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64| PARTE II | O RUGIDO DO LEÃO DO NORTE | A IDENTIDADE CULTURAL

VI dos embates culturais do início do século XXI e a reafirmação


das unidades culturais locais frente à globalização da Nova
A IDENTIDADE CULTURAL Economia representam um ótimo momento para engajar a cultura
nos projetos novos da nação pernambucana.
Talvez já tenha se tornado lugar-comum referir-se à importância

O “VELHO” E O “NOVO” NA CULTURA da (re)afirmação da identidade cultural na globalização. A variável


de mercado mais evidente nesse caso é o conjunto de produtos
PERNAMBUCANA
culturais que resulta do tratamento correto dos símbolos e
manifestações do imaginário de um povo. Isso é particularmente

E m Pernambuco, o convívio social foi marcado pelos embates


culturais desde cedo. As disputas entre a cultura colonizadora
católica — que chegou antes e hegemonizou a terra — e a cultura
verdade em Pernambuco, um Estado que tem na diversidade e na
densidade de sua cultura o maior diferencial competitivo.
O interesse dos pernambucanos de hoje por sua cultura e
puritana protestante dos invasores holandeses foi o episódio
por sua identidade tem história. Nem sempre, todavia, foi assim.
mais explícito desses embates nas primeiras décadas. Tal
A cultura local já foi repudiada e até perseguida em algumas
vivência, única no Brasil com esse cenário, abriria caminho para
circunstâncias, em outras épocas.
uma certa “pluralidade” cultural (auto)imposta. Também com a
Numa abordagem integrada, a identidade cultural poderia
forte contribuição das expressões culturais trazidas pelos escravos
parecer redundante, pois “tudo” pode ser considerado cultura,
negros e pelo interesse pelas letras de fidalgos e burgueses, que
mas é o aspecto da cultura voltado para a produção de saberes
queriam, vaidosamente, ver seus filhos mais ilustrados, o fato
que interessa. A dimensão antropológica da cultura tem menos
é que a nossa identidade cultural surgiu com vivências que
relevo para o entendimento da tese central do que as formas de
marcam sua singularidade anterior graças ao início pioneiro da
expressão desta mesma cultura na arte, na política, no
colonização.
empreendedorismo e no pensamento filosófico ou teológico.
Nascido numa época também marcada pela gradual
No âmbito do sentimento de decadência e até falência do
“etiquetização” das elites européias, Pernambuco viu a “nobreza
Estado — discurso que foi tão comum quanto enganoso —, a
da terra” adotar aos poucos comportamentos similares de
cultura às vezes ainda parece vergonhosa e cabisbaixa. Foi
distanciamento do “povo”. Comportamentos cuidadosamente somente no início do século XX que os chamados homens cultos de
medidos na formalização do andar, do comer, do falar e de quase Pernambuco, sua elite letrada, consolidaram as bases de uma
todas as formas de ser em sociedade foram alegremente adotados. atividade acadêmica capaz de difundir um orgulho identitário, ao
A europeização das elites passou a ser um dos seus traços naturais contrário do sentimento de vergonha às vezes escondido pelos
constitutivos, mas tem hoje que dividir o espaço com o sentimento modismos estrangeiros de antes. Este “orgulho de ser...”, como é
de pernambucanidade. Nascido do interesse das elites pela “cultura conhecido hoje, é jovem de um século. O brado pernambucano das
do povo”, esse sentimento também surgiu como imitação de um revoluções do século XIX, de 1817 a 1848, era político, não dando
hábito dos “homens cultos” desde o final do século XVIII: descobrir maior destaque às expressões artísticas e aos valores culturais
o povo para entender a identidade nacional. do povo — exceção ao pensamento político, claro! —, o que é
A consolidação dos Estados Nacionais europeus compreensível nas características sociais da época.
acompanhou esse reconhecimento identitário. Ou seja, há uma Esse tem sido, há mais de século, um processo de altos e
relação entre o surgimento e auto-reconhecimento das identidades baixos, no qual o conhecimento e a vivência recíproca de valores
nacionais e a valorização do popular. Assim sendo, todo projeto culturais externos pode e deve ser muito positivo para as trocas
político passa hoje — principalmente depois que o modernismo culturais em mão dupla. Ou seja, o estrangeiro que influencia
se apropriou dessas formas identitárias — pelos usos e pelo deve se deixar influenciar.
conhecimento da identidade cultural de uma sociedade. A riqueza cultural de hoje deve muito, no passado mais
Com Pernambuco, não poderia ser diferente. O novo formato recente, ao movimento abolicionista, que trouxe para as ruas do
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Recife o embate de idéias e o questionamento da ordem social É possível que a bela poesia de Aboab tenha convivido
do século XIX. No Teatro de Santa Isabel, à época, tanto as com o estilo faceiro meio blasfêmico da cantiga popular Bendito
disputas romântico-poéticas quanto os debates político-verbais do Menino Jesus, de uso imemorial no Nordeste e recolhida pelo
serviam para formar novas opiniões e para abrir espaço para contador de histórias Fernando Lébeis em Brejo da Madre de
novas idéias. Com esses antepassados, os homens de letras e de Deus, Pernambuco, no início dos anos 60 do século passado:
artes do primeiro terço do século XX decantavam todos os temas.
Os poetas Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo, o compositor Estava Maria
Na beira do rio,
Capiba, o maestro Nelson Ferreira, o jornalista Mário Melo e o
Lavando os paninhos
historiador Oliveira Lima, só para citar alguns, são todos dessa De seu bento fio.
fase. Viriam também, depois: Mauro Mota, João Cabral de Melo,
Maria lavava,
Carlos Pena Filho e Ascenso Ferreira, na poesia. Vicente do Rego José estendia,
Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e Francisco Brennand, Chorava o menino
Do frio que sentia.
nas artes plásticas; Luiz Gonzaga, na música; e Ariano Suassuna
(paraibano que adotou Pernambuco), no teatro. Chora, meu menino.
Chora, meus amô,
No início do século XX, porém, o mais importante de todos Que a faca que corta,
no (re)conhecimento da nossa identidade foi Gilberto Freyre, Dá golpe sem dô.
pernambucano que foi para a Universidade de Columbia, em Foste bem-nascido
Nova York, obter o título de Mestre, mas elegeu o povo de sua E tão bem-criado,
Fio de uma rosa
terra como principal objeto de estudo. Sua grande qualidade foi
E de um cravo encarnado.
dar atenção à singular formação social do trópico brasileiro, o
que lhe permitiu uma arrojada produção acadêmica.
Os dois poemas bem representam a diversidade cultural
do Pernambuco colonial. Herdeiros dos embates culturais da
A ORIGEM DA IDENTIDADE PERNAMBUCANA: Europa, os colonizadores, portugueses ou não, vivenciaram o
POPULAR X ERUDITO choque entre o popular e o erudito. Somado a esse embate
importado, os papéis culturais de negros e índios foram
acrescentados a uma complexa formação social.

Q uando o erudito judeu Isaac Aboab da Fonseca, rabino,


escreveu os versos seguintes, no Recife de 1646, talvez
não imaginasse o silêncio multissecular que os embates religiosos
Seria simplificador afirmar que a Cultura Popular foi uma
invenção dos eruditos para que se fizesse uma distinção cultural,
imporiam sobre sua obra. Era a fase do período holandês, e a além da material, entre pessoas de camadas sociais diferentes. O
sinagoga Kahal Kadosh Zur Israel (Rocha de Israel) gozava de fato é que o período histórico que antecede em algumas décadas o
liberdade de culto. Renascimento Cultural moderno do século XVI já vinha cindindo a
tradicional cultura medieval, que era mais homogênea, sem
Lembrou-se Deus do rei de Portugal, cuja ira nos aterrorizou. distinguir tão nitidamente os “ricos” dos “pobres” por seus hábitos,
Que Deus se abata sobre seus nobres e chefes do exército.
trajes ou erudição. É Peter Burke que descreve esse processo:
Ele tramou aniquilar os sobreviventes do meu povo e queimar os
meus mais queridos.
Enviou regimentos em perseguição aos meus. Para os nobres e a burguesia, a Reforma foi menos importante do
Seu coração é pleno de maldade; (...) que a Renascença. Os nobres vinham adotando maneiras mais
No nono dia do quarto mês, dois navios dos Países Baixos ‘polidas’, um estilo novo e mais autoconsciente de comportamento,
trouxeram a salvação para o meu povo.1 modelado por livros de boas maneiras, entre os quais o mais famoso
era o Courtier de Castiglione. Os nobres estavam aprendendo a exercer
o autocontrole, a se comportar com uma indiferença estudada, a
1
Extraído do CD Teatro do Descobrimento. Poema traduzido por Maria do Carmo Tavares de cultivar um senso de estilo e andar com um modo altivo, como se
Miranda. Pesquisa: Ana Maria Kieffer e David Kullock. Recriação: David Kullock, que
interpreta a obra no CD.
estivessem numa dança formal. Os livros de dança também se
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multiplicaram, e a dança da corte se isolou da dança do campo. O desafio está em vetorizar essa plêiade de expressões
Os nobres deixaram de comer em grandes salas com seus dependentes
culturais (tanto populares quanto eruditas) em benefício do
e retiraram-se para salas de jantar separadas (para não falar das
salas de visitas, drawing-rooms; salas de recolhimento, isto é, desenvolvimento. A cultura é estratégica para Pernambuco. E o
withdrawing-rooms). Deixaram de lutar corpo a corpo com seus é bem mais que para outras regiões mais ricas do País. Nesse
camponeses, como costumavam fazer na Lombardia, e pararam de
caldo de valores culturais, ocorreu o último grande episódio de
matar touros em público, como costumavam fazer na Espanha. O
nobre aprendeu a falar e escrever “corretamente”, segundo regras disputas culturais em Pernambuco.
formais, e a evitar os termos técnicos e o dialeto usados pelos artesãos
e camponeses.
Burke, 1978, p. 292. NOS EMBATES DA CULTURA POPULAR:
MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR E
A nobreza precisava substituir seu antigo papel militar por MOVIMENTO ARMORIAL
outras maneiras de justificar seus privilégios; precisava patentear

O
sua diferença em relação aos outros. Funcionários públicos, s mais jovens, que viram Ariano Suassuna sugerir que
advogados e comerciantes imitam esse trajeto para impedir que Chico Science poderia se chamar Chico Ciência, podem
suas imagens sejam confundidas com a da plebe (Burke, 1978, imaginar um velho conflito. Os mais velhos talvez jamais tenham
p. 292). Toda essa separação resulta num antagonismo velado percebido que se deu no Recife um dos últimos episódios da luta
entre erudito e popular, transformando, afinal, a cultura popular entre o Popular e o Erudito iniciada na Europa do final do século
numa entidade aparentemente autônoma em relação à cultura XV. E mais: que essa luta ainda não tem (nem precisa ter)
dominante. A aparente autonomia não favorecia os membros da ganhadores. Tratou-se, enfim — vê-se isso hoje, com a distância
elite nem lhes interessava. que só o tempo permite —, de uma definição da identidade
Essa divisão sociocultural conflituosa desembarcou em pernambucana como composta de eruditos e populares.
Pernambuco com os colonos portugueses. O próprio caráter Duas concepções surgiram entre os anos 60 e 70 do século
nacional brasileiro foi definido, ao longo dos séculos que se XX. Ambas procuravam caminhos para atuar com a cultura popular
seguiriam, em torno de expressões populares da cultura, já que de maneira a predispor o povo a conquistas sociais reais.
as elites nacionais tenderam sempre a imitar esta ou aquela O Movimento de Cultura Popular se fortaleceu no breve
nação hegemônica que estivesse, ao mesmo tempo, na moda. primeiro governo estadual de Miguel Arraes e, antes, na sua
Fizeram isso muito mais que se voltar para o próprio país. O administração à frente da Prefeitura do Recife. O dirigente do
povo, mais arraigado ou preso a um estilo de vida cíclico, talvez MCP, Germano Coelho, explicou assim o movimento:
por ter sido quase sempre marginalizado das principais benesses
materiais e culturais do progresso econômico, ditou, sem o saber, O Movimento de Cultura Popular não é apenas uma arma de
a cara do País, única singularidade possível diante de uma classe combate contra o analfabetismo. Não é somente um meio de
educação integral do homem, como pessoa e como membro da
dominante pronta a aderir às modas da Corte, mesmo que tal
comunidade. Nem é só, tampouco, uma instituição destinada a
moda possa ter sido provocada por piolhos, como o corte curto promover a melhoria das condições materiais do povo, através da
de cabelo das nobres portuguesas que desembarcaram no Rio formação profissional e da educação cooperativista e sindical. É
fugidas da invasão napoleônica. Por isso, já foi comum se afirmar muito mais e, acima de tudo, instrumento de elevação do nível
cultural do povo.
que, no Brasil, o nacional é o popular. Exageros à parte, o fato Germano Coelho, 1962, IN Maurício, 1978, p. 101.2
é que tudo que faz os brasileiros serem brasileiros tem “cheiro
de povo”: preferências musicais, festas de rua, artes plásticas
(com exceções modernas), literatura e gastronomia, esta última 2
Trecho da apresentação feita por Germano Coelho para a peça Julgamento em Novo Sol,
tão apreciada pelos que no Brasil aportam. encenada em 1962 pelo Teatro de Cultura do MCP.
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Já o Movimento Armorial, sob a orientação do seu fundador,


Ariano Suassuna, atua encarando o Popular como uma fonte
para a compreensão das nossas raízes:

As correntes mais ‘estrangeiras’ e ‘cosmopolitas’ querem obrigar os


brasileiros a se envergonharem de suas peculiaridades, de suas
singularidades. Só o Povo é que mantém, até os dias de hoje, essas
características brasileiras, que nós, atualmente, procuramos defender
e recriar, contra a corrente ‘europeizante e cosmopolita’, o que fazemos
procurando ligar nosso trabalho de escritores e artistas criadores à
Arte, à Literatura e aos Espetáculos populares. Nenhum de nós
pretende ser ‘primitivo’: o que procuramos é mergulhar nessa fonte
inesgotável, em busca de raízes, para unir nosso trabalho aos anseios
e ao espírito do nosso Povo, fazendo o nosso sangue pulsar em
consonância com o dele e revigorando nosso pulso ao contacto com
aquilo que tais artes e espetáculos têm de festa — entendida no
sentido latino-americano de celebração e sagração dionisíaca do
Mundo.
Suassuna, 1974, p. 68 IN Maurício, 1978, p. 104.

O conflito cultural serviu para depurar as manifestações e


as intenções, mas está esgotado. O desafio atual está em dar
consonância ao diálogo da cultura do povo pernambucano com
o mercado. Somente vencendo definitivamente a barreira do
produto cultural é possível massificar as novas ilações que
chegam de tantos lados: do Movimento Mangue, do novo cinema
Made in Pernambuco, do rock de Pernambuco e das tradicionais
manifestações do frevo, do baião, dos bonequeiros — de Caruaru/
Vitalino ou de Olinda/Carnaval —, da cozinha pernambucana —
cada vez mais empresariada e empresariável — e da
impressionante proliferação de arte e artistas de tantas cidades
pernambucanas.
Fotos do tradicional e centenário
Restaurante Leite (acima), o mais
antigo do Recife, na Praça
Joaquim Nabuco, Centro, e do
Restaurante Oficina do Sabor, em
Olinda, representante da nova
cozinha pernambucana.
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