Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/311629207
CITATIONS READS
5 110
1 author:
Marildo Nercolini
Universidade Federal Fluminense
12 PUBLICATIONS 13 CITATIONS
SEE PROFILE
All content following this page was uploaded by Marildo Nercolini on 30 September 2017.
A
RESUMO identidade nacional não é mais vista enquanto
O objetivo desse artigo é abordar o universo da mú- atributo natural adquirido pelo sujeito por per-
sica massiva no Brasil, focando a discussão na Músi- tencer à determinada nação. Não nascemos
ca Popular Brasileira e o papel que seus criadores, a com uma identidade nacional, ela é formada e trans-
partir dos anos 60, têm na reflexão e na construção formada de acordo com as representações que va-
de novos parâmetros para se pensar identidade na- mos adquirindo e criando. Nação é, resgatando
cional e o Brasil enquanto nação. O Brasil tem na Benedict Anderson (1989), uma comunidade imagi-
produção musical ligada à canção popular papel nada com suas instituições culturais, seus símbolos
decisivo na gênese de novas identidades nacionais e representações, com seu modo de construir senti-
híbridas; não mais fixas, nem essencializadas, mas dos e, portanto, de construir identidades.
marcadas pela articulação do “próprio” e do Os limites nacionais encontram-se imprecisos e
“alheio”. Seus criadores auxiliam a quebrar as bar- móveis. Hoje se torna ilusório pensarmos em ter-
reiras asfixiantes criadas por nacionalistas empe- mos de nação a partir de pressupostos como o de
dernidos, mas sem cair na também asfixiante aceita- um povo puro, com uma história homogênea cons-
ção cega daquilo que é produzido e entendido na truída pelos heróis nacionais. Se não há mais cen-
metrópole como o melhor. tros únicos, irradiadores da verdade a ser seguida e
aplicada como regra, também não há mais nações
PALAVRAS-CHAVE com esses pressupostos. As fronteiras nacionais in-
• MPB ventadas e fixas, a separar “nós e outros”, “ordem e
• Tropicália desordem”, “cosmos e caos”, “verdade e impostu-
• identidade nacional ra”, não mais se sustentam.
As transformações constantes na tecnologia, nas
ABSTRACT telecomunicações, na forma de trocas e na produção
The aim of this work is to analyse the importance of the de bens culturais e econômicos acabam por tornar
role played by pop song musicians on the imaginary of instáveis as identidades fixas, baseadas em noções
the Post-Sixties generation in Brazil, for has helped in the espaços-temporais de etnia e/ou nação. Para Hall
building of a space of expression and manifestations such (1997) essa crise de identidade decorre, entre outros
as had never previously existed in such moulds before. fatores, do deslocamento de estruturas e dos pro-
MPB holds a means of artistic creation and a kind of cessos centrais das sociedades modernas, acrescidas
authorship well inserted into this new world context pelo abalo em seu quadro de referências. Temos,
where the frontiers have been erased and identities have então, uma identidade descentrada, deslocada e frag-
been blended. Brazilian popular musicians can serve as mentada; portanto, mais móvel.
excellent sources for researchers interested in learning De acordo com Giddens (Apud Hall, 1997: 16), o
about the transformation of national identity and the idea ritmo acelerado e o alcance global da interconexão
of nation. Theirs creations retains the marks of the trans- das diferentes áreas do planeta trazem como conse-
formations undergone by their Brazilian society, and have qüência transformações sociais globais, tanto no que
recreated such transformations into peculiar aesthetical se refere às noções de tempo e espaço, quanto ao
forms of artistic expression. desalojamento do sistema social, marcado pela des-
continuidade. Para Laclau (Apud Hall, op.cit.: 17), a
KEY WORDS contemporaneidade vem caracterizada pela diferen-
• Brazilian popular music ça, pelas articulações parciais dos elementos identi-
• Tropicália tários, pelo deslocamento que desarticula as identi-
• national identity dades mestras, baseadas na posição de classe, na
etnia e na nacionalidade.
Silviano Santiago (1978) trabalha identidade naci-
onal como processo de rearticulações, em que os
códigos culturais impostos pelos colonizadores fo-
ram transfigurados sistematicamente em suas nor-
mas e características, destruindo-lhes a unidade, a
pureza e o sinal de superioridade, imprimindo-se
Marildo José Nercolini neles rasuras e transgressões que resultam em no-
UFF vas configurações. Instaura-se um “entre-lugar” para
popular, completava, ainda citando Mário de exerceu forte influência em compositores como Villa
Andrade: “O artista não deve ser exclusivista, nem Lobos e Camargo Guarnieri, nacionalistas ligados à
unilateral. O compositor brasileiro tem que se base- questão popular. José Miguel Wisnik (2001: 134) sin-
ar quer como documentação, quer como inspiração tetiza muito bem a conjunção entre o nacional e o
no folclore” (Ibid.). E ele mesmo complementava, popular na arte, apontando que ela “visa à criação
afirmando: de um espaço estratégico onde o projeto de autono-
mia nacional contém uma posição defensiva contra
Quando se chama de autêntico só o samba, o avanço da modernidade estética e pelo mercado
comete-se um equívoco. Dizer que bossa nova cultural.”
sofreu influências do jazz como fator negativo, Em nome “da estilização das fontes da cultura
chega a ser cômico porque então seria preciso popular rural, idealizada como a detentora pura da
lembrar que o samba tem influência africana e fisionomia oculta da nação” (Ibid.: 133), o discurso
chegaríamos ao caos, sem encontrar nenhuma nacionalista do Modernismo renegou a cultura po-
música autêntica. Por que dizer que um é au- pular emergente dos grandes centros urbanos por
têntico e outro não? (Ibid.: 312). temer que esta desorganizaria a “visão centralizada
homogênea e paternalista da cultura nacional”, pois
Quando o tema é a canção de protesto, que incor- “rebelde à classificação imediata pelo seu próprio
porava nas letras a problemática e as lutas ligadas à movimento ascendente e pela sua vizinhança inva-
realidade brasileira, Tinhorão não se dava por ven- siva, ameaça entrar por todas as brechas da vida
cido e reafirmava seu ponto de vista. Para ele, essa cultural, pondo em xeque a própria concepção de
seria uma maneira dos compositores ligados à BN arte do intelectual erudito (Ibid.: 132).”
tentar fugir da alienação, pois a fuga “se daria pela O que se pretendia era uma elevação “estético-
letra das composições. Isto é, diante da aberração pedagógica do país”, incorporando e sublimando a
que consiste em descobrir que se estava falando rusticidade do folclore e, ao mesmo tempo, aplacan-
musicalmente de temas universais, com sotaque do “através da difusão da cultura alta a agitação
americano, o que a chamada participação pretende urbana (o povo deseducado) a que os meios de massa
é falar nacionalisticamente de temas nacionais, mas (...) davam trela” (Ibid.: 134).
sem perder o sotaque (Ibid.: 310)”. Em outras pala- Mário de Andrade, assim como Villa-Lobos, pro-
vras, questionava: como aceitar uma letra engajada pagava a superioridade do folclore. Ele, como afir-
se a música não era nossa? ma Wisnik, penetrava nos processos “mitopoéticos-
Ao responder, Edu Lobo novamente acentuou a musicais” da cultura popular , mas com um crivo
profunda ligação que os cantores e compositores crítico, deslocando, relativizando e reorganizando
ligados à MPB do período tinham com os temas tais elementos a partir de sua formação erudita, su-
nacionais. Apoiando-se uma vez mais em Mário de perando assim um nacionalismo ortodoxo e progra-
Andrade, afirmava: mático. Mário via na música rural, marcadamente
de origem nordestina, virtudes “autóctones” e “tra-
O período atual do Brasil, especialmente nas dicionalmente nacionais”. Ele não renegava toda pro-
artes, é o de nacionalização. Estamos procuran- dução cultural urbana, valorizava aquela parcela
do conformar a produção surgida no país com que conseguia manter-se aparte da influência “dele-
a realidade nacional. O critério atual da música téria do urbanismo”, trazida pelo progresso e pelo
brasileira deve ser não filosófico, mas social, internacionalismo. Para isso, seria preciso:
deve ser um critério de combate (Ibid.: 311).
(...) ao estudioso discernir no folclore urbano o
As citações de Mário de Andrade feitas por Edu que é virtualmente autóctone, o que é tradicio-
Lobo são um dado importante e demonstram como nalmente nacional, o que é essencialmente po-
esse embate era levado a sério. Responde a um naci- pular enfim, do que é popularesco, feito à fei-
onalista ortodoxo com um outro nacionalista mais ção do popular, ou influenciado pelas modas
requintado e menos esquemático. internacionais (Andrade, 1962: 167)
Nesse debate percebem-se nitidamente a presen-
ça do ideário nacional-popular. A tradição nacional- Se nacional-popular versus vanguarda-mercado
popular tem origem, no Brasil, na segunda fase do já era um embate incisivo nas artes modernistas de
movimento modernista - aquela que vai de 1930 a 30 e 40, sobretudo com Villa-Lobos e Mário de
1945. Para seus seguidores, além de brasileira e mo- Andrade, esse embate vai se aprofundar, tornando-
derna, a arte precisaria ser social, isto é, dirigir-se ao se mais decisivo e explosivo na criação artística da
povo brasileiro e levar em conta seus problemas. década de 60, sobretudo na MPB que se configura-
Subjaz neles uma visão de arte enquanto reflexo da va. Como se percebe, Mário de Andrade era uma
realidade e instrumento de conscientização política. das fontes teóricas preferenciais e a citação feita por
Com seus estudos sobre a música brasileira, Mário Edu Lobo não foi casual. Assim como Mário, que
de Andrade, um dos seus principais representantes, afirmava que a música popular era nossa criação
mais forte e bela, percebia-se entre os criadores de março de 1962, isto aparece claramente: “O artista
arte e cultura nos anos 60 que a música popular no que pratica sua arte situando seu pensamento e sua
Brasil ocupava um lugar privilegiado e que ela po- atitude criadora exclusivamente em função da pró-
deria contribuir decisivamente para as transforma- pria arte é apenas a pobre vítima de um logro tanto
ções sociais tão necessárias para o país. histórico quanto existencial” (Apud Buarque de
Com o advento da ditadura e todos os problemas Hollanda, 1992: 122).
conseqüentes, no seio da Bossa Nova operaram-se No plano musical, resgatavam-se as velhas for-
transformações. Houve uma paralisação da pesqui- mas da canção urbana (sambão, sambinha, marcha,
sa musical em níveis formais e uma ênfase nas le- marcha-rancho...) e rural (moda de viola, samba de
tras. O conteúdo semântico passou a ter uma impor- roda, desafio...), atendo-se à simplicidade formal. O
tância fundamental diante da realidade que o país importante era o conteúdo a ser transmitido, como
passava a viver. A linguagem se tornou agressiva, muito bem sintetiza Geraldo Vandré:
abordando diretamente o problema do subdesen-
volvimento ou, em tom de lamento, expondo as Acho que em canção popular a música deve ser
condições subumanas, sobretudo dos nordestinos e uma funcionária despudorada do texto. Isso
dos habitantes dos morros. não quer dizer que não se deva usar os recursos
Carlos Lyra foi um dos responsáveis por essa artesanais, com a maior disponibilidade possí-
mudança de rumos, articulando uma reaproximação vel, para o desenvolvimento de uma ideologia
da música popular brasileira com a cultura popular, musical nacional. Mas é preciso ter um cuidado
esforço semelhante ao feito por Vianinha, no teatro, muito grande para que o uso desses recursos
e Ferreira Gullar, na poesia. Carlos Lyra (Apud Ho- esteja realmente a serviço do texto, que é fun-
mem de Mello, 1976: 114), analisando o período, damental na canção popular (Homem de Mello,
afirma: 1976: 128).
Nessas buscas da realidade nacional acabei en- Carlos Zílio (1983) criticava essa postura, pois via
contrando tanto o Villa-Lobos como o Nélson na arte nacional-popular uma tendência ao mimetis-
Cavaquinho, Cartola, João do Vale, os verdadei- mo com o popular. Advertia que, para preservar os
ros valores nacionais [grifo nosso]. E o negócio valores nacionais, “ameaçados pela cultura norte-ame-
era ir às escolas de samba e ver qual era a ricana”, os seguidores da concepção nacional-popular
realidade nacional em todos os seus aspectos. reverenciavam a arte popular como a única realmente
Eu procurava mesmo esse pessoal de escola de brasileira, que precisava ser protegida para não se
samba e também os caras que tinham leitura, contaminar. Zílio via nesta proposta um caráter restri-
como Vandré. tivo, pois ela subestimava “as profundas interações
dialéticas entre o nacional e o internacional”, uma vez
A politização e as pesquisas que, na música, res- que continha “uma visão preconcebida do particular
gatavam o regionalismo, especialmente do nordeste da nossa cultura” (Zílio, 1983: 47).
e suas tradições, apresentavam similitude com a Caetano Veloso não se eximiu desse debate, aliás,
criação dos Centros Populares de Cultura - CPC, como nunca se eximiu de debate algum. Posicionar-
articulados pela UNE, com ênfase na arte engajada. se frente a questões ligadas ao Brasil, nossa identi-
A música popular deveria ajudar a resgatar os valo- dade, de onde viemos e para onde vamos são fre-
res mais “genuínos” da nacionalidade e auxiliar na qüentes no decorrer da carreira de Caetano, seja em
sedimentação de uma cultura nacional. A canção entrevistas, artigos, livro (Verdade Tropical o com-
deveria ter uma função muito mais política que es- prova) e também num grande número de suas
tética, seria um instrumento de conscientização, de- composições. Mesmo antes da Tropicália, momen-
nunciando a realidade injusta em que vivia a maio- to fundamental nesse debate, ele tomava posição,
ria da população e fomentando a conscientização e a fomentando a discussão. Nas páginas da Revista Ci-
mobilização do povo. Em nome da defesa da pátria vilização Brasileira, em 1966, encontramo-lo entre Ca-
brasileira e de sua cultura, a incorporação na arte – pinam, Ferreira Gullar, Gustavo Dahl, Nara Leão,
seja na música, no teatro ou na poesia – de elemen- Flávio Macedo Soares e Nelson Lins e Barros deba-
tos estranhos à cultura nacional, naquele momento, tendo: “Que caminho seguir na música popular bra-
era considerada por alguns nacionalistas mais orto- sileira?” O próprio título já era emblemático e mar-
doxos como “traição à pátria”. cava a hegemonia que a linha nacional-popular tinha
Heloísa Buarque de Hollanda (1992) aponta que dentro da canção popular naquele momento, afinal,
no projeto dos CPCs – que propunha uma arte sugere-se a busca de “um caminho” e não de “cami-
engajada nos moldes do nacional-popular – a pala- nhos”. Caetano já aí demonstrou seu descontenta-
vra poética deveria ter uma eficácia revolucionária, mento e conseguiu dar um passo adiante no debate,
vista enquanto instrumento de tomada de poder. criticando tanto a postura assumida por Tinhorão,
Engajamento cultural e militância política estavam quanto a postura assumida então pela maior parce-
intrinsecamente ligados. No manifesto do CPC, de la de cantores e compositores da canção popular.
Caetano foi enfático ao colocar em questão uma a cultura de massa internacional que traria malefícios
visão nacionalista que via como retrógrada para a à cultura brasileira, citando nominalmente o “Iê-iê-
MPB: iê”. Já que não se podia fechar o país para essa
cultura de massa internacional, devia-se combatê-la
A questão da música popular brasileira vem culturalmente. A forma de combate - resguardar
sendo posta ultimamente em termos de fideli- nossas raízes: “fazer com que os compositores pro-
dade e comunicação com o povo brasileiro. Quer curem dentro da própria cultura brasileira, nos ele-
dizer: sempre se discute se o importante é ter mentos populares da música brasileira, a fonte de
uma visão ideológica dos problemas brasilei- uma nova criação que possa realmente fazer frente a
ros, e a música é boa, desde que exponha bem essa onda internacional” (Ibid.: 384-385). Por fim, na
essa visão; ou se devemos retomar ou apenas mesma forma como Mário de Andrade décadas an-
aceitar a música primitiva brasileira (Caetano, teriores havia feito, Gullar reafirmava o poder da
apud Veloso, Gullar et alii, 1966: 378). música popular no Brasil: “Das formas de arte brasi-
leira é a música talvez a que esteja mais entranhada
Essas duas visões seriam empobrecedoras ao co- no meio do povo brasileiro; é a que tem mais força,
locar uma camisa de força na criação, com limites mais capacidade de enfrentar a influência estrangei-
rígidos, os quais ele rejeitava. De um lado Tinhorão, ra” (Ibid.: 385). Em poucas palavras Gullar sintetiza-
que defendia “a preservação do analfabetismo como va o pensamento hegemônico nas artes do período,
única salvação”, de outro aqueles que resistiam “a propondo o uso da arte para vencer o inimigo capi-
esse tradicionalismo com uma modernidade de idéia talista, que, em sua ânsia de expansão, progresso e
ou de forma imposta como melhoramento qualitati- desenvolvimento, devorava nesse processo todas as
vo” (Ibid.: 378). Para Caetano, “a música brasileira tradições populares. Gullar, como deixa claro em
se moderniza e continua brasileira”, não devendo texto posterior (1979), pretendia contrapor-se ao
ficar atrelada a padrões fixos, pois “toda informação “vanguardismo formalista”, cuja concepção de arte
é aproveitada (e entendida) da vivência e da com- via como elitista e hermética, dominada pela impor-
preensão da realidade cultural brasileira” (Ibid.). tação de formas. Esse autor não negava a importân-
Nota-se sua insistência no permanecer brasileira e cia e a influência na arte nacional da arte estrangei-
ser feita a partir de nossa realidade, mas renovando- ra. Ressaltava, contudo, que em países cujas culturas
se e abrindo-se a novos caminhos. Não renegava a não eram consistentes e estavam em formação, as
tradição, ao contrário, a reafirmava: “Se temos uma influências externas tendiam a ser “maléficas”, agin-
tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela, do como fator de perturbação do processo formativo
não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este da cultura nacional.
conhecimento que vai nos dar a possibilidade de Esse debate promovido pela Civilização Brasileira
criar algo novo e coerente com ela” (Ibid.). deixou claro o que viria a seguir. Desde de 1964 se
A necessidade da “retomada da linha evolutiva” percebiam rupturas com a proposta então hegemô-
dentro da MPB seria capaz de dar organicidade para nica dentro da MPB. O caminho único de uma arte
“selecionar e ter um julgamento de criação”, uma nacional-popular não respondia mais aos anseios
organicidade entendida como estruturação que pos- de todos os seus criadores e muito menos aos da
sibilitasse “o trabalho em conjunto, inter-relacionan- sociedade que entendiam representar. Caetano, nesse
do as artes e os ramos intelectuais” (Ibid.). João debate, explicitava-as e já apresentava alguns traços
Gilberto seria o parâmetro: “a informação da mo- do que viria a ser a Tropicália; Gullar fincava o pé na
dernidade musical utilizada na recriação, na reno- defesa do nacional-popular. As cartas novamente
vação, no dar um passo à frente da música popular estavam dadas, o embate estava apenas começando.
brasileira” (Ibid.), conjugando tradição e moderni- Em 1967, a trupe tropicalista, tendo Caetano e Gil
dade. Ficam claros aqui alguns pressupostos que, à frente, ateou fogo à discussão, trazendo novas
no ano seguinte, estariam na base da Tropicália. cartas na manga: Oswald de Andrade e a antropofa-
Também nesse debate Caetano deixava claro o que gia, a produção considerada brega, kitsch da música
o movia na criação naquele momento: brasileira e, o que causou o mal-estar maior, o diálo-
go com o pop-rock inglês dos Beatles, com suas
Sei também que a Arte não salva nada nem guitarras elétricas e, conseqüentemente, o diálogo
ninguém, mas que é uma das nossas faces. Me com o “Iê-iê-iê” nacional, aproximando-se da Jovem
interessa que corresponda o que faço à posição Guarda.
tomada por mim diante da realidade brasileira. Antes dos tropicalistas, o artista plástico Hélio
Por mim e por todos os moços da classe média, Oiticica (ver Zílio, 1983) já afirmava que vivíamos
que estudam nas faculdades e se interessam em numa realidade marcada por contradições, e que a
lutar contra a alienação (Ibid.: 384). arte devia reconhecer esse fato e agir a partir dele,
afinal o Brasil ainda não teria um sistema de arte
Ferreira Gullar, imbuído do espírito nacional-po- estruturado e sofria as mais diversas influências:
pular, encerrou esse debate propondo a luta contra modismo, modelos externos, diversidades regionais.
Fugir do consumo seria alienar-se; numa visão an- A Tropicália queria afirmar o próprio, mas não se fe-
tropofágica, afirmava que precisávamos “consumir chando para o estrangeiro, e sim o devorando e trans-
o consumo”. Para superar o caráter subdesenvolvi- formando-o com crivos locais, reafirmando assim a
do da nossa arte, tornava-se necessário primeiro identidade brasileira como diferenciada:
reconhecer esse caráter.
A arte baseada nos pressupostos do nacional-po- A Bossa Nova tinha justamente uma grande
pular se viu questionada nas artes plásticas pela afirmação da cultura brasileira porque não ti-
antiarte de Oiticica e Vergara; no teatro, pela ousa- nha tido problemas em assimilar a influência
dia formal e inquietante de José Celso Martinez; no da melhor música norte-americana. (...) Eles
cinema, por Glauber Rocha e seus transes oníricos, [João Gilberto e Tom Jobim] não se sentiram
questionando o papel dos intelectuais e mostrando humilhados, se sentiram estimulados. Nós tam-
uma visão de Brasil complexa. Formava-se bém preferimos nos sentir estimulados por to-
das as referências. (...) Criamos um estilo de
(...) uma geração sensibilizada pelo desejo de liberdade, porque a gente não se sentia humi-
fazer da arte não mais o instrumento repetitivo lhado pela presença da cultura dos países mais
e previsível de uma veiculação política direta, ricos do que nós (Ibid.: 102; 104).
mas um espaço aberto à invenção, à provoca-
ção, à procura de novas possibilidades expres- Do cenário local, os tropicalistas se apropriaram
sivas, culturais, existenciais (Buarque de de um tipo de música considerada brega e desqua-
Hollanda, 1992: 65). lificada (Vicente Celestino, Carmem Miranda, as
irmãs Batista, Isaurinha Garcia...) e a deslocaram
Mas se esse tipo de crítica já existia no campo das ironicamente, colocando-a em um “ambiente de
artes e da cultura, ela passou a ter maior visibilidade repertório elevado”, como afirma Caetano, acatan-
quando trazida para o campo da música popular, do-a como produtos de uma cultura nacional que
cuja abrangência e penetração eram muito maiores. também compunha nossa brasilidade. Enfim, pro-
A Tropicália, além da inovação estético-musical, veio punham “uma postura de estar-no-mundo (...), não
repensar a questão nacional, o Brasil e sua identida- como um país de Terceiro Mundo que fica ao rebo-
de em outros parâmetros. Assumiu uma postura que do que acontece nos países mais desenvolvi-
contra um nacionalismo fechado e ressentido, afir- dos”, mas sim de “eu vivo no mundo hoje e faço
mando a necessidade do diálogo e da abertura para com os elementos de que disponho esta arte, este
o mundo, para a “temida” cultura estrangeira, pois gesto” (Ibid.: 100). Por um lado, essa postura contra-
via nesse contato a possibilidade de crescermos e dizia Mário de Andrade à medida que dialogava
nos firmarmos como nação. Isso fica claro em mui- também com o “popularesco feito à feição do popu-
tas análises feitas por Caetano. Em entrevista conce- lar, ou influenciado pelas modas internacionais”
dida a Christopher Dunn (1994) afirmava que a (Andrade, 1962: 167), atitude rejeitada pelo moder-
Tropicália: nista. Mas, por outro, os tropicalistas utilizavam o
procedimento sugerido pelo Mário: extrair da músi-
(...) foi uma crítica ao tipo de nacionalismo que ca popular o que ela tinha de melhor, dando-lhe um
nos parecia ingênuo e defensivo. Nós acreditá- teor mais erudito e moderno; e devolver às massas o
vamos ambiciosamente que, pelo menos do pon- seu “populário sonoro” convertido em “música ar-
to de vista da música popular, podíamos e de- tística”, tendo em vista a afirmação da brasilidade.
víamos ser agressivos, ter um nacionalismo Uma brasilidade, porém, não baseada no consenso,
agressivo (Caetano apud Dunn, 1994: 101). no ideário do “todos como um”, mas no dissenso de
uma nação que são muitas, de um Brasil formado
Os tropicalistas apropriaram-se e fizeram a sua por culturas diversas, não mais querendo forçar uma
leitura da antropofagia cultural de Oswald de igualdade utópica construída a partir de padrões
Andrade “em que você come tudo o que vem de que estabeleciam o “bem” a ser seguido e valoriza-
qualquer lugar do mundo e faz daquilo o que você do, demonizando o restante como cópia, lixo cultu-
quer, digere como quer. É uma idéia de comer tudo ral, o não-Brasil. Uma brasilidade aberta e construí-
o que houver e produzir uma coisa nova (Ibid.).” da no diálogo e no embate, não fixa e imutável.
Na linha de Oswald, a Tropicália, no dizer de Cae- O caminho aberto pelos tropicalistas aliado às
tano, propunha uma mente que não fosse “prisionei- transformações pelas quais passou o país e o mun-
ra das consciências enlatadas”, criando “uma arte, um do sob a égide da globalização, assim como toda a
jeito de ser, um jeito de conviver que não [deixasse] o rediscussão estabelecida sobre nação e identidade
enlatado dominar”, mas não da forma defensiva e em termos teóricos e práticos, possibilitaram o ad-
programática de um nacionalismo que levaria à pro- vento de novos parâmetros de discussão que a mú-
vincialização, com uma cultura fechada que parecia sica brasileira hoje está percorrendo. O Movimento
“não ter força própria” e preferia “viver da força ne- Manguebeat, o Movimento Hip Hop, o Funk se
gativa, que é uma reação à força do outro” (Ibid.: 105). apresentam, e o processo continua.FAMECOS
ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música brasileira. WISNIK, José Miguel. “Nacionalismo Musical.” In:
São Paulo: Martins, 1962. SQUEFF, E. e WISNIK, Miguel. O Nacional e o
Popular na Cultura Brasileira – Música. São Paulo:
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Impressões Brasiliense, 2001.
de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/
70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. ZÍLIO, Carlos. “Da antropofagia à tropicália.” In:
ZÍLIO, C., LAFETÁ, J., CHIAPPINI, L.M. O
DUNN, Christopher. “Caetano Veloso: nacional e o popular na cultura brasileira – Artes
Tropicalismo revisitado.” Revista de literatura Plásticas e Literatura. São Paulo: Brasiliense,
Brasileira- Journal of Brazilian Literature, n.11, ano 1983. 2ed. p.11- 56.
7, 1994, Porto Alegre. p. 99-110 (Entrevista
concedida por Caetano Veloso a Christopher
Dunn em 07/07/1992).