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SEGUNDA PARTE
IV
DO ORGULHO DA RESTAURAÇÃO
ÀS REVOLUÇÕES LIBERTÁRIAS
Em Pernambuco, a presença holandesa fez com que católicos 1656: O mestre-de-campo general do Estado do Brasil Francisco
Barreto mandou, em ação de graças, edificar, à sua custa, esta capela
e protestantes passassem a conviver numa atmosfera de frágil
à Virgem Senhora Nossa dos Prazeres, com cujo favor alcançou,
harmonia. A “liberdade de consciência” instituída pelos neste lugar, as duas memoráveis vitórias contra o inimigo holandês.
conquistadores teve como contrapartida a imposição de restrições A primeira, em 18 de abril de 1648, em domingo de Pascoela, véspera
da dita Senhora. A segunda, em 18 de fevereiro de 1649, em uma
ao culto católico. No Recife, as missas deveriam ser celebradas
sexta-feira. E, ultimamente, em 27 de janeiro de 1654. Ganhou o
a portas fechadas, e as procissões — tão típicas de devoção Recife com todas as suas praças, que o inimigo possuiu vinte e
ibérica — foram proibidas. Não fosse o “jogo de cintura” de quatro anos.
Hoornaert, 1991, p. 39.
Nassau, que, visando à pacificação dos ânimos luso-brasileiros,
implementou uma administração mais tolerante — contrariando,
A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres é apenas um dos
inclusive, as exigências do clero calvinista —, as tensões teriam
marcos simbólicos do triunfo da fé católica. Expulsos os
sido maiores.
holandeses, a restauração do catolicismo se fez também
Além das restrições mencionadas, contribuíram, para o representar no nome da principal rua do Recife: de Rua dos Judeus
acirramento do antiprotestantismo local, os sermões inflamados passou a se chamar Rua da Cruz. A partir de então, Pernambuco
dos eclesiásticos — muitos dos quais foram expulsos de se afirmaria, conforme referido no próprio hino do Estado, como
Pernambuco como conspiradores — e as notícias de atos sacrílegos “Terra da Cruz”.
cometidos por soldados da Companhia das Índias Ocidentais
Essa proximidade entre o maravilhoso e o cotidiano, que
contra templos e imagens religiosas. Em tais circunstâncias, o
pode parecer, aos olhos contemporâneos, estranha ou mesmo
combate armado em defesa da fé católica contra as “feras
engraçada, era típica da visão de mundo compartilhada por
setentrionais” — como foram chamados os holandeses — era
aqueles que viveram nos primeiros séculos da Era Moderna.
virtualmente inevitável.
Não se tinha, então, o nosso “senso do impossível”. A oposição
A Guerra de Restauração se apresenta, desse modo, como que fazemos hoje entre o “natural” e o “sobrenatural” inexistia
um conflito de feições acentuadamente religiosas. Não por acaso, para os homens dos séculos XVI e XVII. Por esse indispensável
o movimento restaurador foi batizado de “guerra pela liberdade fator cultural, entende-se para aqueles atores históricos que
divina” e definido como “terrena obra, mas celeste empresa”. “causas” religiosas eram tão importantes quanto as econômicas.
De acordo com um dos narradores do conflito, o próprio João Além do mais, vivendo numa sociedade de etiquetas
Fernandes Vieira teria expressado o propósito de fazer guerra nobiliárquicas, ainda que não tivessem — supostamente — uma
contra os “hereges” pela libertação dos fiéis católicos, sem fé sedimentada interiormente, tais homens e mulheres sabiam
qualquer interesse em “glórias mundanas”. que seu posicionamento social dependia tanto do que se tinha
Curiosas, a esse respeito, são as manifestações quanto do que se era.
sobrenaturais que acompanharam a Restauração, interpretadas,
na época, como sinais da aprovação e do auxílio divinos à
campanha restauradora. Citaremos, como exemplo, a participação
O TRIUNFO DA “GUERRA BRASÍLICA”
da Virgem Maria em uma das batalhas dos Guararapes, segundo
um relato do início do século XVIII, “animando os pernambucanos
por entre seus esquadrões, com pasmo, horror, assombro e
A s guerras contra os holandeses — primeiro, a de resistência;
depois, a de restauração — constituíram um curioso cenário
para um embate entre dois modos de guerrear. De um lado, a
confusão dos hereges”.
guerra européia — conhecida como “guerra de Flandres” — e,
Foram as tradições em torno dessa aparição da Virgem em
de outro, a “guerra brasílica” (referida anteriormente como
pleno campo de batalha que deram origem à devoção a Nossa
“guerra de guerrilha”). O sucesso do movimento restaurador
Senhora dos Prazeres, sendo-lhe erigida uma igreja nos Montes
deveu-se, em grande parte, à aplicação consciente do segundo
Guararapes. Ali foi posta uma placa comemorativa com a seguinte
modelo.
inscrição:
50|
UMA GUERRA MOVIDA A AÇÚCAR de restauração seria, portanto, encabeçada por senhores de
engenho — tanto pelos “novos endividados” como pelos “antigos
emigrados”. Aos primeiros, interessava livrar-se das dívidas
TEMPOS REVOLUCIONÁRIOS
MASCATE
N a trilha da tradição libertária, desdobram-se diversos
conflitos que tiveram Pernambuco como epicentro. A Guerra
dos Mascates foi o primeiro desses conflitos, só que interno. Os
A palavra mascate , designação dada pelos movimentos revolucionários pernambucanos se inscrevem num
brasileiros de Olinda aos portugueses do Recife quadro mais amplo de agitações que marcaram a história do
nos séculos XVII e XVIII, vem de Mascate,
Ocidente no período compreendido entre os anos de 1789 e 1848,
cidade da Arábia de onde vieram árabes para o
batizado pelo historiador Eric Hobsbawm de “a Era das
Brasil, a partir do século XVII, que exerceram
atividade de comércio. Revoluções”. A expressão procura caracterizar um momento na
história no qual profundas transformações intelectuais, políticas,
econômicas e sociais confluíram para o que Hobsbawm chama
de uma “dupla revolução”: a Francesa e a Industrial.
Essa atmosfera revolucionária foi, em larga medida, fruto
de questionamentos sobre os fundamentos do poder político, os
direitos humanos e os valores que organizam a vida em sociedade.
Estes fizeram parte do que conhecemos hoje como Iluminismo,
ou Ilustração, movimento intelectual e cultural que — sobretudo
a partir da França — sacudiu a Europa entre os séculos XVII e
XVIII, repercutindo também no Novo Mundo.
A etimologia dos termos Iluminismo e Ilustração nos remete
à idéia de luzes que se lançam sobre as trevas. As “trevas” em
questão são aquelas que foram atribuídas pelos pensadores
iluministas à mentalidade e à sociedade medievais, como a
primazia da fé sobre a razão, o poder absoluto dos reis com
base no direito divino, os privilégios inerentes à nobreza e a
clivagem social que resultava desses privilégios. Para os
ilustrados, esses e outros valores do Antigo Regime deveriam
ser superados, uma vez submetidos à crítica racional.
Antes de alimentar o espírito revolucionário francês, os ideais
iluministas já haviam inspirado a Revolução Americana. A
Declaração de Independência dos Estados Unidos, assinada em 4
de julho de 1776, alicerçou-se na idéia de que todos os homens
possuem direitos inalienáveis e de que compete aos governos
instituídos assegurá-los, de modo que, se alguma forma de governo
se desvia dessa finalidade, “é direito do povo alterá-la ou aboli-la
e instituir uma nova forma de governo baseada nesses princípios”.
Outro ideal iluminista que assumiu conotações revo-
Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001. lucionárias — tanto na América do Norte quanto na França —
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era a afirmação de que a única base legítima para o exercício do PERNAMBUCO NA CONTRAMÃO DO IMPÉRIO
poder político era o consentimento “popular”, minando o
absolutismo e fomentando, em contrapartida, o estabelecimento
de governos constitucionais republicanos.
Na esteira dessa revolução das idéias, ocorria, entre os A instalação da corte portuguesa no Brasil, em 1808, seguida
da elevação da antiga colônia à categoria de Reino Unido
a Portugal, em 1815, teve como pressuposto a formação de um
séculos XVIII e XIX, uma revolução no comércio internacional,
tendo a Inglaterra como carro-chefe. Na vanguarda da poderoso império luso-brasileiro — antiga utopia acalentada,
industrialização, os ingleses expandiram o fabrico de bens de entre outros, pelo Padre Antônio Vieira. A concretização desse
consumo e de produção, vislumbrando, no Novo Mundo, um projeto implicava não apenas conservação do sistema colonial
mercado consumidor em potencial. Na disputa pelo mesmo mercado, — com o domínio metropolitano exercido agora a partir do Rio
despontava também a França, sob o comando de Napoleão de Janeiro —, como uma maior centralização política e
Bonaparte, e, de forma ainda incipiente, os Estados Unidos. administrativa, tendo em vista preservar a unidade territorial.
No Brasil, a difusão do ideário revolucionário e as pressões Um projeto dessa magnitude envolveria grandes despesas,
internacionais, sobretudo inglesas, contribuíram para a a começar com a manutenção da corte enraizada no Centro-Sul e
configuração de um quadro de crise do sistema colonial. A leitura da rede de funcionários imperiais. Para financiar tais despesas,
dos pensadores ilustrados, o impacto das revoluções Americana D. João VI recorreu a uma pesada tributação sobre as exportações,
e Francesa na colônia e a intensificação dos contatos com a Europa que incidiu, principalmente, sobre as capitanias do Norte, entre
a partir da transferência da corte portuguesa para o Brasil criaram as quais Pernambuco ocupava uma posição dominante, como
um ambiente propício para a contestação do absolutismo e do escoadouro da produção regional através do porto do Recife.
regime de monopólios e privilégios comerciais — elementos A elevação da carga de impostos coincidiu com um período de
constitutivos do sistema colonial tradicional. Semeava-se a recessão generalizada, resultante da queda dos preços do açúcar e do
pólvora que alimentaria explosões revolucionárias como as que algodão no mercado internacional. Ao mesmo tempo, aumentava,
tiveram Pernambuco como palco ao longo do século XIX. em Pernambuco, o descontentamento com o controle exercido pelos
Painel em azulejo d
Corbiniano Lins,
próximo ao Cemitér
dos Ingleses, no bai
de Santo Amaro.
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