Você está na página 1de 10

213

A relação afroindígena1

Marcio Goldman
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p213-222 Manha e do Umbandaum: Grupo Afroindígena


de Antropologia Cultural, sediados na pequena
Há mais de dez anos, uma estudante de cidade de Caravelas, no extremo-sul baiano,
Mestrado em antropologia social defendeu estariam “realmente” querendo dizer ao se afir-
uma dissertação sobre um grupo de pessoas do marem afroindígenas, a antropóloga preferiu
extremo-sul baiano que não apenas se pensam seguir de modo detalhado e profundo o que
(no sentido forte da palavra) como “afroindí- eles efetivamente dizem, fazem e pensam a res-
genas”, como desenvolvem uma série de com- peito de si mesmos, dos outros e dos mundos
plexas reflexões sobre essa expressão e sobre a de que participam.
sua própria situação no mundo. Mesmo reco- Ela pôde aprender, assim, que “afroindíge-
nhecendo a qualidade da dissertação, os exa- na” quer dizer muitas coisas, “uma origem mí-
minadores levantaram dúvidas sobre o alcance tica, um modo de descendência e uma forma
do termo e sobre a natureza das reflexões do de expressão artística” (MELLO, 2003, p. 73).
grupo. Por um lado, argumentando com o ca- Que não se trata de uma simples “justaposi-
ráter apenas “local” do processo estudado, sua ção de duas influências ou formas de expressão
suposta incapacidade de produzir efeitos mais […] distintas e irredutíveis”, mas de “uma ter-
“globais”. Por outro, com toda a delicadeza, su- ceira forma, com características próprias”. Que
gerindo que a autora teria projetado suas pró- a “relação que o grupo estabelece entre afros e
prias ideias no discurso do grupo estudado. indígenas é não apenas uma relação de proximi-
De fato, nem o material etnográfico, nem dade entre dois mundos paralelos”, mas “uma
a análise de Cecília Mello (ver, também, fusão ou intersecção entre esses dois mundos”
MELLO 2003 e 2010) se acomodavam bem (MELLO, 2003, p. 96). Finalmente, que o
a um certo clichê que ainda domina o pensa- conceito foi elaborado com as mesmas técnicas
mento antropológico, mas que parece cada vez utilizadas na elaboração de obras de arte. Em
mais difícil de ser sustentado: a certeza de que suma, que ele mesmo é “uma ‘técnica de rea-
não temos nada de importante a aprender com proveitamento ou de reatualização por brico-
as pessoas com quem convivemos durante nos- lage” (MELLO, 2003, p. 102) das experiências
sas pesquisas. E isso seja porque elas realmente históricas vividas de diferentes maneiras pelos
não seriam capazes de nos ensinar nada, seja membros do grupo como afros e como indí-
porque aquilo que eventualmente nos ensinam genas. Observando que o conceito é sempre
é de curto alcance, limitado ao contexto paro- “acionado em relação a determinadas circuns-
quial em que vivem. tâncias e se refere a uma forma de expressão ou
No entanto, em lugar de pretender “revelar” linguagem e não a uma identidade ou essên-
o que seus amigos do Movimento Cultural Arte cia” (donde “seu potencial crítico e político”)

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014


214 | Marcio Goldman

(MELLO, 2003, p. 102), Cecília Mello con- em um encontro da ANPOCS – em uma des-
clui que “não é algo da ordem da identidade sas conversas informais de onde sempre saem
nem mesmo do pertencimento, mas da ordem as melhores coisas desses encontros algumas
do devir, do que se torna, do que se transforma pessoas concordaram em torno da necessidade
em outra coisa diferente do que se era e que, de de criar uma rede de intercâmbio intelectual e
algum modo, conserva uma memória do que se acadêmico que atravessasse as usuais divisões
foi” (MELLO, 2003, p. 95). subdisciplinares.
Em certo sentido, o desafio colocado pela A partir daí, em 1998, 2001, 2004, 2006,
exploração antropológica dessa noção que apa- 2008, 2009, 2011 e 2012, tivemos Grupos
rece ou reaparece, hoje, em tantas partes, não de Trabalho e Mesas Redondas em encontros
é mais do que a tentativa de elaborar em cha- da ABA e da ANPOCS. A partir de 2004, no
ve acadêmica aquilo que os militantes afroin- âmbito do PPGAS-Museu Nacional-UFRJ, o
dígenas do Artemanha e do Umbandaum, de NuTI (Núcleo de Transformações Indígenas)
Caravelas, explicaram para Cecília em chave começou a se expandir para formar a Rede
existencial. O que significa também, acrescen- Abaeté e o NAnSi (Núcleo de Antropologia
temos, que, ao menos para os textos aqui reu- Simétrica). Mais de uma centena de encon-
nidos, o termo “afroindígena” tem justamente tros foram realizados nas chamadas “Sextas na
uma origem afroindígena, elaborado por pes- Quinta”, no Museu Nacional. Em todas essas
soas que gostam de pensar a si mesmas como ocasiões, pesquisadores trabalhando com socie-
afroindígenas2. dades indígenas ou com coletivos afro-ameri-
canos (bem como com outros temas) se viram
*** na situação de ter que falar uns com os outros
– articulação que, sem dúvida, vem revelando
É claro, entretanto, que nem tudo começou seus efeitos, nas dissertações e teses defendidas
aí e que a sensibilidade de Cecília para o que nos últimos anos.
presenciou e escutou tinha seus condicionantes. Em 2010, a americanista Marina Vanzolini,
Afinal, como escreveu Guimarães Rosa (1967) supervisionada pelo afro-brasilianista Marcio
no segundo capítulo do quarto prefácio de Goldman, começou a desenvolver o projeto
Tutaméia (“Sobre a escova e a dúvida”), “tudo “A Feitiçaria nas Religiões de Matriz Africana
se finge primeiro; germina autêntico é depois”. e nas Terras Baixas Sul-Americanas: um Estudo
As “origens” desse interesse afroindígena Comparativo”, que propunha a incorporação
poderiam ser remetidas a muitos acontecimen- do material ameríndio, tendo como foco a
tos, pequenos e grandes. Aos últimos já retor- feitiçaria, à cadeia de transformações lógicas e
narei. Quanto aos primeiros, quem sabe se tudo espaço-temporais estabelecida entre as religiões
não começou – para nós, bem entendido –, no de matriz africana. Projeto no qual foi substi-
longínquo ano de 1984 quando o americanista tuída pelo afro-brasilianista Gabriel Banaggia,
Eduardo Viveiros de Castro orientou a disser- que, de algum modo, tenta recolocar a questão
tação de mestrado do afro-brasilianista Marcio a partir do ponto de vista oposto: como pensar
Goldman, em que as oposições entre posses- o material afro-brasileiro no contexto de teo-
são e sacrifício, por um lado, e xamanismo e rias que foram propostas nos últimos anos para
totemismo, por outro, desempenhavam papel o universo ameríndio – questão já presente em
central. Ou, já bem depois, em 1997, quando, sua tese de doutorado (BANAGGIA, 2013),

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


A relação afroindígena | 215

assim como nas de Barbosa Neto (2012), Como já observava Roger Bastide em 1973,
Siqueira (2012), Soares (2014) e Flaksman “os antropólogos se interessaram sobretudo pe-
(2014). O que talvez nos permitisse presun- los fenômenos de adaptação dos candomblés
çosamente dizer que nós também vínhamos africanos à sociedade dos brancos e à cultura
tentando estabelecer nossa própria relação luso-católica” (BASTIDE, 1976, p. 32; ver
afroindígena… também BASTIDE, 1974). O que quer dizer,
De qualquer modo, em todas essas situa- por um lado, que não se escreveu muito sobre
ções, ocasiões e instâncias, o objetivo sempre o que Bastide chama de “encontro e casamento
foi colocar em diálogo produções etnográficas dos Deuses africanos e dos Espíritos indígenas
e reflexões teóricas oriundas de dois domínios no Brasil”. Mas, quer dizer, sobretudo, que
tradicionalmente separados da antropologia, a aquilo que foi escrito, o foi, em geral, a partir
chamada etnologia dos índios sul-americanos e de um ponto de vista que subordinava a rela-
a antropologia dos coletivos afro-brasileiros ou ção afroindígena a um terceiro elemento que
afro-americanos, na esperança de que, por meio estruturava o campo de investigação: o “branco
desse diálogo, fosse possível trazer à luz novas co- europeu”. Ou, se preferirmos, o ponto de vis-
nexões – e novas distinções – entre esses campos. ta do Estado com seus problemas de “nation
building”, em que a única identidade legítima,
*** evidentemente, é a identidade nacional.
O branqueamento ou a estatização da
Os grandes acontecimentos são conhecidos relação afroindígena não marca apenas as
por todos. Ainda que os números sejam algo investigações acadêmicas. Como se sabe, no
controversos, não é nada improvável que ao caso brasileiro, assim como em muitos outros,
longo de cerca de 300 anos, quase 10 milhões o encontro e a relação afroindígena, devida-
de pessoas tenham sido embarcadas à força mente submetidos “à sociedade dos brancos”,
da África para as Américas, na maior migra- foram pensadas com base naquilo que se con-
ção transoceânica da história. Desses, uns 4 vencionou chamar “mito das três raças”. Relato
milhões chegaram ao que hoje chamamos de que elabora, justamente, a “contribuição” de
Brasil — onde, sabemos, já viviam milhões de cada uma dessas “raças” para a constituição da
indígenas, vítimas de um genocídio que, nun- “nação brasileira” em um processo evidente-
ca é demasiado lembrar, ao lado da diáspora mente encabeçado pelos brancos.
africana sustenta a constituição do mundo Se os afroindígenas de Caravelas estão ten-
moderno. Nessa história, que é a de todos nós, tando se livrar desse mito, é porque bem sa-
coexistem poderes mortais de aniquilação e po- bem que os mitos das classes dominantes têm o
tências vitais de criatividade. mau costume de produzir efeitos muito reais. É
Nesse sentido, não é exagerado afirmar nesse sentido que sua elaboração do afroindige-
que o encontro entre “afros” e “indígenas” nismo possui uma dimensão mítica (MELLO,
nas Américas é o resultado do maior processo 2003, p. 73 – ver acima). Pois o mito, como
de desterritorialização e reterritorialização da lembram Deleuze e Guattari (1972, p. 185),
história da humanidade. Por isso, não deixa não é “uma representação transposta ou mes-
de ser curioso e espantoso que tenha recebi- mo invertida das relações reais em extensão”;
do tão pouca atenção — e isso de dois modos ao contrário, ele “determina, conforme o pen-
complementares. samento e a prática indígenas, as condições

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


216 | Marcio Goldman

intensivas do sistema”: o mito “não é expres- as imagens que não gostaríamos que o termo
sivo, mas condicionante”. E a criação de novas afroindígena evocasse, os clichês que não gos-
condições e condicionantes inevitavelmente faz taríamos que ele desencadeasse. Porque não se
parte de toda luta política. trata de pensar o que poderíamos chamar, em
A nós, por nossa vez, caberia acompanhar sentido forte, a relação afroindígena nem de um
esse movimento e libertar a relação afroindíge- ponto de vista genético (no sentido amplo do
na da dominação e do ofuscamento produzido termo), nem a partir de um modelo tipológico.
pela presença dessa variável “maior”, os “bran- Não se trata de gênese porque não se trata de
cos”. O que significa tentar praticar aquilo determinar o que seria afro, o que seria indíge-
que, seguindo o exemplo do autor de teatro na e o que seria resultado de sua mistura — ou,
Carmelo Bene, Deleuze denomina operação eventualmente, o que não seria nem uma coisa
de “minoração” (DELEUZE; BENE, 1979): a nem outra. E isso seja em um sentido propria-
subtração da variável majoritária dominante de mente biológico ou genealógico, seja em sen-
uma trama faz com que esta possa se desen- tidos cultural, social etc. Não se trata de um
volver de um modo completamente diferente, problema de identidade.
atualizando as virtualidades bloqueadas pela Não é incomum, contudo, que ao evitar o
variável dominante e permitindo reescrever fogo da gênese os antropólogos caiam na frigi-
toda a trama. deira da tipologia onde, fingindo fazer abstra-
Porque, afinal, talvez seja por isso que a pro- ção das conexões genéticas, acaba se chegando
ximidade física entre ameríndios e afro-ameri- exatamente no mesmo lugar. Estabelecer um
canos – o fato inelutável de que, ao longo dos tipo (ideal ou não, pouco importa) afro puro,
séculos, e ainda hoje, eles não puderam deixar um tipo indígena puro, e quantos tipos inter-
de estabelecer e de pensar suas relações – esteja mediários forem, não é, de modo algum, o
acompanhada de um afastamento teórico que nosso propósito. Nem os modelos historicistas,
faz com que delas não saibamos quase nada. explícitos ou disfarçados, nem os estrutural-
Afastamento que faz com que suas sociedades, funcionalistas (idem) nos parecem possuir
culturas, cosmopolíticas raramente tenham qualquer utilidade aqui. Trata-se, na verdade, de
sido estudadas e analisadas em conjunto, prefe- identificar e contrastar não aspectos históricos,
rindo-se, em geral, aproximações teóricas com sociais, ou culturais em si, mas princípios e
a Melanésia, a Sibéria ou mesmo com a própria funcionamentos que podem ser denominados
África. O que muitas etnografias recentes vêm ameríndios e afro-americanos em função das
mostrando é que a riqueza com a qual a relação condições objetivas de seu encontro. Pois o que
afroindígena vem sendo pensada pelos cole- se deve comparar não são traços, aspectos ou
tivos nela interessados não encontra nenhum agrupamentos culturais, mas os princípios a
paralelo digno na reflexão acadêmica. eles imanentes.
Observemos, igualmente, que esse enfoque
*** privilegiando comparações e interações afro-
-indígenas poderia, também, conduzir à pro-
Aqui, como costuma dizer Isabelle Stengers dução de contribuições inovadoras ao campo
(2007, p. 45), é preciso ir mais devagar e co- das chamadas “relações interétnicas”. Sabe-se
meçar por sublinhar os riscos desse empre- bem como a história de diversos países ame-
endimento, deixando claro desde o começo ricanos foi contada, em uma chave ideológica,

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


A relação afroindígena | 217

com ênfase sobre o encontro das “três raças” Tentando escapar do clichê antropológico
que teriam harmoniosamente constituído a na- que quer nos prender à mera determinação
ção. É supérfluo denunciar o caráter mistifica- de variedades culturais e universais humanos,
dor desse tipo de narrativa, mas talvez valha a o que se visa é o mapeamento das premissas
pena assinalar que ela reelabora um fenômeno epistemológicas, ontológicas, cosmopolíticas
que indubitavelmente não pôde deixar de ter imanentes aos discursos nativos, o que, de ime-
ocorrido. Como escreveu Roger Bastide, “não diato, revela que não há nenhuma razão para
são as civilizações que estão em contato, mas confinar o procedimento a uma área etnográ-
os homens”, e cabe a nós tentar descobrir e fica ou a um “tipo” de sociedade. Trata-se de
pensar o que aconteceu e ainda acontece nesses explorar – à luz de contribuições teóricas re-
encontros. Por outro lado, nunca se enfatizou centes em torno da “antropologia simétrica” e
suficientemente que a natureza das relações dos “grandes divisores” – a questão da poten-
que unem os vértices do triângulo das “três ra- cialidade teórica e/ou heurística dessas distin-
ças” não pode ser a mesma, caso se considere ções entre sociedades, e a de sua superação. E
as relações entre dominantes e dominados ou trata-se em seguida de estimular um diálogo
apenas aquelas entre os segundos3. que, retomando a melhor tradição antropoló-
Ora, essas relações ocorrem entre elabo- gica, confronte as contribuições específicas das
rações que se situam em diversas dimensões: pesquisas realizadas em sociedades “indígenas”
sociológicas, mitológicas, religiosas, epistemo- e “complexas”, a fim de que possam se fecundar
lógicas, ontológicas, cosmopolíticas. E é cla- reciprocamente, escapando do aprisionamento
ro que trabalhos específicos podem tematizar em círculos restritos de especialistas e das ex-
uma ou várias dessas dimensões, isoladamente cessivas concessões aos clichês dominantes.
ou em conjunto. Trata-se, em última instância, Isso significa, sobretudo, evitar o risco de
de extrair consequências teórico-experimen- simplesmente reproduzir, num estilo, talvez,
tais efetivas das críticas antropológicas que, mais sofisticado, os clássicos debates em tor-
ao longo dos últimos cem anos, vêm insis- no do chamado sincretismo religioso e, assim,
tindo na impossibilidade de determinação de isolar traços de culturas originais puras que te-
qualquer “grande divisor” capaz de distinguir riam se mesclado, formando cada manifestação
substantivamente os coletivos humanos entre sociocultural específica. Ao contrário, o ponto
si. Impossibilidade tanto mais evidente quan- é a delimitação e o contraste de princípios cos-
to as transformações empíricas em curso na mológicos ameríndios e afro-brasileiros, sem
paisagem sociocultural do planeta mostram a perder de vista nem sua especificidade, nem as
aceleração simultânea dos processos aparente- condições históricas de seu encontro.
mente contraditórios de convergência e diver- Se quiséssemos seguir um modelo, podería-
gência, mimetismo e diferenciação, dissolução mos denominá-lo, talvez, transformacional, em
e endurecimento das fronteiras (tanto objetivas um sentido análogo, mas não idêntico, ao que o
como subjetivas) entre os coletivos. Estas difi- termo possui nas Mitológicas, em que Lévi-Strauss
culdades devem ser levadas a sério, permitindo (1964-1971) não descarta as conexões históricas,
a elaboração de abordagens alternativas que genéticas e mesmo tipológicas entre amerín-
afirmem a fecundidade epistemológica de tais dios, mas desenvolve um procedimento que visa
impasses e os situem no coração da produção contornar e superar essas obviedades. Seguindo
antropológica. exemplos mais recentes, como o de Marilyn

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


218 | Marcio Goldman

Strathern (1988) na Melanésia, talvez seja possí- permite desde já entrever ao menos três tipos
vel tratar desse modo materiais afro-americanos de elaboração. Em primeiro lugar, contextos
em conexão com materiais ameríndios. nos quais os próprios coletivos se definem,
Por outro lado, essas “transformações” tam- mais ou menos diretamente, como afroindí-
bém devem ser pensadas no sentido deleuziano genas. Este é, já vimos, o caso do grupo estu-
sugerido acima (o de um procedimento de mi- dado por Cecília Mello, mas também, de uma
noração por extração do elemento dominante) forma completamente transformada, aquele
e em um sentido guattariano, porque as cone- apresentado por Rafael Santos (ver também
xões que se pretende estabelecer não são nem SANTOS, 2010). No primeiro caso, um gru-
horizontais, nem verticais, mas transversais. Ou po de pessoas tradicionalmente classificadas
seja, não se trata de encarar as variações nem como “afro” estabelece uma relação com as
como variedades irredutíveis umas às outras, virtualidades “indígenas” que atravessam sua
nem como emanações de um universal qual- existência; no segundo, um grupo classificado,
quer conectando entidades homogêneas: as e mesmo autoclassificado, como indígena traça
conexões se dão entre heterogêneos enquanto uma conexão e incorpora de modo particular
heterogêneos. E é por isso que quando esses ele- uma série de práticas muito reais em geral ti-
mentos se encontram concretamente, eles sem- das como “afro”, rearticulando de alguma for-
pre determinam, como lembra Cecília Mello, o ma as fronteiras entre o “afro” e o “indígena”.
processo que Guattari denomina heterogênese, Coletivos como o que Cecília Mello estudou
uma relação de diferenças enquanto diferenças. estão, hoje, espalhados por toda a parte (ver,
Trata-se, pois, de proceder a um confronto por exemplo, FLORES, 2013); processos de
entre cosmopolíticas e coletivos em princípio interação entre indígenas e religiões de matriz
heterogêneos que poderia servir para seu escla- africana aparecem, hoje, em inúmeros contex-
recimento mútuo, evitando o evolucionismo tos empíricos ainda muito pouco estudados
no plano histórico, o dualismo no plano onto- (ver, por exemplo, COUTO, 2008; LIMA,
lógico e o maniqueísmo no plano ético. O pro- 2013; MACÊDO, 2007; UBINGER, 2012).
cedimento não é, portanto, do concreto para o Em segundo lugar, temos as situações em
abstrato, como o bom senso sugeriria. Ao con- que coletivos autodefinidos como ameríndios e
trário, trata-se de começar em um plano bem coletivos autodefinidos como afro-americanos
abstrato, um pouco como naquilo que Deleuze se encontram e interagem efetivamente – mes-
e Guattari (1980, p. 501) chamam “método di- mo que, como costuma acontecer frequente-
ferencial”, que procede das distinções abstratas mente, esses encontros e interações possam ser
para as misturas concretas. Ou seja, é preciso tão codificados que correm o risco de passar
distinguir analiticamente bem para melhor en- desapercebidos. Este é, parece-me, o caso apre-
tender as alianças e os agenciamentos efetivos sentado por Julia Sauma (ver também SAUMA,
que produzem as misturas concretas. 2013 — além de Félix, 2011), o qual, ainda
que a autora esteja apenas começando a elabo-
*** rar esse encontro e essa interação, revela todo
um potencial dos estudos quilombolas ainda
É preciso, pois, proceder com cautela, mas muito longe de ter sido explorado.
o esforço para colocar em diálogo materiais Os ensaios de Marina Vanzolini, o de
ameríndios e afro-americanos tão heterogêneos Edgar Rodrigues Barbosa Neto, com quem a

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


A relação afroindígena | 219

primeira dialoga diretamente, bem como aque- estudos possa servir de “contrafeitiço” para ou-
le de Valéria Macedo e Renato Sztutman, reve- tros clichês e fantasmas que, sem dúvida, tam-
lam uma outra possibilidade. Aquela em que bém existem no campo da chamada etnologia
é o analista que se faz, de diferentes maneiras, indígena.
afroindígena, promovendo, e mesmo forçando, É exatamente o que faz o texto de Valéria
passagens entre materiais tradicionalmente des- Macedo e Renato Sztutman (ver também
tinados à incomunicabilidade, devidamente fe- MACEDO, 2010; SZTUTMAN, 2012), que,
chados em seus nichos acadêmicos de proteção. de algum modo, molariza o procedimento su-
Marina Vanzolini (ver também gerido por Barbosa Neto. A partir de um cru-
VANZOLINI, 2006, 2010) justapõe, assim, zamento de noções guarani e afro-brasileiras
por um lado, o feitiço xinguano e o feitiço tal que poderiam, grosso modo, ser traduzidas por
qual aparecem nas religiões de matriz africana, “força”, os autores demonstram como estudos
e, por outro, o xamanismo ameríndio e a noção sobre a noção de pessoa oriundos do segun-
afro-brasileira de axé, demonstrando a fecun- do campo permitem uma releitura criativa do
didade de um tipo de operação estranhamente que foi etnografado no primeiro (e vice-versa,
ausente em nossa antropologia até hoje. Não é evidentemente).
difícil imaginar como o mesmo procedimen- Para concluir e permitir que o leitor vá di-
to poderia enriquecer debates tão tradicionais reto ao que interessa – o material etnográfico
quanto aqueles confrontando temáticas clas- analisado nos ensaios que se seguem –, eu diria
sicamente tidas como “indígenas” (totemis- apenas que creio que a relação afroindígena tem
mo, xamanismo, multiplicidade horizontal um alto potencial de desestabilização do nosso
de espíritos…) e temáticas em geral conside- pensamento, e que, por isso mesmo, poderia
radas “afro-americanas” (sacrifício, possessão, estar no coração de uma antropologia que eu
panteões hierarquizados de divindades e assim chamaria “de esquerda”, no sentido proposto
por diante) e que, no entanto, todos sabemos por Gilles Deleuze (2004) em sua conhecida
que podem ser encontradas, segundo distintas entrevista a Claire Parnet. Uma antropologia
transformações, dos dois lados do divisor. que se concentra nas diferenças enquanto tais,
O ensaio de Edgar Rodrigues Barbosa Neto que leva efetivamente a sério e parte do que as
(ver também Barbosa Neto 2012) nos ensina, pessoas pensam e que aposta que são apenas
como explica o autor, de que modo uma com- os problemas que elas levantam que permitem
paração mais implícita do que explícita (que manter-se em movimento, escapar dos clichês
ele denomina “molecular”) pode ajudar a livrar que nos assolam e, assim, pensar diferente.
um campo de estudos dos clichês e fantasmas
que o assolam. O esforço dos etnólogos em Notas
pensar os indígenas de um ponto de vista que
não é o do Estado revela que o mesmo pode ser 1. Este texto foi apresentado no evento “Olhares
ao menos tentado no campo afro-americano, Cruzados - Ensaios de Antropologia Afro-
aparentemente mais suscetível a esse tipo de Indígena”, do Ciclo “Sextas do Mês”, do Programa
captura feiticeira, como a denomina o autor. de Pós-Graduação em Antropologia Social da
O “contrafeitiço” etnológico ao enfeitiçamento Universidade de São Paulo, em 9 de maio de 2014,
sociológico dos estudos afro-brasileiros sugere, do qual participei com Julia Sauma e Marina
por sua vez, a possibilidade de que algo nesses Vanzolini, que, em diferentes momentos, já haviam

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


220 | Marcio Goldman

trabalhado comigo. Eu gostaria de agradecer, em imanentes de outra cultura, são capazes de traçar
especial, a Adriana Queiroz Testa, pelo convite e espaços de interseção em que as chamadas relações
pela organização do evento. Pouco depois, Luisa interétnicas não são redutíveis nem à ignorância re-
Girardi – a quem também agradeço – teve a ideia cíproca, nem à violência aberta, e nem à fusão ho-
de reunir as apresentações em uma seção especial mogeneizadora. E é isso o que permite a Losonczy
do Cadernos de Campo. Às nossas apresentações, propor um retorno ao tema do sincretismo, desde
acrescentamos contribuições que Edgar Rodrigues que encarado como “figura política” (LOSONCZY,
Barbosa Neto, Rafael Barbi Costa e Santos, 1997, p. 402-406).
Valéria Macedo e Renato Sztutman haviam apre-
sentado no Seminário Temático “Novos Modelos Referências bibliográficas
Comparativos: Investigações Sobre Coletivos Afro-
Indígenas”, coordenado por Beatriz Perrone Moisés BANAGGIA, Gabriel. As Forças do Jarê: Movimento
e por mim nos Encontros da ANPOCS de 2011 e Criatividade na Religião de Matriz Africana da
e 2012. Além de um texto de Cecília Campello Chapada Diamantina. Tese de Doutorado – Museu
do Amaral Mello, cuja dissertação de Mestrado, Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.
como veremos, está, de algum modo, na origem BARBOSA NETO, Edgar R. A máquina do mundo: va-
desse interesse afroindígena. Finalmente, gostaria riações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros.
de agradecer, e muito, aos comentários de Gabriel Tese de Doutorado – Museu Nacional, UFRJ, Rio de
Banaggia. Janeiro, 2012.
2. É por isso, também, que decidimos não respeitar a BASTIDE, Roger. As Américas negras. São Paulo: EDUSP,
convenção ortográfica e grafar “afroindígena” em lugar 1974 [1967].
de “afro-indígena”. A subtração do hífen visa assinalar, ______. La rencontre des Dieux africains et des Esprits
como sugerem os amigos de Cecília em Caravelas, que indiens. In: AfroAsia, v. 12, p. 31-45, 1976 [1973].
se trata de um processo de variação contínua, oscilan- COUTO, Patrícia N. de A. Morada dos encantados: iden-
do entre os limites puramente teóricos da oposição tidade e religiosidade entre os tupinambá da Serra do
e da identificação. Ao mesmo tempo, sugere que os Padeiro – Buerarema, BA. Dissertação de Mestrado –
campos disciplinares especializados no tratamento de Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA,
cada um dos termos separados pelo hífen teriam mui- Salvador, 2008. Salvador.
to o que aprender com isso. DELEUZE, Gilles; BENE, Carmelo. Superpositions.
3. Nesse sentido, se há um exemplo a seguir, este é, Paris: Minuit, 1979.
sem sombra de dúvida, o grande livro de Anne- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe:
Marie Losonczy (1997). Nele, a autora propõe uma capitalisme et schizofrénie. Paris: Minuit, 1972.
“antropologia do interétnico”, capaz de pensar a ______. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
relação entre os afro-colombianos e os indígenas DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’Abécédaire de
Emberá da região do Chocó, no Pacífico colombia- Gilles Deleuze (DVD produzido e dirigido por Pierre-
no, de um modo que não a reduza a simples reação André Boutang), 2004.
à dominação branca, nem ao mero contraste entre FÉLIX, Camila C. “Eles são cristãos como nós”: humanos e
duas identidades – não importa se tidas como “pri- encantados numa comunidade quilombola amazônica.
mordiais” ou como constituídas por “contraste”. Ao Dissertação de Mestrado - Instituto de Filosofia e Ciências
contrário, tratar-se-ia de pensar situações como essas Sociais (IFCS), UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.
a partir das alteridades imanentes que cada cultura FLAKSMAN, Clara M. Narrativas, relações e ema-
já comporta e que, relacionadas com as alteridades ranhados: Os enredos do candomblé no Terreiro do

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


A relação afroindígena | 221

Gantois, Salvador, Bahia. Tese de Doutorado - Museu SANTOS, Rafael B. C. e. A cultura, o segredo e o índio:
Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. diferença e cosmologia entre os Xakriabá de São João
FLORES, Luiza. Os comanches e o prenúncio da guerra: das Missões/MG. Dissertação de mestrado - Faculdade
Um estudo etnográ!co com uma Tribo Carnavalesca de de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo
Porto Alegre/RS. Dissertação de Mestrado - Instituto Horizonte, 2010.
de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), UFRJ, Rio de SAUMA, Julia F. The deep and the Erepecuru: Tracing trans-
Janeiro, 2013. gressions in an Amazonian Quilombola territory. Tese de
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques (4 vols.). Paris: Doutorado - University College, London, 2013.
Plon, 1964-1971. SIQUEIRA, Paula. O sotaque dos santos: movimentos
LIMA, Clarissa de P. M. Corpos abertos: sobre enfeites e de captura e composição no candomblé do interior da
objetos na Vila de Cimbres (T.I. Xukuru do Ororubá). Bahia. Tese de Doutorado - Museu Nacional, UFRJ,
Dissertação de Mestrado - UFSCAR, São Carlos, 2013. Rio de Janeiro, 2012.
LOSONCZY, Anne-Marie. Les saints et la forêt: rituel, so- SOARES, Bianca A. Os candomblés de Belmonte: varia-
ciété et figures de l’échange entre noirs et indiens emberá. ção e convenção no sul da Bahia. Tese de Doutorado
Paris: L’Harmattan, 1997. - Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.
MACEDO, Valéria. Nexos da Diferença. Cultura e STENGERS, Isabelle. La proposition cosmopolitique.
Afecção em uma Aldeia Guarani na Serra do Mar. In: Lolive, J.; Soubeyran, O. (orgs.). L’Émergence des
Tese de Doutorado - Faculdade de Filosofia, Letras e cosmopolitiques. Paris: La Découverte, 2007, p. 45-68.
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift: Problems
Paulo, 2010. with women and problems with society in Melanesia.
MACÊDO, Ulla. A “dona do corpo”: um olhar sobre a re- Berkeley: University of California Press, 1988.
produção entre os Tupinambá da Serra - BA. Dissertação SZTUTMAN, Renato. O profeta e o principal: a ação po-
de Mestrado - Faculdade de Filosofia e Ciências lítica ameríndia e seus personagens. São Paulo: EDUSP,
Humanas, UFBA, Salvador, 2007. 2012.
MELLO, Cecília C. do A. Obras de arte e conceitos: cultura UBINGER, Helen C. Os tupinambá da Serra do Padeiro:
e antropologia do ponto de vista de um grupo afro-indíge- religiosidade e territorialidade na luta pela terra indígena.
na do sul da Bahia. Dissertação de Mestrado – Museu Dissertação de Mestrado - Faculdade de Filosofia e Ciências
Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2003. Humanas, UFBA, Salvador, 2012.
______. Política, meio ambiente e arte: percursos de um VANZOLINI, Marina. Centralização e faccionalismo: ima-
movimento cultural do extremo sul da Bahia (2002- gens da política no Alto Xingu. Dissertação de Mestrado
2009). Tese de Doutorado - Museu Nacional, UFRJ, - Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.
Rio de Janeiro, 2010. ______. A flecha do ciúme: o parentesco e seu avesso segundo
ROSA, João G. Tutaméia – Terceiras estórias. Rio de os Aweti do Alto Xingu. Tese de Doutorado – Museu
Janeiro: José Olympio, 1967. Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.

autor Marcio Goldman


Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro; bolsista do CNPq e da
FAPERJ. Autor de Razão e Diferença: Afetividade, Racionalidade e Relativismo
no Pensamento de Lévy-Bruhl (Rio de Janeiro: UFRJ/Grypho, 1994), Alguma
Antropologia (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999), Como Funciona a

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014


222 | Marcio Goldman

Democracia: Uma Teoria Etnográfica da Política (Rio de Janeiro: 7 Letras,


2006) e How Democracy Works: An Ethnographic Theory of Politics (Londres,
2013). Em colaboração com Moacir Palmeira, organizou Antropologia, Voto e
Representação Política (Rio de Janeiro: Contra Capa, 1996); em colaboração
com Miriam Hartung, organizou o Dossiê Políticas e Subjetividades nos “Novos
Movimentos Culturais” (Florianópolis: Ilha. Revista de Antropologia, 2009); e,
em colaboração com Mãe Hilsa Mukalê, editou Do Lado do Tempo. O Terreiro de
Matamba Tombenci Neto (Ilhéus, Bahia) - Histórias Contadas a Marcio Goldman
(Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2011).

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 213-222, 2014

Você também pode gostar