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Além da Identidade.

Para uma Teoria Etnográfica da Mestiçagem

Marcio Goldman
PPGAS-MN-UFRJ

Bom dia. Eu gostaria de começar agradecendo à USP — ao CEstA, ao PPGAS, ao


Departamento de Antropologia — e a Renato Sztutman pelo convite para vir, mais uma vez, falar
com vocês. Gostaria, também, de me desculpar um pouco pelo caráter algo incerto do que vou
tentar apresentar. Trata-se de um tema com o qual comecei a trabalhar recentemente e que se
insere no que andei chamando, provisoriamente, de “relação afroindígena”, sem hífen e no sentido
forte do termo relação. Acho que usei essa expressão pela primeira vez aqui mesmo, há cerca de
um ano e meio, em um evento das “Sextas do Mês” chamado “Olhares Cruzados - Ensaios de
Antropologia Afro-Indígena”. O que vou dizer é um prolongamento daquela apresentação e, nesse
sentido, fico feliz de retomar o tema aqui e, ao mesmo tempo, temeroso pelas redundâncias que
certamente aparecerão.

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De modo mais geral, a expressão “relação afroindígena” pretende remeter, de modo


taquigráfico aos agenciamentos entre afrodescendentes e indígenas nas Américas. Tema que, no
meu caso, certamente deriva do campo empírico de investigação que tenho explorado há muito
tempo, o candomblé de nação angola, onde, como se sabe, proliferam infindáveis debates sobre
origens, purezas e sincretismos. Acredito ou pretendo, contudo, que o que vou dizer possua um
alcance mais amplo.
O recente projeto do qual esta apresentação é uma parte, pretende retomar em bases
propriamente antropológicas — ou seja, etnográficas, comparativas e generalizantes — dois temas
que, mais ou menos articulados, vêm ocupando o campo das ciências sociais brasileiras há quase
dois séculos: a “mestiçagem” e o “sincretismo”, termos majoritariamente aplicados, no Brasil, à
população negra e às religiões de matriz africana, mas com variantes — mistura, aculturação etc.
— que também foram usadas no caso das sociedades indígenas. Ainda que o primeiro termo tenha
sido geralmente reservado para os processos tidos como de ordem biológica e o segundo para os
fenômenos ditos culturais, a célebre e antiga fórmula de Nina Rodrigues — o sincretismo como
“mestiçagem do espírito” — já chama a atenção para a dificuldade de estabelecer essas fronteiras
de modo tão nítido.
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Como se sabe, de um modo ou de outro, desde seu nascimento no século XIX, as ciências
sociais brasileiras têm se dedicado a esses fenômenos contra o pano de fundo dos problemas
colocados pela temática da “construção da nação”. E é nesse contexto que tanto o sincretismo
quanto a mestiçagem foram pensados ora como obstáculos a serem superados para a constituição
de uma identidade nacional que seria fundamental para essa construção, ora como particularidades
culturais que, ao contrário, possibilitariam a elaboração de uma identidade nacional ao mesmo
tempo original e de estatuto semelhante a de países mais tradicionais.
Os grandes traços dessa história são bem conhecidos e só os evoco aqui por dever de ofício.
Ainda que os números sejam algo controversos, não é nada improvável que ao longo de cerca de
300 anos, quase 10 milhões de pessoas tenham sido embarcadas à força da África para as Américas,
no que possivelmente constituiu a maior migração transoceânica da história. Os cerca de 4 ou 5
milhões de pessoas que podem ter chegado ao que hoje chamamos de Brasil encontraram, como
hoje sabemos, outros tantos milhões de indígenas, vítimas de um genocídio que, paralelo à
diáspora africana, sustentam a constituição do mundo chamado moderno. Nesse sentido, o
encontro entre afros e indígenas nas Américas é o resultado do maior processo de
desterritorialização e reterritorialização da história da humanidade. É bastante notável, assim, que
um fenômeno dessa envergadura tenha recebido relativamente tão pouca atenção ou, melhor, que
tenha recebido um tipo de atenção que, ao adotar as perspectivas dominantes, acaba por
desconsiderar completamente como ele foi pensando fora delas e, também, o que eu chamaria de
dimensão transcendental do encontro. Ou seja, o fato de que ele não é apenas determinado por
circunstâncias históricas particulares, mas é, sobretudo, determinante de tudo o que acontecerá
depois. Nessa história, que é a de todos nós, coexistem poderes mortais de aniquilação e potências
vitais de criatividade.
Seria evidentemente absurdo pretender ignorar a realidade das interações entre as populações
que participaram desse processo. Por outro lado, cumpre assinalar, uma vez ainda, que o fato
incontestável dessas interações sempre tendeu a ser interpretado como um problema colocado para
a constituição do país como Estado-Nação, e que foi nesta chave que ele foi pensado, em especial a
partir da primeira metade do século XIX com a independência do país, quando começa a se colocar
a questão do papel da população “mestiça” na construção do que deveria ser o Brasil.
O que é válido para as teorias da mestiçagem também o é para as do sincretismo. Também
aqui foi sobretudo uma questão mais sociopolítica do que puramente intelectual — essa
“construção da nação” — que parece ter apertado o gatilho que, no século XIX, disparou as
ciências sociais brasileiras. Para os intelectuais e as elites desse momento, a convivência entre uma
sociedade civilizada, branca e “europeia” com outra, primitiva, negra ou indígena, constituía um
inevitável problema. E se, em um primeiro momento, são populações indígenas e sua assimilação
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que constituem o foco das preocupações, já a partir de 1870 a questão negra começa a ser encarada
no contexto da problemática geral da formação étnica e cultural da sociedade brasileira.
De um ponto de vista histórico mais geral, creio ser possível sustentar que tanto as teorias
sobre o sincretismo quanto aquelas sobre a mestiçagem se bifurcam em dois tipos de perspectiva:
as “negativas”, que encaram os dois fatos como males a evitar e/ou combater (seja pela segregação
e eliminação de um dos elementos da “mistura”, seja por uma mistura dirigida, uma “purificação”
que eliminaria os traços indesejáveis com a introdução dos desejáveis e dissolveria o elemento
supostamente inferior naquela tido como superior) e as “positivas”, que os aceitam, e mesmo
celebram, como grandes conquistas a preservar e desenvolver. Assim, a primeira hipótese que
gostaria de avançar é que, para além de suas óbvias e fundamentais disparidades, esses pontos de
vista parecem ter em comum o fato de adotarem uma concepção da diversidade que supõe que o
destino inelutável de qualquer agenciamento entre diferenças seja a homogeneidade, quer esta se
manifeste por depuração e purificação, quer por mistura e fusão.
Em contraste com esses saberes, que poderíamos denominar eruditos ou dominantes, um
número apreciável de etnografias mais ou menos recentes vêm mostrando que muitos dos coletivos
estudados tanto no campo da chamada etnologia indígena quanto naquele dos estudos afro-
brasileiros apresentam visões distintas, visões que poderiam ser tomadas como contradiscursos
sobre a mestiçagem e o sincretismo.
Esses contradiscursos se caracterizam justamente — é a segunda e principal hipótese aqui
em jogo — por não pressupor a homogeneização como horizonte da interação entre as diferenças,
ou seja, por não supor que a combinação de elementos de origem diversa deva necessariamente
desembocar nem em um processo de simples confusão sincrética, nem em um processo de
homogeneização laminadora. Esses contradiscursos procederiam, ao contrário — outra hipótese —
por meio do que eu denominaria, provisoriamente, modulação da diversidade, no sentido de
Simondon: : processo de variação contínua no qual na coexistência de elementos diferentes pode
haver um nível em que eles efetivamente se combinam, mas também níveis em que permanecem
de algum modo distintos. Essa indiscernibilidade, como estabeleceu Deleuze, não é de modo
algum uma “confusão”. Eu cito: “a indiscernibilidade (…) não suprime a distinção das duas faces,
mas torna impossível designar um papel e outro, cada face tomando o papel da outra numa relação
que temos de qualificar de pressuposição recíproca, ou de reversibilidade”.
É nesse sentido que se pretende, por um lado, proceder a uma justaposição entre discursos ou
saberes que, seguindo Foucault, poderíamos denominar, de uma parte, “eruditos” e, de outra,
“assujeitados”; e, por outro, entre esses últimos, justapor saberes oriundos de coletivos indígenas e
de coletivos afro-brasileiros — uma vez que esses são os lados do grande divisor em que
sincretismo e mestiçagem nunca deixaram de ser tidos como problemáticos. Ora, o confronto e o
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acoplamento entre esses saberes eruditos e esses saberes assujeitados pode permitir, creio, o
mapeamento, a aliança e a ativação dos contradiscursos sobre o sincretismo e a mestiçagem, na
esperança de ajudá-los a aparecer com uma força ainda maior do que a que já possuem. Além disso,
pode permitir, também, uma melhor compreensão tanto das teorias locais quanto das dominantes,
assim como uma revisão de alguns dos principais temas e debates que permeiam a sociedade
brasileira até hoje. Entre outros: a complexa coexistência de diferentes religiões; as reivindicações
identitárias indígenas e afro-brasileiras contemporâneas; os problemas e debates levantados pelas
políticas de ação afirmativa étnico-raciais.
Uma das premissas essenciais da investigação consiste, portanto, no reconhecimento de que
a análise do material empírico coletado é inseparável das elaborações intelectuais que os próprios
coletivos envolvidos desenvolvem a seu respeito. Isso porque, dada a necessária subordinação da
antropologia à palavra nativa, qualquer material empírico analisado de uma perspectiva
antropológica envolve inapelavelmente o que as pessoas pensam e têm a dizer sobre o que
acontece com elas mesmas e com os outros, de tal modo que o discurso antropológico não tenha
nenhum privilégio face aos daqueles com quem trabalhamos. Nesse sentido, penso hoje que o
melhor procedimento inicial será começar com os conceitos nativos que podemos supor, ao menos
inicialmente, análogos — no sentido proposto por Roy Wagner — ao que nós denominamos
mestiçagem ou sincretismo.
De um ponto de vista mais abstrato, trata-se, de algum modo, de testar a possibilidade de
pensar essas questões aplicando a elas o que Bruno Latour denominou princípio de irredução: não
reduzi-las de antemão a uma pura questão identitária; e, ao mesmo tempo, não negar a priori que a
identidade possa ser uma dimensão importante do fenômeno. Trata-se, basicamente, de pensar o
sincretismo e a mestiçagem — a relação afroindígena, enfim — de um modo em que nada seja
reduzido de antemão a simples reação à dominação branca, nem à mera oposição entre duas
identidades, não importando se estas são tidas como “primordiais” ou como constituídas por
“contraste”. Ao contrário, trata-se de pensar a partir das alteridades imanentes que cada coletivo
comporta e que devem ser relacionadas com as alteridades imanentes de outros coletivos, traçando
espaços de interseção em que as chamadas relações interétnicas não são redutíveis nem à
ignorância recíproca, nem à violência aberta, e nem à fusão homogeneizadora.
De um ponto de vista mais empírico, trata-se de seguir um caminho aberto por Peter Gow, já
em 1991, ao estudar os Piro da Amazônia peruana: o fato de a diferença interpessoal poder ser
introjetada por cada pessoa não anula o fato de que, coletivamente, as pessoas podem seguir sendo
o que sempre foram. A mistura não é o oposto da pureza e as pessoas podem perfeitamente se
“identificar” porque são “de sangue misturado”. E o mesmo poderia ser dito do sincretismo.
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Poucos anos mais tarde, Anne-Marie Losonczy propôs uma “antropologia do interétnico”, ou
uma “perspectiva interétnica”, capaz de pensar a relação entre os afro-colombianos e os indígenas
Emberá da região do Chocó, no Pacífico colombiano, a partir das alteridades imanentes que cada
cultura já comporta e que, relacionadas com as alteridades imanentes de outra cultura, são capazes
de traçar espaços de interseção para além da ignorância, violência ou fusão. É isso o que permite a
Losonczy propor um retorno ao tema do sincretismo — desde que encarado como “figura política”.
E o mesmo poderia ser dito da mestiçagem.
Em uma direção também latouriana, trata-se igualmente de simetrizar os saberes assujeitados
com aqueles dominantes, prosseguindo numa trilha aberta, já há alguns anos, por José Carlos dos
Anjos, que nos revelou tudo o que teríamos a ganhar abandonando os clichês dominantes da
miscigenação, mestiçagem ou sincretismo em benefício de imagens oriundas de nossos próprios
campos empíricos de investigação. Em certo sentido, tudo o que pretendo fazer é “cruzar” as
hipóteses de José Carlos dos Anjos com elaborações nativas sobre a mistura, a mestiçagem e o
sincretismo oriundas de outros campos etnográficos. Ou, se preferirmos, elaborar teorias
etnográficas — para voltar ao conceito malinowskiano que redescobri em meu trabalho sobre
política — do que poderíamos chamar provisoriamente contramestiçagem e contrassincretismo.
Teorias etnográficas que só podem se elaboradas se estiverem firmemente apoiadas nas teorias
nativas.
O primeiro passo nessa direção consiste, sem dúvida, em aplicar ao sincretismo e à
mestiçagem o procedimento que Gilles Deleuze, seguindo o exemplo do autor de teatro italiano
Carmelo Bene, denominou de “minoração”: a necessidade da subtração da variável majoritária
dominante de uma trama para que esta possa se desenvolver de um modo completamente diferente,
atualizando as virtualidades bloqueadas por essa variável dominante e permitindo, assim,
reescrever a própria trama. No meu caso, tratar-se-ia, pois, de um movimento para libertar o que
em geral se chama de sincretismo e mestiçagem da dominação e do ofuscamento teórico-
ideológicos produzido pela presença da variável maior “brancos”. Em poucas palavras e grosso
modo: como ficariam sincretismo e mestiçagem se deles suprimíssemos não o fato histórico,
político e intelectual dos encontros, mas seu vértice “maior”, os “brancos”? Como apareceriam
sincretismo e mestiçagem se deixássemos afros e indígenas falarem sem esse elemento
sobrecodificador?
Já em 1973, Roger Bastide observava — e eu cito — que “os antropólogos se interessaram
sobretudo pelos fenômenos de adaptação dos candomblés africanos à sociedade dos brancos e à
cultura luso-católica”. O que quer dizer que a maior parte do que se escreveu sobre o que o mesmo
Bastide denominava “o encontro e o casamento dos deuses africanos e dos espíritos indígenas no
Brasil” foi escrito a partir de um ponto de vista que subordinava o que tenho chamado, sem hífen,
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de relação afroindígena a um terceiro elemento que estruturava o campo de investigação na


mesma medida em que dominava o campo sociopolítico: o “branco europeu”. E tudo tendeu a se
passar, o que acontece frequentemente demais na antropologia, como se o ponto de vista do Estado,
com seus problemas de “nation building”, levasse a melhor, impondo essa espécie de certeza, que
parece durar até hoje, de que a única forma legítima de identidade é a identidade nacional.
Como superar essa estatização e esse branqueamento da relação afroindígena? O ponto de
partida, parece-me, consiste justamente em tomar o termo “afroindígena” nos sentidos em que as
pessoas e os coletivos que gostam de se pensar como afroindígenas o fazem. Ou, o que é a mesma
coisa, reconhecer que o termo afroindígena tem, ou pode ser tomado como tendo, uma origem
afroindígena. A partir daí, tratar-se-á de ouvir, seguir e utilizar as reflexões nativas para
desenvolver teorias etnográficas. Só assim, penso, podemos abrir a possibilidade de uma reflexão
antropológica digna sobre esse tema, tentando elaborar em chave acadêmica aquilo que as pessoas
e os coletivos com quem convivemos elaboram em chave existencial.
Bem, após essas já longas observações iniciais e de princípio, o que eu gostaria de fazer é
apresentar a vocês dois ou três casos etnográficos específicos que, justapostos, poderão, talvez,
permitir arriscar umas poucas conclusões provisórias. Para isso, utilizarei algumas reflexões
nativas extraídas de três contextos diferentes e bem heterogêneos. No primeiro (que usei aqui
quando falei da relação afroindígena), os membros do movimento cultural da cidade de Caravelas,
no extremo sul da Bahia, estudados por Cecília Mello entre 2001 e 2010, se pensam decididamente
como afroindígenas (e, na verdade, é deles que tomei emprestado esse termo); no segundo, os
Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia, estudados, entre outros, por Helen Ubinger, se
definem resolutamente como indígenas; finalmente, uma série de exemplos extraídos de contextos
tradicionalmente tidos como “afro” poderão ajudar a complexificar o quadro.
Advirto, contudo, de antemão, que em nenhum dos casos enfocados a questão será tentar
determinar o que, lá, seria afro, o que seria indígena e o que seria resultado de sua mistura — ou,
eventualmente, o que não seria nem uma coisa nem outra. O que pode não ser tão fácil quanto
parece porque a primeira coisa que somos tentados a fazer toda vez que nos deparamos com
situações afroindígenas são exatamente essas triagens que eu gostaria de evitar a todo custo. Só
assim, creio, poderemos evitar o risco de simplesmente reproduzir, em um estilo talvez mais
sofisticado, os clássicos debates em torno do sincretismo e da mestiçagem e deixar de tentar isolar
traços de culturas originais puras que teriam se mesclado formando cada manifestação
sociocultural específica.
Se quiséssemos seguir um modelo, poderíamos denominá-lo, talvez, transformacional, em
um sentido análogo, mas não idêntico, ao que o termo possui nas Mitológicas. Seguindo exemplos
mais recentes, como o de Marilyn Strathern na Melanésia, talvez seja possível tratar desse modo
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materiais afro-americanos e ameríndios em conexão. Por outro lado, contudo, talvez seja preciso
livrar a comparação levistraussiana da noção de estrutura e pensá-la no sentido deleuziano
sugerido acima (o de um procedimento de minoração por extração do elemento dominante) e em
um sentido guattariano, porque as conexões que se pretende estabelecer não são nem horizontais,
nem verticais, mas transversais. Ou seja, não se trata de encarar as variações nem como variedades
irredutíveis umas às outras, nem como emanações de um universal qualquer conectando entidades
homogêneas: as conexões se dão entre heterogêneos enquanto heterogêneos, as relações se dão
entre diferenças enquanto diferenças, como lembra Guattari ao falar de heterogênese, conceito que
tem como premissa fundamental a hipótese de que o diferencial não pode ser encarado como mera
negação e/ou oposição uma vez que ele é sobretudo da ordem da criação ou da criatividade.
Passemos aos casos etnográficos.

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Quando foram apresentados pela primeira vez, há mais de dez anos, nem o material
etnográfico, nem a análise empírica e teórica de Cecília Mello se acomodavam muito bem a um
certo clichê que parecia dominar o pensamento antropológico, mas que, tudo indica, é cada vez
mais difícil de sustentar: a quase certeza de que não temos nada de importante a aprender com as
pessoas com quem convivemos durante nossas pesquisas. E isso seja porque elas realmente não
seriam capazes de nos ensinar nada, seja porque aquilo que elas eventualmente nos ensinam é de
curto alcance, limitado ao contexto paroquial em que vivem.
As pessoas que Cecília estudou em Caravelas entre 2001 e 2010 criaram e fazem parte do
que denominam simultânea ou alternadamente Umbandaum (um bloco de carnaval), Arte Manha
(um movimento cultural) e, também, de um grupo de pesquisa, o Grupo Afroindígena de
Antropologia Cultural. Em todos os casos, desenvolvem uma série de atividades que visam
“resgatar” a memória afroindígena, usando, para isso, formas de expressão artísticas, que
envolvem a escultura, os entalhes em madeira, a pintura, mas também o teatro e a dança. Sua arte,
dizem, resulta de pesquisas e debates coletivos sobre suas origens afroindígenas e suas formas de
expressão.
As mesmas pessoas que fazem o movimento cultural, o bloco e o grupo de pesquisa também
são membros ou simpatizantes do Partido dos Trabalhadores e desenvolvem intensa militância
político-eleitoral — tendo alguns se candidatado por diversas vezes a cargos eletivos e mesmo
ocupado algumas secretarias municipais. Boa parte de seu tempo é tomado pela elaboração de
belíssimas obras de arte, de esculturas a móveis chamados rústicos, criadas a partir de uma técnica
que denominam “reaproveitamento da madeira”, ou seja, a utilização de madeira considerada
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“morta”, encontrada nas matas que ainda sobrevivem aos eucaliptais que infestam a região, e que,
devidamente tratada, adquire uma espécie de nova vida. Dedicam-se agora também à produção de
vídeos muito interessantes que vocês podem encontrar no youtube em “Avenida Filmes”.
O ponto essencial é que essas pessoas não apenas se pensam (no sentido forte da palavra)
como “afroindígenas”, como desenvolvem uma série de complexas reflexões sobre essa expressão
e sobre a sua própria situação no mundo. A sorte aqui é que em lugar de pretender saber de
antemão e “revelar” o que seus amigos estariam “realmente” querendo dizer ao se afirmarem
afroindígenas, a antropóloga preferiu seguir de modo detalhado e profundo o que eles efetivamente
dizem, fazem e pensam a respeito de si mesmos, dos outros e dos mundos de que participam. Em
lugar de ceder à tentação de julgar se seus amigos eram, “de fato”, negros, índios, mestiços, pobres,
ou o que quer que seja, ela aprendeu que “afroindígena” não precisa necessariamente ser da ordem
da identidade, mas pode ser pensado como algo que se torna, que se transforma em outra coisa
diferente do que era, mas que, de algum modo, conserva uma memória do que se foi.
A antropóloga aprendeu, assim, que o termo “afroindígena” quer dizer muitas coisas: um
modo de descendência, sem dúvida, mas também uma origem explicitamente reconhecida como
mítica e uma forma de expressão artística, ou seja, criativa; que não se trata da simples
justaposição de influências ou formas distintas e irredutíveis, mas de uma outra coisa, com
características próprias e, ao mesmo tempo, comuns àquelas de que participa; que a relação entre
afros e indígenas não é pensada apenas como sendo de proximidade entre mundos paralelos ou
mistura de mundos concorrentes, mas como um cruzamento, um encontro entre esses mundos
indígenas e africanos. Que o encontro tenha sido real ou não, ou que ele esteja sendo explorado em
sua realidade história ou não, não importa tanto; o que realmente importa são as virtualidades do
encontro, o que ele poderia ter produzido e que, por isso mesmo, ainda pode ser produzido —
aquilo que Deleuze denomina “contra-efetuação”.
Vê-se, assim, que as relações afroindígenas são pensadas, simultaneamente, na chave da
filiação e na da aliança, extensivas e intensivas ao mesmo tempo; que tanto uma quanto a outra são
encaradas em sua molaridade histórica e em sua molecularidade criativa. O afroindígena é uma
linha de fuga minoritária não apenas em relação à variável majoritária dominante “brancos”, como
também em relação à captura que sempre ameaça as linhas de fuga: o rebatimento do devir em
uma identidade ou mesmo em um pertencimento — negro, índio como minoria em lugar de devir-
minoritário ou menor.
Finalmente, mas não menos importante, Cecília também aprendeu que o conceito de
afroindígena foi criado, em Caravelas, a partir dos mesmos procedimentos utilizados na criação
das obras de arte que o grupo produz, ou seja, a partir dessa técnica que os artistas chamam de
“reaproveitamento” ou “ressuscitamento” da madeira, técnica que opera por meio da reatualização
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das virtualidades reprimidas pela história. Se uma árvore derrubada preserva uma potência vital
que o artista pode recuperar, o mesmo não deixa de ocorrer com uma dança, um cântico, uma
forma de solidariedade esquecidos. Também nestes casos o militante pode desencadear forças que
as formas atuais apenas contêm. Do mesmo modo que na “madeira morta” uma nova vida pode ser
encontrada, nas experiências de resistência à dominação uma nova força pode sempre ser
despertada. Em última instância, trata-se de uma espécie de bricolage generalizada das
experiências históricas vividas de diferentes maneiras pelos membros do grupo como afros e como
indígenas, ou seja, como dominados.
Em última análise, é ao mito das três raças que os afroindígenas de Caravelas estão tentando
resistir. E se o fazem é porque sabem muito bem que os mitos das classes dominantes têm o mau
costume de produzir efeitos muito reais. Nesse sentido, sua elaboração do afroindigenismo possui
igualmente uma dimensão mítica, termo que não apresenta nenhum inconveniente se o livrarmos
de suas ressonâncias representacionais ou mesmo estruturais. Como escreveram Deleuze e Guattari,
o mito não é “uma representação transposta ou mesmo invertida das relações reais em extensão”;
ele, ao contrário, “determina, conforme o pensamento e a prática indígenas, as condições
intensivas do sistema”; ou, em outras palavras, o mito “não é expressivo, mas condicionante”. O
problema é de agenciamento, não de representação. E, se a bricolage, como postulou Lévi-Strauss,
corresponde, no plano da atividade prática, ao mito no da atividade especulativa, a mesma
passagem do expressivo ao condicionante poderia ser transpostas para essa noção. O
“reaproveitamento” ou “ressuscitamento” — da madeira ou da cultura — é uma forma de
resistência e um modo de produção de novas condições e condicionantes que faz parte inevitável
de toda atividade criativa e de toda luta política.
É nesse sentido que por afroindígena podemos entender algo como uma espécie de
perspectiva. Perspectiva que não é tanto a da simples oposição entre afroindígena, de um lado, e
brancos, de outro, o que conduziria inevitavelmente a sua captura por uma forma-identidade; mas,
uma perspectiva que, estabelecida a partir da própria oposição entre afro e indígena, só pode ser de
natureza muito distinta daquela entre afro e/ou indígena, de um lado, e branco, de outro. Em suma,
o óbvio: que as relações entre as “três raças” não podem ser as mesmas quando encaradas do ponto
de vista dos dominantes ou dos dominados. Esta é talvez a hipótese mais forte que eu gostaria de
levantar: que esse deslocamento de perspectiva poderia ser denominado “contramestiçagem”. Não,
claro, no sentido de uma recusa da mistura em nome de uma pureza qualquer, mas no da abertura
para seu caráter analógico, não binário ou digital, e para o elemento de indeterminação que
qualquer processo de mistura comporta. “Contra” no sentido clastreano de uma recusa ativa do Um
e de uma afirmação do Dois. No entanto, como também nos ensinou Pierre Clastres, o Um só pode
matar porque já estava dentro de nós. Quaise seriam, então, as pequenas máquinas de guerra que os
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afroindígenas mobilizam para conjurar a mestiçagem e o sincretismo enquanto figuras da


unificação estatal?

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A quase 400 Km ao norte de Caravelas, e a cerca de 50 Km do litoral, fica a cidade de
Buerarema, parte da antiga grande região cacaueira baiana. E, a pouco menos de 20 Km do centro
de Buerarema, fica a Serra do Padeiro, onde vivem, hoje, quase mil tupinambás. Eles fazem parte
de um grupo mais abrangente, que inclui os Tupinambá de Olivença (que vivem mais perto do
litoral), e, como seus vizinhos, lutam há pelo menos vinte anos pela criação de sua terra indígena.
A história dos Tupinambá dessa região se parece muito com a de inúmeros grupos indígenas
do nordeste brasileiro — e, hoje, também de outras regiões. Grosso modo, como nos conta Helen
Ubinger, essa história é por eles dividida entre um grande período que vai do século XVI ao XIX
(marcado por sua redução em missões jesuítas em conjunto com outros grupos indígenas e em,
seguida, pela ocupação de certos territórios), seguido, a partir do início do século XX, por períodos
mais curtos de invasão, expulsão, revolta, dispersão, submersão e retomada. Esta não é a ocasião
para nos determos nesse intrincado processo e no complexo modo como é pensado e narrado pelos
envolvidos. Basta sublinhar que os Tupinambá não supõem que tenham deixado de existir
enquanto indígenas em nenhum momento, e que pensam as alianças e a submersão que se viram
obrigados a praticar como meios de luta para garantir a sua existência.
Desse modo, eles não veem nenhum problema em reconhecer que são “misturados”. No
entanto, e ao contrário do que vimos ocorrer em Caravelas, a expressão afroindígena parece não
fazer muito sentido na Serra do Padeiro, uma vez que a mistura não anula o fato de que são,
sempre foram e pretendem permanecer indígenas. Tudo se passa de algum modo de forma
semelhante ao que foi descrito pela primeira vez, em 1991, por Peter Gow para os Piro da
Amazônia peruana: o fato de que a diferença entre pessoas pode ser introjetada para dentro de cada
uma não anula o fato de que, coletivamente, podem seguir sendo o que sempre foram. Ou, para
parafrasear uma observação de Pedro Pitarch acerca dos Maia contemporâneos no México, os
Tupinambá da Serra do Padeiro não são os “descendentes” dos antigos Tupinambá: eles são
aqueles Tupinambá que foram capazes de sobreviver a uma experiência histórica devastadora.
De seu próprio ponto de vista, o ponto central dessa articulação entre identidade e diferença,
continuidade e descontinuidade, parece se situar no plano cosmológico. Conhecidos pelo culto que
prestam aos encantados, continuam a ver suas práticas religiosas sendo usadas para negar a eles o
direito à terra, sob o argumento de que assim como fenotipicamente eles não parecem índios, sua
religião estaria mais próxima das religiões de matriz africana do que de práticas indígenas. Eles,
contudo, pensam de outro modo.
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Como se sabe, por “encantado”, entende-se, em praticamente todo o Brasil, do oeste


amazônico ao litoral nordestino e do extremo norte do país a Minas Gerais, um conjunto de seres
espirituais que assumem características semelhantes, mas não idênticas, nas diversas práticas
religiosas em que aparecem. Denominados, em muitas partes, “caboclos”, esses encantados se
caracterizam, em geral, por não se confundir com as divindades propriamente ditas e, ao mesmo
tempo, por apesentarem algum tipo de afastamento significativo em relação aos antepassados e
espíritos de mortos em geral. Ainda que isso não ocorra em todas as partes, os encantados
costumam ser pensados como “vivos”, seja no sentido de que são seres que passaram deste plano
da existência para outro sem conhecer a experiência da morte, seja no sentido de que sempre
existiram, habitaram e protegeram determinado território.
É bem nessa última acepção que os Tupinambá da Serra do Padeiro definem os seus
encantados — que eles ocasionalmente chamam de “caboclos”, termo igualmente utilizado como
sinônimo de índios. Os encantados são os “donos da terra”, essa terra que foi transformada em um
“território de sangue” e que é preciso agora “curar”, transformando-a em uma “Terra sem Males”.
Essa será a nova forma da vingança Tupinambá, não mais a partir de um “derrame de sangue”, mas
justamente da cura de uma território doente de sangue. Para isso, são necessárias as “retomadas”,
das terras, da cultura, da vida. Retomadas que devem ser entendidas literalmente no sentido
proposto por Isabelle Stengers para a noção de “reclaim”: não simplesmente lamentar o que se
perdeu na nostalgia de um retorno a um tempo passado, mas sim, recuperar e conquistar ao mesmo
tempo, “tornar-se capaz de habitar de novo as zonas de experiência devastadas”, como escreveu a
filósofa.
O modo como os Tupinambá da Serra do Padeiro narram os começos de seu culto aos
encantados é impressionante e constitui uma das condicionantes de suas práticas e representações.
Um migrante do sertão baiano acaba parando na Serra e se casando com uma nativa. Um de seus
filhos experimenta crises de dor ou mesmo de “loucura”. Seu pai decide levá-lo à mais famosa
mãe-de-santo da Bahia, Mãe Menininha do Gantois, sua parente distante. Em Salvador, a poderosa
mãe-de-santo se dá conta que não pode curá-lo porque ele já possui o poder da cura. E que a
única solução é “cumprir sua sentença”, ou seja, voltar para a Serra e começar a curar as pessoas.
De volta, o primeiro pajé tupinambá contemporâneo, cura, primeiro, a si mesmo e, em seguida a
outras pessoas. Em seus sonhos, descobre pessoas com o mesmo dom, capazes de acolher os
encantados e dá início a seu culto. Começa a acolher um encantado específico, o Caboclo
Tupinambá, que avisa que “essa terra vai voltar a ser uma aldeia indígena”, e anuncia a missão de
retomada do território indígena. Nessa retomada, humanos e encantados são parceiros: os segundos
seguem sempre na frente das ocupações territoriais e conduzem os primeiros na retomada da
cultura.
12

Quando confrontados com a acusação de que suas práticas religiosas não seriam realmente
indígenas, mas “misturadas” ou mesmo de origem africana, os Tupinambá da Serra do Padeiro
sabem exatamente o que dizer. Como diz Célia, irmã do cacique Babau e grande pensadora, “o
candomblé é bom pra gente usar”. Continuo a citá-la:

“A gente não discrimina, sabemos que algumas das entidades dos negros são do bem. Mas se
eles não combinam a gente não trabalha com eles, nós não trabalhamos com as entidades
negras, mas algumas sim, pois elas ajudam. Porque havia muito contato entre as culturas”.

Ora essa visão pragmática, no sentido filosoficamente mais profundo do termo, também pode ser
aplica às religiões dos brancos. Como diz Célia, orações católicas, por exemplo, são utilizadas
pelos Tupinambá, mesmo que eles de modo algum sejam cristãos, porque — e sigo citando-a:

“Nós fomos catequizados. Aí nós usamos o que era bom ou tinha mais força da religião do
outro e adaptamos a nossas práticas e crenças. Mas continuamos fazendo nossos rituais e
tendo fé nas nossas crenças, só que adaptamos, usando o que era útil ou bom do homem
branco”.

Não creio que estamos tão longe dos afroindígenas de Caravelas quanto pode parecer. Nos
dois casos, a relação afroindígena é o modo pelo qual se pode resistir aos brancos, mesmo que, no
caso tupinambá, seja preciso manter uma separação entre afro e indígena que é, de algum modo,
eclipsada pelos militantes de Caravelas. Índios até o século XIX, os Tupinambá se viram obrigados
a “submergir” para não serem mortos — um pouco como seus encantados que passam de um plano
a outro sem conhecer a experiência da morte. Nessa submersão, tanto eles quanto seus encantados
se metamorfoseiam em “caboclos”, capazes de sobreviver em alguns nichos até poderem reemergir
neste mundo como índios e encantados a fim de retomar o que é seu — em uma processo que
lembra demais o ressuscitamento da madeira apenas aparentemente morta em Caravelas.

***

O terceiro, e último, caso que eu gostaria de apresentar rapidamente a vocês não é bem um
“caso”. Trata-se, antes, de um conjunto de reflexões extraídas de diversos contextos etnográficos
que talvez só tenham em comum o fato de se pensarem como sendo “de origem africana”. Todos
consistem em reflexões sobre a questão da mistura e da pureza e eu os organizei sob a forma de
“teorias”.
13

A primeira é a “teoria da milonga”, elaborada pelo finado ogã do terreiro angola


Tumbajuçara, Seu Esmeraldo Emeterio de Santana, de Salvador, no importante encontro realizado
pelo CEAO, da UFBA, em 1984, em Salvador, reunindo um grande conjunto de intelectuais
“nativos” falando sobre as religiões de matriz africana no Brasil. Seu Esmeraldo sugere,
basicamente, que a nação angola, e eu cito:

“É uma mistura de cambinda, moçambique, munjola, quicongo. Tudo isso é angola. Então
virou o que eles mesmos chamam de milonga. Há pouco tempo houve uma polêmica por
causa da palavra milonga. Mas milonga é mistura. Foi assim que eles fizeram. Misturaram,
porque nas senzalas tinha todas as ‘nações’ e, quando era possível eles faziam qualquer coisa
das obrigações deles, então cada em pegava um pedaço, fazia uma colcha de retalhos, um
cozinhava isso, outro cortava aquilo, outro pegava. A mesma coisa fez-se no cântico. Um,
‘eu sei tal cantiga’, outro, ‘eu sei tal’, e todos cantavam, e então o ‘santo’ aceitava, e não
ficou somente uma ‘nação’ pra fazer aquele tipo de obrigação. Era a mistura, como já disse,
a milonga”.

A reflexão de Seu Esmeraldo diz respeito, diretamente, ao processo que deu origem à nação de
candomblé angola, mas não há nenhuma razão para não estender seu raciocínio às demais nações,
de tal modo que milonga poderia justamente exprimir a modalidade de relação que se estabelece
entre as diferentes nações de candomblé.
Essa relação se caracterizaria, por um lado, por ser uma “colcha de retalhos”, ou seja, uma
costura entre diferentes elementos que, de certo ponto de vista, podem ser considerados diferentes
e apenas artificialmente reunidos e, de outro, como compondo um conjunto dotado de
funcionalidade, estrutura e beleza. A referência à culinária esclarece a reflexão, uma vez que,
como sabe todo bom gourmet, o fato de o sabor de um prato ser apreciado em seu conjunto não
anula o prazer de nele distinguir seus diversos componentes — bem o contrário. Por outro lado,
Seu Esmeraldo enfatiza aquilo que já havíamos visto nas reflexões de Célia Tupinambá, o caráter
pragmático da mistura: “e então o ‘santo’ aceitava…”, prova final para as experiências que a
situação de diáspora permitia e exigia. Tudo se passa, então, como se a milonga fosse um
dispositivo ótico de foco dinâmico, alternando ininterruptamente entre perspectivas de conjunto e
de detalhe.
Essa alternância aparece ainda mais claramente nas reflexões de Seu Nezinho, umbandista de
Juazeiro do Norte, que assim explica ao pesquisador Luiz Assunção o que é um caboclo. Eu cito:
14

“Caboclo é índio. É índio, sim. Agora eu acho que varia. Um dia, um caboclo que ele venha,
ele desce em várias linhas, varia. Tem caboclo que desce como Exu. Varia, isso aí muda de
linha. Uma entidade só tem capacidade de puxar sete cantos. É aí que ele muda de linha.
Então, tem caboclo que não desce como Exu. E já tem outros que descem como Exu. Vamos
supor, Caboclo Arranca Toco, na linha esquerda ele vem como Exu. Se a pessoa está
acostumada a trabalhar linha cruzada, aí desce tudo no mundo. Aí mistura tudo‟.

Essa “teoria da variação” (contínua, diriam Deleuze e Guattari) levanta uma questão ontológica
fundamental, que, possivelmente, explica, ou torna um pouco mais inteligível, essa disposição para
a combinação das religiões de matriz africana: o fato de que os seres que povoam essas ontologias
não existem em estados fixos mas naquilo que poderíamos chamar, novamente, de modulação. Ou
seja, o fato de que tudo pode aparecer de diferentes maneiras; ou melhor, de que os seres só podem
existir aparecendo de diferentes maneiras.
Nessas ontologias modulatórias, um caboclo pode aparecer como índio ou como exu; um
exu pode vir como orixá ou como caboclo; mesmo um orixá pode se manifestar como caboclo —
ou como orixá; uma divindade da nação angola pode surgir em um terreiro da nação queto (ou
vice-versa); um terreiro queto pode ter um lado angola (ou vice-versa); um iniciado pode dizer, em
um dia, que “está de Ogum”, seu santo de frente, e, em outro, que “está de Oxum”, seu segundo
santo… E assim por diante.
Imagino, mas isso é ainda muito provisório, que aqui talvez possamos encontrar a chave
daquilo que foi precariamente denominado sincretismo e, também, uma das chaves para as teorias
locais da mestiçagem. Porque, afinal, a possibilidade se ser negro E índio (E mesmo branco) talvez
seja um fenômeno da mesma natureza que aquele que permite equacionar Ogum e São Jorge de
um modo em que o conectivo E jamais se torna o verbo É.
É o que nos diz, de certa maneira, o falecido Pai Francelino de Shapanan, que trouxe a Casa
das Minas de Thoya Jarina do Maranhão para São Paulo. Nos textos que escreveu para duas
coletâneas organizadas, respectivamente, por Reginaldo Prandi e Raymundo Maués e Gisela
Villacorta, Pai Francelino enfatiza o potencial para a transformação — ou seja, para a mistura —
de todas as entidades da Mina. Assim, diz ele, “o caboclo, em suas diferentes formas, se misturou”,
ele “é o índio civilizado que veio para a cidade, que se misturou com o branco e até mesmo com o
africano”. O próprio Caboclo Pedra Preta, de Mãe Lindinalva, por exemplo, conta que ele “é índio,
mas se porta como caboclo para o povo entender (…). Não se considera egum (espírito de morto),
mas sua ‘pajelança’ é como de egungum, dos índios mortos que já foram grandes caciques, tuxauas,
morubixabas”.
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Essa teoria de um sacerdote, e de um caboclo, sobre os caboclos é uma “teoria do movimento


e da transformação”, que ressalta que os encontros não anulam necessariamente as diferenças. O
movimento do caboclo permite que ele se transforme, assimilando e se unindo a outros seres, mas
permite, também, que deles ele não pare de se distinguir.
Luiz Sérgio Barbosa e Almiro Miguel Ferreira, pais-de-santo e membros da Federação de
Cultos Afro-Brasileiros da Bahia, elaboram esse ponto na forma do que poderíamos denominar
uma “teoria das andanças e da indeterminação”. Perguntado se os “caboclos são espíritos de índios
que existiram no Brasil”, Ferreira responde que:

“Há pessoas que dizem que são (…). Agora, não está em mim dizer que os espíritos dos
índios são os caboclos. Seria querer saber demais de mim. Eu só sei que existem os
caboclos”.

Barbosa, por sua vez, explica a entrada dos caboclos nas religiões de matriz africana como
resultado de “suas andanças nos terreiros de candomblé”. Eu cito:

“Os festejos (…) eram presenciados pelos Caboclos (Índios). Os mesmos manifestavam a
vontade de participar, em razão dos encontros casuais entre escravos e índios. (…) Os
Caboclos espiavam mas não era permitida sua participação. Os africanos vetavam. Os
caboclos passaram a reclamar. Alegaram que os africanos vindos para o Brasil nada
trouxeram e quando aqui chegaram se valeram do que encontraram, e tudo que existia aqui
no Brasil era dele, o caboclo. As terras, as folhas, os rios, as pedras e tudo mais que os
africanos estavam usando era de propriedade dos caboclos (Índios). Com esse entendimento
os caboclos começaram a romper a barreira com o aparecimento de incorporações de
caboclos nas pessoas possuidoras de mediunidade”.

Observemos, de passagem, como é difícil aqui saber se os “caboclos e índios” a que se refere
Barbosa são humanos ou espíritos. Eu arriscaria dizer que talvez sejam ambos e que é por isso que
os “africanos” tiveram que aceitar os caboclos, mesmo mantendo alguma separação dos cultos
A dificuldade, mas também a possibilidade, para a absorção dos caboclos no candomblé
deriva, prossegue Barbosa, do fato de que, cito

“Há caboclo que incorpora nas pessoas, dizendo-se ser verdadeiro, quando não é verdade. Os
mesmos não são nativos das aldeias. São orixás africanos que, na incorporação, dizem ser
caboclo nativo”.
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Por outro lado, perguntado se os caboclos são espíritos de mortos (os eguns, que, como regra geral,
não devem possuir as pessoas no candomblé), Barbosa sustenta que, e eu cito:

“O caboclo, ele desencarnado é um espírito. Mas você há de analisar que há caboclo serviçal
e caboclo chefe. E nós não podemos, aqui, analisar, há quantos milênios existem os caboclos
e a sua desencarnação. Então ele pode ser um caboclo espírito porque nós não vamos
qualificar o caboclo como egum e ele pode ser um caboclo deificado. Porque ele vem cá,
incorpora, com o prodígio dele, faz o bem. Quantas pessoas são beneficiadas pelo caboclo? E
o que ele diz é verdade. E vai trabalhar em benefício disso. Portanto ele está chegando ao
ponto de ser deificado”. Assim, prossegue, “na linha de caboclo nós não qualificamos como
egum. Porque o egum tem muita conotação. A trajetória do egum é diferente dos
ensinamentos, dos conhecimentos e da existência do caboclo. Eles são espíritos e podem ser
muito evoluídos e, como eu acabo de dizer, o deificado é o orixá, o deificado pode ser o
caboclo, que vem na terra implantando o seu prodígio, cuidando das pessoas”.

Em poucas palavras, o interessante dos caboclo é justamente a indeterminação de seu estatuto


ontológico: humano, espírito, espírito de morto, divindade… Mais uma vez, ele só existe
modulado.
Naiana, mãe pequena do Terreiro do Caboclo Juremeira, de Dona Otília, em Belmonte, no
sul da Bahia, estudado por Bianca Soares, segue essa mesma direção, ao elaborar o que
poderíamos chamar de uma “teoria da diferenciação”. Eu cito: “os orixás viveram e adquiriram
poderes que quando morreram conseguiram se diferenciar e voltar. Os pretos velhos e caboclos
também”. É isso o que os distingue dos eguns propriamente ditos, os espíritos de mortos
indiferenciados, que não aceitam o fato de estarem mortos e por isso se tornam espíritos revoltados
que oferecem grande risco aos humanos. Os caboclos, pretos velhos, erês e marujos se
diferenciaram desses espíritos ao escolher trabalhar para as divindades, tornando-se, assim, seus
mensageiros.
Como adiantei, penso que essas teorias da milonga, da variação, do movimento e da
transformação, das andanças e da indeterminação, da diferenciação, estão apoiadas sobre uma
ontologia modulatória, ao mesmo tempo em que devem apoiar as reflexões sobre o que nós
denominamos, bem inadequadamente, sincretismo e mestiçagem.
Assim, a falecida Olga Francisca Régis, a grande mãe-de-santo baiana Olga do Alaketo,
explicava o “sincretismo” dizendo que, cito:
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“Nós não servimos a dois deuses. O Deus é um só (…). O que muda é o nome” (como com a
Trindade) (…); os africanos traduziram essa história do orixá, na África, com santos, no
Brasil, por uma circunstância. Cada Oxóssi tem um nome na África. É a velha história, são
comparados assim, mas um é o caçador, outro é o que tem a si toda a responsabilidade do
mato, do pasto”(…); dentro da divindade Jesus Cristo, ou o Sacrifício, tem todas as
divindades, com todos os nomes”. Mas, também, que “quando tenho necessidade de apoio,
mando as pessoas à Igreja. E eles servem, como eu também sirvo. Isto é uma questão de
conhecimento e não de separação”; e “isto do folclore com o candomblé, eu sou mais contra
do que com a religião católica”.

Essa “teoria da tradução” — acompanhada de uma “teoria da utilidade” que já havíamos


observado com Célia Tupinambá e com Seu Esmeraldo — pode nos fazer entender melhor o
equívoco de muitos antropólogos que interpretam posições como as de outra grande mãe-de-santo
baiana, Mãe Stela de Oxóssi do terreiro Axé Opô Afonjá, como “puristas” e mesmo
fundamentalistas, quando elas parecem defender o fim do sincretismo. Na verdade, o que Mãe
Stela defende é a não necessidade atual do sincretismo. Este, diz ela “surgiu porque os escravos
precisavam dele, mas agora não é mais necessário”. O que revela, de imediato, que a oposição
entre essas posições é muito mais política, no sentido de tática e estratégia, do que teológica, no
sentido de pureza e ortodoxia. O que permite que pais-de-santo como Balbino Daniel de Paula
sustentem que “candomblé e catolicismo são como água e óleo — podem ficar no mesmo copo,
mas não se misturam”; e que outros, como Luís da Muriçoca, digam que “sei que o Senhor do
Bonfim não é Oxalá, mas ninguém vai tirar sua imagem do meu terreiro”, porque “faço isso desde
menino”, porque “foi isso que nossos avós nos ensinavam”. E Norton Corrêa já havia observado
como a mãe-de-santo gaúcha Ester de Iemanjá considerava o catolicismo como mais uma “linha, a
linha católica”, pensando, assim, a relação das religiões de matriz africana com o catolicismo na
mesma chave em que se pensa as relações dessa religiões entre si e de cada uma delas consigo
mesmo.
Foi isso que a pombagira Maria Molambo, de Mãe Rita, de Pelotas, ensinou a Edgar
Rodrigues Barbosa Neto: uma “teoria dos lados”, que sustenta não apenas que tudo “tem sempre o
outro lado” (como disse o Caboclo Galo Preto para Carmen Opipari, em São Paulo), mas também
que cada lado tem seus próprios lados “simultâneos e heterogêneos”. Esse “politeísmo intensivo”,
como o denominou Barbosa Neto, torna-se assim, paradoxalmente, sinônimo de um monoteísmo
ou de um monismo, igualmente intensivos.
Isso nos leva de volta à “teoria da linha cruzada”, de José Carlos dos Anjos, da qual
tínhamos partido. Pois é essa ideia da “linha cruzada”, presente em praticamente todas as religiões
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de matriz africana no Brasil, que permite pensar um espaço de agenciamento de diferenças


enquanto diferenças, sem a necessidade de pressupor nenhum tipo de síntese ou fusão. As
diferenças são aí intensidades que nada têm a ver com uma lógica da assimilação, mas sim com
uma organização de forças que não envolve nenhum tipo de escolha binária, mas uma modulação
analógica para o estabelecimento de conexões e disjunções múltiplas. Trata-se, para retomar um
termo de Guattari, de um modelo heterogenético que, apoiado em variações contínuas, permite
opor as técnicas de composição, no sentido artístico do termo, com as quais operam a
contramestiçagem e o contrassincretismo aos procedimentos laminadores de nossas próprias
teorias da mistura.
Finalmente, creio que são essas características que estão na base dessa “teoria do pluralismo
religioso” que Ordep Serra considerou próprio das religiões de matriz africana — desde que
admitamos que esse pluralismo religioso está ancorado em uma espécie de pluralismo ontológico e
epistemológico. Ao contrário do nosso, esta forma de pluralismo jamais opera decretando a
inexistência ou o caráter ilusório de alguns seres e a realidade de outros, uma vez que sabe, como
se diz em Cabo Verde, que “tudo o que tem nome existe”. Ao mesmo tempo, sabe também que não
é possível ou desejável tentar se relacionar com a totalidade desses seres, seja porque não se deve
fazê-lo, porque não se quer fazê-lo ou porque não se sabe como fazê-lo.

***

Uma coda para concluir. No sétimo dos “Mil Platôs”, intitulado “Rostidade”, Deleuze e
Guattari sustentam de modo algo intrigante que, ao contrário do que costumamos imaginar, a
radicalidade que caracteriza a recusa ocidental da alteridade não reside tanto no fato de que aqui
esta seria mais reprimida ou mais completamente excluída do que alhures. Se essa recusa é radical,
argumentam, é porque o Ocidente ignora completamente a própria existência da diferença. A isso
denominam “racismo europeu”, que definem como, cito,

“[essa pretensão do homem branco [que] nunca procedeu por exclusão nem atribuição de
alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades primitivas que se apreenderia o
estrangeiro como um ‘outro’ (…). Do ponto de vista do racismo [europeu], não existe
exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e
cujo crime é não o serem”.
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A identidade, que Deleuze e Guattari chamam rostidade, é justamente esse dispositivo que captura
as irredutíveis especificidades das diferenças e as esvazia de toda a sua aspereza. “Além da
identidade”, portanto; mas não no sentido de algo mais oculto, profundo ou essencial, e sim
naquele, talvez mais banal, de “ao lado”, “ademais”, quer dizer, de que, além da identidade, há
outras coisas para serem vistas e muitas com as quais aprender. Lição afroindígena que pode nos
ajudar a vencer essa triste situação em que, como escreveu a romancista ganense Ama Ata Aidoo,
“a gente nem pode curtir nossas Diferenças em paz”.

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