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Terra madrasta é a

das dez ilhas do ar-


quipélago que hoje
formam a orgulhosa
República de Cabo
Verde. Geógrafos e
geólogos foram
esclarecendo a sua

A Claridade
origem vulcânica,
a sua quase maríti-
ma continuação das
areias desérticas do
Sahel e do Sahara,
depois descrevendo
com monotonia
o seu clima árido,
seco e tórrido fus-
tigando uma paisa-
gem acinzentada,

Cabo Verde
sublunar, tão pobre
como sempre se-
quiosa. Ilhas pau-
pérrimas eram
que não tiveram
sequer direito a
baptismo próprio:
o nome Cabo Verde
lhes seria dado a
partir desse cabo
de
longe no Senegal
que, mais próximo
de Dacar, as em-
barcações portu-
guesas começaram
a ultrapassar ao
longo da década
de 1450, procuran-
do as riquezas
e os escravos do
continente africano
que, nos quatrocen-
tos anos seguintes,
alimentaram sem
cessar a ganân-
cia do colonialismo
europeu que era
também exactamen-
te a do português.
Ainda hoje se dis-
cute esse ocioso
problema da desco-
berta original das
ilhas desabitadas
que, entre 1456 e 1460, começaram a
ser identiicadas por caravelas vindas
de Portugal. O que é mais prudente es-
crever do que continuar a falar – como
sempre se faz em acríticos exornos – de
pioneiros e originais descobridores
portugueses. É que entre os primeiros

lusofonias
nº 22 | 10 de Dezembro de 2013

Este suplemento é parte integrante


do Jornal Tribuna de Macau e não
pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO:
Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS:
• Pobreza, Emigração
e Fedagosa
• Cultura, Literatura
e Identidade
• A Claridade
• Finaçom
• Claridade. Revista de Arte
e Letras (1936)

Dia 16 de Dezembro:
Monteiro Lobato,
o maior escritor infantil
de Língua Portuguesa

APOIO:
A Claridade
contrariar a pujante concorrência colonial britâni-
ca, sendo devidamente extinta em 1778 no meio
de fundos prejuízos.

de Cabo Verde
Uma nova Companhia de Comércio da Costa de
África, agora imitando o modelo colonial francês
em desenvolvimento na África ocidental, dura es-
cassos seis anos, entre 1780 e 1786. Pelos inais
do século XVIII, ainda se tenta fomentar o povoa-
mento de São Vicente com gente pobre da Madei-
ra e dos Açores, mas sem ganhar mais do que um
Ivo Carneiro de Sousa pequeno punhado de famílias. Entretanto, come-
çam a chegar nas décadas seguintes as pressões
abolicionistas e quando, em 1876, a escravatura
erra madrasta é a das dez ilhas do arquipéla- bem mais simples e evidente: seguindo o modelo é deinitivamente abolida, as ilhas de Cabo Verde
T go que hoje formam a orgulhosa República de da colonização feudal da Madeira e dos Açores, o perdem em interesse comercial o que ganham em
Cabo Verde. Geógrafos e geólogos foram esclare- novo arquipélago na órbita das navegações por- abandono, secas, miséria e muita emigração.
cendo a sua origem vulcânica, a sua quase marí- tuguesas quatrocentistas é rapidamente entregue Recorde-se que, entre 1830 e 1833, as secas
tima continuação das areias desérticas do Sahel nos inais de 1460 ao poderoso infante senhorial prolongadas multiplicam-se em fomes mortais
e do Sahara, depois descrevendo com monotonia que era D. Fernando, irmão do rei Afonso V, ad- que, sem socorro de Portugal, são apenas acudi-
o seu clima árido, seco e tórrido fustigando uma ministrador também da Ordem de Cristo que, por das pelos Estados Unidos que rapidamente se tor-
paisagem acinzentada, sublunar, tão pobre como isso, mobilizou gentes dos seus latifúndios no Sul de nam miragem de emigração e sonho de nova vida
sempre sequiosa. Ilhas paupérrimas eram que não Portugal e capitais emprestados por banqueiros e para muitos caboverdianos. Estrangeiros são tam-
tiveram sequer direito a baptismo próprio: o nome grandes mercadores italianos para tentar desenvol- bém os interesses dos britânicos que, em 1830,
Cabo Verde lhes seria dado a partir desse cabo ver a lucrativa produção de açúcar por essas outras abrem o porto do Mindelo, em São Vicente, à cir-
longe no Senegal que, mais próximo de Dacar, as ilhas atlânticas em frente às costas da Guiné. culação comercial do carvão. O que não impediu o
embarcações portuguesas começaram a ultrapas- Não vingou como produto comercial, pelo que rosário recorrente de fomes catastróicas e muito
sar ao longo da década de 1450, procurando as icou, ontem como hoje, a posição estratégica de mais emigração, apesar da II Guerra Mundial ter
riquezas e os escravos do continente africano que, um arquipélago fundamental nos itinerários anuais espevitado o interesse dos contendores pela posi-
nos quatrocentos anos seguintes, alimentaram da carreira da Índia e no caminho marítimo para ção mais do que estratégica das águas marítimas
sem cessar a ganância do colonialismo europeu o Brasil que foi ganhando interesse e atenção à e, nessa altura, também do espaço aéreo das dez
que era também exactamente a do português. medida que o império ilhas de Cabo Verde.
Ainda hoje se discute esse ocioso problema da marítimo português se A história recente é
descoberta original das ilhas desabitadas que, en- contraía a Oriente. Em (...) em 1876, a escravatura mais rápida e, provavel-
tre 1456 e 1460, começaram a ser identiicadas armazém e praça de mente, melhor conhe-
por caravelas vindas de Portugal. O que é mais escravos africanos logo é deinitivamente abolida, cida. Por Setembro de
prudente escrever do que continuar a falar – como se especializou Cabo
sempre se faz em acríticos exornos – de pioneiros Verde para alimentar
as ilhas de Cabo Verde 1956, esse vulto maior
das lutas de libertação
e originais descobridores portugueses. É que entre os tratos escravistas perdem em interesse nas antigas colónias
os primeiros dos tais descobridores documentados que levaram milhões portuguesas que conti-
arribando às várias ilhas que viriam a ser Cabo Ver- de jovens africanos comercial o que ganham nua a ser Amílcar Cabral
de encontramos portugueses, como Diogo Gomes para as terras muito
e Diogo Afonso, mas também italianos como Alvise mais ricas do Brasil. O
em abandono, secas, promoveu em Bissau a
criação do PAI (Partido
Cadamosto e Antonio da Noli que viria mesmo a inevitável sistema de miséria e muita Africano da Indepen-
ser um dos primeiros capitães donatários da parte capitanias retalhou a dência – União dos Povos
sul da ilha de Santiago centrada na Ribeira Grande posse das ilhas entre emigração(...) da Guiné e Cabo Verde)
(hoje, Cidade Velha), para aí levando colonos do capitães que pratica- que estaria nas origens
Alentejo e do Algarve. As histórias heróicas ainda mente as desconheciam, muitas vezes vendendo ou do PAIGC. No princípio de 1963, a guerra de liber-
agarradas às memórias muito nacionalistas do Im- arrendando as suas donatarias a quem mais desse. tação chegou à Guiné-Bissau, mas pouparia como
pério cultivadas pelo Estado Novo ergueram em Por São Filipe, a actual ilha do Fogo, ainda se ten- facilmente se compreende as ilhas de Cabo Verde,
exclusivo lugar da memória esse sonante tema tou a vinha sem grandes resultados; pelas ilhas da inalmente independentes a 5 de Julho de 1975.
dos Descobrimentos Portugueses, multiplicando- Boavista e Maio introduziram-se gados que nunca Apesar de instituirem estados-nações separa-
-se em estátuas, nomes de ruas e singular ethos foram abundantes; até meados do século XIX foi-se dos, Cabo Verde e a Guiné-Bissau começaram por
pátrio, assim esquecendo muito convenientemen- explorando a urzela para tingir os têxteis pobres ser igualmente governados pelo mesmo PAIGC,
te um processo em que se foram reunindo muitos que se trocavam por escravos nas costas da Guiné. concretizando o sonho que Cabral não viu nascer
saberes e pessoas europeus: italianos, franceses, À volta de 1612, a construção do porto da Praia ao ser tragicamente assassinado em 1973. O siste-
castelhanos, muita gente da Catalunha (ou não ixa a principal polarização económica e adminis- ma dual, porém, extinguiu-se, como se sabe, em
tivesse sido o Condestável D. Pedro (1429-1466), trativa do arquipélago, substituindo a antiga Ri- 1980, quando o golpe de estado na Guiné-Bissau
ilho do infante de Avis com o mesmíssimo nome, beira Grande, assim se encontrando a capital que, dirigido por Nino Vieira depôs o presidente Luís
eleito Conde de Barcelona para se intitular du- elevada a cidade em 1858, ainda o é hoje. Mais Cabral e foi respondido pela criação do Partido
rante três anos Rei de Aragão, Sicília, Valência, tarde, desde 1650 demoradamente até 1879, a Africano para a Independência de Cabo Verde
Maiorca, Sardenha e Córsega), das Baleares, ma- partir da Praia se administravam os enclaves colo- (PAICV). Em Fevereiro de 1990, muito mais feliz-
grebinos e outros norte-africanos trazendo para niais portugueses na Guiné numa cronologia que é mente, o sistema de partido único foi abolido em
Portugal os conhecimentos náuticos, cientíicos e matematicamente a do apogeu, queda e abolição Cabo Verde, as forças da oposição organizaram-se
técnicos cerzidos por esse Mediterrâneo em que da escravatura. em torno do activo Movimento para a Democracia
os navegadores, pilotos e capitães portugueses É certo que o mercantilismo seiscentista rece- (MpD) e, em 1992, o país aprovou uma Constitui-
foram treinados entre corso, comércio e outras bido e trocado em recorrentes tratados comer- ção democrática e multipartidária.
aventuras marítimas. Sem o Mediterrâneo antes e ciais progressivamente mais desvantajosos com E um exemplo de democracia tem vindo a ser
a Europa do Renascimento durante não teria ha- o Reino Unido trouxe brevemente, desde 1664, a Cabo Verde, cultivando talentos (como agora se
vido os famosos Descobrimentos Portugueses que Companhia da Costa da Guiné, monopolizando o diz...), investindo nas pessoas, repensando o
tornaram a nossa memória histórica tão estreita comércio escravista, sucedida entre 1676 e 1682 país, enfrentando os fados passados da pobreza,
como assustadoramente limitada esta nossa me- pela Companhia de Cacheu e Rios da Guiné, logo conseguindo mesmo ser reconhecido como um
mória colectiva ainda em busca de iluminações substituída em 1690 pela Companhia do Cacheu e país de médios rendimentos (o único entre as an-
mais modernas e sinceramente democráticas. Cabo Verde. Nenhuma conseguiu mobilizar capi- tigas colónias africanas portuguesas até ao mo-
Ultrapassando depressa o muito pouco interes- tais e lucros decentes, pelo que a exploração do mento), mais excelente reputação internacional
se destas discussões sobre origens e prioridades, o arquipélago e das costas da Guiné seguiu em 1757 em que se reconhece a seriedade, trabalho e in-
processo histórico que, na longa duração, coloniza para a muito pombalina Companhia Geral de Co- teligência de um país em que rigorosamente só a
com gentes, equipamentos, escassos capitais e es- mércio do Grão-Pará e Maranhão. Sem qualquer terra é mesmo madrasta: as suas gentes chegam
tratégias coloniais o arquipélago de Cabo Verde é sucesso que se visse, a companhia era incapaz de e sobram como tesouro.

LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO


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II Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS


lusofonias
Pobreza, emigração e Fedagosa
guês pregava-se como esse sucesso
A s descrições de Cabo Verde le-
gadas pelas aventuras coloniais
portuguesas são escassas, breves e
o também primeiro cronista (com
optimismo, quase) brasileiro, Ga-
briel Soares de Sousa, esclarecia na
singular em que, do Minho a Timor,
todos comungavam agradecida-
da e uns 35.000 por Angola; mais de
22.000 no Senegal e quase 20.000 no
Brasil, a somar a vários milhares de
fatídicas: das ilhas que não presta- sua Notícia do Brasil que o arquipé- mente da mesma ideia generosa outros emigrantes que se foram es-
vam só se aproveitava mesmo a sua lago muito interessava como plata- e civilizada de raça e nação lusi- palhando pelos mais diversiicados
muito feliz situação geográica nas forma para a colonização portugue- tanas. Puro ardil. As desigualda- horizontes geográicos. Em rigor,
encruzilhadas do Atlântico e nos sa da grande terra sul-americana: des eram mais do que enormes, o trata-se de uma realidade brutal de
itinerários dos abundantes tráicos “...as primeiras vacas que foram à silenciamento das oposições mais muito longa duração.
escravistas. Bahia levaram-nas de Cabo Verde do que muito e a desconsideração Durante o século XIX, por exem-
Assim, em 1584, o capitão An- e depois de Pernambuco, as quais pelas culturas, gentes e identida- plo, foram milhares os caboverdia-
dré Álvares de Almada intitula o se dão de feição, que parem cada des locais era a norma. Mas mesmo nos obrigados à emigração forçada
seu estudo Tratado breve dos rios ano e não deixam nunca de parir assim, as culturas populares locais para as roças de São Tomé mobi-
da Guiné do Cabo Verde porque o por velhas; as éguas foram à Bahia foram ganhando voz e intervenção lizados para a produção de cacau
arquipélago apenas interessa por de Cabo Verde, das quais se inçou a que foi circulando e até se ixando e café. A situação agravou-se com
se encontrar protegidamente em terra; as ovelhas e cabras foram de por escrito com o liberalismo dos as secas de 1863 e com a abolição
frente às costas guineenses de onde Portugal e de Cabo Verde, as quais inais de Oitocentos e as muitas da escravatura, em 1878, não ten-
vinha escravatura lucrativa. O mes- se dão muito bem; e comecemos utopias educativo-democráticas da do existido ilha ou aldeia por mais
mo modelo se encontra na obra de nas canas-de-açúcar, cuja planta I República. Em Cabo Verde, entre remota que não tivesse assistido à
André Donelha, concluída em 1625 levaram à capitania dos Ilhéus das batuques, normas, folclores, con- emigração forçada dos seus jovens
como uma Descrição da Serra Leoa ilhas da Madeira e de Cabo Verde; tos e poesias populares, a miséria para São Tomé. Uma história re-
e dos rios da Guiné do Cabo Verde. foram os primeiros cocos à Bahia e o desespero foram mesmo sendo cordada para sempre nessa canção
Saltando outros títulos menores, de Cabo Verde, donde se encheu a cantados e denunciados como nes- que Cesária de Évora sabia sem-
é preciso aguardar pelos inais do terra; levaram a semente do arroz tes versos de anónima autoria po- pre cantar como ninguém: “Quem
século XIX para se descobrir em ao Brasil de Cabo Verde; da ilha de pular: mostra’bo ess caminho longe, ess
1899 numa obra editada pela Aca- Cabo Verde e de S. Tomé foram à caminho pa Santome?” Com a de-
demia das Ciências de Lisboa o tra- Bahia inhames que se plantaram Oi Fêdagósa cadência do cacau, muitos cabo-
balho razoavelmente documental na terra logo, onde se deram de Fêdagósa bô ê mau verdianos procuraram perto pela
que Cristiano José de Sena Barce- maneira que pasmam os negros da Bô matá-me nha mamã Guiné e Angola trabalho, mas a
los difundiu como Subsídios para Guiné, que são os que usam mais Bô matá-me nha papá. maioria rumou para as economias
a História de Cabo Verde e Guiné. deles”. Terra colonial, ainal, não Oi Fedegosa mais ricas dos Estados Unidos e da
Nomes, factos e alguns documentos tão madrasta como isso, mas amar- Fedegosa, você é má Europa.
interessantes generosamente so- rada a uma economia de transpor- Você matou a minha mãe Difícil era e continua a ser ir-
mados, o arquipélago não escapa- te para a qual, entre projectos de Você matou o meu pai. mar uma identidade caboverdia-
va pela história à sua sina colonial: companhias e tardios planos de fo- na, cultural, colectiva e, mais de-
terra pobre, apenas rica por ajudar mento, o colonialismo português Apesar de se torrarem as suas saiante ainda, nacional quando
a levar escravos (e outras naturais não trouxe desenvolvimento, antes sementes como substituto dos os pedaços insulares que formam
necessidades...) africanos para o consideração pouca e ainda menos grãos de café – café negro ainda se Cabo Verde foram expulsando os
Brasil e, por vezes, bem mais além. liberdade já que autonomia ou in- chama hoje no Brasil –, a fedegosa seus para as mais diferentes diás-
Um fado traçado bem cedo, ain- dependência eram impensáveis. era considerada pelos caboverdia- poras em que eles próprios recriam
da pelos inais do século XV, quando Na verdade, o regime colonial nos “comida de bicho”, arbusto de memórias, tradições e identidades.
nessa obra fundamental chegada português, progressivamente mais cabra. A canção recorda, por isso, A identidade tornou-se dinâmica e
até nós incompleta com o título de vigiado e repressivo com o adven- a fome de milhares de pessoas que, porosa, discutida e pluri-relectida,
Esmeraldo de Situ Orbis – magnii- to do salazarismo, ensinava a viver talvez nas secas da década de 1860, destacando a sua condição históri-
camente estudada por Joaquim de com humildade e aceitante pe- tentaram sobreviver comendo essa co-geográica de encruzilhada para
Carvalho para encontrar a originali- nitência à mais profunda miséria animalesca fedegosa que, à falta alguns nem africana, nem atlânti-
dade do Renascimento português... e pobreza. Fado e resignação se de tudo e de um mínimo de ajuda, ca, nem rigorosamente nada a não
– o muito educado Duarte Pacheco ensinavam também às gentes de lá vai conseguindo medrar entre os ser simplesmente cabo-verdiana.
Pereira descreve que “Estas ilhas Cabo Verde: as notícias de secas mais secos pedregulhos. Um debate complicado que se foi
são estéreis porque são vizinhas do e calamidades eram censuradas, a Por isso, estas terras naturais instalando e enformando a própria
trópico de Câncer e têm muito pou- solidariedade quase nenhuma e a que, como as ilhas de Cabo Verde, formação das elites de Cabo Verde
co arvoredo por causa de nelas não palavra fome proibida tanto como são excessivamente madrastas em quando as primeiras décadas do
chover mais dos ditos três meses: os batuques festivos, porque das terras de emigração se transformam século XX trouxeram o liceu, ter-
são terras altas e fragosas e serão mornas desconiava-se, a hostili- depressa. Hoje vivem quase tantos túlias, clubes, mais jornais e algu-
más de andar (...) os frutos não se dade ao crioulo era continuada e caboverdianos na sua terra natal mas revistas, muito mais circulação
dão nesta terra senão de regadio.” a repressão da intelectualidade como nas mais diferentes diásporas de ideias tanto como os primeiros
Quase um século mais tarde, em crítica severa: o Tarrafal era aqui, pluricontinentais: mais de 250.000 textos e livros em que se procurava
1587, o preciso ano em que chega o na última ilha do Barlavento que é nos Estados Unidos; uns 100.000 por descobrir o mistério singular da ca-
primeiro governador a Cabo Verde, Santo Antão. O colonialismo portu- Portugal; mais de 37.000 na Holan- boverdianidade.

lusofonias LUSOFONIAS • Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 III


Cultura, literatura e identidade
tipográico, alguns naturais de Cabo Ver-
A pesar da primeira escola primá-
ria oicial ter aberto ainda em 1817
na cidade da Praia, mas fechada pouco
de e alguns portugueses instalados ou em
circulação pela então colónia procuram
o seu Diário tenha sido rasgado por um
grupo de estudantes da Praia e os peda-
ços remetidos ao autor. A obra de António
P ublica-se no Minde
ro número de uma
tras muito auspiciosam
mais de uma década depois, seria preci- redescobrir e escrever sobre essas ilhas Pedro parecia muito pouco apaixonada ridade. Os seus funda
so esperar muitos anos pela abertura do madrastas mas de gentes corajosas e sin- pelas culturas e gentes da sua terra na- eram formalmente J
Liceu Nacional, em 1861, também logo gulares. tal, mas em contraste mostrava-se pro- Lopes e Baltasar Lope
rapidamente fechado para se entregarem Natural da ilha Brava, Eugénio Tavares fundamente aberta ao primeiro moder- va de assinar como Os
os escassos lugares de ensino secundário (1867-1930) é um desses vários auto-di- nismo literário. representavam um g
aberto aos civis ao Seminário da Ribeira dactas que acede qualiicadamente à lei- E este é também parte do itinerário cabo-verdianos um
Brava. Em 1917, a generosidade educa- tura sedenta e à escrita torrencial, jorna- que, entre vários outros nomes menos co- em que, entre tertúl
tiva da I República entendeu abrir um lista, prosador e poeta, descobrindo Cabo nhecidos e estudados, vai conduzir a essa conferências públicas
Liceu no Mindelo, mas a Praia aguardou Verde a partir da sua posição de funcio- obra já maior que, em 1935, é o Arquipé- se devem também inc
demoradamente por 1960 para voltar a nário da Fazenda Pública do Tarrafal, de- lago de Jorge Barbosa. Nascido na Praia, Figueiredo e o escrito
albergar ensino liceal oicial. Muito pou- cidindo expressar-se em crioulo para se em 1902, falecido em Almada, em 1971, pados com a situação
co. O que não impediu o paulatino lo- tornar quase um dos pais fundadores do Barbosa reúne naquele seu livro referen- ilhas, a miséria, a pob
rescimento das letras e o aparecimento que continuamos a identiicar em canto e cial uma poesia deinitivamente moderna tecção social de uma
de alguns activos escritores no arquipé- poesia por morna. e modernista, mais do que comprometida mais do que indigent
lago, obrigatoriamente atentos às diicul- Acompanha-o um outro jornalista e com as realidades sociais e políticas de diu nove números, e
dades da terra, aos sofrimentos das suas poeta, oriundo da ilha do Fogo, Pedro Cabo Verde que se transformam em inspi- princípio, os três núm
gentes e ao esquecimento da metrópole, Cardoso (1860-1942), diligente professor ração e motivo poéticos. pados seguidamente e
temas, ainal, recorrentes que se foram primário, publicando em 1933 um mais do Caminhos literários em que parece mais ofereciam do q
instalando quase plurissecularmente nas que referencial Folclore Cabo-Verdiano, conveniente não esquecer alguns outros anos mais tarde, pass
mais variadas manifestações das culturas dirigindo depois o jornal Manduco e es- transeuntes que se quiseram também de da II Guerra Mundial,
populares locais entre as festas do batu- crevendo multiplicadamente em defesa letras, nados e criados em Portugal que, a editar mais seis núm
que, contos e legendas orais, os cantos do arquipélago e das suas culturas na Voz pelas décadas de 1920 e 1930, se interes- e 1966, foram dirigid
e as poesias etnográicas que haviam de de Cabo Verde. saram visitada ou instaladamente pelas da Silva para congreg
desaguar quase originais na morna (são Um grupo em que, entre outros, é culturas caboverdianas que logo vaza- tas em que, chegando
mesmo precisas outras coisas muito mais obrigatório incluir José Lopes da Silva ram em escrita original: Augusto Casimi- desilava uma muito
complicadas para se ouvir e sentir apaixo- (1872-1960), um natural de São Nicolau, ro (1889-1967), poeta, jornalista, activo te intelectualidade ca
nadamente a identidade caboverdiana?). também professor primário, um par de opositor ao regime do Estado Novo, foi Corsino de Azevedo e
Ao longo das décadas de 1910 e 1920, anos docente liceal, preceptor privado de o autor dessas Ilhas Crioulas com que ra, colaboradores nos
beneiciando, dupla e paradoxalmente, inglês e francês, escrevendo continuada- os famosos Cadernos Coloniais em 1935 ros, juntam-se na seg
dos grandes sonhos educativos e cívicos mente em favor da valorização das ilhas, ofereciam um muito interessante sumá- ridosa, entre outros,
da I República Portuguesa, mas também desibrando a sua etnograia e as culturas rio demográico, cultural e etnográico Sousa, Félix Monteiro
do seu mais prometido do que concreti- populares, defendendo esse crioulo criti- do arquipélago pejado de apontamentos Duarte, Arnaldo Fran
zado renovado vigor colonial, entre agita- cado pelos responsáveis coloniais tanto inteligentes e curiosidades abundantes; Madeira Melo, Tomás
ções muitas, crises seguidas, emigrantes como pelas minguadas elites de assimila- um nome a somar ao de José Osório de Onésimo Silveira, Fra
de torna-viagem e muito mais jornais, dos ao serviço da precária administração. Oliveira (1900-1964), poeta e crítico li- Corsino Fortes, Artur
folhetins, panletos e toda a palaferná- Nestes três nomes mais conhecidos de terário, funcionário do Ministério das Co- ni e Virgílio de Melo.
lia mediática do lorescente capitalismo uma geração que escreveu apaixonada- lónias que a Cabo Verde chegaria vindo O primeiro número
mente à descoberta das singularidades de de Moçambique pelos inais da década de tanto um monumento
Cabo Verde ainda se encontra uma liga- 1920 para se encantar e, depois, divulgar modernista desenhad
ção dominante ao sistema literário portu- a sua singular cultura. A Oliveira devemos redo dava o tom a um
guês, simpatia até pelas ideias republica- mesmo a compilação e edição das Mornas te em que, a abrir, s
nas de uma nova civilidade colonialista, – Cantigas crioulas, de Eugênio Tavares, e inovadoramente trê
apesar do apego às suas gentes e à mobi- reportório ainda hoje tão precioso como oral em crioulo: “lan
lização folclórica e tímida dos crioulos e inspirador do sucesso de muitas mornas e inaçom (batuques da
práticas culturais do arquipélago. dos seus mais conhecidos cantores. novel revista de Arte
A este grupo a três convém juntar, mas Convém, inalmente, não esquecer e sim, desde o seu iníc
com a devida distância, o destino cultu- passar a investigar muito mais pormeno- sorvido nessas festas p
ral desse homem nascido na Praia entre rizadamente que muitos destes autores do interior de Santia
famílias abonadas e importantes, mis- trouxeram para Cabo Verde a excitação por esses poemas de
tura de pintor, actor e dramaturgo, do primeiro modernismo português, al- muita paródia, gera
genuíno democrata e profundamente guns eram leitores iéis dessa Presença conhecidos por inaço
anti-salazarista: António Pedro (1909- fundada por Coimbra, em 1927, outros O segundo número
1966). Muito mais conhecido pela sua ainda traziam livros e escritores percor- seguia a aventura qua
recepção e difusão em Portugal dos ridos em viagens e emigrações em que se do a morna Vénus d
ecos do surrealismo, António Pedro foi incluindo um progressivo reconheci- Cruz (1905-1958) que
impressionou e causou viva po- mento dos grandes modernistas brasilei- do por B. Léza, foi um
lémica entre a curta intelec- ros, da poesia de Manuel Bandeira, mais a autores, músicos e g
tualidade caboverdiana com revolução do romance nordestino através das suas mornas com
o seu livro de poemas Diá- das penas geniais de Rachel de Queirós, meio-tom. Ainda nest
rio, editado em 1929 pela Graciliano Ramos, Jorge Amado e, sobre- A Claridade, José Osór
Imprensa nacional de Cabo tudo, José Lins do Rego, cujos primeiro um muito signiicativo
Verde, escrito durante uma romances, Menino de Engenho (1932) e lavras sobre Cabo Ver
visita à Praia, tinha na altu- Doidinho (1933) foram frequentados por Brasil”, destacando a
ra ardentes vinte anos. Nos alguns daqueles escritores caboverdianos poesia e romance bra
seus poemas, os caboverdia- com essa mesma atenção dirigida às gen- de uma autêntica lite
nos são apresentados como “po- tes populares, às contradições da terra Apesar do largo hia
bres selvagens” e as suas festas natal, às suas tradições ou a essas infân- Claridade regressa a p
populares do batuque descritas cias e aventuras juvenis vividas entre se- derradeiros números
como “bacanal!”, “dança doida”, minários, liceus e descobertas rebeldias. das identidades, dos
“mole e sensual / meneio de an- Destas conluências muitas em terra ma- rações do se queria e
cas e de ombros”, “cópula carnal”. drasta de gente singular das ilhas viria a nidade: assim se ixa e
Não admira que, com estes termos, nascer A Claridade. arquipélago, divulga-s
eugénio tavares

IV Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS


lusofo
a Claridade
elo, em 1936, o primei- popular do batucu (que agora se prefere e azedos porque nada de novo colheram, queria, pelo menos, desenvolver como mais
a revista de Arte e Le- em crioulo ao aportuguesado batuque...), nenhum mistério desvendaram: não viram fértil; escrevia-se sobre as montanhas e pla-
mente intitulada A Cla- publicam-se as cantigas de Ana Procópio manipansos, não assistiram sequer a uma nícies áridas e secas; sublinhava-se a dimen-
adores e proprietários (1866-1957), a imortal cantadeira do Fogo, sessão de magia negra. O problema do ca- são telúrica e o amor quase inacreditável
Jorge Barbosa, Manuel estudam-se tabancas e muitos festivais po- boverdiano é menos de ordem tradicional e àquela terra avarenta; cantava-se a partida
es da Silva – que gosta- pulares, convoca-se análise sociológica, crí- estático, que cultural e dinâmico.” e a saudade; e voltava-se constantemente à
Osvaldo Alcântara – mas tica literária e sócio-política, ensaios, mui- Uma busca de uma renovada caboverdia- violência das secas e das fomes. Por isso, A
grupo de intelectuais ta poesia original e alguns contos em que nidade pela cultura que não se foi fazendo Claridade foi também obrigada a pensar e
pouco mais alargado se preparam obras tão fundamentais como sem equívocos. Um é bastante conhecido e a escrever sobre esse movimento absoluta-
lias, clubes e algumas esse romance Chiquinho, precisamente pu- remete sempre para esse nome omnipresen- mente oposto à revalorização do arquipéla-
s pelos anos anteriores, blicado em 1947, livro com que Baltasar Lo- te que é o de Gilberto Freyre e a génese da go, das suas culturas, linguagens e gentes:
cluir o pintor Jaime de pes da Silva ajudava mesmo a fundar uma teoria do luso-tropicalismo que, passada a II a emigração. O tema invadiu sobretudo a
or João Lopes. Preocu- literatura cabo-verdiana. Guerra Mundial, a política colonial do sala- claridosa poesia, dramatizando o tópico da
o difícil das gentes das Não se veja, porém, em A Claridade o zarismo haveria de convenientemente apro- terra longe, a fuga, a evasão, sublinhando o
breza e a falta de pro- que ela não foi nem se leiam o seus varia- priar para tentar destacar a singularidade elemento pantalássico em que mar se torna
administração colonial dos textos com anacronismo, fora do seu da presença colonial portuguesa sempre ba- prisão, mas que pode igualmente proporcio-
te, A Claridade difun- tempo e espaços históricos. A revista ainda seada no que se propagava ser a democracia nar paradoxal libertação longe da saudosa
entre 1936 e 1966. Ao não era a do tempo da militante luta de li- das raças. Os primeiros números e os vultos terra natal.
meros iniciais, estam- bertação anti-colonial e dos projectos de fundadores de A Claridade foram-se encan- Vista a princípio pelo regime colonial
em 1936 e 1937 pouco
que dez páginas. Onze
sados os anos terríveis
l, A Claridade voltaria
meros que, entre 1947
dos por Baltasar Lopes
gar colaborações mui-
o-se às oitenta páginas,
mais activa e militan-
cabo-verdiana: a Pedro
e José Osório de Olivei-
s primeiros três núme-
gunda fase da vida cla-
, Henrique Teixeira de
o, Nuno Miranda, Abílio
nça, Luís Romano de
Martins, Virgílio Pires,
ancisco Xavier da Cruz,
Augusto, Sérgio Fruso-

o de A Claridade é hoje
o como um mito. A capa
da por Jaime de Figuei-
m volume surpreenden-
se ofereciam corajosa
ês poemas da tradição
ntuna & 2 motivos de
a Ilha de Santiago)”. A os Claridosos - membros da revista de arte e letras “a Claridade”
e e Letras assumia, as-
cio a defesa do crioulo independência, conquanto tivesse funcio- tando pela miscigenação cultural agitada português como uma manifestação de
populares dos batuques nado como semente importante de futuros pelo autor de Casa-Grande e Senzala que regionalismo, semelhante ao de revistas
ago marcadas também ideários nacionais e de plena soberania das julgavam poder ser também a marca iden- dos Açores ou da Madeira, A Claridade
crítica social, sátira e gentes e culturas de Cabo Verde. A Clarida- titária de Cabo Verde. O deslumbramento foi reescrevendo tragédias e emigrações
almente improvisados, de vai-se distanciando paulatinamente, mas passou com a viagem de Gilberto Freyre às em crioulo, mais saudades e identida-
om. com alguns equívocos, do discurso colonial, então colónias portuguesas (com a prudente des cruzadas, pelo que ensaios, contos e
o de A Claridade pros- cortando progressivamente com qualquer excepção de Macau e Timor-Leste), realiza- poesias foram assim navegando cada vez
ase nativista, difundin- herança sanguínea lusitana, ainda que devi- da a convite do Ministério do Ultramar em mais para longe mesmo das crenças luso-
de Francisco Xavier da damente miscigenada, afastando-se mesmo 1953, depois publicada pelo sociólogo brasi- -tropicalistas, preparando as gerações que
e, muito mais conheci- da tradicional posição geográica do arqui- leiro em Aventura e Rotina, dois anos mais inalmente transformaram a libertação na
m dos mais importantes pélago como ponto de aporto e plataforma tarde. Os poucos dias passados por Freyre independência que é condição de identi-
grande revolucionador de transporte para destacar um outro lugar, em Cabo Verde foram ixados sem gene- dade nacional. Mesmo da sua discussão
m a feliz introdução do um muito mais renovado locus: o da cultura. rosidade no seu livro em que se destaca a que é ainda mais condição para existir. A
te segundo número de Uma mutação do fatídico espaço madrasto fragilidade económica do arquipélago, o uso Claridade é tanto etapa como raiz deste
rio de Oliveira assinava em generoso berço de paternidade cultural comum de um “dialecto bárbaro”, absolu- processo. Sucedeu, e bem, a essa primei-
o artigo intitulado “Pa- que se encontra imediatamente presente tamente incapaz de servir como meio de ra geração novecentista que, em Eugénio
rde para serem lidas no no ensaio que Manuel Lopes logo publicou expressão, muito menos literário, correndo Tavares ou Pedro Cardoso, foi escrevendo
a importância da nova no primeiro número da revista para tentar a par com a ausência de uma legítima arte em sentimento nativista, entre o folcló-
asileiros para a criação relectir sobre o que um europeu vem ver- popular. Tomando as dores dos claridosos, rico e o paternalismo popular, conseguin-
eratura cabo-verdiana. dadeiramente procurar a Cabo Verde: “É Baltasar Lopes mais do que se incomodou do ao longo dos seus nove números rei-
ato temporal, quando A vulgar verem-se desembarcar nessas ilhas e rebateu veementemente as ligeiras e ig- vindicar tanto um estatuto de igualdade
partir de 1947, os seus africanas, principalmente em São Vicente, norantes críticas freyrianas em texto que, como uma consciência cultural que, ainda
ampliam a descoberta estrangeiros sedentos de exotismos, com publicado na Praia, em 1956, se intitulava carregada de ilusões quase regionalistas,
problemas e das aspi- aquela doentia curiosidade de quem pisa Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. prepara mesmo essa outra geração da
erguer em caboverdia- terras de África e, por conseguinte, terras Neste período, A Claridade continuava airmação nacionalista que Amílcar Cabral
e revisita o folclore do de mistério e que ao cabo de meia hora de a relectir sobre as possibilidades de sobre- transmutou com inteligência em exigência
se ainda mais a poesia cirandagem tornam a embarcar desiludidos vivência numa terra madrasta, mas que se de liberdade e autonomia política.

onias LUSOFONIAS • Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 V


Finaçom
O s nove números de A Claridade. Revista
de Arte e Letras (1936-1966) foram esme-
radamente reeditados em edição fac-similada
de intenso consumo imediato, fácil e curto
entre sítios web e redes sociais mais do que
muitas, a aventura de A Claridade seja mes-
Baltasar Lopes estudava também valorizada-
mente a tradição do batuku a que voltaria
nos números 6 e 7 mais tardios da revista,
organizada com especial competência por Ma- mo conhecida e duvido ainda mais que conti- como também nos argumentos demolidores
nuel Ferreira pela altura do cinquentenário nue a ser lida. Seguem, por isso, para leitura mobilizados para Cabo Verde visto por Gil-
da sua publicação, em 1986. Um esforço que que se quer – agora, sim – de descobrimentos, berto Freyre.
renovou o interesse pela revista, suscitando os dois poemas de finaçom com que se abria Os dois poemas de inaçom apareceram
alguns qualificados trabalhos de investigação o primeiro número da mítica revista de Arte como devia ser em crioulo no primeiro núme-
agora a aguardar prolongamento mobilizando e Letras fundada no Mindelo, em 1936. Poesia ro de A Claridade. Aqui se publicam também
novas problemáticas, contextos históricos ri- à época tão desconsiderada como as festas assim, depois acompanhados por leitura nesse
gorosos, leituras cruzadas, conhecimento de de batuku que, com a independência de Cabo português que agora se quer muito certinho e
influências, intertextualidades e tratamento Verde, em 1975, se transfigurou em género ortograicamente mais uniformizado, mas que
de muita documentação a aguardar pesquisa musical já valorizado já inspirador de novas esquece com tanta facilidade esses crioulos
e investigadores, o que sempre quer também músicas, grupos, artistas. Os poemas de fina- sem os quais é muito mais difícil perceber a
dizer financiamentos, competências, muito çom seguiram directos para a vibrante capa saudável policromia mais do que pluricultural
tempo. Não estou certo que nestes nossos dias do primeiro número de A Claridade no qual das lusofonias.

a Claridade
revista de arte e letras Finaçom 1
Nº. 1 (1936) M pidi Nhôr-Dés
pê câ matám bedjo di-más
pamodi
bedjo ‘n tá bá storido
nobo ‘n tá bá di trabessado
na subida ‘n tá bá mondudo
na dixida ‘n tá bá stendedo
na trabessa ‘n tá bá sereno
Quel hó qu’n grandi
qu’m pôdê
‘n tá mandâ rombâ Pic’ Antone
pân djobê dento chuba chobê!

(Leitura:
Pedi a Deus
para não me matar demasiado idoso
porque
idoso iria muito esturrado
novo iria atravessado
à subida iria encolhido
na descida iria aprumado
na planície iria sereno
Quando for grande
e puder
mandarei arrombar o Pico de António
para poder ver dentro de Chuva-Chove!)

Finaçom 2
(Leitura:
Mocinhos sim namorado
Mocinhos sem namoradas
ê sim mâ boca sim bocado
são como boca sem bocado
ê sim mâ carnisim mandioca
são como carne sem mandioca
ê sim mâ copo sim garafa.
são como copo sem garrafa.
S’in tenê bedjo
Se estou com a velhice
tâ’ infadâm
a enfadar-me
s’in tenê nobo
se estou com a mocidade
ta borregam
a excitar-me
Nha guenti
Minha gente
s’in ca pupa
se não gritar
n’ca cudido
não sou atendido
s’in pupa
se não gritar
‘n ta rabenta!
me arrebento!)

VI Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS


lusofonias
eConomias... reúne estudos e análises sobre o desenvolvimento eConómiCo dos Países de língua Portuguesa e a sua CooPeração Com a rePúbliCa PoPular da China

CHINA |indústrias inFluenCiam ANGOLA


merCados emergentes merCado atrai ComérCio a retalho
E m Novembro, a
actividade empre-
sarial nos mercados
A ngola é actualmente dos
mercados mais atractivos
para o comércio a retalho in-
emergentes cresceu ternacional, devido à expansão
no ritmo mais rápido acentuada da população e do
em oito meses, sus- rendimento médio, de acordo
tentada pelo ímpeto com a Economist Intelligence
da actividade da in- Unit. A mais recente empresa a
dústria chinesa, re- anunciar planos para entrar no
velou uma pesquisa mercado angolano foi a sul-afri-
do HSBC. O índice de cana Spar, seguindo o exemplo
mercados emergen- de grupos do mesmo país, portugueses e brasileiros, airma a EIU no seu
tes composto do HSBC mais recente relatório sobre Angola. “Juntamente com o crescimento do
avançou para 52,1 rendimento disponível e do desenvolvimento da classe média, o mercado
ante 51,7 em Outubro, avançando acima do patamar de 50 que separa a de retalho deverá assistir a um crescente afastamento das vias informais”,
expansão na actividade da contracção, embora o crescimento no sector como mercados e vendedoras de rua, escrevem os analistas britânicos. O PIB
de serviços tenha icado no mesmo nível de Outubro. As indústrias foram real, sublinha a EIU, tem evoluído positivamente todos os anos desde 1994
o principal motor de crescimento, lideradas pela China, onde a mais forte e em oito destes anos expandiu-se a taxas com dois dígitos. Também o peril
demanda doméstica conduziu a um crescimento industrial também ligado etário é “muito prometedor”, uma vez que em 2010 cerca de metade da
à Índia. “Na Índia, as condições empresariais da indústria estão a icar população tinha menos de 24 anos, proporção que deverá manter-se eleva-
positivas depois de alguns meses de contracção”, disse o economista de da nos próximos anos, “dando aos retalhistas claras oportunidades de longo
mercados emergentes do HSBC, Murat Ulgen. “A China é um peso enorme, prazo para expansão e construção de lealdade de marca”, refere a EIU. Já
a Índia é um país enorme e retornou para o crescimento (da indústria)”. no mercado está a sul-africana Shoprite, depois de a brasileira Odebrecht ter
Outros mercados emergentes também tiveram crescimento mais rápido sido chamada pelo governo para uma parceria na gestão logística da cadeia
na indústria, com a Europa Central e Oriental e a Turquia beneiciando estatal Nosso Super. O governo angolano tem vindo a perseguir uma estra-
da recuperação na zona euro. O índice industrial, porém, foi pressionado tégia de formalização da economia não-petrolífera, em grande medida não
pela desaceleração do crescimento no Brasil, Rússia e Coreia do Sul e por regulada, tendo em vista melhorar a qualidade, expandir a concorrência e
contracção na Indonésia. JTM com agências criar empregos, bem como melhorar as receitas iscais. JTM/Macauhub

CABO VERDE | seCtor


Portuário Privatizado em 2014 TIMOR-LESTE
governo Paga mês extra à FP
O governo de
Cabo Verde
governo de Timor-Leste decidiu, em Conselho de Ministros extraordinário, pagar
está a ultimar
o quadro legal
O um mês de salário extra ao setor público, refere em comunicado o executivo timo-
rense. “Este diploma aprova o pagamento extraordinário, com carácter único, de um
e de regulação
mês de salário base aos funcionários e agentes, ainda que temporários mas contrata-
para a privati-
dos há pelo menos um ano, aos dirigentes da Função Pública, aos elencados no artigo
zação do sector
2.º deste Decreto-Lei e aos membros dos órgãos de soberania do Estado”, pode ler-se
portuário em
no comunicado divulgado, à imprensa. Segundo o documento, a decisão foi “tomada
2014, anunciou
de acordo com a política de preservação, valorização e reconhecimento dos recursos
a ministra das
humanos ligados à Administração Pública que o Governo mantém”. Os funcionários pú-
Infra-estrutu-
blicos em Timor-Leste não recebem subsídios de férias, nem 13.º mês e têm 20 dias de
ras e Economia
férias. Desde 2010, que o governo timorense aprova o pagamento de um mês de salário
Marítima, Sara Lopes, de acordo com a imprensa cabo-
extraordinário em dezembro ao sector público.
-verdiana No decurso de uma conferência sobre a refor-
ma do sector dos transportes em Cabo Verde, a ministra
que o novo quadro legal e institucional a entrar em vigor
no próximo ano visa dar uma nova dinâmica ao sector.
Em Junho passado o Parlamento cabo-verdiano conce-
deu uma autorização legislativa ao governo para alterar moçambiQue
o regime jurídico dos portos de Cabo Verde aprovado
em Novembro de 2010, tendo em vista a privatização da
sua exploração económica. No âmbito da privatização,
aPosta na modernização de linhas Férreas
o governo pretende que a Empresa Nacional de Admi-
nistração dos Portos (Enapor) continue a ser a conces-
sionária geral dos portos do arquipélago, mas que lhe
A s obras de modernização da linha de caminho-de-fer-
ro do Sena, em Moçambique, que visam aumentar a
capacidade de escoamento para 20 milhões de toneladas
seja permitido subconcessionar, sempre que possível, a por ano, deverão icar concluídas até inais de 2015, infor-
operação e os serviços portuários aos agentes económi- mou a agência noticiosa moçambicana AIM que adiantou
cos. As subconcessionárias portuárias poderão também estarem actualmente a decorrer as obras de construção
ter outros negócios no seu objecto social, sendo-lhes de pontos de cruzamento de comboios e de reparação
apenas exigido conhecimentos no sector marítimo para da via para permitir o aumento da velocidade média dos
utilizar os portos do país e desenvolver negócios com comboios que transitam na linha. Estão também em curso
outros portos estrangeiros. A futura lei deverá também obras de ampliação e modernização do porto da Beira,
deinir os bens do domínio público portuário e clariicar para garantir o processamento da carga transportada nas linhas de Sena e Machipanda e
as competências dos diversos agentes públicos do sector facilitar o escoamento de mercadorias para os países do interior, casos do Malawi, Zâmbia
marítimo, nomeadamente a Direcção-Geral de Mobilida- e República Democrática do Congo. O transporte de passageiros é outra componente a ter
de e Transportes, o serviço integrado do Ministério das em conta na modernização da linha de Sena, ao longo dos cerca de 600 quilómetros de sua
Infra-estruturas e Economia Marítima, o Instituto Maríti- extensão, nos trechos Beira/Moatize e Beira/Marromeu. A linha vai igualmente servir para o
mo e Portuário e a Enapor. transporte de calcário, matéria-prima para a fábrica de cimento de Dondo, de açúcar produ-
JTM/Macauhub zido em Marromeu e dinamizar a agricultura e a actividade comercial. JTM/Macauhub

lusofonias LUSOFONIAS • Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 VII


Angolanidade:
PubliCa textos de estudo e oPinião
sobre a diversidade Cultural
das lusoFonias

Pressuposto para a teoria


ideias da literatura em Angola
a história sociocultural de Angola, existe um
N conceito ilosóico que norteia o preceito cul-
tural nacional, contribuindo para o modus vivendi
golanidade deve construir-se a partir dos elemen-
tos concretos da sua manifestação, e não como
um esforço de negação de uma realidade cultural
do cidadão, na base de uma visão humanista, de imposta, mas como esforço de airmação de uma
solidariedade, amor ao próximo e ao bem comum. realidade cultural nova, nascida do cruzamento
Esse conceito reside na palavra Angolanidade, das civilizações e das suas obras (…)”. Pois, se-
formada por suixação. A expressão, a dado passo gundo ele, a “Angolanidade constrói-se com tudo
da nossa história política e cultural, emergiu; e o que a história legou ao povo angolano: o subs-
ao longo do tempo, ganha formulações de capital trato negro-africano, e os elementos da cultura
interesse para a compreensão dos desígnios do dominante que através dos séculos penetraram
povo angolano. até ao mais fundo do consciente popular”.
A Angolanidade é um conceito de elevado pri- Neste capitulo o ensaísta angolano Luís Kand-
mor, deve ser público, compreendido e amparado jimbo, apresenta-nos um estudo de obrigatória
para que cada um de nós, encontre, na sua vi- referência, intitulado “O ENDOGENO E O UNI-
vência, a base sustentável de identiicação na- VERSAL NA LITERATURA ANGOLANA”, comunica-
cional, baseada no princípio ilosóico nacional, ção apresentada no painel cultural do Seminário
actual e sustentável, para que na formulação de sobre a Realidade Política, Económica e Cultural
políticas sociais, culturais e mesmo económicas, de Angola, Paris 6-9 de Novembro, realizado pela
se tenham bem vivos os valores que norteiam o Embaixada de Angola em França por ocasião da
ser angolano. festa nacional.
É exactamente na base desse pressuposto que Para L. Kandjimbo “(…) no discurso cultural
Pombal Maria* deve existir a nossa visão de nação. Visão essa, angolano, a problemática do endógeno e do uni-
plasmada acima de tudo, pelo olhar da cultura na- versal revela-se no debate que se trava no âmbi-
cional, já que a cultura é o dia-a-dia de um povo, to do discurso crítico literário, em torno de dois
como diz o escritor angolano Luandino Vieira. conceitos, que se constituem ao mesmo tempo
É exactamente no capítulo dos estudos da litera- em paradigmas para o discurso crítico: Angolani-
tura angolana onde o conceito em apreço emergiu, dade e Crioulidade”.
O conceito de talvez por ser uma disciplina auxiliar da ilosoia. O conceito de Crioulidade, segundo ele, “é
Alfredo Margarido, escritor Português, estudio- uma forma semiofágica, alterofágica, relativista
Crioulidade “é uma so das literaturas africanas, em l96l, escreveu um e eurocêntrica de compreender o mundo angola-
“ ensaio signiicativo” sobre a poesia de Agostinho no. Representa, por isso, uma corruptela da ex-
forma semiofágica, Neto em que “propunha a utilização do conceito pressão do universal, ao fazer apelo a ressonân-
de Angolanidade, para deinir a substância nacio- cia da visão imperial do colonialismo português
alterofágica, relativista nal angolana”. O conceito foi, nesse momento, em Angola”.
pela primeira vez, inserido num texto escrito. Ao contrário do conceito de Crioulidade, argu-
e eurocêntrica de O escritor Costa Andrade escreveria igualmen- menta o ensaísta angolano, “o conceito de Ango-
te, logo a seguir, um artigo dedicado a “Dois poe- lanidade, apresenta-se como um conceito aberto,
compreender o mundo tas da Angolanidade”(l962: 76-9l), encomendado marcado pela universalidade.
por Mário Pinto de Andrade que preparava então Torna defensável o pluralismo cultural. É re-
angolano. Representa, um dos números da revista “Présence Africaine” velador da necessidade do diálogo intercultural.
consagrado a Angola. Numa entrevista concedida Nega a pureza das culturas. Faz apologia da re-
por isso, uma ao autor destas linhas, Costa Andrade airmava sistência à penetração da visão colonial e luso-
que “a ideia de Angolanidade como formulação -tropicalista que vai sobrevivendo ainda hoje”.
corruptela da expressão da palavra em si (...) é de l959”. “O conceito de Angolanidade enraíza-se numa
Na sua “Introdução a um colóquio sobre poesia dimensão ontológica como pressuposto para a
do universal, ao fazer angolana”, Agostinho Neto lamentava em l960, produção de um discurso teórico-literário. Con-
o risco da assimilação e da desreferencialização globa não só os resultados das estratégias de
apelo a ressonância dos intelectuais angolanos que “(...) perturbados enunciação literária em língua portuguesa. In-
pelo processo de coisiicação, esqueceram por corpora ainda o sistema semiótico da oralidade,
da visão imperial do muito tempo que existia a civilização africana” onde imperam, códigos diferentes, nomeadamen-
colonialismo português (Luís Kandjimbo, Ler: Apologia de kalitangi). te paralinguísticos, cinésicos, proxémicos, lúdi-
A palavra Angolanidade, ao longo da história, cos, etc. (…)”, acrescenta.
em Angola”. Ao ganha várias abordagens, quer do ponto de vista Para o conceito “estratégico de Angolanida-
antropológico, sociólogo, literário e etc. Aborda- de”, aquele notável ensaísta angolano, recomen-
contrário do conceito de gens essas, vindas de cientistas sociais angolanos da reunir “todas as características para fundar
como Mário Pinto de Andrade, Luis Kandjimbo, uma teoria geral explicativa, introduz processos
crioulidade, “o conceito Victor kajibanga, etc, e portugueses como o en- de categorização que, por operar com elementos
saísta Manuel Jorge e Alfredo Margarido e etc. da cultura angolana e não apenas com alguns dos
de Angolanidade, Para Mário Pinto de Andrade, “...a Angolanida- seus elementos contingentes e supérluos, têm
de requer enraizamento cultural das comunida- de responder aos desaios e tentações hegemó-
apresenta-se como des humanas, abraça e ultrapassa dialecticamen- nicas de outras teorias consagradas pela história
te os particularíssimos das regiões e das etnias, do colonialismo em Angola, por exemplo, a teo-
um conceito aberto, em direcção à nação. ria do luso-tropicalismo e a teoria da Crioulida-
Ela opõe-se a todas as variantes de oportunis- de. Por outras palavras, diremos que a teoria da
marcado pela mo (com as suas evidentes implicações políticas) Angolanidade há-de obedecer aos imperativos de
que procuram estabelecer uma correspondência uma descolonização epistemológica, exigindo,
universalidade” automática entre a dose de melanina e dita au- no plano intelectual, a elaboração de «conceitos
tenticidade angolana. Ela é, pelo contrário, lin- hemeomorfos», para empregar uma expressão de
guagem da historicidade dum povo”. Raimundo Panikkar(…)”.
Para o ensaísta português Manuel Jorge, a “An- *Escritor angolano. Texto publicado no semanário “O País”

VIII Terça-feira, 10 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS


lusofonias

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