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AS TIAS BAIANAS
TOMAM CONTA DO PEDA O
Espaço e identidade cultural no
Rio de Janeiro*

Mônica Pimenta Velloso

aos grupos marginalizados. Brigando pelo


1, BRIGANDO PELO PEDAÇO espaço, esses grupos, na realidade, estavam
brigando para terem reconhecida a sua pró­
pria exislência. A territorialização aponta
"... o tempo e o espaço concorrem para para a especificidade, revelando como o
a produção da vida social, para o que homem entra em ação com o meio impri­
podemos chamar de ' enraizamenlO di­ mindo nele as SlIas marcas. Assim, a idéia
n4nUco' (...). É ai que deve ser buscado
de território está estreitamente ligada à
o fundamento do apego afetivo ou pas­
questão da identidade. Demarcando um es­
sional que liga o individuo ou o grupo
paço, o grupo está estabelecendo a sua di­
ao terril6rio .....
ferença em relação aos outros (Sbdré,
Mafesoli
1988). E a marca da propriedade, aqui no
-

sentido original do termo, ou seja, do que é


Entre nós a idéia de espaço fun damenta
próprio e específico em relação ao conjun­
uma das bases do projeto nacional, consti­
'uindo sólido fator de identidade cultural. to.

Chegou-se a afinnar que, diferentemente No Rio de Janeiro do início do século,


dos outros países, "somos feitos de espaço" essa questão da territorialidade manifesta­
(Velloso, 1985), Era uma maneira de des­ se de forma latente. Nesse período, conhe·
canar o real-histórico para inventar as uto­ cido como a Helle Époque, a cidade vai
pias necessárias ao mito da nação. p assar por modificações decisivas na sua
Entretanto, essa associação entre espa­ estrutura usbana. Através da reforma de
ço e identi dn4P. cultural não foi apenas uma Pereira Passos (1904), é realizada uma série
elaboração ideológica da ordem dominan­ de medidas para estabelecer a sintonia da
te, servindo também de referência básica cidade com a modernidade. Mas esta sinto-

E,.o utiao foi de7i"'olvido co o pute do um ptOjClO de pcsquiJa finVlciado pela "Fundlçio CadOl Da..." (SP)
-

...

durante o ano de. 1989.

&"""" Hur6rico.r. Rio de. Janeiro. voi. 3, n. 6, 1990, p.l07-228 .


ESnIDOS HISTÓRICOS - 199016

nia é precária, lacunar e, sobretudo, artifi­ neja, aldeamento ind(gena, feira africana
cial. foram expressões utilizadas pelas nossas
Cidade administrativa e política, de ba­ elites, referindo-se aos espaços da cidade
se escravista, o Rio sofre influência mar­ que retendiam excluir do imaginário urba­
;,
cante da cultura africana. Em meados do no. Dessa forma, a República nao conse­
século XIX, a população escrava chega a gue oferecer as bases integrativas capares
representar mais da metade da população de unificar a sociedade. Imigrantes nordes­
da corte, enquanto na cidade de sao Paulo tinos, [ndios, ciganos e negros slio vistos
o contingente de escravos nao chegava a como elementos indesejáveis, incapazes de
atingir 9% da populaçao (Dias, 1985). O serem absorvidos pela "cidade moderna".
fato vai imprimir contornos específicos à Dentro desse contexto é que vai vivifi­
hislÓria carioca, sendo a cidade definida por car a idéia de pertencimento ao pedaço,
uma verdadeira dualidade de mundos (Car­ onde é clara para o grupo marginalizado a
valho, 1987). noção do "nós" e "eles". O fato de pertencer
Realmente, se lembrarmos que um dos a um espaço não traduz vínculos de proprie­
objetivos do projeto Pereira Passos era o de dade (fundiária) mas sim uma rede de rela­
tomar o Rio uma "Europa Possível", a afri­ ções. Esta rede é de tal forma interiorizada
canização será a contrapartida dessa possi­ que acaba fazendo parte da própria identi­
bilidade. A "Pequena África"l e a "Europa dade do indivíduo. Em um dos seus roman­
Poss[vel": como juntar realidades tão dis­ ces, Lima Barreto coloca na boca do seu
tintas? personagem esta frase genial: "A cidade
Sabe-se que o regime republicano não mora em mim e eu nela". Era o protesto
vai dar conta de tal tarefa. Cidadania e contra o projeto urbanístico que moderni­
escravidão mostram-se elementos incom­ zava a cidade, desfarendo os antigos refe­
patíveis. A "Pequena África" decididamen­ renciais espaço-temporais. A memória
te não tem lugar na maquete da cidade afetiva dos moradores reage, principalmen- .
idealizada pelo prefeito Pereira Passos. te no que toca aos excluídos.
Verdadeiro "parto da inteligência", essa ci­ A "Pequena Africa", trecho da cidade
• •

dade experimenta dificuldades em adequar­ geralmente habitada pelos negros baianos,


se à dinâmica da realidade. Enquanto constitui um exemplo nesse sentido. Para
capital da República, o Rio funcionaria co­ eles, demarcar e defender o pedaço era uma
mo verdadeiro pólo de atração dos mais estratégia de sobrevivência, que aparecia
diferentes grupos que trariam, do restante nas mais variadas práticas do cotidiano. O
do país, experiências culturais distintas. É depoimento de Pixinguinha testemunha o
aqui precisamente que vai ocorrer O fosso apego do grupo às suas tradições culturais.
entre Estado e sociedade. Explicando me­ Nascido em 1898, nas proximidades do Ca­
lhor: no domínio formal, um Estado euro­ tumbi, ele nos conta que a sua avó, que era
peizado que luta por impor padrões de africana, apelidou-o de "Pizindim", o que,
conduta e valores cullurais tidos como uni­ no seu dialeto, significava "pequeno bom".
versais; no real, uma sociedade extrema­ Era comum no pedaço O uso dos dialetos
mente fragmentada que, muitas vezes, cria africanos, principalmente os de origem na­
seus próprios canais de integração à mar­ gõ. A música Yaô, de Pixinguinha e Gastão
gem da vida política tradicional. Viana, é um exemplo vivo do enraizamento
Sabe-se que uma das metas do projeto cultural. Composta provavelmente na se­
mode rnizador é a obtenção da homogenei­ gunda década do século, ela SÓ seria grava­
dade, fato que o torna inflexível em relação da em 1950 (Sodré, 1979:61 e Rocha,
às territorialidades culturais. Cidade serta- 1986). A música traz a Africa de volta;

AS TIAS BAIANAS TOMAM CONTA DO PEDAço 209

glll/lde pane da letra é escrita em ioruba, a De início, Gamboa, Saúde e Santo Cristo
marca da identidade lutando contra o exilio constituínam esse núcleo aglutinador. No
3
da memória. Mesmo sendo lembnanya re­ seu depoimento, Meninazinha de Oxum
mota ou consuução do imaginário, a Africa confirmou amplamente a idéia do pedaço
permanece como ponto de referência para baiano.
o grupo, no sentido de marcar a sua identi­ Na década de 1920, sua famOia emigrou
dade. para o Rio e se estabeleceu nos arredores do
Por mais que a nossa historiografia os bairro de Santo Cristo. A avó logo ficou
tenha ignonado, os negros baianos radica­ conhecida por todos como tia Davina, sen­
dos no Rio introduziram novos hábitos, do sua residência transformada em um re­
costumes e valores que influenciaram a cul­ duto de baianos. Meninazinha contou,
tura carioca. Esses valores contrastam visi­ ainda, que o avô era' estivador e ficou co­
v e l m e n t e c o m o s introduzidos pela nhecido no cais do porto como o "cônsul
modernidade. baiano", porque os baianos recém-chega­
A idéia deste artigo é resgatar a memória dos sempre indagavam por ele para saber
dos negros baianos na "cidade moderna". onde ficava a casa da tia Davina. Esta fun­
Mostrar o processo de consuuçl1o de sua cionava como local de referência e de con­
identidade é mostrar também os conflitos, talOS para o grupo, ajudando-o a integrar-se
ambigüidades e absorções sofridos pelo na cidade grande.
grupo na dinâmica social. Foi na Pedna do Sal, bairro da Saúde,
que surgiu o primeiro nancho carioca de que
se tem notícia: o Rancho das Sereias, for­
mado quase exclusivamente por elementos
Na proa, a bandeira branca de da colônia baiana. O fato se explica: a casa
Oxalá da tia Sadata, local onde nasceu o referido
rancho, ena uma espécie de passagem obri­
Desde o século XVIII, o Rio de Janeiro gatória para grande parte dos baianos re­
já ena u m dos maiores portos negreiros do cém-chegados ao Rio. Conta-se que a casa,
país. Grande parle dos neglOs que aqui che- situada no alto do morro, oferecia uma vi­

gararn vinha da Arrica através dos portos sao panorâmica da baía de Guanabara. De
nordestinos, notadamente de Salvador. l á era possível controlar todo o tráfego ma­
Com a Abolição, aumenta consideravel­ rítimo. Para sinalizar a chegada de novos
mente o fluxo de imigrantes baianos que baianos, a embarcação já trazia na proa a
afIufram pana cá em busca de melhores bandeina branca de Oxalá. A acolhida e
condições de vida. Entretanto, não foi ape­ proteção da "tia" era certa (Moura, 1983).
nas por ser a capital da República queo Rio Lá eles encontravam o apoio necessário
foi piocurado, mas também porque os ne­ para enfrentar a dura batalha da sobrevivên­
gros baianos já identiflcavam a cidade com cia na cidade hostil. Essa rede de solidarie­
as suas origens. O fato de muitos dos seus dade grupal acabou criando fortes vínculos
descendentes aqui residirem dava um certo entre os conterrâneos, levando-os a desen­
ar de familia ridade ao Rio, apesar de todas volverem expressões culturais próprias em
as dificuldades para se estabelecerem na relação ao restante da cidade. Muitas famí­
.
cidade grande. üas de baianos viriam a se estabelecer no
No final do século XIX, as áreas do bairro da Saúde, trazendo os hábitos e cos­
centro da cidade foram sendo ocupadas pe­ tumes da terra.
lo grupo, que passou a identificar esse es­ Já no início do século XX, a refolllla
paço com a sua própria identidade cultunal. urbana de Pereira Passos viria modificar


210 ESllJOOS I-nSTÓRICOS 1990)6
.

radicalmente a fisionomia da cidade. Uma "Prata Preta", reconhecida liderança no pe­


das áreas mais aJingidas pela famosa polí­ daço. sobrevoava a cidade empunhando em
tica do "bota abaixo" seria a zona portuária cada mllo um revólver (Carvalho. 1987).
e imediações, becho onde nonnalmente re­ Era o símbolo da resistência negra que acer­
sidiam os baianos. A maioria desloca-se, tava as suas contas com o governo.
entllo, para a Cidade Nova, ao longo da This fatos põem abaixo a idéia da passi-.
avenida Presidente V3Igas. transfonnando vidade das camadas populares. mostrando
os casarOes construídos pela burguesia de seu espírito de união e força. quando obri­
meados do século passado em habitações gadas a enfrentar situações de confronto.
coletivas (cortiços). E nas imediações das

Ocorre que a sua energia participativa era


ruas Visconde de Itaúna, Senador Eusébio, geralmente investida na criação de suas
Marquês de Sapucaí e BarlIo de São Félix e próprias organizações. como os ranchos.
do largo de Silo Francisco que se instala a cordões. terreiros. etc. Foi, portanto, fora da
"baianada", como o próprio grupo se auto­ esfera do Estado que o grupo construiu sua
denominava. Fica clara a dimensão espa­ rede de relações, reunindo os elementos de
cial da sociabilidade (Mafesoli, 1984). Se o uma cultura dispersa pela experiência da
espaço se desloca geograficamente (Salva­ escravidão. Daí a importância de recons­
dor-Saúde-Cidade Nova), os seus habitan­ truir essa "memória coletiva subterrânea"
tes o transportam simbolicamente para cujas lembranças são zelosamente guarda­
onde vão. Isso' tem a ver com a própria das em estruturas de comunicação infor­
"cultura de Arkhé", para a qual o espaço mais (Pollack, 1989).
fundiário adquire uma outra conotação.
Mais forte do que a territorialidade física é
a energia que dela emana (axé) cap82 de
unir e irmanar os seus membros (Sodré. Mulheres-arrlmo, homens
1988). Por isso, a sociabilidade entre os "estradelros"
baianos vai adquirir expressão própria. des­
toando dos padrOes vigentes, confonne ve­ As mulheres negras baianas incorporam
remos mais adiante. grande parte desse poder infonnal. cons­
A revolta da vacina (1904). cuja maior truindo poderosas redes de sociabilidade.
parte dos rebeldes era de origem baiana. Marginalizadas da sociedade global, desti­
denota claramente esse tipo de sociabilida­ tuídas de cidadania e de identidade. elas
de. Nilo é à toa que o bairro da Saúde foi um criam novos canais de comunicação sócio­
dos pontos de maior força do movimento. política. Esse tipo de sociabilidade. basea­
Expulso do seu "pedaço". o grupo reage à do em papéis improvisados. tem sido prati­
altura. Ocorre que as elites ignoravam esse camente ignorado pela nossa historiograf18.
potencial organizativo das camadas popu­ No entanto, esses papéis sociais são de fun­
lares. por destoar dos padrOes associativos damentai importância para compreender­
da época Na realidade. existia entre a po­ mos a dinâmica da nossa realidade que foge
pulação pobre e negra uma forte rede infor­ completamente aos padrões explicativos de
mai de leàIdade unindo-a nos momentos desenvolvimento. Nosso processo de urba­
decisivos. O depoimento de uma das lide­ nização. por exemplo. está muito mais pró­
ranças do movimento comprova a identida­ ximo das favelas do que dos modelos
de étnica que unia os participantes: "De vez europeus e norte-americanos urbanos çlos
em quando é bom a negrada mostrar que séculos XVIII e XIX (Dias. 1985).
sabe morrer como homem". Na época tam­ Na história do Rio de Janeiro, o próprio
bém foi publicada uma charge onde o negro termo favela foi introduzido pelos baianos
AS TIAS BAIANAS TOMAM COl'ITA 00 PEDAÇO 211

no final do século passado. A paiavra teria cuida de si".4 Cuidar de si e dos filhos era
sido trazida pelos combatentes da campa­ uma coisa só, obrigação de mulher.
nha de Canudos, onde existiria uma colina Já vimos o quanto a comunidade negra
com esse nome (Gerson, 1954). O fato tes­ no Rio de Janeiro do inicio do século fora
temunha claramente a influência do grupo marginalizada pelo regime. Entretanto,
na cidade, uma influência "sublerrânea", nesse contexto adverso, as mulheres ne­
mas decisiva, capaz de forjar novas realida­ gras, em relação aos homens, conseguiram
des sociais (Carvalho, 1987). Daí a neces­ ter maiores oponunidades de trabalho. Do­
sidade de reconstruir essa rede informal de na Carmem Teixeira da Conceição, que
comunicação, incorporando-a no quadro chegou ao Rio antes da virada do século,
mais amplo da sociedade. Sem dúvida, en­ viveu essa realidade na pele:

contraremos aí uma das possíveis leituras


do país. "Não era fácil não, eles não gostavam de

A que se deve essa posiÇão de liderança dar empre�o pro pessoal assim que era
preto, da Africa, que penencia à Bahia,
atribuída à mulher? De onde vem essa força
eles tinham aquele preconceito. Mas a
e capacidade organizativa? A história é lon­
mulher baiana arranjava trabalho (...)
ga.
elas tem assim aquelas quedas, chega­
Sabe-se que uma das decorrências da
vam assim, iaiá, que há? e sempre se
escravidão foi a fragmentação da famOia
empregavam nas casas de familia (...)
africana. Ao incorporar a mulher negra ao
tinha fábrica ( ...) mas eram os brancos
ciclo reprodutivo da família branca, invia­
que trabalhavam, muitas mulheres tra­
bilizava-se para os escravos a constituição
balha.vam em casa lavando pra fora,
do seu próprio espaço reprodutivo. Assim,
criando as crianças delas e dos outros..."
as relações eram precárias e efêmeras, ocor­
(Moura, 1983).
rendo muitas vezes à revelia dos próprios
parceiros. Acabavam predominando os in­
Por meio do trabalho doméstico, da cu­
teresses dos senhores, mais preocupados
linária e dos mais variados biscates, as mu­
em assegurar a reprodução de sua mão-de­
lheres conseguiam garantir, mesmo que em
obra. A legislação escravista enfatizava
bases precárias, o sustento dos seus. Era
sempre a unidade "mãe-filhos", preocupan­
comum que as crianças tivessem apenas
do-se mais com a separação dos filhos em
mãe. A figura do pai, quando não era des­
relação à mãe do que ao pai ou do que com conhecida, tinha pouca expressividade.
a separação entre os próprios cônjuges. Nesse contexto, cabfam sempre à mulher as
Nesse contexto, a mãe acaba assumindo maiores responsabilidades e encargos. Ge­
sozinha a responsabilidade da prole, já que ralmente, era ela que assegurava a teia de
os parceiros estão sempre de passagem relaçOes do casal, cujo rompimento põe em
(Giacomini, \988 e Woonmann, \987). De­ risco a própria sobrevivência do homem.
pois da Abolição essa situação pouco se Não é à toa a música de João da Baiana,
modifica. A maioria das mulheres que en­ Quem paga a casa pra hoTT/J!m. é mulher
trevistamos COnflITOOU essa idéia de "ter (19\5). Malandragens à parte, essa era uma
que se virar sozinha", enquanto o compa­ realidade...
nheiro ganhava o mundo. Vovó Damiana, Nas camadas populares não se sustenta­
urna baiana que já completou cem anos, se va o modelo burguês de familia que delega
referiu ao marido como um "estradeiro", à mulher o espaço do lar, a criação dos
mas logo em seguida, citou o tradicional filhos e a submissão, e ao homem o traba­
provérbio: "No tempo de Murici, cada um lho, a subsistência da famnia e o poder de
212 ESTUDO S I-DSTÓRlCOS 1990/6
.

iniciativa. Algumas vezes, o casamento certa: historicamente foi entre os baianos


funcionava como um conjunto de entendi­ que se desenvolveu uma organização fami­
mentos e ajuda mútua, onde se buscava liar cujos valores guardam certa especifici­
garantir a própria sobrevivência: dade.

"O casal funciona como a unidade ideal


de prestação de serviços, unidade esta
que, desfeita, põe em risco a principal
estratégia de sobrevivência desles indi­ Uma outra lamllla: a "lIl1açao
víduos. O rompimemo de uma relação, étnIca"
enlão, era visto pelo homem pobre como
uma desarticulação de seu modo de vida,
Entre as mulheres baianas já constituía
com O agravamento imediato de seus
uma espécie de tradição o fato de se agru­
problemas de sobrevivência..... (Cha­
parem em tomo de pequenas corporações
Ihoob, 1986: 155-6).
de trabalho, como o comércio de doces e
salgados, costuras e aluguel de roupas car­
De modo geral, a mulher buscava o
navalescas. Normalmenle, essa solidarie­
apoio de uma presença masculina, enquan­
dade era ditada pelos laços de nação e de
to o homem, normalmente desprovido de
religião.
bens, Irocava esse apoio pelo seu próprio
suslento. Quando O casal decidia emigrar Na Bahia, era costume dos africanos
para oulra cidade, era normalmenle à mu­ lerem seus "cantos" na cidade onde se reu­
lher que cabia a escolha do local, devendo niam diariamenle para trabalhar. Assim, os
também acionar a sua rede de conhecimen­ gurucins se reuniam na Cidade Baixa; entre
tos (Woortmann, 1987). Lembremos as ca­ o HOIeI das Nações e os Arcos de Santa
sas das tias Sadata e Davina, que eram
Bárbara ficavamos os hauçás; já os nagôs,

mais numerosos, se estabeleciam no merca-


• •

referências obrigatórias para os baianos re­


cém-chegados ao Rio. do, na rua do Comércio e em vários pontos
Trata-se, portanto, de uma família que da Cidade Alta. Além de exercer uma ação
apresenta certos valores organizativos es­ reguladora sobre o mercado de trabalho,
pecíficos. Porém, isso não quer dizer que o esses agrupamentos étrticos desempenha­
grupo rejeitasse inleiramenle os padrões vam ainda outras funÇÕes. Normalmente os
burgueses de família. A tia Ciata, por exem­ "cantos" transformavam-se em locais de
plo, conseguiria assegurar a respeitabilida­ encontro onde se conversava e se praúcava
de de sua casa, adotando certos padrões a ajuda mútua (Verger, 1981: 219 e Queiroz,
comportamentais. Graças ao marido, que 1988).
era funcionário da polícia, ela conseguiria No Rio de Janeiro, essa espécie de "cor­
estabelecer uma rede de contatos com ou­ poração de ofícios" continua nas primeiras
,

tros segmentos da sociedade (Moura, décadas do século. E Heitor dos Prazeres


1983). quem dá o seu depoimento:
Era uma maneira, portanto de ampliar o
raio de rJiJ do grupo, fazendo valer a sua "Sou do lempo da aprendizagem, que
influênci '. Na realidade, o que acabava agora é difícil. Quem sabia mais ensina­
aconleCendo era a inlercomunicação dos va, O que viria a gerar a formação de
códigos culturais. Nesse processo, alguns grupamentos de pessoas em tomo de
valores são preservados e oulrOS excluídos certos ofícios quese tornam tradicionais
ou, enlão, reelaborados. Mas uma coisa é no grupo baiano na praça Onze, zona do
AS TIAS BAIANAS TOMAM com-A DO PEDAço 213

Peo, da Saúde" (Moura, 1983, grifo coisa. Predomina a visão institucional que
meu). delimita a família nuclear e a família mais
extensa em função dos laços consangüí­
o aprendizado pa<<8va-se "boca a bo­ neos. Já nas camadas populares nem sel!)­
ca". Ser con terrâneo era condição essencial pre isso ocorre. Pode acontecer que o
para ingressar nessa rede de intercâmbios, referencial institucional ceda lugar à idéia
onde o saber estava sempre em circulação. de solidariffiade e união. O parentesco está

Mais urna vez se confmna a idéia da de tal forma colado à idéia de solidariedade
sociabilidade espacial como costume pro­ que, muitas vezes, os termos acabam tendo
fundamente enraizado na cultura afro-baia­ o mesmo significado. Assim, o parentesco
na. Entre nós, essa tradição era encabeçada pode ou não passar por laços consangüí­
pelas mulheres que, muitas vezes, acaba­ neos. Uma co� é certa: a maior parte dos
vam transformando suas casas em verda­ ditos parentes o são por laços de afetividade
deiras oficinas de trabalho. As casas eram e vivência. Assim, é muito comum que al­
os camas, o pedaço onde era possível unir guém assuma o papel de mãe sem sê-lo
esforços, dividir tarefas, enfim, reunir os realmente. Não há nenhum problema trau­
fragmentos de uma cultura que se via cons­ mático em se ter, por exemplo, duas mães.
tantemente ameaçada. Na "grande farnJlia", as referências e con­
Acontece que esse estreito convívio en­ tatos são consideravelmente ampliados.
tre as pessoas acabou ampliando a família Importa sempre fazer crescer e fortalecer a
nuclear, dando surgimento à "grande famí­ rede...
lia". A autoridade deixou de ser exclusiva­ Mais do que nunca se faz presente aqui
mente centrada na figura dos pais, entrando a idéia da família como "valor territorial"
em ação outros elementos que, na maioria que concentra no coletivo qualidades que
das vezes, não faziam parte da família con­ raramente são atributos de um indivíduo
sangüínea. Era comum que essas figuras - (Mafesoli, 1984). Na comunidade negra, a
normalmente femininas - acabassem tendo concentração de esforços no espaço exíguo
certa ascendência sobre a criança às vezes era uma necessidade ditada pela própria
maior do que a dos próprios pais. O papel sobrevivência: dai a família ampliada e
marcante das avós, tias e madrinhas na his­ concentrada. Freqüentemente a casa das
tória de vida dessas crianças é fato conhe­ tias se convertia nesse pólo aglutinador de
cido. Suprindo carências e afetos, abrindo energia, onde se dava a socialização do
novos canais de social idade e comunica­ grupo.
ção, elas eram alvo do respeito, admiraçãO,
carinho e prestígio. As "tias" certamente "Naquele tempo (1910) não havia lugar
são o exemplo mais concreto desse tipo de para se divenir. Não. havia cinema. Ha­
socialidade, típico das camadas populares. via só festa familiar. Nós os da raça
O parentesco adquire diferentes signifi­ (negro) já sabíamos de cor onde se reu­
cados e possibilidades em função do con­ nir. Havia sempre fesla, com baile e até
texto social. Assim, não se pode pensar a com assunto religioso, em numerosas
família como fato universal e natural (Ve­ fam(/ias. Lá os crioulos se reuniam, co­
lho, 1981), mas como sistema organizador miam, sambavam, se divertiam, namo·
de idéias e valores. Na ordem burguesa, por ravam e casavam ou entao se amigavam!
exemplo, costuma-se fazer uma cerla dis­ Mas de qualquer jeito arranjavam com­
tinção entre família propriamente dita e pa­ panheira. Havia muitas casas (centros)
rentesco. Apesar de bem próximos, os onde os negros se reuniam. As princi­
termos não significam exaLamente a mesma pais, que eu me iembro eram de Perei-
-
214 ES11JDOS IDSTÓRJCOS . 1990{6

liana, mãe do João da Bahia, da Amélia se reunir". E clara a consciência de família


do Aragão, mãe do Donga e da tia Cia­ via emia. A casa das tias aparece como
ta_.. " (Borges, 1971, grifo meu). espaço de reunião num tempo e numa cida­
de onde não havia lugar para "os da raça".
o depoimento é extremamente rico, Só através da "festa familiar" é que se cria
quando deixa clara a idéia de uma outra esse espaço, onde é possível comer, sambar,
familia presidida pela figura das "tias". se divenir, casar ou amigar. Tudo em famí­
Eswdando os vários tipos de parentesco lia".
na sociroade brasileÍJa, Kátia de Queirós As moradias populares normalmente
chama a atençllo para a "filiação étnica". não sAo vistas como espaço da privacidade
Segundo a autora, esse tipo de parentesco é - confórme o modelo burguês - mas sim da
fundamental entre os africanos, baianos e reunião, do convívio social e da lUla coLi­
seus descendentes. Mais imponante do que diana.
o parentesco biológico, esses laços sAo fator
de rroefiniçllo dos valores africanos. Foram
também os vínculos émicos que levaram os
escravos a se reorganizarem nas "Juntas de
Nlo mais, "lar, doce lar",,_
Alforria". Lá eles procuraram recriar um

pouco de sua Africa. Assim, a procroência


étnica foi na Bahia elemento essencial à Essa visAo da moradia popular contrasta
rroefmiçllo da linhagem e das normas re­ profundamente com os padrões dominantes
gentes das relaçOes sociais (Queiróz, 1988). que demarcam claramente o espaço da casa
A idéia de designar como parentes as e o da rua. Historicamente a casa aparece
pessoas do mesmo grupo émico vem de protegida e isolada do mundo exterior. Na
longo tempo. Nos cantos,juntas de alforria, arquitetura colonial e imperial fica clara
candomblés e nas próprias casas das tias, essa visAn: figuras de animais guardam os
essa família faz-se presente. Meninazinha umbrais das ponas enquanto os jardins sAn
de Oxum, falando sobre sua avó, diz que as cercados por muros, grades de ferro e lan­
pessoas que freqüentaram sua casa eram ças pontiagudas. Enfim, há toda uma preo­
consideradas parentes: cupação em proteger a casa burguesa,
preservando-a o quanto possível dos conta­
"Minha avó era mãe de todos eles. Era tos exteriores (Costa, 1979:99).
mAe de todo mundo (".) O interessante é A concepçllo popular de moradia como
que eu, menina, achava que era isso mes­ espaço de sociabilidade se choca. frontal­
mo. Que eles eram parentes mesmo. Via mente com a representaçllo do lar veiculada
aquela considera �o e aquele respeito de pelo discurso urbanístico da época. Através
filbo para mãe",' deste, procurava-se incutir nas camadas po­
pulares os valores burgueses da privacida­
Aqui a "grande famflia" se realiza via de, regularidade de hábitos e produtividade.
candomblé, que é um dos herdeiros do sis­ A "comurtidade fabril" era apresentada, en­
tema de filiaçllo étnica. Seus mem bros per­ tão, como modelo de integração social. Em
tencem à mesma famflia: a familia de santo. contraposiçllo, as favelas e cortiços eram
Esta seria a substituta da linhagem africana conceituados como "não-casas", aparecen­
para sempre desaparec ida (Queiroz, 1988). do como núcleo da desordem, insalubrida­
No Rio, no início do século, os valores de de e, principalmente, promiscuidade
origem étnica constituem a base da sociali­ (Rago, 1987). No ideal da "cidade discipli­
dade" "Nós os da raça". já sabíamos onde nar", a segmentação do espaço arquitelÔni-
AS TIAS BAIANAS TOMAM CONTA 00 PEDAço

co é uma espécie de lei, assegurando a Zica, líder comunitária da Mangueira, que


funcionalidade das coisas. nos conta: "Na sexta-feira balia-se para o
Nas habitações populares isso não ocor­ 'povo da rua', no sábado para os orixás, no
re. Sua arquitetura interna é quase despro­ domingo era o dia do samba e da peixada.
vida de divisOes. Não existe a rigorosa O pessoal normalmente ficava para dormir,
segmentaçllo de espaços, onde cada cômo­ porque no dia seguinte era O dia de"home­
do tem uma função precisa. Faz-se de rudo nagear as almas' . Quando a Mangueira ain­
em todos os lugares. Assim, é comum que da nem existia enquanto escola de samba,
o espaço do sono se misblre com o do lazer, tanto a tia Fé como Tomásia já tinham os
trabalho e alimentação. Enquanto traba­ seus próprios blocos carnavalescos, onde
lham, as mães olham os fllhos, trocam con­ safam os seus Trlhos de santo', com elas à
6
fidências íntimas com as comadres, frente, sempre vestidas de baiana".
cantarolam, daoe ouvem conselhos. Enfim, Pelo relato de dona Zica, fica claro o
a casa não é o "lar, doce lar", reduto da papel do terreiro como elemento centraliza­
intimidade, mas ponto de referência e união dor dos vários eventos e atividades. E em
de fOIÇas para enfrentar a luta cotidiana. funçllo dele que se articulam as festas, en­
Nada ou quase nada acontece entre as contros e reuniOes de confratemizaçllo.
quatro paredes. Tem mais sentido falar de Nossos ranchos carnavalescos denotam
"biombos" e cortinas através dos quais va­ claramente essa uniao entre profano e reli­
zam as mais variadas formas de comunica­ gioso/público e privado. Era nacasa de uma
ção. Assim, entre as camadas populares, a baiana - tia Bibiana -, no início do século,
arquitetura espacial é ditada muito mais que se realizava o concwso dos primeiros
pela dinâmica das necessidades do que pro­ ranchos. Estes estavam ainda de tal forma
priamente pelos códigos formais. Deve-se ligados às raízes, que não se dissociavam
considerar a casa como "microcosmo do do elemento religioso. Assim, os desfiles
universo", lugar de simbolismo complexo presididos pela "tia" eram feitos diante dos
e detentor de uma lógica própria (Sodré, presépios. Mesmo mais tarde, quando os
1988). Entre as camadas populares tal lógi­ ranchos perderam essa conotação religiosa
ca não opera com a idéia de segmentação, ganhando o espaço das mas, permaneceu
conforme o faz a ideologia dominante, mas essa tradição. As tias continuavam sendo
de unillo e complementaridade. Da mesma reverenciadas, pedindo-se sua proteçllo e
forma que existe uma intercomunicaçllo de bênção antes de sair para a folia. Esse com­
espaços, existe uma intercomunicaçllo de promisso era tlIo sério que os ranchos que
idéias. Assim, O tempo de trabalho pode se não o cumprissem à risca acabavam des­
conjugar perfeitamente com O de lazer. Me­ considerados: "Era como se não tivessem
taforicamente, o profano e o sagrado não safdo no Carnaval", segundo depoimento
constituem peças separadas, mas sao espé­ de Donga (Jotaefegê, 1982). Assim, a casa
cie de forças geminadas, uma existindo em e a bênçllo das "tias" constiruem passagem
função da outra. Nesse sentido, é comum obrigalÓria para se alcançar a rua. Se o
que os terreiros sejam simultaneamente lo­ rancho nao passasse antes pela casa, ele
cal de residência e de culto religioso. simplesmente perdia o sentido nas mas. A
No início do século, no morro da Man­ intercomunicação dos espaços é evidente...
gueira, as tias Tomásia e Fé desempenha­ A famosa casa da tia Ciata, siruada no
vam o papel de verdadeiras chefes de uma pedaço baiano, também reúne música, dan­
"grande família". Suas casas reuniam múl­ ça, culinária e religiao. Local de encontros,
tiplas atividades como candomblé, samba, cura, conversas, criatividade e trabalho: um
"verdadeiro microcosmo do universo". 011·

culinária e blocos carnavalescos. E dona


216 ESl1JDOS IDSTORlCOS • 1990/6

de se processam as mais variadas atividades Sabe-se que a família constitui elemen­


e saberes. Entre os freqüentadores da casa to-chave no processo de socialização e da
estavam Donga, João da Baiana, Pixingui­ subjetividade, interferindo no comporta­
nha, Sinhô, Caninha e Heitor dos Prazeres. mento e visllo de mundo dos seus compo-

Alguns jornalistas e intelectuais, como João nentes. E essa intricada rede de influências
do Rio, Manuel Bandeira, Mário de Andra­ que vai determinar formas específicas de
de e O assíduo cronista Francisco Guima­ ver, sentir e de se localizar na vida social. A
rlIes (Vagalume), tomariam conhecido o visão que as mulheres das camadas popula­
pedaç o. res têm da casa e da rua pode ser esclarece­
A casa da tia Ciata denota bem a questão dora nesse sentido. É na dinãmica dos
da circularidade cultural (Ginzburg, 1987), contrastes, complementaridades e. oposi­
atraindo intelectuais e elementos da classe çOCs que essas categorias devem ser com­
média carioca. Geralmente eram carnava­ preendidas (Mana, 1987:14).
lescos da Zona Sul que iam encomendar
fantasias e acabavam ficando para o pago­
de. Também por essa época, o candomblé e
o jogo de búzios começavam a exercer cer­
As ruas nao levam a lugar
to fascínio entre a alta sociedade. Através
nenhum ...
do samba, do Carnaval e da culinária a
cultura negra foi ganhando espaços no con·
junto da sociedade, fazendo·se aceita. Os A ordem burguesa criara uma "geogra­
códigos culturais começaram a se entrecru­ fia médica" destinada a codificar o espaço
zar, mesmo que de forma precária. Geral­ da família e o da intimidade em oposição ao
mente, o centro irradiador dessa cultura em território mundano. Assim, a família se
a casa das tias ou os terreiros. transforma em refúgio idealizado, em opo­
Roberto Moura lembra O nome de outras sição ao domínio público, que é tido como
tias que nessa época também fizeram a his- moralmente inferior (Costa, 1979 e Seneu,

tória da "Pequena Africa": Perpétua, Veri- 1988). Cria-se, portanto, uma segmentação
diana, Caiu Boneca, Maria Amélia, Rosa entre o espaço público e o privado, onde o
Olé, Gracinda. A lista é infindável. Uma primeiro é desqualificado, chegando a ser
coisa, porém, é certa: tanto as tias Sadata, visto como uma espécie de "antro de perdi­
Ciata e Bibiana quartlo às demais desempe­ ção". Um dos objetivos dessa geografia
nharam um mesmo papel, ou seja, os de médica é o de delimitar o espaço da mulher
verdadeiras lideres comunitárias. burguesa. Se agora, no início do século, ela
De onde vem essa força? Quais as bases já é incentivada a iràs ruas (teatros,footings
dessa liderança informal exercida pelas na avenida etc.), este trânsito não flui livre·
mulheres? mente. Há lugares permitidos e proibidos.
O que salta logo'aos olhos é o papel que, Enfim, há um código regulando cuidadosa­
as "tias" ocupam no seio familiar. Na "gran­ mente esses espaços.
de família", haseada predominantemente Já se destacou a espantosa fluidez das
em laços éUlicos, elas assumem o papel de mulheres pertencentes às camadas popula­
verdadeiras mauiarcas. São elas que sem· res que circulam livremente pelas ruas da
pre estllo a par de tudo, preocupando-se cidade (perrot, 1988). Diferentemente das
com a· sorte de todos, alé dos "filhos" mais mulheres das elites, que trans itam por um
afas tados. Na maior parte das vezes, são espaço rigidamente codificado sempreobe­
elas que decidem, providenciam e batalham diente às normas, elas se movem de acordo
no dia- a'(\ia. com os seus afazeres e prazeres.
AS TIAS BAIANAS TOMAM CONrA DO PEDAço 217

HislOricamente, graças à prática do pe­ do seu cotidiano, sendo-lhes extremamente


queno comércio, as mulheres negras acaba­ familiares. Dal a desenvoltura com que cir­
ram desfrutando de certa liberdade de culavam pela cidade, onde volta e meia
circulação pela cidade. Muitas vezes, era eram obrigadas a enfrentar a repressão po­
através de bate-papo e contratos verbais liciai. Seu comportarnenlO não tinha nada
que dinam izavam o fluxo das informações. do recato, submissão e fragilidade atribuí­
Além do mais, era comum servirem de con­ dosà "natureza feminina" pelos padrões
talO entre os negros rebeldes, minando, den­ dominantes '(Soihet, 1989). Nas camadas
tro do possível, os pilares da ordem populares, a mulher - muitas vezes chefe de
escravocrata. Na realidade, lOda a estraté­ família - tinha inestimável poder de inicia­
gia de sobrevivência dessas mulheres esta­ tiva, virando-se de mil formas para garantir
va baseada na liberdade de circulação o sustenlO dos seus. Excluída do mercado
(Dias, 1984; Magaldi e Figueiredo, 1971). de trabalho formal, ela vivia normalmente
O fato é extremamente significativo, se da prestação de serviços os mais variados
considerarmos a rigidez dos regulamentos posslvels.

em relação ao uso do espaço urbano pelos O comércio miúdo com gêneros de pri­
escravos. Nesse contexto, a liberdade de ir meira necessidade foi uma atividade majo­
e vir, mesmo que relativa, acabou dando à ritariamente exercida por essas mulheres.
mulher negra cerlO poder em relação aos Para Maria OdiIa Leite (1984), essa tradi-

outros elementos do grupo. ção, herdada da costa ocidental da Africa,


Desde cj início do século, as tias baianas garantiria às mulheres não só certa autono­
com os seus famosos tabuleiros estavam mia econômica mas também social. Entre
presentes nos mais diversos ponlOs da cida­ nós, as escravas de ganho e negras de tabu·
de. Nas esquinas, praças, largos, becos, es­ leiro também partiriam para o comércio
tação de trem, porta das gafieiras, elas eram ambulante nas mas Devido à própria natu­
.

presença obrigatória, já fazendo parte do reza do seu ofício, que lhes dava uma maior
cotidiano carioca. Nas festas tradicionais autonomia de movimenlO, elas consegui­
das igrejas, como as da Penba e Glória, riam afrouxar, dentro do possível, a wtela
também compareciam com as suas barracas senhorial, como já mostramos. Driblando O
de comida típica. controle do fisco e das aUlOridades munici­
Essa intensa participação no mundo do pais, essas mulheres, por intermédio do pe­
trabalho influenciou a própria personalida­ queno comércio, lançaram as bases de uma
de dessas mulheres, interferindo na sua ma­ vida comunitária intensa.
neira de pensar, sentir e de se integrar à No Rio, esse comércio, exercido pelas
realidade. Contrastando com ás mulheres "tias baianas", iria adquirir força inusitada,
de outros segmentos sociais, elas se com­ devido à alta concentração da população
portavam de forma desinibida e tinham um negra na cidade. Havia IOdo um código de
Iinguajar mais sollO e maior liberdade de valores que vazava por esses canais infor­
locomoção e iniciativa. mais decomurticação. Tais valores freqüen­
Para as mulheres das camadas popula­ temente contrastavam com os ideais
res, as mas nao guardavam maiores misté­ transmitidos pela modernidade: era a "Pe­
rios. N a realidade, a r u a pouco se quena África" marcando sua presença na
diferenciava da casa onde moravam. "Europa possível".
TanlO lá, como cá, a lei era a mesma: Uma das concepções mais difundidas
unir esforços, batalhar pela sobrevivência pela ideologia da modernidade é a que de­
sempre posta em risco. Enrun, para essas rme a rua como local de passagem. Assim ,
mulheres as mas da cidade já faziam parte o espaço público é vislO corno a "derivação
211 ESTUDOS HISTóRICOS - 1990.16

do movimento". Dentro desse contexto, as fazer-se conhecida no pedaço. Era em tomo


mas da cidade �m wna única função: per­ das barracas e tabuleiros que �avam con­
mitir a circulaç10 das pessoas e mercado­ fidências, receitas, conselhos, marcando
rias (Senett, 1988). NDo é à toa a palavra de encontros e programando atividades. Tam­
ordem úeqüentemente usada para dispersar bém era nesse local onde estabeleciam seus
as aglomerações urbanas: "Circular, circu­ contatos com pessoas de outros grupos so­
lar," ciais, ampliando as possibilidades de traba­
NDo se deve e não se pode parar na lho.
"cidade moderna". Há toda wna arquitetura No inicio do século, o "ponto" da tia
baseada na idéia da passagem: setas, sinais, Tereza, situado no largo de SDo Francisco,
viadutos, autopistas, túneis ele. Tudo apon­ era local de encontro de políticos e jornalis­
ta, conduz, diminui distAncias, projeta. tas de renome. No seu tabuleiro, funcionava
Para as mulheres das camadas populares um "verdadeiro restaurante" com cardápio
a rua nDo era esse local de passagem onde eSpecífico para cada dia da semana. Segun­
se buscava sempre chegar a algum lugar. A do um dos seus freqüentadores - O jornalis­
rua se transformou em uma espécie de lar ta Vagalume - foi graças à intervençllo de
onde, muitas vezes, se comia, dormia e clientes influentes que se impediu que O
trabalhava (Soihel, 1989). Era nos hugos e "restaurante" da baiana fosse posto abaixo
praças que as mulheres costumavam se reu­ pela polícia
nir para conversar, discutir ou se divertir, da O jornalista ainda observa que "quer no
mesma forma que era nos chafarizes e bicas tabuleiro, quer na residência da tia Tereza,
da cidade que se aglomeravam, brigando, é que os sambistas sabiam das novidades.
muitas vezes, pela sua vez. Nas esquinas, Qualquer brincadeira que houvesse, tinha
visualizavam wn ponto estratégico para seu que ir ali - ao bureau de informações"
comércio miúdo; nas marquises, o abrigo; (Guimarães, 1976). Era ao redor dos tabu­
nos portais, o esconderijo. Enfim, toda essa leiros que se sabia das coisas: lá que se
intimidade com as ruas iria contrastar viva­ construfa toda uma rede de relações que
mente com a concepçDo do espaço público informava, amparava, divertia e ampliava
funcional, destinando-se exclusivamente à os contatos.
circulação. Realiza-se, portanto, o parado·
,
Há pouco tempo, as coisas funcionavam
xo da visibilidade e do isolamento, ou seja, da mesma forma conforme o depoimento
7
ao mesmo tempo em que há uma exposição de dona Eunice. Ela nos conta que, ven­
das pessoas na esfera pública, há também dendo seus quitutes no tabuleiro, ficou co­
wna série de dispositivos que as protege da nhecida no pedaço (rua Primeiro de Março)
uinvasao do outro". Nesse contexto, o tran­ como a "baiana". Caindo no agrado da fre­
seunte se transforma em uma espécie de guesia, logo acabou sendo convidada para
voyeur: é wn expectador passivo da multi· fazer recepçOCs em clubes e jantares na alta
dão (Senen, 1988). Silencioso e distante, sociedade. Foi desta maneira que conseguiu
ele observa sem se expor. Não estabelece formar suas filhas como médica e professo­
contatos, pois está sempre se dirigindo para ra.
algum lugar. Era nas ruas, portanto, que essas mulhe·
Em relaçDo às mulheres das camadas res estabeleciam seus contatos sociais,
populares, isso não ocorria. Elas jamais es- criando e reforçando laços. Sua sociabilida­
tavam nas ruas como passage1f3S que se de não fazia parte dos códigos formais, mas

dirigem apressadamente para algum desti­ estava presente na vida concreta do cotidia­
no. Seu destino era precisamente estar ali, no. Esse era o espaço onde a comunicação
deitar raízes, ganhar terreno, conhecer e se inscrevia de forma mais eficiente. fluin-
AS TIAS BAIANAS TOMAM COI"ITA DO PEDAço 219

do Estado, a comunidade teve que recorrer


.

do livremente. Assim, foi nos lugares mais


humildes e banais, onde estavam em jogo a seus próprios meios para impor-se. Aqui
tantos afetos e conversaçOes, que a trama é que entra o papel da mulher. Esta vai ser
social se constiwiu gradativamente (Mafe­ capaz de expressar a própria condição peri­
soli, 1984). Com efeito, as mas constituem férica e fragmentada vivenciada pelo gru­
esse espaço que escapole sistematicamente po: a sua influência é difusa, marginal e
da normatização e regulamentaçãO. Não é quase anônima. Ela jamais briga pelas
à toa que os discursos da época tematiza­ "glandes causas", mas é incansável nas lu­
vam a questão, mostrando a rua como local tas do cotidiano. De wdo ela sabe um pou­
perigoso que favorece a rebeldia, indiscipli­ co: conhece o poder de cura das ervas
na e revolta. medicinais. sabe rezas para resolver os mais
No Rio de Janeiro esse fato ganhou variados problemas, lidera os mutirões de
dimensão inusitada, devido à extrema frag­ trabalho, dá conselhos à comUllidade, é me­
mentação da nossa vida s6cio-cultural. A diadora de conflitos, administradora dos
ma acabou criando seu tipo, plasmando a parcos recursos, organizadora das festas
moral dos seus habitantes, produzindo gos­ etc.
tos, coswmes, hábitos e opiniOes políticas. Devido ao exercício desses múltiplos
Enfim, chega-se a falar em povo da ma do papéis, a mulher acaba assumindo certa
Senado, povo da Travessa, povo do Catum­ ascendência no grupo. É ela que, na maioria
bi (Rio, 1987). das vezes, cria os contatos sociais, amplian­
Esses dados revelam a importância da do as perspectivas de participação social do
rua como espaço capa2 de criar um outro grupo. O caso da tia Ciata é apenas mais um
tipo de sociabilidade. Já foi dito que a mu­ entre muitos. Só que a sua história ganhou
lher das camadas populares era a "alma do certa projeção por envolver a própria figura
bairro", capaz de criar o núcleo de uma do presidente da República. Foi com ervas
cultura popular original que se opunha ao e rezas que a "tia" curou Venceslau Brás de

modernismo unificador (perrO!, 1988). E um problema dado como insolúvel pelo


dentro desse contexto que deve ser com­ saber médico da época. Agradecido, o pre­
preendida a capacidade de liderança das sidente atenderia o pedido de Ciata, conce­
mulheres. Seu poder informal é capaz de dendo ao seu marido um emprego no
mobilizar poderosas energias. invisíveis gabinete do chefe de polícia (Moura, 1983).
aos olhos do poder. Por que invisíveis? A partir daí estaria garantida a inviolabili­
dade da casa da tia Ciata.
A maioria das nossas entrevistas refor­
çou este ponto de vista, mostrando a mulher
Outros poderes e saberes como elemento chave no processo de socia­
lização do grupo. Geralmente são as coma­
Historicamente, uma das características dres, madrinhas, "tias", ou as próprias
da comunidade negra tem sido sua capaci­ companheiras que arrumam emprego para

dade subterrânea de resistência. "Por debai­ os homens. E através de contatos informais


xo do pano, nós fazíamos os nossos que elas articulam e reforçam a rede.
complôs", conta-nos a mãe Beata, referin­ Enfim, trata-se de "outros" poderes e
8
do-se à história dos antepassados. Raras saberes, que nada têm a ver com o aspecto
foram as vezes em que o grupo entrou em formal, pois são extraídos do dia-a-<iia,
confronto direto com o poder, preferindo, apreendidos na própria batalha pela sobre­
ao invés, aproveitar os intersúcios e brechas vivência. As mulheres pertencentes às ca­
para fazer valer a sua influência. Distante madas populares são, portanto, capazes de
220 ESTUDOS I-USTORlCOS . 1990/6

"driblar" os olhos do poder, oferecendo me­ o sanlO, sentir que ele confia em mim e me
lO
canismos de socializaçao alternativos aos atende"
de uma sociedade regulada pelo tempo fa­ No candomblé, grande parte do saber
bril. No seu cotidiano, essas mulheres se continua a ser !ransmitido alravés de estru­
desdobram em múltiplas e infindáveis tare­ turas informais de comunicação. A dança
fas que exlrapolarn a temporalidade formal. dos orixás, por exemplo, pode ser viSIa
Invisibilidade na produçao, poder e saber como uma espécie de narrativa onde os
infOlillSl, vincuJaçao direla com O cotidia­ vários ritmos e gestos contam uma história.
no, enfim, esse'é o universo onde se movem Mãe Beala explica que cada cantiga é o
as mulheres das camadas populares. Tal "oriqui" (história) do orixá. Por meio da
universo conaasta visivelmente com os va­ dança e da música conuicse a vida deles.
lores ideológicos dominantes. Para a comunidade, esse saber está direta­
Em decorrência do fato, a própria Irans­ mente vinculado à experiência concrela de
missão dos saberes vai ocorrer, em grande cada um: "Denlro de nossa vida, eles (os
ll
parte, fora dos canais formais de comunica­ orixás) silo reais"
ção. Lembremos do depoimento de Heitor De fato. No candomblé, O saber iniciá­
dos Plareres que se refere ao seu tempo tico tem eSlreita relaçao com a vida de cada
como O "da aprendizagem", onde quem um. De certa forma, é o próprio indivIduo
sabia mais ensinava aos outros. Traia-se de que faz o santo, da! ser comum escutar as
um saber que é passado normalmente de pessoas se referirem a seu santo como O
boca em boca, desempenhando os mais ve­ " meu Oxossi". "minha Oxum ..... O indiví­
lhos papéis de ascendência sobre os demais. duo panicipa da distribuição das forças sa­
As avós, vistas como verdadeiras guardiãs gradas quando empresta seu corpo, voz e
das !radiçOes e lembranças, vão exercer dança (Augras, 1983). O profano e o sagra­
papel fundamental na socialização do gru­ do estllo juntos, pois pertencem à mesma
po. São elas que ensinam aos netos (consan­ dinâmiCa que dá sentido à.comunidade.
güíneos ou . não) as mais variadas coisas, Naturalmente, esses poderes e valores
desde histórias e cantigas até pequenos ser­ passam hoje por um proce= de reelabora­
viços que poderão aj udar na sobrevivência. çao, incorporando outros elementos cultu­
É o caso de mãe Beala, que aprendeu rais. No entanto, ne�a incorporação, a
com a avó, que foi escrava em um engenho inovaçilo quase sempre vem lraduzida e
no interior da Bahia, histórias, cantigas de referendada por valores já interiorizados
ninar e cerâmica Também foi ela que lhe pelo grupo.
ensinou a propriedade das ervas. Diz ela:
"cada uma delas (ervas) tem um dom e um
significado, servindo para cura do corpo e
,, 9
do espírito 2_ RESGATANDO AS
Não é o saber cumulativo que interessa ENTRELINHAS
aqui, mas saber passar adiante. Enlretanto,
quando se !rata do saber iniciativo, silo ne­ Reconstituir uma história feita de lacu­
ce�<ários certos dons. A�im, no candom­ nas, interstrcios � silêncios nao é tarefa
blé, O poder da mãe-de-santo reside fácil. Quando as fontes escritas silo reticen­
sobretudo na habilidade de mediação enlre . tes,.é sempre preciso ler por tnls das linhas,
as pessoas e os orixás (Silverstein, 1979). buscar a informaçao no entredito, juntar
Nesse sentido, o depoimento de Meninazi­ fragmentos dispersos: é a "nec=idade de
nha de Oxum é claro: "Nilo é competência lidar com os silêncios", surpreendendo o
de saber muila coisa, mas de saber escutar ainda nao formulado (Vovelle, 1987).
AS TIAS BAIANAS TOMAM CONTA 00 PEDAÇO ZZI

A história das mulheres negras baianas rancho aparecer como coisa fora do lugar,
se insere nesse domínio onde a história acaba atraindo tanta ou mais alenç!!o que os
volla e meia hesita, omile e silencia. Trata­ santos, andores e emblemas sagrados. Diz
se de uma dupla exclusão: mulher e negra. o aulor:
As fonleS escritas do início do século são
extremamenle reticences sobre o assunto. "... era formado esse rancho por um
Nos jornais e revistas da época há poucas grande número de negras vestidas à mo­
referências sobre as mulheres neglas haia­ da da província da Bahia, donde lhe
nas. Alguns cronistas inleressados na cullu­ vinha o nome, e que dançavam nos in­
ra popular vasculharam as gafieiras, os tervalos dos Deo Gratias uma dança lá a
lerreiros e as festas de rua em busca de seu capricho. Para falarmos a verdade, a
informação. Quase sempre era o lado exó­ coisa era curiosa: e se nao a'empregas­
tico dessa cultura que os mobilizava à pes­ sem como primeira pane de uma ptocis­
quisa. Na realidade, essa perspectiva é sao religiosa, certamente seria ' mais
típica da cultura fin-de-si�cle que cultua o desculpável" (Almeida, 1969).
decadentismo, morbidez e nefelibatismo. O
popular, frequenlemente identificado com Descrevendo o Carnaval da praça Onze,
o primitivismo, acabaria sendo associado a Graça Aranha acentua o seu aspecto exóti­
esses valores. Era a seduçãO pelo lado aves- co; um tanto ao quanto assustador:

so da modernidade. As crônicas de Joao do


Rio são claro exemplo nesse sentido (Vel­ "Melopéia negra, melosa, feiticeira,
loso, 1988). candomblé. ( ...) Desforradafêmea Res­

E preciso reconhecer, no entanto, a im- surreiçao das bacances, das bruxas, das
portância das informaçOes que essas crôni­ diabas. Missa negra, tragédia negra, ma­
cas trazem para o historiador. Através delas, gia negra. Triunfa a negra, triunfa a mu-
é possível reconstituir um sugestivo pano­ lata (... ) Africa, Baía, Brasil" (Aranha,

rama de época, onde a questão da cultura 1982).


informal faz-se presenle O tempo todo. O
autor reconhece a importância dos negros Lim� Barreto menciona a tia Rita, mo­
baianos na formação da cultura popular ca­ radora nas proximidades da EstaÇão de Fer­
rioca, fala na "alma encantadora das ruas", ro Leopoldina, como ' uma das possíveis
diz-se interessado no "outro lado" da cida­ guardias da memória negra. Mas, segundo
de. Enfim, de uma forma um tanto quanto ele, a tia não se identifica com esse papel
indireta, é possível chegar à questão da que lhe era atribuído. Para ela, a memória
participaçao social das mulheres. Atrás, dos cantos e música estava diretamenle as­
sempre atrás dos fatos e eventos surge essa sociada ao "lempo do cativeiro". Dal a sua
presença anônima... amnésia e desinleresse em trazê-los de vol­
Para alguns autores, o assunto chega a ta (Barreto, s.d.).
ser motivo de certo constrangimento. Mas Embora de perspectivas distintas, os
os fatos acabam se imp'!
,
mdo e eles se vêem autores registram a presença da cultura ne­
obrigados a narrá-los. É o caso de Manuel gra no pedaço (Cidade Nova, praça Onze,
Antônio de Almeida e Graça Aranha Des­ EstaÇ!!o da Leopoldina), destacando O papel
crevendo uma procissão na Cidade Nova, o das mulheres. Mas são sempre referências
autor de MemtJrias de um sargenlo de mi/{­ esparsas e fragmentadas
eias refere-se ao rancho das baianas, mas Através das crônicas de Francisco Gui­
desculpa-se frenle ao leitor pela "extrava­ marães, o Vagalume (1877-1947), é possí­
gancia e ridículo da situação". Apesar de o vel resgatar um pouco dessa história tllo mal
222 ESruoos lDSTORlCOS - 199016

que associa o samba à desordem, preferindo


contada. Nas malérias no Jornal do Brasil,


Vagalume mOSIra·se particulannente sensí· moslrá-Io como urna IradiÇão que vem das
vel às manifestaÇOes da cultura popular, festas de largo da Bahia. Segundo ele, foi
construindo um verdadeiro inventário des­ na barraca das tias Ciata e Pequenina deno­
tinado a resgatá·Ias. Suas crônicas sao inte· minada O Macaco É Outro que nasceu em
ressantes, na medida em que moslram a outubro de 1916, o que seria a primeira
baianidade das festas populares cariocas, versão do samba "Pelo Telefone". Presente
notadamente a da Penha e o Carnaval. na ocasião, Vagalume regislra com euforia
Na festa da Penha, as barracas das 'ias o evento. Conta que o samba ganhou, de
são ponto de encontro e de identidade cul· imediato a adesl!o dos populares que saíram
tural. Culinária, música e dança se mistu· entoando a música em animado bloco pela
ram atraindo não só "os da terra", mas festa (Jornal do Brasil, oul. 1916).
ganhando um número cada vez maior de Nas suas crônicas carnavalescas, Vaga­
adeptos. Nos nomes das barracas fica evi· lume também vai destacar a baianidade da
dente a idéia da "espacialização" : Gruta do festa. Há uma sessllO de particular interesse
Pedaço, Reino da África, Sultana da Bahia, denominada "Carnaval nas mas ". A aveni­
Aor da Cidade Nova, Cabana do Pai-To· da Henrique Valadares e as mas do Acre, do
Lavradio, Senador Eusébio e Frei Caneca

más. As referências vão da longínqua Afri-


ca, passando pela Bahia até chegar ao Rio são constantemente notificadas como nú­
(Flor da Cidade Nova). Vivencia-se simbo­ cleos mais animados da folia carioca. A
licamente a lrajetória espacial da cultura Cidade Nova - núcleo dos baianos - está
negra. sempre presente nas suas crônicas'. Tina da
A festa da Penha abriria um canal inédi­ Cidade Nova, Kananga do Japão, Repre­
to de comunicação entre as classes sociais, sentantes da Miséria, Quem É Bom Não se
levando-as a se contatarem num espaço Mistura, são alguns dos nomes dos blocos
mais informal, fora da esfera do lrabalho. desse bairro. Visitando a Sede do Quem É
Na história do Rio de Janeiro, a cultura, Bom Não se Mistura, Vagalume fica encan­
freqüentemente, acaba se constituindo em tado com a organização do bloco, presidido
grande pólo agregador e canaJ eficiente de pela "baianinha", e registra a existência de
sociabilidade. Daí a importância de que se vários blocos e entidades carnavalescas. co­
revestem os eventos culturais e as festas, mo as Baianinhas Caprichosas. Baianinhas
atraindo a participação de diferentes grupos Faceiras sem Paixão e União das Baiani­
nhas. A Revista da Semaflll publica uma

sociais. E nesse espaço que vão se inter-


cambiar idéias e valores, alravés de estrutu­ série de fotos de ranchos carnavalescos, a
ras de comunicação informal. maioria dos quais é composta de mulheres
No início do século, a ascendência afri­ negras.
cana na festa da Penha é nítida quando as Sabe-se que a organizadora desses ran­
"tias baianas mandavam no arraial". As ro­ chos, muito disputada pelos clubes, era c0-
das de samba e capoeira começam a atrair nhecida como a "Baiana". Maria Adamas­
cada vez maior número de simpatizantes, tor, carioca de nascimento, asswniu esse
apesar de estigmatizadas pela imprensa co­ apelido devido à sua profunda convivência
mo "batuques sertanejos" e "samha qui­ com os baianos. Recolhendo seus ensina­
lombado" (Moura, 1983 e Revista da mentos, participou da fundação de vários
Semaflll, ago: 1909). ranchos, como o Sempre-Vivas, Aor da
Destoando do ponto de vista da época, Romã e Rei de Ouros, onde freqUentemente
Vagalume faz a defesa do samba como ex­ fazia o papel de mestre-sala Seu nome foi
pressa0 cultural. Assim, discorda da idéia consagrado nas rodas carnavalescas e na
AS TIAS BAIANAS TOMAM COI"{l'A 00 PEDAço 223

imprensa como a rainha das diretoras de próprio Carnaval com batalhas de confe!es,
ranchos (Jotaefegê, 1982), Maria AlaM, serpentinas, lança-perfumes, bandas de
Joana do Passu, Sara, Bambala, Amélia do música, coretos e blocos. Na rua do Lavra­
AragAo e Maria do Beju também aparecem dio, a República dos Trouxas; na Cidade
como as primeiras componentes dos ran­ Nova, os Representantes da Miséria, cujo
chos carnavalescos. Fica evidente a partici­ presidente é o lorde Miserável, seguido pela
paçAo das "tias" baianas organizando e Fome Negra, Passa Fome etc. Há toda uma
dando brilho à folia. No entanto, nas pró­ paródia ao poder, onde slio desmitificados
prias cronicas de Vagalume, elas aparecem, valores e idéias. A miséria em que vivem as
na maioria das vezes, como referências camadas populares (a fome é que determina
anônimas: baianinhas. A nosso ver, o fato a hierarquia social), o engodo da cidadania
vem reforçar a própria natureza informal - República dos Trouxas -, enfim, tudo vem
dessas lideranças. Se o cronista registra a à tona no Carnaval. Essa idéia da inverslio
presença dessas mulheres, se reconhece a da ordem cotidiana aparece sugestivamente
sua liderança, ao mesmo tempo parece não ilustrada em uma caricatura onde o rei mo­
dar importincia aos seus nomes. Basta no­ mo dialoga com a política, ordenando- lhe
mear O gênero. que se retire do cenário porque chegou o seu
Quem não conhece os nomes de João da !empo. No argumento, é clara a intenção
Baiana, Donga e Heitor dos Ptazeres? Na jocosa: se a política faz pândega o ano
história da música popular brasileira eles inteiro, essa é a vez do rei momo fazê-la. A
silo referência obrigatória. No entanto, suas polltica passa entllo a ser ridicularizada por­
respectivas maes - Perciliana, Amélia do que não cumpre o seu papel: não leva nada
12
AragAo e Celeste - foram figuras que pas­ a sério!
saram desapercebidas em termos de regis­ O Carnaval denota claramente a consti­
tro. Quando seus nomes sAo citados é tuição da trama social onde a socialidade se
sempre em referência aos filhos: recupera­ exprime o tempo todo e em todos os luga­
se apenas o papel de mAe. res. Os aspectos formais silo destituldos do
Entretanto, essas mulheres foram ele­ poder, criando-se uma conua-ordem. As
mentos que se destacaram na comunidade crônicas de Vagalume reafirmam a impor­
baiana, fortalecendo seus elos, preservando tância das ruas na constituiçAo da identida­
e divulgando os valores culturais do grupo. de sócio-poHtica dos seus habitantes.
O p,
úpria Donga se refere à mae - Amélia Trata-se de uma "cidadania paralela" que
do Aragão - como uma das pessoas que !ende a criar os seus próprios canais de
teria introduzido o samba aqui no Rio ainda participação sócio-polftica. Um fato é ine­
no final do século passado (Sodré, 1979). gável: as ruas oferecem canais de integra­
É precisamente por çste anonimato ou ção aos seus babitan!es mais funcionais do
por esta invisibilidade que a mulher para­ que qualquer outra instituiçAo política. O
doxalmente aparece. Ela consegue captar e Carnaval simplesmente torna o fato paten­
exprimir toda uma forma de comunicação te, permitindo que a idéia de pedIJço seja
que foge aos códigos dominantes. "Alma vivenciada plenamente e sem maiores
do baino" ou "dona do pedaço", a mulher constrangimentos. O que é subterrâneo no
fala a linguagem das ruas simplesmente cotidiano agora vem à superfície.

porque está em sintonia com elas. Entre os negros baianos, a questllo da


Vagalume chama a atenção para a auto­ sociabilidade passa necessariamente pelo
nomia das mas, que se apresentam no Car­ candomblé. Nesse sentido, é que ele vai
naval como verdadeiras repúblicas auto­ funcionar como um dos canais redefinido­
gestivas. Assim, cada uma delas tem o seu res de conceitos e valores. No Rio, segundo
ES1lJOOS HlSTÓRICOS - 1990/6

depoimentos colelactos por Monique Au­ glas. Essa foi uma das metas deste artigo. A
&Ias e João Batista dos Santos (1985:42-62) partir da ablação dessas mulheres, foi pos­
as primeiras casas-de-santo foram fundadas sível vislumbrar uma outra percepção da
pelos baianos, no bairro da Saúde, ainda no história. Vemos, então, um Rio de Janeiro
final do século passado. Datam dessa época bem distinto daquele impresso nos cartões
as primeiras viagens de mlle Aninha. famo­ postais da bel/e époque. Uma cidade habi­
sa mlIe-de-santo baiana, ao Rio de Janeiro. tada por cidadãos, cujos valores nos são
Filha de uma das casas mais tradici onais, a praticamente desconhecidos. Ex",,"imentar
Dê Axé M. ISSÔ, ela iria fundar o Axé Opô esse novo ângulo da história. ver através de
Monjá, que constiwi hoje um dos nossos um outro olhar, foi uma experiência de im­
.
mais tradicionais terreiros. pacto.
Trabalhar com a questão da a1teridade
não é nada fácil, pOis exige um duplo esfor­
• ço reflexivo em direção ao singular e ao
3. REINVENTANDO OS ESPAÇOS conjunto. Trata-se de apreender a cultura
nessa dinâmica, concebendo-a como reali­
A idéia de uma história haseada apenas dade multifacetada, ambígua e em inces­
na memória coletiva organizada que deixa sante movimento. Assim. ao privilegiar a
de lado as estruturas informais de comuni­ memória negra contrastando-a com deter­
cação (pollack, 1989) constitui-se em sério minados padrjles de pensamento burgueses,
equívoco. Ainda mais entre nós, onde a minha intenção não foi a de tomá-Ia en­
extrema diversidade cullural favorece a quanto entidade auto- referenciada e isola­
coexistência de várias espacialidades e da do conjunto social . Ao contrário: a
tempocalidades (Malta, 1987). É necessá­ culwra negra é corrcebida aqui como parte
rio, portanto, resgatar essa pluralidade de detentora de uma lógica, capaz de influir no
sentidos presente nas diferentes codifica­ conjunto. Essa influência - não importa se
çOes culblrais, com O objetivo de recons­ subtt;rrãnea - faz-se sentir mais fortemente
truir identidades silenciadas pela tão em determinados contextos históricos. É o
controversa "memória nacional". que aconleceu, por exemplo, no início do
Quando se trata da memória negra, o século, quando estava em curSQ a implanta­
problema é ainda mais complexo. De modo ção do mercado de trabalho capitalista.
.
geral, nossos estudos têm enfatizado a Nesse Período - conforme vimos, - ve­
opressão dos senhores sobre escravos. As­ rifica-se uma tentativa de disciplinarnento
. sim, o mundo negro é tratado como um do tempo e do espaço, tendo como referen­
aglegado monoülico onde a categoria da cial a esfera do trabalho. É precisamente aí
marginalidade acaba explicando tudo. No que se faz sentir a influência culbJral dos
entanto, há diferenças e especificidades de baianos, na medida em que o grupo tem
papéis no interior dessa cultura (Queiroz,
,
uma visão específica do conceito de espaço.
1988). E o caso das "lias" baianas, que se Este não aparece necessariamente vincula­
colocam como figuras imprescindíveis para do à questãõ do trabalho, mas adquire um
a compreensão da memória culbJral do gru­ sentido bem mais amplo. Entre os negros
po. baianos, a idéia de espaço (pedaço) consti­
Não basta reconstituir o que foi silencia­ tui um dos referenciais organizadores do
do em um nível mais amplo (memória ne­ grupo.
gra), mas também o que foi silenciado Contrastando com os padrOes dominan­
dentro do próprio grupo: no caso, o papel tes que conceituam o espaço como mero
de liderança exercido pelas mulheres ne- valor imobiliário. a cultura negra vai com-
AS TIAS BAIANAS TOMAM CONTA DO PEDAço

preendê-Io sobretudo como energia partici­ "AI começamos a desfilar na cidade. E


pativa. Nesse sentido, o próprio corpo pode hoje são as autoridades que nos procu­
Irlldllzir a idéia de território. Assim, O espa­ ram. Mas nós agüentamos tudo aquilo."
ço se transforma em energia móvel que
pode ser transmutada e IranSpOrtada inces­ A conquista do espaço urbano passa ne­
santemente de um local para outro. Uma cessariamente pela luta. Reterritorializam­
pessoa também pode levar o "axé" para se os valores através dos pontos, cordões,
oulrll: pelas milos, pelos olhos e pela fala. capoeira, rodas de samba e centros. Na cul­
Esse é um recurso para garantir o espaço de tura negra, as danças adquirem um sentido
uma cultura constantemente ameaçada. marcadamente de luta: há lOda uma coreo­
Lembremos de mlle Aninha, que, no grafia de gestos e movimentos destinada a
início do século, veio Irllzer o axé baiano abrir passagem. Através dessa coreografia,
para o Rio de Janeiro. Apesar de não dispor dá-se um novo sentido e significado às coi­
de "chão próprio" (Sodré, 1988), ou seja, sas. O espaço nilo é regulado apenas pelas
não ter casa onde se fIXar, ela já estava leis e regras institucionais, mas pela própria
abrindo espaço para a implantação do seu dinâmica das necessidades, daí a rua virar
terreiro. A acepção de espaço adquire um "ponto" e a casa virar "centro". Assim, des­
sentido marcadamente simbólico. Está co­ faz-se a rígida segmentação entre o domí­
lado à idéia de axé: é ele que abre os cami­ nio público e o privado. O privado pode se
nhos. As coisas começam a acontecer transformar em público (casa-centro), da
primeiro no plano simbólico para depois mesma forma que o público pode apresen­
adquirirem concretude. lar-se como privado (pontos na rua).
Princípio dinâmico, o axé SÓ funciona à No candomblé, como vimos, a expe­
base de união e confiatemização. Neste riência do transe estabelece o elo profundo
sentido, é extremamente significativo o entre os domínios do sagrado e do profano.
-

próprio nome da mãe Aninha: Majebassã, E o próprio corpo que vai abrigar o sagrado. .
que, em ioruba significa "não me deixe Assim, os orixás adquirem, temporaria­
sozinha" . mente, forma humana. O intercâmbio das
Vindo para o Rio, Aninha trazia consigo esferas é, portanto, incessante. Há um vai­
lOda uma história e cultura caceOles de lan­ vém contínuo do sagrado ao profano, do
çar raízes, se fixar e se desenvolver no público ao privado.
espaço urbano carioca. É sempre li união No Rio de Janeiro, nas primeiras déca­
das pessoas e a sua energia participativa que das do .século, o espaço da comunidade
fazem O espaço. Lembremos os cordOes negra (fundiário, político, social e simbóli­
carnavalescos, onde OS foliOes tomam a rua, co) é extremamente restrito. Daí a necessi­
arrastando consigo a multidilo, e a festa da dade de recorrer a múltiplas eslrlllégias,
Penha se deslocando do subúrbio para as visando ampliá-lo. A condensação é uma
avenidas centrais. Thnto nos cordOes como das estralégias mais utilizadas pelo grupo.
na festa e no candomblé a dimensilo da luta Nesse sentido, o depoimento de mãe Beata
-

está presente. E necessário sempre abrir vem ratificar a questllo: "Aqui dentro de
espaços... �m � o de terreno, a gente faz uma
l
No seu depoimento, dona Neuma 13 Africa".
-

lembra a violência policial para impedir a E a necessidade de concentrar forças que


roda de samba dos baianos. Comparando vai determ inar a ordenação espacial. No
aquele tempo diflcil - primeiras décadas do terreiro se recria a África (niIo importa exa­
século - com OS dias de hoje, ela observa: tamente que África).
ESruoo S HISTÓRICOS· 1990/6

Essa reordenaçllO gera uma visao de papel de IIder comunitária. Assim, cabe·lhe
mundo especifica que vai se fazer presente O papel de manter vivas essas tradiçOes,
nas várias dimenslles da vida sociaL zelar por elas cuidadosamente.
Já se observou que, em determinados É a necessidade de garantir o pedaço e
contextos, a ampliaçao do domínio privado ampliar a liderança pelos mais variados d0-
ocaba remetendo para a própria idéia de mínios da vida social (umbanda, samba,
privaçao (Arend!, t98l). É o que aconle<:e jongo), ampliar o espaço da casa (centro),
entre nós. Privado de participação na esfera ampliar a idéia de família ("grande famí­
pública, destruído de cidadania e identida· lia"), ampliar a concepçllO de rua (0lI0 só
de, o grupo baiano acaba criando seus pró· mero local de passagem mas ''ponto'') en­
prios canais de integração, da] a casa das fIlO ampliar o espaço do terreiro além dos
Utias". ser espaço de aconchego. participa­ limites fundiários. Sem dúvida, O candom­
ção, luta e festa. Visando amenizar. as difi· blé introduziu e consolidou muitas dessas
culdades com que se defrontavam os idéias e valores aqui no Rio. Integrado à
recém·chegados à cidade o grupo acaba modernidade, hoje ele se rearticula de di­
criando novos vínculos de sociabilidade. versas formas na ordem urbano-industriaJ.
Surge a figurado "cônsul baiano". É ele que A história do Rio de Janeiro, mais do que
vai receber no cais os seus conterrâneos e qualquer outro lugar é impensável sem a
encaminhá·los na cidade grande. influência dessa trama cultural onde se ar­
No tabuleiro da tia Teresa funciona o ticulam tradição e modernidade:
"bureau de informaçOes". É lá que o grupo
toma pé dos últimos acontccimenlos que "O monumento nao tem porta
permitem situá-lo no próprio cotidiano. a entrada é uma rua antiga,
Trata-se, portanto. de uma "cidadania para­ estreita e torta".
lela" que se vira como pode para integrar· (Caetano Velloso . Tropicália)
se. Através de espaços informais via cais do
,

porto, tabuleiros, pontos, praças, o grupo


constrói uma rede de sociabilidade, deixan·
do impressas as suas marcas identificado­
Notas
raso Refazem-se, dessa forma, as
tradicionais coordenadas espaço-tempo·
nus. 1. Denominaçlo dada por Heitor dos Prare.

res ao trecho da cidade que se locaJjzava entre a


Até na própria liderança das "tias", a
úea do ..ais do pono e a Cidade Nova, em tomo
concentraçllO de esforços e o princípio da
da praça Onze. Ver, a prop6sito, Moura
condenS8fY1IO fazem·se presentes. É sempre (1983:62). '
uma identidade que se estabelece em múl· 2. Consultar a prOpóSi10 Revista da Semana.
tiplos domínios, levando ao desempenho 1 5 jan. 1916.
dos mais variados papéis. Diz Eva: "Eu 3. Depoimento de Meninazinha de O.um,
nasci, dentro do jongo, do samba e da um· ialorix6 do Dê Omolu e Oxwn, em 10 de novem­
banda". t5 bro de 1989. As entrevistas foram realizadas com
a colaboração de Roselilll COSIll Rodriguez. .
Isso ocorre literalmente. É dentro da sua
4. Depoimento de Damiana Silva Santos em
própria casa que essas atividades se desen·
22 de maio de 1989.
rolam. A participaçao de Eva nesses domí·
5. Depoimento de Meninazinha de Oxum.
nios é tlIo espontAnea e tlIo enraizada na sua ialorixá do Dê Omolu e Oxum, em 10 de novem­
história' que ela exerce a liderança natural· bro de 1989.
mente: "coisa do destino", herança, nos 6. Depoimento de dona Zica. líder comuni­
aftrnla. De fato. Eva herdou de sua mãe o Wiada Mangueira, em 22 de setembro de 1989.
AS TIAS BAIANAS TOMAM CONTA DO PEDAÇO 227

7. Depoimento de dona Eunice dos Santos COSTA, Jurandir Freire. 1979. Ordem médica e
do Axé Opô Afonjá, em 8 de de 1989. norma familiar. Rio de Janeiro, Graal.
8. Depoimento de mie Beata, ialorixá do Dê DIAS, Maria Odila Leite da Silva. 1984. Quoti­
Omi Ojuarô, em 6 de outubro de 1989. diano e poder em São Paulo no século XIX.
9. Idem. São Paulo, Brasiliense .
10. Depoimento de Meninazinha de Oxum, _. 1985. "Nas fímbrias da escravidão urbana:
ialorixá do Dê Omolú e Oxum, em 1 0 de novem­ negras de tabuleiro e de ganho". Estudos
bro de 1 989. Econômicos, São Paulo, v. 15.
1 1 . Depoimento de mãe Beata, ialorixá do GERSON, Brasil. 1954. História das ruas do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Sousa.
Dê Omi Ojuarô, em 6 de outubro de 1989.
12. R evista da Semana, ago. 1 909 ; fev. 1 9 1 1 GIACOMINI, Sônia. 1988. Mulher e escrava.
Rio de Janeiro, Vozes.
e Jornal do BrasiJ, out. 1 9 1 6 ; fev. 1917; 1 1 fev.
GINZBURG, Carlo. 1987 . 0 queijo e os vermes;
1 9 1 9 e 1 4 fev. 1 9 19 .
o cotidiano e as idéias de um moleiro perse­
1 3 . Depoimento de dona Neuma, líder co­
guido pela l"'luisição. São Paulo, Compa­
munitária da Mangueira, em 1 1 de julho de 1989.
nhia das Letras.
14. Depoimento de mãe Beata, ialorixá do
GU S, Francisco, 1978. Na roda do
Dê Omi Ojllarô, em 6 de outubro de 1989.
samba. Rio de Janeiro, Funarte.
1 5 . Depoimento de Eva Emily Monteiro do
JOTAEFEGÊ. 1982. Figuras e coisas do Carna­
hnpétio Serrano, em 1 6 de outubro de 1989.
val. Rio de Janeiro, Funarte.
1 6 . A propósito do assunto consultar Moni­
MAFESOU, Michel. 1984. A cO"'luista do pre­
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