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O PROCESSO DE POVOAMENTO DO TERRITÓRIO PAULISTA NOS

SÉCULOS XVI A XX

Carlos de Almeida Prado Bacellar


Departamento de História da Universidade de São Paulo
Diretor do Arquivo Público do Estado de São Paulo∗

Quando da chegada da expedição de Tomé de Sousa ao litoral paulista, onde fundaria


a vila de São Vicente, em 1530, já havia ali um pequeno e rústico povoado à beira mar,
composto de poucos casebres, onde viviam os pioneiros europeus daquelas paragens. Em
convivência pacífica com os indígenas encontrava-se um certo João Ramalho, possível
degredado, que entre os nativos constituíra família. Possivelmente o primeiro europeu
radicado na região, junto de um provável compatriota, o desconhecido ‘bacharel de
Cananéia’, constituíam, ambos, na principal, senão única, referência para os contatos de
navegantes naquelas distantes terras. Em tempos de navegação precária, em mares ainda
pouco freqüentados, a presença desses europeus garantia uma certa assistência em termos
de provisões e abrigo antes da longa travessia do mar oceano.
A chegada da primeira expedição oficial no que viria a constituir a América
Portuguesa traduzia a mudança política ocorrida em Portugal, após deixar em segundo
plano, por três décadas, as terras descobertas pela expedição de Cabral. Este foi o período
onde a atividade econômica desenvolvida restringiu-se praticamente ao escambo do pau-
brasil, produto quase único da cobiça européia. De resto, toda a atenção e esforço do reino
de Portugal voltavam-se, vigorosos, para o oceano Índico, espaço comercial monopolizado
desde o início de século XVI, fonte de lucros avantajados.
No processo de expansão marítima e comercial portuguesa, o interesse tardio pela
ocupação do território já então denominado Brasil somente viria brotar diante da
constatação de que os rivais europeus, em especial franceses, faziam-se cada vez mais
constantes no trabalho de escambo do pau-brasil e da conseqüente montagem de feitorias
comerciais. A ereção da vila de São Vicente marca, portanto, a primeira ação mais
concreta para a ocupação do território, em uma política de concessão de capitanias
hereditárias de caráter privado, que demandavam muito pouco investimento de recursos
diretos da Coroa.
Pouco se sabe sobre o perfil humano dessas primeiras décadas de povoamento
vicentino. A confiar nos dados das genealogias estabelecidas alguns séculos mais tarde, tal
como Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1980) e Silva Leme (1903/1905), a população
de origem européia estabelecida em São Vicente e São Paulo era bastante diminuta, apesar
da constante miscigenação com os índios. Seria interessante, no contexto que aqui nos
interessa, tentar apontar para a presença mais ou menos regular de europeus de outras


Publicado previamente em Marilza de Oliveira (Org. 2006). Língua Portuguesa em São Paulo: 450 anos.
São Paulo: Humanitas, pp. 19-38.
naturalidades, que possam ter aportado contribuições culturais e lingüísticas à exígua
sociedade paulista que se construía.
Ao longo das primeiras décadas de povoamento, e mesmo antes de Tomé de Sousa
desembarcar, a presença de castelhanos era, segundo os indícios, relativamente natural.
Embora rivais e comumente em conflito na Península Ibérica e no processo de construção
de seus espaços coloniais, podiam ser acolhidos em um porto tal como São Vicente, após
naufrágios, implicando em períodos mais ou menos prolongados de inevitável
convivência, até que fosse providenciado o transporte para domínios de Castela. O caso
mais notório dessa prática nos é fornecido por Hans Staden em seus relatos. À parte de
suas famosas descrições do cativeiro junto aos índios, o que nos interessa mais
particularmente é a informação de que chegara a São Vicente acolhido de um naufrágio de
embarcação castelhana, que se dirigia para o rio da Prata. Ainda mais significativo é o fato
de que não chegara, na qualidade de alemão incorporado como artilheiro, a ser recolhido
como prisioneiro, mas, pelo contrário, fora incorporado, como verdadeiro mercenário que
era, para compor a guarnição da fortaleza de Bertioga. A carência de europeus priorizava
tal prática, ignorando eventuais divergências políticas metropolitanas.
O próprio Hans Staden nos informa, também, da presença de outros estrangeiros,
alguns dos quais náufragos em sua companhia e que, chegados a São Vicente, procuraram
algum trabalho para ganhar seu sustento e viviam em uma aparente harmonia no pequeno
povoado (Staden 1999: 50):

‘Certo dia veio me ver na fortificação onde eu morava um espanhol da ilha de São Vicente
(...). Com ele veio um alemão de nome Heliodorus Hessus, filho do falecido Eobanus Hessus.
Heliodorus trabalhava num engenho de São Vicente (...). Este pertencia a um genovês de nome
Giuseppe Adorno.’ (Staden 1999: 53).

Outros ali estavam em função dos supostos lucros da incipiente produção açucareira,
tal como o ‘representante ou feitor de nome Peter Rösel’, ali radicado em nome de
comerciantes de Antuérpia (Staden 1999: 116).
Seja como for, à presença de comerciantes ou colonos estrangeiros vinham se somar
os franceses, formalmente os grandes inimigos no contato e comércio com os índios, a
freqüentar com desenvoltura as tribos do litoral norte. Embora não saibamos que gênero de
contato eventualmente se entreteve com os franceses, a assiduidade destes entre os
indígenas do litoral norte paulista deve ter permitido eventuais encontros, pacíficos ou não.
Serra acima, o povoamento iria se desenvolver após a ereção do colégio jesuíta de
São Paulo e a extinção forçada do núcleo povoador de Santo André da Borda do Campo. A
partir da nova vila, ainda no tempo de Tomé de Sousa, já se entretinha contatos comerciais
com a igualmente recém-criada vila de Assunção, no Paraguai atual. Essa tendência de
contato interiorizado rumo ao Paraguai era facilitada pela existência de antigas rotas
indígenas unindo aquela região ao litoral paulista, constituindo o chamado ‘caminho do
Peabiru’. Nas palavras do governador,

‘... achei que os de São Vicente se comunicavam muito com os castelhanos, e tanto que na
alfândega de V. A. rendeu este ano passado cem cruzados de direitos de coisas que os
castelhanos trazem a vender. E por ser com esta gente que parece que por castelhanos, não se
pode V. A. desapegar deles em nenhuma parte, ordenei com grandes penas que este caminho
se evitasse até o fazer saber a V. A.. e pôr nisto grandes guardas; e foi a causa por onde

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folguei de fazer as povoações que tenho dito no campo de São Vicente, de maneira que me
parece que o caminho estará vedado...’ (Sousa 1989: 186).

Tais contatos, por terra ou por mar, foram mais ou menos constantes ao longo do
período colonial, ao sabor das circunstâncias políticas e econômicas locais e européias. A
despeito de eventuais conflitos entre as duas metrópoles, os colonos tendiam a perseguir os
lucros do comércio quase sempre ilegal, de contrabando, entre as partes da capitania de
São Vicente e as possessões castelhanas do Rio da Prata e Paraguai. Os próprios
governadores das capitanias eram useiros em entreter tais negócios, de maneira nem
sempre discreta.
Não seria demais lembrar, também, que dentre os jesuítas presentes na capitania,
alguns, tal como o próprio Anchieta, eram de origem castelhana, e temos o testemunho de
suas abundantes correspondências redigidas nessa língua (Leite 1954). Nesse sentido, o
fato de serem os principais responsáveis pelo ensino e disporem de bibliotecas os
envolviam com o esforço de alfabetização dos homens principais da terra. Estes, assim,
aprendiam a ler e a escrever com homens que dominavam perfeitamente o castelhano, e
que certamente dele se utilizavam em suas atividades rotineiras, aí incluído o ensino.
A partir de 1580, quando da União Ibérica entre Espanha e Portugal, e apesar da
separação administrativa das possessões das duas coroas, a presença de súditos espanhóis
tornou-se mais provável e pouco surpreendente no cotidiano colonial. Talvez a mais
notória presença em São Paulo tenha sido a de D. Luiz de Céspedes Xeria, Governador do
Paraguai, que desceu o rio Tietê em 1628 para tomar posse de seu cargo em Assunção.
Além disso, frotas castelhanas freqüentaram, em vários momentos, o litoral vicentino, com
total liberdade – inclusive para tentar combater os holandeses -, graças ao novo contexto
político ibérico.
Mas talvez o maior contato com os colonos de Castela tenha sido promovido em
função da preação de índios. À instalação dos primeiros povoados das missões jesuíticas, a
partir da década de 1610, seguiu-se, na década seguinte, as primeiras razias mais
consistentes de paulistas em busca da mão-de-obra ali reunida em grandes contingentes.
Embora a maior parte dos ataques tenha sido desfechada em território formalmente
submetido aos domínios de Castela, a conivência interessada do Governador Céspedes
Xeria, que mantinha laços familiares e econômicos com o Rio de Janeiro, aliada ao
contexto da União Ibérica, deixaram os bandeirantes sem embaraços para agir. Paraguaios
e paulistas tinham em comum o interesse em desbaratar as missões, visto que discordavam
da atuação dos jesuítas no controle da população indígena. Os sucessivos ataques às
missões sugerem o bom contato entre os colonos de ambas as partes, que iriam se
materializar, inclusive, em alianças matrimoniais.
A partir de 1640, com o fim da União Ibérica, os ataques dos bandeirantes se
desviaram para o Brasil central, novo foco da caça ao índio. Mesmo assim, os contatos
com os vizinhos parece ter sido preservado. Em data bem mais tardia, nas décadas finais
do século XVII, podemos detectar, nos registros documentais da vila de Sorocaba, a
presença de inúmeras famílias de origem castelhana – Zuñiga, Ponce de León, Torales,
Peralta – cujos membros ocuparam cargos públicos e contraíram matrimônio com os filhos
e filhas de famílias paulistas (Bacellar 2001: 14; Almeida 1938: 137).
A presença quase que contínua de alguns castelhanos nas terras de São Paulo ao
longo do século XVII, além de notícias esparsas de contatos via comércio ou contrabando,
nos dizem que o propalado isolamento da sociedade paulista não era tão severo como se

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poderia esperar. Seria, nesse sentido, interessante tentar analisar a escassa documentação
camerária e cartorial desse período em busca de indícios da língua castelhana no cotidiano
do colono, a sinalizar uma maior ou menor influência do falar e no escrever do português
em São Paulo.
Os sinais de nativos de outras naturalidades em terras paulistas parece ter minguado a
partir de finais do século XVII, justamente quando se descobriram os primeiros veios
auríferos em Minas Gerais. Embora se faça necessário maiores estudos para confirmar tal
assertiva, não seria exatamente uma surpresa detectar uma crescente dificuldade para os
estrangeiros penetrarem no território não somente de São Paulo, mas da América
Portuguesa em geral. Afinal de contas, a descoberta do ouro desencadeara uma reviravolta
nos destinos da colônia, provocando um esforço por parte da Metrópole no sentido de
buscar seu fechamento para o exterior. Visava-se, com isso, barrar o acesso e mesmo o
conhecimento mais detalhado das riquezas minerais, que, pensava-se, deveriam ser
ciosamente guardadas.
O projeto de centralização administrativa e ampliação da vigilância, visando a um
mais perfeito controle fiscal, resultou, de modo bastante claro, na tentativa de obstaculizar
o acesso às Gerais, através da implantação de barreiras ao longo dos caminhos que agora
conduziam levas crescentes de aventureiros para o interior da colônia. Isto, muito
provavelmente, se refletiu com alguma intensidade nas capitanias imediatamente vizinhas,
fazendo de eventuais forasteiros suspeitos em potencial. Não obstante, as vilas próximas
dos caminhos para Minas Gerais, Cuiabá e Goiás passaram a ter um contato cada vez
maior com uma população em deslocamento, viajantes em demanda das riquezas do ouro.
Oriundos de diversas partes da América Portuguesa e da própria Metrópole, vinham juntos
com uma profusão de escravos africanos, alterando profundamente o cotidiano das
populações dessas vilas.
A descoberta dos veios auríferos iria permitir que a população paulista crescesse a
taxas bastante elevadas. Se em 1690 havia uma população estimada em 15.000 habitantes
em toda a capitania, esse número teria crescido para 78.855 em 1765, demonstrando que
não houve nenhuma drenagem significativa de contingentes populacionais para as áreas de
mineração, desmentindo uma imagem persistente, porém inexata, de uma primeira metade
do século XVIII marcada pela ‘decadência’ econômica e demográfica paulista (Marcílio
2000: 71) 1. Também em função da descoberta do ouro, promove-se a reformulação
administrativa do sudeste da América Portuguesa, com a compra, pela Coroa, das
capitanias até então ainda hereditárias, com vistas a impor um controle mais efetivo da
área mais dinâmica da economia colonial. Ao mesmo tempo, e também em função de uma
maior presença administrativa da Coroa, resolve-se pela criação do bispado de São Paulo.
Conseqüentemente, cresce a presença de altos dignatários metropolitanos, que compõem,
juntamente com o governador-capitão general e o bispo, um pequeno grupo de
administradores, burocratas, religiosos e militares. Eram, certamente, homens mais
ilustrados, que passariam a freqüentar o cotidiano dos moradores locais, importando
hábitos, costumes e modismos da enriquecida Corte portuguesa, tal como uma Casa da
Ópera, em São Paulo, em finais da década de 1760.
Mesmo assim, é de se supor que os contatos com castelhanos permaneceram. Em
1732, a abertura do Caminho do gado, rumo ao sul da colônia, pode ter contribuído nesse

1
Os números referentes a 1690 certamente subestimam a população indígena. Mesmo assim, o
crescimento da população entre os intervalos em questão não deixou de ser significativo, contrariando a
tradicional descrição de ‘decadência’.
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sentido. Obra do rico comerciante Cristóvão Pereira de Abreu, homem de fortes interesses
na Colônia de Sacramento, possibilitou o estabelecimento de um crescente fluxo de tropas
de animais vindas dos campos sulinos e mesmo de territórios castelhanos do atual Uruguai.
Muito provavelmente aí se estabeleceram vínculos bastante consistentes com negociantes
do outro lado da fronteira, parceiros de negócios.
Os registros documentais de Sorocaba, porta de entrada desse comércio de muares
sulinos, parecem comprovar tal hipótese, mesmo que em data mais tardia. Três registros de
casamento apontam que alguns jovens de língua castelhana contraíram matrimônio com
moças sorocabanas: Tomás Ramires, natural de Buenos Aires, casou-se em 1752; Antônio
José Domingues Espinosa, natural de Santiago do Chile, contraiu matrimônio em 1775 e,
em 1776, o também nativo de Buenos Aires Pedro Nolasco Molina igualmente oficializou
sua união (Bacellar 2001: 54). A presença desses homens em Sorocaba, provavelmente
ligados ao comércio de animais, apesar de insignificante no contexto de uma comunidade
com quase 6.000 habitantes, indica que o contato existia, ou persistia, e que, naqueles
tempos, não era exatamente incomum escutar pelas ruas e durante as feiras de gado, o
castelhano.
A segunda metade do século XVIII daria início a um novo período do povoamento do
território paulista. O crescimento do cultivo da cana-de-açúcar e a ereção de engenhos
cada vez maiores viriam a exigir o aumento da importação de escravos africanos, até então
relativamente pouco representativos na região. Proibido em definitivo o recurso ao cativo
indígena, o braço africano passava, agora, a ser fundamental, no contexto de uma
economia cada vez mais exportadora, carente de força de trabalho. A presença de
indígenas começaria a minguar, desaparecendo quase por completo dos registros
documentais, muito provavelmente passando a serem descritos como pardos. Tinha
princípio, assim, o declínio da influência dos falares e das culturas nativas no cotidiano
paulista, que tanto marcara os hábitos e a toponímia regional.
Em 1801, já durante a fase áurea da lavoura açucareira em São Paulo, a presença de
estrangeiros na capitania era ainda pouco significativa, mas sempre presente. De acordo
com as listas nominativas de habitantes desta data, havia, em toda a capitania, 32
castelhanos de diversas procedências, dois ‘alemães’, dois franceses, um ‘italiano’, um
sardo e um inglês (Bacellar 2000). Poucos, mas não inexistentes, deixando claro que
jamais se conseguiu fechar inteiramente o mundo colonial aos estrangeiros. Os
contingentes populacionais totais cresceram ainda mais, em função da vigorosa expansão
da economia açucareira, alcançando, em 1800, 169.545 habitantes, fortemente elevados
pela expressiva importação de escravos africanos, dando um novo perfil demográfico à
sociedade local.
Os anos seguintes à Independência foram marcados, em São Paulo, pelo início do
processo de transição da indústria açucareira para a grande lavoura cafeicultora. Entrando
pelo norte da província, via vale do Paraíba, o café viria a estabelecer uma ainda mais
elevada demanda por mão-de-obra, justamente no mesmo momento em que o Brasil
começava a sofrer as primeiras pressões inglesas pela suspensão do tráfico africano. Se,
inicialmente, logrou-se prorrogar o comércio atlântico de cativos, finalmente a interrupção
definitiva veio a ocorrer em 1850, virando uma página na história da força de trabalho no
território brasileiro. A partir de então, o esforço do Estado Imperial e dos fazendeiros no
sentido de buscar fontes alternativas de mão-de-obra iria desembocar na imigração
européia, já nos anos de ocaso do Império.

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A introdução em massa do imigrante europeu viria a novamente alterar o perfil
demográfico paulista. O volume de população estrangeira instalada na Província/Estado de
São Paulo entre 1836 e 1947 somou por volta de 1.200.000 indivíduos, incorporando uma
multiplicidade de falares e de culturas nunca anteriormente vistos. A cidade de São Paulo
parecia ter se transformado em uma cidade italiana, tamanha a profusão de línguas e
dialetos que se ouvia no cotidiano.
Embora se saiba que essa imigração variou em sua composição e volume ao longo do
tempo, pouco se conhece sobre sua efetiva distribuição final no território paulista, já que a
mobilidade interna foi intensa. Mesmo os números globais são díspares, tanto os de saída
da Europa quanto os de desembarque; além disso, quase nada se conhece sobre o
fenômeno da re-imigração, em que indivíduos ou famílias inteiras saíram do Brasil rumo a
outros países do continente ou mesmo de retorno à Europa.
No que diz respeito à localização no território paulista, sabemos que a incorporação
progressiva de novos e amplos territórios do Oeste ocorreu justamente em função da
expansão da cafeicultura e da disponibilidade do imigrante. Relacionando-se tal processo à
chegada de volumes variáveis de imigrantes de cada nacionalidade, seria possível ao
menos mapear a distribuição geográfica de cada etnia, conquanto os dados para os
primeiros anos sejam escassos.
A Tabela 1 indica a localização dos principais pólos de concentração de imigrantes
nos estágios iniciais da experiência com a mão-de-obra européia. Os pouco mais de seis
mil estrangeiros registrados em 1854 eram, em sua maioria, composta de portugueses, e
não necessariamente se encontravam em zonas de grande lavoura, sendo o exemplo mais
flagrante os casos de Iguape, Itapetininga e Sorocaba.

Tabela 1 – Principais concentrações de imigrantes na Província de São Paulo, 1854.


Localidade Número de imigrantes Localidade Número de imigrantes
Iguape 1.264 Campinas 327
Limeira 994 Sorocaba 319
São Paulo 762 Bananal 269
Santos 707 Rio Claro 250
Itapetininga 488 Jundiaí 242
População imigrante total: 6.757
População total da Província: 418.532
Fonte: Quadro Estatístico da População da Província de São Paulo recenseada no ano de 1854.
(Bassanezi e Francisco 2002).

Quase duas décadas mais tarde, em 1872, o primeiro recenseamento nacional mostra
que a presença de imigrantes quase triplicara na província, mas que ainda não era muito
significativo. Os portugueses permaneciam como o grupo mais numeroso, indício de que a
imigração espontânea de caixeiros e comerciantes era ainda forte. Mas, ao contrário do que
se identificara em 1854, agora os estrangeiros começavam a se concentrar nos municípios
diretamente envolvidos com a cafeicultura no Oeste Paulista, à exceção de Bananal,
comprovando que o processo de transição da mão-de-obra começara a ocorrer com maior
vigor nas zonas agrícolas mais ricas e progressistas.

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Tabela 2 – Principais nacionalidades de imigrantes e na Província de São Paulo, 1872.
Nacionalidade Número de imigrantes Nacionalidade Número de
imigrantes
Portugueses 6.867 Suíços 560
Alemães 3.812 Franceses 544
Italianos 1.185 Ingleses 411
População imigrante total: 16.567
População total da Província: 837.354
Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872. (Bassanezi e Francisco 2002).

Tabela 3 – Principais concentrações de imigrantes na Província de São Paulo, 1872.


Localidade Número de imigrantes Localidade Número de
imigrantes
Capital 2.209 Rio Claro 818
Campinas 1.972 Piracicaba 755
Limeira 1.159 Mogi Mirim 593
Bananal 973
Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872. (Bassanezi e Francisco 2002).

Após o censo do Império de 1872, uma série de levantamentos censitários foram


tentados em 1886 e 1890, com resultados bastante insatisfatórios e cheios de lacunas. Seria
somente com o censo nacional de 1920 que se conseguiria elaborar um perfil confiável da
população brasileira. Os dados referentes a São Paulo, apresentados na Tabela 3, traduzem
em números quase meio século de imigração desde 1872, justamente o período de auge da
economia cafeeira. Estrangeiros no Estado significavam, agora, 18% da população total,
com presença maciça de italianos, secundada por espanhóis e portugueses. Esta
percentagem, no entanto, mascara uma distribuição espacial dos imigrantes que
permanecia desigual. Se considerarmos os municípios que contavam com ao menos dez
mil imigrantes em sua população, em um total de quatorze, veremos que, neles, estes
representavam, em média, 26,3% dos habitantes, acima da média geral, comprovando
assim o desequilíbrio da presença do elemento estrangeiro pelo Estado de São Paulo.

Tabela 4 - Principais nacionalidades de imigrantes no Estado de São Paulo, 1920.


Nacionalidade Número de imigrantes Nacionalidade Número de imigrantes
Italianos 398.797 Turcos 19.290
Espanhóis 171.289 Alemães 11.060
Portugueses 167.198 Áustria 10.643
Japoneses 24.435
População imigrante total: 829.851
População total do Estado: 4.592.188
Fonte: Recenseamento do Brazil realizado em 1º de setembro de 1920. (Bassanezi e Francisco
2002).

Como seria de se esperar, o censo de 1920 aponta para uma predominância ainda
maior da presença italiana no Estado de São Paulo e, ao mesmo tempo, uma cada vez
maior interiorização da presença de imigrantes. Chama a atenção, também, a maciça
concentração de imigrantes na Capital, agora inchada de 579.033 habitantes e contando
com mais de um terço de estrangeiros. Por fim, os dados referentes aos anos de 1934 e
1950 ilustram a progressiva mudança de perfil do movimento migratório desde antes da II
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Guerra Mundial, destacando-se a diminuição percentual da presença imigrante no contexto
do Estado – embora haja uma forte presença da primeira geração de seus descendentes,
não indicada – e o forte crescimento do afluxo de japoneses.

Tabela 5 – Principais concentrações de imigrantes no Estado de São Paulo, 1920.


Localidade Número de imigrantes Localidade Número de
imigrantes
Capital 205.245 Ribeirão Preto 21.748
Santos 36.539 São Carlos 13.287
Campinas 23.516 Penápolis 12.743
S. José do Rio Preto 22.404 Jaboticabal 12.250
Fonte: Recenseamento do Brazil realizado em 1º de setembro de 1920. (Bassanezi e Francisco
2002).

Tabela 6 – Principais nacionalidades de imigrantes no Estado de São Paulo, 1934.


Nacionalidade Número de imigrantes Nacionalidade Número de
imigrantes
Italianos 304.977 Japoneses 131.709
Portugueses 176.591 Alemães 26.998
Espanhóis 160.524 Sírios 25.610
População imigrante total: 931.691 (incluídos naturalizados)
População total do Estado: 6.433.327
Fonte: Recenseamento Demográfico, Escolar e Agrícola-Zootécnico do Estado de São Paulo (20
de setembro de 1934). (Bassanezi e Francisco 2002).

Tabela 7 – Principais nacionalidades de imigrantes no Estado de São Paulo, 1950.


Nacionalidade Número de imigrantes Nacionalidade Número de
imigrantes
Italianos 145.307 Espanhóis 90.368
Portugueses 139.438 Russos (URSS) 25.821
Japoneses 105.311 Alemães 22.577
População imigrante total: 693.321 (incluídos naturalizados)
População total do Estado: 9.134.423
Fonte: VI Recenseamento Geral do Brasil – 1950. (Bassanezi e Francisco 2002).

Os dados estatísticos vistos até aqui dão um panorama do fluxo imigratório, mas
pouco dizem a respeito da origem desses imigrantes. Sob a rubrica genérica de ‘alemães’,
‘italianos’, ‘espanhóis’ e ‘portugueses’ esconde-se uma rica diversidade regional, sendo
que nos dois primeiros casos nem mesmo havia, a princípio, o estado nacional
consolidado.
No caso dos ‘italianos’, por exemplo, sabe-se que a situação política e econômica,
relacionada ao processo de unificação nacional, influenciou fortemente a composição
diferenciada do fluxo de população para o exterior. Como a unificação se deu do norte
para o sul da península, a crise econômica seguiu as mesmas trilhas e, conseqüentemente,
o processo de expulsão dos excedentes humanos também se iniciou pelo norte, ainda na
segunda metade do século XIX. A progressiva incorporação das regiões sulinas pela
unificação fomentaria a saída de populações dessas áreas, alterando radicalmente o perfil
da imigração italiana que chegou ao Brasil.

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Tabela 8 – Emigrantes italianos para o Brasil, conforme a procedência regional, 1878-1920.
1878-1902 1903-1920
Região Número % Número %
Norte 496.217 52,9 85.325 27,8
Centro 100.274 10,7 33.633 11,0
Sul 340.775 36,4 187.695 61,2
Total 937.266 100,0 306.652 100,0
Fonte: Trento, Angelo. Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil.
São Paulo: Nobel, 1989, p. 39 e 60.

Segundo os dados fornecidos por Angelo Trento, os oriundos do Norte predominaram


na fase de 1878 a 1902 e, no global, embora constituam a minoria do período seguinte,
constituem o principal grupo a se instalar no Brasil. Assim, os italianos de finais do XIX
eram, em grande maioria, vênetos, friulanos e lombardos, além dos toscanos da Itália
central e dos campânios, do sul (Trento 1989: 39). A diferenciação regional é importante
para se entender quem eram tais imigrantes; de uma maneira geral, os do norte tendiam a
ser camponeses, enquanto os meridionais buscavam mais as ocupações urbanas (Trento
1989: 60). Interessante é observar, também, que algumas regiões praticamente não
contribuem com o fluxo imigratório: a Ligúria, a Úmbria, o Lázio e a Sardenha (Trento
1989: 40).
Todos estes levantamentos populacionais brasileiros pecam, de uma maneira geral,
pela subestimação da presença e da influência da imigração na sociedade local. Isto se
deve ao fato de os filhos de imigrantes, isto é, a primeira geração aqui nascida, serem
necessariamente incluídos como de naturalidade brasileira, mas ocultando sua cultura
ainda fortemente marcada pela dos pais.
De qualquer maneira, a forte presença da cultura imigrante em amplas áreas do
território paulista pode ser percebida de modo bastante claro através da imprensa,
principalmente a local. Não somente as notícias veiculadas eram abundantes em
informações sobre a presença do imigrante no cotidiano da sociedade, como também os
anúncios veiculados, de lojas, produtos, casas bancárias, sociedades artísticas e culturais,
associações diversas, registravam a efervescência cultural provocada pela diversidade de
nacionalidades.
Um rápido exame do jornal Correio Paulistano, no ano de 1892, permite entrever a
forte presença de um público consumidor bastante específico. Em 1º de janeiro, vemos, por
exemplo, um anúncio do ‘Banco Itália-Brazile’, provavelmente especializado em acolher
os depósitos de italianos, bem como o anúncio da ‘Pharmacia Ítalo-Paulista’. No dia 5 do
mesmo mês, há o anúncio de que a ‘Companhia Dramática Italiana’ iria apresentar, no
Teatro São José, o espetáculo ‘O Conde Vermelho’, de autoria de G. Giacosa, enquanto
que no dia 10 a ‘Societá di Beneficenza Italiana’ anunciava, em italiano, a promoção de
um concurso. No dia 19, anunciava-se que a ‘Companhia Gargamo’ acabara de chegar à
Capital, e iria apresentar, também no Teatro São José, a opereta ‘Anita Garibaldi’.
Uma significativa presença estrangeira também se faz notar através das empresas que
investiram no processo de criação de uma infra-estrutura de apoio ao crescimento
econômico e ao acelerado processo de urbanização: companhias de estradas de ferro e
companhias de iluminação, dentre outras, trouxeram para a sociedade paulista novos
hábitos e costumes.
O estudo do processo de povoamento e da influência das culturas não portuguesas no
falar e no escrever de nossa população requer, antes de tudo, um trabalho de prospecção
145
documental. Para o período colonial e imperial, a grande questão reside, talvez, no
recuperar os linguajares populares, que certamente eram diferentes em relação ao que se
encontra na maior parte da documentação presente nos arquivos. Sabemos que a
esmagadora maioria das populações do passado não era alfabetizada e, portanto, não
deixou qualquer registro escrito. O texto escrito era de autoria de uma minoria
privilegiada, relativamente culta para os padrões da época, mas que muitas vezes tinham
uma escrita pobre e restrita. É bastante usual encontrar-se textos truncados, com grafias
variadas das mesmas palavras, a comprovar que o grau de alfabetização dos letrados
conhecia diferentes níveis.
Na realidade, o português escrito desde o século XVI até o XIX, na América
Portuguesa, era profundamente diversificado. Cada documento tem suas características
gramaticais e ortográficas bastante próprias, dando a impressão de que não havia qualquer
regulamentação, ou que ela não era observada. Daí é possível observar uma certa
‘hierarquia’ na escrita, variando desde as formas evidentemente mais cultas, mais
elaboradas, de autoria de homens públicos com maior nível de instrução, até as formas
bastante rústicas, de indivíduos com baixo nível de instrução, em geral autoridades de
localidades remotas2.
As grandes diferenças e variações observadas dificultam, e muito, o trabalho de
transcrição paleográfica. Em geral, o historiador tende a optar pela ‘modernização’ da
grafia, incorrendo, pela inexperiência, em sérios erros, até mesmo truncando a
compreensão do texto. As extensas coleções de documentos transcritos e publicados,
editadas pelos arquivos públicos, sofrem hoje de severas críticas nesse sentido, sendo
perceptíveis os problemas, as incongruências. E o pior é constatar que tais práticas não
regulamentadas por vezes persistem na edição de fontes na atualidade. Foi graças a tais
constatações que, já há algum tempo, tentou-se uniformizar as regras de transcrição
paleográfica, em uma iniciativa dirigida pelo Arquivo Nacional, na crença de que seria
possível garantir um mínimo de fidelidade ao documento original3.
Hoje, o estudo da língua portuguesa no passado brasileiro deve se voltar para um
esforço de identificação de fontes. No que diz respeito às grandes séries documentais do
período colonial e imperial, merecem destaque os inventários e testamentos, os autos
cíveis e crimes, os registros cartoriais e as correspondências públicas e privadas. A
profusão de textos aí disponíveis é óbvia, mas é fundamental ressaltar que, no interior
dessas imensas séries, é perfeitamente possível detectar-se a presença de textos pontuais de
extremo valor para a pesquisa lingüística. É o caso das cartas pessoais, dos bilhetes, das
contas e cartas de crédito, dos depoimentos de testemunhas, réus e acusadores, dos róis de
despesas, enfim, toda uma gama muito específica de papeizinhos escritos muitas vezes de
próprio punho por indivíduos que não eram escrivães, oficiais de justiça e outras
‘autoridades’ da escrita. Encontrados nos meandros dos grandes documentos oficiais, são o
registro precioso da manifestação lingüística dos pouco letrados, ou dos quase analfabetos,

2
Um meio interessante para se analisar a questão da alfabetização pode ser, em tese, através da qualidade
da assinatura pessoal. Nas listas nominativas de habitantes, produzidas entre 1765 e 1836, por vezes se depara
com assinaturas dos chefes de domicílio. Estas, de modo bastante peculiar, variam da clássica cruz do analfabeto
àquela fortemente desenhada, com inúmeros detalhes, passando, evidentemente, pelas mais diversas qualidades
intermediárias de caligrafia e elaboração.
3
A tentativa de normatização das transcrições, pela criação de uma série de princípios norteadores, foi
realizada por ocasião do II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica, ocorrido em São Paulo no ano de
1993. O documento final desse Encontro, ainda hoje disponibilizado nas páginas do site do Arquivo Nacional,
tem aplicação restrita e não obrigatória.
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que rabiscavam suas contas ou anotações pessoais, posteriormente anexadas a processos
por ocasião de devassas, inventários, processos judiciais, etc.
Ao pesquisador do passado, não importa sob qual pretexto, é preciso, ou melhor, é
fundamental, a paciência do monge para garimpar as preciosidades de nossos arquivos.
Caóticos ou pouco organizados e acessíveis, estes já constituem, por si só, uma formidável
barreira. Passados tais obstáculos, a procura paciente e demorada levará a verdadeiras
pérolas, prêmio inestimável daqueles que saem de seus gabinetes e se aventuram pelos
meandros da pesquisa empírica. Oxalá os estudos da língua portuguesa no passado passem
por este ritual. Os ganhos serão extremamente gratificantes.

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