Você está na página 1de 30

Os indígenas antes da chegada dos

europeus

Apresentação

Os povos nativos (ou originários) no nosso continente ocupavam o território posteriormente


conquistado e colonizado por diferentes povos europeus. Veja bem: não se fala em "indígenas",
porque esse termo faz referência à "confusão" de Cristóvão Colombo, que acreditava ter chegado
às Índias com sua viagem; nem "América", pois esse termo não existia para os nativos; muito menos
"Brasil", nomenclatura que os portugueses deram ao território ao sul do novo continente. E mais:
muitos autores defendem que a própria noção de "europeu" como uma identidade outra se
configurou com os contatos estabelecidos com os povos africanos e ameríndios.

Essas observações são importantes para que, no estudo desses povos, não se incorra em
anacronismos ou visões teleológicas, tampouco seja mantida uma visão etnocêntrica sobre as
diferentes etnias que dominavam o território que hoje se chama "Brasil".

Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai aprender mais sobre a ocupação do território do sul do
continente chamado pelos europeus de "América", notadamente no território hoje identificado
como "Brasil". Também vai conhecer alguns desses povos nativos e sua organização social.

Por fim, vai reconhecer aspectos indígenas na conformação da "cultura brasileira".

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Analisar as ocupações pré-históricas do Brasil.


• Contextualizar as divisões e organizações sociais dos indígenas no Brasil.
• Reconhecer aspectos da formação cultural indígena no Brasil.
Infográfico

A cultura brasileira é caracterizada pela diversidade da composição étnica da sociedade. Elementos


dos povos africanos, europeus e indígenas constituem nossas práticas e costumes em todas as
esferas.

Durante muitos anos, pretendeu-se valorizar apenas aspectos culturais da cultura e história
europeia, devido a uma concepção da Europa como "civilização" e "progresso". Contudo, nas
últimas décadas, essa ideia tem sido problematizada, valorizando-se a diversidade e a pluralidade
cultural e étnica brasileira.

Veja no Infográfico alguns elementos da cultura indígena que contribuem para a formação da
cultura brasileira.
Aponte a câmera para o
código e acesse o link do
conteúdo ou clique no
código para acessar.
Conteúdo do Livro

A promulgação da Lei n. 11.645/2008 tem revolucionado todos os âmbitos educativos no que diz
respeito à compreensão sobre a cultura e a história indígena. Vistos como atrasados ou inferiores,
com as novas diretrizes para o ensino de sua cultura e história, os povos indígenas estão sendo
reconhecidos e valorizados como integrantes da sociedade brasileira. Muitos, inclusive, tornaram-se
autores dessas narrativas, substituindo um discurso etnocêntrico e realizado exclusivamente por
brancos.

Com essas novas perspectivas, visões arraigadas na historiografia e no imaginário social estão
sendo desconstruídas. No que diz respeito ao tema desta UA, um dos "mitos" relaciona-se à ideia
de que, quando os europeus chegaram, nosso território era um espaço despovoado ou, ainda, que a
própria história do "Brasil" começou com sua "descoberta" em 1500.

Novas abordagens relevam que, antes da conquista pelos colonizadores, o território do chamado
"Brasil" era ocupado há, pelo menos, doze mil anos por povos com uma diversidade cultural,
histórica, linguística, política e social não compreendida pelos europeus.

No capítulo Os indígenas antes da chegada dos europeus, base teórica desta Unidade de
Aprendizagem, estude a ocupação territorial da área que viria a ser chamada de "Brasil". Aprenda
um pouco mais sobre a diversidade dos povos indígenas, rompendo com a compreensão monolítica
desses povos que o termo "índio" traz consigo.

Por fim, conheça algumas contribuições das culturas indígenas para a formação da cultura brasileira
e para a humanidade de forma geral.

Boa leitura.
HISTÓRIA E
CULTURA
AFRICANA, AFRO-
BRASILEIRA E
INDÍGENA
Os indígenas
antes da chegada
dos europeus
Caroline Silveira Bauer

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Analisar as ocupações pré-históricas do Brasil.


>> Contextualizar as divisões e organizações sociais dos indígenas no Brasil.
>> Reconhecer aspectos da formação cultural indígena no Brasil.

Introdução
O que você sabe sobre os povos indígenas brasileiros? Quais eram as etnias que
ocupavam o território que viria a se chamar, no futuro, Brasil? Como se organi-
zavam e de que forma lidaram com a conquista dos colonizadores europeus?
O que podemos aprender com os povos originários do Brasil e como reconhecê-
-los como integrantes da formação da cultura brasileira? Por fim, o que é neces-
sário conhecer sobre os indígenas para que não perpetuemos os estereótipos,
os estigmas e os preconceitos a seu respeito?
Respondendo essa última pergunta, adentramos na temática do presente
capítulo. Ao estudarmos os povos indígenas brasileiros antes da conquista
do território pelos colonizadores, temos a oportunidade de reconhecer que,
diferentemente do que foi afirmado durante muito tempo por uma historiografia
eurocêntrica, esse espaço no continente era povoado por uma diversidade de
etnias, muitas delas rivais entre si, e com diferentes formas de organização
2 Os indígenas antes da chegada dos europeus

política e social. Além do mais, muitos hábitos, práticas e saberes foram trans-
mitidos ao longo das gerações e disseminados na cultura brasileira.
Neste capítulo, você estudará a ocupação do território do que se tornaria o
Brasil por diferentes populações originárias. Também conhecerá mais detalhes
sobre sua cultura e suas formas de organização política e social. Por fim, com-
preenderá que diversos elementos da cultura indígena foram disseminados e,
hoje em dia, conformam a cultura brasileira.

O Brasil antes do Brasil


Existem evidências arqueológicas de que o território que hoje chamamos de
Brasil era ocupado por diferentes povos há mais de 12 mil anos. Entretanto,
não existe consenso em relação a esse processo de ocupação: enquanto alguns
pesquisadores problematizam a migração asiática pelo Estreito de Bering como
única forma de chegada dos seres humanos ao continente que viria a ser conhe-
cido como América, outros questionam a ideia de que os povos que ocupavam
a parte sul do continente, principalmente as partes baixas (em contraposição
com os povos dos Andes), eram sociedades nômades, pequenas e rudimenta-
res, basicamente compostas de caçadores e coletores. Quanto a este último
tópico, pesquisas recentes demonstram a existência de sociedades complexas
e sofisticadas do ponto de vista tecnológico (evidenciadas por sua cerâmica) e
na organização social formando os cacicados (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Manuela Carneiro da Cunha, uma das especialistas em história indígena
no Brasil, sintetiza esses conflitos interpretativos no texto a seguir:

Sabe-se que entre uns 35 mil a cerca de uns 12 mil anos atrás, uma glaciação teria,
por intervalos, feito o mar descer a uns 50 metros abaixo do nível atual. A faixa de
terra chamada Beríngia teria assim aflorado em vários momentos deste período
e permitido a passagem a pé da Ásia para a América. Em outros momentos, como
no intervalo entre 15 mil a 19 mil anos atrás, o excesso de frio teria provocado a
coalescência de geleiras ao norte da América do norte, impedindo a passagem de
homens. Sobre o período anterior a 35 mil anos, nada se sabe. De 12 mil anos para
cá, uma temperatura mais amena teria interposto o mar entre os dois continentes.
Em vista disso, é tradicionalmente aceita a hipótese de uma migração terrestre
vinda do nordeste da Ásia e se espraiando de norte a sul pelo continente americano,
que poderia ter ocorrido entre 14 mil e 12 mil anos atrás. No entanto, há também
possibilidades de entrada marítima no continente, pelo estreito de Bering [...]. Há
considerável controvérsia sobre as datas dessa migração e sobre ser ela ou não a
única fonte de povoamento das Américas. Quanto à antiguidade do povoamento,
as estimativas tradicionais falam de 12 mil anos, mas muitos arqueólogos afirmam
a existência de sítios arqueológicos no Novo Mundo anteriores a essas datas
(CUNHA, 1992, p. 10).
Os indígenas antes da chegada dos europeus 3

Para fins didáticos, apresentaremos a seguir o sistema de periodização


da história originalmente proposto por Willey e Phillips (1958), e também
seguido por Neves (1995), para o território que viria a se tornar o Brasil antes
da conquista europeia. Esse sistema classificatório, ainda que seja alvo de
críticas, permite que ordenemos e comparemos dados em escala continental.
Lembre-se, ao empregá-lo, de não considerar essas divisões como etapas
evolutivas lineares, pois se sobrepõem umas às outras.

Paleoíndio
O período paleoíndio corresponderia ao estágio de adaptação dos povos
migrantes às condições climáticas e geográficas do novo território (continente
americano). Esse período se estenderia desde as primeiras ocupações até
o final do Pleistoceno, há mais ou menos 10 mil anos. De acordo com Neves
(1995, p. 177):

[...] as evidências disponíveis para o paleoíndio — em sua maioria compostas por


artefatos de pedra lascada — indicam uma diversidade de modos de aproveita-
mento dos recursos naturais: havia populações de caçadores especializados em
grandes animais e também grupos que faziam uso variado de um número maior
de recursos. Tal variabilidade estava ligada às condições ecológicas específicas
de cada região ocupada por essas populações.

Arcaico
O período arcaico corresponderia ao estágio de adaptação das populações
às condições climáticas mais próximas que possuímos atualmente, incluindo
os povos caçadores. Cronologicamente, esse período estaria situando no
Holoceno, estendendo-se de 10 mil anos atrás até o presente. Conforme
Neves (1995, p. 177):

[...] com a extinção de vários dos animais caçados pelos seus ancestrais paleoíndios,
as populações arcaicas adotaram estratégias adaptativas mais diversificadas, que
incluíam a exploração de recursos aquáticos, como moluscos, a caça de pequenos
animais e o manejo e domesticação de várias espécies de plantas.

Formativo
O período formativo corresponderia à presença e ao desenvolvimento da
agricultura ou qualquer outra economia de subsistência, bem como à fixação da
população em aldeias. Segundo Neves (1995, p. 177): “a prática da agricultura e a
4 Os indígenas antes da chegada dos europeus

redução do nomadismo tiveram como consequência um aumento populacional


significativo, e consequentemente o aumento da densidade demográfica”.
É muito difícil precisar quantas pessoas e quantos povos ocupavam o
território que foi conquistado pelos colonizadores europeus. Alguns etnólogos
estimam que havia 1.400 povos indígenas ocupando esse espaço. Utilizando
a classificação a partir das grandes famílias linguísticas, podem ser identifi-
cados como Tupi-Guarani, Jê, Karib, Aruák, Xirianá, Tucano, entre outros, com
imensa diversidade cultural e de organização social, em parte resultado da
ocupação de diferentes espaços (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

Há várias estimativas numéricas sobre a população indígena à época


da conquista. Os pesquisadores chegam a diferentes números porque
utilizam diversos métodos para elaborar suas hipóteses: alguns levam em
consideração a área ocupada pelas aldeias, outros, a densidade populacional,
etc. Assim, temos as seguintes estimativas: Julian Steward calculou em 1,5
milhão o número de indígenas ocupando o território atual do Brasil; William
Denevan projetou, primeiramente, uma população de 5 milhões de indígenas
na Amazônia, e, posteriormente, reviu essa projeção para cerca de 3,6 milhões;
John Hemming elaborou uma estimativa de 2,4 milhões de indígenas, mas seus
métodos foram bastante criticados (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

Alguns pesquisadores defendem a interpretação desenvolvida por Donald


Lathrap e José Brochado para a migração e ocupação territorial do Brasil.
Segundo esses arqueólogos, o território brasileiro começou a ser ocupado
ao longo do rio Amazonas com o povo Tupinambá, chegando ao litoral do
Nordeste e ao atual estado de São Paulo. O povo Guarani, por sua vez, seguiu
para o sul, chegando à foz do rio da Prata. Os povos do grande ramo Tupi
eram encontrados na costa e no vale amazônico, onde dividiam espaço com
grupos da etnia Aruák (principalmente nos rios Negro e Madeira) e Karib (nas
Guianas e no Baixo Amazonas) (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Essas informações são provenientes das descrições culturais e geográficas
realizadas pelos cronistas do período colonial, e é preciso assinalar que tais
fontes apresentam inúmeras limitações:
Os indígenas antes da chegada dos europeus 5

Frequentemente se equivocam na identificação das populações, e pouco com-


preendiam como os índios se rearticulavam para fazer frente ao projeto colonial
português. A incapacidade dos portugueses em subjugar alguns grupos indígenas
contribuiu para identificar genericamente os índios hostis como “Tapuios”. Tal
identidade ocultava as iniciativas indígenas, os processos socioculturais intertri-
bais de aliança ou conflito com os colonizadores. (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 22).

Além das descrições provenientes dos cronistas, temos as evidências ar-


queológicas e os estudos provenientes da linguística histórica. Cada um desses
campos apresenta inúmeras contribuições para o estudo da ocupação territorial
do Brasil antes de 1500, mas também dificuldades e limitações. Se já nos refe-
rimos aos equívocos dos relatos dos colonizadores e missionários, precisamos
comentar também que determinados vestígios da cultura material se perderam
(em alguns casos devido à ação climática), e que o estudo da linguística histórica
só é viável se há registro da gramática das línguas (FAUSTO, 2010).
Falemos um pouco mais sobre as limitações e as contribuições da linguís-
tica. O antropólogo Greg Urban (1992) afirma que a linguística, principalmente
a linguística comparativa, apresenta bons resultados para estudos cujo recorte
cronológico está entre 4 mil e 500 mil anos a. C. Em outras palavras, essa me-
todologia não contribuiria para o estudo da origem dos povos sul-americanos.
Porém, com o atual estado da arte, é possível fazer alguns apontamentos:

O que se vê mais claramente, e com um grau maior de certeza, atualmente, é um


padrão de ocupação antiga no Brasil (4000–5000 a.C.) periférico ao curso principal
do Amazonas, o que pode refletir uma adaptação a cabeceiras. E podem-se localizar
três grandes troncos linguísticos (Jê, Tupi e Arawak), cada qual associado a um foco
em cabeceiras e/ou periférico (planalto oriental do Brasil, região da chapada dos
Parecis no oeste do Brasil e na Bolívia, e centro-norte do Peru, respectivamente).
Essas áreas geográficas são também locais de aglomeração de línguas isoladas,
sugerindo áreas de dispersão linguística muito antiga. Uma quarta área, os altipla-
nos guiano-venezuelanos, área das línguas Karith, parece ser um foco secundário
de dispersão, mais recente do que os outros três. As distribuições sugerem que a
ocupação das terras baixas propriamente ditas se fez mais tarde, embora possa
haver ocorrido incursões temporárias nessas zonas, com migrações regulares ou
ocasionais de povos das cabeceiras e regiões periféricas (URBAN, 1992, p. 102).

Mesmo que essas dificuldades e esses problemas sejam entendidos pe-


los pesquisadores como desafios para a escrita da história, seus trabalhos
permitem que conheçamos um pouco mais sobre esses povos, como veremos
no próximo item. Apenas para citar um exemplo, em relação à linguística,
mesmo com todas as dificuldades apresentadas, foi possível que antropó-
logos como Urban (1992, p. 102) afirmassem o seguinte sobre a ocupação do
território brasileiro:
6 Os indígenas antes da chegada dos europeus

Os dados de que dispomos atualmente indicam situações de intenso contato,


multilinguismo, línguas de comércio etc. para uma região que vai do extremo
oeste da bacia Amazônica para o norte e em seguida para o leste, cruzando toda
a América do Sul ao norte do Amazonas. O centro e o oeste do Brasil, ao contrário,
parecem ser áreas nas quais a hipótese tradicional uma língua/uma cultura/um
povo tem mais credibilidade.

Como um resumo desse primeiro tópico, podemos recuperar alguns


consensos arqueológicos, historiográficos e linguísticos a respeito
da ocupação do território do atual Brasil pelos indígenas até o século XV. Esse
espaço era ocupado há pelo menos 12 mil anos quando houve o contato com os
portugueses em 1500. Havia, inclusive, uma grande densidade populacional na
região nordeste desde pelo menos 8 mil anos atras. Segundo Niéde Guidon (1992,
p. 52): “a agricultura apareceu entre –4 mil e –3 mil, sendo praticada em todo o
território nacional desde –2 mil, mesmo que de maneira restrita”. Já em relação
à cultura material: “a fabricação de vasilhas em cerâmica, fora da Amazônia,
parece ter sido corrente a partir de –3 mil anos, pelo menos na área arqueológica
de São Raimundo Nonato, no Piauí” (GUIDON, 1992, p. 52). Todos esses dados
permitem que problematizemos a noção de “pré-história” ou de “sociedades
simples” para os povos que ocupavam o território do que viria a ser o Brasil.

A diversidade indígena brasileira


Um dos motivos pelos quais abandonou-se o termo “índio” para se refe-
rir aos povos indígenas brasileiros foi que o termo, além de não designar
qualquer etnia específica, perpetuava uma ideia de que os indígenas eram
todos iguais, desprezando sua diversidade cultural, histórica, linguística e
de organização política e social. Hoje em dia, devemos nos referir a esses
povos como “indígenas”, “nativos”, “originários”, ou, melhor ainda, pela sua
própria nomenclatura étnica.
Juntamente com essa mudança em relação à diversidade étnica, foi neces-
sário que se abandonasse uma perspectiva sobre os povos indígenas como
“sociedades atrasadas” ou “primitivas”, que viviam nas florestas recorrendo
a métodos rudimentares para sua sobrevivência. Com importantes mudanças
conceituais, epistemológicas e teóricas, a história indígena contemporânea,
além de estar sendo escrita pelos próprios indígenas, tem se caracterizado
pelo reforço de uma narrativa de que os povos indígenas:
Os indígenas antes da chegada dos europeus 7

[...] descendem de populações que aqui se instalaram há dezenas de milhares de


anos, ocupando virtualmente toda a extensão desse continente. Ao longo desse
período essas populações desenvolveram diferentes modos de uso e manejo dos
recursos naturais e diferentes formas de organização social, o que é atestado
pelo crescente número de pesquisas arqueológicas realizadas no Brasil e países
vizinhos (NEVES, 1995 p. 171).

Se recuperarmos a classificação adotada por Neves (1995) e apresentada no


item anterior, teremos as seguintes perspectivas sobre os povos ocupantes do
território que viria a se tornar o Brasil. Primeiramente, em relação ao período
paleoíndio, ainda que exista uma divergência entre os que defendem que o sul
do continente começou a ser povoado há mais de 30 mil anos e aqueles que
sustentam uma ocupação mais recente, em torno de 12 mil anos atras, existe
um consenso quanto à diferença da paisagem naquele período comparada aos
dias atuais. No Brasil, existem apenas dois sítios arqueológicos cujas datações
são anteriores a 20 mil anos atrás: Toca da Esperança, na Bahia, e Toca do
Boqueirão, do sítio da Pedra Furada, no Piauí. Em relação a esse último sítio:

[...] datas de até 48.000 anos AP [Antes do Presente] foram obtidas para amostras de
carvão de fogueiras circulares delimitadas por blocos de rocha caídos da parede do
abrigo. Associada a essas fogueiras há uma indústria de objetos de pedra lascada
feitos a partir de seixos de quartzo e quartzito (NEVES, 1995, p. 179).

Porém, alguns pesquisadores fazem objeções a essas datações, já que


não se poderia afirmar que as fogueiras analisadas são de autoria humana
ou oriundas de um fenômeno natural (raios, por exemplo). Da mesma forma,
questionam-se os objetos de pedra lascada encontrados: embora possam
ter sidos confeccionados pela ação humana, também podem resultar de
lascamentos naturais devido a desabamentos (NEVES, 1995).
Independentemente das controvérsias quanto à datação, os sítios arque-
ológicos brasileiros com datações perto de 12 mil anos atrás apresentam ca-
racterísticas de uma ocupação por seres humanos que usavam uma variedade
de instrumentos líticos. De acordo com Neves (1995, p. 180):

A maior parte dos vestígios referentes a essas ocupações é composta por instru-
mentos de pedra lascada, em sua maioria lascas com sinais de utilização, mas há
também raspadores, seixos lascados (“choppers”), e pontas de projétil. É provável
que parte do arsenal de caça fosse composto por materiais perecíveis como madeira
e dentes de animais e por isso não se preservaram no registro arqueológico. Alguns
dos animais então caçados — mastodonte, cavalo (posteriormente reintroduzido
pelos europeus), preguiça gigante, gliptodonte (tatu gigante) — foram extintos
como consequência da ação combinada do excesso de caça e do gradual aumento
de temperatura que ocorreu no final do Pleistoceno.
8 Os indígenas antes da chegada dos europeus

No Quadro 1, a seguir, são listados alguns desses sítios, sua localização


e sua datação, sustentando a tese da ocupação do atual território brasileiro
desde o período paleoíndio.

Quadro 1. Sítios arqueológicos que evidenciam a ocupação do território


brasileiro

Datação
Localização
(AP = Antes do Presente)

11.940 AP Bacia do rio Madeira, em Rondônia

14.000 AP Bacia do rio Guaporé, Estado do Mato Grosso

12.770 AP Bacia do rio Uruguai, no Rio Grande do Sul

12–14.000 AP Serra da Capivara, Piauí

16–22.000 AP Lagoa Santa, Minas Gerais

11.960 AP Serra do Cipó, Minas Gerais

12.000 AP Vale do Peruaçú, Minas Gerais

14.000 AP Goiás

12.000 AP Baixo Rio Amazonas, Pará

Fonte: Adaptado de Neves (1995).

Já no período arcaico, ocorreu uma série de mudanças no meio ambiente


como consequência da elevação geral de temperatura no início do Holoceno,
resultando na formação de grandes áreas de florestas, a perenidade de
muitos rios e a formação e expansão de manguezais. Essas transformações
no meio ambiente ofereceram aos seres humanos uma maior diversidade de
recursos naturais potencialmente utilizáveis, e a cultura material encontrada
nos sítios arqueológicos desse período indica uma especialização no manejo
de diferentes ecossistemas.
Qual o impacto dessas mudanças no território e na ocupação do que seria
o Brasil? Neves (1995) afirma que na região Amazônica houve períodos de
ressecamento que levaram à expansão do cerrado por áreas hoje cobertas
pela floresta. Essas mudanças climáticas teriam influenciado na ocupação
humana da foz do rio Amazonas, mas também seria responsável pela diver-
sificação das línguas indígenas em torno de 4.500 anos atrás.
Os indígenas antes da chegada dos europeus 9

Quanto aos achados de cultura material desse período, predominam obje-


tos confeccionados com pedras lascadas, artefatos feitos com ossos e pedras
polidas, além de restos orgânicos, como no sítio Alfredo Wagner, num banhado
no alto do Vale do Rio Itajaí, em Santa Catarina. Lá foram encontrados vários
quilos de pinhões preservados, demonstrando a importância econômica da
coleta de vegetais (NEVES, 1995).
Nesse período, também surgiu uma maior variedade de sítios: ocupações
em grutas e abrigos sob rocha, sambaquis (colinas artificiais de conchas com
restos de ocupações humanas sobrepostas), sítios a céu aberto, etc. Em relação
aos sambaquis, foram encontrados sítios desse tipo ao longo de toda a costa
do Brasil e nas regiões de manguezais, o que se explica pela riqueza e pela
diversidade de recursos de fauna e flora. Nesses sítios, podemos observar
que a cultura material é bastante rica, com destaque para os artefatos e
adornos feitos com ossos de aves, dentes de mamíferos e restos de peixe,
além de artefatos líticos feitos de pedra lascada e polida e figuras zoomorfas,
os chamados zoólitos (NEVES, 1995).
Foi no período arcaico que ocorreram os primeiros experimentos de do-
mesticação de plantas nesse território. Ainda predominavam as atividades
de subsistência e econômicas relacionadas à coleta.

Com as extinções da megafauna no final do Pleistoceno, as atividades de coleta


ocuparam uma importância ainda maior para as populações do arcaico [...]. O cul-
tivo de plantas era no arcaico apenas um dos componentes de um complexo de
atividades produtivas que incluíam a caça, a pesca, a coleta e o comércio. Poste-
riormente, já no formativo, a agricultura passou a ocupar um papel fundamental na
economia de várias sociedades indígenas, mas não de sua totalidade. Seria errado,
portanto, considerar que o desenvolvimento da agricultura seja uma etapa evolutiva
imprescindível ou mesmo um critério para se avaliar o nível de desenvolvimento
de uma sociedade. Existem hoje no Brasil sociedades indígenas que fazem da
caça, pesca e coleta sua estratégia principal de manejo dos recursos naturais [...].
A condição básica para domesticação de plantas foi o surgimento, no arcaico, das
comunidades sedentárias de pescadores e coletores estabelecidas próximas a
locais com abundância de fauna, como é o caso dos sambaquis (NEVES, 1995, p. 183).

Para explicar esse processo de domesticação, o arqueólogo Donald Lathrap


(1977) sugeriu o conceito de quintal: os povos indígenas teriam transplantado
mudas de plantas de importância para alimentação, construção, produção
de matérias-primas e substâncias para rituais da floresta para os “quintais”
de suas casas, levando, posteriormente, ao desenvolvimento das roças. Para
empreender essas sutilezas interpretativas, os especialistas afirmam que é
necessário um conhecimento dos hábitos e dos saberes dos povos indígenas:
10 Os indígenas antes da chegada dos europeus

[...] existe um gradiente sutil, e difícil de ser percebido pelo observador leigo, entre
os domínios da sociedade — o espaço da comunidade — e da natureza, a floresta
e as plantas e animais que nela vivem. É dentro desse gradiente, que inclui roças
novas, roças antigas, roças abandonadas, os cursos d'água, a floresta e suas tri-
lhas, que os recursos naturais são manejados. As roças abandonadas são um bom
exemplo: embora não produzam mais mandioca, elas têm árvores frutíferas que
atraem animais como paca, cutia, veados, funcionando, portanto, como campos de
caça. Algumas dessas árvores — pupunheiras, bacabas, umaris, babaçu — continuam
frutificando mesmo depois do abandono das aldeias e na Amazônia funcionam com
indicadores de sítios arqueológicos. O antropólogo William Balée sugeriu que cerca
de 10% das matas de terra firme da Amazônia seriam florestas antropogênicas, isto é,
resultados diretos ou indiretos da ação humana [...]. Essas evidências arqueológicas
e etnográficas sugerem que parte do que conhecemos como natureza selvagem
na Amazônia pode provavelmente ser o produto de milhares de anos de manejo
de recursos naturais por parte das populações indígenas da região. A paisagem
amazônica — e por que não a de outras regiões do país? — seria assim patrimônio
histórico além de patrimônio ecológico (NEVES, 1995, p. 183-184).

Por fim, temos o período formativo. Neves (1995) afirma que, se durante o
período arcaico coexistiram povos que experimentavam o cultivo de plantas e
outros que eram praticamente sedentários, não há uma data, ou um aconteci-
mento específico, que determine o início desse novo período. O que caracteriza
uma mudança substancial é a emergência da agricultura como principal atividade
produtiva e o paulatino sedentarismo dos povos, processos que ocorreram de
maneiras e ritmos diversos de acordo com cada uma das regiões do atual Brasil.

Veremos mais detidamente essa contribuição da cultura indígena à


formação da cultura brasileira no próximo item, mas é fundamental,
desde já, destacar, como faz Neves (1995), a domesticação de um número expres-
sivo de plantas pelos indígenas americanos como uma das maiores contribui-
ções para a humanidade. O autor cita como exemplos: “tomate, batata, tabaco,
milho, pimenta, amendoim, mandioca, abacaxi, mamão, maracujá, abóbora,
coca, batata-doce, feijão, um tipo de algodão, pupunha, açaí, urucum (colorau)”
(NEVES, 1995, p. 184).

No processo de transformação da agricultura como a principal atividade


produtiva das populações indígenas, desenvolveram-se práticas e técnicas
que, até os dias de hoje, são utilizadas por muitos povos de diferentes etnias,
tais como a roça de toco ou coivara. Tal prática ou técnica consiste na der-
rubada, ressecamento e queima de áreas de mata, o que permite a limpeza
da área de cultivo e a fertilização do solo (NEVES, 1995).
Os indígenas antes da chegada dos europeus 11

As populações agrícolas a partir do período formativo também eram,


muitas vezes, fabricantes de cerâmicas — embora nem todo povo ceramista
praticasse a agricultura. Ao estudarem essas cerâmicas, os arqueólogos
conseguem demonstrar quais eram suas funções e seus usos, e muito mais:

[...] os artefatos cerâmicos são também frequentemente decorados com pinturas,


incisões, excisões, apêndices e outros recursos que podem fornecer informações
sobre a tecnologia, economia, divisão do trabalho, religião, enfim elementos da
organização sociocultural das sociedades que produziram ou adquiriram e depois
descartaram esses artefatos (NEVES, 1995, p. 186).

Essa reconstituição dos povos indígenas ao longo do tempo demonstra


uma diversidade diacrônica. Vejamos agora um panorama da diversidade dos
povos indígenas à época da conquista e da colonização. De acordo com Fausto
(2010), o litoral era dominado por povos das etnias Tupinambá e Guarani. Esses
grupos étnicos não devem ser compreendidos como uma unidade política,
mas divididos em castas, gerações e nações, algumas aliadas entre si, outras
rivais. Nesse sentido, já mencionamos que os cronistas coloniais registraram
com muitas imprecisões a ocupação do território do Brasil por essas etnias,
o que explica esses povos serem chamados de formas diferentes conforme
os territórios ocupados.
Fausto (2010, p. 75-76), afirma que as aldeias tupinambás “eram compostas
por um número variável de malocas (em geral, de 4 a 8), dispostas irregu-
larmente em torno de um pátio central, abrigando uma população de 500 a
2 mil pessoas”. As aldeias podiam se ligar por laços de consanguinidade ou
aliança, mantendo relações pacíficas entre si, e participando, conjuntamente,
de rituais e atividades militares (expedições e defesa do território). Em função
dessas características, deve-se ter muito cuidado ao considerar cada etnia
como uma organização política autônoma e verticalizada.

As fronteiras eram fluidas, fruto de um processo histórico em andamento, no


qual se definiam e redefiniam as alianças. Aldeias aliadas formavam conjuntos
multicomunitários, como nós de uma rede sem centro; não existia um núcleo
regional, político-cerimonial, onde residisse um chefe ou sacerdote supremo [...].
Tampouco havia chefes com poder supralocal. A estrutura da chefia era tão difusa
e fragmentária quanto a das unidades sociais (FAUSTO, 2010, p. 77).

Essa organização político-social pode ter sido distinta para os guara-


nis. Alguns cronistas do período colonial os descrevem como “divididos em
províncias submetidas a um cacique principal e denominaram agregados de
aldeias como cacicados” (FAUSTO, 2010, p. 77).
12 Os indígenas antes da chegada dos europeus

Aspectos da cultura indígena na


sociedade brasileira
Recuperar aspectos da cultura indígena que formam a cultura brasileira é um
processo de reconhecimento e valorização de práticas e saberes historica-
mente marginalizados, porque compreendidos como provenientes de povos
“incivilizados” ou “inferiores”. Ao longo do século XIX, após o processo de
Independência, quando se iniciou a construção de uma identidade nacional
brasileira, as contribuições das populações africanas e indígenas foram ig-
noradas em detrimento de aspectos da cultura branca europeia, identificada
como representante da civilidade e do progresso.
Essas representações dos povos indígenas foram perpetuadas ao longo
do século XX, desenvolvendo-se, por parte do Estado brasileiro, uma série
de políticas indigenistas que mantinham esses povos sob a condição de
tutelados. Esse cenário somente se modificou com a promulgação da Cons-
tituição de 1988 e com a conquista de uma série de direitos mediante as
lutas dos movimentos indígenas. Uma dessas vitórias foi a obrigatoriedade,
em todos os níveis educativos, do ensino da história e da cultura indígenas.
A partir dessa mudança, houve uma ressignificação das contribuições dos
povos indígenas para a conformação da cultura e da sociedade brasileira.
Rompeu-se com uma compreensão monolítica sobre os indígenas, expressa
em termos genéricos como “índio”, e passou-se a valorizar a identidade étnica
e identitária dos povos nativos do Brasil, como afirma o indígena Luciano-
-Baniwa (2006, p. 49-50):

A compreensão dessa diversidade étnica e identitária é importante para a superação


da visão conservadora da noção clássica de Unidade Nacional e Identidade Nacional
monolítica e única, na qual se pretende que a identidade seja uma síntese ou uma
simplificação das diversas culturas e identidades que constituem o Estado-nação,
o que aconteceria a partir dos processos denominados de hibridismo ou mes-
tiçagem.

Luciano-Baniwa também critica a ideia de que os indígenas tenham perdido


sua identidade a partir do momento em que deixaram de viver em florestas,
em aldeias ou comunidades, ou quando passaram a utilizar recursos tecno-
lógicos, como celulares e computadores. Essa crença, bastante arraigada na
sociedade brasileira, de que os indígenas possuem culturas estáticas, presas
em comportamentos e hábitos do passado, e somente assim poderiam ser
considerados “indígenas”, precisa ser problematizada a partir de uma com-
preensão da cultura como algo dinâmico, resultado de processos de interação:
Os indígenas antes da chegada dos europeus 13

Fazem parte de qualquer dinâmica cultural os intercâmbios e as interações com


outras culturas, quando acontecem perdas e ganhos de elementos culturais,
inclusive biológicos, mas que não resultam em perdas das identidades em interação.
Dito de outra forma, não existe cultura estática e pura, ela é sempre o resultado
de interações e trocas de experiências e modos de vida entre indivíduos e grupos
sociais (LUCIANO-BANIWA, 2006, p. 49-50).

O texto a seguir, de Gersem Luciano-Baniwa, filósofo e antropólogo,


professor da Universidade Federal de Goiás, é bastante didático na
explicação sobre a conformação da cultura e da identidade indígenas e o desafio
do enfrentamento de uma visão monolítica construída desde a formação do
Estado-nação brasileiro no século XIX:
Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade
cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e
de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações
sociais, econômicas e políticas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo
modo que outras civilizações dos demais continentes: europeu, asiático, africano
e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou in-
feriores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes. Deste modo,
podemos concluir que não existe uma identidade cultural única brasileira, mas
diversas identidades que, embora não formem um conjunto monolítico e exclusivo,
coexistem e convivem de forma harmoniosa, facultando e enriquecendo as várias
maneiras possíveis de indianidade, brasilidade e humanidade. Ora, identidade
implica a alteridade, assim como a alteridade pressupõe diversidade de identida-
des, pois é na interação com o outro não idêntico que a identidade se constitui.
O reconhecimento das diferenças individuais e coletivas é condição de cidadania
quando as identidades diversas são reconhecidas como direitos civis e políticos,
consequentemente absorvidos pelos sistemas políticos e jurídicos no âmbito do
Estado Nacional (LUCIANO-BANIWA, 2006, p. 49).

Como mencionado anteriormente, os saberes e as práticas dos povos indí-


genas relativos ao meio ambiente e sua forma de manejo é uma contribuição
não somente à cultura e à sociedade brasileira, mas a toda a humanidade.
Esses saberes e essas práticas são oriundos de uma compreensão holística
do mundo, em que as vidas animal, humana e vegetal fazem parte de um
todo (RIBEIRO, 1995).
Não seria exagero, portanto, afirmar que as principais plantas de que os
seres humanos se alimentam foram descobertas e domesticadas pelos povos
originários do território que passou a se chamar América: batata, mandioca,
milho, batata-doce, tomate, feijão, amendoim, cacau, abacaxi, caju, mamão,
castanha-do-pará, etc.
14 Os indígenas antes da chegada dos europeus

Vejamos a seguir mais alguns exemplos desse tipo de contribuição (RI-


BEIRO, 1995).

„„ Borracha: era conhecida pelos indígenas, que a utilizavam para fazer


bolas, seringas e impermeabilizar objetos. Quando seu uso se tornou
massificado no mundo inteiro a partir da segunda metade do século
XIX, a Amazônia era a única região do mundo produtora para a indústria
automobilística.
„„ Propriedades medicinais de plantas: a capacidade curativa de diversas
plantas domesticadas e cultivadas pelos indígenas está na base de
muitos remédios produzidos e comercializados pela indústria farmacêu-
tica. De acordo com Ribeiro (1995), três quartos das drogas prescritas
hoje em dia foram descobertas por povos indígenas, que, aliás, não
receberam o devido reconhecimento mundial por sua contribuição.
„„ Plantas estimulantes, vegetais como a erva-mate, o guaraná e o tabaco
foram difundidos e são utilizados em todo o mundo.

Assim, o território que foi conquistado e colonizado pelos europeus era


ocupado por centenas de etnias e povos distintos, que foram reduzidos
segundo seu olhar eurocentrista à categoria monolítica de “índio”, igno-
rando sua diversidade e heterogeneidade. Por isso, é recomendável se referir
a membros dessa categoria como “povos indígenas”, “povos originários”
ou por seu nome étnico, como uma forma de reconhecimento de sua cultura,
sua história e sua memória.
Também fica clara a necessidade de reconhecermos as contribuições das
populações indígenas que formam parte do Brasil para nossa cultura, mesmo
que, durante muitos anos, tenhamos aprendido a valorizar apenas aspectos
provenientes dos colonizadores brancos. A cultura brasileira é formada por
elementos herdados das culturas dos povos africanos que, escravizados,
foram trazidos para a América, e também por hábitos, práticas e saberes de
diferentes povos indígenas.

Referências
CUNHA, M. C. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, M. C. (Org.). História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 9-26.
FAUSTO, C. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
GUIDON, N. As ocupações pré-históricas do Brasil (excetuando a Amazônia). In: CUNHA,
M. C. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 37-52.
Os indígenas antes da chegada dos europeus 15

LATHRAP, D. Our father the cayman, our mother the gourd: Spinden revisited or a unitary
model for the emergence of agriculture in the new world. REED, C. A. (Ed.). Origins of
agriculture. The Haque: Mouton, 1977. p. 713-751.
LUCIANO-BANIWA, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
NEVES, E. G. Os índios antes de Cabral: arqueologia e história indígena no Brasil.
In: SILVA, A. L.; GRUPIONI, L. D. B. (Orgs.). A temática indígena na escola. Brasília, DF:
Unesco, 1995. p. 171-196.
OLIVEIRA, J. P.; FREIRE, C. A. R. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília, DF:
Ministério da Educação, 2006.
RIBEIRO, B. G. A contribuição dos povos indígenas à cultura brasileira. In: SILVA, A. L.;
GRUPIONI, L. D. B. (Orgs.). A temática indígena na escola. Brasília: Unesco, 1995. p. 197-220.
URBAN, G. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, M. C.
(Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 87-102.
WILLEY, G.; PHILLIPS, P. Method and Theory in American Archaeology. Chicago: University
of Chicago Press, 1958.

Leituras recomendadas
ALMEIDA, M. R. C. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
DORNELLES, S. S.; MELO, K. M. R. S. Sobrevoando histórias: sobre índios e historiadores
no Brasil e nos Estados Unidos. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p. 173-208, 2015.
GARCIA, E. F. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas
no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.
MONTEIRO, J. M. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
RIBEIRO, B. O índio na cultura brasileira. São Paulo: Revan, 2008.
WITTMAN, L. T. (Org.). Ensino (d)e história indígena. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
Dica do Professor

Ao abordarmos a cultura e a história dos indígenas antes do contato, conquista e colonização


europeia, muitos fazem referência a esse período como "pré-história da América" ou "pré-história
do Brasil".

Essas expressões trazem dois problemas: "pré-história" supõe uma hiearquização entre povos
ágrafos e com escrita; depois, o uso de nomes próprios — "América" e "Brasil" — assenta a história
da colonização e da formação dos estados, não condizendo com as formas de organização social e
política dos diferentes povos indígenas que ocupavam o território, nem com a forma como se
referiam a esse espaço — que não era pensado como um todo unificado.

Na Dica do Professor, faça uma incursão sobre a história da historiografia e veja a quais períodos
históricos e a quais concepções historiográficas essas expressões correspondem. Entenda também
como sua utilização pode prejudicar o ensino da cultura e da história dos povos indígenas.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.
Exercícios

1) O ensino da cultura e da história indígena, com base nas determinações da Lei n.


11.645/2008, significou mudanças substanciais na forma de tratamento das populações
indígenas. Leia o texto a seguir, do escritor Daniel Munduruku:

“Durante muito tempo aprendemos a chamar os primeiros habitantes do Brasil de índios.


Esta alcunha – para usar uma palavra erudita – trazia consigo imagens e significados que
nem sempre dignificavam àqueles a quem ela desejava nomear. Normalmente, vinha
acompanhada por adjetivos que não faziam jus à riqueza da diversidade que ela compunha.
Quase sempre significava atraso tecnológico, primitivismo, canibalismo, entre outros termos
negativos. Nomear alguém com essa palavra era qualificá-lo aquém dos demais seres
humanos e enquadrá-lo em um passado imemorial, que nem mais existia. Essa ideia
congelava os “índios” a um passado tão remoto que a vaga lembrança deles nos remetia à
dos homens das cavernas ou dos dinossauros. Assim eram estudados: como seres do
passado” (SÃO PAULO, 2019, p.14).

Sobre o texto de Munduruku, são feitas as seguintes afirmações. Assinale V (verdadeiro) ou


F (falso).

( ) Ainda que o autor se posicione criticamente em relação às abordagens mais tradicionais


sobre a história indígena, não se opõe ao uso do termo “índios”.

( ) Situar os povos indígenas num “passado imemorial” significa não reconhecer as


transformações culturais e negar a identidade indígena para muitos no presente.

( ) As visões de “atraso” e de “primitivismo” em relação aos indígenas se justifica pela


ausência de utilização de recursos tecnológicos por esses povos.

( ) Problematizar o termo “índio” para nomear os povos indígenas significa um procedimento


de reconhecimento e valorização de sua diversidade cultural e étnica.

A ordem correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é:

A) F, V, V, F.

B) F, V, F, V.

C) F, F, V, V.

D) V, F, V, F.
E) V, V, F, F.

2) O estudo das populações indígenas que ocupavam o território do “Brasil” se dá por


investigações interdisciplinares, unindo diferentes áreas do conhecimento.

Sobre esses estudos, são feitas as seguintes afirmações:

I. A arqueologia permite conhecermos hábitos e práticas dos povos indígenas pelo estudo da
cultura material.

II. Os relatos dos colonizadores e missionários foram abandonados pelos pesquisadores em


razão de seus inúmeros erros e imprecisões.

III. Embora a arqueologia e a linguística histórica nos auxiliem a escrever a história dos povos
indígenas, há certas limitações no emprego de suas metodologias em razão da
disponibilidade de evidências.

Está correto o que se afirma em:

A) I, apenas.

B) II, apenas.

C) I e II, apenas.

D) I e III, apenas.

E) I, II e III.

3) O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último censo realizado em 2010,


calculou que havia aproximadamente 900 mil indígenas no Brasil, de centenas de etnias.

É correto afirmar que:

A) a diversidade dos povos indígenas não decorre das diferentes rotas de migração na ocupação
do território, mas entre serem adeptos de práticas como o canibalismo.

B) a diversidade dos povos indígenas não decorre das diferentes rotas de migração, mas da
designação pelos colonizadores portugueses de “aliados” ou “rebeldes”.

C) a diversidade dos povos indígenas não decorre das diferentes rotas de migração, mas da
ocupação de diferentes territórios com características ambientais e climáticas distintas.
D) a diversidade dos povos indígenas brasileiros decorre das diferentes rotas de migração, mas
não das variações ambientais e climáticas, pois eles ocupavam somente florestas.

E) a diversidade dos povos indígenas brasileiros decorre das diferentes rotas de migração e da
ocupação de territórios com características ambientais e climáticas distintas.

4) O reconhecimento e a valorização da cultura e da história indígena passam pela revisão de


antigas abordagens sobre os povos originários do território brasileiro. Leia o trecho a seguir,
do escritor, xamã e líder político Davi Kopenawa Yanomami (1998):

“‘Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes!’, dizem
os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras
das pessoas da floresta para se pôr a devastá-las. Todas as terras foram criadas em uma
única vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os
primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nessas palavras
de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se
apoderar de nossa terra, é por isso que repetem essas palavras.”

Sobre o texto, são feitas as seguintes afirmações:

I. A fala de Yanomami explicita uma crítica à escrita da história feita pelos brancos,
eurocentrada, que nomeia a conquista do território como “descobrimento”.

II. A ideia de “terra vazia” despreza a existência dos povos indígenas anterior ao contato, à
conquista e à colonização, e explicita uma interpretação sobre a história dos indígenas e do
Brasil.

III. Uma separação entre a terra dos brancos e a terra dos indígenas revela o reconhecimento
da diversidade dos povos indígenas por parte da população branca.

Está correto o que se afirma em:

A) I, apenas.

B) II, apenas.

C) III, apenas.

D) I e II, apenas.

E) II e III, apenas.

5)
O excerto a seguir explicita a diversidade cultural e histórica dos povos indígenas e sua luta
para evitar generalizações e simplificações. Do ponto de vista epistemológico, os
pesquisadores buscam romper com olhares etnocêntricos e uniformizadores desses povos.

Leia o trecho a seguir, escrito pelo antropólogo e filósofo Gersem Baniwa (2006, p. 47):

“São povos que representam culturas, línguas, conhecimentos e crenças únicas, e sua
contribuição ao patrimônio mundial – na arte, na música, nas tecnologias, nas medicinas e
em outras riquezas culturais – é incalculável. Eles configuram uma enorme diversidade
cultural, uma vez que vivem em espaços geográficos, sociais e políticos sumamente
diferentes. A sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem criam
dificuldades para enquadrá-los em uma definição única. Eles mesmos, em geral, não aceitam
as tentativas exteriores de retratá-los e defendem como um princípio fundamental o direito
de se autodefinir.”

Sobre o reconhecimento da cultura indígena para a formação da cultura brasileira, são feitas
as seguintes afirmações. Assinale V (verdadeiro) ou F (falso):

( ) O texto de Baniwa demonstra como as contribuições da cultura indígena são secundárias


para a formação da cultura brasileira, assentada principalmente nos hábitos, nas práticas e
nos saberes herdados das populações europeias.

( ) O texto de Baniwa evidencia diferentes contribuições de hábitos, práticas e saberes dos


povos indígenas incorporados pela cultura brasileira, como alimentos, conhecimento de
plantas medicinais e expressões para a língua portuguesa.

( ) O texto de Baniwa argumenta pela diversidade cultural e histórica dos povos indígenas, já
que a ocupação de diferentes espaços geográficos, com ambientes e climas distintos,
configura diferenças nas práticas e saberes indígenas.

( ) O texto de Baniwa explicita a resistência dos povos indígenas em serem compreendidos


por seus pertencimentos culturais e étnicos, preferindo termos que possibilitem seu
reconhecimento enquanto grupo, como “índio” ou “indígena”.

A ordem correta de preenchimento, de cima para baixo, é:

A) F, F, V, V.

B) F, V, V, F.

C) V, F, F, V.

D) V, V, F, F.

E) V, F, V, F.
Na prática

Por muito tempo, foi comum que as escolas celebrassem o dia 19 de abril, "Dia do Índio", fazendo
com que as crianças usassem adornos como cocares e pinturas corporais como forma de "lembrar"
os indígenas.

Com as mudanças pedagógicas relativas à obrigatoriedade do ensino da cultura e da história


indígena, além das transformações epistemológicas e teóricas pelas quais passou a historiografia,
essa forma de "comemoração" vem sendo ressignificada.

Com isso, para além de visões estereotipadas, preconceituosas ou românticas dos povos indígenas,
professoras e professores têm procurado, nessa data, ressaltar o protagonismo dos povos indígenas
e suas contribuições culturais à cultura brasileira.

Veja Na Prática como duas professoras realizaram atividades de celebração da cultura e da história
indígena, promovendo uma feira de livros para os estudantes e a comunidade escolar.
Aponte a câmera para o
código e acesse o link do
conteúdo ou clique no
código para acessar.
Saiba mais

Para ampliar seu conhecimento no assunto, veja a seguir as sugestões do professor:

A luta contra o senso comum: considerações sobre a apreensão


da história indígena em sala de aula
Neste artigo, confira um estudo de caso da impressão de estudantes sobre a cultura e a história dos
indígenas, e como os professores podem enfrentar estereótipos e preconceitos.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

História e diversidade cultural indígena na Base Nacional


Comum Curricular (BNCC)
Neste artigo, confira uma análise sobre a abordagem da história indígena nas diferentes versões da
BNCC entre 2015 e 2017.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

História indígena no ensino de história: há lugar para


temporalidades outras nos livros didáticos?
Neste artigo, acompanhe uma análise da abordagem da história indígena nos livros didáticos
aprovados pelo PNLD e suas implicações para o ensino de história no âmbito da Lei n.
11.645/2008.
Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Aprender com os povos indígenas


Acompanhe neste artigo uma apologia do aprendizado com as práticas e os saberes dos povos
indígenas, principalmente no que diz respeito a suas práticas de "bem viver" e sustentabilidade.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

A atuação dos indígenas na história do Brasil: revisões


historiográficas
Neste artigo de Maria Regina Celestino de Almeida, veja as contribuições mais recentes da
historiografia sobre a história indígena, em diferentes temáticas, e fique atualizado em relação à
produção na área.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Você também pode gostar