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A Claridade
origem vulcânica,
a sua quase maríti-
ma continuação das
areias desérticas do
Sahel e do Sahara,
depois descrevendo
com monotonia
o seu clima árido,
seco e tórrido fus-
tigando uma paisa-
gem acinzentada,
Cabo Verde
sublunar, tão pobre
como sempre se-
quiosa. Ilhas pau-
pérrimas eram
que não tiveram
sequer direito a
baptismo próprio:
o nome Cabo Verde
lhes seria dado a
partir desse cabo
de
longe no Senegal
que, mais próximo
de Dacar, as em-
barcações portu-
guesas começaram
a ultrapassar ao
longo da década
de 1450, procuran-
do as riquezas
e os escravos do
continente africano
que, nos quatrocen-
tos anos seguintes,
alimentaram sem
cessar a ganân-
cia do colonialismo
europeu que era
também exactamen-
te a do português.
Ainda hoje se dis-
cute esse ocioso
problema da desco-
berta original das
ilhas desabitadas
que, entre 1456 e 1460, começaram a
ser identiicadas por caravelas vindas
de Portugal. O que é mais prudente es-
crever do que continuar a falar – como
sempre se faz em acríticos exornos – de
pioneiros e originais descobridores
portugueses. É que entre os primeiros
lusofonias
nº 22 | 10 de Dezembro de 2013
COORDENAÇÃO:
Ivo Carneiro de Sousa
TEXTOS:
• Pobreza, Emigração
e Fedagosa
• Cultura, Literatura
e Identidade
• A Claridade
• Finaçom
• Claridade. Revista de Arte
e Letras (1936)
Dia 16 de Dezembro:
Monteiro Lobato,
o maior escritor infantil
de Língua Portuguesa
APOIO:
A Claridade
contrariar a pujante concorrência colonial britâni-
ca, sendo devidamente extinta em 1778 no meio
de fundos prejuízos.
de Cabo Verde
Uma nova Companhia de Comércio da Costa de
África, agora imitando o modelo colonial francês
em desenvolvimento na África ocidental, dura es-
cassos seis anos, entre 1780 e 1786. Pelos inais
do século XVIII, ainda se tenta fomentar o povoa-
mento de São Vicente com gente pobre da Madei-
ra e dos Açores, mas sem ganhar mais do que um
Ivo Carneiro de Sousa pequeno punhado de famílias. Entretanto, come-
çam a chegar nas décadas seguintes as pressões
abolicionistas e quando, em 1876, a escravatura
erra madrasta é a das dez ilhas do arquipéla- bem mais simples e evidente: seguindo o modelo é deinitivamente abolida, as ilhas de Cabo Verde
T go que hoje formam a orgulhosa República de da colonização feudal da Madeira e dos Açores, o perdem em interesse comercial o que ganham em
Cabo Verde. Geógrafos e geólogos foram esclare- novo arquipélago na órbita das navegações por- abandono, secas, miséria e muita emigração.
cendo a sua origem vulcânica, a sua quase marí- tuguesas quatrocentistas é rapidamente entregue Recorde-se que, entre 1830 e 1833, as secas
tima continuação das areias desérticas do Sahel nos inais de 1460 ao poderoso infante senhorial prolongadas multiplicam-se em fomes mortais
e do Sahara, depois descrevendo com monotonia que era D. Fernando, irmão do rei Afonso V, ad- que, sem socorro de Portugal, são apenas acudi-
o seu clima árido, seco e tórrido fustigando uma ministrador também da Ordem de Cristo que, por das pelos Estados Unidos que rapidamente se tor-
paisagem acinzentada, sublunar, tão pobre como isso, mobilizou gentes dos seus latifúndios no Sul de nam miragem de emigração e sonho de nova vida
sempre sequiosa. Ilhas paupérrimas eram que não Portugal e capitais emprestados por banqueiros e para muitos caboverdianos. Estrangeiros são tam-
tiveram sequer direito a baptismo próprio: o nome grandes mercadores italianos para tentar desenvol- bém os interesses dos britânicos que, em 1830,
Cabo Verde lhes seria dado a partir desse cabo ver a lucrativa produção de açúcar por essas outras abrem o porto do Mindelo, em São Vicente, à cir-
longe no Senegal que, mais próximo de Dacar, as ilhas atlânticas em frente às costas da Guiné. culação comercial do carvão. O que não impediu o
embarcações portuguesas começaram a ultrapas- Não vingou como produto comercial, pelo que rosário recorrente de fomes catastróicas e muito
sar ao longo da década de 1450, procurando as icou, ontem como hoje, a posição estratégica de mais emigração, apesar da II Guerra Mundial ter
riquezas e os escravos do continente africano que, um arquipélago fundamental nos itinerários anuais espevitado o interesse dos contendores pela posi-
nos quatrocentos anos seguintes, alimentaram da carreira da Índia e no caminho marítimo para ção mais do que estratégica das águas marítimas
sem cessar a ganância do colonialismo europeu o Brasil que foi ganhando interesse e atenção à e, nessa altura, também do espaço aéreo das dez
que era também exactamente a do português. medida que o império ilhas de Cabo Verde.
Ainda hoje se discute esse ocioso problema da marítimo português se A história recente é
descoberta original das ilhas desabitadas que, en- contraía a Oriente. Em (...) em 1876, a escravatura mais rápida e, provavel-
tre 1456 e 1460, começaram a ser identiicadas armazém e praça de mente, melhor conhe-
por caravelas vindas de Portugal. O que é mais escravos africanos logo é deinitivamente abolida, cida. Por Setembro de
prudente escrever do que continuar a falar – como se especializou Cabo
sempre se faz em acríticos exornos – de pioneiros Verde para alimentar
as ilhas de Cabo Verde 1956, esse vulto maior
das lutas de libertação
e originais descobridores portugueses. É que entre os tratos escravistas perdem em interesse nas antigas colónias
os primeiros dos tais descobridores documentados que levaram milhões portuguesas que conti-
arribando às várias ilhas que viriam a ser Cabo Ver- de jovens africanos comercial o que ganham nua a ser Amílcar Cabral
de encontramos portugueses, como Diogo Gomes para as terras muito
e Diogo Afonso, mas também italianos como Alvise mais ricas do Brasil. O
em abandono, secas, promoveu em Bissau a
criação do PAI (Partido
Cadamosto e Antonio da Noli que viria mesmo a inevitável sistema de miséria e muita Africano da Indepen-
ser um dos primeiros capitães donatários da parte capitanias retalhou a dência – União dos Povos
sul da ilha de Santiago centrada na Ribeira Grande posse das ilhas entre emigração(...) da Guiné e Cabo Verde)
(hoje, Cidade Velha), para aí levando colonos do capitães que pratica- que estaria nas origens
Alentejo e do Algarve. As histórias heróicas ainda mente as desconheciam, muitas vezes vendendo ou do PAIGC. No princípio de 1963, a guerra de liber-
agarradas às memórias muito nacionalistas do Im- arrendando as suas donatarias a quem mais desse. tação chegou à Guiné-Bissau, mas pouparia como
pério cultivadas pelo Estado Novo ergueram em Por São Filipe, a actual ilha do Fogo, ainda se ten- facilmente se compreende as ilhas de Cabo Verde,
exclusivo lugar da memória esse sonante tema tou a vinha sem grandes resultados; pelas ilhas da inalmente independentes a 5 de Julho de 1975.
dos Descobrimentos Portugueses, multiplicando- Boavista e Maio introduziram-se gados que nunca Apesar de instituirem estados-nações separa-
-se em estátuas, nomes de ruas e singular ethos foram abundantes; até meados do século XIX foi-se dos, Cabo Verde e a Guiné-Bissau começaram por
pátrio, assim esquecendo muito convenientemen- explorando a urzela para tingir os têxteis pobres ser igualmente governados pelo mesmo PAIGC,
te um processo em que se foram reunindo muitos que se trocavam por escravos nas costas da Guiné. concretizando o sonho que Cabral não viu nascer
saberes e pessoas europeus: italianos, franceses, À volta de 1612, a construção do porto da Praia ao ser tragicamente assassinado em 1973. O siste-
castelhanos, muita gente da Catalunha (ou não ixa a principal polarização económica e adminis- ma dual, porém, extinguiu-se, como se sabe, em
tivesse sido o Condestável D. Pedro (1429-1466), trativa do arquipélago, substituindo a antiga Ri- 1980, quando o golpe de estado na Guiné-Bissau
ilho do infante de Avis com o mesmíssimo nome, beira Grande, assim se encontrando a capital que, dirigido por Nino Vieira depôs o presidente Luís
eleito Conde de Barcelona para se intitular du- elevada a cidade em 1858, ainda o é hoje. Mais Cabral e foi respondido pela criação do Partido
rante três anos Rei de Aragão, Sicília, Valência, tarde, desde 1650 demoradamente até 1879, a Africano para a Independência de Cabo Verde
Maiorca, Sardenha e Córsega), das Baleares, ma- partir da Praia se administravam os enclaves colo- (PAICV). Em Fevereiro de 1990, muito mais feliz-
grebinos e outros norte-africanos trazendo para niais portugueses na Guiné numa cronologia que é mente, o sistema de partido único foi abolido em
Portugal os conhecimentos náuticos, cientíicos e matematicamente a do apogeu, queda e abolição Cabo Verde, as forças da oposição organizaram-se
técnicos cerzidos por esse Mediterrâneo em que da escravatura. em torno do activo Movimento para a Democracia
os navegadores, pilotos e capitães portugueses É certo que o mercantilismo seiscentista rece- (MpD) e, em 1992, o país aprovou uma Constitui-
foram treinados entre corso, comércio e outras bido e trocado em recorrentes tratados comer- ção democrática e multipartidária.
aventuras marítimas. Sem o Mediterrâneo antes e ciais progressivamente mais desvantajosos com E um exemplo de democracia tem vindo a ser
a Europa do Renascimento durante não teria ha- o Reino Unido trouxe brevemente, desde 1664, a Cabo Verde, cultivando talentos (como agora se
vido os famosos Descobrimentos Portugueses que Companhia da Costa da Guiné, monopolizando o diz...), investindo nas pessoas, repensando o
tornaram a nossa memória histórica tão estreita comércio escravista, sucedida entre 1676 e 1682 país, enfrentando os fados passados da pobreza,
como assustadoramente limitada esta nossa me- pela Companhia de Cacheu e Rios da Guiné, logo conseguindo mesmo ser reconhecido como um
mória colectiva ainda em busca de iluminações substituída em 1690 pela Companhia do Cacheu e país de médios rendimentos (o único entre as an-
mais modernas e sinceramente democráticas. Cabo Verde. Nenhuma conseguiu mobilizar capi- tigas colónias africanas portuguesas até ao mo-
Ultrapassando depressa o muito pouco interes- tais e lucros decentes, pelo que a exploração do mento), mais excelente reputação internacional
se destas discussões sobre origens e prioridades, o arquipélago e das costas da Guiné seguiu em 1757 em que se reconhece a seriedade, trabalho e in-
processo histórico que, na longa duração, coloniza para a muito pombalina Companhia Geral de Co- teligência de um país em que rigorosamente só a
com gentes, equipamentos, escassos capitais e es- mércio do Grão-Pará e Maranhão. Sem qualquer terra é mesmo madrasta: as suas gentes chegam
tratégias coloniais o arquipélago de Cabo Verde é sucesso que se visse, a companhia era incapaz de e sobram como tesouro.
o de A Claridade é hoje
o como um mito. A capa
da por Jaime de Figuei-
m volume surpreenden-
se ofereciam corajosa
ês poemas da tradição
ntuna & 2 motivos de
a Ilha de Santiago)”. A os Claridosos - membros da revista de arte e letras “a Claridade”
e e Letras assumia, as-
cio a defesa do crioulo independência, conquanto tivesse funcio- tando pela miscigenação cultural agitada português como uma manifestação de
populares dos batuques nado como semente importante de futuros pelo autor de Casa-Grande e Senzala que regionalismo, semelhante ao de revistas
ago marcadas também ideários nacionais e de plena soberania das julgavam poder ser também a marca iden- dos Açores ou da Madeira, A Claridade
crítica social, sátira e gentes e culturas de Cabo Verde. A Clarida- titária de Cabo Verde. O deslumbramento foi reescrevendo tragédias e emigrações
almente improvisados, de vai-se distanciando paulatinamente, mas passou com a viagem de Gilberto Freyre às em crioulo, mais saudades e identida-
om. com alguns equívocos, do discurso colonial, então colónias portuguesas (com a prudente des cruzadas, pelo que ensaios, contos e
o de A Claridade pros- cortando progressivamente com qualquer excepção de Macau e Timor-Leste), realiza- poesias foram assim navegando cada vez
ase nativista, difundin- herança sanguínea lusitana, ainda que devi- da a convite do Ministério do Ultramar em mais para longe mesmo das crenças luso-
de Francisco Xavier da damente miscigenada, afastando-se mesmo 1953, depois publicada pelo sociólogo brasi- -tropicalistas, preparando as gerações que
e, muito mais conheci- da tradicional posição geográica do arqui- leiro em Aventura e Rotina, dois anos mais inalmente transformaram a libertação na
m dos mais importantes pélago como ponto de aporto e plataforma tarde. Os poucos dias passados por Freyre independência que é condição de identi-
grande revolucionador de transporte para destacar um outro lugar, em Cabo Verde foram ixados sem gene- dade nacional. Mesmo da sua discussão
m a feliz introdução do um muito mais renovado locus: o da cultura. rosidade no seu livro em que se destaca a que é ainda mais condição para existir. A
te segundo número de Uma mutação do fatídico espaço madrasto fragilidade económica do arquipélago, o uso Claridade é tanto etapa como raiz deste
rio de Oliveira assinava em generoso berço de paternidade cultural comum de um “dialecto bárbaro”, absolu- processo. Sucedeu, e bem, a essa primei-
o artigo intitulado “Pa- que se encontra imediatamente presente tamente incapaz de servir como meio de ra geração novecentista que, em Eugénio
rde para serem lidas no no ensaio que Manuel Lopes logo publicou expressão, muito menos literário, correndo Tavares ou Pedro Cardoso, foi escrevendo
a importância da nova no primeiro número da revista para tentar a par com a ausência de uma legítima arte em sentimento nativista, entre o folcló-
asileiros para a criação relectir sobre o que um europeu vem ver- popular. Tomando as dores dos claridosos, rico e o paternalismo popular, conseguin-
eratura cabo-verdiana. dadeiramente procurar a Cabo Verde: “É Baltasar Lopes mais do que se incomodou do ao longo dos seus nove números rei-
ato temporal, quando A vulgar verem-se desembarcar nessas ilhas e rebateu veementemente as ligeiras e ig- vindicar tanto um estatuto de igualdade
partir de 1947, os seus africanas, principalmente em São Vicente, norantes críticas freyrianas em texto que, como uma consciência cultural que, ainda
ampliam a descoberta estrangeiros sedentos de exotismos, com publicado na Praia, em 1956, se intitulava carregada de ilusões quase regionalistas,
problemas e das aspi- aquela doentia curiosidade de quem pisa Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. prepara mesmo essa outra geração da
erguer em caboverdia- terras de África e, por conseguinte, terras Neste período, A Claridade continuava airmação nacionalista que Amílcar Cabral
e revisita o folclore do de mistério e que ao cabo de meia hora de a relectir sobre as possibilidades de sobre- transmutou com inteligência em exigência
se ainda mais a poesia cirandagem tornam a embarcar desiludidos vivência numa terra madrasta, mas que se de liberdade e autonomia política.
a Claridade
revista de arte e letras Finaçom 1
Nº. 1 (1936) M pidi Nhôr-Dés
pê câ matám bedjo di-más
pamodi
bedjo ‘n tá bá storido
nobo ‘n tá bá di trabessado
na subida ‘n tá bá mondudo
na dixida ‘n tá bá stendedo
na trabessa ‘n tá bá sereno
Quel hó qu’n grandi
qu’m pôdê
‘n tá mandâ rombâ Pic’ Antone
pân djobê dento chuba chobê!
(Leitura:
Pedi a Deus
para não me matar demasiado idoso
porque
idoso iria muito esturrado
novo iria atravessado
à subida iria encolhido
na descida iria aprumado
na planície iria sereno
Quando for grande
e puder
mandarei arrombar o Pico de António
para poder ver dentro de Chuva-Chove!)
Finaçom 2
(Leitura:
Mocinhos sim namorado
Mocinhos sem namoradas
ê sim mâ boca sim bocado
são como boca sem bocado
ê sim mâ carnisim mandioca
são como carne sem mandioca
ê sim mâ copo sim garafa.
são como copo sem garrafa.
S’in tenê bedjo
Se estou com a velhice
tâ’ infadâm
a enfadar-me
s’in tenê nobo
se estou com a mocidade
ta borregam
a excitar-me
Nha guenti
Minha gente
s’in ca pupa
se não gritar
n’ca cudido
não sou atendido
s’in pupa
se não gritar
‘n ta rabenta!
me arrebento!)