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SEGUNDA PARTE

O RUGIDO DO LEÃO DO NORTE


IV. DO ORGULHO DA RESTAURAÇÃO ÀS REVOLUÇÕES LIBERTÁRIAS
V. A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE
VI. A IDENTIDADE CULTURAL
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IV
DO ORGULHO DA RESTAURAÇÃO
ÀS REVOLUÇÕES LIBERTÁRIAS

EXPERIÊNCIA HISTÓRICA E IDENTIDADE

A o longo da vida, vivenciamos determinadas experiências


que preferimos esquecer e outras que fazemos questão de
lembrar. É a partir desse jogo de lembrança e esquecimento —
componentes daquilo que chamamos de “memória” — que a
nossa identidade vai sendo construída. Grosso modo, o mesmo
pode ser dito em relação às sociedades humanas, que, ao longo
de sua experiência histórica, fazem de determinados momentos
dessa experiência os “marcos fundadores” daquilo que são.
Momentos que, como tais, são coletivamente lembrados ou, em
português mais claro, “comemorados”.
Na história de Pernambuco, um dos momentos fundantes
de sua identidade é o da Restauração Pernambucana (1645-1654),
durante o período de finalização e logo após a dominação
holandesa. Isso pode ser facilmente constatado num passeio pela
cidade do Recife, onde os nomes de João Fernandes Vieira, André
Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Felipe Camarão — a chamada
“tetrarquia dos restauradores” — surgem em monumentos, ruas
e travessas, para citar apenas alguns exemplos. Nesse mesmo
passeio, encontraríamos ainda referências aos “Guararapes” e,
em tempos passados, às “Trincheiras” e à própria “Restauração”.
Essa memória da Restauração tornou-se, por meio de seus
narradores, o alicerce da identidade pernambucana, dando origem
ao nativismo. O movimento restaurador de Pernambuco aos seus
“verdadeiros donos”, segundo esses narradores, forjou o ser
pernambucano, imprimindo-lhe no caráter o amor à “pátria”
(conceito que, no Brasil Colônia, possuía um sentido estritamente
local), o zelo pela liberdade e o senso de vanguarda. Ao mesmo
tempo, a luta contra um inimigo comum teria irmanado brancos,
índios e negros, inaugurando o espírito de “brasilidade”.
O discurso nativista também inspirou o sentimento de
autonomia que embalou a Guerra dos Mascates, no século XVIII,
apesar de seu caráter interno, e os Movimentos Revolucionários
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do século XIX, sobretudo os de 1817, 1824 e 1848. Na verdade,


tantas foram as utilizações do nativismo ao longo da história
de Pernambuco que talvez seja mais apropriado falar de
“nativismos”, no plural. Foi a partir dessas leituras e releituras
do significado da Restauração que a “alma pernambucana” foi
sendo forjada, consolidando a imagem de um Pernambuco
heróico, revolucionário, indomável.

GUERRA E RELIGIÃO NA RESTAURAÇÃO


PERNAMBUCANA

A religião é uma das principais determinantes de uma História


do Saber. Em torno da fé e nela própria, diversos saberes
constelam e fazem história. Na Idade Moderna ocidental, período
marcado por grandes conflitos, Pernambuco foi a única região do
País a vivenciar a disputa — e um certo convívio — entre dois
conjuntos de saberes religiosos que se imaginavam, então, opostos
para sempre: um advindo da Reforma Protestante e outro da
Contra-Reforma Católica. Uma harmonia rara e frágil se impôs
entre católicos, protestantes e até judeus. Sabe-se hoje que a
oposição entre essas variáveis do cristianismo não foi tão profunda
quanto imaginavam alguns dos seus próprios contemporâneos
(Fernández-Armesto e Wilson, 1996), mas o nível de convívio e a
tipificação do conflito em Pernambuco foram singulares.
A Era Moderna foi marcada por conflitos sangrentos entre
católicos e protestantes, fruto de um clima de mútua intolerância,
no qual o amor à própria religião se traduzia, muitas vezes, no
combate à de outrem. A cristandade católica encarou o advento
da Reforma Protestante como uma ameaça à unidade cristã,
colocando-se — sobretudo a partir do Concílio de Trento (1545-
1563) — na defensiva contra o avanço do protestantismo na
Europa e no Novo Mundo.
Na Península Ibérica, a oposição ao protestantismo
demonstrou-se ainda mais intensa, uma vez que a fé católica
estava arraigada às identidades portuguesa e espanhola — ou
seja, ser português ou espanhol significava ser católico. Desse
modo, contrapunham-se, os ibéricos, às nações do norte, que
Os nomes das ruas evocam a haviam aderido à “heresia protestante”. É nesse contexto que se
Restauração Pernambucana,
situam as guerras entre a Espanha e os Países Baixos — à época
assim como o principal
hospital público da capital da União Ibérica — e as guerras de reconquista das possessões
(Hospital da Restauração). coloniais lusitanas após a Restauração de Portugal, em 1640.
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Em Pernambuco, a presença holandesa fez com que católicos 1656: O mestre-de-campo general do Estado do Brasil Francisco
Barreto mandou, em ação de graças, edificar, à sua custa, esta capela
e protestantes passassem a conviver numa atmosfera de frágil
à Virgem Senhora Nossa dos Prazeres, com cujo favor alcançou,
harmonia. A “liberdade de consciência” instituída pelos neste lugar, as duas memoráveis vitórias contra o inimigo holandês.
conquistadores teve como contrapartida a imposição de restrições A primeira, em 18 de abril de 1648, em domingo de Pascoela, véspera
da dita Senhora. A segunda, em 18 de fevereiro de 1649, em uma
ao culto católico. No Recife, as missas deveriam ser celebradas
sexta-feira. E, ultimamente, em 27 de janeiro de 1654. Ganhou o
a portas fechadas, e as procissões — tão típicas de devoção Recife com todas as suas praças, que o inimigo possuiu vinte e
ibérica — foram proibidas. Não fosse o “jogo de cintura” de quatro anos.
Hoornaert, 1991, p. 39.
Nassau, que, visando à pacificação dos ânimos luso-brasileiros,
implementou uma administração mais tolerante — contrariando,
A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres é apenas um dos
inclusive, as exigências do clero calvinista —, as tensões teriam
marcos simbólicos do triunfo da fé católica. Expulsos os
sido maiores.
holandeses, a restauração do catolicismo se fez também
Além das restrições mencionadas, contribuíram, para o representar no nome da principal rua do Recife: de Rua dos Judeus
acirramento do antiprotestantismo local, os sermões inflamados passou a se chamar Rua da Cruz. A partir de então, Pernambuco
dos eclesiásticos — muitos dos quais foram expulsos de se afirmaria, conforme referido no próprio hino do Estado, como
Pernambuco como conspiradores — e as notícias de atos sacrílegos “Terra da Cruz”.
cometidos por soldados da Companhia das Índias Ocidentais
Essa proximidade entre o maravilhoso e o cotidiano, que
contra templos e imagens religiosas. Em tais circunstâncias, o
pode parecer, aos olhos contemporâneos, estranha ou mesmo
combate armado em defesa da fé católica contra as “feras
engraçada, era típica da visão de mundo compartilhada por
setentrionais” — como foram chamados os holandeses — era
aqueles que viveram nos primeiros séculos da Era Moderna.
virtualmente inevitável.
Não se tinha, então, o nosso “senso do impossível”. A oposição
A Guerra de Restauração se apresenta, desse modo, como que fazemos hoje entre o “natural” e o “sobrenatural” inexistia
um conflito de feições acentuadamente religiosas. Não por acaso, para os homens dos séculos XVI e XVII. Por esse indispensável
o movimento restaurador foi batizado de “guerra pela liberdade fator cultural, entende-se para aqueles atores históricos que
divina” e definido como “terrena obra, mas celeste empresa”. “causas” religiosas eram tão importantes quanto as econômicas.
De acordo com um dos narradores do conflito, o próprio João Além do mais, vivendo numa sociedade de etiquetas
Fernandes Vieira teria expressado o propósito de fazer guerra nobiliárquicas, ainda que não tivessem — supostamente — uma
contra os “hereges” pela libertação dos fiéis católicos, sem fé sedimentada interiormente, tais homens e mulheres sabiam
qualquer interesse em “glórias mundanas”. que seu posicionamento social dependia tanto do que se tinha
Curiosas, a esse respeito, são as manifestações quanto do que se era.
sobrenaturais que acompanharam a Restauração, interpretadas,
na época, como sinais da aprovação e do auxílio divinos à
campanha restauradora. Citaremos, como exemplo, a participação
O TRIUNFO DA “GUERRA BRASÍLICA”
da Virgem Maria em uma das batalhas dos Guararapes, segundo
um relato do início do século XVIII, “animando os pernambucanos
por entre seus esquadrões, com pasmo, horror, assombro e
A s guerras contra os holandeses — primeiro, a de resistência;
depois, a de restauração — constituíram um curioso cenário
para um embate entre dois modos de guerrear. De um lado, a
confusão dos hereges”.
guerra européia — conhecida como “guerra de Flandres” — e,
Foram as tradições em torno dessa aparição da Virgem em
de outro, a “guerra brasílica” (referida anteriormente como
pleno campo de batalha que deram origem à devoção a Nossa
“guerra de guerrilha”). O sucesso do movimento restaurador
Senhora dos Prazeres, sendo-lhe erigida uma igreja nos Montes
deveu-se, em grande parte, à aplicação consciente do segundo
Guararapes. Ali foi posta uma placa comemorativa com a seguinte
modelo.
inscrição:
50|

Igreja de Nossa Sra. dos


Prazeres, nos Montes
Guararapes, cenário de célebres
batalhas. Município de
Jaboatão dos Guararapes,
Região Metropolitana do Recife.
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A guerra de Flandres consolidou-se na Europa no contexto das


guerras entre os Países Baixos e a Espanha, entre os séculos XVI e
XVII. Pressupunha o estabelecimento de posições fortificadas e o cerco
às praças-fortes inimigas, recorrendo, sobretudo, à artilharia. Nas
batalhas campais, preponderava a predefinição dos papéis, o
alinhamento dos batalhões em manobras ordenadas. Representou,
dessa forma, um movimento em direção a uma racionalização da
guerra, visando discipliná-la por meio de determinadas regras,
processo que o sociólogo alemão Norbert Elias, autor de O Processo
Civilizador, chamaria “civilização da agressividade”.
Acontece que, em terras coloniais, a guerra de Flandres se
“Cruzeiro” do Arraial Novo do Bom
demonstrava estrategicamente inadequada. Ao longo da guerra
Jesus, bairro do Cordeiro, no
de resistência, a manutenção de sítios fortificados — a exemplo logradouro de nome mais extenso do
do Arraial do Bom Jesus — e o assédio ao Recife — onde os Recife: Avenida Estrada do Forte do
holandeses haviam se encastelado — não lograram êxito. Contra Arraial Novo do Bom Jesus.
a utilização de emboscadas, tática que rendeu alguns sucessos à
resistência, prevaleceram os brios dos militares europeus enviados
a Pernambuco, para os quais a guerrilha se constituía uma negação
do “comportamento profissional”. Um deles, D. Luís de Rojas e
Borja, teria dito que “não era macaco para andar pelo mato”.
Longe de obedecer às regras da guerra européia, a “guerra
brasílica” era tributária da maneira como os indígenas
combatiam, refletindo, ao mesmo tempo, a pouca teorização da
arte militar pelos portugueses. Tirando proveito do conhecimento
da terra, recorria ao elemento surpresa por meio de emboscadas,
caracterizando-se ainda por uma grande mobilidade — razão
pela qual também era chamada de “guerra volante”. O aparente
desordenamento da “guerra brasílica” e a confusão que causava
aos holandeses quando surpreendidos pelos “guerrilheiros” da
restauração renderam, para estes últimos, importantes conquistas.
Esses elementos, bem como o contraste com a guerra de Flandres,
se encontram presentes no valioso relatório de Van Goch sobre a
segunda Batalha dos Guararapes (1649):
As tropas do inimigo, saindo das matas e de detrás dos mangues e de
outros lugares onde têm a vantagem da posição, atacam sem ordem e em
completa dispersão e se aplicam em desbaratar diferentes setores. (...)
São por natureza leves e ágeis para avançar ou recuar e, graças a sua
crueldade inata, são também temíveis. (...)Atravessam os bosques e os
mangues em todos os sentidos, sobem e montam os oiteiros, tão numerosos
aqui, com uma rapidez e uma agilidade verdadeiramente notáveis. Nós,
ao contrário, combatemos em batalhões formados e enfileirados segundo
a maneira usada na pátria-mãe, e nossos soldados são indolentes,
inadaptados à natureza do país, donde resulta que (...), desbaratando
nossos batalhões e pondo-nos em fuga, eles nos matam um maior número
de soldados na perseguição do que no próprio combate .
Mello, 1998, p. 371-372.
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Percebe-se o quanto o fator adaptação foi decisivo contra


os holandeses. Impedidos de confrontá-los em campo aberto,
confinados no interior pelo bloqueio dos navios inimigos no
litoral, os “pernambucanos” se valeram do conhecimento e da
malícia, otimizando os recursos de que dispunham.

Para se ter uma idéia de quão limitados eram esses recursos,


basta mencionar que, segundo nos informa Evaldo Cabral de
Mello, na Batalha das Tabocas (1645), quando alcançou sua
primeira vitória, o exército luso-brasileiro dispunha de “apenas
300 espingardas, estando, na sua grande maioria, equipado de
espadas, estoques, facões, dardos e, sobretudo, paus tostados“
(Mello, 1998, 343).

A vitória dos restauradores foi orientada pela percepção


de que, nas circunstâncias em que se encontravam, era preciso
abdicar da guerra convencional e lançar mão do que lhes fosse
mais factível — daí a opção pela “guerra brasílica”. Foram as
divergências em torno da maneira como a guerra deveria ser
feita que entravaram a resistência nos primeiros anos da ocupação
holandesa. Quando, anos depois, eclode o movimento de
restauração, essas divergências haviam, em grande parte, sido
superadas, passando-se à busca por soluções originais para os
desafios impostos pela guerra. Exemplo disso foi a utilização

Painel cerâmico de dos mangues nas emboscadas ou como fortificações naturais.


Francisco Brennand em Dessa forma, contra o mais poderoso exército da época e contra
homenagem à Batalha dos
a guerra de Flandres, prevaleceram a “arte” e o “desconcerto militar”
Guararapes, na Rua das
Flores, centro do Recife. — nos termos do Padre Antonio Vieira — da “guerra brasílica”.
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UMA GUERRA MOVIDA A AÇÚCAR de restauração seria, portanto, encabeçada por senhores de
engenho — tanto pelos “novos endividados” como pelos “antigos
emigrados”. Aos primeiros, interessava livrar-se das dívidas

A invasão holandesa redefiniu o quadro de proprietários


dos engenhos nas capitanias de Pernambuco, de Itamaracá,
da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Aqueles que haviam sido
que haviam contraído e assegurar, pelo mérito de haverem lutado
contra o invasor, a posse dos engenhos. Quanto aos últimos, é
óbvio que intencionavam reaver o que lhes havia sido confiscado.
abandonados foram confiscados pela Companhia das Índias
Interesses conflitantes que, após a Restauração, darão origem à
Orientais e vendidos a novos proprietários, entre holandeses,
chamada “querela dos engenhos”.
judeus e luso-brasileiros colaboracionistas. Os antigos donos
Sob esse prisma, é possível perceber algo da complexidade
desses engenhos, a maioria dos quais emigrou para a Bahia,
do movimento restaurador. A Restauração Pernambucana, longe
permaneceriam interessados na reconquista daquilo que, por
de opor, esquematicamente, de um lado, holandeses, e, de outro,
doação real, lhes pertencia.
luso-brasileiros, foi empreendida por agentes em conflito entre
A situação desses novos proprietários, no entanto, ia se
si mesmos, defendendo interesses privados em nome da “pátria”
tornando precária, em função das grandes dívidas contraídas com
e da “religião” — daí a necessidade de contextualizar o
a Companhia e com comerciantes da Praça do Recife. O proveito
“nativismo” para não considerá-lo um idealismo tolo e dadivoso.
(correspondente colonial do nosso conceito de lucro) que eles
Todas as nações modernas ocidentais nasceram desse misto entre
passaram a tirar da produção de açúcar se tornava bastante
sentimento nativista (depois, nacional) e interesses materialmente
reduzido, dada a avidez dos credores — que vinham cobrar as
definidos dos agentes históricos envolvidos. É uma escolha
caixas de açúcar nos próprios engenhos — e as elevadas taxas
estratégica dos pernambucanos se querem ressaltar mais, para
que lhes eram impostas. Acrescente-se a isso, uma série de revezes
o conhecimento da história dos conflitos na formação da
naturais, de enchentes a epidemias, e, sobretudo, a queda do preço
identidade própria, o seu caráter nacional, o seu caráter econômico
do açúcar na Europa devido à superprodução — ironia do mercado.
ou um misto de ambos os fatores.
O princípio que havia orientado a Companhia das Índias Usurpados que foram dos engenhos e do proveito que a
Orientais — a saber, a busca pelo máximo proveito no mais produção açucareira lhes conferia, era hora de reagir, de reassumir o
curto espaço de tempo para compensar o investimento feito para controle da economia local. Nesse sentido, é possível ver, no açúcar,
a conquista — revelou-se, por fim, autodestrutivo. o combustível da Restauração — uma guerra movida a açúcar! Não
Fruto de uma situação de crise e descontentamento, a guerra por acaso, “açúcar” era a senha secreta dos restauradores.
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TEMPOS REVOLUCIONÁRIOS

MASCATE
N a trilha da tradição libertária, desdobram-se diversos
conflitos que tiveram Pernambuco como epicentro. A Guerra
dos Mascates foi o primeiro desses conflitos, só que interno. Os
A palavra mascate , designação dada pelos movimentos revolucionários pernambucanos se inscrevem num
brasileiros de Olinda aos portugueses do Recife quadro mais amplo de agitações que marcaram a história do
nos séculos XVII e XVIII, vem de Mascate,
Ocidente no período compreendido entre os anos de 1789 e 1848,
cidade da Arábia de onde vieram árabes para o
batizado pelo historiador Eric Hobsbawm de “a Era das
Brasil, a partir do século XVII, que exerceram
atividade de comércio. Revoluções”. A expressão procura caracterizar um momento na
história no qual profundas transformações intelectuais, políticas,
econômicas e sociais confluíram para o que Hobsbawm chama
de uma “dupla revolução”: a Francesa e a Industrial.
Essa atmosfera revolucionária foi, em larga medida, fruto
de questionamentos sobre os fundamentos do poder político, os
direitos humanos e os valores que organizam a vida em sociedade.
Estes fizeram parte do que conhecemos hoje como Iluminismo,
ou Ilustração, movimento intelectual e cultural que — sobretudo
a partir da França — sacudiu a Europa entre os séculos XVII e
XVIII, repercutindo também no Novo Mundo.
A etimologia dos termos Iluminismo e Ilustração nos remete
à idéia de luzes que se lançam sobre as trevas. As “trevas” em
questão são aquelas que foram atribuídas pelos pensadores
iluministas à mentalidade e à sociedade medievais, como a
primazia da fé sobre a razão, o poder absoluto dos reis com
base no direito divino, os privilégios inerentes à nobreza e a
clivagem social que resultava desses privilégios. Para os
ilustrados, esses e outros valores do Antigo Regime deveriam
ser superados, uma vez submetidos à crítica racional.
Antes de alimentar o espírito revolucionário francês, os ideais
iluministas já haviam inspirado a Revolução Americana. A
Declaração de Independência dos Estados Unidos, assinada em 4
de julho de 1776, alicerçou-se na idéia de que todos os homens
possuem direitos inalienáveis e de que compete aos governos
instituídos assegurá-los, de modo que, se alguma forma de governo
se desvia dessa finalidade, “é direito do povo alterá-la ou aboli-la
e instituir uma nova forma de governo baseada nesses princípios”.
Outro ideal iluminista que assumiu conotações revo-
Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001. lucionárias — tanto na América do Norte quanto na França —
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era a afirmação de que a única base legítima para o exercício do PERNAMBUCO NA CONTRAMÃO DO IMPÉRIO
poder político era o consentimento “popular”, minando o
absolutismo e fomentando, em contrapartida, o estabelecimento
de governos constitucionais republicanos.
Na esteira dessa revolução das idéias, ocorria, entre os A instalação da corte portuguesa no Brasil, em 1808, seguida
da elevação da antiga colônia à categoria de Reino Unido
a Portugal, em 1815, teve como pressuposto a formação de um
séculos XVIII e XIX, uma revolução no comércio internacional,
tendo a Inglaterra como carro-chefe. Na vanguarda da poderoso império luso-brasileiro — antiga utopia acalentada,

industrialização, os ingleses expandiram o fabrico de bens de entre outros, pelo Padre Antônio Vieira. A concretização desse

consumo e de produção, vislumbrando, no Novo Mundo, um projeto implicava não apenas conservação do sistema colonial

mercado consumidor em potencial. Na disputa pelo mesmo mercado, — com o domínio metropolitano exercido agora a partir do Rio

despontava também a França, sob o comando de Napoleão de Janeiro —, como uma maior centralização política e

Bonaparte, e, de forma ainda incipiente, os Estados Unidos. administrativa, tendo em vista preservar a unidade territorial.

No Brasil, a difusão do ideário revolucionário e as pressões Um projeto dessa magnitude envolveria grandes despesas,
internacionais, sobretudo inglesas, contribuíram para a a começar com a manutenção da corte enraizada no Centro-Sul e
configuração de um quadro de crise do sistema colonial. A leitura da rede de funcionários imperiais. Para financiar tais despesas,
dos pensadores ilustrados, o impacto das revoluções Americana D. João VI recorreu a uma pesada tributação sobre as exportações,
e Francesa na colônia e a intensificação dos contatos com a Europa que incidiu, principalmente, sobre as capitanias do Norte, entre
a partir da transferência da corte portuguesa para o Brasil criaram as quais Pernambuco ocupava uma posição dominante, como
um ambiente propício para a contestação do absolutismo e do escoadouro da produção regional através do porto do Recife.
regime de monopólios e privilégios comerciais — elementos A elevação da carga de impostos coincidiu com um período de
constitutivos do sistema colonial tradicional. Semeava-se a recessão generalizada, resultante da queda dos preços do açúcar e do
pólvora que alimentaria explosões revolucionárias como as que algodão no mercado internacional. Ao mesmo tempo, aumentava,
tiveram Pernambuco como palco ao longo do século XIX. em Pernambuco, o descontentamento com o controle exercido pelos

Painel em azulejo d
Corbiniano Lins,
próximo ao Cemitér
dos Ingleses, no bai
de Santo Amaro.
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portugueses sobre o comércio, em detrimento do lucro auferido pelos


produtores. Ganhava vulto um sentimento antilusitano, que não
FREI CANECA
demoraria a ganhar contornos anticolonialistas.
César Leal
Acrescente-se ainda a fermentação de idéias revolucionárias
Patriarca de uma República
cuja semente secou dentro do em Pernambuco em encontros e reuniões domésticas, nas
fruto tua voz ergueu-se sociedades secretas e no próprio Seminário de Olinda. A influência
do das revoluções Americana e Francesa, em consonância com a
oceano em direção ao tradição nativista pernambucana, inspirou a concepção de um
cume da colina
novo projeto de organização política em moldes republicanos,
os pássaros te ouviam em silêncio
enquanto desenhavas a bandeira que veio à tona com o movimento deflagrado em 1817.
azul e branca como se fora A nova ordem instaurada em Pernambuco, no entanto, se
uma grande asa de seda molhada
colocava em rota de colisão com o já referido ideal de um grande
por relâmpagos.
império luso-brasileiro. Insinuava-se, no Nordeste, o “perigo
republicano”, que estava dissolvendo as possessões espanholas
Ao longe, bem próximo
ao Sol, na América do Sul naquela mesma época. A repressão dos
a Morte, sob a sombra dos cílios revolucionários se deu em nome da segurança do Império; a
do Imperador, punição violenta e infamante de alguns deles representou uma
fitava o teu
demonstração pública de força:
coração...
marcando o instante Depois de mortos, as suas cabeças e mãos foram distribuídas em vários
da queda lugares, suspensa (sic) em altos postes, e patentes ao público em estado
de teu corpo de putrefação. Itamaracá viu a do seu infeliz pároco, que, depois de
e quando o sangue irrompeu da carne morto, foi ligado à cauda de um cavalo e arrastado pelas ruas do Recife.
frágil Tavares, 1969, p. 208.

desenhou teu nome em terras do


Recife Apesar da repressão imperial ao projeto revolucionário de
e nunca mais secou... 1817, os ideais autonomistas, separatistas e republicanos
sobreviveriam em Pernambuco, tomando vulto na Convenção de
Beberibe, de 1821, e, sobretudo, na Confederação do Equador,
BANDEIRA DE PERNAMBUCO proclamada em 2 de julho de 1824.
No processo de emancipação política do Brasil, o regime
monárquico foi preservado na forma de uma monarquia
constitucional. Aclamado “Imperador Constitucional e Defensor
Perpétuo do Brasil”, D. Pedro I assumiu o trono imperial oscilando
entre as novas idéias liberais e a tradição absolutista. Foi assim
que, em 1823, decretou o fechamento da Assembléia Constituinte
e, um ano depois, outorgou uma Constituição que ampliava suas
Idealizada durante o movimento revolucionário de 1817, a prerrogativas com a criação do Poder Moderador, reservando-lhe
bandeira de Pernambuco foi oficializada, cem anos depois,
o direito de nomear ou remover os presidentes das províncias,
pelo então governador Manuel Antônio Pereira Borba. Nela,
por exemplo.
o azul simboliza a grandeza do céu pernambucano; o branco,
a paz; o arco-íris, a união de todos os pernambucanos; a estrela, Tal concentração de poderes nas mãos do Imperador e a
o Estado na Federação brasileira; o sol, a força e a energia de centralização política e administrativa a partir do Rio de Janeiro
Pernambuco; e a cruz, a fé na justiça e no entendimento.
tornaram-se uma fonte permanente de insatisfação entre as
províncias mais ciosas de sua autonomia. Em Pernambuco, a
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nomeação um presidente de província indesejado foi a gota


d’água para uma nova explosão de nativismo e de verve
revolucionária, perceptível na conclamação de Frei Caneca
publicada no Typhis Pernambucano:

Eia, Pernambucanos! A nau da pátria está em perigo, cada um a seu


posto, unano-mos com as províncias limítrofes. Escolhamos um piloto,
que mareie a nau ameaçada de iminente e desfechada tempestade; elejamos
um governo supremo, que nos conduza à salvação e à glória.
Neves; Machado, 1999, p. 107.
O grande pintor
Constitui-se, então, um governo federativo e republicano, pernambucano Cícero
Dias celebrou Frei
congregando as províncias de Pernambuco, do Ceará, da Paraíba,
Caneca em painel que se
do Rio Grande do Norte, do Piauí e do Pará, com direito à eleição encontra instalado na
de um Governo Provisório e à convocação de uma Assembléia Casa da Cultura, no Recife.
Legislativa e Constituinte.
Com a unidade do Estado Imperial novamente ameaçada,
não tardou para que as forças de repressão se mobilizassem,
contando, inclusive, com a participação de tropas mercenárias
estrangeiras. A resposta do Império — à semelhança de 1817 —
foi, mais uma vez, contundente: os principais representantes do
movimento de 1824 foram condenados à morte.

Embora, em um primeiro momento, a derrota da


Confederação do Equador tenha contribuído para a paralisação
do discurso liberal “radical”, a hegemonia do governo do Império
estava longe de ser estabelecida. A pretendida pacificação do
País, com a ascensão de D. Pedro II ao trono, em 1840, após as
agitações do Período Regencial, não foi alcançada.
De acordo com Emília Viotti da Costa, entre 1837 e 1848,
uma nova onda revolucionária varreu o Norte e o Nordeste.
Para além das razões ideológicas, a maioria dos que aderiram
aos movimentos revolucionários o fizeram por motivos bastante
“pragmáticos e concretos”: a ingerência política e administrativa
do governo central nas províncias, a criação de novos impostos,
o controle exercido sobre a iniciativa privada, os tratados
comerciais que favoreciam o monopólio estrangeiro sobre o
comércio, o recrutamento militar forçado, dentre outros. Foi nesse
contexto que se deu, em Pernambuco, a chamada Revolução
Praieira (1848).
Fundado em 1842, o Partido da Praia (assim chamado Local do arcabuzamento
porque sua sede ficava na Rua da Praia), de orientação liberal- de Frei Caneca, próximo
ao Forte das Cinco Pontas.
democrática-radical e com influências do socialismo utópico
Uma placa registra a data
europeu, fortaleceu-se em Pernambuco durante o governo de do martírio.
58| PARTE II | O RUGIDO DO LEÃO DO NORTE | DO ORGULHO DA RESTAURAÇÃO ÀS REVOLUÇÕES LIBERTÁRIAS

Antônio Pinto Chichorro da Gama, alcançando grande


popularidade. A nomeação, em 1848, de um conservador mineiro
para o governo de Pernambuco, apoiado por alguns setores
ligados à oligarquia latifundiária pernambucana, levou os
“praieiros” a deflagrarem a revolução.
O projeto político praieiro foi explicitado no Manifesto ao
Mundo, de 1° de janeiro de 1849. Nele são defendidas teses como
o voto livre e universal, liberdade de imprensa, nacionalização
do comércio, extinção do Poder Moderador, reforma do Poder
Judicial visando a garantia dos direitos individuais e o
federalismo como forma de governo. Nem todos os liberais
concordavam com todas essas teses.
A instabilidade política causada pela sobrevivência desse
liberalismo radical justificou o combate aos praieiros. Derrotados
Rua da Praia, no bairro de em Pernambuco, os insurretos se refugiaram na vizinha província
São José, onde foi fundado e
da Paraíba, onde não lograram apoio suficiente, sucumbindo
teve sede o Partido da Praia,
importante ator da Revolução diante das forças legalistas. Seguiu-se, na história política do
Praieira de 1848. Brasil Imperial, uma fase conhecida como Conciliação (1852-
1862), marcada pela descaracterização ideológica de liberais e
conservadores.
Conforme já assinalado, os acontecimentos de 1817, 1824
e 1848 integraram uma tradição revolucionária que, por meio
de seus agentes e narradores, reivindica suas raízes nas lutas
de Restauração do século XVII. A imagem de um Pernambuco
heróico é fruto de um processo de sedimentação, no qual
sucessivas “camadas históricas” vão se sobrepondo umas às
outras. O discurso sobre o passado fez do pernambucano um
povo predestinado ao “culto dos ideais”, nos termos de Barbosa
Lima Sobrinho:

Nem as prisões, nem as masmorras, a que não podia chegar a luz do


sol, nem os ferros colocados nos pés e no pescoço dos prisioneiros,
nem o fuzilamento, nem o garrote ultrajante, nem os corpos
despedaçados, com a cabeça e os membros decepados e expostos em
praças públicas, nem o seqüestro dos bens, nem a infâmia e a miséria
que alcançavam os descendentes, nada conseguia apagar, nesses
corações pernambucanos, a flama eterna do culto dos ideais.
Chegaram a criar, contra nós, o castigo das mutilações territoriais,
que fomos nós, em todo o Brasil, os únicos brasileiros designados
para suportá-lo e sofrê-lo. Tudo, afinal, em pura perda: os sonhos
continuaram vivos nas almas indomáveis, como os sacrifícios se
transformaram em estímulos e como se os patíbulos se confundissem
com o pódio, destinado à glorificação dos triunfos .
Sobrinho, 1998, p. 109.

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