Você está na página 1de 9

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/311629207

A Música Popular Brasileira repensa identidade e nação

Article in Revista FAMECOS · April 2008


DOI: 10.15448/1980-3729.2006.31.3402

CITATIONS READS

5 110

1 author:

Marildo Nercolini
Universidade Federal Fluminense
12 PUBLICATIONS 13 CITATIONS

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Marildo Nercolini on 30 September 2017.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


IDENTIDADES CULTURAIS

A Música Popular Brasileira repensa identidade e


nação
Identidade nacional: novos parâmetros de análise

A
RESUMO identidade nacional não é mais vista enquanto
O objetivo desse artigo é abordar o universo da mú- atributo natural adquirido pelo sujeito por per-
sica massiva no Brasil, focando a discussão na Músi- tencer à determinada nação. Não nascemos
ca Popular Brasileira e o papel que seus criadores, a com uma identidade nacional, ela é formada e trans-
partir dos anos 60, têm na reflexão e na construção formada de acordo com as representações que va-
de novos parâmetros para se pensar identidade na- mos adquirindo e criando. Nação é, resgatando
cional e o Brasil enquanto nação. O Brasil tem na Benedict Anderson (1989), uma comunidade imagi-
produção musical ligada à canção popular papel nada com suas instituições culturais, seus símbolos
decisivo na gênese de novas identidades nacionais e representações, com seu modo de construir senti-
híbridas; não mais fixas, nem essencializadas, mas dos e, portanto, de construir identidades.
marcadas pela articulação do “próprio” e do Os limites nacionais encontram-se imprecisos e
“alheio”. Seus criadores auxiliam a quebrar as bar- móveis. Hoje se torna ilusório pensarmos em ter-
reiras asfixiantes criadas por nacionalistas empe- mos de nação a partir de pressupostos como o de
dernidos, mas sem cair na também asfixiante aceita- um povo puro, com uma história homogênea cons-
ção cega daquilo que é produzido e entendido na truída pelos heróis nacionais. Se não há mais cen-
metrópole como o melhor. tros únicos, irradiadores da verdade a ser seguida e
aplicada como regra, também não há mais nações
PALAVRAS-CHAVE com esses pressupostos. As fronteiras nacionais in-
• MPB ventadas e fixas, a separar “nós e outros”, “ordem e
• Tropicália desordem”, “cosmos e caos”, “verdade e impostu-
• identidade nacional ra”, não mais se sustentam.
As transformações constantes na tecnologia, nas
ABSTRACT telecomunicações, na forma de trocas e na produção
The aim of this work is to analyse the importance of the de bens culturais e econômicos acabam por tornar
role played by pop song musicians on the imaginary of instáveis as identidades fixas, baseadas em noções
the Post-Sixties generation in Brazil, for has helped in the espaços-temporais de etnia e/ou nação. Para Hall
building of a space of expression and manifestations such (1997) essa crise de identidade decorre, entre outros
as had never previously existed in such moulds before. fatores, do deslocamento de estruturas e dos pro-
MPB holds a means of artistic creation and a kind of cessos centrais das sociedades modernas, acrescidas
authorship well inserted into this new world context pelo abalo em seu quadro de referências. Temos,
where the frontiers have been erased and identities have então, uma identidade descentrada, deslocada e frag-
been blended. Brazilian popular musicians can serve as mentada; portanto, mais móvel.
excellent sources for researchers interested in learning De acordo com Giddens (Apud Hall, 1997: 16), o
about the transformation of national identity and the idea ritmo acelerado e o alcance global da interconexão
of nation. Theirs creations retains the marks of the trans- das diferentes áreas do planeta trazem como conse-
formations undergone by their Brazilian society, and have qüência transformações sociais globais, tanto no que
recreated such transformations into peculiar aesthetical se refere às noções de tempo e espaço, quanto ao
forms of artistic expression. desalojamento do sistema social, marcado pela des-
continuidade. Para Laclau (Apud Hall, op.cit.: 17), a
KEY WORDS contemporaneidade vem caracterizada pela diferen-
• Brazilian popular music ça, pelas articulações parciais dos elementos identi-
• Tropicália tários, pelo deslocamento que desarticula as identi-
• national identity dades mestras, baseadas na posição de classe, na
etnia e na nacionalidade.
Silviano Santiago (1978) trabalha identidade naci-
onal como processo de rearticulações, em que os
códigos culturais impostos pelos colonizadores fo-
ram transfigurados sistematicamente em suas nor-
mas e características, destruindo-lhes a unidade, a
pureza e o sinal de superioridade, imprimindo-se
Marildo José Nercolini neles rasuras e transgressões que resultam em no-
UFF vas configurações. Instaura-se um “entre-lugar” para

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral 125


Marildo José Nercolini • 125–132

os discursos periféricos, como o latino-americano. ultramodernos, do desenvolvimento cultural é, hoje,


Nem a simples negação da influência estrangeira, um dos maiores desafios para se repensar identida-
nem a sua aceitação cega, mas a “apropriação que de e a cidadania” (García Canclini, op.cit.: 151-2).
instaura o espaço da mediação cultural onde a hege-
monia vai ser desafiada” (Guelfi, 1996: 140). A identidade brasileira pensada e recriada pela MPB
Ao se acentuarem os contatos e as trocas entre No Brasil, para pensar a questão das transforma-
culturas, acentua-se também o processo de desloca- ções identitárias, parece-me fundamental resgatar o
mento das identidades nacionais, colocando em pau- papel dos criadores do que veio a denominar-se
ta o hibridismo, a transculturação. O local e o global Música Popular Brasileira, na formação de uma iden-
imbricam-se originando articulações novas. O local tidade plural, híbrida, em que se articulam o popu-
é penetrado e moldado por influências sociais mui- lar, o massivo e o culto; o próprio e o alheio; o local e
to distantes dele, mas, ao mesmo tempo, esse local o global.
acaba por transformar o global, numa interação de Os criadores da MPB, a partir dos anos 60, auxili-
mão dupla. A difusão do consumismo, real ou ima- am a criar um novo tipo de relação identitária, uma
ginado, contribui para esse efeito de “supermercado nova busca de identificação com símbolos e elemen-
cultural”, desalojando e desvinculando as identida- tos nacionais, sobretudo para a parcela mais jovem
des de tempo e espaços restritos. García Canclini é da população. A própria denominação encarna esse
inovador em sua reflexão sobre identidades, pois as desejo, afinal, não é impunemente que se chamam
relaciona diretamente com o consumo. Para ele as Música Popular Brasileira. O que estaria subjacente
identidades hoje são definidas e configuradas no a esses nomes? Talvez o desejo de deixar bem mar-
consumo, isto é, no acesso que alguém tem, ou que cado que estavam falando de um local específico e
poderia ter, aos bens materiais, estéticos e culturais sentiam-se vinculados ao seu país de origem; e tam-
produzidos. Ocorre, portanto, a redefinição do bém como resposta aos inúmeros críticos ligados a
senso de pertencimento e identidade, “organiza- uma tradição conservadora, que insistiam em afir-
do cada vez menos por lealdades locais ou nacio- mar que ambas as propostas eram estrangeirizantes
nais e mais pela participação em comunidades por reproduzirem o som ianque e, pretensamente,
transnacionais desterritorializadas de consumi- renegarem a cultura nacional.
dores” (García Canclini, 1995: 28). No período em que estava sendo gestada – anos
Cabe, no entanto, acrescentar que esse processo 60 – o governo militar instalado buscou apropriar-
não é homogêneo, mas tem uma clara geometria de se dos símbolos pátrios e impingir um nacionalismo
poder, abrangendo desigualmente regiões e especi- xenófobo e truculento. Por outra parte, existia uma
almente estratos da população. Se a possibilidade elite intelectual tradicional a defender os valores
das diferentes escolhas identitárias é vasta nos cen- pátrios e defenestrar qualquer tentativa de transfor-
tros, nas periferias o ritmo é mais lento e desigual, e mação cultural que não seguisse seus padrões. Con-
o pluralismo se vê restrito pelas condições precárias tra essas duas posturas, criadores da MPB se insur-
que não permitem o acesso aos mecanismos de pro- giram e entraram na disputa da definição do que era
dução dessas diferentes opções identitárias. Outro ser brasileiro, propondo-se a rediscutir a identidade
aspecto a ser destacado é que hoje o impacto global nacional em outros moldes.
vem associado a um novo interesse pelo local. A É interessante perceber que a MPB foi se transfor-
formação dessas novas identidades transterritorais mando, no decorrer dos anos, em um dos índices
e multilingüísticas coexiste com a tentativa de remo- mais fortes da brasilidade e do “orgulho nacional”;
delação das culturas nacionais. Na arte, por exem- um aspecto que, junto com o futebol, tem servido
plo, se o processo de desterritorialização existe e para o reconhecimento interno e também externo da
ganha amplos espaços, também há fortes movimen- marca do ser brasileiro. Não custa lembrar que os
tos de reterritorializar, afirmando o local, o específi- músicos ligados à MPB, desde os anos 60 até hoje,
co. O processo, ao invés de antagônico, é mais com- estão inseridos nas discussões sobre identidade e
plementar. A hibridação intercultural reconstrói as nação. Alguns imbuídos de um nacionalismo mais
identidades étnicas, regionais e nacionais, mas não fechado e reativo; outros de uma noção de identida-
nos mesmos moldes modernos, pois não se pode de em termos mais abertos e menos fixos, como bem
mais negar a nação como entrecruzamento, nos ce- o demonstra a proposta tropicalista.
nários multideterminados, de uma diversidade de No Brasil dos anos 60 o mundo da cultura passou
sistemas simbólicos. por um período de intensa criação que interligava
Na produção de identidades persistem os confli- as diversas artes. Um dos elementos que possibili-
tos. Merece cada vez maior destaque as negociações tou essa interligação foi a preocupação comum a
estabelecidas, numa verdadeira co-produção, pois esses criadores de pensar o Brasil e o seu futuro:
“a identidade é teatro e é política, é representação e “Quem somos? Que projeto de Brasil queremos?
ação” e “estudar o modo como estão sendo produ- Como implantá-lo?” Havia uma confluência ideoló-
zidas as relações de continuidade, ruptura e hibri- gica que, a despeito das divergências pontuais – que
dação entre sistemas locais e globais, tradicionais e eram muitas, como comprovam as acirradas discus-

126 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral


A Música Popular Brasileira repensa identidade e nação • 125–132

sões estabelecidas – possibilitou a criação de um música norte-americana – que é, inegavelmente, sua


ambiente de efervescência criativa nas áreas acadê- mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade,
micas, no teatro, no cinema, na poesia e na música. vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de
O momento parecia propício, mas o golpe militar de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem
64 representou um baque nas pretensões desses cri- é o pai. (...) Acontece que, de uma hora para outra, a
adores de pensar e transformar o Brasil numa nação mãe norte-americana da jovem bossa meio-sangue
mais justa e soberana. Com muito sofrimento, vi- resolveu reconhecê-la publicamente como filha, ace-
ram-se obrigados a revisar seus projetos. Por outro nando-lhe com uma herança fabulosa de dólares –
lado, o golpe militar resultou também num forte em direitos autorais. E foi assim que (...) começaram a
elemento aglutinador das esquerdas das várias áre- aparecer – para desgraça e reputação da mãe da pobre
as – política, cultural e artística. O inimigo comum moça – os pais da bossa nova (Tinhorão, 1969: 25).
fez aflorar a necessidade da união, superando as No mesmo artigo-capítulo, Tinhorão estabelecia
divergências. O ideário em torno da revolução e da uma relação dos pais da BN com a cultura norte-
nação “todos como um” ganhou força. O pensa- americana, tentando comprovar sua venda “ao ca-
mento nacional-popular era hegemônico e sua críti- pital estrangeiro”. Vejam-se alguns exemplos:
ca, nas artes, somente passou a ter visibilidade a
partir da proposta tropicalista, em 67. JOHNNY ALF, pianista (mulato brasileiro de nome
Dispostos a dar sua contribuição na revolução americano, disfarçando o nome verdadeiro: João
que se vislumbrava, os cantores e compositores da Alfredo);
MPB se propunham a produzir uma música que,
valorizando as conquistas inovadoras e modernas ANTÔNIO JOBIM, maestro (compositor repetida-
da Bossa Nova, resgatasse os elementos da cultura mente acusado de apropriar-se de músicas norte-
popular, reafirmando, assim, sua condição de brasi- americanas, esconde o nome Antônio sob o apelido
leiros e disposição a criar a partir do contexto em americanizado de Tom);
que viviam.
A Revista Civilização Brasileira, espaço importante VINÍCIUS DE MORAIS, poeta (velho compositor
de debate nos anos 60, dispunha-se a pensar o Brasil desconhecido até o advento da bossa nova, já em
e reunia em suas páginas análise e discussão de 1933 conseguia gravar a fox-canção “Dor de uma
temas que abarcavam questões políticas, ideológi- saudade”, imitando o ritmo norte-americano);
cas e sobretudo culturais e artísticas. Bossa Nova,
MPB, nacionalismo, “entreguismo”, novos rumos, JOÃO GILBERTO, violinista (cidadão baiano, co-
pureza-cópia... eram alguns temas ligados à música nhecido na intimidade por Gibi, de quem chegou a
que foram discutidos apaixonadamente. Em suas anunciar-se que ia requerer a cidadania norte-ame-
páginas encontramos José Ramos Tinhorão, Ferreira ricana) (Ibid.: 26).
Goulart, Edu Lobo, Capinam e, é claro, Caetano
Veloso, entre tantos dispostos a pensar o Brasil e Por aí se pode ter uma idéia da virulência do
discutir a música popular que aqui se fazia. embate. Tinhorão falava em nome da parcela mais
O embate que se estabeleceu entre Tinhorão conservadora da intelectualidade, disposta a preser-
(estudioso da música popular, com posições conser- var um purismo de nossa cultura contra qualquer
vadoras e ferrenho defensor da “pureza” de uma influência externa, sobretudo norte-americana.
música com “raízes” brasileiras) e os criadores, de- Em debate promovido pela Revista Civilização Bra-
fensores e continuadores da Bossa Nova mostrava, sileira, em 1966, Tinhorão deixava claro que a BN
por um lado, que a questão nacional e a reflexão nada mais era do que “um tipo de jazz: a matéria-
sobre a nossa identidade estava na ordem do dia; e, prima era brasileira e a forma norte-americana”
por outro, que as transformações propostas por uma (Lobo; Tinhorão et alii: 1966: 307), seguindo a regra
nova geração incluíam o diálogo mais aberto com o geral nas relações entre países desenvolvidos e os
estrangeiro, sem demonizá-lo, demonstrando uma menos desenvolvidos. Afirmava a inautenticidade
visão menos estreita do país e não mais aceitando da BN por ela conscientemente “assimilar e incor-
uma identidade nacional fixa e imutável. porar à produção musical ritmos, estilos e harmoni-
Em 1963, Tinhorão publicou um artigo na revista as de músicas estrangeiras” (Ibid.: 312).
Senhor (posteriormente reproduzido em seu livro A Edu Lobo, nessa ocasião, coube responder a
Música Popular – um tema em debate, cujas referências tais críticas. Contrapondo-se a Tinhorão, afirmava
aqui se tomam da edição de 1969) em que, de modo os ganhos imensos que Tom Jobim, João Gilberto,
pejorativo, tentava demonstrar que a Bossa Nova enfim, a BN, trouxeram para nossa música, confir-
(BN) e a nova música popular que se estava criando mando o seu caráter brasileiro. Para confirmar sua
naquele momento eram fruto de uma americaniza- tese, citava Mário de Andrade: “A reação contra o
ção de nossa música e que estariam colaborando que é estrangeiro deve ser feita espertalhosamente
para a penetração norte-americana na MPB: pela deformação e adaptação dele, não pela repul-
Filha de aventuras secretas de apartamento com a sa” (Ibid.: 309), mas imbuído do ideário nacional-

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral 127


Marildo José Nercolini • 125–132

popular, completava, ainda citando Mário de exerceu forte influência em compositores como Villa
Andrade: “O artista não deve ser exclusivista, nem Lobos e Camargo Guarnieri, nacionalistas ligados à
unilateral. O compositor brasileiro tem que se base- questão popular. José Miguel Wisnik (2001: 134) sin-
ar quer como documentação, quer como inspiração tetiza muito bem a conjunção entre o nacional e o
no folclore” (Ibid.). E ele mesmo complementava, popular na arte, apontando que ela “visa à criação
afirmando: de um espaço estratégico onde o projeto de autono-
mia nacional contém uma posição defensiva contra
Quando se chama de autêntico só o samba, o avanço da modernidade estética e pelo mercado
comete-se um equívoco. Dizer que bossa nova cultural.”
sofreu influências do jazz como fator negativo, Em nome “da estilização das fontes da cultura
chega a ser cômico porque então seria preciso popular rural, idealizada como a detentora pura da
lembrar que o samba tem influência africana e fisionomia oculta da nação” (Ibid.: 133), o discurso
chegaríamos ao caos, sem encontrar nenhuma nacionalista do Modernismo renegou a cultura po-
música autêntica. Por que dizer que um é au- pular emergente dos grandes centros urbanos por
têntico e outro não? (Ibid.: 312). temer que esta desorganizaria a “visão centralizada
homogênea e paternalista da cultura nacional”, pois
Quando o tema é a canção de protesto, que incor- “rebelde à classificação imediata pelo seu próprio
porava nas letras a problemática e as lutas ligadas à movimento ascendente e pela sua vizinhança inva-
realidade brasileira, Tinhorão não se dava por ven- siva, ameaça entrar por todas as brechas da vida
cido e reafirmava seu ponto de vista. Para ele, essa cultural, pondo em xeque a própria concepção de
seria uma maneira dos compositores ligados à BN arte do intelectual erudito (Ibid.: 132).”
tentar fugir da alienação, pois a fuga “se daria pela O que se pretendia era uma elevação “estético-
letra das composições. Isto é, diante da aberração pedagógica do país”, incorporando e sublimando a
que consiste em descobrir que se estava falando rusticidade do folclore e, ao mesmo tempo, aplacan-
musicalmente de temas universais, com sotaque do “através da difusão da cultura alta a agitação
americano, o que a chamada participação pretende urbana (o povo deseducado) a que os meios de massa
é falar nacionalisticamente de temas nacionais, mas (...) davam trela” (Ibid.: 134).
sem perder o sotaque (Ibid.: 310)”. Em outras pala- Mário de Andrade, assim como Villa-Lobos, pro-
vras, questionava: como aceitar uma letra engajada pagava a superioridade do folclore. Ele, como afir-
se a música não era nossa? ma Wisnik, penetrava nos processos “mitopoéticos-
Ao responder, Edu Lobo novamente acentuou a musicais” da cultura popular , mas com um crivo
profunda ligação que os cantores e compositores crítico, deslocando, relativizando e reorganizando
ligados à MPB do período tinham com os temas tais elementos a partir de sua formação erudita, su-
nacionais. Apoiando-se uma vez mais em Mário de perando assim um nacionalismo ortodoxo e progra-
Andrade, afirmava: mático. Mário via na música rural, marcadamente
de origem nordestina, virtudes “autóctones” e “tra-
O período atual do Brasil, especialmente nas dicionalmente nacionais”. Ele não renegava toda pro-
artes, é o de nacionalização. Estamos procuran- dução cultural urbana, valorizava aquela parcela
do conformar a produção surgida no país com que conseguia manter-se aparte da influência “dele-
a realidade nacional. O critério atual da música téria do urbanismo”, trazida pelo progresso e pelo
brasileira deve ser não filosófico, mas social, internacionalismo. Para isso, seria preciso:
deve ser um critério de combate (Ibid.: 311).
(...) ao estudioso discernir no folclore urbano o
As citações de Mário de Andrade feitas por Edu que é virtualmente autóctone, o que é tradicio-
Lobo são um dado importante e demonstram como nalmente nacional, o que é essencialmente po-
esse embate era levado a sério. Responde a um naci- pular enfim, do que é popularesco, feito à fei-
onalista ortodoxo com um outro nacionalista mais ção do popular, ou influenciado pelas modas
requintado e menos esquemático. internacionais (Andrade, 1962: 167)
Nesse debate percebem-se nitidamente a presen-
ça do ideário nacional-popular. A tradição nacional- Se nacional-popular versus vanguarda-mercado
popular tem origem, no Brasil, na segunda fase do já era um embate incisivo nas artes modernistas de
movimento modernista - aquela que vai de 1930 a 30 e 40, sobretudo com Villa-Lobos e Mário de
1945. Para seus seguidores, além de brasileira e mo- Andrade, esse embate vai se aprofundar, tornando-
derna, a arte precisaria ser social, isto é, dirigir-se ao se mais decisivo e explosivo na criação artística da
povo brasileiro e levar em conta seus problemas. década de 60, sobretudo na MPB que se configura-
Subjaz neles uma visão de arte enquanto reflexo da va. Como se percebe, Mário de Andrade era uma
realidade e instrumento de conscientização política. das fontes teóricas preferenciais e a citação feita por
Com seus estudos sobre a música brasileira, Mário Edu Lobo não foi casual. Assim como Mário, que
de Andrade, um dos seus principais representantes, afirmava que a música popular era nossa criação

128 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral


A Música Popular Brasileira repensa identidade e nação • 125–132

mais forte e bela, percebia-se entre os criadores de março de 1962, isto aparece claramente: “O artista
arte e cultura nos anos 60 que a música popular no que pratica sua arte situando seu pensamento e sua
Brasil ocupava um lugar privilegiado e que ela po- atitude criadora exclusivamente em função da pró-
deria contribuir decisivamente para as transforma- pria arte é apenas a pobre vítima de um logro tanto
ções sociais tão necessárias para o país. histórico quanto existencial” (Apud Buarque de
Com o advento da ditadura e todos os problemas Hollanda, 1992: 122).
conseqüentes, no seio da Bossa Nova operaram-se No plano musical, resgatavam-se as velhas for-
transformações. Houve uma paralisação da pesqui- mas da canção urbana (sambão, sambinha, marcha,
sa musical em níveis formais e uma ênfase nas le- marcha-rancho...) e rural (moda de viola, samba de
tras. O conteúdo semântico passou a ter uma impor- roda, desafio...), atendo-se à simplicidade formal. O
tância fundamental diante da realidade que o país importante era o conteúdo a ser transmitido, como
passava a viver. A linguagem se tornou agressiva, muito bem sintetiza Geraldo Vandré:
abordando diretamente o problema do subdesen-
volvimento ou, em tom de lamento, expondo as Acho que em canção popular a música deve ser
condições subumanas, sobretudo dos nordestinos e uma funcionária despudorada do texto. Isso
dos habitantes dos morros. não quer dizer que não se deva usar os recursos
Carlos Lyra foi um dos responsáveis por essa artesanais, com a maior disponibilidade possí-
mudança de rumos, articulando uma reaproximação vel, para o desenvolvimento de uma ideologia
da música popular brasileira com a cultura popular, musical nacional. Mas é preciso ter um cuidado
esforço semelhante ao feito por Vianinha, no teatro, muito grande para que o uso desses recursos
e Ferreira Gullar, na poesia. Carlos Lyra (Apud Ho- esteja realmente a serviço do texto, que é fun-
mem de Mello, 1976: 114), analisando o período, damental na canção popular (Homem de Mello,
afirma: 1976: 128).

Nessas buscas da realidade nacional acabei en- Carlos Zílio (1983) criticava essa postura, pois via
contrando tanto o Villa-Lobos como o Nélson na arte nacional-popular uma tendência ao mimetis-
Cavaquinho, Cartola, João do Vale, os verdadei- mo com o popular. Advertia que, para preservar os
ros valores nacionais [grifo nosso]. E o negócio valores nacionais, “ameaçados pela cultura norte-ame-
era ir às escolas de samba e ver qual era a ricana”, os seguidores da concepção nacional-popular
realidade nacional em todos os seus aspectos. reverenciavam a arte popular como a única realmente
Eu procurava mesmo esse pessoal de escola de brasileira, que precisava ser protegida para não se
samba e também os caras que tinham leitura, contaminar. Zílio via nesta proposta um caráter restri-
como Vandré. tivo, pois ela subestimava “as profundas interações
dialéticas entre o nacional e o internacional”, uma vez
A politização e as pesquisas que, na música, res- que continha “uma visão preconcebida do particular
gatavam o regionalismo, especialmente do nordeste da nossa cultura” (Zílio, 1983: 47).
e suas tradições, apresentavam similitude com a Caetano Veloso não se eximiu desse debate, aliás,
criação dos Centros Populares de Cultura - CPC, como nunca se eximiu de debate algum. Posicionar-
articulados pela UNE, com ênfase na arte engajada. se frente a questões ligadas ao Brasil, nossa identi-
A música popular deveria ajudar a resgatar os valo- dade, de onde viemos e para onde vamos são fre-
res mais “genuínos” da nacionalidade e auxiliar na qüentes no decorrer da carreira de Caetano, seja em
sedimentação de uma cultura nacional. A canção entrevistas, artigos, livro (Verdade Tropical o com-
deveria ter uma função muito mais política que es- prova) e também num grande número de suas
tética, seria um instrumento de conscientização, de- composições. Mesmo antes da Tropicália, momen-
nunciando a realidade injusta em que vivia a maio- to fundamental nesse debate, ele tomava posição,
ria da população e fomentando a conscientização e a fomentando a discussão. Nas páginas da Revista Ci-
mobilização do povo. Em nome da defesa da pátria vilização Brasileira, em 1966, encontramo-lo entre Ca-
brasileira e de sua cultura, a incorporação na arte – pinam, Ferreira Gullar, Gustavo Dahl, Nara Leão,
seja na música, no teatro ou na poesia – de elemen- Flávio Macedo Soares e Nelson Lins e Barros deba-
tos estranhos à cultura nacional, naquele momento, tendo: “Que caminho seguir na música popular bra-
era considerada por alguns nacionalistas mais orto- sileira?” O próprio título já era emblemático e mar-
doxos como “traição à pátria”. cava a hegemonia que a linha nacional-popular tinha
Heloísa Buarque de Hollanda (1992) aponta que dentro da canção popular naquele momento, afinal,
no projeto dos CPCs – que propunha uma arte sugere-se a busca de “um caminho” e não de “cami-
engajada nos moldes do nacional-popular – a pala- nhos”. Caetano já aí demonstrou seu descontenta-
vra poética deveria ter uma eficácia revolucionária, mento e conseguiu dar um passo adiante no debate,
vista enquanto instrumento de tomada de poder. criticando tanto a postura assumida por Tinhorão,
Engajamento cultural e militância política estavam quanto a postura assumida então pela maior parce-
intrinsecamente ligados. No manifesto do CPC, de la de cantores e compositores da canção popular.

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral 129


Marildo José Nercolini • 125–132

Caetano foi enfático ao colocar em questão uma a cultura de massa internacional que traria malefícios
visão nacionalista que via como retrógrada para a à cultura brasileira, citando nominalmente o “Iê-iê-
MPB: iê”. Já que não se podia fechar o país para essa
cultura de massa internacional, devia-se combatê-la
A questão da música popular brasileira vem culturalmente. A forma de combate - resguardar
sendo posta ultimamente em termos de fideli- nossas raízes: “fazer com que os compositores pro-
dade e comunicação com o povo brasileiro. Quer curem dentro da própria cultura brasileira, nos ele-
dizer: sempre se discute se o importante é ter mentos populares da música brasileira, a fonte de
uma visão ideológica dos problemas brasilei- uma nova criação que possa realmente fazer frente a
ros, e a música é boa, desde que exponha bem essa onda internacional” (Ibid.: 384-385). Por fim, na
essa visão; ou se devemos retomar ou apenas mesma forma como Mário de Andrade décadas an-
aceitar a música primitiva brasileira (Caetano, teriores havia feito, Gullar reafirmava o poder da
apud Veloso, Gullar et alii, 1966: 378). música popular no Brasil: “Das formas de arte brasi-
leira é a música talvez a que esteja mais entranhada
Essas duas visões seriam empobrecedoras ao co- no meio do povo brasileiro; é a que tem mais força,
locar uma camisa de força na criação, com limites mais capacidade de enfrentar a influência estrangei-
rígidos, os quais ele rejeitava. De um lado Tinhorão, ra” (Ibid.: 385). Em poucas palavras Gullar sintetiza-
que defendia “a preservação do analfabetismo como va o pensamento hegemônico nas artes do período,
única salvação”, de outro aqueles que resistiam “a propondo o uso da arte para vencer o inimigo capi-
esse tradicionalismo com uma modernidade de idéia talista, que, em sua ânsia de expansão, progresso e
ou de forma imposta como melhoramento qualitati- desenvolvimento, devorava nesse processo todas as
vo” (Ibid.: 378). Para Caetano, “a música brasileira tradições populares. Gullar, como deixa claro em
se moderniza e continua brasileira”, não devendo texto posterior (1979), pretendia contrapor-se ao
ficar atrelada a padrões fixos, pois “toda informação “vanguardismo formalista”, cuja concepção de arte
é aproveitada (e entendida) da vivência e da com- via como elitista e hermética, dominada pela impor-
preensão da realidade cultural brasileira” (Ibid.). tação de formas. Esse autor não negava a importân-
Nota-se sua insistência no permanecer brasileira e cia e a influência na arte nacional da arte estrangei-
ser feita a partir de nossa realidade, mas renovando- ra. Ressaltava, contudo, que em países cujas culturas
se e abrindo-se a novos caminhos. Não renegava a não eram consistentes e estavam em formação, as
tradição, ao contrário, a reafirmava: “Se temos uma influências externas tendiam a ser “maléficas”, agin-
tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela, do como fator de perturbação do processo formativo
não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este da cultura nacional.
conhecimento que vai nos dar a possibilidade de Esse debate promovido pela Civilização Brasileira
criar algo novo e coerente com ela” (Ibid.). deixou claro o que viria a seguir. Desde de 1964 se
A necessidade da “retomada da linha evolutiva” percebiam rupturas com a proposta então hegemô-
dentro da MPB seria capaz de dar organicidade para nica dentro da MPB. O caminho único de uma arte
“selecionar e ter um julgamento de criação”, uma nacional-popular não respondia mais aos anseios
organicidade entendida como estruturação que pos- de todos os seus criadores e muito menos aos da
sibilitasse “o trabalho em conjunto, inter-relacionan- sociedade que entendiam representar. Caetano, nesse
do as artes e os ramos intelectuais” (Ibid.). João debate, explicitava-as e já apresentava alguns traços
Gilberto seria o parâmetro: “a informação da mo- do que viria a ser a Tropicália; Gullar fincava o pé na
dernidade musical utilizada na recriação, na reno- defesa do nacional-popular. As cartas novamente
vação, no dar um passo à frente da música popular estavam dadas, o embate estava apenas começando.
brasileira” (Ibid.), conjugando tradição e moderni- Em 1967, a trupe tropicalista, tendo Caetano e Gil
dade. Ficam claros aqui alguns pressupostos que, à frente, ateou fogo à discussão, trazendo novas
no ano seguinte, estariam na base da Tropicália. cartas na manga: Oswald de Andrade e a antropofa-
Também nesse debate Caetano deixava claro o que gia, a produção considerada brega, kitsch da música
o movia na criação naquele momento: brasileira e, o que causou o mal-estar maior, o diálo-
go com o pop-rock inglês dos Beatles, com suas
Sei também que a Arte não salva nada nem guitarras elétricas e, conseqüentemente, o diálogo
ninguém, mas que é uma das nossas faces. Me com o “Iê-iê-iê” nacional, aproximando-se da Jovem
interessa que corresponda o que faço à posição Guarda.
tomada por mim diante da realidade brasileira. Antes dos tropicalistas, o artista plástico Hélio
Por mim e por todos os moços da classe média, Oiticica (ver Zílio, 1983) já afirmava que vivíamos
que estudam nas faculdades e se interessam em numa realidade marcada por contradições, e que a
lutar contra a alienação (Ibid.: 384). arte devia reconhecer esse fato e agir a partir dele,
afinal o Brasil ainda não teria um sistema de arte
Ferreira Gullar, imbuído do espírito nacional-po- estruturado e sofria as mais diversas influências:
pular, encerrou esse debate propondo a luta contra modismo, modelos externos, diversidades regionais.

130 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral


A Música Popular Brasileira repensa identidade e nação • 125–132

Fugir do consumo seria alienar-se; numa visão an- A Tropicália queria afirmar o próprio, mas não se fe-
tropofágica, afirmava que precisávamos “consumir chando para o estrangeiro, e sim o devorando e trans-
o consumo”. Para superar o caráter subdesenvolvi- formando-o com crivos locais, reafirmando assim a
do da nossa arte, tornava-se necessário primeiro identidade brasileira como diferenciada:
reconhecer esse caráter.
A arte baseada nos pressupostos do nacional-po- A Bossa Nova tinha justamente uma grande
pular se viu questionada nas artes plásticas pela afirmação da cultura brasileira porque não ti-
antiarte de Oiticica e Vergara; no teatro, pela ousa- nha tido problemas em assimilar a influência
dia formal e inquietante de José Celso Martinez; no da melhor música norte-americana. (...) Eles
cinema, por Glauber Rocha e seus transes oníricos, [João Gilberto e Tom Jobim] não se sentiram
questionando o papel dos intelectuais e mostrando humilhados, se sentiram estimulados. Nós tam-
uma visão de Brasil complexa. Formava-se bém preferimos nos sentir estimulados por to-
das as referências. (...) Criamos um estilo de
(...) uma geração sensibilizada pelo desejo de liberdade, porque a gente não se sentia humi-
fazer da arte não mais o instrumento repetitivo lhado pela presença da cultura dos países mais
e previsível de uma veiculação política direta, ricos do que nós (Ibid.: 102; 104).
mas um espaço aberto à invenção, à provoca-
ção, à procura de novas possibilidades expres- Do cenário local, os tropicalistas se apropriaram
sivas, culturais, existenciais (Buarque de de um tipo de música considerada brega e desqua-
Hollanda, 1992: 65). lificada (Vicente Celestino, Carmem Miranda, as
irmãs Batista, Isaurinha Garcia...) e a deslocaram
Mas se esse tipo de crítica já existia no campo das ironicamente, colocando-a em um “ambiente de
artes e da cultura, ela passou a ter maior visibilidade repertório elevado”, como afirma Caetano, acatan-
quando trazida para o campo da música popular, do-a como produtos de uma cultura nacional que
cuja abrangência e penetração eram muito maiores. também compunha nossa brasilidade. Enfim, pro-
A Tropicália, além da inovação estético-musical, veio punham “uma postura de estar-no-mundo (...), não
repensar a questão nacional, o Brasil e sua identida- como um país de Terceiro Mundo que fica ao rebo-
de em outros parâmetros. Assumiu uma postura que do que acontece nos países mais desenvolvi-
contra um nacionalismo fechado e ressentido, afir- dos”, mas sim de “eu vivo no mundo hoje e faço
mando a necessidade do diálogo e da abertura para com os elementos de que disponho esta arte, este
o mundo, para a “temida” cultura estrangeira, pois gesto” (Ibid.: 100). Por um lado, essa postura contra-
via nesse contato a possibilidade de crescermos e dizia Mário de Andrade à medida que dialogava
nos firmarmos como nação. Isso fica claro em mui- também com o “popularesco feito à feição do popu-
tas análises feitas por Caetano. Em entrevista conce- lar, ou influenciado pelas modas internacionais”
dida a Christopher Dunn (1994) afirmava que a (Andrade, 1962: 167), atitude rejeitada pelo moder-
Tropicália: nista. Mas, por outro, os tropicalistas utilizavam o
procedimento sugerido pelo Mário: extrair da músi-
(...) foi uma crítica ao tipo de nacionalismo que ca popular o que ela tinha de melhor, dando-lhe um
nos parecia ingênuo e defensivo. Nós acreditá- teor mais erudito e moderno; e devolver às massas o
vamos ambiciosamente que, pelo menos do pon- seu “populário sonoro” convertido em “música ar-
to de vista da música popular, podíamos e de- tística”, tendo em vista a afirmação da brasilidade.
víamos ser agressivos, ter um nacionalismo Uma brasilidade, porém, não baseada no consenso,
agressivo (Caetano apud Dunn, 1994: 101). no ideário do “todos como um”, mas no dissenso de
uma nação que são muitas, de um Brasil formado
Os tropicalistas apropriaram-se e fizeram a sua por culturas diversas, não mais querendo forçar uma
leitura da antropofagia cultural de Oswald de igualdade utópica construída a partir de padrões
Andrade “em que você come tudo o que vem de que estabeleciam o “bem” a ser seguido e valoriza-
qualquer lugar do mundo e faz daquilo o que você do, demonizando o restante como cópia, lixo cultu-
quer, digere como quer. É uma idéia de comer tudo ral, o não-Brasil. Uma brasilidade aberta e construí-
o que houver e produzir uma coisa nova (Ibid.).” da no diálogo e no embate, não fixa e imutável.
Na linha de Oswald, a Tropicália, no dizer de Cae- O caminho aberto pelos tropicalistas aliado às
tano, propunha uma mente que não fosse “prisionei- transformações pelas quais passou o país e o mun-
ra das consciências enlatadas”, criando “uma arte, um do sob a égide da globalização, assim como toda a
jeito de ser, um jeito de conviver que não [deixasse] o rediscussão estabelecida sobre nação e identidade
enlatado dominar”, mas não da forma defensiva e em termos teóricos e práticos, possibilitaram o ad-
programática de um nacionalismo que levaria à pro- vento de novos parâmetros de discussão que a mú-
vincialização, com uma cultura fechada que parecia sica brasileira hoje está percorrendo. O Movimento
“não ter força própria” e preferia “viver da força ne- Manguebeat, o Movimento Hip Hop, o Funk se
gativa, que é uma reação à força do outro” (Ibid.: 105). apresentam, e o processo continua.„FAMECOS

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral 131


Marildo José Nercolini • 125–132

REFERÊNCIAS VELOSO, Caetano; GULLAR, Ferreira; et alli . “Que


caminho seguir na música popular brasileira?”
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Revista Civilização Brasileira, n.7, ano I, maio de
São Paulo: Ática, 1989. 1966. p. 375-385.

ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música brasileira. WISNIK, José Miguel. “Nacionalismo Musical.” In:
São Paulo: Martins, 1962. SQUEFF, E. e WISNIK, Miguel. O Nacional e o
Popular na Cultura Brasileira – Música. São Paulo:
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Impressões Brasiliense, 2001.
de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/
70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. ZÍLIO, Carlos. “Da antropofagia à tropicália.” In:
ZÍLIO, C., LAFETÁ, J., CHIAPPINI, L.M. O
DUNN, Christopher. “Caetano Veloso: nacional e o popular na cultura brasileira – Artes
Tropicalismo revisitado.” Revista de literatura Plásticas e Literatura. São Paulo: Brasiliense,
Brasileira- Journal of Brazilian Literature, n.11, ano 1983. 2ed. p.11- 56.
7, 1994, Porto Alegre. p. 99-110 (Entrevista
concedida por Caetano Veloso a Christopher
Dunn em 07/07/1992).

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e


cidadãos: conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. “Identidade


cultural numa perspectiva pós-moderna.”
Revista Gragoatá, Niterói: EDUFF, n.1, p-137-149,
2.sem.1996.

GULLAR, Ferreira. “Vanguardismo e cultura


popular no Brasil”. Temas de Ciências Humanas,
São Paulo, v.5, p.75-93, 1979.

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-


modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

HOMEM DE MELLO, Zuza. Música popular


brasileira. São Paulo: Melhoramentos, Editora da
Universidade de São Paulo, 1976.

LOBO, Edu; TINHORÃO, J.R. et al. “Confronto:


Música Popular Brasileira.” Revista Civilização
Brasileira, n.3, ano I, julho 1965. p. 305-312.

NERCOLINI, Marildo José. A construção cultural


pelas metáforas: A MPB e o Rock Nacional
Argentino repensam as fronteiras globalizadas. Rio
de Janeiro: UFRJ/ LETRAS, 2005. (Tese
defendida no Programa de Ciência da
Literatura.)

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso


latino-americano.” In: ———. Uma literatura nos
trópicos: ensaios sobre a dependência cultural.
São Paulo: Perspectiva, 1978. p.11-28.

TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema


em debate. 2ed. Rio de Janeiro: JCM, [1969].

132 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 31 • dezembro de 2006 • quadrimestral

View publication stats

Você também pode gostar