
como se sugere em muitos dos escritos sobre o tema.
Na viragem do século XV para o XVI duas grandes inovações nos
surgem no plano político e institucional. Uma é a estabilização e supre-
macia das grandes monarquias europeias. A outra é o fim da unidade
religiosa da Europa ocidental e da supremacia do papado, o fim da res-
publica cristiana, pois mesmo nas monarquias católicas se acentua o
controlo sobre as suas igrejas. De facto, definem-se e estabilizam-se
então a maior parte das grandes unidades políticas europeias (Inglaterra,
Espanha, França, Sacro Império e, em meados do XVI, Rússia), bem
como boa parte das mais pequenas, aliás, com raízes anteriores (Portu-
gal, Dinamarca, só depois a Suécia e muito mais tarde a Holanda).
A competição entre elas determinará, de resto, uma lógica de concentra-
ção de unidades políticas anteriormente existentes, muito variáveis

8 Cf. uma excelente síntese da principal bibliografia portuguesa sobre o assunto, mas
reabilitando as teses tradicionais sobre a nação em Portugal em: José Manuel Sobral,
«Nações e nacionalismo. Algumas teorias recentes sobre a sua génese e pertinência na
Europa (ocidental) e o caso português», in Inforgeo, n.º 11, 1996, pp. 13-41.

22
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

quanto à sua origem e forma. O modelo dominante, porém, será o das


monarquias ou dos «Estados dinásticos», que se devem distinguir clara-
mente dos referidos «Estados-nações»9. Com efeito, embora a sua acção
pudesse corroer, em vários momentos, o legado dos séculos, o sentido
de actuação das monarquias europeias até finais do século XVII não era a
centralização, mas o reconhecimento inequívoco da sua autoridade dinás-
tica, a garantia da sua perpetuação no tempo e a aquisição dos meios
financeiros, administrativos e militares para a impor na cena internacio-
nal (Estado dinástico e burocracia). No entanto, o lançamento de impos-
tos e o recrutamento da tropa foram quase sempre, ao longo do período
moderno, os problemas mais difíceis de resolver pelas monarquias e, por
isso, poderosos factores de mudança institucional.
Entre o início do século XVI e os finais do século XIX a Europa pas-
sará de muitas centenas de unidades políticas para cerca de duas deze-
nas. Ao longo do período considerado, onde há importantes rupturas, em
especial no trânsito do século XVII para o século XVIII, a maioria das
monarquias europeias foram, para retomar a expressão de J. H. Elliot,
«monarquias compósitas», isto é, que integravam sob a vinculação a
uma mesma dinastia reinante territórios com diversa história e com uma
existência anterior enquanto entidades políticas autónomas 10 . Acresce
que, em muitos casos, esses distintos países ou reinos mantiveram ainda
durante séculos instituições próprias, mesmo quando abrangidos por
uma mesma fidelidade dinástica. Ao contrário do modelo oitocentista,
pois «la nacion estado del XIX era monopolista: reclamaba lealtad en
exclusiva y no tenía sitio para las lealtades múltiples de un valenciano o
de um galés»11. Apesar das mudanças relevantes que se introduziram no
século XVII ou no início do século XVIII, formas variáveis de diversidade

9 V., em particular, as reflexões, tomando em boa medida como ponto de partida R.


J. Bonney, The European Dynastic States (1494-1660), Oxford, 1991, de Pierre Bour-
dieu, «De la maison du roi à la raison d’État», in Actes da la recherche en sciences so-
ciales, n.º 118, 1997, pp. 55-68.
10 Cf. J. H. Elliot, «A Europe of composite monarchies», in Past and Present,
n.º 137, 1992, pp. 48-71.
11 Conrad Russel, «Gran Bretaña a comienzos del siglo XVII: monarquía compuesta y
reino múltiple», in C. Russel e José Andrés-Gallego, Las Monarquias del Antiguo Régi-
men, Monarquias Compuestas?, Madrid, 1996, p. 32, livro consagrado precisamente, como o
título indica, ao tema das monarquias compósitas.

23
Elites e Poderes

e pluralismo institucional persistiram em França, em Espanha ou na


Grã-Bretanha ainda no decorrer do século XVIII. As mutações já concre-
tizadas tinham-se defrontado com resistências de várias formas de poder
intermédio ou regional e não deixariam de constituir um foco de ulterio-
res tensões.
No século XVII, todas as principais monarquias europeias eram, por-
tanto, «monarquias compósitas». Neste terreno, Portugal constituía, sem
dúvida, um caso singular. Era um reino, construído através da (Re)com-
quista e, como tal, dotado de uma invulgar homogeneidade institucional,
porque nunca coagido a respeitar a identidade de corpos políticos
preexistentes e ainda por outras circunstâncias, que adiante se discuti-
rão. Um dos legados dessas origens e dessa história era, precisamente, a
inexistência tendencial de «corpos políticos intermédios» entre o centro
e a esfera local. Além disso, apenas durante o período da união dinástica
com Castela (1580-1640) se integrou numa «monarquia compósita»,
que até tarde respeitou as suas instituições próprias, e da qual se conse-
guiu subtrair com êxito. Terá representado, de resto, o último caso de
secessão bem sucedido na Europa moderna12. Finalmente, era a cabeça
de um desproporcionado império colonial, que fornecia à coroa portu-
guesa recursos financeiros largamente independentes da pressão tributá-
ria sobre o interior do território13. Com alguma ironia e algum excesso,
Charles Tilly estabeleceu a esse respeito uma comparação sugestiva: «A
situação de Portugal [...] assemelhava-se à dos actuais Estados produto-
res de petróleo: as receitas fáceis davam aos seus dirigentes uma ampla
autonomia em relação à população que governavam, mas tornavam-nos
dependentes desse fluxo contínuo de rendimentos e daqueles que os
produziam14.»

12 Cf. Elliot, op. cit., p. 68.


13 Cf. Vitorino Magalhães Godinho, «Finanças públicas e estrutura do Estado»
(1965), reed. in Ensaios II, 2.ª ed., Lisboa, 1978, e A. Hespanha, As Vésperas do Levia-
than. Instituições e Poder Político. Portugal − Século XVII, Lisboa, 1986, vol. I, pp. 163-
-221, e «A fazenda», in História de Portugal, dir. de José Mattoso, 4.º vol., O Antigo
Regime (1620-1807), coord. de António M. Hespanha, Lisboa, 1993, pp. 203-239.
14 C. Tilly, «Entanglements of European cities and states», in C. Tilly e W. P.
Blockmans, Cities and the Rise of States in Europe 1000 to 1800, Oxford, 1994, p. 21
(trad. do autor).

24
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

Portugal não constituía, assim, uma «monarquia compósita». Tirando


o período dito filipino e os derradeiros anos que antecederam a indepen-
dência do Brasil15, a monarquia coincidiu sempre com o reino, apoiada
nos proventos das suas «conquistas», embora o estatuto destas mereça
ser repensado 16 . Uma realidade pouco comum na Europa do tempo.
A esta acresce ainda outra marca peculiar. Com excepção, precisamente,
das que tiveram lugar nos últimos anos antes de 164017, não se conhe-
cem grandes revoltas entre os finais do século XV e os inícios do XIX
e, menos ainda, rebeliões com um acentuado cunho regional, étnico ou
religioso. A monarquia portuguesa nunca teve, desta forma, de se de-
frontar com desafios que foram muito comuns nas suas congéneres euro-
peias.
As questões que antes se enunciaram são fundamentais para uma
adequada contextualização das relações entre o centro e as periferias no
caso português, ao mesmo tempo que aquelas podem em parte ser escla-
recidas nesses terrenos de análise.

4. Como tem sido diversas vezes sublinhado, as imagens prevalecentes


no discurso político e na cultura contemporânea portuguesa acentuavam a
«precoce centralização» como uma marca singular da história portugue-
sa. Essa caracterização remontava muito para lá da legislação assumi-
damente centralizadora da revolução liberal mouziniana18, mergulhando

15 O Brasil foi elevado a reino pela carta de lei de 16 de Dezembro de 1815; sobre o
contexto da sua publicação, cf. Valentim Alexandre, Os Sentidos do Império. Questão
Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português, Porto, 1993, pp. 336
e segs.
16 [Tanto a forma como se fez a integração do Brasil na monarquia restaurada (cf.,
entre outros, C. Boxer, Salvador Correia de Sá and the Struggle for Brazil and Angola
1602-1686, Londres, 1952, e Evaldo Cabral de Mello, Olinda Restaurada. Guerra e
Açúcar no Nordeste, 1630-1654, 2.ª ed., Rio de Janeiro, 1998) como as ulteriores dinâ-
micas imperiais desta merecem uma reflexão muito mais alargada (cf., a esse respeito,
algumas das propostas contidas em J. Fragoso, M. F. Bicalho e F. Gouveia (orgs.), O Anti-
go Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII) (pref. de
A. J. R. Russel-Wood), Rio de Janeiro, 2001).]
17 Cf., sobre o assunto, a síntese de António de Oliveira, Poder e Oposição Política
em Portugal no Período Filipino, Lisboa, 1991.
18
Cf. Miriam Halpern Pereira (coord.), Obras de Mouzinho da Silveira, 2 vols.,
Lisboa, 1989, e, apesar das reservas que se podem colocar a algumas das interpretações

25
Elites e Poderes

as suas raízes no período medieval. Associada à prematura estabilização


das fronteiras do reino, a referida tese desembocava na ideia da existên-
cia imemorial da nação, assumida em moldes similares aos do período
contemporâneo, e legitimava a sua identificação inequívoca já no perío-
do medieval.
As raízes desta imagem são remotas, mas parece indiscutível que foi
Alexandre Herculano quem mais contribuiu para a difundir, até porque
foi quase sempre reivindicado por todos os diversos e contrapostos qua-
drantes dos vários espectros políticos. Para Herculano, se «o elemento
monárquico não surgiu repentinamente nos fins do século XV», foi nessa
época que definitivamente se viu «a administração do estado nascer so-
bre as ruínas das administrações do município e do senhorio quase feu-
dal, tudo por influência da coroa»19.
A tese de Herculano fez escola tanto nas correntes conservadoras
(em especial, nas influenciadas pelo integralismo lusitano) como nas
democráticas, as quais mutuamente se responsabilizaram pela dita centra-
lização. Até há bem pouco tempo, a omnipresença da coroa, a ideia da
centralização precoce (ou o paradigma da centralização contínua e inter-
minável, pois era um processo cujos inícios se chegaram a localizar no
século XIII20), a utilização dos conceitos de Estado e de nação num senti-
do quase contemporâneo para falar da história portuguesa desde os finais
da Idade Média, constituíam património comum dos historiadores por-
tugueses, quase sem excepção.
No entanto, a historiografia recente, datada sobretudo dos anos 80 do
século XX, veio pôr frontalmente em causa essas ideias recebidas. Duas
obras foram especialmente relevantes nessa viragem, que se pode consi-
derar, indiscutivelmente, uma das mais importantes da investigação
histórica portuguesa nas últimas décadas. Nos trabalhos de António Hes-
panha21 pode encontrar-se uma crítica sistemática da imagem da centra-

propostas, António P. Manique, Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração


Pública, Lisboa, 1989.
19
Opúsculos, IV (reed. de J. Custódio e J. M. Garcia), Lisboa, 1985, p. 232.
20
Cf., por exemplo, José Hermano Saraiva, A Evolução Histórica dos Municípios
Portugueses, Lisboa, 1957.
21
Cf. António Manuel Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval e
Moderna, Coimbra, 1982, Savants et rustiques. La violence douce de la raizon juridi-

26
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

lização precoce e da projecção retrospectiva da noção contemporânea de


Estado, em nome da prevalência ao longo do período moderno de um
modelo corporativo na representação da sociedade e, simultaneamente,
dos escassos meios de que o centro político, ou seja, a coroa, podia dis-
por. De resto, em vários dos seus estudos todos os argumentos invoca-
dos visam reforçar a ideia da vitalidade dos poderes periféricos, nos
quais também teriam lugar os poderes senhoriais e as identidades pro-
vinciais. Por sua vez, nas obras de Joaquim Romero Magalhães acen-
tuou-se a vitalidade e autonomia dos corpos políticos locais, contra as
pretensões de um absolutismo proclamado pela coroa e os seus agentes
desde finais da Idade Média22. Neste caso, porém, os interlocutores do
poder central seriam apenas e só as câmaras, afirmando a esse respeito
que «em Portugal havia no Antigo Regime apenas duas autoridades polí-
ticas: o rei e as câmaras»23. De facto, ao mesmo tempo que valoriza o
poder municipal, o autor citado sublinha a sua dimensão anti-regional.
Terá sido assim, na historiografia recente, o primeiro a destacar enfati-
camente este último aspecto. Posteriormente, a multiplicação de estudos
monográficos, cuja quantidade e qualidade devem ser sublinhadas, veio
reforçar as orientações gerais desta relevante viragem historiográfica24.

que, sep. Ius commune, X, 1983, L’espace politique dans l’ancien régime, sep. de Estu-
dos em Homenagem dos Professores Manuel Paulo de Merêa e Guilherme Braga da
Cruz, I, Coimbra, 1983, Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime (ed. e int.),
Lisboa, 1984, «Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime», in
Ler História, n.º 8, 1986, e As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político.
Portugal − Século XVII, 2 vols., Lisboa, 1986.
22 Cf. Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773 (tese, mimeo.,
1984), Lisboa, 1988, e «Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade
colonial portuguesa», in Revista de História Económica e Social, n.º 16, 1986, Maria
Helena Coelho e Joaquim Romero Magalhães, O Poder Concelhio: das Origens às Cor-
tes Constituintes, Coimbra, 1986, e J. Romero Magalhães, «As estruturas sociais de
enquadramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos», in Notas
Económicas, n.º 4, 1994.
23 «Reflexões...», cit., p. 19.
24 Sínteses desta vasta produção podem encontrar-se em Nuno Gonçalo Monteiro,
«Concelhos e comunidades», in História de Portugal, dir. de José Mattoso, 4.º vol.,
O Antigo Regime (1620-1807), coord. de António M. Hespanha, Lisboa, 1993, pp. 302-
-331, e «Os poderes locais no Antigo Regime» (coord.), in César Oliveira (dir.), Histó-
ria dos Municípios…, cit., pp. 16-175.

27
Elites e Poderes

5. Em boa medida, a vitalidade dos poderes locais, salientada pela


historiografia recente, não constitui uma singularidade histórica portugue-
sa. O mesmo poderia dizer-se de outras unidades políticas e de outros
contextos.
No entanto, é minha intenção insistir na ideia de que existiram algu-
mas singularidades da monarquia portuguesa moderna nestas matérias,
cujas implicações se estendem até ao presente. Em termos gerais, essa
especificidade resulta da já referida escassa importância dos corpos po-
líticos intermédios e da sua quase nula expressão territorial. Não se trata
apenas da inexistência de instâncias autárquicas regionais a marcarem a
singularidade portuguesa. É possível estender essa caracterização ao
conjunto dos «corpos intermédios», quer dizer, à totalidade dos corpos
que à escala do reino se situavam entre o centro e a escala (micro) lo-
cal25.
Quando falamos de poderes intermédios, temos presente o sentido que
lhes atribuía Montesquieu quando afirmava que «os poderes intermédios
subordinados e dependentes constituem a natureza do governo monárqui-
co», a garantia das suas «leis fundamentais» e aquilo que as impedia de
resvalarem para o despotismo26. Apesar de a centralização administrativa
ter sido iniciada pela monarquia absoluta, o despoletar do processo da
Revolução Francesa, que a veio completar, seria indissociável, de acor-
do com a clássica interpretação de Tocqueville27, da existência desses
corpos intermédios («a revolta dos parlamentares»). Trata-se, pois, de
uma questão decisiva para a história do Antigo Regime, da revolução e
de toda a época contemporânea portuguesa.

25 A primeira versão desta parte do texto serviu de base à elaboração da alínea


«A debilidade dos corpos intermédios e o inexistente regional», in César Oliveira (dir.),
História dos Municípios…, cit., pp. 113-118.
26 Cf. Montesquieu, De l’esprit des lois (1748), Paris, 1979, livro II, cap. 4.º
27 Cf. Alexis Tocqueville, L’Ancien Régime et la révolution (1856), Paris, 1975
(existe tradução portuguesa).

28
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

6. Essa realidade decorria, em primeiro lugar, de uma herança remo-


ta, datável do período medieval 28 . Nesse terreno, algumas das ideias
tradicionais não são totalmente destituídas de fundamento, embora se
lhes tenham conferido implicações inaceitáveis.
O território continental da monarquia não crescera através da assimi-
lação de comunidades territoriais autónomas, mas sim por via da con-
quista, terminada no essencial no século XIII, constituindo desde então
Portugal uma entidade política dotada de fronteiras estáveis. Sendo esse
facto bem conhecido, não deixa de se revelar essencial. Era um reino
dotado de uma invulgar homogeneidade institucional, como se disse.
Desde finais do século XV que uma rede concelhia, sujeita a formas de
organização relativamente uniformes constantes das Ordenações (que se
estendia mesmo às terras senhoriais), cobria todo o território. No caso
português, os interlocutores do poder central seriam sobretudo as câma-
ras, como tem afirmado em primeira mão, e talvez com algum excesso,
J. Romero Magalhães29.

7. Apesar do que antes afirmei, parece-me que até à Restauração de


1640 existiam alguns focos de poder que se poderiam ter estruturado
como corpos intermédios e dado lugar a instituições próprias com algu-
ma dimensão territorial. Refiro-me, designadamente, a alguns poderes
senhoriais, em especial à casa de Bragança.
De facto, no rescaldo dos grandes conflitos do século XV, a única
casa senhorial efectivamente grande, com enormes clientelas provinciais
e com um poder territorial amplo e efectivo dentro do reino, era a de
Bragança30, o que, de resto, se torna patente, por exemplo, nas revoltas

28 A herança medieval, na dupla vertente da diversidade e da «composição», consti-


tui precisamente o tema central da obra mais difundida da historiografia do período es-
crita nas últimas décadas, o livro de José Mattoso, Identificação de Um País. Ensaio
sobre as Origens de Portugal 1096-1325, 2 vols., Lisboa, 1985.
29 Op. cit.
30 Cf. Mafalda Soares da Cunha, «Práticas do poder senhorial à escala local e regio-
nal (fins do século XV a 1640)», in César Oliveira (dir.), op. cit., pp. 143-153, e, sobretu-
do, As Redes Clientelares da Casa de Bragança (1560-1640), dissertação de doutora-
mento, mimeo., Évora, 1997 [Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança (1560-
-1640). Práticas Senhoriais e Redes Clientelares, Lisboa, 2000].

29
Elites e Poderes

dos últimos anos dos Áustria31. Ora, até à Restauração, o maior senhor
do reino, o duque de Bragança, nunca vivera de forma permanente na
corte, fosse ela em Lisboa ou em Madrid, mas nos seus «estados» de
Vila Viçosa. A casa de Bragança detivera sempre poderes e recursos
excepcionais, que os seus panegiristas tardios apresentavam como uma
antecipação da sua vocação para a realeza: «Conservaram sempre os
Duques a magnificência e estado da Casa Real no aparato, nos ofícios,
nas assistências, e qualidades dos criados: faziam fidalgos com o mesmo
foro, e privilégios da Casa Real, proviam muitas Comendas, Ouvidorias,
Judicaturas, e grande número de Igrejas, e benefícios, de sorte que não
faltava ali mais que o nome de Rei, de que Castela os privara, e se lhes
restituiu o primeiro de Dezembro de mil seiscentos e quarenta anos32.»
Aliás, a maior parte dos titulares não residia regularmente em Lisboa no
alvorecer de Seiscentos. Para tomarmos apenas um indicador de conjun-
to, sabemos que numa relação datável dos primeiros anos do século
XVII33 se identificam 27 senhores de casas titulares portuguesas, indi-
cando-se a casa-residência de 2134. Pois bem, destes, apenas cinco resi-
diam em Lisboa e mais dois em Cascais e Azeitão, quase tantos como
em Évora e outras terras alentejanas, menos do que noutras terras do
reino e ilhas. Nos últimos tempos da monarquia dual, a política delibe-
rada de Madrid conseguiu atrair para lá parte significativa da primeira
nobreza do reino, que por alturas de 1640 aí residia35. Ao todo, cerca de
metade dos titulares e grande número de senhores de terras e comenda-
dores encontravam-se então fora de Portugal 36 . Embora sem carácter
exaustivo, os elementos referidos são mais do que suficientes para que
se possa afirmar que no início do século XVII o padrão de residência dos
titulares e senhores de terras-futuros titulares portugueses se pautava

31 Cf., entre outros, António de Oliveira, op. cit.


32 Villas Boas de Sampayo, Nobiliarchia portuguesa, Lisboa, 1676.
33 Cf. BNL, FG, cód. n.º 7641, fls. 52 e segs. Na medida em que se mencionam os
condes de Ficalho (castelhanos), título de 1599, mas não os posteriores, a dita relação
terá sido elaborada por volta de 1600.
34 Refere-se geralmente, para além do título, a casa-linhagem, os estados-senhorios,
a casa-residência e a renda de cada titular.
35 Cf. A. Oliveira, op. cit., sobretudo pp. 234-235.
36 Cf. A. A. Dória, nota D, in Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado,
nova ed., Porto, s. d., pp. 488-489.

30
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

pela dispersão. Alguns residiam em Lisboa, outros em Évora, muitos


nas sedes dos seus «estados» e um número crescente em Madrid nas
vésperas da Restauração.
Com a Restauração desapareceram muitas casas nobiliárquicas, por
permanecerem fiéis aos Áustria ou de tal terem vindo a ser acusadas.
Entre estas contava-se boa parte das que em grandeza e preeminência se
seguiam à de Bragança. As suas muito hipotéticas concorrentes ao longo
do século XVI foram decapitadas quase de imediato (casa de Vila Real),
ou passaram por grande instabilidade, por uma primeira extinção e,
depois, pela supressão final (casa de Aveiro37). Ora, a verdade é que a
nova dinastia não elevou a semelhante estatuto e dimensão nenhuma
outra casa nobiliárquica. Tal podia ter ocorrido com a casa do Infantado,
que inicialmente deveria permanecer na linha do infante D. Pedro 38 ,
mas, como este veio a reinar, essa hipótese não teve sequência. Por
outras palavras, a dinastia de Bragança nunca consentiu na existência de
alguma coisa semelhante ao que fora a casa de Bragança nos duzentos
anos anteriores. A primeira casa da nova dinastia (duques do Cadaval)
situava-se, em dignidades, privilégios e rendas, a enorme distância. De
resto, no fim do terceiro quartel de Seiscentos a mudança é absoluta-
mente radical: todos os titulares, como a maioria dos senhores de terras
e comendadores, deveriam residir em Lisboa.
De facto, se houve alargamento dos territórios de senhorio leigo veri-
ficado até 1640, foi exactamente o inverso o que ocorreu no século e
meio subsequente 39 . Nesse período (posterior a 1640), os poderes
senhoriais nunca se configuraram como pólos de resistência e de produ-
ção de identidade com um mínimo de relevância. Tal facto resulta de
diversos factores, entre os quais: a sua escassa concentração territorial;
as atribuições limitadas; a diminuição da sua extensão absoluta; a con-
centração dos senhores leigos na corte; os modelos de administração

37 Cf. a síntese de Francisco Ferreira das Neves, A Casa e Ducado de Aveiro. Sua
Origem, Evolução e Extinção, Aveiro, 1972.
38 Cf. Maria Paula Marçal Lourenço, A Casa e Estado do Infantado 1654-1706, Lis-
boa, 1995, pp. 25 e segs. e 239-240.
39 Cf. Nuno G. Monteiro, «Os senhorios», in César Oliveira (dir.), op. cit., pp. 51-55.

31
Elites e Poderes

patrimonial por eles praticados e o atrofiamento das respectivas cliente-


las40.
O mesmo pode dizer-se em relação aos poderes militares. A institu-
cionalização do sistema das ordenanças (1570) tendeu a «municipalizar»
o recrutamento militar, debilitando de forma significativa os poderes
militares dos senhores. É certo que funcionava mal e que os levantamen-
tos de homens feitos pelos grandes senhores se mantêm até ao século
XVIII (têm uma expressão exemplar na guerra da sucessão de Espanha) e
mesmo, muito pontualmente, nas invasões francesas 41 . Porém, nunca
ninguém detém duravelmente o controlo de uma província militar,
excepção feita ao caso formal dos condes de Miranda no Porto e ao
informal dos Távoras em Trás-os-Montes. Os comandos militares, com
a ressalva referida, nunca são vitalícios e hereditários, nem o levanta-
mento de homens obedece a uma lógica estável de controlo de uma casa
sobre uma região. É verdade que a sua actuação se estendia para além da
esfera estritamente militar e que, sobretudo nos casos dos governadores
do Porto e do Algarve, possuíam competências expressas em matérias
civis. Mas nunca parecem ter-se cristalizado como pólos autónomos e
duráveis de poder à escala regional.
A criação em 1582 do Tribunal da Relação do Porto (com jurisdição
de recurso a norte do Mondego42) poderia ter dado lugar a um corpo
político regional, pois os governadores da relação acumularam muitas
vezes tais atribuições com o governo militar e o ofício chegou a ser

40 Id., «O declínio do poder senhorial: câmaras e donatários (1640-1832)», in César


Oliveira (dir.), op. cit., pp. 153-161.
41 [Sobre o tema do recrutamento militar, v. os estudos fundamentais de Fernando
Dores Costa: «Os problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as ques-
tões da construção do Estado e da nação», in Análise Social, n.º 130, 1995, pp. 121-155;
«Condicionantes sociais das práticas de recrutamento militar (1640-1820)», in Actas do
VII Colóquio «O Recrutamento Militar em Portugal», Comissão Portuguesa de História
Militar, Lisboa, 1996, pp. 251-274; «O bom uso das paixões. Caminhos militares na
mudança do modo de governar», in Análise Social, n.º 149, 1998, pp. 969-1017, e
«Formação da força militar durante a guerra da Restauração», in Penélope, n.º 24, 2001,
pp. 87-119.]
42
Cf. Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o Seu Termo (1580-1640). Os Homens,
as Instituições e o Poder, 2.º vol., Porto, 1988, pp. 967-980.

32
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

doado em vidas à casa dos condes de Miranda do Corvo43. No entanto,


pela conjugação de diversos factores, a referida casa (depois elevada ao
marquesado de Arronches e ao ducado de Lafões) acabaria por perder o
dito ofício depois da Restauração. Outro aspecto igualmente decisivo foi
o facto de não ter existido a propriedade hereditária do ofício de desem-
bargador, obedecendo a carreira destes a um cursus honorum nos diver-
sos tribunais da monarquia, cujo ponto culminante devia terminar em
Lisboa. Curiosamente, uma das mais poderosas instituições do reino,
sediada no Porto, com um vasto corpo de funcionários e com alguns efec-
tivos poderes de âmbito regional, surgiria como produto do Antigo Regi-
me tardio em 1756: a Companhia das Vinhas do Alto Douro.
A nobreza, em geral, não constituía um grupo corporativo com uma
identidade forte, como a que eventualmente poderá ter constituído a
fidalguia no início do período moderno, pois foi sendo decisivamente
enfraquecida por um duplo processo de mutação: alargamento das fron-
teiras na base e contracção do topo com a constituição da elite dos Gran-
des, através dos títulos e distinções da monarquia. O Braço da Nobreza
em Cortes (que se reuniram pela última vez em 1697-1698) era muito
reduzido, convocado e não eleito, e constituído apenas pelos titulares,
(alguns) senhores de terras e alcaides-mores e pessoas com carta de con-
selho. Desde a Restauração que o número de titulares nos trinta do Bra-
ço da Nobreza em Cortes era progressivamente maioritário, residindo
todos eles em Lisboa e sendo englobados pelos vínculos da corte e, de
forma muito particular, pelo sistema das doações régias44. É claro que
em muitos momentos os Grandes, pelo seu peso no sistema dos conse-
lhos e tribunais da corte, controlaram os destinos da monarquia, mas não
enquanto grupo corporativo. Quanto à Igreja, embora muito esteja ainda
por estudar e o seu estatuto fosse claramente mais favorável do que o da

43
Cf., entre outros, João Carlos Feo C. B. Torres e visconde de Sanches Baêna,
Memórias historico-genealogicas dos duques portugueses do século XIX, Lisboa, 1883,
pp. 195 e segs.
44
Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, A Casa e o Património dos Grandes Portugueses
(1750-1832), tese de doutoramento, mimeo., Lisboa, FCSH-UN, 1995 [Nuno Gonçalo
Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da Aristocracia em Por-
tugal (1755-1832), Lisboa, 1998].

33
Elites e Poderes

nobreza45, pode sugerir-se que os seus múltiplos conflitos internos e a


forte tradição regalista portuguesa limitavam a esfera da sua resistência.
De facto, as competências específicas do Santo Ofício46 e a complexa
imbricação das diversas jurisdições eclesiásticas tornam mais difícil pro-
duzir afirmações taxativas. Em todo o caso, depois do pombalismo, a
sua identidade de corpo sofreu uma restrição decisiva. Mas, apesar de
tudo, Montesquieu considerava, poucos anos antes da ascensão do futu-
ro conde de Oeiras, que a Igreja era em Espanha e em Portugal o único
poder que travava o resvalar da monarquia para o despotismo.
Finalmente, não havia instituições provinciais, de raiz senhorial ou
outra, que como tal se assumissem em momentos de conflito. As instân-
cias intermédias entre o centro e o local (ou seja, as câmaras) eram dele-
gadas da coroa, quer dizer, magistrados nomeados por esta (corregedo-
res e provedores) ou, até 1790, numa parcela cada vez mais reduzida do
território, os senhores (ouvidores). O contraponto do centro eram os
poderes locais e, sobretudo, municipais. Aspecto que divergia fortemen-
te do que se passava em França, em Espanha e na generalidade das
monarquias europeias da época.
No mesmo sentido, é fundamental recordar que desde meados do
século XVIII não existiam em Portugal minorias étnico-culturais com
expressão visível. Desde a conversão forçada ou ordem de expulsão
decretada por D. Manuel, durante mais de dois séculos, o principal deli-
to de fé perseguido pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Por-
tugal foi o crime de «judaísmo», constituindo o problema político dos
«cristãos-novos», designação infamante transportada por todos os seus
sucessores, um dos mais relevantes e arrastados no tempo. Mas a verda-
de é que, durante o período do governo do marquês de Pombal, a distin-
ção entre «cristãos-novos» e «cristãos-velhos» foi definitiva e formal-
mente abolida, subsistindo depois apenas de forma residual.

45
Cf. Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquia Hispanica (1580-1640).
Filipe II, las Cortes de Tomar y Genesis del Portugal Catolico, dissertação de doutora-
mento, mimeo., 2 ts., Madrid, 1987, pp. 479-611.
46 Cf. o estudo comparado de Francisco Bethencourt, História das Inquisições. Por-
tugal, Espanha e Itália, Lisboa, 1994, sobretudo pp. 258-293.

34
Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal moderno

Uma instituição corporativa fundamental eram as Cortes. No entanto,


embora o tema do «declínio das Cortes» mereça uma larga discussão47,
a sua vitalidade enquanto expressão de corpos autónomos parece clara-
mente esmorecer na segunda metade de Seiscentos.
Em conclusão, desde a Restauração, pois antes o reino de Portugal
era de certa forma um corpo dentro da monarquia dual, a coroa portu-
guesa nunca teve de se defrontar com corpos dotados de forte entidade e
com expressão territorial, ao contrário de outras monarquias europeias.
As instituições com identidade institucional relevante (a começar pelos
tribunais centrais) não só se localizavam quase todas em Lisboa, como
eram abrangidas em larga medida pelas teias da sociedade de corte, diag-
nóstico que se aplica até a instituições que tiveram algum protagonismo
político, como a câmara da capital ou o respectivo «juiz do povo»48. Para
mais, Portugal era um reino onde a dicotomia entre a corte e as provín-
cias constituía uma realidade inquestionável, plenamente consagrada até
no vocabulário da legislação do século XVIII.

8. Depois da Restauração, sobretudo quando a dinastia se estabiliza


depois da crise de 1667 e da paz com a Espanha (1668), os poderes cor-
porativos, em geral, declinam na sociedade portuguesa. Charles Tilly
dirá: «Em Portugal, fortemente apoiado no comércio marítimo para as
receitas da coroa, vemos muito poucas instituições representativas de
qualquer tipo, excepto o concelho municipal de Lisboa49.» Ora, o papel
do «juiz do povo» e da câmara de Lisboa declinou claramente depois do
afastamento de Castelo Melhor em 1667.
A ausência de instituições regionais, o declínio do poder senhorial, a
erosão de todos os corpos intermédios, serão marcas distintivas da histó-
ria portuguesa no século XVIII. Dificilmente se pode descrever já a
monarquia como uma constelação de poderes, como fez António Hes-

47 Cf., entre muitos outros, Pedro Cardim, As Cortes de Portugal, Século XVII, dis-
sertação de mestrado, mimeo., Lisboa, 1992, pp. 77-88 [Pedro Cardim, Cortes e Cultura
Política no Portugal do Antigo Regime (pref. de A. M. Hespanha), Lisboa, 1998].
48 Cf. a síntese de Harry Bernstein, The Lord Mayor of Lisbon. The Portuguese
Tribune of the People and His 24 Guilds, Boston, 1989.
49 C. Tilly, Coercion..., cit., p. 62 (trad. do autor).

35
Elites e Poderes

panha, reportando-se ao século XVII50. Não se trata de sugerir a omni-


presença da coroa e da centralização ou, noutro sentido, de afirmar a
existência precoce de um sentimento nacional generalizado51. Mas de
reconhecer entre as marcas peculiares da realidade portuguesa do Anti-
go Regime tardio a escassa expressão política de qualquer tipo de cor-
pos, para além das instituições estritamente locais.

50 Cf. António Manuel Hespanha, As Vésperas do Leviathan..., cit.


51 Cf. J. Sobral, op. cit.

36
2. ELITES LOCAIS E MOBILIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
NOS FINAIS DO ANTIGO REGIME*

Os problemas e os contextos

Os municípios na recente historiografia portuguesa

Os estudos sobre a história dos municípios no período moderno veri-


ficaram-se em Portugal com considerável atraso em relação a outros
países. De facto, foi apenas uma historiografia muito recente, datada
sobretudo dos anos 80, que veio pôr frontalmente em causa as ideias
recebidas e sucessivamente retomadas do pensamento oitocentista sobre
o tema, designadamente o paradigma da centralização contínua e inter-
minável. Se nos trabalhos de António Hespanha52 se fez a crítica siste-
mática da imagem da centralização precoce e da projecção retrospectiva
da noção contemporânea de Estado, foi sobretudo nas obras de Joaquim
Romero Magalhães que se acentuou a vitalidade e autonomia dos corpos
políticos locais, associada directamente à sua natureza oligárquica53. Os

* Publicação original in Análise Social, n.º 141, 1997, pp. 335-368.


52 Cf., por todos, António Manuel Hespanha, As Vésperas do Leviathan. Instituições
e Poder Político. Portugal − Século XVII, 2 vols., Lisboa, 1986.
53 Cf., entre outros, Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773
(tese, mimeo., 1984), Lisboa, 1988, «Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a
sociedade colonial portuguesa», in Revista de História Económica e Social, n.º 16, 1986, e
«A sociedade portuguesa, séculos XVII e XVIII», in M. E. C. Ferreira (coord.), Reflexões
sobre a História e a Cultura Portuguesas, Lisboa, 1986, Maria Helena Coelho e Joa-

37
Elites e Poderes

dois autores citados contribuíram para desencadear uma viragem historio-


gráfica cuja importância se traduziu não apenas numa mudança das con-
cepções hegemónicas, mas também na proliferação de trabalhos mono-
gráficos que se estendem do Minho54 às ilhas atlânticas55, entre muitas
outras contribuições publicadas ao longo da última década56.

quim Romero Magalhães, O Poder Concelhio: das Origens às Cortes Constituintes,


Coimbra, 1986, e J. Romero Magalhães, «As estruturas sociais de enquadramento da
economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos», in Notas Económicas, n.º 4,
1994.
54 Cf. os trabalhos de José V. Capela, Entre-Douro e Minho 1750-1830. Finanças.
Administração e Bloqueamentos Estruturais no Portugal Moderno, tese, mimeo., Braga,
3 vols., 1987, A Câmara, a Nobreza e o Povo de Barcelos, sep. de Barcellos Revista,
vol. III, n.º 1, 1989, «Braga um município fidalgo − as lutas pelo controlo da câmara
entre 1750 e 1834», in Estudos do Noroeste, n.º 2, 1989, O Município de Braga de 1750
a 1834. O Governo e a Administração Económica e Financeira, Braga, 1991, e O Minho e
os Seus Municípios. Estudos Económico-Administrativos sobre o Município Português
nos Horizontes da Reforma Liberal, Braga, 1995.
55 Cf., entre outras, várias contribuições em colóquios publicadas em Actas do I
Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989. Os Açores e o Atlântico
(Séculos XIV-XVII), Angra do Heroísmo, 1983, e Os Açores e as Dinâmicas do Atlânti-
co, Angra do Heroísmo, 1989. E ainda Avelino Freitas de Menezes, Os Açores nas
Encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), I, Poderes e Instituições, Ponta Delgada,
1993, e José Damião Rodrigues, Poder Municipal e Oligarquias Urbanas: Ponta Del-
gada no Século XVII, Ponta Delgada, 1994. De facto, a importância dos municípios no
espaço colonial desde há muito que tinha sido destacada, designadamente, por Charles
Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Ba-
hia and Luanda, Madison, 1965.
56 [A multiplicação de trabalhos sobre elites locais tem prosseguido depois da publi-
cação inicial deste estudo. Destaquem-se, entre outros, os seguintes estudos, cujas indi-
cações se não puderam incoporar neste texto: O Município no Mundo Português, Fun-
chal, 1998; Rogério Borralheiro, A Câmara de Miranda no Século XVIII. Singularidades
de Uma Composição, sep. dos Cadernos de Estudos Municipais, Braga, n.º 10, s. d.;
José Viriato Capela (coord.), O Município Português na História, na Cultura e no
Desenvolvimento Regional, Braga, 1998, e Vila Nova de Cerveira. Elites, Poder e
Governo Municipal (1753-1834), Braga, 2000; Paulo J. da Silva Fernandes, Elites e
Finanças Municipais em Montemor-o-Novo do Antigo Regime à Regeneração, Mon-
temor-o-Novo, 1999; Teresa Fonseca, Administração Senhorial e Relações de Poder
no Concelho do Vimieiro, Arraiolos, 1998; José da Silva Marinho, Construction d’un
gouvernement municipal. Élites, élections et pouvoir entre absolutisme et libéralisme
(1753-1834), Braga, 2000; Glória S. Paula, Lagos (1745-1792). Dinâmicas Económicas
e Elites de Poder, Lisboa, 2001; Nuno G. Monteiro (coord. e apresentação), «As elites
municipais na história contemporânea portuguesa (séculos XIX-XX)», in Estudos Autár-

38
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Na sequência dos trabalhos antes citados, a renovação da história dos


municípios portugueses teve como um dos seus tópicos essenciais a aná-
lise das oligarquias camarárias. Com efeito, a vitalidade que se foi reco-
nhecendo aos poderes municipais no Antigo Regime não parecia disso-
ciável do processo de formação, iniciado ainda na Idade Média, desses
grupos «procedentes do estrato dos homens bons que comandam os con-
celhos [...]», os quais «vão ter o exclusivo da administração municipal e
vão formar [...] aquilo que se chama ‘gente nobre da governança da ter-
ra’»57. Esta categoria social, que não se deve confundir com a antiga
fidalguia, estaria já configurada «em meados do século XVII», quando «a
cristalização oligárquico-aristocrática chega ao seu termo»58, prolongando-
-se por todo o período subsequente. De resto, o encerramento da referida
categoria social acompanharia cronologicamente outros processos análo-
gos na sociedade portuguesa. Partindo de perspectivas similares, os
estudos sobre a história municipal constituem hoje um dos sectores mais
activos da historiografia portuguesa, com ênfase especial no século
XVIII, incluindo alguns relevantes centros urbanos.
As tendências oligárquicas e o acentuar da tutela das monarquias
sobre as cidades caracterizaram, em geral, a Europa moderna. No entanto,
importa não esquecer que a maioria das cidades era governada por elites
recrutadas em grupos corporativos, cuja base medieval era mercantil ou
burocrática, tanto quando se mantinha a elegibilidade dentro de um uni-
verso corporativo como quando se tratava de ofícios patrimonializados e
hereditários. Mesmo nos casos em que o desempenho de tais cargos
nobilitava, as oligarquias urbanas não coincidiam, em regra, com as eli-
tes aristocráticas fundiárias, embora a tendência fosse sempre para que
as diferenças se fossem atenuando.
Era assim na maioria das cidades inglesas59, a principiar por Londres
(governada em parte por uma oligarquia mercantil), tal como em Fran-

quicos, n.os 6 e 7, 1996 (1999), e José Subtil e Ana Teixeira Gaspar, A Câmara de Viana
nos Finais do Antigo Regime (1750-1834), 2 vols., Viana, 1998.]
57 Joaquim Romero Magalhães, «A sociedade portuguesa, séculos XVI-XVIII», cit.,
p. 151.
58 J. R. Magalhães, O Algarve Económico..., cit., p. 328.
59 Cf., por exemplo, P. Clark e P. Slack, English Towns in Transition 1500-1700,
Oxford, 1976, pp. 111-140, e S. Hipkin, «Closing ranks: oligarchy and government at
Rye, 1570-1640», in Urban History, vol. 22, 1995, pp. 319-340.

39
Elites e Poderes

ça60. E, se os municípios castelhanos apresentavam grandes semelhanças


com os portugueses, apesar da sua diversidade e da regra maioritária da
«metade dos ofícios» para nobres61, a frequente venalidade dos respecti-
vos cargos fazia com que em muitos centros urbanos, designadamente em
Madrid, a oligarquia urbana dos proprietários do ofício de regedor não
coincidisse com o topo da pirâmide nobiliárquica62.
As questões antes colocadas, bem como outras realçadas em estudos
precedentes63, conduzem-me, assim, a apresentar as principais caracte-
rísticas que diferenciariam a organização municipal portuguesa do Anti-
go Regime das monarquias vizinhas (pondo de lado os diversos casos
italianos):
1. A grande uniformidade institucional. Não obstante as diferenças
resultantes da existência ou não da presidência dos juízes de fora
e/ou da confirmação senhorial 64 , todas as câmaras do território

60 Cf., por exemplo, Roland Mousnier, Les institutions de la France sous la monar-
chie absolute 1598-1789, t. I, Paris, 1974, pp. 437-469.
61 Cf., entre outros, Antonio Dominguez Ortiz, Las Classes Privilegiadas en la Es-
paña del Antiguo Régimen, Madrid, 1973, pp. 121 e segs., Sociedad y Estado en el Siglo
XVIII, Barcelona, 1976, pp. 454-475, e várias das contribuições publicadas em Martine
Lambert-Gorges (ed.), Les élites locales et l’État dans l’Espagne moderne du XVIe au
e
XIX siècle, Paris, 1993.
62 «El término oligarquía urbana se emplea habitualmente para denotar que el grupo
que controla el gobierno local no coincide estrictamente con la nobleza titulada, aunque
comparta rasgos marcadamente nobiliarios» [Mauro Hernández, A la Sombra de la Co-
rona. Poder y Oligarquia Urbana (Madrid, 1606-1808), Madrid, 1996, p. XVIII].
63 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Concelhos e comunidades», in História de Portugal,
dir. de José Mattoso, 4.º vol., O Antigo Regime (1620-1807), coord. de António M. Hespa-
nha, Lisboa, 1993, pp. 303-331, e «Os poderes locais no Antigo Regime» (coord.), parte I, in
César Oliveira (dir.), História dos Municípios e do Poder Local, Lisboa, 1996, pp. 16-175.
64 Embora tivesse aumentado de 79 em 1640 para 168 em 1811 o número de concelhos
presididos por um juiz de fora/magistrado letrado (bacharéis nomeados pela coroa ou pelos
senhores), a verdade é que nesta última data existiam apenas em um quinto de um total de
841 municípios. Nos restantes, a presidência da câmara e o inerente exercício da jurisdição
em primeira instância competiam aos juízes ordinários, eleitos de entre a gente da «governan-
ça» (cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes...», in César Oliveira (dir.), História dos Municí-
pios…, cit., pp. 83-85). Quanto às câmaras confirmadas por senhores leigos e eclesiásticos,
representavam 54,5% do total em 1527-1532 e subiram em número até 1640 (57,6% do
total), mas desceram depois de forma apreciável, alcançando apenas 30,4% do total em 1811
(id., ibid., p. 52).

40
Elites locais e mobilidade social em Portugal

continental e insular português (à excepção da de Lisboa, nomea-


da pela coroa) estavam sujeitas, desde a viragem do século XV para
o século XVI, a normas gerais quanto às suas competências e à elei-
ção das vereações, situação praticamente sem paralelo num terri-
tório com a dimensão do reino de Portugal e Algarves65;
2. A existência de aldeias com estatuto similar ao de cidades. Embora
quase todos os centros urbanos mais importantes controlassem vas-
tos termos, por vezes com mais de uma centena de paróquias, a
verdade é que, uma vez elevada à dignidade municipal, qualquer
povoação com algumas dezenas de fogos e habitantes passava a
ter uma câmara com competências idênticas às de um centro
urbano. Mais de metade das câmaras portuguesas tinham menos
de 400 fogos;
3. A ausência de ofícios honoráveis (de juiz ou vereador) hereditários
ou corporativos. Ao contrário de Castela, a venda de ofícios
municipais em Portugal, que foi quantitativamente importante,
não abrangeu esses ofícios maiores, mas apenas outro oficialato
municipal (sobretudo escrivães e juízes dos órfãos), para além de
outras instituições locais não dependentes das câmaras, como as
alfândegas66. De resto, em princípio, o único ofício controlado por
organismos corporativos era o de procurador dos mesteres em

65 Em resultado da publicação das Ordenações do reino (impressão de 1512-1514),


da reforma manuelina dos forais e da multiplicação das magistraturas régias. Apesar de
também aí se detectar uma tendência para a uniformidade, os municípios castelhanos
regulavam-se pelas suas específicas ordenanças constituintes de governo [cf., por exem-
plo, Concepción de Castro, La Revolución Liberal y los Municipios Españoles (1812-
-1868), Madrid, 1979, pp. 22-56, e Angeles Hijano, El Pequeño Poder. El Municipio en
la Corona de Castilla: Siglos XV al XIX (prólogo de Miguel Artola), Madrid, 1992].
66 Cf., entre outros, Francisco Ribeiro da Silva, «Venalidade e hereditariedade dos
ofícios públicos em Portugal nos séculos XVI e XVII», in Revista de História, vol. VIII,
1988, pp. 203-213. Na verdade, os ofícios venais em Portugal nunca foram, ao contrário
dos casos francês e castelhano, ofícios superiores nobilitantes, mas sim ofícios camará-
rios e na Fazenda. Mas a verdade é que não foram todos suprimidos pela legislação
pombalina de 1770, subsistindo em certos casos, designadamente ao nível camarário, até
1834.

41
Elites e Poderes

alguns centros urbanos, como Lisboa 67 e outros, para além da


situação excepcional do vereador pela Universidade na câmara de
Coimbra68;
4. Em parte, pelo que antes se referiu, verifica-se em Portugal uma
maior tutela da coroa sobre a composição das câmaras, uma vez
que, depois do início de Setecentos, os corregedores e o Desem-
bargo do Paço (tribunal central de graça de justiça) tutelavam direc-
tamente a eleição da maior parte delas. Em sentido inverso, pode
falar-se de uma maior autonomia corrente das câmaras, designa-
damente em matérias de justiça, tanto mais que os vereadores podiam
substituir os juízes na sua ausência (chamando-se então «juízes
pela ordenação»);
5. A coincidência entre os mais nobres e os elegíveis para vereadores
(e juízes) camarários. Tal facto decorre de a base da constituição
das câmaras ser geral e electiva, pois o perfil definido pela ordem
jurídica prevalecente exigia que os elegíveis fossem recrutados de
entre os mais nobres e «principais» das diversas terras. Conse-
quentemente, poder-se-á supor que as «oligarquias municipais»
não se diferenciavam das elites sociais locais. Uma implicação
directa desse facto era a raridade de centros urbanos importantes
administrados por elites mercantis. Outra pode reputar-se bastante
relevante no plano empírico: pelo que antes se disse, as relações
dos elegíveis (os chamados «arrolamentos») fornecem-nos também,
em princípio, a identificação dos mais nobres de cada terra. Consti-
tuem por isso, apesar das limitações que adiante se apresentarão,
uma fonte inestimável;
6. Por fim, deve-se sublinhar que não havia em Portugal autênticas
capitais provinciais. As câmaras limitavam-se a tutelar os territórios
dos seus termos, e não existiam quaisquer instituições corporativas
de âmbito supraconcelhio. Uma sede de comarca ou de provedoria
(categoria que adiante retomarei) era apenas o local de assistência

67 Cf., sobre a peculiar organização municipal de Lisboa até 1834, Paulo Jorge A.
Fernandes, As Faces de Proteu. Elites Urbanas e Poder Municipal em Lisboa de Finais
do Século XVIII a 1851 (mimeo., 1997), Lisboa, 1999, pp. 19-84.
68 Cf. Sérgio Cunha Soares, «Os vereadores da Universidade na câmara de Coimbra
(1640-1777)», in Revista Portuguesa de História, t. XXVI, 1991, pp. 45-80.

42
Elites locais e mobilidade social em Portugal

de um magistrado régio (o corregedor ou provedor) com compe-


tências sobre um território de diversos concelhos, mas sem nenhu-
ma dependência de instituições locais ou regionais69.

A construção das categorias da análise histórica


e as «oligarquias municipais»

Porque delas me vou ocupar neste texto, gostaria de sublinhar que


me parece discutível que se utilize a designação genérica de «oligar-
quias camarárias» para falar dos oficiais camaristas, preferindo o termo
mais inócuo e mais ambivalente de elites70. Importa apontar brevemente
as razões que fundamentam este juízo.
Em primeiro lugar, porque se trata em boa medida de uma tautologia.
Foi a própria legislação da monarquia portuguesa a reconhecer o papel
de liderança local que cabia às «pessoas principais das terras» (1570),
aos «melhores dos lugares» (1603, Ordenações), aos «melhores da ter-
ra» (1618), às «pessoas da melhor nobreza» (1709), reservando-lhes os
«principais ofícios da República» nas diversas povoações do reino71, ou
seja, os ofícios honorários das câmaras e os postos superiores das orde-
nanças (cf. adiante). De resto, são hoje bem conhecidas as etapas através
das quais se foi consagrando nos planos legislativo e institucional, entre
os finais da Idade Média e meados do século XVII, a crescente elitização
da vida camarária, corrigindo-se e acrescentando-se o que se estabelecia
nas Ordenações do reino72.

69 Cf., sobre esta marca peculiar da monarquia portuguesa, Nuno G. Monteiro


(coord.), «O central, o local e o inexistente regional», in Os Poderes Locais..., cit., pp. 79 e
segs.
70 Cf. as observações de Rui Santos, «Senhores da terra, senhores da vila: elites e
poderes locais em Mértola no século XVIII», in Análise Social, n.º 121, 1993, pp. 367-368,
e também Mauro Hernandez, «El cierra del las oligarquias urbanas en la Castilla moder-
na...», in Revista Internacional de Sociologia, vol. 47, 1987, pp. 186-187.
71 Uma discussão, de resto pioneira, da noção de principalidade pode encontrar-se
em Nuno Daupias d’Alcochete, Principalidade, sep. de Armas e Troféus, t. VII, n.º 1,
Braga, 1966.
72 Cf., entre outros, Maria Helena Coelho e J. Romero Magalhães, op. cit., António
P. Manique, «Processos eleitorais e oligarquias municipais nos fins do Antigo Regime»,

43
Elites e Poderes

O modelo de eleição trienal então definido (compilado no Regimento


de 8 de Janeiro de 1670) vigorou, com efeito, até aos finais do Antigo
Regime, sem alterações de substância. Incumbia aos corregedores a
escolha de dois ou três informantes, os quais elaboravam a lista dos ele-
gíveis. Convocavam-se depois os eleitores que votavam, de entre os
arrolados, aqueles que deviam preencher os ofícios municipais (juiz
ordinário, quando era o caso, vereadores, procuradores e, eventualmen-
te, tesoureiros). Todas estas escolhas acabavam por recair dentro do
mesmo círculo, ou seja, «dos mais nobres e da governança da terra»,
filhos e netos de quem já tivesse servido e, até às leis pombalinas, «sem
raça alguma». As listas dos elegíveis e a relação dos votos eram depois
enviadas para confirmação ao Desembargo do Paço, nas terras da coroa,
ou aos senhores, no caso dos concelhos de donatário73. Em síntese, em
conformidade com a cultura política prevalecente, o «governo oligár-
quico» era o modelo oficial da organização política local. Pensava-se
que os membros das famílias mais antigas, nobres e ricas eram os que
davam maiores garantias de isenção e independência no desempenho
dos seus ofícios e os que dispunham de uma autoridade natural, no sen-
tido de construída pelo tempo, e, por isso, mais facilmente acatada.
A esse propósito, importa sublinhar desde já que esses atributos (anti-
guidade, grau de nobreza e riqueza) podiam não coincidir e que um dos
elementos definidores dessa administração de honoratiores74 do Antigo

in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre Formas de Organização e Exercício dos


Poderes na Europa do Sul, Lisboa, 1988, J. Romero Magalhães, «As estruturas sociais
de enquadramento»..., cit., onde se introduzem algumas rectificações à cronologia desse
processo, e Sérgio Cunha Soares, O Município de Coimbra da Restauração ao Pomba-
lismo. Poder e Poderosos na Idade Moderna, dissertação de doutoramento, mimeo.,
Coimbra, 1995, vol. 2, pp. 1479-1482, nota 97.
73 Cf., sobre as particularidades das eleições nas terras das casas da família real com
administração autónoma (casas de Bragança, do Infantado e das Rainhas), Rogério Bor-
ralheiro, O Município de Chaves entre o Absolutismo e o Liberalismo (1790-1834),
Braga, 1997, pp. 88 e segs.
74 Cf. Max Weber, Economia y Sociedad. Esbozo de Una Sociologia Comprensiva
(1922), México, 1984, pp. 233 e segs. e 755 e segs.

44
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Regime (a riqueza) iria perdurar no Estado triunfante do liberalismo


censitário75.
Para mais, a utilização da expressão antes referida («oligarquias
municipais») sugere um padrão uniforme para a caracterização de situa-
ções muito distintas. Desde logo, porque se aplica tanto a ofícios heredi-
tários e patrimonializados (como os que existiam em muitas cidades
europeias e, em particular, em muitos municípios castelhanos) como a
câmaras eleitas 76 . Mas também porque tende a subsumir a enorme
diversidade existente dentro do próprio reino entre os diversos municí-
pios. Assunto sobre o qual mais adiante me irei deter.
Acrescente-se que o termo «oligarquias municipais» tende a conferir
uma identidade social a uma categoria institucional (a dos vereadores
camarários) cuja existência como grupo social carece de demonstração.
O que nos remete para questões mais gerais. Com efeito, a utilização do
referido termo incorre nos pecados mais elementares que têm constituído
o objecto privilegiado de recentes críticas à história social internacional,
sob o impacto da chamada «viragem linguística»77. E, se o rescaldo des-
sas polémicas desemboca algumas vezes na apologia pós-moderna da
«dissolução do social», a verdade é que outras alternativas têm surgido,
como aquelas que propõem «um retorno às fontes, uma atenção renova-
da à linguagem dos documentos e às categorias dos actores sociais» e

75 Uma dimensão inovadora de parte da mais recente historiografia portuguesa sobre


os municípios, antes citada, tem sido exactamente o seu alargamento a etapas ulteriores
a 1834.
76 Embora a patrimonialização, na prática, dos ofícios municipais não pressuponha a
sua compra (cf., por exemplo, Maria Rosario Porres Marijuan, «Elites sociales y poder
local en el País Vasco durante el Antiguo Régimen: estado de la cuestión y perspecti-
vas», in J. Ma. Imízcoz, Elites, Poder y Red Social. Las Elites del País Vasco y Navarra
en la Edad Moderna, Bilbau, 1996, p. 114).
77 Cf., em particular, o debate que teve lugar na revista Past and Present: Lawrence
Stone, «History and post-modernism», P. & P., n.º 131, 1991, pp. 217-218; Patrick
Joyce e Catriona Kelly, «History and post-modernism, I» e «II», P. & P., n.º 133, 1991,
pp. 204-213; L. Stone e Gabrielle M. Spiegel, «History and post-modernism, III» e «IV»,
P. & P., n.º 135, 1992, pp. 189-208. Mas que tem tido diversos prolongamentos ulterio-
res, designadamente em publicações como o Journal of Social History.

45
Elites e Poderes

até o privilegiar dos indivíduos, das suas experiências e dos modos de


formação das suas identidades sociais78.
Nesse particular, deve-se sublinhar, desde já, que a própria época não
nos legou nenhuma imagem forte ou vocábulo uniforme para descrever
e caracterizar as elites locais e provinciais à escala do conjunto do reino,
ao contrário do que é possível constatar para outros países. Ou melhor,
existiu uma forte demarcação entre as elites aristocráticas da corte e as
da província, com ampla tradução até no vocabulário oficial, onde se
reconhecia a existência de uma clara distinção entre a «principal Nobre-
za dos meus Reinos» (1761) e o «resto da nobreza da Corte ou das Pro-
víncias» (1775). Um retrato que, em larga medida, se construía pela ex-
clusão da corte.
De resto, essa débil imagem das elites da província nos finais do
Antigo Regime também é indissociável da sua escassa expressão políti-
ca nacional. Embora em vários momentos dos anos agitados do primeiro
terço do século XIX (como em 1809 ou em 1828) se lhes tenha procura-
do fornecer uma identidade nacional como corpo, a verdade é que a
memória do Terceiro Braço nas antigas Cortes era demasiado remota e
os requerimentos correntes excessivamente pulverizados nos seus objec-
tivos para que as câmaras chegassem a assumir essa feição.
Deve-se acrescentar que os municípios coexistiam com outras insti-
tuições locais relevantes do ponto de vista da história das elites locais,
em particular as misericórdias e as ordenanças. Como se sabe, as mise-
ricórdias tinham uma actuação destacada no plano assistencial e também
enquanto fonte de crédito, embora neste último domínio o papel das con-
frarias paroquiais não seja de menosprezar. Divididas entre irmãos nobres
e irmãos mecânicos em número quase nunca inferior à centena, tendiam
a configurar-se como uma instituição fundamental na delimitação das
elites locais79.

78 Simona Cerutti, «La construction des catégories sociales», in Autrement, n.os 150-
-151, «Passés recomposés. Champs et chantiers de l’histoire», 1995, pp. 224-234, e, em
especial, vários dos ensaios reunidos em Bernard Lepetit (dir.), Les formes de l’experience.
Une autre histoire sociale, Paris, 1995.
79 Cf. síntese de Isabel dos Guimarães Sá, «As confrarias e as misericórdias», in
César Oliveira (dir.), História dos Municípios..., pp. 55-60, e As Misericórdias de Lis-
boa de D. Manuel a Pombal, Lisboa, 2001.

46
Elites locais e mobilidade social em Portugal

As ordenanças constituíam outra das instituições relevantes da socie-


dade local portuguesa, certamente uma das mais originais. Todo o reino
se encontrava dividido em capitanias-mores de ordenanças, coordenadas
por um capitão-mor, que devia ser o senhorio donatário ou alcaide-mor
em terras onde existisse, coadjuvado por um sargento-mor. Cada capita-
nia-mor dever-se-ia subdividir num número variável de companhias de
ordenanças, chefiadas pelo respectivo capitão, com o apoio de outros
oficiais. À hierarquia das ordenanças competia ter arrolados todos os
homens maiores de 16 anos, exceptuando os privilegiados e os velhos,
para que pudessem, quando solicitados, ser recrutados para o exército de
primeira linha ou ainda para operarem localmente como milícia quando
tal fosse necessário, pelo que deviam reunir-se regularmente para recebe-
rem treino militar. Os ofícios de capitão-mor e de sargento-mor conferiam
sempre nobreza vitalícia, qualquer que fosse a dimensão da capitania (os
restantes, apenas enquanto eram exercidos), e exigiam um grande empe-
nho a quem os desempenhava, pela natureza das tarefas requeridas e
pela duração indeterminada do ofício. A estabilidade do ofício e o tre-
mendo poder do recrutamento militar de que eram depositários os seus
detentores constituem aspectos fundamentais para a caracterização desta
instituição, ciclicamente criticada pela sua ineficácia e pelas opressões a
que dava lugar80.

A mobilidade social e a cultura política


do Antigo Regime

A atenção privilegiada às representações dos contemporâneos e a crí-


tica à utilização das categorias do presente para classificar os universos
sociais e políticos dos Antigos Regimes remetem-nos para as contribui-
ções de um dos núcleos de historiadores que mais sublinharam a alteri-
dade dessas culturas: os historiadores do direito e das instituições, que
vêm insistindo na natureza corporativa e pré-estatal da ordem jurídica

80 Cf. Nuno G. Monteiro, «As ordenanças», in César Oliveira (dir.), História dos
Municípios..., cit., pp. 47-49.

47
Elites e Poderes

anterior à implantação do liberalismo81. Precisamente, a cultura política


dominante no período em apreço era genericamente hostil à ideia de
mobilidade social82. E, no entanto, foi uma das expressões emblemáticas
dessa cultura, a literatura jurídica, que a consagrou, designadamente,
através do conceito de nobreza civil ou política. Um dos maiores juristas
portugueses de Setecentos fala explicitamente de «alargamento» da
nobreza: «[...] sobrevindo melhores tempos em que arrefeceu o furor
bélico, acabou-se por dar a devida honra aos ofícios e cargos civis, sur-
gindo outro género de nobres, que não se podem chamar propriamente
Cavaleiros nem Fidalgos, mas gozam de quase todos os seus privilégios
e direitos83.»
No que se reporta à governança dos municípios, aplicava-se a regra
de que «os ofícios nobres, e costumados, a andar em pessoas de esclare-
cido nascimento, se alguma vez forem conferidos pelo Príncipe em
outras de menos condição [...] nobilitam a quem o serve». Ora, a legisla-
ção (1651) era explícita em determinar que «não sejam admitidos na
governança [...] mecânicos, nem peão algum [...] se não Nobres das par-
tes, e qualidades para isso, e filhos de nobre»84, embora os juristas discu-
tissem se tais normas se aplicavam à gente da «governança» (juízes ordi-
nários, vereadores, procuradores e almotacés) de todas as oito centenas de
câmaras do país ou apenas à das «cidades e vilas notáveis». Os ofícios da
governança dos municípios conferiam, assim, nobreza, incompatível com

81 Cf., entre outros, os diversos trabalhos de Bartolomé Clavero, como Tantas Per-
sonas como Estados. Por Una Antropologia Politica de la Historia Europea, Madrid,
1986, os de Pablo Fernandez Albaladejo, designadamente os reunidos em Fragmentos
de Monarquia, Madrid, 1994, e, em Portugal, os de António M. Hespanha já antes cita-
dos.
82 Cf., a esse respeito, o texto de António M. Hespanha, «Las estructuras del imagi-
nario de la movilidad social en la sociedad del Antíguo Régimen», in F. Chacón Jiménez
e Nuno G. Monteiro (eds.), Poderes Tradicionales y Movilidad Social. Cortesanos, Clé-
rigos y Oligarquias en la Península Ibérica (Siglos XV-XIX), Madrid, CSIC, 2006.
83 P. J. Melo Freire, «Instituições do direito civil português...», liv. II, tít. III, Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 163, 1967, p. 44 (trad. de M. P. Menezes); no mesmo senti-
do se pronunciam todos os juristas de finais do Antigo Regime, tais como M. A. Sousa
(Lobão), Luís Pereira de Oliveira e Manuel Borges Carneiro (que fala também de
«extensão da nobreza», Direito Civil de Portugal, 1.ª ed., 1828, t. I, tit. IV, 45, 10).
84 Luís da Silva Pereira Oliveira, Privilegios da nobreza, e fidalguia de Portugal,
Lisboa, 1806, pp. 53 e 63.

48
Elites locais e mobilidade social em Portugal

os ofícios mecânicos, que se definiam por dependerem «mais do trabalho


do corpo, que do espírito»85. A distinção essencial nobre/mecânico, adop-
tada em Portugal pelo menos desde finais do século XVI, apresentava,
afinal, notórias semelhanças com a realidade descrita num texto clássico
sobre a mobilidade social em Inglaterra: «The most fondamental dicho-
tomy within the society was between the gentleman and the non-
gentleman, a division that was based essencially upon the distinction
between those who did, and those who did not, have to work with their
hands86.» A singularidade portuguesa residirá, porventura, no facto de a
identificação entre ser nobre e viver como tal («viver à lei da nobreza»)
se encontrar juridicamente sancionada, podendo ser invocada como pro-
va87.
Retomando algumas sugestões do texto antes citado de L. Stone,
podemos afirmar que o processo antes descrito corresponde à valorização,
desde os finais da Idade Média, do status atribuído a boa parte dos grupos
ocupacionais (juristas, oficialato, negociantes, etc.) situados fora das
categorias sociais de referência da sociedade rural de raiz medieval.
Simplesmente, essa banalização da nobreza implicou que se desenhas-
sem múltiplas e diversificadas fronteiras de estatuto no seu interior,
variáveis de umas regiões para outras e dificilmente traduzíveis em
categorias uniformemente hierarquizáveis à escala de todo o reino.

85 Id., ibid., p. 182.


86 L. Stone, «Social mobility in England, 1500-1700», in Past and Present, n.º 33,
1966, p. 17.
87 Por exemplo, nas habilitações das ordens militares, cf. Nuno Gonçalo Monteiro,
«Notas sobre nobreza, fidalguia e titulares nos finais do Antigo Regime», in Ler His-
tória, n.º 10, 1987, pp. 15-51. A especificidade portuguesa radica, não nas fontes que
inspiraram essa evolução (o direito comum europeu), mas na forma como se deu. As
ordens militares portuguesas (Avis, Cristo e Sant’Iago) exigiam prova de nobreza,
enquanto nas habilitações dos cavaleiros portugueses da Ordem de Malta se continua-
va a pedir prova de fidalguia. Apesar de algumas contribuições recentes (cf. António
M. Hespanha, «A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII», in Penélope,
n.º 12, 1993, pp. 27-42), os historiadores do direito ainda não nos explicaram esta
diferença.

49
Elites e Poderes

Nesta perspectiva, o acesso aos ofícios da governança, exactamente


porque não se podia comprar, porque dependia dos contextos locais e
porque conferia, fora destes, um prestígio variável, não terá constituído
em Portugal o canal privilegiado para o reconhecimento da nobreza. Ao
contrário dos hábitos de cavaleiro das ordens militares, que em todo o
reino tinham as mesmas condições de acesso e conferiam um idêntico
estatuto, a ascensão à governança de uma terra tinha uma eficácia sobre-
tudo local.
Como antes se sugeriu, a adopção do referido conceito de nobreza ao
longo do século XVI criou uma zona de fluidez na hierarquia do espaço
social: não era difícil a um filho de lavrador sugerir que seus pais «se
tratavam à lei da nobreza», com «bestas e criados». Embora a mobilida-
de social fosse, como em todas as sociedades dominantemente agrárias,
quantitativamente limitada, essa zona de fluidez podia potenciar, em
determinadas condições e conjunturas, a oportunidade para rápidos pro-
cessos de ascensão social.
Tal como também foi referido, a cultura política do Antigo Regime era
adversa à rápida mobilidade. Com efeito, concebia a ordem social na hie-
rarquia dos seus distintos corpos, sancionada pela tradição. Era uma
ordem natural, cuja configuração devia ser imediatamente apreensível.
Por isso, os poderes e as hierarquias legados pela história reforçavam-se e
legitimavam-se na medida em que podiam ser olhados e ouvidos. Daí a
enorme importância de que se revestiam os rituais de afirmação e de
visualização desses poderes, como as procissões, os autos de aclamação,
etc. Esta realidade essencial não impedia a mudança e a mobilidade
social, como não bloqueava inteiramente a inovação institucional. Mas
exigia que tais processos, para se legitimarem, mantivessem as antigas
denominações. O efeito mais indiscutível da cultura política do Antigo
Regime sobre os trajectos de mobilidade social era, portanto, o de tender a
impor velhas classificações para as mudanças de estatuto. A continuidade
das palavras pode servir, assim, para ocultar a real descontinuidade dos
grupos sociais e das famílias. O risco peculiar do fetichismo do direito, ou
mais genericamente dos «textos fundadores», tão em voga em muita his-
toriografia, é o de ignorar as diversas e contrapostas apropriações sociais
desses textos e das hierarquias por eles definidas, a contínua reelaboração
e transmutação dos seus significados, em resultado da acção dos actores
sociais e dos indivíduos.

50
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Um retrato das elites locais nos finais do Antigo Regime

Uma das virtualidades da existência de critérios relativamente gerais


na selecção dos elegíveis para as câmaras é o facto de as respectivas
listas fornecerem uma radiografia das elites sociais locais no conjunto
do território. Concretamente, a análise deste tipo de fontes permite não
apenas comparar algumas variáveis gerais, mas ainda surpreender os
distintos vectores de classificação social nos diversos contextos locais e
provinciais. Recorde-se, em todo o caso, que lidamos com os elegíveis,
e não com os efectivamente eleitos.
Deve-se, em primeiro lugar, recordar as características do recrutamen-
to social dos senados das pequenas câmaras. São relativamente raras as
tomadas de posição em defesa destas pequenas câmaras, até porque em
larga medida se confundiam com as dos juízes iletrados, tão criticados
na literatura jurídica. Mas algumas vezes encontram-se documentos
como aquele onde se afirma que «Vizinho temos o Termo de Serpins,
onde, e em outros Termos, e Coutos pequenos, as Câmaras são compos-
tas de homens Lavradores abonados, e são os povos muito bem gover-
nados»88. De facto, em cerca de um quarto das câmaras portuguesas,
ainda no início do século XIX, existiam veradores que assinavam «de
cruz». Naquelas, distribuídas pelas distintas províncias de Portugal,
vamos encontrar marítimos, lavradores e até oficiais mecânicos e traba-
lhadores rurais89.
Neste texto iremos centrar a atenção nos arrolamentos dos municí-
pios sede de comarca na viragem do século XVIII para o XIX (grosso
modo, entre 1796 e 1806). Os dados apresentados reportam-se apenas a
vereadores (e juízes nas câmaras sem juiz letrado), pois os procuradores

88 Cit. in Nuno G. Monteiro, «Concelhos e comunidades», in História de Portugal...,


cit., p. 327 [documento do AHP (Arquivo Histórico-Parlamentar da Assembleia da
República), I/II div., cx. 3, n.º 137].
89 De facto, 12 dos 20 elegíveis em 1796 para a câmara de Serpins (comarca de
Coimbra, 442 fogos, fortuna média de 500 000 réis) eram lavradores e seareiros; mas
nos Assores (comarca da Guarda, 97 fogos, 700 000 réis de fortuna média) em 1797
havia uma maioria de 10 trabalhadores entre os 17 elegíveis, o mesmo se passando nou-
tros concelhos da Beira, bem como de outras províncias.

51
Elites e Poderes

tinham quase sempre um estatuto social diverso e inferior. Ao todo, ob-


têm-se informações para 34 das 43 sedes de comarca existentes em 180190,
faltando apenas 5 terras importantes (Barcelos, Braga91, Bragança, Alen-
quer e Faro), para além daquelas onde existe omissão de informação
sobre fortuna ou rendimento.
O primeiro factor a ponderar reporta-se ao número de elegíveis. Den-
tro de um universo restrito, variava de umas terras para outras (mínimo
de 12 e máximo de 55). De resto, sabemos por vários estudos que foi
oscilando nas mesmas câmaras ao longo do século XVIII, constituindo
essa variação no tempo, aliás, um bom indicador dos conflitos e pres-
sões em torno do acesso às vereações camarárias. Além disso, é mani-
festo que algumas categorias (designadamente os «filhos família», os
detentores de ofícios públicos e os oficiais do exército de primeira linha)
eram excluídas em alguns casos (os desembargadores sempre) e incluí-
das noutros. No entanto, não oferece dúvidas que todos os indivíduos com
determinadas distinções (donatários/comendadores e fidalgos da casa
real), desde que residissem nas terras, eram sempre arrolados, mesmo
quando nascidos noutros concelhos (e, por isso, sem filiação com ante-
riores vereadores), apesar de em certas câmaras se notarem resistências
à sua eleição. Em síntese, um arrolamento numeroso tanto pode reflectir
a grande quantidade de pessoas com elevado estatuto social residentes
localmente, no caso de ser socialmente homogénea, como uma base
diversificada de apuramento. Pelo que a leitura desse indicador do qua-
dro n.º 1 se deve fazer entrecruzada com o quadro n.º 2.
Mais complicada se revela a crítica das fontes no que se refere à for-
tuna em bens de raiz e ao rendimento, informações fornecidas quase
sempre em alternativa. O primeiro problema é o da fiabilidade dos
dados que não se baseiam em inventários ou em estimativas detalhadas,
mas em «opiniões» dos informantes. Não constituindo indicadores sóli-

90 Recolheram-se, designadamente, as que iam à confirmação ao Desembargo do Paço e


à casa do Infantado (cf. fundos respectivos no ANTT).
91 A governança destas duas terras foi já investigada a partir de fontes locais (cf.
José V. Capela, «A câmara, a nobreza e o povo de Barcelos», cit., pp. 92-113, «Braga
um município fidalgo...», cit., e O Município de Braga..., cit., pp. 34-52).

52
Elites locais e mobilidade social em Portugal

dos, a sua credibilidade é maior para os rendimentos92 do que para as


fortunas (que abrangiam o capital de bens de vínculo). No entanto, como
se verá, os resultados obtidos não são inverosímeis e parecem compatí-
veis com o status atribuído às personagens93. Finalmente, coloca-se o
problema quase irresolúvel da relação entre rendimento e fortuna, para o
qual se optou pela solução reputada menos má94.
Deve salientar-se, por fim, que os arrolamentos seleccionavam de facto
«os principais» das terras do ponto de vista do estatuto nobiliárquico. Mas
não necessariamente os mais ricos. Ou seja, podemos supor, e sabemos
efectivamente para vários casos, que, nas câmaras mais fidalgas, as fortunas
recentes, mesmo quando ultrapassavam todas as restantes95, tinham dificul-
dade em entrar para as listas de elegíveis das vereações.

92 No seu inventário de 1790 atribui-se ao eborense João de Macedo Sequeira Rei-


mão um rendimento anual global de 6 contos (cf. Helder A. Fonseca, «Para o estudo dos
investidores alentejanos: os lavradores da comarca de Évora nos finais do Antigo Regi-
me», in Revista Portuguesa de História, t. XXII, 1987, p. 62). Nas pautas do concelho de
Évora de 1798 e de 1801 indica-se o mesmo quantitativo para a renda anual de Luís de
Macedo Sequeira Guerreiro de Sousa Reimão.
93 Precisamente porque se baseiam em opiniões, não se deflacionaram os indicado-
res disponíveis entre 1796 e 1806, pois sabe-se bem que os contemporâneos tinham uma
limitada percepção do índice da inflação, galopante nesses anos.
94 Nas câmaras de lavradores para as quais se dispõe dos dois tipos de informação, o
rendimento era, em regra, o dobro do que se obtém aplicando o juro da lei (5%), pois
aqueles tinham outros proventos (arrendamento de propriedades). É o caso de Avis,
constante do quadro. O mesmo se verifica com os bacharéis e funcionários. Em compen-
sação, os proprietários rentistas (a maioria dos elegíveis) teriam muitas vezes um rendi-
mento inferior a 5% do seu capital em bens de raiz. Quando se pretendia fixar judicial-
mente o foro justo para bens vinculados, por exemplo, o Desembargo do Paço
estabelecia-o sempre em torno de 3% da avaliação do capital do prédio [cf. Nuno Gon-
çalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da Aristocracia em
Portugal (1750-1832), Lisboa, 1998, pp. 222-223]. Assim, no quadro n.º 1 estimou-se
que a renda correspondia, em média, a 4% do capital em bens de raiz nos casos em que
só este vem indicado.
95 Cf., por exemplo, Teresa Fonseca, Relações de Poder no Antigo Regime. A Admi-
nistração Municipal em Montemor-o-Novo (1777-1816), Montemor-o-Novo, 1995,
p. 158.

53
Elites e Poderes

Rendimento/fortuna dos elegíveis para vereadores


nas sedes de comarca

[QUADRO N.º 1]

Fogos A B C D E F G H
P. Concelho
Ren- Fortu- R. R. F. F.
Ano Sede Total V. T.
da na máx. mín máx. mín.

M Porto................. 1 804 12 108 12 108 34 61 3 743 8 000 600


B Lamego............. 1 798 1 664 4 005 19 25 82 667 160 00040 000
B Viseu................ 1 797 1 032 6 833 14 24 2 771 5 600 1 200
A Portalegre......... 1 801 1 751 2 615 25 35 2 306 4 800 600
A Évora................ 1 798 3 142 4 793 12 19 2 236 600 200
E Santarém........... 1 795 2 433 8 066 28 41 2 153 12 000 Nada
E Tomar............... 1 804 974 3 951 15 21 1 753 4 000 300
B Castelo Branco. 1 797 1 280 3 288 14 23 32 229 60 000 1 200
E Setúbal.............. 1 804 3 590 3 671 34 51 1 281 7 200 200
B Coimbra............ 1 802 4 780 11 161 37 29 143 80 000 6 000
M Guimarães........ 1 796 1 965 12 341 40 55 1 102 7 200 200
B Guarda.............. 1 797 692 4 383 16 28 27 067
A Elvas................. 1 798 3 162 4 130 22 40 1 074 2 800 100
T Vila Real.......... 1 806 1 236 9 632 55 85 26 247 80 000 1 200
T Moncorvo......... 1 796 335 1 841 15 29 19 231 40 000 2 000
M Penafiel............. 1 798 928 4 917 21 35 598 3 200 200
B Trancoso........... 1 796 375 2 541 23 37 12 313 28 000 4 000
B Pinhel............... 1 800 516 2 388 32 41 424 1 200 30
E Torres Vedras... 1 798 830 4 316 38 45 340 1 000 30
Ae Tavira............... 1 798 2 110 3 232 23 31 6 722 28 000 200
E Vila Franca....... 1 807 1 210 1 209 13 13 6 615 16 000 1 600
Ao Avis.................. 1 798 343 848 17 22 228 2 427 500 50 4 800 700
E Leiria................ 1 801 642 6 432 19 29 5 373 16 000 Nada
T Miranda............ 1 823 155 1 753 21 38 3 691 12 000 700
A Ourique............ 1 798 685 1 816 32 40 3 075 24 000 100
Ae Lagos................ 1 798 1 894 2 800 17 26 2 907 10 000 400
(continua)

54
Elites locais e mobilidade social em Portugal

(continuação)

Fogos A B C D E F G H
P. Concelho
Ren- Fortu- R. R. F. F.
Ano Sede Total V. T.
da na máx. min máx. min.

B Aveiro.............. 1 797 1 134 2 887 25 44 2 520 20 000 600


A Beja.................. 1 806 1 791 4 299 20 30
E Chão de Couce. 1 804 266 270 18 24
A Crato................ 1 806 353 903 15 21
B Feira................. 1 804 371 7 690 27 36
B Linhares........... 1 807 194 1 122 30 36
M Valença............ 1 804 518 2 656 12 17
M Viana............... 1 808 1 441 3 525 33 43

A − número de elegíveis para vereador; B − número total de elegíveis para as câma-


ras; C − rendimento médio dos elegíveis para vereador (em milhares de réis); D − fortu-
na média dos elegíveis para vereador; E − rendimento máximo; F − rendimento mínimo;
G − fortuna máxima; H − fortuna mínima; Ae − Algarve (província de); Ao − Alentejo;
B − Beira; E − Estremadura; M − Minho; T − Trás-os-Montes – dados para os fogos de
1826; só se consideraram para efeitos de médias os indivíduos para os quais se apresen-
tam valores de fortuna ou rendimento.

O primeiro termo de comparação destes indicadores devem ser as


informações utilizáveis acerca das elites centrais da monarquia. Dis-
pomos dos indicadores sobre o rendimento líquido da esmagadora
maioria (40) das casas antigas de Grandes do reino, calculados a partir
de avaliações geralmente bem fundamentadas, recolhidas para diversos
anos da última fase do Antigo Regime. Em montantes nominais, a
média andava pelos 18/19 contos, situando-se a mediana em cerca de
14. Deflacionados esses valores (base − ano de 1800), os rendimentos
médios situavam-se acima dos 24 contos de réis, a mediana nos 17 e a
receita mínima nos 6 contos anuais. Outras 13 casas da «primeira
nobreza do reino», algumas elevadas à Grandeza na viragem do sécu-
lo, tinham um rendimento nominal médio de cerca de 10 contos; defla-
cionando esses indicadores (base − 1800), obtêm-se receitas médias

55
Elites e Poderes

que andariam pelos 14 contos, situando-se a renda mínima em 5,5 con-


tos96. Também possuímos indicações seguras sobre os negociantes da
praça de Lisboa. A preços de 1800, as suas fortunas médias andariam
pelos 150 contos, o que, aplicando a taxa de 5%, corresponde a um ren-
dimento médio de 7,5 contos anuais. De resto, os rendimentos nominais
efectivos dos mais ricos financeiros do início de Oitocentos (como o
barão de Quintela ou o conde da Póvoa) situavam-se muito acima dos
cerca de 60 contos de que dispunha a casa aristocrática portuguesa
com maior liquidez97.
Uma primeira constatação que ressalta do confronto entre estas indi-
cações e o quadro n.º 1 é a do enorme contraste entre as elites da corte e
as da província. As receitas médias dos 34 fidalgos da casa real arrola-
dos para a mais selecta câmara eleita do país (a da cidade do Porto)
eram cinco vezes inferiores às dos Grandes do reino. A conhecida
macrocefalia de Lisboa-corte em termos da configuração dos mercados
fica, uma vez mais, reforçada.
É certo que existiam casas na província com rendimento suficiente
para ultrapassar o limiar mínimo de entrada na «primeira nobreza da
corte». A valores de 1800, esse patamar situar-se-ia em cerca de 6 contos,
como antes vimos. Nas capitais de comarca para as quais possuímos
informações registámos uma dezena de arrolados que presuntivamente
alcançavam ou ultrapassavam esse quantitativo. No resto do continente
e das ilhas adjacentes (nas quais existia, de resto, uma desproporcionada
concentração de riqueza) encontraríamos certamente mais duas ou três
dezenas de casas nessas condições, para além de algumas fortunas recen-
tes de indivíduos não arrolados. O que, tudo somado, estava bem longe
de igualar a primeira nobreza da corte.
A informação recolhida confirma, assim, a polarização entre a corte e
as províncias. No entanto, a dimensão mais surpreendente do quadro
n.º 1 prende-se com a hierarquia que este estabelece entre as distintas
povoações do reino. De facto, esta estava longe de corresponder ao

96 Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., parte III, capítulo 2.
Pela própria natureza das fontes de receita do grupo (bens de vínculo e da coroa e
ordens), não se dispõe de avaliações do capital conjunto daquelas.
97 Jorge Pedreira, Os Homens de Negócio de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822),
dissertação de doutoramento, mimeo., Lisboa, Universidade Nova, 1995, pp. 294 e segs.

56
Elites locais e mobilidade social em Portugal

volume da população de cada termo concelhio. Mais decisivas serão,


certamente, outras variáveis. Se a situação destacada do Porto se encontra
dentro das expectativas, o mesmo não acontece com as posições se-
guintes: Lamego e Viseu, os dois centros urbanos que no liberalismo oito-
centista viriam a disputar a chefia do futuro distrito de Viseu. Seguem-se
Portalegre, à frente de Évora, e Santarém. Depois, ultrapassando o limiar
do conto de réis de renda média, vêm listas numerosas, onde se incluem
grandes rendas/fortunas máximas, como nos casos de Setúbal, Coimbra,
Guimarães e Vila Real, e listas bem mais reduzidas, como as de Tomar,
Castelo Branco, Guarda, Elvas e Moncorvo. Inesperadamente diminutos
são os valores de Miranda, Leiria, Torres Vedras, Lagos, Tavira e, sobre-
tudo, Aveiro. Repare-se que, se nos dedicarmos a vários exercícios (como
o de dividir a renda somada dos arrolados pela população), a hierarquia se
altera, mas os grandes contrastes permanecem. Se tomarmos como termo
de comparação o volume da população, o interior ganha peso, neste caso,
em detrimento do litoral.
Na verdade, as indicações do quadro n.º 1 ficam consideravelmente
esclarecidas se as confrontarmos com o quadro n.º 2, onde se recolhem
os indicadores sobre o estatuto social dos arrolados. Antes, porém,
importa ponderar os critérios seguidos na elaboração das fontes e na sua
utilização. Quanto às fontes, destaquem-se, para começar, as diferenças
de natureza institucional 98 . Além disso, na generalidade das câmaras
nota-se alguma flutuação de critérios. Numa parte dos casos resultará de
opções dos corregedores das respectivas comarcas ou de motivos cir-
cunstanciais. Noutros, não. E serão estes, precisamente, aqueles que in-
teressa ponderar.
Um dos critérios mais significativos, que só encontramos em parte
dos arrolamentos, é o da identificação das pessoas da «principal nobreza»,
«principais», «de conhecida nobreza» e outras análogas expressões. Em
regra, mas não necessariamente, a sua presença denota o peso das famílias
antigas no concelho, classificáveis no vocabulário tradicional erudito na

98 Os arrolamentos das terras da casa do Infantado eram sempre mais sumários do


que as que iam à confirmação ao Desembargo do Paço. Omitiam quase todas as referên-
cias (como Vila Real, Chão de Couce e Linhares), ou todos os graus de nobreza (como
em Beja), para além dos rendimentos, como antes se pôde constatar.

57
Elites e Poderes

categoria de fidalgos de linhagem99. Na maior parte dos casos tratar-se-


-á, assim, de sucessores de ramos fidalgos matriculados na casa real ou
aos quais foi concedida carta de brasão de armas, geralmente reprodu-
zido na fachada das suas casas. Juntamente com a indicação dos mor-
gados100 , são referências que testemunham a importância de critérios
«periféricos» e locais na hierarquização social. Com efeito, as pessoas
que recebiam tal qualificação podiam não ter recebido nenhuma das dis-
tinções próximas concedidas pela monarquia, algumas vezes (como
podia ocorrer com os hábitos das ordens) ostentadas por quem era con-
siderado menos (e mais recentemente) nobre, e como tal até eventual-
mente excluído dos arrolamentos. O acesso a tais distinções pressupunha,
aliás, uma relação de serviço com a monarquia que nem todos desejavam
ou estavam em condições de alcançar.
De acordo com as indicações constantes das listas101, classificámos
cada indivíduo numa só categoria, designadamente a qualificação usada
para o descrever que se reputava mais elevada do ponto de vista do esta-
tuto nobiliárquico. A hierarquia destas é a que consta do quadro n.º 2.
É certamente uma opção questionável, como o serão todas, dada a com-
plexidade e diversidade da estratificação nobiliárquica portuguesa abai-
xo do estatuto da Grandeza. No entanto, tirando a localização dos nego-
ciantes (que se destinou a destacar essa qualificação, mesmo quando
eram cavaleiros das ordens militares), a ordem seguida parece ser con-
forme com os postulados antes enunciados.
Mais complicados se revelaram os critérios a seguir para a hierarqui-
zação das câmaras. Acabou por se escolher listá-las por ordem de-
crescente de acordo com a percentagem representada pela soma dos
indivíduos das colunas A, B, C, E, F e I nos respectivos arrolamentos.
Critério discutível, pois, como se disse, ao contrário dos fidalgos da casa

99 Sobre as categorias de nobreza nesta altura, cf. Nuno G. Monteiro, «Notas...», cit.,
pp. 17-25.
100 Embora até à legislação pombalina de 1769-1770 não se exigisse nobreza para a
sua instituição, a verdade é que a identificação de alguém numa pauta pela posse de um
vínculo constituía, quase sempre, um indicador de nobreza antiga.
101 Excepto no que se refere a donatários e comendadores.

58
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Estatuto dos arrolados para vereador

[QUADRO N.º 2]

Concelho Ano N.º A B C D E F G H I J K L M N

Porto.......................... 1 804 34 5 1 28
Viseu.......................... 1 797 14 1 1 1 11
Lamego...................... 1 798 19 13 2 1 1 2
Valença...................... 1 804 12 1 1 10
Guimarães.................. 1 796 25 5 1 11 1 18 2 2
Portalegre................... 1 798 25 3 8 1 6 1 1 3 1 1
Évora.......................... 1 798 12 1 9 2
Trancoso.................... 1 796 23 4 1 15 2 1
Tomar......................... 1 804 15 4 8 1 2
Beja............................ 1 806 20 13 2 2 3
Setúbal....................... 1 804 34 2 3 3 6 1 8 4 3 4
Moncorvo................... 1 796 15 1 6 1 1 1 1 4
Santarém.................... 1 792 28 1 8 3 2 2 2 4 6
Guarda........................ 1 797 16 5 1 3 6 1
Elvas.......................... 1 798 22 2 6 2 2 3 4 3
Castelo Branco........... 1 797 14 2 4 2 6
Torres Vedras............. 1 798 38 5 2 8 2 3 8 10
Viana do Castelo........ 1 808 33 10 1 2 4 1 1 3 2 9
Coimbra..................... 1 802 37 2 7 3 2 4 3 1 15
Aveiro........................ 1 797 25 1 2 3 7 8 1 1 2
Penafiel...................... 1 798 21 3 2 1 10 5
Pinhel......................... 1 800 32 2 3 5 3 1 3 2 13
Vila Franca................. 1 807 13 1 2 1 3 4 2
Crato.......................... 1 806 15 1 4 1 1 8
Miranda...................... 1 823 21 1 1 8 1 1 9
Tavira........................ 1 798 23 3 4 1 2 13
Lagos.......................... 1 798 17 1 3 5 1 7
Avis............................ 1 798 17 1 3 1 1 1 10
Leiria.......................... 1 801 19 1 7 7 4
Ourique...................... 1 798 32 8 1 1 22
Feira........................... 1 804 27 4 8 3 12
Vila Real.................... 1 806 55 8 47
Chão de Couce........... 1 804 18 1 1 16
Linhares..................... 1 807 30 2 28
Total......................................... 7 9 124 7 57 32 13 68 106 84 33 2 16 259

A − donatários e comendadores; B − uso de dom de origem portuguesa; C − fidalgos


da casa real; D − negociantes; E − cavaleiros das ordens militares; F − morgados; G −
militares da tropa de primeira linha; H − oficiais das milícias e das ordenanças; I − «dos
principais», «da principal nobreza», «com distinta nobreza» (não se incluindo os que
apenas «vive(m) à lei da nobreza»); J − doutores, licenciados e bacharéis; K − funcioná-
rios da administração central e local; L − boticários; M − lavradores; N − não identifica-
dos com qualquer atributo.

59
Elites e Poderes

real102, os cavaleiros das ordens tanto podiam pertencer à «antiga nobre-


za» das terras como ter uma ascensão bem recente. Ou seja, terão sem-
pre de se analisar com o devido detalhe as indicações retiradas dos arro-
lamentos de cada uma das terras.
A primeira observação que o quadro n.º 2 nos impõe é a da extrema
raridade dos donatários e comendadores nas províncias. Outra forma de
confirmar que tais rendas e distinções se concentravam na primeira
nobreza da corte. Na verdade, eram relativamente raras as três primeiras
categorias consideradas, sendo maioritárias apenas nos arrolados de
Lamego, de Évora e do Porto, a mais aristocrática câmara eleita do país,
onde somente se arrolavam fidalgos da casa real. Não aparece, de resto,
nenhuma alusão ao conceito de cidadão do Porto, tão relevante ainda em
Seiscentos103 e do qual encontrámos as últimas referências em arrola-
mentos do período pombalino104. Para mais, os foros da casa real, nos
arrolamentos portuenses como nos restantes, eram ostentados quase
sempre por pessoas de «conhecida nobreza». Pelo que não parece legí-
timo estabelecer uma fronteira entre as câmaras onde predominavam
tais distinções e aquelas onde avultavam as pessoas «da principal nobre-
za». De resto, era isso o que se verificava no «fidalgo» município de
Braga: dos 31 elegíveis para vereadores naquela câmara em 1802, apenas
cerca de um quarto ostentaria os foros da casa real, o que não impedia
que quase todos reputassem pertencer ao núcleo das famílias tradicionais

102 Embora nos empréstimos públicos de finais de Setecentos se tivesse concedido o


foro de fidalgo da casa real a quem para eles contribuísse com determinados quantitati-
vos, a verdade é que essa distinção não se tinha vulgarizado até à viragem do século,
sendo geralmente usada por fidalgos de linhagem.
103 Cf., sobre o assunto, Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o Seu Termo (1580-
-1640), Porto, 1988, vol. I, pp. 281-309, «Gentilshommes, nobles et citoyens de Porto au
e
XVII siècle: caracterization sociale et voies d’accès», in Hidalgos & hidalguía dans
l’Espagne des XVIe-XVIIIe siècles, Paris, 1989, e «Os tempos modernos», in L. O. Ramos
(dir.), História do Porto, Porto, 1995, pp. 317-329, Pedro Brito, Patriciado Urbano
Quinhentista: Famílias Dominantes do Porto (1500-1580) (mimeo., 1991), Porto, 1997,
e Ana S. A. de Oliveira Nunes, História Social da Administração do Porto (1700-
-1750) (mimeo., 1991), Porto, 1999.
104 ANTT, Desembargo do Paço, Minho e Trás-os-Montes, maço 1395.

60
Elites locais e mobilidade social em Portugal

da cidade dos arcebispos105. Bastante homogéneos, no sentido do pre-


domínio de um recrutamento fidalgo, seriam, assim, os arrolamentos das
oito primeiras câmaras consideradas.
Destacam-se, depois, municípios onde os arrolados, embora maiorita-
riamente fidalgos de nascimento, tinham um recrutamento um pouco
mais diversificado, abrangendo também alguns bacharéis (que goza-
vam de nobreza política) e funcionários, como seriam os casos de Via-
na, Vila Real, Coimbra, Santarém, Setúbal e Beja. Por fim, claramente
estratificadas, vinham as câmaras menos selectas. Desde logo, aquelas
onde predominavam os oficiais das ordenanças (uma das formas perifé-
ricas mais importantes de obtenção da nobreza pessoal), os bacharéis e
os funcionários, e onde até podiam entrar negociantes e boticários (um
ofício mecânico pelo qual é identificado um arrolado de Aveiro!). Mas
também, na cauda, os municípios com muitos lavradores, de diversa
riqueza, como seriam Vila Franca, Crato e, pode supor-se, Avis, Ouri-
que, Feira, Chão de Couce e Linhares. Na maioria destas câmaras, pra-
ticamente ninguém é classificado na categoria de «conhecida nobre-
za».
Apesar de a correspondência não ser perfeita, o resultado final apon-
ta para uma grande coincidência entre a hierarquia da renda e a da no-
breza. Aquelas onde os arrolados eram mais ricos também ostentavam a
mais qualificada nobreza. Apenas em parte o escalonamento das câma-
ras correspondia ao do Braço do Povo nas Cortes, para o qual cerca de
uma centena delas puderam eleger os seus procuradores 7 vezes no
século XVI e 9 no século XVII106.
Resta explicar estes resultados. Serão o reflexo da maior quantidade
de casas fidalgas antigas e ricas em determinadas zonas (designadamen-
te Beira Alta, Douro próximo da Região Demarcada do Vinho do Porto,
parte do Minho, eixo central do Alentejo) ou apenas a maior concentra-
ção das mesmas em determinados concelhos dentro das referidas zonas?

105 Cf. José Capela, O Município de Braga de 1750 a 1834…, cit., anexo 2, con-
frontado com outras fontes, designadamente José Barbosa Canaes de Figueiredo Cas-
tello Branco, Árvores de costados das familias nobres dos reinos de Portugal..., t. II,
Lisboa, 1831.
106 Cf., entre muitos outros, Pedro Cardim, Cortes e Cultura Política no Portugal do
Antigo Regime (mimeo., 1992) (pref. de A. M. Hespanha), Lisboa, 1998.

61
Elites e Poderes

A segunda resposta parece ser geralmente correcta no que se refere ao


Alentejo, como, de resto, se pode inferir dos dados apresentados para
várias capitais de comarca e de outros que se puderam consultar. Mas
não se aplica claramente ao Douro e à Beira Alta confinante.
Esbocemos um breve exercício para apenas cerca de uma dúzia de
câmaras.
As informações recolhidas são concludentes. No Douro da Região
Demarcada do Vinho do Porto e na comarca de Viseu não são apenas
as sedes comarcãs os locais de residência das mais selectas elites. Em
Besteiros/Tondela o rendimento médio passava dos 2 contos e a peque-
na vila de Mesão Frio registava a segunda maior fortuna média até agora
apresentada e uma fortuna máxima não ultrapassada em nenhuma outra
câmara (de um cavaleiro de hábito e deputado da Companhia das
Vinhas). Duas câmaras notoriamente fidalgas, o que se aplica em parte
também a Santa Marta de Penaguião, embora aqui a fonte seja um tanto
ambígua nas classificações. De resto, mesmo em pequenas câmaras des-
ta zona podem encontrar-se arrolados senhores de grandes casas: em
1806, no meio de duas dezenas de «lavradores abonados» da minúscula
vila de Canelas (513 fogos, encravada no termo de Vila Real), vamos
descobrir dois fidalgos Silveiras, um deles o bem conhecido futuro vis-
conde da terra, com uma fortuna atribuída de 160 contos, um tanto aci-
ma dos 4 contos de renda que lhe apontavam na pauta do Porto, onde
fora arrolado em 1804. E pela mesma altura deparamos com um donatá-
rio de entre os arrolados para São João da Pesqueira. O mesmo se pode-
rá afirmar para o Minho, onde os elegíveis para a câmara da pequena
vila de Amarante (onde todos os não classificados seriam fidalgos)
ou para o extenso mas pouco urbanizado município de Arcos de Valde-
vez são, na sua quase totalidade, fidalgos com um considerável rendi-
mento.
Pelo contrário, no Sul as fidalgas e ricas pautas de Montemor-o-
-Novo e Estremoz são excepções. O padrão dominante será o de Odemi-
ra e Mértola, semelhante a outras vilas alentejanas já antes analisadas.
Também no Algarve as elites locais nos aparecem com limitada fortuna
e pouca nobreza. Quanto às câmaras fortemente mercantis e com redu-
zidas fortunas da Covilhã, Fundão e Figueira, constituirão, com toda a
certeza, casos singulares.

62
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Rendimento/fortuna dos elegíveis para vereadores

[QUADRO N.º 3]

Fogos A B C D E F G H
P. Concelho Ano
Ren- For- R. R. F. F.
Sede Total V. T.
da tuna máx. mín. máx. mín.

B Besteiros............. 1 800 615 2 328 16 24 2 175 4 000 800


B Mesão Frio.......... 1 796 236 773 23 32 49 909 60 000 2 000
M Amarante............ 1 796 364 1 500 14 20 1 783 3 200 500
Ao Estremoz............. 1 801 1 786 2 817 14 29 1 579 4 800 300
Ao Montemor.......... 1 798 954 2 234 13 20 1 417 4 000 200
T Santa Marta........ 1 799 452 3 063 46 65 25 557 80 000 4 800
M Arcos de Valdevez 1 798 405 5 940 20 31
B Covilhã............... 1 797 2 301 4 916 26 43 13 843 40 000 Nada
B Fundão................ 1 800 506 3 800 17 28 13 035 32 000 2 400
Ae Loulé.................. 1 801 2 110 4 105 17 20 8 913 40 000 300
B Figueira.............. 1 802 969 2 234 25 35 4 095 10 000 Nada
Ao Odemira.............. 1 798 582 1 634 19 24 3 541 16 000 400
Ao Mértola............... 1 798 612 2 835 22 26 2 436 8 000 300
Aç Ponta Delgada.... 1 779 34 46 (a)1 4866 (b)5 4000Nada
Ma Funchal............... 1 787 56 56

(a) 2786, deflacionado a valores de 1800.


(b) 10 125, deflacionado a valores de 1800.

Por fim, os mais importantes centros urbanos das ilhas atlânticas


revelam-se, como seria de esperar, redutos de uma qualificada e rica
nobreza, estreitamente identificada com a instituição vincular107. O ren-
dimento médio dos arrolados em Ponta Delgada108, se o deflacionarmos,
equivaleria ao das mais ricas câmaras do continente, excluindo o Porto;

107 Sem nos alongarmos com a indicação da extensa bibliografia sobre o assunto,
importa recordar que foi das ilhas que ao longo do século XIX partiu a maior parte das
petições e iniciativas conducentes à abolição dos vínculos.
108 Cf., para a centúria anterior, José Damião Rodrigues, Poder Municipal e Oligar-
quias Urbanas..., cit.

63
Elites e Poderes

todos pertenciam à «principal nobreza» [mesmo se da maioria se diz que


«nam tem foro» (da casa real)] e da quase totalidade dos que não eram
apresentados como morgados se afirma que eram alimentados pelos pais,
tios ou irmãos. Surpreendentemente, a qualificação de «morgado» não
aparece na câmara do Funchal109, mas, apesar disso, essa é a câmara onde
nos surge o maior número de fidalgos da casa real depois do Porto.

Estatuto dos arrolados para vereadores

[QUADRO N.º 4]

Concelho Ano N.º A B C D E F G H I J K L M N

Besteiros.................... 1800 16 2 2 2 10
Mesão Frio................. 1796 20 7 6 1 9
Amarante.................... 1796 14 5 1 8
Estremoz.................... 1801 14 2 4 1 7
Montemor.................. 1798 13 4 1 8
Santa Marta............... 1799 46 5 11 30
Arcos de Valdevez.... 1798 20 6 1 10 1 1
Covilhã...................... 1797 26 1 8 2 5 5 1 1 3
Fundão....................... 1800 17 7 3 1 5 1
Loulé.......................... 1801 17 2 1 8 2 4
Figueira...................... 1802 25 9 2 1 1 11 1
Odemira..................... 1798 19 8 1 3 7
Mértola...................... 1798 22 14 2 6
Ponta Delgada........... 1779 34 5 17 12
Funchal...................... 1787 56 2 21 11 1 21

A − donatários e comendadores; B − uso de dom, de origem portuguesa; C − fidal-


gos da casa real; D − negociantes; E – cavaleiros das ordens militares; F − morgados;
G − militares da tropa de primeira linha; H − oficiais das milícias e das ordenanças;
I − «dos principais», «da principal nobreza», «com distinta nobreza» (não se incluindo os
que apenas «vive(m) à lei da nobreza»); J − doutores, licenciados e bacharéis; K − fun-
cionários da administração central e local; L − boticários; M − lavradores; N − não iden-
tificados com qualquer atributo; Aç − Açores; Ae − Algarve; Ao − Alentejo; B – Beira;
Ma − Madeira; M − Minho; T − Trás-os-Montes.

109 Sobre a instituição vincular e a colonia como vectores estruturantes das relações
sociais na Madeira, cf. a síntese de Jorge de Freitas Branco, Camponeses da Madeira.
As Bases Materiais do Quotidiano no Arquipélago (1750-1900), Lisboa, 1987, pp. 153-
-186.

64
Elites locais e mobilidade social em Portugal

As indicações recolhidas, sobretudo se tivermos presente que não se


arrolavam apenas os residentes nas sedes de concelho, mas também as
pessoas do termo (identificadas por vezes até pelas quintas da sua resi-
dência), revelam uma notável concordância com a imagem, aparente-
mente superficial, que se retira de uma viagem pelas casas armoriadas
do continente, de resto já razoavelmente inventariadas110. É certo e bem
sabido que o acesso às cartas de brasões de armas se encontrava em Por-
tugal extremamente facilitado111. No entanto, a maior densidade destas
nas casas de residência verifica-se, em geral, nas zonas onde detectámos
também arrolamentos mais nobres e mais ricos. Em termos globais, de
resto, o interior ganha claramente em detrimento do litoral no que se
refere ao estatuto das elites locais.
Em conclusão, a análise dos arrolamentos das sedes de comarca e
outras que efectuámos, em vez de desembocar na ratificação da catego-
ria geral de «oligarquias municipais», conduziu-nos, pelo contrário, a
valorizar a diversidade da sua base de recrutamento. E a redescobrir
outros vectores de identificação, como, por exemplo, a casa. De resto,
será quase uma redundância sublinhar que a nobreza «institucional»
arrolada para as vereações não correspondia necessariamente aos indiví-
duos residentes em cada concelho que no plano do direito seriam consi-
derados nobres. Nas câmaras mais importantes, muitas pessoas expres-
samente reconhecidas como nobres, por exemplo, em habilitações das
ordens militares112, não tinham lugar na nobreza que participava na vida
camarária, enquanto nas pequenas podia haver «mecânicos» com assen-
to nas vereações. Não era o estatuto geral delimitado pela legislação,
mas sim os «usos» de cada terra e as relações de força no terreno que
definiam o limiar de acesso às nobrezas camarárias.

110 Cf., em particular, António Lambert Pereira da Silva, Nobres Casas de Portugal,
Porto, s. d.
111 Cf., por exemplo, Álvaro Balthazar Alves, «O cartório da nobreza», in Anais das
Bibliotecas e Arquivos de Portugal, vol. I, n.º 4, 1915, Conde de São Payo, Do Direito
heráldico Português, Lisboa, 1927, e Luís F. Franco, «Les officiers d’armes (rois
d’armes, herauts et suivants) et les reformateurs du greffe de la noblesse XVIIe-XVIIIe
siècles», in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXVI, 1989.
112 E até fidalgos da casa real de recente data, como chegou a ocorrer em Braga (cf.
J. V. Capela, «Braga ...», cit.).

65
Elites e Poderes

Governanças municipais e trajectórias sociais

Se a diversidade era a marca dominante na composição dos elegíveis


para as vereações camarárias, não deixa de ser possível, no entanto,
enunciar algumas das lógicas simbólicas e sociais que presidiam à con-
figuração dos distintos perfis do pessoal camarário, ou seja, de quem
efectivamente acedia ao desempenho dos cargos.
A produção historiográfica tem insistido na natureza oligárquica do
governo municipal, realidade que se acentua no século XVII e se prolon-
ga no século XVIII, quer no Norte e Centro, quer no Sul e ilhas, em
grandes como em médias câmaras. Não só eram poucos os elegíveis113,
como se revelava muito diminuto o número daqueles que participavam
efectivamente nas vereações municipais. De resto, eram menos ainda
aqueles que se repetiam no desempenho desses cargos. Mesmo em
municípios de importância média, ao longo da segunda metade de Sete-
centos, grande parte dos vereadores exercia um único mandato, enquan-
to a maior parte das nomeações eram exercidas por um grupo bem redu-
zido114.
A imagem referida é contrariada, em primeiro lugar, pelos indicado-
res conhecidos para os pequenos concelhos, onde se preservavam níveis
de participação consideravelmente diversos, mantendo-se uma acentua-
da rotatividade no exercício dos cargos camarários. Desde logo, a restri-
ta dimensão e população destes municípios não deixava grandes alterna-
tivas. Nos pequenos e pequeníssimos concelhos, a regra parece ter sido
a da resistência das elites sociais locais a integrarem directamente as
instituições camarárias, incluindo as vereações. As explicações para esta
atitude são fáceis de entrever. Em primeiro lugar, era, no mínimo, duvi-
doso que a participação nas pequenas câmaras acrescentasse prestígio
social (status), sobretudo a quem já o tinha: uma grande parte dos juris-

113 Embora a sua composição pudesse revelar uma apreciável flutuação, renovando-
-se com alguma rapidez, o que contraria em alguns casos a imagem da extrema rigidez
do grupo [cf. João Pereira, Elites Locais e Liberalismo. Torres Vedras 1792-1878
(mimeo., 1997), Torres Vedras, 2000, p. 58].
114 Cf., por exemplo, Luís Vidigal, Câmara, Nobreza e Povo. Poder e Sociedade em
Vila Nova de Portimão (1755-1834), Portimão, 1993, pp. 190-191, Maria Teresa Sena,
A Casa Oeiras e Pombal: Estado, Senhorio e Património, dissertação de mestrado,
mimeo., Lisboa, 1987, pp. 234 e segs., e João Pereira, op. cit.

66
Elites locais e mobilidade social em Portugal

tas considerava, como se disse, que só o desempenho de ofícios nos


senados de «cidade e vilas notáveis» conferia nobreza. Além disso, ser-se
oficial camarista num município de reduzidas dimensões e com escas-
síssimos rendimentos podia revelar-se ruinoso para juízes ordinários,
vereadores e procuradores, que, conforme muitas vezes se queixavam,
tinham de pagar parte do imposto das terças devido à coroa dos seus
próprios bolsos. Mas, mesmo nos municípios de maiores dimensões, a
imagem uniforme das elites municipais apresenta-se, em larga medida,
distorcida. Mais exactamente, a cristalização de oligarquias locais, empi-
ricamente verificável em muitos casos e em muitos contextos, arrisca-se
a obscurecer as dinâmicas sociais que atravessavam o acesso aos lugares
da governança das terras115.
Alguns aspectos da história municipal do Porto, a mais rica e a mais
fidalga câmara portuguesa nos finais do Antigo Regime, revelam-se, a
esse respeito, instrutivos. No período medieval, aquela cidade alcançara
o privilégio da proibição da residência de fidalgos, o qual ainda foi
várias vezes invocado ao longo da primeira metade do século XVI pelo
patriciado urbano com raízes em boa parte mercantis. No entanto, desde
os finais do século XV que algumas famílias da governança municipal
(os «cidadãos» do Porto) foram recebendo cartas de brasão de armas,
processo que se acentuou no século seguinte, abrangendo a maioria
delas, ao mesmo tempo que iam fundando morgados e capelas. Quase
todas acederam, assim, a um estatuto de nobreza e de fidalguia (também
por via das matrículas da casa real), embora poucas subissem à corte e
menos ainda às alturas dos Carneiros, que ingressaram na elite titular do
reino. Por isso, depois de 1549, o referido privilégio, antes zelosamente
defendido, acabou, gradualmente, por cair no olvido, nunca mais vol-
tando a ser invocado116.

115 Embora se trate de uma opinião que carece ainda de uma maior fundamentação e
que contraria as ideias mais correntes sobre o assunto, parece-me indispensável apresen-
tá-la aqui.
116 Cf. Carlos da Silva Lopes, Notas sobre o Privilégio Impeditivo da Moradia de
Fidalgos e Pessoas Poderosas na Cidade do Porto, sep. de Armas e Troféus, Braga,
1971, e Pedro Brito, op. cit.

67
Elites e Poderes

Embora subsistisse até meados do século XVIII um complexo estatuto


de «cidadão» (nobreza local, não fidalga), o peso maioritário nos verea-
dores da cidade coube sempre nos séculos XVII e XVIII a pessoas com o
estatuto de fidalgo, em grande medida oriundas das famílias da gover-
nança quinhentista, sendo aqueles remetidos para ofícios menos relevan-
tes117. No entanto, essa cristalização oligárquica não obstou a processos
de mobilidade social, mesmo se estes se revelaram mais pontuais e não
abrangeram o estatuto de grupo das famílias da governança. Podemos
reportar-nos a um caso exemplar. Descendendo de avós paternos com
origens obscuras (o apelido que estabelecia uma duvidosa ligação com
uma linhagem fidalga medieval veio por sucessivas linhas femininas),
mas filho de um mercador que vinculou uma quinta no Douro, Inácio
Pacheco Pereira comprou a Filipe IV o ofício de juiz da Alfândega do
Porto, o que não evitou que tivesse dificuldades para em 1640 ser admi-
tido nos irmãos nobres da Misericórdia. Os seus filhos e neto primogéni-
tos casaram com as ricas filhas de um capitão de navios e de um arma-
dor; porém, desempenharam cargos na governança e o último era já
fidalgo da casa real. Seria, no entanto, o seu bisneto a protagonizar o
maior acrescentamento, ao receber em 1781 um senhorio e uma alcaida-
ria-mor, em troca da desistência do ofício de juiz da Alfândega do Porto,
que então reverteu para a coroa118. Na lista dos arrolados de 1804 era o
sucessor daquele o fidalgo portuense com maior rendimento. Anos mais
tarde casar-se-ia o seu primogénito com uma filha dos marqueses de
Penalva, naquele que foi um dos primeiros enlaces de fidalgos de pro-
víncia com filhas de Grandes antigos119.
Em algumas das mais importantes e fidalgas câmaras do Norte do
país parece terem-se chegado a constituir facções que, tendencialmente,
correspondiam a identidades sociais razoavelmente definidas, a saber, a
uma fidalguia de linhagem mais ou menos antiga, procurando monopo-
lizar os senados, e a uma recente nobreza civil ou política, buscando
aceder aos ofícios camarários. Um dos casos mais bem estudados e onde

117 Cf. Ana S. A. O. Nunes, op. cit., e os róis de elegíveis e pautas antes citados.
118 ANTT, Ministério do Reino, decretos, maço 57, n.º 61.
119 Cf., além de outras fontes, F. Ribeiro da Silva, O Porto e Seu Termo..., cit., vol. I,
pp. 315-317, e Abílio Pacheco de Carvalho, Pachecos. Subsídios para a Sua Genealo-
gia, Lisboa, 1985, pp. 49-55, 285 e 305-325.

68
Elites locais e mobilidade social em Portugal

o perfil social dos contendores aparece mais claramente delimitado é o


de Braga em meados de Setecentos, um «município fidalgo», onde esse
tipo de polarizações (entre «as pessoas da milhor nobreza» e «alguns
letrados, filhos de pais humildes») se arrastou desde meados de Setecen-
tos até às primeiras décadas do século XIX120. É possível que algo de
semelhante tenha ocorrido em Guimarães e em mais câmaras. Análogos,
em muitos aspectos, terão sido também, de acordo com um estudo re-
cente, os efeitos do «pacto fidalgo» que depois de 1739 se estabeleceu
na cidade de Coimbra121. Por vezes, são os próprios arrolamentos que
nos deixam entrever essas tensões: na Guarda, em 1797, diz-se do n.º 11
que «não é da qualidade dos asima nem servio nem os asima o admiti-
rão», e o mesmo se afirma dos restantes, «do n.º 11 em diante»122.
A existência, nos finais do Antigo Regime, dessas oligarquias cama-
rárias dominantemente fidalgas nos municípios indicados no quadro
n.º 2 pode levar a supor que estas tinham origem em ramos secundários
das principais linhagens fidalgas medievais do reino. Algumas vezes
assim era. O mais recorrente membro da governança de Montemor-o-
-Novo entre 1777 e 1816 administrava, entre outros, um vínculo medie-
val e descendia de uma dessas linhagens que o aparentavam com a pri-
meira nobreza do reino, apesar de ter más alianças próximas123. É bem
provável, no entanto, que o mesmo não se verificasse numa grande parte
dos casos.
Já antes vimos, acerca das famílias da governança do Porto no início
de Oitocentos, que boa parte radicaria naquelas que acederam à fidal-
guia no século XVI, o que não obstava a que o mais rico fidalgo da cida-
de pertencesse a uma casa ingressada na categoria há bem menos tempo.
Pela mesma altura sabemos que várias das principais famílias do «fidal-
go» município de Braga, de entre as que resistiam ao ingresso da nobre-
za recente nas vereações, tinham origem em trajectórias de ascensão
local no século XVI, sem parentesco comprovado com as linhagens prin-

120 Cf. J. V. Capela, «Braga …», cit.


121 Cf. Sérgio Cunha Soares, O Município de Coimbra..., cit., pp. 543 e segs.
122 ANTT, Desembargo do Paço, Beira, maço 1053.
123 Trata-se de Valentim Lobo da Silveira (cf. Teresa Fonseca, Relações de Poder...,
cit., pp. 40-41); sobre a respectiva genealogia, cf. «‘Lobos’ de João Lobo da Silveira»
(org. N. C. Mendes e J. P. Malta), in Almansor, n.º 11, 1993, pp. 87-150.

69
Elites e Poderes

cipais do reino124. De resto, o chefe de uma das principais casas fidalgas


da cidade tinha-se casado com a filha de um abastado negociante de
panos, herdeira de seus pais e irmãos e administradora de um vínculo
recentemente instituído125. Também na viragem para o século de Oito-
centos, o mais rico fidalgo de Guimarães, J. de Freitas do Amaral,
embora administrasse uma antiga casa, acabara de enfrentar as suas difi-
culdades financeiras através do casamento com a filha de um rico nego-
ciante do Porto com passagens pelo Brasil 126 . Nesses anos passaram
pelos róis da vila, pelo menos, um filho e um neto de lavradores com
ligações a fortunas mercantis no Brasil127. De igual modo, outras histó-
rias minhotas sugerem, apesar das resistências referidas, uma apreciável
absorção pelas governanças fidalgas de famílias com recentes fortunas,
rapidamente cobertas de signos de nobreza128. Neste, como noutros ter-
renos da sociedade portuguesa, o jogo dos apelidos facilitava bastante as
coisas129.
Em síntese, poder-se-ia pensar, à partida, que a concentração das
câmaras mais selectas em espaços bem identificados reflectiria apenas a
geografia da antiga fidalguia medieval: «Os principaes solares do Reyno
de Portugal achão-se pelos campos, & Montes de Entre Douro, & Minho,
& em alguns Lugares da Beyra, & Trasosmontes130.» No entanto, os

124 Cf., entre outros, Domingos Araújo Afonso, Da Verdadeira Origem de Algumas
Famílias de Braga e Seu Termo, Braga, ts. I-VI, 1945-1962.
125 Cf. Ana Maria da Costa Macedo, Família, Sociedade e Estratégias de Poder
1750-1830. A Família Jacome de Vasconcelos, Braga, 1996, pp. 134-136.
126 Cf. Maria Adelaide Pereira de Moraes, Velhas Casas − X − Casa de Sezim, Gui-
marães, 1985, pp. 114-117.
127 Helena Cardoso M. Menezes e Maria Adelaide Pereira de Moraes, Genealogias
Vimaranenses, Braga, 1967; ANTT, Desembargo do Paço, Minho e Trás-os-Montes,
maços 1386 (ano de 1796) e 1387 (1826).
128 Cf., por exemplo, A. B. Malheiro da Silva, Luís P. C. Damásio e Guilherme R.
Silva, Casas Armoriadas do Concelho de Arcos de Valdevez, vol. II, Arcos de Valdevez,
1992, pp. 64 e segs.
129 Como se sabe, podia, por um lado, adoptar-se o apelido da mãe e, por outro,
alcançar-se carta de brasão de armas do apelido que se usava, estabelecendo-se, para o
efeito, uma remota e inventada relação de descendência com alguma personagem antiga
que legitimamente a usava.
130 A. Villaboas e Sampayo, Nobiliarchia portuguesa (1.ª ed., 1676), Lisboa, 1727,
p. 152.

70
Elites locais e mobilidade social em Portugal

escassos dados recolhidos sugerem que as câmaras mais ricas e mais


fidalgas não traduzem linearmente a presença dessa fidalguia muito
antiga, mas sim a confluência de uma herança de fidalguia anterior (dos
seus símbolos e modos de vida, menos presente no Sul131) com a maior
riqueza e a maior mobilidade social, embora nunca demasiado rápida e
abrangendo quase sempre apenas certas famílias ou casas. A hierarquia
do espaço geográfico antes apresentada, em vez de reflectir uma herança
cristalizada desde finais da Idade Média, parece, assim, testemunhar
também o maior dinamismo económico e social de certas zonas e de
determinados centros urbanos.
Como antes se disse, as vereações camarárias não aparecem como
uma via privilegiada de mobilidade social, mas como a expressão do seu
reconhecimento à escala local. Exactamente por ter quase sempre um
estatuto socialmente inferior, também não parece que fosse o ofício de
procurador dos concelhos aquele que melhor podia estimular esses per-
cursos, embora muitas vezes os procuradores acabassem por ser arrola-
dos nas listas de vereadores. Os dois ofícios locais que mais frequente-
mente terão potenciado tais dinâmicas foram o de almotacé e o das
ordenanças.
Entre os cargos superiores e não remunerados incluíam-se os almota-
cés, que, embora não fizessem parte das câmaras, pois eram estas que os
elegiam por prazos de dois ou três meses, tinham incumbências impor-
tantes para a vida local em matérias como a vigilância sobre os pesos e
medidas, o abastecimento em géneros e a fixação de preços. Tratando-se
de um ofício obrigatoriamente desempenhado em parte dos meses pelos
antigos vereadores, era monopolizado pelas famílias da governança em
casos tão díspares como Barcelos e Portimão nos finais do Antigo
Regime132. Porém, noutras câmaras, como o Porto seiscentista, Tavira
ou Montemor-o-Novo, já nos finais do Antigo Regime, constituía uma
das poucas portas abertas para o ingresso na elite dirigente local, ao

131 De resto, quase todas as câmaras mais fidalgas do Sul, como Évora, Estremoz e
Montemor, foram local de reunião de Cortes e de presença da corte régia durante a Idade
Média.
132 Cf. J. Capela, «A câmara»..., cit., pp. 112-113, e L. Vidigal, op. cit., p. 148.

71
Elites e Poderes

ponto de se afirmar que era um cargo «que só verdadeiramente interessa


para penetrar no grupo»133, sendo evitado por quem a ele pertencia.
No entanto, a principal via institucional local para a mobilidade
social eram certamente os ofícios das ordenanças. A esse respeito, a
informação recolhida permite-nos estabelecer uma distinção importante
no que se refere à relação entre os oficiais das ordenanças e os elegíveis
para as câmaras 134 . Nos municípios com elites mais ricas e fidalgas,
como Porto, Viseu, Lamego, Valença, Guimarães, Portalegre, Évora,
Trancoso, Tomar, Setúbal, Moncorvo, Santarém, Guarda, Viana e Coim-
bra, somente os capitães-mores e sargentos-mores tinham acesso às lis-
tas de elegíveis, nas quais também se encontra um apreciável número de
oficiais de milícias (tropa de segunda linha). Boa parte destes são identi-
ficados como fidalgos da casa real ou cavaleiros de hábito e outros
como filhos e netos de vereadores. Pelo contrário, nas câmaras menos
qualificadas, como Torres Vedras, Pinhel, Vila Franca, Miranda, Tavira,
Lagos, Avis, Leiria, Ourique e Feira, encontramos também simples
capitães e alferes de companhias de ordenanças, por vezes em avultado
número.
Apesar da distinção antes introduzida, entretanto, é certo que, exi-
gindo grande disponibilidade, pelo prazo indeterminado de duração, os
ofícios das ordenanças conferiam um enorme poder social, hipóteses de
promoção interna e até de acesso à elite dos vereadores, pelo menos nas
terras menos selectas. Falta-nos um estudo global sobre o tema, mas
pensamos que, embora tais cargos tendessem para a hereditariedade em
muitos casos135, eram requisitados de forma dominante por quem bus-
cava influência local e também estatuto social. Com efeito, conferiam
um título (capitão-mor, sargento-mor ou capitão das ordenanças) de
validade geral, ou seja, que usualmente passava a anteceder o nome de
quem o tinha. Sabemos, de resto, que era muito elevado o número de con-

133 Cf. Maria H. Coelho e J. R. Magalhães, op. cit., p. 55, F. R. da Silva, O Porto e
Seu Termo..., cit., pp. 567-594, J. Romero Magalhães, O Algarve..., cit., p. 333, e Teresa
Fonseca, op. cit., pp. 49-53.
134 Consideraram-se, para o efeito, apenas as sedes de comarca antes estudadas.
135 Cf. vários exemplos no Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do
Distrito de Bragança, t. V, Os Fidalgos, 2.ª ed., Bragança, 1981. As listas dos elegíveis
antes usadas mostram claramente esse padrão nas câmaras mais ricas.

72
Elites locais e mobilidade social em Portugal

tratadores de rendas das grandes casas nobiliárquicas ou das comendas


vagas que desempenhavam ofícios das ordenanças136. A história de pro-
moção mais espectacular que conhecemos é de Montemor-o-Novo na
viragem do século XVIII para o XIX, uma câmara com certo cunho fidal-
go, como antes vimos. Com origens humildes e de fora da terra, um
antigo feitor da casa dos marqueses de Minas era já por essa altura
grande lavrador e detentor de um dos maiores rendimentos do concelho,
muito superior ao da maioria da nobreza da governança. Em 1800 con-
seguiu ser sucessivamente sargento-mor e capitão-mor das ordenanças.
Um ano mais tarde, tendo entrado com muito dinheiro para os emprés-
timos públicos, recebeu o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo. Mas
só foi arrolado para vereador em 1804, desempenhando o cargo pela
primeira vez em 1806. Outros lavradores e negociantes com cargos das
ordenanças da terra, pela mesma altura, tinham enormes rendimentos,
mas não conseguiam semelhante promoção institucional137.
Expressão paradigmática das implicações da cultura política do
Antigo Regime sobre as modalidades de mobilidade social, o que ocorre
em contextos locais com os ofícios das ordenanças e da almotaçaria,
verifica-se à escala do reino com os hábitos das ordens militares e tam-
bém com o grau de familiar do Santo Ofício. De facto, a «pureza de san-
gue», a divisão entre cristãos-novos e cristãos-velhos, percorria todos os
níveis da realidade social portuguesa, incluindo a alta nobreza, e quase
todas as instituições até ao período pombalino (1768-1773), época em
que se aboliram tais distinções e se destruíram os seus registos locais.
Precisamente pela preeminência dessa fronteira, o estatuto de familiar
do Santo Ofício constituía uma distinção muito procurada. Um trabalho
recente foi ao ponto de sugerir que essa dimensão se tornou mais rele-
vante do que a repressão na actividade do tribunal a partir da última
década de Seiscentos, passando esta «da repressão religiosa para a pro-
moção social»138.

136 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, fontes utilizadas em O Crepúsculo dos Grandes...,
cit.
137
Cf. Teresa Fonseca, op. cit., pp. 43-44 e 152-163.
138
José Veiga Torres, «Da repressão religiosa para a promoção social», in Revista
Crítica das Ciências Sociais, n.º 40, 1994, pp. 109-135.

73
Elites e Poderes

Deve notar-se que, embora sem a enorme frequência das pequenas


câmaras, também nas grandes encontramos muitos eleitos pedindo dis-
pensa para não servirem. Ao invés de constituir um facto universal, a
apetência pelo desempenho de cargos camarários era condicionada pelas
divergentes trajectórias familiares e individuais. De resto, as mais anti-
gas e ricas casas sediadas na província furtavam-se frequentemente ao
desempenho efectivo de cargos municipais, mesmo em concelhos impor-
tantes, ainda quando aí mantiveram a residência principal: o seu hori-
zonte era, naturalmente, o serviço da monarquia (no exército, nas con-
quistas, etc.), única forma de acederem a um estatuto nobiliárquico
superior, tal como a sua área de alianças matrimoniais transcendia a
província de origem139. A cristalização de oligarquias camarárias coinci-
dia geralmente, assim, com famílias e casas sem grandes perspectivas de
mobilidade, enquanto a sua procura intensa correspondia, em geral, aos
grupos em ascensão, que, como vimos, intentavam em primeiro lugar ace-
der aos ofícios das ordenanças.
Aliás, o estudo das elites locais pode realizar-se aceitando outros
pontos de partida, que não as câmaras, como sejam as casas e as famí-
lias. E outras fontes, como as listas das principais famílias das provín-
cias, um tipo de obra genealógica que, muito frequente até ao início de
Setecentos, parece ter rareado depois 140 . Ou os estudos elaborados a
partir da história das casas, um género central noutras historiografias141
e em Portugal praticado quase só pela erudição local, mas onde se
podem encontrar muitas vezes indicações relevantes. O que nos introduz
directamente no último aspecto a discutir.

139 O caso paradigmático a esse respeito é o dos morgados de Mateus (Vila Real)
(cf. Armando de Matos, A Casa de Mateus, Gaia, 1930, Luís B. Guerra, O Brasão dos
Morgados de Mateus: Sua Interpretação, Braga, 1963, e Heloísa L. Belloto, O Morgado
de Mateus, Governador de São Paulo, Coimbra, 1979).
140 Uma das últimas expressões no género será a obra, já citada, de José Barbosa
Canaes de Figueiredo Castello Branco, Árvores de costados das familias nobres dos
reinos de Portugal..., t. II, Lisboa, 1831, infelizmente só abrangendo o Minho (o t. I
reporta-se à corte).
141 Cf. Lawrence e Jeanne C. F. Stone, An Open Elite? England 1540-1880, Oxford,
1984.

74
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Elites locais e modelos de reprodução social

Uma abordagem sistemática e consistente dos processos de estrutu-


ração social no Antigo Regime não pode, com efeito, dispensar a ponde-
ração das formas de organização familiar e das relações de parentesco142.
Trata-se, porém, de um tema até agora pouco investigado nos estudos
sobre elites municipais em Portugal143, pelo que teremos de limitar-nos
a um breve esboço das principais questões. O ponto de partida deve ser
a centralidade que o modelo reprodutivo vincular vai adquirir ao longo
do século XVI enquanto comportamento de referência para o conjunto
das elites sociais. Nos ramos principais da fidalguia antiga, a sua adop-
ção traduzia-se não apenas na fundação de vínculos, mas ainda no enca-
minhamento de grande parte das filhas e da maioria dos filhos secundo-
génitos para as carreiras eclesiásticas. A reprodução alargada da «casa»
constituía o desígnio estratégico ao qual se deviam submeter todos os
destinos individuais. Era este, desde logo, o padrão de comportamento
da primeira nobreza do reino144.
O mesmo ocorria com as principais casas da província. É certo que
acumulavam morgados uns a seguir aos outros. Casas houve, como a
dos Silveiras Lobos de Montemor-o-Novo, que juntaram, antes da legis-
lação pombalina que permitiu a sua união formal, 22 e mais vínculos145.
Esse fenómeno tinha várias origens: a vinculação de bens por membros
das casas, que criavam pequenos vínculos anexados aos tradicionais;
casamentos com sucessores de morgados; por fim, uniões acidentais
resultantes da morte de algum parente146. Em todo o caso, existia, em
regra, um morgado e casa-edifício e uma combinação de corresponden-
tes apelidos (os mais antigos e ilustres ou os associados aos bens de

142 Cf. Francisco Chácon Jiménez, «Hacia una nueva definición de la estrutura so-
cial en la España del Antiguo Régimen através de la familia y de las relaciones de paren-
tesco», in Historia Social, n.º 21, 1995, pp. 95-104.
143 Para além da insistência na endogamia de grupo, indicada nos próprios arrola-
mentos.
144 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes…, cit.
145 Cf. «‘Lobos’ de João Lobo da Silveira» (org. N. C. Mendes e J. P. Malta), cit.
146 Cf., entre outros, além do texto antes citado, Maria Adelaide Pereira de Moraes,
op. cit., e J. Moniz de Bettencourt, O Morgadio de Vilar de Perdizes, Lisboa, 1986.

75
Elites e Poderes

maior rendimento, ou as duas coisas) que davam o nome às principais


casas da província, subsumindo outros a eles unidos. No entanto, a ver-
dade é que a identidade destas casas era sempre mais fluida do que a da
primeira nobreza da corte, pois não tinham geralmente senhorios juris-
dicionais ou títulos.
Nos processos de mobilidade social é necessário ponderar, em pri-
meiro lugar, a existência de modelos alternativos. Um deles era o inves-
timento nas filhas. É nesse sentido que apontam os indicadores para as
camadas inferiores da fidalguia147, bem como, numa primeira geração,
noutras categorias sociais. De facto, há testemunhos concretos do século
XVI português de um investimento preferencial nas filhas em grupos
familiares em ascensão148. O mesmo modelo que praticavam as elites de
São Paulo no Brasil colonial dos séculos XVII e XVIII149. Nos estudos
sobre o mundo rural português dos séculos XVIII e XIX, de resto, não
apenas se detectam grandes diferenças entre as zonas e os grupos que
praticavam as partilhas igualitárias e os outros, onde a herança se orga-
nizava em função da preservação da casa, como em alguns destes últi-
mos casos (em zonas do Minho) eram, de facto, as filhas as privilegia-
das150.
Este modelo alternativo terá, pois, existido sempre, mas com particu-
lar intensidade no século XVI, quando o modelo vincular se encontrava
ainda em expansão151. De facto, sou inclinado a pensar que permitiu,

147 Cf. James Boone, «Parental investment and elite family in preindustrial states: a
case study of late medieval-early modern Portuguese genealogies», in American Antro-
pologist, n.º 8, 1986.
148 Designadamente nos detentores de benefícios eclesiásticos e ofícios locais da
apresentação da casa de Bragança, estudados por Mafalda Soares da Cunha, A Casa de
Bragança (1560-1640). Práticas Senhoriais e Redes Clientelares (mimeo., 1997), Lis-
boa, 2000, que não eram, à partida, descendentes de linhagens medievais, pertencendo
antes às categorias que pretendiam aceder a estatutos sociais nobilitantes.
149 Cf. Alida C. Metcalft, «Elementos para a definição do padrão familiar da elite de
São Paulo colonial», in Ler História, n.º 29, 1995, pp. 91-103.
150 Cf. síntese de Margarida Durães, «Necessidades económicas e práticas jurídicas:
problemas da transmissão das explorações agrícolas. Séculos XVIII-XX», in Ler História,
n.º 29, 1995, pp. 67-88.
151 Cf., para um modelo alternativo à primogenitura, Gérard Delille e Antonio Ciuf-
freda, «Lo cambio dei ruoli: primogeniti e cadetti tra quatrocento e settecento nel mez-
zogiorno d’Italia», in Quaderni storici, n.º 83, 1993.

76
Elites locais e mobilidade social em Portugal

sobretudo, a anexação por outras casas com melhor fidalguia e até por
fidalgos com boa linhagem mas com pouco ou nenhum património de
grandes dotes e importantes vínculos. Nos primeiros casos, essas contri-
buições espúrias foram absorvidas pelas casas onde entraram, que as
procuraram silenciar tanto quanto possível. Só os genealogistas e as
lutas genealógicas serviam para recordar essas alianças menos ilustres
ou até mesmo infamantes, quando realizadas com judeus (eram os
«defeitos» e «tições» que se apontavam até às casas da principal nobre-
za do reino). Nos segundos casos, eram os apelidos mais ilustres que se
associavam de preferência às casas, mesmo se os patrimónios tinham
outras origens.
Porém, o modelo prevalecente, pelo menos nos séculos XVII e XVIII,
mesmo nos processos de mobilidade social ascendente, não terá sido
esse. O mais comum era, de facto, a vinculação de bens em favor da
linha do primogénito ou, pelo menos, a adopção de formas de herança
que o privilegiavam. Geralmente, essa opção materializava-se ao cabo
de uma ou duas gerações, pois, se a família pode ser apresentada como
uma «fiction bien fondée», essa forma peculiar de organização familiar
que são as «societés à ‘maison’»152 resulta sempre de um laborioso tra-
balho de construção social. A elite municipal do Porto fornece-nos, uma
vez mais, uma ilustração exemplar, pois a generalidade das famílias que
a compunham só acedeu à nobreza e fidalguia durante o século de Qui-
nhentos: «Fica-se com a impressão de uma evolução radical destas famí-
lias [...] durante o século XVI. Tendo-o começado envolvidas no comér-
cio portuense, sem grandes preocupações da criação de ‘casas’, o que
permitia aos filhos segundos envolverem-se em pé de igualdade com os
primogénitos nos negócios [...] À medida que o século avança, generali-
zam-se os morgados, que são constituídos à custa das perspectivas dos
filhos segundos. Resta para estes a Índia ou a religião, e para as filhas,
por junto, a religião153.» Aliás, as contribuições voluntárias dos irmãos
ou tios foram decisivas, nomeadamente quando tinham ascendido a um
bom benefício eclesiástico.

152 Cf. P. Bourdieu, «À propos de la famille comme catégorie réalisée», in Actes de


la recherche en sciences sociales, n.º 100, 1993, pp. 33 e 35, bem como o conjunto da
sua obra sobre o tema.
153 Pedro Brito, op. cit., p. 166.

77
Elites e Poderes

Podemos invocar outras histórias exemplares e bem mais tardias.


Como a daquele ferrador que, vindo do interior do Minho (Arco de Baú-
lhe), se deslocou para a vila costeira de Vila do Conde, onde chegou a
negociante, juntando apreciável fortuna e alcançando, ao que parece, os
cargos municipais da terra. Dos seus filhos, o mais velho emigrou para o
Brasil, mas dois foram eclesiásticos, um provincial franciscano (com
tutela sobre conventos na terra) e outro prior da matriz da vila. Foi o
irmão mais novo (nascido em 1715) quem acabou por corporizar a
ascensão social dos membros do grupo familiar: «Um casamento com
uma morgada (1745) e as influências de alguns parentes eclesiásticos e
freiras [...] ligaram-nos estreitamente àquela camada da pequena nobre-
za de que já estavam próximos pelos rendimentos e modo de vida e de
que uma cruz de cavaleiro da Ordem de Cristo os fez membros de pleno
direito em 1761.» Várias vezes vereador, construiu uma casa nobre na
vila, vindo o seu primogénito ascender em 1794 ao foro de cavaleiro-
-fidalgo da casa real. Três das irmãs deste último foram freiras e três
irmãos sacerdotes, sucedendo um deles ao tio na matriz da vila154.
A adopção deste modelo reprodutivo vincular, verdadeiro estereótipo
das elites do Antigo Regime português, implicava sempre as altas taxas
de celibato e as carreiras eclesiásticas dos secundogénitos. De resto, não
exigia sempre a fundação de vínculos. Ao nível das formas de herança, a
enfiteuse produzia efeitos análogos. Aliás, muitas casas fidalgas, tal
como as dos lavradores abastados do Norte, radicavam em bens enfitêu-
ticos e não apenas em bens vinculados155. As expressões paradigmáticas
daquele modelo encontram-se, provavelmente, no Norte minhoto, tradi-
cional zona de emigração e de mobilidade social, na Beira Alta central e

154 Cf. Francisco de Vasconcelos, Os Vasconcelos de Vila do Conde, sep. do Bole-


tim Câmara Municipal de Vila do Conde, Vila do Conde, 1987-1989 (cit. da p. 33). Esta
história e este tema são retomados no texto de Fenanda Olival e Nuno G. Monteiro
«Mobilidade social nas carreiras eclesiásticas (1500-1820)», in Análise Social, n.º 166,
2003, cujo texto se retoma, com alterações, nas linhas que se seguem.
155 Cf. Ana Maria da Costa Macedo, op. cit., pp. 102-130, bem como diversos estu-
dos de Maria Adelaide Pereira de Morais; sobre o prolongamento desse modelo nas
categorias superiores da sociedade rural do Noroeste oitocentista, cf. Fátima Brandão,
Terra, Herança e Família no Noroeste de Portugal. O Caso de Mosteiro no Século XIX,
Porto, 1994.

78
Elites locais e mobilidade social em Portugal

nas ilhas dos Açores e da Madeira, ou seja, naquelas zonas onde antes
identificámos as elites locais mais ricas e fidalgas. Mas nem por isso
deixava de ser um modelo universal. Não apenas porque consentâneo
com a perpetuação dos patrimónios indispensável à preservação dos
níveis de rendimento compatíveis com a «decente sustentação» das eli-
tes, mas ainda pela valorização simbólica que se atribuía à imitação dos
comportamentos aristocráticos, pois, como tantas vezes se dizia, «são os
ânimos dos homens como arrebatados por impulso oculto para imitarem
as acções dos Grandes»156.
Embora nos faltem estudos sistemáticos sobre o assunto, parece
indiscutível que a legislação pombalina extinguiu muitos morgados de
pequeno rendimento 157 e limitou fortemente a sua fundação a grupos
que não atingissem patamares razoavelmente elevados de riqueza e de
estatuto nobiliárquico. A multiplicação das instituições de vínculos nas
províncias, tão frequente ainda nos três primeiros quartéis do século
XVIII158, passa a sofrer fortes restrições. Claramente, fundaram-se muito
menos novos morgadios159. No entanto, do Norte (Minho) ao extremo
sul (Algarve)160, passando até episodicamente pelo Brasil colonial161, as
elites provinciais mais bem sucedidas não deixaram de recorrer ainda à
instituição até ao início do século XIX. Geralmente, essa opção materia-
lizava-se ao cabo de uma ou duas gerações, sendo muitas vezes decisi-
vas as contribuições voluntárias dos irmãos ou tios, nomeadamente
quando tinham ascendido a um bom benefício eclesiástico. A crise dos
ingressos eclesiásticos, perfeitamente identificável em Lisboa desde os

156 P. Teodoro de Almeida, Elogio da Illustrissima e Excellentissima D. Ana Xa-


vier... Baroneza de Alvito (1.ª ed., 1758), 2.ª ed., Lisboa, 1803, p. 3.
157 Segundo José Vicente Serrão, registaram-se 15 000 provisões de abolição de
vínculos (cf. Pombalismo e Agricultura, dissertação, mimeo., Lisboa, ISCTE, 1987,
p. 111).
158 Cf. Francisco M. Alves (Abade de Baçal), Memórias Arqueológico-Históricas
do Distrito de Bragança, 3.ª ed., Bragança, t. IV, 1983, pp. 334-350, e t. VI, Os Fidalgos,
1981.
159 Conforme se pode constatar pela documentação do Desembargo do Paço, insti-
tuição pela qual passava agora a sua criação.
160 ANTT, Ministério do Reino, decretos, m. 33, n.º 58.
161 Cf. Maria Beatriz Niza da Silva, «Herança no Brasil colonial: os bens vincula-
dos», in Revista de Ciências Históricas, vol. V, 1990, pp. 291-319.

79
Elites e Poderes

anos 60 de Setecentos162, parece ter sido mais lenta a alcançar a provín-


cia, embora tenha acabado por chegar também aí e se trate de uma reali-
dade ainda mal conhecida163.

Recapitulações

No início deste texto destacámos que a análise das oligarquias muni-


cipais, progressivamente cristalizadas no trânsito do século XVI para o
século XVII, tem constituído um dos temas dominantes da recente histo-
riografia municipal portuguesa. A cronologia desse processo coincidiria,
assim, com análogas tendências detectáveis noutras categorias sociais,
como a primeira nobreza do reino ou o alto clero. Tal perspectiva corro-
boraria, de resto, algumas observações feitas, desde há muito, pela
investigação genealógica, de acordo com as quais a mobilidade social se
revelaria em Portugal muito mais acentuada nos finais da Idade Média e
no século XVI, o período áureo da expansão colonial, do que nos dois
séculos ulteriores.
Questionámos, no entanto, esta leitura. Em primeiro lugar, porque as
elites camarárias, ao invés de configurarem uma categoria social uni-
forme, revestiam uma enorme diversidade quanto ao seu rendimento e
estatuto nobiliárquico, hierarquizando-se claramente no espaço. De
igual modo, os níveis de cristalização e encerramento eram variáveis.
Para mais, mesmo nas câmaras mais ricas e selectas existiam algumas
vias de ingresso que parecem contrariar tal imagem. Finalmente, a ideia
de um investimento preferencial de todas as elites locais nas administra-
ções camarárias ignora o lugar relativamente subalterno do estatuto que
as mesmas conferiam a quem nelas participava. As mais importantes
casas da província, bem como os indivíduos particularmente bem suce-
didos, podiam visar mais alto: servir a monarquia, chegar a Lisboa e
ingressar nos círculos da corte.

162 Cf., sobre o assunto, Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit.,
parte II, capítulo 9. Num sentido coincidente, v. ainda as considerações de Ana Cristina
Araújo, A Morte em Lisboa. Atitudes e Representações, 1700-1830, Lisboa, 1997, pp. 122-
-129.
163 Este parágrafo foi acrescentado à versão original do texto.

80
Elites locais e mobilidade social em Portugal

Apesar da cristalização do topo da hierarquia do espaço social ao


longo dos séculos XVII e XVIII, existia uma apreciável fluidez na compo-
sição das suas zonas intermédias. A principal via para a rápida acumula-
ção de capital económico terá sido sempre, sem discussão, o comércio
de grosso trato, principalmente quando envolvia as colónias. Mas o
caminho privilegiado para a obtenção de capital social (graus de nobre-
za), para além do que era proporcionado pela acumulação de riqueza,
não parece que se alcançasse através das instituições locais, mas sim dos
grandes corpos centrais do reino164: a Igreja, a Inquisição, a Universida-
de165 e, acima de todos, a monarquia. Uma vez consagrado um novo e
amplo estatuto jurídico da nobreza, traçadas as vias de acesso às suas
distinções intermédias (como os hábitos das ordens militares ou as car-
tas de brasões de armas) e definidos os serviços à coroa e corresponden-
te remuneração, a monarquia instituiu-se como o principal regulador da
mobilidade social. Aquele que proporcionava directamente as vias de
ascensão social mais rápidas (magistratura, exército e finanças públicas)
e que reconhecia e sancionava as que tinham lugar noutros terrenos.
Mesmo se até ao fim do século XVIII o cume da hierarquia definida pela
monarquia permaneceu virtualmente encerrado.

164 Depois de 1640, as grandes casas senhoriais leigas parecem ter perdido esse
papel, antes desempenhado, designadamente, pela casa de Bragança, então elevada à
realeza (cf. Mafalda Soares da Cunha, op. cit.).
165 Cf. Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade de Coimbra (1700-1771)
(Estudo Económico e Social), Coimbra, 1995, capítulos II e III.

81
3. O ETHOS DA ARISTOCRACIA PORTUGUESA SOB A
DINASTIA DE BRAGANÇA. ALGUMAS NOTAS SOBRE
CASA E SERVIÇO AO REI*

Questões preliminares

O presente texto pretende apenas apresentar um leque de reflexões


sobre materiais empíricos estudados em alguns trabalhos anteriores166.
O ponto de partida pode bem ser a pluralidade de sentidos que se podem
atribuir à noção de cultura. Sabemos que essa expressão tanto se pode
aplicar a textos normativos onde se procura delimitar ou definir a iden-
tidade nobiliárquica como, por exemplo, aos padrões do consumo cultu-
ral nobiliárquico indiciados, entre outros elementos, pela composição
das respectivas bibliotecas167.
Diversamente das noções demasiado estreitas de cultura, mas tam-
bém da tendência para confundir os discursos sobre a nobreza com a

* Publicação original in Revista de História das Ideias, vol. 19, 1998, pp. 383-402.
166 Cf., por todos, Nuno G. F. Monteiro, A Casa e o Património dos Grandes Portu-
gueses (1750-1834), dissertação de doutoramento, mimeo., Lisboa, 1995, publicado em
edição revista com o título O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da Aris-
tocracia em Portugal (1750-1832), Lisboa, 1998. Quero agradecer a Rui Ramos a dis-
ponibilidade para ler e comentar este texto.
167 Cf., por exemplo, Diego Venturino, «L’ideologia nobiliare nella Francia di Anti-
co Regime. Note sul dibattito storiografico recente», in Studi storici, n.º 1, 1988, e Da-
niel Roche, Les républicains des lettres. Gens de culture et lumières au XVIIe siècle, Pa-
ris, 1988, pp. 84-102.

83
Elites e Poderes

identidade nobiliárquica, pretendemos neste texto sondar o ethos ou


habitus, quer dizer, um «sistema de disposições incorporadas» legado
por anteriores gerações, mas constantemente potenciado e redefinido no
contexto das práticas sociais para as quais se orienta168, de um segmento
bem definido da nobreza portuguesa, a aristocracia de corte, num perío-
do claramente circunscrito, o da dinastia de Bragança consolidada, que
se estende do último quartel de Seiscentos ao início de Oitocentos.
O ethos da aristocracia de corte deve ser apreendido partindo de duas
dimensões fundamentais e da forma como foram representadas no período
considerado: as ideias de casa e de serviço ao rei. Nem uma nem a outra
constituem novidade que distinga decididamente o contexto analisado de
outros anteriores. No entanto, revestiram no período brigantino formas
peculiares que vamos ponderar nas suas múltiplas expressões e que decor-
rem de condições históricas e institucionais específicas. Para tal haverá
que percorrer algumas recentes contribuições bibliográficas que ajudam
a circunscrever os problemas fundamentais.
Entre estas, destacaria as de alguns investigadores que procuram
acentuar a precoce modernização dos valores nobiliárquicos, tomando
como referente o caso francês. Em particular, aqueles que, contra as
imagens da tradição e da hereditariedade, detectam, antes mesmo das
luzes, a afirmação de uma ética do «mérito individual» associada à ideia
do real serviço169. A dar crédito a tais propostas, seria necessário expli-
car por que motivo a noção de serviço à coroa, absolutamente central e
sujeita a uma minuciosa codificação, nunca potenciou similares desen-
volvimentos no caso português.
Em relação à Península Ibérica, outros investigadores têm posto em
relevo a importância da «justiça distributiva», insistindo na dimensão
compulsiva da liberalidade e, finalmente, no seu potencial conservador.
Bartolomé Clavero refere «une mentalité du bénefice rendu obligatoire

168 Os conceitos de ethos ou de habitus têm sido utilizados num sentido próximo ao
que aqui se lhes atribui por autores tão diversos como Nobert Elias e Pierre Bourdieu.
169 Cf., designadamente, Jonathan Dewald, Aristocratic Experience and the Origins
of Modern Culture. France 1570-1715, Berkeley, 1993, e Jay M. Smith, The Culture of
Merit. Nobility, Royal Service, and the Making of Absolute Monarchy in France, 1600-
-1789, Michigan, 1996.

84
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

par la religion» e a antidora como a doação remuneratória170. António


Hespanha, por seu turno, sublinha o carácter obrigado da remuneração
numa perspectiva da «economia do dom». Com referência à liberalidade
régia no Portugal moderno, Hespanha acentuou as respectivas raízes clás-
sicas, interpretando-a à luz de uma concepção «naturalista-corporativa»
da sociedade: «Incluso en el libérrimo acto de dar o recibir un don [...]
tienen que acomodarse a un orden de cosas inscrito de una vez por todas
en la naturaleza delas relaciones sociales171.»
Contra esta leitura, deve-se recordar que os críticos seiscentistas da
graça do príncipe e da corte atribuíram muitas vezes às mercês régias
um indiscutível pendor para redefinir as hierarquias sociais, em oposição
aos estatutos e lugares estabelecidos pela natureza, ou seja, pelo tempo172.
Para a segunda metade de Seiscentos, o caso castelhano, excelentemente
estudado, constitui uma notável ilustração das concepções opostas que se
podiam sustentar sobre a relação entre a graça do príncipe e a estratifica-
ção social: quando a liberalidade régia foi usada num sentido que sub-
vertia frontalmente as hierarquias estabelecidas (episódio do valido Va-
lenzuela), suscitou uma violenta reacção por parte dos Grandes de
Espanha173.
O tema antes discutido conduz-nos a ponderar, finalmente, a relação
entre a graça régia e a hierarquia social no lugar social e institucional
onde esta primacialmente se exercia no período em análise, ou seja, na
corte. Um universo cujas dimensões estão longe de se esgotarem na pro-
posta clássica e fundamental de Norbert Elias.
Das páginas anteriores, duas imagens aparentemente contraditórias
se recolheram: a do sistema de remuneração dos serviços, com base no
caso tardio francês, como um elemento de valorização do «mérito indi-

170 B. Clavero, La grâce du don. Antropologie catholique de l’economie moderne


(ed. espanhola de 1991), pref. de J. Le Goff, Paris, 1996, pp. 78 e segs.
171 A. M. Hespanha, «La economia de la gracia», in La Gracia del Derecho. Eco-
nomia de la Cultura en la Edad Moderna, Madrid, 1993, p.176.
172 Cf. textos de sátira e crítica social, como A Arte de Furtar, crónicas da vida polí-
tica, como As Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, ou tratadistas, como Villasboas
de Sampayo ou Diogo Guerreiro Camacho de Aboim.
173 Cf. Antonio Alvarez-Ossorio Alvariño, «El favor real: liberalidad del príncipe y
jerarquia de la república (1665-1700)», in C. Contininsio e C. Mozzarelli (eds.), Repu-
bblica e virtù. Pensiero politico e monarquia cattolica, Roma, 1995, pp. 393-453.

85
Elites e Poderes

vidual», «modernizador», portanto; a da graça régia, onde aquele siste-


ma se inscreve, como um elemento vocacionado para a preservação da
hierarquia estabelecida. Duas direcções que se devem considerar na aná-
lise do caso português.

A aristocracia de corte da dinastia de Bragança

Tal como sustentámos noutros trabalhos, a elite aristocrática da


dinastia de Bragança constituiu-se fundamentalmente em meados de
Seiscentos em torno de cerca de meia centena de casas de Grandes e
mais algumas dezenas de outras da «primeira nobreza da corte», as
quais acabaram, quase todas, por receber também título. O número total
de casas titulares atingido em 1640 manteve-se praticamente estável até
à última década do século XVIII, embora tenha tido lugar uma apreciável
renovação entre 1640 e 1668, pois pouco menos de metade desapareceu
depois da Restauração, sendo substituída por outras. A notável estabilida-
de alcançada nos cerca de cento e trinta anos posteriores ao fim da guerra
(1668) raras vezes terá sido igualada por outras aristocracias europeias.
Durante mais de um século criaram-se e extinguiram-se muito poucas
casas. Acresce que o núcleo central do grupo se manteve extremamente
estável. No ponto máximo da sua cristalização, em 1750 (ano da morte
de D. João V e da entrada de Pombal para o governo), das 50 casas titu-
lares existentes em Portugal, 34 tinham sido elevadas há mais de cem
anos e, de entre estas, 7 vinham desde o século XV.
Nos primeiros anos da regência de D. Pedro delimitou-se a elite aris-
tocrática do novo regime. As vias para o acesso à Grandeza foram-se
tornando cada vez mais estreitas. Nos cem anos subsequentes poucos
puderam entrar na categoria. Nesse longo período de encerramento, uma
das raras vias de acesso à Grandeza foram os vice-reinados na Índia ou
no Brasil, pois na fase mais restritiva (1671-1760), cerca de metade dos
títulos foram criados em remuneração daqueles serviços. Simplesmente,
como a totalidade dos nomeados eram Grandes, filhos de Grandes ou
nascidos na primeira nobreza, a abertura foi bem limitada. Até 1790
houve dois únicos novos Grandes nascidos fora do referido grupo. Um
caso é apenas uma excepção parcial: o 1.º conde de Alva foi elevado em
1729 na sequência do seu casamento com a riquíssima filha herdeira do

86
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

secretário de D. Pedro II, o desembargador Roque Monteiro Paim (de


facto, sem ascendência no grupo e neto de um simples escudeiro da casa
de Bragança), embora o próprio fosse secundogénito do 6.º conde de
Atouguia. O outro é uma excepção total: o 1.º conde de Oeiras (1759),
1.º marquês de Pombal e pai (quando se tornou evidente que o seu pri-
mogénito não ia ter descendência) do 1.º conde da Redinha (1776), seu
secundogénito. De resto, o ministro de D. José (1750-1777) conseguiria
que a sua casa acumulasse fontes de rendimento que a situavam entre as
quatro ou cinco mais ricas do reino.
Sublinhe-se que entre 1670 e 1832 nenhuma casa titular desapareceu,
ou se viu afastada da vida da corte, em resultado do declínio económico
dos seus detentores. As generosas doações régias e, quando os credores
apertavam, a nomeação pela coroa de administrações judiciais permitiram
sempre fazer frente a tais situações. Também nenhuma se extinguiu por
ter apenas sucessão feminina legítima directa.
Essa invulgar estabilidade decorreu da conjugação de dois tipos de
factores.
Por um lado, a coroa contribuiu de forma significativa para a estabi-
lização da elite titular, não só restringindo as novas concessões de títu-
los, como aceitando as normas de sucessão que se foram adoptando.
Como quaisquer outros bens da coroa, os títulos nobiliárquicos estavam
sujeitos à Lei Mental. A coroa, acedendo ao pedido do Braço da Nobre-
za nas Cortes de 1641, concedeu preferência às linhas descendentes
sobre as laterais na sucessão dos bens da coroa, corrigindo definitiva-
mente a formulação inicial da lei. Sobretudo, aceitou que se impusesse
como norma tácita, embora solicitada caso a caso, a isenção à Lei Men-
tal para as sucessões femininas, concedendo ainda, em muitos casos,
dispensas para as sucessões de colaterais. Aliás, esses procedimentos
foram, em várias ocasiões, reputados parte integrante do pacto constitu-
cional do regime brigantino, como veremos. A consolidação da dinastia
de Bragança explica, assim, em larga medida a estabilização do grupo e
a quase ausência de novas admissões durante mais de um século. Mas
não chega para explicar tudo. Não explica, designadamente, o reduzido
número de extinções e uniões de casas verificado até que se iniciasse a
nova explosão de títulos na década de 90 do século XVIII.
De facto, dentro dos marcos balizados pela monarquia, a reprodução
da elite titular passou pelas estratégias activamente desenvolvidas pelas

87
Elites e Poderes

casas que a compunham. Delas nos ocuparemos na alínea seguinte. Mas


importa sublinhar desde já que essas opções aristocráticas favoreceram
de forma inequívoca a concentração dos principais ofícios civis e ecle-
siásticos da monarquia e das correspondentes remunerações em doações
régias num número restrito de casas, precisamente as que constituíam a
elite titular.
O processo antes descrito correspondeu, com efeito, a um espectacu-
lar fenómeno de acumulação das doações régias. Na segunda metade do
século XVIII, cerca 16% das receitas das casas titulares provinham de
senhorios e outros bens da coroa. As comendas das ordens militares, em
compensação, representavam 31% das rendas das mesmas casas e todas
as de titulares antigos tiveram comendas (em média, administravam cer-
ca de cinco). No conjunto, os bens sujeitos a confirmação régia equiva-
liam a mais de 55% das suas receitas globais.
A evolução da distribuição das comendas é bem significativa. Nos
primórdios do século XVII, os comendadores das ordens militares eram
uma categoria social numerosa, que abrangia mais de quatro centenas de
indivíduos e casas. Século e meio mais tarde (1755), o número de
comendadores reduziu-se a bem menos de metade e 50 casas titulares
absorviam já cerca de dois terços do rendimento conjunto. A distribui-
ção dos rendimentos das comendas fornece-nos, assim, um retrato
impressionante da evolução do topo da pirâmide nobiliárquica: desde o
início do século XVII, o grupo sofre uma espectacular diminuição da sua
dimensão, passando as casas titulares antigas (quase todas com Grande-
za) a absorver a maior parte desses rendimentos. O essencial desse pro-
cesso teve lugar antes de 1755, não sendo alterado pela evolução ulte-
rior.
O discurso liberal sublinhou, como se sabe, a imagem de circularida-
de do sistema apresentado. Embora se trate de um lugar-comum, depois
muito repetido, a versão de um texto liberal de meados dos anos 20 é
particularmente clara: «[...] a Nobreza de Portugal, desonerando-se da
maior parte dos encargos públicos, monopoliza todos os cargos importan-
tes do Estado, ou sejam d’emolumento, ou sejam de pura distinção − As
Presidências dos Tribunais − as Comissões diplomáticas − os Governos
lucrosos das Colónias − os Postos maiores do Exército − os Grandes
Benefícios Eclesiásticos − as Comendas − os Bens da Coroa foram

88
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

sempre, e ainda agora são, o apanágio das famílias nobres, quase por
uma sucessão hereditária: se havia algumas excepções eram só em favor
de algum valido dos Reis, ou de alguma sevandija do Palácio, ou de
algum parasita adido às antecâmaras e aos salões da Nobreza174.»
Interessa neste texto menos a discussão da imagem antes citada, a
qual visava objectivos políticos bem precisos, do que perscrutar o outro
lado da questão. Ou seja, o sistema de valores e de comportamentos que,
ao mesmo tempo, a permitiam e a tornavam legítima e defensável aos
olhos da aristocracia e das instituições centrais da monarquia do Antigo
Regime.

O ethos aristocrático: a casa

Como tantas outras no mundo de então, a sociedade aristocrática por-


tuguesa era, em primeiro lugar, uma sociedade de «casas»175. O seu có-
digo de conduta fundamental era definido pelo direito vincular, que tive-
ra uma proveniência castelhana176 e se fora difundindo gradualmente,
embora a maior parte dos vínculos administrados pelas casas aristocráti-
cas portuguesas do período estudado houvessem sido fundados no sécu-
lo XVI, alguns até mais tarde. Tratava-se de um conjunto de preceitos
antigos e de há muito conhecidos, mas que adquiriram uma nova fun-
cionalidade no contexto posterior ao fim da guerra da Restauração,
quando a elite aristocrática se estabilizou, à medida que a própria dinas-
tia se foi consolidando.

174 Revolução anticonstitucional em 1823, suas verdadeiras causas e efeitos, Lon-


dres, 1825, p. 4 (atribuído a Simões Marchiochi e/ou José da Silva Carvalho).
175 Cf. diversos trabalhos de Pierre Bourdieu, designadamente «À propos de la fa-
mille comme catégorie réalisée», in Actes de la recherche en sciences sociales, n.º 100,
1993.
176 Nesse sentido, pode afirmar-se que «la primogenitura castellana seria […] el
modelo europeu de una antropología nobiliaria» (B. Clavero, «Del estado presente de la
familia passada», in Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno,
n.º 18, 1989, p. 588).

89
Elites e Poderes

A primeira e fundamental dimensão das casas dos Grandes traduzia-


-se nas obrigações impostas a todos quantos nelas nasciam177. De facto,
a estreita disciplina doméstica abrangia não só os sucessores, mas todos
os filhos e filhas, e visava objectivos bem definidos. Em primeiro lugar,
garantir a sua perpetuação, que se procurava, desde logo, através do
esforço para obter sucessão biológica varonil e, na falta desta, por um
conjunto de práticas destinadas a encontrar sucessão, evitando, tanto quanto
possível, os riscos de anexação por outras casas. Em seguida, favorecer o
seu «acrescentamento». Antes de mais, através do exclusivismo social.
Assim, os sucessores (que desde 1651 se casaram em cerca de 80% dos
casos com filhas de Grandes e na quase totalidade com senhoras da pri-
meira nobreza da corte ou do estrangeiro) e as filhas (valores quase
idênticos até 1800) estavam sujeitos a uma apertada homogamia matri-
monial. A esmagadora maioria dos filhos secundogénitos e das filhas
que não encontravam colocação matrimonial dentro da primeira nobreza
era encaminhada para o clero. De resto, também destes se esperava que
contribuíssem para engrandecer a casa de seus pais, irmãos ou sobri-
nhos. Desta forma, a casa e a disciplina da casa traduziam-se, em pri-
meiro lugar, num conjunto de deveres que se estendiam a todos quantos
nela tinham nascido. E que a esmagadora maioria efectivamente acatou.
Assim se favorecia o monopólio tendencial dos principais ofícios da
república e a correspondente remuneração dos serviços em doações
régias, parte delas decorrente da actividade dos secundogénitos celibatá-
rios. Ao longo do período analisado, ao contrário de outros anteriores,
foi quase sempre através das doações régias que as grandes casas aristo-

177 Cf., sobre o assunto, Nuno Gonçalo Monteiro, «Casa e linhagem: o vocabulário
aristocrático em Portugal nos séculos XVII e XVIII», in Penélope. Fazer e Desfazer a
História, n.º 12, 1993, e «Casamento, celibato e reprodução social: a aristocracia portu-
guesa nos séculos XVII e XVIII», in Análise Social, n.os 123-124, Homenagem a A. Sedas
Nunes, vol. I, 1993. O tema é largamente desenvolvido em O Crepúsculo dos Grandes…,
cit., parte II. [Um retrato particularmente sugestivo do «governo da casa» aristocrática num
contexto em que os valores de referência começam a ser questionados pode encontrar-se
em Nuno G. Monteiro (selecção, introdução e notas), Meu pai e muito senhor do meu
coração. Correspondência do Conde de Assumar para o seu pai, o Marquês de Alorna
Vice-rei da Índia (1744-1751), Lisboa, 2000.]

90
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

cráticas acumularam novas fontes de rendimento e só muito secunda-


riamente por via de casamentos ou da compra de bens178.
Em boa medida como resultado do reforço dessa relação de serviços
com a coroa, a casa aristocrática, no período analisado, revestia ainda
outras características que importa sublinhar, designadamente ao nível das
fontes de rendimento e da forma como estas eram encaradas. De facto, a
composição e a administração dos patrimónios pautavam-se pelo pre-
domínio de um modelo que pode ser definido, sem exagero, como
«ultra-rentista». Desde logo, a maior parte das receitas era, em média,
constituída pelo «direito a receber rendas», maioritariamente doadas
pela coroa, como se disse, e não por «propriedade plena», a qual corres-
pondia, em média, a pouco mais de um quinto dos ingressos. Mas tam-
bém a quase totalidade dos bens possuídos em «propriedade plena» era
geralmente arrendada: os bens em exploração directa representavam
apenas, em média, cerca de 3% das receitas globais. Esse tipo de admi-
nistração era ainda reforçado por uma tendência fortíssima para o endi-
vidamento, a qual, por seu turno, acentuava todas as características antes
apontadas e, em particular, a estreita dependência em relação à coroa e
às suas instituições, designadamente através da nomeação de adminis-
trações judiciais, situação pela qual passou desde meados do século
XVIII a maior parte das casas. De resto, esse endividamento era um dos
factores que restringiam a capacidade de consumo e de investimento de
casas cujas despesas correntes revestiam uma enorme rigidez, decorren-
te do peso desmesurado dos gastos com a cozinha, as criadagens (a
«família», como então se dizia) e as cavalariças179.
Um aspecto essencial era a limitada importância que o exercício dos
poderes senhoriais tinha para estas casas, ao contrário do que se verifi-
cara no período anterior a 1640, designadamente com a casa de Bragan-

178 Os dotes dos casamentos dos Grandes estabilizaram o seu valor em finais do
século XVII, em montantes muito inferiores aos do início da centúria, e deixaram prati-
camente de incluir bens de raiz; sobre este assunto, cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Cre-
púsculo dos Grandes…, cit., parte II, capítulo 4.
179 Cf., sobre todos estes temas, Nuno Gonçalo Monteiro, «O endividamento aristocrá-
tico (1750-1832). Alguns aspectos», in Análise Social, n.os 116-117, História Social das
Elites, 1992, «Ethos aristocratico y estructura del consumo: la aristocracia cortesana por-
tuguesa a finales del Antiguo Régimen», in Historia Social, n.º 28, 1997, e O Crepúscu-
lo dos Grandes…, cit., parte III.

91
Elites e Poderes

ça180. Entre 1742 e 1830, de um total de 43 casas estudadas, verificamos


que quase metade não tinha direito a exercer quaisquer funções jurisdi-
cionais; em média, as ditas casas iam buscar apenas 11,7% das suas ren-
das a territórios do seu senhorio; apenas em meia dúzia de casos esse
valor ultrapassava um terço das respectivas receitas e somente em dois
ou três casos a metade. As vastas clientelas provinciais já não consti-
tuíam, assim, uma dimensão essencial da identidade das principais casas
aristocráticas.
Por fim, importa destacar as características dos padrões educacionais.
A educação dos primogénitos das casas não sofreu nenhuma evolução
drástica neste período, apesar da criação pombalina do Colégio dos
Nobres em 1759, que a maioria não frequentou. O essencial permane-
ceu: educação doméstica, seguida do ingresso na instituição militar em
idade precoce, na maior parte dos casos. Isto na mesma altura em que,
nas principais monarquias da Europa ilustrada, os sucessores das primei-
ras nobrezas respectivas passavam maioritária e crescentemente pela
socialização dos colégios, das escolas militares ou das academias. E, no
caso singular da Inglaterra, chegavam até a ter dominantemente a fre-
quência universitária, reservada em Portugal apenas para os secundogé-
nitos encaminhados para a carreira eclesiástica. Naturalmente, os padrões
educacionais são indissociáveis de algumas das marcas fundamentais da
cultura de corte portuguesa. De facto, sem que daí se possa inferir, como
sugeriu recentemente A. Hespanha, que Portugal era uma «sociedad sin
corte»181, a verdade é que a cultura de corte portuguesa se caracterizava
por uma indiscutível modéstia e austeridade. As colecções particulares
de pintura, as grandes bibliotecas, as orquestras particulares, a moda
cosmopolita, enfim, parecem ter aqui uma expressão pouco relevante,
sobretudo depois de meados de Setecentos.

180 Nesse sentido, o contexto analisado por Mafalda Soares da Cunha na sua disser-
tação de doutoramento sobre as redes clientelares da casa de Bragança (1560-1640)
[Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas Senhoriais e
Redes Clientelares, Lisboa, 2000] pode bem servir de contraponto daquele a que nos
reportamos.
181 Cf. A. Hespanha, La Gracia del Derecho…, cit., p. 193.

92
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

O ethos aristocrático: o serviço real

A teoria dos serviços representava o núcleo fundamental da ideologia


nobiliárquica e aristocrática em Portugal no período em apreço. Era esse
o princípio de legitimação dos morgados já claramente enunciado nas
Ordenações (1603): «A tenção dos Grandes e Fidalgos, e pessoas nobres
de nossos Reinos e Senhorios, que instituem Morgados dos seus bens
[...] é para conservação e memória de seus nomes e acrescentamento de
seus estados, casas, e nobreza, e para que em todo o tempo se saiba a
antiga linhagem, donde procedem, e os bons serviços, que fizeram aos
Reis nossos predecessores, pelos quais mereceram deles serem honrados
e acrescentados, do que resulta grande proveito a estes Reinos, para que
neles haja muitas casas e Morgados para melhor defensão e conservação
dos ditos Reinos, e nos poderem os possuidores deles com mais facili-
dade servir, e aos Reis que pelo tempo em diante nos sucederem na Co-
roa» (liv. IV, t. C, n.º 5). Mas que toda a legislação ulterior, incluindo a
pombalina, iria reafirmar. Ao rei interessava «a conservação, e [...]
aumento da principal Nobreza dos meus Reinos», e que esses fidalgos
tivessem «os meios para se empregarem no serviço da minha Coroa; e
para acrescentarem nele o esplendor das suas respectivas famílias» (lei
de 17 de Agosto de 1761). Tais princípios, que se associavam à «justiça
distributiva» na remuneração de serviços, foram inúmeras vezes invoca-
dos em toda a prática institucional da última fase da monarquia de Anti-
go Regime. A espantosa difusão que tiveram em Portugal estendia-se,
aliás, muito para além da «primeira Grandeza», a quase todos os poten-
ciais produtores de serviços e candidatos a uma remuneração: fossem
eles um capitão-mor da província, ou um financeiro que pensava poder
incluir a renovação dos contratos públicos entre as mercês que legiti-
mamente lhe cabiam182.

182 Cf. Fernando Dores Costa, «Capitalistas e serviços: empréstimos, contratos e


mercês no final do século XVIII», in Análise Social, História Social das Elites, n.os 116-
-117, 1992, pp. 441-460. Ainda no mesmo sentido, cf. Magda Pinheiro, Os Portugueses
e as Finanças no Dealbar do Liberalismo, Lisboa, 1992, pp. 18 e segs. A simples con-
sulta de muita documentação da administração central (do Ministério do Reino ao
Desembargo do Paço) confirma, sem margem para dúvidas, a afirmação produzida.

93
Elites e Poderes

No entanto, foi de facto como elemento fundamental da ideologia


aristocrática que esses preceitos mais se difundiram. Desde logo, no dis-
curso daqueles que procuravam legitimar a perpetuação do grupo peran-
te as ameaças dos novos tempos. Como se dizia num texto atribuído ao
6.º conde de São Lourenço em 1803: «A Nobreza em Portugal algum
dia alcançava-se passo, a passo, e cada grau de elevação recaía sobre
facto marcado com o cunho de utilidade do Estado; e para não deixar
adormecer sobre os Louros, houve cautela de conservar os Nobres sem-
pre na dependência, e necessidade de servir, sendo as concessões hono-
ríficas sempre pessoais, e não podendo gozar delas nem o imediato su-
cessor, sem nova graça fundada em serviços. E como havia grande
economia na concessão das honras, ainda que estava aberta a estrada,
para chegar a todas, não bastava uma vida correr, eram precisas muitas
gerações antes, que uma família chegasse às maiores distinções […]
À vista disto a Nobreza antiga, isto é, a que vem desde o Sr. Rei D.
Afonso V, ou mais de trás, representa uma grande massa de serviços
feitos a Portugal: por consequência uma fidelidade absoluta aos interes-
ses de Portugal, deve achar-se infalivelmente nos representantes destas
famílias183.»
Mas os preceitos antes referidos também se vulgarizaram enquanto
dimensão essencial dos comportamentos correntes de todos quantos
faziam parte do grupo, como tal se incorporando nas correspondências e
outros registos quotidianos. Servir a monarquia, produzir serviços, era,
de facto, uma necessidade evidente e confessada, que a esmagadora
maioria procurou concretizar184. Com a habitual franqueza, escreveu o
futuro 1.º conde de Povolide nas suas «memórias íntimas», reportando-
-se ao ano de 1682: «Aparelhava-se a Armada para se buscar o Duque
de Saboya Com grande magnificência, o que vendo eu, e que não fazia

183 «Memorias politicas», Arquivo Distrital de Braga, Fundo Barca/Oliveira, pasta


n.º 35, identificado por Joaquim Pintassilgo, Diplomacia, Política e Economia na Tran-
sição do Século XVIII para o Século XIX. O pensamento e a Acção de António de Araú-
jo de Azevedo (conde da Barca), mimeo., Lisboa, FCSHUN, 1987, pp. 170-172 e 212.
184 De um total de cerca de três centenas e meia de Grandes que foram senhores das
suas casas entre 1600 e 1830, constatou-se que quase 90% prestaram serviços à monar-
quia no exército, no paço, nos tribunais, nos «governos das conquistas, etc. (cf. Nuno
Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes…, cit., parte IV, quadro n.º 1). Quase
todos os que o não fizeram foi porque faleceram muito novos.

94
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

serviço em ser Capitam de Cavalos da Ordenança [...] tratei de me embar-


car, como embarquei nesta Armada Servindo Sua Majestade, com muita
despesa da própria fazenda185.» E, anos mais tarde, afirmava a jovem
condessa de Atouguia: «Foi o meu sogro o Snr. Conde de Atouguia, D.
Luiz, nomeado Vice-rei da Bahia […] era util para a caza que elle fizes-
se mais este serviço para o bom exito do seu despacho186.» Evidente-
mente, os serviços prestados nunca deixavam de ser minuciosamente
descritos, contabilizando-se os anos, meses e dias, quando, depois, se
pedia a sua remuneração e se esperava pelo correspondente despacho187.
Os requerimentos pedindo essa remuneração, remetidos na segunda
metade de Setecentos para a Secretaria de Estado dos Negócios do Rei-
no, aí estão às centenas para o comprovarem188.
A remuneração dos serviços dos vassalos, «feitos na Guerra, Embai-
xadas, Secretarias de Letras, e nos Tribunais e Serviços do Paço»189, por
seu turno, foi sendo progressivamente regulamentada, tal como as regras
da sua transmissibilidade. Obedecia, com efeito, a um processo burocrá-
tico perfeitamente estabelecido (Regimento das Mercês de 1671). Além
disso, serviços tão relevantes para as grandes casas aristocráticas como
os de vice-rei da Índia ou de dama no paço (provavelmente, a mais
importante fonte de novas mercês e de novas vidas nos bens já possuí-
dos durante o século XVIII...) tinham uma tabela de remuneração tacita-
mente reconhecida190. A margem de arbítrio da coroa (ou das institui-

185 ANTT, casa de Povolide, pacote 19-A, fl. 89 v.º


186 A ultima condessa de Atouguia. Memorias autobiograficas, Pontevedra, 1916,
p. 6.
187 Isto quando os serviços a prestar não eram logo acompanhados do respectivo
despacho no próprio acto da nomeação para um ofício, facto muito frequente no caso
dos vice-reinados nas «conquistas».
188 Em particular, ANTT, Ministério de Reino, decretos, n.os 1 a 62.
189 Decreto de 15 de Agosto de 1706, esclarecendo o Regimento das Mercês de 19
de Janeiro de 1671. Um excelente levantamento da legislação sobre o assunto encontra-
-se no manuscrito sucessivamente reproduzido na BNL, cód. 250 (que terá pertencido ao
conde de Cavaleiros); cf. ainda o «Regimento do Registo das Mercês» de 6 de Maio de
1779.
190 «A regra estabelecida pelos Senhores Reis deste Reino nos despachos das Damas
de Palácio, consiste em uma Tença de 400$000, ou de 500$000 reis sendo Camaristas, e
em uma vida na mesma Tença, em os bens da Coroa, e ordens. Esta é a tarifa inalterável
de semelhantes mercês...» [de um requerimento do conde copeiro-mor (Vila Flor),

95
Elites e Poderes

ções que a corporizavam) ficava, assim, aparentemente restringida pela


existência de normas que estabeleciam uma relação bem definida entre
os serviços e as mercês correspondentes.
A referida regulamentação reforçava a legitimidade das doações régias
feitas nos devidos termos e, em particular, a das comendas. Com efeito,
até mesmo os pensadores liberais mais intransigentes, como Manuel Bor-
ges Carneiro, reconheciam que a «remuneração de serviços, decretados
na forma da lei», constituía um título legítimo de propriedade (conside-
rada como o produto do trabalho), pelo que a abolição de rendimentos
deles decorrentes não se podia fazer sem que houvesse lugar a indemni-
zação191. O próprio Mouzinho da Silveira, seu principal autor, aceitaria
o direito à indemnização em favor dos donatários que não fossem
«indignos», no contexto da publicação da legislação abolicionista liberal
de 1832.
No entanto, não foi apenas o peso da ideologia dos serviços, mas
ainda o facto de a monarquia poder dispor até tarde de imensos recursos
para distribuir que permitiu que até à revolução liberal de 1832-1834
pudesse prosseguir sem interrupções uma prática que noutras paragens
de há muito se tinha esgotado, ou se restringia a tenças ou honorários de
duração limitada no tempo. De facto, se a natureza prebendal das
monarquias ditas absolutas («le roy dépensier»192) é muitas vezes apre-
sentada como uma característica genérica das mesmas, o que as monar-
quias ditas «absolutas» tinham para distribuir nos séculos XVII e XVIII
em França e em Espanha eram fundamentalmente receitas extraordiná-
rias, muitas vezes associadas ao desempenho de cargos (o equivalente
em Portugal às tenças e aos ordenados). No caso espanhol, parece que

ANTT, Ministério do Reino, maço 356]. Acrescente-se que a referida vida nos bens da
coroa e ordens podia fazer parte do dote das camaristas, revertendo em favor das casas
dos respectivos maridos, ou, quando não chegavam a casar-se, ser doada à casa daqueles
onde tinham nascido, administrada agora pelos seus irmão ou sobrinhos.
191 Cf. Nuno G. Monteiro, «Revolução liberal e regime senhorial. A ‘questão’ dos
forais na conjuntura vintista», in Revista Portuguesa de História, t. XXIII, 1988, p. 162
(reed. neste livro, pp. 179-213).
192 Cf. Alain Guery, «Finances et politique, le roy dépensier», in Annales E. S. C.,
n.º 6, 1984, pp. 1241-1269.

96
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

no século XVIII até isso se tinha esgotado193. Em Portugal, pelo contrá-


rio, a coroa tinha muito mais e muito maior variedade de coisas para
doar e confirmar: não só as tenças e os ordenados, mas ainda os senho-
rios e, em particular, o imenso bolo das comendas. E, se o valor relativo
das tenças foi declinando e os senhorios mais rendosos foram doados de
juro e herdade antes de meados de Quinhentos194, o mesmo não aconte-
cia com as comendas, sempre concedidas em vidas. Essa arcaica relação
de serviços com a monarquia, já em declínio em Espanha no século
XVIII, pôde manter-se, assim, incólume em Portugal até 1832-1834,
quando foi definitivamente abolida pela revolução liberal triunfante. Até
esse momento fundamental de ruptura, a coroa portuguesa continuou a
poder doar comendas que podiam regressar (e de facto regressaram, por
vezes) à sua posse.

As doações régias e a cristalização aristocrática

Como foi que o sistema de remuneração de serviços pela monarquia


em Portugal, ao invés de promover a sua dispersão, tendeu a concentrar
cada vez mais as doações régias, pelo menos até finais do século XVIII,
num número muito reduzido de casas? Já se procurou antes responder a
esta questão, mas há alguns aspectos ainda não discutidos que merecem
ser realçados.
Em primeiro lugar, há que sublinhar a importância e os constrangi-
mentos decorrentes de alguns mecanismos institucionais que rodeavam
as doações régias. Desde logo, o facto de os bens da coroa doados em
períodos remotos (primórdios da 2.ª dinastia) terem sido frequentemente
concedidos de juro e herdade ou até, num elevado número de casos,
incorporados em morgados com consentimento régio. Embora não per-
dessem a natureza de bens da coroa, as fontes de rendimento assim doa-
das não careciam da obtenção de novas vidas para se renovarem nas
casas que as administravam.

193 Cf., sobre esta matéria, com as respectivas referências bibliográficas, Nuno Gon-
çalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., pp. 214-217.
194 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes…, cit., pp. 349-352.

97
Elites e Poderes

No conjunto, porém, a parcela, em média, mais importante dos bens


da coroa e ordens era, de facto, concedida em vidas. Era sempre esse,
designadamente, o regime de concessão das comendas. Um factor rele-
vante na perpetuação das comendas nas casas titulares era a própria
forma que revestiam geralmente os requerimentos e despachos de remu-
neração dos serviços requeridos pelas casas titulares. Pedia-se e (quando
era o caso) recebia-se, na maior parte dos casos, «uma vida mais nos
bens da coroa e ordens» administrados pela casa, quer dizer, em todos
os bens da coroa doados em vidas e em todas as comendas administra-
das pelo anterior senhor da casa. Independentemente de serem muitos
ou poucos. A forma mais corrente dos despachos de remuneração dos
serviços tendia, em síntese, a preservar os bens da coroa e ordens já
administrados pelas casas nobiliárquicas. Mas exigia, em cada geração,
a existência desses serviços ou, pelo menos, dos respectivos despachos.
Era necessário, por consequência, ter acesso aos ofícios que permitiam a
sua produção.
Um segundo vector decisivo que favoreceu a concentração das doa-
ções régias foi, naturalmente, o predomínio até finais de Setecentos,
com poucas e pontuais excepções, da velha ideia de que as antigas casas
e linhagens constituíam o alfobre onde se deviam procurar os melhores
servidores para os ofícios superiores da república195. Uma formulação
tardia dessa ideia, que suscitou vivas polémicas no século XVII mas só
voltou a ser sistematicamente discutida nos finais do século XVIII e iní-
cios do XIX196, pode ser encontrada numa obra influente de finais de
Seiscentos, postumamente editada, atribuída ao jurista Diogo Guerreiro
Camacho de Aboim (1661-1709). À pergunta que «ventilão os Politicos,
se são mais aptos para os cargos os nobres que os humildes?» responde-
-se assim: «Respondemos à questão proposta com esta distinção: ou os
nobres de nascimento degenerão da virtude dos seus mayores, ou gene-
rosamente a conservão: no primeiro caso assentamos, que são melhores

195 Cf., adiante, o capítulo «Poder e circulação das elites em Portugal: 1640-1820».
196 Cf., em particular, a célebre polémica que terá oposto o marquês de Penalva
(«Carta de um Vassalo Nobre ao Seo Rey») ao futuro conde da Barca («Resposta à Car-
ta do Marquez de Penalva, por um portuguez amigo do seo Soberano») e a José Agosti-
nho de Macedo («segunda resposta à Carta de um Vassalo Nobre ao seo Rey, 1806»),
publicada no Investigador Portuguez em Londres, n.º 36, vols. IX e X, 1814.

98
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

para os postos os humildes virtuosos, que os nobres viciosos [...] no se-


gundo temos por sem duvida, que de justiça deve ser preferido hum
nobre virtuoso a hum humilde virtuoso197.» E, a rematar, sublinha-se
que «os Nobres são a pedra iman do governo, honras, e postos [...] e
assim não ha duvida, que em todas as politicas he preferida justamente a
nobreza, por ter da sua parte a presunpção de que ha de corresponder a
rama ao tronco, o fruto às raizes»198. De facto, estes preceitos foram
genericamente cumpridos não só no que se refere aos principais ofícios
civis da monarquia (presidências de tribunais, comandos militares, vice-
-reinados coloniais, etc.), mas também aos principais benefícios ecle-
siásticos: até ao último quartel de Setecentos, a quase totalidade dos pre-
lados das principais dioceses era filha de Grandes ou bastardos régios.
De resto, como se disse, os serviços desses eclesiásticos foram quase
sempre decisivos na elevação das casas onde tinham nascido.
Mas existiu um último e decisivo factor que garantiu a cristalização
aristocrática das mercês régias no período brigantino. Os próprios bene-
ficiários não deixaram de o invocar algumas vezes. O advogado da casa
dos marqueses de Alvito aduzia explicitamente em 1780: «O fim com
que os Soberanos fazem Mercê aos Grandes das Comendas e bens da
Coroa, dirige-se a engrandecer o fundo das Suas Casas para que sendo
maiores as suas rendas, pudessem eles Sustentar com maior decência o
esplendor das suas Famílias, e Servir ao Príncipe, assim na Paz como na
Guerra. Foi este o objectivo com que nas Cortes de 1641, Se pediu ao
Sr. Rei D. João 4.º a continuação de Semelhantes bens para os Sucesso-
res das Casas. Este fim tão interessante, tem feito constituir um costume
tão inalterável de continuar estas Mercês nos Sucessores, que os Senho-
res Reis não costumam denegar estas Sucessões, ou com Supervivencias
por Serviços ou com Mercês gratuitas para não privar as Casas do que
fás avultar os Seus Patrimónios, que pela maior parte São constituídos
em bens da Coroa e ordens. He esta uma verdade, que não precisa mais

197 Diogo Guerreiro C. de Aboim, Escola moral, politica, christã e juridica dedica-
da a el Rey D. João V por Domingos Gonçalves, Lisboa, 1747, pp. 223-229.
198 Id., ibid., p. 317.

99
Elites e Poderes

demonstração, que a experiência199.» E, quando, em 1796, pedia a reno-


vação na sua pessoa do título e demais bens da coroa e ordens da casa
em que sucedera ao irmão, invocando os «relevantes serviços feitos à
Coroa destes Reinos, e ao Estado» pelos seus predecessores desde a
Restauração, afirmava o futuro 6.º conde de Soure: «Houve V. Majesta-
de por bem declarar, depois da sua exaltação ao Trono, que a positiva, e
deliberada vontade de alguns Soberanos Seus Augustos Predecessores, e
a sua, fora sempre, e era, que as honras, e mercês que tinham entrado
nas Casas em remuneração de Serviços feitos em guerra viva, conti-
nuassem nos Sucessores das mesmas Casas, ainda que fossem transver-
sais.» E, em seguida, exemplificava, entre outros, com o 5.º marquês de
Fronteira, que sucedera ao irmão «gratuitamente, sem mais Serviços», e
com o 2.º conde de Sandomil, que sucedera ao tio «sem mais Serviços,
nem outro objecto, que honrar a memória dos primeiros Serviços bélicos,
que fizeram entrar o mesmo título na Casa»200. E, na verdade, tanto num
caso201 como no outro202 as afirmações são correctas.
Em síntese, a preservação das grandes casas que desde a Restauração
tinham sustentado a dinastia com as armas na mão estava inscrita no
pacto de regime. Mais exactamente revestia uma natureza constitucional.
Todos o sabiam, embora só muito pontualmente tal se escrevesse. Mas,
na prática das instituições, essa realidade era quotidianamente reconhe-
cida e sancionada.
Essa lógica podia, porém, ser posta em causa. Dependia sempre de
despachos casuísticos. As fontes da época abundam em testemunhos
sobre a margem de arbítrio «político» que, apesar de tudo, rodeava essas
decisões. Como afirmava D. João V na sua espantosa correspondência,
mesmo dentro de um círculo excepcionalmente restrito, «contentar a
todos he dificil, ainda havendo mil comendas que dar»203. Mas antes do

199 Alegação extraída do processo, pelo qual a casa do Louriçal pretendeu apossar-
-se dos bens das ordens e parte dos da coroa da casa de Alvito (ANTT, AFF, FG, letra
M, maço 1510).
200 ANTT, Ministério do Reino, decretos, maço 58, n.º 63.
201 Ibid., decretos, maço 17, n.º 23 (1769).
202 Ibid., maço 705.
203 Eduardo Brazão, D. João V. Subsídios para a História do Seu Reinado, Porto,
1945, p. 104.

100
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

vintismo apenas num momento foram postos em causa de forma bastan-


te global os procedimentos mais correntes: precisamente, durante o
período pombalino, como veremos. Antes, porém, importa sublinhar que
o ponto acima discutido permite encarar com uma nova luz o problema,
tantas vezes abordado, do sistema das doações régias em Portugal ou do
«feudalismo português». Retomando, para o efeito, a distinção weberia-
na entre «prebenda» e «feudo»: «Desde el punto de vista jurídico hay
uma deferencia entre la ‘prebenda’ y el feudo [...] la primera consiste en
una remuneración vitalicia y no hereditaria de su titular en concepto de
sus servicios reales o ficticios en forma de rentas del cargo [...] En cam-
bio [...] en la alta Edad Media un feudo no hereditario no era considera-
do como feudo pleno204.» Mas o próprio Max Weber admite que exis-
tem «puntos de transición muy fluctuantes» entre os dois tipos ideais.
É, precisamente, nessas situações intermédias que se podem e devem
situar as doações régias em vidas, das quais era objecto a elite aristo-
crática portuguesa de Antigo Regime. Aproximando-se teoricamente
das concessões prebendais, a prática das doações régias resvalava ten-
dencialmente para a hereditariedade... sem nunca a alcançar plenamente.
A coroa manteve sempre uma margem irredutível de arbítrio. Por isso
Mouzinho da Silveira gostava de comparar o sistema português com a
Turquia, a cujo sistema feudal Max Weber veio a atribuir um carácter
prebendal.
A margem de arbítrio da coroa exprimiu-se notoriamente durante o
período pombalino, que representou, de facto, uma primeira e impres-
sionante fase de perturbação nas práticas correntes de renovação dos
títulos e bens da coroa e ordens. Com diversos pretextos, adiaram-se
despachos, bloquearam-se os encartes nos títulos, nos bens da coroa, nas
comendas, etc., durante um número variável de anos. Tais situações não
atingiram, evidentemente, todas as casas, mas apenas aquelas que caí-
ram no desagrado político do gabinete. Não foi por acaso que tais pro-
cedimentos foram sentidos como uma autêntica violação do pacto cons-
titucional do regime brigantino.

204 Cf. Max Weber, Economia y Sociedad, México, 1944, p. 813.

101
Elites e Poderes

Provavelmente, a melhor tradução deste abalo pode encontrar-se na


interrupção do processo de concentração das comendas nas casas dos
Grandes que se vinha operando desde há mais de um século. Em 1777
eram dadas como vagas 242 comendas (pouco menos de metade do
total), nelas se incluindo não apenas as das casas extintas, mas ainda
todas ou a maior parte das que antes eram administradas pelas casas dos
duques de Lafões, dos marqueses de Alorna e de Valença, dos condes de
Óbidos/Sabugal, de São Lourenço, de São Miguel e de Vila Nova e dos
viscondes de Asseca, entre outras205. Quase todas estas casas voltariam
a encartar-se e a tomar posse das respectivas comendas no início da
viradeira. De facto, como, aliás, se sugere em alguma da bibliografia
tradicional sobre o tema206, nos dias e meses subsequentes ao afasta-
mento do valido de D. José os despachos sucederam-se com impressio-
nante velocidade207. O processo de acumulação das comendas regressa-
ria, assim, ao seu curso anterior. Por mais algum tempo208.
O período inicial da regência joanina (1792-1807) oferece, a vários
níveis, uma imagem paradoxal. Por um lado, às crescentes dificuldades
financeiras da monarquia, que conduziriam ao lançamento de uma pesa-
da tributação sobre as casas dos Grandes (décimas das comendas e quin-
to dos donatários), juntavam-se os efeitos da inflação de títulos, sem
dúvida um dos factores que perturbavam a incrível estabilidade da elite
de Grandes constituída na segunda metade do século XVII. Mas, por
outro, a coroa continuava a procurar garantir a preservação material des-

205 ANTT, núcleos extraídos do Conselho da Fazenda, Ordem de Sant’Iago, liv. 503
(sobre o assunto, cf. Nuno G. Monteiro, «Pombal, a monarquia e as nobrezas», in Actas
do Colóquio sobre o Marquês de Pombal, Pombal/Oeiras, 2001, pp. 27-38).
206 Cf., por exemplo, Latino Coelho, História política e militar de Portugal desde
finais do século XVIII até 1834, vol. II, 1874, p. 196.
207 Cf. ANTT, Ministério do Reino, decretos, maços 24 a 27.
208 Combinando o referido processo de acumulação de comendas nas antigas casas
da dinastia com o alargamento do círculo de beneficiários a novos agraciados, o número
mais reduzido de comendas vagas ter-se-á atingido em 1804-1809, quando existiriam
apenas 64 [cf. Nuno G. Monteiro e Fernando Dores Costa, As Comendas das Ordens
Militares (1668-1834): Comendadores e Rendeiros, relatório JNICT, mimeo., Lisboa,
1995; cf. resumo dos dados entretanto publicados em Nuno G. Monteiro e Fernando
Dores Costa, «As comendas das ordens militares do século XVII a 1834. Alguns aspec-
tos», in Militarium Ordinum Anacleta, n.os 3-4, Porto, 2000].

102
O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança

sa mesma elite aristocrática, renovando-lhe os bens da coroa e ordens e


protegendo-a contra os credores.
No vintismo se exprimiria publicamente a crítica impiedosa do sis-
tema definitivamente extinto em 1832-1834. Até então a remuneração
dos serviços à coroa, importa sublinhá-lo, nunca foi representada pelas
instituições e pelos actores nela envolvidos como o prémio dos méritos
individuais. A cultura política que a impregnava era totalmente distinta
da meritocracia individualista que o liberalismo veio consagrar. Sempre
que era caso disso, recordava-se que se pretendia «que as honras e Mer-
cês feitas em satisfação de grandes serviços obrados em guerra viva se
continuem nas casas em que entrarão para conservação da memória dos
que as mereceram e estimulo para a imitação»209. Para as instituições,
como para todos aqueles que participavam nessa teia de relações, eram
as casas, e não os indivíduos, as categorias pertinentes.

209 Do decreto de 23 de Julho de 1779, ANTT, Ministério do Reino, maço 705.

103
4. PODERES E CIRCULAÇÃO DAS ELITES
EM PORTUGAL: 1640-1820*

Perspectivas e mutações historiográficas

Nas últimas décadas a historiografia portuguesa dedicada à época


moderna foi objecto de um amplo conjunto de trabalhos que mudaram
de forma decisiva as perspectivas antes prevalecentes. Sem pretensões à
exaustão, destacam-se as novas ideias sobre a centralização, sobre a
vitalidade do poder municipal, bem como o nascimento de uma história
social acerca da época moderna. Em anos mais recentes, também a his-
tória política sofreu um considerável impulso, em particular o tema da
Restauração de 1640, com relevante participação de historiadores de
outros países210.

* Texto inédito, tendo por base a lição de síntese para as provas de agregação em
História Moderna realizadas pelo autor em 2001 no ISCTE.
210 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquia Hispanica (1580-1640).
Filipe II, las Cortes de Tomar y la Genesis del Portugal Catolico, dissertação de douto-
ramento, mimeo., Madrid, 1987; A. M. Hespanha, «O governo dos Áustria e a ‘moder-
nização da constituição política portuguesa’», in Penélope. Fazer e Desfazer a História,
n.º 3, 1989, e «A ‘Restauração’ portuguesa nos capítulos das Cortes de 1641», in Pené-
lope. Fazer e Desfazer a História, n.os 9-10, 1993; Santiago de Luxan Melendez, La
Revolución de 1640 en Portugal, Sus Fundamentos Sociales y Sus Caracteres Naciona-
les. El Consejo de Portugal: 1580-1640, Madrid, Universidad Complutense, 1988; An-
tónio de Oliveira, Poder e Oposição Política em Portugal no Período Filipino (1580-

105
Elites e Poderes

Este texto pretende situar-se num ponto de vista que articule a histó-
ria institucional e política com a história social, combinando, assim, o
estudo das mutações institucionais com a análise dos processos de
reprodução e circulação das elites sociais. Ao mesmo tempo, procura-se
reflectir sobre algumas contribuições recentes da historiografia portu-
guesa. Com efeito, em detrimento de uma leitura nacionalista do fenó-
meno, antes prevalecente, a historiografia da última década e meia tem
acentuado nas suas interpretações da Restauração de 1640, nomeada-
mente quanto aos seus móbeis e às suas etapas iniciais, a dimensão de
«restauração constitucional». Defende-se, assim, a ideia de que no des-
poletar do movimento pesou primacialmente a intenção de defender as
instituições tradicionais do reino, atacadas sobretudo pelo reformismo
da política do conde-duque de Olivares. Ora, tanto no plano político e
institucional como ao nível da circulação das elites sociais, a realidade
portuguesa, quando a guerra terminou, cerca de 1670, afasta-se signifi-
cativamente dos contextos não só da monarquia dual, mas também do
período anterior a 1580. Recentíssimas investigações, precisamente sobre
essas conjunturas mais recuadas, entre as quais se destaca o livro de
Mafalda Soares da Cunha211, permitem avaliar com clareza as imensas
mutações suscitadas pela estabilização da nova dinastia dos Bragança,
com a sua nova corte e a sua nova nobreza de corte.
Contra uma imagem de continuidade, procura-se aqui sugerir que a
evolução institucional, política e social do Portugal restaurado represen-
tou uma efectiva viragem. Na verdade, os efeitos a médio e longo prazo
da aclamação de D. João duque de Bragança e da guerra subsequente

-1640), Lisboa, 1990; Diogo Ramada Curto, A Cultura Política em Portugal (1578-
-1632). Comportamentos, Ritos, Negócios, dissertação de doutoramento, mimeo., Lis-
boa, FCSHUN, 1994; Rafael Valladares, Filipe IV y la Restauración de Portugal, Mála-
ga, 1994, La Rebelión de Portugal 1640-1680. Guerra, Conflicto y Poderes en la Mo-
narquia Hispânica, Valhadolid, 1998, e Portugal y la Monarquia Hispánica 1580-1668,
Madrid, 2000; Jean-Frédéric Schaub, La vice-royauté espagnole au Portugal au temps
du comte-duc d’Olivares (1621-1640). Le conflit de jurisdiction comme exercise de la
politique, Madrid, 2001, e Portugal na Monarquia Hispânica, Lisboa, 2001; Fernando
Bouza Álvarez, Portugal no Tempo dos Filipes. Política, Cultura, Representações (1580-
-1668), Lisboa, 2000. Antes, cf. Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado
na Restauração, 2 vols., Coimbra, 1981-1982.
211 Cf. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas
Senhoriais e Redes Clientelares, Lisboa, 2000.

106
Poderes e circulação das elites em Portugal

foram relevantes, correspondendo a uma nova configuração dos centros


de poder, que se traduziu em diversos mecanismos de estruturação das
elites sociais. Vem ao caso citar as reservas recentemente colocadas em
relação à leitura da Restauração enquanto «revolução constitucional»:
«En effet, le rejet ideologique de l’extraordinaire ne s’acompagne pas
d’un retour aux pratiques ordinaires212.» De facto, passada a conjuntura
de guerra e de intensa disputa política faccional, associada a episódios
tão emblemáticos como o da ascensão e queda do valido Castelo Melhor,
os modelos políticos que vão triunfar parecem afastar-se notoriamente
do pluralismo corporativo aparentemente prevalecente nos anos imedia-
tamente posteriores à entronização dos Bragança.
Em função do que se disse, impõe-se uma incursão sobre o período
anterior a 1640, procurando-se destacar alguns aspectos que mais clara-
mente o demarcam das características que se destacam no período bri-
gantino.

Poderes e nobrezas antes da Restauração

Para melhor se entender o que muda no fim da guerra da Restauração


ao nível dos centros de poder e dos processos de estruturação das elites
destacar-se-ão, assim, alguns temas em particular. A saber: a residência da
principal nobreza; a existência de um sistema plural de cortes; o exercí-
cio dos poderes senhoriais; a expressão pública dos poderes municipais.
O primeiro tópico é o da residência da principal nobreza. Trata-se de
uma questão que permite estabelecer uma distinção clara e inequívoca
não apenas entre a configuração social da sociedade de corte da dinastia
dos Bragança e o modelo plural imediatamente antecedente, mas tam-
bém entre aquela e todas as configurações curiais precedentes, designa-
damente da dinastia de Avis. Para a discussão deste tema há que recuar
no tempo, remontando até ao início do século XVII. Nessa conjuntura, o
padrão de residência dos titulares e senhores de terras/futuros titulares
portugueses pautava-se pela dispersão: a maioria não residia em Lisboa,
mas noutros centros urbanos ou nos seus senhorios e terras. Nos últimos

212 Jean-Frédéric Schaub, La vice-royauté espagnole au Portugal…, cit., p. 383.

107
Elites e Poderes

tempos da monarquia dual, a política deliberada de Madrid conseguiu


atrair para aquela cidade parte significativa da primeira nobreza do rei-
no, que por alturas de 1640 aí residia. Ao todo cerca de metade dos titu-
lares e grande número de senhores de terras e de comendadores encon-
travam-se então fora de Portugal, em Madrid ou noutros territórios ao
serviço dos Áustria213.
Ao contrário do que é usual pensar-se, a dispersão residencial da
primeira nobreza não resultou da mudança da corte para Madrid 214 .
Com efeito, se recuarmos para períodos anteriores a 1580, quando havia
«rei natural», o panorama não seria radicalmente diferente. Uma relação
dos apoiantes de Filipe II mostra-nos que naquela conjuntura boa parte
das figuras destacadas que se ofereceram para o servir não residia em
Lisboa215. Mas talvez o caso mais espectacular seja o do principal senhor
do reino (e um dos mais importantes da Península, pelas suas rendas,
jurisdições e apresentação de ofícios), o duque de Bragança, que nunca
residiu permanentemente em Lisboa, mas sim em Vila Viçosa, donde só
se deslocava em momentos bem determinados. De facto, durante todo o
período das dinastias de Avis e dos Áustria, a casa de Bragança manteve
sempre a sua própria corte e uma dimensão territorial notável. Como
detalhadamente foi estudado em recente trabalho, não só preservou essa
corte alentejana com um ritual e espaços de representação próprios,
como então se dizia, «à maneira da casa real», mas também centenas de
criados, incluindo muitos fidalgos (alguns feitos pela própria casa), aos
quais distribuía mais de quatro dezenas de comendas, dispondo ainda de

213 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património
da Aristocracia em Portugal (1755-1832), Lisboa, 1998, pp. 425-427, António de Oli-
veira, op. cit., sobretudo pp. 234-235, Fernando Bouza Álvarez, «A nobreza portuguesa
e a corte de Madrid», in Portugal no tempo dos Filipes..., cit., pp. 207-256, e A. A.
Dória, nota D, in Conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado, nova ed., Porto,
s. d., pp. 488-489; cf. ainda o que antes se disse, pp. 30-31.
214 É esse o argumento desenvolvido no notável e injustamente esquecido livro de
Eduardo d’Oliveira França, Portugal na Época da Restauração (1951), 2.ª ed., São Pau-
lo, 1997; aí se sugere que «a nostalgia da corte» se associava com «a dispersão dos fi-
dalgos por essas cortes de aldeia» (exemplarmente ilustradas pela dos Bragança), mas
desprovidas de «aquele nível de requinte a que haviam outrora atingido os portugueses»
(op. cit., pp. 95 e 117).
215 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquia Hispanica..., cit., t. I,
pp. 523-527.

108
Poderes e circulação das elites em Portugal

uma administração significativamente organizada e de uma imensa rede


provincial de clientes, pois confirmava pouco menos de um quinto das
câmaras do país e apresentava mais de 3000 oficiais, entre civis e ecle-
siásticos216. A casa de Bragança, só por si, permite afirmar que em Por-
tugal até 1640 existiu sempre um «sistema de cortes» e não o monopólio
curial da realeza. E, embora pouco saibamos sobre as suas cortes, con-
vém acrescentar que os senhores de outras principais casas do reino
também não residiam em Lisboa em 1580: os duques de Aveiro viviam
em Azeitão e os marqueses de Vila Real em Leiria. A gradual «constru-
ção da capital» e o progressivo reconhecimento de Lisboa como «cabeça
do reino» ao longo do século XVI217 não devem fazer-nos esquecer aqui-
lo que então nunca teve lugar.
Uma outra dimensão a ponderar é a do aumento em extensão dos
poderes senhoriais até 1640. As terras da coroa, se nelas incluirmos as
das três ordens militares nela incorporadas de facto, representavam em
1640 cerca de 42% do número de territórios, 50% da área e 52% da
população do reino. Entre o início do século XVI (1527-1532) e meados
do seguinte (1640), as terras dos senhorios leigos, onde se incluía até
1640 a casa dos duques de Bragança, eram, no entanto, as mais numero-
sas. O seu número aumentou entre 1527-1532 e 1640: as terras dos
senhores leigos representavam, assim, cerca de 38% do total na primeira
das referidas datas e quase 44% na segunda. Além disso, em meados do
século XVII, mais de um quarto dos municípios do país estavam isentos
da correição real218. Embora a diversidade das situações fosse grande,
os casos para os quais dispomos de estudos monográficos sejam em
número limitado e a maior parte dos senhorios só gozasse de jurisdição
intermédia, a imagem de conjunto que se pode retirar a partir dos exem-
plos conhecidos sugere que em meados de Seiscentos o poder senhorial

216 Cf. Mafalda Soares da Cunha, op. cit.


217 Cf. J. Romero Magalhães, No Alvorecer da Modernidade (1480-1640), in José
Mattoso (dir.), História de Portugal, 3.º vol., Lisboa, 1993, pp. 50-59.
218 Cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oliveira
(dir.), História dos Municípios e do Poder Local, Lisboa, 1996, pp. 49-54; os dados para
1640 foram elaborados tendo como base António M. Hespanha, As Vésperas do Levia-
than. Instituições e Poder Político. Portugal − Século XVII, Lisboa, 1986, vol. 2, ane-
xos.

109
Elites e Poderes

revestia uma significativa vitalidade, perpetuada pela residência de mui-


tos senhores nos seus estados.
Por fim, deve-se ainda salientar que os municípios e as respectivas
elites camarárias mantiveram uma apreciável capacidade de intervenção
institucional e política até ao fim da guerra da Restauração, a qual se
traduziu, entre outros aspectos, na sua actuação em Cortes, indiciada
pela frequência com que se reuniram no período inicial da guerra (1641,
1642, 1646 e 1653), na capacidade para negociarem o lançamento de
impostos e em múltiplos outros terrenos, com especial destaque para o
município de Lisboa219. De resto, essa vitalidade do poder municipal,
redescoberta pela historiografia recente, não desapareceria até ao final
do Antigo Regime. No entanto, não só pelo facto de as últimas Cortes
terem sido convocadas em 1697-1698, mas porque as modalidades da
sua intervenção se modificaram220, também nesse terreno o advento da
nova dinastia implicou mudanças que não podem ser minimizadas.

A constituição da nobreza de corte dos Bragança

Sob alguns aspectos, os contornos da elite cortesã dos Bragança


começaram a desenhar-se ainda no período da monarquia dual. Dimen-
são essencial desse processo foi a concessão de títulos com grandeza,
que se deu precisamente nos últimos trinta anos do período dos Áustria.
No entanto, existe uma pronunciada ruptura com a Restauração, pelo
que em larga medida se pode falar de um processo retomado em novos
moldes. O número total de casas atingido em 1640, passando das cerca
de duas dezenas existentes no início de Seiscentos para mais de meia
centena, manter-se-á praticamente estável até à última década do século
XVIII. No entanto, a verdade é que pouco menos de metade das casas

219 Cf. António Hespanha, «Revoltas e revoluções. A resistência das elites provin-
ciais», in Análise Social, n.º 116, 1992, e Pedro Cardim, Cortes e Cultura Política no
Portugal do Antigo Regime (pref. de A. M. Hespanha), Lisboa, Edições Cosmos, 1998.
220 Os «instrumentos de comunicação da periferia para o centro», designadamente
por via da petição, nunca deixaram de existir, embora se esteja longe de conhecer a
amplitude desse processo (Nuno G. Monteiro, «Concelhos e comunidades», in José Mat-
toso (dir.), História de Portugal, 4.º vol., O Antigo Regime (1620-1807), coord. de
António M. Hespanha, Lisboa, 1993, p. 310).

110
Poderes e circulação das elites em Portugal

titulares portuguesas desapareceram entre 1640 e 1670, na maior parte


dos casos por razões de opção política221, entre estas se incluindo algu-
mas das maiores e mais importantes então existentes. De facto, foram
sendo substituídas pela elevação simultânea de outras tantas, e a fre-
quência da concessão anual de títulos então alcançada só voltou a ser
ultrapassada durante a regência (1792) e reinado de D. João VI. Durante
mais de um século criaram-se e extinguiram-se muito poucas casas.
O fim da guerra da Restauração (1668) representou, assim, um momento
único no que se refere à estabilidade na composição da elite titular da
monarquia222.
Para se entender esse processo é essencial, sem dúvida, ter em conta
a relação entre o desempenho de ofícios e a remuneração dos serviços
que neles se exerciam. O principal instrumento de atracção e marca dis-
tintiva da sociedade de corte da dinastia dos Bragança não foi a produ-
ção de uma cultura de corte especialmente destacada, mas sim o facto de
o acesso aos estatutos nobiliárquicos no seu interior constituir uma con-
dição para se alcançarem os ofícios principais e a respectiva remunera-
ção. Essa relação traduzia, como adiante veremos, a existência de um
pacto constitucional entre a monarquia e a principal nobreza que a sus-
tentara de armas na mão nos momentos fundacionais da nova dinastia.
De resto, perpetuou-se até ao final do Antigo Regime, entre outros mo-
tivos, porque a coroa portuguesa possuía recursos consideráveis para
distribuir: títulos, comendas das ordens militares, senhorios e tenças223.
O processo de constituição da elite titular da dinastia de Bragança
coincidiu com a transferência das respectivas residências para a corte.
No fim do terceiro quartel de Seiscentos a mudança foi radical em rela-
ção ao que ocorria no início do século: todos os titulares, bem como a
maioria dos senhores de terras e comendadores, residiam em Lisboa.
Nos finais do século XVII, em geral, quando se fala da fidalguia como
grupo, quer-se designar em primeiro lugar a primeira nobreza da corte,

221 De entre as casas que não desapareceram, diversas foram recriadas ou renovadas
em ramos ou gerações distintos daqueles que antes as detinham, apesar de os seus repre-
sentantes terem reconhecido durante a Restauração os Habsburgos como reis de Portugal
(casos do duque de Aveiro e dos condes de Castanheira e de Tarouca, entre outros).
222 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., pp. 34 e segs.
223 Id., ibid.

111
Elites e Poderes

que em boa medida já se confundia com os titulares. O núcleo restrito


dos Grandes transformar-se-á, assim, não só no grupo mais preeminente,
mas também no único com fronteiras bem definidas e, tendencialmente,
no depositário exclusivo do antigo status nobiliárquico. Ao mesmo tem-
po, o topo da pirâmide nobiliárquica tornar-se-á muito mais reduzido.
E, claro está, as possibilidades de aí ascender mais remotas. Trata-se de
uma marca bem característica da aristocracia portuguesa, que se acentua
quando a comparamos com outras primeiras nobrezas europeias. Na
verdade, entre muitas outras coisas, reflecte e, ao mesmo tempo, tende a
sublinhar, de forma indiscutível, outro dos traços singulares da monar-
quia portuguesa: a inexistência de centros intermédios de poder, desig-
nadamente de âmbito regional, com tendência para atraírem e produzi-
rem elites, matéria à qual regressaremos mais adiante.
Uma das características marcantes do grupo passou a ser a sua estrita
homogamia social, ou seja, os casamentos com a nobreza provincial ou
com outros grupos de elite (magistratura ou grande comércio) foram-se
tornando cada vez mais raros. Tanto para os senhores de casa como para
as filhas e filhos não sucessores, os casamentos fora da primeira nobreza
de corte foram excepcionalmente raros entre a segunda metade do sécu-
lo XVII e o início do século XIX224.
Do que antes se disse se conclui que desde pelo menos o fim da guer-
ra da Restauração que o «sistema de cortes» antes existente deu lugar ao
monopólio tendencial da corte régia, cuja composição tendeu a estabili-
zar. Trata-se de um facto de relevante importância social e política.
Esta evolução decisiva teve a sua tradução nas formas de classifica-
ção. A partir do momento em que se consolidou a elite aristocrática da
nova dinastia, por alturas da regência pedrista, os Grandes passaram a
ser designados por expressões como «a primeira grandeza da Corte»,
cabeça do grupo mais vasto constituído pela «primeira nobreza da Cor-
te», e essa identificação fundamental manteve-se até aos finais do Anti-
go Regime. A própria legislação retomava, com frequência, estas cate-
gorias do vocabulário corrente da época. Outra categoria do vocabulário
corrente, aliás algo imprecisa, era a «nobreza das províncias». A corte e
as províncias constituíam um vector decisivo de distinção no interior das

224 Nuno Gonçalo Monteiro, ibid., parte II.

112
Poderes e circulação das elites em Portugal

categorias nobiliárquicas que se espelha de forma sistemática em toda a


documentação da época.

A evolução política e institucional

Passada, assim, a conjuntura imediatamente ulterior à Restauração, o


pluralismo político e institucional parece diminuir claramente no Portu-
gal barroco. A polarização entre a corte e as províncias parece adquirir,
em todos os terrenos, uma dimensão sem precedentes.
Algumas características do Portugal restaurado vieram, afinal, acen-
tuar os efeitos de uma das heranças históricas mais importantes da
monarquia portuguesa moderna que era a escassa importância dos cor-
pos políticos intermédios e a sua quase nula expressão territorial. Não é
apenas a inexistência de instâncias autárquicas regionais o que marca a
singularidade portuguesa. É possível estender essa caracterização ao con-
junto dos «corpos intermédios», quer dizer, à totalidade dos corpos que à
escala do reino se situavam entre o centro e a escala (micro) local.
Como já foi destacado noutros textos, construindo-se através da recon-
quista, e não por via da união dinástica, Portugal não constituía uma
«monarquia compósita» nem integrava comunidades político-institucio-
nais preexistentes225. Não existiam quaisquer direitos regionais, nem ins-
tituições próprias de províncias (cristalizadas, por exemplo, antes da sua
união), nem sequer comunidades linguísticas acentuadamente diversifi-
cadas. Nas próprias ilhas atlânticas a municipalização do espaço político
local coarctou o surgimento de instâncias autónomas regionais. Depois
da Restauração, a coroa portuguesa não teve pela frente, ao contrário de
outras monarquias europeias contemporâneas, o desafio constituído por
sólidas instituições com forte cunho territorial. Praticamente todos os

225 Nuno Gonçalo Monteiro, «Poder local e corpos intermédios: especificidades do


Portugal moderno numa perspectiva histórica comparada», in Luís Espinha da Silveira
(coord.), Poder Central, Poder Regional, Poder Local. Uma Perspectiva Histórica,
Lisboa, 1997, pp. 47-61, e «Monarquia, poderes locais e corpos intermédios no Portugal
moderno (séculos XVII e XVIII). Centralização e descentralização na Península Ibérica»,
in Actas dos IV Cursos de Verão de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais,
1998, pp. 113-123, reeditado neste volume. Sobre as «monarquias compósitas», cf. J. H.
Elliot, «A Europe of composite monarchies», in Past and Present, n.º 137, pp. 48-71.

113
Elites e Poderes

corpos institucionais relevantes se localizavam em Lisboa e eram abran-


gidos pelas malhas da sociedade de corte. Os contrapontos do centro
situavam-se numa escala restrita, eram os poderes locais e sobretudo
municipais. Aspecto que divergia fortemente da generalidade das monar-
quias europeias da época. Acresce que os ecos públicos da intervenção
dos outros poderes, locais ou outros, foram diminuindo claramente na
segunda metade do século XVII.
Uma outra marca característica e distintiva do período pós-Res-
tauração foi a erosão dos poderes senhoriais, que perderam importância
em termos quantitativos, mas também qualitativos. Entre 1640 e o início
do século XIX verifica-se uma diminuição bastante significativa do
número de terras sujeitas ao senhorio jurisdicional leigo: resultado da
extinção de numerosas casas, da passagem da casa de Bragança a casa
da família real com administração autónoma e do escasso número de
novas doações, as terras de senhorio leigo passam de 329 (44% do total)
a apenas 152 (18% do reino)226. O declínio das redes de poder e das
clientelas senhoriais é uma regra geral227.
Finalmente, a mutação antes referida foi ainda fortemente acentuada
por alguns aspectos da evolução político-institucional do período em
análise, em parte decorrentes da já destacada constituição de uma nova
sociedade de corte. Num recente estudo sobre as reuniões de Cortes
seiscentistas, embora se sublinhe a dimensão ambivalente daquelas
assembleias no século XVII («celebração e dissensão coexistem lado a
lado»), sugere-se que prevalece nelas uma cultura política do consenso
institucional, o que as afasta aparentemente dos paradigmas das Cortes
medievais. Por fim, recorda-se com insistência que a «política seguiu a
partir dos últimos anos do século XVII em Portugal um estilo de gover-
nação que apontava para a concentração da capacidade decisória e para
a restrição do grupo dirigente», tópico depois várias vezes retomado228.

226 Nuno Gonçalo Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oli-
veira (dir.), História dos Municípios…, cit., pp. 49-54 e 153-161.
227 Bem ilustrado pelas vicissitudes dos clientes das casas senhoriais, designadamente
de Aveiro, no município régio de Coimbra (cf. Sérgio Cunha Soares, O Município de
Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Poder e Poderosos na Idade Moderna, disser-
tação de doutoramento, mimeo., Coimbra, 1995, pp. 933-1105).
228 Pedro Cardim, op. cit., p. 92.

114
Poderes e circulação das elites em Portugal

Ou seja, a diminuição do número de actores políticos constitui uma


marca indiscutível a partir do último terço de Setecentos. O jogo político
reduz-se cada vez mais aos participantes nos círculos da administração
central.
Não é aqui o local oportuno para discutir a velha questão do absolu-
tismo. Por esse motivo, destaque-se apenas que essa evolução política e
institucional não correspondeu, pelo menos nas fases iniciais, a um pro-
cesso linear de «domesticação» da primeira nobreza pela monarquia,
mas antes a uma participação directa e próxima das principais figuras da
aristocracia nas decisões políticas mais relevantes, designadamente atra-
vés do Conselho de Estado229.

A circulação das elites

Apesar da tendência para o encerramento do topo da hierarquia do


espaço social ao longo dos séculos XVII e XVIII, que fez com que a
sociedade portuguesa ao longo desse período fosse incomparavelmente
mais cristalizada do que, por exemplo, no século XVI, existia nas suas
zonas intermédias uma apreciável fluidez. Constituindo a remuneração
dos serviços à monarquia o caminho principal para a ascensão na escala
nobiliárquica, medir até que ponto a primeira nobreza de corte monopo-
lizou os ofícios mais preeminentes pode representar uma primeira indi-
cação sobre os pontos de cristalização e sobre as possíveis vias de aber-
tura. Começar por aí apresenta-se, sem dúvida, como um dos trajectos a
percorrer, para depois se procurarem outras lógicas e outras trajectórias
no espaço social. Os percursos e os limites da circulação das elites con-
figuram-se, assim, como o nosso primeiro objecto de análise. Importa
recordar, porém, que a remuneração dos serviços à coroa nunca foi
representada pelas instituições e pelos actores nela envolvidos como o
prémio dos méritos individuais, pois a cultura política que a impregnava
era totalmente distinta da meritocracia individualista que o liberalismo
veio consagrar. Os indivíduos nasciam em casas (se era o caso) e pos-

229 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Identificação da política setecentista. Notas sobre
Portugal durante a guerra da sucessão de Espanha», in Análise Social, n.º 157, 2001,
pp. 961-987.

115
Elites e Poderes

suíam, desde o nascimento, um determinado estatuto que correspondia à


qualificação daquelas e ao lugar que no seu interior lhes cabia. A isso se
chamava «qualidade de nascimento». Quais eram os atributos concor-
rentes (em certos casos, complementares)? Desde logo, as qualificações
académicas. Depois, evidentemente, a experiência e competência de-
monstradas no desempenho de cargos anteriores que configuravam um
cursus honorum específico. Também, para certos efeitos, a riqueza.
E, finalmente, a influência, as conexões, as clientelas... Ou seja, atribu-
tos que não entram em nenhum dos anteriores, mas sem os quais é difí-
cil explicar, por exemplo, a ascensão de um Sebastião José de Carvalho
e Melo.
Deixaremos de lado os ofícios superiores da casa real, virtual mono-
pólio da primeira nobreza de corte; aliás, em finais do Antigo Regime, a
regra era os titulares desempenharem sempre ofícios palatinos230. Subli-
nhe-se, entretanto, que os ofícios femininos superiores da casa das
rainhas eram a única forma que as mulheres tinham de produzir servi-
ços, de resto, com uma remuneração tendencialmente tabelada. A análi-
se e classificação deste universo social ao longo de todo o período con-
siderado é uma tarefa relevante231.
Principiemos, assim, uma sondagem sistemática, analisando o exérci-
to. Destaquemos, desde logo, que os serviços feitos na «guerra viva»
nunca tiveram equivalente. Facto particularmente relevante no que se
refere à primeira nobreza do reino, mas também ao acesso a distinções
nobiliárquicas menores, como os hábitos das ordens militares232. O ser-
viço militar feito na guerra da Restauração (1640-1668) representava
uma dimensão constitutiva da nobreza titular da dinastia de Bragança:
não só porque grande parte das casas tinham acedido à titulação em re-

230 Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., pp. 530-532; Pedro
Cardim, O Poder dos Afectos. Ordem Amorosa e Dinâmica Política no Portugal do
Antigo Regime, dissertação de doutoramento, mimeo., Lisboa, Universidade Nova,
2000, pp. 507-517.
231 Cf. novos elementos documentais na dissertação de Maria Paula Marçal Louren-
ço, Casa, Corte e Património das Rainhas de Portugal (1640-1754). Poderes, Institui-
ções e Relações Sociais, dissertação de doutoramento, mimeo., 3 vols., Lisboa, Univer-
sidade de Lisboa, 1999.
232 Cf. Fernanda Olival, Honra, Mercê e Venalidade: as Ordens Militares e o Esta-
do Moderno, Lisboa, 2001, p. 248.

116
Poderes e circulação das elites em Portugal

muneração dos serviços dos principais comandantes portugueses do


exército de então, mas também porque o facto de terem sustentado a
dinastia de armas na mão nos seus momentos fundacionais constituía
parte integrante e fundamental do pacto que julgavam ter estabelecido
com a monarquia, o qual esta reconhecia como fundamento para a per-
petuação do seu estatuto, contra ventos e marés. De resto, não se tratava
apenas de um pleito rendido aos momentos iniciais da dinastia. Uma
esmagadora maioria dos Grandes (uma maioria cada vez mais ampliada)
e membros da primeira nobreza prestaram serviço no exército (quando
tal não aconteceu, isso foi dificilmente aceite): entre um mínimo de 64%
(antes de 1651) e um máximo de cerca de 90% (entre 1751 e 1832),
alcançando mais de um terço postos superiores233.
Para essa campanha notavelmente aristocrática que foi a participação
portuguesa na guerra da sucessão de Espanha encontramos uma relação
da «nobreza que ia (no) exército» 234 aliado que em 1706 invadiu a
Espanha e chegou a ocupar Madrid antes de ser, no ano seguinte, pesa-
damente derrotado na célebre batalha de Almanza (cf. quadro n.º 5).
Ainda que se trate de uma relação incompleta dos militares existentes,
não deixa de ser um indicador bem significativo. Ao todo, discriminam-
-se 36 oficiais. A maioria dos marechais-de-campo, tal como dos sar-
gentos-mores, eram titulares: ao todo, tínhamos 16 titulares, 10 filhos
segundos de titulares e 4 membros de casas da primeira nobreza da cor-
te. De entre os senhores da casas da primeira nobreza e dos secundogé-
nitos de titulares, 5 alcançariam mais tarde a titulação... Ou seja, para
além de dois estrangeiros (Galway e Corasana), sobravam 4 fidalgos
com nascimento ligeiramente menos ilustre. Deste modo, constata-se
que do corpo de oficiais que dirigiu as operações mais marcantes da
guerra, a quase totalidade dos portugueses tinha nascido na primeira
nobreza da corte e mais de dois terços eram, inclusivamente, filhos de
titulares com Grandeza. Mas esta equação pode ser invertida: a maior
parte dos Grandes, neste como noutros momentos, eram ou tinham sido
militares no activo. O cume da hierarquia militar coincidia, em larga

233 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., p. 524.
234 Portugal, Lisboa e a Corte no Reinado de D. Pedro II e D. João V − Memórias
Históricas de Tristão da Cunha de Ataíde, 1.º Conde de Povolide (int. de A. V. Saldanha
e Carmen M. Radulet), Lisboa, 1990, p. 176.

117
Elites e Poderes

medida, com o topo da hierarquia nobiliárquica, que, globalmente, tendia


a reproduzir. Resta saber até que ponto esse dado essencial iria perdurar.

Campanha de 1706 da guerra da sucessão de Espanha235

[QUADRO N.º 5]

Marechais- Sargentos- Tenentes-


Total
-de-campo -mores -generais

Titulares (a)............................ 5 4 7 16
Subtitulares (b)....................... 0 2 8 10
Primeira (c)............................ 2 0 2 4
Estrangeiros (d)...................... 2 0 0 2
Dúvidas (e)............................. 0 0 0 0
Outros (f)................................ 0 0 4 4
Total.................................. 9 6 21 36

(a) Titulares; (b) filhos secundogénitos de titulares; (c) primogénitos e outros nasci-
dos em casas da primeira nobreza de corte sem título; (d) estrangeiros; (e) casos de difí-
cil classificação; (f) indivíduos que não tinham nenhuma das origens sociais constantes
das categorias anteriores.

Ao invés, a imagem dominante do reinado de D. José e da adminis-


tração pombalina, associada estreitamente ao conflito de 1762 e à vinda
do conde reinante de Lippe para Portugal, tende a acentuar a dimensão
de ruptura e de descontinuidade. Até que ponto essa imagem, tão difun-
dida por uma apreciável bibliografia, tem correspondência ao nível a
que situamos a nossa atenção, ou seja, em que medida se traduz numa
erosão do peso da «primeira nobreza de corte» nos comandos militares?
Neste caso, as fontes disponíveis permitem fornecer uma resposta.

235 Elaborado tendo como fonte Portugal, Lisboa e a Corte no Reinado de D. Pedro
II e D. João V..., cit., pp. 176-177.

118
Poderes e circulação das elites em Portugal

Relação dos oficiais da 1.ª plana da corte em 1764236

[QUADRO N.º 6]

Tenentes- Marechais-
Brigadeiros Total
-generais -de-campo

Titulares (a)............................ 6 7 3 16
Subtitulares (b)....................... 3 2 0 5
Primeira (c)............................. 2 5 2 9
Estrangeiros (d)...................... 4 6 6 16
Dúvidas (e)............................. 2 1 0 3
Outros (f)................................ 1 3 8 12
Total.................................. 18 24 19 61

(a) Titulares; (b) filhos secundogénitos de titulares; (c) primogénitos e outros nasci-
dos em casas da primeira nobreza de corte sem título; (d) estrangeiros; (e) casos de difí-
cil classificação; (f) indivíduos que não tinham nenhuma das origens sociais constantes
das categorias anteriores.

A nossa análise centra-se nos oficiais de brigadeiro para cima, em


primeiro lugar, num momento-chave da história militar do pombalismo,
pouco depois do conflito de 1762 (1764) (cf. quadro n.º 6). O panorama
já não é claramente o mesmo do início do século. O conjunto da «pri-
meira nobreza da corte» representa agora um pouco mais de metade dos
oficiais superiores do exército e os titulares e filhos de titulares apenas
cerca de um terço do conjunto. Para além dos casos por esclarecer, estes
números reflectem o peso de militares pertencentes à fidalguia de pro-
víncia e a outras nobrezas menos destacadas, mas sobretudo o impres-
sionante número de oficiais estrangeiros que acompanham a vinda do
conde de Lippe para Portugal e que representam um quarto do total dos
oficiais superiores considerados.

236 Elaborado tendo como fonte o AHM, 12.ª div., 3.ª sec., cx. 2, n.º 30. Uma rela-
ção feita cerca de um ano mais tarde apresenta um número mais reduzido de militares
(dela já não consta, por exemplo, Lippe), mas permite afirmar que entre os tenentes-
-generais e marechais-de-campo da lista anterior se encontravam todos os governadores
de armas das províncias e partidos do continente (cf. AHM, 12.ª div., 3.ª sec., cx. 2, n.º 51).

119
Elites e Poderes

Para além de diversas listas intermédias, podemos recorrer a uma que


terá sido elaborada pouco antes da queda de Pombal (cf. quadro n.º 7).
O panorama não se alterou de forma significativa. Mas, curiosamente, o
peso dos Grandes reforçou-se ao nível dos tenentes-generais. Aí se
combinam as elevações feitas durante o reinado josefino e com fortes
ligações ao primeiro-ministro com a natural promoção de titulares mais
antigos que o não hostilizaram abertamente ou com ele colaboraram
politicamente. Assim, o topo da hierarquia militar mantém um cunho
fortemente aristocrático, atenuado sobretudo pela presença de estrangei-
ros (em cujas mãos chegou a repousar, caso do tenente-general Francis-
co MacLean, o governo militar da corte e Estremadura), pois, entre os
casos duvidosos e os outros, predominam fidalgos de boa linhagem com
parentesco remoto com os titulares e alguns fidalgos de província. Pou-
cos eram aqueles que, como Manuel da Maia, na lista de 1764, tinham
nascido sem os atributos que continuavam a pesar decisivamente nas
promoções dentro do exército. É certo que a coincidência entre o topo
da hierarquia militar e o cume da pirâmide nobiliárquica já não era tão
perfeita como no início do século. Mas as carreiras não só dos «soldados
da fortuna», mas ainda de nobrezas de segunda ordem, sofriam, na qua-
se totalidade dos casos, ainda e sempre inexoráveis limitações. De resto,
as dimensões antes descritas não registaram alteração de monta nos pri-
mórdios do reinado de D. Maria I (em 1782, 14 dos 21 tenentes-
-generais eram titulares237). Isto significa que, em larga medida, o aces-
so aos postos de «oficial general» não era, na esmagadora maioria dos
casos, o resultado de uma promoção, antes constituindo aqueles, em boa
medida, ofícios tendencialmente hereditários, na maior parte dos casos
acessíveis apenas a um número restrito de potenciais candidatos que os
podiam alcançar desde que se dispusessem a servir durante um apreciá-
vel número de anos. De resto, muitos eram os oficiais superiores da
primeira nobreza que serviam largos anos no governo da Torre de
Belém, no de São Julião da Barra e no da Caparica ou na praça de Cas-
cais.

237 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., p. 542.

120
Poderes e circulação das elites em Portugal

Relação dos oficiais da 1.ª plana da corte em 1777238

[QUADRO N.º 7]

Tenentes- Marechais-
Brigadeiros Total
-generais -de-campo

Titulares (a)............................ 12 4 1 17
Subtitulares (b)....................... 0 0 1 1
Primeira (c)............................ 1 4 3 8
Estrangeiros (d)...................... 2 3 10 15
Dúvidas (e)............................. 2 2 5 9
Outros (f)................................ 1 1 2 4
Total.................................. 18 14 22 54

(a) Titulares; (b) filhos secundogénitos de titulares; (c) primogénitos e outros nasci-
dos em casas da primeira nobreza de corte sem título; (d) estrangeiros; (e) casos de difí-
cil classificação; (f) indivíduos que não tinham nenhuma das origens sociais constantes
das categorias anteriores.

É com o início das pressões europeias de guerra nos anos 90 de Sete-


centos que as coisas parecem começar claramente a mudar. O exército,
em 1805, já tem uma configuração um pouco distinta (quadro n.º 8).
Depois da guerra das laranjas e pouco antes das invasões francesas, o
peso dos Grandes continua a ser marcante e é uma vez mais impressio-
nante a quantidade de estrangeiros. No entanto, o número de oficiais
superiores que nasceram fora da primeira nobreza é já muito elevado.
A maioria nascera em casas fidalgas destacadas de província [incluo aí
os Veiga Cabral, que, com antecedentes no governo das conquistas,
chegaram ao governo da Índia e à titulação (viscondes de Mirandela)],
mas alguns tinham origens mais humildes. Inequívoco sintoma de aber-
tura, portanto. Que se acentuará, naturalmente, depois das invasões
francesas e nos anos 20 do século XIX, no decurso dos quais o exército
constituirá uma via de ascensão das nobrezas provinciais e outras.

238 Elaborado tendo como fonte o AHM, 12.ª div., 3.ª sec., cx. 3, n.º 21.

121
Elites e Poderes

Oficiais superiores do exército em 1805239

[QUADRO N.º 8]

Marechais e Tenentes- Marechais-


Brigadeiros Total
generais -generais -de-campo

Titulares (a)............................ 3 4 5 0 12
Subtitulares (b)....................... 0 2 0 0 2
Primeira (c)............................ 0 2 3 2 7
Estrangeiros (d)...................... 2 3 9 8 22
Outros (f)................................ 1 5 8 24 38
6 16 25 34 81

(a) Titulares; (b) filhos secundogénitos de titulares; (c) primogénitos e outros nasci-
dos em casas da primeira nobreza de corte sem título; (d) estrangeiros; (f) indivíduos que
não tinham nenhuma das origens sociais constantes das categorias anteriores.

Sequência e parte integrante das carreiras militares eram os governos


das conquistas, exercidos quase sempre por militares. Na verdade, os
vice-reinados na Índia e os governos-gerais e vice-reinados no Brasil
constituíam um monopólio virtual dos titulares de primeira nobreza do
reino e, em particular, a forma privilegiada de acrescentar honras dentro
do grupo (cf. quadros n.os 9 e 10). Com efeito, o desempenho daquele
cargo constituiu uma das principais vias de acesso à titulação depois da
Restauração. De facto, no amplo período que vai de 1611 a 1790, mais
de um terço do total de títulos foi concedido a vice-reis da Índia e a
governadores-gerais e vice-reis do Brasil, ou em remuneração dos seus
serviços, e na fase mais restritiva (1670-1760), quando as elevações à
Grandeza foram quase inexistentes, os vice-reis e governadores-gerais
receberam mais de metade dos títulos criados. Em síntese, os vice-

239 Elaborado tendo como fonte o Almanaque de Lisboa para o anno de 1805, Lis-
boa, 1805.

122
Poderes e circulação das elites em Portugal

-reinados eram a principal ou mais segura via de promoção, mas exclu-


sivamente dentro da primeira nobreza, pois estiveram, desde o primeiro
terço de Seiscentos, virtualmente vedados a quem não integrava o gru-
po240.

Proveniência e ordem de nascimento dos vice-reis da Índia


(nomeações 1630-1810)

[QUADRO N.º 9]

Índia
Total
1630-1700 1701-1750 1751-1810

Sucessor de Grande............................................ 1 3 − 4
Sucessor de primeira nobreza (a)....................... 6 4 2 12
Secundogénito de Grande.................................. 1 1 1 3
Secundogénito de primeira nobreza (a)............. 2 − 1 3
Outros................................................................ 2 1 − 3
Total............................................................. 12 9 4 25
Grandes (b)................................................... 9 6 4 19

(a) Nascido numa casa não titular da «primeira nobreza da corte».


(b) Falecidos Grandes ou cujos sucessores receberam a Grandeza pelos seus servi-
ços.
Fonte: Nuno G. F. Monteiro, «Trajectórias sociais e governo das conquistas. Notas
preliminares sobre vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII
e XVIII», in J. Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Fátima Gouveia (orgs.), O Antigo
Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII) (pref. de
A. J. R. Russel-Wood), Rio de Janeiro, 2001, pp. 260.

240Cf., sobre o assunto, Mafalda Soares da Cunha e Nuno G. Monteiro, «Vice-reis,


governadores e conselheiros de governo do Estado da Índia (1505-1834). Recrutamento
e caracterização social», in Penélope. Fazer e Desfazer a História, n.º 15, 1995, pp. 91-
-120, e «Vice-reis e governadores do Estado da Índia: uma abordagem prosopográfica
(1505-1834)», in Encontro sobre Portugal e a Índia, Lisboa, 2000, pp. 175-185, e Nuno
G. F. Monteiro, «Trajectórias sociais e governo das conquistas. Notas preliminares sobre
vice-reis e governadores gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII», cit.,
pp. 249-283.

123
Elites e Poderes

Proveniência e ordem de nascimento dos vice-reis e governadores-gerais


do Brasil (1630-1810)

[QUADRO N.º 10]

Brasil
Total
1630-1700 1701-1750 1751-1810

Sucessor de Grande............................................. 3 3 5 11
Sucessor de primeira nobreza.............................. 4 4 1 9
Secundogénito de Grande.................................... − 2 3 5
Secundogénito de primeira nobreza (a).............. 7 − − 7
Outros.................................................................. 3 − − 3
Total................................................................ 17 9 9 35
Grandes (b)..................................................... 7 5 9 21

(a) Nascido numa casa não titular da «primeira nobreza da corte».


(b) Falecidos Grandes ou cujos sucessores receberam a Grandeza pelos seus serviços.
Fonte: Nuno G. F. Monteiro, «Trajectórias sociais e governo das conquistas. Notas
preliminares sobre vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII
e XVIII», cit., p. 265.

Ao invés, importa destacar que as capitanias brasileiras e africanas,


incluindo algumas de primeira importância, não constituíam, assim, ao
contrário dos vice-reinados na Índia ou no Brasil antes referidos, mono-
pólio da primeira nobreza da corte. Geralmente, até meados do século
XVIII, o acesso às mesmas estava sujeito a uma espécie de concurso
público241. Os dados conhecidos permitem afirmar que estariam mais
abertas à promoção de fidalgos de província e até de alguns «soldados
da fortuna» do que o topo da hierarquia do exército no continente. Os
filhos das casas mais importantes da província tiveram um papel mar-
cante no governo da colónia (um caso exemplar é o do governo das
Minas do morgado de Mateus). No entanto, os governadores das capita-

241
Ross Little Bardwell, The Governors of Portugal’s South Atlantic Empire in the
Seventeenth Century: Social Background, Qualifications, Selection and Reward, disser-
tação de doutoramento, mimeo., Universidade da Califórnia, Santa Barbara, 1974.

124
Poderes e circulação das elites em Portugal

nias menores tinham um recrutamento socialmente menos selecto, o que


também se chegou a verificar em certos casos nas capitanias principais.
Mais ainda, em muitos casos os comandos daquelas foram entregues a
personagens que não tinham fidalguia destacada de nascimento ou pos-
suíam até raízes «mecânicas» próximas e/ou que não eram naturais do
continente, mas das conquistas (sobretudo do Brasil) ou até do estran-
geiro. Entre muitos outros exemplos conhecidos, designadamente para o
século XVII, onde sobressaem histórias como a do mulato João Fernan-
des Vieira, que chegou a governador de Paraíba para depois se alcando-
rar a governador de Angola, podem citar-se casos mais tardios, como o
de José da Silva Pais, primeiro governador de Santa Catarina (1739-
-1749). O estudo sistemático deste tópico é, aliás, essencial. Os dados
recolhidos permitem afirmar, entretanto, que, pondo de parte as capita-
nias secundárias, se regista uma tendência geral para a crescente aristo-
cratização do recrutamento dos governadores do império do Atlântico
sul ao longo do século XVIII242.
A elite da magistratura constitui outra categoria particularmente rele-
vante. Era, sem dúvida, um dos grandes corpos da monarquia, em parte
(mas não na sua totalidade) coincidente com a elite burocrática da mo-
narquia243. Importa, pois, conhecer o seu recrutamento, avaliar o seu
estatuto e compreender como se articulava socialmente com as outras
elites.
Deixaremos de parte a presidência dos tribunais, praticamente
monopolizada pela nobreza titular244, para nos concentrarmos na magis-
tratura. Todos os anos saíam algumas centenas de bacharéis da Univer-
sidade de Coimbra, dos quais pouco menos de uma centena se habilitava
aos lugares de letras. Entre 1750 e 1833 houve cerca de 5250 candida-
tos, 2900 aprovados e apenas 1365 providos. Destes, somente 112 che-
garam a desembargador nos vários tribunais superiores da monarquia e
do seu império (Goa, Baía, Rio de Janeiro, Porto, Casa da Suplicação e
Desembargo do Paço), um estatuto equiparado ao de fidalgo. Com efei-

242 Este tema encontra-se a ser pesquisado no âmbito do projecto OPTIMA PARS –
II (ICS/FCT), antes citado, sob a coordenação de Mafalda Soares da Cunha e Nuno
Gonçalo Monteiro.
243 A qual aguarda um estudo aprofundado.
244 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., pp. 532-536.

125
Elites e Poderes

to, em cada momento, entre providos e supranumerários, os desembar-


gadores em Portugal e no seu império rondariam uma centena de indiví-
duos, o que quer dizer que se acedia a esse estatuto por outras vias que
não a da progressão na carreira. O caso do mais importante tribunal cen-
tral, o Desembargo do Paço, entre 1750 e 1833 é bem significativo.
Sempre de acordo com José Subtil, dos 63 desembargadores providos
durante esse período, apenas 6 tinham carreira nas colónias e 5 no con-
tinente. Quase metade era lente da Universidade de Coimbra245. Facto
muito relevante, apenas dois eram filhos segundos de Grandes do reino.
No que se refere aos desembargadores da Baía de 1696 a 1758, sabemos
que eram muito poucos os que tinham sequer origens fidalgas, em
números quase idênticos àqueles cujos pais haviam exercido ofícios
mecânicos (lojistas e artesãos); num universo de mais de uma centena,
apenas 5 tinham nascido no Brasil246. De facto, a presença da primeira
nobreza da corte na magistratura era excepcionalmente rara. Numa lista
de pouco menos de 2 milhares de desembargadores de todos os tribunais
entre 1640 e 1826 elaborada por José Subtil, pode estimar-se que os que
nasceram na primeira nobreza seriam menos de 1% do total247. No mes-
mo sentido, as alianças matrimoniais entre magistrados ou seus descen-
dentes e membros da primeira nobreza do reino foram quase inexisten-
tes até ao início do século XIX. Definitivamente, não se nota nenhuma
fusão entre os robin e a noblesse d’éppée.
As carreiras diplomáticas constituem um campo de análise particu-
larmente relevante. No âmbito do projecto OPTIMA PARS, de colabo-
ração com Pedro Cardim, tem-se recolhido informação bastante comple-
ta sobre o assunto, que irá comentar-se brevemente 248 . Em primeiro

245 Cf. José Subtil, O Desembargo do Paço (1750-1833), Lisboa, 1996. Sobre o per-
curso de canonistas e homens de leis, cf. Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade
de Coimbra (1700-1771) (Estudo Social e Económico), Coimbra, 1995.
246 Cf. Stuart Schwartz, Sovereignty and Society in Colonial Brazil. The High Court
of Bahia and its Judges 1609-1751, Los Angeles, 1973.
247 Cf. José Subtil, «Os desembargadores em Portugal (1640-1826)», in OPTIMA
PARS – I, relatório, mimeo., ICS/FCT, 1999.
248 Este tema encontra-se a ser pesquisado no âmbito do projecto OPTIMA PARS –
II (ICS/FCT), antes citado, sob coordenação de Pedro Cardim e Nuno G. Monteiro.
Agradecem-se as sugestões fornecidas por Isabel Cluny no âmbito da sua dissertação de
doutoramento.

126
Poderes e circulação das elites em Portugal

lugar, importa salientar que o ritmo da nomeação dos diplomatas, a fre-


quência com a qual se repetiam as nomeações e o grau de especialização
nas funções registaram uma apreciável diversidade e evolução ao longo
do período considerado. Em seguida, que os diferentes países tinham
uma clara hierarquia de importância. Finalmente, que o recrutamento
dos diplomatas se pautava pela diversidade: tanto do ponto de vista da
qualidade do nascimento (apenas 31% eram filhos primogénitos ou se-
cundogénitos de elementos da «primeira nobreza» do reino) como do
percurso institucional de origem (exército, administração/magistratura,
Igreja), como das qualificações profissionais. É evidente que a grande
diplomacia de representação se consubstanciava nas embaixadas e mis-
sões de Grandes do reino. Mas, para além das características específicas
da fase final do Antigo Regime (quando as relações diplomáticas se
diversificaram), deve sublinhar-se o carácter social e institucionalmente
indefinido do recrutamento diplomático: houve diplomatas especializa-
dos recrutados em todos os círculos sociais e institucionais. Sobretudo,
há que destacar um aspecto notável e relativamente misterioso da selec-
ção: uma parte considerável dos diplomatas portugueses nem pertencia à
primeira nobreza do reino, nem aos principais corpos institucionais
(Igreja, exército, magistratura/funcionalismo), nem sequer tinha forma-
ção universitária (possuída por apenas um quinto do total). Exemplos,
seleccionados apenas entre aqueles que atingiram o topo da hierarquia
institucional da monarquia: Sebastião José de Carvalho e Melo e Aires
de Sá e Melo. Nenhum deles tinha nascido numa casa que pertencesse
inequivocamente à primeira nobreza da corte, mas foram, depois de um
percurso na diplomacia, secretários de Estado e legaram a titulação às
suas casas.
Do que antes se disse pode concluir-se que, num quadro de previsibi-
lidade e de uma impressionante regularidade, a carreira diplomática era
certamente um dos terrenos onde aquilo que não se pode explicar pelos
parâmetros analíticos propostos adquire mais importância. Ora, a diplo-
macia foi o principal campo de recrutamento dos secretários de Estado,
ou seja, do governo que emerge em meados do século XVIII. Com efeito,
para não irmos mais para trás, destaquemos que 14 dos 20 indivíduos
que foram nomeados secretários de Estado entre 1736 e 1807 tinham
passado pela diplomacia. Muito relevante e decisiva se revela a relação

127
Elites e Poderes

entre os secretários de Estado e a elite nobiliárquica. Em 1640 e nas


décadas posteriores249, os secretários de Estado não eram senão, em lar-
ga medida, os secretários do Conselho de Estado, composto na sua qua-
se totalidade por Grandes seculares e irmãos eclesiásticos de Grandes,
do qual não faziam parte. Originariamente, os secretários deviam ajoe-
lhar-se nas reuniões do Conselho (enquanto os membros daquele órgão
se sentavam) e foram até 1736, com uma única excepção (D. Tomás de
Almeida, futuro cardeal-patriarca e filho do 2.º conde de Avintes),
recrutados numa nobreza muito secundária. De resto, tirando dois casos
singulares, não se fundiram com a elite aristocrática. Essas excepções
são Roque Monteiro Paim e Diogo de Mendonça Corte Real 250 . No
entanto, é das secretarias de Estado que irá surgir o governo moderno,
desde a última fase do reinado de D. João V, mas sobretudo durante o
reinado de D. José. Depois, principiando com Pombal, todos os minis-
tros vão ser titulados (cf. quadro n.º 11). A supremacia do governo vai-
-se exprimir assim. Conforme se escreveu há já alguns anos, «na segun-
da metade do século XVIII, com raras excepções, foram os ministros que
se tornaram titulares, e não os titulares que se tornaram ministros»251.
Conviria acrescentar, porém, que essa foi uma indiscutível e relevante
novidade.
No que se refere ao topo da hierarquia eclesiástica, a nossa análise
vai incidir sobre o estatuto de nascimento dos bispos e arcebispos portu-
gueses ao longo do período considerado, de forma a poderem avaliar-se
os níveis de promoção social abertos pelas respectivas carreiras. Repor-
tar-nos-emos apenas às dioceses e arquidioceses do continente portu-
guês, distinguindo entre as mais prestigiadas (Lisboa, Braga, Évora,

249 A identificação rigorosa de quem foi secretário de Estado não é fácil, até porque
muitos desempenharam as funções interinamente, pelo que os dados não são inteiramen-
te seguros. Tomou-se como base de trabalho a lista de Pedro Cardim, O Poder dos Afec-
tos..., cit., p. 539.
250 Cf., sobre este assunto, Nuno G. Monteiro, «Identificação da política setecentis-
ta...», cit.
251 Nuno Gonçalo Monteiro, «Notas sobre nobreza, fidalguia e titulares nos finais do
Antigo Regime», in Ler História, n.º 10, 1987, p. 28.

128
Poderes e circulação das elites em Portugal

Porto e Coimbra) e as restantes (quadros n.os 12, 13 e 14252). Sublinhe-


-se, de resto, que a coroa portuguesa teve, desde o início de Quinhentos,
uma significativa intervenção na escolha dos prelados, embora nem
sempre da mesma forma. Os titulares das sés foram distribuídos por seis
categorias e agrupados em períodos de cerca de sessenta anos, geral-
mente correspondentes a conjunturas políticas bem definidas. Conside-
raram-se, de resto, também os vigários diocesanos nomeados pela coroa
e que exerceram funções mas que não foram confirmados pelo papa por
força da interrupção das relações com a Santa Sé.

Recrutamento dos secretários de Estado (1640-1807)

[QUADRO N.º 11]

Secundá-
Primeira
Titulares rios Outros Titulares
nobreza Total
(a) titulares (d) (e)
(c)
(b)

1640-1736 (f)...................................... 0 1 0 14 15 (1)


1736-1750.......................................... 0 0 0 3 3 0
1750-1777.......................................... 0 0 1 7 8 2
1777-1807.......................................... 2 2 1 5 10 10

(a) Titulares; (b) filhos secundogénitos de titulares; (c) primogénitos e outros nasci-
dos em casas da primeira nobreza de corte sem título; (d) indivíduos que não tinham
nenhuma das origens sociais constantes das categorias anteriores; (e) falecidos titulares
ou cujos sucessores receberam títulos pelos seus serviços; (f) inclui também secretários
das Mercês.

252Os quadros seguintes, que se devem reputar provisórios e incompletos, foram


elaborados em 1997 recorrendo a uma multiplicidade de fontes, no âmbito do projecto
OPTIMA PARS − I (ICS/FCT), estando a execução a cargo de Luísa França Luzio.
Foram já objecto de publicação em Fernanda Olival e Nuno G. Monteiro, «Mobilidade
social nas carreiras eclesiásticas (1500-1820)», in Análise Social, n.º 166, 2003, cujo
texto se retoma, com alterações, nas linhas que se seguem.

129
Elites e Poderes

Prelados das arquidioceses e dioceses principais (1500-1820)


(números absolutos)*

[QUADRO N.º 12]

Pai 1580 1580-1640 1641-1700 1701-1760 1761-1820

Rei (a).......................................... 6 0 0 2 0
Grande (b).................................... 4 5 6 11 5
Senhor (c)..................................... 9 14 11 0 2
Outros (d)..................................... 12 9 5 2 7
Não nobre (e)............................... 0 0 0 0 2
Estrangeiro (f).............................. 0 0 2 0 0
Total........................................ 31 28 24 15 16

* Todos os valores apresentados reportam-se ao número de investiduras no exercício dos


governos diocesanos entre 1500 e 1820, e não ao total de indivíduos, os quais muitas vezes
percorreram diversas dioceses. Incluíram-se os governadores das dioceses que não chegaram
a ter confirmação papal pelo facto de se estar em conflito diplomático com a Santa Sé.
(a) Filho legítimo ou bastardo de rei; (b) filho de Grande do reino; (c) filho de senhor de
terras, comendador, oficial-mor da casa real ou governador colonial, ou neto de Grande; (d)
filho de nobre sem os atributos de (b) ou (c) ou com origens sociais mal esclarecidas; (e) filho
de pais identificados como não nobres; (f) filho de estrangeiro.

Prelados das dioceses secundárias


(números absolutos)*

[QUADRO N.º 13]

Pai 1580 1580-1640 1641-1700 1701-1760 1761-1820

Rei (a).......................................... 2 0 0 0 0
Grande (b).................................... 6 15 14 5 1
Senhor (c)..................................... 11 15 16 9 2
Outros (d)..................................... 18 23 16 21 40
Não nobre (e)............................... 2 0 0 0 5
Estrangeiro (f).............................. 2 2 3 0 1
Total........................................ 41 55 49 35 49

Legenda: v. quadro anterior.

130
Poderes e circulação das elites em Portugal

Prelados de todas as arquidioceses e dioceses do continente português


(em percentagem)*253

[QUADRO N.º 14]

Pai 1580 1580-1640 1641-1700 1701-1760 1761-1820

Rei (a).......................................... 11,1 0,0 0,0 4,0 0,0


Grande (b).................................... 13,9 24,1 27,4 32,0 9,2
Senhor (c)..................................... 27,8 34,9 37,0 18,0 6,2
Outros (d)..................................... 41,7 38,6 28,8 46,0 72,3
Não nobre (e)............................... 2,8 0,0 0,0 0,0 10,8
Estrangeiro (f).............................. 2,8 2,4 6,8 0,0 1,5
Total........................................ 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Legenda: v. quadros anteriores.

A hierarquia das dioceses existia, sem dúvida, e aparece ratificada


quer por o perfil dos nomeados ser, em média, efectivamente distinto
nas de segunda e nas de primeira ordem, quer pela análise das trajectó-
rias individuais, designadamente pela ascensão de umas para as outras.
Típicos exemplos serão D. Afonso Furtado de Mendonça, que da Guar-
da (1609) passou a Coimbra (1616), e daqui a Braga (1618), para,
finalmente, chegar a Lisboa (1626), ou D. Tomás de Almeida, antigo
secretário de Estado, que passou de Lamego (1706) ao Porto (1709),
antes de vir a ser o primeiro patriarca de Lisboa (1716), depois feito
cardeal (1737). Nas dioceses principais, a maioria dos bispos era, desde
o primeiro período considerado, recrutada na principal nobreza do reino
[categorias (a), (b) e (c)], mas essa dimensão foi-se acentuando cada vez
mais até ao intervalo 1700-1760, quando a quase totalidade dos prelados
a ela pertencia, sendo que a maioria era filha de Grandes do reino. No

253 Fonte dos três quadros anteriores: ÓPTIMA PARS I (ICS-FCT).

131
Elites e Poderes

último intervalo considerado (1761-1820), porém, verifica-se uma espec-


tacular inversão dessa tendência, encontrando-se os bispos nascidos fora
da principal nobreza do reino, pela primeira vez, em maioria. De facto, a
inflexão dá-se a partir das últimas décadas do século XVIII, quando as
dioceses (Coimbra, 1779; Braga, 1790; Évora, 1783; Porto, 1816; Lis-
boa, só depois, em 1826) têm à sua frente bispos sem um nascimento
muito selecto, o que desde há muito tempo se não verificava. Nas dioce-
ses de menor preeminência, a percentagem das três primeiras categorias
é menos importante do que nas anteriores, mas tende a subir sempre até
1700. A quebra neste caso dá-se mais cedo, pois é já visível no período
1701-1760. Na etapa seguinte a baixa é absolutamente radical, sendo
muito poucos os bispos nascidos na primeira nobreza do reino. A evolu-
ção de conjunto de todas as dioceses do continente português reflecte,
em larga medida, a tendência das últimas referidas. Aumento constante
dos bispos de nascimento muito ilustre até 1700 (com os filhos de Gran-
des em aumento até 1760), quebra radical depois de 1761. Ao contrário
do que se verificava um século antes, a esmagadora maioria dos bispos
portugueses no início de Oitocentos não tinha nascido nas casas da prin-
cipal nobreza da corte. A evolução ulterior viria a acentuar essa tendên-
cia, pois durante todo o período contemporâneo a esmagadora maioria
do episcopado português não foi recrutada nas principais elites sociais
do país.
Como se podem explicar os indicadores apontados? De uma forma
muito próxima, reflectem as etapas de reconfiguração, cristalização e
crepúsculo da aristocracia de corte portuguesa. Originada num processo
de intensa competição e decorrente selecção entre as casas fidalgas fun-
dadas maioritariamente nos séculos XV e XVI, a aristocracia de corte
portuguesa tende a cristalizar-se algumas décadas depois da Restauração
de 1640. No período subsequente monopoliza virtualmente as principais
doações da coroa e os mais destacados ofícios da monarquia, nestes se
incluindo os mais apetecidos benefícios eclesiásticos para os seus
secundogénitos. Ao longo do século XVII, no conjunto das dioceses, a
larga maioria dos prelados tinha nascido na primeira nobreza da corte, o
que contrasta com o que se sabe para a generalidade do alto clero católi-
co europeu. Mas, a partir de meados do século XVIII, as carreiras ecle-
siásticas, que até então absorviam cerca de um terço dos filhos dos

132
Poderes e circulação das elites em Portugal

Grandes e a maioria dos secundogénitos, sofrem uma quebra acentuada


e irreversível, o que, de resto, também se verifica com os ingressos das
filhas em conventos254. Não se trata ainda da crise e desestruturação da
disciplina da casa aristocrática, mas tão-só de um primeiro factor que a
antecedeu: o início da desqualificação das carreiras eclesiásticas no mun-
do das elites, efeito conjugado de vários factores, incluindo de forma difu-
sa o impacto do pombalismo e da «cultura das luzes». Em síntese, a evo-
lução detectada depois de 1761 reflecte, em primeiro lugar, o facto de se
ter reduzido a procura de benefícios eclesiásticos por parte dos secundo-
génitos da primeira nobreza do reino. Parece ter sido isso que abriu a
porta à promoção de outros até ao topo da hierarquia eclesiástica.
Se até aqui nos ocupámos das elites de uma ou outra forma ligadas
ao centro institucional da monarquia, importa agora que se apresentem
breves sínteses sobre outras categorias sociais que à partida se configu-
ram como potenciais pólos de recrutamento dos servidores da coroa.
Dispomos hoje de informação significativa sobre os negociantes da
segunda metade de Setecentos, especialmente os matriculados na praça
de Lisboa. Estes, com o grupo restrito dos grandes financeiros da monar-
quia à cabeça255, constituem, sem dúvida, uma elite emergente na socie-
dade portuguesa, que recebeu uma renovada consagração institucional,
jurídica e material durante o período pombalino, tal como foi sugerido
desde há muito e aprofundadamente estudado na dissertação, ainda sem
difusão editorial, de Jorge Pedreira256. O seu número era variável, de
acordo com o registo, mas depois de 1770 não deveriam ser menos de
450 indivíduos, que se renovavam rapidamente, pois cerca de metade
mudava em cada década. De facto, trata-se ainda de uma ocupação de
uma ou duas gerações, permanecendo raras as dinastias de negociantes.
Na segunda metade de Setecentos, as origens cristãs-novas, antes tão

254 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., pp. 68-72 e 165
e segs.
255 Cf. José Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, 1965, e
«Burguesia pombalina, nobreza mariana, fidalguia liberal», in Pombal Revisitado, vol. I,
Lisboa, 1984, e Fernando Dores Costa, Crise Financeira, Dívida Pública e Capitalistas
(1796-1807), dissertação de mestrado, mimeo., FCSHUNL, Lisboa, 1992.
256 Jorge Pedreira, Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo
(1755-1822), dissertação de doutoramento, mimeo., Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995.

133
Elites e Poderes

relevantes257, são, pela primeira vez, francamente residuais. Em com-


pensação, quase metade dos negociantes de Lisboa eram filhos de
minhotos e mais de um terço tinha nascido nessa província. De facto,
havia mais negociantes filhos de naturais da comarca de Guimarães
(12%) do que de lisboetas (11%); os filhos de vimaranenses eram tantos
como os filhos de estrangeiros (12%), embora mais de metade destes
tivessem já nascido em Portugal (7%), pois as famílias estrangeiras
eram das que revelavam maior propensão dinástica. No conjunto, menos
de um terço dos negociantes eram filhos de negociantes, tantos quantos
os filhos de lavradores. Muitos passaram pelo Brasil.
A fortuna média dos negociantes andava pelos 150 contos258, mas
comprovadamente mais de meia dúzia (evidentemente, com a oligarquia
dos grandes contratadores do Estado à cabeça) passaram dos 1000 con-
tos, o que os coloca a um nível de rendimento só alcançado por duas ou
três casas titulares. Um quinto dos membros da comunidade mercantil
de grosso trato da capital não se casava, muito poucos alcançavam
matrimónios acima do seu estatuto nobiliárquico e nenhum até ao barão
de Quintela, em 1814, conseguiu casar filhos ou filhas com descenden-
tes imediatos dos Grandes do reino. Contrariando a prática dominante
no século XVII, foram poucos (e quase só os grandes financeiros) aque-
les que fundaram morgados (Pedreira contabilizou apenas 14). Ao invés,
muitos tiveram filhos que ingressaram na magistratura. Em conclusão,
os negociantes grossistas da principal praça do reino conseguiam rivali-
zar com os Grandes do reino em termos de capacidade financeira para
gastar e para construir, mas, apesar de poderem frequentar os mesmos
espaços de sociabilidade, só bem tarde e raramente puderam fundir-se
com a velha elite aristocrática do regime brigantino. Acresce que o aces-
so directo ao serviço nos ofícios superiores da monarquia também pare-
ce ser raro.
As nobrezas das províncias constituem outra categoria central e, nes-
te caso, uma numerosa elite da sociedade portuguesa. Tem sido, de res-

257 Cf., sobre o assunto, David Grant Smith, The Portuguese Mercantil Class of Por-
tugal and Brazil in the Seventeenth Century: a Socioeconomic Study of the Merchants of
Lisbon and Bahia, 1620-1690, dissertação, mimeo., Austin, Texas, 1975.
258 Os bens de raiz representavam, em média, apenas 17% das fortunas deste grupo,
mas, destes, 70% eram em prédios urbanos em Lisboa.

134
Poderes e circulação das elites em Portugal

to, muito estudada nos últimos anos através de numerosas monografias


sobre elites camarárias e outros trabalhos já analisados neste livro259.
Importa aqui, por conseguinte, recordar apenas alguns aspectos. Desde
logo, os contrastes, tanto do ponto de vista do estatuto nobiliárquico
como do rendimento, das elites locais nos finais do Antigo Regime nas
diferentes terras do reino. Em segundo lugar, há que insistir no divórcio
entre as elites da corte e as das províncias. Existiam na província segu-
ramente mais de uma, talvez mais de duas dezenas de casas com um
rendimento equivalente ao das menos afortunadas casas da primeira no-
breza da corte. No entanto, nenhuma alcançaria os rendimentos médios
do referido grupo ou de outras elites de Lisboa (como os grandes finan-
ceiros e negociantes). A corte, de facto, situava-se num outro patamar.
No mesmo sentido, são muito raros os comendadores e donatários resi-
dentes fora de Lisboa. O que constitui outra forma de confirmar que es-
tas distinções da monarquia se concentravam nas elites da corte. E, por
outro lado, foram raríssimos os fidalgos de província que casaram os
seus filhos ou filhas sucessores com a prole dos Grandes do reino desde
finais do século XVII até inícios do século XVIII, embora muitos explici-
tamente o tivessem pretendido. A comunicação era muito escassa entre
as duas esferas. Finalmente, como antes se sugeriu, não obstante a sua
vocação tradicional para o efeito, foram raras antes do início do século
XIX as portas para o serviço à monarquia abertas às nobrezas provin-
ciais.
O mesmo divórcio social existia em relação às nobrezas coloniais.
As elites sociais e institucionais do Brasil, estruturadas em hierarquias
próprias fortemente diferenciadas no espaço, procuravam, apesar disso,
aceder aos signos de distinção definidos pelo centro do império e alcan-
çar as honras que de lá dimanavam. É por isso que até mesmo o estatuto
da pureza de sangue e o inerente estigma da impureza do mesmo se pro-
longaram no território sul-americano, fornecendo, tal como na Península
Ibérica, armas nas lutas pelo poder de classificar os indivíduos esgrimi-

259 Cf. Nuno G. Monteiro, «Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais
do Antigo Regime», in Análise Social, n.º 141, 1997, pp. 335-368, republicado neste
livro.

135
Elites e Poderes

das no campo da genealogia260. No mesmo sentido, as distinções mais


correntes (familiar do Santo Ofício, cavaleiro de ordem militar, foro de
fidalgo da casa real, cartas de brasão de armas) foram significativamente
procuradas no Brasil261. No entanto, no século XVIII o acesso às distin-
ções nobiliárquicas superiores foi muito raro, caso do estatuto de comen-
dador de ordem militar, ou totalmente inexistente, no que se reporta aos
títulos. A distância da corte acentuava-se naturalmente na colónia, agra-
vando de forma notória a clivagem que no território europeu se verificou
ao longo de todo o século entre as elites da corte e as das províncias.
Raros foram, de resto, os naturais da colónia que se aproximaram do cen-
tro da decisão política da monarquia, afirmação que o percurso tantas
vezes citado do secretário de D. João V Alexandre Gusmão em nada
contraria, até porque nunca alcançou o ponto culminante que o próprio
confessadamente desejava. No mesmo sentido, foram excepcionalmente
pouco frequentes, antes da partida da corte para o Rio de Janeiro, os
casos de enlace matrimonial entre as elites brasileiras e a descendência
da primeira nobreza do reino. Decididamente, a riqueza, mesmo quando
copiosa, não chegava para abrir as portas ao topo da hierarquia social de
uma monarquia intercontinental de cujos centros educacionais e de pro-
dução cultural se procura preservar o exclusivo europeu. Acrescente-se
(e é o que mais importa para o tema aqui discutido) que depois do
período imediatamente ulterior à Restauração os governos das capitanias
estiveram cada vez menos ao alcance dos naturais da colónia 262 .
A nomeação de governadores reinóis e tão nobres quanto possível visa-
va, aqui como noutras paragens, colocar no comando de cada capitania
quem maior independência se supunha assegurar em relação aos interes-

260 Cf. Evaldo Cabral de Mello, O Nome e o Sangue. Uma Fraude Genealógica no
Pernambuco Colonial, São Paulo, 1989.
261 De acordo com o trabalho de Maria Fernanda Olival, Honra, Mercê e Venalida-
de…, cit., Lisboa, 2001, pp. 458-459, entre 1641 e 1699, somente seriam lançados no
Brasil 4,6 % dos hábitos de cavaleiro da Ordem de Cristo, menos do que na Índia
(8,9%) e até do que em Mazagão (5,5%). Entre 1700 e 1777, no entanto, a percenta-
gem do Brasil subiria para 8,8%, enquanto a da Índia baixava para 5,4% e Mazagão
para 2,7%. No entanto, o Brasil só ultrapassou aqueles dois territórios a partir da déca-
da de 1720-1729.
262 Cf., entre outros, R. Bardwell, op. cit., e Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio. O Ima-
ginário da Restauração Pernambucana, 2.ª ed., Rio de Janeiro, 1997, pp. 130 e segs.

136
Poderes e circulação das elites em Portugal

ses ou facções locais. Não se pretende aqui discutir esse pressuposto.


Apenas destacar o que se reputava uma evidência indiscutível.
Esta última questão permite-nos destacar, por fim, uma última e rele-
vante questão: a absoluta centralidade do império nos processos de cir-
culação das elites da monarquia. Quase todas as grandes casas aristocrá-
ticas, mas também um bom número de magistrados e de negociantes,
passaram pelas conquistas ao longo dos séculos XVII e XVIII. Os indica-
dores disponíveis são particularmente impressionantes no que se reporta
à elite militar e aristocrática: a esmagadora maioria das grandes casas
aristocráticas teve um ou mais dos seus filhos num governo colonial ao
longo do período considerado. Dificilmente se poderá encontrar paralelo
noutras elites nobiliárquicas europeias da mesma época.

Conclusões

Ao longo deste ensaio percorremos as etapas e os indicadores fun-


damentais de uma mutação relevante. Acompanhando a ruptura dinásti-
ca de 1640, a evolução institucional do reino de Portugal ficou assinala-
da pela transição de um sistema plural de cortes e de poderes senhoriais
significativamente territorializados para o monopólio tendencial da corte
régia, acompanhado de uma erosão progressiva dos poderes senhoriais.
Ao mesmo tempo, a referida evolução institucional traduziu-se numa
nova configuração dos processos de estruturação, reprodução e circula-
ção das elites: a constituição da nobreza de corte da nova dinastia cor-
respondeu a uma crescente polarização social entre esta e todas as res-
tantes elites, designadamente as nobrezas provinciais, com as quais raras
vezes estabeleceu alianças matrimoniais e em relação às quais foi ca-
vando um fosso social cada vez mais pronunciado.
A breve análise do acesso a alguns dos principais ofícios da monar-
quia permitiu-nos completar o quadro antes desenhado. As casas da
primeira nobreza tendiam a monopolizar as presidências dos tribunais,
os comandos do exército, os mais destacados governos coloniais, os bis-
pados mais importantes. Não existia qualquer fusão entre a elite aristo-
crática e a elite da magistratura, recrutada noutras categorias sociais. Por
isso mesmo, as casas da primeira nobreza foram concentrando cada vez

137
Elites e Poderes

mais as mercês régias mais relevantes, recebidas em remuneração dos


seus serviços: acumularam até ao início do século XIX cada vez mais
comendas, senhorios e tenças, que lhes forneciam mais de metade das
suas receitas.
Na segunda metade do século XVIII a afirmação do governo (secreta-
rias de Estado) e a quebra nos ingressos nas carreiras eclesiásticas dos
filhos dos Grandes irão introduzir algumas fissuras no processo antes
descrito263. De resto, os abalos políticos de vária ordem sofridos durante
o pombalismo também não devem ser minimizados. No entanto, o es-
sencial do quadro antes descrito perduraria até ao século XIX. Com ele
viriam a defrontar-se o discurso e a legislação do liberalismo.

263 A erosão do «modelo reprodutivo vincular» e a quebra nos ingressos eclesiásti-


cos não se restringiram, porém, à primeira nobreza (cf. uma síntese sobre esta matéria,
que merece uma investigação mais aprofundada, em Nuno Gonçalo Monteiro, «Modelos
de comportamento aristocrático nos finais do Antigo Regime», in Temas de Genealogia
e História da Família, Porto, 1998, pp. 133-156).

138
5. NOBREZA, REVOLUÇÃO E LIBERALISMO: PORTUGAL
NO CONTEXTO DA PENÍNSULA IBÉRICA*

Os problemas a discutir

Desde que Arno Mayer publicou no início dos anos 80 o seu célebre
livro The Persistence of the Old Regime264, pode afirmar-se sem exage-
ro que os estudos sobre as nobrezas e aristocracias europeias no século
XIX conheceram um novo impulso. Muitos trabalhos parcelares265,
colectâneas266 e até obras de síntese267 viram desde então a luz. Embora
tal não signifique a aceitação das suas polémicas teses sobre a persistên-
cia do Antigo Regime, a verdade é que as nobrezas oitocentistas deixa-

* Publicação original in Silvana Casmirri e M. Suárez Cortina (eds.), La Europa del


Sur en la Época Liberal. España, Itália y Portugal, Cantabria, Universidade de Canta-
bria, 1998, pp. 131-150.
264 Cf. Arno Mayer, The Persistence of the Old Regime, Londres, 1982.
265 Cf., entre muitos outros, David Higgs, Nobles in Nineteenth-Century France.
The Pratice of Inegualitarianism, Baltimore, 1987, e David Cannadine, The Decline and
Fall of the British Aristocracy, Yale, 1990.
266 Cf. Les noblesses européennes au XIX siècle. Actes du coloque de Rome, collection
de l’Ecole Française de Rome, n.º 107, 1988; antes, destaque-se a colectânea de David
Spring (ed.), European Landed Elites in the Nineteenth Century, Baltimore, 1977.
267 Como a de Dominique Lieven, The Aristocracy in Europe 1815-1914, Londres,
1992, que, surpreendentemente, só se ocupa da Alemanha, Inglaterra e Rússia [poste-
riormente, e com um âmbito efectivamente europeu, foi publicado o livro de Maria
Malatesta, Le aristocrazie terriere nell’Europa contemporanea, Roma, 1999].

139
Elites e Poderes

ram definitivamente de ser encaradas como uma sobrevivência residual


de tempos passados para passarem a ser analisadas como um vector
fundamental dos complexos e variáveis processos de estruturação das
elites numa Europa onde a massificação da sociedade e a democratiza-
ção da política estavam longe de se encontrarem plenamente realizadas.
Desde muito cedo que a investigação e discussão deste tema obteve
um lugar destacado na historiografia espanhola. Penso não distorcer os
factos se disser que a imponente presença da aristocracia na vida social
e política espanhola, a persistência da grande propriedade no Sul, até a
emergência da II República espanhola, bem como os debates políticos
que acompanharam esta, foram factores decisivos que contribuíram para
alimentar uma discussão que ainda persiste sobre a natureza e os limites
da revolução liberal espanhola e, em particular, acerca dos destinos que
esta impôs à aristocracia oitocentista268.
Ora, foi precisamente o contacto com a bibliografia espanhola que
me levou em finais de 1988, num congresso realizado em Santiago de
Compostela, quando dava ainda os seus primeiros passos a minha inves-
tigação sobre a aristocracia portuguesa no final do Antigo Regime, a
esboçar muitos dos tópicos da minha pesquisa e, sobretudo, a formular
um juízo acerca do impacto da revolução sobre os ulteriores destinos da
categoria social analisada269. Confrontando os primeiros resultados da
minha investigação com os debates em curso sobre a Espanha, impunha-
-se uma clara conclusão: «O declínio muito rápido da maior parte das
velhas casas da aristocracia titular constitui um traço característico do
advento do liberalismo em Portugal. Aspecto em que a história portu-
guesa parece contrastar fortemente com a da monarquia espanhola e
com as de outros países europeus270.»

268 A bibliografia é demasiado extensa para poder ser citada (cf., por todos, o balan-
ço de Pedro Ruiz Torres, «Aristocracia e revolução liberal em Espanha», in Penélope.
Fazer e Desfazer a História, n.º 12, 1993).
269 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Os rendimentos da aristocracia na crise do Antigo
Regime», in Análise Social, n.º 111, 1991, e «Los rendimientos da la aristocracia portu-
guesa en la crisis del antiguó régimen», in P. Saavedra e R. Villares (eds.), Señores y
Campesinos en la Península Ibérica, Siglos XVIII-XX, 1, Os Señores da Terra, Barcelo-
na, 1991.
270 Nuno G. Monteiro, «Os rendimentos...», cit., p. 384.

140
Nobreza, revolução e liberalismo

Quase uma década volvida, embora a minha investigação se tenha


centrado sobre o período dos finais do Antigo Regime, e não na etapa
ulterior271, e apesar de não existir nenhum estudo sistemático sobre o
tema272, penso que a afirmação produzida tem vindo a ser sistematicamen-
te ratificada e reforçada por vários trabalhos sobre diversos assuntos entre-
tanto produzidos. Estudos sobre a desamortização, como os de L. Espinha
da Silveira273, sobre a elite política e o pariato, como os de Pedro Tava-
res de Almeida e do mesmo Espinha da Silveira274, sobre a génese das
novas elites económicas e as transferências de propriedade que a acom-
panharam, como os de Helder Fonseca275 e Conceição Martins276, ou até
sobre a monarquia e a corte na viragem para o século XX e para a I Repú-
blica portuguesa (1910-1926)277, confirmam nos seus traços essenciais a
tese então apresentada.

271 Id., A Casa e o Património dos Grandes Portugueses (1750-1832), dissertação


de doutoramento, mimeo., Lisboa, Universidade Nova, 1995, pp. 59-258 [entretanto
publicada com o título O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da Aristocra-
cia em Portugal (1750-1832), Lisboa, 1998].
272 [Entretanto foi defendida uma primeira dissertação de mestrado sobre o assunto:
Francisco L. Saraiva de Vasconcelos, A Nobreza entre 1792 e 1910. Estatuto e Trans-
missão, dissertação, mimeo., Lisboa, ISCTE, 2001.]
273 Cf. Luís Espinha da Silveira, «Venda de bens nacionais, estrutura da propriedade
e estrutura social na região de Évora na primeira metade do século XIX», in Análise So-
cial, n.os 112-113, 1991, e, sobretudo, «La desamortización en Portugal», in Ayer, n.º 9,
1993. Sobre o mesmo tema, mas com distintas perspectivas, v. ainda António Martins da
Silva, Nacionalizações e Privatizações em Portugal. A Desamortização Oitocentista,
Coimbra, 1997.
274 Cf. Pedro Tavares de Almeida, Eleições e Caciquismo no Portugal Oitocentista
(1868-1890), Lisboa, 1991, pp. 178-189, e A Construção do Estado Liberal. Elite Políti-
ca e Burocracia na «Regeneração» (1851-1890), dissertação de doutoramento, mimeo.,
Lisboa, Universidade Nova, 1995, e L. Espinha da Silveira, «Revolução liberal e pariato
(1834-1842)», in Análise Social, n.os 116-117, 1992.
275 Helder Fonseca, «Sociedade e elites alentejanas no século XIX», in Economia e
Sociologia, n.os 45-46, 1988, e Economia e Atitudes Económicas no Alentejo Oitocentis-
ta, Lisboa, 1996.
276 Cf. Conceição A. Martins, «Opções económicas e influência política de uma
família burguesa oitocentista: o caso de São Romão e José Maria dos Santos», in Análise
Social, n.os 116-117, 1992.
277 Cf. Rui Ramos, A Segunda Fundação (1890-1926), in José Mattoso (dir.), Histó-
ria de Portugal, vol. 6, Lisboa, 1994.

141
Elites e Poderes

E, no entanto, não apenas o caso português tem sido geralmente


ignorado nas abordagens de história comparada europeia sobre esta
questão, como muitos historiadores portugueses não integraram nas suas
perspectivas gerais as conclusões para que apontam estas investigações
mais recentes.
A título de exemplo, citarei um excerto da História de Portugal diri-
gida por José Mattoso, no seu volume V, O Liberalismo (1807-1890),
Lisboa, 1993, coordenado por Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque.
Apesar de noutros capítulos da obra se apontar em sentidos diversos,
apresenta-se o seguinte balanço de conjunto na introdução ao volume:
«Em Portugal não houve uma ‘Grande Revolução’ como em França − ou
uma série de ‘revoluções’, sucedidas ali depois de 1789 −, que apesar
das reacções e ‘restaurações’, sequentes, deixou traços indeléveis na
sociedade, a ponto de ser considerada como uma fronteira quase indis-
cutível de um novo período histórico. A Revolução de 1820 é a nossa
revolução ‘possível’ e, como tal, incompleta e episódica. Mais tarde
virão outros movimentos ‘revolucionários’, uns triunfantes e outros não,
que farão seguir o País por um rumo onde as mudanças e as sobrevivên-
cias se verificam278.»
Evidentemente, não se trata de uma perspectiva original. De facto,
embora a historiografia sobre a história contemporânea portuguesa só
tenha nascido, para quase todos os efeitos, nos anos 60 do século XX,
centrando-se inicialmente na redescoberta do século XIX279, a verdade é
que muitos dos seus autores retomaram sobre o Portugal liberal a imagem
dos contemporâneos críticos (a chamada geração de 70, com tantas seme-
lhanças com os regeneracionistas espanhóis). Apontavam, assim, uma
acentuada sedução pelos valores, símbolos e géneros de vida nobiliár-
quicos como marca singular do século XIX português e até como um dos

278 Op. cit., p. 12. No mesmo volume é de justiça salientar a síntese equilibrada
sobre o tema do qual aqui nos ocupamos de Fernando Taveira da Fonseca, «Elites e
classes médias», op. cit., pp. 459-477.
279 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «L’historiographie de la révolution libérale au Por-
tugal: perspectives recentes», in La recherche en histoire du Portugal, boletim do Cen-
tre d’Études Portugaises da EHESS, n.º 1, 1989.

142
Nobreza, revolução e liberalismo

factores explicativos do atraso económico nacional, minimizando glo-


balmente as dimensões de ruptura da revolução liberal280.
A minha intenção com este texto é, por conseguinte, a de apresentar
um breve ponto da situação dos estudos sobre este tema, acentuando de
forma taxativa (e porventura até polémica) algumas teses de conjunto.
Designadamente, a ideia não só do drástico declínio económico, social e
político da aristocracia de Antigo Regime, como da relativa debilidade
comparativa dos símbolos e valores nobiliárquicos, em geral, na socie-
dade liberal portuguesa. Portugal constituiria, assim, desse ponto de vis-
ta, um caso paradigmático à escala europeia.
Esta ideia pode ser sustentada com alguma independência em relação
ao balanço que se faça dos destinos aristocráticos noutros países e,
designadamente, em Espanha. Neste particular, devo sublinhar, sem pre-
tender introduzir-me num debate em que outros serão mais qualificados
do que eu, que, a par das teses mais clássicas que insistem na continui-
dade, ou na ruptura, me parece existir alguma novidade na ideia recen-
temente sustentada sobre a matéria por Juan Pró. Para ele, o peso da
aristocracia em Espanha é indiscutível antes da II República, mas tratar-
-se-ia de uma categoria essencialmente nova, em larga medida, resultan-
te da fusão da velha elite aristocrática com elementos socialmente emer-
gentes. O seu traço mais marcante, porém, seria o facto de se constituir
fundamentalmente como um grupo cortesão, que se confundia com a
rede das relações tecidas em torno da realeza, situando-se os níveis de
residência dos seus membros em Madrid na casa dos 80%, bem acima
das percentagens verificadas no final do Antigo Regime político281. Ora,
se eventualmente se adoptar este ponto de vista282, a diferença portugue-

280 Cf., entre os textos mais significativos, Joel Serrão, «Nobreza − época contemporâ-
nea», in Dicionário de História de Portugal, Lisboa, e «Das razões históricas dos fracassos
industriais portugueses», in Da Indústria Portuguesa. Do Antigo Regime ao Capitalismo,
Lisboa, 1978, pp. 34 e segs., e ainda Vitorino Magalhães Godinho, A Estrutura da Anti-
ga Sociedade Portuguesa (1971), 2.ª ed., Lisboa, 1975.
281 Cf. Juan Pró Ruiz, «Aristocratas en tiempos de constitución», in J. M. Donezar y
M. Péres Ledesma (eds.), Antiguo Régimen y Liberalismo. Homenaje a Miguel Artola,
2, Economía y Sociedad, Madrid, 1995.
282 [O qual, em todo o caso, me parece mais sugestivo do que a recente crítica às
velhas teses da «revolução burguesa» em Espanha, em nome de uma visão «continuis-
ta», decorrente da suposta descoberta do conservadorismo social e económico da elite de

143
Elites e Poderes

sa, uma vez mais, fica destacada: a debilidade da corte terá representa-
do, precisamente, uma das marcas da monarquia constitucional na sua
última fase283.

A aristocracia nos finais do Antigo Regime

No final do Antigo Regime rareiam as descrições sistemáticas coevas


sobre a hierarquia nobiliárquica portuguesa, precisamente pela fluidez e
complexidade que a caracterizavam284. No entanto, aceitando o risco de
um exercício esquemático, penso que podem sumariamente distinguir-se
três categorias essenciais.
Na base, uma vasta e imprecisa categoria que se estendia desde a
«nobreza simples» aos cavaleiros de hábito, a qual incluía todos os
licenciados e bacharéis, os oficiais do exército de primeira linha, milí-
cias e ordenanças, os negociantes de grosso trato, os juízes e vereadores
de um número indeterminado de vilas e cidades, enfim, todos os que
«viviam nobremente». Um estatuto fluido, invocado apenas para certos
efeitos, abrangendo talvez mais de 6% dos adultos masculinos, que, por
isso mesmo, se encontrava desqualificado, o que conduzia a uma intensa
procura de outras distinções, designadamente dos hábitos de cavaleiro
das Ordens Militares de Avis, de Cristo e de Sant’Iago (para os quais se
exigia prova de nobreza, mas não de fidalguia). Acima, uma categoria
intermédia de alguns milhares de fidalgos, que compreendia uma maio-
ria de «fidalgos de cota de armas» e de «fidalgos de linhagem» (cujos
ascendentes tinham recebido a carta do brasão de armas ostentado na
fachada das suas casas), com uma muito desigual distribuição geográfi-
ca, bem como algumas centenas de fidalgos da casa real e desembarga-
dores. Por fim, a «primeira nobreza da Corte», constituída por cerca de

notáveis dominante na sociedade liberal espanhola, feita por Jesús Cruz em Los Nota-
bles de Madrid. Las Bases Sociales de la Revolución Liberal Española, Madrid, 2000
(ed. inglesa de 1996)].
283 Cf. Rui Ramos, op. cit.
284 Chamei pela primeira vez a atenção para o facto em Nuno Gonçalo Monteiro,
«Notas sobre nobreza, fidalguia e titulares nos finais do Antigo Regime», in Ler Histó-
ria, n.º 10, 1987, pp. 15-51.

144
Nobreza, revolução e liberalismo

centena e meia de senhores, comendadores e detentores de cargos pala-


tinos, no cume da qual se encontrava a meia centena de casas dos Gran-
des do reino. Era esta que monopolizava nas representações comuns a
imagem da nobreza, de resto, tal como em Espanha; daí que neste estu-
do, embora reconhecendo o desvio de perspectiva daí resultante, nos
centremos sobretudo sobre essa categoria restrita. Sublinhe-se, porém,
que, ao contrário do que ocorria na monarquia vizinha, todos os titulares
residiam em Lisboa. A identificação entre «primeira nobreza», corte e
Lisboa era total, como, de resto, a expressão antes referida sugere.

Casas titulares existentes em Portugal (1761-1832)

[QUADRO N.º 15]

Número
Casas
Casas Média Média total
Intervalos cronológicos extintas
criadas anual anual (no final do
ou unidas
período)

Antes de 1761............................. 48 − − − −
1761-1790................................... 8 0,3 2 0,1 54
1791-1820................................... 63 2,1 14 0,5 103
1821-1832................................... 38 3,2 14 1,2 127

Importa, entretanto, destacar que a titulação285, conjugada com a


aplicação da Lei Mental (1436)286, à qual estavam, em princípio, sujeitas
não só a concessão de títulos como as restantes doações régias, propor-

285 Torna-se indispensável apresentar os critérios adoptados. Desde logo, deve-se


salientar que as entidades consideradas são as casas titulares, e não os títulos, ou os indi-
víduos que usam título. Decidiu-se, assim, considerar extinta uma casa quando entre a
morte do anterior titular e a renovação do título no seguinte decorreram cinquenta ou
mais anos. Importa ainda destacar que se tiveram em conta apenas os títulos portugue-
ses, e não os títulos de outros reinos usados em Portugal.
286 A Lei Mental estabelecia regras sucessórias de primogenitura e masculinidade
estritas na sucessão dos bens e distinções concedidos pela coroa, exigindo a sua periódi-
ca confirmação, conferindo-lhes uma natureza jurídica específica e permitindo a sua
reversão para a coroa em certos casos.

145
Elites e Poderes

cionou à monarquia um efectivo instrumento de controlo do topo da


aristocracia. Nas últimas décadas da monarquia dual (1580-1640), o
número total de casas titulares alcançou a meia centena. Esse quantitativo
manter-se-ia praticamente estável até à última década do século XVIII,
apesar da profunda renovação decorrente da Restauração de 1640.
A inflação dos títulos inicia-se claramente só depois de 1790, mas
importa distinguir aqueles que tinham e os que não tinham Grandeza.
Deve notar-se, desde logo, que foi apenas depois da lei dos tratamentos
de 1739 que os títulos de barão e visconde, antes muito raros, se desqua-
lificaram. A essa luz, como pode ver-se no quadro n.º 16, verifica-se que
o nível de crescimento na Grandeza foi bem inferior ao dos títulos:
enquanto estes mais do que duplicaram entre 1790 e 1832, aquela nunca
alcançou similar generalização. A maior parte dos títulos e das eleva-
ções concedidos entre aquelas datas não tinham Grandeza. A inflação
situou-se, sobretudo, ao nível dos viscondes e barões, o que antecipa
claramente a evolução posterior a 1832-1834. Para mais, a esmagadora
maioria dos títulos com Grandeza deste período foi concedida a mem-
bros da «primeira nobreza da Corte» e a filhos segundos de Grandes
antigos287. Em síntese, a identidade social dos titulares com Grandeza
manteve-se no essencial até 1832.
A invulgar estabilidade conseguida pela elite titular da dinastia de
Bragança entre o terceiro quartel do século XVII e o início do século XIX
resultou, de facto, da conjugação de uma política da monarquia favorá-
vel à sua perpetuação com as escolhas estratégicas adoptadas pelas casas
que a compunham. Por um lado, a monarquia restringiu até ao período
antes referido as novas elevações e facilitou a sucessão nos títulos ao
reconhecer o direito de representação (1647) e ao autorizar sistematica-
mente as sucessões femininas. A preservação das casas aristocráticas
que tinham ajudado à consolidação da dinastia de Bragança fazia parte
do pacto de regime, revestindo, por consequência, uma natureza consti-
tucional. No entanto, dentro dos marcos balizados pela monarquia, a
reprodução da elite titular passou pelas estratégias activamente desen-
volvidas pelas casas que a compunham. Mais exactamente, da estreita
disciplina da casa, que se impunha não só aos sucessores, mas a todos os

287 Com base em Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes..., cit., parte I.

146
Nobreza, revolução e liberalismo

filhos e filhas para garantir a sua perpetuação e acrescentamento288. Ao


mesmo tempo, tais opções acabaram por estabelecer uma barreira social
bastante evidente entre as nobrezas das províncias e a da corte, uma vez
que as alianças matrimoniais foram muito raras até ao início do século
XIX.

Títulos nobiliárquicos em Portugal (1761-1832)

[QUADRO N.º 16]

Com Grandeza Sem Grandeza


Períodos cronológicos
Criados Extintos Total Criados Extintos Total

Antes de 1761................................. 46 − − 2 − −
1761-1790....................................... 4 2 48 4 0 6
1791-1820....................................... (a) 29 + 3 11 69 34 (a) 3 + 3 34
1821-1832....................................... (a) 14 + 3 8 78 24 (a) 6 + 3 49
Total........................................... (a) 47 + 6 21 − 62 (a) 9 + 6 −

(a) Casas de barões e viscondes elevadas à Grandeza.

Na verdade, os Grandes e titulares tenderam a monopolizar a maior


parte das doações régias. O melhor indicador que pode traduzir a evolu-
ção verificada é-nos fornecido pelas cerca de sete centenas de comendas
das três Ordens Militares de Avis, de Cristo e de Sant’Iago incorporadas
na coroa desde meados do século XVI. Neste caso, é possível confrontar
três situações intervaladas de mais de dois séculos que permitem detec-
tar mais claramente as mudanças operadas. Nos primórdios do século
XVII os comendadores das ordens militares eram uma categoria social
numerosa que abrangia mais de quatro centenas de indivíduos e casas,
embora os poucos titulares absorvessem já uma avultada parcela do ren-
dimento agregado das comendas com administrador. Século e meio mais
tarde (1755), o número de comendadores reduziu-se a bem menos de

288 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes…, cit., parte II.

147
Elites e Poderes

metade e 50 casas titulares absorviam já cerca de dois terços do rendi-


mento conjunto. Até ao triunfo final da revolução liberal (1832-1834), o
número de comendadores aumentou apenas ligeiramente; mas os titula-
res representariam então mais de metade do total e recebiam agora mais
de quatro quintos das receitas289.
Naturalmente, esta realidade essencial não podia deixar de se reflec-
tir na composição dos rendimentos das casas aristocráticas antigas.
A informação recolhida permite retirar, desde logo, uma conclusão fun-
damental: em média, os bens da coroa e ordens representam mais de
54% dos rendimentos das 40 casas para as quais dispomos de informa-
ções completas e cerca de 40% das 13 casas da primeira nobreza da cor-
te, parte das quais mais tardiamente elevada à Grandeza.

Distribuição dos rendimentos de casas por categorias de bens


(em percentagem)

[QUADRO N.º 17]

1 2 3 4 5 6 7

Média de 40 casas titulares antigas (1743-


-1832)....................................................... 15,6 30,8 8,4 54,8 40,5 4,8 45,3
Média de 13 casas da primeira nobreza
(1766-1830).............................................. 6,3 28,2 5,7 40,2 50,7 9,1 59,8

1 − Percentagem do rendimento dos bens da coroa; 2 − percentagem do rendimento


das comendas; 3 − percentagem do rendimento das tenças; 4 − percentagem do rendi-
mento total das colunas 1, 2 e 3; 5 − percentagem do rendimento dos bens patrimoniais;
6 − percentagem do rendimento dos juros públicos e privados; 7 − percentagem do ren-
dimento total das colunas 5 e 6.

No entanto, a informação recolhida apenas para algumas casas (qua-


dro n.º 18), mas que sabemos poder generalizar-se ao conjunto, permi-
tiu-nos ir mais longe. De facto, entre os bens patrimoniais, os juros
representavam, em média, 4,8% e as rendas e foros urbanos 8,6%. Res-

289 Id., ibid., pp. 46-47.

148
Nobreza, revolução e liberalismo

tava para os rendimentos de prédios rústicos, em média, pouco mais de


31%. E, de entre estes, mais de 9% teriam origem em foros. Parte destes
foros enfitêuticos patrimoniais tinha origem em contratos antigos, mas
uma parcela significativa provinha de aforamentos recentes: invocando
a falta de liquidez para fazerem benfeitorias, as casas continuavam a
ceder bens em enfiteuse em pleno século XIX... Quanto à propriedade
rústica «plena» (morgados situados quase sempre na Estremadura, perto
de Lisboa, e no Alentejo), fornecia aos Grandes portugueses, em média,
pouco mais de um quinto das suas receitas! Ou seja, tal como, de resto,
as ordens religiosas, as grandes casas aristocráticas não eram fundamen-
talmente grandes proprietárias fundiárias.

Enfiteuse e «propriedade plena»290


(em percentagem)

[QUADRO N.º 18]


1 2 3 4 5
Casa Ano
Tenças + Proprie-
B. C. O. Urbanas Foros
+ juros dade

Marquês de Penalva.................. 1802 10,49 77,01 7,00 2,74 2,75


Marquês do Louriçal................ 1806 10,87 45,83 13,34 26,96 2,99
Conde de Aveiras..................... 1743 57,51 34,00 2,32 0,00 6,18
Conde de São Vicente.............. 1830 12,98 55,58 3,73 16,02 11,69
Conde de Ega............................ 1829 46,00 19,83 16,18 3,88 14,11
Conde de Valadares.................. 1794 17,63 44,91 16,82 5,27 15,37
Conde de São Miguel............... 1830 28,67 28,10 1,43 22,12 19,67
Conde de Lumiares................... 1782 36,56 31,54 5,69 0,00 26,20
Conde de Sampaio.................... 1795 10,16 40,15 12,24 1,27 36,18
Conde de Arcos........................ 1762 (0) 4,65 2,73 2,47 12,91 77,24
Média................................... – 23,55 37,97 8,12 9,32 21,04

1 − Percentagem das tenças e juros públicos e privados nas receitas globais; 2 − per-
centagem dos bens da coroa e ordens; 3 − percentagem das rendas e foros urbanos;
4 − percentagem da enfiteuse de prédios rústicos; 5 − percentagem da «propriedade
plena» de prédios rústicos e marinhas.

290 Este quadro, tal como os anteriores, retoma informações recolhidas do trabalho
antes citado, parte III.

149
Elites e Poderes

Quanto às modalidades de exploração, embora nos falte informação


quantitativa para algumas casas, predominava esmagadoramente a explo-
ração indirecta, pois as «propriedades rústicas plenas» em administração
directa não alcançavam sequer, em média, os 3% dos rendimentos glo-
bais! Os bens, em média dispersos por cinco das seis províncias do rei-
no, eram, em regra, arrendados por grosso em Lisboa a negociantes da
capital ou das províncias. Um reduzido número de arrendadores arrema-
tava a maior parte das rendas das casas, sendo frequentes os casos em
que mais de metade das receitas destas se encontravam nas mãos de um
único rendeiro, que subcontratava a pequenos agentes locais a efectiva
cobrança dos rendimentos.
Este modelo «ultra-rentista» da estrutura e da administração dos patri-
mónios conduziu a uma dificuldade generalizada de os rendimentos reais
(deflacionados) das casas acompanharem a subida dos preços quando
estes dispararam nos anos 80 de Setecentos. Tendência que é comum à
generalidade dos tipos de bens que compunham as receitas das casas dos
Grandes.
Aspecto essencial, a maioria das casas dos Grandes contraíra avulta-
das dívidas em meados do século XVIII, das quais boa parte nunca mais
se recompôs, ao mesmo tempo que um número variável de outras foi
caindo, durável ou transitoriamente, em situações de aperto financeiro.
As fontes de crédito desses empenhos mais antigos e a longo prazo eram
sobretudo os capitais de vínculos (resultantes do distrate dos padrões de
juro de 1743), a Misericórdia de Lisboa e várias confrarias e mosteiros,
todas elas esgotadas no fim do século, quando tenderam a ser substituí-
das por capitais de origem mercantil. A solução mais frequente para tais
situações de maior dificuldade financeira é que foi quase sempre a
mesma ao longo do período estudado: a nomeação pela coroa de admi-
nistrações judiciais, que fixavam aos membros das casas os seus alimen-
tos e concediam aos credores apenas o remanescente. Para mais, estes
eram, sobretudo no período mais inflacionista, os próprios rendeiros das
casas, cujos arrendamentos eram anulados na sequência da nomeação
das administrações judiciais. A invocação da figura jurídica do contrato
usurário e da necessidade política de preservar a «principal nobreza» do
reino servia, assim, para legitimar um interminável conflito entre as
casas aristocráticas e parte do corpo mercantil, a ponto de se ter tornado

150
Nobreza, revolução e liberalismo

uma das imagens de marca do grupo na viragem do século XVIII para o


XIX.
De resto, o exercício dos poderes jurisdicionais pelos Grandes portu-
gueses reforça essa interpretação. Apenas uma reduzida parcela das ren-
das das casas tinha origem em territórios sujeitos à sua jurisdição (11%
em média) e muitas delas não tinham nenhum senhorio jurisdicional. De
facto, o número total de territórios sujeitos à jurisdição senhorial leiga
diminuiu claramente entre 1640 e os finais do Antigo Regime político.
Na verdade, em coerência com os recursos administrativos disponíveis,
a influência local das casas dos Grandes nos finais do Antigo Regime
era, com algumas notórias excepções, muito escassa, o que em parte
explica o recurso generalizado aos juízos privativos.
A importância das administrações judiciais e dos juízos privativos,
corolário das situações de endividamento, é emblemática das modalida-
des que revestiu em Portugal a gestão dos patrimónios aristocráticos nos
finais do Antigo Regime. Na realidade, o tema do endividamento permi-
te encarar numa outra perspectiva as peculiares relações que a aristocra-
cia portuguesa estabelecia com as instituições centrais da monarquia.
Com efeito, as referidas relações também se traduziram no facto de a
maior parte das casas dos Grandes ter sido administrada, durante perío-
dos mais ou menos longos, por magistrados judiciais e na necessidade
frequentemente corroborada pelas instituições de sacrificar os «sagrados
direitos» dos credores às razões da «política», que exigiam que se não
arruinasse a primeira nobreza da corte, cuja preservação se considerava
indispensável numa monarquia. A graça régia subvertia, assim, os pro-
cedimentos judiciais ordinários. Neste, como noutros aspectos, 1832-
-1834 representou uma ruptura indiscutível.

A revolução liberal e o destino das velhas casas


da aristocracia da corte

A esta herança decisiva (dependência da coroa tanto na composição


dos patrimónios como na protecção contra os credores) juntar-se-á o
impacto directo da revolução. Ao contrário do que por vezes se pensa, a
implantação do governo de D. Miguel correspondeu a uma polarização

151
Elites e Poderes

política extrema, com consequências decisivas para o futuro. E importa


destacar desde já que, no rescaldo da guerra civil de 1832-1834, o triun-
fo liberal, que se confundiu com a conquista militar de Lisboa e do rei-
no, se fez sem significativas concessões aos vencidos. Nos planos jurí-
dico, institucional e social, a revolução liberal constitui um marco de
ruptura indiscutível na história portuguesa.
A legislação liberal de Mouzinho da Silveira, decretada ainda duran-
te a guerra civil (1832), aboliu os dízimos, os bens da coroa e os
forais291. Um dos seus objectivos primaciais e confessados era o de aca-
bar com «a mais vil, e sórdida aristocracia», beneficiária e dependente
das benesses da coroa292. A indemnização só tinha lugar nos casos em
que os donatários ou comendadores não fossem «indignos», ou seja, não
tivessem apoiado D. Miguel; também só nesses casos se podiam trans-
formar em proprietários plenos de bens que não tivessem sido cedidos
em enfiteuse. Ora a maioria dos titulares (59%), bem como dos titulares
com Grandeza que tinham assento na Câmara dos Pares de 1826-1828
(44%), apoiou formalmente a realeza miguelista; apenas uma minoria
(24% e 34%, respectivamente) sustentou explicitamente a causa de
D. Pedro293.
Deve-se notar que os vínculos só foram definitivamente abolidos
muito mais tarde (19 de Maio de 1863), em acentuado contraste com o
que se passou em Espanha, onde logo em 1836 foi reposta em vigor a
legislação abolicionista do triénio liberal. E a lei dos morgados de Mou-
zinho da Silveira (4 de Abril de 1832) limitou-se a suprimir os pequenos
vínculos. A explicação desta opção é fácil de entrever: o principal eixo
da crítica liberal à aristocracia reportava-se à sua dependência da coroa
e das suas benesses; a manutenção dos grandes vínculos sobre bens
«patrimoniais» aparecia como uma contrapartida necessária da supres-

291 Os decretos dos dízimos e dos bens da coroa foram republicados (cf. Miriam
Halpern Pereira, Revolução, Finanças e Dependência Externa, Lisboa, 1979, pp. 162-
-170 e 201-207).
292 J. X. Mouzinho da Silveira, «Memória acerca do restabelecimento da Carta
Constitucional e do trono de D. Maria II», in Ler História, n.º 2, 1983, p. 153. O conjun-
to dos seus numerosos escritos sobre a matéria encontra-se reunido em Miriam Halpern
Pereira (dir.), Obras de Mouzinho da Silveira, 2 vols., Lisboa, 1989.
293 Cf. Maria Alexandre Lousada, «D. Pedro ou D. Miguel? Opções políticas da
nobreza titulada portuguesa», in Penélope. Fazer e Desfazer a História, n.º 4, 1989.

152
Nobreza, revolução e liberalismo

são das comendas e bens da coroa e como uma concessão indispensável


para a constituição de uma Câmara dos Pares dotada da desejável inde-
pendência. Aliás, existiam vários mecanismos legais que permitiram que
a desvinculação dos bens de morgado se iniciasse muito antes de 1863.

O impacto económico da revolução

Principiaremos, assim, por discutir o impacto da revolução sobre os


rendimentos aristocráticos.

Bens da coroa e ordens

Pelo que antes se indicou, pode desde logo inferir-se que o impacto
da legislação liberal de 1832 que aboliu os dízimos (e as comendas das
ordens militares que os cobravam), os forais (embora as vicissitudes da
sua aplicação sejam complexas) e os bens da coroa tinha de se fazer sen-
tir de forma drástica sobre as velhas casas aristocráticas. Em princípio,
extinguiam-se mais de metade das suas fontes de receita. E também
sabemos que essa extinção se deu sem que a esmagadora maioria das
casas tenha recebido qualquer indemnização294.
Efectivamente, todos os casos conhecidos a partir da pesquisa docu-
mental dos respectivos arquivos sugerem que o impacto directo da revo-
lução sobre as receitas da esmagadora maioria das casas foi catastrófico.
Logo em 1834 a Fazenda Nacional tomou posse de todos os bens da
coroa e das comendas não abolidos pela legislação de 1832. E algumas
devoluções ocorridas nos anos 50 de Oitocentos revestiram valores in-
significantes.

294 Como se escreveu antes (Nuno G. Monteiro, «Os rendimentos…», cit., p. 383 e
fontes aí citadas), «até 1847 e apenas no respeitante às comendas das ordens militares, a
esmagadora maioria não recebeu qualquer indemnização: até aquela data, só teriam sido
indemnizados 16 comendadores com título de nobreza, enquanto a fazenda tinha entrado
na posse dos bens das comendas de 34 titulares por cumplicidade com a ‘usurpação’, e
ainda nas de mais 13 por falecimento ou falta de título legítimo!».

153
Elites e Poderes

A grande casa dos marqueses de Abrantes (uma das quatro com


maiores rendimentos em 1832) constitui um exemplo paradigmático.

Rendimentos da casa dos marqueses de Abrantes

[QUADRO N.º 19]


Casa de Casa de Casa de
Rendimentos
Abrantes em Abrantes em Abrantes em
globais
1824 1847 1885

Coroa...................................... 14 127 31,6% − −


Ordens.................................... 8245 18,4% − −
Tenças.................................... 503 1,1% − −
Total A............................... 22 875 51,1% − −
Patrimoniais............................ 21 098 47,2% − −
Juros....................................... 772 1,7% − −
Total B............................... 21 870 48,9% − −
44 745 − 17 163 10 967
Total A+B (a).................... − − (b) 21 689 (b) 8 847

(a) Em milhares de réis.


(b) Deflacionado, 1824 = 1.
Fontes: ANTT, AFF, administração de casas, maço 1; ibid., casa de Abrantes, maço
34; ibid., maço 113.

Em 1847, a casa de Abrantes, apesar de ter arrendado já o palácio de


Santos (local anterior da residência dos seus senhores), que, aliás, lhe
fornecia quase 10% das suas receitas, gozava de um rendimento que era
(mesmo deflacionado) menos de metade do de 1824. A casa nada rece-
bia já, naturalmente, de comendas e tenças, bem como da generalidade
dos bens da coroa, com duas únicas excepções. Como donatário perpé-
tuo de bens enfitêuticos da coroa, recebia (ou esperava receber...) meta-
de do valor dos foros da alcaidaria-mor de Abrantes (1,090 contos), con-
forme a nova lei dos forais de 1846. Também esperava poder, pelos
mesmos motivos, receber alguma coisa da «casa do Porto», mas a ver-
dade é que em 1885 ainda nada entrara com essa origem. Nessa altura os

154
Nobreza, revolução e liberalismo

rendimentos da casa eram menos de um quinto de cinquenta anos antes


e a dívida reconhecida superior a 64 contos.
Muitos outros exemplos conhecidos, até de casas situadas no campo
liberal, sugerem que a tendência atrás ilustrada foi a mais comum. Mas
primeiro há que falar dos bens patrimoniais.

Os bens patrimoniais

Aqui o primeiro factor a ponderar é, naturalmente, o endividamento.


A maioria das casas estava fortemente endividada em 1834, mas a
nomeação pela coroa de administrações judiciais protegia-as contra as
excursões dos credores. Depois do triunfo liberal, essa protecção desa-
pareceu e os resultados não se fizeram esperar.
Em segundo lugar, há que salientar, conforme pude verificar para
antes de 1834, e como sugeriu Helder Fonseca para o período ulterior,
que existiram muitas formas de transaccionar de facto bens de morgado
mesmo antes de 1863 (abolição final dos vínculos). As duas mais impor-
tantes parecem ter sido o aforamento e a sub-rogação de bens vincula-
dos295. Para a região de Évora, Fonseca mostrou concludentemente
como tais processos atingiram, entre outras, as casas de Abrantes, Caste-
lo Melhor, Loulé, Murça, Povolide (Sintra), Redondo, Rio Maior e Sou-
re296. Mas que, naturalmente, se acentuaram depois daquela data. Con-
ceição Martins, por seu turno, mostrou como a partir dos anos 60 José
Maria dos Santos praticamente «ficou» com a casa dos condes de Óbi-
dos/Sabugal/Palma, designadamente, adquirindo a enorme dívida que
esta contraíra com a Misericórdia de Lisboa mais de cem anos antes297.
De resto, estas perdas não foram compensadas pela aquisição siste-
mática de outros bens. Conforme comprovou, entre outros, Luís Espinha
da Silveira, a participação dos titulares antigos na compra dos bens

295 Cf. Nuno G. Monteiro, «O endividamento aristocrático (1750-1832). Alguns


aspectos», in Análise Social, n.os 116-117, 1992.
296 Cf. H. Fonseca, Economia…, cit., pp. 309 e segs.
297 Cf. C. Martins, op. cit.

155
Elites e Poderes

nacionais foi extremamente reduzida298. De resto, praticamente só parti-


cipou nesse processo parte do pequeno número de membros das casas
da primeira nobreza de corte do Antigo Regime que não se comprome-
teram com D. Miguel.
Embora não possamos dispor, ao contrário de Espanha, de listas
estudadas dos maiores contribuintes e algumas casas antigas (como
Cadaval e Palmela), ainda que apareçam entre os maiores contribuintes
nos anos 60 do século XIX, não sofre dúvidas que o declínio económico
das casas da primeira nobreza do reino foi excepcionalmente rápido. De
resto, a ruína boémia de personagens como o marquês de Ponte de
Lima, o de Nisa e o conde de Vimioso deixou amplos registos nas cró-
nicas da segunda metade do século XIX e até no fado.
Podemos fornecer três indicadores de conjunto significativos.
Os primeiros foram recolhidos num estudo sobre a elite municipal de
Lisboa na primeira metade do século XIX. Os recenseamentos eleitorais
de 1838 e 1842 sugerem que já numa data tão precoce o peso dos mem-
bros de velhas casas aristocráticas entre os maiores contribuintes da
capital do reino era bastante reduzido299.
Outro indicador relevante é-nos fornecido pelas datas em que foram
abandonados os palácios em Lisboa onde residiam os Grandes de Anti-
go Regime. De facto, na sua maior parte já não eram habitados pelas
antigas famílias antes de 1890 por terem sido alugados ou directamente
vendidos300. Juntamente com as novas utilizações conferidas aos mos-
teiros extintos, esse processo terá representado uma significativa redefi-
nição do espaço funcional na cidade de Lisboa.
Por fim, uma informação muito pertinente reporta-se às herdades do
concelho de Évora, principal município do Alentejo, onde a maioria das
casas da primeira nobreza tinha bens patrimoniais. Na segunda metade

298 Cf. Luís Espinha da Silveira, «Venda de bens nacionais».., cit., e, sobretudo, «La
desamortización en Portugal», cit., Nuno G. Monteiro, «Os rendimentos...», cit., p.
383, e António Martins da Silva, Nacionalizações..., cit., que fornece dados coincidentes
(cf. pp. 425 e segs., anexo II), embora não os destaque na sua interpretação.
299 Cf. Paulo J. Fernandes, As Faces de Proteu. Elites Urbanas e Poder Municipal
em Lisboa de Finais do Século XVIII a 1851, dissertação de mestrado, mimeo., Lisboa,
Universidade Nova, 1997, pp. 375-388 [entretanto editada com título idêntico, Lisboa,
1999, pp. 270 e segs.].
300 Nuno G. Monteiro, «Os rendimentos...», cit., p. 384.

156
Nobreza, revolução e liberalismo

do século XVIII, a propriedade dos nobres titulares representava metade


do número total de herdades. Cem anos mais tarde, em 1870, o conjunto
dos títulos possuiria apenas 20% do total de herdades e destas apenas
um reduzido número pertenceria a sucessores de meia dúzia de casas da
antiga aristocracia de corte301.

Declínio político

Uma primeira e impressionante informação reporta-se ao governo do


município de Lisboa, até 1833 dirigido por um senado municipal presi-
dido quase sempre por um Grande do reino e composto por desembar-
gadores de nomeação régia. Entre 1833 e 1851, nenhum membro da
velha aristocracia participa nas vereações, compostas maioritariamente
por negociantes de grosso trato (40%), proprietários sem origens fidal-
gas (39%) e profissionais liberais e empregados públicos (17%). A estrei-
ta interpenetração entre a elite municipal e instituições como o Banco de
Lisboa ou a Associação Mercantil Lisbonense, que chegaram a funcio-
nar todas nas mesmas instalações, conduziu o autor do trabalho que vi-
mos citando a falar não só de «ruptura», mas ainda da necessidade de
reavaliar o caminho abandonado da «revolução burguesa»302.
Em termos nacionais, podemos agora apresentar novos indicadores
sobre este tema graças ao trabalho de Pedro Tavares de Almeida, que
abrange a elite política portuguesa no período 1851-1890.
A presidência dos governos, onde durante as primeiras décadas pon-
tificaram os Grandes do Antigo Regime que alinharam no campo liberal
(Palmela, Lumiares, Terceira, Loulé, Valença, Saldanha), é a única ex-
cepção ao declínio geral do peso da primeira nobreza do Antigo Regime
na elite política do liberalismo. Mas mesmo aí não deixará de se verifi-
car uma espectacular inflexão: o último governo presidido por um indi-
víduo nascido na aristocracia de corte data de 1870 e o último presidido
por um titulado de 1878. Até hoje.

301 Cf. Jorge Fonseca, «Propriedade e exploração da terra em Évora nos séculos
XVIII e XIX», in Ler História, n.º 18, 1990.
302 Cf. Paulo J. Fernandes, op. cit.

157
Elites e Poderes

Elite política (1834-1910)

[QUADRO N.º 20]

Percen-
A B C D
tagem

1834-1850 19 16 11 8
Presidentes do Conselho................ 1851-1890 25 14 8 8
1890-1910 17 0 0 0
1851-1890 42 17 6 5
Conselho de Estado.......................
1834-1850 83 31 9 8 (a) 37
1851-1890 98 19 5 9 (a) 19
Ministros........................................
1890-1910 78 6 0 0 (a) 8
1834-1842 66 46 3
Pares..............................................
1851-1890 181 68 16 17
1851-1890 417 4 (b) 1
Deputados......................................
1851-1890 1 327 115 (a) 9
A − Número total; B − titulares antigos e novos; C − nascidos em casas da primeira
nobreza de corte do Antigo Regime (com ou sem título); D − sucessores de títulos nobi-
liárquicos.
(a) Percentagem de B/A; (b) percentagem de C/A.
Fontes: Pedro Tavares de Almeida, A Construção do Estado Liberal…, cit.; L. Es-
pinha da Silveira, «Revolução liberal e pariato (1834-1842)», cit.; Manuel Pinto dos
Santos, Monarquia Constitucional. Organização e Relações do Poder Governamental
com a Câmara dos Deputados, Lisboa, 1986. Os números devem reputar-se, natural-
mente, como provisórios.

Quanto aos membros do governo (número de nomeações), a evolu-


ção é clara. Até 1850, ainda houve 37% de nomeações de titulares,
embora apenas 11% sucedessem em títulos criados antes de 1834.
Depois a quebra é acentuada. Nos últimos vinte anos da monarquia
constitucional (1890-1910) houve apenas 6 titulares entre os 78 minis-
tros nomeados e nenhum sucedera num título de Antigo Regime. Consi-
derando agora o número de indivíduos (e não de nomeações), podemos
afirmar que, de um total de 236 ministros da monarquia constitucional

158
Nobreza, revolução e liberalismo

(1834-1910), apenas 44 (18,7%) tinham título nobiliárquico e somente 6


(2,5%) título nobiliárquico anterior a 1807.
O declínio da influência política das velhas casas titulares estendeu-
-se até à própria Câmara dos Pares, que originariamente era uma câmara
aristocrática. Aquando da promulgação da Carta Constitucional (1826),
todos os titulares (72) com Grandeza tinham lugar na recém-criada
Câmara dos Pares; quando foi restabelecido o regime constitucional
(1834), só lá tomou assento cerca de uma dúzia. O seu número aumen-
tou depois, e nos anos 50 foram vários os filhos e netos de antigos pares
miguelistas que lhes sucederam. No entanto, a verdade é que cerca de
metade das casas dos pares nomeados em 1826 nunca mais voltaram a
ter representantes seus no pariato. Conforme assinalou Espinha da Sil-
veira, desde muito cedo que até os novos titulares estavam em minoria,
e, como sugeriu Filomena Mónica, a instituição, que passou por nume-
rosas reformas, foi tendo uma «lenta morte»303. Mas é também notória a
perda de influência dos novos titulados na vida política. Disso falaremos
adiante.
A única instituição onde os representantes das antigas casas titulares
estavam em maioria era a casa real. Quase todos os que subsistiam e
tinham reconhecido a nova dinastia aí tinham lugar, conforme indica o
Anuário da Corte para 1894304. Mas, precisamente, a casa real portu-
guesa tinha uma dotação limitadíssima e um fausto quase inexistente.
Pesava muito pouco, pois, para retomar a recente ideia de Rui Ramos,
numa monarquia que tinha uma «vida discreta»305. Uma realidade que
contrasta profundamente, por conseguinte, com a imagem da sociedade
de corte da Espanha da Restauração antes apresentada.

A nova nobreza

Apesar de violentamente ironizada por toda uma plêiade de literatos


oitocentistas, talvez o melhor retrato sobre o que era a percepção

303 Cf. Maria Filomena Mónica, «A lenta morte da Câmara dos Pares (1878-1898)»,
in Análise Social, n.os 125-126, 1994.
304 Cf. Anuário da Corte Portuguesa, Lisboa, 1895.
305 Op. cit., p. 98.

159
Elites e Poderes

comum acerca da nobreza portuguesa em finais de Oitocentos seja aque-


le que foi fornecido em 1879 pela princesa Maria Rattazi: «A nobreza
portuguesa existiu, mas já hoje não existe [...] Em compensação, há uma
nobreza novíssima, que se multiplica como cogumelos, invasora e exu-
berante306.»

Casas titulares em 1855, em 1887 e em 1905

[QUADRO N.º 21]

1855 1886 1905

Duque............................................................... 7 4 5
Marquês........................................................... 18 26 23
Conde............................................................... 72 110 149
Visconde com Grandeza (a)............................ 33 310 264
Visconde.......................................................... 69 − –
Barão com Grandeza (a).................................. 12 170 121
Barão................................................................ 91 − −
Total............................................................ 302 620 562

(a) Apenas a lista para o ano de 1855 refere a existência de viscondes e barões com
Grandeza.
Fontes: Nuno G. Monteiro, «A nobreza na revolução liberal», in António Reis (dir),
Portugal Contemporâneo, vol. I, Lisboa, 1990, p. 256; Almanach Comercial de Lisboa
para o anno de 1887, Lisboa, 1886; Almanaque Comercial, Lisboa, 1905. Tanto quanto
foi possível, procurou-se considerar o número de títulos e não de pessoas que usavam os
mesmos. No entanto, pelos motivos adiante referidos, o exercício não é seguro.

A multiplicação de títulos nobiliárquicos tornara-se, assim, uma ima-


gem de marca da realidade portuguesa. Já em meados do século o céle-
bre escritor Almeida Garrett produzira uma frase emblemática, depois
centenas de vezes reproduzida: «Foge ladrão que te fazem barão! Para
onde, se me fazem visconde?»

306 Maria Rattazi, Portugal de Relance (ed. or., 1879), Lisboa, 1997, p. 94.

160
Nobreza, revolução e liberalismo

Torna-se necessário, assim, avaliar medir este fenómeno, identificar


os seus beneficiários e, sobretudo, avaliar o seu significado, tarefa para
múltiplas e necessárias investigações.
Iremos esboçar uma brevíssima aproximação ao tema considerando
dois períodos distintos. Em primeiro lugar, os meados do século XIX
(1855). Depois, o início do século XX.
Apesar da incerteza que rodeia os números antes apresentados, uma
vez que depois de 1834, ao contrário do que se verificava antes, quando
a hereditariedade era a regra, muitos títulos eram pessoais, mantendo-se
alguns hereditários e usados simultaneamente por mais de um indivíduo,
as conclusões são claras: o número de títulos mais do que duplica entre
1832 e 1855 (cf. quadro n.º 15), volta a duplicar nos trinta anos seguin-
tes, mas depois declina. Ou seja, no fim do século não há uma inflação
nos títulos, mas antes uma diminuição do seu número.
Não conhecemos senão indicações limitadas sobre os agraciados com
títulos nobiliárquicos. Até 1855, a maior parte dos títulos foi concedida
por serviços militares307. Boa parte, de resto, a fidalgos de província, os
quais durante o Antigo Regime praticamente não tinham acesso às dis-
tinções superiores da monarquia. A partir de meados do século, porém,
para além dos políticos, parece certo que aumenta o número dos nego-
ciantes e ricaços de fresca data agraciados com título nobiliárquico, de
resto, residentes em todo o país e não apenas em Lisboa. No entanto,
contra o que é usual pensar-se, deve destacar-se que, tomando o período
da monarquia constitucional como um todo, a maior parte dos títulos foi
concedida a pessoas que gozavam de nobreza hereditária e apenas
menos de 15% a indivíduos com inequívocas origens «mecânicas»308.
Se associarmos as indicações do quadro n.º 21 com o notório declí-
nio do número de titulares na elite política do fim do século (cf. quadro
n.º 20), parece evidente que é a própria importância atribuída aos títulos
nobiliárquicos que parece estar a declinar. Não dispomos de números
sobre o acesso a outras distinções nobilitantes, como as das ordens milita-
res ou as matrículas da casa real. E sabemos que muitos indivíduos e

307 Cf. Helena I. B. C. Diogo et al., «Para o estudo da nobreza portuguesa oitocentis-
ta – barões e viscondes do reinado de D. Maria II», in Ler História, n.º 10, 1987, pp. 139-
-158.
308 Cf. Francisco L. S. de Vasconcelos, op. cit., pp. 186 e segs.

161
Elites e Poderes

famílias continuaram a cultivar os pergaminhos da sua fidalguia antiga


sem se preocuparem em obter, ou recusando mesmo, os títulos do cons-
titucionalismo monárquico; de resto, o peso das antigas nobrezas e
fidalguias de província na sociedade liberal foi muito significativo e
tende a passar desapercebido309. Também se sabe que a ruptura na com-
posição das elites locais, indiscutível nos casos de Lisboa e do Porto, foi
menos notória noutras partes310. Em todo o caso, embora tenham sem-
pre coexistido estratégias socialmente diversificadas e se fossem produ-
zindo novos vectores de diferenciação social, é provável que se possa
falar globalmente na diminuição da relevância atribuída na sociedade
portuguesa às distinções nobiliárquicas.
Na sequência dos breves mas incisivos comentários de Charles Vogel
sobre o abuso das tendências nobiliárquicas na sociedade portuguesa de
meados do século XIX311, esse ponto de vista foi genericamente adopta-
do não só por muitos contemporâneos, mas também por historiadores
que, mais tarde, escreveram sobre o tema. No entanto, embora nos fal-
tem estudos sistemáticos sobre o tema, podemos hoje afirmar que, sendo
a sedução pelas distinções nobiliárquicas geral na Europa oitocentista,
ter-se-á revelado, provavelmente, menos notória em Portugal do que na
maioria dos Estados coetâneos. Em síntese, não será apenas o rápido
declínio da aristocracia do Antigo Regime, mas a precoce erosão das
distinções nobiliárquicas o que configurará a especificidade do caso por-
tuguês.

309 [Entre as contribuições originais do trabalho antes citado de Francisco L. S. de


Vasconcelos, destaca-se o facto de chamar a atenção para a enorme carga tributária que
o liberalismo fez incidir sobre os títulos e outras distinções nobiliárquicas, bem como
para o avultado número de títulos recusados. Ao mesmo tempo, identifica uma «nobreza
invisível» em numerosos políticos e outras figuras públicas da sociedade liberal portu-
guesa, as quais, embora sem título, tinham um nascimento claramente fidalgo.]
310 Sobre este tema, que tem sido objecto de alguns estudos recentes, v., entre
outros, os reunidos em Nuno G. Monteiro (coord. e apresentação), «As elites municipais
na história contemporânea portuguesa (séculos XIX-XX)», in Estudos Autárquicos, n.os 6
e 7, 1996 (1999).
311 Cf. Charles Vogel, Le Portugal et ses colonies, Paris, 1860.

162
6. PROPRIETÁRIO, PROPRIEDADE E REVOLUÇÃO
LIBERAL. ALGUMAS NOTAS*

A reflexão sobre o vocabulário social tem-se situado no centro do


debate historiográfico ao longo da última década. Com efeito, sob o
impacto da chamada «viragem linguística», multiplicaram-se as críticas
à história social internacional e à utilização de categorias predefinidas
na escrita da história. Afirma-se, em particular, que essa classificação
preambular determina, em larga medida, os resultados finais que se
alcançam, contestando-se, em especial, a utilização intemporal das cate-
gorias sócio-profissionais actuais. Nas representações e no vocabulário
do mundo contemporâneo, a associação entre as palavras «proprietário»
e «propriedade» e a posse da terra apresenta-se com uma tal naturalida-
de que o exercício historiográfico de as distanciar poderá parecer sur-
preendente. E, no entanto, nada parece mais legítimo se se tiverem em
conta as condições históricas específicas de apropriação do espaço rural
em Portugal. A célebre afirmação de D. Luís da Cunha, segundo a qual
«a Igreja pelo menos possuía a terceira parte do Reino»312, se tomada

* Este texto teve como ponto de partida a reelaboração do texto de Nuno G. F. Mon-
teiro, «Proprietário», in Conceição Martins e Nuno G. F. Monteiro (orgs.), A Agricultu-
ra: Dicionário das Ocupações, vol. III da História do Trabalho e das Ocupações, coord.
de N. L. Madureira, Oeiras, Celta Editora, 2002.
312 D. Luís da Cunha, Testamento Político, Lisboa, 1820, p. 41.

163
Elites e Poderes

literalmente (como propriedade plena), tem de se reputar, assim, de pura


e simplesmente, falsa...
Os termos atrás referidos, de origem latina, tiveram, de resto, uma
utilização rara até ao século XVIII. Nos forais manuelinos313, por exem-
plo, apenas raras vezes se alude à propriedade de alguma coisa e nunca
aos proprietários como categoria. Em compensação, passam muito da
centena e distribuem-se por todo o reino as cartas de foral que referem a
existência de senhores ou de senhorios 314 . O Dicionário de Bluteau
define proprietário como «o senhor de alguma propriedade. O a que
propriamente pertence alguma fazenda, ofício, & etc.» e identifica pro-
priedade com «bens de raiz, com domínio & poder absoluto para os
vender, empenhar, & dispor deles»315. Acontece que nas fontes setecen-

313 Luiz Fernando de Carvalho Dias, Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do


Algarve, s. l., ed. do autor, 5 vols., 1961-1965.
314 Ao contrário de outras expressões, como «proprietários», as palavras «senhor» e
«senhorio» são omnipresentes e, ao mesmo tempo, extremamente ambivalentes no
vocabulário e nas fontes históricas sobre a sociedade rural portuguesa desde o período
medieval. O termo «senhorio» podia ter três diferentes sentidos no vocabulário portu-
guês do Antigo Regime. Um primeiro significado que se podia atribuir ao dito vocábulo
era o de «senhorio directo»: assim se designava alguma pessoa ou entidade que, haven-
do cedido a outrem (o foreiro ou enfiteuta) o domínio útil sobre um determinado bem
através de um contrato enfitêutico em vidas ou perpétuo, dele recebia uma dada presta-
ção, geralmente designada foro (e/ou ração); acontece que as formas de cedência deste
tipo foram extremamente frequentes ao longo da história portuguesa, visto que, difun-
dindo-se antes da existência do reino, se mantiveram ainda depois da revolução liberal.
Um segundo sentido da palavra era o de «senhorio donatário de direitos reais». Assim se
intitulavam as casas e entidades que haviam recebido da coroa o direito a cobrarem
determinadas rendas que tinham geralmente origem nos direitos instituídos em cartas de
foral medievais ou noutros títulos através dos quais se regulava a cobrança de rendas em
reguengos e outras terras do património régio na primeira Idade Média portuguesa.
Finalmente, o termo «senhorio» aplicava-se, porventura com mais propriedade, aos «se-
nhores de terras com jurisdição»: neste último caso, a expressão designava, tal como no
anterior, uma entidade que recebera a doação de uma terra da coroa, só que essa conces-
são incluía o exercício de atributos jurisdicionais. Acresce que a palavra «senhorio»
podia ainda ter um uso similar ao contemporâneo [«as herdades, ou pertencem in soli-
dum a um senhorio, ou a muitos pro indiviso» (António Henriques da Silveira, 1789)],
funcionando, assim, como sinónimo do termo «proprietário», raras vezes usado, repor-
tando-se então a detentores de terras que eventualmente as arrendavam a curto prazo.
315 Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, comico, cri-
tico, chimico, dogmatico, dialetico, & Autorisado com exemplos dos melhores escripto-

164
Proprietário, propriedade e revolução liberal

tistas, como os livros de décimas, algumas vezes se alude à propriedade


de alguma coisa, mas só muito raramente à categoria de «proprietário»,
sem mais qualificativos.
Os factos antes destacados reflectem de forma muito clara uma
dimensão essencial da história agrária portuguesa: a saber, o predomí-
nio, durante as épocas medieval e moderna, das várias formas de cedên-
cia vitalícia e ou hereditária de terras (através de cartas de foral, de afo-
ramentos colectivos ou de contratos enfitêuticos individuais, perpétuos
ou em vidas), em detrimento das concessões de terras a curto prazo
(arrendamento de menos de dez anos). Embora com uma expressão mais
esmagadora a norte do Tejo, as referidas práticas de cedência de terra a
longo prazo ou perpetuamente arrastaram-se durante centenas de anos,
prolongando-se ainda pelo século XIX e deixando uma marca indiscutí-
vel na paisagem agrária portuguesa316.
As grandes instituições portuguesas não eram, assim, essencialmente
grandes proprietárias, no sentido de disporem do «domínio absoluto»
sobre as terras das quais retiravam proventos. Já no período medieval,
«a grande propriedade senhorial (nobre ou eclesiástica), constituída após
a Reconquista, apresenta-se, em regra, como um vasto conjunto de
casais, todos eles aforados ou arrendados a vilãos, com um indominica-
tum restrito, frequentemente limitado a uma quintarola em torno da casa
de residência»317. É certo que as formas de apropriação do solo e a pai-
sagem agrária a sul e nas cercanias do Tejo revestiram modalidades

res portugueses e latinos; e offerecido a el rey D. João V, Coimbra, 1712-1721, 8 vols.,


e Suplemento ao Vocabulario..., Lisboa, 1727-1728, 2 vols.
316 Cf., entre outros, Virgínia Rau, «A grande exploração agrária em Portugal a par-
tir dos finais da Idade Média», in Estudos de História Económica, Lisboa, 1961, e as
considerações de Albert Silbert, Le Portugal méditerranéen à la fin de l’Ancien Régime,
e e
XVIII -début du XIX siècle: contribuition à l’histoire agraire comparée, Paris, SEUPEN,
1966, pp. 756 e segs.
317 A. H. de Oliveira Marques, «Dominial, sistema de economia», in Joel Serrão
(dir.), Dicionário de História de Portugal (D. H. P.), Lisboa, 1961-1965; cf., ainda
sobre o mesmo tema, entre outros, Robert Durand, Les campagnes portugaises entre
Douro et Tage aux XII et XIII siècles, Paris, 1982, José Mattoso, Identificação de Um
País. Ensaio sobre as Origens de Portugal 1096-1325, 2 vols., Lisboa, 1985, Helena da
Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média: Estudo de História Rural,
2 vols., Coimbra, 1983, e Iria Gonçalves, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos
Séculos XIV e XV, Lisboa, 1989.

165
Elites e Poderes

específicas e diferenciadas. No entanto, a anterior citação oferece-nos de


uma forma sintética a tónica dominante no conjunto do território portu-
guês e aplica-se, em larga medida, ainda ao período moderno.
Podemos obter uma tradução quantitativa para os finais do Antigo
Regime da afirmação antes produzida reportando-nos aos rendimentos
da nobreza titular e das ordens religiosas portuguesas. As grandes casas
nobiliárquicas portuguesas possuíam fontes de rendimento espalhadas,
em média, por cinco diferentes províncias portuguesas ou territórios
insulares e coloniais. Cerca de 15% das suas receitas provinham de
direitos de foral doados pela coroa e pouco menos de um terço de
comendas das ordens militares (cuja principal receita eram os dízimos
eclesiásticos), também doadas pela coroa desde a sua incorporação em
meados do século XVI. Se pusermos de parte as tenças e os juros, os
bens de raiz próprios (ou seja, não doados pela coroa) davam-lhes pouco
mais de 40% dos seus proventos. Mas, de entre estes, boa parte provinha
da propriedade urbana e de foros rústicos. Para os casos conhecidos, a
propriedade «plena» (ou seja, não aforada) de bens rústicos representava
apenas um quinto das suas receitas totais. Localizavam-se estas proprie-
dades (muitas vezes de grandes dimensões), predominantemente, em
Lisboa e arredores, em Santarém e a sul do Tejo, em muitos concelhos
alentejanos, com uma especial incidência no de Évora, e eram na maior
parte dos casos exploradas indirectamente através do arrendamento a
curto prazo318. As receitas das ordens religiosas partilhavam muitas des-
tas características. Para as ordens masculinas, os resultados (média dos
valores agregados) são os seguintes: dízimos, rações e direitos senho-
riais, 31,3%; foros, censos e capelas, 23%; juros, 18,2%; prédios urba-
nos, 9,5%; prédios rústicos, 18%. Para as ordens femininas, os mesmos
indicadores são, respectivamente, os seguintes: 26,3%, 25,6%, 34,2%,
4,6% e 9,3%. Em resumo, a propriedade rústica «plena» representava
apenas 18% das receitas das ordens masculinas e 9,3% das femininas319.
Os dados conhecidos para outras instituições (como as casas de Bragan-
ça, do Infantado e das Rainhas, a Patriarcal, a Universidade de Coimbra

318 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património
da Aristocracia em Portugal (1750-1832), Lisboa, 1998, parte III, pp. 235-316.
319 Cf. Fernando de Sousa, «O rendimento das ordens religiosas nos finais do Anti-
go Regime», in Revista de História Económica e Social, n.º 7, 1981.

166
Proprietário, propriedade e revolução liberal

ou vários dos bispados mais importantes) não divergem significativa-


mente daqueles que foram apresentados320. Em síntese, as instituições
características do Antigo Regime, em boa parte herdeiras de um legado
medieval, possuíam grandes propriedades, localizadas sobretudo na
Estremadura oriental e no Alentejo, mas a parcela fundamental das suas
receitas provinha (para além das tenças e juros) de direitos de foral, de
dízimos eclesiásticos e de foros decorrentes do domínio directo de bens
cujo domínio útil fora cedido a outros. A esmagadora maioria das suas
receitas decorria, assim, dos direitos que recebiam de grande parte do
território do reino (para além dos dízimos, que eram gerais, a maior par-
te das terras portuguesas pagaria algum foro ou prestação foraleira);
mas, tirando alguns concelhos localizados em regiões bem específicas, a
generalidade dessas terras encontrava-se na posse de outras categorias
sociais e institucionais.
São notórias e relevantes as implicações do que antes se disse sobre a
configuração da paisagem agrária. Uma vez cedidas em enfiteuse ou
aforamento colectivo, foi historicamente muito difícil e raro os senho-
rios recuperarem o domínio pleno sobre as terras. Daí decorreu, na
maior parte das zonas localizadas a norte do Tejo, a sobreparcelização
da terra, característica marcante bem indiciada pela reduzida dimensão
média das propriedades registadas já na época contemporânea, apesar
dos dispositivos criados para, em certos casos, evitar a divisão do domí-
nio útil321. De resto, ao longo da época moderna o emparcelamento, ou
seja, a criação de grandes propriedades em zonas onde predominava a
parcelização acentuada, fez-se quase sempre através da compra de

320 Embora para períodos mais recuados, e não registando as modificações entretan-
to verificadas, cf., entre outras fontes, Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança
(1560-1640). Práticas Senhoriais e Redes Clientelares, Lisboa, 2000, p. 270, Maria
Paula Marçal Lourenço, A Casa e Estado do Infantado 1654-1706, Lisboa, 1995,
pp. 199-200, Rui d’Abreu Torres, «Casa das Rainhas», in Joel Serrão (dir.), D. H. P.,
Lisboa, 1961-1965, Teófilo Braga, Dom Francisco de Lemos e a reforma da Universi-
dade de Coimbra, Lisboa, 1894, pp. 97-102, e Fernando Taveira da Fonseca, A Univer-
sidade de Coimbra (1700-1771) (Estudo Social e Económico), Coimbra, 1995, pp. 600 e
segs.
321 Cf. breves sínteses sobre o assunto em Nuno G. F. Monteiro, «Foreiro» e
«Senhorio», in Conceição Martins e Nuno G. F. Monteiro (orgs.), A Agricultura: Dicio-
nário das Ocupações, cit.

167
Elites e Poderes

domínios úteis vários que pagavam direitos a uma multiplicidade de


senhorios. A zona confinante com o Tejo e, sobretudo, o Alentejo esca-
param, em parte, ao cenário descrito. Importa sugerir brevemente como
foi. O fulcro da vitalidade económica do Sul medieval situava-se nos
centros urbanos322, sobre os quais incidia o essencial da tributação régia
(forais de portagem). Circundados por uma orla de pequenas explora-
ções intensivas (hortas, ferrageais e vinhas), eram entremeados por lar-
gas extensões de terrenos incultos. Parte destes parece ter sido apropria-
da através do sistema das sesmarias e também do aforamento de grandes
extensões de terra feito sobretudo pelas ordens militares. Assim se terá
constituído a moldura das herdades alentejanas, que a partir de finais da
Idade Média e do início do século XVI adquiriu uma enorme estabilida-
de, pois permaneceu em muitos casos sem grandes alterações até ao
século XX. Dois mecanismos institucionais parecem ter contribuído para
evitar a divisão das herdades no Sul: a vinculação (constituição de mor-
gados) ou amortização eclesiástica e as partilhas por quinhões (que divi-
diam o rendimento da propriedade não vinculada entre herdeiros, sem a
parcelizarem).
Terminada esta breve incursão sobre a história da propriedade, po-
demos agora regressar àquilo que mais directamente nos interessa: a
saber, os proprietários. Para concluir o que se infere do que antes foi
dito: em Portugal não apenas aquelas categorias que na sequência da
Revolução Francesa frequentemente se designaram por «ordens privile-
giadas», mas ainda uma multiplicidade de indivíduos (incluindo muitos
milhares de pequenos agricultores) e instituições exerciam algum tipo
de «direitos de propriedade» sobre a terra e os seus proventos. Aconte-
ce, porém, que esses direitos se encontravam com frequência duplamen-
te limitados. Desde logo, «para baixo», ou seja, sobre um mesmo bem
de raiz (uma quinta, courela, etc.), diversos indivíduos ou instituições
podiam exercer diferentes poderes (divisão de domínios); sob os direitos
dos senhorios directos erguiam-se, por vezes com reforçada vitalidade,
os dos foreiros, podendo o sistema ser ainda mais complexo. Mas tam-
bém no sentido «horizontal», pois a amortização e vinculação de bens
limitava e restringia a possibilidade de estes serem livremente compra-

322 Cf. Bernardo Vasconcelos e Sousa, «Paisagem agrária e organização do espaço


no Alentejo medieval (séculos XI a XV)», in Economia e Sociologia, n.os 45-46, 1988.

168
Proprietário, propriedade e revolução liberal

dos e vendidos. Em conclusão, prevalecia, com uma expressão espacial


amplamente maioritária, uma noção de propriedade diversa daquela que,
com algumas ressalvas, o liberalismo oitocentista procurará consagrar e
que alguns juristas já antes começavam a procurar construir no plano da
conceptualização jurídica323.
Como antes se afirmou, a identificação dos indivíduos como «pro-
prietários» foi extremamente rara antes do século XIX. Desde logo, por-
que o critério primacial para os classificar era a «qualidade» (de nasci-
mento) de que gozavam e esta definia-se, em primeiro lugar, desde
finais do século XVI, pela distinção entre plebeus e nobres e, dentro des-
tes, pelo grau de nobreza de que gozavam. Entre os atributos de nobreza
de que um indivíduo gozava, podia ter lugar a «posse de bens de raiz».
Era mesmo um requisito obrigatório acima de um determinado estatuto
nobiliárquico. No entanto, a dita «posse de bens de raiz» não era em si
mesma quase nunca o critério fundamental de classificação dos indiví-
duos.
Podemos obter uma tradução significativa do que antes se disse son-
dando as listas das pessoas elegíveis para as vereações de municípios
portugueses sede de comarca em finais do século XVIII. O critério prin-
cipal de classificação era o grau de nobreza, definido em primeiro lugar,
quase sempre, por títulos ou distinções de uso generalizado conferidos
pela monarquia (donatário, comendador, fidalgo da casa real ou cavalei-
ro de ordem militar). No entanto, em alternativa ou complemento, tam-
bém se referem critérios locais de atribuição de estatuto (como «dos
principais», «da principal nobreza», «com distinta nobreza») e ainda
atributos directamente relacionados com a terra e a sua posse e uso,
designadamente o ser-se (ou administrar-se um) «morgado» e o ser-se
«lavrador»324. De resto, alude-se muitas vezes ao rendimento ou fortu-
na, discriminando-se na maior parte dos casos se aquele tinha origem ou
não em «bens de raiz». Na época era perfeitamente claro que existia
«uma Nobreza tal, que para sua subsistência devessem [os que dela
gozavam] fazer conta unicamente a bens de raiz que pudessem sustentá-

323 Cf. síntese de António M. Hespanha, «O jurista e o legislador na construção da


propriedade burguesa-liberal em Portugal», in O Século XIX em Portugal, Lisboa, 1980.
324 Cf. Nuno G. Monteiro, «Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais
do Antigo Regime», in Análise Social, n.º 141, 1997, reed. neste volume.

169
Elites e Poderes

-los no ócio»325. Ou seja, de um determinado patamar de nobreza para


cima, era essa a única fonte de rendimentos legítima. E o estatuto de
morgado (não de proprietário) era aquele que traduzia de forma mais
clara esse requisito nobiliárquico326.
A análise de outras fontes da mesma época (como livros de décimas,
de ordenanças e outros327), independentemente da sua proveniência geo-
gráfica, confirma o que antes se disse. A população agrícola é geralmen-
te classificada em lavradores, por um lado, e trabalhadores ou jornalei-
ros (ou outras profissões assalariadas), por outro. Quase nunca se fala de
proprietários e, quando a eles se alude, é geralmente para identificar
proprietários de ofícios (escrivães, etc.), e não de bens de raiz, franca-
mente raros antes do século XIX.
Uma breve incursão no Dicionário Jurídico de Pereira de Sousa,
publicado já em 1825-1827, ratifica ainda claramente o que antes se dis-
se. A propriedade é agora definida, denotando uma clara influência de
novas fontes de inspiração, como «o direito que cada um dos indivíduos,
de que uma Sociedade Civil é composta, tem sobre os bens que legiti-
mamente adquiriu». Mas, se o proprietário é identificado com «o que
tem domínio de alguma coisa móvel, ou imóvel, corporal, ou incorporal,
que tem direito de gozar dela, e de dispor como lhe parecer», todos os

325 ANTT, Desembargo do Paço, corte, maço 2130, n.º 67.


326 Cf. breve síntese sobre o assunto em Nuno G. F. Monteiro, «Morgado», in Con-
ceição Martins e Nuno G. F. Monteiro (orgs.), A Agricultura: Dicionário das Ocupa-
ções…, cit.
327 Cf., entre muitos outros estudos publicados, José Maria Amado Mendes, Trás-
-os-Montes nos Fins do Século XVIII segundo um Manuscrito de 1796, Coimbra, 1981,
Robert Rowland, «Âncora e montaria, 1827: duas freguesias do Noroeste segundo os
livros de registo das companhias de ordenanças», in Studium Generale/Estudos Contem-
porâneos, n.os 2-3, 1981, José Manuel Nazareth e Fernando de Sousa, A Demografia
Portuguesa nos Finais do Antigo Regime: Aspectos Sociodemográficos de Coruche,
Lisboa, 1983, Jorge Fonseca, «Uma vila alentejana no ‘Antigo Regime’ – aspectos só-
cio-económicos de Montemor-o-Novo nos séculos XVII e XVIII», in Almansor, Revista de
Cultura, n.º 4, 1986, e José Vicente Serrão, Os Campos da Cidade. Configuração das
Estruturas Fundiárias da Região de Lisboa nos Finais do Antigo Regime, dissertação de
doutoramento, mimeo., ISCTE, Lisboa, 2000.

170
Proprietário, propriedade e revolução liberal

exemplos fornecidos, sem excepção, se reportam a proprietários de ofí-


cios328...
No triunfo do liberalismo em 1834 e no período que imediatamente o
antecedeu detectamos o início de uma alteração decisiva do quadro
antes descrito. Nas petições e debates parlamentares por alturas do vin-
tismo são já correntes as alusões a «proprietários»329. A ordem jurídica
e política então vitoriosa irá consagrar a propriedade e o rendimento
como requisitos fundamentais para o exercício dos direitos políticos
(voto censitário), estipulando montantes determinados para se poder ser
eleitor e elegível e consagrando até a figura dos (40, em regra) maiores
contribuintes como uma entidade com especiais responsabilidades na
vida política local330. É só nos anos 30 e 40 de Oitocentos que depara-
mos com os primeiros registos sistemáticos de indivíduos como proprie-
tários, designadamente, nas listas de recenseamento eleitoral331. A pala-
vra irá depois conhecer uma grande divulgação, traduzindo de forma
exemplar o modelo de cidadão subjacente à sociedade liberal. Mas tam-
bém uma importante transformação social: o facto de muitos enfiteutas
se terem transmutado em proprietários plenos (por via da abolição ou
remição de foros) e, sobretudo, de muitos lavradores-rendeiros terem
passado a proprietários das terras que exploravam332. Desde meados do
século XIX, portanto, que em todo o tipo de fontes, desde as eleitorais às
tributárias, passando pelos registos paroquiais, o termo ganha uma ex-
pressão relevante.

328 Joaquim J. C. Pereira e Sousa, Esboço de hum Diccionario juridico, theorethico


e practico, remissivo às leis compiladas, e extravagantes, 3 vols., Lisboa, 1825-1827.
329 Cf., por exemplo, Albert Silbert, Le problème agraire portugais au temps des
premières cortes libérales (1821-1823), Paris, 1968.
330 Cf., entre muitos outros, Helder Fonseca, Economia e Atitudes Económicas no
Alentejo Oitocentista, Lisboa, 1996, pp. 190 e segs.
331 Cf., por exemplo, João Pereira, Elites Locais e Liberalismo. Torres Vedras 1792-
-1878, Torres Vedras, 2000, pp. 129 e segs., ou as listas recolhidas por Maria Antónia
Pires de Almeida no âmbito do projecto PACO no arquivo da Câmara Municipal de Avis,
livros do recenseamento eleitoral, 1836-1960, e no arquivo da Câmara Municipal de Mon-
temor-o-Novo, recenseamento eleitoral, 1834-1958. Há antecedentes, naturalmente,
durante o vintismo.
332 Processo que terá uma tradução significativa sobretudo no Alentejo.

171
Elites e Poderes

Para além da ascensão dos proprietários enquanto categoria e critério


de classificação social, a implantação do liberalismo é geralmente asso-
ciada à transferência de propriedade. De facto, na sua primeira fase, o
triunfo liberal traduziu-se num conjunto de «reformas institucionais cujo
objectivo era a abolição do «feudalismo», a redistribuição da proprieda-
de fundiária, a extensão do mercado e a criação de um moderno apare-
lho de Estado»333. Acontece que, ao contrário do que muitas vezes se
sugere334, a primeira dimensão prevaleceu claramente sobre a segunda
na economia discursiva e na legislação do primeiro liberalismo. Acresce
que, enquanto a abolição de tributações reputadas ilegítimas era matri-
cial no pensamento liberal, a redistribuição e subdivisão da terra, por
mais que se valorizasse a ideia de uma economia de pequenos produto-
res, só era legítima para o pensamento liberal enquanto resultado dese-
jável da extinção dos entraves institucionais (amortização e vinculação)
à livre transacção da propriedade fundiária. Dito por outras palavras,
para o pensamento liberal não era aceitável «arrancar a Propriedade a
quem quer que seja» (Mouzinho da Silveira), mas apenas banir as restri-
ções à plena disposição da terra enquanto objecto passível de ser tran-
saccionado335.
É ainda cedo para se fazer um balanço seguro de conjunto da legisla-
ção liberal e do seu impacto sobre a propriedade fundiária. Mas, com
todas as reservas, pode, apesar de tudo, esboçar-se o ponto da situação
possível, em função da bibliografia disponível. A legislação de 1832,
associada a objectivos matriciais do discurso liberal e à figura de Mou-
zinho da Silveira336 (abolição dos dízimos, dos direitos de foral e dos
bens da coroa), apesar das ulteriores limitações que foram consagradas

333 Rui Graça Feijó, Liberalismo e Transformação Social: a Região de Viana do An-
tigo Regime a Finais da Regeneração, Lisboa, 1992, p. 31.
334 Cf., por exemplo, Manuel Villaverde Cabral (selecção, prefácio e notas), Mate-
riais para a História da Questão Agrária em Portugal, Séculos XIX e XX, Porto, 1974, e
O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, Lisboa, 1976.
335 Cf. Nuno G. Monteiro, «Revolução liberal e regime senhorial: a ‘questão dos
forais’ na conjuntura vintista», in Revista Portuguesa de História, t. XXIII, 1988, republi-
cado neste volume.
336 Cf. Miriam Halpern Pereira (dir.), Obras de Mouzinho da Silveira, 2 vols., Lis-
boa, 1989.

172
Proprietário, propriedade e revolução liberal

na lei dos forais de 1846337, representou uma imensa extinção de tribu-


tos. Ou seja, correspondeu, acima de tudo, a uma vultosa redistribuição
do rendimento (e não da propriedade) agrícola. Sabemos quem perdeu
(a grande aristocracia de corte 338 e as instituições eclesiásticas, que
viram desaparecer uma grande parcela das suas receitas), mas conhece-
mos muito pior quais foram os beneficiários do processo. Em todo o
caso, parece claro que a redistribuição de rendimento provocada pela
legislação liberal terá contribuído para aumentar o número de proprietá-
rios e para favorecer a parcelização das explorações agrícolas, pelo me-
nos no Norte e Centro, até porque diminuíram os encargos que sobre
elas impendiam sem que, a curto prazo, as formas de tributação estatais
se tivessem linearmente substituído àquelas que foram extintas. Ao
mesmo tempo, apesar de a propriedade enfitêutica em bens não doados
pela coroa nunca ter sido tocada directamente pela legislação liberal e a
enfiteuse (mas não a subenfiteuse) subsistir no Código Civil de 1867,
mantendo uma apreciável expressão territorial, a verdade é que as «pro-
priedades imperfeitas» terão diminuído drasticamente em extensão ao
longo do século XIX.
A redistribuição de propriedade costuma geralmente associar-se à
extinção das ordens religiosas em 1834, à transformação das suas fontes
de rendimento (bem como ao património de outras instituições, entre as
quais a Patriarcal e as casas das Rainhas e do Infantado, para além dos
próprios da coroa na sua posse) em bens nacionais e à sua venda. Essa
visão, porém, é muito parcial. Desde logo, porque a desamortização se
alargou no tempo, estendendo-se entre 1861 e 1891, entre outras insti-

337 Cf., sobre o assunto, Albert Silbert, «O feudalismo português e a sua abolição»,
in Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oitocentista, Lisboa, 1972, Miriam Hal-
pern Pereira, Revolução, Finanças e Dependência Externa, Lisboa, 1979, Nuno G. Mon-
teiro, «Revolução liberal e regime senhorial...», cit., e Fernando Dores Costa, «Flutua-
ções da fronteira da legitimidade da intervenção legislativa anti-senhorial nos debates
parlamentares para a revisão do decreto dos forais de 1832 (1836-1846)», in Revista
Portuguesa de História, t. XXIII, 1988.
338 Cf. Nuno G. Monteiro, «Nobreza, revolução e liberalismo: Portugal no contexto
da Península Ibérica», in Silvana Casmirri e M. Suárez Cortina (eds.), La Europa del
Sur en la Época Liberal. España, Itália y Portugal, Cantábria, 1998, republicado neste
volume.

173
Elites e Poderes

tuições, a bens das misericórdias, irmandades e da igreja secular339. Ora,


enquanto nas primeiras etapas (sobretudo em 1835-1843) o que se vende
são sobretudo bens fundiários possuídos em propriedade plena e locali-
zados nos distritos de Lisboa, Santarém, Évora e Portalegre (onde fica-
vam quase três quartos do total dos prédios vendidos)340, para além da
significativa venda de foros, ou seja, de domínios directos de vários
prédios, a última (1861-1891) tem uma expressão geográfica muito
menos concentrada e nela a remição de foros, directamente incentivada
pela legislação de 1861, adquire um peso relevante (mais de um quarto
do valor global)341. Mas, sobretudo, porque a desvinculação, ou seja, a
transacção de bens pertencentes a morgados e capelas de particulares,
iniciada muito antes da sua extinção final em 1863342, foi, provavelmen-
te, tão ou mais importante do que a venda dos bens nacionais. Estes, de
resto, embora incluíssem algumas grandes propriedades (como as lezírias
ribatejanas), eram certamente menos relevantes em dimensão do que é
usual pensar-se: basta recordar o que antes se disse a propósito dos ren-
dimentos das ordens religiosas, entre os quais os dízimos e rações (já
abolidos) e os foros (parte dos quais vendidos nesta altura) pesavam
bem mais do que as receitas provenientes de propriedades rústicas ple-
nas343.
Para além da redistribuição do rendimento, com o consequente desa-
parecimento de certas categorias sociais, do aumento das «propriedades
plenas» e, certamente, do número absoluto de proprietários, antes desta-
cados, importa fazer um balanço de conjunto sobre as transferências de

339 Cf. Luís Espinha da Silveira, «La desamortización en Portugal», in Ayer, n.º 9,
1993; cf. ainda os dados para a primeira etapa da desamortização de António Martins da
Silva, Nacionalizações e Privatizações em Portugal. A Desamortização Oitocentista,
Coimbra, 1997.
340 Segundo Luís Espinha da Silveira, op. cit., p. 55, o rendimento dos bens vendi-
dos nesta altura não representaria senão 3,3% do rendimento global dos prédios rústicos
e urbanos existentes em Portugal continental.
341 Cf. Luís Espinha da Silveira, op. cit.
342 Cf. H. Fonseca, Economia…, cit., pp. 309 e segs., e Helder Fonseca e Rui San-
tos, «Três séculos de mudanças no sector agrário alentejano: a região de Évora nos sécu-
los XVII a XIX», in Ler História, n.º 40, 2001.
343 Deixamos de lado aqui o processo da apropriação privada de maninhos e baldios,
que merece um tratamento detalhado.

174
Proprietário, propriedade e revolução liberal

propriedade resultantes da legislação liberal. Desde logo, podemos afir-


mar que não alteraram significativamente a fisionomia, fortemente con-
trastada, das diversas regiões do país. No entanto, com uma muito desi-
gual expressão regional, as mudanças na titularidade da terra foram,
globalmente, muito significativas. Terão tido uma expressão pouco rele-
vante em muitas zonas do Norte344. Em compensação, nas zonas de pre-
domínio da média e grande propriedade, em muitos casos, associada à
instituição vincular, como era uma boa parte da Estremadura oriental e
do Alentejo, não oferece dúvidas que abrangeram uma grande parte da
terra agricultada. No concelho de Évora, por exemplo, a maior parte das
herdades mudaram comprovadamente de mãos ao longo do século XIX,
de resto, muito mais como resultado da desvinculação do que como efei-
to da desamortização eclesiástica 345 . Aliás, a transferência da grande
propriedade antes vinculada das velhas casas aristocráticas para novos
detentores parece abranger toda a zona antes identificada346. Não tendo
correspondido, em regra, a uma parcelização da terra importante, as
enormes mudanças na titularidade da propriedade verificadas na Estre-
madura e no Alentejo ter-se-ão traduzido em muitos casos, de acordo
com certos trabalhos, numa modificação das modalidades da sua explo-
ração347. Em conclusão, a imagem de continuidade do Antigo Regime e
da «irrealizada sociedade burguesa» 348 não parece sustentável, a este
nível, enquanto balanço do Portugal oitocentista.

344 Cf. Rui Feijó, op. cit.


345 Cf. Jorge Fonseca, «Propriedade e exploração da terra em Évora nos séculos XVIII e
XIX», in Ler História, n.º 18, 1990, e Luís Espinha da Silveira, «Venda de bens nacio-
nais, estrutura da propriedade e estrutura social na região de Évora na primeira metade
do século XIX», in Análise Social, n.os 112-113, 1991.
346 Cf. Conceição A. Martins, «Opções económicas e influência política de uma fa-
mília burguesa oitocentista: o caso de São Romão e José Maria dos Santos», in Análise
Social, n.os 116-117, 1992.
347 Cf. H. Fonseca, Economia…, cit., e Helder A. Fonseca e Jaime Reis, «José
Maria Eugénio de Almeida, um capitalista da Regeneração», in Análise Social, n.º 99,
1987.
348 Cf. Vitorino Magalhães Godinho, A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa
(1971), 2.ª ed., Lisboa, 1975.

175
II Parte

REGIME SENHORIAL E REVOLUÇÃO LIBERAL


1. «A QUESTÃO DOS FORAIS» NA CONJUNTURA VINTISTA*

Introdução

A problemática da abolição do regime senhorial revestiu uma impor-


tância indiscutível nas diversas etapas da revolução liberal portuguesa.
Se é certo que nunca foi dissociada do conjunto da questão agrária e
da totalidade das disposições que implicavam uma ruptura sócio-ins-
titucional com o Antigo Regime, não é menos certo que à resolução da
«questão dos forais» foram atribuídas potencialidades específicas que
justificam a enorme relevância que, sob a notória influência do modelo
francês, o problema assumiu no discurso revolucionário.
A renovação dos estudos sobre o Portugal oitocentista iniciada nos
anos 60 e 70 do século XX conduziu a uma redescoberta da importância
da «questão dos forais» no contexto da revolução liberal portuguesa.
O maior e mais decisivo contributo para a formulação da problemática
foi dado pelos notáveis trabalhos de Albert Silbert, aos quais me referi-
rei frequentemente ao longo deste texto. A segunda contribuição mais
importante foi fornecida por Miriam Halpern Pereira, que demonstrou a

* Este texto e o seguinte retomam sem alterações significativas o artigo «Revolução


liberal e regime senhorial: a ‘questão dos forais’ na conjuntura vintista», in Revista Por-
tuguesa de História, t. XXIII, 1988, pp. 143-182, versão revista de Forais e Regime Senho-
rial: os Contrastes Regionais segundo o Inquérito de 1824, Lisboa, ISCTE, 1986, partes
I e II (prova de capacidade científica, mimeo.).

179
Regime senhorial e revolução liberal

articulação existente entre a questão financeira e a legislação liberal


sobre os direitos senhoriais, procurando esclarecer, em particular, os
destinos da lei de 1832. A maior parte dos restantes autores limitaram-se
a fazer breves referências à questão.
Curiosamente, a crise dos paradigmas historiográficos dominantes
até ao final dos anos 70 conduziu a uma subalternização da problemáti-
ca da abolição do regime senhorial, mais por omissão do que por verifi-
cação empírica da sua irrelevância. É o caminho inverso que aqui se
busca prosseguir. Restringindo-me ao período vintista e isolando um tanto
artificialmente a questão do conjunto da legislação liberal, procurarei
confrontar os discursos e a legislação dos deputados sobre bens da coroa
e forais e as expectativas («económicas», «sociais» e «políticas») que
lhe eram inerentes com os diversos e contrastantes contextos regionais
sobre os quais incidiram.
Para concluir, é conveniente salientar que se deixaram de lado as
dimensões jurisdicionais do regime senhorial. Este procedimento justifi-
ca-se, fundamentalmente, por três motivos: em primeiro lugar, porque a
questão suscitou pouca discussão durante o vintismo; em seguida, por-
que os poderes jurisdicionais e administrativos dos donatários estavam,
aparentemente, bastante restringidos; finalmente, porque subsistiram
algumas situações ainda não devidamente esclarecidas.

«Feudalidade» e revolução: algumas reflexões


a partir dos casos francês e espanhol

Em 1968, durante um colóquio realizado especialmente para discutir


o assunto, Jacques Godechot pretendeu apresentar uma definição míni-
ma e consensual do conceito de «feudalidade»: «Todos os historiadores
presentes no colóquio coincidiram em qualificar de regime feudal um
tipo de regime que se caracterizava por uma forma particular de pro-
priedade, com frequência pela servidão e sempre pelo pagamento dos
chamados censos feudais e senhoriais1.» Esta definição, reputada muito

1 «Prólogo», in La Abolición del Feudalismo en el Mundo Occidental, Madrid, 1979


(l.ª ed. franc., 1971), p. 3.

180
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

precisa por alguns historiadores e rejeitada por outros2, não me parece


suficientemente clara para permitir uma ultrapassagem das persistentes
dificuldades e falsas evidências que rodeiam usualmente a utilização do
vocábulo «feudal» pelos historiadores do período dos finais dos Antigos
Regimes europeus. Mesmo entre aqueles que partem de um quadro de
referências conceptuais relativamente próximo continuam a registar-se
enormes discrepâncias não apenas quanto à utilização preferencial do
termo «feudal» ou do termo «senhorial» (questão irrelevante para aquilo
que pretendo discutir), quanto à definição de um hipotético «modo de
produção feudal»3 ou quanto à atribuição da matriz senhorial ou «feudal»
à totalidade social do(s) Antigo(s) Regime(s)4, mas ainda, a um nível
mais elementar, quanto à definição de conceitos aparentemente menos
polémicos, como os de «propriedade feudal» e «renda senhorial». Ora,
até porque se reconhece que houve uma relativa erosão de muitos dos
aspectos institucionais da «feudalidade» no período em questão (papel
declinante das justiças senhoriais, etc.)5, parece evidente que é indispen-
sável tentar definir aqueles conceitos para se poder avaliar a dimensão
da ruptura com a «feudalidade» e o impacto (social, económico, políti-
co...) das legislações revolucionárias sobre a matéria.
Na verdade, mesmo se nos ativermos apenas à Europa ocidental
(pondo assim de lado os complexos problemas da segunda servidão da
Europa oriental) e até às monarquias geográfica e institucionalmente
mais próximas de Portugal (Espanha e França), é fácil verificar, por um

2 V., por exemplo, Michel Vovelle, La chute de la monarchie, 1787-1792, Paris,


1972, p. 9, e Miguel Artola, Antiguo Régimen y Revolución Liberal, 2.ª ed., Barcelona,
1983, pp. 44 e 85.
3 Para alguns, «falar de modo de produção feudal, à roda de 1500, implica o predo-
mínio de uma economia camponesa organizada numa base familiar; significa também
que a classe dos senhores feudais se apropriava de grandes parcelas dos excedentes agrí-
colas gerados pela economia camponesa» (Peter Kriedte, in Peasants, Landlords and
Merchant Capitalists, Warwichshire, 1983, p. 1), enquanto outros rejeitam esta defini-
ção restritiva (v. Maurice Aymard, «L’Europe moderne: féodalité ou féodalités?», in
Annales E. S. C., n.º 3, 1981, pp. 426-435).
4 V., por exemplo, Bartolomé Clavero, «Senhorio e fazenda em Castela nos finais do
Antigo Regime» (1975), pub. por A. M. Hespanha, Poder e Instituições na Europa do
Antigo Regime, Lisboa, 1984.
5 Exposição clássica do problema encontra-se em A. Tocqueville, L’Ancien Régime
et la révolution (1856), liv. II, Paris, 1975.

181
Regime senhorial e revolução liberal

lado, que a clareza da delimitação do que eram a «renda senhorial» e os


«direitos senhoriais» varia enormemente nas análises dos historiadores
de hoje, à semelhança do que acontecia com as dos juristas e políticos
da época, e, por outro lado, que a importância da «renda senhorial»
(qualquer que seja a definição adoptada) nas estruturas agrárias e sociais
de conjunto registava uma notória oscilação de região para região.
Para se compreenderem melhor as dimensões do primeiro dos pro-
blemas evocados é conveniente chamar a atenção para o facto de que, se
o «rentismo», a apropriação dos excedentes agrícolas, constituía uma
dimensão estrutural dos Antigos Regimes económicos e sociais, nem
todas as formas de prélèvement 6 tinham a mesma origem e a mesma
natureza e nem todas tiveram o mesmo destino. Poder-se-ia, a este res-
peito, retomar as palavras de M. Aymard para o caso francês: «Ser-
-se-ia tentado a dividi-las em dois grupos: as primeiras, ‘tradicionais’,
desapareceram com a revolução: o dízimo e os direitos senhoriais. As
outras, ‘modernas’, desenvolvem-se mais tardia e lentamente, mas estão
destinadas a durar e a ocupar a totalidade do terreno deixado livre pela
desaparição das precedentes: o imposto de Estado e a renda fundiária7.»
É evidente que o critério de destrinça («tradicionais» versus «moder-
nas») não é, certamente, o mais rigoroso e que é sempre possível pensar-
-se que «os direitos feudais e senhoriais mais não são do que uma peça
do sistema [...] um dos aspectos mais significativos, mas ao mesmo
tempo mais comprometidos, do ‘feudalismo’, modo de produção basea-
do na renda fundiária, e que continua a ser, sem contestação, dominan-
te» (M. Vovelle)8. Nem por isso deixa de ser claro que, mesmo se os
movimentos camponeses mais radicais chegaram a pôr em causa todas as
formas de «rentismo», os direitos senhoriais e os dízimos constituíam,
em França, uma dimensão específica e claramente diferenciada.
É o que se pode verificar através de uma rápida panorâmica de con-
junto sobre as estruturas sociais dos campos franceses nas vésperas da
revolução. Ignorando «abusivamente» os contrastes regionais mais mar-
cados, pode dizer-se que «grosso modo a nobreza deve dispor de 20% a

6 Preferi não traduzir a palavra.


7 M. Aymard, «Autoconsommation et marchés: Chayanov, Labrousse ou Le Roy
Ladurie?», in Annales E. S. C., n.º 6, 1983, p. 1399.
8 M. Vovelle, op. cit., p. 14.

182
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

25% dos campos franceses, o clero de 6% a 10%, a burguesia, prova-


velmente, de 30% e os camponeses de 40% a 45%»9. Possuindo uma
extensão considerável, as terras agricultadas das ordens privilegiadas
eram, na sua maioria, exploradas indirectamente, através de formas de
cedência do tipo «moderno» (arrendamento e parceria)10, ou seja, não
implicavam uma divisão de domínios e eram compatíveis com a moder-
na noção de propriedade11; era esta a origem da «renda fundiária de tipo
moderno» (Vovelle). É certo que em algumas regiões francesas (particu-
larmente na Bretanha) persistiam estatutos «intermédios entre os laços
de dependência antigos e a exploração indirecta do tipo moderno»12 ;
não me parece, no entanto, que alcançassem uma extensão geográfica
comparável à que atingiam em Espanha e em Portugal. Embora as dife-
renças regionais fossem, também neste domínio, muito grandes, é legí-
timo considerar-se que a maior parte dos grupos domésticos camponeses
não possuíam terra a título permanente com extensão suficiente para que
não tivessem de recorrer, ou ao arrendamento temporário de parcelas
das ordens privilegiadas (a que também recorriam grandes lavradores),
ou ao assalariamento sazonal13. Sobre a propriedade burguesa e sobre os
camponeses com terra impendiam, além dos dízimos, os direitos senho-
riais, mas, para retomar as palavras de Silbert, «na maior parte dos sí-
tios, estes direitos eram ligeiros [...] o peso da dízima na vida agrária era
muito mais elevado»14. Na verdade, mesmo os autores que, como Albert
Soboul, se esforçaram por demonstrar a importância destes direitos tive-
ram grande dificuldade em encontrar exemplos de situações em que
aqueles chegassem a igualar o rendimento dos dízimos; no mesmo sen-
tido, só em algumas zonas o rendimento bruto deles proveniente chegava

9 Id., ibid., pp. 14-15.


10 Cf., sobre o assunto, Georges Lefebvre, «La révolution française et les paysans»,
in Etudes sur la révolution française, 2.ª ed., Paris, 1963, pp. 345 e segs., e M. Vovelle,
op. cit., pp. 15 e segs.
11 Cf. C. B. Marpherson, «Capitalism and the changing concept of property», in R.
Kamenka et al. (eds.), Feudalism, Capitalism and Beyond, Londres, 1975, pp. 105-114.
12 Vovelle, op. cit., p. 16.
13 Cf. G. Lefebvre, op. cit., pp. 356 e segs., e M. Aymard, «Autoconsomation...»,
cit., pp. 1394 e segs.
14 «A Revolução Francesa e o problema agrário», in Economia e Sociologia, n.º 24,
1978, pp. 31 e 33.

183
Regime senhorial e revolução liberal

a representar mais de metade do conjunto dos proventos senhoriais, cuja


fonte de ingressos essencial era, normalmente, a «renda fundiária de tipo
moderno»15. No entanto, «o peso psicológico» era muito maior; com efei-
to, tornaram-se os símbolos da opressão de aristocratas que eram, simul-
taneamente, senhores, proprietários e membros de uma ordem realmente
privilegiada.
Numa sua fase crítica, o movimento camponês ocorrido durante a
Revolução Francesa chegou a pôr em questão, em algumas regiões, não
apenas os dízimos e os direitos senhoriais (cuja abolição foi progressiva-
mente ampliada entre 4 de Agosto de 1789 e 17 de Julho de 179316),
mas também, embora com menos êxito, as próprias formas modernas de
renda 17 . Quer se considere que os seus resultados efectivos e a sua
dinâmica potencial eram essencialmente anticapitalistas (e até hipoteti-
camente responsáveis pelo relativo atraso económico da França oitocen-
tista)18, ou, em contraposição, tendencialmente susceptíveis de acelera-
rem o desenvolvimento capitalista19, o certo é que, embora confluindo na
oposição aos aristocratas, as duas dimensões do movimento têm impli-

15 «Sur le prévèvement féodal», in Problèmes paysans de la révolution, 1798-1848,


Paris, 1976.
16 M. D. Dalloz, Répertoire méthodique et alphabéthique de législation, Paris, 1857,
t. 38, pp. 332 e segs. Depois do Termidor houve repetidas tentativas para restringir o
âmbito da legislação revolucionária.
17 Cf. J. Boutier, «Jacqueries en pays croquants: les révoltes paysannes en Aqui-
taine», in Annales E. S. C., n.º 4, 1979, e, no mesmo sentido, Michel Vovelle, «Les trou-
bles sociaux en Provence de 1750 à 1792», in De la cave au grenier, Quebeque, 1980.
Contra esta interpretação é a perspectiva que estende às revoltas do século XVIII o mode-
lo «comunitário» das do século XVII, sustentada por Yves-Marie Bercé em Croquants et
nu-pieds, Paris, 1974, e em Révoltes et révolutions dans L’Europe moderne, XVII-XVIII
siècles, Paris, 1980. Sobre as implicações que a questão tem na explicação do fenómeno
da contra-revolução camponesa em França, cf. T. J. A. Le Goff e D. M. G. Sutherland,
«The social origins of counter-revolution in Western France», in Past and Present,
n.º 99, 1983, e David Hunt, «Peasant politics in the French Revolution», in Social His-
tory, vol. 9, n.º 3, 1984.
18 Cf. G. Lefebvre, op. cit., pp. 348 e segs., e F. Furet, Ensaios sobre a Revolução
Francesa, Lisboa, 1978, pp. 40 e segs.
19 Sob influência do historiador soviético A. Ado, é esta a tese defendida contra ven-
tos e marés por A. Soboul, «Sur le mouvement paysan», op. cit., e por Hemâni Resende,
Igualitarismo Agrário e Socialismo Utópico na Transição do Feudalismo para o Capi-
talismo em França no Século XVIII, Lisboa, 1979.

184
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

cações diversas. No segundo caso, o que esteve em questão não foram


as rendas que atingiam a propriedade camponesa, mas sim o acesso a
título duradouro à posse da terra, o que esteve em causa não foram as
restrições senhoriais à transformação da propriedade camponesa em
propriedade «plena», mas, em certa medida, através da reivindicação da
partilha da terra, a própria concepção moderna de propriedade20.
Os contrastes regionais que se detectavam na monarquia espanhola
eram muito mais marcados e, por outro lado, a similitude que algumas
dessas regiões apresentavam com o Centro e o Norte de Portugal muito
mais evidente. Embora a percentagem de lavradores «proprietários» regis-
tasse grandes variações, as formas de produção com «maior incidência eco-
nómica» processavam-se no quadro da exploração indirecta, muito fre-
quentemente, de grandes propriedades vinculadas, efectuada através do
«arrendamento a curto prazo, de carácter e inspiração capitalista», na
opinião contundente de Miguel Artola 21 . A especificidade espanhola
neste domínio residia, no entanto, na importância relativa que, apesar de
tudo, revestia «o sistema arcaico de cedências vitalícias, hereditárias e
perpétuas»22 de terra, preponderante na Galiza, na Catalunha e no País
Valenciano.
Na verdade, a «fiscalidade senhorial» em sentido restrito, quer dizer,
os direitos recebidos pelos detentores de jurisdições e os direitos
«banais» que lhe estavam associados (fogaças, portagens, monopólios
senhoriais, etc.), não era muito pesada na maior parte da monarquia
espanhola23. Toda a questão esteve (durante a revolução liberal), está
(para a historiografia actual), precisamente, em saber até que ponto é
legítimo dissociá-la das formas «arcaicas» de renda atrás referidas.
A este respeito, existia, aliás, uma diferença importante: «Enquanto o
foro (galego) conserva em todos os casos uma estrita identidade com o
contrato civil, a versão catalã da exploração indirecta, e ainda mais a
valenciana, caracteriza-se pela frequente confusão institucional das rela-

20 A exposição clássica que aponta nesse sentido é o citado artigo de G. Lefebvre.


21 Op. cit., p. 67.
22 Ibid.
23 Cf. Miguel Artola, op. cit., pp. 83 e segs., e J. Vicens Vives, História de Espana y
América Social y Económica, vol. IV, 2.ª ed., Barcelona, 1977, pp. 57 e segs.

185
Regime senhorial e revolução liberal

ções económicas com os aspectos sociais do domínio senhorial24.» No


caso extremo do País Valenciano, ainda em pleno século XVIII senhorios
detentores dos direitos jurisdicionais concediam «cartas de povoação»
onde se impunham direitos raçoeiros pesadíssimos a foreiros perpé-
tuos25 e que apresentam enormes semelhanças com os forais portugue-
ses do Centro Litoral. De qualquer forma, a diferença apontada teve
grande importância em face da legislação liberal espanhola.
Com efeito, se todas as legislações liberais em matéria de direitos
senhoriais tiveram como matriz comum a necessidade de separar renda
de imposto, os proventos decorrentes da propriedade dos decorrentes do
exercício da autoridade, o privado do público, as imposições unilaterais
das relações contratuais, os critérios seguidos variaram notoriamente de
país para país. O critério adoptado pelos liberais espanhóis foi bastante
restritivo, se comparado com o português: naquele caso não foi adopta-
da a figura da doação régia (a dicotomia portuguesa bens da coroa/bens
patrimoniais), mas sim a distinção entre direitos jurisdicionais (incorpo-
rados na coroa) e direitos territoriais (transformados em emanação do
direito de propriedade), entre «as prestações, tanto reais como pessoais,
que tinham a sua origem num título jurisdicional» e «as que procedem
de um contrato livre, conforme com o assinalado direito de proprieda-
de» 26 . Embora a legislação liberal tenha oscilado entre 1811 e 1837
(designadamente quanto à obrigação senhorial de mostrar os títulos), os
únicos direitos inequivocamente suprimidos foram as jurisdições, as
portagens e aquilo que na linguagem adoptada pelos liberais portugue-
ses se chamariam os direitos banais. Desta forma, muitos historiadores
são da opinião de que, em numerosos casos, ela terá permitido transfor-
mar directamente senhorios em propriedade plena, contribuindo para
que os grandes titulares com senhorios jurisdicionais se tornassem os
maiores proprietários latifundiários da Espanha liberal 27 . Os maiores

24 Miguel Artola, op. cit., p. 70.


25 Cf. José Miguel Palop, Hambre y Lucha Antifeudal, Barcelona, 1977, pp. 112 e
segs.
26
Cit. in M. Artola, op. cit., p. 170.
27
Cf., por exemplo, Josep Fontana, «Transformaciones agrarias y crecimiento eco-
nomico en la Espana contemporánea», in Cambio Económico y Actitudes Politicas en la
Espana del Siglo XIX, 2.ª ed., Barcelona, 1975, e Francisco J. H. Montalbán, «La cues-

186
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

conflitos, no entanto, terão ocorrido naquelas regiões onde os senhorios


com poderes jurisdicionais recebiam censos pesadíssimos de terras cujo
domínio pretendiam haver alienado, ou seja, fundamentalmente no País
Valenciano, onde, depois de uma série interminável de contendas que se
prolongaram para além dos meados de Oitocentos, a remição terá aca-
bado por ser a solução mais frequente28. Em compensação, comprovan-
do a importância da distinção atrás evocada, o «foro» galego (tão seme-
lhante à enfiteuse em vidas portuguesa) sobreviveu incólume à
legislação liberal, exactamente porque os rentistas intermédios que o
recebiam (os fidalgos galegos) não exerciam, em regra, quaisquer fun-
ções jurisdicionais29; a remição acabaria por ser imposta apenas no pri-
meiro quartel do século XX, desenlace para o qual deram contributos
decisivos um forte movimento de massas antiforistas e as remessas de
dinheiro da emigração, conforme demonstrou Ramón Villares30.
Em todo o caso, o problema da caracterização da natureza daquelas
formas de renda que implicavam a existência de uma noção de proprieda-
de aparentemente incompatível com aquela que as revoluções liberais
procuraram implantar, particularmente quando não pareciam associadas
a uma componente jurisdicional imediata, continua a dividir os historia-
dores do Estado espanhol. Na verdade, a distinção aparentemente tão
óbvia na maior parte das regiões francesas entre rendas «tradicionais»
ou senhoriais e rendas «modernas» torna-se, nestes casos, muito difícil
de aplicar. Alguns, como M. Artola, não hesitam em colocá-las na cate-

tión de los senorios en el proceso revolucionario burguês: el trienio liberal», in Bartolo-


mé Clavero et al., Estudios sobre la Revolución Burguesa en Espana, Madrid, 1979.
28 Cf. M. Artola, op. cit., pp. 71 e segs., e Pedro Ruiz Torres, «Senorío, propriedad
agraria y burguesia en la revolución espanola», in O Liberalismo na Península Ibérica
na Primeira Metade do Século XIX, 2.º vol., Lisboa, 1982, pp. 102 e segs., e «Desarrollo
y crisis de la agricultura en el País Valenciano en finales del Antiguo Régimen», in An-
gel García Sanz e Rarnón Garrabou (eds.), Historia Agraria de la Espana Contemporánea,
vol. I, Barcelona, 1985.
29 Cf. Ramón Villares, «Evolución historica del foro», in Foros, Frades e Fidalgos,
Vigo, 1982, e «A agricultura galega, 1870-1930», in Os Campos Portugueses de 1870 a
1930: Imagem e Realidade, Paris, 1985, e Bartolomé Clavero, «Foros y rabassas. Los
censos agrarios ante la revolución española», in El Codigo y el Foro, Madrid, 1982.
30 Op. cit. e La propiedad de la Viena en Galicia 1500-1936, Madrid, 1982.

187
Regime senhorial e revolução liberal

goria das formas «arcaicas» de renda fundiária31. A maior parte tende a


considerá-las «semi-senhoriais»32 ou simplesmente «feudais»33.

A «questão dos forais»: o discurso e a legislação do vintismo

As considerações da alínea anterior parecem-me absolutamente


indispensáveis para que se possam detectar correctamente as especificida-
des da correspondente problemática portuguesa. Em Portugal, com efeito,
as formas de cedência vitalícia e/ou hereditária da terra tinham mais
importância do que em qualquer um dos casos estudados: abrangiam a
maior parte do território nacional. Na verdade, qualquer que tenha sido a
eficácia das condicionantes geográficas que o favoreceram, é essa a ori-
gem propriamente histórica essencial do predomínio da pequena e
pequeníssima propriedade sobreparcelizada na maior parte do Centro e
Norte do país 34 . Ora, embora partindo de uma matriz jurídica muito
idêntica e compartilhando algumas características essenciais 35 , essas
diversas formas de cedência da terra a longo prazo podiam ter-se efecti-
vado há centenas de anos (antes mesmo da fundação da monarquia por-
tuguesa) ou ainda em pleno século XIX (a enfiteuse prolongou a sua
existência legal até ao século XX36), podiam, ou não, conferir aos senho-
rios poderes para restringirem a partilha da terra (distinção entre censo

31 Op. cit., p. 85.


32 Cf. P. Vilar, «El fin de los elementos feudales y senoriales en Cataluna en los si-
glos XVIII y XIX...», in La Abolición del Feudalismo en el Mundo Occidental, Madrid,
1979.
33 Cf. J. S. Pérez Garzón, «La revolución burguesa en Espana: los inicios de un de-
bate científico, 1986-1979», in Miguel Tunon de Lara (coord.), Historiografia Española
Contemporánea, Madrid, 1980.
34 Cf., por exemplo, Virgínia Rau, «A grande exploração agrária em Portugal a par-
tir dos fins da ldade Média», in Estudos de História Económica, Lisboa, 1961.
35 Designadamente quanto ao carácter (pelo menos) vitalício das formas de posse da
terra.
36 Cf., por exemplo, M. J. de Almeida Costa, «Enfiteuse», in Joel Serrão (ed.),
Dicionário de História de Portugal (D. H. P.), s. d.

188
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

reservativo e enfiteuse) 37 , podiam decorrer de um «título genérico»


(foral) ou de um «título especial» (contrato enfitêutico), podiam deter-
minar directamente as relações entre os rentistas e os produtores direc-
tos, ou não ser mais do que um elo na complexa hierarquia dos rentistas
da terra, etc. Donde decorre, por um lado, a necessidade de analisar com
precaução as diversas implicações das legislações liberais sobre o assun-
to e, por outro, a de atender às contrastantes realidades regionais sobre
as quais aquelas incidiram.
Entretanto, a própria «obsessão pelas origens» (dos direitos) desen-
cadeada pela legislação liberal torna indispensável uma breve alusão à
sua génese histórica. Diria, assim, que eram fundamentalmente duas as
origens remotas das formas de posse vitalícia e/ou hereditária da terra:
por um lado, os forais régios medievais, numa grande parte dos quais
avultava a concessão de uma certa autonomia local, e as cedências de
terra nos reguengos e, por outro, os aforamentos colectivos (cartas de
povoação) e individuais e emprazamentos feitos por senhorios laicos e
eclesiásticos, onde a dimensão da autonomia municipal era menos
patente ou estava completamente ausente38. Convém destacar que, nos
senhorios laicos e eclesiásticos, a opção por aforamentos colectivos
(forais) ou por aforamentos individuais (mais tarde, o correspondente à
enfiteuse perpétua) e emprazamentos (que corresponderiam mais tarde à
enfiteuse em vidas) não reflectia nenhuma diferença de natureza,
nenhuma distinção entre «público» e «privado» ou entre imposição uni-
lateral e relação contratual: foram normalmente concedidos por senho-
rios que detinham simultaneamente poderes jurisdicionais («públicos»
aos olhos dos liberais) e o direito de imporem prestações dominicais e
que optaram por umas ou outras formas de cedência da terra sobretudo
em função da conjuntura (económica e demográfica) em que o fize-

37 Cf., por exemplo, P. J. de Mello Freire, «Instituições de direito civil português»,


tít. XI, V Boletim do Ministério da Justiça, n.° 166, 1967, pp. 103 e segs., e J. Homem
Corrêa Telles, Questões e Várias Resoluções de Direito Emphyteutico, Coimbra, 1851,
pp. 4 e segs., e, no mesmo sentido, Manuel de Almeida e Sousa, Coelho da Rocha, etc.
No entanto, a distinção entre «censo» e «enfiteuse» foi apenas um recurso utilizado pe-
los juristas do período para operarem com uma realidade que é bem anterior.
38 Cf., por exemplo, a forma clássica de colocar a questão em H. da Gama Barros,
História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, 2.ª ed., Lisboa,
s. d., t. I, pp. 68 e segs., e t. VIII, pp. 13 e segs.

189
Regime senhorial e revolução liberal

ram39. O essencial a reter, porém, é que, antes mesmo do século XV, a


distinção entre concelhos com foral régio e reguengos (que foram sendo
frequentemente doados pela coroa) e terras de senhorios laicos e ecle-
siásticos tende a esbater-se claramente na perspectiva que aqui nos inte-
ressa considerar40.
Em todo o caso, de meados do século XV até aos finais do reinado de
D. Manuel41, o quadro modificou-se definitivamente, estabilizando-se
um contexto institucional que se prolongará quase inalterável até ao
triunfo da revolução liberal. Por um lado, embora subsistam as formas
de intervenção e as instâncias de apelação senhoriais, as circunscrições
administrativas e judiciais de primeira instância deixam de se regular
pelos forais para passarem a estar formalmente sujeitas à legislação
uniforme das Ordenações (o que não quer dizer, evidentemente, que
desaparecessem os privilégios locais e que o direito e as práticas con-
suetudinárias deixassem de vigorar)42. A própria geografia destas cir-
cunscrições (câmaras), que reflecte a do regime senhorial, se manteria
sem grandes modificações até ao século XIX43. Por outro lado (e reside
aqui a grande originalidade portuguesa, reflexo do que tradicionalmente
se chamava a «precoce centralização»), a coroa resolveu confirmar os
direitos que lhe eram devidos por foral e os que se pagavam aos seus
donatários: refiro-me à reforma manuelina dos forais, que, restringindo
as especificidades administrativas locais que deles constavam, os trans-
formou em «registos actualizados das isenções e encargos locais» 44 .
Momento decisivo, porque os forais passaram a ser considerados «leis

39 Cf., por exemplo, Maria Helena da Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos Finais da
Idade Média, Coimbra, 1983, vol. I, especialmente pp. 291-293 e segs.
40 Cf. Marcello Caetano, História do Direito Português, vol. I, Lisboa, 1983, pp. 320
e segs., e José Mattoso, Identificação de Um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal,
vol. I, Lisboa, 1985, pp. 338-339 e segs.
41 Cf. J. Pedro Ribeiro, Dissertação Histórico-Jurídica e Económica sobre a Refor-
ma dos Forais..., Lisboa, 1812, e Alberto C. de Meneses, Plano de Reforma dos Fo-
rais..., Lisboa, 1825, pp. 25 e segs.
42 Cf., sobre o assunto, A. M. Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval
e Moderna, Coimbra, 1982, pp. 258 e segs.
43 O número de câmaras aumentou apenas ligeiramente entre os primórdios de Qui-
nhentos e os primórdios de Oitocentos.
44 M. J. de Almeida Costa, «Forais», in Joel Serrão (ed.), D. H. P., s. d.

190
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

perpétuas» 45 e porque a sua existência (a especificidade jurídica dos


forais e dos bens da coroa) criava uma base extremamente favorável
para a crítica liberal dos direitos senhoriais neles consagrados.
Infelizmente, nem mesmo a nossa prolixa historiografia oitocentista
produziu um estudo aprofundado sobre a reforma manuelina dos forais,
que continua a ser um tema sobre o qual se sabe muito pouco. No entan-
to, uma simples leitura de algumas dezenas de forais reformados permi-
te concluir que, apesar de neles se incluir todo o tipo de direitos46, há
algumas singularidades que devem ser desde já destacadas: a maioria
dos forais alentejanos não impunham quaisquer prestações fundiárias;
muitas terras (concelhos) não receberam foral; em alguns casos, os forais
reformados só se referem a direitos jurisdicionais, e não a prestações fun-
diárias, que, no entanto, os respectivos senhorios recebiam (estou a pensar
sobretudo no Minho e em senhorios beneditinos, que já existiam e já
recebiam direitos dominicais antes da fundação da monarquia); chegou
mesmo a haver forais que não referiam de todo os direitos percebidos
por donatários da coroa compreendidos na respectiva área47. Ou seja, uma
parte considerável dos «títulos originários» (medievais) que impendiam
sobre aqueles que detinham a posse vitalícia e/ou hereditária da terra
não constava das cartas de foral reformadas.
Além disso, é preciso não esquecer que a problemática do regime
senhorial vai ser abordada apenas durante o século XIX. Entretanto, as
prestações senhoriais tinham perdido peso em muitas zonas. O que fazia
com que «por baixo» dos títulos originários se pudessem operar formas
de cedência vitalícia e/ou hereditária (enfiteuse perpétua ou em vidas) e
formas de cedência a curto prazo (arrendamento e parceria) da terra. Ou
seja, quer em sentido «horizontal», quer em sentido «vertical», os forais

45 Cf., por exemplo, J. H. Corrêa Telles, op. cit., pp. 2 e segs., e, no mesmo sentido,
muitas intervenções de deputados nos debates parlamentares e petições às cortes vintis-
tas.
46 Rações, jugadas, foros fixos em géneros e/ou dinheiro, fogaças, monopólios se-
nhoriais, etc. (cf. Luiz Fernando de Carvalho Dias, Forais Manuelinos do Reino de Por-
tugal e do Algarve, s. l., ed. do autor, 5 vols., 1961-1965).
47 Daí o pretender-se que no Minho (onde tais situações eram frequentes) a lei dos
forais de 1822 se aplicava a todas as formas de enfiteuse em bens da coroa, quer viessem
ou não referidas nos forais (cf. Anónimo, Nova Explanação sobre as Duas Mais Impor-
tantes Questões dos Foraes, Porto, 1822).

191
Regime senhorial e revolução liberal

apenas cobriam uma parcela das rendas que impendiam sobre os deten-
tores das unidades de exploração.
É em função desta realidade extremamente complexa que deverão
ser perspectivados os discursos e as formulações da «questão agrária»
que, desde a legislação pombalina e a literatura «agronómica» de finais
do século XVIII, irão desembocar na legislação antiforaleira da fase de
ruptura da revolução liberal. Discutir-se-á aqui exclusivamente o lugar
que a problemática do regime senhorial ocupava nos discursos sobre as
questões agrárias, e não a globalidade destes. Em todo o caso, é indispen-
sável realçar desde já a importância decisiva que tiveram as orientações
do pensamento jurídico na segunda metade de Setecentos: a clara reafir-
mação da natureza jurídica específica dos bens da coroa e forais, con-
substanciada, por exemplo, nas confirmações gerais pombalinas, na obra
de Mello Freire48 e no lançamento do direito do quinto dos donatários49,
constituiu um precedente fundamental dos discursos e legislações oito-
centistas sobre a reforma dos forais.
Na verdade, nada me parece desmentir, até ao presente, as afirma-
ções de Silbert, segundo as quais «a contestação do regime senhorial
não parece assumir um aspecto importante neste conjunto de críticas [...]
no conjunto, o ataque ao feudalismo parece-nos tímido»50. Com efeito,
embora as críticas aos direitos senhoriais (e aos dízimos) surjam com
alguma frequência, influenciadas em parte pela doutrina fisiocrática do
produto líquido 51 , elas não são, na maior parte dos casos, senão um
entre os múltiplos tópicos dos discursos reformistas sobre a agricultura
de finais de Setecentos52. No entanto, embora a sua difusão não tenha

48 Especialmente, «Instituições de direito civil português», cit., liv. I, tít. VI, e liv. II,
tít. II, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 162, 1967, pp. 58 e segs., e n.º 163, 1967,
pp. 46 e segs.
49 Alvará de 24 de Outubro de 1796.
50 «O feudalismo português e a sua abolição», in Do Portugal do Antigo Regime ao
Portugal Oitocentista, Lisboa, 1972, pp. 94-95.
51 A. M. Hespanha, O Jurista e o Legislador na Construção da Propriedade Bur-
guesa-Liberal em Portugal, Lisboa, 1979-1980 (mimeo.), pp. 39 e segs.
52 Cf. Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias..., Lisboa, 1789-1815, 5
ts., B. Chichorro, Memória Económico-Política da Província da Estremadura (1793), ed.
M. B. Amzalak, Lisboa, 1943, José Frederico Laranjo, Economistas Portugueses, Lisboa,
1976 (reed. com pref. e notas de Carlos Fonseca), Moses B. Amzalak, Do Estu-

192
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

paralelo com a verificada em Espanha 53 , a gradual penetração desta


«nova cultura» foi decisiva para o reacender de conflitos que se verificou
em largas zonas da sociedade rural portuguesa desde os finais do século
XVIII e que teve uma das suas máximas expressões nas petições agrárias
remetidas às cortes vintistas54.
Naturalmente, o primeiro momento culminante desta crítica à consti-
tuição fundiária do Antigo Regime é a publicação da famosa carta de lei
de 1810, onde se propõe a fixação dos dízimos, a minoração ou supres-
são do «sistema das jugadas, quartos e terços» e forais e que se pudes-
sem «fazer resgatáveis» «os foros», ou seja, a enfiteuse55. No entanto, o
grande radicalismo das intenções da lei (que aparentemente abrangeria a
enfiteuse) pode obscurecer aquilo que, sem pretender fazer a história da
questão agrária, me parece ser uma modificação do fulcro dos discursos
sobre o problema: uma grande parte dos escritos setecentistas inclui
como um (e apenas como um) dos seus eixos o conjunto dos encargos
«excessivos» que impendiam sobre os «lavradores»; progressivamente,
porém, os encargos em questão vão sendo identificados exclusivamente
com as prestações dos forais e dos bens da coroa. Esta tensão atravessa
de forma exemplar os pareceres da Comissão dos Forais de 181256, que

do e da Evolução das Doutrinas Económicas em Portugal, Lisboa, 1928, Armando de


Castro, O Pensamento Económico no Portugal Moderno, Lisboa, 1978, Jorge Borges de
Macedo, Problemas de História da Indústria Portuguesa do Século XVIII, 2.ª ed., Lis-
boa, 1982, pp. 211 e segs., J. Esteves Pereira, «Economia em Portugal no século XVIII:
aspectos de mentalidade», in Prelo, n.º 2, 1984, e Jaime A. C. Ferreira, «Abordagem
do problema cerealífero no dealbar da revolução liberal», in O Instituto, vol. CXXXIX,
1979.
53 Cf. Gonzalo Anes, «Coyuntura económica e ilustración: las sociedades de amigos
del país», in Economía e Ilustración, 3.ª ed., Barcelona, 1981.
54 E, nesse sentido, o movimento anti-senhorial dos finais do Antigo Regime tem
tanto a ver com a mudança de «mentalidade» como com outros factores (cf. Albert Cost
Castane, «Institucions senyorials: opinió pública a Catalunya entre 1751-1808...», in
Premier Congrès d’histoire moderne de Catalunya, Barcelona, 1984).
55 Cf. A. C. Meneses, op. cit., pp. 333 e segs.
56 As cópias das consultas da Comissão encontram-se no Arquivo Histórico-
-Parlamentar, I e II div., «Trabalhos sobre forais», e os esboços originais da autoria de
Francisco Manuel Trigozo de Aragão Morato na BNL, FG, ms. 205, n.º 267. Sobre o
funcionamento da Comissão, cf. as Memórias..., de Trigozo (1777-1826), Coimbra,
1933 (ed. de F. C. Andrada), pp. 62 e segs. e 75 e segs.

193
Regime senhorial e revolução liberal

tinha uma composição e um vocabulário de sentido muito mais modera-


do do que o da carta régia de 1810. Logo num dos primeiros pareceres
se afirma que «não é principalmente pelos forais que se tem gravado a
Agricultura, mas principalmente pelo abuso que os senhorios directos
têm feito da ilimitada liberdade que a lei lhes autoriza para as condições
dos seus emprazamentos, e estes contratos nem nos Forais, nem mesmo
no Real Arquivo se podem examinar, por aí não existirem»57, ou seja, as
prestações enfitêuticas eram consideradas muito mais pesadas do que os
direitos de foral. Este postulado de base desembocava numa vertente
conservadora (propostas de reforma muito moderadas) e numa outra
progressiva (as primeiras propostas não se restringiam aos direitos fora-
leiros, estendendo-se à enfiteuse). Pelo contrário, nos últimos pareceres
da Comissão (que parecem ignorar os primeiros), da autoria de F. M.
Trigozo de Aragão Morato, parte-se desde logo do postulado da nature-
za tributária das prestações foraleiras para se proporem reformas que só
a estas diziam respeito58. Penso, desta forma, que se assiste a uma con-
taminação jurídica da crítica económica dos «encargos excessivos», que
acabará por conduzir a propostas mais radicais, mas, simultaneamente,
de âmbito mais restrito. Afirmação que é válida, sobretudo, para o dis-
curso agrário vintista, que acabará por decretar a primeira legislação
relevante sobre forais, uma vez que a única disposição legislativa impor-
tante entretanto publicada (o alvará de 15 de Abril sobre isenções de
direitos nas terras recém-arroteadas)59 só indirectamente tem a ver com
os problemas em questão60.
Nas vésperas da primeira revolução liberal afirmava Acúrsio das
Neves que «os obstáculos, que resultam do peso e desigualdade na dis-
tribuição dos encargos territoriais, como são as jugadas, quintos, terços
e outras exacções semelhantes, que onerando extraordinariamente os

57 Consulta da Comissão datada de 12 de Novembro de 1812.


58 A Comissão pronunciou-se sobre duas memórias, que foram posteriormente pu-
blicadas: Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), Discurso sobre a Reforma dos Foraes,
Lisboa, 1855; António Máximo Lopes, Memórias sobre Economia Agrícola..., Lisboa,
1891.
59 Cf. Alberto C. Meneses, op. cit., pp. 333 e segs.
60 A alusão à «questão dos forais» foi frequente na bibliografia do período, na qual
avulta a polémica entre Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão) e Manuel Fernandes
Tomás.

194
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

lavradores, pouco utilizam à Fazenda Real, evaporando-se pela maior par-


te ou nas despesas de cobrança, ou em ordenados dos exactores: tudo isto
são cousas tão sabidas e tão debatidas, que passam a lugares-comuns»61.
Com efeito, como afirma Silbert, «a identificação era completa, aos olhos
da opinião pública, entre o problema dos forais e o problema do regime
senhorial. Em rigor, trata-se de uma atitude contestável. Os forais são
cartas de direitos senhoriais, mas podem ser também cartas municipais.
Acontece mesmo (isso é corrente no Alentejo) que pertençam exclusi-
vamente à segunda categoria. Inversamente, também pode ocorrer que
os direitos senhoriais não estejam fixados num foral. Mas a frequência
do referido fenómeno é tal que não nos pode surpreender vê-lo erigido
em regra. Os forais tornam-se assim os símbolos do regime senhorial.
Insistimos sobre as consequências deste facto. Os forais, actos de direito
público, definem obrigações que o direito público pode rever 62 .» Na
verdade, embora reconheça que só durante a revolução liberal se acaba
por secundarizar o problema da necessidade de indemnização, não me
parece que se possa considerar meramente «retórico» ou circunstancial
o argumento do «carácter fiscal das prestações forais, que as retirava da
esfera do domínio privado»63. Com efeito, é essa a tese sustentada pela
maioria dos deputados vintistas: a invocação do carácter revogável das
doações régias e da natureza «fiscal» das prestações foraleiras permitia
estabelecer uma clara linha de demarcação entre o «público» e o «priva-
do» e compatibilizar o ataque ao regime senhorial com a consagração do
direito de propriedade, ou melhor, permitia demonstrar que o ataque ao
regime senhorial libertava a propriedade (entendida, de acordo com a
doutrina jusnaturalista, como o produto do trabalho64) das restrições que
a limitavam. Embora com consideráveis oscilações, este foi o critério de
demarcação que presidiu a todas as legislações liberais sobre a maté-
ria65.

61 Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa (int. e notas de Jor-


ge Custódio), Lisboa, 1983, pp. 107-108.
62 Le problème agraire portugais au temps des premières cortes libérales
(1821-1823), Paris, 1968, pp. 30-31.
63 A. M. Hespanha, O Jurista..., cit., pp. 79-80.
64 Cf. Pierre François Moreau, Les racines du libéralisme, Paris, 1978, pp. 33 e segs.
65 Desde o vintismo até Mouzinho e Alexandre Herculano.

195
Regime senhorial e revolução liberal

Aparentemente, ele fornecia «uma base jurídica extremamente favo-


rável» para os adversários do Antigo Regime66. Só que a identificação
tendencial entre questão agrária e questão dos forais tendeu a encobrir o
facto de que, simultaneamente, se restringia o âmbito da legislação.
O reverso da medalha foi, com efeito, o facto de nem a legislação liberal
de 1822 nem a de 1832 modificarem, reduzirem ou abolirem as disposi-
ções sobre a enfiteuse em «bens patrimoniais», cuja existência e quadro
legal se prolongaram depois de 1834...
Um dos objectivos deste texto será, precisamente, o de confrontar o
discurso e a legislação foraleira vintistas (e as expectativas que lhes
eram inerentes) com a realidade social à qual pretendiam reportar-se.
Para tal apresentarei brevíssimas notas sobre os debates que antecede-
ram a aprovação dos três decretos que directamente diziam respeito ao
problema dos forais e dos bens da coroa: o decreto dos bens nacionais, o
decreto sobre os direitos banais e serviços pessoais e os decretos sobre os
forais.
Comprovando a forma determinante como a questão financeira afec-
tou toda a legislação agrária vintista67, a redacção do projecto de decreto
sobre os bens nacionais surgiu a meio do debate sobre a amortização da
dívida pública68. Surpreendentemente, a aprovação do primeiro artigo
do decreto (que afirmava o princípio de que todos os bens da coroa eram
bens nacionais) não terá dado lugar a grande discussão69, o que talvez se
explique pelo facto de ainda não se ter definido com precisão o que se
entendesse por bens da coroa70. Em todo o caso, se um dos objectivos
imediatos daquele artigo era retirar ao rei a possibilidade de fazer novas
doações71, é evidente que a afirmação daquele princípio criava condi-
ções muito favoráveis para que, futuramente, se legislasse de forma

66 A. Silbert, «O feudalismo português...», cit., p. 90.


67 Cf. Miriam Halpern Pereira, Revolução, Finanças e Dependência Externa, Lisboa,
1979, pp. 12 e segs.
68 Diario das Cortes geraes extraordinárias e constituintes... (D. C. ), Fevereiro de
1821, vol. I, p. 132.
69 Ibid., p. 155.
70 Cf., por exemplo, a intervenção do deputado J. M. Castelo Branco, ibid., p. 209.
71 É preciso ter em conta que nessa altura (Fevereiro de 1821) os deputados alimen-
tavam todas as suspeitas quanto à futura actuação do monarca.

196
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

mais radical sobre a matéria. Mas, simultaneamente, a aprovação daque-


le princípio encerrava um indiscutível «efeito perverso», que os deputa-
dos conservadores não deixaram de explorar: uma vez sancionado,
podia argumentar-se que toda e qualquer diminuição dos direitos fora-
leiros acarretava uma quebra, presente ou futura, nos rendimentos da
Fazenda. A discussão acabou por se centrar sobre dois tópicos: por um
lado, sobre se as comendas eram, ou não, bens da coroa e, por outro,
sobre a «grande questão», ou seja, se ao não se respeitar o prazo (vidas)
de doação dos bens da coroa não se estava a atacar o direito de proprie-
dade72. As Cortes acabariam por aprovar que, por morte dos donatários
e comendadores, os bens da coroa e comendas reverteriam para o Esta-
do, para serem aplicados à amortização da dívida pública, «ainda nos
casos de haver neles vida ou vidas», podendo ser vendidos. No entanto,
porque todos (até Borges Carneiro) reconheciam que essa era uma ori-
gem legítima da propriedade 73 , exceptuavam-se do disposto os que
«tivessem sido concedidos em remuneração de serviços, decretados na
forma da lei» (e não por capricho do monarca), ou seja, de acordo com o
Regimento das Mercês, prevendo-se ainda a próxima criação de uma
nova Junta das Confirmações Gerais74. Deve notar-se que nenhuma des-
tas disposições, que podiam atacar fortemente as casas de donatários
laicos antigos, afectava minimamente os bens da coroa que estavam na
posse de donatários eclesiásticos. Estes viriam, no entanto, a ser forte-
mente atingidos pela política tributária vintista, que não será aqui anali-
sada.
Quanto à discussão sobre o decreto dos direitos banais e serviços
pessoais, há a considerar que ele abolia três tipos de direitos que na
legislação espanhola de 1811 (na qual o decreto se baseava) 75 foram
abrangidos, juntamente com as jurisdições, na definição restritiva de
direitos senhoriais: os serviços pessoais; os monopólios senhoriais e
locais, e «todas as obrigações, e prestações consistentes em frutos,

72 Cf. D. C., 1821, vol. I, pp. 329 e segs.


73 Uma vez mais podia ser considerada como o pagamento do trabalho (serviços) de
um indivíduo (cf. nota 63).
74 D. C., 1821, vol. I, p. 344. O decreto foi publicado em 5 de Maio de 1821.
75 É o que afirma Soares Franco, ibid., p. 293, que foi quem apresentou o projecto
de decreto, antecedido de uma memória (D. C., 1821, vol. I, p. l8).

197
Regime senhorial e revolução liberal

dinheiro, aves, ou corazis, impostas aos Habitantes de qualquer povoa-


ção, ou distrito; a favor de algum Senhorio, pelo simples facto de vive-
rem naquela Terra, por terem nela Casa, ou Eira, por casarem, por irem
buscar água às fontes públicas, ou a elas levarem seus Gados, por acen-
derem fogo, por terem animais ou por quaisquer títulos de igual, ou
semelhante natureza» 76 . Se os fundamentos e objectivos gerais deste
decreto quase não geraram debate, o aspecto mais interessante e mais
polémico que a aprovação do mesmo revestiu consistiu no facto de a
abolição dos serviços pessoais se não restringir aos que eram devidos a
donatários de bens da coroa, mas se estender explicitamente aos decor-
rentes de todo o tipo de contratos enfitêuticos, ao contrário do que veio a
acontecer com a lei dos forais. Apesar de o problema em questão ter
pouco significado quantitativo77, isto quer dizer que, ao alargar inequi-
vocamente o seu âmbito aos contratos feitos sobre «bens patrimoniais»,
a lei dos banais foi qualitativamente mais radical do que a lei dos forais.
No debate sobre esta questão, os intervenientes dividiram-se em três
posições diferentes: a daqueles que rejeitavam qualquer extinção das
obrigações decorrentes de aforamentos «particulares», por a considera-
rem uma «ofensa que se fazia à propriedade» (Correia de Seabra)78; a
daqueles que defendiam a sua abolição sem indemnização em todos os
casos, recorrendo, entre outros argumentos, à teoria do juro usurário
(Borges Carneiro), ou à legitimidade de restringir o direito de proprie-
dade em nome dos direitos naturais («a propriedade foi introduzida para
ressalvar os direitos naturais do homem: portanto desde o momento em
que ela se lhe opõe deixa de existir» (J. M. S. Castelo Branco)79; e,
finalmente, a posição intermédia, que acabou por triunfar, daqueles que
sustentavam que a abolição dos serviços pessoais adquiridos por «título
oneroso» tinha de se fazer com indemnização. Deve notar-se, por fim,
que alguns deputados consideravam ambíguo o significado da palavra
banal e o disposto no artigo 3.º do decreto (atrás citado), podendo tornar

76 Ibid., pp. 433-434.


77 São raras as referências a geiras decorrentes de foral. Mas ainda persistiam em
1824, por exemplo, em Vila Caiz (c. Penafiel), no couto da Trapa de Lafões (c. Viseu) e
em paróquias da provedoria de Aveiro.
78 D. C., 1821, vol. I, p. 304.
79 Ibid., p. 306.

198
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

«desnecessário [...] o trabalho da reforma dos Forais, porque reforma


tudo, abolindo tudo» (Serpa Machado80). Parece que em alguns casos
não deixaram de ter razão81, tanto mais que o artigo 3.º da lei dos forais
reforçou essa ambiguidade82.
Quanto ao volumoso e fascinante debate sobre a lei dos forais, que se
estendeu durante mais de um ano, terei de me limitar a chamar a atenção
para alguns dos seus tópicos mais importantes. A base jurídica invocada
pela maioria esmagadora dos deputados para legitimar a reforma foi a
insistência na natureza pública das prestações forais, fundamento de
(quase) todos os discursos e legislações liberais sobre a matéria e para o
qual o decreto sobre os bens nacionais preparara o terreno. Simultanea-
mente, os forais eram considerados pela maioria um entrave decisivo ao
desenvolvimento da agricultura. Com efeito, considerava-se logo no
inquérito preliminar sobre a lei dos forais (da autoria de Soares Franco),
dentro de uma perspectiva claramente marcada pela economia política
liberal, que, se «o interesse individual é a mola real que conduz os
homens a empreenderem os maiores trabalhos e riscos», «o interesse do
lavrador, para ser verdadeiramente racional, há-de corresponder ao juro
ordinário da lei, tiradas as despesas do custeamento»83, o que era obsta-
culizado pelo peso excessivo de parte dos forais. Ideia do interesse indi-
vidual que estava também estreitamente associado a uma (nova) noção
de propriedade, com a qual os forais também se chocavam: «Reunindo-
-se na mesma Pessoa o domínio útil com o directo, é que se pode rapi-
damente aperfeiçoar a cultura das terras84.» Por tudo isto, a maioria con-
siderava, tal como o deputado Manuel Gonçalves de Miranda, que, «de
todas as questões que se têm tratado no Congresso relativas a leis agrá-
rias, esta é a de maior importância»85, embora talvez nem todos aceitas-

80 Ibid., p . 363. O decreto dos banais foi publicado com data de 7 de Abril de 1821.
81 Há, por exemplo, uma carta de Alberto Carlos de Meneses em que isso se denun-
cia já em 1824 (A. H. P., I/II, cx. 112).
82 O artigo 3.º do decreto de 3 de Junho de 1822 veio alargar o âmbito das presta-
ções abolidas.
83 D. C., 1821 (Maio), vol. II, «Memória sobre a reforma dos foraes», pp. 1112-
-1113. Já antes se haviam apresentado algumas propostas parcelares.
84 Ibid., p. 1116.
85 Ibid., vol. III, p. 2922.

199
Regime senhorial e revolução liberal

sem a ideia de que «o dia em que se extingam todos os forais é o dia


mais belo para Portugal [...] pois florescerá a agricultura, florescerá o
comércio, os habitantes se acharão mais comodamente, e poderão assim
mais comodamente contribuir, tirando a Nação, e cada indivíduo dela o
produto da prosperidade geral»86. Deve notar-se, por fim, que o caso
francês (frequentemente evocado por Soares Franco e Borges Carneiro)
pairou sempre sobre os debates, tendo-se chegado a desencadear algu-
mas breves polémicas suscitadas por «louvores à noite de 4 de Agos-
to»87.
Entretanto, há alguns aspectos fundamentais deste debate que podem
passar despercebidos. Ao contrário da lei de 1832, as disposições da lei
de 1822 reportavam-se exclusivamente a prestações decorrentes de
forais. Só que, em oposição à lei de Mouzinho, que, tomando como cri-
tério essencial de destrinça do que era o domínio do público a figura de
doação régia (e não a existência de foral), aboliu todas as prestações
(foraleiras, enfitêuticas e subenfitêuticas) daí decorrentes 88 , e da de
1846, que, legislando diversamente sobre as prestações forais e sobre as
enfitêuticas em bens da coroa, fornecia um critério relativamente claro
para se poderem distinguir umas das outras (distinção entre «título gené-
rico» e «título especial»)89, a noção de foral subjacente aos debates e à
lei vintista era bastante confusa. Com efeito, embora teoricamente os
forais a que a lei se reportava fossem os forais régios medievais, e não
os forais manuelinos e novíssimos90, constantes do livro de Franklin91,
uma grande parte dos deputados pensava (erradamente) que todas as
formas de enfiteuse em bens da coroa decorriam de (ou do abuso de)
direitos consignados em cartas de foral (estendendo, portanto, as suas

86 Ibid., p. 3123.
87 Ibid., 1822, t. IV, p. 514.
88 Cf. M. Halpern Pereira, op. cit., pp. 162 e segs. O projecto oficial, ou seja, da
Comissão de Agricultura, foi apresentado com data de 4 de Agosto de 1821 (D. C.,
1821, vol. III, pp. 2818-2819).
89 Cf., sobre todas as implicações da lei, F. A. da Silva Ferrão, Repertório comenta-
do sobre Forais e Doações Régias, Lisboa, 1848.
90 Cf. Francisco Soares Franco, Explanação à lei de 5 de Junho de 1822 sobre re-
forma dos Foraes, Lisboa, 1822, p. 4.
91 F. Nunes Franklin, Memória para Servir de Índice dos Forais das Terras do Rei-
no de Portugal e seus Domínios, Lisboa, 1816.

200
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

propostas àquelas situações apenas nestes casos92). Expoente máximo


deste tipo de confusão terá sido Manuel Fernandes Tomás, que chegou a
afirmar que «os forais eram convenções autorizadas pelo mesmo foral»
(sic)93. A formulação final da lei foi suficientemente ambígua para que se
pudesse pensar que a mesma se aplicava à enfiteuse (e até à subenfiteuse!)
em bens da coroa em concelhos onde nem sequer havia foral94.
Uma outra dimensão extremamente importante desta discussão, que
até agora nunca foi destacada, tem a ver com o facto de o debate se ter
confinado quase exclusivamente às prestações foraleiras parciárias: o
primeiro projecto de lei praticamente só a elas se refere e a simples lei-
tura do artigo 1.º da versão final detecta que a redução a metade das
prestações fixas foi acrescentada posteriormente, tendo sido aprovada
por escassa maioria95. A análise que adiante se apresenta das petições
recebidas pelos deputados permite compreender facilmente por que é
que assim aconteceu. Este aspecto do debate prende-se estreitamente
com um outro: os exemplos concretos sobre contextos senhoriais mais
frequentemente invocados pelos deputados radicais foram retirados de
concelhos do Centro Litoral. Com efeito, o caso maior número de vezes
aduzido foi o dos coutos de Alcobaça96. Espero conseguir demonstrar
que isso não ocorreu acidentalmente, como não foi por acaso que a
maioria dos deputados conservadores se socorreram sistematicamente
de exemplos tirados do Minho.

92 É esta, pelo menos, a minha leitura da lei, embora só tenha pretendido alargá-la a
todas as formas de enfiteuse em bens da coroa (cf. folheto Nova explanação..., cit.).
93 D. C., 1822, vol. III, p. 3682.
94 Cf. a petição de Cambeses (comarca de Braga), Silbert, Le problème agraire por-
tugais…, cit., pp. 276-277, e o panfleto sobre o Minho atrás citado. Não oferece dúvidas,
quanto a mim, que os deputados que o aprovaram não alargavam o decreto sobre os
forais à enfiteuse em bens da coroa na ausência de foral: a proposta da extensão da pos-
sibilidade de remição de foros, prevista no decreto, às capelas da coroa (avançada por
Alves do Rio) foi claramente rejeitada (D. C., 1822, t. IV, p. 900). No entanto, o decreto
foi aplicado em alguns casos àquelas situações.
95 Por 47 votos a favor e 34 contra (D. C., 1822, vol. IV, p. 526).
96 Depois das províncias referidas na generalidade (a Beira e o Minho, principal-
mente), a outra referência é a comarca, zona, etc., de Coimbra.

201
Regime senhorial e revolução liberal

Quanto às opções de base da legislação foraleira vintista, considero


que foram, no essencial, três: a abolição, a redução a metade e a simples
fixação das prestações foraleiras parciárias. Pela abolição total se mani-
festaram não apenas Manuel Borges Carneiro, mas um grupo de 15 depu-
tados que fez questão de redigir uma declaração de voto97. A maioria, que
aprovou apenas a redução a metade de todas as prestações foraleiras, a
obrigatória fixação das que fossem parciárias e a posterior possibilidade
de remição das meias prestações foraleiras que continuariam a vigorar
(com a inerente indemnização dos donatários), não o fez porque tivesse
sobre a natureza dos forais uma concepção fundamentalmente diversa
da dos deputados abolicionistas, mas sim por considerações de ordem
financeira (quebra nos rendimentos públicos) e política, visto que opi-
nava que as corporações religiosas, a Universidade, os títulos, etc., «não
se sustentam de outra coisa», pretendendo que se «conciliem os interes-
ses gerais da Nação, com os interesses de muitos indivíduos que comem
disto» (M. F. Tomás98). Por fim, a minoria conservadora não aceitava
senão a transformação das prestações foraleiras parciárias em prestações
fixas, sustentando, entre outros argumentos, que os forais tinham natu-
reza contratual, que ao serem reduzidos ou abolidos se atacava o direito
de propriedade, etc.
Um dos aspectos mais importantes deste debate, entretanto, tem a ver
com o facto de os deputados que se opuseram à abolição terem reiterado
insistentemente duas opiniões que interessam directamente ao tema des-
te trabalho. Em primeiro lugar, que os forais raçoeiros só abrangiam
significativamente parcelas das províncias da Beira e da Estremadura e
que os colonos raçoeiros não passavam de uma minoria (estimada no
máximo de 40 000 famílias), pelo que a abolição daquelas prestações
seria «um favor limitado a uns poucos de indivíduos particulares, em
prejuízo da totalidade da Nação»99, visto que se considerava que a que-
bra nos rendimentos da Fazenda que daí decorreria iria obrigar ao lan-
çamento de novos impostos100. Em seguida, sustentavam que os benefi-

97 D. C., 1821, vol. III, p. 3125.


98 Ibid., p. 2830.
99 Ibid., p. 3118.
100 Como se disse, a votação do decreto dos bens nacionais acabou por ter este «e-
feito perverso».

202
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

ciários da abolição dos direitos foraleiros seriam, em muitos casos, ren-


tistas intermédios: a abolição «não é um benefício geral: esta extinção
resulta em utilidade dos proprietários, e nenhuma tem os agricultores,
que é o maior número. A porção que se abate aos proprietários, é a
mesma com que hão-de sobrecarregar os prédios, que arrendarem aos
pobres lavradores...» (Manuel Castelo Branco 101 ); «ainda hoje pela
maior parte do Reino os proprietários acham muito quem lhes queira
tomar as suas terras de meias. E se não há lesão, se não há injustiça em o
secundário Senhor receber metade do rendimento do prédio que não cul-
tiva; que lesão, que injustiça se pode considerar em receber o primário
Senhor, o quarto, o quinto ou o oitavo?» (Bastos)102.
Convirá referir que vários deputados defenderam, ocasionalmente, o
estabelecimento, em substituição da multiplicidade de forais existentes,
de uma prestação única (normalmente de 5%)103, apresentada confusa-
mente ora como um foral único (e, logo, pago como tal aos diversos dona-
tários), ora como um imposto único de Estado. Esta medida, a ter sido
aplicada, teria tido, porventura na maior parte do país, consequências
desastrosas para o fim projectado (o aligeiramento dos encargos), visto
que representaria em muitas zonas uma punção maior do que a decor-
rente dos direitos foraleiros que antes se pagavam.
Se inicialmente foi em torno das alternativas atrás referidas que os
deputados se dividiram, a discussão e votação dos posteriores artigos do
decreto conduziu à formação de novas e variáveis maiorias. Ao longo de
todos os debates, os mais persistentes e afincados representantes da ala
conservadora foram o desembargador portuense José Peixoto Sarmento
de Queiroz (deputado pelo Minho) e o lente de leis da Universidade José
Vaz Correia de Seabra de Lacerda (deputado pela Beira), embora oca-
sionalmente outras vozes se lhes juntassem (Pinheiro de Azevedo,
Camelo Fortes, Silva Correia, etc.). A única vitória deste sector foi obti-
da quando, contra a proposta da Comissão de Agricultura, conseguiram
que na votação final do artigo 8.º do decreto se salvaguardasse o princí-
pio de que as câmaras eram obrigadas a respeitar «o uso e direitos» dos

101 Ibid., p. 3121.


102 Ibid., p. 3115.
103 A proposta de um foral único fora apresentada ao congresso por Alberto Carlos
de Meneses, que depois a retomou no Plano de Reforma dos Forais...

203
Regime senhorial e revolução liberal

povos na administração dos baldios e maninhos104. De entre os 15 depu-


tados abolicionistas (5 eleitos pela Estremadura, 4 pelo Brasil e 3 por
Trás-os-Montes), destacaram-se dois juristas (Manuel Borges Carneiro e
José J. Ferreira de Moura), dois matemáticos (Manuel Gonçalves de
Miranda e Francisco Simões Marchichi) e João M. Castelo Branco. Deve
notar-se, no entanto, que, depois da votação das bases da reforma dos
forais, a defesa das posições mais radicais coube, em muitos casos, a
deputados não abolicionistas, neles se incluindo membros da Comissão
de Agricultura (B. Pereira do Carmo, F. L. Betencourt, etc.).
Para terminar, convém referir que durante o debate se discutiram,
ocasionalmente, disposições que afectavam a enfiteuse em bens patri-
moniais. Se já na discussão sobre o decreto dos banais o problema surgi-
ra a propósito dos serviços pessoais, agora voltaria a ser colocado por
causa dos laudémios (o projecto de artigo que os fixava na quarentena
pretendia estender-se a todas as enfiteuses) e, de forma menos directa, a
propósito da remição das prestações fixas. Na verdade, a maioria dos
deputados opôs-se ao projecto de J. J. Rodrigues de Bastos, que defen-
dia que «a distinção entre laudémios constantes de forais e de contratos
não tem lugar, porque a iniquidade de uns e outros é a mesma, e para
males iguais, iguais remédios», com o argumento de que «a fé dos con-
tratos deve ser sagrada: mas é quando eles não ofendem as leis, nem a
equidade natural: ofendendo-as são nulos, e não devem observar-se»105.
De facto, esta tese ultrapassava a dicotomia bens da coroa (assimilados
em impostos)/bens patrimoniais (identificados com a propriedade),
característica de quase todo o discurso liberal sobre a matéria (incluindo
Mouzinho e Herculano)106, para admitir restrições ao direito de proprie-
dade em nome do direito natural que transcendem, em minha opinião, as
barreiras clássicas do pensamento liberal.

104 D. C., 1822, t. IV, p. 896.


105 Ibid., vol. III, p. 3689.
106 O texto mais impressionante a este respeito é talvez o de Alexandre Herculano,
«Sobre a questão dos forais» (1858), in Opúsculos, II (org., int. e notas de J. Custódio e
J. M. Garcia), Lisboa, 1983, pois nele se defende vigorosamente a manutenção da enfi-
teuse e subenfiteuse sobre bens patrimoniais (contra propostas de remição global), ao
mesmo tempo que se apoia, com igual vigor, a sua abolição quando estabelecida sobre
bens da coroa, de acordo com a lei de Mouzinho.

204
«A questão dos forais» na conjuntura vintista

É por isso que a reacção contrária da maioria dos deputados, incluindo


uma grande parte dos que tinham defendido a abolição dos forais, foi
bastante violenta: «levanto-me para combater um princípio que julgo
muito contra a sociedade, qual é que o pobre não pode contratar com o
rico» (Camelo Fortes)107. A redução dos laudémios acabaria, desta for-
ma, por se restringir aos decorrentes dos forais. No mesmo sentido, o
receio de contagiar a enfiteuse «particular» faria com que a possibilida-
de de remição das prestações fixas decorrentes de foral só fosse aprova-
da por uma maioria muito tangencial: «A remição das pensões, proposta
no presente artigo, iria dar cabo do contrato enfitêutico [...] vejo que
aqui por agora não se trata de pensões enfitêuticas, mas adoptada a me-
dida para estas, passaria a todas as outras por identidade de razão: ao
menos não haverá mais quem se resolva a fazer emprazamento, com
receio da sua insubsistência» (Peixoto)108. Curiosamente, seria só em
Abril de 1822, quando se discutiam os últimos artigos do decreto, que
um deputado defendeu «o princípio geral de que todas as pensões e
foros, que se pagam a donatários e senhorios particulares são resgatá-
veis, bem como os que se pagam à coroa e seus donatários, com a única
diferença que naqueles não terá lugar a diminuição das pensões e foros
que já se acha decretada para estes»109. Sustentada por um membro da
Comissão que nem sequer votou pela abolição dos forais (Bento Pereira
do Carmo), esta tese não encontrou na altura um único apoiante, pois a
maioria, fiel à distinção entre bens da coroa e bens patrimoniais, pensa-
va que o problema, na melhor das hipóteses, «em outra lei pode embora
tratar-se, mas nesta não». Em todo o caso, se bem que a título oneroso,
«eis proposta a extinção da enfiteuse» (Peixoto).
Na verdade, o decreto de 13 de Agosto de 1832, que viria a abolir
as prestações foraleiras, censíticas, enfitêuticas e subenfitêuticas em
bens da coroa, também não afectou minimamente a enfiteuse em bens
patrimoniais. Mas, porque se estendia explicitamente à enfiteuse em
bens da coroa, os riscos de contágio eram demasiados para que não
suscitasse, também por isso, forte oposição.

107 D. C., 1822, vol. III, p. 3685.


108 Ibid., vol. IV, pp. 786-787.
109 Ibid., t. IV, p. 896.

205
Regime senhorial e revolução liberal

Valerá a pena acrescentar que não foi só em 1832 que os liberais


procuraram, através da lei dos forais, fazer «bula de propaganda em
liberalismo»110. Também em 1822 se investiu politicamente na legisla-
ção foraleira, determinando-se que o decreto de 3 de Julho fosse lido
quatro domingos a fio em todas as câmaras do país111: tanto naquelas
cuja população havia solicitado insistentemente através de petições a
realização da reforma como nas que nem sequer tinham foral...

110 Mouzinho de Silveira, in M. Halpern Pereira, Revolução..., cit., p. 171.


111 As câmaras tiveram de enviar certificados comprovativos de terem lido a lei dos
forais durante quatro domingos sucessivos [circular de 5 de Julho de 1822, 4, ANTT,
Intendência-Geral da Polícia (IGP), correspondência dos corregedores..., liv. 28].

206
2. A GEOGRAFIA DAS PETIÇÕES E DOS CONFLITOS
(1821-1824)*

Ao conferirem um indiscutível realce à «questão dos forais», os depu-


tados vintistas que mais frequentemente intervieram no debate apoiavam-se
não apenas em experiências pessoais, mas nas solicitações de um impor-
tante movimento peticionário anti-senhorial, cuja documentação foi par-
cialmente publicada por Silbert112. Embora tenha encontrado muitas ou-
tras petições sobre direitos senhoriais que não se encontram nos papéis
da Comissão de Agricultura das Cortes113, utilizarei apenas as que fo-
ram publicadas, na tentativa de fornecer uma caracterização de conjunto
do movimento114. Em boa verdade, foram estes requerimentos que, de
forma mais imediata, influíram nas intervenções e nas propostas dos
deputados vintistas.
Quanto à geografia do movimento peticionário, não oferece dúvidas
que o foco de maior intensidade se situa na comarca e provedoria de
Coimbra, prolongando-se a mancha pela Beira Litoral e Estremadura oci-
dental: não estamos longe, portanto, de um movimento baseado funda-
mentalmente no Centro Litoral, ou, se se preferir, naquilo que era a

* Cf. p. 179.
112 Le problème agraire portugais au temps des premières cortes libèrales (1821-1823),
Paris, 1968.
113 Cf., por exemplo, Arquivo Histórico Parlamentar (AHP), I/II, cxs. 4 e l0. Uma peti-
ção do reguengo de Tavira foi alvo de deliberação específica [Diario das Cortes (D. C.),
1822, t. VI, pp. 358-359].
114 Análise desenvolvida em Forais e Regime Senhorial: os Contrastes Regionais
segundo o Inquérito de 1824, Lisboa, ISCTE, 1986, capítulo II (prova de capacidade
científica, mimeo.).

207
Regime senhorial e revolução liberal

comarca da Estremadura, quando se realizou a reforma manuelina dos


forais. Esta mancha estende-se por duas zonas da Beira Alta central, que
parecem coincidir parcialmente com as áreas do Dão e do Douro115. Se
em zonas como Coimbra, Tentúgal e Alcobaça o movimento peticionário
corresponde certamente a um maior peso efectivo e geral do regime senho-
rial, não é líquido que assim seja em todo o Centro Litoral. No entanto, o
grande problema que a documentação levanta e não permite resolver é
outro: como explicar o reduzido número de petições do Minho e, sobretu-
do, a quase ausência de petições de Trás-os-Montes e Algarve? Pelo iso-
lamento social e cultural ou pela menor incidência do regime senhorial?
Silbert inclina-se claramente para a primeira opinião116. O número relati-

115 Para o efeito, considerou-se ser uma «petição anti-senhorial» toda a que alude
criticamente a um contexto senhorial (daí que o total seja de 90, e não o indicado por
Silbert, op. cit., pp. 31-32).
O quadro anterior sugere o peso esmagador da Beira: representando menos de um
terço dos fogos do país, perfaz 61,3 % do total dos concelhos, 62,2 % do total das po-
voações e 62,2 % do total das petições enviadas. No entanto, este quadro distorce clara-
mente os factos, porque na maior parte das comarcas da Beira Baixa e Interior (Castelo
Branco, Guarda, Linhares, Pinhel e Trancoso) são escassas ou nulas as petições remeti-
das, que começam a tornar-se mais numerosas na Beira Alta central (Lamego e Viseu).
Sobre a frequência de conflitos com senhorios no Centro Litoral durante o século
XVII, cf. Luís Ferrand de Almeida, «Motins populares no tempo de D. João V. Breves
notas e alguns documentos», in Revoltas e Revoluções, Revista de História das Ideias,
n.º 6, 1984, Maria Margarida Sobral Neto, «Uma provisão sobre foros e baldios: pro-
blemas referentes a terras de «logradouro comum» na região de Coimbra no século
XVII», in Revista de História. Económica e Social, n.º 14, 1984, e J. M. Tengarrinha,
«Movimentos camponeses em Portugal na transição do Antigo Regime para a sociedade
liberal», in O Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do Século XIX,
Lisboa, 1982, 2.º vol. [Posteriormente à edição original deste texto foram publicados
dois trabalhos essenciais sobre o tema: José Tengarrinha, Movimentos Populares Agrá-
rios em Portugal (1751-1825), 2 vols., Lisboa, 1994-1995; Margarida Sobral Neto, Ter-
ra e Conflito. Região de Coimbra (1700-1834), Coimbra, 1997.]
116 Com efeito, na primeira versão de «O feudalismo português e a sua abolição»
chega a afirmar-se que «a província do Minho era, na opinião geral, aquela onde a ques-
tão dos forais se colocava de forma mais aguda» [La Abolición del Feudalismo en el
Mundo Occidental (ed. original, Paris, 1971), Madrid, 1979, p. 160, nota 39]. Na citada
edição portuguesa do mesmo texto (in Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oito-
centista, Lisboa, 1972, p. 104) essa referência foi suprimida. Esta oscilação poderá ser
explicada pelo facto de, depois de 1832-1834, o Minho se ter tornado (de acordo, por
exemplo, com Silva Ferrão) o centro presumidamente mais importante dos conflitos
relacionados com a «questão dos forais», pelo facto de a lei de 1832 (ao contrário da de

208
A geografia das petições e dos conflitos (1821-1824)

vamente avultado de petições alentejanas exprime, não parece necessário


duvidá-lo, as excepções à regra da debilidade dos direitos foraleiros no
Portugal mediterrânico, que era, no conjunto, a região com maior capa-
cidade reivindicativa.

Distribuição geográfica do movimento peticionário


anti-senhorial vintista

[QUADRO N.º 1]

Conce- Movimento peticionário


Per- lhos
Fogos Núme-
Província centa- (per- Conce- Per- Povoa- Per- Peti- Per-
(1820) ro
gem centa- lhos centa- ções centa- ções centa-
gem) gem gem gem

Minho.................. 191 480 25 154 18,8 7 9,3 9 11 13 14,4


Trás-os Montes.... 70 255 9,2 75 9,2 2 2,7 2 2,4 2 2,2
Beira.................... 232 610 30,4 343 41,9 46 61,3 51 62,2 56 62,2
Estremadura......... 161 065 21,0 118 14,4 12 16 12 14,6 10 11,1
Alentejo............... 80 960 10,6 111,5 13,7 8 10,7 8 9,8 9 10
Algarve................ 29 025 3,8 15,5 1,9 0 0 0 0 0 0
Total............... 765 395 − 817 − 75 − 82 − 90 −

Direitos principais que pagavam as povoações peticionárias

[QUADRO N.º 2]

Direito principal Número de povoações Percentagem


Ração.................................................................. 55 67,2
Jugada................................................................. 10 12,2
Prestação fixa em géneros.................................. 11 13,4
Prestação fixa em dinheiro................................. 0 0,0
Indeterminado.................................................... 6 7,3
Total.............................................................. 82 100,0

1822) se estender à subenfiteuse (cf., sobre o assunto, a comunicação apresentada por


Fernando Dores Costa ao mesmo colóquio no qual este texto foi discutido) [cf. Fernando
Dores Costa, «Flutuações da fronteira da legitimidade da intervenção legislativa anti-
-senhorial nos debates parlamentares para a revisão do decreto dos forais de 1832 (1836-
-1846)», in Revista Portuguesa de História, t. XXIII].

209
Regime senhorial e revolução liberal

Em mais de dois terços das povoações que enviaram petições, o prin-


cipal direito senhorial era constituído por prestações raçoeiras, embora
estas pudessem não ser o motivo imediato de conflito117. Compreende-se,
assim, por que é que as propostas legislativas dos deputados vintistas
quase só se reportavam a este tipo de direitos. Ora, se são as prestações
raçoeiras que surgem dominantemente associadas a contextos senhoriais
potencialmente conflituais, a sua distribuição geográfica estava longe de
ser homogénea, concentrando-se, precisamente, de acordo com várias
fontes qualitativas, no Centro Litoral. Da mesma forma, foi da Beira que
se remeteu a maior parte das petições que aludem a conflitos com se-
nhorios a propósito de baldios e maninhos118.

Senhorios referidos em petições remetidas às cortes vintistas

[QUADRO N.º 3]

Senhorios Referências Percentagem


Eclesiásticos..................................................... 31 32
Leigos............................................................... 30 30,9
Ordens militares (comendas) (a)...................... 8 8,2
Universidade.................................................... 7 7,2
Coroa................................................................ 1 1
Casas de Bragança, do Infantado, das rainhas
e almoxarifado da de Aveiro (b).................. 10 10,3
Senhorios não discriminados........................... 10 10,3
Total de referências..................................... 97 _
Total de povoações..................................... (c) 82 _

(a) Os respectivos comendadores não são, em regra, referidos.


(b) Almoxarifado da extinta casa de Aveiro.
(c) O total de povoações é inferior ao total de referências porque em várias povoa-
ções se alude a mais do que um senhorio.

117 Naturalmente, os «direitos principais» combinavam-se sempre com outros (juga-


da do pão com ração de vinho e linho, ração com fogaça ou com foro fixo, etc.). Por
motivos de espaço deixei de lado todos os problemas relativos aos direitos de portagem,
bem como o debate dos deputados sobre o assunto.
118 No conjunto, as petições que aludem ao problema representaram 10% do total.
Mais de metade protesta contra o facto de os donatários, a quem os forais concediam o
direito de imporem foros sobre os maninhos arroteados, os aforarem sem antes ouvirem
a câmara e povos.

210
A geografia das petições e dos conflitos (1821-1824)

Os promotores do movimento peticionário são, em metade dos casos,


as câmaras e, na maior parte dos restantes, elementos das minorias letra-
das locais, que fornecem, por outro lado, a maior parcela dos subscritores.
Além disso, é possível encontrar em quatro petições contra senhorios alu-
sões à escassez de mão-de-obra. Pelo contrário, os senhorios contestados
são, quase exclusivamente, ou eclesiásticos (cabidos e mosteiros), ou a
nobreza de corte (os titulares), ou as casas da família real119, quer dizer,
elementos exteriores à sociedade local, cuja hierarquia o movimento peti-
cionário tende, desta forma, a reproduzir. Isto ajuda a explicar que as
diversas formas de rendas percebidas pelas categorias superiores das colec-
tividades locais (provenientes de contratos de aforamento, de subempra-
zamento ou de arrendamento e parceria) quase sejam poupadas à contes-
tação, o que não quer dizer que não fossem, em muitos casos, as que
mais pesavam sobre os produtores directos.
Se o movimento não pode, como se viu, ser considerado um movi-
mento «camponês», também será um pouco excessivo identificá-lo
estritamente com uma burguesia rural ligada a formas «capitalistas» de
exploração agrária. Com efeito, entre os seus promotores ter-se-ão con-
tado muitos fidalgos e rentistas. No entanto, é certamente impossível
dissociar o movimento peticionário das mutações qualitativas e quantita-
tivas propiciadas pelo período (finais do século XVIII, princípios do
século XIX) que precedeu a conjuntura da revolução liberal, no qual o
desenvolvimento da produção mercantil foi certamente uma das verten-
tes. Por outro lado, a notória absorção do vocabulário das elites refor-
mistas pelos notáveis locais, que as petições revelam, constitui uma
mutação cultural de primeira grandeza, sintoma da formação de uma

119 Mais de dois terços dos donatários leigos eram titulares, enquanto a maior parte
dos senhorios eclesiásticos referenciados eram mosteiros cistercienses. [O peso dos di-
reitos de foral raçoeiros nos rendimentos das ordens religiosas pode ser avaliado a partir
do estudo de Fernando Dores Costa, «Efeitos da lei dos forais de 1822 sobre os rendi-
mentos das ordens religiosas», in Fernando Marques da Costa et. al. (coord.), Do Antigo
Regime ao Liberalismo, 1750-1850: Perspectivas de Síntese, Lisboa, 1989. A importância
que os mesmos direitos tinham para uma parte das casas titulares pode constatar-se em
Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da Aristo-
cracia em Portugal (1750-1832), Lisboa, 1998, pp. 287-295.]

211
Regime senhorial e revolução liberal

sensibilidade «pré-revolucionária»120, que se não pode desligar, quer


das aludidas mutações económicas e sociais, quer de um provável
aumento dos graus de alfabetização, quer da difusão da «literatura eco-
nómica» desde finais de Setecentos.
Por fim, a documentação peticionária de 1821-1823 fornece indica-
ções sobre os destinos do decreto dos forais, tornando possível detectar
dificuldades relacionadas com a sua aplicação, do Minho ao Alentejo.
Se na comarca de Alcobaça (cujo donatário enviou duas petições às
Cortes)121 o problema é o de ter sido levada demasiado longe a sua con-
cretização, na maior parte dos outros casos é o problema da distinção
entre forais e enfiteuse, menos claramente, entre bens da coroa e bens
patrimoniais, que parece colocar-se. Se estes casos indiciam os limites
da legislação agrária liberal, não fornecem qualquer indicação precisa
das áreas em que foi concretizada. É seguro, porém, que em todos os
casos em que a lei foi aplicada as câmaras não se deram ao trabalho de o
publicitarem...
Embora a atitude dominante depois da Vilafrancada tenha sido a
expectativa receosa, os requerimentos remetidos à administração central
(para além dos conflitos em tribunais) não cessaram em meados de
1823122. Para além de problemas relacionados ainda com a aplicação do
decreto de 3 de Julho de 1822, é sobretudo a pronta reacção à sua revo-
gação (carta de lei de 5 de Junho de 1824) que este movimento permite
detectar. Destaque-se assim, para além da relevância que, uma vez mais,
os conflitos nos coutos de Alcobaça vieram a adquirir (conduzindo

120 O que pretendo sugerir é que há uma mutação que atravessa sobretudo o universo
cultural dos notáveis locais, o que prepara o advento da revolução liberal; naturalmente,
esta nova sensibilidade podia, em determinadas condições, contaminar outros sectores
da população, como penso ter demonstrado para o caso de Alcobaça (cf. adiante).
121 Cf. Silbert, op. cit., pp. 316-318 e 321-322. Os requerimentos do D. Abade Es-
moler-Mor não se reportavam apenas aos coutos de Alcobaça, mas à situação que se
vivia noutras povoações que pagavam direitos à ordem. No entanto, os conflitos alcoba-
censes foram, sem dúvida, os mais importantes (cf. N. G. Monteiro, «Lavradores, frades
e forais: revolução liberal e regime senhorial na comarca de Alcobaça (1820-1824)», in Ler
História, n.º 4, 1985, adiante republicado).
122 Documentação do AHP, I/II, «Trabalhos sobre forais», analisada detalhadamente
em Forais e Regime Senhorial: Os Contrastes Regionais..., cit., pp. 35-41.

212
A geografia das petições e dos conflitos (1821-1824)

directamente à publicação do decreto de 24 de Julho de 1824)123, o facto


de novamente a maior parte das petições se reportar a direitos parciários
ou raçoeiros e ainda a verificação de que as reacções à revogação do
decreto dos forais de 1822 se estenderam do Nordeste transmontano ao
Algarve (reguengos dos concelhos de Bragança e Tavira). Entretanto,
com a realização do inquérito sobre os forais (ordenada a 22 de Julho de
1824) será essa a via privilegiada que as câmaras passarão a usar para
darem a conhecer as suas solicitações.

123 «Lavradores, frades e forais...», cit., pp. 50-51.

213
3. LAVRADORES, FRADES E FORAIS: REVOLUÇÃO
LIBERAL E REGIME SENHORIAL NA COMARCA DE
ALCOBAÇA (1820-1824)*

A moderna historiografia do século XIX devolveu aos problemas


agrários um lugar central no processo da revolução liberal em Portugal.
Ao mesmo tempo, a questão da abolição do regime senhorial foi recolo-
cada nos termos em que a equacionara o discurso liberal124. A identifica-

* Este texto retoma, com pequenas correcções, o artigo de N. G. Monteiro «Lavra-


dores, frades e forais: revolução liberal e regime senhorial na comarca de Alcobaça
(1820-1824)», in Ler História, n.º 4, 1985, pp. 31-87, incorporando alguns dos adita-
mentos de outra versão do mesmo apresentada em Forais e Regime Senhorial: os Con-
trastes Regionais segundo o Inquérito de 1824, Lisboa, ISCTE, 1986, pp. 45-70 (prova
de capacidade científica, mimeo.).
124 Cf. Albert Silbert, Le problème agraire portugais au temps des premières cortes
libèrales (1821-1823), Paris, 1968, pp. 30-31. Por «moderna historiografia» do século
XIX pretendo designar as obras de Piteira Santos, Albert Silbert, Victor de Sá, Miriam
Halpern Pereira, Joel Serrão e Manuel Villaverde Cabral produzidas nos anos 60 e 70
que, em rotura com a tradição da historiografia oficiosa do Estado Novo, ajudaram a
construir a imagem do Portugal oitocentista dos estudantes da minha geração. A excepção
explícita à valorização da importância do regime senhorial é M. V. Cabral, O De-
senvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, Lisboa, 1976, principalmente
p. 68. Sobre o aludido equacionamento da questão dos forais no processo da revolução
liberal, cf. os textos fundamentais de A. Silbert, Le Portugal méditerranéen à la fin de
1’Ancien Régime..., Paris, 1966, I, pp. 136-154, e «O feudalismo português e a sua abo-
lição», in Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oitocentista, Lisboa, 1972, e M.
H. Pereira, Revolução, Finanças e Dependência Externa, Lisboa, 1979.

215
Regime senhorial e revolução liberal

ção tendencial entre regime senhorial, forais e bens da coroa permitiu


destacar a importância decisiva da lei dos forais de 1832, marco jurídico
da abolição do Antigo Regime e dos mecanismos da apropriação da ren-
da senhorial.
O quadro precedentemente descrito requer, no entanto, confirmação
empírica, através de estudos concretos. Questões como a da possibilidade
de distinguir prestações «patrimoniais» de direitos reais, como a do peso
comparativo das prestações «patrimoniais», dos direitos reais estabeleci-
dos em foral, dos dízimos e dos impostos centrais, ou como a da reparti-
ção dos respectivos rendimentos por categorias sociais, são decisivas para
avaliar o impacto das sucessivas legislações liberais e as modalidades da
sua aplicação. Tal como a da sua desigual distribuição geográfica. Partin-
do da sua comum inserção na totalidade económica e social do Antigo
Regime, os historiadores têm com demasiada facilidade diluído a natu-
reza das diferentes prestações numa genérica «renda agrícola»; é neces-
sário medir, em cada estudo concreto, a legitimidade de tal identifica-
ção, até porque nem todas tiveram o mesmo destino125.
Mais recentemente, a investigação historiográfica portuguesa deu os
primeiros passos no conhecimento dos comportamentos populares e dos
movimentos camponeses face ao processo de edificação do Estado libe-
ral. A questão do miguelismo e da sua capacidade de promover a mobi-
lização popular em amplas zonas do país é certamente a mais intrigante
neste domínio126. As atitudes populares são função de uma multiplici-

125 A discussão e a investigação sobre a natureza e a história da enfiteuse (ou das enfi-
teuses) estão ainda em grande parte por fazer entre nós. Para os casos do Estado espanhol
(Galiza e Catalunha principalmente), que apresentam grandes paralelismos com as situações
portuguesas, v., entre outros, P. Vilar, «El final de los elementos feudales y senoriales en
Cataluna en los siglos XVIII y XIX, con algunas referencias comparativas al resto de Espana y
al Roselon», e «Apêndice lI» (discussão), in La Abolición del Feudalismo en le Mundo Occi-
dental (1968) (trad. cast.), Madrid, 1979, Ramon Villares, «Evolucion historica del foro», in
Foros, Frades e Fidalgos, Vigo, 1982, Miguel Artola, Antiguo Régimen y Revolución Libe-
ral, 2.ª ed., Madrid, 1983, e sobretudo Bartolomé Clavero, «Foros y rabassas. Los censos
agrarios ante la revolución espanola», in El Codigo y el Foro, Madrid, 1982.
126 Primeiras abordagens parcelares da problemática do impacto popular do miguelis-
mo: Maria de Fátima Sá M. Ferreira, «Formas de mobilização popular no liberalismo: o
cisma dos Mónacos e a questão dos enterros nas igrejas», e Maria Alexandre Lousada e
Nuno Gonçalo Monteiro, «Revoltas absolutistas e movimentação camponesa no Norte,
1826-1827 (algumas notas)», in O Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Meta-

216
Lavradores, frades e forais

dade de variáveis: das estruturas sócio-económicas regionais; da cultura


e padrões de religiosidade populares; das formas de solidariedade locais e
verticais e dos conflitos dentro das comunidades; das implicações no seu
interior das legislações e instituições do liberalismo; das experiências
traumáticas e das solidariedades e oposições, do registo memorial, que
fizeram nascer, etc. No entanto, o estudo do regime senhorial é uma con-
dição necessária, posto que insuficiente, para as explicar. Tanto mais que
a persistente sedução pelo paradigma tomado do campesinato francês de
1789-1793 tende a recusar a legitimidade ao estudo de atitudes que não
assumam uma clara dimensão anti-senhorial...
O caso de que se ocupa o presente texto pretende situar-se dentro da
dupla problemática precedentemente evocada. Nele se procura caracte-
rizar sumariamente o regime senhorial, num momento determinado (o
da primeira revolução liberal), na comarca que representava provavel-
mente a situação de maior concentração senhorial dos finais do Antigo
Regime português, e, ao mesmo tempo, estudar o impacto local da legis-
lação vintista numa zona que resistiu violentamente à sua revogação.
O objectivo pretendido é, partindo do estudo de um caso limite, esboçar
a sua comparação com outras situações que permita, simultaneamente,
realçar a diversidade dos contextos senhoriais e destacar a pluralidade
das incidências locais da legislação agrária vintista, como contributo
para explicar a discrepância das atitudes face à revolução liberal.
As limitações desta sondagem são múltiplas. Precisamente porque
não se insere num estudo regional aprofundado, aspirando apenas a ser,
como foi dito, o registo de uma situação senhorial e dos conflitos que a
acompanham, susceptível de uma comparação com outras realidades
locais, a genealogia dos contrastes regionais detectados fica fora do seu
âmbito. Uma das consequências óbvias deste ponto de vista é, natural-
mente, o privilegiar do «tempo curto»: um tempo curto porventura par-
ticularmente eficaz para revelar atitudes profundas, mas que não permite
explicar como estas se formaram127. Por outro lado, procurei situar a

de do Século XIX, Lisboa, 1982, 2.º vol.; António do Canto Machado e António Montei-
ro Cardoso, A Guerrilha do Remexido, Lisboa, 1982.
127 Como já antes se referiu, foram, entretanto, publicados trabalhos que abordam
num âmbito temporal mais amplo a problemática do regime senhorial e dos conflitos
com ele relacionados [cf. José Tengarrinha, Movimentos Populares Agrários em Portu-

217
Regime senhorial e revolução liberal

pesquisa no domínio estrito da problemática historiográfica, quer dizer,


dos problemas e interpretações que os especialistas da primeira metade
do século XIX colocaram e produziram nos últimos vinte anos. Dei pri-
mazia, por consequência, à análise das relações entre as comunidades e
a entidade senhorial, em detrimento de outras perspectivas, provavelmente
de igual ou maior relevância, mas que não respondiam directamente às
questões colocadas pelos historiadores do período. Por fim, gostaria de
destacar o que pode parecer evidente: o objecto deste estudo não se inse-
re no âmbito disciplinar da história económica, mas no da pesquisa das
determinantes dos conflitos sociais e das atitudes políticas128.

Revolução liberal e «reacção senhorial» (1820-1824)

Uma das opiniões mais universalmente consagradas acerca da pri-


meira revolução liberal portuguesa é a de que «a luta política não se fez
acompanhar de uma agitação campesina»129. A tentativa de explicação,
entretanto tornada clássica, para esta característica essencial do período

gal (1751-1825), 2 vols., Lisboa, 1994-1995, e Margarida Sobral Neto, Terra e Conflito.
Região de Coimbra (1700-1834), Coimbra, 1997].
128 Devo às sugestões da Prof.ª Miriam Halpern Pereira ter detectado o inquérito so-
bre forais de 1824-1826 e iniciado o seu estudo sistemático, no desenvolvimento do qual
se insere este trabalho. Quero ainda agradecer todas as sugestões e indicações da Dr.ª
Maria José Silva Leal e, de maneira especial, as críticas que os meus colegas e amigos
lhe fizeram.
Nas transcrições e citações constantes do texto optei sempre por actualizar a ortogra-
fia e pontuação.
Utilizar-se-ão as seguintes siglas: ADL − Arquivo Distrital de Leiria; AFF − Arqui-
vo dos Feitos Findos; AHM − Arquivo Histórico-Militar; AHMF − Arquivo Histórico
do Ministério das Finanças; AHP, I/II − Arquivo Histórico-Parlamentar, I e II divisões;
AHP, AEM − Arquivo Histórico-Parlamentar, assembleias eleitorais da monarquia;
ANTT, CR − Arquivo Nacional da Torre do Tombo, corporações religiosas; ANTT, IGP −
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Intendência-Geral da Polícia; ANTT, MJ − Ar-
quivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério da Justiça; ATC − Arquivo do Tribunal
de Contas; BMA − Biblioteca Municipal de Alcobaça, BNL − Biblioteca Nacional de
Lisboa, reservados.
129 Graça e J. S. da Silva Dias, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, Lisboa,
1980, vol. I, t. II, p. 730, nota 1.

218
Lavradores, frades e forais

vintista foi sugerida por V. M. Godinho130 e concretizada por Silbert: os


efeitos da conjuntura de baixa não só não agiam sobre a massa campo-
nesa, compelindo-a à acção, como tendiam a divorciá-la da burguesia
rural proteccionista, cujo papel na revolução se destacou131. Na verdade,
a referida tese é de aceitação quase indiscutível, desde que se lhe preci-
sem os limites: a primeira experiência liberal não foi acompanhada de
grandes movimentos camponeses e suscitou, pelo contrário, atitudes de
rejeição em algumas regiões. Para além destes limites, porém, a aludida
opinião arrisca-se a obscurecer dois factos importantes: em primeiro
lugar, a luta sibilina que a legislação liberal ajudou a suscitar em algu-
mas zonas contra o pagamento dos direitos senhoriais e, em seguida,
que as regiões privilegiadas das agitações antiliberais, quer em 1823,
quer em 1826-1828, não coincidiam normalmente com aquelas. A inter-
pretação atrás evocada pode acarretar, além do mais, um paradoxo difi-
cilmente acatável para os autores que realçam o peso dos direitos senho-
riais estabelecidos em foral no Centro e no Norte: como aceitar, partindo
desse pressuposto, que fosse ténue o impacto da lei dos forais de 1822,
que reduzia a metade os citados direitos e compelia à sua transformação
em prestações fixas?

O impacto local do vintismo

Assim que as chamadas Cortes de 1820 se proclamaram se intro-


duziu naqueles povos o espírito da novidade, e a intenção de não paga-
rem cousa alguma, e logo que se publicaram os chamados Decretos
dos Banais, e dos Forais, poucos têm sido os que pagaram os direitos
dos Forais, e os Dízimos, nem por inteiro, nem por metade, como
pedia o Mosteiro: ora pretextando que todos os direitos eram Banais,
ora que nunca tinham pago Dízimo, ora requerendo que lhes mos-
trassem e verificassem os Forais, ora enfim questionando, e nunca
convindo na quantia de frutos que deviam pagar por aquela redução
dos Forais a metade, e sempre o resultado era nada pagarem...

130 Prix et monnaies au Portugal 1750-1850, Paris, 1955, pp. 295-297.


131 Le problème..., cit., pp. 37-39.

219
Regime senhorial e revolução liberal

220
Lavradores, frades e forais

Requerimento do D. Abade Esmoler-Mor, entregue por seu


procurador, e remetido à Junta da Reforma dos Forais
em 12 de Julho de 1824132.

A lei dos Forais desagradou a muita gente, mas a ninguém amar-


gou tanto, como aos Frades d Alcobaça...

O Astro da Lusitania, n.º 235, de 27 de Novembro de 1822133.

O quadro espacial da presente sondagem abrange uma comarca, anti-


ga ouvidoria, com 13 vilas, 21 paróquias e 4716 fogos, que constituíam
os coutos de Alcobaça, de que era donatário o mosteiro sede da Ordem
de S. Bernardo de Cister. Quando eclodiu a revolução de 1820, uma das
tradições locais era, sem dúvida, a herança multissecular de conflitos
anti-senhoriais, que as monografias locais realçam134 e a documentação
consultada constantemente sugere. Uma primeira constatação importan-
te é, por conseguinte, a de que a revolução liberal veio estimular e legi-
timar movimentos de resistência ao pagamento de direitos senhoriais
que esteve longe de fazer surgir pela primeira vez.
Sintoma inquestionável do que atrás se disse, para além dos conflitos
em torno dos monopólios senhoriais do relego e dos lagares e de que
adiante falarei, são as tensões provocadas na comarca pela publicação
do mais importante documento legislativo sobre matéria agrária produ-
zido entre as invasões francesas e a primeira revolução liberal: a lei de
11 de Abril de 1815, que isentava de «Direitos, Imposições e Dízimos»
as terras recém-arroteadas durante dez anos. Segundo um requerimento
do D. Abade Esmoler-Mor, verificava-se que, depois da sua publicação,

132 AHP, I/II, cx. 112, n.º 12. D. Abade Geral Esmoler-Mor era um dos vários títu-
los do geral da Ordem de S. Bernardo de Cister, de que era cabeça o Mosteiro de Al-
cobaça.
133 Cit. em José E. Horta Correia, Liberalismo e Catolicismo. O Problema Congre-
gacionista (1820-1823), Coimbra, 1974, p. 201. A situação nos coutos de Alcobaça será
um dos exemplos mais citados durante os debates parlamentares sobre as leis dos banais
e dos forais.
134 V., por exemplo, M. Vieira da Natividade, O Mosteiro de Alcobaça, Coimbra,
1885 (especialmente pp. 20-21), e Mosteiro e Coutos de Alcobaça, Alcobaça, 1960, e
José Diogo Ribeiro, Memórias de Turquel, Porto, 1908.

221
Regime senhorial e revolução liberal

nos coutos de Alcobaça «muitos tinham deixado de propósito de cultivar


as suas terras, que já depois da invasão cultivaram, para evadir a solução
dos dízimos e quartos», de várias maneiras, «e todos sem terem precedi-
do diligências algumas perante magistrados, se levantaram da própria
autoridade, negavam as prestações dos forais, e em pouco tempo nin-
guém pagaria dízimos, quartos, ou oitavos, ficando deste modo inúteis
as doações régias»135. A provisão de 19 de Junho de 1819 daria resposta
à solicitação daquele requerimento, determinando não só que as isen-
ções previstas na citada lei só se aplicariam depois de se fazerem visto-
rias ao terreno por louvados nomeados por ambas as partes, como a
obrigatoriedade de o senhorio ser indemnizado nos casos em que, com o
fim de proceder a novos arroteamentos, se abandonassem terras antes
cultivadas.
Um claro indicador da sensibilidade anti-senhorial local é o movi-
mento peticionário de 1821. Tudo indica, aliás, que apenas tenha conse-
guido encontrar uma parte das petições enviadas às Cortes, pois, como
já foi referido, de entre os milhares de requerimentos remetidos de todo
o país, apenas uma parcela foi parar às comissões onde normalmente o
investigador poderia esperar encontrá-los.
O movimento peticionário desencadeou-se depois da realização das
eleições, do juramento das bases da Constituição e até, no presente caso,
da votação da lei dos direitos banais136. É difícil dissociá-lo das expecta-
tivas suscitadas pelos projectos liberais e pelas primeiras discussões par-
lamentares, que uma imprensa em expansão137 ajudava a criar. Se bem
que não fosse talvez a primeira a ser redigida, a petição remetida con-
juntamente pelas quatro câmaras das vilas de Alfeizerão, Salir de Matos,
Santa Catarina e São Martinho do Porto é, sem dúvida, a mais represen-
tativa da situação geral da comarca. Sublinhando claramente a ruptura
introduzida pelo «feliz e sempre memorável dia 24 de Agosto de 1820»,
as câmaras representavam «ao Soberano Congresso que não pode sub-
sistir aquela tão antiga formalidade com que foram decretados os men-

135 BMA, «Livro de registos da câmara de Alcobaça, 1817-1885», fls. 28-29 v.º
136 Decreto de 20 de Março de 1821.
137 V. José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, Lisboa, 1965,
esp. pp. 69-90. A própria Intendência-Geral da Polícia se responsabilizava pela distri-
buição frequente de jornais pelos corregedores e juízes.

222
Lavradores, frades e forais

cionados forais [...] sendo-lhes não só difícil, mas impossível cultivar


seus prédios com a obrigativa de pagarem quarto e dízimo do pão e
quinto e dízimo do vinho [...] e em algumas partes com o intolerável
abuso de fazerem a partilha em palha nas eiras». E declaravam, confron-
tando «a sua penúria» com os direitos senhoriais menos pesados pagos
em dois concelhos vizinhos, que «como se tem prometido à Nação em
geral que a lei será geral para todos [...] esperam do Soberano Congres-
so a tão desejada como necessária reforma que suplicam»138.
Se bem que reflectisse uma situação particular, é bastante significati-
va a petição enviada, em fins de Abril de 1821, pelo juiz, procuradores e
escrivão da fábrica da igreja da paróquia de Benedita (sediada no conce-
lho de Turquel), «como representantes do seu povo». Dirigindo-se ao
«Soberano Congresso [...] reunido para remediar os males da mesma
nação», consideram que, «não havendo talvez no reino de Portugal fre-
guesia alguma cujos moradores estejam mais gravados», não é necessá-
rio especificar os «excessivos tributos» pagos ao Mosteiro de Alcobaça,
por já haver sido remetida uma petição sobre o assunto. O objecto do
requerimento é outro, pois, dizem, «os suplicantes não podem deixar de
expor com mágoa que lhes parece extravio dos dízimos serem comidos
por frades, por comendadores e por párocos de diferentes freguesias,
sem que ao menos dos mesmos dízimos seja separada uma competente
porção para sustento do pároco em cuja freguesia são produzidos», nem
para um coadjutor, para um sacristão e para a fábrica da igreja. Na parte
da paróquia situada nos coutos de Alcobaça, os dízimos do vinho e
cereais eram cobrados pelo mosteiro e os do azeite, legumes e mais
miunças pelo prior de Alvorninha, por aquele apresentado; na parte que
ficava no termo de Santarém, na comenda de Rio Maior, de cuja paró-
quia fora desmembrada a de Benedita, eram «os dízimos comidos por
um secular», o marquês de Penalva. A «rusticidade e suma pobreza» da
freguesia não permitia sustentar, segundo dizem, senão o pároco, com
uma pensão certa em géneros, e um sacristão, «um cavador incapaz
daquele emprego», ao qual afirmam, «ainda que com vergonha», estava
anexa a obrigação de enterrar os mortos; o custeamento das despesas da

138Silbert, Le problème agraire..., cit., pp. 143-244; a petição foi recebida pela Comissão
de Agricultura em 5 de Outubro de 1821. Os dois concelhos a que aludem são Óbidos (co-
marca de Torres Vedras) e Alvorninha (na de Alcobaça), terras de jugada, e não de quarto.

223
Regime senhorial e revolução liberal

fábrica pelos fregueses não permitia que houvessem «os necessários


paramentos, nem o devido asseio, e grandeza, e faltar-se à igreja com os
devidos reparos». Por fim, contestavam «as chamadas ofertas, devidas
pelos ofícios divinos, não só ao respectivo pároco, mas numa parte da
freguesia, ao prior de Rio Maior, de quem não eram fregueses»139. Esta
petição vem acompanhada de uma declaração do próprio cura, apresen-
tada pelos oficiais da fábrica da igreja, eleitos anualmente, na qual con-
firmava quase todas as declarações nela produzidas. Tratava-se de uma
das poucas paróquias dos coutos cujo pároco, que posteriormente será
repetidas vezes acusado de promover a agitação anti-senhorial, não era
apresentado pelo mosteiro nem dele recebia a côngrua, um caso excep-
cional, portanto. A comissão eclesiástica remeterá, em Outubro de 1821,
a decisão sobre a matéria para depois da aprovação dos projectos de
nova divisão paroquial e do estabelecimento das côngruas eclesiásticas.
Entre outros requerimentos de menor interesse, o remetido em fins
de Junho de 1821 pelo vigário paroquial da sede do concelho de Alco-
baça é particularmente significativo. O seu objecto é a obrigação de le-
var em domingos de Páscoa o Santíssimo à igreja do convento, assim
como o costume de lá ir em procissão no dia de S. Bernardo, «em razão
de domínio, donatário ou padroado». Considerando aquelas «pensões»,
«ónus» e «obrigações» «compreendidas na legislação de direitos banais
e serviços pessoais» (sic), pede ao soberano para ser libertado com a sua
igreja de semelhante sujeição. Alguns anos mais tarde (1828) será pro-
nunciado por cumplicidade com a revolta liberal do Porto140.
Em finais de 1821 ocorre um pequeno conflito cujas características
exemplares me induziram a tratá-lo desenvolvidamente. Segundo uma
representação de «Francisco Manuel da Silva da Fonseca, fidalgo da
casa de S. Mage, morador na vila de Alcobaça», que se dizia «possuidor
de várias quintas situadas em vários distritos e vilas daquela comarca, e
o maior lavrador da mesma, bem como criador de gado vacum e eguari-
ço», havia mais de sessenta anos que estava «na posse por si e seus
antepassados» de levar o seu gado a pastar nas charnecas camarárias

139 AHP, I/II, cx. 4, n.º 1. Repare-se na atitude ilustrada de repulsa pelo corpo dos
mortos por parte dos oficiais da fábrica (em número de 4), que assinavam correctamente
os seus nomes.
140 AHP, I/II, cx. 26, n.º 13.

224
Lavradores, frades e forais

situadas nos limites dos termos de Turquel e Évora de Alcobaça logo


que deixavam de poder pastar na sua quinta no campo de Alfeizerão,
inundada de Inverno. Porém, nos últimos dias de 1821, alguns homens do
termo de Évora «lançaram fora o gado atirando-lhe tiros» e pondo os
pastores em fuga. Na descrição dos eventos posteriores são largamente
concordantes os depoimentos dos vários participantes: a solicitação do
referido grupo de «homens plebeus» do termo de Évora, um acórdão da
câmara de 4 de Janeiro mandava notificar o fidalgo para que não voltas-
se a mandar apascentar o seu gado, sob pena de prisão; no mesmo dia,
segundo relata um requerimento do atingido, «foi novamente espancado,
e lançado fora o mesmo gado pela justiça, que se compunha de um juiz,
e um vereador obrigando muita parte do povo daquele distrito para irem
praticar um tal atentado», do qual se lavrou auto de expulsão da «câma-
ra e povo do sexo masculino e feminino». Mais do que estas «assuadas»
é, entretanto, o discurso aduzido por cada um dos intervenientes para
legitimar as suas pretensões que interessa explorar: a câmara será com-
pelida a responder ao requerimento do fidalgo, sobre o qual se pronun-
ciarão testemunhas e o próprio corregedor.
O principal argumento aduzido pelo fidalgo é, como disse, a «posse
pacífica de mais de 60 anos» de levar o seu gado a pastar. Aduzia ainda
que o requerimento dos homens do termo era irregular, por não vir assi-
nado, que era reduzido o número das cabeças de gado dos lavradores do
concelho e que resultava interesse para o Estado na sua criação de gado,
destinando-se os poldros para a tropa e o gado «não só para a nutrição
do povo, como à grande lavoura que tem», e não «para correr em praças
de divertimento». Finalmente, considerava «farisíaco» o zelo da câmara,
que não impedira que a charneca estivesse em grande parte tomada pelo
povo nem que viessem outros gados de fora do concelho. Neste aspecto,
as suas declarações são coincidentes com o certificado do escrivão de
Évora e com as declarações das testemunhas, que, realçando serem os
baldios apenas bastantes para os gados do termo, confirmavam o «rom-
pimento e tapagem de várias terras da mesma charneca». Parece, assim,
que, à semelhança do que Silbert apontou para outras regiões, tendo-se
reduzido a área dos baldios pela ocupação individual e vedação conse-
quente, os interesses locais se chocavam com os da grande criação de
gado.

225
Regime senhorial e revolução liberal

Mas a resposta da câmara, bem como as declarações do corregedor,


permitem ainda descobrir uma outra dimensão no conflito: com efeito,
para além de justificar o requerimento inicial (escudada numa declara-
ção subscrita por mais de quatro dezenas de assinaturas em cruz de
ambos os sexos), a câmara apoiava-se em duas posturas, de 1775 e
1811, que impunham penas pecuniárias aos proprietários dos gados que
pastassem nas charnecas, sendo de fora do concelho, para sustentar que
o requerente «não tem nem nunca teve a posse figurada» e justificar a
expulsão. Considerando-se «representante» dos povos, a câmara «não
duvidou em pôr em prática uma das suas maiores obrigações, qual era a
de vigiar que os montes, charnecas e baldios não fossem tomados, por
pessoa alguma», «especialmente em uma época em que o direito de pro-
priedade se acha tão solenemente sancionado nas bases, que jurara da
nossa Constituição»; pretender utilizar as pastagens próprias dos povos,
«sendo de alheio termo e território [...] isto nem é concedido aos donatá-
rios quando vigoravam os exorbitantes direitos dos mesmos». Para mais,
acrescentam, o requerente tem quatro quintas limítrofes com pastagens,
mas delas recebe rendas.
O parecer do corregedor, claramente favorável ao fidalgo, ajuda a
tornar ainda mais claro o que estava realmente em jogo: os critérios de
admissão e de exclusão na comunidade. Realça o corregedor que «Fran-
cisco Manuel, sendo proprietário em Évora, como os mais proprietários
dali, que constituem o povo daquela vila [...] sendo contemplado na
quota correspondente aos encargos públicos como proprietário, isto é,
dízimas, quartos, décimas, sisas, etc., não pode ser excluído de igual
gozo em alguns meses do ano por algum direito [...] não descubro por-
que só a residência deva neste objecto preferir à propriedade». Mas era
precisamente um critério essencial de exclusão, ou, como depunha uma
testemunha de Évora, «suposto não o conheça mais que pelo nome de
‘fidalgo’»... Critério essencial, mas não único, pois lembra ainda o cor-
regedor, o requerente, «não obstante ser fidalgo (a que o povo indiscre-
tamente atribui a protecção do seu bom direito), não se torna por essa
circunstância excomungado», os restantes proprietários pretendem repe-
li-lo «só porque é fidalgo, e mais rico, único motivo por que sua fraca e
rebelde razão os embaraça de não reconhecê-lo, neste objecto, um seu
igual, um seu vizinho com que fazem corpo». Finalmente, considera a

226
Lavradores, frades e forais

alusão ao arrendamento de propriedades um «miserável argumento», não


podendo receber da lei «menores considerações, sendo o maior lavrador
desta comarca, do que os lavradores em ponto menor; não é só à mão
que governa o arado que a agricultura deve o seu mérito, animação e
grandeza, mas às que dirigem, esclarecem e sustentam suas grandes e
proveitosas operações». Faltará explicar a «torrente indiscreta, ignorante
e apaixonada». O corregedor, que, falhadas as tentativas de conciliação,
despachou favoravelmente o recurso do fidalgo, fala de «perigosos prin-
cípios disseminados entre o povo, que lhe fomentam certo capricho, que
lhe sustentam certo orgulho», e de «noções vagas de princípios que não
entende, nem sabe regular, de que fazia mau uso». Sobretudo, faltará
descobrir o que explica a mudança das atitudes locais sobre os gados do
fidalgo. Creio não forçar a tónica se disser que a súbita reivindicação
dos direitos da comunidade rural está necessariamente ligada aos ecos
do primeiro ano de revolução liberal. Só que as várias dezenas de iletra-
dos que subscrevem os actos da câmara não eram, necessariamente, os
sectores ínfimos da comunidade, os que não tinham nem gado nem ter-
ra: não eram estes os que assumiam a representação da comunidade nos
seus conflitos com o exterior141.
Se era assim patente a sensibilidade anti-senhorial local, foi a apro-
vação final e publicação da lei dos forais (3 de Junho de 1822) que agiu
como despoletador, legitimando um movimento generalizado de recusa
ao pagamento de direitos senhoriais. A 5 de Julho, uma circular remeti-
da pelo intendente-geral da Polícia (IGP) a todos os corregedores das
comarcas mandava que «os ministros territoriais em quatro domingos
sucessivos expliquem aos povos da câmara da capital do distrito a Lei
dos Forais»142. Atitude bem reveladora, o corregedor de Alcobaça hesi-
tou em emitir a ordem para os juízes ordinários, argumentando com o
facto de a maioria destes não saberem ler e não terem acesso a advoga-
dos143. Só depois de afastadas as hesitações a ordem seria aplicada por
todas as 13 câmaras da comarca entre meados de Julho e meados de

141 Todas as referências e citações sobre este assunto foram retiradas de ANTT,
IGP, maços de correspondência dos corregedores e juízes de fora, maço 124, n.os 73 e
74.
142 ANTT, IGP, correspondência dos corregedores, liv. 28.
143 ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 124, n.º 104.

227
Regime senhorial e revolução liberal

Setembro. No entanto, as primeiras referências ao impacto da lei dos


forais são anteriores à ordem do IGP e mostram até que ponto a impren-
sa, lida e divulgada pelas elites letradas locais, se havia tornado um veí-
culo rápido e eficiente de difusão da informação.
Um sintoma revelador da precocidade dos problemas provocados
pela aplicação da lei dos forais são os dois requerimentos apresentados
pelo D. Abade Esmoler-Mor144 às Cortes, que deram entrada, sucessi-
vamente, na Comissão de Agricultura nos dias 20 de Junho e 20 de Ju-
lho de 1822. Redigidos em nome da Congregação de S. Bernardo, não
reflectiam apenas a situação do Mosteiro de Alcobaça, mas também a
dos outros mosteiros da ordem. No primeiro salientava-se a quebra já
sofrida pelos rendimentos da Congregação com a lei dos banais, que já
não permitia pagar as dívidas atrasadas, e realçava-se o artigo da lei dos
forais que mais claramente abria as portas à «greve das rendas»: com as
formalidades necessárias à conversão das rendas proporcionais em fixas
«nem os colonos sabem o que devem pagar, nem o suplicante o que lhes
há-de pedir, originando-se daqui uma anarquia». A assembleia aprovará,
a 18 de Julho, a rejeição do requerimento, mas não sancionará a repreen-
são proposta pela Comissão pela utilização da expressão «anarquia»
como resultado de uma lei. O segundo requerimento voltaria a insistir na
recusa dos «foreiros» em pagarem os direitos senhoriais enquanto as
quotas não fossem convertidas em prestações fixas e reclamava uma
declaração expressa de esclarecimento da lei. Desta vez, a Comissão de
Agricultura e a assembleia acabariam por aceitar a solicitação: o decreto
de 5 de Outubro de 1822, tomando em consideração a representação do
D. Abade e que «a mesma dúvida se há suscitado em outras partes do
reino, já por omissão dos lavradores já por culpa dos rendeiros», decla-
rava que «todas as quotas e pensões que foram reduzidas a metade pelo
artigo 1.º do citado decreto (de 3 de Junho) devem ser pagas nessa mesma
forma, enquanto se não convertem em prestações certas...»145. Em 1822,
como depois em 1824, será o peso determinante dos conflitos suscitados
com o Mosteiro de Alcobaça e a Ordem de S. Bernardo que forçará à
publicação de esclarecimentos à legislação geral sobre forais.

144 A. Silbert, Le problème agraire..., cit., pp. 316-318 e 321-322.


145 Diário do Governo, n.º 239, de 10 de Outubro de 1822.

228
Lavradores, frades e forais

Mas a «reacção senhorial» do donatário cisterciense desenrolar-se-ia


numa multiplicidade de terrenos com uma rapidez que provavelmente
não tem paralelo. Um dos meios utilizados foram as representações à
IGP com vista ao desencadear de processos de foro criminal, que obtive-
ram, surpreendentemente, pronta resposta. A 3 de Agosto, um aviso do
intendente, suscitado por «um papel entregue pelo D. Abade»146, man-
dava proceder a um sumário contra o já referido cura da freguesia da
Benedita, e mais dois padres, um da freguesia de Carvalhal Benfeito, no
concelho de Santa Catarina, João Henriques, e o outro da vila de Alju-
barrota, Rufino, «que consta andaram seduzindo e amotinando os povos
para que não paguem dízimas, nem direitos, que as leis do Soberano
Congresso mandam pagar». Uma vez mais, o corregedor hesitará; desta
feita considerando que o procedimento contrariava as bases da Consti-
tuição. A resposta do IGP, escudada no respeito pela lei, denotava a
intenção de cercear todas as mobilizações: «Pelas bases é livre a todo o
cidadão o exprimir suas ideias; é contudo crime chamar os povos à deso-
bediência, excitá-los e induzi-los para que não cumpram as leis.» Uma
segunda ordem, de 12 de Outubro, mandava averiguar quem «se delibe-
rasse a insinuar aos povos que deixem de pagar os direitos territoriais,
pertencentes ao Real Mosteiro de Alcobaça» e quem promovera a assi-
natura de um termo pelo qual os moradores de Aljubarrota se eximiam
ao seu pagamento.
Finalmente, até onde as fontes o permitiram conhecer, o mosteiro
procurará desencadear processos judiciais do foro civil, porque «as pes-
soas que devem pagar os ditos direitos, duvidam pagar os mesmos direi-
tos que prescreve o artigo 1.º da providente lei de 3 de Junho preceden-
te; sendo-lhes pedido, não querendo satisfazer quota alguma dos frutos
que fabricaram no presente ano, e que arrancaram e colheram; nem tão-
-pouco pagarem as dízimas que o mosteiro suplicante tinha também
posse de receber dos suplicados, os quais não trataram de requerer redu-
ções, e quotas certas segundo lhe permite a citada lei»147. Este requeri-
mento do mosteiro era dirigido à Casa de Suplicação dos Feitos da Coroa
e Soberania Nacional a 28 de Setembro, antes mesmo de a assembleia
ter aceite a solicitação cisterciense. Mas o primeiro requerimento para

146 ANTT, IGP, cor. cor., liv. 28, tal como as citações seguintes.
147 AFF, Alcobaça (processos), maço I, n.º 6, tal como a citação seguinte.

229
Regime senhorial e revolução liberal

chamar um lavrador de Santa Catarina, em virtude da carta citatória


assim obtida, será indeferido pelo corregedor, que bloqueará a sua exe-
cução, pelo facto de «não vir esse nome expressado na designada carta,
e não ser possível acumularem-se muitas acções».
Não é surpreendente que os requerimentos do D. Abade sejam a
principal fonte de informação sobre a aplicação da lei dos forais. Com
efeito, os interessados não tinham nada a ganhar em publicitar as suas
atitudes, e não o fizeram, com uma única excepção; ora, a principal fon-
te de informação das autoridades eram os juízes ordinários (juízes de
vintena em Alcobaça) das mesmas câmaras que sancionavam e estimu-
lavam a recusa ao pagamento dos direitos senhoriais. O juiz de fora do
concelho de Alcobaça dizia, em 12 de Outubro, que «nada tem ocorrido
no distrito da minha jurisdição, que me tenha constado demonstre ataque
à tranquilidade pública, como também em oposição ao sistema constitu-
cional; apenas me tem chegado aos ouvidos a repugnância desenvolvida
nos habitantes de algumas povoações à satisfação dos meios direitos
devidos ao Mosteiro de S. Bernardo por força do Decreto de 3 de Julho,
ocasionada da confusão e embaraço em que os coloca a diversidade; e
menos clareza dos forais dados os mesmos»148. Adiante se apresentarão
as informações quantitativas sobre a importância desta «repugnância» e
que permitem destacar com outro rigor os focos de maior intensidade.
O caso mais grave parece ter sido, indiscutivelmente, o da vila de
Aljubarrota, onde o mosteiro recebia quartos, quintos e dízimos numa
freguesia e apenas oitavos na outra. Pode-se conhecê-lo através de um
requerimento do mosteiro, «donatário da Real Coroa e Soberania Nacio-
nal»149, entregue só depois da Vilafrancada, quando decorria precisamen-
te um ano desde os acontecimentos que narra, contra a câmara da referi-
da vila. Segundo se diz no libelo de acusação: «Congregando-se o
presidente e oficiais, antecessores dos réus no mês de Junho do ano pas-
sado de 1822, e fazendo convocar o povo desta vila no dia 28 do referi-
do mês, debaixo de certas penas, passaram a fazer uma demarcação
arbitrária e violenta estabelecendo balizas, e colocando e afichando um
marco; excluindo sem audiência do Dom Abade Donatário todo, ou a

148 ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 124.


149 AFF, Alcobaça (processos), maço 1, n.º 7. A curiosa denominação é uma conse-
quência da aplicação do decreto de 5 de Maio de 1821.

230
Lavradores, frades e forais

maior parte do terreno compreendido no foral, e que faz parte integral


da dita vila de Aljubarrota e do seu termo [...] e não satisfeitos os ante-
cessores dos réus com aqueles violentos e despóticos procedimentos
estabeleceram, no mesmo dia 28, um acórdão pelo qual determinaram
que ninguém da dita vila e termo pagasse aos rendeiros ou procuradores
do mosteiro do autor direitos alguns em qualquer qualidade que fosse, e
de todas aquelas terras que eles fizeram excluir das chamadas balizas,
impondo outras graves penas aos quais contraviessem semelhante proi-
bição, por motivo de cujo acórdão nenhum lavrador quis pagar coisa
alguma, sendo-lhe pedidos os direitos, à excepção de dois.» Uma das
testemunhas apresentadas pelo mosteiro acrescenta que «viu que a
câmara fez certas diligências dirigidas pelo padre Rufino», já referido.
Aljubarrota é, evidentemente, um caso à parte, como se verá.
Outras indicações existem sobre a agitação que atravessava a comar-
ca. No princípio de Setembro entraram por um dos lagares do mosteiro
duas dezenas de indivíduos que ameaçaram de morte o frade que ali se
encontrava e «todos os que pagassem mais de três almudes e meio aos
padres»150. Uma petição não assinada dos moradores da freguesia do
Valado (concelho de Alcobaça) recebida em 25 de Outubro de 1822
refere terem aqueles «apresentado um requerimento (a)o ex. sr. Borges
Carneiro a fim de ser julgada pelo Soberano Congresso a justiça com
que o povo se queixa contra os padres Bernardos de Alcobaça pelas
vexações que têm feito» que ainda não recebera despacho151. Ainda no
mesmo mês, os moradores de Vestiaria, outra freguesia daquele conce-
lho, procuraram obrigar o mosteiro a deixar copiar do seu cartório a
«carta de povoação e emprazamento»152.
Os limites e contradições da política agrária vintista exprimiam-se
assim de forma inequívoca. As petições do D. Abade, por exemplo,
obtiveram êxito junto da IGP, apesar de aparecer apontado como inimi-
go do sistema liberal153 e das atitudes parlamentares relativamente às

150 ANTT, IGP, cor. cor., liv. 28.


151 AHP, I/II, cx. 16, n.º 180.
152 AFF, Alcobaça (processos), maço 1, n.º 5.
153 O D. Abade Esmoler-Mor aparece incluído na relação dos «declarados inimigos da
regeneração da Pátria», publicada no Diario das Cortes... (D. C.), Lisboa, 1822, t. VI, p. 471.

231
Regime senhorial e revolução liberal

ordens religiosas, em geral, e ao Mosteiro de Alcobaça, em particular154.


A legislação agrária ajudara a desencadear um movimento de resistência
ao pagamento dos direitos senhoriais estabelecidos em foral; no entanto,
os constituintes haviam recusado a sua abolição. Tornava-se, pois, neces-
sário garantir o pagamento dos «meios direitos». Só que as autoridades
locais não se mostravam muito eficientes em travar a torrente que
haviam ajudado a desencadear.

A resposta à «reacção senhorial»

«[...] sem subordinação se não pode manter a sociedade [...]»

De uma procuração apresentada em princípios de 1824


pelo procurador da Ordem de S. Bernardo pedindo
auxílio militar para a cobrança dos direitos senhoriais
e dízimos em Alcobaça155

Na comarca de Alcobaça, como em toda a parte onde tal se praticou,


extinguiram-se rapidamente as luminárias acesas para celebrar a precá-
ria vitória das tropas constitucionais sobre o conde de Amarante em fins
de Março de 1823. Em Junho é a feliz «restauração destes reinos» que
se trata de celebrar, embora com algumas notas dissonantes.
No dia 13 de Junho de 1823, o guardião arrábido do Convento da
Madalena foi pregar à igreja da vila de Santa Catarina e, «falando contra
o Governo constitucional e a favor do actual Governo», ouviu insul-

154 José Eduardo Horta Correia, Liberalismo e Catolicismo…, cit. São violentamente
críticos os comentários sobre o Mosteiro de Alcobaça produzidos por um dos relatores
da comissão encarregada da aplicação da lei vintista de reforma dos regues (ANTT, MJ,
maço 456, n.º 6). Alguns anos mais tarde (1827-1830), a história do mosteiro feita por
frei Fortunato de S. Boaventura serviria para alimentar uma longa polémica com João
Pedro Ribeiro (sobre este assunto, cf. Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno G. Montei-
ro, «Aljubarrota − memória local e memória nacional», in Actas do Encontro «A Cons-
trução Social do Passado», Lisboa, APH, 1992, pp. 289-296).
155 BMA, «Livro de registos da câmara de Alcobaça, 1817-1885», fl. 64 v.º

232
Lavradores, frades e forais

tos156. No domingo, 15 de Junho, em que se celebrava a festividade de


Santo António na freguesia do Vimeiro (concelho de Alcobaça), apare-
ceu «uma comitiva de homens armados de cajados ferrados» de vários
lugares de Santa Catarina, «todos da plebe» e capitaneados por um
famoso valentão, oficial de sapateiro. Segundo uma participação assina-
da pelo pároco, pelo juiz de vintena e por um capitão das milícias de
Leiria residente naquela freguesia, vinham com o intuito de espancarem
o pregador por este ter falado na festividade de Santa Catarina «contra a
extinta Constituição»; ao que parece, ameaçado, o pregador não falou
em tal assunto, mas as festividades acabariam por descambar em grande
pancadaria entre os homens das duas freguesias, de que resultaram mui-
tos feridos. Também na festa de Santo António, em Alcobaça, foi insul-
tado um religioso da Ordem de S. Bernardo quando falava «dos males
do passado Governo Constitucional» na capela do Santo. Por ordem da
IGP, o corregedor de Leiria procederá a um sumário de todas estas ocor-
rências, «atendendo à coincidência dos tempos e à proximidade dos lu-
gares».
No dia 24 de Junho juntaram-se na igreja paroquial da vila de Tur-
quel, segundo participa o juiz ordinário, um fidalgo, «o reverendo páro-
co com as pessoas mais distintas tanto seculares como regulares, em que
se achavam 11 monges do Real Mosteiro de Alcobaça e vários outros
religiosos, e isto tudo para com mais solenidade render as graças ao
Todo-Poderoso, pelos benefícios concedidos à Nação Portuguesa, resti-
tuindo a Dignidade Real a seus Augustos Soberanos e conservando-lhe a
Religião Cristã». Se já a pregação do primeiro orador sofreu algumas
interrupções, quando o segundo, um arrábido, «desenvolvia os princí-
pios dos desastres da Nação do sistema que felizmente acabou, se ouvi-
ram estas palavras, fora, fora, e amotinando muito o auditório, saíram
alguns para fora da igreja com susto por se ouvir dentro e fora morram
os frades mais quem com eles acompanha». Na opinião do juiz, «os
autores daquele barulho e assuada que continuou até à noite por toda a
vila», a que se juntaram outros, teriam sido dois homens da freguesia de
Benedita, daquele concelho, «beneméritos discípulos de um tal cura», já
nosso conhecido, e mais uma vez acusado de instigador; era ainda aque-

156 Todas as citações que se seguem foram retiradas de ANTT, IGP, m. cor. cor.,
maço 124, n.os 244, 248, 262, 271, 251 e 268.

233
Regime senhorial e revolução liberal

le magistrado que considerava estes acontecimentos da mesma natureza


dos ocorridos no Vimeiro157.
O corregedor de Alcobaça não atribuiu demasiada importância a este
último acontecimento, vozes de alguns bêbedos que «inculcavam aver-
são aos monges Bernardos, talvez motivada dos ditos (sem consenso dos
homens sérios daqueles) sobre restituição de direitos e opressão dos po-
vos». Mas «para conciliar estes boatos» fez acompanhar um edital de
uma portaria sobre a obrigatoriedade do pagamento dos dízimos de
alguns esclarecimentos para os juízes dos concelhos que os deviam afi-
xar. Neles lembrava que aquela portaria nada alterava a legislação em
vigor e que a confusão que alguns tinham feito daquele objecto com a
lei dos forais já tinha sido esclarecida pelo decreto de 5 de Outubro de
1822; terminava recordando a carta régia de 7 de Março de 1810 e ape-
lando para a confiança nas «benéficas e protectoras intenções» do rei.
Estas pequenas histórias, seleccionadas entre outras, servem para
ilustrar em que medida os sentimentos anti-senhoriais condicionavam os
conflitos locais numa altura em que legitimamente se acentuavam os
temores sobre a «restituição de direitos»; mostram também até que pon-
to podiam favorecer uma certa impregnação pela política nacional das
sociabilidades tradicionais. Logo a seguir à Vilafrancada, o mosteiro
parece ter retomado as iniciativas judiciais no Juízo dos Feitos da Real
Coroa contra a recusa do pagamento de dízimos ou direitos senhoriais.
É então que se desencadeia o citado processo contra a câmara de Aljubar-
rota e um outro contra um lavrador de Cela que, como muitos outros do
mesmo concelho, não só havia colhido os seus frutos sem se avençar
com o quarteiro, como os havia retirado sem se ter procedido à partilha
na eira, dispondo-se depois disso apenas a pagar os oitavos e não os dí-
zimos 158 . Nota reveladora, de entre as oito testemunhas apresentadas
pelo mosteiro, cinco eram quarteiros ou seus familiares.

157 Francisco Garção Campelo de Andrade, um dos notáveis da comarca e único fi-
dalgo que consegui identificar desempenhando funções de juiz ordinário.
158 AFF, Alcobaça (processo), maço 1, n.º 15. Antes mesmo da revogação da legis-
lação vintista em Junho de 1824, uma petição do procurador cisterciense havia conse-
guido que a coroa (aviso de 11 de Março de 1824) autorizasse o corregedor a pedir auxí-
lio militar «quando os devedores recusem o cumprimento de suas obrigações e intentem
recorrer a meios violentos» (BMA, «Livro de registos da câmara de Alcobaça, 1817-

234
Lavradores, frades e forais

Mas a manutenção em vigor da legislação vintista, a indecisão quan-


to ao seu futuro enquanto era objecto de análise pela Junta de Revisão
das Leis, condenavam estas iniciativas a um certo impasse; as próprias
autoridades duvidavam em fazer observar estritamente a lei. Na maioria
das terras dos coutos de Alcobaça pagava-se uma quota de produção; a
aplicação das prescrições do foral estava assim estritamente dependente
da capacidade de avaliar a produção. A manutenção da lei dos forais
legitimava todas as formas de obstrução. A revogação da legislação vin-
tista pela carta de lei de 5 de Junho de 1824 afastou todas as hesitações:
com excepção dos «banais», os direitos senhoriais eram restabelecidos
em toda a sua violência. O mosteiro não duvidará em tentar meter os
louvados onde outrora não tinham podido entrar. E o novo corregedor
não duvidará em chamar a tropa.
Escassas duas semanas depois da publicação desta carta de lei, em
plena época de colheita, começaram os enfrentamentos. A primeira par-
ticipação foi feita pelo corregedor em 21 de Junho de 1824 ao IGP:
Julgo dever levar ao conhecimento de V. Ex.ª que, tendo o Real
Mosteiro desta vila designado estimadores particulares, vulgo quar-
teiros, para, na forma do antigo costume, examinarem as searas dos
lavradores, e poder o mesmo mosteiro regular suas avenças com
aqueles que as quisessem fazer, bem como sempre se praticara antes
das inovações dos forais, ultimamente restituídos ao seu antigo esta-
do pela carta de lei de 5 do corrente: acontece que já na tarde de
ontem, a maior parte dos moradores de dois lugares de Santa Catari-
na [...] procuraram nas próprias casas, os respectivos estimadores, e
de tal maneira os ameaçaram e aterraram, que não se atreveram a fa-
zer estima alguma.
Hoje, porém, sucedeu no distrito de Aljubarrota, mais notável
sucesso; porque, aparecendo nos Molianos dois dos mencionados
estimadores para o referido fim, logo ali se amotinou muito povo de
ambos os sexos e reunindo-se-lhe grande massa de outros lugares mais
próximos, formou-se perigosíssima assuada, e no meio da multidão
foram os ditos dois estimadores conduzidos como presos até à referi-

-1885», fls. 64-65). No entanto, o corregedor, tendo estabelecido, em edital, dez dias
para o pagamento das dívidas ao mosteiro, não chegou a chamar a tropa para o efeito.

235
Regime senhorial e revolução liberal

da vila, aonde os mesmos amotinadores, insultando o religioso, admi-


nistrador da renda do seu distrito, obrigaram-no com ameaças de
morte a fugir precipitadamente.
Houve também nesta tarde impedimento de diligência a dois ofi-
ciais, executadores de uma ordem deste juízo sobre pagamento dos
lembrados direitos ao dito mosteiro.
Tal é a insubordinação e espírito anárquico, que reina na plurali-
dade das povoações destes coutos, e não é possível remediar sem a
presença da Força Armada, cuja medida exige brevidade, sendo in-
frutuosos os procedimentos criminais a que se vai dar a princípio.

No dia 22, algumas dezenas de indivíduos de Aljubarrota, «que


tinham figurado no tumulto do dia antecedente», desceram em ajunta-
mento à vila de Alcobaça, com o intuito de obterem a libertação de um
lavrador, preso no dia antecedente, por resistência às diligências da jus-
tiça: conseguiram dissuadi-los de «cometer tão grave atentado», mas o
corregedor não perdeu a oportunidade de recordar a «precisão de medi-
das extraordinárias para reduzir à obediência o povo miúdo, e atalhar a
futuros acontecimentos mais desastrosos». Com base na correspondên-
cia daquele magistrado e do juiz de fora para o IGP, procurarei acompa-
nhar a resistência das «pessoas do povo ignorante, que de nenhuma for-
ma consente se ponha em prática pelo Mosteiro Donatário da Real
Coroa [...] a cobrança dos direitos Dominicais, segundo uso e costume
antes das inovações que se fizeram em Junho de 1822»159. Ciente de que
o registo utilizado é imperfeito, não constando dele sequer as devassas
aos tumultos.
No dia 25 chegaram, por fim, a Alcobaça 120 homens do destaca-
mento de Infantaria 22, de Leiria. 50 seguiram para a vila de Aljubarrota
e a maior parte dos restantes para a de Santa Catarina, onde a sua pre-
sença se fazia mais necessária. No próprio dia, ao cair da noite, «algum
malvado de fora da vila e que concorria a uma feira, que naquele dia

159 Todas as citações anteriores foram retiradas de ANTT, IGP, m. cor. cor., maço
124, n.os 425 e 434.

236
Lavradores, frades e forais

houve»160, lançou fogo à eira localizada dentro da cerca do mosteiro,


mas o incêndio foi atalhado a tempo.
Em Santa Catarina, a tropa destacada foi mal recebida: entre outras
manifestações de hostilidade, o próprio juiz ordinário do concelho se
recusou a aboletá-la. Ainda no dia 28, participava o comandante da for-
ça armada para ali destacado que «o povo deste distrito ainda manifesta
inquietação e ameaça repelir com violência os estimadores seareiros que
o R. Mosteiro desta vila destinou para saber regular as suas particulares
avenças com o mesmo povo; dispondo-se a atacar qualquer escolta que
os acompanhe, como foi requerido pelo mesmo mosteiro».
Até então confinada nas suas manifestações mais tumultuárias às vi-
las de Aljubarrota e Santa Catarina161, pelo menos a julgar pelas muito
incompletas participações do corregedor da comarca, a oposição aos
quarteiros dos cistercienses estende-se então a outros lugares. No dia 1
de Julho, «homens armados de espingardas, mulheres e rapazes dos
lugares de Candeeiros e Freires do distrito de Turquel, levantaram-se em
assuada contra o Quarteiro, ou estimador de produção das searas, no
mesmo distrito por parte do R. Mosteiro de S. Bernardo, e acorreram às
pedradas e apupadas, até à proximidade da respectiva vila». À noite de-
ram um tiro na porta do quarteiro do lugar de Vestiaria (concelho de
Alcobaça) «e a parede na circunferência da mesma porta, foi cravada de
facadas [...] para intimidá-lo a fim de não progredir em tal emprego».
Mas a resistência ao restabelecimento dos «antigos usos e costumes»
e à entrada dos quarteiros assumiu ainda outras formas e uma outra
dimensão: sucessivamente, as câmaras das vilas de Alfeizerão, Santa
Catarina e Cela aprovaram acórdãos onde proibiam a entrada dos quar-
teiros nas «propriedades particulares». Em Alfeizerão, segundo o res-
pectivo acórdão, no dia 20 de Junho, o procurador do concelho infor-
mou a câmara das questões suscitadas entre o quarteiro dos religiosos e

160 Todas as citações seguintes foram tiradas do maço referido na nota anterior,
n.os 430, 435, 439-bis, 453-bis, 452 e 477. O corregedor mudara entretanto. Um curioso
e caricatural testemunho destes acontecimentos encontra-se nas Memórias do Marquês
da Fronteira e d’Alorna, Coimbra, 1926, vol. I, pp. 435-436, onde se faz uma descrição
interessante da vida conventual.
161 Os concelhos mais activos são os da faixa oriental, onde o trigo, e não o milho,
era a principal produção; era este cereal e a cevada que se colhiam em Junho e Julho.

237
Regime senhorial e revolução liberal

o povo, «cujas questões começando por palavras passaram depois a


sérias ameaças, que só tardaram a pôr-se em prática enquanto o dito
quarteiro não entrasse nas propriedades particulares»; face a esta situa-
ção, «a fim se evitar discórdias e sublevações», o senado da câmara de-
cidiu afixar um edital em que se determinava não poderem os quarteiros
entrar e estimar «os pães dos lavradores e seareiros desta vila», sob pena
de, «se o contrário fizerem, serem os povos não punidos por qualquer
excesso». O fundamento de que a câmara se servia para legitimar a sua
actuação era o mesmo dos restantes: a utilização de quarteiros não cons-
tava do foral da vila.
No dia 29 de Junho, quer dizer, já depois da chegada das tropas, a
câmara de Santa Catarina aprovará um acórdão idêntico, informando no
dia seguinte o frade administrador do Real Mosteiro, naquele concelho,
para que não entrassem os quarteiros nos prédios dos habitantes, sob
pena de prisão. No dia 3 de Julho era a vez de a câmara da vila de Cela
aprovar um acórdão semelhante, com a mesma argumentação: o uso dos
quarteiros não constava do foral, logo era uma «prepotência» dos reli-
giosos, que queriam «vexar os povos com um abuso que necessariamen-
te tem por objecto fins sinistros», pois, diz-se ainda nele, «assim como o
povo se prestou de boa vontade à satisfação de quaisquer ordens régias,
a mesma forma se opõe com pertinácia a tudo o que não é determinado
pelo soberano». Uma vez mais, é proibida a entrada dos quarteiros sob
pena de prisão.
Para o corregedor de Alcobaça, estes acórdãos, «ofendendo o anti-
quíssimo costume das estimas, que o Real Mosteiro desta vila mandava
fazer pelos seus estimadores, vulgo ‘quarteiros’, para atalhar o furto,
que os seareiros pouco escrupulosos cometem no pagamento dos direi-
tos dos Forais, quando eles não precedem a colheita, tolheram a entrada
dos ditos estimadores nas searas, para os senhorios ignorarem quanto
recolheram os lavradores; protegendo assim toda a fraude de que estes
possam ser capazes», contribuindo ainda para dispor «mais o espírito do
povo, para o tumulto e desordem, se porventura o referido mosteiro pre-
tender restaurar a sua antiga posse e regalia». Os «escandalosos acórdãos»
das câmaras, às quais, segundo o IGP, não cumpria cuidar daquele objec-
to, levariam à cadeia, pelo menos, a de Cela. Parecem, entretanto, de-
monstrar a existência de alguma coordenação entre elas.

238
Lavradores, frades e forais

Mas a resposta local à revogação da legislação sobre forais passará


ainda por um movimento peticionário dirigido do rei. Entre a entrada
dos quarteiros e o dia 7 de Julho, três petições serão enviadas pelas câ-
maras de Aljubarrota, Alfeizerão e Évora, posteriormente remetidas à
Junta de Reforma dos Forais, bem como um requerimento do próprio D.
Abade Esmoler-Mor. Uma segunda petição será dirigida por Aljubarrota
em Novembro do mesmo ano. Estes requerimentos, cujo conteúdo vol-
tarei a analisar, reflectiam, simultaneamente, a situação geral e o caso
particular de cada concelho162.
O procurador do concelho, em nome da câmara e moradores de Al-
jubarrota, porventura o mais intransigente palco de contestação, fazia
«uma humilde e reverente representação acerca do estado angustioso,
em que se acham pelo infame labéu, com que foram maculados na
Augusta Presença de V. Magestade, a ponto de se verem por isso cerca-
dos de força armada, que se moveu para aquela vila para os tratar como
rebeldes às Reais Ordens». Com efeito, acrescenta-se, «respeitam como
um oráculo de sabedoria o Decreto de 5 do mês de Junho próximo pas-
sado, porque por meio dele vai V. Mag. derramar um saudável e precio-
so bálsamo sobre as feridas, que uma facção devastadora havia feito na
ordem pública». Mas, conforme confirmava um documento que reme-
tiam em anexo, havia mais de noventa anos que corria uma causa, para-
da pela prepotência dos religiosos, em que os suplicantes pretendiam
«não ser compreendida aquela vila na doação que o senhor rei D. Afon-
so Henriques fez ao Mosteiro de Alcobaça, que é o primordial título em
que os religiosos daquele mosteiro fundamentam o seu direito de per-
cepção dos foros». Pedia o procurador, por conseguinte, uma vistoria
sobre os limites da doação, ou a espera da decisão da causa que corria
no Juízo da Real Coroa, «ficando no entretanto as coisas no mesmo es-
tado em que estão».
Redigido sob ocupação militar (7 de Julho), este requerimento reves-
te ainda outra circunstância. Poucos dias antes haviam principiado as
diligências para apurar os motivos da ruína do Arco da Memória, situa-
do dentro do concelho de Aljubarrota, que assinalava o limite norte dos
coutos, e onde, segundo a tradição cisterciense, tinha feito voto D. Afonso

162 AHP, cx. 112.

239
Regime senhorial e revolução liberal

Henriques. A conclusão inequívoca do corregedor foi a de que «fora


demolido, e não arruinado casualmente»163. Em Aljubarrota a rotura sim-
bólica com a ordem senhorial fora levada às últimas consequências.
Arruinado pelos «povos dos coutos, principalmente os de Aljubarrota,
aproveitando-se da rebelião que as cortes causaram», o Arco será restau-
rado em 1830 por ordem de D. Miguel, emitida aquando da sua visita ao
mosteiro164.
Na sua petição, a câmara de Alfeizerão, «sendo testemunha ocular
das disputas e ameaças que houveram no dia 20», remete cópia dos
acórdãos e pede que se dê ordem expressa «se devem, ou não ser admi-
tidos quarteiros a estimar os frutos das propriedades». Redigida a 25 de
Junho, esta petição não contém nenhuma alusão ao período vintista e à
revogação da respectiva legislação, mas refere-se ao «melhor dos reis»,
que «não deixará de mandar previdências sobre tais abusos, a fim de que
uma vez destruídos se conheça com evidência, que o opressor jamais
poderá zombar do oprimido enquanto dura a vida de Vossa Magestade».
Contém ainda uma alusão ao ano agrícola, «um ano em que a universal
penúria, e esterilidade reduziu o povo desta vila a não ter pão para um
mês», semelhante a outra que se encontra no requerimento de Évora.
A petição dos moradores de Évora de Alcobaça é de todas a mais
impressionante: além das dos homens da câmara, é subscrita por 97
assinaturas, das quais 74 de cruz, e afirma que «os povos dos coutos de
Alcobaça são de todos os vassalos de V. Mag. os vassalos mais opressos
[...] e quase sobre eles pesa o direito feudal». Uma vez mais, é patente a
fractura parcial entre o combate anti-senhorial e o campo político: diri-
gindo-se ao rei «como Pai dos seus vassalos», fala do «estado de coisas
ao tempo da desordem política de 1820» e do «sistema subversivo» para
sustentar, sem ironia, que «a feliz recuperação dos Direitos de Soberania
de V. Mag. deu mais força aos religiosos donatários». Um pouco como

163 ANTT, IGP., m. cor. cor., maço 124, n.º 435.


164 «Relação da Vinda de EI Rey o Sr. D. Miguel I a este Real Mosteiro de Alcoba-
ça», BNL, códice n.º 1481. Os limites da doação afonsina, bem como a época da primei-
ra edificação, alimentaram uma longa polémica, tendo os cistercienses chegado a publi-
car memórias contra a câmara de Aljubarrota (Fr. Manoel Figueiredo, Dissertação
Histórica e Crítica ..., Lisboa, 1790). Sobre o assunto, v. M. V. Natividade, Mosteiro e
Coutos..., cit., capítulo III.

240
Lavradores, frades e forais

as corporações em luta contra a criação das fábricas, as câmaras, neste


como noutros casos, adaptavam as suas pretensões às diversas conjuntu-
ras políticas, o que não obscurece as suas eventuais simpatias 165 .
O objectivo da petição, cujas preciosas informações analisarei adiante,
não é contestar os quarteiros. Além de denunciarem a não observância
da recente legislação sobre as terras arroteadas de novo166, pretendem
que o mosteiro, a coberto do restabelecimento integral dos direitos fora-
leiros, queria cobrar uma quota superior à praticada antes de 1821. Tes-
temunhando de forma indesmentível a extensão da «reacção senhorial»,
a câmara pede que o donatário se contente em receber o que arrecadava
antes daquela data, «entretanto que a reforma geral a que V. Mag. man-
dou proceder não aparece».
É a esta última petição que procura responder o requerimento do D.
Abade Esmoler-Mor, entregue pelo seu procurador em Lisboa e remeti-
da, a 22 de Julho de 1824, à Junta. Constitui uma síntese de todos os
acontecimentos verificados desde 1820 na comarca e fornece importan-
tes indicações sobre os montantes cobrados em virtude do foral, que
analisarei adiante. Apostada em denunciar os excessos do «povo rebelde
e amotinado», pede ao soberano «as necessárias, devidas e prontas pro-
vidências para que se observe aquele Decreto de 5 de Junho, mantendo-
-se os forais no vigor que os contratos onerosos firmaram e a diuturni-
dade dos séculos tem mantido e perpetuado, que se uns direitos firmados
com este cunho se não mandam vigorosamente guardar [...] não haverá
décima ou tributo que se pague, e seremos ameaçados com a renovação
dos tristes e lamentáveis acontecimentos passados»167.
Pela segunda vez, os conflitos com o donatário na comarca de Alco-
baça forçarão a publicação de legislação complementar, esclarecendo a
legislação geral, recém-publicada, sobre forais. Com efeito, no preâmbulo
ao decreto de 24 de Julho de 1824 fala-se das várias «representações e

165 Sobre as atitudes políticas do mundo artesanal corporativo, v. M. Halpern Perei-


ra, «O Estado vintista e os conflitos no meio industrial», in O Liberalisno na Penínsu-
la..., cit., 2.º vol.
166 Ainda que não venha explicitado, suponho tratar-se de uma alusão à carta de lei
de 25 de Novembro de 1823, que, embora revogando a de 14 de Março do mesmo ano,
alargava as isenções sobre terras arroteadas instituídas pelo alvará de 11 de Abril de
1815 (Diário do Governo, n.º 228, de 25 de Novembro de 1823).
167 AHP, I/II, cx. 112, n.º 10.

241
Regime senhorial e revolução liberal

queixas, sobre as dúvidas, que se tem suscitado, na inteligência do meu


Alvará de 5 de Julho último»168; ora, dos cinco requerimentos remetidos
entre estas duas datas à Junta de Reforma dos Forais, quatro são relati-
vos à comarca de Alcobaça169 e a maioria dos artigos do citado decreto
parecem pretender responder às questões por eles suscitadas. De manei-
ra muito abreviada, o decreto começa por esclarecer que o alvará de 5 de
Julho «se dirigiu unicamente a restabelecer usos e costumes» (artigo 1.°)
e que nos lugares onde dízimas e rações e foros incertos andassem «de
mistura» continuar-se-iam a pagar uns e outros (artigo 3.°). Relativamente
à questão mais imediata, o decreto parece retirar a obrigatoriedade de
aceitação dos quarteiros ao fazer depender dos foreiros a solicitação de
avaliação dos frutos «em pé» («se o foreiro não pedir avença no tempo
em que os frutos estejam pendentes [...] ficará obrigado a pagar na con-
formidade do foral», artigo 5.°), estabelecendo, além disso, a obrigato-
riedade de nomeação de dois louvados (um pelo senhorio e outro pelo
foreiro) e, em última instância, um terceiro nos casos em que se não
chegasse a acordo (artigo 6.°). O decreto estabelecia ainda as formas de
pagamento das quotas de vinho (artigo 7.°), mandava respeitar, no
pagamento dos direitos atrasados de 1822 e 1823, a redução a metade
(segundo a última avença, anterior), mais as dízimas por inteiro (artigo
8.°), e obrigava (no que parece ser uma resposta favorável à petição de
Évora de Alcobaça) à observância do alvará de 25 de Novembro de
1823 sobre as terras recém-arroteadas (artigo 9.°).
A importância deste decreto é comprovada pelo facto de, apesar de
nele se prometer a futura reforma dos forais, ter vigorado até à guerra
civil de 1832-1834, nele se apoiando (artigo 1.°) o único documento
legislativo conhecido do governo de D. Miguel sobre forais (alvará de
14 de Dezembro de 1832, posterior, portanto, à legislação de Mouzinho
da Silveira no campo liberal)170. No entanto, imediatamente, a sua apli-
cação retirava fundamento legal ao motivo mais próximo do conflito.

168 Gazeta de Lisboa, n.º 175, de 27 de Julho de 1824.


169 AHP, I/II, cx. 112. O outro requerimento é do distrito do Alvorge, comarca de
Coimbra, mas foi remetido antes de 5 de Junho.
170 Gazeta de Lisboa, n.º 52, de 1 de Março de 1833. Devo a indicação a M. Ale-
xandre Lousada.

242
Lavradores, frades e forais

Na comarca atravessava-se um momento de relativa acalmia. No dia


10 de Junho informava o corregedor que «o povo está sossegado, porque
até agora não se prosseguiu na diligência de estima das searas por via do
R. Mosteiro desta vila, em razão de todos os estimadores ou quarteiros
estarem muito receosos para se exporem aos insultos nas suas pessoas
ou fazendas, não se considerando seguros com o auxílio militar». A devas-
sa em curso no concelho de Aljubarrota era dificultada porque, diz ainda
o corregedor, havia «entre o povo respectivo tal combinação, que parece
muito difícil descobrir os verdadeiros amotinadores». Ainda no dia 24
voltava a informar não haver novidades, pois «o mosteiro não insistiu
em mandar os seus quarteiros» para os não expor «à vingança dos povos
que os não querem tolerar»171.
Uma ocorrência, no dia 27, servia para mostrar, no entanto, que «o
povo de alguns distritos ainda está dominado do espírito de insubordina-
ção». O mosteiro requerera embargo dos frutos recolhidos na eira de
vários homens de lugares do termo de Turquel, sensivelmente os mes-
mos onde se dera o tumulto do princípio do mês, para lhes ser aplicada
«a pena de perdimento em razão de não terem avisado para a partilha
dos direitos na conformidade do foral da terra». O primeiro dos visados
tentou resistir com alguns vizinhos «armados de paus» ao destacamento
de 6 soldados que acompanhavam os oficiais de justiça, que o prende-
ram. Só que «os ditos vizinhos, dando sinal para os lugares mais próxi-
mos, e incitando o levantamento de 50 a 60 indivíduos», tiraram o preso
à tropa e dirigiram-se à sede do concelho, onde o corregedor tirava
devassa do tumulto anterior, «em ar de triunfo e de assuada [...] dirigin-
do-me expressões altivas». No dia seguinte, o concelho seria ocupado
por 40 soldados.
De acordo com a documentação utilizada, extinguiram-se assim, com
ajuda da tropa, as manifestações mais importantes de resistência ao resta-
belecimento dos direitos senhoriais, ao mesmo tempo que prosseguiam as
devassas, as quais, infelizmente, não consegui encontrar. Os dados dis-
poníveis sugerem, não obstante, o duplo perfil dos «principais amotina-
dores» das efervescências estivais. Nelas participaram não só o povo
«miúdo» e «ignorante», mas notáveis como o próprio sargento-mor da

171 Esta citação, tal como as seguintes, foi retirada de ANTT, IGP, m. cor. cor., ma-
ço 124, n.os 463, 467 e 477.

243
Regime senhorial e revolução liberal

comarca, José Bento de Melo Salazar, residente em Alfeizerão, acusado


de haver «insinuado» o acórdão lavrado pela câmara de Cela, aconse-
lhado por um advogado das Caldas que lhe fez a minuta. Desta persona-
gem e deste tema voltarei a ocupar-me na conclusão.
Em princípios de Novembro de 1824 era remetida à Junta de Refor-
ma dos Forais uma petição do procurador de Aljubarrota na qual se
pedia que, estando o donatário a requerer sequestros contra os morado-
res rebeldes dos coutos, não fossem compreendidos nos mesmos os
lavradores daquela vila, tanto mais que já fora ordenada a vistoria sobre
a pertença ou não de parte do território da vila aos coutos cistercienses172.
Em 26 de Dezembro de 1824, «tendo cessado inteiramente o receio de
que se renovem os tumultos populares», o corregedor propunha a retira-
da das tropas. Terminava o ciclo iniciado com a revolução liberal de
1820.

Concelhos, paróquias, comunidades

Os conflitos, as mobilizações que procurei descrever, fazem emergir


formas de solidariedade local. Mais do que uma discussão genérica so-
bre a natureza da «célula de base» da vida rural, ou sobre os próprios
critérios de definição do conceito de comunidade, aquela verificação (de
que uma forma de «comunidade» se manifesta efectivamente nos confli-
tos anti-senhoriais, exprima-se ela ou não noutros terrenos) aponta para
a necessidade de caracterizar os quadros institucionais, pois, retomando
as palavras de M. Agulhon, estes «não eram apenas os quadros exterio-
res da vida social, podiam também ser eles mesmos o suporte e a oca-
sião de uma sociabilidade entre os seus membros activos»173. Em parti-
cular, as instituições locais são fundamentais para a determinação dos
mediadores das relações com a sociedade envolvente.

172 AHP, I/II, cx. 112.


173 «Les associations depuis le debut du XIXe siécle», in Les associations de village,
Actes de Sud, 1981, p. 12.

244
Lavradores, frades e forais

Alguns trabalhos174 sobre um dos mais estudados campesinatos euro-


peus (o francês) procuraram equacionar o problema atrás destacado a partir
da prevalência de uma de três circunscrições locais, frequentemente não
coincidentes no espaço: o senhorio, a paróquia e a «comunidade de habi-
tantes», quer dizer, a forma de organização nascida da unidade tributária
elementar. Ora, as referidas circunscrições não têm correspondência
linear na situação portuguesa de finais do Antigo Regime. Embora a
unidade paroquial fosse usualmente retomada para efeitos fiscais (déci-
ma), não existiam órgãos administrativos e judiciais ligados ao Estado
central de existência permanente, além dos concelhos, e estes tanto
podiam abranger uma como algumas dezenas de paróquias. Por outro
lado, os senhorios de donatários de bens da coroa podiam em certos
casos dar origem a formas de organização relativamente formalizadas
(os casos em que havia encabeçamentos, por exemplo), mas, em geral,
não se exprimiam institucionalmente senão nos poderes que os donatários
tinham de poderem intervir nas instituições municipais 175 (propondo
juízes de fora ou sancionando os juízes ordinários localmente eleitos) e,
a outro nível, nas paróquias (padroados das igrejas). Finalmente, é neces-
sário ter em conta as unidades de recrutamento e treino milicial local, as
ordenanças, indiscutivelmente muito importantes em algumas regiões:
embora parcialmente dependentes da organização concelhia, não coinci-

174 Além do já clássico P. Goubert, L’Ancien Regime, I, Paris, 1969, capítulo IV,
J.-P. Gutton, La sociabilité villageoise dans l’ancienne France, Paris, 1979, e P. M.
Jones, «Parish, segneurie and the community of inhabitants in Southern France during
eighteenth and nineteenth centuries», in Past and Present, n.º 91, 1981.
175 Na importante obra de A. M. Hespanha, História das Instituições. Épocas Medie-
val e Moderna, Coimbra, 1982, afirma-se, a propósito do Mappa alfabético das povoa-
ções..., de 1811, que naquela altura «já tinham sido incorporadas na jurisdição real, em
1790 e 1792, as jurisdições dos donatários, pelo que o seu senhorio se limitava já aos
simples direitos do foral» (p. 299). Esta afirmação não me parece correcta: em primeiro
lugar, porque aquela lista de donatários abrange efectivamente todos aqueles que tinham
o direito de propor juízes de fora e de sancionar os juízes ordinários de câmaras local-
mente eleitos, direitos que a legislação mariana não suprimiu; em segundo lugar, porque
o número de donatários que percebiam direitos instituídos em foral era naturalmente
maior do que os constantes daquela lista, pois em todas as circunscrições de 1.ª instância
em que havia mais de um foral e mais do que um donatário era a coroa quem exercia
aqueles direitos (v. o artigo XXVII do alvará de 7 de Janeiro de 1792).

245
Regime senhorial e revolução liberal

diam frequentemente com a área dos concelhos (as capitanias-mores)


nem das paróquias (as companhias de ordenanças)176.
Na época estudada, a comarca de Alcobaça compunha-se de 21 pa-
róquias e 13 vilas, que integravam a provedoria de Leiria. Parte de uma
«unidade geográfica menor» constituída pela fértil faixa costeira situada
a oeste da serra dos Candeeiros, a distribuição da população da comarca
de então não diferia muito da encontrada em meados do século XX, ca-
racterizada pela «disseminação das gentes por grande número de peque-
nos povoados, de lugares sensivelmente dispersos ou de casais e quintas
mais ou menos isolados»177, disseminação que tende a diminuir à medida
em que se transita do sopé da serra para as povoações costeiras. Em
geral, as concentrações maiores situavam-se nas sedes dos concelhos.
A densidade populacional era um pouco superior à média da Estremadu-
ra.
Os concelhos são a primeira circunscrição a considerar. Neste terre-
no, as duas imagens mais frequentes são claramente dissonantes: de um
lado, o panorama idílico legado pelas ideologias municipalistas do sécu-
lo XIX e seus sucedâneos178; do outro, a imagem extraída da contempo-
raneidade, que tende a apresentar os concelhos como o pólo antinómico
das aldeias, suposto instrumento imemorial de sujeição pelos núcleos
urbanos das vilas e de dominação do Estado sobre as populações
rurais179. Ora, a administração local dos finais do Antigo Regime desta-
cava-se pela ausência de uniformidade, coexistindo concelhos presidi-
dos por juízes de fora, magistrados com formação jurídica que manti-
nham uma mais estreita ligação com o poder central, com os concelhos
presididos por magistrados de eleição local. Simultaneamente, a rede
concelhia abrangia tanto os concelhos com muitas paróquias (que cor-
respondiam usualmente aos presididos por um juiz de fora) como uma

176 Em 1819 existiriam 442 capitanias-mores e 841 circunscrições de 1.ª instância,


2650 capitanias de ordenanças e 3915 paróquias, segundo Alberto C. Meneses, «Estatís-
tica da agricultura ao norte e sul do Tejo», in Archivo Rural, vol. III, 1860, p. 67.
177 Carlos da Silva, Alberto Alarcão e António P. Lopes Cardoso, A Região a Oeste
da Serra dos Candeeiros, Lisboa, 1961, pp. 3 e 143, respectivamente.
178 V. observações de A. Hespanha, op. cit., p. 269.
179 V., dentro desta perspectiva, Moisés E. Santo, Freguesia Rural ao Norte do Tejo
(Estudo de Sociologia Rural), Lisboa, 1980, pp. 13-25.

246
Lavradores, frades e forais

maioria de pequenos concelhos compostos por uma ou duas paróquias e


menos de 500 fogos180.
Na comarca de Alcobaça predominavam esmagadoramente os peque-
nos concelhos. Apenas a sede de comarca tinha juiz de fora (proposto
pelo donatário e coadjuvado, entre outros, por juízes de vintena nas fre-
guesias do termo, eleitos localmente, mas com diminutas atribuições) e,
juntamente com o de Pederneira, mais de 500 fogos. Dos restantes, 8
concelhos incluíam uma única paróquia (muito embora os limites destas
pudessem não coincidir rigorosamente com os daqueles). Todos os juí-
zes ordinários, eleitos «no pelouro» 181 , deviam ser confirmados pelo
mosteiro donatário. No entanto, se é certo que o foram em alguns anos e
que em 1811, por «estarem as ditas vilas sem governo algum», o D.
Abade chegou a receber autorização para nomear «alguns homens bons
para servirem de juízes e vereadores»182, não me foi possível confirmar
o que se praticou em 1822 e 1823 no respeitante à eleição das câmaras
constitucionais. Em qualquer caso, parece reduzida a eficácia do contro-
lo senhorial sobre as câmaras, seus interlocutores tradicionais nos con-
flitos com as populações.
Questão capital, até pelo papel decisivo que desempenham na oposi-
ção ao pagamento dos direitos senhoriais, é a caracterização dos juízes e
vereações camarárias. Em 1822, o corregedor da comarca, a propósito

180 Em 1811, de entre 841 circunscrições administrativas e judiciais de 1.ª instância


(incluindo as anexas), 167 tinham juiz de fora; donatários laicos e eclesiásticos exerciam
os aludidos resquícios de direitos jurisdicionais em 31,1% do total, segundo o Mappa...,
Lisboa, 1811.
181 O concelho de Alcobaça tinha juiz de fora, coadjuvado pelos vários juízes de
vintena; os de Évora, São Martinho e Safir de Matos, um único juiz ordinário; todos os
outros poderiam dispor, em princípio, de 2 juízes ordinários (ANTT, IGP, maço 125,
n.º 144). Foi possível verificar terem sido confirmados pelo donatário os juízes ordiná-
rios de Maiorga (1817), Aljubarrota (1827) e São Martinho do Porto (1831) e ter um
delegado daqueles presidido às eleições de todas as vereações em 30 de Dezembro de
1830. O donatário cisterciense propôs os juízes de fora, que depois foram confirmados
pela coroa, pelo menos em 1819, 1825 e 1830, não o tendo naturalmente feito em 1822.
Também foi possível verificar serem os juízes dos órfãos (vitalícios) propostos ou con-
firmados pelo donatário [AFF, Alcobaça (processos), maço 2, n.º 2; ANTT, IGP, m. cor.
cor., maço 126, n.º 60; ANTT, CR, comp. I, PN 30, n.º 54; BMA, «Livro de registos da
câmara de Alcobaça (1817-1885)»].
182 BNL, FG, cx. 83, n.º 17.

247
Regime senhorial e revolução liberal

das ordens de divulgação da lei dos forais, perguntava «se na denomina-


ção de ‘Ministro’ se compreendem aqueles, que sei, apenas pintam seu
nome; e não sabem ler» e se da ilustração de um tal objecto se podia
incumbir «a quem o não saberia fazer, nem pode adquirir de advogados
que a maior parte dos da comarca não tem nos seus distritos»183. Com
efeito, nas respostas das 12 câmaras ao inquérito sobre forais em 1824184,
se todos os juízes ordinários «pintam» os respectivos nomes, 22 dos 29
vereadores que as subscrevem assinam de cruz, tal como 4 dos 12 pro-
curadores. Era uma regra, quase invariável, nos pequenos concelhos.
Naturalmente, apesar da ausência de quaisquer investigações sobre a
geografia e a cronologia do processo de alfabetização em Portugal, estas
indicações não deixam de ser significativas. No entanto, ao contrário do
que afirmava o corregedor, o acesso à leitura podia preceder, no estádio
da alfabetização restrita, a prática da escrita185. É certo que as potencia-
lidades desta semialfabetização, essencialmente passiva e normalmente
controlada pela Igreja para a difusão da sua cultura, eram limitadas; a
verdadeira fronteira era o acesso à escrita, que podia permitir a secunda-
rização do papel dos mediadores culturais. Mas, tal como as da leitura
colectiva, eram enormemente ampliadas por uma circunstância peculiar
dos coutos de Alcobaça: o já referido predomínio dos pequenos conce-
lhos, a coincidência na maioria dos casos entre a paróquia e o concelho,
que fornecia aos seus habitantes uma instância de mediação alternativa,
uma instância laica, eventualmente concorrente do pároco. Para mais, o
papel das câmaras fora temperado por uma experiência secular de con-
flitos com o donatário e pela multiplicidade de atribuições que o Estado
absoluto lhes conferia (reforçadas na fase do despotismo iluminado pelo
frequente recurso às câmaras, tal como aos párocos e capitães-mores de
ordenanças, como fonte de informação).

183 ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 124, n.º 104.


184 V. nota 209.
185 François Furet e Jacques Ozouf, Lire et écrire. L’alphabétisation des français de
Calvin à Jules Ferry, Paris, 1977, t. I. Independentemente deste argumento, o que parece
indiscutível no caso em análise é que as categorias superiores do campesinato que, em-
bora não soubessem escrever, circulavam regularmente pelos postos camarários eram
claramente permeáveis à cultura, sobretudo jurídica, das «elites» reformistas e liberais,
que pareciam saber manipular. É por isso que no texto, onde se lê analfabetos, dever-se-
-ia talvez ler semianalfabetos.

248
Lavradores, frades e forais

Recenseamento eleitoral da comarca


de Alcobaça em 1826

[QUADRO N.º 4]
Elegíveis
Eleitores Eleitores
para depu-
paroquiais de provín-
Fogos tados
Concelho Freguesia (mais de cia (mais
(1825) (mais de
100 000 de 200 000
400 000
réis) réis)
réis)

Alcobaça.................. Alcobaça.................. 361 83 24 7


Alcobaça.................. Pataias...................... 223 79 0 0
Alcobaça.................. Valado..................... 106 1 0 0
Alcobaça.................. Vestiaria.................. 125 28 5 2
Alcobaça.................. Vimeiro................... 139 14 1 0
Alfeizerão................ Alfeizerão................ (b) 236 9 2 0
Aljubarrota.............. Prazeres................... 245 (a) − −
Aljubarrota.............. São Vicente............. 195 (a) − −
Alvorninha............... Alvorninha............... (b) 380 22 4 2
Cela.......................... Cela.......................... 305 (a) − −
Cós........................... Cós........................... (b) 138 17 1 0
Évora....................... Évora....................... 312 (a) − −
Maiorga................... Maiorga................... (b) 144 12 4 0
Pederneira................ Pederneira................ (b) 432 171 39 4
Pederneira................ Famalicão................ (b) 211 24 2 0
Salir......................... Salir......................... (b) 178 10 1 1
Santa Catarina......... Santa Catarina......... (b) 189 42 6 0
Santa Catarina......... Carvalhal B.............. (b) 105 10 4 2
São Martinho........... São Martinho........... (b) 232 51 11 0
Turquel.................... Turquel.................... (b) 185 80 1 1
Turquel.................... Benedita................... (b) 275 52 0 0
Total........................................................ (d) 4 716 − − −
705 105 19
Total (c)................................................... (e) 3 659 (19,3%)
500 75 10
Total (d) )................................................ (f) 2 705 (18,5%)

(a) Não há dados disponíveis.


(c) As cinco freguesias do concelho de Alcobaça mais as doze assinaladas com (b).
(d) Em 1828, a comarca tinha 18 496 habitantes.
(e) Em 1828, as dezassete freguesias tinham 13 542 habitantes.
(f) Em 1828, as doze freguesias tinham 9809 habitantes.
Fontes: AHP, AEM, cxs. 19 e 20; ANTT, MJ, maço 125.

249
Regime senhorial e revolução liberal

Desta forma, se é certo que a documentação utilizada não consente


que se tirem conclusões sobre a importância do direito consuetudinário
local relativamente à «lei geral» na prática jurídica quotidiana186, permi-
te, no entanto, aventar algumas hipóteses sobre a relação entre a cultura
escrita e a cultura oral: como se verá, não só, mas também, através das
respostas ao aludido inquérito, os juízes e vereações (maioritariamente
analfabetos) manifestavam-se bastante menos desprovidos de argumen-
tos e de capacidade de manipulação da lei geral nos conflitos com o
exterior do que aquilo que deixam supor as citadas declarações do cor-
regedor da comarca. Numa região aberta ao exterior, atravessada por
vias de acesso à capital relativamente próxima, a informação circulava
rapidamente, através de mediadores, como os escrivães e outros letrados
locais, como já foi possível entrever.
Directamente articulado com o anterior é o problema do recrutamen-
to social dos juízes e vereadores. Não tendo consultado actas camará-
rias, não foi possível medir exactamente o grau de participação nas elei-
ções. No entanto, a regra de fuga das «pessoas de representação» ao
exercício de cargos nos concelhos pobres parece verificar-se. No perío-
do considerado consegui identificar um único fidalgo; aliás, os fidalgos
residentes nos pequenos concelhos de comarca eram, por razões históri-
cas conhecidas, em reduzido número187. Em Setembro de 1822, uma
petição remetida às Cortes pelo procurador do concelho de Cela pedia
«para não serem obrigados a pagar pelos seus insignificantes bens» a
terça nacional, em dívida do ano de 1821, os oficiais camaristas; o con-
celho («pobríssimo») tinha como único rendimento as coimas e conde-
nações, e os oficiais da câmara eram «uns pobres lavradores»188.
Foi possível obter uma indicação mais precisa sobre a composição
social das câmaras da comarca para 9 dos 12 concelhos com juiz ordiná-
rio (infelizmente, os que faltam são os de Aljubarrota, Cela e Évora),
procurando nas listas dos eleitores paroquiais de 1826 (mais de 100$00
réis de rendimento) os nomes dos juízes, vereadores e procuradores que
responderam, em 1824, ao aludido inquérito. No conjunto das 9 câmaras

186 Equacionamento desta problemática em A. M. Hespanha, op. cit., subcapítulo


5.5.
187 V. A. M. Hespanha, op. cit., subcapítulo 5.4.
188 AHP, I/II, cx. 16, n.º 161.

250
Lavradores, frades e forais

(12 paróquias), os eleitores paroquiais representam 18,5% do número


das cabeças-de-fogo: dos oficiais camaristas de 1824, apenas um pouco
menos de um terço aparece nas listas dos eleitores paroquiais de 1826
(12, dos quais 7 assinam de cruz, num total de 39). Mais ainda, no côm-
puto final pesam muito os 3 concelhos onde a percentagem dos eleitores
paroquiais relativamente ao número de fogos era mais elevada; noutros
tantos nenhum dos camaristas de 1824 aparece recenseado em
1826.
O quadro anterior parece apontar para algumas conclusões. Em pri-
meiro lugar, como é óbvio, a de que o corpo dos participantes na vida
concelhia era bastante mais amplo do que o dos potenciais eleitores pa-
roquiais nas condições do voto censitário instituído pela Carta. Mas,
sobretudo, a de que o topo da pirâmide dos rendimentos (de que fariam
parte, além de quase todo o clero secular, os rentistas localmente resi-
dentes, os lavradores ricos, os letrados, os mercadores e parte dos arte-
sãos) não monopolizava as magistraturas e vereações camarárias, pare-
cendo legítimo concluir que a elas teriam acesso os lavradores e a
maioria dos artesãos, cerca de metade das cabeças-de-fogo. No entanto,
os lavradores iletrados que se sucediam periodicamente nas vereações
das câmaras e assumiam a representação das comunidades estavam lon-
ge de fazerem parte dos sectores ínfimos de uma sociedade rural estratifi-
cada. Como tentarei demonstrar, integravam o sector intermédio e supe-
rior de uma lavoura rica e fortemente mercantilizada, participando com os
letrados e pequenos notáveis locais numa rede que chegou a envolver na
oposição ao donatário alguns dos «grandes notáveis» da comarca.
No quadro da organização paroquial, a intervenção senhorial era
muito mais decisiva. Directa ou indirectamente, a Ordem de S. Bernardo
recebia as dízimas eclesiásticas de 19 das 21 paróquias da comarca. Se
bem que um terço dos respectivos rendimentos fosse para a Patriarcal ou
para a Mitra Episcopal de Leiria, na prática isto significava a quase
indistinção entre dízimos e direitos senhoriais, cobrados conjuntamente.
O donatário apresentava 17 dos 21 párocos da comarca189 e pagava, no

189 O Mosteiro de Alcobaça e o Mosteiro (feminino) de Cós recebiam, no todo ou


em parte, os dízimos em 19 paróquias, se bem que os seus rendimentos pudessem ter
sido destinados para as côngruas de párocos de outras freguesias, etc. Fontes utilizadas
neste parágrafo: ADL, 19-B, 7, 487; AHP, I/II, cx. 4, n.º 1; AHP, AEM, cx. 13; ANTT,

251
Regime senhorial e revolução liberal

todo ou em parte, as côngruas aos párocos nas mesmas 17 paróquias.


Além disso, custeava as despesas da maioria das fábricas das igrejas e
de uma parte dos coadjutores, quando existiam. A maioria dos párocos
eram vigários perpétuos.

Camaristas e eleitores (1824-1826)

[QUADRO N.º 5]

Juízes, vereadores e Dos quais são eleitores


procuradores que de paróquia em 1826
Concelho
assinam os quesitos (mais de 100$000 de
sobre forais em 1824 rendimento)

Alfeizerão.......................................................... 5 0
Alvorninha......................................................... 5 1
Cós..................................................................... 4 1
Maiorga.............................................................. 4 0
Pederneira.......................................................... (a) 5 4
Salir de Matos.................................................... 4 1
Santa Catarina.................................................... 5 0
São Martinho..................................................... 3 2
Turquel............................................................... 4 3
Total............................................................... 39 12
(a) Em 1826.
Fontes: AHP, AEM, cxs. 13, 19 e 20.

Sem me antecipar a conclusões posteriores, é indispensável recordar


aqui que o clero secular não desempenha o papel decisivo nas mobiliza-
ções anti-senhoriais e, principalmente, que, do pequeno número de pa-
dres que de alguma forma participam no movimento, um único era vigá-
rio apresentado pelo mosteiro (o de Alcobaça). O controlo senhorial
sobre os párocos parece assim bastante efectivo. Foi através de um con-
flito, por exemplo, que a freguesia de Santa Catarina se conseguiu sub-
trair ao padroado do mosteiro190. Mas, apesar da relativa frequência dos
insultos e agressões a párocos e a coadjutores e de a assistência às fábri-

CR, comp. 1, PN 30, n.º 54; ANTT, CR, B-52-17, «Livro da dataria»; ANTT, MJ, maço 276;
BNL, cor., n.º 1493; Augusto Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno ..., Lisboa, 1878.
190 BNL, cod. n.º 1490, fls. 154 e segs.

252
Lavradores, frades e forais

cas das igrejas poder ser uma fonte de tensões, a documentação consul-
tada só permite falar em anticlericalismo se se der ao termo uma acep-
ção muito ampla191.
As ordenanças, circunscrições de recrutamento que deviam periodi-
camente reunir os não mobilizados preparando-os para estarem aptos a
pegar em armas, são o último dos marcos institucionais a considerar.
Recorde-se que a instituição teve uma importância decisiva na maioria
das regiões onde houve revoltas antiliberais na década de 1820. A co-
marca de Alcobaça constituía uma única capitania-mor, de que era capi-
tão-mor o D. Abade Esmoler-Mor, estando, no entanto, aquelas funções
delegadas no sargento-mor192. O número das companhias − 17 − era
superior ao dos concelhos − 13. Socialmente, os capitães e alferes das
companhias, que quase todos o eram há longo tempo, pertenciam às
categorias superiores da sociedade local. O aspecto mais notório, sobre-
tudo numa comarca que não tinha tropa de primeira ou segunda linha,
parece ser o reduzido papel desempenhado pelas ordenanças nos confli-
tos; ou fosse pela negligência do sargento-mor ou por qualquer outro
motivo menos circunstancial, o contraste é acentuado com o que se veri-
fica nas regiões acima referidas.

A comarca de Alcobaça nos finais do Antigo Regime

Conhecer, mesmo que de forma sumária, as características da eco-


nomia regional, das estruturas agrárias e sociais da câmara de Alcobaça,
é uma condição indispensável para avaliar o significado do regime
senhorial e as tensões localmente suscitadas pela legislação liberal. As
parcas fontes utilizadas impõem, naturalmente, grandes restrições: de
natureza dominantemente qualitativa, dizem respeito, na sua maioria,
aos finais do século XVIII, quer dizer, a uma conjuntura económica e
(eventualmente) demográfica diversa do momento estudado. Permitem,

191 O termo tem, como se sabe, aplicação diversa, consoante as diferentes tradições
disciplinares. As limitações de espaço e as decorrentes do tipo de fontes utilizadas não
me permitem discutir mais aprofundadamente o problema.
192 ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 125, n.º 144, e maço 126, n.º 255; AHM, I div.,
37.ª sec., cx. 15, n.º 8.

253
Regime senhorial e revolução liberal

não obstante, apreender alguns dos traços fundamentais de uma região


agricolamente rica que produzia e exportava quase tudo, nos marcos de
uma estrutura social claramente estratificada.
Um dos primeiros elementos distintivos desta economia regional era
a grande diversidade de produções. Nos finais do século XVIII referia um
frade cisterciense, cujas respostas a um inquérito da Academia das
Ciências de Lisboa utilizarei frequentemente, que «esta comarca produz
com abundância azeite, frutos que aqui chamam de caroço, feijão bran-
co, cevada, tremoços, trigo e vinho. Também é muito o milho grosso,
que às vezes sobe a preço caro, por ser o género de que mais se susten-
tam estes povos193.» As contas dispersas de direitos senhoriais e dízimos
recebidos pelo mosteiro disponíveis apenas permitem entrever de forma
imperfeita o montante global da produção em cada concelho ou paró-
quia e alguma alternância de culturas, pois as diversas produções não
eram cobradas segundo critérios uniformes.
Dimensão fundamental, estamos face a uma zona exportadora. Na
fonte precedentemente citada esclarece-se que «as frutas exportam os
contratadores para Lisboa e feiras das comarcas vizinhas; o trigo, ceva-
da e feijão branco para a mesma capital e feira de Vila Franca, aonde
passam grande parte deste género. O vinho vai para as comarcas de Lei-
ria, Santarém e Tomar.» O transporte para Lisboa fazia-se pelo porto de
São Martinho e pelos ancoradouros do Tejo, situados entre Vila Nova da
Rainha e Vila Franca, para onde se levavam as mercadorias em peque-
nos carros. Curiosamente, sugere-se no mesmo documento que os trans-
portes para o Tejo não encontravam «maiores dificuldades», tal como as
não tinham os que se faziam dentro da comarca, apesar da ausência de
navegabilidade dos rios. Não foi possível encontrar indicações quantita-
tivas sobre o volume de produtos exportados, mas não parece lícito
duvidar da importância que revestia localmente a produção mercantil.

193 «Resposta às 193 interrogaçoens da Academia das Sciencias de Lisboa que são
respectivas à Comarca de Alcobaça», BNL, cód. n.º 1490; atribuídas por Vieira da Nati-
vidade a Fr. Manuel de Figueiredo (falecido em 1793), Mosteiro e Coutos..., cit., pp. 78-
-80. Todas as citações seguintes são tiradas daquele documento. São as respostas às
Perguntas de agricultura dirigidas aos lavradores de Portugal, Lisboa, 1787.

254
Lavradores, frades e forais

Se a riqueza do solo da região é conhecida, ainda que apresentando


variações, contraditórias são as indicações sobre o rendimento das cultu-
ras no período estudado. Contrariando a opinião explícita de Baltazar
Chichorro, que a estende, aliás, a toda a Estremadura ocidental194, na fon-
te que se tem vindo a utilizar apontam-se rendimentos elevados195 para a
época em questão: «São a maior parte das terras férteis, e nos anos regula-
res a sementeira de um alqueire de trigo produz 7 até 8 alqueires; de
milho de 30 até 32; de cevada de 10 até 11; de feijão branco de 10 até 12;
de favas de 6 até 7; e a proporção dos mais legumes.» Para mais, diz-se
que «a maior parte das terras são todos os anos cultivadas», sugerindo-se
um espaçamento dos pousios. A questão está em que as condições técni-
cas da produção indicadas não parecem compatíveis com aqueles rendi-
mentos e com a diminuição dos anos de pousio (transição para uma agri-
cultura intensiva). Por um lado, as potencialidades dos «campos» de
regadio da comarca eram bloqueadas pelas dificuldades em concretizar os
projectos de construção e reparação de valas; por outro, era limitada a
estrumação, em consequência de regressão dos baldios. É, assim, difícil
saber até que ponto no documento utilizado a imagem da comarca não foi
decalcada das quintas cistercienses.
Em toda a parte central e oriental da comarca era «outeirado o País e
pouco regadio». As parcas águas só eram utilizadas em anos de seca,
«por ser supérfluo regar quando o ano é húmido». Na faixa costeira, os
campos de Alfeizerão e São Martinho e os dos termos da Pederneira,
Cela e Alcobaça (bacia hidrográfica do Alcoa) tinham sido conquistados
em grande parte pelo retrocesso do mar desde o século XVI; atingidos
por cheias e inundações de areias, o seu aproveitamento era seriamente
restringido, tal como o do campo de Maiorga, pela impossibilidade de

194 Memória Económico-Política da Província da Estremadura (1793), ed. de Mo-


ses B. Amzalak, Lisboa, 1943, pp. 58-59.
195 Como termo de comparação, v. Aurélio de Oliveira, «A renda agrícola em Por-
tugal durante o Antigo Regime (séculos XVII-XVIII)», in Revista de História Económica e
Social, n.º 6, 1980, pp. 15-16, M. H. Pereira, Livre-Câmbio e Desenvolvimento Econó-
mico: Portugal na Segunda Metade do Século XIX, Lisboa, 1971, pp. 129-139, Carlos
Silva et al., A Região a Oeste..., pp. 508-512, para a mesma região em meados do século
XX, e B. H. Slicher van Bath, História Agrária da Europa Occidental, 2.ª ed., Barcelona,
1978, pp. 412-414 e quadro III, para uma perspectiva europeia.

255
Regime senhorial e revolução liberal

realização dos trabalhos necessários, apesar dos projectos e cláusulas


contratuais nesse sentido. Os cistercienses atribuíam as responsabilidades
a senhorios desinteressados e aos lavradores, que se recusavam termi-
nantemente a avançar dinheiro. Durante o período estudado são frequen-
tes os conflitos com os vizinhos das quintas do mosteiro por se recusa-
rem a participar nas despesas dos trabalhos de valagem e limpeza de
canais196.
A escassez de estrume era outra das grandes restrições da economia
local, afirmando-se nas respostas ao citado inquérito que sem ele produ-
zia a maior parte das terras, apesar de os lavradores lançarem mão de
tudo o que pudessem encontrar. No mesmo documento se apontava uma
explicação principal para aquela verificação: «uma das coisas que arruí-
nam nesta comarca a agricultura é estar muito cultivada, de que se segue
faltarem matos para estrumes e pastagens, e os lavradores não tirarem
dos seus trabalhos as utilidades que estes podiam produzir», «não bas-
tam os baldios que há para estrumar as terras e pastagens dos gados da
comarca». É assim claramente detectável um processo de ocupação dos
baldios, correlativo do crescimento demográfico, cuja concretização se
descreve na mesma fonte197, não obstante os violentos direitos senhoriais
que impendiam sobre as terras arroteadas. Apesar de a densidade popu-
lacional da comarca ser, em 1801, apenas ligeiramente superior à média
da Estremadura e não representar mais de um terço da registada em
meados do século XX, tem-se a impressão de que a área de ocupação
agrícola, na sua frente oriental, tendia a aproximar-se da verificada nesta
última altura.

196 AFF, Alcobaça (processos), maço 2, n.º 6 (1818), e maço 1, n.os 13, 14 e 17
(1824); na faixa costeira predomina naturalmente a produção de milho.
197 «São comuns os baldios, e se algum morador se quer apropriar de alguma parte,
requer ao Mosteiro Donatário que conforme todos os forais desta comarca nos títulos
das sesmarias − manda ouvir a câmara e apregoar o requerimento; e não achando opo-
sição da câmara e povo fundada no prejuízo, manda lavrar o título com foro de terra, que
é quarto, e dízimo de pão e legumes; quinto e dízimo dos mais géneros» (fonte cit.,
fl. 42).

256
Lavradores, frades e forais

Um dos efeitos da situação descrita eram as limitações postas aos


efectivos de gado. Nas respostas que se têm vindo a retomar afirma-se,
certamente com algum exagero, não existirem na comarca fenos, ervas
de lameiro e prados e haver pouco gado bovino e ovino (importava-se
lã). Seriam maiores os efectivos de gado suíno e caprino, único de que
extraíam lacticínios. Outra consequência da referida situação era a falta
de lenha, «muito pouca e cara», pelo que era importada da Marinha
Grande. As matas e pinhais do mosteiro, situados no vale de Pataias-
-Nazaré, eram alvo de roubos regulares; ainda entre 1823 e 1824 foi
possível verificar mais de 8 processos por roubos de pinheiros 198 . No
entanto, sugerem-se ainda na mesma fonte algumas contratendências. Por
um lado, os moradores iam começando a semear pinhais nas «terras
ruins». Por outro, associa-se a resolução do primeiro dos problemas enun-
ciados às «muitas plantações de oliveiras, por não ficarem estes terrenos
na maior parte das estações vedados para pastagens», embora a grande
expansão da olivicultura seja anterior.
Em conclusão, nos finais de Setecentos a comarca possuía uma agri-
cultura rica, que permitia às categorias superiores da sociedade rural
uma exportação diversificada de produções, mas que dava alguns sinto-
mas de esgotamento. Se existem indicações sobre a combinação e alter-
nância de culturas, é certo que era limitada a escolha de sementes e as
terras, onde a batata (indiana) era ainda pouco utilizada, e do margue só
se ouvia falar, produziam, em geral, uma única cultura anual. Tendo-se
expandido a área agricultada para além do equilíbrio requerido pelas
condições técnicas prevalecentes, poder-se-á hipoteticamente pensar
que a produção atingira um limiar, dentro do duplo condicionamento
dos limitados ritmos de difusão das inovações técnicas e do peso de
uma punção senhorial proporcional ao volume das colheitas.
Interessa agora cotejar estas indicações com outros dados disponí-
veis, designadamente sobre a evolução demográfica. Se bem que a
taxa de variação da população (calculada pelo número de fogos) ao
longo do século XVIII seja limitada e claramente inferior à média, a
segunda metade do século pautou-se pelo crescimento relativo, embora
não seja possível comprovar se tal se verificou ainda no último quar-

198 AFF, Alcobaça (processo), maço 1, n.os 8, 9, 10, 11, 12, 16, 18 e 19.

257
Regime senhorial e revolução liberal

tel199. No documento de recriação da ouvidoria, separada da comarca de


Leiria (1775), isso é explicitamente reconhecido, destacando-se, talvez
sem fundamento, a importância que para o efeito teria tido a fundação,
em 1772, da fábrica de lençaria200. Criada sob o impulso pombalino, foi
uma das maiores unidades de fiação e tecelagem de algodão de euforia
industrial do último quartel de Setecentos e uma das primeiras a receber
os novos maquinismos industriais (1789). Tendo sido privatizada, dentro
da política geral do período mariano, chegou a envolver o trabalho de 508
operários no fim do século201. Importa destacar que grande parte destes
não residia na freguesia da sede do concelho de Alcobaça. Embora não
seja possível medir-lhe a importância, a industrialização deve ter forne-
cido um recurso complementar às famílias das paróquias rurais mais
próximas.

199

Evolução do número de fogos das 21 paróquias da comarca de Alcobaça

Ano Fogos Ano Fogos Ano Fogos


1537................ 1 839 1816............... 4 531 1820............... 4 690
1732................ 4 603 1817............... 4 586 1825?.............. 4 716
1798................ 5 587 1818............... 4 636 1826-1828...... 4 953
1801................ 5 667 1819............... 4 692 1835................ 4 928
1815................ 4 479 1855............... 6 221

Fontes:
a) Consideraram-se apenas as 21 paróquias que compunham a comarca em 1820,
não se contabilizando, por isso, os fogos de Vidais (em 1798 e 1801). Em 1736 não há
referência a duas paróquias e para 1855 tiveram de se estimar os fogos de outras duas.
b) Luís Caetano de Lima, Geografia Histórica..., 2.° vol., Lisboa, 1736; A Popula-
ção de Portugal em 1798..., Paris, 1970; Taboas Topográficas e Estatísticas 1801, Lis-
boa, 1945; Joel Serrão, Fontes de Demografia Portuguesa 1800-1862, Lisboa, 1973;
Diario das Cortes..., Lisboa, 1822, t. 6.°, 452; Instrucções Necessarias para a Convoca-
ção das Côrtes Geraes... (1826, imp.), ANTT, MJ, maço 125; Mappa n.° 1. Contendo os
Concelhos... até ao anno de 1828, BNL, SC 5766-A; AHP, I/II, cx. 296, n.° 12; Sousa
Macedo, op. cit., nota 77, pp. 219-220; A. Balbi, Essay..., Paris, 1822, I, p. 208.
200BNL, cód. 1493, fls. 80-80 v.º
201Jorge Custódio, «Considerações sobre Acúrcio das Neves, os melhoramentos
económicos e a industrialização portuguesa», introdução a José Acúrcio das Neves,
Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa, Considerada nos Seus
Diferentes Ramos, Lisboa, 1983, pp. 47-56 e nota 155.

258
Lavradores, frades e forais

Entre 1801 e 1815, as freguesias da comarca perdem um quinto do


número de fogos, não tendo ainda conseguido ultrapassar o quantitativo
da primeira daquelas datas em 1835. Os efeitos dos anos de «carestia»
dos finais do século XVIII, princípio do XIX (saldo fisiológico negativo,
por exemplo, em 1801, como em grande parte da Estremadura), e as
incidências dramáticas das invasões francesas são as explicações mais
óbvias. A fábrica de lenços, queimada durante a invasão de Massena,
não conseguiria retomar a laboração normal depois de 1813, encontrando-
-se em decadência em 1817202. Numa das dez comarcas cuja população
sofreu uma quebra importante, as conhecidas condições de rarefacção
relativa da mão-de-obra da conjuntura do advento do liberalismo tinham
naturalmente de se fazer sentir.

Categorias sócio-profissionais dos cabeças-de-fogo e percentagem de


fogos com «fazenda» na comarca de Alcobaça segundo os
mapas das companhias de ordenanças de 1775

[QUADRO N.º 6]

Dos quais têm «fazen-


Cabeça-de-fogo Percentagem dos fogos
da» (percentagem)

Lavrador............................................................. 20,9 94,5


Trabalhador........................................................ 37,9 64,1
Oficial................................................................ 24,9 54,4
Viúva, filhos de, etc........................................... 12,5 54,5
Outros................................................................. 3,7 84,1
Total de fogos.................................................... 3387 67,6

O problema capital das estruturas agrárias e sociais da comarca ape-


nas pode ser abordado de forma insignificante. Uma primeira imagem,
bastante imperfeita, pode ser obtida através dos mapas das companhias

202Sobre o assunto, v. M. Vieira da Natividade, O Mosteiro..., cit., pp. 16-17 e nota


112, J. Acúrcio das Neves, op. cit., pp. 139-140, e Jorge Borges de Macedo, Problemas
de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII, Lisboa, 1963, pp. 241-242.

259
Regime senhorial e revolução liberal

de ordenanças de 1775, que já foram utilizados por Borges de Macedo.


A fonte apresenta inumeráveis limitações e deficiências203. Mesmo assim
permite uma primeira aproximação.
O quadro anterior sugere que mais de dois terços dos cabeças-de-
-fogo da comarca possuem «fazenda», quer dizer, a exploração de um
prédio rústico. Os fogos encabeçados por trabalhadores constituem o
grupo mais numeroso, representando quase o dobro dos chefiados por
lavradores; também a maioria dos trabalhadores tem fazenda. De entre
os oficiais, onde se incluem todas as profissões dos sectores secundário
e terciário, cerca de 60% são ocupações industriais. Apenas nas compa-
nhias da Nazaré, Pederneira e São Martinho vêm os oficiais em primeiro
lugar, sendo a maioria dos fogos encabeçados por marítimos. Somente
nas 4 companhias de ordenanças de Alcobaça, Alvorninha e Salir de
Matos é a percentagem dos trabalhadores relativamente à dos lavradores
superior à média, chegando, pelo contrário, nas de Cela e Maiorga a
percentagem dos fogos chefiados por lavradores a igualar ou ultrapassar
a dos chefiados por trabalhadores. Estas indicações parecem ser subs-
tancialmente coincidentes com as de uma sondagem realizada nos livros
de décimas de maneios de 1763, fonte que é, infelizmente, impossível
utilizar para períodos posteriores para o mesmo efeito 204 . Quase um
século depois, em 1855, apesar da «mania da propriedade», pois «os que
nunca se lembraram de ter um palmo de terra começaram a possuir»,

203 BNL, cód. n.º 6945; já foi utilizada por J. B. de Macedo, op. cit., pp. 120-122. As
contas foram, porém, totalmente refeitas, porque os totais que vêm no final da fonte não
só estão frequentemente errados, como não permitem contabilizar a distribuição das
fazendas por categorias sócio-profissionais. Observações sobre os critérios seguidos:
1.º tomei como base de contagem os fogos e as categorias sócio-profissionais utilizados
na fonte; 2.º desta forma, por exemplo, mulheres e «filhos de» com profissão foram
incluídos nos fogos da profissão referida; 3.º contei como 1 os casos em que apareciam 2
indivíduos com profissão no mesmo fogo, ou indivíduos com mais de uma profissão;
4.º a quarta categoria engloba mulheres, viúvas, «filho de» e «filhos de» sem profissão
referida; 5.º a quinta categoria, «outros», abrange todos os indivíduos do sexo masculino
que não vêm nas colunas das profissões, ainda que por vezes se acrescente capitão ou
alferes (das companhias de ordenanças) ou Dr.; tratar-se-á, pois, na maioria dos casos,
de proprietários rentistas e notáveis. O número total de fogos é claramente inferior aos
que a comarca devia ter na altura.
204 Sondagem efectuada para Évora e Maiorga, ATC, décimas das províncias, m. 466,
n.º 8, e m. 469, n.º 5.

260
Lavradores, frades e forais

directamente atribuída à legislação da revolução liberal de 1834, a rela-


ção entre o número de lavradores e o número de trabalhadores parece
não se ter alterado significativamente205.
Trabalhadores e lavradores, é todo o problema das diferenciações
sociais dentro das comunidades que aquela distinção evoca. Distinção
secular que os próprios forais denotam, por exemplo, ao distinguirem no
pagamento do direito da fogaça as prestações dos lavradores e as dos
moradores «que não houverem herdade», ou ao estabelecerem as formas
de remuneração em géneros a jornaleiros que aqueles utilizassem nas
ceifas «além das suas pessoas e seus mancebos»206. Somos assim con-
frontados com a extensão das relações salariais, sobre as quais a já utili-
zada fonte dos finais de Setecentos nos fornece algumas indicações: «Os
jornais dos agricultores é de Verão 120, e 100 réis de Inverno para os
homens; e para as mulheres 3 vinténs naquela estação, e 50 rs. nesta, o
que é conforme as taxas. Nos anos de aperto para o agricultor sobem os
jornaleiros o preço que querem o seu trabalho. Não é preciso virem ho-
mens de fora quando as estações são regulares207.» Em 1821, uma carta
ao Astro da Lusitânia exprimia o âmbito dessa relação salarial próxima
ao denunciar a tentativa do mosteiro para compelir, como era seu cos-
tume, os povos do Valado a trabalharem numa sua quinta abaixo do
«preço dos vizinhos»208.
O individualismo agrário e a importância das relações salariais, em
detrimento das formas de cooperação no trabalho, parecem assim dever
compreender-se entre as características da comarca. Mais ainda, a partir
da documentação consultada pode retirar-se a sugestão de que a afirma-

205 D. António de C. Sousa Macedo, Estatística do Distrito Administrativo de Leiria,


Leiria, 1855, p. 30. O mesmo autor, op. cit., pp. 85-86, aponta aquela data para o conce-
lho de Alcobaça, que abrangia mais de metade das paróquias da antiga comarca, a exis-
tência de 1219 proprietários-trabalhadores e 4698 trabalhadores (proporção de 1 para 3);
só que, do total da população activa, 2478 indivíduos são mulheres, certamente quase
todas trabalhadoras, que na documentação do século XVIII quase não vêm registadas. Se
se abater o número das mulheres no quantitativo dos trabalhadores, a proporção baixa
para 1,82.
206 Luís F. Carvalho Dias, Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve,
Estremadura, s. l., 1962, pp. 149 e 161.
207 BNL, cód. n.º 1490, fl. 51.
208 N.º 248, de 22 de Setembro de 1821.

261
Regime senhorial e revolução liberal

ção do moderno direito de propriedade, clara e repetidamente retomada


do discurso liberal, parece defrontar-se muito mais com as restrições que
lhe impunha o regime senhorial (por exemplo, oposição à entrada dos
quarteiros nas «propriedades particulares») do que com quaisquer obriga-
ções comunitárias. Ao mesmo tempo que constituía um dos fundamentos
essenciais das atitudes solidárias da colectividade local.
Em síntese, se os termos «lavrador» e «trabalhador», utilizados no
vocabulário oficial em todo o país, revestem sempre uma grande ambi-
valência, a parca documentação reunida permite sugerir que, apesar do
predomínio da pequena exploração, a comarca se caracterizava por uma
estrutura da população agrícola claramente diferenciada, onde se teria de
distinguir, pelo menos, um conjunto maioritário de trabalhadores, de
grupos domésticos para os quais o salário constituía um recurso essen-
cial pelo menos uma parte do ano, uma categoria intermediária de
pequenos lavradores mais ou menos auto-subsistentes e, por fim, um
grupo mais restrito de lavradores (relativamente) abastados que não só
comercializavam regularmente os excedentes, como, juntamente com os
proprietários locais e os próprios cistercienses, recorriam à utilização de
trabalho assalariado.

Regime senhorial e petições das câmaras:


o inquérito de 1824

Para o próprio ano em que foi revogada a legislação vintista e se


deram os enfrentamentos na comarca foi possível dispor de uma infor-
mação de excelente qualidade: as respostas ao inquérito sobre forais
ordenado em 22 de Julho de 1824 pela Junta da Reforma dos Forais209,

209 Quesitos: 1.º se há foral na câmara; 2.º por quem foi dado e qual a sua data;
3.º que é o que ele manda pagar ou fazer; 4.º se o que está em uso é o mesmo que o foral
manda; 5.º se há diferença entre o uso e o foral, em que consiste e desde quando; 6.º a
quem se paga o que se deve pelo foral ou pelo uso; 7.º qual é o modo da arrecadação;
8.º se a obrigação do foral compreende todo o distrito, freguesia, lugar ou casais disper-
sos e quais são; 9.º qual é a obrigação proveniente de forais que mais vexa o foreiro;
10.º qual é o preço do actual arrendamento ou administração desses direitos; 11.º qual
era o preço ou rendimento nos anos de 1819 e 1820; 12.º se há encabeçamento de todos
ou de alguns desses direitos, como e em que tempo foi feito; 13.º se o mesmo distrito

262
Lavradores, frades e forais

criada na sequência da publicação do decreto de 5 de Junho de 1824.


Juntamente com alguns requerimentos (o de Évora e o do D. Abade),
permitem obter uma informação pormenorizada, mas nem sempre con-
cludente, sobre os direitos que efectivamente se cobravam e, simultanea-
mente, sobre as atitudes face ao regime senhorial.
Em 1824 vigoravam na comarca os forais estabelecidos pela reforma
manuelina, na maioria datados de 1 de Outubro de 1514 e alterados por
sentença de 6 de Julho de 1556, os quais retomavam, por seu turno, os
forais dados pelo donatário no período medieval. O foral de Évora de
Alcobaça servira de base à maioria dos restantes, o que justifica que dele
me ocupe mais pormenorizadamente. Os principais direitos fundiários
eram quotas da produção (foral reguengueiro): quarto do pão e legumes
na eira; o quarto do vinho no lagar, das vinhas «já feitas» até àquela
data, e o quinto das que de novo se plantassem. Estabelecia também a
obrigatoriedade do pagamento do quinto da fruta dos pomares, ficando
isenta a produzida nas hortas se não fosse vendida, tal como os alhos,
cebolas, favas, ervilhas e a cevada do ferragial para os bois. Um título
posterior mandava pagar apenas o dízimo da fruta colhida, excepto se se
vendesse ou colhesse depois de 15 de Agosto, pagando-se nesse caso
mais o quarto ou quinto. Entre os direitos «fiscais» ou «banais», e como
tal teoricamente suprimidos pela respectiva lei vintista, mantida em
vigor pelo decreto de 5 de Junho, contava-se em primeiro lugar a foga-
ça, senhos alqueires de trigo e senhas galinhas210 por lavrador e apenas
esta última prestação para «os outros moradores». Mandava também o
foral respeitar os monopólios senhoriais dos fornos, lagares, moendas,

está sujeito a diversos forais; 14.º se o estiver: o que se manda pagar por cada um deles,
ou por costume, e desde que tempo; 15.º se não há foral e há posse: que é o que por ela se
paga e qual é o modo da cobrança; 16.º se consta haver foral, posto que não esteja na câ-
mara, em poder de quem se acha ou se presume que se achará; 17.º se o que se paga por
foral ou posse é produção da terra obrigada, comprado fora ou substituído por outra espé-
cie; 18.º que é o que pode ser mais conveniente aos foreiros com menos prejuízo dos se-
nhorios; 19.º qual é o fruto que mais abunda e para que é mais próprio o terreno.
O estudo das respostas a este inquérito constitui a base principal do meu trabalho an-
tes citado. As respostas da comarca de Alcobaça encontram-se no AHP, na provedoria
de Leiria. Foi de lá que se tiraram as principais informações sobre forais e também de
Luís Carvalho Dias, op. cit., pp. 144-168 e 317-318.
210 «Cada um seu ou sua» (Viterbo, Elucidário..., 2.° vol., 2.ª ed.). As câmaras recu-
savam frequentemente a atribuição deste significado à palavra.

263
Regime senhorial e revolução liberal

açougues e da venda do vinho nos três primeiros meses do ano (relego).


Consagrava ainda direitos de portagem. Outros direitos tinham deixado
há muito de ser aplicados ou perdido importância, seja porque estabele-
cidos em numerário, seja porque revogados por legislação geral (presos
remetidos, cadeias, etc.). Merecem ser destacados, entretanto, o título
das sesmarias, que regulava ainda o arroteamento dos baldios, e o título
dos jornaleiros, estabelecendo que se retirassem das produções das
colheitas os géneros destinados ao pagamento destes, cuja não obser-
vância suscitaria protestos das câmaras.
Seria, naturalmente, demasiado extenso apresentar todas as diferen-
ças dos forais dos outros coutos. Tal como em relação às respostas das
respectivas câmaras, ficar-me-ei pelas discrepâncias mais importantes.
Quase todos os forais determinavam a obrigatoriedade do pagamento do
quarto (ou quinto) do azeite (ou azeitona) na oliveira, que no de Évora
se não particularizava, embora também lá se pagasse. Por vezes, a for-
mulação era mais genérica [«o quarto de todos os frutos que Deus der
[...] tirando vinho e azeite que devem dar o quinto» (Santa Catarina)].
O quarto dos legumes e linho só em alguns aparece especificado. Mas o
direito de fogaça, ou casarias, vinha discriminado em quase todos os
forais. Naturalmente, eram inexistentes as alusões ao dízimo eclesiásti-
co. Nos das vilas de Aljubarrota, São Martinho e Pederneira não se esta-
belecia o monopólio dos lagares.
Diferenças mais substanciais ocorriam com os forais de Pederneira,
Aljubarrota e Alvorninha. O foral de Pederneira particularizava os direi-
tos sobre o pescado e a circulação de mercadorias211 e estabelecia que
em parte do concelho se pagaria o quarto do pão e o quinto do vinho e
na outra os oitavos dos dois géneros, com excepção dos pescadores e
viúvas, que pagariam o dízimo. Em parte do concelho de Aljubarrota
(correspondente mais tarde à freguesia de São Vicente, desmembrada do
concelho de Porto de Mós), a prestação da jugada fora convertida ao
pagamento do oitavo do pão, linho e vinho. O mesmo acontecia em
alguns lugares de Cós. No concelho de Alvorninha uma multiplicidade
de documentos regulava a cobrança da jugada retomada da vila de Óbi-
dos (os últimos eram o foral de 1531 e alvará de 1569, que mandava os

211 Os problemas dos direitos senhoriais e dízimos sobre o pescado não serão aqui
tratados.

264
Lavradores, frades e forais

povos avençarem-se com o mosteiro). Representava uma situação parti-


cular dentro dos coutos.
No concelho de Alcobaça, por fim, apenas duas das cinco paróquias
(Valado e Vestiaria) tinham forais, datados do período medieval, estabe-
lecendo o quarto e o quinto. Afirmava a câmara que, «não havendo outro
foral além das duas cartas de povoação, emprazamentos e encabeçamen-
tos nesta vila e termo, está na posse o donatário de receber quarto e
dízimo nos géneros cereais, e quinto e dízimo de vinho branco e azeite e
dízimo só da uva preta, do terreno que não é compreendido nos títulos
acima».
Até agora ocupei-me das terras em que se regulava o pagamento dos
direitos senhoriais ao donatário por foral (ou pelo uso...), quer dizer,
pelo que na terminologia da lei de 1846212 se chamaria «título genérico».
Na maioria dos concelhos, porém, existiam alguns casais encabeçados e
quintas, lugares, etc., que haviam sido em diferentes épocas aforados a
particulares («título especial») pelo mosteiro por pensões normalmente
menos onerosas do que as estabelecidas nos forais. Frequentemente, os
foreiros eram notáveis que os subaforavam. Quase sempre que a tal se
referem as câmaras consideram a situação dos lavradores destes senho-
rios mais favorável.
Ao aludido inquérito respondem 11 câmaras entre Setembro e Outu-
bro de 1824, ou seja, quando a tropa ainda permanecia na comarca.
Tendo de novo sido solicitadas respostas em princípios de 1826, só des-
ta altura é possível dispor das de duas câmaras (Évora e Pederneira),
além de segundas de outras duas (Cós e Maiorga). É flagrante a simili-
tude ou coincidência de alguns documentos (os de Alfeizerão, Santa
Catarina e Salir, por exemplo). Também as letras, que não são sempre as
dos escrivães, revelam terem sido algumas respostas escritas pelo mes-
mo punho em câmaras diferentes. As considerações precedentes não
diminuem o valor do inquérito, enquanto documento. Servem apenas
para demonstrar, por um lado, que a oposição ao senhorio propiciava o
surgimento de formas de actuação concertada entre várias câmaras, já
antes verificadas, e, por outro, o papel fundamental dos «intermediários

212 De 21 de Junho de 1846.

265
Regime senhorial e revolução liberal

culturais»213 nos conflitos, determinado, em primeiro lugar, pelo facto de


estes terem de se legitimar no terreno da lei geral e escrita, que aqueles
controlavam. No entanto, quaisquer que fossem as referências genéricas e
abstractas que as sustentassem, as aspirações das comunidades não deixa-
vam de se espelhar nas propostas das câmaras, precisamente pelo carác-
ter específico e concreto que estas revestiam214.
O inquérito de 1824-1826 permite conhecer, numa primeira aborda-
gem, as prestações efectivamente cobradas e qual a diferença que as
câmaras julgavam existir entre o foral e o uso. Faculta ainda uma ideia
relativamente precisa da percentagem representada pelos direitos senho-
riais relativamente à produção bruta de cereais. A Ordem de S. Bernardo
de Cister recebia os direitos senhoriais em todas as paróquias da comar-
ca, e dois terços dos dízimos em 19, se bem que os dízimos e direitos
reais do concelho de Cós, os direitos reais da freguesia de Pataias (con-
celho de Alcobaça) e os dízimos da freguesia do Carvalhal Benfeito
(concelho de Santa Catarina) fossem cobrados pelo Mosteiro feminino
de Cós, instituído pelo mosteiro cabeça da ordem no século XVI215. Uma
parte dos dízimos dos cistercienses podia ser entregue aos párocos, da
própria ou de outras freguesias, ou ao Convento da Madalena (arrábido);
na paróquia de S. Martinho do Porto os dízimos eram entregues ao prior
de Alfeizerão e o direito real da fogaça ao próprio pároco, por exemplo.
Todas as câmaras, com excepção das de Alcobaça e Aljubarrota, tinham
cópia do foral.

213 Sobre a noção, v. Michel Vovelle, «Les intermédiaires culturels», in Ideologies


et mentalités, Paris, 1982, pp. 163-176.
214 V. as considerações de Roger Chartier, «Cultures, lumières, doléances: les cahiers
de 1789», in Revue d’histoire moderne et contemporaine, t. XXVIII, 1981, pp. 85 e segs.;
sobre o mesmo assunto, v. ainda Alphonse Dupront, «Formas da cultura de massas: dos
agravos políticos à peregrinação pânica (séculos XVIII-XX), in Níveis de Cultura e Grupos
Sociais, Lisboa, 1974, e Jean-Marie Constant, «Les idées politiques paysannes: étude com-
parée des cahiers de doléances (1576-1789)», in Annales E. S. C., n.º 4, 1982.
215 Entre outras fontes, ADL, 19-B, 7, 487. A partir de agora utilizarei no texto a pa-
lavra mosteiro para designar os dois mosteiros da Ordem de S. Bernardo (o de Cós e o
de Alcobaça).

266
Lavradores, frades e forais

Por motivos diversos, as respostas de três câmaras merecem ser con-


sideradas à parte. A da câmara de Alcobaça, pela moderação que a
caracteriza, sintomática da dependência estreita face ao donatário: con-
sidera-se aquela, por exemplo, dispensada de responder ao nono quesito
sobre os principais vexames. A da câmara de Alvorninha, concelho rela-
tivamente favorecido (terra de jugada, e não de quarto), chega a reco-
nhecer que se paga menos do que o consignado no foral; mesmo assim
não se esquece de referir que, «sendo neste termo o terreno de pão muito
pouco fértil, sempre os rendeiros ou administradores do mosteiro que-
rem aumentar as avenças, pondo muitas vezes os povos em circunstân-
cias tristes de antes não semearem...» (nono quesito). Finalmente, e
pelas razões opostas, a câmara de Aljubarrota, que retoma os argumen-
tos já conhecidos: o pagamento dos quartos, quintos e oitavos é totalmen-
te «abusivo», exclusivamente baseado no costume, «há mais de 90 anos
que os povos começaram litígio contra essa posse o qual se tem supri-
mido pela prepotência dos frades, com que não pode competir a pobreza
e aniquilação do povo que só confia na justiça, que lhe assiste», tendo
sido, finalmente, ordenada a vistoria para conhecer os limites da doação
afonsina.
As respostas das restantes 10 câmaras têm em comum considerarem
que há diferença, «abuso» ou «usurpação» nas prestações cobradas pelo
uso relativamente ao estabelecido nos forais. A contestação ao donatário
é, assim, geral, ainda que varie de tom de resposta para resposta. Por
isso mesmo, torna-se difícil saber quais os direitos que, estabelecidos
em foral, haviam caído em desuso, sobre os quais as câmaras são natu-
ralmente lacónicas.
Quanto à natureza das diferenças entre o uso e os forais, 5 câmaras
(eventualmente 6) consideram compreender-se naquelas... o pagamento
do dízimo, «porquanto o foral não autoriza» (Alfeizerão)! Situação
realmente excepcional no Portugal dos finais do Antigo Regime216, só
possível numa comarca onde se confundiam com os direitos senhoriais,

216 São muito numerosas as petições sobre dízimos às cortes vintistas, só que foram

parar à comissão eclesiástica e não à de agricultura. A investigação sobre os fundos


daquela comissão levada a cabo por Ana Faria, do CEHCP, parece apontar, no entanto,
que era sobretudo o destino dado aos dízimos, e não a prestação em si, o alvo da contes-
tação frequente.

267
Regime senhorial e revolução liberal

quase metade das câmaras dos coutos cistercienses consideravam a pró-


pria percepção do dízimo eclesiástico, e não apenas o destino que se lhe
dava, uma «usurpação». As restantes câmaras quase não aludem ao dízi-
mo, mas consideram que se leva mais do que o que o foral manda. Nal-
guns casos, a diferença não estaria só nos montantes, mas também nos
géneros cobrados. Três câmaras acusam o donatário de cobrar mais dos
mais pobres: «a regra geral aqui, e em todas as terras dos coitos obser-
vada é: quanto mais pobre é o lavrador, mais paga» (São Martinho).
A utilização de quarteiros apenas nomeados pelo senhorio, motivo
próximo do conflito de Junho, é explicitamente apontada como não
autorizada pelos forais (nem pelo direito comum do reino) em 5 das 8
respostas redigidas em 1824: aqueles são unanimemente criticados.
Quatro câmaras (a de Maiorga só em 1826) acusam o donatário de não
respeitar o clausulado dos forais que manda descontar, antes da partilha,
um alqueire por cada ceifeiro que os lavradores metessem na ceifa. Três
câmaras denunciam o levar-se mais pelo direito de fogaça do que o que
os forais determinam. A de Maiorga acusa ainda o senhorio de não con-
ceder madeiras para as abegoarias nem concorrer para o concerto da
igreja e dos caminhos.
A câmara de Évora, onde já em 1821 se havia dado o conflito com o
fidalgo criador de gado, considera (em 1826) que «logo que alguma par-
te (dos baldios) se reduza a cultura os frades lhe põem a obrigação do
quinto», acrescentando que os baldios sempre se havia reputado perten-
cerem à câmara, pelo que aquela prática era um «abusivo costume».
Este último protesto não tinha fundamento legal, porque o foral da vila
era explícito (título das sesmarias) em afirmar que nos coutos de Alco-
baça não se aplicava o estabelecido nas ordenações sobre a matéria, por
todas as terras dos coutos serem tributárias e foreiras do mosteiro217,
mas não deixa de ser muito revelador. Recorde-se, por outro lado, que já
na petição de 1824 a câmara havia protestado contra o desrespeito da
legislação relativa aos anos durante os quais se não tributavam as terras
recém-arroteadas, tendo obtido resposta legal no decreto de 24 de Junho
de 1824, mas, aparentemente, pouco êxito prático.

217 Sobre o assunto, v. as notas 135, 141, 166 e 197 deste trabalho e Carvalho Dias,
op. cit., p. 151.

268
Lavradores, frades e forais

Retomando agora o quadro dos 12 concelhos onde, no todo ou em


parte, se pagavam quartos, e retomando os dois citados requerimentos, é
possível obter uma ideia da percentagem da produção bruta de cereais
que efectivamente representavam os direitos cobrados pelo senhorio. No
requerimento do D. Abade, em resposta à já referida acusação do reque-
rimento de Évora de se pretender cobrar mais em 1824 do que o pago
antes de 1820, afirma-se que, até esta data, «querendo ele [...] animar e
aumentar a agricultura, tem por muitas vezes perdoado a muitos colonos
a quarta, ou terça, parte dos direitos, ou ainda mais», mas que «um
benefício, um favor ou um perdão» não podia fazer adquirir direito ou
posse legal. No mesmo documento faz-se um cálculo do que deviam
representar o quarto (em virtude do foral) e o dízimo (pela lei divina e
eclesiástica) nas terras onde se arrecadavam conjuntamente: «Em 10
alqueires devem pagar 3 alqueires e uma quarta pelo quarto e dízimo e
por 60 alqueires, 19,5 alqueires: a saber, de 4 alqueires se paga 1 pelo
quarto, de 8 se pagam 2, e do nono alqueire se paga uma quarta; e o
décimo alqueire é para o dizimo; e se de 10 alqueires se pagam 3 alquei-
res e quarta, por 60 se deverão pagar 19,5 alqueires [...] donde sai a Terça
Patriarcal ficando para o mosteiro 17,5.» Era, no entanto, como se viu, o
próprio D. Abade a reconhecer as excepções. As declarações de várias
câmaras sobre os montantes arrecadados por moio (60 alqueires) confir-
mam essa impressão: em (parte) de Aljubarrota (em 1824) pagava-se 12,
15 e 19,5 alqueires; em Cela (1824), 17 alqueires (no agro) e 19,5 (na
eira); em Évora (até 1820), 12 e 14 alqueires: em 1824 o donatário pre-
tendia levar 19,5 alqueires, cobrando 12 (dos ricos) e 15 alqueires (dos
pobres) em 1826; em Maiorga, 15 e 19,5 alqueires (em 1824 e 1826). Em
São Martinho cobrava-se antes de 1820 só pelo quarto 8, 10, 12 e 14
alqueires, pretendendo-se arrecadar um quarto e um quinto em 1824.
Parece, assim, possível concluir que nas terras que pagavam dízimo e
quarto, que eram a maioria na comarca, o donatário percebia efectiva-
mente entre um quinto e um terço da produção cerealífera bruta. Percen-
tagem realmente impressionante: dificilmente se encontrariam na França
de 1789 situações comparáveis. Avançar qualquer estimativa comple-
mentar com base em indicações puramente qualitativas (por exemplo,
sobre os níveis de produtividade) parece-me arriscado, pois, como é
óbvio, a retórica das câmaras não é o melhor indicador. É preciso, além

269
Regime senhorial e revolução liberal

disso, ter presente que se pagava, pelo menos em parte dos concelhos, o
alqueire de fogaça e que uma parcela, cuja importância sondarei mais
adiante, das terras pagava ainda foros enfitêuticos a vários senhorios. As
indicações sobre os montantes arrecadados de vinho branco (quinto e
dízimo), 7 de cada 25 almudes (em Maiorga em 1824 e 1826 e em Évo-
ra em 1824), parecem indicar a eficácia do controlo que os monopólios
senhoriais dos lagares garantiam. São escassas as indicações sobre as
quantidades de azeite. Quase nulas em relação aos outros géneros, os
quais, de resto (incluindo as frutas), estão pouco representados nas con-
tas dos direitos senhoriais do senhorio. Sintoma de que podiam repre-
sentar um complemento fundamental na economia familiar dos lavrado-
res?
Os montantes efectivamente cobrados pelo senhorio, embora inferio-
res aos apresentados nas Cortes pelo antigo provedor de Leiria Borges
Carneiro218, contrariavam frontalmente a opinião de Alberto Carlos de
Meneses sobre os forais de quota de frutos, quando afirmava que «não
há um só foral desta espécie que se observe em sua letra em alguma par-
te do reino»219. Opinião que, no entanto, era perfeitamente adequada a
todos os casos em que o senhorio era absentista e permite chamar a
atenção para um facto essencial: só a apertada vigilância senhorial podia
impedir a erosão dos direitos foraleiros nas terras onde estes se encon-
travam estabelecidos como uma quota da produção.
Evidentemente, a oposição aos quarteiros, em 1824, reflectia sobre-
tudo a oposição àquilo que eles representavam naquela conjuntura: o
restabelecimento dos direitos senhoriais na sua totalidade. Mas também
a consciência de que a efectivação da sua cobrança estava dependente
da eficácia do controlo senhorial, de que aqueles eram o instrumento.
Um documento cisterciense dos finais do século XVIII esclarece bem

218 «O extenso terreno dos coutos de Alcobaça paga de cada moio dezanove e meio
alqueires aos frades Bernardos, além do dízimo» (debate parlamentar de 10 de Novem-
bro de 1821, transcrito em M. H. Pereira, Revolução..., cit., p. 248). Manuel Borges
Carneiro foi provedor de Leiria, tendo-se realizado sob a sua supervisão o levantamento
das décimas da comarca de Alcobaça, por exemplo, em 1814. Uma ou duas petições às
Cortes ter-lhe-ão sido directamente remetidas por habitante da comarca (v. nota 151),
tudo indicando que os eleitores de Alcobaça nele tenham votado, quer para as Cortes
extraordinárias, quer para as ordinárias.
219 Plano de Reforma de Foraes, e Direitos Banuaes ..., Lisboa, 1825, p. 100.

270
Lavradores, frades e forais

este aspecto: «A avença raríssima vez deixará de igualar a produção, em


muitas vezes excede, sujeitando-se os lavradores mais à estima e arbítrio
dos quarteiros do que a estimas e arbitrações próprias, para comprarem a
liberdade de debulharem o seu pão quando quiserem, sem o encargo do
aviso de que debulham, e de esperarem 24 horas que os administradores
e rendeiros e quarteiros do donatário venham assistir à partilha220.» Des-
de a publicação, em 1822, da lei dos forais que os direitos reais passa-
ram a andar, em todos os concelhos, administrados pelo senhorio, sendo
por ele escolhidos os quarteiros. O mesmo acontecia com o Mosteiro de
Cós. Em 1824, a hostilidade aos quarteiros era geral, como se viu, e em
alguns casos as câmaras denunciavam o não serem da escolha das duas
partes. No entanto, apesar de já assim se fazer em Évora em 1826 na ava-
liação da uva negra, não é certo que o estabelecido sobre a matéria no
decreto de 22 de Julho de 1824 fosse efectivamente respeitado. Parece
que avaliação «em pé» já só se faria por escolha do lavrador.
As respostas ao inquérito nem sempre são claras sobre o destino dos
direitos banais e serviços pessoais, cuja abolição legal se manteve em
vigor depois do alvará de 5 de Junho de 1824. Os direitos de fogaça e
casarias eram compreendidos inequivocamente no artigo 3.° da lei de 7
de Abril de 1821, onde se declarava ficarem «extintas todas as obriga-
ções e prestações consistentes em frutos, dinheiro, aves, ou a favor de
algum senhorio, pelo simples facto de viverem naquela terra...».
A câmara de Alcobaça declarava estar em uso tudo que determinavam
as cartas de povoação «com a simples alteração de se não pagarem casa-
rias por virtude do decreto que extinguiu os direitos banais, sustentado
pelo Decreto de 5 de Julho do presente ano de 1824». No entanto, no
mesmo ano de 1824, as câmaras de Évora, São Martinho, Alfeizerão,
Santa Catarina e Salir de Matos afirmavam continuar a pagar aqueles
direitos. Em São Martinho, cujas dízimas se pagavam ao prior de Alfei-
zerão, a fogaça era entregue ao próprio pároco. Nos três últimos conce-
lhos citados contestava-se o montante cobrado pelos referidos direitos
pelo senhorio, mas, surpreendentemente, não se punha em causa a sua
legalidade. Assim, apesar de nos coutos do Mosteiro de Alcobaça, em
1821 e 1822, se fazer um abatimento de cerca de 10% aos rendeiros em

220 BNL, cód. n.º 1480, fl. 270 v.º

271
Regime senhorial e revolução liberal

virtude do decreto dos banais, pode concluir-se que numa grande parte
dos concelhos dos coutos se continuavam a pagar os referidos direitos,
pelo menos ainda em 1824.
As informações são ainda mais lacunares sobre os outros direitos
«banais». Sobre o relego, cuja estrita observância o donatário impunha
ainda em 1818 e 1819, por exemplo, a cerca de uma dezena de lavrado-
res e taberneiros do concelho de Alfeizerão, não se descortina nenhuma
referência na citada documentação. Os monopólios senhoriais eram im-
portantes por garantirem a eficácia do controlo senhorial dos direitos
foraleiros, sendo essa, aliás, praticamente a única função dos lagares.
O donatário guardava zelosamente a sua observância até 1820, tendo
ainda, em 1818, requerido a destruição de uma lagariça que um lavrador
de Santa Catarina se atrevera a construir 221 . Em 1824, na petição da
câmara de Évora, refere-se que os habitantes do concelho «não podem ter
forno, em que cozam seu pão, nem ter lagar onde façam seu vinho e seu
azeite, porque tudo deve ser levado aos lagares e fornos dos padres. Não
conhecem os suplicantes outro povo sobre quem pesem encargos tais.»
No entanto, apesar de existirem outras indicações sobre a manutenção
do monopólio senhorial dos lagares222, é com surpresa que se verifica
que nas respostas ao inquérito as câmaras o não denunciam. Não me foi
possível, assim, saber em quantos concelhos depois de 1821 os monopó-
lios senhoriais se continuaram a respeitar. Estas indicações sugerem,
paradoxalmente, que na mesma comarca que respondeu violentamente à
revogação da lei dos forais de 1822 se continuavam a respeitar direitos
banais, apesar de a sua abolição se ter mantido depois de 1824.
Os outros direitos estabelecidos nos forais, exceptuando os de porta-
gem, em São Martinho e Pederneira e noutros locais em altura de feira,
parecem ter caído em desuso.

221 Sobre o relego, AFF, Alcobaça (processos), maço 2, n.os 3 e 5, e sobre o mono-
pólio dos lagares, ibid., maço 2, n.º 1. No entanto, o mosteiro concedia algumas vezes
autorizações especiais para a construção de lagares particulares.
222 Em Maiorga, em 1823, ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 124, n.º 299; também no-
ta 150 deste trabalho.

272
Lavradores, frades e forais

As respostas ao 18.° quesito («que é que pode ser mais conveniente


aos foreiros com menos prejuízo dos senhorios») e em parte ao 9.°
representam uma das facetas mais reveladoras do inquérito sobre forais
de 1824 não só pelas propostas concretas que apresentam, como sobre-
tudo pelo discurso aduzido para as legitimar. Comportam evidentes
limitações, que decorrem da própria forma como as perguntas eram
formuladas e, principalmente, do contexto político global em que foram
produzidas: estava fora de questão propor a abolição pura e simples dos
forais. Mas a simples realização do inquérito contribuía para criar uma
expectativa, bem espelhada no primeiro parágrafo das respostas da
câmara de Évora já em 1826: «Em cumprimento do ofício de V. S.ª
(provedor de Leiria) respondemos aos quesitos indicativos de uma pró-
xima reforma dos forais, para benefício da agricultura...»
Principiarei por agrupar as respostas das câmaras. Uma vez mais, a
proposta do concelho de Alvorninha distingue-se de todas as outras
pelos motivos explicados: «O mais conveniente aos foreiros, ou estes
povos deste distrito é ao menos a conservação do costume e uso em que
se acham e têm estado.»
Seis das 13 câmaras da comarca de Alcobaça propõem a redução a
metade dos direitos senhoriais estabelecidos em foral; 7, se se contar
com a segunda resposta de Cós (1826). De entre estas, 2 (Cela e Maiorga)
acrescentam «sem dízima» e a de Aljubarrota «enquanto se não decidir
a questão que pende». Em nenhuma resposta aos quesitos se encontra
qualquer alusão ao período vintista. No entanto, o que quase metade das
câmaras propõem é o restabelecimento da situação criada pela lei dos
forais de 1822!
São discrepantes as propostas das restantes câmaras. A de Alcobaça
sugere que se arbitre uma prestação certa em função da qualidade do
terreno, a de Pederneira uma quota «razoável» e a de Turquel um «foral
razoável». As outras vão mais longe. A de São Martinho entende que só
se poderia suportar uma «muito favorável jugada de milho». A de Évora,
que o mais conveniente era a redução do foral à terça ou quarta parte.
A de Cós (1824) propõe a redução do quarto a dízimo («sem quarteiros»)
e a de Maiorga (1826) a dízimo, «quando muito, oitavo».
A redacção das respostas aos quesitos não parece ter sido acompa-
nhada de assembleias de habitantes, como aconteceu noutras regiões e

273
Regime senhorial e revolução liberal

na redacção da petição de Évora. Mas as câmaras que as redigiram


tinham atrás de si um vasto e persistente movimento, sobre o qual se
apoiavam.
São, como disse, muito semelhantes, em alguns parágrafos literalmen-
te iguais, as respostas ao 18.° quesito das câmaras de Alfeizerão, Santa
Catarina e Salir, as mais completas de todas. O primeiro argumento adu-
zido para justificar a redução dos direitos foraleiros a metade é seme-
lhante em todas as três: «É com efeito desconhecer os próprios interes-
ses a porfiosa teima com que o senhorio pugna pela observância do foral
a este respeito: visto que aliviado o lavrador do peso enorme dos encar-
gos que sofre, não faltará à terra com os adubamentos precisos, de forma
que o aumento da produção indemnizará o senhorio da suposta perda»
(Santa Catarina). O segundo argumento é também largamente coinci-
dente: «A povoação diminui sempre na razão directa da esterilidade;
porque os homens, ou largam o país natalício, devorado pela miséria, ou
se ali se conservam, vivem em perpétuo celibato, de que resulta a pro-
gressiva falta de braços, para os amanhos dos terrenos já amansados, e a
esperança, de nunca se amansarem os bravios.» Também a câmara de
Évora refere que «alguns se têm ausentado deste território». Numa
comarca que se não tinha recomposto ainda da quebra da população
sofrida no princípio do século não será possível descobrir neste argu-
mento, para além das óbvias influências do discurso das «elites» refor-
mistas223, uma alusão à escassez de mão-de-obra assalariada? A câmara
de Salir acrescenta ainda que «a salvação da República é a suprema lei
em cujo objecto deve ceder o cómodo particular [...] e com maior razão
agora, em que o ramo do comércio estagnado pede que se dêem provi-
dências muito sérias, para ocupar inúmeros braços ociosos que não podem
refluir sobre outra parte da indústria nacional, que não seja a indústria do
campo». A mesma alusão à ruína do antigo sistema colonial acompanha
as respostas de Alfeizerão e Santa Catarina, em que se aduz o terceiro
argumento comum: «Há motivos justíssimos (para a redução) porque as
doações régias são revogáveis e nenhuma prevalece ao benefício geral

223 Cuja difusão na comarca é certamente anterior à primeira revolução liberal.

274
Lavradores, frades e forais

do Reino; principalmente agora, em que as circunstâncias políticas nos


obrigam a largar as quilhas pelos arados dos nossos avós224.»
A imagem dos frades cistercienses e do regime senhorial que as res-
postas transmitem é invariavelmente carregada. O abuso do foral vem
de tempos antigos, «sem que se tenha podido evitar pela poderosa repre-
sentação dos frades sobre os povos dos seus coutos, que predominam
com rigorosa vassalagem», as violências dos frades «tornam escravizada
a condição dos povos cada vez mais oprimidos» (Maiorga, 1824). Nas
respostas de Alfeizerão e Santa Catarina considera-se que «a lavoura
carregada como está dentro dos coutos de Alcobaça, não pode dar um
passo para a sua prosperidade, e os colonos pouco diferem dos servos do
Torrão, que habitam alguns países do Norte da Europa». A câmara de
Maiorga, que propõe a redução dos direitos foraleiros a metade «sem
dízima», considera poderem os frades «viver ainda em muita abundân-
cia com metade do que agora se lhes paga, à custa do suor dos pobres e
das lágrimas de tantos indigentes miseráveis». A de Salir chega a insinuar
que, «assim como a intemperança gera maus humores no corpo animal
do homem, assim a superficialidade das riquezas relaxa a disciplina
canónica nos corpos morais».
Se as reivindicações que avançam correspondem às solicitações das
comunidades locais, as respostas das câmaras, principalmente as mais

224 Tal como a ideia anteriormente expressa de que a crise do sistema colonial im-
punha uma viragem para a agricultura, trata-se de uma ideia-força do discurso liberal,
fundamento aduzido por Mouzinho da Silveira para legitimar a abolição dos forais e
prestações senhoriais em bens da coroa no decreto de 13 de Agosto de 1832. No entanto,
à luz do direito do Antigo Regime, era duvidosa a aplicação a este caso do princípio da
revogabilidade das doações régias, até pelas próprias cláusulas da doação régia aos cis-
tercienses (A. C. Meneses, Plano..., cit., pp. 13-14). Num plano mais geral, A. Hespanha
sustentou recentemente que em todas as doações feitas à Igreja os bens da coroa perdiam
«[...] a sua natureza e tornavam-se bens eclesiásticos, amortizando-se no donatário»
(História..., cit., p. 289). No entanto, ao contrário do que o mesmo autor afirma, há con-
firmações gerais em que aparecem donatários eclesiásticos, ainda que poucos (por exem-
plo, ANTT, maço antigo n.º 113). Por outro lado, os donatários eclesiásticos estavam sujei-
tos, como todos os outros, ao pagamento do quinto dos donatários e o tribunal de apelação
era, também para eles, o dos feitos da real coroa. Parece-me claro, portanto, que, embora
não se lhes aplicando a Lei Mental e o princípio geral da reversibilidade, os bens da coroa
em posse de donatários eclesiásticos não haviam perdido integralmente a sua natureza
nos finais do Antigo Regime.

275
Regime senhorial e revolução liberal

completas, exprimem-se numa linguagem que está muito mais próxima


da cultura das «elites» reformistas do Antigo Regime e da das «elites»
políticas liberais do que de uma qualquer cultura popular tradicional.
Certamente, as câmaras apoiavam-se num movimento que assentava
numa tradição anti-senhorial multissecular e que se exprimia numa
notável coesão das comunidades locais, abundantemente documentada.
Também é certo que o documento escrito e a necessidade de esgrimir no
terreno da lei geral implicavam fatalmente o recurso ao arsenal dos depo-
sitários de um saber relativamente especializado, aos «intermediários cul-
turais». Mas não é essa escolha de terreno nem das características gerais
de todo um movimento que, embora tremendamente persistente, escas-
samente recorre à violência «anárquica»? Não é patente a ausência de
qualquer inversão dos papéis dentro das comunidades?
Nas respostas é frequente a alusão às dualidades pobre-rico, podero-
so-fraco, opressor-oprimido. Várias são as câmaras que, como se viu,
acusam o mosteiro de levar mais dos mais pobres e menos dos mais
ricos. Uma referência, aliás, repetida mais adiante, no texto da câmara
de Évora esclarece os limites daquela dualidade: «Costumam os lavra-
dores fazer avenças [...] outros pagam na eira e no lagar, com diferença
que os ricos pagam 12 alqueires por cada 60, e os pobres pagam 15 sem
lhes ser descontado o que manda o foral tirar para obreiros.» Ricos e
pobres são lavradores, os trabalhadores não são abrangidos naquela dua-
lidade. Se se associar esta referência explícita às características gerais
do movimento, à provável proveniência social dos juízes e vereações e
às alusões à escassez de mão-de-obra, não será lícito concluir que são as
categorias intermédias e superiores de uma sociedade rural relativamen-
te diferenciada, lavradores em todo o caso, a base fundamental da opo-
sição ao donatário?
Estas hipóteses parecem encontrar confirmação na análise minuciosa
do caso do concelho de Évora, que na documentação setecentista apre-
sentava uma relação entre o número de trabalhadores e o de lavradores
próxima da média da comarca. Para o efeito, tentou-se o cruzamento dos
nomes constantes em três documentos, que exprimem, de alguma forma,
as tensões sucessivas por que passou aquela comunidade, com a cons-
ciência dos limites e riscos do método utilizado (dificuldades de identi-

276
Lavradores, frades e forais

ficação, sobretudo). Em primeiro lugar, a lista dos subscritores do auto


de expulsão do gado do fidalgo de Alcobaça, em Janeiro de 1822, e do
requerimento da mesma altura que procurava justificar aquele acto: ao
todo, 59 indivíduos, 52 dos quais assinam de cruz, incluindo a câmara e
3 mulheres. Em seguida, o rol dos indivíduos que pagaram os oitavos
(alguns, o décimo) de cereal da colheita de 1822 (1823), decorrentes da
redução a metade pela lei dos forais daquele ano dos quartos e quintos: são
205 indivíduos, 199 dos quais aparecem na lista das pessoas que deviam o
dízimo da colheita daquele ano. A quase totalidade dos produtores de cereal
do concelho não terá pago, por conseguinte, a parte correspondente ao
dízimo eclesiástico, entre estes se compreendendo também 3 padres225. Por
fim, a petição anti-senhorial de Julho de 1824, várias vezes referida. Um
documento notável que se poderia classificar entre o «oral mais ou menos
directo» e o «oral ruminado, refundido a partir de transmissões ou ensina-
mentos escritos»226 . Assinado pela câmara e pelo «povo», ao todo 101
subscritores (74 dos quais assinam de cruz), entre os quais se compreende
um dos padres localmente residentes que em 1822 não pagara o dízimo.
O número de indivíduos constante do rol dos meios direitos senho-
riais (oitavos) pagos em Évora em 1822 corresponde aproximadamente
a dois terços do número de fogos de um concelho onde o trigo e o vinho
eram as principais produções. As quantidades brutas de cereal (trigo,
cevada e milho) cobradas pelo mosteiro parecem reduzidas. A partir
deste rol dividiram-se os produtores de cereal em três categorias: o gru-
po I, composto pelos que pagam 5 alqueires ou menos de cereal, cuja
produção estimável dificilmente bastaria para o sustento dos respectivos
grupos domésticos, representa 64,4% do total dos indivíduos; o grupo II,
a categoria intermédia dos que pagam entre 5 e 10 alqueires, 22% do
total; por fim, o grupo III, a categoria restrita (13,6% do total) dos que
pagam mais de 10 alqueires, ainda que nenhum chegue a ultrapassar os
30. A média é de 6,13 alqueires.

225 «Rol dos oitavos dos Frutos que derão os Lavradores o anno de 1822», ANTT,
CR, comp. 1, PN 30, n.º 54, o único registo que, apesar de todas as deficiências, conse-
gui encontrar para o efeito. Os outros documentos foram retirados das fontes citadas nas
notas 141 e 167 deste trabalho.
226 A. Dupront, op. cit., p. 90.

277
Regime senhorial e revolução liberal

Peticionários de Évora de Alcobaça

[QUADRO N.º 7]

Rol Requerimento Petição


Évora
de 1822 de 1822 de 1824

Grupo I................................................................ 64,4% 29,4% 37,7%


Grupo II.............................................................. 22% 29,4% 34%
Grupo III............................................................. 13,5% 41,2% 28,3%

Não foi possível identificar no rol de 1822 cerca de um terço dos


subscritores de qualquer um dos outros dois documentos, mas mesmo
assim as indicações obtidas são extremamente significativas. Os subscri-
tores do auto de expulsão e/ou requerimento distribuem-se do seguinte
modo: 29,4% tanto pelo grupo I como pelo grupo II; 41,2% pelo grupo
III, incluindo-se nestes os quatro maiores produtores do concelho, dos
quais apenas um (precisamente o que fazia de juiz em 1822) sabia assi-
nar com o próprio punho. E os que apoiam a petição anti-senhorial de
1824, 37,7% pelo grupo I, 34% pelo grupo II e 28,3% pelo grupo III,
contando-se entre estes tanto o juiz de 1822 como o de 1826, o que é um
óbvio sintoma de continuidade na acção da câmara. Entre os subscrito-
res de ambos os documentos compreendem-se indivíduos tanto da sede
como de quase todos os lugares do termo do concelho. Vinte e seis indi-
víduos compõem o «núcleo mais activo», os que subscrevem simulta-
neamente o documento de 1822 e o de 1824: destes, apenas 4 sabiam
assinar o nome e, de entre os 20 identificados no rol de 1822, 7 perten-
ciam ao grupo II e 10 ao grupo III.
Parece, assim, possível concluir-se que estamos face a um movimen-
to que se apoiava nas atitudes solidárias da comunidade local, mas em
que a hegemonia pertencia indiscutivelmente aos lavradores, às catego-
rias intermédias e superiores da sociedade camponesa, que, no entanto,
dificilmente chegariam a compreender grandes lavradores. Parece claro,
por exemplo, que a importância relativa dos lavradores mais abastados

278
Lavradores, frades e forais

(grupo III) é ainda maior na expulsão do gado do fidalgo (1822) porque


aquela interessava principalmente a quem tinha gado e a maior parte das
famílias do concelho possivelmente não o tinham. Seria necessário estu-
dar, por exemplo, um ano de crise de subsistências na comarca para sa-
ber se esta solidariedade de vizinhança podia ser rompida227.
As numerosas indicações qualitativas sobre a quebra nos rendimentos
provenientes dos direitos senhoriais, etc., carecem de confronto com infor-
mações quantitativas. Será necessário relembrar que o objecto deste trabalho
não é o estudo do mosteiro, da sua contabilidade, da lógica dos seus consu-
mos ou da vida conventual. A contabilidade dos mosteiros cistercienses
revela-se importante para a obtenção de três diferentes tipos de informa-
ções que aqui directamente nos interessam: sobre a respectiva estrutura de
rendimentos (designadamente a percentagem representada pelas rendas
relativamente às explorações directas); sobre o impacto da legislação libe-
ral e da sua aplicação; finalmente, sobre os graus de recusa ao pagamento
dos direitos senhoriais e dízimas nas diferentes paróquias da comarca.
Infelizmente, não parecem existir livros de contabilidade para o período
em análise228. A documentação que consegui reunir apresenta, no entanto,
algumas limitações importantes, que restringem a segurança das conclu-
sões que dela se possam retirar: por um lado, porque, tratando-se quase
sempre de participações feitas à administração central para efeitos tributá-
rios (e não de registos internos), torna-se difícil avaliar o grau de subesti-
mação dos seus proventos; por outro, porque, como já foi referido, não
consegui ainda determinar com rigor a que paróquias ou parcelas corres-
pondia cada área de cobrança cisterciense; por fim, porque em relação a
um ano não foi possível determinar se os rendimentos disponíveis eram
ou não os líquidos229.

227 Sobre a forma como a diversidade social da sociedade camponesa pode não obs-
tar à existência da «homogeneidade moral», v. Paul Bois, Les paysans de l’Ouest, Paris,
1978, pp. 182-198.
228 No inventário dos bens do mosteiro sugere-se que os frades os levaram quando
fugiram em Outubro de 1833 [AHMF, conventos de frades, IV-D-2-(1)].
229 Designadamente, é o que se passa com os rendimentos de Alcobaça em 1827-
-1828 e com os de Cós em 1796. Além disso, os critérios de definição do que eram
«rendimentos líquidos» variaram notoriamente.

279
Regime senhorial e revolução liberal

Um teste à fiabilidade das participações feitas pelo mosteiro pode ser


realizado através do confronto entre as quantidades brutas de cereal arre-
cadadas no concelho de Évora constantes de rascunhos avulsos cistercien-
ses (para 1820-1821 e 1824-1825) e de um rol dos lavradores que paga-
ram oitavos (para 1822-1823)230 e as que são indicadas nas participações
feitas em 1821-1822, 1822-1823 e 1824-1825231. As conclusões não se
podem considerar muito optimistas: se para o primeiro ano da aplicação
da lei dos forais a diferença se cifra na casa dos 20,3%, para o de 1824-
-1825 ultrapassa os 40%. Ou seja, se se pode considerar que as participa-
ções feitas pelos cistercienses espelhavam as grandes tendências e osci-
lações dos respectivos rendimentos, o grau de subdeclaração não era
constante, pelo que não será possível atribuir grande confiança aos indi-
cadores quantitativos que delas se possam retirar.
A quase totalidade dos rendimentos do Mosteiro de Alcobaça provi-
nha de doações régias dos primórdios da monarquia e de dízimos ecle-
siásticos. Senhor donatário de todos os coutos de Alcobaça, o mosteiro
auferia aí rendas estipuladas em foral ou em contratos enfitêuticos, dois
terços dos dízimos da maioria das paróquias e o rendimento «das terras

230 Rascunhos avulsos e «Rol dos oitavos dos Frutos que derão os Lavradores o an-
no de 1822», ANTT, CR, comp.1, PN, n.º 54.
231

Quantidades brutas de cereal (alqueire) arrecadadas pelo Mosteiro de Alcoba-


ça em Évora de acordo com as contas internas e com as participações
feitas à administração central

Ano económico
Cereal Fonte
1820-1821 1821-1822 1822-1823 1824-1825
Contabilidade interna........................ 2 853 − 562 1 864
Trigo.......................
Participações...................................... − 1 853 580 1 064
Contabilidade interna........................ 1 361 − 364,4 1 270
Cevada....................
Participações...................................... − 960 160 670
Contabilidade interna........................ 810 − 329,9 331
Milho......................
Participações...................................... − 610 275 295
Contabilidade interna........................ 5 024 − 1 256,3 3 465
Total de cereais......
Participações...................................... − 3 423 1 015 2 029

280
Lavradores, frades e forais

que reservou para própria cultura» 232 . Fora dos coutos, as principais
fontes de rendimento eram foros vários e dízimos, localizados em Mon-
te Redondo (concelho de Leiria), Alenquer, Torres Vedras e na fregue-
sia da Marmeleira (o reguengo da Valada, no concelho de Santarém),
donde provém uma das mais citadas petições dirigidas às Cortes vintis-
tas. Nos rendimentos publicados com a indicação de 1827-1828, o mos-
teiro cabeça da Ordem de S. Bernardo aparece como a terceira casa reli-
giosa portuguesa com maiores proventos233.

Rendimentos do Mosteiro de Alcobaça em 1821-1822

[QUADRO N.º 8]

Nos coutos de Alcobaça Fora dos


coutos e
Total
Total foros (a), (b) e
Arrendados Administrados (a) e (b) vários
(c)
(a) (b) adminis-
trados (c)

Rendas...................................... 9 096$700 6 267$210 15 363$910 868$000 16 231$910


Quintas..................................... 360$000 2 026$470 2 386$470 − 2 386$470
Total.................................... 9 456$700 8 293$680 17 750$380 868$000 18 618$380
Padrões..................................... − − − − 330$200
Total (réis)........................... − − − − 18 948$580

Os rendimentos participados foram retomados das seguintes fontes: «Segundo Map-


pa do rendimento e despesa do Mosteiro de Alcobaça no anno de 1821 para 1822, dado
p.ª a junta da liquidação da Dívida Pública», ANTT, CR, comp. 1, PN, n.º 54; e, para
1822-1823 e 1824-1825, dos papéis da Junta do Crédito Público ainda por inventariar,
que me foram fornecidos por Fernando Dores Costa.
232 BNL, cód. n.º 1480. Já referi quais as paróquias em que os direitos reais e dízi-
mos eram recebidos pelo Mosteiro de Cós. As contas que se seguem dizem respeito
apenas ao Mosteiro de Alcobaça.
233 Fernando de Sousa, «O rendimento das ordens religiosas em Portugal nos finais
do Antigo Regime», in Revista de História Económica e Social, n.º 7, 1981, quadro
n.º 9, p. 13.

281
Regime senhorial e revolução liberal

Em 1814-1815234 a totalidade dos rendimentos do mosteiro ascende-


ria a 28 620$861 (réis), atribuindo-se aos dízimos eclesiásticos 7084$000,
ou seja, 24,8% do total.
Em 1820-1821, os rendimentos teriam descido para 24 394$095 por
efeito presuntivo da deflação. Albergaria então o mosteiro 99 religio-
sos235.
No ano de 1821-1822, para o qual é possível dispor de indicações
mais pormenorizadas, os rendimentos do mosteiro teriam baixado para
18 948$580, não entrando nestes, como suponho era usual, todas as ver-
bas despendidas com côngruas, fábricas das igrejas, reparo de lagares,
com o Mosteiro da Madalena, etc. Os motivos da quebra podem ser en-
trevistos. Quase todos os rendeiros de rendas sofrem um abatimento no
montante estipulado superior a 10% «por causa do Decreto dos Banais».
A partir das contas dispersas dos rendimentos brutos em géneros dos
direitos senhoriais e dízimos nos concelhos administrados directamente
pelo mosteiro, pode concluir-se ter-se neles verificado uma quebra
semelhante, que se não deve poder atribuir à diminuição da produção236.
Por motivos já referidos (fogaças e casarias ainda se pagavam em alguns
concelhos em 1824, etc.), permanece a dúvida se a diminuição se ficaria
apenas a dever à aplicação da legislação sobre os banais ou aos primei-
ros laivos da «rebeldia». As mesmas contas permitem ainda obter outras
indicações. Os rendimentos arrendados ascendiam a 49,9% do total. No
ano seguinte, devendo ter cessado os contratos, normalmente trienais, e
não tendo provavelmente o mosteiro encontrado rendeiros que aceitassem
os riscos, a cobrança de todos os direitos senhoriais e dízimos situados
nos coutos passará a fazer-se por administração do mosteiro. Ainda no
mesmo ano de 1821-1822, o rendimento total das quintas representava
12,6% do total (84,9% do qual provinham das quintas administradas
directamente), mas nos anos anteriores não devia passar dos 10%. Os ren-

234 «Copia do Mappa de Alcobaça dado em 1815 p.ª o Erario», ANTT, comp. 1, PN
30, n.º 54.
235 ANTT, MJ, maço 456, n.º 7.
236 ANTT, comp. 1, PN 30, n.º 54.

282
Lavradores, frades e forais

dimentos fora dos coutos ascendiam a 6,3% do total. Os direitos foralei-


ros, dízimos e (muito secundariamente) foros enfitêuticos situados na
comarca de Alcobaça representavam 81% do total. Quer dizer, o essen-
cial dos rendimentos do mosteiro provinha daquelas prestações que
sofrerão no ano seguinte (1822-1823) os efeitos da publicação da lei dos
forais. Referem-se 2400$000 de gastos com esmolas «públicas e priva-
das», mas não se refere a estrutura das despesas.
Tendo em conta as considerações anteriores, torna-se mais fácil
compreender a espectacular quebra nos rendimentos cistercienses verifi-
cada depois da publicação da lei dos forais, qualquer que seja o grau de
sobrestimação das fontes237. E também um dos motivos imediatos pelos
quais o Mosteiro de Alcobaça encabeçou a «reacção senhorial» à legis-
lação foraleira, quer em 1822, quer em 1824. A recuperação depois des-
ta data é indiscutível. No entanto, as dificuldades financeiras do mostei-
ro parecem ter-se mantido até ao fim, bem como a incapacidade para
pagar dívidas antigas e recentes a particulares e impostos (o quinto aos
donatários e a décima eclesiástica, embora declarados, não eram pagos
há muitos anos)238.
Como já foi referido, o Mosteiro de Cós recebia os direitos reais e
dízimos de Cós, os dízimos do Carvalhal Benfeito e os direitos reais de

237 Fontes citadas nas notas anteriores e, para 1827-1828, Collecção de Contas da
Comissão Interna do Crédito Público até Setembro de 1836, Lisboa, 1836.

Evolução dos rendimentos do Mosteiro de Alcobaça (em réis)

Anos económicos

1814-1815 1820-1821 1821-1822 1822-1823 1824-1825 1827-1828

Rendimentos brutos − − 28 988 130 11 784 800 19 000 310 23 136 000
Rendimentos líquidos 28 620 861 24 394 095 18 948 580 −878 719 2 477 415 −

238 Cf. Albert Silbert, Le problème agraire…, cit., p. 317, e M. V. Natividade, Mos-
teiro e Coutos..., cit., pp. 55-56, nota 1.

283
Regime senhorial e revolução liberal

Pataias. No entanto, estes rendimentos não chegavam a representar meta-


de dos proventos daquele mosteiro feminino cisterciense em 1796239.
Quanto à geografia diferencial da contestação, o melhor indicador de
conjunto acaba por ser um apontamento qualitativo que acompanha uma
das participações alcobacenses à Junta do Crédito Público relativa a
1822-1823: «[...] no Termo de Aljubarrota se acham os Povos inteira-
mente levantados, sem quererem pagar Dízimo, nem Oitavos de Frutos
nenhuns ao Mosteiro (nem mesmo a Terça do Dízimo ao Bispo), sendo
esta renda tão considerável que ainda em 1821 andava arrendada em
2 000 000 réis, além das Côngruas ao Vigário, Coadjutor, e Tesoureiro.
Não obstante o Mosteiro pagou as ditas Côngruas, sem haver recebido
os Dízimos, de que elas deviam sair. Que no termo da Maiorga se
acham os Povos com o mesmo Sistema dos vizinhos Aljubarrotenses.
Que nos Termos de Évora, Turquel, Santa Catarina, Salir de Matos,
Alfeizerão e Cela, não querem os Povos pagar Dízimos alguns ao Mos-
teiro, e dos oitavos pagam o que querem, de que pouco sobra depois de
pagas as Côngruas aos Párocos. Que no Termo de Alcobaça não querem
pagar senão Dízimo, e nada de Oitavos [...]240.» Na verdade, ele parece
questionar-se com outras indicações disponíveis: por exemplo, as câma-
ras que nas respostas fornecidas em 1824 ao inquérito sobre forais con-

239 ADL, 19-B, 7, 487.

Rendimento do Mosteiro de Cós em 1796

Rendimento
Origem Percentagem
(em réis)

Dízimos do Carvalhal Benfeito....................................................... 300 000


Direitos reais e dízimos de Cós....................................................... 968 600
Direitos reais de Pataias.................................................................. 31 200
Foros vários nos coutos e quinta e moinho de Chiqueda................ 697 770
Total.................................................................................... 1 997 570 44,8
Quintas (arrendadas e fabricadas por conta própria)...................... 139 700 3,1
Terça dos rendimentos da igreja de S. Miguel de Torres Vedras... 1 650 000 37,0
Padrões e réditos de juros................................................................ 492 014 11,0
Esmolas de trigo do Mosteiro de Alcobaça.................................... 180 000 4,0
Total.................................................................................... 4 459 000

240 Fontes citadas na nota 231.

284
Lavradores, frades e forais

sideravam não ter de pagar dízimos foram exactamente as de Alfeizerão,


Cela, Santa Catarina, Salir e Turquel241. Quanto às indicações quantitati-
vas que se retiram das participações242, não parecem corroborar as con-
clusões anteriores, ainda que se coloque sempre o problema de saber a
que paróquias e lugares correspondia cada uma das áreas de cobrança. O
motivo parece-me óbvio, se se tiver em conta que a quebra parece ser
sistematicamente maior nas áreas de cobrança cujos direitos estavam
arrendados em 1821-1822 (apesar de todos os rendeiros terem benefe-
ciado de um abatimento de cerca de 10% por causa da lei dos banais).
Ora, como eram precisamente esses os rendimentos que não podiam ser
subdeclarados 243 , parece-me lícito concluir que todos os outros, no

241 AHP, AEM, cx. 113.


242

Evolução dos rendimentos ilíquidos dos direitos foraleiros e dízimos dos coutos de
Alcobaça de acordo com o montante dos arrendamentos ou com o valor dos géne-
ros que constam das participações do mosteiro
(base: rendimento de 1820-1821 = 100)

Ano económico
Área de cobrança
1821-1822 1822-1823 1824-1825

Alcobaça............................ (a) 100 26,3 43,2


Maiorga............................. (a) 100 14,1 50,5
Aljubarrota........................ (a) 100 1,1 12,3
Alvorninha........................ (a) 100 44,1 86,3
Turquel.............................. (a) 100 24,5 45,3
Valado............................... (a) 100 9,1 32,4
Évora................................. 100 22,3 63,6
Julgado.............................. 100 15,0 33,6
Pederneira.......................... 100 31,5 68,4
Tulha de Cela.................... 100 38,1 69,2
Relego da Cela.................. 100 57,2 88,7
Salir................................... 100 39,8 94,0
Santa Catarina................... 100 34,7 76,4
Alfeizerão.......................... 100 73,2 113,2

(a) Rendimentos que estavam arrendados em 1821-1822 e que passaram a ser admi-
nistrados directamente pelo mosteiro no ano seguinte.
243 Na verdade, os arrendamentos tinham de ser feitos no tabelião, tal como se tinha
de enviar uma cópia autenticada dos mesmos a acompanhar as participações.

285
Regime senhorial e revolução liberal

mesmo ano, o foram. Ou seja, as contas em questão não são, manifesta-


mente, o melhor indicador para o fim em vista.
No que se refere aos direitos foraleiros e dízimos recebidos pelo
Mosteiro de Cós nos coutos de Alcobaça, não disponho das participa-
ções de 1821-1822. Mas, se se fizer um confronto com os de 1796 (ano
em que os preços dos cereais eram ligeiramente inferiores aos de 1822 e
1824244), constata-se, de igual modo, a quebra sofrida em 1822-1823: os
direitos reais e dízimos de Cós renderam 968 600 (réis) em 1796, 104 180
em 1822-1823 e 608 100 em 1824-1825. Os direitos reais de Pataias
renderam 31 200 em 1796, estando arrendados por 15 000 desde 1822, e
os dízimos do Carvalhal Benfeito, que rendiam 300 000 em 1796, não
chegaram para pagar a côngrua ao pároco em 1822-1823, rendendo de-
pois 169 800 em 1824-1825245.
Última questão: o problema da enfiteuse «patrimonial». Limitar-me-
-ei a uma breve sondagem, indispensável, porém, para uma visão de
conjunto. Naturalmente que em Alcobaça, «por baixo» dos direitos fora-
leiros, desenvolvia-se a enfiteuse «patrimonial». A enfiteuse, e só
secundariamente a subenfiteuse, sublinhe-se bem, porque o donatário
não tinha de tomar conhecimento e de dar o consentimento para que
estes contratos se fizessem nas terras que pagavam por carta de foral, ao
contrário daquelas em que os títulos eram contratos enfitêuticos indivi-
duais. É a este fenómeno que alude, com grande clareza, a já citada res-
posta cisterciense ao inquérito da Academia: «A causa de estarem algu-
mas terras, que foram já cultas, reduzidas a pousios (como vulgarmente
se chamam nesta comarca) é pelas comprarem os moradores mais ricos
e aforarem enfateuzim com foros crescidos aos mais pobres, que não
podendo pagar os direitos, e os foros, desertam, ou largam as terras246.»
O argumento, como que invertido dos habitualmente dirigidos contra o
donatário, não deixa de ser curioso e parece sugerir, apesar de ser a úni-
ca referência ao abandono de terras num documento em que uma das

244 A partir dos preços de Lisboa (cf. V. Magalhães Godinho, Prix et monnaies au
Portugal 1750-1850, cit., pp. 76-78).
245 Para 1796 socorri-me da fonte citada na nota 231 e, para 1822-1823 e 1824-1825,
dos papéis da Junta do Crédito Público, ainda por inventariar, que me foram fornecidos
por Fernando Dores Costa.
246 BNL, cód. n.º 1490.

286
Lavradores, frades e forais

tónicas dominantes é a insistência nos novos arroteamentos, um proces-


so recente de expansão da enfiteuse.
Uma imagem, ainda relativamente tosca, da importância da enfiteuse
«patrimonial» e da subenfiteuse na comarca em análise pode ser obtida
a partir do «Mapa dos Foros, que pagão a Particulares as terras da Comar-
ca de Alcobaça Tributárias ao Mosteiro Donatário» de 1783-1884 247 .
Apresenta como principais limitações para a sua utilização o facto de se
desconhecerem os processos da sua elaboração e de se terem tido de
deduzir os preços. Do valor global dos foros indicados, 72,3% corres-
pondem a foros em trigo, 18,6% a dinheiro, 4,1% a azeite, 3,5% a legu-
mes e cereal de segunda e 1,5% a galinhas. Quanto aos rendimentos do
mosteiro, retirados dos respectivos «Livros da Bolsaria»248, colocam o
grande problema de não ter podido saber quais eram os concelhos e fre-
guesias a que correspondia cada área de cobrança, o que tornou pouco
segura a comparação entre o rendimento dos direitos foraleiros e dízi-
mos e o dos foros pagos a particulares. Pode concluir-se, em todo o
caso, que o rendimento dos foros nunca chegava a alcançar, em qual-
quer um dos concelhos em que a comparação se pode estabelecer com
um mínimo de rigor, um terço do valor dos direitos foraleiros e dízimos.
Ou seja, é provável que aqueles não cobrissem sequer a maior parte da
área dos coutos e que, nas terras a eles sujeitos, não chegassem a alcan-
çar a percentagem da produção bruta correspondente aos direitos fora-
leiros e dízimos. Por outro lado, constata-se que em alguns concelhos
(Évora, Alcobaça, Cela, Maiorga e Santa Catarina) a importância dos
foros «particulares» era nitidamente maior do que nos restantes.
As conclusões que se retiraram do quadro analisado são perfeitamen-
te normais: o elevado peso das prestações foraleiras suprimia as condi-
ções requeridas para que se pudesse desenvolver generalizadamente um
grupo intermédio de rentistas. Ora, se se partir desta hipótese, ser-se-ia
levado a pensar que naqueles concelhos do Centro e Norte de Portugal
em que a produtividade agrícola não era drasticamente inferior à de
Alcobaça e onde os direitos foraleiros eram menos pesados do que nos
coutos cistercienses a importância do escalão intermédio de rentistas
(situado entre os senhorios originários e os grupos domésticos que orga-

247 Ibid.
248 ANTT, CR, comp. 1, PN, n.º 31.

287
Regime senhorial e revolução liberal

nizavam a exploração da terra), que recebiam foros enfitêuticos «patri-


moniais» e subenfitêuticos, ou rendas provenientes de contratos de
arrendamento e parceria, deveria ser muito maior...
As conclusões anteriores parecem ser notoriamente confirmadas pelo
facto de ser a câmara de Évora a única que se refere ao assunto em ques-
tão nas petições e inquéritos: diz-se na citada petição de 1824 que os
suplicantes «pagam foros a senhores directos de parte dos bens que cul-
tivavam» e na resposta ao inquérito sobre forais (1826) que «aqueles
lavradores que as (terras) não tem suas mas sim com foros particulares,
além do foral, que (a)té alguns se tem ausentado deste território, e as
fazendas ficarem sem cultura» (sic). A partir dos livros de décimas dos
prédios rústicos de Évora 249 de 1814 pode avaliar-se em 723$860 a
soma do valor global de todos os foros enfitêuticos pagos no concelho a
vários senhorios directos (em dinheiro ou em géneros, convertidos em
dinheiro aos preços correntes). Ora naquele ano, segundo declaração da
câmara, a cobrança dos direitos foraleiros e dízimos naquele concelho
andaria arrendada por mais de 2 contos e meio. Faltará apenas acrescen-
tar que entre os senhorios directos de Évora se encontravam dois cam-
peões da luta contra o senhorio donatário: o juiz ordinário de 1824, pri-
meiro subscritor da petição antifeudal daquele ano, e o sargento-mor da
comarca, que esteve quase para ser preso sob a acusação de ter «insi-
nuado» à câmara de Cela o acórdão em que se dava ordem de prisão aos
quarteiros do mosteiro!
As sondagens efectuadas nos livros de décimas sugerem que o arren-
damento tinha um papel secundário enquanto forma de constituição de
unidades de exploração agrícola, mas, evidentemente, a questão merecia
ser mais aprofundada.

Epílogo e conclusão

Alcobaça pois que tão tiranizada foi pelo bárbaro Feudalismo;


que fez sacrifícios e pagou tributos de sangue em favor da Liberdade

249ATC, décimas da Estremadura, 528, n.º 6.

288
Lavradores, frades e forais

da Pátria; Alcobaça que diária e prosperamente medra nos dois


importantes ramos de indústria agrícola e comercial [...]

Petição dos moradores da antiga comarca de Alcobaça


contra a sua supressão, datada de 22 de Maio de 1837,
subscrita por 494 assinaturas250

Em jeito de epílogo, para esboçar uma tipologia dos comportamentos


face à revolução liberal, será útil uma breve sondagem sobre as atitudes
colectivas na comarca entre 1824 e 1834. Uma primeira indicação é a da
reduzida impregnação da vida local pela vida política nacional durante o
referido período, pelo menos de acordo com as fontes consultadas.
A proclamação da Carta Constitucional (1826), que noutras regiões
estimulou o reavivar de rivalidades e conflitos entre aldeias e centros
urbanos (ou para-urbanos), ou entre paróquias rurais, que se prolongariam
com tremenda violência anos a fio, não teve qualquer expressão significa-
tiva na comarca, não propiciando (ao que se sabe) qualquer ressurgimento
do movimento anti-senhorial ou tumultos e ajuntamentos importantes251.
É certo que, pelo menos, duas personagens ligadas ao movimento de
oposição ao donatário em 1820-1824 foram eleitores de província em
1826: na assembleia eleitoral sediada na vila de Pederneira (4 paróquias)
saiu eleito por larga maioria o sargento-mor, enquanto a assembleia de
Turquel (seis paróquias) se dividiu entre o fidalgo de Turquel (único
elegível para deputado naquela freguesia), periódico juiz ordinário e
futuro miguelista ferrenho, e o padre João Henriques, do Carvalhal Ben-
feito (com rendimentos para ser eleito deputado em duas paróquias),
acabando este por vencer252. Seria, de resto, ulteriormente eleito depu-
tado pela Estremadura, apresentando às Cortes um novo projecto de lei

250 AHP, I/II, cx. 296, n.º 77.


251 É certo que as contendas judiciais prosseguiram, por exemplo, em Aljubarrota
em 1826 [AFF, Alcobaça (processos), maço 2, n.º 4], mas, talvez pelo peso da derrota,
não parece surgir nenhum movimento comparável ao de 1820-1824.
252 AHP, AEM, cxs. 13, 19 e 20.

289
Regime senhorial e revolução liberal

dos forais253. Uma vez mais, os coutos de Alcobaça estavam à cabeça da


mobilização em torno da matéria.
A imagem dominante, porém, é a da acalmia. Em Setembro de 1828,
dos 30 pronunciados nas devassas que se seguiram à revolta liberal do
Porto (5 dos quais eclesiásticos, incluindo o vigário de Alcobaça), 22
eram residentes na sede da comarca e, dos restantes, 5 em Cela, onde
houve um pequeno tumulto liberal254. Durante o governo de D. Miguel
serão pronunciados ao todo pelo Tribunal da Alçada do Porto 56 indiví-
duos255. Não há, portanto, sintomas evidentes de agitação rural256.
É só em 1831, depois da entrada da esquadra francesa no Tejo, que
parece renascer uma agitação larvar, desempenhando o sargento-mor,
entretanto demitido, e seus familiares um papel importante na dissemina-
ção de notícias257. Entre outras indicações, os oficiais da câmara de Santa

253 Trata-se do citado padre João Henriques do Patrocínio e Couto (na altura da pu-
blicação original deste texto ainda não me tinha apercebido de que o mesmo fora eleito
deputado em 1826) [sobre esta personagem, cf. Maria da Conceição Quintas, «João
Henriques do Couto», in Zília Osório de Castro (dir.), Dicionário do Vintismo e do Pri-
meiro Cartismo (1821-1823 e 1826-1828), vol. I, Porto, 2001, pp. 570-572]. Sobre este
projecto de lei dos forais feito à medida dos coutos cistercienses e sobre a nova Comis-
são de Forais então constituída, cf. Clemente J. dos Santos, op. cit., pp. 235-236, e Dia-
rio das Cortes..., cit., 1828, pp. 76-77 e 140 (o projecto foi apresentado a 10 de Janeiro
de 1828). A esta iniciativa se deve o facto de o inquérito sobre forais de 1824 ter ido
parar ao arquivo do parlamento, onde ainda hoje se encontra.
254 ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 126, n.os 436, 461 e 462.
255 Pedro F. S. Velozo, Collecção das Listas..., cit., Porto, 1833 (1835).
256 Alusões a andarem pronunciados sem se conseguirem prender em Aljubarrota e
Turquel em 1829 (ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 127, n.º 375, e AHM, I div., 20.ª sec.,
cx. 126, n.º 4).
257 A pequena história deste notável local, José Bento de Melo Salazar, é bem reve-
ladora da ligação entre o conflito anti-senhorial e as atitudes políticas. «Em Junho de
1828, o então corregedor procurou ilibá-lo: Verdade é que antes de suprimir-se a lei dos
forais, criada pela facção dominante na desgraçada época de 1820 até o sobredito ano
(1823), constou ter manifestado alguma tendência pelo Governo então existente por ser
um dos bons proprietários a quem a dita lei parecia favorável; mas depois tem sido regu-
lar e moderado [...]» (ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 126, n.º 255). Mas em meados de
1830 o novo corregedor não o desculpou: «Concitou os povos da vila destes coitos, a
levantarem-se contra seus donatários, para não pagarem os direitos que de justiça lhes eram
devidos; o que deu ocasião a haver-se expedido ordem do Governo para ser preso, de que
se livrou por uma justificação graciosa que requereu e por protecções de Pamplona e
Palmela, de quem era criatura, segundo consta [...]» (AHM, III div., 37.ª sec., cx. 15,

290
Lavradores, frades e forais

Catarina são presos em 1832. Em meados de 1833, depois da entrada


das tropas liberais em Lisboa, a comarca será definitivamente absorvida
pelos ventos da guerra civil. Os frades iniciarão então um ciclo de fugas
e regressos, explicado por um visitante miguelista pelo receio de
«ficar[em] expostos às violências dos liberais e ainda ao furor e ignorân-
cia dos seus próprios colonos, cuja turbulência bem conheciam»258. A 13
de Outubro dá-se a fuga definitiva dos frades. A 16 eclode uma revolta
liberal na vila. Poucos dias depois, o mosteiro será ocupado, pilhado e
saqueado. Formou-se pouco depois o batalhão nacional móvel de Alco-
baça, que tomou parte na batalha da Asseiceira com 800 praças259. Em
Abril de 1834, o responsável pelo inventário dos bens dos cistercienses
referia que os povos, «começando já a sentir o alívio dos forais e dízi-
mos, que o mosteiro recebia como donatário, bendizem o ilustrado
Governo de V.ª Magestade»260. O destino dos bens do mosteiro alimen-
tará ainda grande polémica261, mas os forais e dízimos tinham sido abo-
lidos para sempre.
Ocorreram na comarca de Alcobaça os conflitos mais importantes
suscitados pela aplicação da legislação liberal sobre forais e sua poste-
rior revogação, pelo menos a julgar pela actividade legislativa provoca-
da e pelo número de petições enviadas ao rei entre meados de 1823 e

n.º 8); além de o acusar de negligência e de estar empenhado (e, efectivamente, não
tinha em 1826 rendimentos para ser deputado). O sargento-mor seria então demitido e
substituído, como se poderia esperar, pelo fidalgo realista de Turquel, homem da confiança
do mosteiro. Em 1833 seria ainda o ex-sargento-mor, apesar da avançada idade, a tomar
a iniciativa da organização do batalhão móvel de voluntários de D. Pedro IV depois da
insurreição liberal em Alcobaça (AHM, I div., 19.ª sec., cx. 278, n.º 46; também M. V.
Natividade, O Mosteiro..., cit., pp. 16-18).
258 Francisco de Paula F. da Costa, Memórias de Um Miguelista, 1833-1834, Lisboa,
1982, p. 50.
259 M. V. Natividade, O Mosteiro..., cit., pp. 16-18 e 182-183, respectivamente.
260 AHMF, conventos de frades, IV-D-2-(1).
261 V., por exemplo, António Luís de Seabra, Observações do ex-corregedor de Al-
cobaça..., sobre um papel enviado à câmara dos senhores deputados acerca da arreca-
dação dos bens do mosteiro daquela vila, Lisboa, 1835, e P. João de Deus A. Pinto,
A Calúnia Convencida ou a Resposta..., Lisboa, 1835.

291
Regime senhorial e revolução liberal

princípios de 1826 e remetidas depois às sucessivas juntas262. É, enfim,


possível sumariar, a um tempo, as características que revestiram e o
contexto senhorial em que ocorreram:
1.° Quando eclodiu a primeira revolução liberal em Portugal, subsistiam
incólumes na comarca de Alcobaça prestações gerais, muito eleva-
das, estipuladas em foral e devidas a um donatário eclesiástico.
Característica singular, as prestações enfitêuticas «patrimoniais»
eram muito menos pesadas e gerais do que aquelas, com as quais
não tendiam a confundir-se;
2.º Pelo contrário, a confusão era total entre dízimos e direitos fora-
leiros, devidos na maioria das paróquias ao mesmo senhorio e
cobrados conjuntamente, criando uma situação onde o «comple-
xum feudale» era na prática inextricável, tal como o era a contes-
tação aos dois tipos de prestações;
3.° Verificava-se a confluência de contextos senhoriais análogos em
toda uma comarca, sujeita a um mesmo senhorio, situação quase
única, não só pelos efectivos da sua população quanto, sobretudo,
pelo número das suas câmaras (predomínio das pequenas câma-
ras). Para mais, o facto de os direitos senhoriais serem constituí-
dos por uma percentagem da produção fazia depender do aperta-
do controlo senhorial a efectivação da sua cobrança;
4.° A dominação senhorial afectava, mais ou menos eficazmente, todos
os quadros e instituições das comunidades rurais. A generalidade
dos conflitos locais, fossem eles provocados pela cobrança de
direitos senhoriais ou pela administração da fábrica da igreja, ten-
dia a assumir uma dinâmica anti-senhorial. Era multissecular a tra-
dição de conflitos com o senhorio;
5.° Coincidiam com o contexto senhorial precedentemente caracteri-
zado uma sociedade rural relativamente diferenciada, com grande
extensão das relações salariais e um pronunciado individualismo
agrário, e uma economia agrícola marcada por uma razoável varie-
dade e importância das produções para mercado, situação só pos-

262 Como disse, entre pouco mais de uma vintena de petições, que abrangem desde
protestos pela não abolição da lei dos banais até petições anti-senhoriais, cinco referem-
-se a Alcobaça (AHP, I/II, cx. 112).

292
Lavradores, frades e forais

sível numa região com grandes potencialidades agrícolas. A fidal-


guia residente nas paróquias rurais era em pequeno número;
6.° A situação na comarca, os sentimentos anti-senhoriais tradicio-
nais, o contraste parcial com os concelhos vizinhos, tornavam-na
especialmente receptiva aos projectos liberais de reforma. A lei
dos forais de 1822, embora não os abolindo, encontrava um ter-
reno propício único numa zona onde as prestações devidas a um
donatário de bens da coroa não só sobrelevavam todas as outras,
como se encontravam estabelecidas em «título genérico», e não
em contratos enfitêuticos («título especial», no vocabulário da lei
de 1846);
7.° Os primeiros ecos da revolução liberal desencadearam um movi-
mento que se exprimiu primeiramente em petições às Cortes e na
afirmação dos direitos das comunidades face ao exterior e, depois
da publicação da lei dos forais, em obstruções de todo o tipo ao
pagamento dos meios direitos senhoriais, na recusa generalizada
do pagamento dos dízimos, num caso, na greve total a todo o tipo
de prestações. Depois do derrube das instituições vintistas e da
revogação da legislação sobre forais, a comarca resistirá por todos
os meios, incluindo os violentos, ao pleno restabelecimento dos
direitos senhoriais, que só serão impostos com o auxílio do exér-
cito. Os conflitos locais suscitarão, em 1822 e 1824, a publicação
de esclarecimentos à legislação geral sobre forais;
8.° São as câmaras, cujos vereadores eram maioritariamente analfa-
betos, que dirigem o movimento, se fazem seus porta-vozes e
respondem pelas suas consequências. Numerosos são os sintomas
da coesão e solidariedade local nos conflitos com o donatário.
Ainda que haja focos de maior agressividade, em quase todos os
concelhos e paróquias se remeteram petições, afixaram editais,
etc., ou desencadearam tumultos contra o senhorio. Há frequente
concertação na acção das câmaras, mas nenhuma intervenção
comum da maioria delas. O papel do clero secular é relativamente
secundário;
9.° A legitimidade do regime senhorial é frontalmente questionada por
actos e palavras, os direitos senhoriais devidos a um donatário
eclesiástico só são cobrados pela força. Facto excepcionalmente

293
Regime senhorial e revolução liberal

raro em Portugal, cerca de metade das câmaras consideram o


pagamento do dízimo eclesiástico uma «usurpação». No entanto,
apesar de (pelo que se conhece) um único pároco apresentado
pelo mosteiro participar num movimento que tem uma direcção
«laica», só se poderá falar de anticlericalismo se se der ao termo
um significado muito lato;
10.° É diminuta a presença da violência. As poucas acções violentas
raras vezes ultrapassam o âmbito da aldeia ou lugar e são escas-
samente ritualizadas. Ao invés das erupções súbitas, incontidas e
violentas de cólera que caracterizam as revoltas camponesas, o
movimento parece obedecer a uma estratégia controlada e persis-
tente de adaptação às circunstâncias, procurando sempre legitimar-
-se no terreno da lei geral. As suas manifestações exteriores são
dominantemente escritas e exprimem-se nos marcos dos discursos
reformista e liberal. Embora se apoie numa resposta solidária e
quase unânime das comunidades e sejam frequentes as alusões
igualitárias contra ricos e poderosos, os seus objectivos são estri-
tamente anti-senhoriais. Em parte pela conjuntura económica em
que ocorreu, nunca se lhe descobrem tendências para a inversão
das relações e dos papéis dentro das comunidades e, pelo contrá-
rio, são detectáveis alusões à escassez de mão-de-obra. Parece
poder concluir-se que o seu núcleo fundamental eram os sectores
superiores da sociedade camponesa, lavradores em todo o caso, e
os seus mediadores os pequenos notáveis letrados, abrangendo a
sua rede de solidariedade uma parte dos notáveis da comarca, que,
como «proprietários», tinham de pagar direitos senhoriais;
11.° É patente a falta de sincronia entre a enorme receptividade à
legislação agrária liberal e a relativa politização da vida local.
Sobretudo, a serem correctas as informações disponíveis, no perío-
do posterior a 1824. A «paixão política», que impregnou profun-
damente em algumas regiões as formas de sociabilidade local,
tem aqui, depois da derrota parcial de 1824, uma expressão pouco
relevante. Em vão se procurarão descobrir focos rurais de intran-
sigência liberal como os que existiram persistentemente noutras
partes. Apesar do posterior apoio militante da região ao campo li-
beral durante a guerra civil de 1832-1834.

294
Lavradores, frades e forais

Um rápido confronto com a situação francesa de 1789-1793, ainda


tão insistentemente apresentada como o modelo clássico dos comporta-
mentos camponeses durante a revolução, ajuda a esclarecer as particula-
ridades do caso estudado. Os direitos senhoriais cobrados em Alcobaça
eram muito mais elevados do que os que vigoravam na generalidade das
regiões francesas antes de 1789263. Certamente, o contexto francês tem
de ser equacionado de modo diverso, entre muitas outras razões (impor-
tância dos tribunais senhoriais, etc.), por uma que nem sempre é coloca-
da correctamente neste tipo de voos comparativos: os senhorios e as
classes privilegiadas francesas conservavam ainda grandes extensões de
terra (variáveis segundo a região), das quais, se bem que normalmente
arrendadas, não haviam cedido duradoura e hereditariamente o domínio
útil, como acontecia em grande parte do Centro e Norte de Portugal em
consequência da extensão da enfiteuse264. Daí que os direitos senhoriais
tivessem em França, normalmente, um papel secundário na economia
senhorial, que se colocasse a questão da partilha da terra, etc. Mais
importante, porém, é o paralelo com os movimentos anti-senhoriais de
1789-1793. Alguns estudos parciais têm acentuado, contra as tendências
para estender à «revolução camponesa» do século XVIII o modelo das
revoltas antiestatistas do século XVII, fundadas na solidariedade local265,
o facto de aquela ter sido muito mais do que um movimento contra os
direitos senhoriais e ter procedido a fracturas no próprio interior das
comunidades, em sentido amplo. É isso que as torna, não a regra, mas
um caso excepcional no contexto europeu dos finais do Antigo Regime.
Como sublinha J. Boutier para o caso da Aquitânia, «as revoltas de 1790

263 V., por exemplo, Georges Lefèbre, «La revolution française et les paysans», in
Études sur la révolution française, 2.ª ed., Paris, 1972, e Albert Soubul, Sur le préleve-
ment féodal, Problèmes paysans de la revolution 1789-1848, Paris, 1976.
264 E de outras formas similares que, em todo o caso, criavam formas de posse vita-
lícia ou perpétua da terra. Uma visão idílica deste problema essencial encontra-se em
Virgínia Rau, «A grande exploração agrária em Portugal a partir de fins da Idade Mé-
dia», in Estudos de História Económica, Lisboa, 1961. No entanto, o quadro legal das
práticas de herança nas situações de enfiteuse em vidas, enfiteuse perpétua, e posse por
«título genérico», não era o mesmo.
265 Esta última perspectiva é a sustentada por Yves-Marie Bercé em Croquants et
nu-pieds, Paris, 1974, e em Révoltes et révolutions dans l’Europe moderne XVIe-XVIIIe
siècles, Paris, 1980.

295
Regime senhorial e revolução liberal

decorrem dos antagonismos internos à sociedade rural, não sendo aquele


que opõe o senhor aos camponeses senão um caso figurando na oposi-
ção entre aqueles que pagam a renda, sobre todas as suas formas, e
aqueles que a recebem»266. Tornam-se, assim, mais claros os limites do
caso estudado, não só pela conjuntura económica em que ocorreu, como
pelo padrão de unanimidade local que o caracteriza. E também por que
razão se verificou em Alcobaça, e não na maioria dos concelhos do Cen-
tro e Norte, onde o essencial da renda que se pagava não provinha nem
de forais nem de bens da coroa267 .

Hipóteses para uma perspectiva comparada

Não é principalmente pelos forais que se tem gravado a Agricul-


tura, mas principalmente pelo abuso que os senhorios directos têm
feito da ilimitada liberdade que a lei lhes autoriza para as condições
dos seus emprazamentos, e estes contratos nem nos Forais, nem
mesmo no Real Arquivo se podem examinar, por aí não existirem.
Parecer da Comissão de Forais de 1812,
datado de 12 de Novembro de 1812
Portanto, à vista do miúdo exame, e laboriosa indagação que fiz
nos Forais, foi sempre a minha opinião que aquelas duas leis (a dos
banais e a dos forais) deviam ser cassadas, abolidas, e até queimadas
como origem da revolução nos Povos, que até querem negar-se aos
contratos enfitêuticos de património particular, e das corporações.
Alberto Carlos de Menezes, requerimento
remetido em 28 de Janeiro de 1824268

266 «Jacqueries en pays croquants: les révoltes paysannes en Aquitaine (décembre


1789-mars 1790)», in Annales E. S. C., n.º 4, 1979. No mesmo sentido, para a Provença,
Michel Vovelle, «Les troubles sociaux en Province de 1750 à 1792», in De la cave au
grenier, Quebeque, 1980.
267 Algumas sondagens efectuadas parecem indicar que era também diminuta a im-
portância do arrendamento como forma de constituição de unidades de exploração na
comarca de Alcobaça.
268 Analisados detalhadamente em «Forais e regime senhorial...», cit.

296
Lavradores, frades e forais

Se o contexto de Alcobaça fosse amplamente generalizável a todo o


Centro e Norte de Portugal, seria forçoso concluir que existia uma gran-
de adequação entre o discurso liberal e as tensões que realmente atra-
vessavam a sociedade rural. Só que o caso estudado é relativamente
excepcional. Estimulados pela necessidade de colmatar os silêncios da
historiografia oficiosa do Estado Novo, ou pela intenção de revalorizar
as mudanças produzidas pelas revoluções liberais, contra a ideia da per-
sistência estrutural do Antigo Regime económico e social para além des-
tas, os mais importantes autores da moderna historiografia do século XIX
tenderam a retomar demasiado linearmente o discurso da revolução libe-
ral, na sua fase «heróica», tal como foi sistematizado por Mouzinho e
confirmado por Herculano269: a imagem do peso esmagador dos forais e
prestações devidas a donatários de bens da coroa; a ideia de que aqueles
direitos constituíam a base material das classes privilegiadas tradicio-
nais.
Tudo me parece indicar que a maioria dos fidalgos (da nobreza de
sangue, porque a nobreza tout court abrangia nos finais do Antigo Re-
gime quase todas as elites, incluindo grande parte da burguesia comer-
cial 270 ) não auferia quaisquer rendimentos de bens da coroa, de que
beneficiava um pequeno número de elementos da grande nobreza de
corte. Os bens da coroa eram principalmente importantes para a econo-
mia de parte das ordens religiosas, em especial dos mosteiros da Ordem
de S. Bernardo de Cister, os mais odiados donatários que havia em Por-
tugal. Quanto aos forais, é possível afirmar, desde já, que na maioria dos
concelhos do Centro e Norte de Portugal o seu peso estava longe de ser
comparável ao do dízimo eclesiástico e ao da enfiteuse «patrimonial».
Desta forma, fica apontado um dos motivos pelos quais a lei dos forais
de 1822 não podia, provavelmente, ter na maioria dos concelhos do
Centro e Norte de Portugal o impacto que teve em Alcobaça, que esteve
longe de ser, no entanto, caso único.

269 «Mouzinho da Silveira ou la révolution portugaise» e «Para a história dos bens


da coroa e dos forais», in Opúsculos, 3.ª ed., Lisboa, ts. II e VI, entre muitas outras refe-
rências.
270 Sobre o assunto, v. Luís da Silva Pereira de Oliveira, Privilégios da nobreza e fi-
dalguia de Portugal..., Lisboa, 1806.

297
Regime senhorial e revolução liberal

Resta explicar por que é que os forais eram alvo de significativa con-
testação. Em primeiro lugar, porque se esperava que a contestação àque-
le tipo de prestações obtivesse alguma receptividade junto do poder. Em
seguida, porque eram muitas vezes os únicos direitos que se pagavam a
um mesmo senhorio em todo um concelho, ou em parcela significativa
deste, os únicos que eram gerais na maioria dos casos. Finalmente, por-
que eram os únicos que os notáveis locais, que quase sempre percebiam
rendas provenientes de foros enfitêuticos, podiam estar interessados em
pôr em questão. É por isso que as câmaras, mesmo nos grandes conce-
lhos, estavam normalmente dispostas a queixar-se dos forais; e é tam-
bém por isso que os movimentos de oposição a donatários não tinham
muitas vezes um carácter eminentemente «camponês», podendo ser
encabeçados por fidalgos, grandes rentistas e proprietários 271 . O risco
estava em que havia situações em que não era clara a distinção entre
prestações enfitêuticas «patrimoniais» e direitos reais (situações que são
susceptíveis de serem contabilizadas), ou em que a vontade deliberada
dos foreiros tendia a confundi-las. Foi o que aconteceu em alguns casos
em 1822, e sobretudo em 1832, porque a lei de Mouzinho da Silveira
pretendia também estender-se à enfiteuse em bens da coroa. É essa a
principal explicação, estou em crer, para algumas das posteriores reac-
ções à referida lei.
É necessário realçar que no mesmo período houve regiões em Portugal
onde o processo da revolução liberal desencadeou outras formas de
impregnação da vida local pela política nacional, outra intensidade nas
manifestações de violência e outros padrões de mobilização. Com efeito,
é apenas nas mobilizações miguelistas que me parece possível descobri-
rem-se, combinando-se de forma extremamente complexa com relações
de patrocinato tradicionais, traços de inversão das relações e dos papéis
sociais, de associação entre a festa e a movimentação, de afrontamento a
todas as hierarquias e de assalto incontrolado a propriedades 272 , que

271 Uma leitura atenta das petições reunidas por Silbert revela isso mesmo.
272 Estes aspectos foram tratados mais desenvolvidamente na comunicação sobre «Mi-
guelismo e sociedade rural. Alguns problemas e hipóteses de investigação», apresentada
por mim ao encontro «Mudança política e sociedade rural na primeira metade do século
XIX», organizado pelo CEHCP em Dezembro de 1982, e na comunicação sobre «Libera-
lism and the peasantry in Portugal during the first half of the 19th century», apre-

298
Lavradores, frades e forais

caracterizaram algumas vezes as revoltas populares da Europa do período.


Um dos índices (e também um dos obstáculos mais difíceis de vencer
pelo historiador) é a imagem quase invariável que o miguelismo popular
assumiu no discurso liberal, habitualmente esquecida na historiografia
actual, onde era assimilado explicitamente com «a populaça», «a cana-
lha», «os rotos», a plebe de 1809, a multidão pré-industrial, enfim.
As regiões onde os direitos foraleiros eram mais pesados e a oposi-
ção ao donatário impregnava grande parte dos conflitos locais parecem
ter sido menos permeáveis ao miguelismo rural e não foram, claramente,
das primeiras onde se desencadearam mobilizações realistas, quer em
1823, quer em 1826-1828. É o caso de Alcobaça e também, provavel-
mente, o da provedoria de Coimbra em 1826-1828273. No entanto, é pa-
tente a aludida fractura parcial entre a luta anti-senhorial e o campo polí-
tico. Basta citar, entre tantos outros, o caso do concelho da Redinha, em
1829, onde se resistia aos rendeiros senhoriais, ao mesmo tempo que se
protestava fidelidade a D. Miguel274.

sentada ao colóquio sobre «19th century Liberalism: an international perspectif», orga-


nizado pelo History Workshop Centre for Social History em Oxford em Junho de 1984
[cf., sobre o assunto, Nuno G. Monteiro, «Societat rural i actituds polítiques a Portugal
(1820-1834)», in J. M. Fradera, J. Millan e R. Garrabou (eds.), Carlisme i moviments
absolutistes, Eumo Editorial, Girona, 1990, pp. 127-150].
273 Sondagem efectuada com base em ANTT, IGP, m. cor. cor., maços 47, 48 e 49.
274 Em Junho de 1829 os povos do concelho da Redinha, comarca de Leiria, resis-
tiam à cobrança dos direitos senhoriais que pretendia arrecadar o rendeiro da comenda
daquela vila. O juiz afirmava não poder «deixar de pedir algum destacamento de tropa
de linha para precaver algum desgosto», mas acrescentava que «os povos estão decidi-
dos a favor de El-rei e toda a sua animosidade é só contra o rendeiro, a quem quando
aparece dão nome de malhado...» (ANTT, IGP, m. cor. cor., maço 127, n.º 243).

299
4. GEOGRAFIA E TIPOLOGIA DOS DIREITOS DE FORAL*

Objecto e fontes

O esboço de uma tipologia e de uma geografia dos direitos percebi-


dos pelos donatários da coroa, que de seguida se apresenta, destina-se a
fornecer uma fundamentação mais sólida para a discussão das múltiplas
dimensões da chamada «questão dos forais» no conjunto do território
português, permitindo, desta forma, ultrapassar as distorções resultantes
das generalizações que frequentemente se fazem a partir de um ou outro
exemplo geograficamente localizado. Em primeiro lugar, ficar-se-á com
uma perspectiva global, espacialmente diversificada, do peso dos direi-
tos foraleiros e da sua evolução ao longo do Antigo Regime. Desta feita
ficarão de lado, entretanto, as indicações sobre a identidade sócio-
-institucional dos donatários. Em segundo lugar, as informações reco-
lhidas poderão constituir um contributo importante para a explicação da
geografia da conflitualidade e para a avaliação das múltiplas incidências
potenciais («económicas», «sociais», «políticas», «simbólicas»...) das
diversas legislações liberais sobre esta questão.

* Este texto retoma, encurtado na sua parte inicial e com algumas correcções, Nuno
G. Monteiro, «Geografia e tipologia dos direitos de foral», in Fernando Marques da
Costa, Francisco Contente Domingues e Nuno Gonçalo Monteiro (eds.), Do Antigo Re-
gime ao Liberalismo − Perspectivas de Síntese (1750-1850), Lisboa, Ed. Vega, 1989,
pp. 259-271.

301
Regime senhorial e revolução liberal

Utilizar-se-ão fontes dominantemente qualitativas, constituídas sobre-


tudo pelas cerca de sete centenas de respostas de câmaras ao inquérito
sobre forais de 1824-1826 e, secundariamente, por petições remetidas às
Cortes vintistas275. Lançado pela Junta da Reforma dos Forais logo a
seguir à anulação da legislação vintista e posteriormente retomado pela
nova Junta das Confirmações Gerais em 1826, o inquérito enviado a
todas as câmaras do país permite reconstruir uma imagem da «questão
dos forais», dominantemente qualitativa, mas de âmbito nacional. Natu-
ralmente, são numerosas as limitações impostas pelo recurso a este tipo de
fontes. Destacarei apenas algumas. Em primeiro lugar, importa sublinhar
que o inquérito se reporta a prestações decorrentes de forais, e não a
todo o tipo de direitos pagos a donatários da coroa, embora estes sejam
normalmente referidos, mesmo quando não decorriam de cartas de foral.
Por maioria de razão, ficam de fora, em princípio, todos os direitos
devidos a simples «senhorios directos»276. De facto (e esta constitui uma
outra limitação), as fontes pouco nos dizem sobre quem incidiam os
direitos, em geral, e, em particular, sobre as formas de «rentismo» que
se desenvolviam «por baixo» das relações reguladas pelas cartas de foral
(ou seja, as que se pautavam por contratos de enfiteuse e subenfiteuse ou

275 O questionário do inquérito foi publicado por Alberto C. de Meneses, Plano de


Reforma..., pp. 116-117, e encontra-se reproduzido na p. 262, nota 209; sobre as condi-
ções em que se realizou, cf. Forais e Regime Senhorial: Os Contrastes Regionais..., p. 44.
As respostas manuscritas de quase sete centenas de câmaras ao inquérito encontram-se
no Arquivo Histórico-Parlamentar, «Trabalhos sobre forais» (há numerosas lacunas,
sobretudo no Minho e na provedoria de Coimbra). Algumas respostas encontram-se em
livros de vereações e foram analisadas em estudos impressos: A. Magalhães Bastos, «Na
agonia dum regimen. Os últimos anos de vigência do foral do Porto», in O Instituto, vol.
76, 1928; Fernando F. Machado, «O mappa dos direitos de foral de Coimbra em 1824»,
in O Instituto, vol. 90, 1936; João Pinto Loureiro, «Auto da Câmara de Canas de Senho-
rim (10-XI-1824)», in Concelho de Nelas (Subsídios para a História da Beira), nov. ed.,
Nelas, 1957. Utilizaram-se também as petições publicadas por Silbert e algumas dezenas
de petições avulsas do período vintista recolhidas em vários maços e comissões do AHP.
276 Quer os que existiam «ao lado» das terras sujeitas aos direitos de foral, ou seja,
em terras não abrangidas por estes, quer os que existiam «por baixo», ou seja, os que
recebiam direitos de terras que pagavam simultaneamente aos donatários. São relativa-
mente frequentes as alusões aos primeiros casos e raríssimas as referências aos segun-
dos.

302
Geografia e tipologia dos direitos de foral

de parceria e arrendamento277). Depois, há a considerar que em grande


número de casos se desconhecem as áreas exactas sobre as quais inci-
diam as prestações fundiárias foraleiras e também que as indicações
sobre rendimentos são pouco fiáveis ou até inexistentes. Além disso,
não se pode esquecer que a informação é produzida por câmaras que,
tendendo dominantemente a assumir uma atitude anti-senhorial (inde-
pendente de serem grandes ou minúsculas, afidalgadas ou francamente
populares278), não deixaram, num caso ou noutro, de se mostrar clara-
mente coniventes com os donatários. Por fim, convém realçar as múlti-
plas distorções resultantes de se pretender apresentar a informação em
poucas páginas e num mapa de escala reduzida. Delas me ocuparei
adiante.

Critérios seguidos na elaboração do mapa

No mapa anexo representa-se o principal direito de foral que, na opi-


nião das câmaras, ou de acordo com os rendimentos presuntivos, se
pagava em 1819-1820 em cada um dos territórios dos concelhos portu-
gueses279. Naturalmente, o critério seguido impõe numerosas distorções.
Assim, as áreas de incidência dos direitos ficam sobrerrepresentadas,
sobretudo, nos casos em que os forais aludem ou discriminam prestações

277 Como se disse na nota anterior, são muito raras as referências a este tipo de rela-
ções nas respostas das câmaras. Um desses casos raros é o da antes reproduzida resposta
de Évora de Alcobaça (cf. p. 288 deste livro). O motivo é fácil de entrever: eram os
«rentistas intermédios» quem pontificava na maior parte das câmaras. Já em petições
não emanadas de câmaras o assunto é referido algumas vezes (cf. a petição de Portocar-
reiro, com. de Penafiel, em 1822, AHP, I/II, cx. 10, n.° 76, na qual se alude a subenfiteu-
se em termos críticos, assunto sobre o qual na resposta da câmara do mesmo concelho
em 1824 não se produz qualquer alusão).
278 A própria geografia dos concelhos constantes do mapa anexo sugere esse enorme
contraste, que a bibliografia recente tem vindo a confirmar.
279 Optou-se pelas informações e rendimentos indicados para 1819/20, e não para
1824, porque naturalmente nesta altura intervinha já o impacto da legislação liberal.
O mapa de base foi encomendado pelo CEHCP/ISCTE ao Dr. Fernando Onório e Sr.
António Eanes, do CEG/FLL, a partir das instruções necessárias para a convocação de
Cortes... (imp. 1826), ANTT, MJ, maço 125. A execução gráfica da mancha dos direitos
foraleiros esteve a cargo do Sr. António Eanes.

303
Regime senhorial e revolução liberal

que muitas vezes só abrangiam uma parcela minoritária dos respectivos


termos e que no mapa aparecem a cobrir toda a área dos concelhos280. Em
compensação, não ficam de todo representados os direitos pagos em
reguengos, casais, lugares, etc., quando não constavam das cartas de foral
ou quando, vindo nelas discriminados, não constituíam a prestação mais
geral (casos dos reguengos de quarto e quinto em concelhos de oitavo, por
exemplo).
Os principais prejudicados com os critérios de representação gráfica
seguidos são, evidentemente, os grandes concelhos. Estão neste caso,
em primeiro lugar, concelhos como os de Aveiro, Coimbra ou Santarém.
Em qualquer um destes três casos, as prestações decorrentes das cartas
de foral apenas cobriam faixas limitadas da área coberta pelos termos de
cada um dos concelhos, estando, aliás, bastante mitigadas. Em compen-
sação, num grande número de lugares, reguengos, vintenas, «ouvido-
rias», etc., pagavam-se, por uma multiplicidade de títulos (forais, contra-
tos enfitêuticos, etc.), direitos raçoeiros muito pesados a donatários da
coroa, constituindo estes contextos um foco importante de petições e
conflitos281. Merecem ainda uma referência especial os reguengos dos
concelhos de Bragança e de Tavira: em qualquer um destes dois conce-
lhos, os direitos foraleiros mais gerais eram irrelevantes, mas nos res-
pectivos reguengos, que cobriam áreas minoritárias dos termos, pa-
gavam-se direitos que se podem considerar entre os mais pesados que
se cobravam nas duas províncias estremes do país (Algarve e Trás-os-
-Montes282).

280 Caso do reguengo do concelho de Guimarães e de muitas outras terras que paga-
vam foros por foral no Minho, ou fora dele. Em compensação, as rações por título gené-
rico (quarto, oitavo...) abrangiam geralmente a maior parte da área dos concelhos respec-
tivos, pelo menos, quando eram de pequenas ou médias dimensões.
281 Além das publicadas por Silbert, têm-se encontrado várias outras petições reme-
tidas de lugares, vintenas, etc., destes três grandes concelhos.
282 Apesar de não se encontrarem nos papéis da Comissão de Agricultura, foram
remetidas petições às Cortes do reguengo de Tavira, que mereceu uma deliberação espe-
cífica das Cortes (cf. Diario das Cortes..., t. VI, Junho de 1822, pp. 358-359), e do re-
guengo do concelho de Bragança (Arquivo Histórico-Parlamentar, I/II div., cx. 10,
n.° 139). Destes dois reguengos se voltariam a remeter petições em 1824 contra a abolição
da legislação vintista sobre forais (cf. N. G. Monteiro, Forais e Regime Senhorial...,
cit., pp. 35-41).

304
Geografia e tipologia dos direitos de foral

Para além das distorções referidas, devem ainda ter-se presentes as


resultantes das lacunas de informação das fontes utilizadas e até dos even-
tuais erros de leitura e interpretação. Desta forma, o mapa elaborado deve-
rá futuramente merecer correcções e aperfeiçoamentos. Estou em crer,
não obstante, que constitui uma base de trabalho para uma geografia da
«questão dos forais», na medida em que permite delinear, com clareza,
grandes áreas geográficas quanto ao tipo dominante de direitos.

Tipologia dos direitos

Na elaboração do mapa anexo consideraram-se os tipos de direitos


principais que se pagavam em cada um dos territórios dos concelhos
portugueses em 1819-1820 que no mesmo se encontram discriminados.
Convém salientar, em primeiro lugar, que o mapa se reporta, não aos
direitos instituídos nas cartas de foral, mas sim àqueles que efectivamen-
te se pagavam em 1819/20. Em muitos casos houve uma significativa
alteração. Aquela regra sofreu, no entanto, algumas excepções pontuais:
assim, no concelho de Leiria, como aliás noutros da Estremadura, a
jugada de pão instituída na carta de foral estava «encabeçada» (fixada e
rateada pelos lavradores do concelho), pelo que, em rigor, deveria entrar
na categoria das prestações colectivas fixas: no entanto, a verdade é que
o direito em questão era incomparavelmente mais pesado que a genera-
lidade das prestações originariamente fixas e colectivas (frequentes em
Trás-os-Montes), além de que se continuava a cobrar o oitavo do vinho
naquele concelho; assim, no mapa, o concelho em questão aparece
abrangido na categoria «jugada e/ou oitavo».
Em seguida, deve esclarecer-se que a indicação sobre a existência ou
não de foral se baseia, não nas declarações das câmaras, que por vezes
ignoravam a sua existência, mas sim na lista de Franklin283. Natural-
mente, a existência de carta de foral não pressupunha que fosse a do
próprio concelho.

283 F. Nunes Franklin, Memoria para servir de índice dos forais das terras do Reino
de Portugal ..., Lisboa, 1816. Para os forais manuelinos utilizou-se a edição de Luís F.
Carvalho Dias, Forais Manuelinos do Reino de Portugal, 5 vols., s. l., 1962-1969.

305
Regime senhorial e revolução liberal

Por outro lado, há a destacar que, em princípio, os únicos direitos de


foral que podiam estar associados à aplicação de restrições enfitêuticas
− quanto à indivisibilidade do «domínio útil», quanto à existência de
«cabeceiros» ou «pessoeiros», quanto ao pagamento de laudémios e
lutuosas, quanto à necessidade da autorização senhorial para a subenfiteu-
ticação e, até, quanto à necessidade de renovação de vidas284 − eram os
tipos 7 e 10. Ou seja, aqueles em que as cartas manuelinas discriminam
os direitos que se pagavam em cada casal ou remetem para tombos
onde, de acordo com os respectivos contratos, aqueles se encontravam
discriminados, bem como as confrontações de cada prazo. No entanto, a
efectivação das restrições enfitêuticas foi um processo gradual ao longo
do Antigo Regime, nunca integralmente completado em numerosíssimos
casos; aliás, quando os tombos não eram actualizados, a cobrança dos
direitos chegava a tornar-se impossível, por se desconhecerem as con-
frontações originárias dos casais, sucessivamente divididos.
Entretanto, a regra antes referida podia sofrer algumas excepções
quando, por exemplo, senhorios que recebiam direitos por «título gené-
rico» nos forais manuelinos tinham elaborado posteriormente tombos
com as confrontações das terras. Ou ainda, como nos casos análogos ao
dos coutos de Alcobaça onde, pagando a maior parte das terras ração
pelas cartas de foral, os «Livros de Fazenda» do Mosteiro discrimina-
vam separadamente, em cada concelho, as que pagavam por «títulos
especiais» (é exactamente esse o termo empregue nas folhas relativas à
vila de Alfeizerão)285. Na maior parte destes casos, tratava-se de terras
que, ou haviam sido aforadas antes da confirmação manuelina a notáveis
locais (pagando, em regra, um foro pouco pesado), ou então que haviam
sido conquistadas aos baldios já depois daquela confirmação, cobran-
do-se na maior parte destas situações o «foro da terra» ao fim de três
gerações, ou seja, os mesmos direitos raçoeiros que se pagavam nas res-
tantes, mas estando obrigadas ao pagamento de laudémios, já que os

284 Sobre o assunto, cf. Manuel de Almeida e Sousa Lobão, Tratado prático e crítico
de todo o direito emphitêutico, Lisboa, 1814, e respectivo Appendice diplomático-
-historico..., Lisboa, 1829, ou para uma perspectiva sintética, José Homem Correa Tel-
les, Questões e várias resoluções de direito emphitêutico, Coimbra, 1851, pp. 18-51.
285 ANTT, CRPN, Mosteiro de Alcobaça, n.° 45.

306
Geografia e tipologia dos direitos de foral

respectivos contratos de aforamento lhes discriminavam as confronta-


ções286.
A distinção que os juristas dos finais do Antigo Regime introduziram
entre as prestações e as formas de posse da terra decorrentes dos forais
régios e/ou existentes nos reguengos (designadas de «censo reservati-
vo») e as decorrentes de contratos com senhorios particulares, designa-
damente eclesiásticos (consideradas «enfitêuticas»), é sistematicamente
infirmada pela investigação empírica287. Encontramos formas «enfitêuti-
cas» de cedência da terra em reguengos a que se reportam explicitamente
cartas de foral (caso, por exemplo, de Guimarães288) e formas «censíti-
cas» em senhorios originariamente eclesiásticos (caso dos coutos de Alco-
baça). No entanto, o facto de os senhorios terem ou não tombos com a dis-
criminação dos prazos e, consequentemente, poderem ou não aplicar as
restrições enfitêuticas foi efectivamente importante, até porque o quadro
legal das práticas de herança era radicalmente diferente nos dois ca-
sos289.
Por fim, deve-se destacar que, em alguns casos, os direitos que estão
representados no mapa não eram pagos aos donatários, mas sim aos en-
fiteutas dos donatários290.

286 Cf. fonte citada e os livros de contas do mosteiro, onde se discriminam as entra-
das provenientes de laudémios (por exemplo, o «Livro da bolsaria...» de 1783-1786,
ANTT, CRPN, Mosteiro de Alcobaça, n.° 31).
287 É a concepção expressa por quase todos os juristas de finais de Oitocentos e pri-
mórdios de Novecentos, retomada, por exemplo, por Gama Barros na História da Adminis-
tração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, 2.ª ed., Lisboa, s. d., t. VIII, pp. 13-134.
Como é óbvio, ela decorre da projecção anacrónica no passado da distinção entre públi-
co e privado característica do pensamento jurídico da época.
288 Cf. N. G. Monteiro, Forais e Regime Senhorial..., cit., pp. 100 e segs.
289 Em princípio, o quadro legal das práticas de herança nas terras que pagavam por
título genérico era o mesmo da propriedade alodial, enquanto nas terras que pagavam
por título especial podiam vigorar as disposições (designadamente sobre o herdeiro úni-
co) características dos vários tipos de contrato enfitêutico [cf. sobre o assunto a síntese
de Fátima Brandão, «Death and survival of rural household in a northwest municipa-
lity», in Rui Feijó et al. (eds.), Death in Portugal, Oxford, 1983].
290 É o caso, por exemplo, de Touças (c. de Trancoso), onde os direitos impostos por
carta de povoação pelo Mosteiro de São João de Tarouca se pagavam a D. Maria Pinto
de Sousa, «cujos ascendentes fizeram Prazo aos Frades».

307
Regime senhorial e revolução liberal

308
Geografia e tipologia dos direitos de foral

Uma imagem de conjunto

Passemos, por fim, ao comentário sintético da informação reunida e


do mapa dos direitos de foral que se cobravam em Portugal em 1819-
-1820.
Na província do Minho predominavam esmagadoramente os forais
que impunham direitos a determinadas áreas (normalmente casais) que
tanto podiam vir discriminados nas cartas de foral como em tombos e
outros títulos para os quais estas remetiam. Os direitos foraleiros quase
nunca abrangiam a totalidade do território dos concelhos, mas apenas
casais dispersos pelas paróquias que os compunham, os quais, em mui-
tos casos, não cobriam sequer a maior parte da área agricultada; ao lado
das terras sujeitas aos direitos de foral existiam outras que pagavam
foros a outros senhorios e, até, a outros donatários. Aspecto decisivo, as
prestações raçoeiras ou parciárias eram muito raras, sendo dominantes
as prestações fixas em géneros (trigo, milho alvo, etc.) ou em dinheiro;
frequentemente, detecta-se ter havido um processo de conversão de
rações em prestações fixas nos finais da Idade Média ou mesmo depois
da reforma manuelina. Este fenómeno foi normalmente acompanhado de
uma aplicação, progressiva mas incompleta, das restrições enfitêuticas
(designadamente quanto à indivisibilidade do domínio útil), o que era,
aliás, em grande parte indispensável para a cobrança dos direitos fixos
(«redução da ração a prazo»): assim, as formas de posse da terra decor-
rentes dos forais tanto podiam ter a natureza de «censo» como de enfi-
teuse perpétua, como (em casos minoritários, mas frequentes) de enfi-
teuse em vidas. Quanto ao «peso» dos direitos, o principal factor a ter
em conta é o facto de o grande aumento da produtividade por hectare
provocado pela introdução do milho maíz necessariamente ter reduzido
a percentagem representada pelas prestações fixas relativamente ao pro-
duto agrícola bruto; como consequência, a maior parte dos direitos de
foral que se pagavam no Minho não chegariam (em quantidades brutas
ou a preços médios) a representar 50 % do rendimento dos dízimos da
respectiva área de cobrança, podendo até ser insignificantes (foros em
dinheiro). Os direitos realmente pesados eram uma minoria, coincidindo
com as áreas onde se impusera a enfiteuse em vidas (nas alturas de

309
Regime senhorial e revolução liberal

renovação dos prazos os senhorios procuravam aumentar os foros) ou


onde se haviam mantido as rações291.
Tudo o que atrás se disse ajuda a explicar que a maior parte das
câmaras do Minho não protestasse contra o peso excessivo dos foros,
mas sim contra o facto de se pagarem direitos em géneros (trigo e milho
miúdo) que quase já não se produziam, o que permitia aos rendeiros
senhoriais imporem o seu pagamento em dinheiro a preços arbitrários
(secundariamente, protestava-se contra a existência de pessoeiros e con-
tra o peso excessivo de alguns laudémios e lutuosas). A reivindicação
quase unânime das câmaras de província era a transformação das presta-
ções em trigo e milho miúdo em prestações em milho maíz. Torna-se,
assim, mais fácil explicar o reduzido número de petições enviadas pelo
Minho às Cortes vintistas, grande parte das quais, aliás, remetida das
poucas povoações onde ainda se pagavam rações (foreiros da casa de
Bragança, Ponte de Lima, São João de Rei).
Em Trás-os-Montes eram preponderantes os forais que impunham
direitos colectivos fixos (por concelho) em géneros e/ou dinheiro, ou
então que obrigavam ao pagamento de prestações fixas em géneros e/ou
dinheiro por fogo. Na provedoria de Miranda (que abrangia a comarca
do mesmo nome e parte da de Bragança) já não se pagavam nenhuns
direitos nos concelhos e aldeias que abrangiam cerca de 30% do total
dos respectivos fogos, pagando-se direitos insignificantes nos que cor-
respondiam a quase 60% dos restantes fogos (os direitos realmente pe-
sados incidiram, quanto muito, em cerca de 3% do total de fogos da
provedoria)292. Por seu turno, na provedoria de Moncorvo, em 1824, já
só se pagavam direitos (quase todos insignificantes) em 7 dos 25 conce-
lhos que responderam ao inquérito. O panorama modificava-se um pou-
co na comarca de Vila Real, onde se pagavam direitos relativamente
pesados em alguns concelhos. Em todo o caso, mais ainda do que no
Minho, é em Trás-os-Montes que resulta flagrante a inadequação entre

291 As respostas da comarca de Guimarães encontram-se detalhadamente analisadas


em Nuno G. Monteiro, Forais e Regime Senhorial…, cit., pp. 86-122.
292 As respostas da comarca de Miranda acham-se estudadas em Nuno G. Monteiro,
Forais e Regime Senhorial…, cit., pp. 71-85.

310
Geografia e tipologia dos direitos de foral

as expectativas liberais sobre a «questão dos forais» e as respectivas


realidades regionais.
Na maior parte dos concelhos da Estremadura pagavam-se, por título
genérico, os direitos foraleiros do oitavo do pão, vinho e linho ou de
jugada (do pão) e oitavo (de vinho), entremeando-se com concelhos
(coutos de Alcobaça, Éga, Enxara, etc.) ou áreas (primitivos reguengos)
encravadas em municípios de grandes dimensões (como Santarém ou
Torres Vedras) nas quais se pagavam direitos mais pesados (quartos e
quintos, etc.)293. Numa zona fortemente marcada pela produção mercantil,
estes direitos representariam, em princípio, uma punção mais pesada do
que a resultante do pagamento dos dízimos; no entanto, as enormes difi-
culdades relacionadas com a sua cobrança tinham feito com que em
vários casos, através de avenças (acordos) ou sentenças, se houvesse
conseguido a sua conversão parcial em prestações colectivas fixas em
géneros (casos de Leiria e Porto de Mós), aligeirando-se, consequente-
mente, o seu peso.
Nos concelhos litorais da Beira (provedorias de Coimbra e Aveiro)
também predominavam as rações, em geral pesadas; só que estas, fre-
quentemente, eram impostas a casais dos quais os senhorios tinham feito
tombos, combinando-se, assim, com o pagamento de «foros certos» e de
laudémios. Compreende-se, desta forma, que fosse esta a área de maior
conflitualidade senhorial, juntamente com uma parte da Estremadura.
Para mais, era nesta zona que um grande número de senhores dispunha
de juízes privativos, factor decisivo para efectiva cobrança dos direitos e
motivo de queixa muito frequente294. Na Beira Alta, a diversidade de
situações e de tipos de foral era muito maior, aumentando significativa-

293 As respostas da comarca de Alcobaça foram analisadas neste livro, pp. 262 e
segs.; as de toda a Estremadura oriental em Nuno G. Monteiro, «Donatários e direitos de
foral na Estremadura oriental em 1824», in Temas de História do Distrito de Santarém,
Santarém, ESE de Santarém, 1992, pp. 323-343.
294 O direito de utilização de juízos privativos (para a cobrança executiva de foros,
etc.) era muito mais importante do que o direito de confirmação de justiças do ponto de
vista senhorial. A coroa concedeu-o muito frequentemente desde meados do século XVIII,
quer a instituições religiosas, quer às administrações de casas da nobreza titulada [so-
bre o assunto, cf. Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Pa-
trimónio da Aristocracia em Portugal (1750-1850), Lisboa, 1998, pp. 412-416 e 481-
-484].

311
Regime senhorial e revolução liberal

mente a percentagem dos concelhos onde se pagavam direitos pouco


pesados, ou onde não se pagavam de todo prestações foraleiras.
No Portugal mediterrâneo eram esmagadoramente dominantes os
forais que impunham direitos de portagem, geralmente considerados
pouco gravosos295. Aliás, uma grande parte dos concelhos em que se
pagava outro tipo de direitos, designadamente rações relativamente
pesadas, enviou petições às Cortes vintistas. Por outro lado, deve desta-
car-se que foi apenas no Alentejo que pude detectar um fenómeno bas-
tante raro: a transformação das terras antes cedidas perpetuamente a cul-
tivadores, cujos direitos se encontram referidos em carta de foral, em
«propriedade plena» dos donatários, que as arrendavam a curto prazo296.
Esta rápida panorâmica da geografia dos direitos de foral nos finais
do Antigo Regime não só confirma opiniões de autores da época297,
como permite concluir que a geografia do movimento peticionário anti-
-senhorial vintista tende a reflectir a geografia da intensidade dos direi-
tos de foral: as zonas que enviaram mais petições foram as que pagavam
direitos mais pesados, e o inverso também é verdadeiro.

295 As portagens tinham sido abolidas pelo vintismo (decreto de 5 de Abril de 1823),
no entanto, as queixas eram raras e incidiam apenas sobre o incómodo da cobrança, e
não sobre o montante dos direitos pagos. Na comarca de Ourique pagavam-se direitos
especiais (em substituição de obrigações foraleiras) que mereceriam um tratamento à
parte, incompatível com o espaço disponível.
296 É o que se passava nos reguengos dos concelhos de Montemor-o-Novo (casa de
Valença) e Vila Viçosa (casa de Bragança).
297 Caso de muitos deputados vintistas e do importantíssimo texto publicado por J.
M. Dantas da Cunha, «Acerca de alguns fragmentos da legislação Agrária de D. Dinis»,
in Historia e Memorias da Academia..., t. X, parte 1, 1827, que tanto influenciou Olivei-
ra Martins e Rebelo da Silva.

312
5. CONCLUSÕES*

[...] a condição dos possuidores das terras reguengueiras ainda


não é tão dura como a de uma classe muito mais numerosa: esta é a
dos colonos arrendatários. Os lavradores reguengueiros sempre ficam
com alguma cousa depois de pagarem as quotas e não podem ser
expulsos de suas terras ao arbítrio dos senhorios: e os arrendatários
acham muitas vezes a casa vazia depois de pagarem a renda das ter-
ras, em que empregaram toda a sua substância, e estão, além disso,
em cada ano expostos a serem despedidos ao bel-prazer dos proprietá-
rios, pois a diferença da extensão de uma e outra classe é notória: a
dos reguengueiros limita-se a parte da província da Beira e da Estre-
madura; porque no Minho, que contém a quarta parte da população
do reino, apenas se conhecem quotas em algum casal da casa de Bra-
gança e no foral de Arcos de Valdevez, pertencente à casa do mar-
quês de Ponte de Lima: são, da mesma sorte, raros em Trás-os-
-Montes e Alentejo. A classe dos colonos arrendatários existe por
todo o território de Portugal. Na província de Ente Douro e Minho, o
número dos lavradores proprietários é mui diminuto em proporção
dos arrendatários: há ribeiras dilatadas em que só de longe a longe se
encontra um agricultor que não lavre bens alheios. Além disso, o
benefício da diminuição das quotas não reverteria geralmente em

* Da parte II este texto retoma de forma abreviada Nuno G. Monteiro, Forais e Re-
gime Senhorial: os Contrastes Regionais segundo o Inquérito de 1824, Lisboa, ISCTE,
1986, pp. 123-126 (prova de capacidade científica, mimeo.).

313
Elite e Poder

favor dos próprios agricultores: as terras oneradas de prestações


estão pela maior parte em mão de proprietários, que as não cultivam,
e que tirariam do alívio das quotas o proveito de aumentarem as ren-
das aos cultores.
Intervenção do deputado J. Peixoto S. de Queiroz no debate
sobre forais em Novembro de 1821298
[...] as pensões certas são por natureza menos pesadas
que as incertas.

Intervenção do deputado A. Pinheiro de Azevedo e Silva no


debate sobre forais em Março de 1822299

Se for tido em consideração que se utiliza o termo «terras reguen-


gueiras» para designar as que estavam sujeitas a prestações parciárias, as
anteriores citações de intervenções de deputados conservadores pode-
riam, por ironia, servir, em grande medida, de conclusão a este estudo.
O ponto de partida foi o discurso antiforaleiro da revolução liberal e
a sua equação de base (a distinção entre as prestações devidas a donatá-
rios da coroa e as decorrentes de contratos «particulares»). A maioria dos
deputados vintistas acreditava firmemente nas potencialidades de uma
reforma dos forais enquanto instrumento de promoção (através do aligei-
ramento dos encargos, da maior coincidência entre propriedade e explora-
ção, etc.) da agricultura e, até certo ponto, de mudança social. Para uma
grande parte deles, a questão dos forais confundiu-se com o problema dos
direitos foraleiros parciários, os únicos contemplados na versão inicial da
lei, embora os exemplos mais frequentemente aduzidos sobre o assunto
fossem retirados quase só do Centro Litoral.
A análise a que procedi no capítulo sobre a geografia dos conflitos
senhoriais permitiu concluir que a maior parte das petições e conflitos
ocorridos durante a década da primeira revolução liberal foram suscita-
dos em povoações onde se pagavam direitos raçoeiros e que, simulta-
neamente, estas faziam maioritariamente parte das câmaras do Centro
Litoral. Se a maior propensão das prestações parciárias para surgirem

298 Diario das Cortes (D. C.), 1821, vol. III, p. 3028.
299 Ibid., 1822, vol. IV, p. 524.

314
Conclusões

associadas a contextos de conflito não oferece dúvidas nem coloca


grandes dificuldades de explicação (sabe-se que eram as que resistiam
melhor à erosão do tempo e as que exigiam as condições de cobrança
mais gravosas), o grande problema que se me colocou, chegado a este
ponto, foi o de saber qual era a relação existente entre a geografia dos
conflitos e a geografia (da intensidade) da tributação senhorial.
O estudo da documentação proveniente do inquérito sobre forais reali-
zado em 1824-1828 permitiu responder de forma concludente à questão
atrás formulada. Parece, assim, legítimo que se conclua que havia uma
grande coincidência entre a geografia dos conflitos e a geografia da
intensidade do regime senhorial. Ou seja, se do ponto de vista institu-
cional (objectivo da separação entre Estado e sociedade civil, entre
público e privado, etc.) a legislação foraleira liberal obedecia a objecti-
vos gerais («nacionais»), as potencialidades económicas, sociais e até
políticas que lhe eram atribuídas só encontram plena verificação numa
larga faixa do Centro Litoral e em concelhos e paróquias dispersos nou-
tras regiões do país. O discurso liberal antifeudal (tão claramente
influenciado pelo paradigma da Revolução Francesa) estruturou-se em
função das experiências vividas ou conhecidas de zonas como as de
Alcobaça e Coimbra300. Ao longo da década da primeira revolução libe-
ral, a chamada «questão dos forais» seria objecto de sucessivas legisla-
ções e dos pareceres de variadas comissões. O problema não foi esque-
cido durante o primeiro período cartista (1826-1828): foi então proposta
a reafirmação da abolição dos direitos banais301, enquanto o deputado
eleito dos coutos de Alcobaça (ainda e sempre no centro dos conflitos)
apresentou um novo projecto de lei dos forais302. No entanto, à luz da

300 Convém recordar, a título de exemplo, que Manuel Borges Carneiro fora prove-
dor de Leiria (que abrangia a comarca de Alcobaça) e Manuel Fernandes Tomás juiz de
fora de Arganil, superintendente das alfândegas e dos tabacos de Aveiro, Coimbra e
Leiria e provedor de Leiria.
301 Projecto apresentado pelo deputado Francisco Xavier Soares de Azevedo, in Cle-
mente J. dos Santos, Documentos para a História das Cortes Gerais da Nação Portu-
gueza, II vol., Lisboa, 1885, pp. 404-405.
302 Sobre este projecto de lei dos forais feito à medida dos coutos cistercienses e so-
bre a nova comissão de forais então constituída, cf. Clemente J. dos Santos, op. cit.,
pp. 235-236, e D. C..., 1828, pp. 76-77 e 140 (o projecto foi apresentado a 10 de Janeiro
de 1828).

315
Elite e Poder

informação recolhida, parece legítimo concluir-se que o discurso anti-


-senhorial do liberalismo (e a historiografia que com ele se identificou)
sobrestimou o impacto da legislação sobre a «questão dos forais».
A segunda conclusão principal para que este trabalho parece apontar
não pode ser provada de forma tão segura, por limitação das fontes. No
caso português, como no do Estado espanhol, «há um erro muito usual
ao considerar-se que o enfiteuta vassalo do senhorio não podia ser senão
um camponês»303. Em proporções que só poderão ser convenientemente
avaliadas em estudos de âmbito local, a redução ou abolição dos direitos
devidos aos donatários podia beneficiar, sobretudo, as diversas catego-
rias de «rentistas intermédios»304.

303 Pedro Ruiz Torres, «Senorío, propiedad agraria y burguesía en 1a revolución es-
panola», in O Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do Século XIX,
2.º vol., Lisboa, 1982, p. 98.
304 O facto de os «rentistas intermédios» receberem rendas decorrentes de contratos
de enfiteuse, subenfiteuse ou de arrendamento e parceria teve, entretanto, diversas im-
plicações a longo prazo, que não poderão ser aqui discutidas. Em todas as citações cons-
tantes do texto actualizou-se a ortografia e a pontuação. Todas as citações dos autores
estrangeiros foram traduzidas.

316
NOTA FINAL

Recolher num mesmo volume textos intervalados de mais de década


e meia significa, naturalmente, o reconhecimento de elos de continuida-
de e coerência entre eles. Traduz ainda a aceitação de que, apesar das
evoluções historiográficas verificadas e do esforço para as incorporar, as
concepções do autor sobre as matérias estudadas e sobre as formas de as
trabalhar não sofreram uma ruptura abrupta. Finalmente, exprime a
recusa assumida e explícita de algumas autoproclamadas revoluções na
historiografia internacional sobre o período em análise; em particular,
no quadro das críticas aos paradigmas da história social, das contunden-
tes e triunfantes afirmações recentes de alguns historiadores pós-moder-
nos anglo-saxónicos, que conseguem por vezes erigir as mais inesperadas
trivialidades em «revoluções culturais», alternativas às transformações
económicas, sociais e políticas antes valorizadas305.
Do que se disse se pode inferir, como já foi sugerido na nota de apre-
sentação, que os caminhos percorridos, longe de esgotarem as perspec-
tivas possíveis, abrem a porta a novas questões e a novas investigações.
Só que estas passam necessariamente pelo reconhecimento e pela identi-
ficação de grandes temas de análise e pela rejeição das perspectivas
relativistas que tendem a conferir idêntica relevância a todas as matérias
passíveis de estudo. E, por consequência, por atribuir às grandes muta-
ções institucionais e políticas do período estudado uma centralidade
indiscutível, como marcos essenciais cujas implicações globais cabe
discutir e avaliar.

305 Cf., como exemplo paradigmático, Colin Jones e Dror Wahrman (ed.), The Age
of Cultural Revolutions. Britain and France, 1750-1820, Berkeley, 2002 (em especial, a
introdução e o texto final de Dror Wahrman); uma rejeição enfática deste tipo de apro-
priações do seu próprio trabalho pode encontrar-se em Roger Chartier, «Postface.
L´événement et ses raisons», in Les origines culturelles de la Révolution Française,
2.ª ed., Paris, 2000, pp. 283-298.

317
ÍNDICE ONOMÁSTICO

A ALCOBAÇA, Mosteiro de, 221,


223, 228-230, 232-233, 235,
ABADE ESMOLER-MOR, D., 212, 237-239, 243, 251-252, 271,
221, 228-231, 239, 241, 247, 279-281, 283-285, 291, 306
253, 263, 269 ALCOCHETE, Nuno Daupias d’, 43
ABOIM, Diogo Guerreiro Cama- ALEMANHA, 139
cho de, 85, 98-99 ALENQUER, 52, 281
ABRANTES, Alcaidaria-mor de, 154 ALENTEJO, 55, 61-62, 64, 149,
ABRANTES, marqueses de (casa 156, 167-168, 171, 175, 195,
dos), 154-155 209, 212, 312-313
ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE ALEXANDRE, Valentim, 25
LISBOA, 254, 286 ALFEIZERÃO, 222, 225, 237, 239-
AÇORES, 64, 78 -240, 244, 249, 252, 255, 265-
ADO, A., 184 -267, 271-272, 274- 275, 284-
AFONSO HENRIQUES, D., 239-240 -285, 306
AFONSO V, D., 94 ALGARVE, 32, 55, 62, 64, 79,
AFONSO, Domingos Araújo, 70 208-209, 213, 304
AGULHON, M., 244 ALJUBARROTA, 229-231, 234-
ALARCÃO, Alberto, 246 -237, 239-240, 243-244, 247,
ALCOA, rio, 255 250, 264, 266-267, 269, 284-
ALCOBAÇA, 201, 208, 215, 221- -285, 289-290
-224, 227, 230-236, 238, 241- ALMANZA, Batalha de, 117
-242, 246-249, 253, 255, 258- ALMEIDA, D. Tomás de, cardeal-
-261, 263, 265-268, 270-271, patriarca, 128, 131
273, 275, 277, 280-281, 283, ALMEIDA, Luís Ferrand de, 208
285-292, 295-297, 299, 306- ALMEIDA, Maria Antónia Pires
-307, 311, 315 de, 171

319
Elites e Poder

ALMEIDA, P. Teodoro de, 79 ARTOLA, Miguel, 41, 181, 185-


ALMEIDA, Pedro Tavares de, 141, -187, 216
157-158 ASSECA, viscondes de (casa dos),
ALORNA, marqueses de (casa dos), 102
102 ASSEICEIRA, Batalha da, 291
ALVA, 1.º conde de (D. João de ASSOCIAÇÃO MERCANTIL LISBO-
Ataíde), 86 NENSE, 157
ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, ASSORES, 51
Antonio, 85 ATOUGUIA, 6.º conde de (D.
ALVES, Álvaro Balthazar, 65 Jerónimo de Ataíde), 87
ALVES, Francisco Manuel (v. Ba- ATOUGUIA, 10.º conde de (D.
çal, abade de), 79 Luís Peregrino de Ataíde), 95
ALVITO, marqueses de (casa dos), ÁUSTRIA, dinastia dos, 30-31,
99 105, 108, 110
ALVORGE, 242 AVEIRAS, condes de (casa dos),
ALVORNINHA (freguesia da comar- 149
ca de Alcobaça), 223, 249, 252, AVEIRO, 55, 57, 59, 61, 198, 304,
260, 264, 267, 273, 285 311, 315
AMARAL, J. de Freitas do, 70 AVEIRO, duques de (casa dos),
AMARANTE, 62-64 31, 109, 114, 210
AMARANTE, 2.º conde de (Manuel AVEIRO, 4.º duque de (D. Rai-
da Silveira Pinto da Fonseca), mundo de Lencastre), 111
232 AVINTES, 2.º conde de (D. Antó-
AMZALAK, Moses B., 192, 255 nio de Almeida Portugal), 128
ANDRADA, F. C., 193 AVIS, 53-54, 59, 61, 72
ANDRADE, Francisco Garção Cam- AVIS, dinastia de, 107
pelo de, 234 AVIS, Ordem de, 49, 144, 147
ANDRÉS-GALLEGO, José, 23 AYMARD, Maurice, 181-183
ANES, Gonzalo, 193 AZEITÃO, 30, 109
ANGOLA, 125 AZEVEDO, Francisco Xavier Soa-
AQUITÂNIA, 295 res de, 315
ARAÚJO, Ana Cristina, 80
ARCO DE BAÚLHE, 78 B
ARCOS, condes de (casa dos), 149
ARCOS DE VALDEVEZ, 62-64, BAÇAL, abade de (Francisco Ma-
313 nuel Alves), 72, 79
ARGANIL, 315 BAENA, visconde de Sanches, 33
ARRONCHES, marquesado de, 33 BAÍA, 95, 125-126

320
Índice onomástico

BALBI, Adrien, 258 BOXER, Charles, 25


BARCA, 1.º conde da (António de BRAGA, 52, 60, 65, 69, 128, 131-
Araújo de Azevedo), 98 -132, 201
BARCELOS, 52, 71 BRAGA, Teófilo, 167
BARDWELL, Ross Little, 124, 136 BRAGANÇA, 52, 213, 304, 310
BARRETO, António, 15 BRAGANÇA, casa de, 29-31, 44,
BASTO, A. Magalhães, 302 76, 81, 87, 92, 106, 108-109,
BASTOS, J. J. Rodrigues de, 203- 114, 166, 210, 310, 312
-204 BRAGANÇA, dinastia de, 13, 31,
BEIRA, 51, 55, 64, 70, 201-203, 83-84, 86-87, 106-107, 110-
208-210, 302, 311, 313 -111, 116, 146
B EIRA ALTA, 61-62, 78, 207, 311 B RAGANÇA , duque de (v. João
BEIRA BAIXA, 208 IV, D.), 30, 106
BEIRA INTERIOR, 208 BRAGANÇA, duques de (casa dos),
BEIRA LITORAL, 207 108-109
BEJA, 55, 57, 59, 61 BRANCO, Jorge de Freitas, 64
BELÉM, Torre de, 120 BRANDÃO, Fátima, 78, 307
BELLOTO, Heloísa L., 74 BRASIL, 25, 70, 76, 78, 86, 122,
BENEDITA (freguesia da comarca 124-126, 134-136, 204
de Alcobaça), 223, 229, 249 BRAZÃO, Eduardo, 100
BERCE, Yves-Marie, 184, 295 BRETANHA, 183
BERNSTEIN, Harry, 35 BRITO, Pedro, 60, 67, 77
BESTEIROS, 62-64
BETENCOURT, F. L., 204 C
BETHENCOURT, Francisco, 34
BETTENCOURT, J. Moniz de, 75 CABRAL, João Pina, 14
BICALHO, Maria Fernanda, 25, CABRAL, Manuel Villaverde,
123 172, 215
BLOCKMANS, W. P., 24 CADAVAL, duques de (casa dos),
BLUTEAU, Rafael, 164 31, 156
BOIS, Paul, 279 CAETANO, Marcello, 190
BONNEY, R. J., 23 CAMBESES, 201
BOONE, James, 76 CANAS DE SENHORIM, 302
BORRALHEIRO, Rogério, 38, 44 CANDEEIROS (lugar da comarca
BOURDIEU, Pierre, 23, 77, 84, 89 de Alcobaça), 237
BOUTIER, J., 184, 295 CANDEEIROS, serra dos, 247
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando, 34, CANELAS, 62
105-106, 108 CANNADINE, David, 139

321
Elites e Poder

CAPARICA, torre da, 120 CASTRO, Concepción de, 41


CAPELA, José Viriato, 38, 52, 61, CASTRO, Zília Osório de, 290
65, 69, 71 CATALUNHA, 185, 216
CARDIM, Pedro, 14, 35, 61, 110, CAVALEIROS, 1.º conde de (D.
115, 126, 128 Rodrigo de Meneses), 95
CARDOSO, António Monteiro, 217 CELA (freguesia da comarca de
CARDOSO, António P. Lopes, 246 Alcobaça), 234, 237-238, 244,
CARMO, Bento Pereira do, 204- 249-250, 255, 260, 269, 273,
-205 284-285, 287-288, 290
CARNEIRO, Manuel Borges, 48, CERUTTI, Simona, 46
96, 197-198, 200, 202, 204, CHÁCON JIMÉNEZ, Francisco, 48,
231, 270, 315 75
CARNEIROS, família dos, 67 CHÃO DE COUCE, 55, 57, 59, 61
CARVALHAL BENFEITO (fregue- CHARTIER, Roger, 266, 317
sia da comarca de Alcobaça), CHICHORRO, Baltazar, 192, 255
229, 249, 266, 283-284, 286, CIUFFREDA, Antonio, 76
289 CLARK, P., 39
CARVALHO, Abílio Pacheco de, 68 CLAVERO, Bartolomé, 21, 48, 84,
CARVALHO, José da Silva, 89 89, 181, 187, 216
CASA DA SUPLICAÇÃO, 125, 229 CLUNY, Isabel, 126
CASA REAL, 30, 68 COELHO, Latino, 102
CASCAIS, 30, 120 COELHO, Maria Helena da Cruz,
CASMIRRI, Silvana, 139, 173 27, 37, 44, 72, 165, 190
CASTANHEIRA, conde de, 111 COIMBRA, 42, 51, 54, 57, 59, 61,
CASTELA, 24, 30, 41 69, 72, 114, 129, 131-132, 201,
CASTELLO BRANCO, José Barbo- 207-208, 242, 299, 302, 304,
sa Canaes de Figueiredo, 61, 74 311, 315
CASTELO BRANCO, 54, 57, 59, COIMBRA, Universidade de, 42,
208 81, 125-126, 166, 202-203
CASTELO BRANCO, João M., 196, COLÉGIO DOS NOBRES, 92
198, 204 COMPANHIA DAS VINHAS DO
CASTELO BRANCO, Manuel, 203 ALTO DOURO, 33, 62
CASTELO MELHOR, 3.º conde de CONSELHO DE ESTADO, 115, 128
(D. Luís de Vasconcelos e Sou- CONSTANT, Jean-Marie, 266
sa), 35, 107 CONTININSIO, C., 85
CASTELO MELHOR, marqueses de CORZANA, conde de, 117
(casa dos), 155 CORREIA, José Eduardo Horta,
CASTRO, Armando de, 193 221, 232

322
Índice onomástico

CORREIA, Silva, 203 DÃO, 208


CORTE REAL, Diogo de Mendon- DELILLE, Gerard, 76
ça, 128 DESEMBARGO DO PAÇO, 42, 44,
CÓS (freguesia da comarca de 52-53, 57, 79, 93, 125-126
Alcobaça), 249, 252, 264-265, DEWALD, Jonathan, 84
273, 283, 286 DIAS, J. S. da Silva, 218
CÓS, Mosteiro de, 251, 266, 271, DIAS, Luís Fernando de Carvalho,
281, 283-284, 286 164, 191, 261, 263, 268, 305
COST CASTANE, Albert, 193 DINAMARCA, 22
COSTA, Fernando Dores, 14, 32, DIOGO, Helena I. B. C., 161
93, 102, 133, 173, 209, 211, DOMINGUES, Francisco Contente,
281, 286 301
COSTA, Fernando Marques da, DOMINGUEZ ORTIZ, Antonio, 40
211, 301 DONEZAR, J. M., 143
COSTA, Francisco de Paula F. da, DÓRIA, A. A., 30., 108
291 DOURO, 61-62, 68, 208
COSTA, M. J. de Almeida e, 188, DUPRONT, Alphonse, 266, 277
190 DURÃES, Margarida, 76
COUTO, padre João Henriques do DURAND, Robert, 165
Patrocínio e (v. Henriques, pa-
dre João), 290 E
COVILHÃ, 62-64
CRATO, 55, 59, 61 EANES, António, 303
CRISTO, Ordem de, 49, 73, 78, EGA, 311
136, 144, 147 EGA, condes da (casa dos), 149
CRUZ, Jésus, 144 ELIAS, Norberto, 21, 84-85
CUNHA, D. Luís da, 163 ELLIOT, J. H., 23-24, 113
CUNHA, J. M. Dantas da, 312 ELVAS, 54, 57, 59
CUNHA, Mafalda Soares da, 14, ENTRE DOURO E MINHO, 70, 313
29, 76, 81, 92, 106, 109, 123, ENXARA, 311
125, 167 ERICEIRA, 3.º conde da (D. Luís
CURTO, Diogo Ramada, 106 de Meneses), 30, 108
CUSTÓDIO, Jorge, 26, 195, 204, 258 ESPANHA, 22, 24, 34-35, 85, 96,
117-118, 140, 143, 145, 152,
D 159, 181, 183
ESTREMADURA, 55, 149, 167,
DALLOZ, M. D., 184 175, 202, 204, 207, 209, 246,
DAMÁSIO, Luís P. C., 70 255-256, 259, 289, 305, 311, 313

323
Elites e Poder

ESTREMOZ, 62-64, 71 FONSECA, Francisco Manuel da


ÉVORA, 30-31, 54, 57, 59-60, 71- Silva da, 224, 226
-72, 128, 132, 155-156, 166, FONSECA, Helder Adegar, 53,
174-175 141, 155, 171, 174-175
ÉVORA (de Alcobaça), 225-226, FONSECA, Jorge, 157, 170, 175
239-240, 242, 247, 249-250, FONSECA, Teresa, 53, 69, 72-73
260, 263, 265, 268-274, 276- FONTANA, Josep, 186
-278, 280, 284-285, 287-288, FORTES, Camelo, 203, 205
303 FRADERA, J. M., 15, 299
FRAGOSO, J., 25, 123
F FRANÇA, 22, 24, 34, 39-40, 96,
181, 184, 269
FAMALICÃO (freguesia da comar- FRANÇA, Eduardo d’Oliveira, 108
ca de Alcobaça), 249 FRANÇA, José Augusto, 133
FARIA, Ana, 267 FRANCO, Francisco Soares, 197-
FARO, 52 -200
FEIJÓ, Rui Graça, 172, 175, 307 FRANCO, Luís F., 65
FEIRA, 55, 59, 72 FRANKLIN, F. Nunes, 200, 305
FERNANDES, Paulo J. da Silva, FREIRE, P. J. de Mello, 48, 189,
38 192
FERNANDES, Paulo Jorge A., 42, FREIRES (concelho de Turquel),
156-157 237
FERNÁNDEZ ALBALADEJO, Pablo, FRONTEIRA, 5.º marquês de (D.
21, 48 José Luís Mascarenhas), 100
FERRÃO, F. A. da Silva, 200, 208 FUNCHAL, 63-64
FERREIRA, Jaime A. C., 193 FUNDÃO, 62-64
FERREIRA, M. E. C., 37 FURET, François, 184, 248
FERREIRA, Maria de Fátima Sá FURTADO de Mendonça, D. Afon-
M., 216 so, 131
FICALHO, condes de (casa dos), 30
FIGUEIRA DA FOZ, 62-64 G
FIGUEIREDO, Fr. Manuel de, 240,
254 GALIZA, 185, 216
FILIPE II, 105, 108 GALWAY, Lord, 117
FILIPE IV, 68 GAMA BARROS, Henrique da, 189,
FONSECA, Carlos, 192 307
FONSECA, Fernando Taveira da, GARCIA, J. M., 26, 204
81, 126, 142, 167 GARCIA SANZ, Angel, 187

324
Índice onomástico

GARRABOU, Ramón, 15, 187, 299 HUNT, David, 184


GARRETT, Almeida, 160
GASPAR, Ana Teixeira, 39 I
GELLNER, Ernest, 21
GOA, 125 IMÍZCOZ, J. Ma., 45
GODECHOT, Jaques, 180 ÍNDIA, 77, 95, 121-124, 136
GODINHO, Vitorino Magalhães, INFANTADO, casa do, 31, 44, 52,
24, 143, 175, 219, 286 57, 166, 173, 210
GONÇALVES, Iria, 165 INGLATERRA, 22, 49, 92, 139
GOUBERT, P., 245 INQUISIÇÃO (v. Tribunal do Santo
GOUVEIA, Fátima, 25, 123 Ofício), 34, 81
GRÃ-BRETANHA, 24 INTENDÊNCIA GERAL DA POLÍ-
GUARDA, 51, 54, 57, 59, 69, 72, CIA, 222, 229, 231
131, 208
GUERRA, Luís B., 74 J
GUERY, Alain, 96
GUIMARÃES, 54, 57, 59, 69-70, JOÃO IV, D., 99, 106
72, 304, 307, 310 JOÃO V, D., 86, 100, 128, 136
GUSMÃO, Alexandre, 136 JOÃO VI, D., 111
GUTTON, J.-P., 245 JONES, P. M., 245
JONES, Colin, 317
H JOSÉ, D., 87, 102, 118, 128
JOYCE, Patrick, 45
HABSBURGOS, 111 JUÍZO DA REAL COROA, 239
HENRIQUES, padre João, 229, 289- JUÍZO DOS FEITOS DA REAL COROA
-290 E CASA DA SUPLICAÇÃO, 234
HERCULANO, Alexandre, 26, 195, JULGADO, 285
204, 297 JUNTA DAS CONFIRMAÇÕES GE-
HERNÁNDEZ, Mauro, 40, 43 RAIS, 197, 302
HESPANHA, António M., 21, 24, JUNTA DE REFORMA DOS FORAIS,
26, 35-37, 40, 48-49, 61, 85, 92, 239, 241, 244, 262, 302
105, 109-110, 169, 181, 190, JUNTA DE REVISÃO DAS LEIS, 235
192, 195, 245-246, 250, 275 JUNTA DO CRÉDITO PÚBLICO,
HIGGS, David, 139 281, 286
HIJANO, Angeles, 41
HIPKIN, S., 39 K
HOBSBAWM, Eric J., 21
HOLANDA, 22 KAMENKA, E., 183

325
Elites e Poder

KELLY, Catriona, 45 LOULÉ, duques de (casa dos),


KRIEDTE, Peter, 181 155
LOULÉ, 1.º duque de (Nuno José
L Severo de Mendonça Rolim de
Moura Barreto), 157
LAFÕES, ducado de, 33 LOUREIRO, João Pinto, 302
LAFÕES, duques de (casa dos), LOURENÇO, Maria Paula Marçal,
102 31, 116, 167
LAGOS, 54, 57, 59, 72 LOURIÇAL, marqueses do (casa
LAMBERT-GEORGES, Martine, 40 dos), 100, 149
LAMEGO, 54, 57, 59-60, 72, 131, LOUSADA, Maria Alexandre, 152,
208 216, 242
LARANJO, José Frederico, 192 LUMIARES, condes de (casa dos),
LE GOFF, Jacques, 84 149
LE GOFF, T. J. A., 184 LUMIARES, 4.º conde de (José
LEAL, Maria José Silva, 218 Manuel Inácio da Cunha), 157
LEFEBVRE, Georges, 183-185, 295 LUXAN MELENDEZ, Santiago, 105
LEIRIA, 54, 57, 59, 72, 109, 246, LUZIO, Luísa França, 129
250, 254, 258, 261, 263, 270,
273, 281, 299, 305, 311, 315 M
LEPETIT, Bernard, 46
LIEVEN, Dominique, 139 MACEDO, Ana Maria da Costa,
LIMA, Antónia Pedroso de, 14 70, 78
LIMA, L. Caetano de, 258 MACEDO, Jorge Borges de, 192-
LINHARES, 55, 57, 59, 61, 208 -193, 259-260
LIPPE, conde de, 118-119 MACEDO, José Agostinho de, 98
LISBOA, 30-31, 33, 35, 41-42, 56, MACEDO, Sousa, 258
79-80, 107, 109-110, 114, 128, MACHADO, António do Canto, 217
131-135, 145, 149-150, 152, MACHADO, Fernando F., 302
156-157, 161-162, 166, 174, MACHADO, Serpa, 199
241, 254, 286, 291 MACLEAN, Francisco, 120
LISBOA, Banco de, 157 MACPHERSON, C. B., 183
LISBOA, MISERICÓRDIA DE, 150, MADALENA, Convento da, 232,
155 266, 282
LONDRES, 39 MADEIRA, 64, 78
LOPES, António Máximo, 194 MADRID, 30-31, 40, 108, 117, 143
LOPES, Carlos da Silva, 67 MADUREIRA, Nuno Luís, 163,
LOULÉ, 63-64 167

326
Índice onomástico

MAGALHÃES, Joaquim Romero, MENEZES, Avelino Freitas de, 38


27, 29, 37-39, 44, 72, 109 MENEZES, Helena Cardoso M.,
MAIA, Manuel da, 120 70
MAIORGA (freguesia da comarca MENEZES, M. P., 48
de Alcobaça), 247, 249, 252, MÉRTOLA, 33, 62-64
256, 260, 265, 268-270, 272- MESÃO FRIO, 62-64
-273, 275, 284-285, 287 METCALFT, Alida C., 76
MALATESTA, Maria, 139 MIGUEL, D., 151-152, 156, 240,
MALTA, J. P., 69, 75 242, 290, 299
MALTA, Ordem de, 49 MILLAN, J., 15, 299
MANIQUE, António P., 44 MINAS, 124
MANUEL, D., 34,190 MINAS, marqueses de (casa dos),
MARGIOCHI, Francisco Simões, 73
89, 204 MINHO, 38, 55, 61-62, 64, 74, 76,
MARIA I, D., 120 78-79, 191, 201, 203, 208-209,
MARINHA GRANDE, 257 212, 302, 304, 309-310, 313
MARMELEIRA, 281 MINISTÉRIO DO REINO, 93
MARQUES, A. H. de Oliveira, 165 MIRANDA, Manuel Gonçalves de,
MARTINS, Conceição Andrade, 199, 204
141, 155, 167, 170, 175 MIRANDA DO CORVO, 54, 57, 59,
MARTINS, Oliveira, 312 72, 310
MASSENA, 259 MIRANDA DO CORVO, condes de
MATEUS, Morgado de, 74, 124 (casa dos), 32-33
MATOS, Armando de, 74 MIRANDELA, viscondes de (v. Vei-
MATTOSO, José, 14, 21, 24, 27, ga Cabral, família), 121
29, 40, 110, 141-142, 165, 190 MONCORVO, 54, 57, 59, 72, 310
MAYER, Arno, 139 MONDEGO, 32
MAZAGÃO, 136 MÓNICA, M. Filomena, 159
MELLO, Evaldo Cabral de, 25, 136 MONTALBÁN, Francisco J. H.,
MELO, Aires de Sá e, 127 186
MELO, Sebastião José de Carva- MONTE REDONDO, 281
lho e (v. Pombal, 1.º marquês MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.,
de), 116, 127 14-15, 19, 27, 31, 33, 38, 40,
MENDES, José Maria Amado, 170 43, 47, 49, 51, 53, 56, 58, 73,
MENDES, N. C., 69, 75 75, 78, 80, 83, 90-91, 94, 96-
MENESES, Alberto Carlos de, -97, 102, 108-111, 115, 117,
190, 193-194, 199, 203, 246, 120, 123, 125-126, 128-129,
270, 275, 296, 302 133, 135, 138, 140, 142, 144,

327
Elites e Poder

146-147, 153, 155-156, 160, OEIRAS, 1.º conde de (v. Pombal,


162-163, 166-167, 169-170, 172- 1.º Marquês de), 34, 87
-173, 211-212, 215-216, 232, OLIVAL, Fernanda, 78, 116, 129,
299, 301, 304, 307, 310-311, 313 136
MONTEMOR-O-NOVO, 62-64, 69, OLIVARES, conde-duque de, 106
71, 73, 75, 312 OLIVEIRA, António de, 25, 30,
MONTESQUIEU, C., 28, 34 105
MORAIS, Maria Adelaide Pereira OLIVEIRA, Aurélio de, 255
de, 70, 75, 78 OLIVEIRA, César, 14, 19, 27-29,
MOREAU, Pierre François, 195 31-32, 40, 46-47, 109, 114
MOURA, José J. Ferreira de, 204 OLIVEIRA, Luís da Silva Pereira
MOUSNIER, Roland, 40 de, 48, 297
MOZZARELLI, C., 85 ONÓRIO, Dr. Fernando, 303
MURÇA, condes de (casa dos), OURIQUE, 54, 59, 61, 72, 312
155 OZOUF, Jacques, 248

N P

NATIVIDADE, M. Vieira da, 221, PAIM, Roque Monteiro, 86, 128


240, 254, 283, 291 PAÍS VALENCIANO, 185-187
NAZARÉ, 257, 260 PAIS, José da Silva, 125
NAZARETH, José Manuel, 170 PALMELA, duques de (casa dos),
NELAS, 302 156
NETO, Maria Margarida Sobral, PALMELA, 1.º duque de (D. Pe-dro
208 de Sousa Holstein), 157, 291
NEVES, Francisco Ferreira das, 31 PALOP, José Miguel, 186
NEVES, José Acúrcio das, 194, PAMPLONA CORTE REAL, Manuel
258-259 Inácio Martins, 1.º conde de
NISA, marquês de, 156 Subserra , 291
NUNES, Ana S. A. de Oliveira, PARAÍBA, 125
60, 68 PATAIAS (freguesia da comarca
de Alcobaça), 249, 257, 266,
O 284, 286
PATRIARCAL, 166, 173, 250
ÓBIDOS, 223, 264 PAULA, Glória Santana, 38
ÓBIDOS/SABUGAL, condes de (casa PEDERNEIRA (freguesia da comar-
dos), 102, 155 ca de Alcobaça), 247, 249, 252,
ODEMIRA, 62-64 255, 264-265, 272, 285, 289

328
Índice onomástico

PEDREIRA, Jorge, 56, 133-134 PORTO, Alfândega do, 68


PEDRO II, D., 31, 86 PORTOCARREIRO (comarca de
PEDRO IV, D. 152, 291 Penafiel), 303
PENAFIEL, 54, 198, 303 PORTO DE MÓS, 264, 311
PENALVA, marqueses de (casa dos), PORTUGAL, 13-15, 19, 21-22, 24,
68, 149, 223 29-30, 34-35, 37, 41-42, 49-50,
PENALVA, 3.º marquês de (Fer- 65, 70, 75, 80, 85-87, 92-94,
nando Teles da Silva), 98 96-97, 105, 108-109, 111, 113,
PEREIRA, Inácio Pacheco, 68 118-119, 126, 134, 137, 140,
PEREIRA, J. Esteves, 193 142-143, 145, 147, 151, 156,
PEREIRA, João, 66, 171 162-163, 168, 175, 179, 181,
PEREIRA, Miriam Halpern, 25, 183, 185, 188, 200, 209, 215,
152, 172-173, 179, 196, 200, 248, 267, 287, 292, 294-295,
206, 215, 218, 240, 255, 270 297-298, 309, 311-312
PEREIRA, Zélia, 15 PÓVOA, 1.º Conde da (Henrique
PÉRES LEDESMA, M., 143 Teixeira de Sampaio), 56
PÉREZ GARZÓN, J. S., 188 POVOLIDE, condes de (casa dos),
PINHEIRO, Magda, 93 155
PINHEL, 54, 59, 72, 208 POVOLIDE, 1.º conde de (Tristão
PINHO LEAL, Augusto, 252 Nuno da Cunha e Ataíde), 94
PINTASSILGO, Joaquim, 94 PRAZERES (freguesia da comarca
PINTO, António Costa, 19 de Alcobaça), 249
PINTO, P. João de Deus A., 291 PRÓ RUIZ, Juan, 143
POMBAL, 1.º marquês de (Sebastião PROVENÇA, 296
José de Carvalho e Melo, 34, 86-
87, 116, 120, 127-128, 133 Q
PONTA DELGADA, 63-64
PONTE DE LIMA, marqueses de QUEIROZ, José Peixoto Sarmento
(casa dos), 310, 313 de, 203, 205, 314
PONTE DE LIMA, 3.º marquês de QUINTAS, Maria da Conceição, 290
(D. José Maria Xavier de Lima), QUINTELA, 1.º barão de (Joaquim
156 Pedro de Quintela), 134
PORRES MARIJUAN, Maria Rosá- QUINTELA, 2.º barão de (Joaquim
rio, 45 Pedro de Quintela e Farrobo), 56
PORTALEGRE, 54, 57, 59, 72, 174
PORTO, 32-33, 54, 56-57, 59-60, R
62-63, 67, 69-72, 77, 125, 129,
131-132, 154, 162, 224, 290 RADULET, M. Carmen, 117

329
Elites e Poder

RAINHAS, casa das, 44, 116, 166, SÁ, Victor de, 215
173, 210 SAAVEDRA, P., 140
RAMOS, L. O., 60 SABÓIA, duque de, 94
RAMOS, Rui, 83, 141, 144, 159 SACRO IMPÉRIO, 22
RATTAZI, Maria, 159-160 SALAZAR, José Bento de Melo,
RAU, Virgínia, 165, 188, 295 244, 290
REDINHA, 299 SALDANHA, A. V., 117
REDINHA, 1.º conde da (José Fran- SALDANHA, duque de, 157
cisco Xavier de Carvalho), 87 SALIR DE MATOS (freguesia da
REDONDO, condes de (casa dos), comarca de Alcobaça), 222,
155 247, 249, 252, 260, 265, 271,
REIMÃO , João de Macedo Sequei- 274-275, 284-285
ra, 53 SAMPAIO, A. Villas Boas de, 30,
REIMÃO, Luís de Macedo Sequei- 70, 85
ra Guerreiro de Sousa, 53 SAMPAIO, condes de (casa dos),
REIS, Jaime, 175 149
RESENDE, Hernâni, 184 SAMPAIO, 7.º conde e 3.º mar-
RIBEIRO, J. Pedro, 190 quês de (D. António Pedro de
RIBEIRO, José Diogo, 221 Sampaio), 65
RIO DE JANEIRO, 125, 136 SANDOMIL, 2.º conde de (Fer-
RIO MAIOR, 223-224 nando Xavier de Miranda Hen-
RIO MAIOR, condes de (casa dos), riques), 100
155 SANT’IAGO, Ordem de, 49, 144,
RIO, Alves do, 201 147
ROCHA, Coelho da, 189 SANTA CATARINA (Brasil), 125
ROCHE, Daniel, 83 SANTA CATARINA (freguesia da
RODRIGUES, José Damião, 38, 63 comarca de Alcobaça), 222, 229-
ROQUE, João Lourenço, 142 -230, 232-233, 235-238, 249,
ROWLAND, Robert, 170 252, 264-266, 271-272, 274-
RUFINO, Padre, 229, 231 -275, 284-285, 287, 291
RUIZ TORRES, Pedro, 140, 187, 316 SANTA MARTA DE PENAGUIÃO,
RUSSEL, Conrad, 23 62-64
RUSSEL-WOOD, A. J. R., 25, 123 SANTA SÉ, 129
RÚSSIA, 22, 139 SANTARÉM, 54, 57, 59, 61, 72, 166,
174, 223, 254, 281, 304, 311
S SANTIAGO DE COMPOSTELA, 140
SANTO OFÍCIO (v. Tribunal do
SÁ, Isabel dos Guimarães, 15, 46 Santo Ofício), 34, 73, 136

330
Índice onomástico

SANTOS, Moisés Espírito, 246 SEABRA, António Luís de, 291


SANTOS, Clemente José dos, 290, SENA, Maria Teresa, 66
315 SERPINS, 51
SANTOS, José Maria dos, 155 SERRÃO, Joel, 143, 165, 167,
SANTOS, Manuel Pinto dos, 158 188, 190, 215, 258
SANTOS, Palácio de, 154 SERRÃO, José Vicente, 79, 170
SANTOS, Piteira, 215 SETÚBAL, 54, 57, 59, 61, 72
SANTOS, Rui, 43, 174 SHILS, Edward, 20
SÃO BERNARDO DE CISTER, SILBERT, Albert, 165, 171, 173,
Ordem de, 221, 228, 232-233, 179, 183, 192, 195-196, 201,
251, 266, 281, 297 207-208, 212, 215, 219, 223,
S BOAVENTURA, Fr. Fortunato
ÃO 225, 228, 283, 298, 302, 304
de, 232 SILVA, A. B. Malheiro da, 70
SÃO JOÃO DA PESQUEIRA, 62 SILVA, A. Pinheiro de Azevedo e,
SÃO JOÃO DE REI, casa de, 310 203, 314
SÃO JOÃO DE TAROUCA, Mostei- SILVA, Ana Cristina Nogueira da,
ro de, 307 21
SÃO JULIÃO DA BARRA, 120 SILVA, António Lambert Pereira
SÃO LOURENÇO, condes de (casa da, 65
dos), 102 SILVA, António Martins da, 141,
SÃO LOURENÇO, 6.º conde de 156, 174
(João Ansberto de Noronha), 94 SILVA, Carlos da, 246, 255
SÃO MAGE, casa de, 224 SILVA, Francisco Ribeiro da, 32,
SÃO MARTINHO DO PORTO, 222, 41, 60, 68, 72
247, 249, 252, 255, 260, 264, SILVA, Guilherme R., 70
266, 268-269, 271-273 SILVA, Maria Beatriz Niza da, 79
SÃO MIGUEL, condes de (casa SILVA, Rebelo da, 312
dos), 102, 149 SILVEIRA, António Henriques, 164
SÃO PAULO, 76 SILVEIRA, Luís Espinha da, 19,
SÃO VICENTE (freguesia da co- 113, 141, 155-156, 158-159,
marca de Alcobaça), 249, 264 174-175
SÃO VICENTE, condes de (casa SILVEIRA, Mouzinho da, 96, 101,
dos), 149 152, 172, 195, 200, 204, 206,
SARAIVA, José Hermano, 26 242, 275, 297-298
SCHAUB, Jean-Frédéric, 106-107 SILVEIRA, Valentim Lobo da, 69
SCHWARTZ, Stuart, 126 SILVEIRAS LOBOS, casa dos, 75
SEABRA DE LACERDA, José Vaz SLACK, P., 39
Correia de, 198, 203 SMITH, David Grant, 134

331
Elites e Poder

SMITH, Jay M., 84 TENTÚGAL, 208


SOARES, Sérgio Cunha, 42, 44, TERCEIRA, 1.º duque da (António
69, 114 José de Sousa Manuel), 157
SOBOUL, Albert, 183-184, 295 TILLY, Charles, 21, 24, 35
SOBRAL, José Manuel, 22, 36 TOCQUEVILLE, Alexis, 28, 181
SOURE, condes de (casa dos), 155 TOMAR, 54, 57, 59, 72, 254
SOURE, 6.º conde (D. António da TOMAR, Cortes de, 105
Costa Carvalho Patalim) de, TOMÁS, Manuel Fernandes, 194,
100 201-202, 315
SOUSA (Lobão), Manuel de Al- TONDELA, 62
meida e, 48, 194, 306 TORGAL, Luís Reis, 106, 142
SOUSA , Bernardo Vasconcelos e, TORRES VEDRAS, 54, 57, 59, 72,
168, 232 223, 281, 284, 311
SOUSA, D. Maria Pinto de, 307 TORRES, João Carlos Feo C. B.,
SOUSA, Fernando, 166, 170, 281 33
SOUSA, Joaquim J. C. Pereira de, TORRES, José Veiga, 73
170-171 TORRES, Rui d’Abreu, 167
SOUSA, Manuel de Almeida e, 189 TOUÇAS, 307
SPIEGEL, Gabrielle M., 45 TRANCOSO, 54, 59, 72, 208, 307
SPRING, David, 139 TRAPA DE LAFÕES, 198
STONE, Jeanne C. F., 74 TRÁS-OS-MONTES, 32, 55, 64, 70,
STONE, Lawrence, 45, 49, 74 204, 208-209, 304-305, 310,
SUÁREZ CORTINA, M., 139, 173 313
SUBTIL, José, 39, 126 TRIBUNAL DA ALÇADA DO POR-
SUÉCIA, 22 TO, 290
SUTHERLAND, D. M. G., 184 TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO POR-
TO, 32
T TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO, 34
TRIGOZO DE ARAGÃO MORATO,
TAROUCA, conde de, 111 Francisco Manuel, 193-194
TAVIRA, 54, 57, 59, 71-72, 207, TUNON DE LARA, M., 188
213, 304 TURQUEL, 221, 223, 225, 243, 249,
TÁVORAS, 32 252, 273, 284-285, 289-291
TEJO, 165-168, 254, 290 TURQUIA, 101
TELLES, José Homem Corrêa,
189, 191, 306 V
TENGARRINHA, José Manuel,
208, 218, 222 VALADA, Reguengo de, 281

332
Índice onomástico

VALADARES, condes de (casa de Sousa e Meneses, copeiro-mor),


dos), 149 95
VALADO, freguesia do, 231, 249, VILA FRANCA, 54, 59, 61, 72, 254
261, 265, 285 VILA NOVA DA RAINHA, 254
VALENÇA, 55, 59, 72 VILA NOVA DE PORTIMÃO, 71
VALENÇA, marqueses de (casa VILA NOVA DE PORTIMÃO, con-
dos), 102, 157 des de (casa dos), 102
VALENZUELA, Fernando, 85 VILA REAL, 54, 57, 61-62, 74, 310
VALLADARES, Rafael, 106 VILA REAL, marqueses de (casa
VAN BATH, B. H. Slicher, 255 dos), 31, 109
VASCONCELOS, família dos, 78 VILA VIÇOSA, 30, 108, 312
VASCONCELOS, Francisco de, 78 VILAR, Pierre, 188, 216
VASCONCELOS, Francisco L. Sa- VILLARES, Rámon, 140, 187, 216
raiva de, 141, 161-162 VIMEIRO, 233-234, 249
VEIGA CABRAL, família, 121 VIMIOSO, 13.º Conde de (D. José
VELOSO, Pedro F. S., 290 Bernardino de Portugal e Cas-
VENTURINO, Diego, 83 tro), 156
VESTIARIA (concelho de Alcoba- VISEU, 54, 57, 59, 62, 72, 198, 208
ça), 237, 249, 265 VITERBO, Sousa, 263
VIANA DA FOZ DO LIMA, 55, 59, VIVES, J. Vicens, 185
61, 72 VOGEL, Charles, 162
VIDAIS, 258 VOVELLE, Michel, 181-184, 266,
VIDIGAL, Luís, 66, 71 296
VIEIRA, João Fernandes, 125
VILA CAIZ, 198 W
VILA DO CONDE, 78
VILA FLOR, 5.º conde de (Antó- WAHRMAN, Dror, 317
nio Francisco de Paula Manuel WEBER, Max, 45, 101

333

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