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34| PARTE I | DOIS PROJETOS AMBICIOSOS | A NOVA HOLANDA

III infernizar e atemorizar os flamengos. Por vários anos, os galegos


ficaram espremidos no Recife, na ponta do seu istmo, com alguma
A NOVA HOLANDA presença ainda na ilha de Antonio Vaz, que denominariam mais
tarde Mauriciópolis, atual região do bairro de São José e do
antigo Cais de Santa Rita, que ainda é chamado assim. Ficar
A CHEGADA DOS HOLANDESES: INVADIR
escondido atrás de moitas repletas de mosquitos, suportando
PARA COBRAR O INVESTIMENTO FEITO calores terríveis, com fome e frio à noite, não era nada fácil,
mas foi parte da tática de resistência portuguesa. Emboscar os

A História Militar, nem sempre lembrada, nos mostra


que, à época do descobrimento do Brasil, as batalhas
vinham ocorrendo sem a maior parte dos tradicionais princípios
flamengos quando se afastavam do Recife em busca de água ou
alimentos, como frutas e peixes, matando-os talvez a pancada
ou facada, requeria muita paciência e concentração. Até os
e limites honoríficos de outrora. Em alguns momentos, lutava- holandeses reconheceram que os pernambucanos eram um osso
se na base do vale-tudo. Antes, na Idade Média, a honra e a duro de roer numa guerra: não desistiam nunca; atrapalhavam
respeitabilidade do cavaleiro e do soldado eram consideradas e aterrorizavam sempre.
centrais no momento do embate. As tropas que a Companhia A resposta luso-“brasileira” iniciou então a técnica militar
das Índias Ocidentais enviaram para invadir Pernambuco eram da guerrilha, que é atribuída erradamente aos nacionalistas,
compostas de um misto de nobres, soldados “profissionais” e que só fariam a independência dos EUA século e meio depois.
muitos mercenários. A tão decantada invasão de Olinda reafirmou Talvez possamos pensar em levantar hipótese supondo que os
essa tendência de um estilo de luta baseado em objetivos judeus que deixaram o Recife com a derrota holandesa tenham
racionais, no sentido de uma razão instrumental (Rouanet, 1987), levado o conhecimento dessas técnicas para Manhattan. Lá,
de “vencer a qualquer preço”. A honra em batalha ficara reduzida contudo, os embates com os nativos locais também foram uma
a um mero formalismo (por exemplo: depois de arrasar as forças constante. Índios “norte-americanos”, como os daqui, também
do inimigo, ir ao encontro do que restou dele com rolos de papel fustigavam os colonos como podiam: usando ataques rápidos e
a serem assinados — os termos de rendição — e receber algum localizados, evitando-se ou desconhecendo-se a batalha formal
objeto que simbolizasse a sua derrota — geralmente a espada em campo aberto.
do comandante). Hoje, os princípios da guerra estão em tratados Para uma compreensão conceitual do tema, é importante
e convenções diplomaticamente acertados pela maior parte das notar que a expansão das companhias de comércio e do livre
nações, embora nem sempre respeitados. mercado com apoio de um forte braço militar foi a junção
O ataque a Olinda foi feito com tal superioridade numérica coincidente de um fator anterior, agora aprofundado (a
e bélica que o famoso desembarque na praia de Pau Amarelo — desvalorização da honra na batalha em si), com a necessidade
que não era avistada de Olinda — e o bombardeio precipitado e de associar as formas de luta e os custos da empreitada guerreira
“desleal” sobre as tropas portuguesas em torno do Recife apenas com a expectativa imediata de lucro de investidores: acionistas
serviram de reafirmação do caráter de desregramento parcial e/ou empresários. Os holandeses, com a sua companhia de
das guerras modernas. Aliás, o poder da artilharia dos invasores comércio, e os portugueses, com seus governantes espanhóis (era
era maior. Os tiros de certos canhões holandeses iam mais longe, a época da União Ibérica), sabiam muito bem que a guerra se
e os navios e soldados que traziam eram muito mais numerosos. tornara um desdobramento dos negócios capitalistas modernos.
Uma surpresa posterior, porém, aguardava os invasores. Não era mais uma questão de honra, pois já não se combatia
Talvez aprendida com os indígenas ao longo de décadas de pelas primogenituras em si ou pelo prestígio formal da Coroa
escaramuças e massacres, a tática, até então desconhecida — ou ainda pelo predomínio territorial nobiliárquico, como alguns
pelo menos pela cultura militar oficial —, da guerra de guerrilha séculos antes. Era, agora sim, no caso que nos interessa aqui,
(ou guerra brasílica, como veremos adiante) foi usada para uma invasão para ampliar o comércio e manter as manufaturas
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Convento de Santo Antônio, no


início da Rua do Imperador.
Concluído em 1613 e transformado
em forte durante a invasão
holandesa, é, talvez, a edificação
mais antiga do Recife ainda de pé.
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do invasor e seus sócios e aliados abastecidos de matéria-prima


para o enriquecimento do açúcar.
...eis o Recife, sol de todo Os holandeses invadiram Pernambuco para repor suas
o sistema solar da planície:
perdas econômicas causadas pela Espanha, que, já tendo anexado
daqui é uma estrela Portugal, proibira o envio do açúcar brasileiro para refino na
ou aranha, o Recife... Holanda. Os mercadores portugueses de há muito freqüentavam
João Cabral de Melo Neto, De avião portos do norte da Europa. A sociedade de investidores flamengos
com o empreendimento do açúcar não era de se estranhar. As
relações comerciais entre Portugal e Flandres (região hoje dividida
entre Holanda, Bélgica e França), por exemplo, teriam se iniciado,
como nos lembra Gilberto Freyre ao citar João Lúcio de Azevedo,
“não muito depois de 1184” (Freyre, 1999, p. 197). Era, pois,
uma tradição comercial de quatro séculos que os espanhóis, no
domínio sobre Portugal, haviam interrompido.

O CONCEITO DE “CIDADE DO RECIFE” E


SUAS DIFERENÇAS COM OLINDA
O RECIFE POR DEVER
Leonardo Dantas Silva
À época, ao contrário de Olinda, que era relativamente bem
organizada, o Recife ainda era um povoado feio: águas
paradas, malcheirosas, lama, mato e pés-de-pau raquíticos aparecendo
Como bem demonstrou José Antônio Gonsalves
de qualquer jeito e em qualquer lugar. Ninguém, antes de Maurício
de Mello, arrecife é a forma antiga do vocábulo
de Nassau*, acreditava que fosse possível fundar ali uma cidade.
recife, ambos originários do árabe ar-racif, que
significa calçada, caminho pavimentado, linha Se, para Duarte Coelho, Olinda era a encarnação de Portugal
de escolhos, dique, paredão, cais, molhe. Em sua revivido na Nova Lusitânia (alta, tortuosa e aristocrática), para
forma arcaica, arracefe, o vocábulo é encontrado Nassau só uma outra cidade, parecida com Amsterdã, poderia
desde 1258 e, a partir de 1507, aparece como receber a sede do governo da Nova Holanda. Essa cidade era o
arrecife, que, ainda no século XVI, é também
Recife: baixa, plana, cercada de águas, à beira do oceano, porto
consignado como recife , segundo registra o
profundo, ideal para atracamento de embarcações maiores,
dicionarista José Pedro Machado.
mercantil, enfim. Aliás, a etimologia da palavra Amsterdã tem
(....) simbologia aquática, literalmente: “dique do rio Amstel”,

A regra geral ensina que todo topônimo denotando a ligação entre a função prática dos canais que foram
originário de um acidente geográfico é construídos no Recife com seu caráter simbólico ao fazer lembrar
antecedido pelo artigo definido. Adverte a metrópole flamenga deixada pelos invasores em sua terra natal.
Gonsalves de Mello, antes citado:
A grande dificuldade da nova urbe era, porém, inegável: não
Porque se originou de um acidente geográfico havia ali água doce de boa qualidade para beber. Era necessário
— o recife ou o arrecife —, a designação do Recife
trazê-la de fora, basicamente de Olinda. A água vinha pelo istmo
não prescinde do artigo definido masculino: “o
Recife”, nunca “Recife”, e não “em Recife”,
*
NOTA DOS AUTORES: Este Maurício de Nassau que veio governar Pernambuco teve um
“de Recife”, “para Recife”. homônimo com o qual às vezes o confundem. O outro Maurício de Nassau era filho de
Guilherme, o Taciturno, e irmão de Frederico Henrique. Os dois irmãos foram capitães-
generais do exército dos Estados Gerais na luta pela Independência da Holanda contra a
Espanha. Esse outro Nassau morreu em 1625.
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ou pelo rio. O domínio do istmo e de sua margem oposta (atuais


bairro de Santo Amaro e Complexo de Salgadinho) era crucial aos
que desejassem o controle tranqüilo do Recife. No fim da guerra de
expulsão dos flamengos, esse ponto fraco foi pressionado de várias
formas, inclusive na Batalha do Forte das Salinas. Ali, o Recife
holandês sucumbiu ante a ação militar de “brasileiros” e portugueses
que cercaram e cortaram os últimos atalhos continentais que talvez
ainda restassem para o suprimento holandês.
Para o Recife sob domínio do invasor, fortalecido por eles não
só do ponto de vista militar, vieram artífices e artesãos da Europa:
ferreiros, carpinteiros, alfaiates, pedreiros, além de soldados. Os
fazeres se tornavam urbanos, retirando tais atividades do controle
cotidiano dos senhores de terras. Havia um clima de uma Babel
ora pagã, ora cristã: falava-se holandês, alemão, norueguês, inglês...
E falava-se mal dos recifenses: adiante da Rua do Bom Jesus (que
na época se chamava Rua do Bode, por causa da vizinhança de
judeus), estariam “os mais vis bordéis do mundo”, nos quais “um
Monumento em homenagem à Batalha
homem que os adentrasse nunca mais tornaria ao caminho correto”, do Forte das Salinas, ao lado do
nas palavras do reverendo calvinista Joachim Soler (1999). Cemitério dos Ingleses, em Santo Amaro.
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Já a urbanização de Olinda havia sido adaptada da tradição do


medievo europeu ou português em particular: ruas sinuosas, ausência
de planejamento urbano como o entendemos hoje em dia, espaços
amplos para a cena dos templos católicos e posição estratégica para
a defesa. Os prédios iam-se sucedendo simplesmente, localizando-se
meio aleatoriamente e servindo para o que a vontade do dono
mandasse. Havia muitos becos, vielas e ruas estreitas, como se pode
testemunhar caminhando em sua parte histórica ainda hoje, pois sua
derrocada diante da ascensão do Recife ajudou a preservar-lhe parte
de sua arquitetura original. O Recife não ficava no alto, mas tinha
Placa da Rua do Bom Jesus, muralha e fortes. O medo de ataques era uma constante na Europa
primeira rua do Recife.
Moderna e em suas respectivas colônias. Jean Delumeau abre seu
clássico História do Medo no Ocidente descrevendo uma outra cidade
moderna, o que nos dá uma noção do medo cotidiano de ataques,

Ces collines que j’avais déjà saluée tão comuns por séculos a fio(!):

à Pernambuco comme une No século XVI, não se entrava facilmente à noite em Augsburgo.
apparition de la terre promise, je Montaigne, que visita a cidade em 1580, maravilha-se diante da “porta
falsa” que, graças a dois guardas, controla os viajantes que chegam
les retrouvai à Bahia e plus tard à depois do pôr-do-sol. Estes vão de encontro, em primeiro lugar, a uma
Rio de Janeiro, toujours inondées poterna de ferro que o primeiro guarda, cujo quarto está situado a
mais de cem passos dali, abre de seu alojamento graças a uma corrente
de lumières et des parfums. de ferro que, “por um caminho muito longo e cheio de curva”, puxa
uma peça também de ferro. Passado este obstáculo, a porta volta a
fechar-se bruscamente. O visitante transpõe em seguida uma ponte
Essas colinas que eu já havia coberta (...) e chega a uma pequena praça onde declina sua identidade
saudado em Pernambuco como e o endereço onde ficará alojado (...). O guarda, com um toque de
sineta, adverte então um companheiro, que aciona uma mola situada
uma aparição da terra prometida, numa galeria próxima ao seu quarto. (...) Para além da ponte levadiça
eu as encontrei na Bahia e mais abre-se uma grande porta (...). Através dela o estrangeiro tem acesso
a uma sala onde se vê encerrado, só e sem luz. Mas uma outra porta
tarde no Rio de Janeiro, sempre (...) permite-lhe entrar numa segunda sala onde “há luz” e lá descobre
inundadas de luzes e de perfumes. um vaso de bronze que pende de uma corrente. Ele aí deposita o dinheiro
de sua passagem. O (segundo) porteiro puxa a corrente, recolhe o vaso,
verifica a soma depositada pelo visitante. Se não está de acordo com a
Adolphe d’Assier, viajante francês, 1867. tarifa fixada, ele o deixará “de molho até o dia seguinte”. (...) Detalhe
ExposiçãoLe Brésil Contemporain, Paris,
importante (...): sob as salas e as portas, existe “um grande porão
2005.
para alojar” quinhentos homens de armas com seus cavalos, no caso
de qualquer eventualidade. Se for o caso, são enviados para a guerra
“sem a chancela do povo da cidade”.
Delumeau, 1997, ps. 11 e 12.

O ambiente de medo do ataque ou cerco não era menor nas


colônias portuguesas, mas não havia recursos para a construção
de estruturas tão portentosas quanto a de Augsburgo. A
fragilidade do Recife ficou patente na invasão holandesa, bem
como o medo da população pernambucana, que, em parte, fugiu
das áreas urbanas. Olinda, aliás, não esqueçamos, acabou
incendiada pelos soldados da Companhia.
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Waerdenburch não teve dúvidas quando do desembarque dos soldados


de Oquendo: em 24 de novembro de 1631 evacuou a cidade de Olinda
e, em seguida, incendiou-a.

Olinda transformou-se em um símbolo para os moradores da terra:


símbolo de resistência aos invasores. Apesar de, mais tarde, ter se
OLINDA, CIDADE ETERNA
Letra e música de Capiba
transformado, o Recife, no centro comercial, e a Ilha de Antônio Vaz,
no local de residência dos burgueses ricos e do Conde de Nassau,
sente-se o desejo dos pernambucanos de fazer ressurgir a sua velha
capital, reedificá-la e restituir-lhe o antigo esplendor. Verdade seja
dita que não o conseguiram, mas tentaram-no. Mais tarde foram
Olinda, cidade heróica,
impedidos de reconstruir em Olinda por um edital do conde. Monumento secular da velha geração.
Gonsalves de Mello, 2001, pp. 52 e 53. Olinda, serás eterna
E eternamente viverás
Para ter mais segurança e prosperidade, as cidades No meu coração.
iniciavam uma era da racionalização do espaço e do fluxo de
pessoas e mercadorias. Fortalecer melhor e organizar o próprio Quisera ver-te no passado, Olinda!
Recife foram noções que os holandeses implantaram. Foi durante Quando ainda eras cheia de ilusões.
o domínio holandês, principalmente com o Conde Maurício de
Para contemplar a tua paisagem,
Nassau Siegen, que se implantou a lógica renascentista da
Para olhar teus mares,
urbanidade nos conceitos de quadra, de quarteirão, de ruas
Ver teus coqueirais,
simétricas, prédios para os pobres, para os órfãos, mercados
Pular na rua com a meninada,
públicos, etc. Sob influência do Renascimento, as cidades Brincar de roda e de cirandinha,
flamengas deveriam se expandir em forma de estrela ou de um Depois subir a ladeira do mosteiro,
tabuleiro de xadrez. O Recife foi planejado para se assemelhar a Rezar a Ave-maria e nada mais.
Amsterdã, voltada para a burguesia. A este propósito, convém
não confundir a colonização holandesa com o episódio “Maurício Olinda eterna!
de Nassau”. Assim como Duarte Coelho, Nassau preferia Olinda eterna!
colonizar o Nordeste, em vez de simplesmente ocupá-lo
militarmente e cuidar do comércio de açúcar — como, a propósito,
fizeram seus sucessores no governo.
A invasão holandesa causou o primeiro boom imobiliário do
Recife: a ponta do istmo, onde nasceu a cidade (atual ilha do
Recife), não tinha espaço — nem físico nem sociocultural — para
tantos funcionários da Companhia das Índias Ocidentais e seus
militares. Muitos deles tinham um estilo de vida calvinista bastante
austero e ascético, incompatível com o ambiente portuário
relativamente “livre” do pequeno Recife. Surgiram, então, tentando
mesmo assim acomodá-los, casas construídas umas sobre as
outras, em andares. Eram muito estreitas na frente e compridas
para dentro. Foram os primeiros sobrados do Recife (os famosos
“sobrados magros”, “compridos, escuros” que, segundo Capiba,
na música Recife, Cidade Lendária, “dá gosto de ver”). Há prédios
que ainda lembram um pouco esse estilo urbano geral nos Vista panorâmica de Olinda.

arredores do Marco Zero, na Rua do Bom Jesus, por exemplo.


Talvez os últimos sobrados e casas de aspecto holandês que possam
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Olinda (à esquerda), de inspiração


urbanística portuguesa, com seu
traçado de ruas estreitas e tortuosas;
e o Recife “flamengo”, de ruas
ortogonais, a exemplo do conjunto
formado pela Rua do Imperador e
suas transversais.
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ter sobrevivido à Restauração Pernambucana tenham sido


destruídos no início do século XX, quando o porto passou por
enorme reforma urbana.
As edificações dos primórdios da capital pernambucana
mostraram-se insalubres, mal-ventiladas e apertadas. Adoecia-se muito
no Recife. O preço da moradia subia assustadora e constantemente
já naquele período, e bairros mais distantes, de casas mais simples
e baratas, feitas de madeira, muitas vezes pré-fabricadas na Europa,
apareceram. O negócio do fazer imobiliário já tinha então, como
hoje, duas vertentes básicas: uma voltada para os homens de posse,
funcionários e homens livres de renda razoável, e outra voltada
para moradias populares. De madeira, em geral.
Os flamengos de menor renda iam morar naquilo que os
portugueses de Olinda consideravam a mais indigna das
residências: “cousa parca”. Casa decente, “de pedra e cal”, era RECIFE, CIDADE LENDÁRIA
obra portuguesa, com certeza, e de qualidade superior. Até hoje Letra e música de Capiba

subsiste, no estilo arquitetônico nordestino, a predileção por pedras


nobres, cerâmicas de diversos tipos revestindo o chão e, onde
Eu ando pelo Recife
possível, as paredes. Soleiras de porta e parapeitos de janelas em
Noites sem fim.
pedra são considerados mais elegantes e ricos. Casa distinta
Percorro bairros distantes sempre a escutar
deveria ter seu telhado em quatro águas, e não em duas, como “Luanda, Luanda, onde estás?”
faziam os holandeses. — É a alma de preto a penar.
Edificações em madeira, no Nordeste, precisam enfrentar
este outro adversário: a lembrança histórica que associou o uso Recife, cidade lendária, de pretas de engenho
da tábua à pobreza, seja de parte dos invasores estrangeiros ou
Cheirando a bangüê.
Recife dos velhos sobrados
da maioria da gente já estabelecida na terra.
Compridos, escuros,
Nassau implantou o primeiro serviço de bombeiros, combateu Faz gosto de se ver!
as poças de lama e a água parada nas ruas — obrigando os Recife, teus lindos jardins
moradores a espalharem areia sobre elas —, além de proibir Recebem a brisa que vem do alto-mar.
jogar lixo nas vias públicas: ele deveria ser depositado nas praias Recife, teu céu tão bonito
(lugar que não interessava a ninguém na época). Tem noites de lua
Pra gente cantar.
Recife de cantadores
Vivendo da glória em pleno terreiro,
Recife de maracatus
Dos tempos distantes de Pedro I,
Responde ao que vou perguntar:
O que é feito dos teus lampiões
Onde, outrora, boêmios cantavam
Suas lindas canções?

Sobrados magros,
no Bairro do
Recife.
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AS LEIS DE NASSAU: ADMITE-SE MUITO, DOIS MUNDOS,


EXIGE-SE MUITO, DESOBEDECE-SE OUTRO TANTO DUAS ÉTICAS

N assau trouxe um constrangimento para os pernambucanos:


havia o costume de evitar prisão e cumprimento de sentenças
judiciais através da entrega de dinheiro às autoridades. Quem
Q uando os homens da Companhia pisaram o solo
pernambucano, trouxeram consigo para os trópicos a
vivência de um dos conflitos religiosos mais profundos da
podia pagar escapava da Justiça. O Conde passou a exigir o Civilização Ocidental. Trata-se da que opôs a Ética Reformada
cumprimento da lei, para vexame dos portugueses. Protestante à tradicional Ética Católica, agora também (contra)
Maurício também permitiu que judeus tivessem sinagoga — reformada. Esse conflito cultural é tão importante quanto as
embora o culto devesse acontecer de portas fechadas, como já disputas pelo “ouro branco” que brota dos canaviais. Nas ruas do
estavam avisados os católicos quanto às suas missas. Mas ninguém Recife, duas formas de civilizar o mundo se chocaram entre
obedecia direito a essas ordens. Era proibido casar judeu com tentativas de convívio e encarniçadas lutas sangrentas. A vitória
católico, e, se alguém de sangue judeu tivesse filhos com um cristão, portuguesa fez o Brasil como é hoje.
a criança deveria ser educada no cristianismo. Padres católicos não Hoje em dia, pelo Recife afora, é muito comum ouvir a
poderiam celebrar casamentos. Só calvinistas. Já nos engenhos, no afirmativa: “Se os holandeses tivessem ficado, isso aqui era outra
momento da botada da cana, apareciam os padres católicos para coisa...”. Nem sempre o interlocutor sabe que coisa seria essa.
benzer a produção. Era um escândalo, uma reclamação só. Pior Na verdade, ninguém pode saber com exatidão, pois a História
ficava a situação nos dias de procissão católica: eram várias centenas não se escreve na condicional.
de católicos desfilando diante de algumas dezenas de funcionários Foi no consagrado A Ética Protestante e o Espírito do
e militares protestantes. A propalada liberdade de culto do período Capitalismo que Max Weber (2004) colocou a questão da relação
holandês nem sempre foi fácil nem simples. entre religião e negócios nos primórdios do que ele conceituou
Outro incômodo por ele causado foi a exigência de plantar como o Capitalismo Moderno. Para ele, a chamada Reforma
mandioca para alimentação de todos no engenho — incluindo os Protestante criou um conjunto ascético de princípios que favoreciam
escravos —, com excedente previsto para alimentar a população e incentivavam esse capitalismo. Não tanto com os luteranos,
do Recife. Os senhores de engenho reclamavam que assim não mesmo levando em conta seu conceito teológico de vocação, muito
haveria escravo para cuidar da cana; sempre estava uma porção mais com os calvinistas (como muitos dos que vieram viver no
deles ocupada em fazer covas de mandioca. A cana apodreceria no Pernambuco sob domínio holandês) é que a Reforma associou-se
eito, e a Companhia não pagava com dinheiro pela farinha que ia ao capital.
para o Recife, mas com títulos de crédito seus, que poderiam perder Calvino “governou o mundo” com o poder do Consistório,
o valor. Bom para eles, ruim para o produtor. E a temperatura órgão por ele criado para disciplinar e comandar rigorosamente a
social subia...
vida dos habitantes de Genebra. O calvinismo radicalizou — no
Reconheça-se que o Nordeste colonial quase sempre padeceu sentido de ir às raízes — a Reforma enquanto um conjunto de
de um desabastecimento crônico de alimentos. O que se comia ações voltado para o mundo. O crente, considerado pecador, cujo
geralmente vinha de Portugal. Quase toda a terra fértil nordestina saber deve provir do conhecimento da sabedoria de Deus, admitia
era usada para plantar cana. O norte de Alagoas tinha áreas de sua dupla predestinação: o homem é salvo ou condenado
exceção, com plantio de hortaliças, frutas e existência de rebanhos independentemente de suas obras, pois já nasce predestinado.
próximos do litoral. Nassau almejava garantir o envio dessa Contudo, o sucesso no trabalho e nos negócios é um indicador
produção para o Recife. A fome era um fantasma em Pernambuco, provável de sua boa predestinação, uma graça divina. Essa ética
devido ao aproveitamento irracional das terras. Mas, principalmente dura voltava-se para o mundo vivido (lebenswelt) e incluía o respeito
na Nova Holanda, ela ainda costumava fazer vítimas às dezenas. ao trabalho duro, à frugalidade (impedir demonstrações de
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ostentação e luxúria), à poupança de recursos excedentes com


(re)investimento apenas no negócio e ao pagamento em dia do
crédito recebido. O famoso Benjamin Franklin resumiu bem a ética
e o “espírito” capitalista que inspirava a Reforma, que era a mesma
dos holandeses que habitaram Pernambuco e o governaram na
primeira metade do século XVII:

Lembra-te de que tempo é dinheiro (...).

Lembra-te de que o dinheiro é procriador por natureza e fértil. (...)

Lembra-te que — como diz o ditado — um bom pagador é dono da


bolsa alheia. (...)

Guarda-te de pensar que tudo que possuis é propriedade tua e de


viver como se fosse. Nessa ilusão, incorre muita gente que tem crédito.
(...)

Quem perde cinco xelins não perde só essa quantia, mas tudo o que
com ela poderia ganhar aplicando-a em negócios — o que, ao atingir
o jovem uma certa idade, daria uma soma bem considerável.
Weber, 2004, pp. 43 e 44.

Essa visão de mundo esteve presente na cobrança das


dívidas — feita de maneira mais contundente e menos hábil no
período pós-Nassau — e na supressão do pagamento para escapar
de penas por crimes cometidos. Até quando os holandeses
incendiaram Olinda sem ver qualquer profanação a Deus na
destruição dos templos, como ressalta o cronista Gaspar Barléu
(1974), o mesmo conflito cultural religioso se mostrou em sua
dimensão cotidiana. Esses dois mundos eram inconciliáveis. Foi
a ação abnegada de Nassau — que veio a Pernambuco para
afastar-se da disputa pela primogenitura com seu meio-irmão
João Siegen, que o derrotara — que pode levar a pensar que o
domínio holandês foi uma era maravilhosa de prosperidade e
harmonia. De qualquer forma, a convivência com homens da
Reforma serviu para marcar a cultura pernambucana do fazer
com a relativa rigidez contábil e orçamentária dos funcionários
da Companhia.
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