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Recife o embate de idéias e o questionamento da ordem social É possível que a bela poesia de Aboab tenha convivido
do século XIX. No Teatro de Santa Isabel, à época, tanto as com o estilo faceiro meio blasfêmico da cantiga popular Bendito
disputas romântico-poéticas quanto os debates político-verbais do Menino Jesus, de uso imemorial no Nordeste e recolhida pelo
serviam para formar novas opiniões e para abrir espaço para contador de histórias Fernando Lébeis em Brejo da Madre de
novas idéias. Com esses antepassados, os homens de letras e de Deus, Pernambuco, no início dos anos 60 do século passado:
artes do primeiro terço do século XX decantavam todos os temas.
Os poetas Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo, o compositor Estava Maria
Na beira do rio,
Capiba, o maestro Nelson Ferreira, o jornalista Mário Melo e o
Lavando os paninhos
historiador Oliveira Lima, só para citar alguns, são todos dessa De seu bento fio.
fase. Viriam também, depois: Mauro Mota, João Cabral de Melo,
Maria lavava,
Carlos Pena Filho e Ascenso Ferreira, na poesia. Vicente do Rego José estendia,
Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e Francisco Brennand, Chorava o menino
Do frio que sentia.
nas artes plásticas; Luiz Gonzaga, na música; e Ariano Suassuna
(paraibano que adotou Pernambuco), no teatro. Chora, meu menino.
Chora, meus amô,
No início do século XX, porém, o mais importante de todos Que a faca que corta,
no (re)conhecimento da nossa identidade foi Gilberto Freyre, Dá golpe sem dô.
pernambucano que foi para a Universidade de Columbia, em Foste bem-nascido
Nova York, obter o título de Mestre, mas elegeu o povo de sua E tão bem-criado,
Fio de uma rosa
terra como principal objeto de estudo. Sua grande qualidade foi
E de um cravo encarnado.
dar atenção à singular formação social do trópico brasileiro, o
que lhe permitiu uma arrojada produção acadêmica.
Os dois poemas bem representam a diversidade cultural
do Pernambuco colonial. Herdeiros dos embates culturais da
A ORIGEM DA IDENTIDADE PERNAMBUCANA: Europa, os colonizadores, portugueses ou não, vivenciaram o
POPULAR X ERUDITO choque entre o popular e o erudito. Somado a esse embate
importado, os papéis culturais de negros e índios foram
acrescentados a uma complexa formação social.
multiplicaram, e a dança da corte se isolou da dança do campo. O desafio está em vetorizar essa plêiade de expressões
Os nobres deixaram de comer em grandes salas com seus dependentes
culturais (tanto populares quanto eruditas) em benefício do
e retiraram-se para salas de jantar separadas (para não falar das
salas de visitas, drawing-rooms; salas de recolhimento, isto é, desenvolvimento. A cultura é estratégica para Pernambuco. E o
withdrawing-rooms). Deixaram de lutar corpo a corpo com seus é bem mais que para outras regiões mais ricas do País. Nesse
camponeses, como costumavam fazer na Lombardia, e pararam de
caldo de valores culturais, ocorreu o último grande episódio de
matar touros em público, como costumavam fazer na Espanha. O
nobre aprendeu a falar e escrever “corretamente”, segundo regras disputas culturais em Pernambuco.
formais, e a evitar os termos técnicos e o dialeto usados pelos artesãos
e camponeses.
Burke, 1978, p. 292. NOS EMBATES DA CULTURA POPULAR:
MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR E
A nobreza precisava substituir seu antigo papel militar por MOVIMENTO ARMORIAL
outras maneiras de justificar seus privilégios; precisava patentear
O
sua diferença em relação aos outros. Funcionários públicos, s mais jovens, que viram Ariano Suassuna sugerir que
advogados e comerciantes imitam esse trajeto para impedir que Chico Science poderia se chamar Chico Ciência, podem
suas imagens sejam confundidas com a da plebe (Burke, 1978, imaginar um velho conflito. Os mais velhos talvez jamais tenham
p. 292). Toda essa separação resulta num antagonismo velado percebido que se deu no Recife um dos últimos episódios da luta
entre erudito e popular, transformando, afinal, a cultura popular entre o Popular e o Erudito iniciada na Europa do final do século
numa entidade aparentemente autônoma em relação à cultura XV. E mais: que essa luta ainda não tem (nem precisa ter)
dominante. A aparente autonomia não favorecia os membros da ganhadores. Tratou-se, enfim — vê-se isso hoje, com a distância
elite nem lhes interessava. que só o tempo permite —, de uma definição da identidade
Essa divisão sociocultural conflituosa desembarcou em pernambucana como composta de eruditos e populares.
Pernambuco com os colonos portugueses. O próprio caráter Duas concepções surgiram entre os anos 60 e 70 do século
nacional brasileiro foi definido, ao longo dos séculos que se XX. Ambas procuravam caminhos para atuar com a cultura popular
seguiriam, em torno de expressões populares da cultura, já que de maneira a predispor o povo a conquistas sociais reais.
as elites nacionais tenderam sempre a imitar esta ou aquela O Movimento de Cultura Popular se fortaleceu no breve
nação hegemônica que estivesse, ao mesmo tempo, na moda. primeiro governo estadual de Miguel Arraes e, antes, na sua
Fizeram isso muito mais que se voltar para o próprio país. O administração à frente da Prefeitura do Recife. O dirigente do
povo, mais arraigado ou preso a um estilo de vida cíclico, talvez MCP, Germano Coelho, explicou assim o movimento:
por ter sido quase sempre marginalizado das principais benesses
materiais e culturais do progresso econômico, ditou, sem o saber, O Movimento de Cultura Popular não é apenas uma arma de
a cara do País, única singularidade possível diante de uma classe combate contra o analfabetismo. Não é somente um meio de
educação integral do homem, como pessoa e como membro da
dominante pronta a aderir às modas da Corte, mesmo que tal
comunidade. Nem é só, tampouco, uma instituição destinada a
moda possa ter sido provocada por piolhos, como o corte curto promover a melhoria das condições materiais do povo, através da
de cabelo das nobres portuguesas que desembarcaram no Rio formação profissional e da educação cooperativista e sindical. É
fugidas da invasão napoleônica. Por isso, já foi comum se afirmar muito mais e, acima de tudo, instrumento de elevação do nível
cultural do povo.
que, no Brasil, o nacional é o popular. Exageros à parte, o fato Germano Coelho, 1962, IN Maurício, 1978, p. 101.2
é que tudo que faz os brasileiros serem brasileiros tem “cheiro
de povo”: preferências musicais, festas de rua, artes plásticas
(com exceções modernas), literatura e gastronomia, esta última 2
Trecho da apresentação feita por Germano Coelho para a peça Julgamento em Novo Sol,
tão apreciada pelos que no Brasil aportam. encenada em 1962 pelo Teatro de Cultura do MCP.
PARTE II | O RUGIDO DO LEÃO DO NORTE | A IDENTIDADE CULTURAL |67