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© Jean-Luc Nancy 2014

JEAN-LUC NANCY

DEMANDA

LITERATURA E FILOSOFIA

TEXTOS ESCOLHIDOS E EDITADOS


POR GINETTE MICHAUD

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla
EDITORA DA UFSC
DEMANDA
LITERATURA E FILOSOFIA

SUMÁRIO

Apresentação
Jean-Luc Nancy, A orla do sentido de Ginette Michaud

I. Literatura
1. « Um dia, os deuses se retiram… »
(Literatura/filosofia: entre-dois)
seguido de: Documento em anexo (2001)
2. As razoes de escrever (1977)
3. Vox clamans in deserto (1986)
4. Relato, recitação, recitativo (2008)
5. …deveria ser um romance… (2012)
6. Da obra e das obras (2011)
7. Para abrir o livro (2012)

II. Poesia
1. Cálculo do poeta (1987)
2. Fazer, a poesia (1997)
3. Contar com a poesia (1995)
Entrevista de Jean-Luc Nancy com Pierre Alferi
4. A razão demanda a poesia (2003)
Entrevista de Jean-Luc Nancy com Emmanuel Laugier
5. Wozu Dichter (2012)

III. Sentido
1. Noli me frangere, com Philippe Lacoue-Labarthe (1982)
2. Responder pelo sentido (2000)
3. Corpo-teatro (2011)
4. Após a tragédia (2002-2008)
5. Ressureição de Blanchot (2004; 2011)
6. O neutro, a neutralização do neutro (2011)

IV. Parodos (nota por vir: textos escritos à margem… da poesia)


1. Psykhé (1978)
2. A Jovem Carpa (1979)
3. Ele disse (1983)
4. Peã para Afrodite (1991)
5. « No meu peito, ai, duas almas… » (2006)
6. Instantes da cidade (2010)
7. Exclamações (2005)
8. La Selva (2012)
9. Sprung (2012)

Coda
1. A única leitura (2005)
2. Demanda (2009)

Proveniência dos textos


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Jean-Luc Nancy, na orla do sentido

E no entanto, um novo inominado avança, ou então


avançamos em direção a ele. No entanto, no mesmo
instante posso abrir um volume de páginas virgens
e traçar a primeira palavra de uma língua por
inventar. Uma pois
que saibamos, outrasem
queimadura pode écomeçar
que saibamos o saber sem
exato do inominado.
- Jean-Luc Nancy, “No meu peito, ai, duas almas”.

O essencial do trabalho de Jean-Luc Nancy não é consagrado à literatura, mas


a temas como a comunidade, o corpo, a adoração – no novo sentido que ele confere a
esses termos. Contudo, é incontestável que ele frequentemente foi conduzido a escrever
sobre motivos literários e que várias linhas de fundo de seu trabalho se direcionam à
escrita da ficção e de modo mais geral à ficção infinita que constitui, para ele, o sentido.
Recolhendo os principais textos teóricos e entrevistas sobre a literatura, assim como
alguns de seus ensaios mais percucientes, que exploram os limites da escrita literária
(poesia, relato, teatro, oratório, diálogo, etc.), este livro gostaria de dar a ler todo o
âmbito de sua reflexão e de suas posições sobre a questão da literatura, tomada em
primeiro lugar em suas relações com a filosofia, é claro, mas também e mais
radicalmente com a linguagem e o sentido.
De imediato, a reflexão filosófica de Nancy sobre a literatura é colocada sob o
signo conjunto, e não sem paradoxo, de um começo radical e de uma repetição
srcinária, a arte e a literatura não tendo nunca cessado de ter lugar e de advir enquanto
acontecimento no presente: “eu teria me contentado, confessa Nancy, em “As razões de
escrever”, de pacientemente recopiar aqui esses textos, e até recopiar nesse mesmo
volume o texto de Blanchot que abre, fecha e arrasta esse livro no qual escrevo – esse
livro praticamente impossível. Nada poderá me assegurar que não seria necessário fazê-
lo. 1” Os primeiros textos do filósofo sobre a literatura (muito marcados por Valéry,
Mallarmé e Bataille, como o indicam os títulos das obras coletivas em que aparecem:
“Odio à poesia” e Miséria da literatura) se apresentam, portanto, de maneira
significativa, sob a insígnia indeterminável do pastiche/paródia, tal qual a “Jovem
Carpa”, que aponta já, através dessa questão da “imitação debochada ou do travesti
burlesco de um gênero nobre”2, o momento decalado do canto que pode, no entanto,
elevar-se nessa para-ôde ou vir à tona no esgotamento da literatura palimpsesto de que é
questão em “As razões de escrever”. Estes textos são assim já ocupados, de maneira
surpreendente, pelos motivos da oralidade, do proferimento/enunciação, da “partilha das

1
Jean-Luc Nancy. « Les raisons d’écrire » [« As razões de escrever»]. In : Misère de la littérature ,
Maurice Blanchot, Michel Deutsch et al. Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison »,
1979, p. 83-96. Cf. texto retomado neste volume, p. XX.
2
J.-L. Nancy, « La Jeune Carpe » [“A Jovem Carpa”]. In: « Haine de la poésie », Mathieu Bénézet,
Michel Deutsch et al.. Paris: Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison », 1979, p. 95.
(Reconhece-se na paronomásia do título do poema célebre de Valéry, A Jovem Parca .) Cf. Nessa
coletânea, p. XX.
vozes” e do retorno da biblioteca (motivo que reecontraremos bem mais tarde em Sur le
commerce des pensées [Sobre o comércio dos pensamentos].3) Por outro lado, Nancy
consagrará não somente vários textos teóricos importantes à literatura – notadamente à
poética de Hölderlin (“Cálculo do poeta”), à questão do corte e do “vercejamento” do
verso, ao “de cor” da recitação, ao caráter imemorial do relato e da voz do aedo4 - , ele
escreverá igualmente numerosos ensaios críticos consagrados a Maurice Blanchot,
Pascal Quignard, Michel Butor, Roger Laporte, Michel Leiris e Jean-Christophe Bailly,
para nomear apenas esses. Isso não dá, no entanto, ainda, toda a medida de sua escrita,
que explora toda sorte de vias e toca em vários registros: recitativos para óperas (“No
meu peito, infelizmente, duas almas...”, “Stabat Mater”), prosas e ensaios inspirados
(Corpus, La Ville au loin [A cidade ao longe], Tombe de sommeil [Túmulo de sono]),
poemas (Les traces anémones [Os Rastros anêmonas]), relatos, leituras e
“acompanhamentos” (Fortino Sámano. Les débordements du poème [Fortino Sámano.
Os transbordamentos do poema]) – sem falar de O intruso5, relato dilacerante que tem
um status à parte nesse vasto corpus, Nancy abordando nele a experiência do seu
transplante, do “coração extrudado”, que sofreu em 1990, impulsionando uma
inesquecível ressonância com uma questão, que, entre todas, foi-lhe estreitamenre
associada desde o começo de seu trabalho filosófico: a interrupção, o suspense, a
síncopa (este era o título de seu primeiro opus de 1976, Le Discours de la syncope [O
Discurso da síncope]). O “syn” grego é também o “cum” latino, ou o “ com”, a separação
e a conjunção, a conjunção disjuntiva que não cessa de abrir-se e de se afastar em toda
essa obra de pensamento. “Síncope”: o que abre toda a síntese no seu próprio coração,
como ele dirá na entrevista “A razão demanda a poesia”(p. XX) ou ainda, como ele a
definiu também um dia: “o que mantém reunido o separado e põe o distinto de acordo,
also sprach ich zu Dir”.

importanteDesde a sua
obra que fezpublicação, em 1978,
data no campo L’Absolu
da teoria littéraire
literária [OPhilippe
e na qual AbsolutoLacoue-
literário],
Labarthe e Jean-Luc Nancy apresentavam uma primeira tradução dos escritos dos
Românticos alemães, a questão das relações entre literatura e poesia – a “filoliteratura” 6:
relação “de uma partilha extremamente complexa e ela própria sempre em
transformação”7, como ele o sublinha ainda em L’Adoration – esteve sempre no cerne
dos trabalhos perseguidos em comum pelos dois amigos filósofos. Contudo, um e outro
tomarão, depois de L’Absolu littéraire, vias bastante diferentes, Lacoue-Labarthe
engajando-se na grande questão da mímesis e de sua “ontotipologia”, localizada por ele
na metafísica e particularmente em especial no “nacional-esteticismo” de Heidegger,
enquanto Nancy se vira, antes, na esteira de Bataille (La Pensée dérobée [O Pensamento
esquivado]) e de Blanchot (La communauté désoeuvrée [A comunidade desobrada], La
Comparution [A coaparição]), para motivos que ele próprio descreve como “ontológicos
e comunitários (ou bem: de comunidade ontológica)”8. O “cum”, esse pensamento do

3
4
Paris : Galilée, col. « Écritures/Figures », 2005.
Questão que retorna em Pean para Afrodite (1991) e ainda em « Relato, recitaçã o, recitativo » (2008),
entre outros textos retomados nessa coletânea.
5
Há uma tradução em português : O intruso . Tradução de Aluisio Pereira de Meneses. In: Polichinelo.
Revista literária, n° 15. Poéticas da transgressão. Belém: Lumme editor, 2013, p. 23-30. (N.T.)
6
J.-L. Nancy, « D’une “ mimesis sans modèle”. Entretien avec Philippe Choulet au sujet de Philippe
Lacoue-Labarthe »[« De uma ‘ mimesis sem modelo’. Entrevista com Philippe Choulet sobre Philippe
Lacoue-Labarthe »], L’Animal , Cahier « Philippe Lacoue-Labarthe », n os 19-20, inverno 2008, p. 109.
7
J.-L. Nancy, L’Adoration (Déconstruction du christianisme 2) [A Adoração (Desconstrução do
cristianismo 2)].Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 2010, p. 62.
8
J.-L. Nancy, « D’une “ mimesis sans modèle” », L’Animal , loc. cit., p. 109.
“com” deixado em suspenso no Mitsein e no Mitdasein heideggerianos, a questão do
ser-em-comum – conceitos carregados de valores e de conotações “pesadas”,
particularmente as relativas à reunião (do povo), ao assunto do sentido – são assim
reexaminadas por Nancy, como o testemunham vários títulos de suas obras que
mostram, nos anos 1990 e até os dias de hoje, um pensamento filosófico em constante
expansão: L’Oubli de la philosophie [O esquecimento da filosofia] (1986), L’Éxpérience
de la liberté [A Experiência da liberdade](1988), Une Pensée finie [Um Pensamento
finito] (1991), Le Sens du monde [O Sentido do mundo] (1993), Être singulier pluriel
[Ser singular plural] (1996). De todos os conceitos saídos da tradição filosófica e
reavaliados pelo filósofo, menos para os “superar”, aliás, ou “terminar” com eles, do que
para instilar neles uma nova circulação de sentido, é sem qualquer dúvida o do comum,
ou do em-comum, o que mais mobiliza a sua atenção: esse “co-existente”, “esse ‘com’
constitutivo do existente deve ser compreendido, precisa ele, ‘não de maneira categorial,
mais existencial’. O que significa que não se deve tomá-los como uma simples
determinação extrínseca, mas como uma condição intrínseca da possiblidade mesma da
ek-sistência, isto é, nada menos do que pôr em jogo o próprio sentido do ser ou o sentido
de ser.9”
Essa “co-presença de todos os entes”, em que o “com” é “a condição do
sentido”, forma assim o cerne de uma posição filosófica, que é igualmente de parte a
parte filosófica, pois ela exige que se pense em consequência “a necessidade de uma
política não dominadora”10. Ora, é igualmente essa posição que se encontra
exemplarmente exposta na arte e na literatura, onde, de saída, a oralidade dá lugar a uma
antecedência infinita, à “suposição insuponível, insuportável, impossível de assujeitar,
de uma sujeito da fala”, como Nancy o sublinha em “Relato, recitação, recitativo” (p.
XX). Ele explicitará essa relação essencial da ficção com o mundo em L’Adoration:
É também por isso que o nosso mundo é o da literatura: o que esse termo designa de
uma maneira perigosamente insuficiente, decorat iva e ociosa, não é outra coisa senão que a
facilitação [ frayage ] das vozes do “com”. Ali onde o que nomeamos mito dava voz à srcem, a
literatura capta as vozes inumeráveis de nossa partilha. Partilhamos a retirada da srcem e a
literatura fala a partir da interrupção do mito e em alguma medida nela: é nessa interrupçãp que
ela faz, que fazemos sentido. Esse sentido é ficção: quer dizer que ele não é nem mítico nem
científico, mas se dá na criação, na moldagem [ façonnement] (fingo, fictum), de formas elas
mesmas móveis, plásticas, ducteis, segundo as quais o “com” se configura indefinidamente 11.
A literatura, ou a arte (pois não há nenhuma hierarquia aqui entre as artes em
sua relação ao sentido: trata-se para cada uma, em cada uma, de uma singularidade
plural, ao mesmo tempo distinta e aberta a todos, qualquer que seja a sua forma: textual,
visual, sonora, coreográfica, cinética, etc.), é o que é sensível à possibilidade do sentido;
é o que, por efeito de contágio, de contato, de comunicação (sempre esse “cum”), “é
sempre suscetível de ‘fazer’, ou pelo menos sugerir um sentido”12. Um sentido, sentidos,
e não o sentido; significância, significabilidade, e não significação. E na arte se designa
assim esquivando-se a relação à coisa em si, à coisidade de todas as coisas, isto é: nada
aquém ou além de toda significação: acesso, excesso, “demais”, endereçamento, graça e

9
J.-L. Nancy, « Mit - Sinn », inédito, 2010, p. 1. Agradeço a Jean-Luc Nancy de me haver dado acesso a
esse texto e de me autorizar a citá-lo. Verificar o texto aparecido desde emtão.
10
Ibid., p. 2.
11
J.-L. Nancy, L’Adoration , op. cit ., p. 62.
12
J.-L. Nancy, « Mit - Sinn », loc. cit ., p. 2.
adoração (ad-oratio13), como o sugerem igualmente de maneira particularmente forte as
proposições de Nancy sobre o traço do desenho14.
Paralelamente a esse imenso terreno em construção, em que os conceitos filosóficos
mais essenciais são analisados a novas expensas, como para esgotar a sua própria
“essência”, como é o caso com “a cesura da religião”, em La Déclosion, Nancy
prossegue, portanto, também, com formidável profusão e energia, toda uma série de
trabalhos relativos à imagem (Au fond des images [No fundo das imagens]), à “arte” e à
literatura (entendamos essa palavra segundo a acepção alargada que ele lhe confere em
“Fazer, a poesia”: “O poema, ou o verso. (Poder-se-ia também nomeá-la: a estrofe, a

estância, a poetas,
escritores, frase, a artistas
palavraplásticos,
– ou o canto)”(p.
músicos,XX). Nessas
nas quais eleintervenções
entra a cadacom artistas,
vez em contato
com um mundo de pensamento e de sensibilidade singular, Nancy analisa a
incondicionalidade na fonte da questão da “arte”, franqueando-a da estética, para, antes,
retomá-la a partir de aspectos insuficientemente considerados pelos discursos
dominantes na história da arte ou na estética: sua “fabricação”, seu “fazer”, sua arte de
apresentar e seus truques, sua maneira de fazer sentido, em suma, sua relação com o
mundo, sua maneira de modelá-lo. Pois a arte, ou a literatura, não tem para Nancy nem
utilidade nem função: ela é troca, partilha, passagem, trans-formação de formas, sem
dado prévio. Talvez a especificidade da arte (se há alguma) residiria para ele nessa
fórmula, a saber que a arte não faz sentido ( meaning), ela faz sentir (guardando a própria
palavra entre as línguas15): “Isso se denomina uma sensação: tal é a primeira feição do
sentido”16.
A arte é aqui o lugar da aproximação, sem apropriação possível, da coisa em
si, “abordagem de uma intimidade inimaginável”17, que se oferece ao se retirar,
captando de maneira sensível essa retirada, em que o tocar, o toque, só pode advir pelo
afastamento, espaçamento, envio ao outro. A arte – toda ars, toda tékhne: a literatura, o
poema , o canto, ou qualquer outra forma nascente – oferece assim um acesso
privilegiado na medida em que ela “se” faz sentido no transbordamento do sentido, pelo
excesso e a intensificação. O que a ars dá a pensar/sentir como relação ao mundo,
Nancy o condensa nesses termos: “No sentimento tal como o compreendemos
(enquanto afeto, emoção, perturbação) [...], não há nada de outro que o desenvolvimento
desse sentimento de si que faz o mundo: abrir-se e receber-se de sua própria abertura
como tantas pinceladas indefinidamente multiplicadas e repassadas de coisas em coisas,
de pressões em tomadas, de conversores em refletores, de ações em reações”. Esses
acessos sensíveis, eles próprios irredutivelmente diversos - o sensorial, o sentimental, o
sensual, o sensato -, são indissociáveis do prazer/desprazer, dimensão privilegiada em
toda essa aisthésica do corpo erótico, afetando-se, gozando/sofrendo (corpo duplo,
múltiplo até, com-pondo aqui também smpre com o outro).

13
Cf. J.-L. Nancy. L’Adoration , op. cit ., p. 18, 22, 28 et 32.
14 Cf. Trop. [Demais ] Jean-Luc Nancy, avec François Martin et Rodolphe Burger (curadores : Louise
Déry, Georges Leroux e Ginette Michaud. Montréal : Galerie de l’UQAM, 2006), À plus d’un titre –
Jacques Derrida [A mais de um título – Jacques Derrida ] (Paris : Galilée, col. « Écritures/Figures »,
2007) e o texto « Le plaisir au dessin » [« O Prazer do desenho »] para a exposição epônima ( Le Plaisir au
dessin , curadoria de Jean-Luc Nancy, com Sylvie Ramond e Éric Pagliano. Lyon : Musée des beaux-Arts
de Lyon, Paris, Hazan, 2007).
15
Jogo de palavras transli nguístico intraduzív el. Michaud joga aqui com os homófonos “ sens ”, em
francês, sentido, e “ sense ”, em inglês, sentido no sentido de sensação, dos cinco sentidos (olfato, gosto,
tato, etc.). (N.T.)
16
J.-L. Nancy, « Mit - Sinn », loc. cit ., p. 3.
17
Ibid.
As artes – e entre elas, a literatura, em primeiro lugar, embora ela não tenha
por isso um status privilegiado – são assim postas por Nancy como o lugar mesmo de
pôr em obra a différance18, do múltiplo em um, segundo essa fórmula enigmática de
Heráclito, a que ele remete com frequência (e retraduz de perto): “o um diferindo de si”
[“l’un différant de soi”]. Cada arte é assim única e heterogênea, isolada e exposta, forma
que divide e mescla ao mesmo tempo qualidades distintas (visuais, sonoras, tácteis, etc.)
e as faz comunicar, pondo-as em contato e afetando-as, localidade infinitamente
divisível, em extensão. As figuras da arte, das artes, são também subtraídas, em um jogo
geral de diferenças que as mescla todas “umas com relação às outras, todas assim fundo
ou figuras umas das outras19”. É então que o sentido – sempre ao mesmo tempo
inteligibilidade, sensibilidade sensualidade – se toca: “[...] é o que denominar-se-ia
também, justamente, ‘o sentido do mundo’. O sentido do mundo como suspensão da
significação – mas compreendemos doravante que uma tal ‘suspensão’ é o próprio
tocar20”. Desprendidas da significação, dislocando o “senso comum”, as artes, a
literatura, a poesia se dão como arte de apresentar uma coisa, alguma coisa, nenhuma
coisa: uma coisa de nada (res), que não é e não tem outro objeto (intenção, finalidade,
destinação) senão apresentar e espaçar essa pluralidade sensitiva ou sensual.
Não se trata, portanto, simplesmente para Nancy de reconhecer que a obra de
arte entretém uma relação com o mundo, e sim que o próprio mundo vem nela para
formar-se nela: forma formans, formação infinita de cores, de pinceladas, de vibrações,
de densidades, de torneios, nuances, tons, reflexos, brilhos, sombras... A cada vez, o que
atrai Nancy nessas obras-mundos, quer se trate de literatura ou de qualquer arte, de cada
arte, é apanhar ali – saudar ali – a vinda de um mundo em processo de nascer em uma
forma ainda não dada, não ainda fixada: uma forma que “joga de novo e relança o ex
nihilo que é [a] partilha21” do mundo.
O mundo é um mundo de relatos, de recitações de relatos. A começar por todos
esses relatos do mundo que todas as culturas sempre recitaram e das quais a nossa
« literatura » é em suma ela mesma por sua vez o relato: ela se esforça em contar
onde estamos, e como, não somente com esse fato do mundo e de nosso estar-no-
mundo, mas o modo como nós nos relacionamos com nossos próprios relatos do
mundo, a sua antiguidade e a sua perda, com aquilo que nos parece por isso ilusões
ingênuas ou promessas frustradas. Como interrompemos os mitos e quais vozes se
pressionam para falar através dessa interrupção. O mito – um mundo se recitando ele
mesmo, uma tautegoria como dizia Schelling – se interrompeu diante da injunção do
logos : a verdade apareceu como o objeto de uma alegoria , maneira de dizer um
objeto outro, inapresentável, somente representável.
Mas, na verdade, todo relato torna-se de novo mythos : não que ele fabrique
figuras mais ou menos potentes, sedutoras e críveis, mas abre a fala a ela mesma, à
sua própria pulsão e pulsação. A palavra, a voz, o relato sensível do sentido.
(“Relato, recitação, recitativo”, p. XX; Nancy sublinha.)

18
Referência à noção formulada por Jacques Derrida, num ensaio célebre de mesmo titulo. O
neografismo, différance , parte da alteraçã o da vogal “e” pela vogal “a”, quando a grafia corrente da
palavra é différ ence (diferença). Várias soluções foram adotadas na tradução do termo em português,
diferância , em Portugal, ou diferência no Brasil. Optei por deixar o termo em francês. Cf. a nota dos
tradutores brasilei ros do ensaio, Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. (Jacques Derrida.
“Diferença”. In: Margens da filosofia . Campinas: Papirus, 1991, p. 33-34.) (N.T.)
19
J.-L. Nancy. Les Muses [As musas ]. Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 1994, p. 47.
20
Ibid., p. 44.
21
J.-L. Nancy. L’Adoration , op. cit ., p. 61.
O leitor encontrará nessa coletânea vinte e nove textos de tons e formas bem
diversas, que compõem entretanto um conjunto de grande coerência. Dividido em quatro
partes que escandem nele as grandes articulações, o livro dá a ouvir a partilha das vozes
– timbre, modulações, fraseado, ritmo sobretudo – de Jean-Luc Nancy no que tange a
literatura.
A primeira parte, denominada simplesmente “Literatura”, reúne textos dos
“começos”, não importanto a esse respeito a data, 1977 ou 2012, em que foram
redigidos, pois é todo o pensamento do filósofo que é insistentemente atento a esse
nascimento do sentido. Tudo se abre portanto aqui sob o signo da retirada dos deuses,

como ocena
Nessa deixa ouvir o primeiro
inaugural texto
da retirada dosdessa seção,
deuses, “’Um dia
ao mesmo os deuses
tempo de lutose retiram...’”.
e de desejo, o
mythos se interrompe e se abre ao mesmo tempo, deixando em suspenso um intervalo,
uma fresta onde se entrevê um vestígio, “resto material e rastro evanescente de uma
presença que não vale como subsistência, como ser-presente-aí, estável e manifesto, mas
que vale como passar, ir e vir, chegar, sobrevir e partir” (“Cálculo do poeta”, p. XX).
Nancy reafirma assim, como o fará mais tarde em La Déclosion e L’Adoration, até que
ponto a ausência dos deuses é a condição comum da literatura e da filosofia, ambas
sendo portanto “irreversivelmente ateológicas”: é essa ausência, esse entre-dois
(seríamos tentados a escrever: “entre-deuses”) que as “legitima uma à outra”: “Mas,
quanto a elas duas, elas têm ofício de tomar cuidado com o entre-dois: de manter-lhe o
corpo aberto, de lhe deixar a chance dessa abertura”(“Um dia, os deuses se retiram...”, p.
XX). Essa questão do entre-dois, ao mesmo tempo abertura e afastamento, se faz
essencial portanto logo de saída.
Ainda nessa primeira seção, “As razões de escrever” retém igualmente a
atenção, ao pôr o acento sobre a questão –mais, a necessidade – da reescrita e da
recitação. Já em 1977, Nancy ouve, com efeito “[u]m chamado urgente [...] em várias
gargantas de escrita”(p. XX): “O chamado que se repete vem sempre dele. É o chamado
de uma solidão anterior a todo isolamento, a invocação de uma comunidade que
nenhuma sociedade contém nem precede. Como liberar o totalmente outro comum do
livro? Pergunta alguém, qualquer um escrevendo, um eu que se chama” (p. XX). Essa
atração pela voz, seja ela silenciosa ou muda, clamor ou murmúrio, infinitamente
“renovados de uma demanda, de um chamado urgente” (p. XX), Nancy não cessa de
ouvi-la ressoar, inspirando, expirando, e notadamente, no comovente, “Ele disse” ou no
mais irônico, “Vox clamans in deserto”, que encena essa câmera de ecos. Tratar-se-ia
nesse chamado reiterado, de “vocação, de invocação ou de advocacia” (p.XX)? “Relato,
recitação, recitativo” oferece uma resposta a essa questão, ao mesmo tempo que é um
exemplo privilegiado do entre-dois, quando entre ária e recitativo, entre melodia e
ritmo, um equilíbrio delicado surge de repente, que deixa passar “a efusão cantante tanto
quanto a pulsação falante, bordejando uma pela outra. Quando é bem sucedido, isso se
ouve” (p. XX, nota XX). Nessa seção que reagrupa igualmente textos bem recentes,
Nancy
romanceexamina assim,
(“...deveria seralém do relato, todas
um romance...”, as categorias
2012), as própriasfundamentais da literatura:
noções de autor e de obra o
(“Da obra e das obras”, 2011) e de livro (“Para abrir o livro”, 2012).
A segunda parte da coletânea se concentra na poesia, com razão, seríamos
tentados a acrescentar, já que “A razão demanda a poesia” (é o que sublinha também
fortemente o título, escolhido por Nancy, desse livro, Demanda, que, em sua elipse
característica, entre verbo e substantivo, reza e mandamento, mantém ele mesmo essa
oscilação vibrante do entre-dois). O metro, escreve Nancy, em “Cálculo do poeta”, “é
propriamente o divino: isto é, o incomensurável em sua precisão estritamente
determinada, a exatidão do impossível” (p. XX). Se o metro inscreve ele mesmo,
materialmente, insiste ele, a “passagem dos deuses”, comprende-se a importância de que
se revestem essas questões relativas à métrica e à prosódia que estão longe de ser
somente “técnicas”. Essa seção propõe portanto um sobrevoo sobre os principais
aspectos relativos ao “fazer” da poesia, ao cálculo e à desmedida, ao corte e à escansão
sobretudo, posta em obra pelo poema. Nesses textos teóricos maiores, que se distribuem
em trinta e cinco anos (de “Cálculo do poeta”, 1977, a “Wozu Dichter”, 2012), Nancy
persegue aqui uma reflexão exigente que esclarece as relações, ricas e complexas, que
ligam para ele o pensamento do poema à poética de Hölderlin, a sua “ars poetica”,
técnica de composição visando um “ponto absoluto de exatidão” (“Cálculo do poeta”, p.
XX) – e sabemos o alcance dessa palavra no pensamento do filósofo. O poeta propõe
assim “O ato que calcula exatamente o momento – o instante, a pesagem, a passagem –
da presença do todo. O ato que não deixa, pois, nada fora dele: nem o pano de fundo de
uma ‘intenção’ nem o de uma ‘coisa em si’. Mas a coisa mesma em presença do olhar
mesmo, na claridade mesma – e o afastamento, o escancaramento dessa ‘mesmidade’,
seu cálculo exato” (p.XX). As qualidade saudadas em Hölderlin – sobriedade, concisão,
obra como “lugar de um dizer exato: ponto de passagem, intonação, flexão” (p. XX) –
marcam precisamente a potência desse pensamento do poema e da relação singular para
com a língua representada por ele para Nancy: “[...] não saberíamos insistir demais sobre
o fato de que é nelas, língua, prosódia, rítmica, é diretamente sobre as palavras e sobre o
canto que se dispõem o tom e o tato de sua poética – quer dizer, de seu pensamento, o
lado de fora de seu pensamento, seu pensamento fora de pensamento” (p. XX). Com
uma coerência remarcável, Nancy propõe em “Wozu Dichter” (“Porque poetas em um
tempo de indigência?”) uma nova maneira de compreender esse verso célebre de
Hölderlin, tão frequentemente comentado em contrasenso, segundo ele, aliviando-o de
todo o pathos e sublinhando justamente essa inflexão, o “fazer” particular que lhe
confere o poeta, o mais próximo possível dos recursos da língua alemã e de “seu próprio
trabalho de ritmo e de canto” (p. XX).
A terceira parte da coletânea reúne, por sua vez, textos bastante diferentes,
mas que têm todos por núcleo a questão do sentido. Na esteira de L’Absolu littéraire,
prolongando-o e distanciado-se dele, essa seção se abre com uma entrevista com
Philippe Lacoue-Labarthe que reencena a forma do Gesprach dos Românticos e critica
as sugestões da escrita fragmentária à luz da publicação, então recente, de L’Écriture du
désastre [A Escrita do desastre] de Maurice Blanchot. Emprestando várias vozes – esse
diálogo (“Noli me frangere”), do “corpo-teatro”, da tragédia, da questão do neutro
segundo Blanchot, cujo pensamento do desobramento [ désœuvrement] importa tanto,
como sabemos, a Nancy (dois textos lhe são, aliás, consagrados, exceção notável já que
os textos que portam sobre autores particulares foram todos postos de lado na presente
seleção) -, a questão do sentido se traduz para Nancy em termos de resposta e responso,
de ressonância, o sentido sendo da saída pensado como envio e escuta, música ou
palavra à beira do canto. Ressonância, ou seja, também, tensão e espera, acesso que não
alcança, desejo desse ponto inaudito em que a literatura e o pensamento passam um ao
outro e se afinam (como instrumentos antes de tocar a partitura), antes mesmo de dizer
alguma coisa, nesse ponto singular extremo, de corte e toque, que é “escansão de
verdade no sentido” (“Responder ao sentido”, p. XX). O filósofo mescla então a sua voz
à do recitante sagrado: “A ressonância, ela, faz ouvir: não diga o que é, mas faça ser o
seu dizer. Essa inversão quiasmática não é uma pirueta: é o esboço mais simples, e com
certeza também o mais pobre, do que faz ressonância entre poesia e filosofia, dizer o ser
ou ser (fazer ser) o dizer”(“A razão demanda a poesia”, p. XX). Em “Responder do
sentido”, Nancy retorna ainda a essa questão da vocalidade e dispensa uma atenção
sustentada às inflexões infinitamente furta-cores e sutis da voz entre requisição,
demanda, desejo, reclamação, súplica, aos “rumores da língua”, para emprestar a
expressão de Roland Barthes e mesmo das “Exclamações, à beira de toda a linguagem
articulada: esse aspecto aparece, certo, como um dos traços mais significativos do
pensamento da língua desdobrado por Nancy.
Na quarta e última parte, intitulada por Nancy, “Parodos”, reencontramos vários textos
escritos, à margem, bem à margem... da poesia. De fatura diversa, esses textos
constituem explorações em todos os gêneros, franqueando as categorias genéricas, como
o testemunham o poema recitativo, que acompanha uma obra de Claudio Parmiggiani

o(“No meuem
poema peito, infelizmente,
prosa, “Pean paraduas almas...”),
Afrodite” (que afaz
suite
eco,poética
em umdeoutro
“Instantes daacidade”
registro, ou
“Um dia,
os deuses se retiram...”). Dentre todos esses textos, destacamos “Psyché” (um texto
bastante breve ao qual Nancy retorna várias vezes, aliás, em sua obra, e que sera
igualmente comentado por Jacques Derrida, em Le Tocuher, Jean-Luc Nancy [O tocar,
Jean-Luc Nancy]) e “Ele diz”, que ocupam um lugar bem particular, dando o lá ou a
“blue note”, a “nota azul”, se quisermos, em termos de justeza musical, de sua própria
voz. Ambos os textos constituem bem fortes e elípticas “cenas primitivas” da relação
entre literatura e filosofia tal como colocada por Nancy. Retém igualmente a atenção, “A
Jovem Carpa”, texto que “parodia” o grande texto de Valéry, mas que não é apenas
simplesmente o seu pastiche, como o sugeri acima, pois “Quem recita o canto mais
simples, quem o imita/ No descuido de se dissipar?... Quem recita/ Sem riso em sorriso
no instante de citar?” (p. XX). Esses textos “de juventude”, como se diz, trazem já, com
efeito, uma figura cardinal da obra filosófica de Nancy, aquela da boca se abrindo
(“Fala!... mantenha, porém, a boca fechada!”), do mesmo modo que “a tentação do
recitante” (“A Jovem Carpa”, p. XX) que impregna esses escritos. “ Sprung”. Poema
filosófico, ou filosofia feita
e do salto, emblemática poema,
de toda sublinha
a obra essa figura
de pensamento de primordial
Nancy. entre todas, do jorro
Enfim, uma Coda, formada de dois textos breves, vem ainda descerrar mais
do que cerrar este livro, insistindo, de um lado, sobre a “Demanda” incessante e
recíproca que se fazem Filosofia e Literatura (“A filosofia demanda incessantemente que
a verdade se consuma. A literatura demanda que a verdade prossiga”), sob pena de
retornar ao Mito e à Sabedoria; e, de outro lado, sobre a leitura, gesto ele também
enigmático, que “me escapa enquanto forma, essência ou propriedade definida” e que,
empurrando sempre o sentido para a margem, o distrai e o suspende infinitamente (“Só a
leitura”, p. XX).

Ginette Michaud
(Departamento de literaturas de língua francesa,
Universidade de Montreal)

Esse trabalho se inscreve no quadro do projeto de pesquisa, sob a minha direção,


intitulado “A questão das artes nas obras de Jacques Derrida, Hélène Cixous e Jean-Luc
Nancy”, subvencionado pelo Conselho de pesquisa em ciência shumanas do Canadá
(CRSH). Agradeço ao CRSH pelo seu apoio financeiro.

Tradução: João Camillo Penna


1. Literatura
1. « UM DIA, OS DEUSES SE RETIRAM… »
(LITERATURA/FILOSOFIA : ENTRE-DOIS)

Um dia, os deuses se retiram. Por si mesmos eles se retiram de sua divindade, quer
dizer, de sua presença. Não se ausentam simplesmente: não vão alhures, retiram-se de
sua própria presença: ausentam-se dentro.

O que resta de sua presença é o que resta de toda presença quando ela se ausentou:
resta o que se pode dizer dela. O que se pode dizer dela é o que resta quando ninguém
pode mais se dirigir a ela: nem lhe falar, nem tocá-la, nem olhá-la, nem lhe dar um
presente.

(Talvez, aliás, os deuses se retirem porque ninguém mais dá um presente à sua


presença: não mais sacrifício, não mais oblação, senão por costume e por imitação.
Temos outras coisas a fazer: escrever por exemplo, calcular, comerciar, legislar. Privada
de presentes, a presença se retira.)

O que se pode dizer da presença ausentada é sempre de duas coisas uma: é a sua
verdade,
Mas comoou éa a presença
sua história. Bemnão
fugiu, entendido,
é maisconvém
certo que seja a sua história
qualquer históriaverdadeira.
dela seja
absolutamente verídica: pois nenhuma presença vem atestá-la.

O que resta se divide, portanto, de imediato em dois: a história e a verdade. Uma e


outra são da mesma srcem e se reportam à mesma coisa: à mesma presença que se
retirou. Sua retirada se manifesta, portanto, como o traço que separa as duas, a história e
a verdade.

Chama-se mythos o relato das ações e das paixões divinas, entre as quais sempre há o
que olha o mundo e sua marcha, o homem e sua sina. Mythos significa o dizer de alguma
coisa, pelo que se faz conhecer a coisa, o caso: em latim, sua narratio, que é seu saber.
Quando os deuses estão retirados, sua história não pode mais ser simplesmente
verdadeira, nem sua verdade ser simplesmente contada. Nelas falta a presença que
atestaria
conta. a existência do que se conta ao mesmo tempo que a veracidade da palavra que

Falta o corpo dos deuses: Osiris permanece desmembrado, o grande Pan está morto.
Falta o corpo verdadeiro que proferia ele mesmo sua verdade: sua estátua respingada do
sangue das vítimas, impregnada dos vapores do incenso, ou então o bosque sagrado no
qual se escuta rumorejar a fonte onde desemboca uma presença subterrânea.
Falta esse corpo proferidor, resta o que se pode dizer dele – e o dito se tornou
incorporal, igual ao vazio, ao lugar e ao tempo. São as quatro formas do incorpóreo, isto
é, do intervalo no qual os corpos podem ser achados, mas que não é nunca ele mesmo
um corpo. O intervalo tem por propriedade se abrir e se dividir.

O dito não é mais dado, compacto, com o corpo divino, oração de seus lábios: ele se
afasta de si, se distende, logos.

Verdade e narração, portanto, se separam. Sua separação é traçada pelo próprio traço
que se estira sobre a retirada dos deuses. O corpo dos deuses é o que resta entre as duas:
nelas ele resta como sua própria ausência. Nelas ele permanece corpo pintado, corpo
figurado, corpo contado: mas não há mais o corpo a corpo [mêlée] sagrado.

Entre literatura e filosofia falta esse enlaçamento, esse abraço, esse corpo a corpo
sagrado do homem com o deus, ou seja, com o animal, a planta, o raio e o rochedo. Sua
distinção é, por isso, exatamente o desenlaçamento, o desabraço. O corpo a corpo assim
desemaranhado é partilhado22 pela mais cortante das lâminas: mas o próprio corte traz
para sempre as aderências do emaranhado. Entre as duas, há algo de não-emaranhável.23

Verdade e narração se separam de tal maneira que é a sua separação que institui a
ambas. Sem a separação não haveria nem verdade nem narração: haveria o corpo divino.
Não só a narração é suscetível ou suspeita de carecer de verdade, mas ela é privada
de verdade desde o princípio, estando privada do corpo presente como boca de seu
próprio proferimento, como pele de sua própria exposição.

Essa privação é identicamente a privação da verdade, e a verdade, por princípio,


passa aquiponto
torna um pelo afastamento écart
de fuga que [se ], na retirada,
anamorfoseia eminfigurável, inenarrável. A
ponto de interrogação. A verdade
verdade se
se

"" #$%&$ '()'*+, -+(+ $ -./0+1./2$ 3. 4.+/56)' #+/'78 + 9-+(2*,:+; <9 !"#$"%&;=8 $) $ 9-+(2*,:+(;
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2*>. ?). $-2+( -$( )1 $) $)2($ 0./2*3$A <#AKA=
23
Nancy joga aqui com um constelação de derivados de “ mêlée”, confusão de combatentes no corpo a
corpo, luta, conflito, palavra derivada de “ mêler ”, “misturar”, “mesclar”. Optei por traduzir os derivados
com variações do verbo “emaranhar: “ démêlée ”, “desemaranhar”, “ emmêlement ”, emaranhado”,
“indémêlable ”, “não-emaranhável”. (N.T.)
torna: « o que é a verdade? ». Transpor [ franchir] a questão, no entanto, libertar-se dela
[s’affranchir],24 permanece o ponto de fuga, a perspectiva infinita do que desde então se
nomeia logos.

A narração expõe figuras: ela se inventa como a figuralidade em geral, quer dizer, o
traçado dos contornos pelos quais um corpo se assinala e de antemão se faz corpo, mas
um traçado do qual permanece duvidoso se o corpo que ele envolve é verdadeiro. O
traçado narrativo expõe uma manifestação de corpos que não é seguro que seja
identicamente um corpo manifesto.

Ou antes, é certo que ele não o é: figurando-o, a narração o declara ausente. É o


mesmo traçado que fez o próprio deus – oficiando em cabeça de chacal ou lágrima de
resina no flanco de uma árvore – e que faz no presente sua figura. Mas esse traçado se
divide por si: o corpo divino nele se faz ausência.

A perspectiva da verdade visa, pois, essa falta 25 como o lugar do que ela tanto
deseja, mas cuja falta ela se aplica a mostrar. Mostrando a falta – a própria figura, a
imitação, a representação, a alegoria, a mitologia, a literatura – ela diz a verdade dela:
que ela é uma falta, que está em falta (erro, ilusão, mentira, enganação). Dizendo essa
verdade, ela, no entanto, diz apenas a metade do verdadeiro: nela falta [ manque] a
presença para além da figura ou na própria figura. Mas o discurso da verdade profere
que essa presença está além do ser. O próprio discurso impele até esse além, onde ele se
abisma numa luz excessiva, deslumbramento no meio do qual se abole toda possível
figuralidade.

Entre a figura e o deslumbramento resta o corpo divino ausente. Resta um singular


corpo de ausência no qual de cada lado tocam a narração e a perspectiva de verdade.
Uma descreve as formas do corpo, a outra inscreve sua excavação. Entre o descrito e o
inscrito, sempre estirado entre eles, esquartejado, o escrito só, interminável grafo
cinzelado no chumbo de um lacre aposto sobre o lugar da retirada. A cena se desenvolve
em torno de um túmulo vazio, de uma múmia oca, de um retrato que não se parece com
ninguém: em torno de um corpo doravante produzido, proferido como « corpo », quer
dizer, como fora ausente.

24
Em francês o verbo “ franchir ” significa tanto transpor (um obstáculo), atravess ar, saltar, quanto superar,
vencer (uma dificuldade), libertar-se. (N.T.)
25
“Défaut ”, significa em francês “falta”, “ausência”, “carênci a”, presente em expressões como: “ à
défaut ”, “na falta de”, “ faire défaut”, “fazer falta”, “faltar”; “être à défaut ”, “faltar um compromisso”; “ en
défaut ”, “estar em falta”. O sentido de “défaut” recobre um campo significante bastante dist into de
“manque ”, “manquer ”, “falta” e “faltar”, que se perde em português. (N.T.)
Mas é uma cena, e ela se atua de modo bastante efetivo. É uma cena simultânea de
luto e de desejo: filosofia, literatura, cada uma em luto e em desejo da outra (da outra em
si), mas cada uma também rivalizando com a outra no cumprimento do luto e do desejo.

Se o luto a carrega e se encerra em derrelição sem fim, uma ou outra soçobra na


melancolia, a garganta apertada pelo corpo perdido. Mas este último é também, e a cada
vez, a imagem de uma para a outra: a filosofia se estrangula como literatura impossível –
como uma literatura que é seu próprio impossível. Ou então, é o inverso.

Às vezes é a literatura que conduz o luto que a filosofia sofre ou denega. Às vezes é a
filosofia que sustenta a ausência que a literatura maquia. Mas o gesto de uma pode
muito bem ser o feito da outra. Também pode haver um poema filosófico que se esgota
no desejo da outra e de fazer poema: Zaratustra esbraveja para terminar:

« É, pois, rumo à felicidade que me esforço? Esforço-me rumo à minha obra26! »

E pode haver um pensamento, ligado sem religião em seus versos a Vênus, que
termina assim, excrito27 fora das palavras, seu canto da natureza levado ao rubor do
fogo:

Sobre piras feitas para outros,


homens colocavam
aproximavam com
a tocha, grandeslutas
travavam clamores os de seu sangue,
sangrentas ao invés de abandonar os corpos 28.

Não abandonar os corpos, talvez em detrimento da obra, esta é a tarefa. Não


abandonar os corpos dos deuses sem, no entanto, desejar relembrar a sua presença. Não
abandonar o ofício da verdade nem o da figura, sem, no entanto, encher de sentido o
afastamento [écart] que os separa. Não abandonar o mundo que se faz sempre mais

26
Friedrich Nietzsche. Ainsi parlait Zarathoustra. Un livre pour tous et pour personne. Tradução e
apresentação de Georges-Arthur Goldschmidt, Paris, Le Livre de poche, col. « Le livre de poche
classique », 1972, p. 466. Tradução modificada por Jean-Luc Nancy. Nietzsche somente sublinha
« obra ». (N.E.F.)
27
Verbo e noção cunhada por Nancy, “ excrire ”, “ex-crever”, sublinhando-se o prefixo ex- de exterior; ou
“excrit ”, “excrito”, em que se ouve ainda al go como o “ex-grito”. Sobre essa questão, ver not adamente, o
seu “L’Excrit”, sobre a escrita de Georges Bataille (em Une pensée finie . Paris: Galilée, 1990; depois
retomado em Alea. Estudos neolatinos . Vol 15 #2, julho/dezembro 2013). (N.T.)
28
Lucrécio, De la nature. De rerum natura , VI, v. 1283-1286. Tradução, introdução et notas por José
Kany-Turpin. Paris : Aubier, col. « Bibliothèque bilingue », 1993, p. 467. (N.E.F.) s sobre piras que
tinham sido acumuladas para outros e depois chegavam-lhes as tochas], e preferiam bater-se, com grande
derramamento de sangue, a abandonar aqueles corpos
mundo, sempre mais atravessado de ausência, sempre mais em intervalo, incorpóreo,
sem por isso saturá-lo de significação, de revelação, de anúncio nem de apocalipse. A
ausência dos deuses é a condição das duas, literatura e filosofia, o entre-dois que
legitima tanto a uma quanto a outra, irreversivelmente ateológicas. Mas, as duas, elas
têm ofício de cuidar do entre-dois: de manter-lhe o corpo aberto, de deixar-lhe a chance
dessa abertura.
DOCUMENTO EM ANEXO29

« À sua guisa » me diz La Quinzaine littéraire: imediatamente fico paralisado.


Como escolher? Nada se impõe a mim: nenhum « assunto [ sujet]». O que vem a ser a
minha « guisa »? Segundo o sentido da palavra, é a minha maneira, meu modo, mas não
é o meu livre-arbítrio. A « guisa » não é o « grado ». É evidente que a oferta que me
fazem – ou o pedido – de escrever aqui « à minha guisa » mistura as duas ideias.
Estritamente
me falando,
dão um, eu é um assunto
não encontro. Toda adado quevida
minha eu deveria tratar «aquilo
eu não soube à minha
queguisa ». Secreio
é querer: não
que é quase uma frase de Nietzsche. Há anos guardo no meu escritório uma folha onde
anotei essa frase de Sêneca: « Neminem mihi dabis qui sciat quomodo, quod vult,
coeperit velle : non consilio adductus illo, sed impetu impactus est. » (Tu não me
mostrarás ninguém que saiba como ele começou a querer o que ele quer: ele não foi
conduzido a isso pela reflexão, mas impelido por um ímpeto30.) Numa outra carta a
Lucilius, Sêneca qualifica a filosofia de bonum consilium : boa reflexão, deliberação,
conselho. A filosofia é boa conselheira, mas não me dará o impetus. E, sem
impetuosidade, não me decidirei por nenhum assunto. É o que me faz decidir, no
momento, a dar aqui uma sequência à minha guisa:

« Filosofia », hoje, é um termo em voga, uma mercadoria pela qual somos gulosos.
Dizem que é o efeito de um déficit de sentido de nosso mundo e de um apetite de
consilium que resulta disso. Acham, com efeito, que se procura antes de tudo – e que se
põe à vendade– virtudes,
instrutiva uma filosofia conselheira:
provedora doadora de lições,
de representações, até mesmocom
preocupada de reconfortos,
sabedorias
(orientais ou orientadoras), sempre o diálogo nos lábios (em linguagem ordinária) e a
ética ao alcance da mão, com forte provisão de valores e de sentidos.

Mas filosofar não é de maneira alguma buscar num reservatório de sentidos. Não é
preencher um déficit, é remexer a verdade de fio a pavio. Filosofar começa exatamente
ali onde o sentido é/está interrompido. É assim que o caso [affaire] começou há vinte e
sete séculos: por uma grande interrupção das significações disponíveis nas margens do
Mediterrâneo (essas significações que iam receber o estatuto de « mitos »). Que nós
conheçamos hoje uma outra suspensão de sentidos (por exemplo: os significantes
« história », « homem », « comunidade », « arte »), isso não tem nada de novo – a não
ser a abertura de novas exigências e novas possibilidades para o pensamento, para a
palavra e para a escrita do pensamento.

Esta, para começar ou para recomeçar – o que ela faz sem cessar, sempre por
essência in statu nascendi –, tem necessidade de impetus. Filosofar não vai sem elã,
muito menos sem um elã violento, que lança adiante e que arranca também: que arranca
ao sentido depositado, sedimentado, meio decomposto e que lança em direção a um
sentido possível, sobretudo não dado, não disponível, que é preciso espreitar,

29
Aquilo que respondeu a uma proposição de escrever « à sua guisa ».
30
É Nancy quem traduz. (N.T.)
surpreender em sua vinda imprevisível e jamais simples, jamais unívoca. Para que um
prisioneiro saia da caverna de Platão, é necessária alguma violência: forçam-no a se
virar, a luz o fere. O pensamento não se acaba somente num fulgor ofuscante, ele
começa também por aí. Entre os dois, está o lento crepúsculo em que a coruja ergue, até
a aurora, suas potentes asas hegelianas.

Certamente, é preciso que pensemos. Tudo voltou a ser, de novo, não somente
digno de pensamento, mas precisando ser pensado. O capital, por exemplo, diante do
qual não basta agitar exorcismos, nem estender compromissos; a identidade, que parece
ter-se tornado incapaz de se afastar de si para se reportar a si; ou então a soberania, da
qual não se sabe mais nada, senão que ela provém de uma ordem teológico-política da
qual estamos desligados. Eu poderia continuar por muito tempo, e, bem entendido,
acrescentar à lista a filosofia, que seu uso intemperante tornará em breve insignificante.
(E a literatura junto? Mas – a poesia resiste.)

Isso demanda um elã: quer dizer, sobretudo não o movimento de buscar seguranças.
Isso demanda um levante, uma insurreição no pensamento. Risco portanto, e balbúrdia.
Não se pode ser demasiado sábio para filosofar; para isso é necessário mesmo um tanto
de loucura. Nada é mais próximo de uma loucura do que o ato de « se criar e se dar a si
mesmo seu objeto », que é para Hegel « o ato livre do pensamento31 ».

Criar conceitos, maltratar línguas, afiar estilos, esburacar o pensamento, eis de


início o trabalho. E é também uma festa, não é preciso esquecer: não um caso de
lampiões, mas ainda um caso de impetuosidade e de se pôr fora de si. É uma febre
contraída no aberto ao qual o pensamento se expõe. Se ele não se expõe, ele soçobra: é
preciso dizê-lo sem pathos, sobriamente, mas com a última das forças. No fim, não é
preciso – para dizê-lo com Artaud – que o ronrom filosófico do ser recomece a foder
com [foutre] a vida.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla

31
Georg Wilhelm Friedrich Hegel. La Science de la Logique, Encyclopédie des sciences philosophiques
III, Philosophie de l’esprit, edição de 1830, § 17. Tr. fr. Bernard Bourgeois. Paris: Vrin, 1988, p. 183. É
Hegel quem sublinha. Tradução modificada por Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)
2. AS RAZÕES DE ESCREVER

Escrever, sobre o livro

De uma certa maneira – muito certa, de fato – é sem dúvida praticamente


impossível, hoje, (nada) escrever sobre o livro.32 Essa particularidade no uso da língua
francesa da palavra nada nos obriga a entender, ao mesmo tempo: não é mais possível
escrever coisa alguma sobre o assunto livro, 33 e: não é mais possível se dispensar de
escrever sobre o livro.

Não é mais possível escrever coisa qualquer sobre o assunto livro: se tratar-se,
com efeito, da « questão do livro », para retomar a expressão de um dos textos que
constituem o horizonte dessa impossibilidade (Edmond Jabès e a questão do livro, de
Jacques Derrida), é necessário que coloquemos sem delongas que essa questão seja
doravante tratada (ela no entanto não fez nem pode fazer o objeto de tratado algum). Querer
hoje avançar, inovar qualquer coisa sobre ela, só pode remeter à ignorância ou à
(verdadeira ou fingida) ingenuidade. Algo de definitivo se consumou, quanto a essa
questão, por um conjunto, uma rede, ou como se queira nomeá-la, de textos incontornáveis.
Eles se nomeiam: Mallarmé, Proust, Joyce, Kafka, Bataille, Borges, Blanchot, Laporte,
Derrida. Lista incompleta sem dúvida, lista talvez injusta – não é menos certo, por isso, que
seja preciso não somente passar por ela, mas permanecer nela. O que não tem nada de
fetichista, de idólatra ou de conservador – muito pelo contrário: deveríamos nos aperceber
disso. É tempo de afirmar que a questão do livro está aí, já. O pietismo reacionário
consiste, completamente ao inverso, em solicitar indefinidamente, com zelo ou voracidade,
esses mesmos textos, para deles extrair e relançar, de mil maneiras mais ou menos
declaradas, por glosa, imitação ou exploração, uma questão do livro em forma de
especulação, de mise en abyme,34 de encenação, de fragmentação, de denúncia ou de
enunciação do livro em um não acabar mais de livros.

32
« Il est sans doute à peu près impossible, aujourd’hui, de rien écrire sur le livre ». A frase em francês é
perfeitamente equívoca. J.-L. Nancy o explicita a seguir. O texto que se segue visita toda uma série de
autores e de textos que são convocados por Nancy e frequentemente cit ados, na maioria das vezes sem
aspas, ou pastichados, ou livremente adaptados, algumas vezes, quando se trata de autores antigos
(Montaigne, por exemplo), inclusive utili zando a grafia do tempo. Na tradução esas modificações gráficas
ou estilísticas se perdem.A lista de autores é muito grande: Bataille, Blanchot, Montaigne, Sterne,
Mallarmé, Borges, Joyce, Derrida, Sã o João... Não me preocupei em referenciar as citações e pastiches, o
que que retiraria parte do jogo de que é questão aqui. (N. T.)
33
“Au sujet du livre”. Sujet em francês significa ao mesmo tempo “assunto” e “sujeito”. (N. T.)
34
Traduzido frequentemente por « narrativa em abismo ». Literalmente "posição-em-abismo". Termo de
retórica e crítica de arte que designa o dispositivo auto-refl exivo. Nesta acepção, foi André Gide quem
resgatou a expressão de seu contexto de srcem, a herá ldica francesa do século XVI I. O Dictionnaire des
termes du blason de Jean-Marie Thiébaud (Besançon, Edtions Cêtre, 1994), por exemplo, diz no verbete
"abismo (em)": "Express ão que qualifica uma figura posta no centro do escudo". O sinônimo de "abismo"
Por mim, eu teria me contentado de pacientemente recopiar aqui esses textos, e até
recopiar nesse mesmo volume o texto de Blanchot que abre, fecha e arrasta este livro no
qual escrevo – este livro praticamente impossível. 35 Nada poderá me assegurar que não
seria necessário fazê-lo.

Mas – ao mesmo tempo, pelo mesmo imperativo categórico – não é mais possível se
dispensar de escrever sobre o livro.

Pois essa questão não é uma questão, não é um assunto [sujet] que se possa
considerar completa ou incompletamente explorado – e menos ainda como esgotado. O
esgotamento – o indefinido esgotamento – forma, antes, a matéria que é preciso aqui
enfrentar, aqui como alhures.

Quanto ao livro (título, programa de Mallarmé), algo doravante se enredou [a été


noué] em nossa história. A força do enredamento [ noeud] não se atém ao « gênio » desses
« autores », mas assinala a potência e a necessidade históricas, mais do que históricas, com
as quais a escrita do livro enredou-se em si mesma. O Ocidente – aquilo que Heidegger nos
fez pensar sob o nome de Ocidente, tendo desde que temos memória decidido consignar no
livro a ciência de uma verdade decifrada num Livro, o livro do Mundo, o de Deus, ou até
mesmo o do Isso, que não podia, no entanto, ser lido nem escrito -- o Ocidente se enredou
com cãibra do escritor.36 Este é em suma, o primeiro motivo, bem conhecido, do que é

preciso incessantemente reler nesses textos.

E daquilo que é preciso reescrever, com a condição de não deixar degringolar -


como o faz a moda que se esquece da implacável lição de Pierre Ménard - o conceito de
reescrita até o estágio do rewriting.

Segundo uma lei que todos esses textos trazem em si, e articulam, segundo uma lei
cujo rigor não precisa ser demonstrado, essa história tomada pela cãibra da escrita só
termina ao se repetir. Questão nunca tratada, a questão do livro marca o ressurgimento da
repetição. Não de sua própria repetição, pois ela é, se é alguma coisa, a questão do que
permanece sem propriedade (da propriedade e do comunismo literários, esta é a questão). A
repetição é a forma, a substância do que não tem, de uma vez por todas (nem várias vezes),
a sua identidade impressa no Livro intranscritível. Para quem quer que se encontre privado

no caso é "coração" ( coeur ), do escudo. O Dictionnaire historique de la langue française , de Alain Rey
(Paris, Dictionnai res Le Robert, 1992), no verbete "mise en abyme", conclui dizendo: "Sua especialização
em heráldica para designar o centro do escudo (1671) forneceu a [André] Gide a expressão mise en abyme
(1893, no Journal ) que restabelece o "y" etimológico [a grafia moderna é abîme ]. (N. T.)
35
Trata-se do fragmento que tem como incipit a frase “Il n’est d’explosion qu’un livre” [“Há apenas uma
explosão, o livro”], frase atribuída a Mallarmé ou a seu amigo Félix Féneon. O fragmento foi republicado
parcialmente em L’écriture du désastre . (Paris: Gallimard, 1980, p. 190-191). (N. T.)
36
A cãibra do escritor ( crampe de l’écrivain ) é uma patologia motora que se manifesta pela contração
incontrolável, por vezes espasmódica do músculos do braço ou da mão, que tornam impossível segurar um
lápis ou qualquer instrumento de escrever. (N. T.)
dessa identidade – para todo Ocidental – ela forma a questão do livro, a questão de que é
preciso escrever para dissolver em sua escrita – para dissolver o quê?

Para – mas o gesto de escrita não se satisfaz jamais com uma teleologia – dissolver
– mas de uma dissolução ela mesma dissociada dos valores de solução que a metafísica
sempre lhe confere – não somente a identidade ideal inscrita na brancura ofuscante do
Livro

(poistudo
um só livro, na profundidade da luz
aquilo que está eterna
esparso noseuniverso
acha reunido, como que ligado pelo amor em
– Dante)

mas para dissolver até a privação, que faz também a privatização, dessa identidade,
para dissolver até o próprio Livro, e até a privação, a privatização do Livro. O Livro está aí
– em cada livro tem lugar o redobramento [ reploiement] virgem do livro (Mallarmé) –, é
preciso escrever sobre ele, fazê-lo palimpsesto, sobrecarregá-lo, embaralhar suas páginas
com linhas acrescentadas até a pior confusão dos sinais e das escritas: é preciso consumar
em suma sua ilegibilidade de srcem, crispando-o com o informe esgotamento da cãibra.

Para quê? É preciso arriscar: é preciso escrever sobre o livro por uma libertação.37
Que não teria mais a ver com a Liberdade (entendo, com essa Liberdade subjetiva, sujeita,
assujeitada, que o Deus ou o Espírito da metafísica se confere automaticamente). A escrita
deveria passar no interstício da estranha homonímia liber/liber,38 na ambiguidade corrente
do livramento [livraison].

Escrever? Revirar as unhas, esperar, em vão, o momento da libertação? (Bataille)

– e a frase que segue no mesmo relato, Histoire de rats [História de ratos]:

Minha razão de escrever é alcançar B.

B. é a mulher desse relato, mas sua inicial e a própria frase deixam ler a mulher,
essa mulher, uma mulher, e um homem, e B.; o próprio Bataille, e um lugar, um livro, um
pensamento, e a libertação « mesma », em pessoa, sem nenhum alegorismo.

Esta é a repetição: retomada, reescrita da petição, do esforço para atingir e para se


juntar, do requerimento, da demanda, do desejo, da reclamação, da súplica. A reescrita

37
Délivrance em francês é ao mesmo tempo: “ libertação” “parto” e “entrega” (de um objeto, ou
especificamente de material impresso: capítulo, fascícul o, número de revista). O radical de “livro” ( livre)
também ressoa na palavra. Délivrer pode ser entendido como “libertar”, “dar à luz”, “entregar”, ou
literalmente, como um harmônico suplementar, “pôr-em-li vro”. (N. E.)
38
Em latim, liber, é ao mesmo tempo “livre”, social mente de condição livre”; e “livro”, lite ralmente
“parte viva da casca da árvore”. (N. T.)
sobre o livro é o clamor ou o murmúrio renovados de uma demanda, de um chamado
urgente. Se os textos dos quais falei permanecem doravante na nossa história, é porque não
trataram de nenhuma questão, mas porque enredaram esse chamado em várias gargantas de
escritas: um famoso espasmo da glote.

Eles enredaram o chamado ético e mais que ético de uma libertação, para uma
libertação. O imperativo não é responder a isso (…o neutro, escreve Blanchot de-
nominando neutro o ato literário, que, portando um problema sem resposta até a clausura
de um aliquid ao qual não corresponderia questão alguma) – ou, antes, seria indispensável
distinguir com todo o cuidado possível dois conceitos incomensuráveis: a resposta a uma
questão, e a resposta a um chamado.

Pode ser que não se responda ao chamado senão pela repetição do chamado – como
guardas encarregados de velar. Pode ser que o imperativo não seja o da resposta, mas
apenas o da obrigação de responder, que se chama responsabilidade. Como, no livro, é
possível tratar-se de responsabilidade? Não é mais possível eludi-lo, não mais do que evitá-
lo: como, na escrita onde a Voz se ausenta (uma voz sem escrita é ao mesmo tempo
absolutamente viva e absolutamente morta – Derrida), um chamado pode ser ouvido, como
é possível tratar-se de vocação, de invocação ou de advocação? Como, em geral, liberar o
totalmente outro do livro?

Todos esses textos esgotaram o tema, a teoria, a prática, a metamorfose, o porvir, a


fuga ou o corte [coupe] do livro para nada mais do que repetir esse chamado.

Quanto a mim, era outra coisa que eu tinha que escrever, de maior extensão e para
mais de uma pessoa. Demorado para escrever. Seria um livro tão extenso quanto as Mil e
uma Noites talvez, mas totalmente outro. (Proust)

Repetições

Ainda é sem dúvida preferível pôr os pingos nos is da repetição, mesmo que se
redizendo um pouco.

A reduplicação do livro em seu próprio seio, a representação de si da literatura, o


relato em toda obra de seu próprio nascimento – de seu próprio parto [ délivrance] –, sua
auto-análise,
figuração de ouseuainda a involução
processo judicialde [sua mensagem
procès em exibição
] em processo de seu
[processus código, ououa
] narrativo
demonstrativo, da formação de suas figuras, ou a colocação em jogo suas regras pelas
próprias regras de seu jogo, tudo isso que com uma palavra nomearei autobibliografia, tudo
isso data da invenção do livro. Tudo isso sobre o qual a nossa modernidade muniu-se de
bibliotecas inteiras – era preciso, era necessário, pela própria necessidade do livro à qual
não escapa nenhum escrito (essa inútil e prolixa epístola que escrevo existe num dos trinta
volumes dos cinco andares de um dos inúmeros hexágonos – e sua refutação também – A
Biblioteca de Babel ) –, tudo isso forma a repetição de si de que o livro, de nascença, não
pode senão se constituir. Minha razão de escrever é alcançar B.: Babel, Bíblia, bibliologia,
bibliomancia, bibliomania, bibliofilia, biblioteca.

É o que o livro veio mais propriamente recitar e repetir fluentemente na era de sua
invenção material e técnica: na era da imprensa, a era do livro verdadeiro, a era do sujeito
maduro e da comunicação. A imprensa satisfez a necessidade de estarmos em relação uns
com os outros em um modo ideal (Hegel). Tudo se passa desde então como se todo o
conteúdo ideal da comunicação consistisse na autobibliografia. Cada livro exibe o ser ou a
lei do livro: de entrada de jogo, ele não tem mais outro objeto além de si mesmo e essa
satisfação. Eu vos escrevo, minha filha, com prazer, ainda que não tenha nada a vos
transmitir (Madame de Sévigné).

Tudo está dito, e viemos tarde demais, há mais de sete mil anos que há homens que
pensam: é assim que é preciso começar o primeiro capítulo, sobre os livros, de um livro
intitulado os Caracteres. O esgotamento da matéria impõe o infinito das possíveis maneiras
de lhe formar os signos. É a história desse mundo onde estamos agora em visita, diz-lhe a
deusa: é o livro dos destinos deste mundo. Passamos a um outro apartamento, e eis então
um outro mundo, um outro livro – em alguma parte você encontrará nele também os
Ensaios de teodiceia, onde isso se acha escrito, e você lerá aqui que Borges nunca escreveu
senão um pensamento de Leibniz que Lichtenberg já tinha recopiado: as bibliotecas serão
cidades. Nenhum lugar estará livre de livros, mas assim mesmo haveria falta deles. O
senhor tem totalmente razão, um capítulo inteiro falta nesse lugar, deixando no livro um
buraco de pelo menos dez páginas, escreve Tristram, o autor que conta também seu próprio
nascimento. Nenhum livro tampouco estará livre de livros, pois não contentes de inscrever
nosso nome sobre pensamentos anônimos de um único autor, apropriamo-nos dos
pensamentos de milhares de indivíduos, de épocas e bibliotecas inteiras, e roubamos até dos
plagiários, escreve Jean Paul, plagiando-se a si mesmo uma vez mais. A antologia – a
escolha das flores dos livros, escolha do livro para dispor em cada livro o buquê de sua
literariedade – textual prossegue sem parar até nós.

Toda essa repetição en abyme do livro constitui sua redundância nativa – e mais do
que a cremos, ingênua. A redundância é o transbordamento, o excesso da onda: o Livro
sempre se pensou como espuma que jorra de novo infinitamente de um oceano inesgotável
– um jato de grandeza, de pensamento ou de comoção, considerável, frase perseguida, em
caixa alta, uma linha por página em local graduado, não manteria o leitor sem respiração
durante a duração do livro? (Mallarmé). Onda redita e recaída, essa repetição talvez seja
propriamente a redação: redigir é recolher, fazer entrar, reconduzir e reduzir. Cada livro
reconduz a redundância do Livro ao espaço delimitado por uma inscrição. Em cada um
desses templos, a autobiografia é venerada –

– com a condição de ignorar a outra repetição de que ela de fato é apenas a


retomada ou a remuneração. A era da imprensa é justamente a era do sujeito – não existe
livro senão de um eu, e eu se repete: é nisso que ele se reconhece.

Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz, livro consubstancial a seu autor. O sujeito
se erige em Livro, e só essa ereção nunca assegurou a substância de um sujeito – cuja
franca dissimulação faz ler o desejo em livro aberto: assim, leitor, sou eu mesmo a matéria
deste livro, o que será, talvez, razão suficiente para que não empregues teus lazeres em
assunto tão fútil e de tão mínima importância. Não ergo aqui uma estátua para a praça de
uma cidade, é para o canto de uma biblioteca e para divertir algum vizinho. Os outros
formam o homem; eu o recito e represento um em particular bem mal formado. Quero que
vejam meu passo natural e ordinário, tão desajustado como ele é. Minha razão de escrever é
alcançar B. – me alcançar, alcançar nela minha sociedade, sua solidão, alcançar aquele,
aquela que diz eu, passo natural, passo ordinário.

Eu se repete o seu desejo – qual desejo, no entanto, senão destrambelhado? O fato


de eu se exibir não o faz por isso ver. Alguém se perde irremediavelmente na matéria de
seu livro – alguém que não cessará de se repetir: « a matéria da minha experiência, a qual
seria a matéria do meu livro», e desta vez é Proust. Alguém – ele é aquele que diz eu e ele
não é aquele lá – repete-se perdido em todo livro. Pela mise en abyme da autobibliografia e
apesar desse abismo, um autógrafo caminha para o abismo. Sua errância se inicia na mesma
encruzilhada que sua ereção.

O autógrafo é aquele que se licencia singularmente na abertura mesma de seu livro.


A Deus, portanto, de Montaigne, nesse primeiro de março de mil quinhentos e oitenta.
Assinatura do lugar, assinatura do nome, assinatura do adeus, ele entra em seu livro como
num túmulo. É a mesmidade que, alterando sua identidade e sua singularidade, lhes divide
o selo (Derrida).

A repetição literal e literária é a daquele que se extravia em suas próprias marcas –


nos discursos de seu próprio velório, como o de Finnegan, sinais precursores de nada senão
de um índice que vindo ainda em devir naquilo que um aqui outrora aqui embaixo fora: um
êxodo, aqui, recomeçou, e alguém entrou na história de sua diáspora. O chamado que se
repete vem sempre dele. É o chamado de uma solidão anterior a todo isolamento, a
invocação de uma comunidade que nenhuma sociedade contém nem precede. Como liberar
o totalmente outro comum do livro? Pergunta alguém, qualquer um escrevendo, um eu que
se chama.

debruçado sobre o livro aberto na mesma


página
o que ele ouve são os cantos do
outro lado onde estão os outros.
(Jacqueline Risset)

A história que ele escreve do livro


é uma história conforme ao seu desejo e ao seu êxodo. A escrita, diz ele, marca por
toda parte o fim do comunismo. Quer dizer, do que ele não conheceu, já que ele nasceu
com a escrita.

Mas ele escreve em seus livros – e escreve em todos os seus livros – o que foi o
comunismo, a ausência do livro. O livro não pretende jamais senão retraçar aquilo que o
excede. A questão sobre a srcem do livro não pertencerá nunca a nenhum livro (Derrida) –
e, entretanto, ó memória que tens escrito aquilo que vi, aqui vai se mostrar a tua nobreza
(Dante). Ele escreve, portanto, o mundo do aedo, do contador, do recitante sagrado. O
primeiro poeta, que fez esse passo para se desembaraçar da multidão pela imaginação, sabe
retornar a ela na vida real. Pois ele vai à direita e à esquerda, para contar à multidão as
proezas que sua imaginação atribui ao herói. Esse herói não é, no fundo, senão ele mesmo.
Mas os ouvintes, que compreendem o poeta, sabem se identificar com o herói (Freud). Essa
pura poiesia de si na pura comunidade assombra sem descontinuar a inteira literatura: e é
um homem daqui, um homem de agora, que é seu próprio narrador, enfim (Robbe-Grillet).

Este foi, diz ele, o mundo de um mímico, que não teve sequer exemplo e não terá
sequer imitador, o mundo do improvisador genial, do dançarino ébrio de deus, dos
batimentos, dos golpes, dos assobios de uma música não escrita, o mundo das preces, das
súplicas, das invocações. É a tribo com suas palavras e suas melopeias, o grito cantante da
comuna primitiva em torno de sua fogueira – silenciosa grafia de um fogo tão claro que ele
se dilacera sem deixar rastro (Laporte).

A isso se sucede, na história que nós nos contamos, a sociedade da escrita que não é
o livro, mas a gravura dos caracteres sagrados, a inscrição das Leis sobre tábuas de pedra
ou de metal, sobre colunas, pilastras, frontões e tiras de tecido, a escrita dura e a ereção por
toda parte de estelas que dão a ler a Ordem e a Disposição, a Estrutura e o Modelo – que os
dão a ler a ninguém, e portanto a todos: é o comunismo monumental, a escrita arquitetural e
a monarquia hieroglífica. Todas as suas palavras devem ter um caráter de encravamento ou
de relevo, de cinzeladura ou de escultura, diz da escrita sagrada aquele (Joubert) que
escreve em máximas. E cada livro tende perdidamente para a máxima: maxima sententia, o
maior pensamento…

Vem ao fim – de parte nenhuma e de toda parte, do Egito, da Jônia, de Canaã – o


livro; vêm ta biblia, a bíblia irremediavelmente plural, a Lei, os Profetas, os Escritos assim
como ela se divide, se dispõe, se abisma, e se dissemina. Ele é e não é o Livro de um só –
autor ou povo.

Vem ao fim a muito tardia, a muito antiga, religião dos livros, e começam todos os
êxodos. Egito, Jônia, Canaã se deslocam para as travessias de desertos por comunas que
não param de se dispersar.

A história dos livros começa se perdendo no livro de história. Nele ninguém diz
quem escreveu, nem se foi escrito esse primeiríssimo pacto a que se dá o nome, no entanto,
de o Livro da Aliança (Êxodo, XXIV, 7). É a história do pacto – pacto de libertação –
rompido, sustentado, traído, sempre oferecido – e do chamado renovado para assiná-lo uma
nova vez. Quebradas tão logo gravadas, as Tábuas não são de modo algum erigidas, elas
caminham na Arca com as tribos a caminho. Os Rolos se desenrolam, e o volume da
história se amplifica até nós; o livro é inseparável do relato, a história do romance: a época
do livro é o romantismo. Em nossos escritos, o pensamento parece proceder pelo
movimento de um homem que caminha e que vai reto. Nos escritos dos antigos ela parece,
ao contrário, proceder pelo movimento de um pássaro que plana e avança em rodopios
(Joubert).

Quem não vê que tomei uma estrada pela qual, sem cessar e sem trabalho, irei
enquanto houver tinta e papel no mundo?

Os livros começam com sua repetição: dois relatos do gênese nele se misturam, se
acavalam, se redizem e se contradizem. Os livros são copiados, reproduzidos, publicados
porque eles não são por si mesmos públicos nem como um canto nem como um obelisco;
eles são transmitidos, traduzidos – setenta e dois judeus, seis de cada tribo, em setenta e
dois dias, na ilha de Fáros, tornam grega a Bíblia – os livros são traídos, contrafeitos,
imitados, recopiados, recitados e citados. Aquele que diz eu embaralha em seu livro livros e
assinaturas: Quanto às razões, às comparações, e aos argumentos que transplanto para meu
solo e confundo com os meus, omiti muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores, a
fim de pôr freio na temeridade dessas sentenças apressadas que se espojam sobre toda
sorte de escritos. Aqui já recomeça a dita repetição.

Os livros são uma matéria corruptível. Os livros são de madeira: biblos, liber,
codex, Buch, é sempre casca ou árvore. Isso queima, isso apodrece, isso se decompõe, isso
se apaga, isso passa à crítica roedora dos ratos.39 A bibliofilia é, tanto quanto a filosofia, um
amor impossível, de objetos curtidos, murchos, gastos, despedaçados, lacunares. O livro é
miserável, odiável. Descartes odeia o ofício de fazer livros. Não há nada ali para o Sujeito –
o outro, o mesmo, aquele que diz eu (penso) – nos « enormes volumes », nada além de
perda de tempo, consumação inútil de uma vida para ler cacos de uma ciência que eu posso
por mim mesmo instaurar. Deveria haver leis que punissem os escritores ineptos e inúteis,
como existem para os vagabundos e preguiçosos. Banir-se-ia das mãos de nosso povo as
minhas obras e de cem outros. Não é uma troça. A escreveção parece ser um sintoma de um
século sobrecarregado. Nunca escrevemos mais do que depois que somos perturbados? –
Desde que temos dificuldade para escrever.

Pois aquele que diz eu deve, no entanto, escrever, a demonstração é inexorável:


pensando no problema do ego e do alter ego, do acasalamento srcinário e da comunidade
humana, Husserl escreve: Há em tudo isto leis essenciais ou um estilo essencial, cuja raiz
se encontra primeiramente no ego transcendental, e na intersubjetividade transcendental
que o ego descobre nele, em seguida, e por conseguinte, nas estruturas essenciais da
motivação e da constituição transcendentais. Se conseguíssemos elucidá-los, esse estilo

39
Nancy utiliza aqui o pronome demonstrativo ça, « isto », ou « isso », num tipo de frase idiomática,
bastante coloquial em francês : « Ça brûle », literalmente « isso queima ». Jogo que evoca o ça, que
traduz, no vocabul ário psicanalítico francês o Es alemão, vertido em português como « id », ou mais
recentemente, como « isso », na segunda tópica (1920), como cifra do inconsciente. (N. T.).
apriórico teria encontrado desta mesma forma uma explicação racional de dignidade
superior, aquela de uma inteligibilidade última, de uma inteligibilidade transcendental.
Husserl escreve o que não quer – escrever. Ele escreve que a alteração srcinária do ego, a
comunidade dos homens, forma ou deforma o estilo, a escrita, até na inteligibilidade, cujo
êxito final ela decifra irremediavelmente.

Assim a súplica pelo livro começou ao mesmo tempo que a perseguição dos livros.
Escrever está ligado ao cruel simulacro de um suplício (Laporte). E agora, através do vidro,
todo mundo pode ver a inscrição se gravar no corpo do condenado. Ninguém pode
evidentemente se servir de uma escrita simples; ela não deve matar de imediato, mas em
média num prazo de doze horas (Kafka, Na colônia penal).

O oficial que comanda a máquina executa a si mesmo, no fim da história, gravando


sobre o seu corpo a lei que ele violou: Seja justo! Mas não resta senão a máquina louca para
aplicar de modo selvagem a lei – o comunismo e o capitalismo das máquinas de escrever.
É, no entanto, o mesmo chamado: como libertar o totalmente outro do livro?

O apocalipse

E se os livros sempre anunciassem, sempre provocassem o recomeço nessa história


do que não tem lugar nela? E se compreendêssemos por que, hoje, falando, escrevendo,
devemos sempre falar ao mesmo tempo várias vezes, falando segundo a lógica do discurso
e, portanto, sob a nostalgia do logos teológico, falando também para tornar possível uma
comunicação de fala que não pode se decidir senão a partir de um comunismo das relações
de troca, portanto de produção – mas também falando, escrevendo em ruptura com toda
linguagem de fala e de escrita (Blanchot)?

No fim dos livros, há o Apocalipse. É o gênero propriamente escrito da profecia –


quer dizer, do chamado. É o livro do fim do mundo, o livro do recomeço. Aquele que o
escreve diz e eu digo seu nome – João – e diz seu lugar de exílio – a ilha de Patmos. Este
livro é uma carta às Igrejas dispersas, à comunidade privada de sua comunhão. Nesta carta,
uma carta é endereçada a cada uma das igrejas, a cada uma das assembleias. A carta se
repete, se divide, se transforma: Ao anjo da Igreja de Éfeso, escreve: Assim fala aquele que
segura na mão as sete estrelas (João). Aos de Ysat em Loka. Ouvindo. A urbe que orbita. O
agora de então com o então de agora em tenso tempo contínuo. Ouvido. Quem tendo tem
este terá tido. Ouçam. (Joyce)

João escreve nesse livro as visões que lhe foram dadas a ver: mas escreve apenas
porque as visões o mandam escrever. O Anjo lhe fala segurando o Livro, mas João não o
recopia: ele escreve o que o Anjo lhe dita. O que é revelado não é o Anjo, e não é o Livro: é
a escrita do homem. Aquele que se anuncia através da revelação, aquele que diz por sua vez
quem é ele, é aquele que diz – aquele de quem João escreve que ele diz que é o alfa e o
ômega. Ele é o Livro, com certeza, mas também: nada além da conta finita dos caracteres
de escrita – está aí tudo aquilo que se revela dos sete selos partidos do livro do Cordeiro
degolado. É o fim da religião.

João escreve todas as suas visões de escritas. Mas no meio lhe é proibido escrever
as palavras dos sete trovões. Nenhum livro libera a palavra inaudita, inaudível,
ensurdecedora – o tumulto primitivo ao som do qual teria tido lugar a exaltação da comuna
mística. Porém, o livro sabe a dispersão da comunhão – ele é a sua inscrição e comunica o
seu chamado: Que aquele que ouve, diga « Vem! ». Vem! escande o Apocalipse – e nossos
livros sobre os livros. Vem, e devolve-nos a conveniência daquilo que desaparece, o
movimento de um coração (Blanchot, citado por Derrida). Cabe a ti fazer o passo de
sentido. Não há nenhuma chance de decidir, para decidir, em qualquer linguagem que seja,
por aquilo que vem em « Vem » (Derrida).

Não é um chamado à comunicação, mas a propagação da repetição do chamado, da


ordem e da demanda que não trazem, produzem, veiculam, ensinam nada – vem —, que
não pedem resposta mas só a obrigação de responder, a responsabilidade de escrever de
novo com as vinte e seis letras que não contêm nenhuma revelação, mas somente o seu
próprio esgotamento.

Aqui, o esgotamento é inicial: Minha razão de escrever é alcançar B. – passar da


primeira à segunda letra, traçar letras ligadas uma a outra, o que se chama escrever, o que
chama a escrever, o que chama uma mulher, um homem, um livro, uma história, e sempre
como B. na história uma impossível, insustentável nudez.

Muito além e aquém do que qualquer palavra pode desvelar de verdadeiro – muito
aquém e além de qualquer Livro – resta a descobrir o apocalipse, a descoberta que abala
todos os livros: é que o livro e a comunhão estão postos a nu, a descoberto, em todos os
livros. A ausência do Livro é a ausência da Comunhão – nossa comunhão ou parte de um
para todos e de todos por um (Mallarmé). Mas do mesmo modo a presença – sempre
deglutida no instante – do livro. João deve engolir um pequeno livro. Tomei o livro e o
engoli; na minha boca ele tinha a doçura do mel, mas quando eu o comera, ele encheu
minhas entranhas de azedume.

40
O que comunica, O que se comunga não é nada, não é pouco, nada além de
azedume, mas um chamado; um outro comunismo, por vir sem arrematar a história, um
comunismo de êxodo e de repetição, não quereria dizer nada (mas, na frase de Blanchot,
além do que elas querem dizer, que querem as palavras: relações de troca, portanto de
produção?), mas ele escreveria, esse comunismo, a libertação dos livros, nos livros. Vã
enquanto é livresca (foi Montaigne quem fez essa frase) – e como ela não o seria, a
começar por aqui mesmo? –, essa libertação, seguramente, mas sem dúvida tão livresca
quanto vã, quanto a escrita, ainda e de novo, não se arrisca a isso, a descoberto.

40
“[…] N’est rien, n’est pas rien […], Nancy joga aqui com as pasonomásias. A segunda, é um litoto:
“[,…] n’est pas rien” significa: “não é pouco, é muito”. (N. T.)
Repito: as razões de escrever um livro podem ser reportadas ao desejo de modificar
as relações que existem entre um homem e seus semelhantes. Essas relações são julgadas
inaceitáveis e são percebidas como uma atroz miséria. (Bataille)

Chamados ao longe. Vindo, longe! Fim aqui. Nós então. Nós, então. (Joyce)

Abril 1977

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla e João


Camillo Penna
VOX CLAMANS IN DESERTO

(No início da cena, um cachorro late ao fundo, sozinho no silêncio.


Uma vaca muge. O cão ainda latirá duas ou três vezes durante a cena.
Um outro animal, um burro, por exemplo, pode vir a cruzar o espaço da representação. Trata-se de
um espaço nu, claro e sonoro.)

(Surgem duas personagens. Suas vozes são bastante contrastada s;


ambas masculinas, mas uma é grave e sombria, enquanto a outra é leve, frágil, um pouco rouca.)

— Pensei ter ouvido uma voz e, por causa disso, vim para o lado de cá. Era a sua?

— Não sei. Pode ser, pois acho que eu estava falando sozinho. Mas também havia um
cachorro latindo. Não foi a voz dele que você escutou?

— Como poderia confundir!

— Porque não? Os chamados caninos, assim como os dos outros animais, não são
apenas ruídos. Cada um tem uma voz que pode ser reconhecida.

— Você quer dizer que para eles é uma maneira de falar?

— Absolutamente! Trata-se de outra coisa completamente diferente. A voz não tem


nada a ver com a fala. Por certo não há fala sem voz, mas há voz sem fala. Nos animais,
mas também conosco. A voz existe antes da fala. Assim, já que conheço o senhor,
reconheço a sua voz antes de distinguir as palavras que o senhor pronuncia quando vem na
minha direção .

— Claro, a voz é a face sonora da fala, ao passo que o discurso, ou o sentido, forma a
sua face espiritual.

— Quase encontraríamos essa maneira de apresentar as coisas em Saussure, se ele


estivesse mesmo falando da voz, o que não é o caso. Quase encontraríamos isso na
distinção feita por ele entre os elementos constituintes da fala. Mas note que isso o leva a
excluir a fonação, isto é, a vocalidade, do estudo da língua e mesmo, no fundo, do estudo
da linguagem. Ele dizia:

(ouvimos a voz de Saussure ministrando seu curso em Genebra)


«os órgãos vocais são tão exteriores à língua como os aparelhos elétricos que servem para
transcrever o alfabeto Morse são estranhos a esse alfabeto; e a fonação, vale dizer, a execução
das imagens acústicas, em nada afeta o sistema em si.»

— O senhor não está satisfeito com essa análise?

— Não, não estou, e, de resto, estou convencido de que o próprio Saussure não poderia
estar completamente. Ele estava muito atento, apesar de tudo, à unidade indissociável do
que chamava de «substância material das palavras» e do que designou como «sistema de
signos».

— O senhor quer dizer que a voz faz parte da língua?

— Por certo ela não faz parte da língua, no sentido de Saussure, como tampouco
pertence propriamente à fala: pois precisamente não se pode confundi-la com a «fonação»
(que palavra horrível!), que é apenas uma «execução», como diz Saussure. A voz não é
uma execução, é outra coisa, ela vem antes da distinção entre uma língua disponível e uma
fala executora...

— Antes da linguagem como um todo, consequentemente!

— Se o senhor prefere assim, no sentido estrito das palavras, não há dúvida. Mas,
justamente, o que quero que o senhor ouça – e estou certo de que Saussure estava perto de
ouvi-lo –, é que a voz, que é outra coisa além de fonação, pertence à linguagem pelo
próprio fato de lhe ser anterior e, de alguma maneira, exterior. Ela é como uma precessão
íntima da linguagem, estrangeira portanto à própria linguagem.

— Concordo. Mas, diga-me o que vem a ser essa precessão intimamente estrangeira .

— Eu lhe direi, se o senhor me escutar; a mim e a alguns outros. Este aqui, por exemplo,
o senhor o ouve?

(Entra Paul Valéry. Ele fala com voz bem baixa, quase a murmurar. Por fim, conseguimos
distinguir suas palavras.)

«voz, estado elevado, tônico, tenso, feito apenas de energia pura, livre, de alta potência,
dúctil… o essencial aqui é o fluido mesmo… a voz – evolução de uma energia livre…»
— Ouvi bem, mas não sei se compreendi. Porque me colocou para escutar esse
personagem ao invés de o senhor mesmo se explicar?

— É que deve-se ouvir a voz de cada um. Não é a mesma coisa. Cada um se explica de
uma outra maneira com sua própria voz. O senhor ignorava que as impressões vocais são
mais singulares, mais impossíveis de se confundir do que as impressões digitais, que já são
tão particulares a cada um?

(Pondo uma máscara que se assemelha a Roland Barthes, ele pronuncia)

«A voz humana é, com efeito, o lugar privilegiado (eidético) da diferença...»

— Não basta fazer um discurso sobre a voz. Ainda é preciso saber com qual voz deve-se
pronunciá-lo. Qual voz falará da voz? Veja, ouça esta aqui.

(Entra Jean-Jacques Rousseau, que declara)

«O homem possui três tipos de voz, a saber, a voz falante ou articulada, a voz cantante ou
melodiosa, e a voz patética ou acentuada, que serve de linguagem para as paixões.»

— Se entendi bem o que ele acabou de dizer, assim como o que o senhor dizia
anteriormente, não somente cada indivíduo tem sua própria voz, mas também há várias
vozes possíveis para cada um. Entretanto, a voz em si, a vocalidade da voz, se quiser, ou
sua essência de voz, será o que não fala, nem canta, nem dá o tom de uma paixão, sendo
capaz ao quanto
sua voz mesmo atempo de representar
minha, esses
tanto a deste três papéis,quanto
personagem e estando
a deapta a tornar-se
outro tanto
qualquer. Masa
pergunto-lhe ainda: o que então é essa coisa?

— É a voz em si [la voix même] – e não é evidente que ela seja uma única coisa. É a voz
que não podemos dizer, uma vez que é uma precessão da fala, uma fala infante que se faz
ouvir aquém de toda fala, até o falar em si [ le parler lui-même]: pois se ela é infinitamente
mais arcaica que ele, em compensação, não há fala que não se faça ouvir por uma voz.
— De modo que a voz, em seu arcaísmo, seria, ao mesmo tempo, a verdadeira
atualidade da fala, que é ela mesma o ser em ato da língua...

— Não é a voz que é a atualidade da fala, é sempre apenas uma voz, a sua ou a minha,
falante ou cantante, cada vez uma outra. Ela é sempre compartilhada; é, em um certo
sentido, a própria partilha. Uma voz começa onde começa o entrincheiramento
[retranchement] de um ser singular. Mais tarde, com sua fala, ele refará os laços com o
mundo, dará sentido ao seu próprio entrincheiramento. Mas, antes, com sua voz, ele clama
por um puro afastamento, e isso não faz sentido.

— Toda voz clama no deserto, como a do profeta. Além do mais, é no deserto da


existência desamparada, presa da falta e da ausência, que a voz, antes de mais nada, se faz
ouvir. Escute, então, o que diz uma mulher, uma mãe.

(Projetado sobre a tela, o rosto de Julia Kristeva diz estas frases)

«a voz responde ao seio ausente, ou é acionada na medida em que o acesso ao sono parece
preencher com vazios a tensão e a atenção da vigília. As cordas vocais se tensionam e vibram
para preencher
nervoso face aoo vazio
sono… da aboca
voze suspenderá
do tubo digestivo (resposta
o vazio… 41 à fome) e as fraquezas do sistema
A contração muscular, gástrica e
esfincteriana, expele, às vezes ao mesmo tempo, o ar, o alimento e os dejetos. A voz jorra dessa
rejeição [ rejet] de ar e de matéria nutritiva ou excremencial; as primeiras emissões sonoras, por
serem vocais, não possuem sua srcem somente na glote, elas são a marca audível de um
fenômeno complexo de contração muscular e vago-simpática que é uma rejeição que envolve o
corpo inteiro.»

— Não refutarei isso que o senhor acabou de nos fazer ouvir. Não contestarei essa
voz…

— Acredita que uma voz jamais possa ser contestável? Eu adoraria, ao contrário,
propor-lhe esta tese, de que a voz, ou, antes, a partilha infinita das vozes, forma o lugar ou
41
« Prendre la relève”. “Relève ” é a tradução proposta por Jacques Derrida à Aufhebung hegeliana. O
termo em francês tem muitos sentidos: levantar, erguer, mas também depender, demitir, exonerar.
Basicamente tem o duplo sentido de: elevar e substituir, algo contido na expressão idiomática em
português, “render”, no sentido de “substituir” ou “acumular”. Opto por traduzi-lo por: suspensão, no
sentido de “elevar” e “retirar”. Derrida propõe pela primeira vez essa tradução em Margens da filosofia ,
no ensaio "O poço e a pirâmide", em uma tradução do parágrafo 459 da Encicloplédia de Hegel. O
tradutores da edição brasileira optaram por traduzir “ relever ”, no caso, por “suprimir”, o que restitui
apenas um dos lados do sentido em francês (ou de Aufhebung em alemão). Margens da filosofia . Trad.
Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. São Paulo, Papir us, 1991, p.126. Tradução modificada. )
(N. T.)
o elemento de afirmação indefinidamente multiplicado, e que não há negação. Não há
dialética das vozes, há apenas linguagem e dentro da linguagem.

— No entanto, esse espaço das vozes não é pleno, nem unificado…

— Com efeito, não é. Ele é feito apenas do espaçamento ou do afastamento das vozes.
Cada uma diferente, e cada uma constituída por um afastamento, por uma abertura, tubo,
cano, laringe, garganta e boca atravessadas por esse nada, por essa emissão, essa expulsão
da voz. Ano
estendido vozmeio
gritadonocorpo,
deserto porque
aquém das ela própriaSeria
palavras. é, antes
essa de maisafirmação
a sua nada, esse
– edeserto
não a
contrapartida de uma negação. Um deserto, cada vez, cada voz, um deserto singular.

— O senhor tem sem dúvida razão. Mas gostaria de dizer que, sem refutar essa voz da
rejeição, poderíamos propor uma maneira completamente diferente de compreender o que
jorra nos gritos da primeira infância. Ou seja, uma maneira completamente diferente de
compreender a vox in deserto: vox clamans muito mais do que vox clamantis. A voz não
responderia ao vazio, como dizia esta pessoa, mas ela exporia o vazio, virando-o para fora.
A voz seria menos a rejeição [rejet] que o jato [jet] de um vazio infinito aberto no cerne do
ser singular, desse ser abandonado. O que ela exporia, assim, numa maneira de oferecer o
abismo, não seria uma falta. Mas seria esta falta [ défaut] de plenitude ou de presença que
não chega a ser um defeito [ défaut], uma vez que é a constituição mais própria da
existência, o que a fez aberta, por antecipação e para sempre aberta, fora dela mesma. Na
voz, haveria isso: que esse existente não é um sujeito, mas que ele é uma existência aberta e
atravessada por esse jato, uma existência, em si, lançada no mundo.42 Minha voz é, antes de
tudo, o que me lança no mundo. Se o senhor puder tomar minhas palavras com uma certa
leveza, eu diria que há na voz qualquer coisa de irrevogavelmente extático.

— O senhor pensa no canto?

— Claro! Como não pensaria? Note bem que não falo ao senhor de pasmos líricos. Mas
aquele que canta – e aquele que o escuta cantar – são o mais certamente, o mais
simplesmente, mas também mais vertiginosamente, fora deles mesmos. Escute.

43
(Ele liga um gravador. Escutamos os vocalises de A Rainha da Noite, depois a cena da loucura do
rei em « Nabucco».44)

42
J.-L. Nancy joga aqui com a cadeia de semas, jet (“jato), rejet (“rejeição”), jeter (“lançar”, “jogar”). Um
elemento importante nessa discussão é a noção heideggeriana de Geworfenheit , “ser-lançado”, conforme a
tradução de Márcia de Sá Cavalcante, ou “dejecção”, na t radução de Fausto Castilho, ou “ser
abandonado”, como pode ser também traduzido em português, vertido em francês como être jeté. (Martin
Heidegger. Ser e tempo . Parte I. Tradução: Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 10ª
edição p. 321-322, para a definição; Tradução de Fasuto Castilho. Campinas/Petrópoli s: Editora
Unicamp/editora Vozes, 2012. Para a explicação sobre a tradução francesa, cf. Être et Temps . Traduçao:
Fraçois Vezin. Paris: Gallimard, 1986, p. 560.) (N. T.)
43
A ária da Rainha da noite é uma famosa ária de soprano da ópera A flauta mágica (Die Zauberflöte) de
Wolfgang Amadeus Mozart (1791). (N. E.)
— Esta ou este que canta, durante o tempo de seu canto, não é um sujeito.

— Mas por que o senhor repete que não há sujeito na voz? É preciso um sujeito da voz,
e mesmo, se o entendi bem, é preciso um sujeito para cada voz singular. Diria, ao contrário,
que a voz é a marca irrefutável da presença do sujeito. É sua impressão [ empreinte], como
o senhor dizia. E é exatamente assim que é preciso entender que falamos da voz de um
escritor: seu estilo, sua marca pessoal, inimitável.

— Concedo-lhe esta impressão, ou esta assinatura indelével da voz. Mas trata-se de


saber, antes da impressão da impressão, no traçado, na abertura e na emissão da voz, o que
é o mais propriamente vocal. Ora, isso não remete ao sujeito. Pois o sujeito é um ser capaz
de ter em si e de suportar sua própria contradição...

— Reconheço a voz de Hegel!...

— É verdade. Pensei mesmo, de resto, que o senhor iria reconhecê-la. Entretanto, Hegel
tem mais de uma voz – como costuma acontecer aos grandes…

eles—escrevem
Uma grande voz deve semprediálogos,
tão frequentemente ser mais como
de uma voz? Seria,
Platão, então,Galileu,
Aristóteles, por essaDescartes,
razão que
Heidegger?

— Talvez. Mas, diálogo ou não, há polifonia no seio de toda voz. Pois a voz não é uma
coisa, é a maneira pela qual alguma coisa – alguém – afasta-se de si mesmo e deixa ressoar
este afastamento. A voz não sai somente por uma abertura, ela se abre nela mesma, sobre si
mesma. A voz dá para algo da voz nela própria. Uma voz se oferece de chofre como uma
pluralidade de pautas vocais...

— Perdoe-me, mas eu adoraria que retornássemos a Hegel. O senhor se esqueceu dele.

— É verdade, eu o esqueci. Mas, de fato, temos a tendência de ouvir apenas uma de suas
outras vozes.
antes do Precisamente,
sujeito. aquela
Ela o precede, com
o que a qual
quer elebem
dizer, falaentendido,
da voz. Pois
quea ela
voz,está
pararelacionada
Hegel, é dea
ele – e lhe concederia, se o senhor me permite usar a palavra, que ela lhe abre [ fraye] o
caminho. Mas ela não é a voz do sujeito.45

44
Nabucco , ópera de Giuseppe Verdi (1842). (N. E.)
45
J.-L. Nancy joga aqui com as palavras homófonas em francês voix (“voz”) e voie (“caminho”, “via”).
(N. T.)
— Se entendi bem, seria preciso dizer, ao contrário, que é a voz do sujeito – e
justamente porque é ela quem lhe abre o caminho –, mas que não há sujeito da voz. Mas
ainda não sei por que é assim. O senhor ainda não me fez ouvir as duas vozes de Hegel.

— A primeira é a voz do sujeito. Ela pronuncia, num tom imperturbável, que o senhor
reconheceu, que o ser e a verdade consistem em suportar em si sua própria contradição. O
sujeito é, desse modo, aquele cuja relação consigo mesmo passa por sua própria negação, e
é isso que lhe confere a unidade infinita de uma inesgotável presença a si mesmo – até na
sua ausência, vale dizer, no que nos ocupa aqui, até no seu silêncio. Com a voz, não se trata
de um silêncio que faria sentido, e essa não é uma ausência do sujeito que é ouvida. Já
disse, é uma afirmação, e não uma negação. A voz não é uma contradição tolerada, isto é,
ao mesmo tempo posta e deposta, superada. Ela se desvia da contradição assim como da
unidade. É então que é preciso ouvir a outra voz de Hegel, o outro tom que ele assume para
falar da voz. Ouça.

(Hegel conversa com Schelling e Hölderlin, que pronunciam eles também algumas das frases que
se seguem, sem que se possa considerá-la como uma conversa de verdade.)

«A voz começa com o som, o som é um estado de tremor , isto é, um ato de oscilação entre a
consistência de um corpo e a negação de sua coesão. É como um movimento dialético que não
chegaria a se consumar, e que permaneceria na pulsação… No tremor sonoro de um corpo
inanimado já existe alma, uma espécie de aptidão mecânica à alma… Mas a voz se eleva
propriamente antes no animal… Ela é seu ato de tremer livremente em si mesma… Neste tremor
há a sua alma, isto é, há essa efetividade da idealidade que faz uma existência determinada... A
identidade do existente – ou seja, a presença concreta da Ideia mesma – sempre começa no
tremor. Assim, a criança no seio de sua mãe, criança que não é autônoma e não é um sujeito, é
atravessada com um tremor pela partilha srcinária da substância maternal… Essa não é uma
voz audível, no entanto, ela deve fazer um ruído nas entranhas da mãe. É o vocalise balbuciado
do acesso ao ser… A alma é a existência singular que treme ao se apresentar, cujo tremor é a
apresentação… É o sujeito singular , ou seja, não é a unidade infinita da subjetividade, não é
nada além da singularidade… Essa alma singular dá a si sua forma ou figura, eis sua obra de
arte… a obra de arte do tremor… E quando se trata do homem, essa obra de arte é a fisionomia
humana, com a estação ereta, a mão, a boca, a voz, o riso, o suspiro, as lágrimas… e alguma
coisa banha tudo isso, um tom espiritual que revela imediatamente o corpo enquanto
exterioridade de uma natureza superior. Esse tom é uma modificação leve, indeterminada,
indizível: é apenas um signo indeterminado e imperfeito para o universal da Ideia que se
apresenta aqui. Esse tom não é a linguagem. Ele lhe abre caminho [ voie], talvez. É essa
modificação indizível, essa modulação da alma que treme, que chora e que suspira, e que
também ri… O espírito que treme ao se manifestar, sem ainda ter se apropriado de sua própria
substância espiritual…»

(Os três personagens se afastam. Ouvimos cantar, bem suavemente, o início do lied de
Schubert, «Gretchen am Spinnrade».)
«Meine Ruhe ist hin, mein Herz ist schwer, Ich finde, Ich finde sie nimmer…»46

— Prendeu-me, confesso. Mas o seu Hegel não está sozinho, são três que estão falando.

— De fato. Mas era ele, no entanto, asseguro-lhe, era ele, ou a voz de uma época…

— Compreendi direito se disser que esta modificação de que eles falavam, esta
modulação espiritual espalhada sobre todo o corpo seria em suma a voz da voz, seria o som
ou o tom no qual ressoa propriamente aquilo que, de outra parte, treme na garganta aberta?
Esse tom ou esse som geral – do homem, do animal, de tal homem ou de tal animal, o som
geral, a cada vez, da diferença singular que vibra – daria o tom da voz, e, reciprocamente, a
voz faria ouvir o tremor particular desse tom… Cada qual seria a voz do outro: a voz que
não é uma voz, que é o tom da alma espalhada sobre o corpo, dando-lhe a existência através
de sua expansão, e a voz que é a voz dessa existência, emitida por sua boca e por sua
garganta.

— Sim, creio que podemos dizê-lo dessa maneira. O senhor compreende, então, que,
nesse caso, não há sujeito. Uma voz tem sua voz fora dela mesma, ela não tem em si sua
própria contradição, ou então, em todo caso, ela não a suporta: ela a lança adiante dela
mesma. Elade
se oferece nãofora,
estáapresente
pulsaçãoemdesi,uma
é somente uma
abertura – apresentação
uma vez mais,fora
umdedeserto
si, um tremor que
estendido,
exposto, com lufadas de ar que vibram no calor. O deserto da voz no deserto, todo o seu
clamor – e nada de sujeito, nada de unidade infinita, isso [ ça] sai sempre para fora, sem
presença em si mesmo, sem consciência de si.

— Isso me lembra alguém que dizia – cito de memória – que o homem, diferentemente
dos animais, não tem voz, que ele tem somente a linguagem e a significação como uma
maneira de preencher essa falta de voz, de esforçar-se rumo a essa voz ausente…

— Foi Giorgio Agamben. Ele disse que a voz era o limite da significação, não como um
simples som desprovido de sentido, mas «como pura indicação de um evento da
linguagem».

(Agamben, no canto da cena, completa rapidamente)

46
Gretchen am Spinnrade ” [“Margarete na roca”] lied de Schubert com letra de Goethe, retirado do
Fausto A letra é de Goethe diz o seguinte: “Minha paz se foi/ Meu coração está pesado/ Nunca, nunca
mais...”. (N.T.)
«E essa voz que, não significando nada, significa a significação em si [ la signification même ],
coincide com a dimensão da significação mais universal, com o ser.»

— Estou me lembrando ainda de outro, que dizia:

(uma voz de criança, em off)

«O sentido está abandonado à partilha, à diferença das vozes. Ele não é um dado anterior e
exterior à nossa voz. O senti do se doa, se abandona. Não há talvez outro sent ido além dessa
generosidade.»

— Este sentido do sentido é como a voz da voz: nada além de abertura, tremor da
abertura no envio, na emissão de algo que é destinado a ser compreendido – e nada mais.
Quer dizer que não foi feito para voltar a si…

— No entanto, ressoa em si mesmo…

— Sim, mas sem retornar a si, sem retomar o que disse para se repetir e se ouvir...

— Mas a voz que se ouve não pode fazê-lo guardando silêncio. O senhor sabe disso,
Derrida o mostrou.

— Claro. E é por isso que a voz que não guarda silêncio, a voz que é uma voz, não se
ouve. Ela não tem em si esse silêncio para se ouvir proferir um sentido além do som. É uma
outra maneira de não ter em si sua própria contradição. Ela não tem em si esse silêncio, ela
somente ressoa, fora, no deserto. Ela não se ouve – não de verdade – mas ela se faz ouvir.
Ela se dirige sempre ao outro. Observe, justamente, pois o senhor o citou neste instante;
ouça.

(Derrida falando diante de um gravador portátil, que uma jovem lhe estendeu.)

«Quando a voz treme… ela se faz ouvir porque seu lugar de emissão não é fixo… vibração
diferencial pura… um gozo que será gozo numa plenitude sem vibração, sem diferença, parece-
me ser às vezes o mito da metafísica – e a morte… No gozo vivo, plural, diferencial, o outro é
chamado…»
— Mas, então, ele é chamado por nada, nem mesmo por seu nome. É a voz solitária, que
não diz nada, mas que chama?

— Ela não diz nada, o que não quer dizer que não nomeie. Ou, ao menos, não quer dizer
que ela não abra caminho [voie] ao nome. A voz [voix] que chama, isto é, a voz que é um
chamado, sem articular língua alguma, abre o nome do outro, abre o outro a seu nome, que
é minha voz lançada na sua direção.

— Mas ainda não há nomes, se não há língua. Não há nada para fixar esse chamado.

— Sim, ela chama o outro lá aonde somente, enquanto é outro, ele pode vir. Isto é, no
deserto.

— Quem, por fim, vem ao deserto, senão os nômades que o atravessam?

— Precisamente, a voz chama o outro nômade; ou então, ela o chama a devir nômade.
Ela lhe lança um nome nômade, que é uma precessão de seu nome próprio. Que o chama a
sair de si, a dar voz, por sua vez. A voz chama o outro a sair em sua voz. Preste atenção,
escute.

(Um homem do deserto descobre o rosto e lê num livro de Deleuze.)

«A música é, antes de tudo, uma desterritorialização da voz, que se torna [ devien t] cada vez
menos linguagem… A voz está muito adiantada em relação ao rosto, muito adiantada…
Maquinar a voz é a primeira operação musical… É necessário que a voz atinja ela mesma um
devir-mulher ou um devir-criança. E eis aí o prodigioso conteúdo da música… É a voz musical
que se torna ela própria criança, mas, ao mesmo tempo, a criança se torna sonora, puramente
sonora…»

— O outro é chamado a esse lugar onde não há sujeito, nem significação. É o deserto do
gozo, ou da alegria. Não é desolado, apesar de ser árido. Não é nem desolador, nem
consolador. Está aquém do riso e das lágrimas.

— No entanto, não é preciso ao menos concordar,– o senhor parecia fazê-lo há pouco –


que a voz sai, antes de tudo, com o choro?
— É verdade, eis o nascimento da tragédia. Mas o que precede esse nascimento é o
parto da voz, e ele ainda não é trágico. São prantos, os gritos que não conhecem nada do
trágico, nem do cômico.

— Será que é preciso entender que eles não sabem nada além de sua própria saída, sua
própria efusão, um corpo que se abre e que se exala, uma alma que se estende?

— Sim, é uma extensão aberta – partes extra partes – e que vibra – partes contra
partes. Isso [ça] não fala, isso [ça] convoca o outro a falar. A voz convoca o outro a falar, a
rir ou a chorar – em mim mesmo, agora. Não falaria a não ser que a minha voz, que não sou
eu e que não está em mim, embora ela me seja absolutamente própria, não me convoque,
isto é, não convoque a falar, rir ou chorar, esse outro em mim que pode fazê-lo.

(Montaigne, sentado à sua mesa, escrevendo)

«… o próprio balançar de minha voz tira tanto de meu espírito, que não o acho, quando o sondo
e o emprego à parte de mim.»

— Valéry dizia (tira um volume de seu bolso, e lê): «… a linguagem saída da voz, mais
do que a voz da linguagem»…

— E é por isso que ele podia dizer: «a voz define a poesia pura».

— A poesia não falaria, então?

— Sim, ela fala, mas fala sobre esta palavra que não executa uma língua, e da qual, ao
contrário, saída da voz, uma língua vem de nascer. A voz é a precessão da linguagem, ela é
a iminência da linguagem no deserto no qual a alma ainda se encontra só.

— O senhor dizia que ela fazia vir o outro!

— Com certeza, é assim que a alma está só: não solitária, mas com o outro, no chamado
do outro, e só no que tange aos discursos, às operações, às ocupações.
— Com efeito, é a própria alma que a voz chama no outro. É assim que ela faz vir o
sujeito, mas ainda não o instala. Ela o evita, pelo contrário. Ela não convoca a alma a se
ouvir, nem a ouvir discurso algum. Ela o chama, o que significa apenas que ela o faz
tremer, que o comove. É a alma que comove o outro na alma. É isso, uma voz.

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla e João


Camillo Penna
RELATO, RECITAÇÃO, RECITATIVO47

[…] o sujeito como sujeito da arte, do mito e do relato [ relato ] (há outro?)

Um relato [relato] não pode se acabar, não tendo tido começo


– tendo, o que dá no mesmo, há muito tempo acabado.
—Philippe Lacoue-Labarthe 48

O relato põe em obra e em jogo o seu recitante: não há nenhum relato sem recitação e
nenhuma recitação sem recitante. Este último não se apresenta nunca senão como
distinto do relato, mesmo quando é o seu objeto, como é suposto sê-lo numa
autobiografia, ou então num romance cujo narrador se designa na primeira pessoa, tal
como os de Em busca do tempo perdido ou de Tristram Shandy, que não são por acaso
exempla privilegiados na história do relato moderno.49 O « eu », por si mesmo e por
natureza, tanto quanto por estrutura, se distingue. Essencialmente, ele está em
distinção e em discrição: distinto, afastado, separado, e discreto no sentido matemático
ou semiológico, descontínuo, isolado e impossível de decompor para ser inserido numa
continuidade. Sendo assim, o « eu » de um relato em primeira pessoa não é nem mais
nem menos retirado do que o narrador ausente, anônimo e mesmo como áfono, da forma
mais clássica do relato.

Distinção e discrição põem o recitante em retirada da recitação. Este ou isto – pois


não é certo que seja preciso se restringir a designar uma « pessoa », ainda que a pessoa
possa ser aproximada por alguns vieses históricos de personare, « ressoar através »,
como devia fazê-lo através da máscara a voz dos atores antigos, recitantes da Fábula.
Não uma pessoa enquanto interioridade – a menos que se compreenda que a
interioridade não é nada senão uma antecedência infinita, sempre mais retirada, na

47
Em português perde-se a o vínculo etimológico dos três termos, em « relato » ( récit ). Em francês,
« recit, récitation, récitatif. » (N.T.)
48
Philippe Lacoue-Labarthe. Portrait de l’artiste, en général [Retrato do artista, em geral] . Paris :
Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison », 1979, p. 90 [retomado em Philippe Lacoue-
Labarthe. Écrits sur l’art. Genebra : Les Presses du réel, col. Mamco, 2009 (N.T.)] ; e L’« Allégorie »
[seguido de Un commencement de Jean-Luc Nancy (N.E.F.)]. Paris ; Galilée, col. « Lignes fictives »,
2005, p. 19. Vou falar aqui do relato e de Philippe Lacoue-Labarthe. De um e do outro e de um para o
outro. Do relato que ele fez de sua vida, da vida – do pensamento – que ele tirou dos relatos.
49
Respectivamente, de Marcel Proust e Lawrence Sterne. (N.T.)
própria emissão da exterioridade: a suposição insuponível, insuportável, impossível de
assujeitar, de um sujeito da fala [parole].

O recitante é a suposição necessária e improvável do relato. Ele é a anterioridade do


relato sobre ele mesmo. A anterioridade da voz sobre ela mesma.

II

Auto- ou alo-gráfico, o relato procede de uma dupla necessidade. De um lado, ele


deve ser recitado: deve ser enunciado, pronunciado, e até mesmo deve ser anunciado,
deve se introduzir enquanto relato. Há sempre um « era uma vez » que esconde ou
revela um tempo preciso, ou que um tempo preciso esconde e revela, mesmo que esse
tempo seja imaginário (assim Faulkner joga ao começar Velho Pai – em Se eu me
esquecer de ti, Jerusalém – por « Havia uma vez (era no Estado do Mississipi, no mês
de maio, quando da inundação de 1927) […]50 »). Nessa medida, ele exige seu sujeito,
seu recitante, sua voz. Em « Havia » ressoa – musicalmente, será preciso voltar a isso –
um proferimento, ou uma articulação vocal. Se há texto, discurso ou como se quiser
dizer, que não seja relato (o que talvez não seja senão uma hipótese-limite, a de um texto
exclusivamente matemático, por exemplo, se isso existe e se é um exemplo e não o caso
único…) ou que não seja relato em algum respeito – então é também um texto sem voz e
sem enunciador, o que consiste a dizer que não é um texto.

De outro lado, em compensação, desde que o relato seja ao menos virtualmente


presente – e ele pode, até deve sê-lo, sobre o fundo do poema, do texto filosófico,
jurídico ou científico, e de tudo o que faz em suma diegese e não mímese, tudo o que
não é declaração em primeira pessoa, ou seja, tudo o que não supõe que o falante fale
com efeito em nossa presença – ele implica então seu recitante, seu sujeito ou sua voz
enquanto ausente, mas indicado ou sugerido nessa ausência: ele o destaca como sub-
jectum ou sup-positum, ele o põe em borda, em retirada, em recuo da recitação ela
mesma.

O relato pode, aliás, ir buscar esse sujeito para fazê-lo vir em presença,
desmascarando-o de alguma maneira, como quando Henry James faz de repente falar o
narrador em primeira pessoa, após tê-lo guardado trezentas páginas na ausência do
narrador clássico (em O que Maisie sabia). Um procedimento desse gênero não faz em
suma
que a senão mostrar
presença o quanto
em pessoa se amostra
separação diegeseo eequivalente
em sidamesma da mímese eé frágil na medida
o substituto em
de uma
ausência. « Literatura » talvez queira dizer: enunciado por ninguém [ personne] – e
« recitar » poderia ser o nome dessa enunciação que não é « a minha », no sentido em
que ela o é na palavra da vida ordinária e não literária. Pelo menos supõe-se que ela seja,

50
William Faulkner. « Vieux Père ». In : Si je t’oublie, Jérusalem . Tr. fr. Maurice Edgar Coindreau
revisto por François Pitavy, texto apresentado et anotado por François Pitavy. In : Œuvres romanesques
III, André Bleikasten, Michel Gresset et François Pitavy (eds). Paris : Gallimard, col. « Bibliothèque de la
Pléiade », 2000, p. 17. (N.E.F.)
pois é evidente que até mesmo a mais simples tomada de palavra [ parole] implica que
« eu [moi] » que falo deve, enquanto « eu » [ je], sujeito de minha fala [parole], e ao
mesmo tempo que avanço como locutor, recuar na intercambiabilidade de todos os
« eus », que é somente, em si mesma, uma condição geral da linguagem enquanto fala
[parole].51

Assim sendo, o relato caracterizado – história, narração, romance, novela – não é


nada senão o tratamento específico e a intensificação de uma condição muito geral da
fala [parole] – da linguagem em ato, da linguagem liberada da linguística, não da língua,
pois esta impregna e colore o ato – e que é a condição da oralidade. Essa última –
enunciação, proferimento, endereçamento – está longe de se limitar à instrumentação de
um aparelho fonador. A oralidade não é a única fonação: é o corpo emissor, o corpo
aberto ao fora como emissor do seu « dentro » que não se dá senão nessa emissão. A
produção vocal põe em jogo uma ressonância do corpo pela qual dentro e fora se
separam e se respondem – e cuja abertura inicial, não é preciso duvidar, é da ordem do
grito e do canto conjugados, do sinal e da invocação (poderíamos retomar aqui todos os
valores religiosos, jurídicos e políticos ligados à emissão da voz e mesmo ao
vocabulário da vox assim como em grego ao do opa/epos). Como vemos,
reencontraríamos nossa literatura em seu nascimento, e a reencontraríamos aí ornada
com a solenidade de um proferimento que sabemos pôr em jogo nada menos do que a
possibilidade de produzir fora, no mundo, isto ou este que pesquisa sobre o sentido ou a
verdade do mundo, ou seja, sobre o seu fora absoluto (reversibilidade: o dentro do corpo
é o fora do mundo, e vice versa). Nada tem lugar aqui que não implique uma dupla
dissociação: a do mundo dado e de um sentido « incorporal » (como diziam os
estoicos), e a do recitante enquanto ele se recita, ou então – o que dá no mesmo –
enquanto ele se divide, produzindo-se como recitante, entre recitante e recitado.

O que chamamos de escrita, com o valor moderno da palavra, não é senão a forma
em que se exemplifica se amplificando – pela inscrição material onde se retém e se
expõe o movimento – o percurso do pro-ferimento e pro-dução, a facilitação 52 do
sentido tendido rumo a sua escapada. Na escrita se inscreve concretamente, com essa
escapada infinita, a dissociação do sujeito da fala [parole].

O relato procede dessa dissociação. Ele remete a ela: não somente o que ele conta
precedeu o relatório que faz dela, mas mesmo se ele fala no presente – esse presente dito
« narrativo » ou então o presente de uma declaração « mimética » - ele não pode deixar
de abrir um afastamento, pelo qual se mostra precedendo-se a si mesmo. Sempre um
recitante terá tomado a iniciativa de recitar, ou então terá recebido a sua injunção. Na
verdade, a fala [parole] comporta uma antecedência absoluta: nela, « eu” [je] recua
aquém do « eu” [moi] que fala – mas é assim que ele vem a si. Nenhum « eu” [je] vem a
ser « eu” [je] senão recitando-se como tal ou sendo o recitante de algum relato.

51
Em francês, “ parole ” significa em português tanto palavra, quanto fala, na dicotomia de Saussure, por
exemplo, langue/parole , língua/ fala. Optou-se por um ou por outro termo, conforme o contexto. (N.E.)
52
“Frayage ” é a tradução francesa da noção freudi ana de “ Bahnung ”, traduzido em geral em português
por “facilitação”. O termo aparece muito cedo em Freud na descrição do aparelho neurológico humano,
descrevendo a operação por meio da qual qual uma excitação abre passagem de um neurônio ao outro
vencendo uma certa resistência. (N.T.)
III

Só o relato põe em obra a tensão – espera e atenção 53, para além de toda intenção –
na qual se dá a sentir o irrecusável e irredutível privilégio do caminho, da via, do método
tal como a filosofia o reconhece, mas, mesmo o reconhecendo, não pode se impedir de
tendencialmente reduzir e de reabsorver. Se, como o diz Hegel, o Verdadeiro é o
resultado
integrado, mediante o resultado,
engolido no caminho, doissoqual
significa
ele terá -sido
parao meio.
terminar - que
É assim o caminho
desde a dialéticaé
platônica e o caminho ascendente ao céu das Ideias e do theos. O Verdadeiro não está
tampouco no caminho enquanto interminável, nem enquanto privado de termo e de
direção – caminho que não leva a parte nenhuma e se perde nos bosques 54 , que
Descartes ensinava a atravessar sempre em frente diante de si: pois, neste caminho, é a
nulidade de direção e de destinação que, a cada instante, a cada passo, se cumpre como
verdade e confere ao caminhar, de maneira subreptícia, a qualidade de um resultado.
Em todos os casos de caminho filosófico e metódico, o resultado é pressuposto. Essa
pressuposição pode permanecer relativamente indeterminada; à maneira da intuição
cartesiana, da liberdade kantiana, ou do absoluto hegeliano, nem por isso ela deixa de
ser posição prévia, reserva já formada e provisão de rota. Apesar dos trajetos
consideráveis que os filósofos sabem cumprir, as distâncias que eles franqueiam, seus
caminhos, recobrem uma imobilidade secreta. Essa imobilidade procede de seu olhar
fixado – mesmo que através dos olhos cerrados – sobre a ideia do resultado, do
preenchimento
regular por essada intenção
ideia: e da
ele deve ser reabsorção da que
de tal maneira tensão. O trajeto
de seu caminhare depode e deve se
seu andamento
possa se seguir uma resultante, uma consequência, que em troca clareie o caminho por
inteiro e justifique o seu traçado. Este se terá regulado pelo seu fim, terá tido seu fim por
regra, por guia e modelo: caminho mimético da meta, movimento que imita a estação.

Todo o pensamento de Philippe Lacoue-Labarthe procede de uma recusa profunda,


inicial e radical, dessa conformação mimética. Ele reconheceu muito cedo nela a
sujeição e a imobilidade – a fixação tipológica – contra as quais o animava uma revolta
essencial. Quero propôr aqui que essa revolta procedia de um sentido não menos
profundo e não menos inato nele do relato – mesmo que ele nunca tenha praticado
verdadeiramente o seu exercício, ainda que o tenha abordado – e que esse sentido do
relato se desabrochasse em atenção para com a música – que ele distinguia,
precisamente, do exercício mais ordinário do relato. Não quero fazê-lo me prendendo à
letra de seus textos, mas me esforçando em alcançar seu movimento de fundo, a partir de
uma
riscos,consideração do relato que esboço à minha maneira, e correndo meus próprios
em sua memória.

53
Jean-Luc Nancy joga aqui com os parônimos, “ attente ”, espera, e “ attention ”, atenção. (N.T.)
54
Em francês, “chemin qui ne mène nul part” remete à tradução francesa do título da coletânea de ensaios
Martin Heidegger, Holzwege . (Martin Heidegger. Chemins qui ne mènent nulle part. Trad. Wolfgang
Brokmeier. Paris: Gallimard, col. “Tel”, 1962.) (N.T.)
Ou antes: esboço-a a fim de prosseguir à minha maneira o relato de sua vida e de seu
pensamento, o relato que foi seu pensamento, a recitação do interminável romance de
sua existência terminado precocemente demais.

IV

Digo « romance » para dizer o que para nós subsume ou representa exemplarmente o
relato. A saber, não a narração de aventuras pitorescas e de episódios altos em cores
(não o romanesco),
[arrivée mas oe pensamento
], da sobrevinda que se mantém
do desaparecimento. sob o signo
O pensamento quemaior da chegada
obedece ao que
Philippe assim enuncia: « Aquilo que é preciso pensar é o Acontece que. [Il arrive
que]».55

Ora, este «Acontece», a primeira condição para pensá-lo é compreender que o sujeito
desta frase, o « ele » de « (ele) acontece » é indissociavelmente impessoal e pessoal. Que
« aconteça» isto ou aquilo, que um « isso » aconteça não se produz efetiva e plenamente
– não acontece, portanto – senão quando este « ele » se torna alguém. Não mais então
« (ele) acontece que », mas « ele acontece » curto e grosso. « Acontece que “Ele”
acontece». Todo o pensamento de Philippe terá sido virado em direção a – revirado, e
transtornado por –– essa obsessão de que « Ele » acontece, Ele, ele mesmo,
propriamente, enfim que ele aconteça a si mesmo, que ele se aconteça.

Que alguém
nascimento (na aconteça, é tão pouco
mesma passagem de etexto,
tão pouco determinável
ele fala de « nós quanto
a quemo evento do
foi “dado
nascimento” »). Esse evento, nós o sabemos, é um advento sempre diferido. Nascer
parece pontual, mas começa antes da vinda ao mundo e dura – como Freud o sugere –
até a saída do mundo. Nascer se prossegue em morrer.

Eis por que ele – Philippe – prossegue escrevendo: « Mas de onde isso é pensável se
não a partir da […] ameaça de que o acontece cesse de acontecer56 ? » Ora essa ameaça
está inscrita na natureza e na estrutura do acontecer. Para que isso aconteça [arrive], é
preciso que parta 57 . É preciso que tenha primeiro partido – ausente, não dado,
distanciado, até mesmo desviado, inexistente – para que isso venha ou volte
[revienne]58. Vir e voltar [revenir] são aqui o mesmo, pois vir volta sempre de uma
mesma anterioridade vazia, vir volta de lugar nenhum, e para lá retorna. (Vir, gozar, é
claro.)

55
Philippe Lacoue-Labarthe . La Poésie comme expérience [A Poesia como experiência ]. Paris :
Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 1986, p. 126. [Os itálicos são de Philippe Lacoue-Labar the.
(N.E.F.)] Nancy joga aqui aproximando os dois sentidos de “ arriver ”, acontecer (“ il arrive que”, acontece
que) e chegar (“ J’arrive” , estou chegando; “ arrivée” , chegada), em português. (N.T.)
56
Ibid. [É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
57
Nancy joga com o duplo sentido de « arriver ”, acontecer e chegar (N.T.)
58
Nancy joga com os verbos da mesma família etimológica, “ venir ”, vir, e “ revenir ”, voltar. (N.T.)
Eis aí muito exatamente o que a filosofia ignora, recusa ou conjura. Hegel recusa que
a filosofia tenha um começo no sentido das outras ciências, quer dizer, na
« pressuposição de um objeto particular59 ». O saber absoluto não é um saber total,
integral e terminal: ele é o saber para o qual nada é pressuposto como um objeto, mas
que retoma em si todo objeto e dissolve sua objetividade, quer dizer, sua exterioridade.
Saber sujeito de si, retorno em si, no « conceito de seu conceito » e, por conseguinte,
reabsorção de todo acontecer e de todo vir (Hegel fala aqui de « satisfação », ou seja, do
que contradiz profundamente o gozo. Gozar ultrapassa a oposição da satisfação e da
falta. O que também pertence ao relato).

Se pode haver uma questão de começo, em filosofia, será somente, escreve Hegel,
para considerá-lo como uma « relação com o sujeito enquanto ele quer se decidir a
filosofar, mas não com a ciência como tal ». O começo é exterior ao saber, é empírico e
contingente. Está em um Era uma vez um sujeito – por exemplo, Georg Wilhelm
Friedrich Hegel – que quis filosofar . No fim, me dirão, esse sujeito deverá justamente
ser reabsorvido no saber de si do saber. É verdade, mas essa verdade ela mesma se
rechaça ao infinito para fora de toda apresentação que não seja estritamente o retorno em
si do conceito de seu próprio conceito. O próprio Hegel o sabe: isto, este retorno
absoluto, não acontece propriamente falando. Ele é, ao contrário, o que, não
acontecendo, abre a possibilidade de todo acontecer [arriver]60.
Ele é, este retorno em si, o nada, o insignificante, o inconsistente de uma
anterioridade e de uma posterioridade a todo vir, vir-e-partir. Em Hegel, isso se chama o
« ser » enquanto « cópula vazia ». O vazio de ser – ou então o ser vazio, ou seja, a
própria filosofia [la philosophie même] – forma para Lacoue-Labarthe ao mesmo tempo
o que o relato recusa e o que ele refuta.

Ele o recusa, pois recusa se instalar na pretensão de se apropriar, de reunir o vazio à


sua satisfação – seja porque ele julga impossível essa realização [ accomplissement]
dialética, seja porque teme a sua verdade demasiado insustentável. Os dois juntos, como
de justiça. A recusa é também um terror.

Mas ele o refuta, pois, abrindo o relato, tentando dizer que acontece, esforçando-se
em chegar a dizer que acontece, e a dizer que acontece que [ele] acontece, ele engaja
efetivamente, praticamente e com uma tenacidade exemplar – a tenacidade do próprio
recitante – a resistência à nadificação mútua do vazio e da satisfação.

É no fundo o que ele, Lacoue-Labarthe, chama de mímesis sem modelo ou mímesis


srcinária . O « ele » do relato, « ele » ou « eu », pouco importa, compreende-se, ou
59
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Encyclopédie des sciences philosophiques III, § 17. Tr. fr. Bernard
Bourgeois. Paris: Vrin, 1990, p. 183.
60
Ao mesmo tempo, nem por isso a filosofia deixa de supor o seu próprio relato: ela também já
começou antes de começar. Ou bem houve formas prévias, imperfeitas, de logos , ou bem o mythos deve
ser considerado, ao mesmo tempo, como saber ilusório e como saber tosco,à espera do surgimento
« lógico ». De um modo ou de outro, houve antecedência, seja da filosof ia sobre ela mesma, seja de um(a)
outro(a) além dela… Mais amplamente, nenhum texto filosófico é de fato isento de relato. Podemos
mostrá-lo sem problema. É, portanto, ao mesmo tempo inexato e, no entanto, esclarecedor simplificar
como o faço aqui, reduzindo os textos dos filósofos a suas intenções.
ainda « nós » ou então ninguém, a voz anônima, é aquele que, « decidindo-se a contar »,
se põe a imitar um narrador absoluto que jamais teve lugar, pois o absoluto é
inenarrável.

Nessas condições, não somente o fecho sobre si do conceito (ou o conceito do


conceito) onde se anula a diferença entre vazio e plenitude, se mostra como um
estrangulamento de si – e do si, de todo « ele » ou « alguém » capaz de acontecer
[arriver] –, mas mesmo o caminho caro a Hegel e a toda a filosofia se encontra anulado.
O caminho que importa ao resultado desaparece nele, ou até mesmo como ele.

O relato consiste primeiro em se afastar da metáfora do caminho e de todo conceito


de meio, que ele seja ordenado a um fim ou então ele mesmo mediatizado em fim. O
relato não é caminho. Ele é a facilitação [ frayage], o que é totalmente diferente: na
facilitação [frayage], o caminho não é nem dado nem aberto.

A facilitação [frayage] abre à possibilidade para o recitante de se identificar com


a produção e com o acabamento do próprio relato. Sem essa identificação, o recitante
permanecerá perdido aquém e além dos limites do relato. É, bem entendido, o que
acontece com todo relato. Nunca um recitante termina por se fundir em seu relato, assim
como ele não consegue fazê-lo reabsorvê-lo em si mesmo. O passado do relato ordinário
não é senão um efeito segundo do ser-já-passado, quer dizer, jamais ainda vindo, do
recitante.

O relato terá começado antes de seu recitante, o qual, no entanto, deve tê-lo
precedido: tal é a lição da literatura – uma lição que a filosofia recusa por princípio, ela
própria repousando sobre a decisão de ser contemporânea de seu começo. O relato, ao
contrário, dissocia a srcem e o começo. Quando começa, ele já tem sua srcem atrás de
si. Qualquer início de relato pode nos dizer isso. Quando lemos « Por muito tempo, me
deitei cedo… »61, aprendemos antes de qualquer outra informação que esse muito tempo
precedeu, longamente, por uma duração irredutível e que se perde atrás dessa primeira
palavra. E essa extensão de tempo afeta de chofre o « eu » que quer se falar, que se
escreve aqui. Ela o distende – aqui visivelmente, legivelmente, mas cada incipit o
distende do mesmo modo: « era uma vez » dissocia o recitante dessa « vez » insituável
que, no entanto, ele atesta estar em medida de situar.

61
A primeira frase de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. (N.T.)
Nos termos de Lacoue-Labarthe, poderíamos dizer que essa distensão – a própria
dissociação do recitante em sua recitação – é o fato da falha [ défaillance] em se
identificar, em se tornar si mesmo62.

A dissociação mesma representa aquilo a partir do qual não seria possível haver
« mesmidade”: ela figura aqui a diferença (ou a différance)63 a partir da qual o sujeito se
institui, ou antes, se inicializa ou se inicia, ou melhor ainda, facilita para si [ se fraie]
uma via em direção ao que não pode senão se esquivar dele, não sendo dado senão como
já recuado, num longo tempo ou em uma vez que nenhum relato virá jamais recuperar.

O relato põe em movimento o que está tão recuado que nada saberia alcançá-lo para
abalá-lo ou animá-lo: a antecedência absoluta do sujeito da fala [ parole]. Mas « o sujeito
da fala» não é independente dela: ele é « ela mesma », e ele a forma, esta fala, ele a
torna falante, ao preço de vir expirar nela – literalmente e em todos os sentidos. Cito
Lacoue-Labarthe que escreve e descreve

um trajeto preciso que eu identificaria tranquilamente, valha o que valha, com a


passagem, entre nuca e laringe, do pensamento à enunciação; nesse momento
inapreensível e verossimilmente inexistente, subtraído ao tempo, em que, do lado da
parte posterior da faringe [arrière-gorge ], o pensamento, portanto (qual outra palavra
utilizar?), toma como que uma espécie de intangível consistência – direi
aproximativamente : toma fôlego – e vem se confundir com a expiração em que me
parece que ele não se perde, mas se altera simplesmente e, alterando-se, articula-se ou
modula-se em um vago canto átono […] 64.

O – isso ou este – que expira não na fala, mas em fala – isso ou este/esta que é aqui
nomeado (a) « pensamento », na falta de melhor termo, ou seja, na falta de uma palavra
para o que, aquém das palavras, remonta à antecedência absoluta, à separação srcinal,
sempre mais recuada do que qualquer designação, de um « um », de um « qualquer um »
sujeito falante, de alguma fala-sujeito. Bem longe de dever ser pensada como separação
para com uma mais ampla unidade, ou então para com uma unitotalidade (representada
como maternal, oceânica, cósmica, como se quiser), segundo o esquema conhecido
(« castração », « perda »…), essa separação deve ser compreendida como a separação do
« um » em si mesmo e para consigo mesmo. Esse « um » que sempre-já foi aquilo que é,
mas que não o torna senão expirando – morte e fala juntas, fala e sopro indo se perder
para se encontrar, formados em traço de união entre o imemorial e o inadveniente.

62
Cf. Philippe Lacoue-Labarthe. Musica ficta. Figures de Wagner . Paris : Christian Bourgois éditeur,
col. « Détroits », 1991, p. 160, onde essa falha é imputada à arte que se quereria a « ela mesma »: a
ausência do sujeito se mostra assim formar a mola íntima da arte (como da religião, segundo a passagem
em questão – mas aí é uma outra questão, se a arte é ela mesma « cesura da religião », como o afirma a
conclusão do mesmo livro). [É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
63
Referência à noção formulada por Jacques Derrida, num ensaio célebre de mesmo titulo. Ver supra p.
XX (N.T.)
64
Philippe Lacoue-Labarthe,, Phrase . Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 2000, p. 45.
[É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
VI

A recitação é o regime desse traço de união, desse traço estirado do antes ao depois e
do dentro ou do em-si ao fora ou ao para-si, que são os dois polos da infinita torção pela
qual « um » se busca e, sem nunca se achar, todavia se estende e se estira, se traça e se
retira, se inspira e se expira.

A recitação recita essa ins-ex-piração, a subida e a caída, a batida, o batimento desse


sopro. Citare é pôr em movimento, fazer vir a si (o verbo latino é parente do grego
kinein: há cinema em todo relato). Ex-citare é despertar, sus-citare, fazer se levantar (e
re-sus-citare não está longe), in-citare, lançar adiante. Todas essas moções e emoções se
jogam na recitação: ela excita, suscita e incita um « dizer », que não é qualquer um, mas
o dizer que diz uma chegada e uma partida, que diz a tensão do fato de que alguma coisa
acontece [arrive] e que essa alguma coisa, necessariamente, seja algu-ém [quelqu’”un”]
ou se torne ou chame alguém65. Que este alguém seja visado como « autor » ou como
« heroi », que ele seja tomado a uma história « pessoal » ou imaginária, importa pouco,
ou só importa, na medida em que leva em conta a extraordinária riqueza de
possibilidades recitantes, a multiplicidade indefinida dos contornos de narração: essa
profusão responde à ausência de um Relato único – e essa ausência está inscrita no fato
do próprio relato, em sua presença universal entre os falantes. Pois o relato faz acontecer
isto: que nada acontece sem relato.

A recitação, com efeito, não se contenta em « dizer » no sentido de pronunciar,


exprimir, contar eventos que tiveram lugar. Ela os faz advir, ela os faz evir66. Nada se
passou senão o encadeamento dos fatos pelo tempo (mas esse tempo não é nunca muito
longo) em que esses fatos não são apreendidos, carregados, impelidos em direção à sua
manifestação. Essa impulsão é obra da fala. Ela não é uma ferramenta, ela é ela mesma –
em sua fonação assim como em seus fraseados, suas sintaxes, suas prosódias – a
impulsão ou a pulsão do « sentido ». O sentido não é acrescentado nem suposto aos
fatos, ele é o seu acontecer, é o seu vir. Ele é em suma o fato do fato, a impulsão e a
pulsação que o põem no mundo e que fazem assim um « mundo », quer dizer, um espaço
de circulação de sentido.

O mundo é um mundo de relatos, de recitações de relatos. A começar por todos esses


relatos do mundo que todas as culturas sempre recitaram e das quais a nossa própria
« literatura » é em suma, por sua vez, o relato: ela se esforça em contar onde e como
estamos,
como nosnão somente com
reportamos esse fato
aos nossos do mundo
próprios e dedonosso
relatos estar-no-mundo,
mundo, mas oe modo
à sua antiguidade à sua
perda, ao que nos parece por isso serem ilusões ingênuas ou promessas frustradas. Como
interrompemos os mitos e quais vozes se pressionam para falar através dessa
interrupção. O mito – um mundo se recitando ele mesmo, uma tautegoria como dizia
65
“Quelqu’un ”, “alguém”, que Nancy escreve “ quelqu’”un ”” (literalmente “algu-ém”) para sublinhar a
partícula “ um” (N.T.)
66
Mot-valise construído com as palavras “ évènement ”, evento, acontecimento e “ advenir ”, advir, gerando
um neologismo, uma forma verbal de “évènement”, diferent e de “ arriver ” (acontecer). (N.T.)
Schelling – se interrompeu diante da injunção do logos: a verdade apareceu como o
objeto de uma alegoria, maneira de dizer um objeto outro, inapresentável, somente
representável.67
Mas, na verdade, todo relato torna-se de novo mythos: não porque ele fabrique
figuras mais ou menos potentes, sedutoras e críveis, mas porque ele abre a fala a ela
mesma, à sua própria pulsão e pulsação. A palavra, a voz, o relato sensível do sentido.

VII

Eis por que o relato vem após. Vem após nada e após tudo: após sentido algum que o
teria precedido, e após tudo, pois tudo se depõe sempre fora-de-sentido, em blocos
erráticos. O relato volta. Recitare é recomeçar o chamado dos nomes no tribunal. Os
nomes que o recitante chama a comparecer são seus próprios nomes – seus nomes
próprios jamais inteiramente apropriados, em sua não-significância, a essa propriedade
insigne, inominável, que forma a verdade do que acontece [ arrive], a verdade de sua
chegada [arrivée], a verdade da história contada, recitada, verdade chamada, invocada,
evocada, inverificável, ela mesma errática e espalhada por toda parte no relato, tecendo
o próprio relato sem nele se mostrar senão pela arte do recitante. O que se chama de « a
arte », aqui como alhures, é um saber das verdades inverificáveis e modeladas,
figuradas, desfiguradas e transfiguradas ao ritmo e à velocidade de uma narração. (« [A
figura não é jamais uma […] não há unidade ou estabilidade do figural, nenhuma fixidez
ou propriedade da imago. Nenhuma “imagem própria” onde se identificar em totalidade,
nenhuma essência do imaginário68. »)

Pois a narração é saber (gnarus, co-gnosco, i-gnoro): ela é saber que reporta, que
relata aquilo que teve lugar, que isso teve lugar e como ele teve lugar, como, portanto, a
ordem e a sucessão das coisas foram encontradas e se encontram modificadas,
moduladas, alteradas. Não é um saber das coisas aprendidas ( mathèmata), é o saber das
coisas tais como elas se prendem e se desprendem segundo a sua proveniência e a sua
destinação incalculáveis.

O relato ou a narração supõe o curso das coisas, e que ele tenha sempre-já começado.
Lá onde a filosofia quer supor – e se impor – o próprio começo, o ponto da srcem e do
fim, o relato sabe que esses pontos estão no infinito e segundo o infinito se alcançam e
se anulam
própria juntos, anuma
dimensão: idêntica
distensão ausência de
do sempre-já dimensão.
e do Com ao suspensão
nunca-ainda, relato, desposa-se a
do evento.

67
“Tautegoria”, termo que Schelling encontra em Coleridge, num artigo sobre o Prometeu de Ésquilo. A
mitologia é para Schelling tautegórica e não alegórica, ou seja, deve sere entendida segundo os termos que
ela exprime e, em sentido próprio, não por outros termos, em sentido figurado. (F. W.J. Schelling,
Philosophie de la mythologie. Trad. Alain Pernet. Grenoble: Éditions Jerome Millon, 1994, p. 91.) (N.T.)
68
Philippe Lacoue-Labart he. « L’écho du sujet ». In : Le Sujet de la philosophie. Typographie I. Paris :
Flammarion, col. « La philosophie en effet », 1979, p. 261. [É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha.
(N.E.F.]
« Mas como estabelecer o momento exato em que uma história começa? Tudo já
começou desde sempre […]69 », escreve Italo Calvino.

Tomando um relato de Faulkner que Philippe amava, Enquanto agonizo, leio a


primeira frase: « Jewel e eu voltamos do campo70. » Tudo já está dado, tudo já foi dado,
começado e continuado até o momento em que leio. Jewel e eu são conhecidos, assim
como o campo e como esse momento do retorno, numa hora indeterminada. Bem longe
da ironia de Valéry sobre as saídas da Condessa ou da Marquesa 71, essa frase traz
consigo um ritmo, um passo, uma proximidade já marcada pelo traço sonoro de um
nome – uma jóia? – e desse outro traço que é a primeira pessoa de um falante. Ele está
ali, ele nos fala. Partimos com ele, em seu passo. Já partimos.

Aproximadamente duzentas páginas adiante, o relato se encerra com essa frase: « “Eu
lhe apresento a sra. Bundren”, que ele diz assim72. » A conclusão, antes cômica ou
cínica – a substituição da esposa morta – que verdadeiramente acaba a história, se junta
à ressonância ela mesma irônica, mas também vaga, indeterminada do « assim » dessa
fala, que abre de fato uma outra história possível.

Por mais implacável que seja o fim do relato, ele ressoa além dele. Ele abre seu
desobramento [désœuvrement] no sentido de Blanchot. Assim como o fim de Sob o
vulcão,73 com o qual Philippe tinha uma ligação por laços literários tanto quanto por
identificação.

O Cônsul cai no vale do vulcão e « seu grito foi lançado de uma árvore a outra, no
retorno de seus ecos; depois, foi como se as próprias árvores se aproximassem, se
apertassem, se fechassem acima dele, plenas de piedade... ». A essa ressonância do
último grito sucede, na linha seguinte, esta frase: « Depois dele, alguém jogou um cão
morto [crevé] no vale74. » Esta coda, que podemos dizer muito expressamente musical,
retoma e amplifica, com uma precisão estranha, para o relato inteiro a tonalidade do
grito. No trecho, e para permanecer no francês, o « morto » relança o « grito » ao mesmo
tempo que o abafa.75 Uma sonoridade tanto extinta quanto interminável mantém aberta a
voz, o tom e o canto do relato.

69
Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante. Capítulo VII. (N.T.)
70
W. Faulkner. Tandis que j’agonise [Enquanto agonizo ]. Tr. fr. Maurice Edgar Coindreau revista por
Michel Gresset. In : Œuvres romanesques I , Michel Gresset (ed.). Paris : Gallimard, col. « Bibliothèque
de la Pléiade », 1977, p. 899.
71
Nancy se refere à tirada atribuída a Valèry, segundo o qual todo o romance poderia ser reduzido e
deduzido inteiro do incipit : “A marquesa saiu à cinco horas”. (N.T.)
72
Ibid., p. 1072.
73
Under the Volcano , de Malcom Lowry (N.E.)
74
A tradução é de Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)
75
A última frase do romance de Lowry é: “Somebody threw a dead dog after him down the ravine”
(Alguém lançou um cão morto depois dele no vale). (Malcolm Lowry. Under the Volcano . Londres:
Penguin Modern Classics, (1963) 1977, p. 376.) Em francês, na tradução de Nancy: “Après lui, quelqu’un
balança un chien crevé dans le ravin (N.E.)
Que isso já começou e que isso continue para além de todo « fim » narrativo, é o que
a música dá à luz. O traço comum da música e do relato se liga a uma precedência e a
uma subsequência sempre abertas. O que ouço quando a música « começa », já
começou. O que deixa de se fazer ouvir quando a música se extingue, ressoa ainda. « No
canto – escreve Lacoue-Labarthe – exige-se da voz algo diferente do que ela faz
espontaneamente, exige-se talvez que ela reencontre um pouco da música de antes (do
nascimento) […]76 ».

A música não mobiliza somente a ressonância atual dos sons que ela amplifica,
intensifica, trabalha e modula. Ela mobiliza sua ressonância anterior e posterior, o
inacabamento e o incomeço que pertencem por essência à ressonância. A repetição –
retomada, retorno, tema e variação, melodia obcecante, da capo, etc. – que assombra a
música, que a pontua e a escande, governa o re- do relato, a iteração que retoma e
relança o que jamais teve lugar e que não terá lugar –, mas que define o momento
musical: a passagem do tempo para fora do tempo, a composição dos presentes passados
e por vir num presente que não é o da presença dada, mas o do lembrete e da espera, o
presente composto de uma tensão em direção ao retorno infinito de uma presença nunca
dada, sempre essencialmente – eternamente – escapada.

Um mestre de canto dizia a seu aluno: « Você não deve de modo algum fazer sentir
que começa. Isso já começou a cantar».

Essa distensão do presente, essa dilatação da presença além dela mesma e até uma
ausência plena de seu próprio batimento, preenchida pelo chamado repetido do ausente
tomado por seu « desejo de se atingir77 », é justamente o que faz o fundo verdadeiro e o
que está em jogo no relato.

A música é um relato. Não uma história. Não aquilo que se tenta inventar para
transformar uma música em relato, como quando se diz que a clarineta dialoga com a
orquestra ou que o movimento vivo vem substituir e arrastar em sua fuga o que o
movimento lento tinha deposto e como que abandonado – ou então o inverso, pois quase
tudo pode ser dito quando nos engajamos nesse registro. No entanto, podemos e
devemos nos engajar nisso, contanto que não imaginemos aventuras nem peripécias
entre personagens, paisagens e imagens. Precisamente, o sem-imagem é aqui
determinante (o sem-imagem ou a desestabilização íntima da imagem, tal como ela foi
evocada): ele está aí, se se pode dizer, para dar lugar ao elemento que denomino aqui de
« relato »: quer dizer, o vir-e-partir ou então o recitar-se e citar-se, chamar-se e ouvir-
se, mas perder-se tanto quanto encontrar-se nesse eco de si.

O Eco do sujeito [L’Écho du sujet], título de Lacoue-Labarthe… Título, poderíamos


dizer, de toda sua obra e título de sua vida, de seu relato. Num eco, eu me encontro e me
perco. Ressoo no espaço que deve ser aberto para permitir a ressonância. No lugar da

76
Ph. Lacoue-Labarthe. Le Chant des Muses [O canto das musas]. Paris : Bayard, col. « Les petites
conférences », 2005, p. 29-30. [É Lacoue-Labarthe quem sublinha). (N.E.F.)]
77
Ph. Lacoue-Labarthe . « L’écho du sujet ». In : Le Sujet de la philosophie, op. cit., p. 226.
reunião em saber absoluto do vazio e da satisfação, está o retinir num escancaramento
[béance] de uma chegada que irá embora. Esse escancaramento é o que abre o sujeito e
que se abre a ele para que nele ele se chame, se cite e recite.

VIII

A recitação musical não é, para Lacoue-Labarthe, ou não é essencialmente, nem


primitivamente, a da melodia. A linha melódica pode se fechar sobre uma figuração
subjetiva (um lirismo, uma expressividade, uma efusão tais como eles têm sido
compreendidos desde o romantismo)78. O batimento rítmico toca na estrutura do Sujeito
enquanto tal79, quer dizer, na diferença e différance entre si e si mesmo, no « Um
diferindo dele/nele mesmo » de Heráclito.
O batimento dessa diferença/différance não sobrevém a um Sujeito dado: ele lhe abre
a possibilidade, a chance e o risco. Ele nasce na pulsação arcaica em torno da qual –
respiração, coração, escuta, dentro/fora – se cristaliza srcinariamente o enigma de
« alguém/alguma».

O ritmo engaja o tempo de uma relação consigo abrindo-o, em seu meio, ao


suspensão da batida, à cesura ou à síncope que liga e desliga os tempos nesse tempo. A
música por excelência já começou e prosseguirá mais longe no silêncio. Sem dúvida não
há silêncio sem ritmo80. Não há silêncio. Não precisamos pensar nas introduções em
pianissimo : quando
suas referências) fazoirrupção
primeironocompasso da Grande
silêncio, cortante ou Fuga de Beethoven
dilacerante, exigente,(mais uma deo
imperioso,
único ataque do som e o impulso de seu movimento revelam uma anterioridade que se
poderia dizer tonal e rítmica (a melodia não viria senão depois).81 Já ouvíamos algo do
que era inaudível. Já um impulso, uma pulsão e uma pulsação por trás do som dos
instrumentos, em uma arqui-sonoridade que é de alguma maneira a sonoridade em si [ la
sonorité même]: a abertura da possibilidade do eco. (Pode-se dizer disso o mesmo, para
acrescentar uma de suas referências, de um certo ataque de saxofone de Albert Ayler em
Love Cry.)

78
A propósito de romantismo musical, conviria abrir aqui um exame do lied – forma amada por Philippe
como por todo um gosto contemporâneo cujos móveis profundos se atêm certamente a isto: o lied, na
maioria das vezes um pequeno relato, se ensaia num equilíbrio delicado entre melodia e ritmo, ou ainda,
para antecipar sobre aquilo que virá mais longe, entre ária e recitativo . Ele permite a efusão cantante tanto
quanto a pulsação falante, bordejando uma pela outra. Quando é bem sucedido, isso se ouve.
79
Do Sujeito maiúsculo distinguido do sujeito minúsculo, como ele escreve na página 149 de Musica
ficta. [A citação (« “ l’Un différant en lui-même” ») é modificada por Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)] Trata-se
do fragmento 51 de Heráclito: “Eles não compreendem como o que se opõe a si mesmo concorda consigo
mesmo: ajuste por açõe s de sentido contrári o, como o arco e a lira”. Em grego: “ hen diapheron heauto ”,
que Hölderlin compact ou como: “O um se diferenciando de si mesmo” . (Diels, fragmento 51; Fragments .
Trad. M. Conche. Paris: PUF, s/d, p. 425; Hölderlin. Œuvres . Philippe Jaccottet (dir.). Paris: Gallimard,
col. « Bibliothèque de la Pléiade », 1973, p. 145.) (N.T.)
80
Não é tampouco com certeza fácil separar sem resto o ritmo da melodia. M as essa é uma outra
questão.
81
A Grande Fuga em si bemol maior de Beethoven é o quarteto de cordas opus 133, srcinalmente
quarto movimento do quarteto, opus 130, e depois editado separdamente. É uma das últimas obras de
Beethoven. (N.E.)
Antes da música e antes da fala, como seu obscuro impulso comum, há o que se
nomeará o recitativo. Não no sentido estritamente musicológico do termo (que, aliás,
tem variado e que atravessa hoje tão amplos territórios musicais 82), mas no sentido com
que ele designa ao mesmo tempo o que, da fala, precede o canto, vai em direção a ele
sem se destacar na forma de uma « ária », e o que, da música, entra na fala para dela
espaçar o tempo e erguê-la de uma cadência alheia a seu sentido. Nem declamação – que
se regula por um pathos – nem canto – conduzido por um melos –, o recitativo forma um
ethos: uma postura, uma conduta da linguagem. Essa conduta que de chofre lhe
reconhece
longe do queumsua
« antes » e um «linguística
constituição depois », que
e suasabe que ele
emissão vem deOmais
fonética. longe edesperta
recitativo vai maise
mantém na língua a voz que a profere enquanto ele chama e retém na música o sentido
que ela é a única a fazer vibrar.

Recita-se dessa maneira uma história cuja intriga ou aventura toda não se ata sem
desatar de momento em momento a sua progressão numa cadência, nem sem arrastar sua
significação numa pulsação que repõe em jogo, incessantemente, o nascimento da fala: o
abalo desse eco pelo qual um sujeito se sabe e se sente – é aqui uma mesma coisa –
precedido e seguido por ele mesmo numa alteridade infinita, eterna. Perdido, por
conseguinte, mais longe do que todo relato, mas recitante dessa perda a que ele dá o
nome de a perda de

[…] sua própria

voz, que não


maneira nosmover
de nos pertence maisque
ou do donosso
que nossa
olhar 83.

Então

Não se descobre o que se esperava ver, mas uma extensão sem sombras, sem
nada que a divida (como o mar quando nenhum sopro o ergue e quando repousa
não cintilante, mas imóvel fulgurante – a não vê-lo), num rumor quase
dilacerante…84

82
É preciso analisar como o destino contemporâneo da música, desde Wagner e Debussy passando por
Schönberg, Berio ou pelo blues, Miles Davis, alguns aspectos das músicas pop e rock e até as músicas
eletrônicas e o rap, algo de recitativo penetrou lá onde só se conhecia apenas a « ária », e talvez
justamente demasiado a « bela ária » [“bel air’] . Bem longe de estar a serviço da ação para melhor dar
seu lugar às árias, como foi o caso na ópera clássica, o recitativo reencontra, sem dúvida, contra a ária
ornamental, um va lor menos ligado à lingu agem que à pulsação de fal a, à salmodia, à me lopeia, à
antífona – quer dizer, também ao responso e assim, através de uma outra forma do eco, ao passado
religioso do recitativo. Sem dúvida o relato tem sempre parte ligada, senão com a religião, pelo menos
com uma sacralidade que é a da alteridade que nos precede e nos sucede. « Cesura da religião », dizia
Lacoue-Labarthe.
83
Philippe Lacoue-Labarthe. Phrase , op. cit., p. 130.
84
Id., L’« Allégorie » , op. cit., p. 17 (« Réc itatif »). [Os itálicos são de Philippe Lacoue-Labarthe.]
(N.E.F.]
Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla e João
Camillo Penna
5. ...DEVERIA SER UM ROMANCE...

A literatura não é linguagem escrita: ela não o é, pelo menos, ao menos se a escrita não
for uma simples consignação gráfica da fala.

A escrita
linguagem não é épossível
anterior senão
à falaem
e talvez mesmo à implícita,
uma referência linguagem.mas Com efeito, umaà
constitutiva,
impossibilidade de passar acima dela para fundá-la em outra linguagem que a ela daria
seu sentido. Uma linguagem se funda apenas em si mesma, no reenvio circular a seu
próprio código. Sem metalinguagem é a fórmula dessa lei da linguagem.
Uma metalinguagem não seria uma linguagem: seria a manifestação pura da
coisa e, com ela, de seu sentido. Em verdade, não seria nem mesmo uma questão de
“sentido”. Haveria a coisa e no máximo um indicador apontado para mostrá-la ou algum
dispositivo de apresentação, o que nem mesmo é seguro, pois mal se discerne porque se
deveria mostrar o que se mostra em si mesmo (axioma que define a verdade para
Spinoza e no fundo para todos). É necessário mostrar somente quando se está no
elemento do sentido: isso remete àquilo, vai em direção àquilo, se funda sobre, se perde
em, etc. O sentido mostra, ele indica um horizonte, uma destinação. A verdade se
mostra: ela própria é o horizonte ou a destinação, a menos que ela se situe precisamente
para além de todo horizonte e de toda destinação (além ou bem aquém, no mais perto de
nós).
A “escrita” tornou-se recentemente o nome em que se contrai esta fórmula: “não
existe metalinguagem”85. Isso significa que a escrita tornou-se o nome do que precede o
sentido, ou daquilo que o sucede, ao invés de ser o nome de uma forma de consignar o
sentido. Isso significa ao mesmo tempo que ela é também, necessariamente, o nome da
verdade. Não a verdade enquanto correspondência correta com um objeto dado, mas a
verdade como o que se manifesta em si. A escrita designa o romance da verdade, o
romance verdadeiro, o verdadeiro poema.
Para isso foi necessário que a operação de consignação – ou de correspondência
– se encontrasse ela mesma deslocada ou transformada. De fato, o modelo de uma
consignação se decompôs gradualmente em favor do que se poderia chamar a invenção
de uma inscrição, o sulcamento, o engrama de um rastro. A expressão da realidade em
uma forma linguageira deu lugar à produção de uma ficção na qual o real sulca um
sentido.
Obviamente, trata-se aqui de representações: nós nos representamos que se
acreditava outrora em uma linguagem tradutora do real, representamo-nos hoje o real

85
Jean-Luc Nancy escreve entre aspas a frase “Il n’est point de métalangage”. A solução tradutória
encontrada levou em conta certa historicidade. Ao mesmo tempo em que Nancy participa da tradição
lacaniana (do “il n’y a pas de métalangage”), ele joga com a sentença, quase consolidada por Lacan,
preferindo a forma arcaizante da língua francesa. A expressão negativa formada por point constitui um
recurso estilíst ico, além de uma negação mais insistente no estar das coisas. Certamente ainda poderíamos
propor a solução, mais analítica, por “não existe nada que seja a metalinguagem”. (N. T.)
como o abismo da nossa criação86. Cada uma dessas representações é um andaime
erguido por uma precipitação ideológica. Quem quer que escreva – desde o contador de
histórias da tribo (pois essa oralidade, retomaremos isso adiante, é “escrita” no sentido
que se examina aqui) até o escritor de narrativas e poemas – pouco se importa com tais
representações. Ele pode utilizá-las quando interrogado sobre sua atividade, mas elas
não orientam seu gesto de escrita.
No entanto, estamos aqui na situação do interrogado. Perguntam-nos como
pensar a literatura. Talvez devêssemos desmontar a questão. Talvez devêssemos antes...
escrever?
Friedrich Schlegel, o próprio, escrevera esta frase: “A teoria do romance deveria
ser ela mesma um romance.”87 Em outras palavras, Schlegel colocava que há uma
metalinguagem literária e que ela é ela mesma literatura, portanto imediatamente
desprovida de qualquer pretensão de fazer metalinguagem ou metaliteratura.
O emprego recente da palavra “escrita” – deslocado do sentido de “grafia” ao de
“estilo” e, em seguida, ao de engendramento textual – significa somente que buscamos
delinear como a literatura se engaja antes de qualquer literatura e mesmo antes de
qualquer linguagem: ela se engaja em um gesto que abre um rastro.
Um rastro ordinário sucede a uma passagem. O rastro do qual se trata precede e
sulca a passagem. É a sua proveniência, sua vinda. É uma trilha aberta: mas abrir uma
trilha supõe simultaneamente uma antecipação, a escolha de uma direção, e a
precariedade do rastro cuja natureza é penosamente traçada rumo ao seu apagamento.
Ele também, o apagamento, de alguma forma, faz parte da antecipação de uma
destinação: o destino de um esvanecimento aí inscrito com a tensão de uma aparição e
de um passo à frente.
Para designar essa contradição interna Derrida falava do arqui-rastro (e da
arqui-escrita). O arqui não é aqui nem o mais antigo, nem o supremo: nem arqueologia,
nem arquitetura. Não é primitivo, não é primeiro. Ele é imemorial – dessa vez é a
palavra de Blanchot. O imemorial não reside em uma memória anterior a toda memória,
mas em uma ausência de memória. Trata-se daquilo que precedeu, mas em que nada se
liga ao presente enquanto passado. É um passado tão absolutamente passado que não é
nem mesmo passado ou nem passou: não atravessou um presente para se dispor como
presente passado. Ele nunca se apresentou.

86
A expressão francesa “nous nous représentons que” assume aqui uma importância significativa e, por
isso, foi mantida em português, mesmo sendo não usual. O jogo entre representação e o dar-se conta seria
perdido sem a manutenção desse arcaísmo na tradução. (N.T.)
87
Ele escreve em sua Carta sobre o romance que conviria criar “uma teoria do romance que seria teoria
no sentido srcinal do termo: uma intuição espiritual do objeto em um estado de espírito inteiramente
sossegado, sereno, assim como convém para a celebração alegre quando se contempla o jogo significativo
de imagens divinas. Tal teoria do romance deveria ser ela mesma um romance que reconstituiria
visionariamente cada uma das tonalidades eternas da imaginação visionária e que se dispersaria
novamente no caos da cavalaria”. ( eine Theorie des Romans, die im ursprünglichen Sinne des Wortes eine
Theorie wäre: eine geistige Anschauung des Gegenstandes mit ruhigem, heitern ganzen Gemüt, wie es
sich ziemt, das bedeutende Spiel göttlicher Bilder in festlicher Freude zu schauen. Eine solche Theorie des
Romans würde selbst ein Roman sein müssen, der jeden ewigen Ton der Fantasie fantastisch wiedergäbe,
und das Chaos der Ritterwelt noch einmal verwirrte.) Texto alemão:
http://www.zeno.org/Literatur/M/Schlegel,+Friedrich/%
C3%84sthetische+und+politische+Schriften/Gespr%C3%A4ch+%C3%BC ber+die+Poesie. Texto francês
em Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy. L’Absolu littéraire : Paris, Seuil, 1978, p. 328 (tradução
modificada pelo autor).
Esse terá precedido: eis o que se diz frequentemente. O que se chama um “futuro
anterior”. Mas o futuro anterior se encontra de alguma forma desdobrado neste caso:
não somente isso terá tido lugar88, mas o que terá tido lugar não é designado senão
como o fato de preceder. Neste desdobramento figuram duas atestações: por um lado,
nada teve lugar senão um “ter lugar” indeterminado (é um dos sentidos possíveis do
“nada terá tido lugar senão o lugar” de Mallarmé); por outro lado, os diversos valores
do futuro anterior jogam juntos: o valor da conjectura (não é absolutamente certo que
isso tenha tido lugar), o valor de ênfase (é necessário que tenha tido lugar um
acontecimento grandioso); o valor da antecipação (que supõe um contexto tal como:
“um dia se revelará que isso terá tido lugar”).
A conjunção destes três valores compõe o sentido que temos dado hoje à “escrita”.
Se “escrever” não consiste em transcrever dados prévios – acontecimentos, situações,
objetos, suas significações – mas em inscrever possibilidades de sentidos não dados, não
disponíveis, abertos pela escrita em si, então deve-se considerar:
! em primeiro lugar, que nenhum dado precedeu, senão a abertura em si, que não é um
dado, mas o dom em si – pois não se deve entendê-la como a abertura de um túnel,
sólido e fixo, mas como a de uma boca, móvel à mercê de falas pelas quais se afeta, ou
ainda como a de uma ópera, que se precipita para dar o tom, lançar o movimento, abrir a
barra da cortina do palco;
! depois, que nada é certo ao sujeito quanto ao que pode ter precedido sem, contudo,
nenhuma precedência, nenhuma anterioridade; “Escrever é ler onde não há nada”
escreve Philippe Grand89; mas também é possível que tudo tenha tido lugar, tudo, o
mundo inteiro, e que líamos no grande livro de deus ou da natureza: tudo retorna ao
mesmo, isto é, retorna a lugar algum;
! finalmente, que o que teve lugar antes do que tenha tido lugar seja lá o que for – esse
livro vazio ou essa ausência de livro, essa ausência de eu entre meus dois pais, esta
srcem sem orifício (ou então o inverso) constitui um acontecimento da maior
importância, tão verdadeiramente considerável que é a considerá-lo que a escritura se
consagra.
A escrita se consagra a considerar o acontecimento que não teve lugar ou cujo ter lugar
apenas pode permanecer conjectural, tanto que é recolhido para junto de todo vestígio,
de todo rastro que se poderia encontrar. Este acontecimento de fato não é ele mesmo
senão o prelúdio do rastro, o entalhe da linguagem: o envio do sentido.
Indiferentemente, ou ainda encaixados um no outro, a criação do mundo, a aparição do
homem, o achado da linguagem.
Em essência, este envio precede todo sentido possível. Mas “preceder” remete
aqui a desaparecer na ausência pura de toda anterioridade, no já-passado de toda
passagem. É o que a escrita sabe e o que ela põe em obra.

A literatura
que assinala sabe de
a passagem quenada,
nadaaprecedeu.
passagem Cada escritaaquele
do ausente: abre oque
rastro.
me O mesmo Pode-
precedeu. rastro
se nomeá-lo “o morto”. Não “a morte”, que não é nem uma coisa, nem uma pessoa, mas

88
A sentença “ cela aura eu lieu ”, no srcinal, configura o próprio acontecimento, com o sentido de “isso
aconteceu”. No entanto, e, como será mostrado logo adiante no texto, há um jogo entre a sentença de
Nancy e o verso de Mallarmé, “rien n’aura eu lieu que le lieu ”, traduzido por Haroldo de Campos por
“nada terá tido lugar senão o lugar”. A noção espacial é importante tanto aqui como no poema constelar
de Mallarmé. (N.T.)
89
Philippe Grand. Tas II . Marseille : Eric Pesty Editeur, 2006, p. 126.
ainda o morto, aquele que partiu, que é passado, o passado por excelência. Poder-se-ia
fazê-lo o personagem principal, o herói do romance que seria o romance da literatura:
Passado, o Passado, Sr. Passado90.
Mas esse herói até então não esteve presente em nenhum lugar – nem na
existência, nem nas imaginações dos Antigos: ele é, com efeito, ele mesmo, ele terá sido
o Antigo absolutamente antigo. Blanchot fala do “apavorantemente antigo”: apavorante
porque nós não podemos senão ser tomados de pavor ao considerar a obscuridade vazia
da noite que nos precede. Saímos dessa noite e entramos nela, incessantemente. Passado
– o Morto, ninguém então, mas ninguém ou o não-um, não-um-só, identificado como
91

Ninguém,, nessuno
niemand aquele, nemo
que como Ulisses
(todos para Polifemo
personagens chamou-se
de narrativas, Outis
poemas ninguém, nobody,
ou, canções).
Passado, o morto é aquele que sempre já terá vindo antes que eu venha, antes
que qualquer um venha. Sua vinda abre o rastro do que é vir em geral: vir ao mundo, vir
à luz, a vinda do dia em si. Manifestar-se, estar na manifestação das coisas, gozar de sua
manifestação. Nada precede a manifestação, do mesmo modo que nada lhe sucede.
“Literatura” vem nomear isto, este saber da manifestação como algo que sai do
não-manifesto, do cerrado, do nada. Desde quando ela vem a esta nomeação, afinal
incompreensível à luz dos significados anteriores da palavra: o domínio do literal,
depois a coisa letrada, em seguida as “belas-letras”, depois, à maneira alemã, o conjunto
de documentos escritos sobre um assunto [sujet], e também o “resto” de Verlaine, isto é,
a prosa prosaica92, ao mesmo tempo que a embriaguez de Flaubert 93 e antes que, bem
mais tarde, Roland Barthes declare que o escritor “golpeia de encantamento o sentido
intencional, virando a fala em direção de uma espécie de aquém do sentido”94 (enquanto
isso, é verdade, a reescrita da epopeia será jocosamente designada como uma
95
“barganhista
desejado jogarenciclopédica
de novo sem ereservas
caóticaseu
crônica” – isto quer
próprio sentido, dizer
aquém que adeliteratura
e além si mesmaterá
ou
ao menos da identidade que se lhe podia supor) – então, desde quando esse sentido se
libera – hoje, todavia, afastando-se de uma representação dominante que quer o
testemunho, o registro do real, o vivido que se diz “autoficcionalizado”, como que para
significar que ele não é de forma alguma fictício, pois estamos em falta de real, nós nos
cremos perdidos no virtual, na fantasia e nas formas ocas – desde quando, portanto,
senão desde sempre?
Não há nenhum contador, na verdade, nenhum fazedor ou recitador de histórias,
de mitos, de lendas, de parlendas ou de descidas de um ditado divino, não há ninguém
que ao mesmo tempo não dê total fé ao conto e não saiba, no entanto, que a inteira

90
Monsieur mon Passé é uma canção de Léo Ferré; no entanto, aqui o passado se vê mais obrigado a
passar realmente, a não mais obsedar o presente.
91 “Personne ”, ao mesmo tempo ninguém e pessoa em francês. (N.E.)
92
Última estrofe de A arte poética: Que ton vers soit la bonne aventure / Eparse au vent crispé du matin /
Qui va fleurant la menthe et le thym... / Et tout le reste est littérature . (N.A.) [« Que teu verso seja a boa
aventura/ Esparsa ao vento crispado da manhã/ Que vai florescendo a hortelã e o timo…/ E todo o resto é
literatura ». (N.E.)
93
“Entonteçamo-nos com o ruído da pluma e bebamos da tinta. Isto alucina mais que o vinho”. A Ernest
Feydeau, 15 juillet 1861.
94
Rolland Barthes. Nouveaux essais critiques. Paris : Seuil, 1972, p. 175.
95
James Joyce. Ulysse. Tradução francesa de Auguste Morel et Stuart Gilbert revista por Valéry Larbaud
e o autor. Paris : Gallimard, 1948, p. 417. Na tradução utilizada por Nancy: ”barguigneuse encyclopédique
et chaotique chronique”.
substância desse conto reside em sua fala, em sua proferição, que é também sua
invenção.
Assim, o filho caçula favorito da mãe, por ela protegido do grande macho da
horda, desperta um dia para a descoberta de sua própria proeza e conta a todos como
matou aquele que se torna assim o pai: tal é a srcem que Freud dá da literatura, tal é o
seu mito explícito da invenção do mito, da fala e da tribo a um só tempo.
A literatura é bem exatamente esta fala que sabe que seu sentido vai do nada ao
infinito, que ele a precede e a sucede, que ele se precede em si mesmo e se sucede em si
mesmo. Esta fala que vai do Morto – o Pai, a Figura insigne ficcionalizada como
imolada – e antes da Morte – a Mãe, não figura, mas partilha da fala – em direção à
possibilidade de algum sentido comum.
Escutemos, uma vez mais, o começo de cada um dos cantos com os quais nós,
mediterrâneos, inventamos a invenção sob o nome de Homero como nome e terra natal
de nossa literatura:

Menin aeide thea Peleiadeo Achileos…


Andra moi ennepe, mousa, polutropon…
A cólera, cante-a, ó divina, do Pelida Aquiles…
O homem, conte-o a mim, ó musa, rico em vias e desvios…

Pedindo seu canto à musa divina, o cantor declara a ficção, mas a ficção assim é também
declarada sagrada – inspirada, ou seja, insuflada a partir de um fora que ninguém
poderia ser tentado a situar alhures senão no mais íntimo do próprio canto96.
Esse fora é também designado pelo canto como aquele dos acontecimentos que
serão relatados e celebrados: a ira de um, as manobras e périplos de outro. Tudo isso
aconteceu em algum lugar e em algum tempo, e se, no entanto, é preciso pedir a
narrativa – quase em uma prece – ao sopro de uma voz mais que humana, é que temos
tudo a aprender sobre esses acontecimentos, ainda que os nomeemos. O que é para ser
cantado – a ira, as manobras – já está lá, mas ainda por vir.
O que é para ser dito em literatura, enquanto literatura, já está sempre aí e ainda
está por vir. Isso começou muito antes da narrativa e isso prossegue muito depois dela. É
a marca mais própria da narrativa e do canto – de fato, prosa e poema, letra e música são
envolvidas aí juntas – do que de ter iniciado antes que a boca pronuncie. A página, a
tela, a tábula ou o tablet sobre o quais se traça uma escrita figuram bem à próposito
dessa antecedência ao mesmo tempo virgem e encetada – essa abertura.
Igual abertura engaja, estrutura, desdobra, excita toda a literatura. Ela começa e
prossegue fora dela mesma, ela não é ela “mesma” nada mais que essa antecedência e
essa sucessão inesgotáveis. Não se esgota o sentido. A cada instante crê-se impor uma
significação: o sentido os depõe todos e os leva alhures, em direção a um fora anterior e
ulterior. Pacientemente, perdidamente, esse alhures inscreve, excreve seus rastros.

96
Mesmo quando Virgílio, por um deslocamento decisivo, começa com a primeira pessoa – Arma
virumque cano… Os feitos de armas e o homem eu canto... – esta pessoa se ouve ela mesma inspirada –
aspirada – pelo canto. O eu literário, mesmo o de Rousseau, sabe-se sempre como ficção de um sujeito da
fala e/mas como a verdade da/nessa fala. Ele sabe-se saído de lugar nenhum e também exposto.
Tradução de Fabricia Walace Rodrigues e Piero Eyben
Revisão técnica: João Camillo Penna
6. DA OBRA E DAS OBRAS

De um golpe de vista tomado a partir de uma inclinação sem dúvida discutível, mas que
é preciso saber ocupar um instante, podemos dizer que a ideia da “obra” agita, irrita e
excita toda a história de nossa cultura. Ela vem ao primeiro plano de um pensamento
inquieto sobre a realidade, isto é, de um pensamento para o qual o real não é mais
assegurado, nem pela evidência sensível, nem pela pulsão nela de um espírito que seria
no fim de contas apenas essa mesma evidência. É ao contrário pela disjunção da
presença sensível e de um sopro retirado por trás dela que devemos mais ou menos nos
representar o movimento constituinte de nossa tradição.
A partir daí se coloca a dupla questão da consistência do real e de sua proveniência, ou a
questão de sua efetividade e portanto de sua efetuação. O real enquanto efeito e
enquanto efetivo, eis o pano de fundo da “obra” e com ele as questões envolvidas na
possibilidade do operar e de pôr em obra, isto é, na realização do real: questões que são
tanto as da criação do mundo quanto da produção humana.
Trata-se do ergon grego, trabalho produtivo e produto do trabalho, cujo arremate é a
enérgeia, o real em ato em que se atualiza uma potência própria, uma dynamis. O latim
traduz ergon por opus de que fizemos “obra” (enquanto o alemão Werk e o inglês work
retomam a raíz erg-). A obra é em ato no sentido em que o actus – a realização97 – é o
particípio passado de ago e designa portanto a ação efetuada, levada a termo: levada ao
seu fim, portanto, à sua finalidade, o que dá em Aristóteles a palavra entelechia que
acrescenta à enérgeia a ideia de télos, de fim acabado.
A obra traz com ela o motivo da produção que comporta ele próprio uma tripla
implicação: a da ação produtiva, a do agente produtor e a do ato produzido. Como
sabemos, o curso de nossa cultura chegou, na idade contemporânea – ou seja, a partir do
desdobramento conjunto da técnica, da democracia e do capitalismo industrial – a
caraterizar a existência humana, e tendencialmente a do próprio mundo, como o fato da
produção pelo homem dessa existência. O agente, a ação e o ato se confundem na
autoprodução de um real, cuja essência é sua existência mesma, a que se confere assim
um valor absoluto – o valor em si, subtraído de toda avaliação de uso e de troca, não
consistindo a partir daí em nada senão na capacidade, ou melhor dizendo na dignidade
(essa grande palavra de Kant e dos direitos do homem) da energia autoprodutiva ou na
operatividade geral, tanto ontológica quanto axiológica. À autoprodução – que pode
também ser compreendida como a autoprodução na obra e como obra de seu sujeito
(autor, ator, agente) – responde o que podemos designar como autofinalidade: a obra se
realiza como seu próprio fim, a efetividade do produto é também a efetividade da
produção e do produtor. Esse é o sentido total até onde se pode levar o que está em jogo
no provérbio Finis coronat opus (o fim coroa a obra).

97
“Accomplissement”, “realização”, “acabament o”, “consumação”. O ensaio circula em torno de termos
de carga semântica semelhante, mas com nuances específicas. Além de “ accomplissement ” (ou
“inaccomplissement ”, “inaccompli ”), “achèvement ” (“acabamento”), e “réalisation ” (“realização”). Na
tradução, oscilei entre as diversas possibilidades, segundo o contexto, quando necessário, especificando
entre colchete o termo em francês. (N.T.)
É assim que a noção hoje mais comumente recebida de “obra” veio a se desprender. No
meio do campo semântico bastante extenso desse termo – que vai, como sabemos de
léxicos específicos como os da alquimia, da justiça ou da arquitetura a todos os registros
possíveis de operação, de realização ou de execução – emergiu, sobretudo a partir do
século XIX, um sentido que podemos considerar como privilegiado e que se reúne na
expressão “obra de arte”. Essa expressão ela mesma veio a soar como uma tautologia e a
“obra” pode designar, absolutamente, o produto ou o conjunto de produtos da atividade
de um artista. O romance de Zola que se intitula Obra consagra de uma certa maneira

esse uso, enquanto


expressão vinda do que
mundoem 1831 Balzac empregava
do artesanato. Certo, os “obra-prima” [“chef
dois termos não são d’œuvre ”], uma
equivalentes eo
segundo subsiste enquanto o primeiro tomou um valor que não deixou de se aproximar
dele.
Hoje o valor enfático e absoluto da “obra” subsiste no uso corrente, quer se trate da
crítica literária e artística, quer de um uso universitário, que faz com que destaquemos
voluntariamente a nossa estima de um jovem pesquisador dizendo-lhe: “o senhor tem
uma obra”, ou bem: “o senhor terá em breve uma obra” – por meio do qual destacamos
um afastamento significativo do que representam os “trabalhos”, por mais ricos que
sejam. Ao contrário, e de maneira paradoxal, o uso da palavra foi mais ou menos
apagado da linguagem empregada nos meios artísticos, onde se prefere justamente falar
do “trabalho” de um artista, quando não se dispõe de termos específicos como o “livro”
na literatura (“ouvrage” é antiquado ou bem erudito, e nunca acedeu à dignidade da
“obra” [œuvre]98), ou o “filme” no cinema (mas quando é preciso caracterizar a unidade
e a completude de uma produção, fala-se da obra de Ozu ou da obra de Ford).

Há portanto
sentido, uma tensão
sabemos surdadoque
muito bem quetrabalha
se trata.o De
usoum
e olado,
sentido
essadapalavra
“obra”.recolheu
Em um certo
toda a
força da realização efetiva desse tipo de produção, a que reservamos, mais ou menos no
mesmo tempo da história, a concentração bastante particular da palavra “arte”, tomada
absolutamente ela também, ou seja, destacada dos valores distintos dos diversos savoir-
faires que foram as artes mecânicas ou liberais, as artes companheiras dos ofícios e
enfim as belas-artes. A obra se encarregou desse tipo de realização, excedendo toda
espécie de artesanato e de técnica a que pretendeu aceder uma “arte” desligada de todo
ofício de transmissão, de representação ou de celebração de um conteúdo de pensamento
histórico, religioso, político ou moral. A obra passou para o lado da efetuação de uma
realidade que excede de algum modo qualquer outro real da natureza ou da producão.
Ela se produz a si mesma ao invés do homem, ou então, na verdade, é na obra e como
obra que o homem se produz além do “humano demasiado humano”. A obra acrescenta
ao mundo uma efetividade ou uma energia excedente.
É assim que a palavra se encarrega do que Proust, por exemplo, enuncia quando escreve:
“explicava à Albertine que os grandes literatos nunca fizeram mais que uma única obra,

98
Em francês, os dois termos utilizados por Nancy, “ ouvrage ” e “œuvre ”, recobrem dois sentidos
ligeiramente diferentes: “œuvre ” contém uma dimensão artística , enquanto que “ ouvrage ” aplica-se ao
resultado de um trabalho em geral (de construção, mil itar). “ Ouvrage ” pode ser também aplicado ao texto
científico, técnico ou literário, mas nesse caso, “ œuvre ” insiste na qualidade artística. Em português a
diferença inexiste, usando-se em ambos os registros, indiferentemente , “obra”. Temos em português o
termo “obragem”, derivado de “ ouvrage ”, de contrução, ligeiramente antiquado. Optei por manter o termo
francês “ ouvrage ” (N.T.)
ou melhor, que refrata através de meios diversos uma mesma beleza que eles trazem ao
mundo”.99
Mas por outro lado, essa mesma carga hiperbólica da obra a levou além dela mesma,
pelo menos enquanto representação de uma efetuação consumada e de uma enteléquia
assegurada de seu fim último. É permitido datar esse excesso, que dessa vez é o da obra
sobre ela mesma, no momento – a partir de 1923 – em que Joyce adota a expressão
“work in progress” para caracterizar, e até, em um dado momento, para intitular
Finnegans Wake. A expressão terminará por caracterizar o livro não somente como um
texto sempre “em obra”, mas também como uma obra cuja leitura pode indefinidamente

retornar doa fim


desmente ao começo.
segurança De ambaseasdamaneiras,
da completude a obra não termina e esse infinição
meta atingida.

Desde Joyce, sabemos quantas formas pôde tomar a afirmação do inacabamento da obra,
ou mesmo da essência da obra em seu inacabamanento, em sua “abertura” ou em seu
“desobramento”, à medida em que a obra era confrontada a essa modalidade de
incompletude ou de desestabilizaçào que representa a sua reprodução técnica. Ao
mesmo tempo, é o autor que se viu desestabilizado como figura do agente ou do
produtor da obra. Tanto a sua potência operatória de gênio quanto a sua expressão, ou
até mesmo a sua hierofania, sob o aspecto da obra, perderam o brilho e a magia.
De toda maneira, a obra se estragou nos dois sentidos do termo: ela se degradou em sua
exigência de realização monumental, ela renunciou à edificação de um real arquitetônico
que trouxesse verdade ao lugar ou bem sobre o ordinário real imperceptível. É ao
contrário este último que tomou o seu lugar em uma mímesis e em uma methéxis da
inconsistente, inconstante e inconsciente existência trivial, tanto das coisas quanto das
figuras de um mundo que tende para a insignificância. À obra se substituiu a manobra de
um autoengendramento de impressões, de combinações formais, de modos de dizer que
não há nada a a dizer, ou pelo menos, nada que se possa enunciar como a fórmula de
uma verdade acabada.
Nesse sentido, a obra e toda a lógica e a simbólica da produção, da autoprodução ou do
engendramento de um mundo, não ocuparam por muito tempo o lugar que, na verdade,
eles foram levados a ocupar, e que não era outro senão a de um Deus, que, ele próprio,
desde as suas elaborações metafísicas, tinha sido representado à imagem da energia
produtiva. A morte de Deus é a morte da produção e é por pura falta de invenção que
não clareamos ainda, de uma outra luz, a sombra que se estende diante de seu túmulo: ao
contrário, derrapamos em uma produtividade que sabe apenas reproduzir mais à frente a
sua ausência de fins.
Apesar disso, não lamentamos a obra se ela fosse apenas um sucedâneo de Deus, sem
dúvida ainda mais decepcionante que o próprio Deus. Aprendemos outra coisa, uma
outra realidade da obra: não a sua realização mas a sua operação, não o seu fim mas a
sua infinidade, não a sua enteléquia, mas a sua energia como ato de uma dinâmica que

99
La Prisonnière [A Prisoneira ] (1922), p. 363. Em português na tradução de Fernando Py bastante
modificada. (Marcel Proust. A Prisoneira . Em busca do tempo perdido . Rio de Janeiro: Ediouro, 2009.
Versão digitalizada, p. 1097.)
não é reabsorvida em um produto – mesmo que seja o “homem – mas que atualiza a sua
tensão, sua vibração, e - porque não dizê-lo com essa palavra? – sua vida.

4
A vida da obra é quem sabe uma coisa completamente diferente do que uma puntura100.
Se a vida consiste na “tarefa de não cessar de ser”, como escreve Juan-Manuel
Garrido101, e se, para isso, ela não cessa de operar a diferença entre a vida e a morte –
diferença na qual ela se manifesta como o que ela é (para o que ela vive) – então, a obra
vive à proporção de que ela não cessa de abrir nela a diferença entre prosseguir e cessar
de ser. A obra acabada, opus operati, põe fim por definição à sua operação. Esta, ao
contrário, se persegue como opus operans. Não é mais a obra no sentido de sua
execução acabada e de sua manifestação plena, embora isso não exclua nada dessa
plenitude.
Sem dúvida, é preciso mesmo que uma obra seja realizada para que ela manifeste em sua
realização o que a excede, ou melhor, para que ela manifeste a sua realização como seu
próprio ultrapassamento. Atingindo a sua morte uma vida se ultrapassa às vezes em
outras vidas, que podem ser vidas de viventes ou bem vidas de obras, ou bem – pois, por
fim, como o diz Proust, “por mais que brilhem as obras dos homens nas gerações
futuras, é necessário que os homens ainda existam”102 – nem vivente, nem obra, mas a
simples afirmação que essa vida viveu, foi vivida, esforçou-se em ser e em dar lugar ao
acontecimento dessa diferença.
A obra, do mesmo modo, acabando-se pode abrir sobre outras obras e sobre outros
autores de obras, mas pode também – excedendo a duração das gerações humanas, ou
melhor, esquivando-se
houve essa delas
tensão em ser – ultrapassar
e em dar lugar aoo acontecimento
seu próprio acabamento na afirmação
obrante. Nesse sentido,de
nãoque
há nada mais a dizer dessa história sem historicidade, em que se encadeiam até nós 3000
anos de obras postas, desde as pinturas das grutas paleolíticas (sem esquecer que não
temos documentos eventualmente mais antigos de dança, de música, e porque não de
poesia?). A vida dos homens é indiscernível da das obras, e estas vivem à medida em
que procuramos não somente fazer obra de nossa vidas, mas também deixar a vida fazer
através de nós – ou mesmo fazer de nós – suas obras de vida e de morte.
Essa sucessão de obras põe em evidência a sua ausência de fim, de acabamento, pelo fim
renovado de cada uma delas, de cada um de seus modos, de suas maneiras de relançar a
energia, sempre a mesma e sempre diferente que, assim que ela atinge o seu acabamento
– obra-prima, grande obra, duplo modelo artesanal e alquímico de toda operação - se
depreende dela e manifesta que o que ela realiza, o que ela atualiza, é sempre novamente
a sua dynamis, a sua potência que, como toda a força, se exerce unicamente pelo jogo de
uma diferença de forças. A obra é assim sempre o jogo de uma diferença entre ela
mesma e ela mesma, por meio da qual ela vai sempre além dela mesma.

100
O termo francês, “ poncif ”, assim como a sua tradução em português, “puntura”, pertencem ao
vocabulário técnico de impressão. “ Poncif ” denomina a folha de papel contendo um desenho picotado
aplicado sobre um outro papel ou tecido, mediante a passagem de uma pedra (uma “ ponce ”) de maneira a
reproduzir em pontilhado oo contorno do desenho. Em português, “puntura”, é a chapa de ferro a que se
prende a folha de papel aonde será feito o registro da impressão. O termo francês equivale a estereótipo,
clichê. (N.T.)
101
Juan-Manuel Garrido. Chances de la pensée [Chances do pensamento ]. Paris : Galilée, 2011, p. 38.
102
Marcel Proust. La Prisonnière. La Recherche du tempos perdu . Paris : La Pleïade, tomo III p. 184.
Tradução brasileira, op.cit., p. 1018.
5

A obra vai além assim como ela vem do aquém: ela não projeta a sua realização
[réalisation] como um plano pode ser projetado, uma antecipação determinada do seu
acabamento [achèvement]. Do mesmo modo como este não será a verdade da obra,
tampouco a sua produção (se a palavra não é ela própria aqui posta em dificuldade), a sua
realização, ou a sua operação não estão ligados à predição, nem tampouco mais
rigorosamente ao projeto. Há sempre um surgimento que excede a espera, como há sempre
um tateamento que escapa ao cálculo. A obra é assim transbordada por trás pela manobra
que se esboça em sua direção, que ela ignora, e pela frente pelo desobramento que a subtrai
ao acabamento, em que, no entanto, ela se acaba simplesmente, mas também se arruina.
Blanchot escreve: “A obra, sempre já em ruína, é pela reverência, pelo que a prolonga, a
mantém, a consagra (a idolatria própria a um nome), que ela se congela ou se acrescenta às
boas obras da cultura.”103
O que não impede, no entanto, que não seja simples, em todos os aspectos, manejar essa
ironia diante das “boas obras”. Pois essa expressão nos reconduz, ao mesmo tempo, a uma
longa série semântica que a pieguice de toda sorte de obras pias de fato reduziram à figura
de um opus dei. Ora é preciso lembrar que as “obras”- os erga da koiné transcritas em
seguida em opera – designaram a ação efetiva, por oposição à disposição espiritual dita da
fé (pistis). Se Paulo sublinhava que as obras de fé permanecem sem valor, Tiago lhe
opunha com rigor a primazia das obras, e muito precisamente das obras ditas de amor
(agapé, caritas). Não temos aqui que entrar nesse debate, senão talvez para fazer observar
que, na operação da obra, a fé, ou seja, a confiança no que deve exceder a toda espera, é
inseparavel da ação que obra, que manobra e que se desobra sem parar. De resto, de
Agostinho a Lutero, sempre se soube muito bem que as obras são elas mesmas amor e fé e
que, além disso, não são nossas, mas efeito da graça.
O que chamamos de boas obras é o triste resíduo de uma longa genealogia em que a
efetividade de agir prevaleceu de saída e por muito tempo, antes de se perder na confusão
dos gestos prescritos, dos méritos e das jactâncias. Mesclou-se no entanto aí a significação
da obra prática, arquitetural sobretudo: a cada catedral se juntava uma “casa de obra”,
encarregada de um conjunto de problemas sociais e financeiros ligados ao canteiro de
obras. Daí proveio a “obra” ou a “fábrica”, no sentido de conselho de gestão de um edifício
religioso. Ao mesmo tempo, “obra” tornou-se o nome de um organismo de sustento e de
assistência com visadas determinadas, como as inúmeras “obras missionárias”, mas
também, mais tarde, laicizadas, como as “obras socialistas”: tal “obra parisiense para
banhos-ducha baratos” ou aquela outra “do livro para todos”. Um jornal importante nascido
em 1904 foi batizado de A Obra como em uma condensação absoluta desse valor de serviço
de uma causa (jornal que aliás privilegiou as “assinaturas” como se dizia então, os artigos
autorais).
A obra compreendida assim representa, com efeito, a energia devotada a uma causa que
interpela, mas ao mesmo tempo ultrapassa, todas as realizações possíveis.

103
L’Ecriture du désastre , Gallimard, 1980, p. 127.
É nesse sentido que não há distinção entre a fé e as obras na operação da obra, não há
diferença entre uma disposição confiante e as realizações. Como na mais forte tradição
espiritual, as obras da fé ou as do amor – são as mesmas – não são nada senão o exercício e
a efetividade da fé e do amor. As obras do que chamamos “arte” seguem ao menos a
mesma lógica formal, mesmo se elas não lhe encerram o conteúdo verdadeiro. É então na
verdade precisamente uma confiança que se realizou; é uma fidelidade que se afirma em
ato, não como a apoteose de uma consumação – que não deveria mais ser fiel ao que quer
que seja – mas como tensão nunca resolvida, nunca satisfeita, de uma confiança cujo objeto

não pode ser garantido.


Qual objeto? Algo como um sentido inédito, inaudito e talvez inaudível, cujas premissas e
esperas venham de muito aquém da obra, de seu autor e de todas as suas circunstâncias,
pois trata-se de nada menos do que a totalidade de um mundo, ou bem – o que dá no
mesmo – de uma linguagem inteira que busca fazer ouvir uma voz insólita, a da novidade
do mundo. O que são Hamlet, a Grande Fuga ou então Madame Cézanne na estufa? Cada
voz, uma expressão nova e uma expressão de novidade, ou seja, da sempre mesma energia
renovada, relançada, reaberta.
“Novidade” não quer dizer de maneira nenhuma o “nunca visto” que de repente a obra faria
ver. É uma possibilidade de ver, de ouvir ou – no sentido mais amplo - de dizer, e essa
possibilidade é nova pelo fato de que ela detém em si somente “a língua que a torna
decifrável como palavra”. Essas palavras são tomadas entre as que Foucault emprega para
caracterizar a obra enquanto aquilo de que a loucura dá a “forma vazia” e “a ausência”, na
medida em que ambas compartilham o caráter de “uma palavra que se envolve a si
própria”.104 Na loucura esse desenvolvimento se encerra e se exclui da significação, na obra
ele desloca as significações recebidas segundo significâncias desconhecidas.
Mas o desconhecido assim aberto não é um conhecido por vir que seria o fim da obra,
assim como tampouco a significância é uma significação em potência. É exatamente aqui
que se joga a atualidade, a atuação [mise en acte] e a enérgeia de uma dynamis que
permanece dynamis. A operação da obra consiste em uma revelação para si própria, como
para o seu autor e para os seus “receptores” ou “amadores”, de sua própria abertura e de sua
própria excedência. Relemos Hamlet, interpretamo-lo de novo, ou então a Grande Fuga,
perguntamos ainda a Madame Cézanne qual é a luz que mancha e rasga de branco o seu
vestido azul escuro no meio das flores, cujo cinza-rosa se reflete sobre as suas bochechas.
A vida em si vive naquelas bochechas. Ela vive dessas bochechas, ou desse ataque de arco.
Ela não viveria sem isso.

Tradução: João Camillo Penna

104
Michel Foucault. « La folie, l’absence d’œuvre ». In : Dits et écrits I, Gallimard, 1994, p. 417-419.
Tradução brasil eira : « A loucura, a ausência de obra ». In : Ditos e escritos I. Problematização do
sujeito : Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
1999, p. 195.
7. PARA ABRIR O LIVRO

Quando o livro está fechado, temos três possibilidades.


A primeira consiste em não abrir o livro, seja literalmente, seja ao menos no sentido
de que abri-lo e lê-lo consiste em repetir-lhe o texto que já se conhece, aprendido desde a
infância e possuído, como se diz, de cor, isto é, segundo uma intimidade que o preserva
intacto
aberto, em sua recitação.
de alguma Nela, podemos
sorte, cerrado dizer que o livro permanece indefinidamente
em sua exposição.
A segunda possibilidade é deslizar um alfinete na espessura das páginas, ao acaso, e
tirar as sortes virgilianas, segundo a qual encontrávamos um oráculo na primeira palavra ou
na primeira frase encontrada. Isso se praticava com a Eneida que se considerava um poema
inspirado pelos deuses. Uma forma generalizada desse exercício denominou-se
“bibliomancia” e, como de justiça, ta biblia foi-lhe o terreno de predileção. Prática
semelhante consiste de fato em não abrir o livro: dá-se somente uma olhada, tira-se um
instantâneo.
A terceira consiste simplesmente em abrir o livro e mantê-lo aberto virando as suas
páginas. Essa abertura é um movimento. Esse movimento não é somente a sucessão de
páginas erguidas e deitadas uma após a outra: essa animação que as novas máquinas
informáticas de leitura se empregam a restituir com flexibilidade de imagens.
Praticamos as três possibilidades, simultaneamente, alternativamente, sem sempre o

saber.
que Lemos
filma salmodiando
o texto, baixinho
somos presos o texto
ao acaso porem algum
uma lugarpor
palavra, aoum
fundo da camera
truque oscura
de língua em que
recolhemos uma espécie de augúrio que não concerne a nossa vida, mas o sentimento de
um possível e inédito acréscimo de sentido.
E continuamos a virar as páginas, mantendo o livro aberto, pelo menos na medida
em que desejamos prosseguir. E o desejamos se entramos no livro. É assim que o
exprimimos: dizemos: “não pude entrar nele”, ou bem: “uma vez que estamos dentro, não
paramos mais”. Há portanto um estado, ou melhor, uma relação, em que o livro não está
apenas aberto diante de nós, mas estamos dentro dele, avançamos segundo o seu
andamento, reconhecemo-nos nele, e quando após ter que interromper a leitura, a
retomamos, todo um mundo se recoloca no lugar. Esse mundo está em volta de nós, em
nós, não é possível fazer a diferença: estamos ali, é um lugar, quer dizer que
acontecimentos têm lugar ali, durações se perseguem ou se contraem, espaços se estendem
ou se cerram novamente. Vemos pessoas, paisagens, compartilhamos impressões, esperas,
surpresas. (É o que faz a decepção mais ou menos inevitável com toda transposição de um
romance para o cinema: ela pode ser mais ou menos hábil, fina e bem sucedida, o que
permanece pouco superável é a imposição de imagens ali onde havíamos criado nosso
próprio mundo de visões e evanescências.)
Não é apenas o caso do relato e da ficção. Um texto de pensamento – o que não
quer dizer um documento de informação – não ocorre sem ritmo, sem andamento, sem
inflexões, nem sem evocações de imagens ou de afetos.
Leiamos, por exemplo, o seguinte em Merleau-Ponty: “só o motivo central de
uma filosofia, uma vez compreendido, dá aos textos do filósofo o valor de signos
adequados. Portanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma
reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro, que enriquece nossos
pensamentos próprios.105.”
Essa frase, não lhe compreendemos somente o sentido, mas ela se comunica
conosco sensivelmente, por palavras como “retomada” ou “reflexão no”, pelo itálico de
“segundo”, etc. Poder-se-ia dizer que a frase faz o que ela diz... Que toda palavra seja
performativa é uma indicação que podemos encontrar pelo menos em Derrrida, mas
também na experiência, e singularmente na da literatura.

Pois esta última não leva o seu nome sem razão: ela põe a letra em ato. A letra é a
articulação, o cerne da palavra e da linguagem. Isto é, não somente as duas articulações –
semântica e fonética – próprias à linguagem, mas a pronúncia, a emissão, a modulação, o
tom, o estilo e o que o acabamos chamando de escrita.
Merleau-Ponty prossegue no mesmo local: “é preciso que o sentido das palavras
finalmente seja induzido pelas próprias palavras ou, mais exatamente, que sua
significação conceitual se forme por antecipação a partir de uma significação gestual
que, ela, é imanente à fala.”106
A literatura é gesto, na medida em que é fala. Ora, ela é essencialmente oral,
como Lacoue-Labarthe amava afirmar107. O que quer dizer, ao mesmo tempo,
endereçada, enviada e apenas encontrando ou fornecendo o seu sentido no envio (não se
ousa dizer em seu voo...108 e no entanto...). A abertura do livro é a cortina que sobe sobre

a cena desse
invenções gesto que
daquilo de envio.
reúneJogam-se ali todas
a sua energia inicialasnessa
possibilidades,
fórmula deposturas, andamentos,
Didier Cahen: “eu
falo pelo outro109”. Em vista dele, para ele, no lugar dele, em seu nome.
E o outro, bem entendido – sim, aquele cujo endereçamento ouvimos – é também
“eu próprio”, que não tem nada ou muito pouco a ver com esse eu que fala. E é em mim
mesmo como no outro em si mesmo que ocorre a abertura a um pelo outro: para um
alhures, para um fora, de que essencialmente é necessário não ter forma nem função de
meta ou de destinação, de acabamento de trajeto, nem de conclusão de operação. É ao
contrário esperado que se saia de todos os registros, que se esqueça deles e se deixe
substituir nele uma espécie de deriva ocupada consigo mesmo: aquela a que o leitor
consente quando vai mais longe no livro.
É então que este é aberto. Ele é aberto ao que ele contém e entrega: um sentido
se desenrolando (produzindo-se, traçando-se) para si mesmo e par nenhum outro fim.
Que se veja nisso descanso, divertimento, não há nada de chocante: trata-se com efeito
de se deixar divertir, de desviar as necessidades de intenção e de produção, e deixar
sobrevir um gesto
um instante, que o que faz signo
mundo emquando
aparece direçãooao deslumbramento,
fazemos aparecer. E no qualé compreende-se,
“nós” a cada vez

105
Phénoménologie de la perception . In : Œuvres . Paris : Gallimard, col. « Quarto », 2010, p. 865.
Tradução brasileira : Fenomenologia do espírito. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo :
Martins Fontes, 1999, 2ª edição, p. 243. (É Merleau-Ponty quem sublinha. [N.T.])
106
Ibidem, p. 243-244.
107
Cf. Phrase . Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 2000, p. 173.
108
Nancy joga aqui com os parônimos, “ envoi ”, “envio, e “ envol ”, “voo”, “revoada”. (N.T.)
109
Didier Cahen. À livre ouvert – título a completar. Paris : Hermann,….
“eu”, um único para todos, ou pelo menos para muitos.
“Compreende-se”: é dizer demais, é mal dizer. Somos, antes, compreendidos,
tomados, presos pela abertura do livro no qual fomos enredados (ou não: há livros que
me permanecem fechados, ou outros que se fecham novamente; não se explora nunca o
suficiente essa questão delicada do gosto, das inclinações, das pulsações singulares –
aqui como em toda matéria sensível, estésica...). E no entanto compreendemos, somos
tomados em um pensamento. Que é sempre ao mesmo tempo pensamento de um relato,
de uma figura, de um tom, de uma língua e pensamento do seguinte: que isso nos é dito,
contado, ali em frente, no livro, à distância, na ficção ou num discurso – pouco importa:

em um elemento que se destaca do mundo e flutua em frente.

Que flutua incerto, lábil, inconsistente, irreal: literatura – todo o resto! O resto do
sério, do construído, do importante, do certo, do atestado. Mas esse resto é também o
que precede a toda ocupação séria, do gênero a-vida-a-morte, a-dor-o-prazer, o-labor-o-
repouso. Precede porque o falar é mais antigo que tudo isso e porque ainda mais antigo
do que falar é o proferir: levá-lo diante de si, apresentá-lo, declará-lo.
Declarar – como se declara uma mercadoria, um amor, uma associação, a
abertura de uma sessão. Isso significa ( calo, clamo) fazer soar. O real não é se ele não
soa no irreal. É ali o que nos precede e sem o qual não seríamos animais falantes, sem o
qual os próprios animais não seriam os que mugindo, assobiando, aboiando fazem retinir
o mundo.
Eis porque a literatura é oral: ela se abre em uma ressonância nunca começada,
nunca terminada, em uma glossolalia da presença sem a qual tudo seria ausente.
Mas eis a razão pela qual ela é escrita: a ressonância deve retornar, deve se
repetir, fazer-se eco, afim de se entender e de se relançar. A literatura é escrita na sua
própria oralidade: ela se recita, ele se aprende de cor, ela é formulário e cadência.
Quando vem a escrita é somente essa antecedência da ressonância que se expõe como
tal.
E é precisamente por isso que, entre todos os ofícios, apenas um ignora a
hierarquia: o escriba é o seu próprio chefe, afirma o egípcio Khéty (cuja brincadeira
esperta comporta o seu reverso bastante sério: é precisamente entre as mãos do escriba
que todas as outras atividades se encontram consignadas, contadas, declaradas).
A literatura: a declaração que não tem outra conta a prestar senão a sua própria
inscrição, sua articulação, sua circulação, sua recitação, sua leitura. O escrito não se
junta verdadeiramente ao mundo das coisas: a prova é que o livro vale unicamente pela
sua abertura e pela sua ressonância, quando ele se fecha, provisoriamente sempre. O
livro só é objeto remarcável e bibliofílico na medida em que ele é matéria sensivelmente
impalpável. Ele é liber, película fina extraída entre o cortex e a materia, tem a
consistência ínfima de uma forma.
A folha – pele, papiro, papel, tela – é o lugar do que Duchamp denomina o
infrafino e de que um dos exemplos é: ”O oco no papel entre a frente e o verso de uma
fina folha...” Apoiando-se em Hésiquio pode-se estimar que a literatura deva o seu nome
a uma transcrição da palavra grega diphtera que designa a pele curtida, o couro
adelgaçado de que se fará o pergaminho. Trata-se sempre de pele, de película, daquilo
por meio do qual as coisas vêm se declarar na superfície e umas às outras.
O livro aberto, todas as folhas soam entre elas e, todos os livros, um de cada vez, se
abrem uns aos outros, uns em e pelos outros – resto eloquente desse mundo fortuito.

Tradução: João Camillo Penna


II. POESIA
1. CÁLCULO DO POETA

1. Duas hipóteses – parciais e limitadas – servirão aqui de axiomas para uma


breve incursão na poética de Hölderlin.

A primeira: é o poeta que importa a Hölderlin, mais do que a poesia.

A segunda: a tarefa do poeta, antes de qualquer outra coisa, é um cálculo.

Essas duas hipóteses estão ligadas entre si: o cálculo remete à atividade e à
decisão do poeta, antes de remeter à disposição do poema, onde ele inscreve somente seu
resultado. Isso faz da poética hölderliniana outra coisa que uma « arte poética », que uma
teoria literária e estética. E, no entanto, isso coloca ao mesmo tempo em primeiro lugar, em
Hölderlin, a ars poetica, a técnica de composição, e o que deve ser o seu técnico, aquele
que « é entendido nela ». A poesia não é a mesma coisa que a poesia, e outra coisa também
que o pensamento. É assim que ela é aqui, muito precisamente, esse duplo limite dela
mesma: o próprio poeta, e seu cálculo.110

2. Dessa dupla hipótese testemunharia já, à sua maneira, a distribuição material


de uma obra em que os ensaios, anexos a Hipérion e às traduções, ocupam um lugar
importante, mesmo se sua quantidade não iguala à dos poemas. Disso testemunharia
também, pelo menos em meu sentimento de leitor, a impressão mal definida mas tenaz de
um relativo desinteresse de Hölderlin pelo próprio poema. Sem dúvida, a palavra é forte
demais, e a nuance exata se deixa captar mal: tudo se passa, no entanto, como se o poeta se
inclinasse, no limite, para um certo abandono de seus poemas – deixados em suma sós, e a
uma certa monotonia de seu curso, sem muita preocupação com o acabamento (da peça
trabalhada) – enquanto na pesquisa « teórica » (como nos ensaios de variantes,
frequentemente deixados em suspenso), ele se inquieta, se tensiona, se corrige, se relança, e
110
Quer dizer que passo aqui, deliberadament e, ao largo da interpretação heideggeriana de Hölderlin. Farei
somente a observação de que essa interpretação, consid erada independentemente de seus temas, deixa sempre
de lado, por sua parte, a poética de Hölderlin, mesmo quando faz, raramente, alusão a ela (por exemplo, em
Approche de Hölderlin . Paris, Gallimard, 1973, p. 242-243), e mesmo quando toma precauções quanto ao
tema da natureza poética dos textos que ela interpreta filosoficamente (por exemplo em l’Introduction au
cours sur l’hymne « Germanie » ). Retornarei alhures à relação ou não-relação de Heidegger com a ars poetica
enquanto tal. Por outr o lado, arrisco esse breve ensaio como fran co-atirador (ou seja, como ignor ante) dos
estudos propriamente técnicos sobre a poética hölderliniana, como o de Lawrence Ryan, que me assinala
Alexandre Garcia-Düttman ( Hölderlins Lehre vom Wechsel der Töne (Stuttgart, Metzler, 1960)). Mas é
preciso assinalar uma dívida para com os ensaios de Éliane Escoubas, François Fédier e Rainer Nägele
recolhidos no Cahier de L’Herne Hölderlin , dirigido por Jean-François Courtine (Paris, 1989). De maneira
geral, todavia, não pretendo propor uma verdadeira « interpret ação de Hölderlin »: deixo voluntariamente de
lado demasiados aspectos de seu pensamento. Hölderlin está aqui a meio-caminho entre o tema e o pretexto.
frequentemente se esgota, em direção a uma precisão que se esquiva ao mesmo tempo que
é imperiosamente requerida.

A esse respeito, podemos ser tentados a pensar que Hölderlin, na ordem do


pensamento – e que esse pensamento concerne a ars poetica ou então motivos
propriamente filosóficos – extenua-se frequentemente na procura de uma construção
dialética e especulativa, da qual ele não encontra propriamente falando nem a figura nem a
conduta exatas, à diferença de seus dois amigos filósofos bem próximos, Schelling e Hegel,
com os quais ele compartilhou o ideal comum pós-kantiano do « sistema ». Não estaremos
errados em ver nisso uma espécie de inabilidade e de impasse da via filosófica enquanto tal.
Hölderlin não sabe verdadeiramente fazer dela uma ars philosophica.

É questão de temperamento, mas é também, e o é de saída, porque ele não


coloca tampouco, de modo simples, ou apenas, uma questão filosófica. Ele propõe
precisamente a questão de uma outra maneira de abordar as « questões » em geral, a
questão de uma outra ars ou tékhne. Eis por que não basta dizer que Hölderlin é um
pensador: é preciso acrescentar imediatamente que ele não pensa como um pensador, nem
segundo a ars do pensamento. O primeiro pensamento de Hölderlin talvez seja este: que os
filósofos devem elaborar um sistema, no sentido mais forte, mais orgânico da palavra, mas
que o poeta deve tocar ainda em uma outra coisa que não a unidade sintética, mesmo que
ela seja víva e articulatória. O poeta deve tocar num ponto absoluto de exatidão, que está
em jogo num cálculo mais do que de uma construção, de uma produção ou de um
engendramento. É preciso tocar nesse ponto, ou se pronunciar sobre ele, ou tomá-lo em
vista: é diferente de juntar os elementos de uma totalidade articulada. O ponto escapa ao
conjunto. O filósofo tem por objeto a síntese – o poeta tem por projeto a sinopse. A
primeira significa primeiramente a operação, a segunda, a apreensão. A primeira exige o
tempo da elaboração e do percurso, a segunda exige o espaço de tempo de uma visada e de
um lance ajustado, o instante – e talvez com ele a síncope.

3. O que caracteriza o poeta para Hölderlin está dito nestas palavras: a


« precisão constante da consciência com a qual o poeta olha um todo111 » (« durchgängiger
Bestimmtheit des Bewußtseins wird, womit der Dichter auf ein Ganzes blickt »).
Bestimmtheit pode ser vertido por « determinação » ou por « precisão »: o poeta tem uma
consciência absoluta e constantemente determinada, completa e unificada, sem resto, que
não retém nada em si e se dá toda ao seu olhar. Não é sem dúvida exatamente o que o
filósofo entende por « consciência ». Ela comporta menos o momento da relação a si
mesmo, da re-presentação enquanto tal, do que o momento único do olhar – nem mesmo a
intenção, mas a abertura, o olhar dirigido ou lançado sobre (Blick auf), diante, fora de si.

O jato desse olhar atinge um todo: a totalidade desse todo é assim tocada
para além – ou no além de – toda composição ou síntese, no centro, no coração, na junta

111
p. 662. Estes números de página remetem à edição da Pléiade, sob a direção de Philippe Jaccottet
(Hölderlin. Œuvres . Philippe Jaccottet (dir.). Paris: Gallimard, col. « Bibliothèque de la Pléiade », 1967).
Atenho-me a essa referência, por comodidade, modificando às vezes as traduções, quando é absolutamente
necessário. Salvo indicações contrárias , é sempre Hölderlin quem sublinha.
que não totaliza, mas que é o todo. É o ser-todo do todo que é visado e visto, diretamente,
impecavelmente. E já que é o todo – Hölderlin não sublinha a palavra em vão – esse centro
não é mais interior do que é exterior. Ele é idêntica e imediatamente o contorno e a
periferia. Não é o conceito, mas a figura e a existência do todo: o todo se mostrando como
todo. O todo se fazendo ver para um olhar, por um olhar exatamente pousado sobre ele –
para um olhar e por um olhar que não é, no final das contas, senão o se-fazer-ver do todo
ele mesmo.

O poeta: o todo claramente presente. A presença irrecusável e


irrecusavelmente pontual do todo. O ato que calcula exatamente o momento – o instante, a
pesagem, a passagem – da presença do todo. O ato que não deixa, pois, nada fora dele: nem
o pano de fundo de uma « intenção » nem o de uma « coisa em si » 112. Mas a coisa mesma
em presença do olhar mesmo, na claridade mesma – e o afastamento, o escancaramento
dessa « mesmidade », seu cálculo exato.

Nada além disso: nessas condições seria mais justo dizer « ninguém
[personne] mais». O poeta não é « sujeito » da representação do todo, mas o lugar da visão
do todo in persona. Hölderlin nomeia também isso « o puro », ou a « pura individualidade
[poética] » (622 e passim).

4. A pureza hölderliniana não é o que não comportaria nem mistura nem


alteridade. Ela é, ao contrário, a pura coincidência do mesmo e do outro, do próprio e do
estrangeiro, do humano e do « divino »: essa coincidência em que o olhar não é olhar sobre
a coisa – e não é olhar para113 ela – senão na medida em que ele se faz, e em que ele é feito,
o aparecer mesmo da coisa. A unidade de medida é, pois, aqui a exatidão mesma, a pura
coincidência.

« Concisão », « sobriedade », essas outras palavras-mestras de Hölderlin,


não designam outra coisa. Trata-se muito menos, com elas, de uma economia dos meios do
que de uma extrema precisão do fim – dessa extremidade onde a própria precisão se
desvanesce em proveito da exatidão rigorosa: o todo, cada vez esse todo (do mundo, do
homem, da comunidade, de uma época, de uma forma, de um país, de um rio, de um
deus…). A economia de meios decorre disso, a saber, a brevidade daquilo que se chamaria

112 O ensaio de Nancy percorre uma gama de noções que se reúnem em torno da « coisa em si » kantiana,
« chose en soi », ou « chose même ». Em português a tradução mais comum para a Ding an sich kantiana é
« coisa em si », já em francês é mais comum « chose même ». Este território repercutirá no texto pelo uso
abundante do adjetivo « même », « mesmo/mesma » sozinho, ou acoplado ao pronome pessoal, « elle-
même », « ela mesma », « lui-même », que trazem problemas para traducão. Às vezes optei por traduzir
« même » por « proprio », « própria », mais comum em português, sempre que me pareceram soar melhor.
(N.T.)
113
A preposição « pour » em francês comporta uma ambivalência que é explorada aqui e mais adiante por
Nancy. Ela significa ao mesmo tempo, « por », no sentido de « no lugar de », e « para », « em direção a ».
Nesta frase, ambas as traducões « o olhar para a coisa » e « o olhar pela coisa » são possíveis e
solicitadas. (N.T.)
alhures de « imagem » e que se torna « olhar » quando se escreve, por exemplo : « desde
que somos um diálogo114 » (861).

Não é uma imagem, é uma estrita proposição predicativa, que diz que
somos, de fato, um diálogo (uma entrevista, um falar-junto ou o um-com-o-outro, um
Gespräch, um conjunto falante). Não que sejamos em diálogo, mas que somos nosso
diálogo. « Nós »: nós todos, aqueles que falam, definidos em seu ser pelo falar-entre-eles.
Assim, o todo do « nós » indeterminado é absolutamente determinado: somos esse entre-
nós, que é linguagem e, reciprocamente, a linguagem é o entre-nós.

O cálculo consiste em colocar ou visar exatamente esse ser, e nada além


dele, sem aproximação, sem comparação, nem metáfora. Livre ao filósofo de glosar esse
« entre », ou esse « ge- » do Gespräch, mas importa aqui que seja enunciado diretamente,
até o fim, ou seja, também direto à fonte: o poeta que diz « nós » e que fala assim já por
nós, ou seja, a nós e em nosso lugar 115, mas assim, também, no lugar do « entre », no
próprio « entre », exatamente. O linguista diria: o verso performa o que ele enuncia. Ele
fala já entre nós, tomou-nos, calculou, colocou na fonte de emissão singular plural da
conversa [entretien].

Acontece o mesmo com « Desde que somos ». « Desde » é o cálculo exato


de uma indeterminação. O poeta não diz desde quando, porque não é mensurável (não mais
do que o « nós »). O momento « desde » quando « nós somos uma conversa » é tão antigo
quanto a própria conversa, que é por suas vez tão antiga quanto qualquer antiguidade
possível – quanto a « manhã » nomeada pelo verso precedente – e tão recente quanto seu
enunciado, há pouco. Ele é absolutamente imemorial e contemporâneo. « Desde » calcula
todo o intervalo do imemorial até o atual presente: um intervalo nulo e infinito. « Desde »
mede assim uma cadência de eternidade.

Mas é preciso entender a medida tal como ela é calculada em alemão. « Seit
ein Gespräch wir sind »: a ordem gramatical usual não é respeitada. Seria preciso traduzir:
« Desde que um diálogo nós somos [ Depuis qu’un dialogue nous sommes] », e poderíamos
mesmo entender: « Desde um diálogo nós somos [Depuis un dialogue nous sommes] ». Em
lugar de estarem tecidos juntos na sintaxe ( Seit wir ein Gespräch sind), « um diálogo » e
« nós somos » permanecem dois blocos lado a lado, exatamente justapostos. « Nós »,
deslocado de seu lugar ordinário, porta o acento: o que é um Gespräch, eis o que nós
somos. Mesmo se não lermos o verso na íntegra, esse ser se precisará ainda: « Seit ein
Gespräch wir sind und hören voneinander » = « Desde que somos um diálogo e temos
notícias um do outro [Depuis que nous sommes un dialogue et que nous avons l’un de
l’autre nouvelles]», mas também: « Desde que um diálogo somos e ouvimos um do outro»;
nós somos que nós nos ouvimos um ao outro, somos que ouvimos um do outro o que
somos, ficamos sabendo um do outro, como nossa própria conversa [entretien]..

114
Em francês : “Depuis que nous sommes un dialogue. » Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê na
tradução francesa: « Depuis que nous avons l’un de l’autre nouvelles, et sommes un entretien. » (Hölderlin.
Œuvres , op. cit .. Tr. fr. Philippe Jaccottet, Gustave Roud et André du Bouchet, p. 861.) (N.E.F.)
115
« Pour nous », conforme Nancy esdobra na frase a seguir significa ao mesmo tempo « para nós » e
« por nós ». Cf. a nota 112 supra. (N.T.)
5. Cada vez, assim, o que é calculado, é propriamente um incalculável. Ora o
« que não pode ser calculado » (952), é « o sentido vivo » (951). O cálculo consiste em
reportar esse sentido incalculável ao « modo » ou ao « estatuto » de « equilíbrio » (952) que
é aquele da obra.

A obra não é uma medida dada à qual o poeta submeteria o incomensurável,


como a um jugo e a uma limitação. Mas a medida que é a obra permite calcular a relação
do incalculável (do sentido) com um breve rombo [trouée] de palavras. É sempre, de algum
modo, um cálculo infinitesimal, o cálculo de um ponto exato de fuga ou de tangência: a
coincidência do sentido incalculável com uma breve fala.

Não é o indizível que seria dito, de maneira fugitiva ou analógica, e por


conseguinte de maneira enviesada. Não há, para o cálculo, nem indizível nem dizível, há
somente o dizer exato. Eis também por que, se o cálculo é « cálculo do estatuto da obra »
(951), isso não significa que ele esteja subordinado à obra como produto (no modo
romântico: como produção finita do infinito: assim, nenhum rastro de tema do fragmento
em Hölderlin). A obra é, antes, digamos, tendencialmente, o lugar de um dizer exato: ponto
de passagem, entonação, flexão.

A exatidão é o próprio do cálculo. Ela é ao mesmo tempo a extremidade


infinita e o retorno [retournement] da aproximação. O cálculo não se faz no quase-lá [ à-

peu-près
prático). ],Assim,
nem por
ele excesso
cai justo,nem por cai.
ou não ausência. Nãoaproximação,
Nenhuma admite margem (porque
nenhum halonão
de tem fim
sentido:
mas a coincidência, sem transbordamento nem resto, mesmo que num só ponto, do dizer e
do dito.

Essa exatidão é logo de saída a dos próprios poetas:

Importa, antes de tudo, que os seres perfeitos não afastem demais o que é
inferior, que os melhores não se distanciem demais do que é bárbaro; mas que eles
tampouco se misturem demais a isso, que eles saibam reconhecer exatamente e sem
paixão a distância que os separa dos outros e que esse conhecimento lhes dite aquilo
que eles têm que fazer e sofrer . (608) 116

« Exatamente”: “bestimmt”, de maneira determinada, claramente definida,


recortada, conforme uma voz (Stimme) o coloque e o afine [l’accorde].117 O que chamamos

116
Trecho do fragmento « Reflexão ». Há uma tra dução brasileir a do fragmento de Márcia de Sá
Cavalcante, em Hölderlin. Reflexões . Rio de Janeiro: Relume-Dumar á, 1994, p. 26. Aqui traduzimos a
versão francesa da Pléiade, utilizada por Nancy. (N.E.)
117
“Et l’accorde ”, de “ accorder ”, verbo polissêmico em francês: “concordar” (pôr de acordo),
“conceder”, “consentir”, “afinar” (instrumentos musicais), próximo de “ accord ”, “acordo”, mas também
“acorde”, emissão de sons simultâneos. O sentido musical é sugerido por Nancy por conta da relação com
a voz, e o tom, na frase seguinte. (N.E.)
de « o tom justo »118, quer dizer também, « justo o tom », sem nada a mais nem a menos.
Justo o tom daquele que encontra o tom, e como esse tom o afine [ l’accorde] aos outros
separando-o deles.

(Aqui, é claro, o comentário treme. Podemos ouvir essas frases, é impossível


recusá-lo, num tom terrível, de Terceiro Reich. Podemos também ouvi-las no tom da
simples e justa medida, aquela que permite justo a distinção de um tom na indistinção de
um murmúrio. Está aqui a questão da Alemanha, não aquela só de Hölderlin, e não me
proponho a falar disso. Senão para fazer observar que a medida da medida, a medida da
« sobriedade » e da « coragem », a medida do « cálculo » exato, a unidade apropriada, não
é dada, e não é jamais preciso crer que ela o seja, nem que ela possa sê-lo. Para Hölderlin,
nada está dado, nem mesmo o que ele nomeia de « alemão ». É sempre como « [u]ma
estrangeira » que vem « a Voz modeladora de homens » (841). Quando Hölderlin
identifica « a Alemanha », « Stuttgart », « Heidelberg » ou « o Neckar », trata-se da
exatidão e da clareza do olhar, dos lugares precisos onde ele se coloca, mais do que dos
santuários de um destino. De resto, ele nomeia também « a Charente », « a Provença » e
« os países da Gasconha », assim como « Gênova » ou « Lisboa ». O divino é sempre
« errante » (462), e para « a alma, de pátria privada » o único « domínio » (463) e o
« amistoso asilo » se encontra no « canto » (462). Se a pátria fosse dada, toda a poética do
cálculo seria inútil.)

6. A exatidão exige a exclusão daquilo que se prolonga de maneira


indeterminada. A unidade do todo deve ser captada na passagem, como passagem, e não
perseguida ao longo do seu movimento. O dizer do que é dito, sem nada a mais, deve
suspender o discurso. Assim a justeza do encadeamento, da « consecução rítmica », se atém
à sua interrupção, à « cesura », em que consiste também « a pura palavra, a suspensão anti-
rítmica119 » (952). O ritmo é feito do anti-ritmo, como a figura de seu recorte, e eis por que
« a consecução do cálculo e o ritmo com ela está dividido120 » (952).

O curso do sentido deve ser interrompido para que o sentido tenha lugar,
para que ele seja captado na passagem – para que seja captada a unidade de um todo que é
mais e outra coisa que o todo de seus momentos, sendo ao contrário sua escansão comum e
sua síncope. Eis aqui todo o cálculo do poeta, e seu gesto tenso, inaplacável, o gesto de um
« arrancamento » (952).

118
« Le ton juste », expressão pol issêmica em francês que si gnifica « a nota af inada ». A passagem joga
com as diversas expressões que contém « juste », « justo », ou « apenas », com o pano de fundo do campo
semântico musical da afinação. (N.T.)
119
É aqui evidentemente o ponto de intercessão entre essa análise e a do trágico hölderliniano feita por
Philippe Lacoue-Labarthe sob o título de « A cesura do especulativo» [tradução brasileira em A imitação dos
modernos . Virgnia Araújo Figueiredo e João Camillo Penna (orgs). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000].
Veremos também os prolongamentos que lhe dá Arnaud Villani no Cahier de L’Herne , e depois ainda
Philippe Lacoue-Labarthe em « Coragem da poesia » (também em A imitação dos modernos ), assim como
com o estudo, por Jean-François Courtine, do afastamento [ écart ] hölderliniano em relação ao idealismo
especulativo , « Hölderlin au seuil de l’idéalisme allemand », em Extase de la raison. Essais sur Schelling
(Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 1990).
120
Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê como segue: « la consécution du calcul, c’est-à-dire le
rythme est divisé ». [« a consecução do cálculo, quer dizer, o ritmo está dividido »] (Hölderlin, Œuvres , op.
cit., tr. fr. Denise Naville et François Fédier, p. 952.) (N.E.F.)
Arrancar – a tudo aquilo que causaria arrebatamento, crescimento,
excrescência de significações, a tudo aquilo que faria um conjunto e uma totalização do
todo, em lugar de deixar o todo à sua pausa [coupe]121 única – arrancar deve se fazer « no
bom momento e no bom lugar » (607). Isso exige « uma grande rapidez de compreensão »
(607), pois é o todo, a pureza do todo enquanto tal, que deve ser captada e escandida. Mas
para isso, aliás, nenhum critério é dado, nenhuma garantia. A unidade do todo, o sentido do
sentido, não é uma parte que se poderia deduzir do conjunto dos outros. O cálculo não é
uma dedução: é uma visada. Não há, para visar a unidade do todo, medida exterior à

própria visada.
próprio O coincidência
todo, sua bom momentoeme opessoa.
bom lugar, o !"#$%&
O todo, [kairós
cada todo, e ]mesmo
do poeta, deve,depois,
o todo todosseroso
todos, não se define por um preenchimento, mas por uma coincidência.

Para ir direto ao ponto, o momento oportuno não é uma circunstância


exterior. Ele faz parte do todo. É a unidade que se apresenta (e que, sem dúvida, não é em si
mesma outra coisa senão essa vinda em presença, essa exposição, essa oferenda e essa
escansão). Eis por que o cálculo não avalia meios, vias de acesso. Não calcula nesse
sentido. Ele é, antes, a essência do cálculo: conta da unidade, o um posto, dado, lançado
enquanto um. Por essa razão, não é preciso « se demora[r] receosamente » (607). Aquele
que se demora (seria ele, o filósofo?) tem medo, tem medo de faltar à unidade, ou então
tem medo da própria unidade. Ele a pensa, pois, pequena demais ou grande demais, e assim
sempre inapreensível – enquanto ela é a própria apreensão, mas a apreensão que se
desprende na unidade.

Também, « [é] pela alegria que tu te esforçarás para compreender o puro em


geral ». A inteligência é « sempre enviesada » (607). A alegria, ou o amor, não é uma
inteligência mais alta, nem mais profunda. É essa compreensão na qual é a rapidez que
compreende, porque a rapidez apreende o inapreensível, e se desprende nele. Ela só
circunscreve o todo, sua unidade, o sentido, na passagem. A rapidez não é « mais veloz »:
ela é a própria velocidade, o direto ao ponto. O amor, do mesmo modo, não é um
sentimento mais apaixonado ou uma relação mais forte: nem sentimento nem relação, ele é
o cálculo exato do « um » do outro, seu corte justo.
Essa circunscrição, esse recorte, cerca a diferença da unidade. Sem
diferença, a unidade não pode ser unidade. Eis por que não se pode « diferencia[r] […]
pelo espírito só », sob pena de « retorna[r] […] ao Ser puro » (609). O Ser puro é a
indiferença e não é ainda « o puro ». Este deve ser o diferente, o singular, o todo enquanto
diferente de qualquer outro todo e, simultaneamente, o todo diferente dele mesmo e se
oferecendo como tal, enquanto um. « Um » é a diferença do todo para com o todo. Ele é o
único que se conta em um. « Um » é a diferença do todo para com o todo. Ele é o único que

121
« Coupe » em francês, termo associado à lingua poética de Mallarmé, contém uma polissemia
explorada por Nancy em diversos pontos do ensaio. No sentido geral significa «taça », « copo », « copa »,
a que se acrescenta o sentido comum, de « corte », e o sentido técnico, de « coupe du vers », significa
« pausa », ou « divisão do verso ». Opto por traduzi-lo por « pausa », indicando quando necessário o
termo srcinal entre colchetes. (N.T.)
se conta como um, cada vez um, não encadeável e não adicionável, um sem soma, suspenso
da continuidade, a verdade do sentido, sua vinda, seu evento122.

7. São necessárias, portanto, « alternância e […] tensão harmônicas123 » (610).


Se a harmonia é acordo e acorde [accord], o acordo supõe a diferença, a troca [change] e a
distância. A exatidão é a justa fixação da distância – entre os tons, entre os gêneros, entre as
quantidades métricas e os acentos sonoros, tanto quanto entre o dizer e o dito – enquanto
que a aproximação, mesmo na precisão, é uma fuga da distância, na distância. A exatidão
procede ao contrário de uma justa medida do afastamento [écart] necessário para que haja
conveniência, coincidência, correspondência biunívoca do um do dito e do um do dizer. O
cálculo do poeta é de saída um olhar sem concessão e sem hesitação sobre a clara distinção
do um: a consciência nítida do que o isola, do que o suspende, do que o retém vis-à-vis o
olhar.

A distinção é necessária no seio da « comunidade, de simultaneidade unitária »,


do « parentesco de todas as partes » que faz propriamente o « conteúdo espiritual ».
Comunidade e parentesco (ou « afinidade ») não podem valer na ordem da união nem da
comunhão. Pois o « conteúdo espiritual » se reduziria a uma « fantasmagoria
inconsistente » (610) se o « espiritual » não viesse a diferir nele mesmo dele mesmo, e
assim a « progredir para fora de si ».

A « afinidade », com efeito, concerne o « conteúdo » – e tem lugar segundo « a


imobilidade » –, mas a « forma » exige « a alternância », e com ela o movimento, a
« progressão » (610), a saída para frente (Fortstreben). O um como tal deve, pois, sair de si
para ser apresentado/escandido na alternância, na inflexão dos tons, a cadência do ritmo e a
pausa do sentido. O movimento da saída, a ex-posição do « espiritual » em exterioridade,
exige essa pausa e sua escansão: a poesia é o scanner do sentido, o poeta lhe ajusta
exatamente os ângulos de visada.

A poética do cálculo ou da exatidão é, pois, o pensamento da diferença


srcinária. E como se deve, em todo rigor, ela é logo de saída esse pensamento enquanto
diferença srcinária do pensamento em si. O que quer dizer, como de justiça: ela não é esse
pensamento senão na diferença srcinária do pensamento em si. O que quer dizer ainda: ela
se implica como diferença em si do pensamento srcinário – como « poesia ».

Se o pensamento em geral, ou seja, de modo prático, para nós, o que a


filosofia representa, está implicado necessariamente como apropriação última da coisa –
ressorção de seu « objeto » no « sujeito » que é o pensamento, o próprio « sujeito » sendo a
estrutura principial de auto-apropriação do objeto –, ou se ele está implicado como
elevação da coisa, dessa coisa dita « em si » [“ même”], ao estatuto e à visibilidade da Ideia
(nesse sentido, nenhum rastro de pensamento que não seja « idealista », em Hölderlin-o-
pensador tanto quanto em um outro), então a poética, ou seja, o pensamento da poesia,

122
Nancy glosa aqui a fórmula de Heráclito ,“ hen diapheron heauto ”, “o um se diferenciando em si
mesmo”, comentada por Hölderlin em Hipérion . Ver a nota 76, supra. (N.T.)
123
É Jean-Luc Nancy quem sublinha. (N.E.F.)
porém mais precisamente, o pensamento do pensamento em poesia, está implicado aqui
como o outro do pensamento: como o próprio não-idealismo [le non-idéalisme-même]. A
poesia, ou a derrota do idealismo.

Não é que a poesia deva responder, como é o caso em Hegel, à exigência de


uma apresentação exterior e sensível da Ideia. Apesar das semelhanças, incontestáveis e
numerosas, não temos que proceder aqui a uma lógica da manifestação, nem da
apresentação ou da representação (nesse sentido, poderíamos dizer que Hölderlin se
mantém fora da mimesis, até um certo ponto pelo menos, ou então, a partir de um certo
ponto). A vinda em presença não é a (re)presentação. A saída de si do espiritual não é sua
manifestação: ela é sua oposição, sua ex-posição oponente.

Sem dúvida, Hölderlin não deixa de se engajar também numa conduta


dialética de resolução da oposição. Contudo, em nenhum lugar essa resolução é proposta
como uma resolução, no sentido próprio e inteiro da palavra. É de resto o que arrasta o
extremo, até mesmo a infinita complicação da análise que ele tenta elaborar (em particular
em « Sobre o modo de proceder do espírito poético124»), sem jamais chegar a formalizá-la
de maneira satisfatória. Quando há resolução, a manifestação sensível do espiritual é
correlativa de uma espiritualização do sensível, e é assim que para Hegel, por direito, a
poesia conduz à dissolução da arte pela dissolução sublimante do elemento sensível e da
exterioridade. A poesia hegeliana é de direito auto-resolutiva ou auto-dissolvente, assim
como ela é, de resto, seu princípio auto-poiético, auto-plástico ou auto-mimético.

Mas em Hölderlin não temos que proceder a essa conformação mútua das
duas ordens, « espiritual » e « sensível », ou seja, não temos que lidar com essa auto-
manifestação mimética do « conteúdo » ou do « espírito ». A ordem da « alternância » e da
« tensão » não é o exterior do interior « espiritual »: é o lado de fora, o fora, como tal, o
partes extra partes. O « conteúdo » não é, para terminar, a verdadeira forma da forma. A
forma é o incontenível do conteúdo, o inconciliável da conciliação: o um do todo, como
pausa [coupe] e não como totalidade. « A significação do poema […] concilia os extremos
porque nela eles entram em contato se opondo » (614). Contato não é confusão, é o
contrário. Na linguagem da lógica, diríamos que há aqui « contrariedade » e não
« contradição »: os dois citados em presença não se excluem, podem ser falsos ao mesmo
tempo. Um não é a negação do outro, e o outro não é a manifestação do um. Mas eles se
tocam ao se opor, e o ponto do contato é o ponto de um tanto quanto o ponto de sua visão, a
escansão de seu « fora », o instante de sua vinda em presença, de uma presença em si
mesma infinita e exatamente oposta.

A procissão da Ideia no visível é substituída por esse contato no qual os dois


se chocam, se cortam e se captam ao mesmo tempo. Tal é a significação « sempre oposta a
ela mesma », pausa [coupe] e passagem do sentido – ritmo, a ser entendido literalmente. O
espírito, diz ainda Hölderlin, iguala todos os opostos, enquanto a « significação » poética

124
Na edição da Pléiade, o título é: « La démarche de l’esprit poétique” [“A conduta do espírito
poético”]. (N.E.F.) Nancy traduz o título do ensaio de Hölderlin como”Le procedé de l’esprit poétique”
(“O procedimento do espírito poético”). Tradução brasileir a de Márcia de Sá Cavalcante. Hölderlin.
Reflexões , loc.cit., p. 29-53. (N.E.)
disjunta e põe em contato. Dito de outro modo, a « significação » poética não pode se
contentar de « significar », ela deve ainda se distinguir dela mesma, ser posta e oposta no
lado de fora, numa individualidade sensível. Entre o sentido e esse átomo, e esse ponto fora
impenetrável, há contato, coincidência e pausa [coupe]. É assim que pode haver, mesmo na
cadência poética, compreensão instantânea que também está fora da inteligência: não
« ininteligência », mas « amor » desse fora no qual tocar, no !"#$%&, a apreensão-
desprendimento [saisie-dessaisie] do um.

O ponto de contato, o tocar-no-oposto, é a exatidão oportuna do cálculo que


125
entrega [ livre] o sentido, ou que entrega ao sentido, suspendendo o curso ininterrupto do
sentido.

8. É dessa maneira que o poema pode ser « um mundo (formalmente)


autônomo, um mundo no mundo, voz assim endereçada pelo eterno ao eterno » (618). Esse
mundo no mundo não é um microcosmo. Não é uma imagem reduzida do outro, e não
responde à lógica de uma mimética. Não a reprodução de um outro, mas antes o mesmo em
face do mesmo, na sua oposição ao mesmo: o ponto em face da totalidade, o todo saído de
si enquanto um. O ponto da totalidade, ou o ponto de totalidade, fora dela em face dela –
punctum proximum do olhar do poeta. Não a totalidade reunida em um ponto, sob o modo
de uma síntese, ou de uma subsunção (desde então dialética, e suprimindo a exterioridade,
reconduzindo-a ao todo como todo) – mas a totalidade tocada em seu ponto de totalidade,
no ponto de sua unidade: tocada, quer dizer, nem penetrada, nem abraçada, nem sublimada,
mas alcançada segundo a exterioridade mantida, e assim propriamente sentida. Tocar não é
realçar a diferença entre o tocante e o tocado: é ao contrário pô-la como tal, em sua
alternância e em sua tensão.

Eis também por que o poema, a obra enquanto tal, não é privilegiada, e eis
por que Hölderlin pratica muito pouco uma poética das regras, dos gêneros e dos exemplos.
Quando ele examina « a diferença dos gêneros poéticos » (632), é para propor uma série de
variações sobre o único dado da « [a]lternância dos tons » (639), segundo a necessidade de
suas distinções e de suas remissões mútuas. O tom marca a separação e a distinção da
tensão inerente ao tocar como tal.

O que conta, com efeito, é « o procedimento do espírito poético », sua


« conduta » ou sua « maneira de fazer » ( Verfahrungsweise), ou seja, no fundo, sua técnica,
e por conseguinte, a sua arte: o ato desse tocar do espírito que toca na « unidade
infinita126 », e que se toca ele mesmo tocando nela – nela que forma tanto o « ponto de
separação da unidade » quanto o « ponto de unificação » (619). O tema do contato e o do
um (das Einige, o um como unidade reunida) caminham de mãos dadas, porque o tocar – o
olhar tocante – isola o ponto do contato. E ele o isola de duas maneiras: de um lado, ele
toca em um só ponto, e de outro lado, deixa face à face o tocante e o tocado. Nada
desaparece na sobre-indiferença de uma indistinção, nada se afoga num sentimento
oceânico. Tudo é distinto, o todo é distinto enquanto tal.

125
« Livre”, do verbo “ livrer”, entregar, mas também homófono de livro. (N.T.)
126
Hölderlin sublinha essas palavras. (N.E.F.)
O que é tocado é um corpo. Não um corpo enquanto assunção orgânica e
finalidade interna, mas esse oposto do orgânico que Hölderlin denomina o aórgico, uma
materialidade, uma divisibilidade (635), um corpo enquanto extensão e distinção: uma
« coesão objetiva, mas ainda uma coesão sentida e sensível, uma identidade que persiste
através da alternância das oposições » (619), a unidade da própria divisibilidade, da
« separação real » (635) que responde ao « arbitrário de Zeus » (635), ou seja, à lei da
distinção sensível e individual.

Não é ilegítimo afirmar que a poesia de Hölderlin é física e erótica: se ela


não o é em seus temas, pelo menos não de maneira ostensiva, ela o é em seu modo e em seu
gesto, em seu endereçamento à coisa em si [ la chose même], à sua presença, à sua
existência sensível numa pontualidade distinta.

Assim – como um desejo de pintar e do contato da pintura (não saberíamos


exagerar a importância nele da pintura exata; ela se acentua com o correr dos anos):

Peras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.

Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça [...] 127

[…] direto da pedra rude


As águas de prata serpenteiam
E santamente o verde se mostra
No úmido prado da Charente 128

Mas mais ainda, o tocar da língua mesma, dos timbres e dos ritmos das palavras, e
que não podemos citar senão em sua língua:

Kommt eine Fremdlingin sie

127
Trecho de « Hälfte des Lebens » [« Metade da vida »], na tradução de Manuel Bandeira. A tradução
citada por Nancy de G. Roud, na edição da Pleiade diz o seguinte : « Avec des poires jaunes/
Et tout fleuri de roses sauvages/ Se suspend/ Le paysage dans le lac,/ Ô cygnes pleins de grâce !/ Et tout ivres
de baisers […] » (p.833). Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira . Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
(N.T.)
128
Trecho de “Das nächste Beste”[“O mais imediato”, ou: “O mais próximo melhor”] , terceira versão. Na
tradução da edição da Pleiade a cargo de F. Fédier: “[…] droit de la pierre fauve/ Les eaux d’argent
ruissellent/ Et saintement le vert se montre/ Sur l’humide prairie de la Charente (p. 905). (N.T.)
Zu uns, die Erweckerin,
Die menschenbildende Stimme.

Tradução:

Desce ela como uma Estrangeira


Até nós, a que nos acorda,
A voz que forma homens. 129

– onde perdemos as assonâncias e o essencial do ritmo. Poderíamos tentar:

Vem uma de alhures


Até nós, a despertadora,
A voz fazedora de homens .130

Não posso falar com grande precisão técnica nem da língua nem da prosódia de
Hölderlin, ou seja, no final das contas, de sua ars poetica. Mas não saberíamos insistir
demais sobre o fato de que é nelas: língua, prosódia, rítmica, é diretamente sobre as
palavras e sobre o canto, que se dispõem o tom e o tato de sua poética – ou seja, de seu
pensamento, o fora de seu pensamento, seu pensamento fora de pensamento. É preciso
também relembrar o que ele mesmo escreveu no caput de « Festa da paz [“Fiedensfeier”] »:
« Se, no entanto, alguns deviam achar essa linguagem pouquíssimo convencional, devo lhes
confessar que não posso fazer de outro modo. Num belo dia, quase todas as maneiras de
cantar se fazem ouvir, e a Natureza, de onde isso saiu, o retoma também. » 131 A língua é
singular,
nele –, masela deve sê-lo:língua
enquanto não enquanto idioma reservado
da extremidade que toca eno
precioso – nãodo
impossível há real,
maneirismo
na sua
distância e no afastamento correlativo de todas as línguas entre elas, de todos os cantos.
Cada linguagem deve ser uma, exatamente como cada ponto tocado. O « canto », essa
metáfora/metonímia ordinária do poema, nomeia mais precisamente para Hölderlin o que
« envolve » o « raio » de Deus, o fulgor ou o relâmpago da « tempestade de Deus » que o
poeta, « cabeça nua », « pega com [sua] própria mão » (835). O canto não dissimula a luz:
ele lhe transmite o contato.

9. O tocar pertence ao cálculo porque exige a medida. O sem-medida não


distingue nem os lugares, nem as superfícies, exigidas pelo tocar.

Pois moderado toca, sempre sabedor da medida,


Só um momento as moradas dos homens

129
Trecho de “Am Quell der Donau” [“Junto à nascente do Danúbio”]. Na tradução de Paulo Quintela.
Hölderlin. Poemas . Lisboa: Relógio d’Água. 1991, p. 317. Na tradução da Pleiade citada por Nancy: “Une
étrangère s’en vient à nous, celle qui rompt/ Le sommeil, la/ Voix façonneuse d’hommes » (p. 841). (N. T.)
130
Em francês: “Vient une d’ailleurs/ À nous, la réveilleuse,/ La voix faiseuse d’hommes.” (N.T.)
131
Trata-se de uma nota escrita por Hölderlin que precedia a versão definitiva do hino “Versöhnender”
[“Conciliador” ou”Ó conciliante”, na tradução de Paulo Quintela] (Pleiade, p.1214). Paulo Quintela traduz
o trecho, op.cit., p. 347. (N.E.)
132
Um deus, de improviso, e ninguém sabe: Quando?

A medida é a palavra, a palavra e o motivo, sobre o qual se cruzam muito


exatamente – partilham-se em todos os sentidos, sich mitteilen – o pensamento e a poesia
de Hölderlin. Porque ele é essencialmente pensamento da medida, seu pensamento deve ser
uma poética, deve tocar, para pensar, em seu fora de poesia.

meio. A medida Essa medida nãoé justa


hölderliniana limita,pelo
nemfato
muito menos
de que equilibra.
ela mede Não ocupaa um
o afastamento justo
partir do
qual o todo e a unidade são possíveis enquanto todo e enquanto unidade. O encadeamento
do cálculo é o seguinte: Todo = Todo, Todo = Um, Um = Um, mas « = » iguala o
afastamento necessário para pôr e contar o Um em face de si, em face dele mesmo, na
clareza de sua distinção. Assim a poética considera menos a igualdade do Todo com ele
mesmo, do que a igualdade nela mesma, a igualdade da igualdade, de alguma maneira,
« = » « = » « = », ou sua medida, ou seja, o afastamento, o espaçamento necessário para
somente pôr a igualdade, seu metro, seu intervalo e sua escansão.

O idealismo da unitotalidade vai de chofre além de toda medida, não


conhece senão a auto-correspondência em si do absoluto. Não pensa em termos de
igualdade, mas de identidade (e a identidade ela mesma, para dizer a verdade, ele a pensa
em termos de recobrimento de si por si, e não de exposição de si a si). Mas a poética do
contato exige a distância que faz a essência do tocar. O tocante é distinto do tocado, o tocar
é discreto, ou não é. Sentir não é possível senão pela distância de uma conveniência –
acordo e pudor, medida de um pelo outro.

Assim:

Aqui não lhe moveu ele o peito com olhar de sol,


Nem na chuva e no orvalho lhe falou amigável ;
E eu admirei-me com isto, e loucamente falei : ó Mãe
Terra, perdes tu então sempre, como viúva, o tempo ?
[…]
Mas talvez aqueças um dia aos raios do céu,
E o teu terno hálito venha acordar-te do mísero sono ;
E que como um grão de semente faças rebentar a casca de bronze,
A luz se liberte e a venha saudar o mundo parido, […] 133

132
Trecho de “Festa da paz”, na tradução de Paulo Quintela, op.cit., p. 351. Na tradução utilizada por Nancy:
“Soucieux de la mesure, toujours, avec précaution, touche,/ L’espace d’un moment, aux demeures des
hommes/ Un Dieu, à l’improviste : quand, nul ne sait » (p. 860). (N.T.)
133
Trecho de “Der Wanderer” [“O peregrino” ou “O errante”]. Na tradução de Paulo Quintela, op.cit ., p. 243.
A tradução citada por Nancy, da Pléiade, a cargo de F. Fédier, é a seguinte: “Ici il ne lui mouvait pas, avec le
regard du soleil, le sein,/ Et en pluie et rosée il ne parlait pas amicalement à elle ;/ Et cela m’étonnait et
follement je dis : ô Mère/ Terre, perds-tu donc toujours, comme veuve, le temps ? […]/ Mais peut-être vas-tu
t’échauffer quelque jour au rayon du ciel,/ Hors du pauvre sommeil te caressera son haleine, à t’éveiller;/ De
sorte que, comme un grain semé, tu fasses éclater la coque antérieure,/ Se libère et salue la lumière le monde
délié» (p. 799-800). (N.T.)
– e aqui ainda é preciso fazer ouvir como o ponto desse acordo, a primavera da terra,
se dá, no último verso citado, no cálculo de uma cadência cerrada: « Los sich rei!t und das
Licht grü!t die entbundene Welt ». « Los» desencadeia e descarrega a explosão, a
libertação [délivrance], simultaneamente, no sentido, no som e no ritmo; poderíamos dizer:
esse verso é a onomatopeia da primavera, ou do amor, daqueles que o seguem:

All die glühen


Rosen gesammelte Kraftsprudelt
und Wein aufflammt
im in üppigem Nord.
kärglichen Frühling,

Toda a força reunida se inflame em Primavera opulenta,


134
Rosas floresçam e vinho salte espumante no Norte mesquinho.

– mas não é uma imitação, é um tocar da língua que a afasta dela mesma e do sentido, e que
faz sentido no intervalo, como a marcação [ battue] do intervalo. Não há onomatopeia do
« sentido vivo » (951), mas há o ataque 135 de uma tecla sonora, o ataque de um acorde
desse afastamento do sentido: a poesia não é o sentido, ela não faz sentido, nem o exprime,
mas concorda com o seu afastamento, ou afina [ accorde] o seu afastamento, como o
próprio acorde de sua « lira »136. É assim que se exige « rimar com a alegria » (« Sei zur
Freude gereimt »).137 « Rimar » aqui só é a metáfora de «concordar» [s’accorde{r}] porque
é também a metonímia da poesia, e a « alegria » só é « pensada » (789) – ou só é « dita » –,
como sendo o acorde que ela é (ou de que ela é, por sua vez, a « metáfora »), por causa do
intervalo sonoro do acorde poético.138 (Ou então, seria preciso dizer: é ainda uma imitação,
esse movimento ritmado de acentos e assonâncias – glühen/sprudelt/kärglich, etc. –, mas
uma imitação de quê? Será que a rosa imita a brasa ou seria o inverso? Será que a palavra
glühen imita a incandescência ou seria o inverso? Será que glühen, sprudelt, kärglich se
imitam ou se respondem uns aos outros? Tudo pode se virar em todos os sentidos, em torno

134
Ibidem. Na tradução de Fédier: “Toute la force rassemblée s’embrase dans l’exubérant printemps,/ Les
roses flamboient et le vin pétille dans le Nord parcimonieux » (p, 800).
135
« Frappe » é um termo polissêmico, que signi fica « cunhagem », « digitação » (« faute de frappe »,
« erro de digitação »), mas aqui me parece estar sendo utilizado no sentido musical, de « ataque », por
exemplo, de uma nota musical, de um som, de um intrumento, de uma tecla. (N.T.)
136
Toda esta passgem explora a polissemia de « accord », « accorder » em francês. O verbo « accorder »,
como foi dito na nota X supra, comporta dentre outros o sentido de « afinar » (« accorder un
instrument », « afinar um instrumento »), e sua forma nominal, « accord », significa, « acorde », em sua
forma pronominal, « s’accorder », « concordar », « pôr-se de accordo ». Assim, em « […] elle s’accorde
à son écart », a frase de Nancy funde vários dos sent idos. O que está sugerido aqui é algo como : « […]
ela concorda com o seu desvio » ou : « […] ela se afina com o acorde de seu afastamento ». A frase
seguinte: « […] ella accorde son écart », significa ao mesmo tempo: « […] ela concorda, concede ou
afina
137
o seu afastamento » (N.T.)
Em francês: “rimer avec la joie”. Tradução de Jean-Luc Nancy. O poema “Blödigkeit”, [« Timidez »] ao
qual Nancy faz referência se lê como segue na edição da Pléiade: « Que tout soit à ton gré de ce qu’il
adviendra !/ Que la joie te trouve accordé, ou qu’elle peine/ Crois-tu, mon cœur, qui pourrait te blesser,/ Où tu
dois aller quelle malencontre ? ». (Hölderlin, Œuvres , op. cit., tr. fr. Gustave Roud et Robert Rovini, p. 789.)
(N.E.F.) O trecho, na tradução de Vicente de Arruda Sampaio : « O que aconteça, seja tudo oportuno para ti !/
Sê para a alegria rimado, ou o que poderia então/ Te ofender, coração, o que/ Lá encontrarias, aonde deves
ir ? » (Tradução em : Walter Benjamin, « Dois poemas de Friedrich Hölderlin ». Trad. Susana Kampff Lages.
Escritos sobre mito e linguagem . Duas Cidades/Editora 34, col. Espírito crítico, 2011, p. 23.) (N.E.)
138
« S’accorder » e « accord » são termos que se inserem tanto no léxico musical, « afinar », « acorde »,
quanto no político-psicológico : concordar, acordo. Nancy joga com essa polissemia. (N.E.)
do mesmo ponto: como o sentido toca no som e o som no sentido – o que quer dizer
« canto »).
O ponto do contato é, pois, ele mesmo, uma distância ou um afastamento
[écart]. Esse ponto não é um ponto geométrico, de dimensão nula: é ele mesmo a
dimensão, a distensão da relação poética com a unidade e com a totalidade. Ele é, em suma,
a distância absoluta do absoluto. Essa distância absoluta é também uma proximidade: ela
não se mede segundo a quantidade do apartamento [éloignement], mas segundo a simples
natureza e a simples intensidade do intervalo enquanto tal.

Uma coisa é certa: seja ao meio-dia ou caminhe-se


Já para a meia-noite, uma medida sempre se mantém,
A todos comum, mas a cada um também uma própria lhe é dada, [...] 139

O apartamento, o espaçamento dos tempos e dos lugares, o espaço-tempo


como tal torna possível a presença e o seu tocar. A medida mede – ou seja, ela estabelece e
enuncia a conveniência do – « infinito verdadeiro, real, determinado » (627). A
determinação não é aqui a limitação da infinitude. Não lhe é também a finitização, no
sentido de uma perda, e de uma queda no interior de um horizonte finito: é ao contrário a
sua finição, o acabamento exato, segundo « o ponto fixo que determina o modo do traçado
do desenho, assim como o caráter e a intensidade da cor local e da iluminação140 » (628).

É dessa maneira que a medida dá o tom, entendido de modo absoluto, a


tensão e a tenção do contato: até na unidade do todo, e diante dela, contra ela, no instante
mesmo de –sua
a precisão cadência e de
determinação ou seu ataque
exatidão frappe
[ seria
– que ]. Abela
medida é a « lado,
por outro bela precisão » (631),que
mas a precisão nãoé
bela em si porque toca precisamente (ou, mais precisamente ainda , exatamente) na outra
face da beleza, na « bela reflexão infinita que, em sua limitação contínua, é ao mesmo
tempo princípio de relação e de unificação contínuo » (631).

A bela precisão dá o tom, o contorno, a cor do que localiza o infinito, do que


o mostra e do que o toca – é um mesmo gesto – no ponto instantâneo de sua presença, ou
seja, de sua passagem, no ponto do que o recorta e que o isola como uma zona de gozo.

« [M]edida, bela precisão, unidade e firmeza de seu acordo infinito, de sua


identidade, de sua individualidade infinita e de sua tenência, prosa poética de um momento
que delimita um Todo » (631). O allbegrenzende Moment é tanto o momento (entendamos:
a suspensão) que delimita o todo, quanto aquele que delimita tudo. Ao mesmo tempo, a

139
Trecho de “Brot und Wein” [“O pão e o vinho”], citado aqui na tradução de Paulo Quintela, op.cit..,
p.255). A tradução utilizada por Nancy, da Pléiade, de Gustave Roud é a seguinte: “Une chose demeure
ferme. Que midi sonne ou que le temps s’allonge/ Dans le cœur de la nuit, une mesure est là toujours,
commune/ À tous, et chacun cependant reçoit en propre son destin » (p. 809). (N.T.)
140
Tradução modificada por Jean-Luc Nancy. O texto se lê como segue: « le point fixe qui déterminera le
mode de relation du dessin ainsi que le caractère et l’intensité de la couleur locale et de l’éclairage ».
(Hölderlin, Œuvres , op. cit ., tr. fr. D. Naville, p. 628.) (N.E.F.) [« o ponto fixo que determinará o modo de
relação do desenho assim como o caráter e a intensidade da cor local e da iluminação»]. (N.T.)
medida abraça tudo, a totalidade do todo, e circunscreve rigorosamente o estreito espaço-
tempo do ponto e do tocar.

Mas essa simultaneidade e essa conjunção não são em nada uma


ultrapassagem de um pelo outro, nem de um no outro. Nenhuma efusão de um no todo,
nenhuma infusão do todo no um. A linguagem medida – o metro – não sai de sua medida
(toda a '(!)* consiste em ater-se a ela), ao mesmo tempo que aquilo que a mede, e a quê
ela se mede, a presença nua, simples e firmemente apreendida em sua passagem,
permanece fora dela, e que ela diz esse fora, esse diante, esse em-face dela. Não há senão a
conjunção – a rima – desse face-a-face: o um e 141
o olhar tendido em direção a ele, a dupla
inscrição do poema, ou seja, a sua dupla excrição . É o informulável em si [l‘informulable
même] – mas para o poeta e nele, « o informulável se formula » (661). Este é o efeito da
« precisão constante da consciência com a qual o poeta considera um todo » (662).

A minha cerdeira escura pôs-se entretanto pesada de frutos,


E os próprios ramos se oferecem à mão para os colher.
[...]
Mas já adivinho, também eles me deixaram, partiram
Pra um país santo, e nunca mais, meus queridos, voltais. 142

10. O metro é propriamente o divino: quer dizer, o incomensurável em sua


precisão estritamente determinada, a exatidão do impossível. Assim,

[…] Também aqui há deuses e reinam,


Grande é a sua medida, mas o homem só gosta de medir a palmo. 143

O poeta não se atém a essa pobre medida humana, a de sua palma, « o


palmo », a medida da qual ele mesmo é a unidade. Mas ele mede divinamente, quer dizer,
segundo uma medida que nada mede, segundo a grandeza absoluta. Esta consiste na
conjunção do incomensurável e da proximidade, das duas extremidades do infinito, a mais
longínqua (« e eu olhava em direção às africanas, as desertas/ planas, ao longe ») (799), e a
mais íntima (« só palpita um surdo/ reconhecimento ») (813).

A grandeza absoluta é a exatidão da reunião de uma conveniência e de um


afastamento: a conveniência do afastamento segundo o qual uma presença, o ser-mesmo,

141
Sobre a noçao de « excrição » ver X a nota supra. (N.T.)
142
Trecho de “Der Wanderer” [“O peregrino”], aqui na tradução de Paulo Quintela, op.cit.. , p. 247. A
tradução utilizada por Nancy, da edição de Pléiade, de François Fédier, diz o seguinte: « Lourd est devenu
cependant de fruits, sombre, mon cerisier,/ Et à la main qui cueille les branches se tendent d’elles-mêmes./
[…] / Mais je le sens déjà, en lointains sacrés ils sont partis/ Maintenant aussi, eux, pour moi […] » (p. 801-
802).
143
Ibidem, p. 241. Na tradução utilizada por Nancy: “[…] il y a ici aussi des dieux, ils règnent,/ Grand est leur
Mètre, pourtant il mesure volontiers à l’empan, l’homme » (p. 799).
se apresenta, se mantém aí, evidente, e se eclipsa nesse mesmo lugar, nesse mesmo
instante, na única passagem do sentido.

O metro mede isso mesmo, esse « vestígio dos deuses que fugiram » (814)
que não é nem a pura perda, nem o signo remetendo ao longe, mas o rastro da passagem
enquanto presença verdadeira, definitivamente efetiva nesse presente, do qual o contato se
afasta tocando-o. Assim, a palavra dos poetas « é verdadeira » (814) e se endereça
sobretudo aos « Anjos e a Ele » (816) não pelo sentido do que ela enuncia ou do que ela
evoca, mas pelo metro, que é ele mesmo – que é materialmente ele mesmo – o
vestígio sensível e exato da passagem dos deuses, quer dizer, dessa passagem que são os
deuses.

Isso não quer dizer que a verdade do poeta consista no que quer seja,
harmonizado por uma métrica… Isso quer dizer que o que deve ser dito – o verdadeiro, o
justo, o sentido –, o poeta deve dizê-lo em sua condição de unidade e de passagem, sob o
toque de sua passagem.

O divino é a passagem, e não é senão isso: eis por que o divino por essência
é vestígio, e não imagem, ao mesmo tempo, resto material e rastro evanescente de uma
presença que não vale como subsistência, como ser-presente-aí, estável e manifesto, mas
que vale como passar, ir e vir, chegar, sobrevir e partir.

Fogo divino
A partir. [...]incita
144 também, de dia e de noite,

O divino está na imanência e no eclipse, na aproximação, na passagem e na


retirada: sua retirada não é a sua perda, ela é a condição de sua fugitividade, que é ela
mesma a condição de seu sentido. Pois o divino é a passagem na medida em que ele não faz
signo em direção outra coisa senão a essa passagem mesma. O lugar que mistura « o
Olimpo » e «o Parnaso », esse lugar « de onde vem e para o qual faz sinal em retorno o
deus que vem145 », é a vinda mesma e a passagem, é esse toque que se clareia por ele
mesmo, e não clareia a não ser ele mesmo (como Diotima; cf. 798, « A Ti só, tua luz, anjo!
te guarda na luz »), assim clareando o um. O « deus que vem » não está « por vir », e nesse
sentido ele não é « deus », é a vinda, toda a vinda e nada mais do que ela: ele está por
inteiro no ataque [frappe], na marcação e na tenência [tenue] métrica, sintática e semântica
desse verso que faz em suma girar sobre si mesma a « vinda » : « Dorther kommt und
zurück deutet der kommende Gott ». « De onde vem e em direção a quê faz retorno de
144
Trecho de « Brot und Wein » [« O pão e o vinho »], na tradução de Paulo Quintela, op.cit.. , p. 253. Na
citação da Pléiade, utilizada por Nancy: “Le feu divin lui-même, nuit et jour, s’efforce vers un brusque/
Embrasement” (p. 809).
145
Em francês : « d’où vient et vers lequel fait signe en retour le dieu qui vient ». Tradução de Jean-Luc
Nancy. O texto na tradução de G. Roud se lê assim: « C’est là d’où vient, c’est là ce que désigne à son tour le
dieu proche ! ». [« É lá de onde vem, é lá aquilo que designa, por sua vez, o deus próximo! » ] (Hölderlin,
Œuvres , op. cit .,.p. 810.) (N.E.F.; N.T.).
sentido o deus que vem » : que ele venha – kommt –, é isso que dá a assonância ou a rima
do verso – dort/kommt/komm/Gott –, e essa vinda rodopia em torno desse signo ou sentido
(deutet) retornado (züruck) em direção ao dort, reconduzindo o Gott ao dort. Züruck faz a
vinda girar sobre si mesma, no meio do verso e de uma assonância surda (und/deutet) que é
a do sentido, ela mesma encaixada na assonância forte das extremidades, Dort/Gott. O deus
não é senão o lugar, o lugar é o lugar da partida e do retorno, da vinda que se retira e que
assim faz sentido. Assim: ou seja, segundo o verso, materialmente, segundo a escansão do
verso. Poesia: cálculo material da passagem ateia. (Ler hoje Hölderlin é também arrancá-lo
da imagética romântica que, forçosamente, é a sua, e da qual « os deuses » são uma parte.)

(Poderíamos também compreender o verso dessa maneira: o deus que vem


daí vem e dá por signo « retorno! », ele ordena o retorno do verso, ou seja, a leitura da sua
escansão.)

A medida a tomar é, pois, sempre aquela da passagem enquanto tal. Tomar a


medida é o ato do poeta, e consiste também, por essa mesma razão, em medir-se com o
« divino ». Medir-se com o divino não é confrontá-lo numa inverossímil rivalidade: é se
medir com o incomensurável da passagem, com o incomensurável afastamento do lugar da
passagem, para apreendê-lo incomensurável, mas apreendê-lo exatamente, com a absoluta
precisão do incomensurável, no ponto mesmo de sua incomensurabilidade. Ou seja, em sua
evidência mesma, em sua patente aberta, no ponto manifesto da presença da passagem:

[...] Enquanto em seu coração


Durar a benevolência, sempre pura,
O homem pode com o Divino se medir
Não sem felicidade. Deus é desconhecido?
É, como o céu, evidente? Eu o creria
Assim. Tal é a medida do homem. 146

A medida do homem – o que o mede – é a evidência incomensurável do


divino, ou seja, na realidade o « divino » divinamente a-teu da evidência incomensurável.
Essa evidência é evidente « como o céu » porque não é nem a evidência sensível de um
objeto nem a evidência inteligível de uma Ideia, e nem muito menos a evidência-de-si de
um sujeito. Ela é diferente dessas três evidências, ou então ela é como as três juntas. Ela é
evidência ou esvaziamento do « aberto » como tal. O céu: lugar da evidência como
evidência do lugar. Lugar divino porque o « divino » é de modo bastante exato essa
evidência do lugar, de todos os lugares. (O lugar é a localidade: a separação e a discrição da
passagem, o lugar onde a cada vez, necessariamente, tem lugar a vinda em presença – seja
« o fundo do vale » ou « a beira do lago de Bienna », seja « a sala » com « as mesas », ou

146
Trecho de « In lieblicher Bläue » [« En bleu adorable »[...]. Na versão de André du Bouchet utilizada
por Nancy : « Tant que dans son cœur/ Dure la bienveillance, toujours pure,/ L’homme peut avec le Divin
se mesurer/ Non sans bonheur. Dieu est-il inconnu ?/ Est-il, comme le ciel, évident ? Je le croirais/ Plutôt.
Telle est la mesure de l’homme » (p. 939). (N.T.)
« o deserto ».) Não há generalidade da presença, não há senão lugares de passagem,
exatamente delimitados, até esse lugar do « coveiro » (931) :

Lá ele deve conduzir


Tudo
Para fora das [vogais] longas
A um lugar limpo,
Onde se verte
A cinza, e o todo deve
147
Ser queimado no bosque com fogo.

Do mesmo modo não há generalidade do incomensurável « sentido vivo ».


Não há senão seus lugares de passagem, cada vez uma palavra, uma frase, cada vez um
metro, uma escansão. O sentido é o afastamento da linguagem, sua verdade é cada vez
local.

Se não existe, nessas condições, nenhuma medida sobre a terra (940), é


porque toda medida é do « céu ». O que, por sua vez, deve se entender de duas maneiras:
toda tomada de medida toma a medida, em tal lugar preciso, do céu por inteiro,
incomensuravelmente aberto, e todo ato de medida vem do céu ou retorna ao céu, zurück,
com aquilo mesmo que torna o ato possível, e o encontro, a medida ela mesma, o metro.

A retirada dos deuses, a passagem do sentido, é portanto ao mesmo tempo o


que deveassim
medida, ser medido,
como oo com
seu oinstrumento,
qual é preciso se medir, e odeque
o instrumento dá a medida,
medida que nãoa éunidade de
mais um
instrumento: o metro, que é para ele mesmo o seu fim.

À « falta148 dos nomes sagrados » responde assim, muito exatamente, a justeza


do metro, que é a preocupação do poeta:

Frequentemente precisamos nos calar. Eles faltam: os nomes sagrados.


Os corações batem, e o discurso faltaria?
Mas uma lira afina a cada hora o tom
E talvez regozije os celestes, que se aproximam.
Isto prepara e já, também, está próximo de aplacar
O cuidado, que vinha sob a alegria.
Cuidados, tais, é preciso, de bom grado ou não, que na alma
Os carregue um cantor, e frequentemente, mas os outros não. 149

147
Trecho de um dos « Planos e fragmentos » de Hölderlin. Tradução a cargo da Revue de Poésie, na édição
da Pléiade: « Là il doit tout / Conduire/ Hors des longues/ À un endroit net,/ Où on verse/ La cendre, et le tout
doit/ Être brûlé sur le bois avec du feu (p. 932-933). (N.T.)
148
« Défaut », « falta », « ausência », cf. a nota X supra. (N.T.)
149
Trata-se do final de « Heimkunft. An die Verwandten » [« Retour. Aux proches »]. Nancy retraduz os
quatro últimos versos. Na tradução de Michel Deguy : « Souvent il faut nous taire. Ils manquent, les noms
sacrés./ Les cœurs battent, et le discours ferait défaut ?/ Mais une lyre accorde à chaque heure le ton/ Et peut-
être réjouit les célestes, qui s’approchent./ Prémices... – ET ainsi Le souci presque/ S’apaise dejà, qui venait
11. O metro responde à falta do divino. Sua exatidão é o ponto de contato [la
mise en contact], o ponto de tangência de duas abordagens, de duas aproximações: a dos
celestes (Himmlische, welche sich nahn), e a do canto (beinahe […] befriediget). Beinahe
deveria se traduzir por « junto ao próximo ». « [S]ich nahn […] beinahe »: ao mais
próximo da aproximação. É a proximidade mesma, quer dizer, o afastamento, mas esse
afastamento que é necessário para tocar na coisa em si [la chose même] – e essa coisa em si
é uma aproximação, uma iminência. Nem uma imanência nem uma transcendência, mas
uma iminência, uma infinita proximidade que passa mais perto, que passa ao tocar o

coração do
unidade quetodo,
bate.e oÉ espaço-tempo
o toque do « desse
sentido vivo » sobre o « sentido nulo », é o ponto de
ponto.
O metro mede o escancaramento [ béance] da evidência, mede-a em seu
lugar próprio, no ponto de sua vinda, na « beleza do instante » (511), ou seja, na própria
passagem. O metro responde à evidência: à claridade do vazio, sem dúvida, mas
identicamente, à abertura da claridade. O metro mede o desmedido, a plenitude do aberto.
O olho direto sobre o visível no ponto de sua totalidade. Tal é a conversa:

Fala sozinhos
Com Deus. 150

O metro não fala senão ao metro divino. O cálculo visa essa exatidão:
responder ao surgimento e à passagem instantânea do incomensurável. Isso não pode se
nomear, senão « com palavras jorradas como flores » (811) – mas aqui ainda é preciso
ouvir a língua, e a medida cerrada:

Nun, nun müssen dafür Worte, wie Blumen, entstehn.


151
Então, então são necessárias para esse fim palavras desabrochadas como flores .

A medida do metro responde ao sem-medida: ela surge assim como a sua


pausa [coupe]. A continuidade ininterrupta do « sentido vivo » não pode ser sensível senão
em sua interrupção. Não porque a interrupção abriria simplesmente um escancaramento
[béance] angustiado do sentido, mas, antes, justamente porque relança o sentido para mais
longe, o apreende na passagem e o remete a mais sentidos ainda. A pausa [ coupe] demanda
novamente o sentido – e o sentido bebe na taça da pausa [coupe].152

sous La joie./ Des soucis, tels, Il faut, de son gré ou non, qu’en l’âme/ Les porte un poète et souvent – mais lês
autres non!» (p. 818-819). (N.E.F.; N.T.)
150
Trecho de “Am Quell des Donau” [“Junto à nascente do Danúbio”], na tradução de Paulo Qunitela,
op.cit.., p. 319. Na tradução de Gustave Roud, utilizada por Nancy, os versos dizem o seguinte: “L’entretien
seul à seul/ Avec Dieu […] ” (p. 842). Mantive as duas traduções do verbo entstehn, por “jorrar”, “ jaillir”, na
tradução de Gustave Roud, utilizada por Nancy, ou “desabrochar”, na tradução de Paulo Qintela. (N.T.)
151
Em francês : « Alors, alors il faut à cette fin paroles écloses comme fleurs ». Tradução de Jean-Luc
Nancy. O texto na tradução de G. Roud se lê como segue: « Enfin ! avec des mots jaillis comme des fleurs. »
[« Enfim! com palavras jorradas como flores. »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit.,, p. 811.) (N.E.F.)
152
Nancy joga aqui com dois dos sentido da palavra “ coupe ” em francês, ao mesmo tempo taça e pausa (e
corte), intraduzí vel em português. Cf. a nota X supra. O jogo remete específicamente ao poema de
Que tomemos esses dois versos:

Drin in den Alpen ist’s noch helle Nacht und die Wolke,
Freudiges dichtend, sie deckt drinnen das gähnende Tal.

A tradução (aqui de Michel Deguy) diz:

Au cœur des Alpes, nuit claire encore, et la nuée,


Source du poème de joie, elle couvre là-bas la vallée béante . (815) 153

Meu desejo não é propor deles uma tradução melhor, mas, antes, ressaltar o
que não é traduzível porque não se deixa tampouco traduzir na própria língua alemã – pelo
menos se « traduzir » se limita a « restituir uma significação ». Seria preciso ouvir de fato:

Au-dedans des Alpes c’est encore claire nuit et la nuée


Composant du joyeux, elle couvre là-dedans le val béant.

Dentro dos Alpes é ainda noite clara e a nuvem


Compondo algo alegre, cobre lá dentro o vale escancarado.

Drin – drinnen convoca-se e recorda-se de um verso ao outro, reforçando e


perdendo a sua assonância nessa insistência, enquanto die Wolke/[…] sie (dupla pausa
[coupe], do verso, da prolepse) suspende a « nuvem» acima do que ela cobre, e sobre seu
dichten (composição poética, ficção, formação das figuras do nevoeiro…). Remissão e
pausa, relance e retorno por cima da pausa, mas portanto pela própria pausa. Drinnen será
repetido duas vezes ainda na mesma estrofe, e todo o poema (que se termina pelos versos já
citados com o « cuidado do cantor») pode ser lido como a penetração do poeta na
profundeza, ou como a sua retirada a partir dela. O sentido se organiza, portanto, a partir do
Drin inicial, palavra cortante [coupant] (ela mesma uma crase de darin) e como que re-
cortada nesse começo de verso: Drin in…, assim como é rima no começo do terceiro verso:
Dahin, dorthin… Toda a estrofe é escandida pelo « in » e ressoa nele (o penúltimo verso
nomeia « o eco que ressoa no arredor ») – ou seja, pela direção, pelo elã, ou pela remissão,
tanto quanto pelo dentro, pela profundeza recoberta e no entanto escancarada: o sentido em
todos os seus sentidos. O sentido é aqui o golpe de ataque e a rima, a medida tanto quanto o
fim visado –

Denn bacchantischer zieht drinnen der Morgen herauf.


Pois mais báquica de lá de dentro sobe a manhã.

Stéphane Mallarmé, “Salut ”, “Brinde”, na tradução de Augusto de Campos. Optei pela composição “taça
da pausa”, para tentar restituir a equivocidade (N.T.)
153
“No coração dos Alpes, noite clara ainda, e a nuvem,/ Fonte do poema de alegria, cobre lá o vale aberto.”
(N.T.)
- mas não é, justamente, senão o fim infinito, que consiste ele mesmo em abrir outros fins, a
se abrir como fim, e também como seu único fim sonoro, seu único eco prolongado,
« LfMreudiges dichtend ».

A cada passo, a poesia de Hölderlin – talvez nesse aspecto uma das mais
monótonas que existam (mas será preciso retrabalhar toda a avaliação habitual da
« monotonia ») – repete essa mesma coisa, ou seja, repete-se a si mesma assim: uma frase
que avança e que se suspende sobre o seu próprio sentido, que surpreende o seu sentido
adiantado ou atrasado, e cujo metro mede esse adianto ou esse atraso, cada vez infinito.

Assim:

Ele busca o repouso, precipita-se assim,


O rio L…MNOP

- ou antes, sem buscar traduzir:

L…M assim cai:


A onda embaixo, busca o repouso, puxada,
Arrastada contra a vontade, de
Rocha em rocha, o sem-governo,
Pela prodigiosa atração pelo abismo 155

O poeta busca o repouso do sentido revelado – o « deciframento das lendas156 »


do qual fala o fim do mesmo poema – e cai sob medida no abismo do sentido. Mas não se
trata nem de uma precipitação no insensato, nem de uma magia evocatória de arcanos
significantes. Essa poesia é sem segredo. Se o poeta a conduz sem cessar de novo em
direção a um inacabamento de sentido, se ele a calcula assim, é sem mistério e sem efusão.
É ao contrário por uma retenção do sentido, em uma consciência aguda de seu excesso e da
fugitividade de sua passagem, e pela medida exata que a clareza dessa consciência permite.

154
Trecho de “Stimme des Volks”[A voz do povo”]. Citado por Nancy na tradução de Robert Rovini: “Il
cherche le repos, il se précipite ainsi,/ Le fleuve […] » (p. 781). (N.T.)
155 Em francês : « […] ainsi chute/ Le flot en bas, il cherche le repos, il est tiré,/ Entraîné contre son gré, de/
Roche en roche, le sans-gouverne,/ Par la prodigieuse attirance à l’abîme ». Tradução de Jean-Luc Nancy. O
texto na tradução de R. Rovini é o que se segue: « « Par le plus court chemin revenir au Tout ;/ Il cherche le
repos, il se précipite ainsi,/ Le fleuve que malgré lui attire/ Et désemparé de roc en roc emporte// Le
prodigieux, le nostalgique appel de l’abîme ; ». [« Pelo mais curto caminho retornar ao Todo ;/ Ele busca o
repouso, se precipit a assim,/ O rio que contra a vontade atrai/ E desampar ado de rochedo em rochedo carrega
// O prodigioso, o nostálgico chamado do abismo; »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit., p. 781.) . (N.E.F.)
156
Cf. Hölderlin, Œuvres , op. cit ., p. 782 : « Les fils en connaissaient le relato, et bonnes/ Sont certes les
légendes, car du Très-Haut/ Elles sont une mémoire, mais les sacrées,/ Il faut aussi pour les déchiffrer
quelqu’un. » [« Os filhos conheciam o relato disso, e boas/ São certamente as lendas, pois do Altíssimo / Elas
são uma memória, mas as sagradas,/ É necessário também para alguém decifrá-las. »] ((N.E.F.)
Seguir em toda clareza o movimento do sentido, sua verdade, não como um
caminho dotado de uma meta e de uma progressividade, mas como uma cadência que se
mantém sem no entanto fazer uma progressão –

como a fonte segue o rio


Para onde ela quer ir, é preciso que eu vá também
Seguir a sua segurança na errância 157

- ou ainda:

L…M olha! E o astro nobre,


Sabedor que tudo passa, vai,
158
Equânime, descendo o caminho.

O « sentido vivo » (vivo, compreendemos, até a morte: sua medida não é


menor) –

O eco da festa se apaga, e todas as coisas trilharão amanhã,


Seu caminho na estreita terra 159

– o incalculável, é sempre aquilo que vai para além do sentido, até o que não se pode
nomear nem perda nem ganho de sentido, mas justamente a verdade do sentido, mas
justamente a verdade do sentido, o que é ao mesmo tempo « alegria » (789) e « luto ». A
conjunção entre alegria e luto – sem dúvida o motivo hölderliniano por excelência –
responde à conjunção do sentido e de sua suspensão:

L…M quando vossa nuvem santa envolve um de nós,


Ficamos atônitos e não sabemos explicar.
Mas vós temperais-nos de néctar o hálito 160

157
Em francês : « comme la source suit le fleuve/ Vers où il veut aller, il faut que j’aille aussi / Suivre son
assurance dans l’errance ».Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê assim na tradução de G. Roud e R.
Rovini: « […] et comme au fleuve va la source,/ De force où il va il m’entraîne, et lui,/ Si sûr, je le suis à
tâtons. » [« {…} e como ao rio vai a fonte,/ Por força aonde ele vai ele me arrasta, e ele,/ Tão seguro, eu o
sigo às tateadas. »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit ., p. 783.) (N.E.F.)
158 Trecho de “Dichtermut”[“Coragem de poeta”], na tradução de Paulo Quintela, op.cit. , p. 217. Nancy cita a
tradução de R. Rovini: “[…] et vois ! l’astre sublime/ Sait la route changeante et la suit/ L’âme sereine
jusqu’au déclin” (p. 788). (N.T.)
159
Em francês : « L’écho de la fête s’éteint, et toute chose ira demain/ Son chemin sur l’étroite terre ».
Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê como segue na tradução de Ph. Jaccottet: « La fête passe, et toute
chose reprendra demain/ Son chemin sur l’étroite terre. » [« A festa passa, e todas as coisas retomarão amanhã
/ Seu caminho sobre a estreita terra. »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit., p. 831.) (N.E.F.)
160
Trecho de “Am Quell der Donau” [“Junto à nascente do Danúnio”], tradução de Paulo Quintela, op.cit.. , p.
321. Nancy cita a tradução de G. Roud: “[…] quand votre nuée sainte enveloppe l’un de nous,/ Une stupeur
nous saisit et nous ne savons en dire/ Le sens. Mais avec le nectar vous confortez d’arôme notre souffle » (p.
843). (N.T.)
Othem (o sopro, forma religiosa, luterana, de Athem) rima com deuten
(significar, interpretar). O ritmo do sopro responde à interrupção do sentido. O metro é a
medida própria desta: não é nem a sua expressão (ou mimesis) nem o seu saber, é o seu
modo e seu tom.

12. Assim, « Ein Rätsel ist Reinentsprungenes », ou seja, « Um enigma é o


puramente jorrado », ou « Um enigma é um puro ser-jorrado ». O sentido se enreda, não no
encadeamento, mas no jorrar e no pulo.

Um enigma é o puro jorrado. Mesmo


O canto quase pode desvelá-lo 161.

O corte separa aqui mesmo o canto de seu enigma, e toca ao mesmo tempo no
jorrar mesmo. O ato do poeta, o ato da medida, é de concordar [ s’accorder] com essa
« brusca presença » (849) ou com essa « sobrevinda » do divino que faz o divino como tal.
Se « o homem/ Ama o que é presente»,162 ele deve aprender a sustentar-lhe a vinda e a
partida – a partida « que vai com », se é permitido dizer assim – a totalidade da presença
como o ponto, o corte único da « medida que é de cada um 163 » (854).

O cálculo mede o instante, a presença, a breve escansão da vida e do sentido, da


vida do sentido – e eis por que ele mede também, mais do que o poema, o próprio poeta, e
no poeta « antes de tudo o indivíduo »: « A aprioridade do individual/ sobre o todo » (935).
O individual, aqui, não é o recinto de um individualismo. É a pontualidade indivisível, a
precisão de uma medida que é a cada vez uma, ao mesmo tempo que é a de todos. Também
a sua aprioridade não é uma prevalência, nem uma primazia: é, em todo rigor kantiano, a
condição de possibilidade da experiência mesma do todo. O todo pode ser presente para
todos se ele jorra e se eclipsa em um ponto cada vez único.

Tudo é íntimo
Isso separa
Assim guarda o poeta. (924)

161
Em francês : « Une énigme est le pur jailli. Même/ Le chant à peine peut la dévoiler ». Tradução de Jean-
Luc Nancy. O texto se lê na tradução de G. Roud como segue: « Énigme, ce qui naît d’un jaillissement pur! Et
par/ Le chant lui-même à peine dévoilée. Oui,/ Tel que tu naquis tu perdures. » [« Enigma, o que nasce de um
jorrar puro! E pelo / Próprio canto há pouco desvelado. Sim,/ Tal como nasceste tu perduras. »] Hölderlin,
Œuvres , op. ci t., p. 850.) (N.E.F.) O verso em alemão diz o seguinte : « Ein Rätsel ist Reinentsprungenes.
Auch/ Der Gesang kaum darf es enthüllen. […]”. Na tradução de Paulo Quintela, o trecho se lê : « Um
mistério é o que brota em pureza. E mesmo/ O canto mal pode desvendá-lo […] », op.cit.. , p. 373. (N.T.)
162
Em francês : « [L’] homme/ Aime ce qui est présent ». Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê na
tradução de G. Roud como segue: « « Ionie, je songe à toi ! Mais l’homme/ A le désir profond de la présence.
Et c’est pourquoi/ […] » [« Iônia, sonho contigo! Mas o homem/ Tem o desejo profundo da presença. E é por
isso / {…}] »(Hölderlin, Œuvres , op. cit., p. 848.) (N.E.F.)
163
Em francês : “[L]a mesure qui est à chacun”. Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê na tradução de
G. Roud como segue : « Mais à chacun sa mesure. » [« Mas a cada um a sua medida. »] (Hölderlin, Œuvres ,
op. cit., p. 854.) (N.E.F.)
O poeta deve « sentir e se apropriar da alma comum, que é de todos em comum
e própria a cada um164». E:

É preciso que os poetas que nasceram do espírito


Também sejam ligados ao mundo. (865)

[…] Muitos
Ajudam o céu. E o poeta
Os vê. É bom tomar apoio
Junto aos outros. Pois ninguém suporta sozinho a vida. (893)

Pois solitário não pode


Das celestes a riqueza portar
Um só […]. (909)

É assim que o poeta é « o indivíduo » ou a individualidade como tal


individuada: não o separado na suficiência ou na miséria do isolamento, mas a própria
separação pela qual o todo se partilha para todos, cada vez todo e cada vez um – muito
exatamente o um como medida do todona medida em que o todo é nele mesmo partilhado,
em que ele não é ele mesmo senão partilha: ponto, pausa e passagem, vestígio claro da
presença que assim se apresenta.

Eis por que « a individualidade poética srcinal » deve ser ela mesma
« abolid[a] » na « mais audaciosa, na última tentativa do espírito poético » (620) que deve,
através de sua própria « liberdade », pôr, apresentar sua própria individualidade fora dele,
diante dele, como uma figura exterior, como a objetividade de sua presença. Não é « nele
mesmo » que esse espírito « pode se reconhecer », mas fora de si. Esse fora de si do espírito
– seu corpo, sua medida, sua exatidão deposta diante dele –, é o real, presente, impenetrável
e pontual.

A poética de Hölderlin não é uma poética do possível, e ela não é, por


conseguinte, uma poética do poema como obra, ou seja, como mundo possível ou como
mundo dos possíveis, outro mundo imitando e sublimando este mundo. É ao contrário uma
poética do real: não um « realismo », mas uma poética da exterioridade a toda obra, e que a
obra tem somente por tarefa inscrever, ou antes, excrever165. A exterioridade da presença,

164
Em francês : “[S]entir et s’approprier l’âme commune, qui est à tous en commun et propre à
chacun”. Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê assim na tradução de Denise Naville: « Quand le poète
s’est rendu maître de l’esprit, quand il a senti et retenu, qu’il a pris possession, qu’il s’est assuré de l’âme
collective, commune à tout et propre à chacun ; […] » [« Quando o poeta se tornou mestre do espírito, quando
sentiu e reteve, que ele tomou posse, que ele se assegurou da alma coletiva, comum a tudo e própria a cada
um; {…]}»]. (Hölderlin, Œuvres , op. cit., tr. fr., p. 610.) (N.E.F.) Na tradução de Márcia Cavalcante o trecho
se lê: “Quando o poeta chega a assenhorear-se do espírito, quando sente, apropria-se, consolida, assegura-se
da alma comunitária, essaa que pertence a todos e não obstante é própria a cada um; [...].Hölderlin. Reflexões ,
op.cit.., p. 30. (N.T. )
165
Sobre essa noção cunhada por Nancy, ver a nota X supra. (N.T.)
essa exterioridade na qual e segundo a medida da qual, somente, a presença pode vir, vir e
ir embora.

O real está sempre fora, sempre em face, exatamente lá onde pousa « o olhar
aberto », aquele para o qual « se abre a luz », « a evidência do céu»: « Venha para o aberto,
amigo! ». O real em direção ao qual é preciso ir, infinitamente, exatamente, e a medida
poética dá disso a distância e a proximidade, o distanciamento e a iminência no instante da
passagem.

Se o homem « habita como poeta » – « Rico em méritos, mas poeticamente


sempre,/ Sobre a terra habita o homem » (939) – não é de maneira nenhuma no sentido de
que o « poético » viria modificar o « habitar », muito menos embelezá-lo ou sublimá-lo.
Não é tampouco propriamente « a poesia que faz da habitação uma habitação » (como
queria Heidegger). É, antes, o « habitar sobre a terra » – ser/estar no real, ser/estar para o
real – que faz o poético: a terra, o fora, a presença irredutível, inapropriável, mede o
afastamento do que lá se encontra, que essencialmente lá se encontra – e para lá se perder
também essencialmente. O homem não habita o céu, onde tudo é sem distância. Mas ele
tem diante dele o céu, cuja evidência o mede. E o que ele arrisca « poeticamente » é virar
em direção a ele, com suas « pupilas atentas » (869, 874), um olhar exato, infinito, no bom
momento, no momento bem calculado: a todo instante, conquanto seja o instante de um tal
cálculo.

E, se puderes, para essa luz levanta


os olhos, ela que tudo vê! […] (516)

O olhar exato não se apropria de sua visão. Ele olha o que o vê, ele olha que
ele é visto de mais longe, de sempre mais longe na unidade de tudo. Ele toca nesse
deslumbramento, em sua iminência, em sua passagem ínfima, inapreensível, nunca
assegurada e, no entanto, tão clara e tão real.

[E]u me ligo cada vez mais aos homens, pois reconheço nos pequenos assim como
nos grandes lados de sua atividade e de seus caracteres um só e mesmo caráter srcinal, um
só e mesmo destino. Sim, é essa necessidade de avançar, de sacrificar um presente
assegurado a alguma coisa de incerta, de diferente, de melhor, e desde sempre melhor, que eu
considero como a causa primeira dos feitos e gestos de todos os homens que estão ao meu
redor. 166 (710)

166
Carta a seu irmão Karl datada de 4 de junho de 1799, de Hamburgo. (N.T.)
Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do
Nascimento Loyolla
2. FAZER, A POESIA

Se compreendemos, se acedemos de uma maneira ou de outra, a uma orla de


sentido, é de modo poético. Isso não quer dizer que qualquer espécie de poesia constitua
um medium ou um meio de acesso. Isso quer dizer - e é quase o contrário - que só esse
acesso define a poesia, e que ela não tem lugar senão quando esse acesso tem lugar.

Eis por que a palavra « poesia » designa tão bem uma espécie de discurso, um
gênero em meio às artes, ou uma qualidade que pode se apresentar fora dessa espécie ou
desse gênero, tanto quanto pode estar ausente das obras dessa espécie ou desse gênero.
Segundo Littré, a palavra tomada de modo absoluto significa: « Qualidades que
caracterizam os bons versos, e que podem se encontrar alhures que nos versos. (...)
Resplendor e riqueza poéticos, mesmo em prosa. Platão é pleno de poesia. » A poesia é,
pois, a unidade indeterminada de um conjunto de qualidades que não são reservadas ao
tipo de composição denominado de « poesia », e que não podem elas mesmas ser
designadas, senão afetando com o epíteto « poético » termos tais como riqueza,
resplendor, ousadia, cor, profundidade, etc.

Littré declara ainda que, em seu sentido figurado, « diz-se poesia de tudo aquilo
que há de elevado, de tocante, numa obra de arte, no caráter ou na beleza de uma pessoa
e até mesmo numa produção natural ». Assim, desde que sai de seu emprego literário,
essa palavra toma um sentido somente figurado, mas esse sentido não é, no entanto,
senão a extensão do sentido absoluto, quer dizer, da unidade indeterminada de
qualidades, de que os termos « elevado » e « tocante » fornecem os caracteres genéricos.
A poesia como tal é, pois, sempre propriamente idêntica a si mesma, da composição de
versos até a coisa natural, e ao mesmo tempo sempre somente uma figura dessa
propriedade inassinalável em qualquer sentido próprio, propriamente próprio. « Poesia »
não tem exatamente um sentido, mas, antes, o sentido do acesso a um sentido cada vez
ausente, e reportado para mais longe. O sentido de « poesia » é um sentido sempre a se
fazer.

A poesia é, por essência, mais e outra coisa que a própria poesia. Ou então: a
própria poesia pode muito bem se encontrar lá onde não há mesmo poesia. Ela pode
mesmo ser o contrário ou a recusa da poesia, e de toda poesia. A poesia não coincide
consigo mesma:
propriamente talvez essa não-coincidência, essa impropriedade substancial, faça
a poesia.

A poesia não será, pois, o que ela é senão com a condição de ser, ao menos,
capaz de se negar: de se renegar, de se denegar ou de se suprimir. Ao se negar, a poesia
nega que o acesso ao sentido possa ser confundido com um modo qualquer de expressão
ou de figuração. Ela nega que aquilo que é « elevado » possa ser posto ao alcance das
mãos, e que aquilo que é « tocante » possa ter saído da reserva a partir da qual,
precisamente, ele toca.

A poesia é, pois, a negatividade em que o acesso se faz o que ele é: isso que
deve ceder, e, para isso, de saída deve se esquivar, se recusar. O acesso é difícil, não é
uma qualidade acidental: isso quer dizer que a dificuldade faz o acesso. O difícil é o que
não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. Porque ela o
faz, isso parece fácil, e eis porque, desde muito tempo, a poesia é dita « coisa ligeira ».
Ora, não é somente uma aparência. A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente
difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não quer dizer que ela seja aplainada.
Isso quer dizer que ela é poesia, apresentada para aquilo que ela é, e que nós estamos
engajados nela. De repente, facilmente, estamos no acesso, quer dizer, na absoluta
dificuldade, « elevada » e « tocante ».

Vê-se aqui a diferença entre a negatividade da poesia e sua gêmea, a


negatividade do discurso dialético. Esta põe em obra, de modo idêntico, a recusa do
acesso como verdade do acesso. Mas faz da recusa tanto uma extrema dificuldade
quanto a promessa, sempre presente e sempre reguladora, de uma resolução e, por
conseguinte, de uma extrema facilidade. A poesia, por sua parte, não está nos
problemas: ela faz na dificuldade.

(Essa diferença, todavia, não pode se resolver numa distinção entre a poesia e a
filosofia, já que a poesia não admite ser circunscrita a um gênero do discurso e já que
« Platão » pode ser « pleno de poesia ». Filosofia versus poesia não constitui uma
oposição. Cada uma faz a dificuldade da outra. Juntas, elas são a dificuldade mesma: de
fazer sentido.)

Decorre disso que a poesia é igualmente a negatividade nesse sentido de que ela
nega, no acesso ao sentido, o que determinaria esse acesso como uma passagem, uma
via ou um caminho, e que ela o afirma como uma presença, uma invasão. Mais do que
um acesso ao sentido, é um acesso de sentido. De repente (facilmente), o ser ou a
verdade, o coração ou a razão, cedem seu sentido, e a dificuldade está aí, cativante.

De maneira correlativa, a poesia nega que o acesso possa ser determinado como
um em meio a outros, ou um relativamente a outros. A filosofia admite que a poesia seja
uma outra via (e, às vezes, a religião). Por isso mesmo, Descartes pode escrever: « Há
em nós sementes de verdade: os filósofos as extraem pela razão, os poetas as arrancam
pela imaginação, e elas brilham então com mais resplendor. » (recitado de memória).167
A poesia não admite nada de recíproco. Ela afirma o acesso absoluto e exclusivo,
imediatamente presente, concreto, e, como tal, incambiável. (Não sendo/estando na
ordem dos problemas, não há muito menos diversidade de soluções.)

167
A frase exata de Descartes diz : « Há em nós sementes de ciências, como em um sílex há sementes de
fogo; os filósofos as extraem da razão, os poetas as arrancam pela imaginação: elas bri lham então com
mais força”. Descartes. Olympiques . Édition Alquié des Oeuvres Philosophiques. Tomo 1. Paris: Éditions
Classiques Garnier, col. "Textes de philosophie", 2010, p. 61. (N.T.)
A poesia afirma, pois, o acesso, não no regime da precisão - suscetível de mais
e de menos, de aproximação infinita e de deslocamentos ínfimos -, mas no regime da
exatidão. Está feito, está acabado, o infinito é atual.

Assim, a história da poesia é história da recusa persistente de deixar a poesia se


identificar com algum gênero ou modo poético - não, todavia, para inventar um gênero
ou modo mais preciso que os outros, e muito menos para dissolvê-los na prosa como na
verdade deles, mas para determinar incessantemente uma outra, nova exatidão. Esta é
sempre de novo necessária, pois o infinito é atual um número infinito de vezes. A poesia
é a praxis do eterno retorno do mesmo: a mesma dificuldade, a dificuldade mesma.

Nesse sentido, a « poesia infinita » dos românticos é uma apresentação tão


determinada quanto a cinzeladura mallarmeana, o opus incertum de Pound ou o ódio da
poesia de Bataille. O que não significa que todas essas apresentações sejam indiferentes,
ou não sejam senão figurações de uma idêntica infigurável Poesia, e que, por essa
mesma razão, seriam inconsistentes todos os combates de « gêneros », « escolas » ou
« pensamentos » da poesia. Mas isso significa que não há apenas essas diferenças: o
acesso não se faz, cada vez, senão uma vez, e está sempre a se refazer, não porque ele
seria imperfeito, mas, ao contrário, porque ele é (quando cede) cada vez perfeito. Eterno
retorno e partilha de vozes.

A poesia não ensina nada além dessa perfeição.

Nessa medida, a negatividade poética é também justamente a posição


rigorosamente determinada da unidade e da unicidade exclusiva do acesso, de sua
verdade absolutamente simples: o poema, ou o verso. (Poder-se-ia também nomeá-lo: a
estrofe, a estância, a frase, a fala - ou o canto.)

O poema ou o verso é todo um: o poema é um todo do qual cada parte é um


poema, quer dizer, um « fazer », acabado, e o verso é uma parte de um todo que é ainda
um verso, ou seja, um truque de linguagem, uma voragem ou um reverso de sentido168.

O poema ou o verso designa a unidade de elocução de uma exatidão. Essa


elocução é intransitiva: ela não remete a nenhum sentido nem a um conteúdo; ela não
comunica nada dele, mas faz sentido, sendo exata e literalmente a verdade.

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Ela não pronuncia, pois, nada além daquilo que faz o ofício da linguagem, ao
mesmo tempo sua estrutura e sua responsabilidade: articular sentido, sendo entendido
que não há sentido senão numa articulação. Mas a poesia articula o sentido, exatamente,
absolutamente (não uma aproximação, uma imagem ou uma evocação).

Que a articulação não seja unicamente verbal, e que a linguagem deixe passar
infinitamente a linguagem, é uma outra questão - ou então, é a mesma: diz-se « poesia »
de « tudo o que há de elevado e tocante ». Na linguagem ou alhures, a poesia não produz
significações: ela faz a identidade objetiva, concreta e exatamente determinada, do
« elevado » e do « tocante » com uma coisa.

A exatidão é o acabamento integral: ex-actum, o que é feito, o que é acionado


até o fim. A poesia é a ação integral da disposição ao sentido. Ela é, cada vez que tem
lugar, uma exação de sentido. A exação é a ação de exigir uma coisa devida, depois a
ação de exigir mais do que o que é devido. O que é devido pela palavra é o sentido. Mas
o sentido é mais do que tudo o que pode ser devido. O sentido não é uma dívida, não é
requisitado, e podemos viver sem. Podemos viver sem poesia. Podemos sempre
dizer « para que servem poetas? ». O sentido é um excedente, é um excesso: o excesso
do ser sobre o ser ele mesmo. Trata-se de aceder a esse excesso.

Eis também por que « poesia » diz mais do que o que « poesia » quer dizer. E
mais precisamente - ou melhor, exatamente: « poesia » diz o mais-que-dizer enquanto
tal, e enquanto ele estrutura o dizer. « Poesia » diz o dizer-mais de um mais-que-dizer. E
diz também, por conseguinte, o não-mais-o-dizer. Mas dizer isso. Cantar também, por
conseguinte, timbrar, entoar, bater ou tocar.

O semantismo particular da palavra « poesia », sua perpétua exação e


exageração, sua maneira de ultra-dizer, lhe é congênito. Platão (ainda ele, o velho
challenger da poesia) enfatiza que poiesis é a palavra à qual se fez tomar o todo pela
parte: o todo das ações produtoras só pela produção métrica de palavras escandidas. Esta
esgota, pois, a essência e a excelência daquela. Todo o fazer se concentra no fazer do
poema, como se o poema fizesse tudo o que pode ser feito. Littré (ainda ele, o poeta da
ode à La Lumière [A Luz]169) recolhe essa concentração: « poema... de poiein, fazer: a
coisa feita (por excelência.) ».

Porque então a poesia seria a excelência da coisa feita? Porque nada pode ser
mais acabado do que o acesso ao sentido. Ele é todo inteiramente, se ele é, de uma
exatidão absoluta, ou então não é (nem mesmo aproximativo). Ele é, quando é, perfeito,
e mais que perfeito. Quando o acesso tem lugar, sabe-se que ele tinha sempre estado ali,
e que, do mesmo modo, ele retornará sempre (mesmo que se devesse não saber nada
disso: mas deve-se pensar que, a cada instante, alguém, em alguma parte, acede). O
poema tira o acesso de uma ancestralidade imemorial, que não deve nada à
reminiscência de uma idealidade, mas que é a exata existência atual do infinito, seu
retorno eterno.

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A coisa feita é finita. Sua finição é a perfeita atualidade do sentido infinito. Daí
que a poesia é representada mais antiga do que toda distinção entre prosa e poesia, entre
gêneros ou entre modos da arte de fazer, ou seja, da arte, absolutamente. « Poesia » quer
dizer: o primeiro fazer, ou então o fazer enquanto ele é sempre primeiro, cada vez
srcinal.

O que é fazer? É pôr no ser. O fazer se esgota na posição assim como em seu
fim. Esse fim que o fazer teve como sua meta, eis que ele é seu fim assim como sua
negação, pois o fazer se desfaz em sua perfeição. Mas aquilo que é desfeito é
identicamente o que é posto, perfeito e mais que perfeito. O fazer acaba cada vez alguma
coisa e a si mesmo. Seu fim é a sua finição: nisso ele se põe infinito, cada vez
infinitamente para além de sua obra.

O poema é a coisa feita do fazer ele mesmo.

Essa mesma coisa que é abolida e posta, é o acesso ao sentido. O acesso é


desfeito como passagem, como processo, como visada e caminhar, como abordagem e
aproximação. Ele é posto como exatidão e como disposição, como apresentação.

Eis porque o poema, ou o verso, é um sentido abolido como intenção (como


querer-dizer), e posto como finição: não se retornando sobre sua vontade, mas sobre seu
fraseado. Não sendo mais um problema, mas um acesso. Não a comentar, mas a recitar.
A poesia não é escrita para ser aprendida de cor: é a recitação de cor que faz de toda
frase recitada pelo menos uma suspeita de poema. É a finição mecânica que dá acesso ao
infinito do sentido. Aqui, a legalidade mecânica não consiste em uma antinomia com
relação à legislação da liberdade: mas a primeira libera a segunda.

A apresentação deve ser feita, o sentido deve ser feito, e perfeito. Isso não quer
dizer: produzido, nem operado, nem realizado, nem criado, nem acionado, nem
engendrado. Exatamente, isso não quer dizer nada de tudo isso, nada pelo menos que
não seja de saída, em tudo isso, aquilo que o fazer quer dizer: aquilo que o fazer faz à
linguagem quando ele a perfaz em seu ser, que é o acesso ao sentido. Quando dizer é
fazer, e quando fazer é dizer. Como se diz: fazer amor, que é não fazer nada, mas fazer
um acesso ser. Fazer ou deixar: simplesmente pôr, depor exatamente.

Não há fazer (nenhuma arte ou técnica, nenhum gesto, nenhuma obra) que não
seja mais ou menos surdamente trabalhado por essa deposição.

Poesia é fazer tudo falar - e depor, em retorno, todo falar nas coisas, ele mesmo
como uma coisa feita e mais que perfeita.

Recitação de infância:
Es schläft ein Lied in allen Dingen
Die da träumen fort und fort,
Und die Welt hebt an zu singen
Triffst Du nur das Zauberwort170.

Essa questão da poesia, tão velha e tão pesada , embaraçosa e pegajosa, resiste
ao nosso tédio e ao nosso desgosto mais forte por todas as mentiras poéticas, pelos
mimos e pelas sublimidades. Mesmo se ela não nos interessa, ela nos detém,
necessariamente. Hoje tanto quanto, diferentemente, na época de Horácio ou na de
Scève, na de Eichendorff, de Eliot ou de Ponge. E, se foi dito que, depois de Auschwitz,
a poesia seria impossível, depois às avessas que ela seria necessária depois de
Auschwitz, é precisamente da poesia que pareceu necessário dizer as duas coisas. A
exigência do acesso do sentido - sua exação, seu pedido exorbitante - não pode cessar de
deter o discurso e a história, o saber e a filosofia, o agir e a lei.

Que não nos falem de ética ou de estética da poesia. É justamente em montante,


no mais que perfeito imemorial da ética ou da estética, que se mantém o fazer notado
« poesia ». Ele se mantém de tocaia como uma besta feroz, esticado como uma mola, e
assim em ato, já.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla

170
Tradução rápida : « Um canto dormita em todas as coisas/ Que estão aí sem parar a sonhar/ E o mundo
se põe a cantar/ Se você encontrar a palavra mágica » (J.-L. N.). Joseph von Eichendorff, « Wünschelruthe
», em Sämtliche Werke des Freiherrn Joseph von Eichendorff , Volume I « Gedichte », primeira parte,
Harry Fröhlich et Ursula Regener (éds), Stuttgart/Berlin/Cologne, Verlag W. Kohlhammer, 1993, p. 121.
(N.E.F.)
3. CONTAR COM A POESIA
Entrevista de Jean-Luc Nancy com Pierre Alferi

1. O primeiro ensaio de Les Muses [As Musas] certifica-se da dispersão das


artes no pós-romantismo. O que teria acontecido com esse absoluto poético que pôde se
confundir com o absoluto literário? Por que a poesia perdeu irremediavelmente seu
estatuto de federadora das artes? Em quê isso não é um mal?

É exato que eu me certifique “da dispersão das artes no pós-romantismo »?


Devo ter me expressado mal e muito pouco. O romantismo exibe uma vontade da arte
no singular e de modo absoluto, o que, de resto, não significa que essa vontade não
possa ser apontada antes dele, talvez mesmo bem antes dele. Mas enfim, ele a exibe, e
isso deve também nos lembrar, ao mesmo tempo, que antes dele as artes – aquelas que
se federam então sob o nome ainda plural de « belas-artes », ele mesmo ainda distinto
das « belas-letras », e ainda aderente, pela distinção que ele faz, às artes não-belas,
liberais ou servis -, as artes, portanto, tinham modos de ser relativamente distintos. Aí
está, sobre o que vem antes (o que não impede que algo do conceito da « arte » já se
mantivesse ali presente, não explicitado).

Quanto ao após, seria preciso longamente desenvolver a questão: pois a


« dispersão » no romantismo é correlativa de um incessante agrupamento sob a égide,
muito menos federativa, mas assuntiva e unitária, da « arte » no singular. Tudo se joga
numa violenta tensão entre dois polos, de fragmentação e de hipóstase unitária sob o
nome de « arte ». O que é preciso sem dúvida observar é que essa hipóstase tem cada
vez mais tendido a designar o seu referente, ou seu embrayeur,171 nas artes plásticas, ao
invés de na poesia. Para o romantismo ao contrário, « poesia » é o nome absoluto. Sob o
nome de « arte », por conseguinte, algo ao mesmo tempo se emancipou das tutelas
religiosa, política e filosófica, hipostasiou-se como uma essência própria,
autorreferencial, autolegitimou-se, e também se distendeu em si mesmo, menos por
« dispersão » propriamente dita, do que por confusão de seus gêneros ou de suas
espécies – confusão, interferência ou multiplicação indefinida.

Mas é certo que é a poesia que pagou principalmente a conta na história. A


poesia, isto é, nesse sentido, o nome romântico da arte. De modo que se poderia dizer
que a arte moderna é o agrupamento em torno de um nome exsangue – a arte - de

« práticas
Por artísticas
quê? Talvez » que aperderam
porque o nome
poesia, para próprio de sua
os românticos, identidade
mas comum
já para Kant – a poesia.
e para outros
antes deles, designava o órgão do infinito. O órgão do infinito deveria ser aquilo que põe
em obra, no sentido forte da palavra « obra », uma transcendência absoluta de toda

171
« Embrayeur”, tradução francesa do “ shifter ”, a embreagem, segundo denominação de Roman
Jakobson, designando as expressões que só podem ser determinadas em relação aos interlocutores, os
dêiticos . Roman Jakobson. Essais de linguistique générale . Paris: Minuit, 1963. Cf. Oswald Ducrot e
Tzvetan Todorov. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem . Trad. Alice Kyoko Miyashiro e
outros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. (N.T.)
determinação. O romantismo é a liquidação (pelo menos, é a sua vontade) da
determinação – como se uma angústia geral se tivesse apossado de uma sociedade que se
via mergulhar na determinação.

A poesia se tornou a auto-superação da linguagem, a auto-superação do sentido


– concebido como o sentido mesmo [le sens meme]. Daí também o pega tenso,
crispado, enredado que ela teve com a filosofia (a menos que isso não tenha partido
desta: como distinguir? Como não refazer toda uma história, que deve remontar não
somente ao romantismo, nem mesmo ao Renascimento, mas a Platão, para discernir o
que está empenhado desde o início: um quiasma, um conflito íntimo entre poesia e
filosofia? Não quero avançar por este caminho, e não o poderia, mas escrever essa
história inteira – da qual existem, certamente, fragmentos - seria hoje uma tarefa
necessária). As outras artes se mostraram contra (mas « muito próximas»: ao mesmo
tempo tomadas pela mesma vertigem, e a recusando) toda sorte de recursos « formais » -
quer dizer a « forma » enquanto recusa do derramamento do sentido, garrote contra a
hemorragia. A esse respeito, seria preciso seguir a história tão moderna do « pequeno » e
do « grande » na arte: pequenas formas e grandes formas, grande arte e arte minimalista,
postura heroica e postura artesanal, etc. Assim sendo, as « artes » puderam parecer
permanecer isentas dessa espécie de dissolução interna, de perda de identidade por
super-identificação que ganhou a poesia.

Isso dito, uma observação: o senhor parece considerar que seria tempo, hoje, de
certificar-se dessa perda de privilégio da poesia. O senhor faz como se o « ódio da
poesia » (expressão de Bataille, o senhor o sabe) não tivesse sido desencadeado desde
muito tempo, desde Rimbaud, depois Valéry, em seguida Bataille ou Artaud, e outros
ainda. De modo que me pergunto se não é, antes, preciso se interrogar a partir dessa
situação desde muito tempo suicida, ou autodenunciadora, que faz com que hoje, senão
a poesia, pelo menos o poético, seja amplamente mantido em suspeição. De tal modo
que eu seria quase levado a me perguntar se essa própria suspeita não deve ser, por sua
vez, posta sob suspeita. Não quero dizer que se trata de anulá-la, mas de saber
justamente o que ela recobre: e se fosse de fato desejável redescobrir uma « verdadeira »
poesia? Vou voltar a esta questão no item 3.

2. No cerne dessa pluralidade irredutível das artes, a poesia goza do privilégio


temível de passar por ser a mais artística das práticas literárias e a mais arbitrária das
práticas artísticas. (Comparados aos artistas plásticos, aos compositores, aos
arquitetos, os poetas se nos afiguram na maioria das vezes como pintores de domingo.)
Qual seria a maneira rigorosa, fiel às exigências do tempo, de afirmar esse estatuto
ambíguo?

Não posso responder a essa pergunta, antes de mais nada, porque compreendo
mal os termos de sua primeira frase – principalmente « a mais arbitrária das práticas
artísticas »: melhor me pareceria que, desde então, e se quisermos dizer as coisas nesses
termos, o «arbitrário » está aceitavelmente espalhado, não somente através da
diversidade das artes, mas mais amplamente, no que toca à definição mesma dos
« gêneros artísticos », no que toca a suas economias, transgressões, hibridações, e enfim
no que toca à categoria mesma da « arte ». Parece-me, então, que é antes nessa
perspectiva que seria preciso abordar a questão. Em seguida, eu não saberia responder
ao que é perguntado, pois não tenho nada a prescrever à poesia. Quando muito posso
dizer que ela não saberia como ficar quites com a vizinhança da filosofia, vizinhança
íntima, complexa, conflitual, sedutora e captadora ao mesmo tempo - e isso, uma com
relação à outra e vice-versa. Será preciso justamente, voltar de novo a esse
enfrentamento. O filósofo não pode, em todo caso, deixar de ser tocado - ou atenazado -
por uma espécie de necessidade de poesia que lhe vem do mais vivo de sua prática, e
independentemente de toda exaltação, de toda tentação « poetizante». Isso não quer
dizer que a poesia deva - como dizer? - tomar a seu cargo a metafísica. Não é, em todo
caso, uma questão de « grandes temas » ou de « pensamentos profundos », nem só nem
simplesmente. Seria, antes, a questão do que, na relação com a língua (ou do ser-na-
língua), é comum entre filosofia e poesia - que é comum e que as partilha (nos dois
sentidos da palavra) do interior dessa comunidade. Não posso dizer mais sobre isso por
agora, mas há aí, em todo caso, necessidade, e não arbitrário.

3. Tomando antecipadamente o contrapé de todos os seus avatares, o primeiro


romantismo anunciava que « a ideia da poesia » seria « a prosa » (segundo a frase que
Phillippe Lacoue-Labarthe gosta de citar). Esse anúncio não vale ainda hoje?O gosto
da poesia pelos objetos parciais, seu fetichismo formal a fazem criticamente tocar o seu
limite: será que eles não a convidam assim a uma espécie de auto-superação, quer
dizer, de « prosaicização »?

Não somente o anúncio romântico da « prosa » vale ainda hoje, mas é certo que
estamos mais do que antes sob sua injunção, ou, se preferirem, sob o seu comando
(como diriam em língua de computador, « na linha de comando POE.SIA/>, digite cd
PRO/SA...). Essa questão nos assombra literalmente, e poderíamos multiplicar-lhe as
provas e os índices. Mas é precisamente aqui que eu gostaria de introduzir aquilo que
anunciei no fim do item 1.

Parece-me que seria preciso levantar um simples equívoco: ao reivindicar a


prosa, não se reivindica tampouco apenas com efeito « a ideia da poesia », segundo a
fórmula romântica. A partir disso, há seguramente muitas coisas precisas e finas a dizer,
que alguns românticos disseram (os românticos da « sobriedade », contra os românticos
do romantismo sentimental e misticizante), que Benjamin disse, que dizem hoje de
maneiras bem diversas, e às vezes antinômicas, textos de Lacoue-Labarthe, Badiou,
Derrida, Agamben, Deguy, Bailly ou de Alferi, de outros mais, sem dívida, que eu
ignoro. Mas enfim resta também o fato de que é de « poesia » que se trata. A coisa era
muito mais clara entre os românticos: à fórmula lembrada há pouco, acrescente-se, por
exemplo, esta de Novalis: « A poesia é a prosa entre as artes. »172. (Cf. O conceito de
crítica... de Benjamin, p. 107, etc.) Poderemos comentá-la mais tarde, se o senhor

172
Novalis, citado por Walter Benjamin em : O conceito de crítica de arte no romantismo alemão . Tradução :
Márcio Seligmann-Silva. São Paulo : Iluminuras, 1999, 2ª edição, p. 107. ( Le Concept de critique esthétique
dans le romantisme allemand . Tradução : Philippe Lacoue-Labarthe e Anne-Marie Lang, Paris, Flammarion,
col. « La philosophie en effet », 1986, p. 152.) (N.E.F. ; N.T.)
quiser, mas no momento preciso sublinhar o seguinte: a « prosa » da qual falamos aqui é
a « verdadeira » poesia, ou a verdade da poesia. Ora, acredito observar que hoje, em
muitas maneiras de falar sobre a questão e também em sua própria pergunta, produz-se
um tal deslizamento que a prosa aparece como « o outro » da poesia, ou sem dúvida
como sua realização, mas por « estranhamento», como se dizia outrora para traduzir o
Entfremdung em Hegel. O senhor mesmo diz « auto-superação ». Deveríamos discutir
esse termo dialético - mas por ora peço uma única coisa: que ponhamos novamente
sobre a poesia, nessa questão, o acento que lhe compete ou que permanece ligado a ela,
em lugar de dar a impressão de que tudo cai na « prosaicização », que poderia deixar
crer que um « prosaísmo » não está longe, enquanto o senhor mesmo (assim como
aqueles que citei) se guarda de empregar uma tal palavra!

Quero dizer o seguinte, muito simplesmente: se, de um lado, está claro que não
se quer mais, que ninguém aguenta mais, o poético e a poetização, a exaltação
grandiloquente, as suavidades evocatórias, o que Bataille denominava « a tentação
pegajosa da poesia », para não dizer nada dos academicismos, que estão mortos, mesmo
quando academicismos românticos, simbolistas, mallarmeanos, surrealistas ou « pós-
modernistas », de outro, no entanto, não está claro o que se demanda com a prosa.

Para os românticos, ainda aí, era mais claro: a « prosa » era de uma parte a
« sobriedade » (sugiro que a deixemos no momento em reserva: é um vasto programa,
sobre o qual, ainda aí, todo mundo hoje está mais ou menos de acordo – sem que o que
se trata esteja ainda bem nítido), mas era de outra parte essa dissolução ou fluidificação
dos gêneros, cujo paradigma era para eles o romance. Sei bem que o que eles entendiam
por « romance » não era exatamente o que nós entendemos por isso. Por uma ponta, isso
se atinha ainda à ideia de um devir moderno da epopeia (e de um devir épico da
modernidade), enquanto que pela outra ponta não era senão um nome para batizar o
problema: a « auto-superação » infinita da poesia. Resta que não podemos mesmo mais
usar esse nome como suporte ou como índice. Salvo erro, o romance está atrás de nós - e
ele não representa há muito tempo essa ideia da « prosa ». (Ou então, seu nome é
utilizado deliberadamente em contra-senso, quando alguns intitulam « romance » o que
não tem nada a ver com esse « gênero » - e seria preciso comentar esses gestos.)

Tudo isso faz com que « a ideia da poesia » insista mais do que nunca enquanto
tal, se posso dizer assim, ou seja, como ideia da poesia, e que é apesar de tudo com essa
palavra, volens nolens173, que é preciso se virar - ou antes, se confrontar, se bater talvez,
mas também, inevitavelmente, imperativamente, contar.

Eis o que eu diria: não se pode mais não contar com a poesia. Ou: é preciso
contar com a poesia. É preciso contar com ela em tudo o que fazemos e pensamos dever
fazer, em discurso, em pensamento, em prosa e em « arte » em geral. O que quer que
haja sob essa palavra, e supondo que não haja aí mais nada que não seja datado, finito,
desalojado, aplainado, resta essa palavra. Resta uma palavra com a qual é preciso contar
porque ela exige o que lhe é devido. Podemos suprimir o « poético », o « poema » e o
« poeta » sem muitos danos (talvez). Mas com « a poesia », como todo o indeterminado

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de seu sentido e apesar de toda essa indeterminação, não há nada a fazer. Ela está aí, e
está aí, mesmo que a recusemos, a suspeitemos, a detestemos.

4. Essa superação estaria ligada, ainda aí, às relações da poesia com as outras
artes? E mais particularmente a uma nova maneira de conceber sua tecnologia? Les
Muses denuncia no plano dos princípios as oposições e as reticências onde se aferra o
pensamento da técnica em se tratando das artes: qual esforço particular a sua
superação suporia da parte da poesia?

Permita que eu aproveite o ponto precedente para passar à sua quarta questão.
Pelo menos, vou me servir dela para encadear sobre isto:

Se a poesia insiste e resiste - ela resiste a tudo, de uma certa maneira, e é talvez
também porque os poetas se nos afiguram frequentemente como «pintores de domingo»,
como o senhor diz com razão: a insistência da poesia percorre até as formas mais
humildes, mais pobres, mais desmunidas, até verdadeiras misérias literárias, até o gosto
mais açucarado ou mais imbecil por mingaus meio cadenciados de esoterismo e de
sentimentalidade (há aí como que uma mendicância), mas se ela vai até aí, tão baixo, é
porque ela insiste, porque ela demanda alguma coisa, e alguma coisa que, creio
verdadeiramente, não podemos reduzir às recaídas pequeno-burguesas do pior
romantismo (do gênero « poesia de adolescente », ou mesmo, antes disso, as « manias
de rimar » das quais se ri em Molière), alguma coisa que não é « subcultura », nem
mesmo « cultura » simplesmente -, se a poesia insiste e resiste, portanto, é além dessas
manifestações derrisórias, e é por outras razões.

(Com certeza seria preciso ainda analisar como a vulgaridade poética tão
espalhada se atém à aparente proximidade das técnicas poéticas, diferentemente das
técnicas das outras artes. Não me deterei nisso aqui.)

Quais são, portanto, as razões da resistência poética? Eu veria ao menos dois


móveis: de uma parte, é uma resistência ao discurso; nesse sentido preciso, de que não é
uma resistência ao conceito, à razão, nem ao juízo, à lógica ou à prova, mas é uma
resistência ao infinito (ao « mau infinito », em termos hegelianos) do discurso que se
esgota, cuja lei é um esgotamento infinito, necessário em sua ordem e todavia
apaziguante, apaziguando-se, se posso dizer, sob a injunção paranoica de constituir o
verdadeiro ao constituir-se a si mesmo, assumindo-se e se reabsorvendo em sua
autoconstituição e em sua autocompreensão.

Tomo um exemplo, porque me parece que seja necessário dar um. Sem a menor
vontade de faltar ao respeito com Husserl, citarei essa conclusão (o que foi colocado em
conclusão, e que, portanto, não chega a concluir esse texto inacabado) da Krisis [Crise].
Ouça:

[...] Razão justamente significa aquilo que o homem enquanto homem deseja em seu
mais íntimo, a única coisa que pode satisfazê-lo, torná-lo « feliz »; significa que a Razão não
admite nenhuma separação entre razão « prática », « teórica », « estética » e não sei o que mais;
que ser-homem é ser teleologicamente e é dever-ser, e que essa teleologia reina em tudo aquilo
que fazemos, e em tudo aquilo que temos em vista egologicamente, que ela pode reconhecer
sempre nisso, pela compreensão de si, o telos apodítico, e que esse reconhecimento da última
compreensão de si não tem outra forma senão a compreensão de si segundo princípios a priori, a
compreensão de si na forma da filosofia. 174

Penso que o senhor entende o que quero sugerir: esse discurso, indefinidamente
desenvolvível (e que Fink projetava prosseguir), diz tudo exceto aquilo de que fala
« por último », a forma da filosofia - ou antes, ele diz, ele discorre sobre ela, mas ele é
também a indefinida de-formação ou o indefinido retardamento disso (o senhor notou
além disso, a propósito, a invocação de uma razão « estética » que não deveria estar
« separada »...). A isso, a « poesia » resiste. Ela pode admitir tudo o que está dito aí (por
ora, não façamos tempestade num copo d´água por causa do que está dito, tal como está
dito aqui), mas ela não pode admitir que a « forma » em questão se envolva, e em suma
« se forme » a si mesma de sua própria denegação. Quando digo que « a poesia não
admite », isso não quer dizer que ela seja uma instância de autoridade que teria o direito
e o poder de uma tal recusa. É preciso antes dizer: essa recusa é a poesia, e mesmo
quando a « poesia » permanece ou parece, nesse instante, completamente indeterminada,
esta palavra é, ao menos, determinada por essa recusa e como seu próprio gesto.

(Acrescentemos o seguinte: na 3ª. pergunta, não sei muito bem o que o senhor
entende por « gosto da poesia por objetos parciais », mas se devo compreender que se
trata do »que
«objeto quenão
nãoseria
seja o« «parcial
objeto»,infinito
mas que» do
o «discurso,
parcial »,então
aqui,eunão
diria
é aque não há
separação
concertada de uma falta. É, ao contrário, a distinção, o destacamento - sobre fundo de
nada – graças ao qual pode haver « objeto » em geral.)

De outra parte, o que resiste com a poesia - e muito certamente, numa conexão
estreita com o que precede - é o que, na língua ou da língua, anuncia ou retém mais do
que a língua. Não da « supra-língua » nem da «ultra-língua », mas a articulação que
precede a língua « n »’ela mesma (e que é tanto uma « seção » e uma « praxis », ou um
« ethos », quanto propriamente uma « enunciação ») e, sem dúvida, alguma coisa dessa
articulação enquanto « ritmo », « cadência », « pausa », « síncope » (« espaçamento »,
« batimento »), e com isso, nisso, alguma coisa do que eu denominaria de um desenho,
para não dizer « figuração ». O sentido enquanto desenho, e não no continuum do...
sentido. O sentido retirado, nesse sentido, e não discorrido. Ou então, se o senhor quiser,
a inflexão (a voz, o tom subido, abaixado ou mantido; o retorno ao lugar da linha reta; a
dobradura
também aténoo discurso,
lugar da sintaxe, etc.). por
com certeza, Issovias
insiste
maisdesde a canção,
ou menos desde
discretas de aretórica
parlenda,
e dee
prosódia. Diria mesmo, e ainda que eu não goste desse léxico, isso insiste no
« inconsciente » e como « inconsciente » que a língua é (o que diz uma coisa totalmente
diferente, o senhor o compreende, do que a fórmula do « inconsciente estruturado como
174
Edmund Husserl. La Crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale [A crise das
ciências europeias e a fenomenologia transcendental ] Tradução francesa de Gérard Grane l. Paris :
Gallimard, col. Bibliothèque de philosophie , 1976, p. 304-305. (N.E.F.)
uma linguagem»).

Essa insistência não é nem infantil nem popular, no sentido de que se poderia
roçar aqui um infantilismo e um populismo da poesia. Em compensação, eu diria com
prazer que se esconde aí algo do que o « povo » tem para nós de tão problemático e de
tão difícil, de tão longínquo, e algo da existência forçosamente popular da língua.
« Popular » quer dizer aqui: não dominado, não regido, não normalizado.

recursos Seà alíngua


« tecnologia
enquanto», como o senhor
« desenho diz, da
», assim Poesia designa
distinguida o conjunto dos
do fora-da-língua da
informação, se ela designa o conjunto de reviravoltas pelos quais « o sentido redemanda
o som » (como diz Valéry), ou ainda o conjunto dos espessamentos, das densificações,
dos endurecimentos do « signo » como tal - e não como « signo de» -, e também o
conjunto da co-srcinaridade dos signos linguageiros entre si, de sua coalescência e de
sua intricação, a estrutura que os encaixa todos uns nos outros, em massa e dispersos, a
maquinaria da assonância do sentido, tudo o que faz com que a linguagem não seja uma
técnica, mas justamente a tecnicidade mesma, a tecnicidade simbólica que não é nada
senão a tecnicidade tout court (veja-se Leroi-Gourhan comentado por Stiegler, La
Technique et le Temps [A Técnica e o tempo],1, p, 173 sq.) - se a tecnologia da poesia
designa o conjunto (por sinal, variável, diacrônico, ainda que estruturado talvez por
cortes [coupes] sincrônicos, como por exemplo, e talvez mais que exemplo, o conjunto
das variantes do refrão, que é ele mesmo um corte sincrônico...) dos procedimentos da
linguagem para se designar a si mesma em sua natureza de tekhné, então, com efeito,
não surpreende que a exibição tecnológica generalizada das « artes » - isto é, também o
retorno ao sentido de seu nome, ars, e a grande deriva empenhada quanto ao sentido
geral de uma palavra que se acreditava ter sido submetida ao regime estético -, não é
surpreendente que essa exibição vá de par com uma desqualificação da « arte » maior e
com uma recolocação em jogo – ela mesma maior - de sua tecnicidade própria. A
prosódia, a métrica, as determinações canônicas das formas, as « licenças » poéticas,
lexicais ou sintáticas, a « sonoridade real » (Hegel), tudo isso insiste junto a nós, tudo
isso pressiona de alguma maneira no auseinandergeschrieben de Celan175 - e para além
dele. Certamente não quero dizer que a ode ou o soneto, o hexâmetro ou a cesura são
como tais atuais: quero dizer que a tensão da qual eles foram os frutos está de volta, não
tendo jamais cessado, não podendo cessar.

Mas é preciso então que eu acrescente alguma coisa: desde que se considera a
poesia sob esse ângulo « técnico », que não é sem dúvida totalmente um ângulo
particular, é bem possível que a poesia re-encene por si só a cena da diferença entre as
artes. Do mesmo modo como não há mais, em ato, uma arte geral, a arte estando ao
contrário na diferença entre as artes, tampouco há mais poesia em geral, mas a poesia
está cada vez na diferença do que recentemente se denominava de seus gêneros e suas
formas, diferença ela própria combinada com a diferença das línguas, e com essa outra

175
« Auseinandergeschieben”, palavra cunhada por Paul Celan, “escrita-separada” (na tradução de
Martine Broda),“escr ita desarticulada” (na de Jean-Pierre Lefebvre), ou “escrita-espalhada”, na tradução
de Cláudia Cavalcante. A palavra que designa a própria escrita poética celania na e aparece no poema
“Engführung” [“Stretto”]. Paul Celan. Cristal . Tradução: Claudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras,
1999, p. 73, 85. (N.T.)
diferença que a poesia, precisamente, põe em jogo de cada língua. Não há senão
« poesias », segundo o uso da palavra na escola primária. Naturalmente não renuncio de
modo algum assim à interrogação sobre o ser ou a essência na poesia: mas quero dizer
que a pluralidade das poesias faz parte dessa essência.

Ao mesmo tempo, devo logo introduzir uma consideração suplementar:


conforme à « lei de resistência » absoluta da poesia, a ideia ou o motivo da poesia resiste
também enquanto índice geral de uma certa qualidade ou propriedade de todas as artes
(até mesmo de práticas reputadas não artísticas, de condutas, de procedimentos técnicos
ou científicos, etc.). Estamos sempre prestes a falar da « poesia » de uma pintura, de
uma música, de um filme, de uma nave espacial, de um casamento ou de um enterro...
Sem dúvida, está aí ainda um uso na maioria das vezes vago, relaxado, e até mesmo
duvidoso. « Poesia » é o significante maior do indefinível, do inominável, etc. « Poesia »
compõe sempre uma convocação mais ou menos subreptícia à efusão silenciosa. Mas
enfim, não é precisamente sobre o silêncio que seria preciso de novo se entender (se
ouso dizer)?

De uma parte, sobre esse silêncio que constitui precisamente todas as artes no
limite da significação discursiva, e que as partilha segundo a lei de uma
incomunicabilidade de suas ordens « sensíveis », e de outra parte, sobre esse silêncio, o
mesmo, que mantém a poesia (no sentido específico) em retração e em recusa do
discurso, constituindo-a também, ao mesmo tempo, como uma das artes e como
diferenciada nela mesma. Não é preciso se perguntar se a inflação/implosão da poesia
não se ateve - e por razões filosóficas muito precisas (veja-se do lado da história do
« sublime ») -- a uma sobredeterminação do silêncio compreendido, não como um ser
silencioso, mas como um fazer silêncio, um « calar » e um « se calar », ou seja, não
como a borda soberanamente silenciosa da linguagem, mas como sua « auto-superação»,
que leva à efusão, à exaltação, e para dizer tudo enfim, à tagarelice absoluta (tagarelando
também sobre o silêncio) com a qual « poesia » terminou por parecer se confundir?

Eu amaria falar de « mutismo », se a noção não fosse determinada como uma


privação de fala. Ora, eu não gostaria de falar nem de privação nem muito menos de
retenção taciturna de uma supralinguagem. Tratar-se-ia, portanto, de um silêncio assim
como recorte exato do horizonte da língua, desenho traçado nitidamente sobre sua borda
e, ato contínuo, na borda de todas as artes, dividindo-as, ao partilharem todas, enquanto
incomensuráveis entre si, um ser silencioso – ou, se quisermos, um silêncio do ser – do
qual as artes « dão conta » (se podemos dizer) precisamente pelo fato de que elas não
falam dele, pelo fato de que elas também não se falam umas às outras e pelo fato de que
elas não podem, de maneira alguma, se totalizar ou se sintetizar em uma língua comum.
A poesia, nessas condições, está exatamente no local onde as artes se encontram na
medida em que se dividem, e que elas a dividem com elas.

Digamo-lo ainda de outro modo: a poesia daria conta na linguagem daquilo


que, enquanto arte e diferença entre as artes, faz borda e pausa [ coupe] da linguagem.
Decorre disso que ela não pode não aparecer em posição maior e privilegiada, enquanto
arte da linguagem e enquanto dimensão poética de todas as artes (não podemos, sob esse
ângulo, mantermo-nos simplesmente quites com toda a tradição, nem com o próprio
romantismo). Mas decorre disso igualmente que essa posição maior não dá lugar a
nenhuma função « federadora » nem « expressiva » de uma totalidade da arte: ela
articula a medida - delimitação e modo distinto - que os distribui auseinander,176 juntos
uns fora dos outros. (Retomo assim, de viés, um motivo da « medida » que Heidegger
introduz a partir de Hölderlin, e que pediria a esse título todo um comentário
particular.177) Essa medida é ela mesma a medida do sentido, que é também justamente
aquilo que se visa como essência ou finalidade sensível das artes, de cada uma delas e da
própria poesia. Como o sentido é medido, eis a questão, e eis o que engaja
simultaneamente, uma na outra, uma ontologia e uma tecnologia das artes.

O que chamei aqui de a « resistência » da poesia, seria, em suma, a resistência


da linguagem à sua própria infinidade (ou indefinidade, segundo o valor exato que se
dará ao « infinito »). A resistência à desmedida que a linguagem é por ela mesma – e,
por conseguinte, uma resistência inscrita na linguagem mas a seu reverso, ou como seu
reverso. Poderíamos também dizê-lo assim: a indefinida expansão da linguagem, sua
tagarelice constitutiva (veja-se as análises sugestivas de Peter Fenves em Chatter –
Language and Historicity in Kierkegaard [Tagarelice – Linguagem e historicidade em
Kierkegaard]. Stanford, 1993), está na ordem da aproximação sem fim; seu reverso é a
exatidão sem resto. Esse reverso está inscrito diretamente na linguagem, lhe é também
constitutivo, e é também a razão pela qual a resistência poética pode tanto levar ao
silêncio (que não é « exato » senão por ausência) quanto se deixar pegar pela tagarelice e
pela desmedida.

Eis também por que a resistência poética é mais sensível, mas também mais
difícil, quando uma época tem consciência (com ou sem razão) de estar mais do que uma
outra entregue à tagarelice (é assim com a nossa). (Ao contrário, numa época de língua
cerrada, exata, a poesia declina: há mais « poesia » em Rousseau ou Diderot do que em
Delille ou Chénier.)

Eu ficaria por aqui. Muitíssimas outras coisas se apressam ao mesmo tempo.


Voltemos a falar delas um outro dia.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla

176
Referência ao termo de Paul Celan, “auseinandergeschrieben ”, citado acima (e objeto da nota
anterior). “Auseinander”, espalhar, separar... (N.T.)
177
Nancy retorna ao motivo em “Cálculo do poeta” supra. O motivo surge no comentário de Heidegger ao
poema de Hölderlin, “O reno”, no curso de 1934-1935, em torno dos versos, “[…] poeticamente habita/ O
homem esta terra”. Cf. dentre outros, Martin Heidegger. Hinos de Hölderlin . Tradução: Lumir Nahodil.
Lisboa: Instgituto Piaget, 2004; “…poeticamente o homem habita…”. Ensaios e conferências . Tradução:
Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. (N.T.)
4. A RAZÃO demanda A POESIA
ENTREVISTA DE JEAN-LUC NANCY COM EMMANUEL LAUGIER

EMMANUEL LAUGIER: Jean-Luc Nancy, a questão que me vem de início, e de modo

muito direto,
obras gira em
de filosofia, de torno de dos
poesia, umaensaios
srcem: sobre
quer ela
as seja
artes,a da
etc.,escrita,
eu me ou a da leitura
pergunto comodese
chega a abordá-la em si e como, mais precisamente, Jean-Luc Nancy chegou à poesia?
Pergunto-lhe se é a filosofia – que não cessou, o sabemos, de ter com a poesia uma
relação apaixonada e amarga, desde a exclusão que lhe reserva Platão na República
(afora, é verdade, Píndaro) até a sua auto-dissolução no sistema hegeliano, até mesmo
à leitura tão complexa em um certo sentido que Heidegger faz de Hölderlin – quem
decidiu por sua leitura ou, precisamente, em um certo momento, um puro encontro de
alguns versos ao acaso de um livro aberto, tal estrofe, alguma coisa como uma leitura
siderada?

JEAN-LUC NANCY: De onde me chegou a poesia? Ela de fato chegou a mim? Não sei.
Ocorre que escrevi alguns textos sobre poesia, e também arranhei certas maneiras
poéticas em alguns pequenos textos, mas isso foi tardio em mim e me demandou duas
coisas: de uma parte, ter que responder a um sentimento de necessidade, de dever de
algum modo defender a vergonha
certo constrangimento, poesia entre
ou os filósofos;
pudor, de outra
de deixar parte, poder
a retenção me liberar
do conceito de um
e arriscar
aquilo que Bataille nomeava « a tentação pegajosa da poesia ». Cada um desses motivos
pediria um longo desenvolvimento. Tentarei não ser excessivo.

Mas de saída quero situar um trajeto, de resto muito banal: como tantos outros,
cometi em minha juventude uma grande quantidade de « poemas ». Eu passava mesmo
nisso muito tempo entre os treze e os vinte e três anos, aproximadamente. É banal, mas
essa banalidade é reveladora: ela designa um modelo e quase uma imposição, até mesmo
uma injunção da poesia em nossa cultura. Hoje talvez um rapaz de treze anos esteja
menos submetido a esse modelo, mas nem por isso, me parece, ele deixa de subsistir.
Escrever é escrever um poema. Ler, por outro lado, seria, antes, ler um romance – pelo
menos caso se tratar de uma leitura silenciosa e absorvida no que é « lido », se ouso
dizer. Mas ler um poema é já ler em voz alta, é « recitar », senão « declamar », e isso
também pertence ao modelo. O aedo, o trovador, « eu digo: “uma flor”… », « música
antes de qualquer coisa… », me parece que o cânone estético da minha juventude (que
era muito inculta, de fato, muito tosca nesses domínios e na arte em geral) se atinha a
estes marcos. Mas eu mostrava pouco os meus poemas, sentia a sua mediocridade,
embora me obstinasse neles, e ao mesmo tempo era o exercício do discurso e do
pensamento que me permitia falar para fora. Eu poderia dizer: a paixão lógica era em
mim clara e comunicável, a febre poética, obscura e vergonhosa. Um dia eu sofri uma
crítica severa de um autor e crítico literário de então a quem eu tinha mostrado o
manuscrito de uma coletânea de textos. Com isso concebi o que chamaria de « complexo
de Kant »: Kant se julgava incapaz de escrever bem, e eu fiz mesmo naquela época todo
um estudo sobre esse traço que, pode ser mostrado, toca no pensamento de muitos
outros. Digo « complexo » para brincar, pois penso simplesmente que alguém é filósofo
ou poeta e muito raramente senão nunca os dois, e isso por razões fundamentais, das
quais teremos talvez que voltar a falar.

Em seguida, houve para mim o encontro tão importante de Philippe Lacoue-Labarthe


e a colaboração com ele (que não está terminada, pois pensamos em fazer alguma coisa
juntos… sobre a literatura, precisamente!178). Philippe estava ao contrário dividido entre
filosofia e poesia. Quando o conheci, ele acabava de publicar poemas, como ele o fez de
novo há alguns anos. Em seu trabalho filosófico, eu diria que o rigor do conceito está
sempre pronto a virar severidade para com a filosofia, à medida em que ela se apropria
(do sentido, da verdade), e indicando assim a poesia como verdade de um
reconhecimento de inapropriabilidade. Era a verdade de Hölderlin contra a de Hegel,
tema de inumeráveis discussões entre nós. Mas isso comporta também uma condenação
da poesia julgada ela mesma apropriante: por exemplo Char, ao qual me havia iniciado,
um pouco antes, um outro grande amigo, François Warin, que me fizera também
conhecer Heidegger. Pouco depois, vir a conhecer Jacques Derrida era encontrar ainda
uma outra configuração: digamos, a de um roçamento contínuo acompanhado de uma
deiscência permanente entre poesia e filosofia, e isso em dois planos simultâneos, de
pensamento e de escrita, eles mesmos postos um ao lado do outro, como reverso e
anverso…

Eis o contexto, e acredito que ele não é anedótico. É o contexto de uma filosofia
presa a uma interrogação muito potente, que vinha dela mesma, sobre sua própria
« forma » ou « escrita », ou seja, evidentemente sobre o « fundo » do que ela põe em
jogo, quer o nomeemos sentido, verdade, logos ou ainda « pensamento », no sentido de
Heidegger (em quem tudo isso estava in nuce). E essa situação nossa, eu a reencontro,
diversamente modulada, tanto em Deleuze quanto em Badiou ou Rancière.

Penso que se joga nisso uma grande e interminável partida, que teve início com efeito
com Platão, como o senhor o lembra. Não é o lugar de tratar disso ex professo. É, antes,
o lugar de tentar, como eu faço, juntar os traços de uma imposição cultural, somada a
um mal-estar, e de uma inquietude do pensamento, somada a um desejo, com a
finalidade de simplesmente designar o seguinte: ainda não demos conta da « poesia »179,
quer a odiemos (Bataille, Artaud), quer a veneremos. É a isso que eu acabei querendo
dedicar alguns pequenos textos, a esse motivo (nem mesmo uma ideia!), de que o título
Résistance de la poésie [Resistência da poesia]180 dá bem conta.

No curso desse trajeto, com efeito, estive por todos os lados: fiz filosofia, arrisquei
até mesmo alguns « poemas » ( sit venia verbo), joguei e gozei compondo uma paródia
completa de La Jeune Parque [A Jovem Parca] («A Jovem Carpa»), num volume
N^R `00. -($U.2$ +'+D$) /&$ 0. (.+,*X+/3$A S ./2(.>*02+ 3+2+ 3. "aa_8 . 6+'$).56+D+(2:. 1$((.(J
+,F)/0 +/$0 3.-$*08 .1 "aa^A <#AKA=
N^\ 92%&3 0+ 45"6'-&78 1"#' 17&1 +%"1' 5+' 9-1-;8 ,*2.(+,1./2.Y 9'$1 + b-$.0*+[8 +*/3+ /&$ 2.(1*/+1$0;A S
.C-(.00&$ E +D0$,)2+1./2. .?)@>$'+ .1 H(+/'G08 0*F/*H*'+/3$ +$ 1.01$ 2.1-$Y +*/3+ /&$
+'+D+1$0 '$1 + -$.0*+8 . +*/3+ 3.>.1$0 */2.(($FJ5,+A <#AKA=
180
Résistance de la poésie . Bordeaux : William Blake & Co., 1997. (N.E.F.)
coletivo dirigido por Philippe [Lacoue-Labarthe] e Mathieu Bénézet sob o título Haine
de la poésie181 [Ódio da poesia]), e enfim provei a « resistência » em questão. (Mas a
propósito da « A jovem Carpa», acrescentarei esse testemunho interessante: essa paródia
de Valéry, de metro, extensão e maneira calcados sobre seu poema, foi julgada por
Roger Munier – este é justamente o lugar de nomeá-lo, já que a revista L’Animal lhe
dedicou um número (o 11/12) – verdadeiramente poética: ele me havia dito que não via
nela uma paródia no sentido bufão do termo. Fiquei muito satisfeito com esse
comentário, mas Munier foi o único a me dizer isso, e sua observação sempre me deixou
perplexo quanto às possibilidades, necessidades e critérios da leitura do « poema ».
(Acrescento ainda isto: já o poema de Valéry, sem dúvida, é paródico em algum
respeito…) Nesse caso ainda, o senhor o compreende, a sombra de Heidegger não está
longe… Eu diria portanto: não estamos quites com a poesia, seguramente – mas nem
muito menos com a questão: qual poesia? Para permanecer num pequeno círculo outrora
« maldito »: Mallarmé, Corbière ou Verlaine?

Enfim, nesse interesse complexo pela poesia (e pela arte, pois uma não vai sem a
outra) a renovação recente da poesia na França desempenhou um papel decisivo. Há
trinta anos se produz um trabalho considerável, polimórfico, certamente desordenado e
aventuroso, em muitos dos aspectos – mas como seria de outra maneira? – que
testemunha de um desejo tenaz, áspero até, e tenso, exigente, de uma poesia subtraída,
ao mesmo tempo, ao romantismo, ao surrealismo, ao conceitualismo – e, se quisermos,
tendencialmente despoetizada… Não vou citar nomes, haveria nomes demais ou não o
bastante. Mas o fenômeno é notável, e generoso.

E. L.: Se lhe faço essa pergunta, é também porque a relação da filosofia com a poesia
não é indene: no entanto, o que interessa aqui não é abordar a indenidade que a
filosofia deveria verter [verser] sobre a poesia, ainda que fosse preciso talvez também
pensar com isso a relação entre elas, mas antes saber, a partir do problema que Beda
Alleman enfatiza desde as primeiras páginas de seu ensaio Hölderlin et Heidegger
([Hölderlin e Heidegger] PUF, 1959), como se dá o diálogo entre a filosofia e a poesia,
ou então ainda, « como o próprio pensamento se reencontra na poesia, e o que se passa
quando a poesia ressoa no pensamento »?

J.-L. N.: Parece-me que se o pensamento « se reencontra », como o senhor o diz, na


poesia, é precisamente na medida em que ele se encontra nela enquanto pensamento e
não enquanto discurso filosófico. Mas ponhamos logo de saída, se o senhor quiser, essa
condição necessária – mesmo se não suficiente – que primeiramente o discurso deve ser
escrupulosa e estritamente
(seguindo esse mantido,
curso incessante semnão
que ele repouso, sem
cessa de interrupção,
seguir e que elee não
interminavelmente
pode deter sob
pena de falhar em seu dever elementar: jamais cerrar nem encerrar uma verdade). Essa
condição sendo preenchida – o que quer dizer, preenchendo-se indefinidamente – há de
fato uma ressonância como o senhor diz. No discurso ressoa alguma coisa que vem de
alhures, do fora do discurso. Poderíamos dizer: o sentido do discurso não está no

181
Haine de la poésie . Paris, Christian Bourgois éditeur, 1979. (N.E.F.) Ver aqui mesmo, “A jovem
parca”, de Jean-Luc Nancy. (N.T.)
discurso, para modificar uma frase de Wittgenstein. Essa ressonância é o eco de uma
certa sonoridade, talvez uma voz, talvez um chamado, que vou tentar situar – ao menos,
já que por outro lado fracasso em caracterizá-la – acrescentando um detalhe ao apólogo
platônico da caverna.

Nesse apólogo, sempre fiquei intrigado com o momento em que se destaca um dos
prisioneiros – que se tornará filósofo. Quem o destaca? Não está dito. É forçosamente
alguém que já é filósofo, já que ele vai dizer ao prisioneiro que o que ele via não era
senão « futilidades » (phluariai). É forçosamente um filósofo quem faz esse gesto de
libertação, em cuja violência Platão insiste: violência de fazer aquele que estava
acorrentado virar o pescoço e levantar os olhos. Mas quem terá libertado o primeiríssimo
futuro filósofo? Um outro, um não-filósofo, forçosamente. Quem? Não procuro
adivinhá-lo. Ressalto por outro lado que ele deve não somente violentar o prisioneiro,
mas lhe falar. Platão escreve: alguém « diz ao prisioneiro que o que ele via eram
phluariai ». Essa palavra designa de fato mais propriamente « tagarelices », « espuma
verbal » (há uma ideia de ebulição, de transbordamento, até de vomição). Certo, essa
palavra já faz ouvir o discurso filosófico, mas mais uma vez, quando do primeiro
episódio é preciso imaginar, ou uma antecedência infinita sobre si da filosofia (é a sua
lógica mais constante, de fato), ou então, apesar de tudo, uma outra voz, estrangeira ou
não ainda filósofa, que chama e que denuncia a tagarelice, a logorreia. O fundo da cena
está numa voz, por trás das imagens espetaculares dos jogos de sombras e do
deslumbramento do prisioneiro destacado. Essa outra e mesma voz que denuncia a
phluaria, não é a poesia? Ou então, se é cedo demais para falar dela, uma outra, próxima
e distinta maneira de interpelar para cortar de cara o fluxo? Ora, é isso que importa: o
chamado a uma língua que não espuma, que não propaga sinais sonoros, mas que fala e
que ensina, que revela ou que profere o que é falar.

Note, além do mais, que pode haver eco na caverna: isso foi dito um pouco antes.
Esse eco é como a sombra carregada das vozes dos passantes do lado de fora. Mas é
preciso justamente que tudo comece por um eco de uma voz vinda de nenhuma parte e
que interrompe o fluxo linguageiro, a futilidade linguageira, a fim de falar. Não um eco
enquanto reflexo, mas enquanto ressonância, porque isso não vem de um « fora » mais
« real », mas vem, de fato, do interior da caverna, do mais profundo dela (ou então, já
que é a mesma coisa, da simples superfície de sua parede). Eis o que ressoa no discurso
filosófico assim que ele abre a boca, no momento mesmo em que se põe a filosofar, em
que ele vai importunar o prisioneiro libertado com o inesgotável ti esti, « o que é? diga!
Diga, pois, o que é! o que é realmente! ». A ressonância, ela, faz ouvir: não diga o que é,
mas faça ser o seu dizer. Essa inversão quiasmática não é uma pirueta: é o esboço mais
simples, e com certeza também o mais pobre, do que faz ressonância entre poesia e
filosofia,
isca. dizer o ser ou ser (fazer ser) o dizer. O que ainda não dá nada mais do que uma

E. L.: Pois o que « resta », todavia, como ponto exato da tensão poética (ou do
poético?), é uma forma de afastamento que ela integra ao seu processo (à sua tekhnè,
ao seu poiein, ao seu fazer) — afastamento que a conduz a parar o pensamento nela, a
se retirar, como o senhor pôde escrevê-lo em Cálculo do poeta182, do espírito de síntese
ou de operação própria à filosofia, para apreender alguma coisa que, entre a
linguagem e o mundo, faz síncope…

J.-L. N. : « Síncope », sim, obrigado por me repassar essa palavra que amo faz muito
tempo. (Fiz dela o título de uma obra prevista em duas partes, cuja primeira tratou do
Kant não-poeta, precisamente, e cuja segunda jamais veio à luz (ela teria tratado da
terceira Crítica e da analogia, do símbolo, etc.). Houve síncope: esse outro volume se
distribuiu parcialmente em alguns ensaios. Talvez eu tivesse menos vontade de trabalhar
sob o modo mais sistemático do que teria sido requerido pelo meu plano inicial.)

Uma parada, sim, uma suspensão, um batimento, um tempo forte em silêncio. E uma
perda de consciência. Síncope contra síntese, ou mais precisamente, síncope no coração
da síntese, bem no meio. Podemos e devemos sempre nos perguntar se não há uma
síncope escondida no meio de cada síntese, exatamente como podemos e devemos nos
perguntar se não há um estranho e paradoxal parentesco entre a suspensão [relève] de
Hegel e o salto de Kierkegaard.

Entre linguagem e mundo: poderíamos dizer, o espaço onde o conceito não é


possível, onde a referência salta (fora) (num e noutro sentido da palavra),183 onde a
nomeação fracassa ou então opera outra coisa além de uma « denominação ». O espaço
onde alguma coisa é calada. O que é calar alguma coisa? O que é passar sob silêncio? É
reter e manter afastado [à l’écart], em reserva, porque esse não é lugar nem o momento
de dizê-la, essa coisa. Falar no tempo justo. Fazer com que uma fala tenha lugar e não se
escoe simplesmente (ainda menos borbulhe, ainda que esse ter-lugar possa ser
espumante!). Não dizer o justo (o sentido correto, a verdade), mas dizer justamente: no
lugar e tempo apropriados, ao ouvido propícia, com o tom necessário. Nesse sentido,
quando Kant forja o conceito de transcendental, Husserl o de intencionalidade, ou
Derrida o de différance184, eles estão na poiesis de uma justeza semelhante: aqui e agora
era necessária essa palavra, era necessária a sua invenção e com ela uma suspensão
[suspension] de sentido, um afastamento que guarde a suspensão. O discurso prossegue
em seguida, mas prossegue apenas porque houve essa parada.

Mas aquilo que evoco desta maneira se produz em suma por surpresa na filosofia. A
poesia toma essa surpresa como objeto, tarefa ou proposta. O que quer dizer, muito
evidentemente, que ela se impõe a renunciar a todo « objeto », « tarefa » ou « proposta »
para deixar a surpresa surpreender. Mas eu disse justamente « para deixar »: a
dificuldade, a aporia, talvez caiba nesse « para ». O poeta não deve querer aquilo que a
poesia quer, sob pena de descambar no efeito (o silêncio ou a polissemia, a efusão, a
182
Cf. Des lieux divins suivi de Calcul du poète . Mauvezin : Éditions T.E.R. Trans-Europ-repress, 1997
[1987]. (N.E.F. ) Aqui mesmo, neste volume, « Cálculo do poeta ». (N.T.)
183
Nancy joga aqui com o sentido equívoco do vertbo “ sauter ” em francês, “saltar” e “desaparecer”. Uma
duplicidade equivalent e em português seria o verbo “dançar”, no sentido de “movimento com o corpo” e
na gíria, “perder”, “desaparecer”. Adotei como equivalente a fórmula meio idiomática “saltar (fora)”; que
condensa: “saltar fora”, i.e., sair; e “saltar”, pular. (N.T.)
184
Referência à noção formulada por Jacques Derrida, num ensaio célebre de mesmo titulo. Ver supra, p.
XX. (N.T.)
encantação: retorno em direção ao ódio da poesia). Mas deve querer ser surpreendido
em seu próprio querer. Ou então deve querer por surpresa.

Digressão: vou copiar aqui para o senhor uma citação de Sêneca transcrita num
pedaço de papel que anda por cima da minha escrivaninha há já não sei mais quantos
anos. Neminem mihi dabis qui sciat quomodo, quod vult, coeperit velle : non consilio
adductus illo, sed impetu impactus est. (« Tu não me mostrarás ninguém que saiba como
começou a querer o que quer: ele não foi conduzido a isso pela reflexão, mas impelido
por um ímpeto [poussée]. ») – Se amo essa frase, é porque sou muito sensível ao ímpeto
em questão, sem o qual sinto que eu permaneceria indefinidamente veleidoso. Ora, é
exatamente o mesmo ímpeto, a mesma sacudida, que eu sinto decidir da justeza do dizer
– e digo com precisão: não um achado ou uma invenção da palavra justa, coisa tão rara,
mas no mínimo um sentimento tão potente, tão agudo, de que em tal momento, em tal
lugar do discurso e da existência, é necessária, seria necessária, a palavra justa. Nem a
primeira nem a última palavra, mas a palavra justa do momento. Um kairós de língua.

O poeta deve ser técnico desse kairós. Uma tékhne kaírica, eis o osso poético –
entendo o osso como aquele dos crânios das Vaidades.185 Duro, ameaçador, que faz
obstáculo e dá a pensar. Uma tékhne que saiba lidar com o kairós, mas primeiramente
com aquele que permita captá-la ela mesma…

E. L.:
do O senhor
sentido deve escreve então, nopara
ser interrompido mesmo
quelivro, e diríamos
o sentido em consequência:
tenha lugar, para que seja«captado
o curso
na passagem – para que seja captada a unidade de um todo que é mais e outra coisa do
que o todo de seus momentos, sendo, ao contrário, a sua escansão comum e a sua
síncope ».186 A pausa [coupe]187 e o enjambement, pelos quais se distingue o poema da
prosa, seriam assim, enquanto medida do que excede o sentido (e, portanto, para além
de uma simples métrica contada), do que é distintamente fora de seu fora, o
arrancamento necessário pelo qual ela reencena « todas as vezes em uma » a sua
experiência…

J.-L. N.: A pausa, sim – o verso: versus, o retorno do arado na ponta do campo e os
versos como sulcos que voltam para trás em seu curso junto à clausura. Isso se opõe à
prosa que vai prorsus, sempre reto adiante – pro-vorsus, mantém-se a raiz ver-vor, mas
o « tornar » [tourner] ou « virar-se» [se tourner] tem lugar para frente unicamente e não
volta para trás [ne se retourne pas]..

Não me canso de explorar essa mina que é o étimo e o pensamento do verso. Ela me
encanta porque dá tudo a pensar: a suspensão do curso, a inversão, o retorno (em direção

185
A Vaidade é um gênero de natureza morta, muito comum no barroco sobretudo flamengo, que contém
invariavelmente, dentre outros elementos alegóricos, uma caveira, significando o vazio da existência
humana. (N.T.)
186
Supra, p. XX. (N.T.)
NR^ I$D(. 93"#5&; >.( 0)-(+8 -A ccA <#AKA=
a quê?), a passagem ao limite (a ponta do campo), o ritmo das idas-vindas, o labor…

Tomemos o limite do campo, a clausura: o que clausura [ clôture]? Em aparência, é


uma contingência, um acidente de terreno ou bem de direito de propriedade, ou bem a
necessidade de gerir um espaço de mata ou de pasto, ou uma outra cultura. Mas todos
esses acidentes são atributos de uma necessidade essencial: o campo não pode se
estender indefinidamente e a monocultura absoluta é insensata. Há necessidade de
limite, de partilha. Não há sentido único e ininterrupto. O que, aliás, pode também ser
traduzido por: não há sentido do todo. Mas para evitar que se entenda por aí o não-
sentido ou o absurdo, que são os simples refugos ou esgares de um sentido demasiado
desejado, prefiro manter essa palavra « sentido » que meus amigos filósofos não amam
mais, nem com certeza meus amigos poetas. Sentido vertido, eis a poesia. O verso corta
e retorna aí onde pára a apropriação que poderíamos ter acreditado infinita do sentido.

Digamo-lo: o ponto de pausa [ coupe] do verso não é estranho à morte, isto é, à


inapropriabilidade de um sentido. Toda poesia celebra a morte dessa maneira. Toda
filosofia, por outro lado, a desconsidera, a dialetiza ou a sobrepuja, ao menos
tendencialmente, ou segundo uma interpretação possível, pois não é menos verdade que
a morte pontua também os pensamentos, que parecem com frequência reabsorvê-la,
como os de Hegel ou de Spinoza. O verso pensa a morte, eis a proposição que deve
começar toda reflexão sobre a poesia. « Pensar a morte » quer dizer renunciar a se
apropriar dela, respeitar a clausura [clôture] e retornar o arado. Mas é assim que haverá
um campo e uma cultura. O verso faz ouvir a morte no ponto da pausa e do voltar atrás.
(E ouço a mim mesmo também nessa frase: « o verso/ o verme faz ouvir a morte … » 188)
Ele não faz ouvir aí um fracasso ou uma perda – nem muito menos uma ultrapassagem e
uma recuperação. Ele faz ouvir… aquilo que não se deixa « ouvir »,189 senão justamente
na pausa, na batida, na síncope do verso – e às vezes no «enjambement», cujo conceito é
contrário àquele de « ultrapassagem» (enjambement é afastamento, grande afastamento,
que roça a ruptura ou a imobilidade plantada nas duas bordas). A morte: a assunção da
interrupção do sentido, assunção que não faz sentido mas que sabe também, de um saber
néscio, que sem uma tal interrupção o sentido se escoaria, fugidio, tagarela, espumoso…

Lacan caracteriza em algum lugar o « sentido da vida » como aquele de « um desejo


carregado pela morte »190. Talvez seja uma reformulação em seu idioma do Sein zum
Tode.191 Em todo caso, podemos lê-lo assim: não um desejo da morte, não uma corrida
ao abismo, e nem muito menos o desejo de um objeto sempre faltante, mas um desejo
como conatus, uma perpétua tensão de ser que não cessa de tender – em direção a nada,
em direção àsustém
interrupção sua própria potência
e tende, – e aque
enquanto a morte carrega,
ininterrupção quer dizer,
a distenderia que a própria
e a entregaria aos

188
Em francês “ vers ”, “verso”, e “ ver”, “verme” são homófonos. A frase no iriginal: “ le vers/le ver fait
entendre la mort .” (N.E.F.)
189
Nancy joga aqui com o duplo sentido do verbo “ entendre ” em francês, ouvir e entender. (N.T.)
N\a 4+'?).0 6+'+/A 9S 3*(.%&$ 3$ 2(+2+1./2$;A d/Y :'3$-!"'A K(+3A e.(+ f*D.*($A f*$ 3. 4+/.*($Y .3A
g+:+(8 N\\R8 -A QPRA <#AKA=
191
« Ser-para-a-morte”, tema em especial do primeiro capítulo da segunda seção (parágrafo 46 a 53) de
Ser e tempo de Heidegger. (N.T.)
phluariai. E nessas condições, é o que eu gostaria, sobretudo, de sublinhar: a « morte »
não é nada de oposto à « vida » – ou antes, não deveria ser questão senão das duas em
conjuntos, juntas e disjuntas, juntadas por sua disjunção – a síncope, sempre.

E. L.: O senhor mostrou, com Philippe Lacoue-Labarthe, em L’Absolu littéraire [O


absoluto literário]192, como o primeiro romantismo, aquele que chamamos de Iena,
tinha pensado a poesia como « órgão do infinito », lembrando em Résistance de la
poésie [Resistência da poesia] que esse órgão « devia ser aquilo que põe em obra uma
transcendência absoluta de toda determinação ». É isso que, para eles, conduzirá (no
condicional) a poesia a verter [verser]193 na prosa? Será que mesmo o verter 194 rítmico
da poesia na prosa, permanece, para nós desta vez, esse « cálculo » [essa « medida »,
essa « profissão de ponta » escrevia Char em Feuillets d’Hypnos [Folhetos de Hipnos]
(o contexto não estando aí por acaso)] essa força suspensiva do sentido, essa captura,
no seu arrancamento, de uma outra unidade de escansão do mundo?

J.-L. N. : O verter na prosa, segundo a sua feliz expressão, é de uma delicadeza e de uma
ambivalência extremas. Mallarmé diz justamente que há verso em toda prosa. Mas é na
medida em que há volta do versus, por mais escondido que ele seja. Isso pode ser
questão de leitura. Um leitor pode escandir uma prosa que não mostrava seus versos. O
todo consiste, mais uma vez, em escandir de modo justo.

No possibilidade:
dupla movimento doouromantismo,
bem a novaque se reproduz
prosa crê abrirsempre de infinito;
um sulco diversas ou
maneiras,
bem, elaháevita
uma
essa armadilha da crença. Isso pode ainda se dizer assim: ou bem o « infinito » é
concebido como prolongamento indefinido do finito, ou bem é concebido ao contrário
como suspensão absoluta do finito sobre ele mesmo. É num sentido a oposição
hegeliana do mau e do bom infinito. O infinito da poesia, como aquele da surpresa
evocada mais acima, é instantâneo. Ele está instantaneamente em ato, e está aí o versus.
Oscilação do eixo horizontal da frase em eixo vertical – portanto, de um silêncio.

Joga-se nisso uma partida decisiva quanto ao instante e ao presente, ao instantâneo de


uma apreensão, ou de um desprendimento. O presente da poesia é o presente
desprendido de presença. Não é o presente perpétuo do discurso, sempre em retenção e
em protensão entre seu passado e seu futuro. Mas presente suspenso sobre sua
apresentação. Fôlego retido, ou retomada de fôlego. Entre inspiração e expiração, entre
primeiro grito e última palavra. Essa retenção, tensa e relaxada ao mesmo tempo, os
românticos
terríveis dasa pressentiram
vontades de eperpetuar
desconheceram.
numa Aprendemos – às nossas
melodia infinita custas, de
um presente porsentido
efeitos

192
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy. L’Absolu littéraire. Théorie de la littérature du
romantisme allemand , com a collaboração de Anne-Marie Laing. Paris : Le Seuil, col. Poétique », 1978.
(N.E.F.)
193
Emmanuel Laugier joga com o duplo sentido de “ verser ”em francês, virar e derramar. (N.T.)
194
Emmanuel Lauglier usa o termo “ versement ”, literalmente “vertimento ”, em português, e diferente de
“versão” (“ version ”), substantivo derivado de “verter”, que não dispomos em português. Optamos pelo
infinitivo substantivado “o verter” para traduzir o sentido em português. (N.T.)
supostamente dado – uma necessidade renovada da pausa [coupe].

Mas de novo precisamos dizer: a pausa justo…

E. L. : De quê finalmente é feita essa atenção calculadora, e onde ela se choca, ela tem
alguma relação, mesmo que paradoxal, com a faculdade da razão?

J.-L. N. : Certamente. A razão dá razão, é seu ofício. Como dar razão da parada do
sentido, quer dizer, justamente da suspensão da razão? Mas, entenda-se bem, isso é
necessário e é possível: é o que faz a poesia. É assim que compreendo, ou antes, que
imagino o laço em Heidegger entre a análise do « princípio de razão » e a poesia. Não
constitui nenhuma dúvida de que Heidegger « poetizou » em excesso, que deu numa
celebração piegas e, além do mais, nacionalista (« o canto alemão » de Hölderlin) da
poesia. Resta que sua análise do « princípio de razão », de sua « incubação » no curso da
história do Ocidente e da atualização pela técnica de sua ausência de fundamento ou de
fundo não pode nem ser recusada nem riscada com um traço de pluma.

De fato, a razão kantiana, hoje revisitada, nos expõe isso: o comando de sempre visar
um mundo racional ou razoável, ao mesmo tempo despojando a razão cognitiva dos
meios de construir esse mundo (ela constroi objetos de conhecimento, não um
« mundo » como espaço de sentido), ou mesmo somente fazer um modelo disso (é no
fundo o que está em jogo na « típica » da segunda Crítica: a ideia de « natureza » não
pode fornecer um « esquema » organizador, mas somente um « tipo » distanciado para
indicar a forma de um mundo « moral »), eis uma problemática com a qual ainda não
estamos quites. O que não quer dizer que seja preciso voltar a Kant – ao contrário! Pois
o que quereria dizer um tal retorno? A qual « Kant »?…

Mas volto à razão: sim, absolutamente, a razão demanda a poesia. Ou seja, demanda
seu próprio excesso, que não é o seu esquecimento. A razão calcula seu próprio excesso,
a razão, portanto, excede seu próprio cálculo: perdoe-me, todavia, essa aparente
facilidade. Razão não é raciocínio. Kant sabia muito bem disso. Hegel, depois dele,
tanto quanto, para não dizer melhor. A poesia era aí, a cada vez, como o duplo incerto,
inquieto e inquietante, segundo os momentos, da razão raciocinante. Essa não é uma
questão pequena, se o senhor pensar no que « razão » quer dizer para toda a nossa
tradição. Se « poesia » permanece uma palavra tão potente, mesmo ao preço de
«recobertas
tentaçõespela
pegajosas », é exatamente
dita « razão ». na medida das potências inquietas e contraditórias

O que queria Platão, no fim das contas? Regular a poesia pela razão, e produzir uma
poesia racional – pois ele retoma todos os elementos da poesia para regulá-los segundo
exigências precisas. A filosofia como « o mais belo dos poemas », assim como o dizem
as Leis. Durante muito tempo, até o romantismo em definitivo, essa possibilidade de
regulação mútua, essa possibilidade de um « poema de razão » e de uma « razão
poética » existiu, ou bem nos parece ter existido. Ao mesmo tempo, a falha estava
sempre lá, já que ela consiste precisamente na distinção entre razão e poesia, ou então
entre duas razões, uma filosófica e a outra poética, ou então entre duas poesias, uma da
razão, a outra sem razão, etc. Todas as figuras dessa partilha/interferência existiram…

E. L. : Hoje, um certo número de prosadores trabalham a « re-estender » o fio


continuado da prosa; eles inventam uma outra prosódia, uma outra maneira de ritmar
que é uma outra maneira de ver e de ouvir o ruído de fundo do mundo. Para além do
trançado entre versos e prosas, ou antes, entre ritmos pausados e ritmos continuados,
estendidos, no verso como na prosa, não temos (igualmente) que pensar uma diferença,
que redobrar, que pensar um redobramento, como dizia Mallarmé 195 , pensar
diretamente sobre o que diferencia a experiência do que se « corta » daquela em que
isso se continua em linha?

J.-L. N. : Não posso lhe responder segundo critérios formais nem a partir de referências
a autores, pois deveríamos a cada vez nos entregar a um exame preciso deles. Não os
conheço a todos no mesmo grau, nem os aprecio sempre talvez como o senhor. Percebo
sinais dos tempos, ou que penso ser sinais dos tempos, mas não pretendo ter uma
verdadeira visão do estado das coisas: estou longe disso! Leio movido por acasos, por
encontros… E sou também muito sensível a isto: que os textos são uma coisa, suas
leituras uma outra. Busco, antes, onde está hoje o lugar do juízo de gosto… Essa é uma
questão muito intrigante. Por um lado, não temos mais critérios (como dizia Lyotard),
por outro
mundo semlado temosNão
regras? todos e cada
é nada, masumo gostos
quê? Amuito
qual «marcados.
universal O
», que
comoé dizia
um gosto
Kant,num
ele
pode pretender? Adoraria ser capaz de apreender essa questão…

Mas, contudo, para me aproximar da sua questão: seguramente há hoje na prosa o


movimento que o senhor diz. Isso não é, aliás, tão antigo quanto a recolocação em jogo
da poesia na posteridade do romantismo (que de resto já colocava a prosa em seu
programa poético, por assim dizer)? Baudelaire, com certeza. Mas talvez mais
importante ainda tenha sido o evento da prosa proustiana seguido – lanço tudo em
desordem – das prosas de Gide, Aragon, Joyce, Kafka, Beckett… – não há através
dessas formas muito heterogêneas entre si o movimento ou a agitação dessa « tensão »
de que o senhor fala? Enquanto a coisa caminhava de outro modo em um Mann ou um
Musil. E Hermann Broch como que entre os dois… Faulkner também. Hemingway.
Entretanto tudo isso já está atrás de nós, e hoje minha impressão (mas ela é, repito, tão
limitada) é que se produz uma interferência porque o romance como tal desapareceu
(como dizer? Temos
insatisfatória). A marca épica,a novela,
ou bem se o senhor
o relato,quiser, aindaoutra
que é uma que coisa,
essa que
palavra
podeseja
ser
perfeito mas que permanece dentro da representação – ou bem esforços precisamente
para poetizar a prosa, e isso não me parece na maioria das vezes convincente (mas estou
em desacordo a esse respeito com alguns amigos – seria preciso tomar exemplos, o que
N\OS H(+0. 3. ]+,,+(1E8 /+ 2(+3)%&$ 3. h.(/+/3$ I':.*D.Y 9B (.3$D(+1./2$ >*(F.1 3$ ,*>($8 +*/3+8
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seria demasiado longo). Eis por que prefiro hoje ler aquilo que se apresenta como poesia
– mesmo que seja para ficar decepcionado com isso, algumas vezes, ou mesmo
frequentemente. Não sei onde o romance passou (nem o teatro aliás). Coisas muito
justas e belas têm sido escritas sobre a prosa, por Lacoue-Labarthe ou por Agamben,
entre outros. Mas nós falamos da prosa e não « sobre a prosa ». Isso dito, esté é
exatamente o nosso tempo: há mais « sobre » que « aquilo-sobre-o-qual… »… Tenho
justamente medo também de falar demasiado « sobre ». Ou bem talvez seja um receio, e
também uma fadiga, que acontece a todo teórico. Veja só: ontem a noite eu estava num
concerto (James Blood Ulmer e Rodolphe Burger, para nomeá-los) e fui invadido por
um imenso arrependimento de não tocar música!

E. L. : Se a prática do poema é a passagem a uma prática da pausa de todo o « difícil


que não se entrega» para, justamente, fazê-lo ceder nela, como pensar, já que se trata
aqui da vinda de uma voz singular na linguagem, o laço entre o poema e uma
comunidade, que é também de língua? Penso seguramente na questão levantada por
Deleuze ao falar de um « povo que falta », ou no que Klee entendia (num sentido um
pouco diferente) por um povo que « não sustenta », não nos carrega (trägt)… Daí
àquilo que o senhor chamou resistência da poesia, parece que o que o senhor lê (sente)
na poesia o intima quase a pensá-la retirando-a absolutamente do que acreditamos ser
a sua fascinação pelo arbitrário do discurso (semantismo) e pelo signo (semiotismo)…

J.-L. N. : Sim, mas, de pronto, não vejo o que acrescentar… Senão que a questão do
« povo »», me importa.e Parece-me
na grande fútil afastá-la
mesmo imponente divisãocom
de um
seu aceno
sentidode– mão.
entre Como dizer? Oo
a população,
populacho, a multidão e a comunidade – persiste para mim a designar o lugar de uma
interrogação necessária: não podemos afastá-la por causa do nacionalismo ou da
etnomania. Há outra coisa. Ser sem povo, absolutamente – sem língua, sem história, sem
marcos… mas é tendencialmente aquilo que se gostaria de fazer aos deportados dos
campos. Então é preciso reler esse capítulo de Améry « O quanto tem-se necessidade de
Heimat196 ? » (cito de memória…). Sei que aí também muitos próximos me dizem
recusar essa palavra. Consinto nisso, mas o que diremos? Não podemos somente dizer
« a língua ». Uma língua pode ter mais de um povo, e um povo mais de uma língua. Não
sou em nada nacionalista ou regionalista, não tenho nenhum terreno de srcem, vivi
minha infância na Alemanha, depois no sul da França, vivo na Alsácia há trinta anos, em
suma… Mas nem por isso deixo de considerar que é necessário um espaço de marco
simbólico, não somente o « familiar »… e aliás este último corre sempre o risco do
infantilismo: literalmente a infantia que não fala; é necessário um espaço no qual e
graças ao qual falemos, sintamos, nos orientemos e nos aventuremos. Permita-me uma
leve provocação: povo e poesia – como tratar disso hoje? Negar a questão? Repetir com
Hölderlin « o canto alemão » ? Não, não! Mas eis aqui um verso de Mandelstam: « O
povo precisa que um verso misterioso o abrace » (19 de janeiro de 1937). Diremos que
seus poemas de então são suspeitos?… Mesmo se há aí algo verdadeiro, é bastante
insuficiente. Eu poderia dizer também que é um povo – o judeu – que carrega entre nós a
figura do não-povo por excelência, que essa expressão seja entendida com um valor de

196
Cf. Jean Améry, « Em que medida temos necessidade da terra natal ? », em Além do crime e castigo.
Tentativa de superação. Trad. Marijanne Lisboa. Rio de Janeiro : Contraponto Editora, 2013. (N.T.)
destruição ou ao contrário de elevação à dimensão mundial. Mandelstam é judeu; é
judeu e russo. Como ele compreende « povo » neste verso? Evidentemente segundo dois
sentidos misturados, russo e comunista… (o contexto do poema mostra isso melhor).
Mas dizer mais sobre isso daria todo um outro capítulo, e esta entrevista já começa a
ficar longa!

Todavia, eu gostaria assim mesmo de acrescentar o seguinte – e que seria talvez para
terminar o essencial: afastado do semantismo e do semiotismo, como o senhor diz, o quê
então? Mas a voz, e na voz ou do fundo da voz, o quê? Mas a ressonância daquilo que
faz levantar-se desejo e receio, uma ressonância a que se dava o nome de « lirismo », de
um nome que deve no mínimo sempre nos lembrar a proximidade com a música –
proximidade difícil, ambígua e incerta, como toda proximidade, mas inapagável. A
poesia não pode não ser exposta em um limite instável, até mesmo inconsistente, entre
palavra e música. Isso quer dizer « canto ». Seria necessário falar agora – …uma outra
vez – do canto (« alemão » ou não…). Mas também disto: que o canto seja de amor ou
de morte, os dois juntos ou alternados: quero dizer muito precisamente, não que o amor
e a morte (sua assonância em nossa língua…) sejam conteúdos ou temas líricos, mas que
eles (os « sentidos » dessas palavras, e de todas as suas combinações entre si) não têm
lugar senão na poesia, como poesia. E que a poesia não dê corpo a nada além deles,
desde a própria Ilíada, ou seja, ao que passa entre os dedos da filosofia (entre seus
dedos, não entre seus lábios, pois justamente, ela não os tem).

E. L.: Enfim, como e o que constitui a sua relação (penso nos pós- e prefácios escritos
para Dernière Mode familiale [Última moda familiar] de Philippe Beck197 e Météoriques
[Meteóricas] de Gérard Haller198, no artigo dedicado aos cantos em « prosa pausada »
de Basse continue [Baixo contínuo] de Jean-Christophe Bailly 199 ) com a poesia
contemporânea ou com aquilo que se escreve nesse campo do contemporâneo?

J.-L. N. : Respondi um pouco no que precede. Resumirei assim: de um lado tenho


necessidade, uma necessidade muito viva, senão vital, de ouvir vozes, timbres, ritmos
contemporâneos (assim como tenho necessidade de música eletrônica). De outro lado
tomo aquilo que me chega, ao sabor dos encontros… e deixo meu « gosto », ou seja,
minhas sensações elementares, operar essas escolhas, talvez provisórias.

Eu queria evitar mencionar nomes, por receio de parecer, ou bem proceder a uma
lista de honra ridícula, ou bem exibir uma não menos ridícula antologia privada. Mas já
que o senhor o faz citando os nomes daqueles sobre os quais ou a propósito dos quais
tenho escrito, será justo acrescentar a eles, desordenadamente, Christian Prigent, Jean-
Paul Michel, Michel Deguy, Claude Royet-Journoud, assim como Pierre Alferi e Olivier
Cadiot, cuja revista efêmera foi a primeira ocasião de Résistance de la poésie e que
continuam cada um a seu modo uma exploração eficaz de nossas questões « poéticas ».

197
Cf. J.-L. Nancy, « Vers endurci », posfácio de : Philippe Beck. Dernière Mode familiale . Paris :
Flammarion, 2000. (N.E.F.)
198
Cf. J.-L. Nancy, prefácio de: Gérard Haller. Météoriques. Paris: Poésie Seghers, 2001. (N.E.F.)
199
Cf. J.-L. Nancy, « Poème de l’adieu au poème : Bailly ». Po&sie (Paris, Éditions Belin), n o 89, 1999,
p. 59-63. (N.E.F.)
Fico só com esses nomes uma vez que minha relação com eles é pública, e pertence, de
fato, à minha preocupação pela coisa « poesia », mas haveria outros dos quais eu não
saberia mesmo esboçar uma lista. Tantas vozes ouvidas na curva de uma revista, de um
livro recebido ou descoberto – vozes de mulheres, em particular (há algumas, aqui, neste
mesmo dossiê, e já que estou nesse ponto, nomearei pelo menos Ryoko Sekiguchi, cujo
poema está inserido em um dos meus textos200). Há aí uma abundância jocosa, até em
seus riscos ou em seus extravios. Tantas vozes ou versos que me tocam ou me
interessam: o « interesse » deveria ser construído como uma categoria não do gosto, mas
de um quase-gosto pelo tempo das dúvidas e explorações. Mas não há aí nenhuma
classificação, e não é uma cláusula de estilo. Há tantas obras que não conheço, e talvez
tantas bem mais consideráveis! Mas gosto muito da situação que é a do contemporâneo
enquanto tal: é um encontro marcado em estado bruto. Uma ocasião nos reúne, nenhum
critério nos precedeu, e nós nos experimentamos um ao outro… É em suma ready-made,
em cuja concepção, como o senhor sabe, o « encontro marcado» desempenha um papel
determinante. Não tenho nenhuma espécie de pretensão a legislar, por pouco que seja,
num tal domínio: que ridículo seria! É um prazer, um pouco, uma curiosidade, uma
sensibilidade ou, para dizer melhor, uma suscetibilidade, uma excitabilidade. Sou
suscetível a impressões que excitam, implicam, espetam ou enervam em mim algumas
cordas estranhas, das quais não sei e das quais no entanto creio muito bem saber por que
elas estão postas aí, falsamente paralisadas, ao lado dos teclados e tabuladores do
trabalho dos conceitos… Os sentidos do verso, do vertimento, da “chuvarada”
[averse]201 e do reverso. O reverso da filosofia… eis um tema… Mas filosofia e poesia
não tem um nascimento comum, estruturadas que são como um anel de Moebius ?

Uma última palavra: há nesse anel justamente ao mesmo tempo uma possibilidade de
angústia (não nos livramos dela) e uma disposição brincalhona (como um fort-da! que
remeteria sem fim uma à outra). A conjunção – ou quem sabe, mais, a identidade
[mêmeté] – entre angústia e jogo, eis o que a poesia tem a temeridade de assumir, ou
bem de… brincar202. Tornou-se para nós, hoje, muito difícil brincar, entendido em
modo nietzscheano, o « grande jogo do mundo » e a « divina criança brincalhona». Mas
ao mesmo tempo, que haja « jogo» no sentido, no mundo, nos mais cerrados dos
sistemas e no amor/morte, jogo no sentido de um conjunto brincalhão que não junta as
peças de maneira totalmente correta, isso também faz parte de nós hoje. Paradoxo: o que
resiste, é porque há brincadeira.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla

200
Cf. Ryoko Sekiguchi, Calque [Calco ]. Paris : P. O. L, 2001, citado por Jean-Luc Nancy em
« L’oscillation distincte » {« A oscilação distinta »]. In : Sans commune mesure (image et texte dans l’art
actuel) [ Sem medida comum (imagem e texto na arte atual) ]. Paris : éditions Léo Scheer, 2002 ; retomado
em Au fond des images [ No fundos das imagens ]. Paris : Galilée, col. « Écritures/Figures », 2003, p. 145.
Esse texto figura em alemão na tradução deste último livro e, retomado na mesma tradução de Emmanuel
Alloa, no coletivo Bilderfragen. Die Bildwissenschaften im Aufbruch {Questões de imagem. A ciência da
imagem em movimento ]. Hans Belting (dir.). Munich: Wilhelm Fink Verlag, 2007). (N.E.F.)
201
“Averse ” em francês é uma chuva abundante (N.T.)
"a" 9?"#&$;8 2.(1$ -$,*00G1*'$8 9D(*/'+(;8 9U$F+(;8 3.(*>+3$ 3. 9 @&#;8 U$F$;8 9D(*/'+3.*(+;A B 2(.':$
U$F+ '$1 .00+0 3*>.(0+0 +'.-%k.0A <#AKA=
5. WOZU DICHTER

A questão de Hölderlin não cessa de ser repetida. Sua repetição a confirma como
questão desesperada, assim como promete-lhe uma profusão interminável de respostas.
É entretanto remarcável que ao isolar essa questão – a ponto de reduzi-la facilmente a
suas duas primeiras palavras em alemão ( Wozu Dichter, por que poetas) – corremos o
risco de nos distanciarmos levianamente do pensamento de Hölderlin.
Este, com efeito, não isola essa questão, de forma que ela pode talvez ser lida em
seu texto como a simples subordinada da proposição que a precede.

Não sei porque há poetas em tempo de indigência203.

Tudo é aqui questão de sintaxe e de pontuação. De um lado, é certo que “eu não
sei” tem já como complementos as proposições que precedem, posto que o texto diz:

Frequentemente parece-me
Melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Assim, permanecendo a esperar, mas o que fazer e o que dizer
Não sei, e por que poetas em um tempo de indigência 204.

A presença de um ponto de interrogação no fim do último verso considerado


(seguidos ainda por dois outros na estrofe 7 do poema) parece atestada no manuscrito, o
que não impediu os editores alemães – antes do trabalho mais recente de transcrição dos
manuscritos - de omiti-lo às vezes. Essa omissão se compreende se percebemos bem o
papel de proposição principal desempenhada por “Não sei”, com relação ao que a segue
como com relação ao que a precede. Em compensação, os pontos de interrogação que
encontramos às vezes - pelo menos nas traduções francesas – depois de “fazer” e “dizer”
são seguramente importados.
Estamos inteiramente no direito, bem entendido, de ler, antes, uma ruptura
depois de “Não sei” e a abertura de uma pergunta: não sei, eu, o poeta, e aliás por que
poetas? (ou: “Por que poeta?”... não se pode em alemão distinguir aqui o número, mas a
sequência induzirá ao plural). Mas estamos também no direito de pensar que o ponto de

203 Neste breve artigo, permito-me traduzir sem passar em revista as traduções – numerosas e em sua
maior parte de grande autoridade – nem dar no que concerne o alemão, salvo de maneira pontual, as
justificativas necessárias. Não faço obra de filólogo, nem tampouco, aliás, de filósofo de Hölderlin : nada
senão uma apostila convidando a prosseguir o trabalho. (N.A.) Traduzo aqui e adiante as traduções para o
francês feitas pelo própri o Nancy. Na tradução de Paulo Quintela, o verso lê-se assim : « Não sei; e para
quê Poetas em tempos de indigência ? » A tradução de Quintela introduz um curioso matiz portuguê s ao
Wozu alemão, ao pontuar a diferença entre « por que ? », que remete a uma causa, e « para quê ? », que
remete a uma finalidade. (Hölderlin. Poemas . Lisboa : Relógio d’Agua Editores, 1991, p. 261.) (N.T.)
204
Na tradução de Quintela, os versos se leem assim: “[…] Entretanto, às vezes melhor me parece/ Dormir
do que viver assim sem companheiros, ter/ De esperar assim; e o que fazer e dizer entretanto/ Não sei; e
para quê Poetas em tempos de indigência?” ( ibidem, idem .) (N.T.)
interrogação vem a Hölderlin por um treinamento que lhe faz decidir quase
involuntariamente pela ruptura, já que ele escreveu primeiro “e por que...” encadeando
com o que precedia.
O tradutor francês pode objetar que se esperava, na hipótese da subordinação, um
“nem” antes de “Por que”: “nem por que poetas...”. O que é exato em francês não vale
contudo, sobretudo em poesia, no alemão, para o qual esse “e” se alinha com o
precedente: “o que fazer e o que dizer... e por que...” (mais precisamente: o alemão tem
aqui apenas um único was (que), complemento de “fazer” e de “dizer”, o que impediria
ou tornaria mais difícil um “nem” (o qual poderia se destacar de maneiras diferentes,

weder...noch , auch nicht, mas não de maneira tão econômica como em francês).
Toda essa micrologia torna-se rapidamente cansativa. O que se quer extrair daí é
que o acento patétito do questionamento desesperado, ansioso, não é tão marcado, de
toda maneira, quanto somos habituados a perceber, pelo efeito de uma seleção abusiva
de uma única metade de um único verso. A dramatização da questão isolada falseia o
andamento do texto e desloca o acento de sua preocupação.
O mesmo ocorre com a apalvra “dürfig”, que se traduz frequentemente por “de
infortúnio”, quando “indigência”205 parece mais apropriado, inclusive com a sua
conotação social.

A essas observações sobre o próprio texto do verso é preciso acrescentar duas

outras sobre
De umo seu
lado,contexto.
a estrofe 7 de Pão e Vinho não pára nesse verso. Ela prossegue em
um último dístico, onde está escrito:

Mas eles são, dizes tu, como os santos sacerdotes do deus do vinho
Que na noite santa se vão de país em país.

De outro lado, essa estrofe não subsistiu na ultimíssima versão do poema. Ao


contrário, ela é a que, através das diversas retomadas e transformações efetuadas por
Hölderlin (conta-se seis versões sucessivas), foi a mais profundamente modificada – ao
ponto que é mais exato dizer que se trata de uma outra estrofe que foi substituída à
primeira. Nada subsiste dela, e portanto, tampouco, o verso que nos ocupa. Dessa forma,
205
Escolhido pelo menos por Jean-Pierre Faye – beneficiaríamo-nos de um inventário do conjunto das
traduções existentes. (N.A.) A tradução rejeitada por Nancy é « détresse », « angústia », « aflição,
infortúnio », « desgraça », adotada por Wolfgang Brokmeier, na tradução do célebre ensaio de Martin
Heidegger, que tem precisamente o mesmo título do presente artigo de Nancy, « Wozu Dichter ? », sem
dúvida o alvo do comentário de Nancy aqui. (Martin Heidegger, « Pourquoi des poètes ». In : Chemins qui
ne mènent nulle part . Paris : Gallimard, col. Tel », 1962, p. 323-385.) A tradução de Jean-Pierre Faye
mencionada por Nancy integrava uma pequena coletânea publicada em 1965, e foi reimpressa no Cahiers
de L’Herne (L’Herne. Hölderlin . Jean-François Courtine (org.). Paris : Éditions de L’Herne, 1989, p. 22-
25). Já Geneviève Bianquis optou por traduzir « dürftiger » por « misère », e Gustave Roud, na edição da
Pleiade, por uma expressão « ombre misérable ». (Respectivamente : Hölderlin. Poèmes/Gedichte . Paris :
Aubier-Montaigne, col. Bilingue, 1943 ; Hölderlin. Œuvres . Philippe Jaccottet (dir.). Paris : Éditions
Gallimard, 1967.) Em português a expressão « tempos sombrios « (« Por que poetas em tempos
sombrios ? »), vem adquirindo valor de consenso. (N.T.)
não é indiferente assinalar que, em sua (ou suas) versão(ões) anterior(es), a estrofe 7 se
distingue por ter um dístico a menos que as outras, enquanto que a última versão
restabalece a conta de nove dísticos.
É difícil ignorar esse apagamento integral, pelo próprio Hölderlin, do Wozu
Dichter, e difícil também esquecer que se produziu na redação inicial uma espécie de
passo em falso – sobre a natureza do qual, de resto, os especialistas multiplicam
conjecturas que não consideraremos aqui. Contudo, posto que a sexta versão não reteve
nada do Wozu não temos que nos ocupar dela, embora não possamos perdê-la
inteiramente de vista206.

Retornemos ao contexto da versão anterior (uso do singular para simplificar). O


último dístico opõe portanto à ignorância daquele que diz “eu”, a afirmação reportada
por um “dizes tu”. Esse “eu” é uma ocorrência única no poema, assim como esse “tu”
(se negligenciamos o outro “tu” do início da estrofe 4, que é endereçado à Grécia e não
a esse outro aqui não nomeado, que usualmente considera-se como o destinatário da
dedicatória do poema, Wilhelm Heinze).
Ainda que haja razões excelentes para ver aqui um endereçamento a Heinze, em
que, certo, Dioniso não está ausente - uma leitura atenta dele sem dúvida nos forneceria
mesmo, de maneira bastante precisa, os elementos do dístico - nada proíbe tampouco de
decifrar aqui um diálogo dele consigo mesmo. Este “mesmo” a partir daí seria aquele
que escreve, ou que fala (que é aqui um só). De resto, Hölderlin pode muito bem se
considerar como “um” com Heinze, um de “nós”, que o poema já pronunciou seis vezes
e pronunciará ainda três vezes (na estrofe 7, que começa com a interpelação do “amigo”,
houve dois “nós”). Ora, o “nós” do poema é em primeiro lugar aquele da comunidade de
infância e de cultura, graças a qual os amigos mais tarde – “tarde demais” diz a estrofe -
podem saber algo da Grécia, algo de “verdadeiro”, diz a estrofe 4.

A verdade do Wozu poderia então ser achada, quanto a ela, no diálogo entre
“eu” que “não sabe” e “tu” que “dizes que”. Não sei por que há poetas em um tempo de
indigência, mas tu dizes que os poetas são os sacerdotes do deus do vinho. Não sei
porque há – ou haveria – poetas porque este tempo é o tempo em que o homem é
incapaz de “suportar a plenitude divina” como foi dito alguns versos acima. Só podemos
esperar a vinda do herois, cujos corações “sejam de força semelhante à dos Celestes”.
Eles virão, parece certo, mas na espera pode-se achar preferível dormir, já que não se
sabe o que fazer nem dizer.
Não se sabe o que fazer nem dizer assim como não se sabe por que poetas... Mas
talvez tampouco se sabe o que fazer nem dizer porque não se sabe por que poetas.... Mas
tu dizes o que eles são: tu sabes portanto o que dizer e eu não sei mo dizer a mim
mesmo, ouvindo-o de ti. Se tu sabes, isso não está ausente. Não é apenas uma lembrança
da Grécia. Tu o dizes no presente: eles são.
206
É preciso destacar que Philippe Lacoue-L abarthe, de que conhecemos a proximidade atenta para com
Hölderlin, escolhe u traduzir a sexta versão – revelando-a assim, se não abuso da coisa, ao público francês
– quando apresentou cinco traduções de Brot und Wien para fazer apreciar a evolução das abordagens do
texto hölderliniano. Ele o fez sem comentário, deixando o leitor apreciar, dentr e todas as outras
diferenças, o afa stamento considerá vel de que essa estrofe é afetada . Sou bastante tentado a pensar que
não lhe desgostava marcar uma certa distância com relação à antífona do Wozu Dichter .
Além do mais, eu o digo eu próprio no presente. O último dístico toma o cuidado
de colocar no topo a afirmação de seu ser: “Aber sie sind, sagst du...” (mas eles são,
dizes tu...) Essa afirmação permanece suspensa um breve instante como uma pura
atestação ontológica, independente de qualquer outra precisão. Primeiro eles são - os
poetas. E eis porque eles são também em tempos de indigência. Eis porque os há.
Eles são sacerdotes do deus do vinho e eles percorrem o mundo na noite. Ora, a
noite é precisamente o tempo em que nós somos: o poema inteiro é cantado na noite,
descrita na primeira estrofe, e cujo nome retorna nove vezes207 em todo o texto. O oitavo
verso de nossa estrofe disse que “o infortúnio da noite torna forte”. A noite é o tempo do

sono (duasno
nomeado, vezes
qualna
seestrofe evocada
distanciam e se ou invocada),
irrealizam paratempo
nós osdodeuses,
sonho,tempo
ele também
em que
dormir pode ser preferível a roer-se de impotência. Nessa noite, à beira do sono, ouço o
que o meu alter ego me diz dos poetas e de seu santo sacerdócio na santa noite208.

A partir disso, seria possível e rentável estender a interpretação ao conjunto do


poema, e em seguida ao conjunto de sua revisão e transformação até a versão final, em
que a mesma estrofe termina nomeando a noite como “uma claridade”, e afirmando a
possibilidade de mostrar o divino apesar da lentidão de sua vinda209. Este não poderia
ser aqui o propósito. Tratava-se tão somente de fazer ouvir Wozu Dichter no seu
contexto imediato e sem permitir que ele se destaque como uma espécie de aforisma
interrogativo, mais ou menos exclamativo e inteiramente queixoso – ao memo tempo
que alimentamos
audaciosas a esperança e a ambição de que ele traga respostas tanto mais
e soberbas.
A resposta se dá em filigrana no poema, pelo menos é o que deveria ser indicado.
Convém somente insistir nisso um pouco retornando ao próprio verso:

Weiss ich nicht, und wozu Dichter in dürftiger Zeit

Segundo verso do dístico, um pentâmetro, em princípio iâmbico (uma longa/duas


breves). Mas no uso alemão mais ainda do que no grego ou no latino, os metros
admitem inúmeras variantes, exceções ou derrogações que proibem à minha muito fraca
ciência de escandir esse verso. O que não impede que ele pareça deixar-se de boa
vontade ouvir em uma escansão bastante precisa do primeiro hemistíquio (se é bem ele):

Weiss icht nicht / und wozu

207
Contando-se a palavra « Mitternacht » (meia-noite).
208
Heilige Nacht são as últimas palavras da estrofe. Seríamos tentados a ouvir aí o muito famoso cântico
de Natal nascido na Alemanha ( Stille Nacht, heilige Nacht – Noite feliz, Noite feliz), mas ele foi composto
mais tarde que Brot und Wein, em 1818. O que não impede de pensar que a expressão era já recebida
como designação da noite de Natal.
209
Seria preciso começar por levar em conta o recente trabalho de Wolfram Groddeck, Hölderlins Elegie
Brod und Wein oder Die Nacht. Frankfurt/Main : Stroemfeld Verlag, 2012. (É necessário precisar que
Brod é o ortógrafo utili zado na época de Hölderlin para o que se escreve hoje, Brot [pão].)
Por mais frágil que seja essa incursão na prosódia, é bastante verossímil que o
ritmo tenda aqui antes a ligar o que precede a vírgula com o que a segue, acentuando
portanto o sentido de “não sei tampouco por que...” É a única razão pela qual me permiti
essa divagação. Não a levarei mais longe pois a teoria e a prática do que se denomina o
pentâmetro iâmbico e as estrofes asclepiadeu ou alcaico excede de longe aos meus
meios.
Mais modestamente, pode-se acrescentar o seguinte: o verso faz ouvir duas
aliterações ou assonâncias maiores. Uma remete ao hexâmetro que precede no dístico e
porta sobre o zu presente três vezes no primeiro verso, retornando no segundo com o
wozu e ressoando enfim no Zeit. A segunda se joga entre ich, nicht e Dicht-. Para
sublinhar o papel dessas ocorrências, comparar-se-á as sonoridades contrastadas dos
dois versos do dístico, já que o primeiro se apresenta assim:

So zu harren, und was zu tun indes und zu sagen

Essa abundância de vogais abertas – o, a, u (pronunciada “ou”) – as sibilantes


mudas – s, z – e a rima interna dos dois infinitivos en – en, é interrompida como por um
chamado, um despertar, quase uma exclamação com as sibilantes sonoras, os silvos, as
estridências e o ritmo acelerado de

Weiss ich nicht und wozu Dichter in dürftiger Zeit

Não se trata de interpretar os procedimentos. Trata-se somente de sentir o quanto o


poeta está aqui trabalhando, em seu mais próprio trabalho de ritmo e de canto, e o
quanto consequentemente ele está igualmente preocupado em fazer ouvir, aquém de toda
significação, que se ele não sabe por que poetas, pelo menos também não deixou de se
ocupar, em tempos de indigência, em fazer soar poeticamente os seus nomes. O divino
falta, mas o poético o suplementa – a não ser que tenha sido sempre a sua verdade, em
tempos que nunca, desde que houve tempo, foram sem indigência, nem sem poetas.

Tradução: João Camillo Penna


III. SENTIDO
1. NOLI ME FRANGERE210
(Com Philippe Lacoue-Labarthe)

Do fragmento, pouco escrever. Não é um objeto, não é um gênero, não constitui uma
obra. (A vontade
voltemos fragmentária
a isso. Mas de Friedrich
o que Blanchot Schlegel
nomeia é a vontade
exigência mesmaexcede
fragmentária da Obra, não
a obra,
porque excede a vontade.)

Fragmento: o texto é frágil. Ele não é senão isso [ça]. Isso se quebra, isso não se
quebra. No mesmo lugar. Onde? Em algum lugar, sempre em algum lugar, um lugar
inconsignável, incalculável.

Estamos, portanto, errados em escrever em fragmentos sobre o fragmento (isso vale


também para Blanchot). Mas o que fazer de diferente? Escrever sobre uma coisa
totalmente outra – ou sobre nada – e se deixar fragmentar.

« Isso vale também para Blanchot »: no entanto, foi a publicação de L’ Écriture du


désastre [A Escrita do desastre], em julho de 1980, na NRF,211 que veio interromper,
aqui, a redação de um texto totalmente diferente, e o que eu poderia agora, tendo-o
abandonado, chamar de uma dialética suplementar do fragmento. A exigência de
Blanchot era o seu guia. O texto de Blanchot o interrompeu. Eu o cito:

210
Noli me frangere, em latim : « não me quebres, não me fragmentes »., construído a partir do modelo do
« Noli me tangere », « não me toques » , frase pronunciada por Cristo a Maria Madalena, após a
ressureição, no evangelo segundo S. João (capítulo 20, versículo 11-18), tradução de S. Jerônimo
(Vulgata). Jean-L uc Nancy dedica à frase e ao tema um livro, Noli me tangere (Paris : Bayard, 2003). (N.
T.)
211
Maurice Blanchot. L’Écriture du desastre . Paris: Gallimard., 1980. NRF, Nouvelle Revue Française,
nome de uma coleção da editora Gallimard. (N.T.)
O fragmento, enquanto fragmento s, tende a dissolver a totalidade que ele supõe e que
ele traz rumo à dissolução, de onde ele (propriamente falando) não se forma, à qual ele
se expõe para, desaparecendo, e, com ele, toda identidade, manter-se como energia de
desaparecer […] 212.

Uma dialética suplementar do fragmento estava, portanto, aí também, em obra.


Talvez não nos enganemos ao nomeá-la uma dialética negativa, e em buscar secretas
correspondências entre Blanchot e Adorno. Mas não obstante isso quer dizer que a
dialética – o discurso – é indestrutível. Noli me frangere, ordena ela em todo texto, no
texto fragmentário também, e no discurso em fragmentos sobre o fragmento. Não me
quebres, não me fragmentes.

Não é somente o efeito de uma vontade de se proteger. Não mais do que o Noli me
tangere da Escritura. Não me toques, diz o Cristo ressuscitado, porque tu não o poderias,
porque tu não
querer nada saberias
daquilo queo se
que tocas, e um
denomina porque crês
corpo sabê-lo. Tu não podes saber nada nem
glorioso.

Sobretudo, não devemos crer que se poderia saber fragmentar. Que se poderia ser um
entendido em fragmentos. E que se poderia fragmentar. Ninguém fragmenta, senão
talvez esse Noli me frangere que toda escrita pronuncia: não me fragmentes, não queiras
me fragmentar – isso se fragmenta e isso me fragmenta bastante, não está à medida de
tua decisão.

Tudo isso está escrito na escrita fragmentária de Blanchot. Não há nada a acrescentar,
nada a cortar. Nada a dialetizar, nada a fragmentar. Sobretudo, não cair na armadilha
dupla da superdialetização e da superfragmentação. Blanchot suporta até o
extenuamento – até não mais suportá-la – a exigência arriscada de escrever justamente
entre essas duas armadilhas gêmeas. Assim, sua escrita também (e não somente seu
discurso) declara: Noli me frangere. Não quebres a minha insistência e meu murmúrio.

212
A versão srcinal do texto não comportava nenhuma nota nem referência: conforme a vontade dos
autores, esse caráter alusivo do texto é mantido aqui (N. E. F.).
Tu não tocarias mais no fragmento: ele já precedeu teu gesto e o meu, e os seguirá
sempre.

Não fales, não escrevas fragmento. Ou tão pouco.

Para terminar, é o fragmento (os fragmentos, a exigência fragmentária) que diz Noli
me frangere. Não preservando nisso nenhum átomo puro, nenhuma obra indivisível –
mas sem relação, simplesmente, com operação alguma, em sentido algum. O fragmento
é indestrutível, quer dizer, a destruição é assegurada, e essa segurança não é uma
segurança – em todo caso não é uma segurança para saber algum, para sujeito algum.

Alguém escreve, alguém lê, alguns falam, algo toma forma, algo faz sentido, algo se
acaba em obra ou em fragmentos, em obra, isto é, em fragmentos. Ato contínuo, é
indestrutível: uma conversação tanto quanto um poema. O que é indestrutível é a
fragilidade mesma, mais miúda, mais trêmula, mais insustentável que qualquer
fragmentação. A fragilidade que há em tomar a palavra ou em escrever. Em abrir a boca,
em traçar uma palavra. É aí, é então que algo se quebra – em nenhum outro lugar, em
nenhum outro tempo. A fragilidade de um corpo glorioso (nem transcendente, nem
imanente, nem seu, nem meu, nem corpo, nem alma) quebra uma garganta ou uma mão.
Eleva-se uma palavra, um discurso, um canto, uma escrita. O corpo glorioso não cessará
de neles repetir essa ordem tão frágil quanto uma imploração: Noli me frangere.

……………………………………………………………………………………………
……

— Então?
— Estou dividido, hesito… Noli me frangere, bem. Mas é um pouco: « Não o toques,
ele está quebrado» – e esse lado Sully Prudhomme especulativo…213

— Não exageremos em nada.

— Não, claro. Porque ao mesmo tempo, é o polo não irônico (ou ainda, mais
« irônico ») de meu Schweben,214 reconheço aqui alguma coisa. Se você quiser, aquilo
que me chama a atenção é a que ponto o fragmento está ligado a uma emoção do
pensamento.

— Ou seja?

— Difícil. Penso evidentemente em algo do « sentimental », ao mesmo tempo no


sentido trivial e no sentido de Schiller (que comporta também o sentido trivial). Portanto
a algo do « subjetivo », do pensamento-sujeito, cujo corpo (a escrita) treme e se comove
com a sua fragilidade, parecendo com a criança abandonada pela infância no momento
em que ela fala para dizer, para deplorar esse abandono. É a sua « imploração » final.

— Ou o « canto romântico » tal como Barthes o definiu: o sujeito abandonado. O


fragmento talvez não esteja tão distanciado do Lied. Mas justamente, nos românticos (e
já em Schiller) há outra coisa: o Sentimental é aquilo que tentamos analisar no
215
L’Absolu como processo
também o movimento de infinitização:
do excesso. O subjetivoé não
a matriz
cessada
de dialética especulativa, mas é
se ultrapassar.

— Ainda a música, pelo menos para mim…

— E sua « comoção» [émoi], que seria não obstante melhor aqui que « emoção »
[émotion].

"N_ René Armand François Prudhomme, dito Sully Prudhomme (1839-1907), poeta parnasiano francês.
Nancy e Lacoue-Labarthe se referem ao poema “Le Vase brisé” [“O Vaso quebrado”], metáfora do
coração partido, que se termina com este dois versos: “Sa blessure, fine et profonde;/ Il est brisé, n’y
touchez pas”.”[“Sua ferida, fina e profunda;/ Ele está quebrado, não o toques.” (N.T.)
214
« Schweben », “flutuar”em alemão. (N.T.)
215
Referência ao livro L´Absolu littéraire: La Théorie de la Littérature dans Le Romantisme Allemand [ O
absoluto literário : a Teoria da Literatura no Romantismo alemão ] de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-
Luc Nancy (Paris: Seuil, 1978). Um capítulo do volume, “A exigência fragmentária”, foi traduzido em
Terceira Margem. Estética, Filosofia e Ciência nos séculos XVIII e XIX . Revista do Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura , ano VIII, nº 10, 2004. Tradução de João Camillo Penna. (N.E.)
— Sem dúvida. Com a condição de mantermo-nos convictos sobre o sentido estrito:
perda de meio (ou sobre o chiste [Witz]: comoção [é-moi]). Não poderia ser: E eu [ et
moi]!216

— Precisamente, o chiste [Witz]…

— Sim, há pouco, é nisso que eu pensava também: o fragmento como uma espécie de
espasmo do pensamento. Hoje, naturalmente, se falaria imediatamente de gozo.

— E por que não?

— Sim, no fundo, por que não? Na perda de gozo há, é verdade, um movimento
irreprimível de imploração. Mas a imploração é contraditória: ao mesmo tempo
« Toque-me (perca-me) » e, com efeito, « Não me toques (ajude-me, proteja-me) ».

— O fragmento seria, portanto, um momento de gozo do pensamento. Mas


« momento », quando se pensa no uso dialético da palavra…

— Justamente: se o seu Noli me frangere é justo – e o creio justo –, é não obstante o que
faz do gozo um « momento ». Na realidade, no início, minha reticência estava neste
ponto. Tenho
especulação a impressão
sobre de que esses fragmentos consolidam paradoxalmente a
o fragmento.

— É bem possível. Eu mesmo tive um sentimento um pouco análogo. Mas de modo


confuso. Seria necessário que você se explicasse.

— Isso não se improvisa.

— Então, escreva! Decidimos assinar este texto a dois. Por que não fazer suceder aos
fragmentos um diálogo, no gênero do Gespräch,217 porém mais curto?

— Isso. Dancemos na beira do abismo [abyme]!218

— No ponto onde estamos…

216
Os interlocutores jogam aqui com a homofonia em francês entre “ émoi ”, “comoção”, e “ et moi ”, “e
eu”. (N.T.)
217
“Gespräch ”, “entrevista”, em alemão. (N.T.)
218
A grafia arcaica de abyme com “y” sugere a referência à mise-en-abyme . Ver supra a nota XX na
página. (N.T.)
— De fato, vá saber… Talvez não seja o pior meio de desfazer a armadilha do especular.

— Pois bem, meu caro Lothario! À pena ! Cubra-nos com os hieróglifos de sua divina
escrita uma ou duas dessas pequenas folhas pelas quais você tem tanta afeição. Para
mim será um prazer – e um dever – responder-lhe.

— Podemos sempre tentar:

LOTHARIO: Tenho muito dificuldade em não ver na sequência de fragmentos do senhor,


meu caro Ludovico, um verdadeiro pequeno discurso – com sua composição limpa, sua
entrada na matéria, sua demonstração bem articulada, sua conclusão (sua bela queda,
segundo a lei do gênero). O senhor dissimula habilmente uma potente retórica, ou seja,
no caso, uma potente dialética. O senhor a dissimula sublinhando-a – e de tal modo,
talvez concorde com isso, que esses fragmentos sobre a fragmentação (impossível) são
propriamente um discurso sobre o discurso. Sobre a « indestrutível » dialética.

Longe de mim a intenção de reprová-lo por isso: sei como o senhor que é preciso
uma vigilância extrema nessas matérias (quantas fracas repetições, hoje, da escrita
romântica; quantas fracas especulações miméticas!); e aliás sou-lhe grato por creditar
Blanchot de ter evitado (ou sabido evitar?) as duas « armadilhas gêmeas » da
« superdialetização » e da « superfragmentação ». Entretanto uma dialética – mesmo
suplementar, mesmo negativa – permanece uma dialética. Ou seja, uma economia. No
fundo, compreendo mal a frase de Blanchot sobre a qual o senhor se apoia porque, se
sigo o seu pensamento, ela lhe parece traduzir da melhor maneira possível « a exigência
fragmentária » (por oposição à « vontade fragmentária » dos românticos); não entendo o
« manter-se como energia de desaparecer » – essa espécie de suspensão relève [ ]219
negativa que seria insensata se não se mantivesse, precisamente, uma energia: uma
operação [mise en oeuvre]. Há, ainda aí, vontade (é, aliás, evitável?), e portanto também,
provavelmente, um cálculo, o ardil de um último cálculo: o do incalculável. É a sua
dialética indestrutível que pronuncia o Noli me frangere… De minha parte, eu me
perguntaria antes, ou seja, mais brutalmente, se não é a própria energia, a vontade de
obra, que dá lugar à fragmentação. A obstinação com vista à obra. Seria exemplarmente,
mas aquém de sua « vontade fragmentar », o que se passa em Schlegel. E em todos
aqueles que tão simplesmente sofreram220 a fragmentação – que eles não queriam.

LUDOVICO : Lothario, o senhor me leu muito bem, tanto quanto talvez tenha entendido
mal uma das minhas intenções. Et pela mesma razão. É exato, com efeito, que meus
fragmentos são um discurso. Acrescentarei que a « mise en abyme » – tão tentadora, tão

219
"Relève" é a tradução proposta por Jacques Derrida para a Aufhebung hegeliana. Sobre o termo ver
supra, a nota XX na p. X. (N. E.)
""a `1 H(+/'G08 V "1! '#A- WA V V B#A-$ W8 V 0$H(.( W8 V 0)-$(2+( W8 V 0. 0)D1.2.( W8 2.1 $ 0./2*3$ 3.
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insidiosa e imperiosa nessa ocasião – do fragmento deveria segundo creio manifestar a
irresistível reconstituição do discurso, à qual a vontade fragmentária não escapa: mais
ainda, à qual ela se curva de antemão sem o saber. Mas é também assim a esse título que
Blanchot me surpreendeu e interrompeu um primeiro esboço sobre o qual eu tentava
expressamente discorrer. Pois eu via, numa passagem tal como a que citei, uma singular
ressurgência dialética, e muito precisamente, como o senhor disse, a manutenção de uma
visada da obra. Semelhante ao Espírito hegeliano, a energia da obra – se o senhor me
perdoar essa expressão redundante – seria aqui o que se mantém na morte fragmentária.
Que Blanchot, por conta disso, escreva justo ao lado do dialético significa precisamente
também que ele repete, se quiser, o contorno externo do dialético. E que pedimos todos,
assim, para não ser quebrados.

Mas ao mesmo tempo eu tentava ler ou entender essa mesma dialética como uma
confissão, como a confissão (e não a vontade) de uma fragilidade do discurso, que o
discurso confessa ao mesmo tempo que suplica que o poupem. Energia é uma palavra
tão estranha nesse contexto que é preciso sem dúvida também lhe dar o sentido (se é um
« sentido ») de uma renúncia à energia. Eu quis falar de « dialética negativa » no sentido
em que Adorno escreve: « A dialética é a consciência rigorosa da não-identidade »221. O
livro de Adorno é ele também, à sua maneira, escrito em fragmentos. Sem vontade
visível de fragmentar, mas pelo efeito, parece-me, de uma atenção extrema, quase
insustentável, à oposição aguda, em Hegel, da dialética ao « ponto de vista da
consciência», a qual conduz à sua identidade tudo aquilo que difere dela mesma. Adorno
tenta (não digo que consiga, não faria sentido) não manter a contradição, mas suportar
a sua ruptura. O negativo nele e o fragmento em Blanchot tentam converter maestria
[maîtrise] em prova222. Apesar de tudo. Como se houvesse um além de Hegel e do
absoluto romântico, o nosso além (passo além,223 o senhor sabe…), onde mais nada se
quer, mas onde se trata de provar [éprouver] a não-identidade. De suportar assim o peso
do pensamento e da escrita. E que começa, paradoxalmente, no coração da identidade, lá
onde o discurso e a consciência suplicam: Noli me frangere, confessam que isso [ça] já
se fragmentou, que uma interrupção ou uma suspensão teve lugar, e que não remeteria a
uma totalidade, que não quebraria uma unidade, já que esta não é produzida. Um
fragmento que fragmenta – nada. Mas não sei se entendo essa prova como o senhor
entende o fato de « sofrer » a fragmentação…

LOTHARIO : « Sofrer» [“Subir”], no sentido em que o entendo, sinaliza em direção à


« passividade ». Mas a palavra que o senhor mesmo emprega, « prova» [“ épreuve”], me

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223
Le Pas au-delà, é o título de uma obra de Maurice Blanchot. (Mauri ce Blanchot,. Le Pas au-delà.
Paris: Gallimard, 1973). O título é equívoco, significa ndo, ao mesmo tempo, “O passo além” e “O não
além”. literalmente dialético, no sentido de que ele realiza em si o próprio sentido da “dialética”
blanchotiana. Sobre a noção cf. Abaixo, a nota XX, p. XX. (N.T.)
convém perfeitamente; e tudo o que sugere a propósito de uma tal prova, creio possível
fazê-lo meu – não somente subscrevê-lo. Creio saber – por « saber » nenhum – o que é
suportar a não-identidade, ser votado à suspensão, a essa ruptura ou cesura que sempre
já teve lugar (como o que nunca teve lugar). Reconheço isso como o « difícil », o
« infactível » – a pena. Em meu pathos, que nunca está tão distanciado do seu, direi:
escrever, pensar: nada acontece.

Nesse sentido, me parece, produz-se (sem se produzir) o desligamento. Adorno


ainda: penso na extrema acuidade da análise que ele conduz da parataxe na última
poesia de Hölderlin – o qual não buscava em nada a ruptura, ainda que recusasse com
todo conhecimento de causa a síntese dialética (conceitual). Quando falava de « sofrer a
fragmentação », era de fato nele que eu pensava.

Mas o estranho em tudo isso é que o senhor frequentemente me reprovou – ou pelo


menos frequentemente se espantou, maliciosamente, com o que denominava minha
tendência ao misticismo. Mas o senhor mesmo, meu caro? O que é essa « confissão »,
essa « súplica», esse “que me poupem »? Enquando eu não ousava nem mesmo mais
dizer-lhe que achava perturbadora a maneira com a qual Benjamin se apropria,
desviando-a, da proposição de Malebranche sobre a atenção para qualificar a escrita, ou
o pensamento como « uma forma de prece ».

Há, portanto, certamente um mal-entendido entre nós. Ele está onde o senhor o situa,
mas não somente aí. E para aproveitar a bola levantada, preferiria falar, se tenho que
fazê-lo, de mal-estar. O que me constrange de fato, veja – talvez tivesse valido mais que
eu o dissesse de saída –, é a sua referência ao « corpo glorioso ». A ressurreição, em
qualquer registro que seja (místico, especulativo), me é impenetrável. Nada me choca
mais no cristianismo. Eis por que minha mística, se há algo como uma mística em mim
(o que no fundo duvido muito), tem pouco a ver com essa espécie de « teologia
negativa » que o senhor me parece ostenta e da qual não posso me impedir de suspeitar a
absoluta positividade. Constrange-me em suma que por um truque [tour] lógico ou
retórico suplementar, como que acarretado por um movimento, diríamos hoje, de
« maximização », o senhor reforce, sob a aparência de combatê-la, a mística do
fragmento. Se não nos decidimos sobre o que está em jogo na fragmentação – e nisso
estou totalmente de acordo com o senhor –, não é sob a injunção silenciosa
(terrivelmente eloquente) do « corpo glorioso » da escrita. A indecisão é uma pobre
experiência.

LUDOVICO: Pobre experiência… é preciso na verdade que eu lhe conceda. Ou antes, não
tenho nada aqui a lhe « conceder », como se se tratasse de debater tese contra tese. O
senhor fala daquilo em quê ou por quê todas as teses, todas as posições de discurso, se
desmoronam, mas silenciosamente – ou num murmúrio obstinado –, esquivando até o
evento desse desmoronamento. Blanchot não cessou de assombrar essas paragens, por
meio da escrita ou do pensamento. Isso se prova [s’éprouve], e quase não se pode dizer,
ainda menos se justificar. Há – é isso que acontece – um esgotamento do discurso – um
esgotamento da linguagem – que não pode nunca ser conhecido, nem reconhecido, e, do
qual é preciso dizer, no entanto, que o seu desconhecimento vota o discurso à vaidade.
Não é uma mística do inefável, pois não há aí o segredo de um sentido escondido, de
uma Palavra além das palavras. É, antes, uma mística da fragilidade pela qual só se
revela o que o senhor me perdoará de chamar, apesar de tudo, uma verdade na palavra
do homem (não há outra). Não recuso, como vê, a palavra ‘ mística’. Eu a colocarei, ao
contrário, e para fazer eco à sua prece, sob o patrocínio de uma palavra mística, a de
Mestre Eckhart: « Oremos a Deus para que possamos ser livres e quites para com
Deus ».

Se isso ainda lhe cheira muito a teologia negativa (mas a diferença para com a
mística, ainda que bem real, é sem dúvida infinita para ser produzida no discurso…), é
preciso, enfim, Lothario, que eu faça uma confissão a respeito de meu « corpo
glorioso ». Não deduzi o discurso desses fragmentos a partir de um pensamento do
corpo glorioso. Mas ao contrário, a frase do Evangelho, sozinha, veio primeiro ao meu
ouvido. Noli me tangere , nesse latim carregado de velhas sonoridades da Igreja, de um
tom de salmodia e de recitação sagrada. Não saberia lhe explicar a razão disso. (Seria
porque L’Écriture du desastre [A Escrita do desastre], tendo interrompido meu trabalho,
tendo-me tocado da maneira complexa como eu lhe dizia, me fazia dizer: não me
toques? Eu o ignoro.) Mas essa frase se impôs, com a pálida lembrança de um relato,
que vou agora lhe relembrar: Maria de Magdala se encontra no túmulo, e, vendo Jesus,
de pé, não o reconhece. « Jesus lhe diz: “Mariam”». Virando-se, ela lhe diz em hebraico:
« Rabbuni! », o que quer dizer « Mestre! ». Jesus lhe diz: « Não me toques, pois ainda
não subi para o Pai, mas vai para os irmãos… ».

O senhor percebe o quanto esse relato – que João é o único a fazer – é feito de uma
extrema e pudica fragilidade. É uma prova [épreuve], uma alegria e um desaparecimento
ao mesmo tempo. E o corpo glorioso, que incomoda o senhor, brilha nele com uma
glória tão pobre que ele não é nem reconhecido nem designado como tal. Confesso que
não recusei o que uma frase frágil, um fragmento de som e de sentido, me trazia desta
maneira. Mas no que toca ao corpo glorioso, eu o escrevi, não há nada a saber nem a
tocar. Ele está aqui, e se esquiva. Eu quis menos fazer uma alegoria da escrita do que
experimentar [éprouver] a maneira com a qual essa frase, esse relato, seu sentido
espiritual e sua emoção fugitiva, se suspendiam, se fragmentavam, instantaneamente. E
a ideia da « glória », de um fulgor invisível… Creio que se escreve sempre, não somente
para a glória, mas nessa glória esquiva. Eu lhe falava justo agora do peso do
pensamento: na palavra hebraica que diz a « glória » bíblica, há a ideia de um peso, de
uma gravidade…

LOTHARIO: Esse « corpus », se ouso dizer, não me é muito familiar. O senhor o sabe:
esqueci realmente bastante. Exceto, no entanto, essa personagem de Maria Madalena
que, por toda a sorte de razões (dentre as quais algumas pouco confessáveis), sempre me
foi – como dizer? – muito « próxima ». É estranho aliás, eu não a sabia implicada no
caso do Noli me tangere (estranho e, sob um certo ângulo, perturbador). Isso vem talvez
do fato de que, para mim, ela é em primeiro lugar uma figura – secreta, enigmática – da
pintura. Se quiser: a imagem da mulher associada – lembrança imemorial – à luz de La
Tour.224 De fato, é a minha imagem do amor; ou o belo em si.

Mas o senhor duvida disso: não é justamente a « glória » – o esplendor, indissociável


para mim – o senhor vai sorrir – da Contra-Reforma, do barroco. Desde Platão, o belo é
o fulgor. Mas há dois tipos de fulgor, e a ostentação (que constitui um dos sentidos do
latim gloria) me repele um pouco.

LUDOVICO: Ousaria dizer que ela não me repele? É preciso fazê-lo, por minha própria
conta e risco. Não a reivindico e não a erijo por oposição ao fulgor retido, evanescente,
totalmente interiorizado, como o senhor parece indicar. Diria, antes, que a fragmentação
responde para mim ao fato de que não há (ou não há mais) interioridade. E por
conseguinte, com efeito, a algo de barroco. A passividade à qual ambos nos referimos
pode se concentrar ou se dispersar. Por incapacidade talvez para deixá-la se concentrar,
vejo-a se dispersar nessa fragmentação barroca da qual soube falar o Benjamim do
Trauerspiel225 (o romantismo tendo sem dúvida misturado, em proporções variáveis, as
duas fragmentações). O barroco deixa a perda da totalidade orgânica como interioridade
e se entrega ao « caráter inacabado e quebrado da physis sensível e bela ». Por certo, na
própria ruptura e na intermitência, nas bruscas imobilizações e nas simultaneidades
surpreendentes, nos jogos de espelhos e de chamalotes226, a escrita se vê novamente
« preocupada com a maior complacência em desenvolver sua energia própria ». Eu não
deixaria de reivindicar (não para « mim », mas para a « literatura ») o risco dessa
complacência – e a(jogo,
certo, chiste. Este possibilidade de que ela
achado, colisão do se quebre, e voe
heterogêneo) estáem estilhaços
bem próximo. Haveria aí, é
da dialética,
nós escrevemos isso. (O senhor lembra também que Heidegger em seu Schelling fala da
« transposição romântica da dialética idealista».) 227 Mas ele não está ausente de
nenhuma escrita. Simplesmente, isso não depende da sua vontade – e nisso estamos,
parece-me, de acordo. Há esse insigne desfalecimento do querer, ou do projeto, que faz a
fragmentação – ou a escrita. Ela me entrega a uma espécie de devastação, de fato
estilhaçante, da qual não está excluído o jogo, por derrisão ou por júbilo. O senhor me
parece, sobre esse ponto, se recolher, e devo confessar que de minha parte é o
recolhimento que esqueci, ou que jamais conheci. O que é apenas, sem dúvida, nada
mais do que o sinal dos tempos modernos… Não sei dissociar o fragmento, por fim, da
clausura do mundo moderno.

— Pois bem, tenho a impressão de que seria melhor se ficássemos por aqui.
Curiosamente aliás, com essa maneira de proceder, terminei por dizer, creio, o que eu
queria dizer.

224
Georges de La Tour (1593-1652), pintor francês. (N. T.)
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226
Ludovico joga aqui com a paronomásia, « miroir », « espelho », e « moire », « chamalote. (N. T.)
227
Martin Heidegger. Schelling . Paris: Gallimard, 1993.(N. T.)
— E o fragmento póstumo de Schlegel do qual o senhor tinha me falado, não fez nada
com ele?

— Não, teriam sido necessários desvios longos demais para integrá-lo


convenientemente. Já está bastante longo assim.

— O que ele dizia? É ainda possível colocá-lo no pequeno diálogo final.

— Está anotado aqui.

— « A atividade pela qual a consciência se faz melhor conhecer enquanto fragmento…

— É Bruchstück, “pedaço”. Ele não diz Fragment…

— … é o chiste, cuja essência consiste precisamente no fato de ser arrancado… ». É


justo, mas…

— Mas?

— …a dialética ainda fazendo das suas.

— Sim e não.

— Em todo caso, em seu texto, isso funciona. Quando penso que você me aprontou, no
fim, aquela história da interioridade, do recolhimento. E se eu tivesse aprontado com
você a da piedade? Retive-me para não enfeitar com um Ad majorem scriptionis (ou
cogitationis) gloriam… Mas sejamos sérios. Não sei se é isso que você procurava dizer
afinal, mas quando fala do fragmento como sinal da « clausura do mundo moderno »,
parece-me que você toca em algo de justo.

— Eu queria
Moderno. dizer: oarrancá-lo
É impossível fragmento, mesmo em Blanchot, marca demasiadamente o
ao Moderno…

— De Nietzsche, por exemplo, que é em grande parte a srcem, em Blanchot, da


« escrita fragmentária ». Em suma, se você quer dizer que não há nada a fazer com o
fragmento como tal (quer dizer, no limite com o fragmento como gênero)…
— Sim, mas não com a fragmentação…

— Entendo. Não, o fragmento como gênero é ainda a vontade de fragmentar, com tudo o
que isso acarreta: a literatura, em sua delimitação mesma: a letra do sujeito. Com
Barthes, chama a atenção: Montaigne, a recorrência do auto-retrato. E quanto ao
apagamento anônimo de Blanchot…

— É ainda outra coisa. Como se poderia rebater o anonimato sobre o auto-retrato,


mesmo sendo o do sujeito da literatura?

— Um dia, será preciso no entanto que nos decidamos a distinguir com um mínimo de
rigor entre literatura e literatura.

— Exatamente!

Ainda falamos muito sobre essa questão, – naquele dia, mas também mais tarde.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla
2. RESPONDER PELO SENTIDO

Me escreva. Escreva qualquer coisa228.

A frase – a literatura – é oral229.

Quem escreve responde.

A quem ou a que ele ou ela responde, a tradição deu muitos nomes. Houve a
Musa, o Furor poético, o Gênio com ou sem maiúscula, a inspiração, algumas vezes
a missão ou a vocação, algumas vezes ainda uma necessidade da alma ou da mente,
uma graça do céu, uma injunção sagrada, um dever de memória ou de esquecimento,
um auto-engendramento do texto. Mas o nome mais antigo é thea no primeiro verso
da Ilíada: « Canta, deusa, a cólera de Aquiles… ». Nesse incipit da literatura
ocidental o poeta pronuncia apenas a primeira frase – ou, no mais, as frases que
levam à questão:
e de Zeus « Qual
») engaja deus
todo os lançou
o poema, emnaque
guerra? » – e ouvir
é preciso a resposta
que (« O filho de
doravante Leto
é Thea
quem o canta.

O próprio Homero não escreve: ele deixa a voz divina cantar. Ele, o aedo,
canta enquanto interpreta o canto divino – esse canto que Homero pede a ela para
cantar (« menin aeide thea… »): ele assim faz o que espera que ela faça a fim de se
eclipsar ele mesmo nesse canto – o seu (dela) se tornando o seu (dele) mas
permanecendo sempre esse canto divino. Ele deixa, pois, a voz cantar; ou então, ele a
faz ouvir, ele a recita. Sempre, desde então, aquele que escreve não escreve de outro
modo que se deixando ditar em vários sentidos desse termo. Dicto é dizer repetindo,
insistindo, é também comandar, prescrever. Quem escreve se deixa injungir a
escrever: ele responde a um comando, até mesmo a uma objurgação, ou então, a uma
exortação, a uma excitação ou a uma pressão. Mas também recebe o ditado: ele deita
por escrito o texto que compõe e recita para esse fim uma outra voz, uma voz que

nãodiktieren
de escreve, uma vozoque
(ditar), arqui-escreve.
outro verbo dichten palavra dictare
Da (compor , o alemão
um escrito, tirou, ao lado
singularmente um
poema). Aquele que escreve responde de uma maneira ou de outra, por eco ou por
execução, por transcrição ou por tradução, à ditadura de uma dictatio. Aquilo que,
na Ilíada, parece manifestado como a resposta de Thea – da thea, de uma thea não
nomeada, não identificada –, é de fato, ao inverso, a resposta do aedo ao ditado da

228
Emmanuel Loi. D’ordinaire . Romainville: Al Dante, 2000, p. 7 (Esse livro se compõe das cartas
e diários de um preso).
229
Philippe Lacoue-Labarthe. Phrase . Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 2000, p. 17.
voz divina: mas, precisamente, essa resposta se dá por sua figura invertida pela razão
de que em verdade é o aedo quem responde – ou então, mais verdadeiramente ainda,
há apenas resposta a uma resposta, e ninguém nunca começou.

Isso se responde: essa é a fórmula do que se nomeia hoje de escrita. Isso se


responde: isso responde em si, isso responde a si e isso responde por si. Res
responsoria, eis o sujeito que sucede a res cogitans (a menos que ele não a tenha
sempre precedido e que ele a habite) – se se quiser justamente relembrar que
responsorius cantus designava o canto por alternância de lições (lectio) e de
versículos
ou (versus)interna
da ressonância ou responso . Na oescrita
que forma canto.é de canto que se trata, e da alternância

O aedo e a thea não respondem assim no sentido em que se responde a uma


questão, mas no sentido em que se responde a uma espera, ou então naquele em que
vozes se respondem, se correspondem. Eles respondem ou se respondem no sentido
em que re-spondeo é se engajar em retorno em uma sponsio, num engajamento
religioso e/ou jurídico: responder a uma promessa por uma promessa recíproca
(como nos esponsais, forma de sponsio, de onde [o português tira “esposar”,] o
francês « épouser », o italiano « sposare ») 230. Quem escreve escuta e se engaja em
sua escuta, por sua escuta. De mesmo modo no alemão Antwort e no inglês answer, a
« resposta » é a palavra que vem ao encontro. Escrever é se engajar em um encontro:
é ir em direção ao encontro e é assumir o compromisso do encontro. Escrever é
marcar um encontro. (O encontro talvez furtivo pode ser apenas um simples
cruzamento, um roçar, bem como um longo face-a-face – e pode também se produzir
« de encontro », no choque, no afrontamento, na repulsão. Mas sempre se trata de
alguma confrontação, e jamais isso se dá sozinho.)

Escutar é ressoar: deixar vibrar em si os sons vindos de alhures, e lhes responder


por sua reverberação num corpo tornado cavernoso para esse fim. Essa caverna não é
a de Platão: não é fechada e apenas entreaberta sobre um fora que projeta sombras,
mas é a abertura em si nos dois sentidos que pode tomar essa expressão: ela é a
abertura no interior de mim e a abertura mesma, absolutamente. De fato, ela é « eu »
enquanto abertura, eu enquanto caixa de ressonância sobre a qual vêm bater, deslizar,
roçar os acordes e os acentos das vozes do fora, das vozes divinas. Mas a ressonância
não é uma sombra: ela não é o resto de uma subtração, é a intensificação e a re-
harmonização, a remodulação de uma sonoridade. Quem escreve ressoa, e ressoando,
responde: partilha o engajamento de uma voz que vem de fora. Ele se engaja nela por
sua vez, torna polifônica a voz que lhe chegava monódica. Mas sem essa polifonia, a
monodia nem mesmo se ouviria. Quer dizer, ela não seria ouvida e ela mesma
permaneceria surda a si mesma.

A resposta é a retomada e o relançar da voz: do que ela diz, de seu sotaque231, de


sua articulação e de seu fraseado ou de seu cantado. Mas sem retomada, portanto sem

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resposta, a voz permaneceria em si. Uma voz em si não é uma voz: é um silêncio que
não tem nem mesmo o espaço de um endereçamento: é um mutismo enclausurado
em seu zumbido, em seu mugido ou em seu murmúrio (a repetição de um mmm
mudo – mutum). Uma voz é sempre duas vozes pelo menos, sempre polifonada de
alguma maneira. Sempre uma voz deve lançar à outra: « canta ! aeide ! ». Aeidô - de
onde se forma ôdè, o canto, a ode – reporta-se a audè que caracteriza a voz humana
por distinção à phônè que pode se dizer também da voz animal. Audaô é endereçar a
palavra, lançar uma réplica ou um chamado. A voz humana retine sempre em direção
a uma outra voz e a partir de uma outra voz ou então em uma outra voz. Sua
ressonância sonora é indissociável de um retinir de endereçamento e de escuta:
mesmo quando eu falo só e silenciosamente « em minha cabeça » (como se crê poder
dizer), quer dizer, quando eu penso, eu ouço uma outra voz em minha voz ou então
ouço minha voz ressoar em uma outra garganta.

A « escrita » é o nome dessa ressonância da voz: o chamado, o encontro, e o


engajamento que supõem o chamado ao encontro. Nesse sentido, toda escrita é
«engajada » num sentido que precede a noção de um engajamento político ou moral,
a serviço de uma causa. Escrever é engajar a voz na ressonância que a faz humana:
mas « humana » não significa nesse caso nada além do que «o que se mantém – ou o
que chega – na ressonância ».

A escrita é, portanto, a ressonância mesma da voz, ou a voz enquanto ressonância;


quer dizer, enquanto remissão em si mesma, através da distância de um « si », à
«mesmidade» que lhe permite se identificar: cada vez absolutamente singular para
um número indefinido de encontros cada vez singulares. A escrita « fixa », como se
diz, o fluxo da palavra (verba volant, scripta manent232): essa fixação não é outra
coisa senão o registro, a reserva ou a morada da capacidade de ressonância. Na
palavra viva, ou bem na palavra que fala apenas para informar ao instante, sem prazo
nem encontro marcado, a ressonância é extinta logo que a informação alcançou a
destinação. Na escrita, a destinação é de saída, de chofre, e para sempre a
ressonância como tal: Homero não escreve para ninguém menos do que os seus
milhões e milhões de leitores, cada um, um a um, e para povos ou para grupos de
culturas singulares há aproximadamente trinta séculos. E é para isso que ele engaja
seu poema no chamado à voz divina da qual ele se faz o aedo, a ressonância. A
escrita fixada, gravada na madeira, na cera, na pedra ou no papel, digitada no
monitor, mas também registrada na voz falante de um orador, de um cantor, de um
endereçador em geral, se pudéssemos forjar esse termo – a escrita só é imóvel e
invariável porque ela inscreve assim o espaço de uma ressonância sempre renovada.

Quando Hegel afirma que uma verdade escrita não perde nada ao ser conservada
fora da circunstância singular de sua enunciação – assim, « anoitece » pronunciado
ao meio-dia – não quer dizer que a verdade não seja da ordem da verificabilidade
empírica, mas é justamente da ordem do endereçamento e da ressonância. Se digo
« anoitece » ao meio-dia, o que é, pois, que quero dizer e qual escuta pode se engajar
ao encontro do meu dizer?

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Dizer « anoitece » à meia-noite enuncia alguma coisa, mas não anuncia nada: ou
então, essa frase anuncia um sentido que deve ultrapassar a significação referencial
imediatamente atestada. Do mesmo modo, essa frase dita ao meio-dia – ou seja, essa
frase escrita – anuncia um sentido que, antes de mais nada, se subtrai da referência e
sinaliza para outra coisa. Essa « outra coisa » consiste, antes de mais nada, no
endereçamento da frase e na ressonância através da qual ela se endereça: poder-se-ia,
aliás, dizer em francês que ela engaja o seu sentido mais em seu fraseado do que em
sua significação. O fraseado designa a maneira ou a arte de articular, em escrita ou
em música, os conjuntos considerados como unidades de sentido: é o canto do
sentido.

O canto do sentido não é outra coisa que o sentido ele mesmo. O sentido não é a
significação ou a designação – a remissão233 por um significante a um conceito
significado e ele mesmo suposto fora-da-língua: é, antes, a abertura da estrutura e da
dinâmica da remissão em geral, pela qual alguma coisa como uma remissão
significante pode ter lugar: remissão de significante a significado, ele mesmo
acompanhado de uma remissão de significante a significante, segundo o jogo das
diferenças na língua, e enfim, ou para começar, da remissão de uma voz a uma
escuta, sem a qual nenhuma das duas remissões precedentes poderia nem mesmo ter
lugar, já que tanto uma como a outra, e uma através da outra supõem, em suma,
possível o entendimento (no duplo sentido da palavra em francês234 – em alemão,
poderíamos dizer a obediência ou o pertencimento a – gehören, gehorchen – outros
modos da «resposta »).

O que se trata de ouvir [entendre], não é o que a palavraquer dizer, no sentido em


que essa vontade teria já produzido a realidade acabada de sua intenção ou de seu
desejo. É preciso, antes de qualquer outra coisa, ouvir esse desejo ele mesmo: é
preciso ouvir o « querer-dizer » se querer ele mesmo em seu dizer. (Em alemão, é
preciso ouvir o deuten do bedeuten: ouvir na « significação » a declaração, o anúncio
endereçado a todos – ao povo, quer dizer também deutsch ou dutch, já que aqui o
nome do povo, o de sua língua e o do chamado ou do anúncio ressoam num mesmo
espaço semântico.) Ouvir o dizer se desejar enquanto dizer é ouvi-lo já ressoar ao
mesmo tempo ouvindo-o desejar o outro como seu lugar de ressonância e de
remissão. O sentido enquanto canto não é a musicalização de um propósito ou de um
texto: é o caráter primitivo ressoando no sentido ele mesmo.

Em todo dizer, o querer-dizer, antes de dizer alguma coisa, se diz primeiramente


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234
O duplo sentido existe também no cog nato português do fr ancês “ entendre ”, entender”, ao mesmo
tempo: perceber, ou reter pela inteligência, e captar pela audição, ouvir, mas menos pronunciado do que
em francês. Um duplo sentido equivalente existe no português de Portugal, em “perceber”. “Eu não
percebo” significando ao mesmo tempo: eu não compreendo e não estou ouvindo. (N.T.).
como querer, e esse querer, antes de querer alguma coisa, se quer primeiramente
como poder-se-dizer, ou seja, como poder se chamar e se responder.

Em outros termos, se escrever é responder a um chamado por um outro chamado,


ou então dar lugar e dar forma ao chamado enquanto tal – como Homero, chamar a
deusa que ela mesma chama desde o fundo da língua e da lenda, uma na outra
inextricavelmente misturadas –, descobre-se agora que o chamado ou o
endereçamento não são eles mesmos nada além do que o sentido: o sentido enquanto
abertura da possibilidade da remissão.

O sentido jamais pode absolutamente ser o feito de um só sujeito de sentido, já


que esse sujeito ele mesmo deveria ao menos entender, ao ouvir, o sentido que ele
produziria ou encontraria. Seria preciso que ele se ouvisse e, para se ouvir, seria
preciso que ele tivesse se chamado e, para se chamar, seria preciso que ele pudesse
ressoar – e enfim, para ressoar, seria preciso que ele, em primeiríssimo lugar,
oferecesse nele mesmo o espaço, o intervalo ou o espaçamento, a abertura que é a
condição de possibilidade de uma ressonância, já que esta demanda uma relação de
vibração a vibração, uma « simpatização », como dizem os físicos que falam de
«vibração por simpatia » ou uma « harmonização » como dizem os músicos. Mas a
ressonância tal como é preciso entender ao ouvi-la aqui, não é somente a relação
entre duas ordens sonoras distintas: ela forma logo de antemão a sonoridade nela
mesma. A sonoridade se define precisamente por isto: que « nela mesma » ela está
em espaçamento dela mesma. O sonoro é sua própria dilatação ou sua própria
amplificação e sua própria colocação em ressonância.

O canto é a sonoridade humana do sentido: o sentido é ele mesmo formado e


definido pelo espaçamento interno de sua remissão e, logo de antemão, da remissão
pelo qual ele se destina e se deseja ele mesmo como uma resposta a sua própria
remissão. Nesse sentido, não somos jamais, cada um (a) ao lado do (a) outro (a),
senão pontos singulares ao longo de uma remissão geral que o sentido faz dele
mesmo em direção a ele mesmo, e que começa e que se perde muito aquém e muito
além de nós, na totalidade indefinidamente aberta do mundo. Mas, ao mesmo tempo,
esses pontos singulares que nós somos (ou os vários pontos singulares que se
debulham sob cada identidade individual ou coletiva) são eles mesmos a estrutura
necessariamente discreta ou descontínua do espaçamento geral no seio do qual o
sentido pode ressoar, ou seja, se responder.

Comunicando-se a todos os pontos singulares de escuta ou de leitura, de


entendimento ou de interpretação, de recitação ou de reescrita, o sentido não faz
outra coisapode
«sentido» que ser
se entendida
partilhar a,e ouvida
ou em, ao
tantos sentidos
mesmo temposingulares (aqui,
em seu valor de a« palavra
querer-
dizer » e em seu valor de « poder compreender », assim como quando ele é « bom
sentido » ou « sentido artístico » – e esses dois valores, entende-se, são inseparáveis
um do outro: eles estão ambos presentes no sentido mesmo do mesmo sentido…). O
sentido tomado absolutamente ou em si não é outra coisa que a totalidade dos
sentidos singulares. O sentido infinito é idêntico à infinidade das singularidades de
sentido. Não é nem um sentido geral, nem um sentido por intimação ou por
resultante dos sentidos singulares: é o encadeamento e a descontinuidade desses
singulares. É que há passagem e partilha de um a outra, passagem e partilha de um
«querer-dizer » e de um « poder compreender » – de uma atividade e de uma
passividade – que são juntas uma só e a mesma coisa, a coisa do sentido: mas essa
coisa é tal que sua realidade não é outra senão sua disseminação.

Se eu quero dizer quer dizer, antes de tudo, que eu quero me dizer e assim
imediatamente que eu quero lhe dizer, que eu quero lhe dizer « eu » e assim
imediatamente lhe dizer « você », a você que no meu querer é, pois, já aquele que me
diz « você» para me chamar a dizer e a lhe dizer « eu ».

A escrita – cujo nome reclama a incisão (scribo, skripât, scaripha) – é muito


exatamente o nome do espaçamento disjuntivo no qual e graças ao qual o sentido
pode se responder: desejar-se, enviar-se e remeter-se235, indefinidamente, de ponto
singular em ponto singular – o que quer dizer também de sentido singular em sentido
singular (de Homero – que ele mesmo sem dúvida não foi um só – ao seu leitor
Platão, ao seu leitor Virgílio, ao seu leitor Agostinho, ao seu leitor Joyce e assim por
diante, a seus milhões de milhões de leitores e de reinscritores, de respondedores e de
correspondentes…). A escrita entalha a massa indistinta na qual, sem ela, não se
abriria nem boca, nem orelha. Cada traço de escrita é uma boca/orelha que se envia,
que se chama, que se ouve e que se responde: aeide, thea !236

Quem escreve responde ao sentido: ele é, enquanto escreve, a resposta ao


chamado do sentido, ou antes, a « resposta-em-chamado » do sentido. Mas esse
sentido – thea – ao qual ele responde, pelo qual também responde. O aedo responde
por thea: ele é o único, de fato, que atesta a sua presença e a sua voz. Seu chamado
ao canto vale como testemunho para sua presença, a qual não tem nenhuma outra
atestação. O aedo é respondente de thea, responde para ela e responde por ela: ele é
assim responsável por ela – e com ela, de tudo aquilo que dela podemos ouvir.

Se o responsável é aquele que responde não a, mas por ou para, é porque é aquele
que se engaja assim, indiretamente ou de maneira mediata e diferida – diferida, mas
prometida, engajada –, a responder àquilo que poderia ser demandado ao tema disso
ou daquilo cujo responsável assume a responsabilidade. O responsável toma a seu
cargo e em sua conta o engajamento de um outro – o engajamento que um outro não
pode tomar ele mesmo – ou bem o engajamento que o estado presente das coisas
torna impossível tomar em todo conhecimento de causa: ao declarar-me responsável
de um projeto, por exemplo, eu assumo o imprevisível que ele comporta. A
responsabilidade é resposta antecipada a questões, a demandas, a interpelações ainda
não formuladas, e não exatamente previsíveis.

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9(.1.2.(50.;A <#AKA=
236
“Canta, Thea”. (N.T.)
Quem escreve se constitui como responsável pelo sentido absoluto. Ele não se
engaja a nada mais nada menos do que na totalidade e na infinidade desse sentido.
Ao mesmo tempo, ele testemunha sobre a existência de thea e toma sobre si seu
desejo: o desejo que ele tem de thea e o desejo que é a própria thea.

Testemunho da existência de thea, ele próprio se declara como sendo seu aedo, ou
seja, também seu hermeneuta. O hermeneuta não é de saída aquele que decifra e
decodifica as significações, ainda que ele tenha também, por vezes, que fazê-lo – e

refazer isso sem


esgotamento fim,pela
e foge ou então atémesma
incisão o pontodaonde todaOa hermeneuta
escrita. significação não
se desfia até o
é de saída
aquele que significa o que é dito: ele é o que leva mais longe o desejo de dizer. O
hermeneuta suplementa o sujeito desse desejo: ele apresenta thea e a faz ouvir na voz
mesma – sua própria voz – pela qual ele a convoca. Também faz ouvir a cada vez
singularmente essa voz237.

Mas, assim, aquele que escreve não testemunha somente sobre a existência de
thea: testemunha também sobre sua natureza, e que esta é inteiramente feita dessa
partilha das vozes da qual ele é, ele que escreve (ou ela), uma parte, um momento,
um sotaque [accent] e um sentido ao lado de tantos outros.

Respondendo ao desejo do sentido, e assim ao sentido enquanto desejo,


acedendo a esse desejo e se deixando possuir por ele, aquele que escreve toma a
responsabilidade
mesmo. O sentido pela
se totalidade
partilha, ee não
pela faz
infinidade do sentido
nada mais enquanto
que disso: abre apartilha dele
circulação
contínua e descontínua, o câmbio do incambiável desejo cada vez singular de dizer.
Incambiável é esse desejo, pois aquilo que ele deseja não é a comunicação de uma
significação: é a pausa [ coupe] e o toque de uma verdade singular.

O que chega ao sentido em cada ponto ou momento singular – em cada


escrita – não é o cumprimento de um momento que uma instância final poderia vir a
valorizar e a capitalizar em uma satisfação terminal de sentidos (exegese acabada,
interpretação fechada, sentido atualizado para sempre). Não é nem um momento nem
um fim no processo do sentido – e, nesse sentido, não há processo do sentido: não há
senão seu desejo e sua partilha. O que chega ao ponto singular é o singular ele
mesmo enquanto escansão de verdade no sentido.

Aquele« que
de Rimbaud: escreve
É muito nãoé pode
certo, nãoo fazer
oráculo sua,238no».tempo
que digo em que escreve,
Ele pronuncia a frase
essa frase sem
arrogância alguma, mas igualmente sem restringi-la ao ângulo derrisório de uma
subjetividade. A certeza é aqui a verdade do engajamento e da responsabilidade no
sentido e para com o sentido. O oráculo é aquele que fala em nome dos deuses. Este
oráculo – o oráculo escritor – fala em nome da sempre mesma divindade, thea,
237
Cf. J.-L. Nancy. Le Partage des voix . Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 1982.
238
Em francês : « C’est très-certain, c’est oracle, ce que je dis », Arthur Rimbaud. « Mauvais sang » .
Une saison en enfer , em : Œuvres , Paris, Garnier, 1987, p. 214.
aquela que não tem nome, aquela que não tem nem mesmo o nome impronunciável e
que não é « divina » em nenhum outro sentido senão no sentido em que a sua
verdade se partilha, aqui e agora, nessa palavra singular que se engaja abrindo a boca
(oraculum) para deixar passar o sentido – ou melhor: que se engaja abrindo a boca ao
sentido, nos dois sentidos da expressão.

A verdade singular não surge, sem dúvida, de toda ocorrência de palavra e de


escrita. Não é « oráculo » aquele que pensa ser um oráculo, nem aquele que decide
sê-lo. (Pois aqueles se encerram na representação de um « eu” [“ moi”] – que é uma

generalidade
um « sujeito”sob
[“je” ] 239.) A
feições de verdade
particularsó–pode
no lugar
vir aodesentido
se abrirseà lhe
remissão
é dadosingular
acesso de
ao
seu corte [coupe]240 e ao seu toque. Esse toque que corta, que incisa com uma escrita
o espaço indiferenciado e a boca fechada, só pode vir do fora. Esse fora não é aquele
de uma autoridade nem de um espírito que sopra. É o fora no qual e para o qual a
responsabilidade se engajou: esse fora no qual, logo de saída, não há nada, e no seio
silencioso do qual nenhum deus, nenhuma musa, nenhum gênio faz vigília – nem
vigia. É esse silêncio do fora que detém toda autoridade e que exala toda inspiração.

Num sentido – num sentido totalmente primeiro – esse fora é aquele do próprio
sentido absoluto enquanto ele é estranho a toda significação, e por conseguinte
primeiramente à língua ela mesma: à língua, em todo caso, formada, composta e
articulada na ordem das significações recebidas e mesmo das significações possíveis.

A verdade vem da língua já perdida ou ainda por vir. Ela vem da voz que se
deseja
primeiroe seafastamento
busca atrás que
da voz – no
sobe atéfundo da garganta,
os lábios, lá onde
mas que os alábios
incisãoainda
abre não
um
conheceram. Ela vem como um por-vir de língua: uma língua inaudita, uma feição de
língua que não terá lugar senão essa vez, uma inflexão, um sotaque ou um estilo – ou
seja, a incisão gravada por um estilete. Não é uma cinzeladura, é verdadeiramente
uma incisão praticada na língua toda feita pela lâmina de um fora que é feito ao
mesmo tempo de não-língua e de língua por vir ou de desejo de língua.

O « estilo » da verdade, ou a verdade enquanto estilo, não deve nada ao ornamento


nem à solicitação e à exploração das significações disponíveis. Ele só pode vir do
fora – toque e corte de um fora que é propriamente o fora de toda significação, que é
assim o sentido fora de si mesmo, a verdade do sentido como seu excesso infinito ou
como sua ausência sem fundo.

Para vir do fora, para responder a esse fora e para responder por ele, é preciso que
a incisão deva alguma coisa à sorte, à surpresa e ao kairós, o momento favorável
cujo favor consiste em se oferecer somente àquele que se expõe ao fora, e que, por
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conseguinte, assim veio a não mais querer seu querer-dizer: a deixar esse desejo ser
tocado pelo favor de um excesso sobre todo « dizer » possível.

Mas para se deixar dispor a esse favor, à sua raridade, é necessária uma retração
de língua. É preciso ter sido conduzido para aquém da língua: lá onde a linguagem
ela mesma sabe já – sabe sempre-já, lá onde ela se forma, lá onde se esboça um ser
passível de sentido, um ser suscetível ao sentido – que não há nada a dizer, em
definitivo, nada que não envolva de alguma maneira um nada de significação, e que
por esse nada toque na coisa mesma, na coisa em si, quer dizer, na coisa fora e na

coisa do fora.

Quem escreve responde a essa coisa e responde por essa coisa. Essa coisa é ela
mesma thea: ela é o sentido e é o desejo de dizer, é a partilha infinita disso. Ela não é
a massa inerte que subsistiria fora da linguagem como um « real » que a linguagem
não saberia atingir. Não: ela é o fora que a linguagem ela mesma entalha nela mesma
e apresenta em cada verdade à qual a linguagem dá lugar ou na qual ela põe fogo.

A linguagem é um saber – e é assim o saber próprio da escrita: não o que a escrita


sabe fazer, nem o que ela saberia para escrever (como uma « arte de escrever ») –
mas o saber que a escrita é ao escrever. Ela é o saber daquilo do qual ela porta o
testemunho. Ela porta o testemunho disto: que o sentido, porque ele é envio e reenvio
[renvoi], porque ele é chamado e resposta, se dá ou se erige na retração ou no
excesso:
apaziguarretração
o desejo ou excesso
e sua com
resposta, essarelação a que
resposta todanão
significação queseuvem
pode ser por turnoparar
senãoe
um outro desejo e o desejo de um outro. Eu que deseja você e que deseja que você
lhe diga eu e que, dizendo-lhe eu, você lhe diga você por seu turno.

Nesse estreitamento vertiginoso se esconde o saber da escrita – quero dizer: o


saber que ela é ou de que ela é o ato. Quem escreve sabe o desejo do outro, e ele ou
ela sabe que esse saber deve ser dividido dele mesmo para ser aquilo que é: resposta,
engajamento na verdade desse não-saber.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla
3.CORPO-TEATRO

Cada vez que venho ao mundo, cada dia, portanto, minhas pálpebras se
erguem sobre o que não se trata de denominar um espetáculo, pois logo eu estou
preso ali, metido, enredado, por todas as molas de meu corpo que se adianta no
mundo, que incorpora o seu espaço, suas direções, suas resistências, suas aberturas,
que se move nessa percepção de que ele é apenas o ponto de vista a partir do qual se
organiza esse perceber que é também agir. O ponto de vista não tem nenhuma
dimensão, como todo o ponto. E ele é, como sabemos, ponto cego, mancha que
permite que em torno dela se disponham as perspectivas, as relações, o próximo e o
longínquo. Ponto de fuga obscuro que se mantém no fundo de mim – “no fundo”, no
sentido do fundo do quarto - do pano de fundo que eu poderia representar como um
ponto, isto é, como um não-espaço alojado, justo atrás do espaço que se desenvolve
como a minha cabeça, o meu crânio, as minhas costas e todo esse aquém de si
mesmo, de onde um corpo que percebe e age se sabe carregado e projetado.
Desse ponto, portanto, não há espetáculo possível, mas somente o
engajamento, o baralhamento no mundo, as atrações e repulsões, as travessias e
obstáculos, as tomadas e desprendimentos, penhoras e alienações. Estar no mundo é
todo o contrário de estar num espetáculo. É estar dentro, não em frente. Aliás, o que
nos habituamos a denominar, mesmo fora do círculo filosófico, “estar no mundo”,
traduz o alemão in der Welt sein, com o qual Heidegger se empenha em significar

que in
um , um
lhe “em” que–precisamente
preexistiria não é de inclusão
mas de copertencimento – de
dos dois um “sujeito”
e mais no “mundo”
precisamente sob o
modo do que ele denomina o “ser-jogado” [“être-jeté”] – Geworfensein241, onde se
deve ouvir ao mesmo tempo o jato [jet], a projeção nessa queda que faz “se encontrar
aí” e o esboço – Entwurf – a projeção de um gesto, de um andamento possível do
existir – a existência ela mesma não sendo nada senão a reposição em jogo seus
próprios esboços.
Fiz esse pequeno desvio por Heidegger apenas para destacar o quanto, na
mais potente insistência sobre a primazia do “ser-para”, do ser como dedicado,
lançado, devotado, mobilizado em seu ser pelo fato mesmo de ser, somos o menos
concernidos possível pelos fenômenos da representação – a qual demanda um
“sujeito”, para o qual ela tem lugar, sujeito que só pode ser, no que toca ao existente,
perfeitamente secundário, derivado e limitado (por exemplo, sujeito de um saber,
sujeito de uma concepção ou de uma visão). Na medida em que se trata assim de
dissociar tão profundamente quanto possível a ordem do existir das ordens do
conhecer, do representar, do figurar e também do medir e do avaliar, para reconduzi-
241
O « Geworfenheit ” heideggeriano foi traduzido em francês por Emmanuel Martineau por “ être-jeté ”,
“ser-jogado”, “ser-l ançado”, que poderíamos quase traduzir por “ser-ejetado” ou “ser-dejeto”. Na tradução
de Fausto Castilho a noção foi traduzida por “dejecção”. Na passagem de Ser e tempo , Heidegger fala do
“caráter-de-jacto […] da dejecção”. Da mesma forma, a diante, o “ Entwurf ”, traduzido em francês por
“projet ” e por Fausto Castilho por “projeto”. Na tradução, se perdem os jogos com o verbo “ jeter”,
“jogar”, “lançar”, “ejetar”, inscritos no trecho: “ être-jeté ”, “jet” (“jato”), projet (“projeto”), “ projection ”
(“projeção”), mas que se inscritos na tradução de Castilho, “ejecção”. Martin Heidegger. Etre et Temps .
Trad. Emmanuel Martineau. Édition numérique hors-commerce; tradução brasileira: Ser e tempo . Trad.
Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp/ Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p. 501, p. 413. (N.T.)
los todos, sem negá-los, mas em última instância, à condição do existir, é preciso
fazer o registro do que assim começou, de maneira irreversível, a época em que o
“sujeito” foi “desatracado” - como as penínsulas de Rimbaud – desamarrado,
destacado dos “antigos peitoris” e jogado, projetado em direção a um outro momento
desse destino bem singular de que somos, nós e o mundo, a destinação infinita.242
Em compensação, esse envio sem reserva nem retorno não nos impede de
destacar que falta algo nessa descrição do existir. Não somente não somos impedidos
de fazê-lo, mas somos mesmo conduzidos, de maneira bastante precisa e também
bastante insistente, a ressaltar essa falta. Aquilo de que se trata se diz simplesmente:

a existência
ou quer também
de seu ser-jogado. Faz se encenar.
parte de seuIsso fazmundo.
ser no parte do seu projeto, de sua projeção
Sem dúvida Heidegger não o ignora - seria fácil demais emprestar-lhe uma
visão tão curta. Contudo, essa necessidade da encenação não é nunca tematizada nele
como tal. Ela passa, sem dúvida, pela atenção dada por ele à arte em geral, à poesia
em particular, mas sem qualquer dúvida essa atenção não toca no teatro. Esse ponto
foi sublinhado por Philippe Lacoue-Labarthe, para quem ele consistia em um ponto
decisivo, na distância que ele fazia questão de tomar, no seio de sua proximidade,
para com Heidegger. Ele ressaltava em particular o quanto, nas considerações deste
último sobre Hölderlin, o teatro não intervinha nunca, enquanto a sua importância
para o tradutor de Sófocles e autor de A morte de Empédocles não pode não saltar
aos olhos.
Eu não irei mais longe na pista das questões que eram as de Lacoue-
Labarthe. Elas permanecem as dele. Mas recebo dele essa indicação: o existente quer
se encenar, e esse querer (desejo, pulsão, como se quiser) pertence ao próprio existir.
Veremos mais tarde,
detenhamo-nos sobresea primeira.
o pudermos, como justificar a segunda proposição. Por ora,
E retomemos a cena da minha vinda ao mundo. Cada vez que ela tem
lugar, cada dia, portanto, minhas pálpebras não se erguem somente sobre o não-
espetáculo do mundo percebido, experimentado, agido. Elas se erguem também, ao
mesmo tempo, sobre essa escuridão que eu disse, primeiramente, ser mancha cega,
situada no fundo ou atrás de mim: elas se erguem assim não para mim, para o meu
olhar, mas para o olhar possível de um outro, de uma multidão de outros. Olhar
possível e sem dúvida certo, pois mesmo na estrita solidão, faço também parte dessa
multidão de outros. Faço parte dela no mínimo como aquele que sabe que não lhe é
permitido ver aquilo sobre o qual essa cortininha dupla vem se erguer: meu olhar.
Mas fazendo isso, sou como um espectador que não conseguiu um lugar no teatro e
que mesmo assim não deixa de saber o que falta: no interior do recinto fechado e
sobre o fundo encostado à escuridão do resto da cidade, a cortina se ergue sobre uma
cena, isto é, sobre o espaço próprio de uma vinda em presença. Pouco importa o
número de personagens, a intensidade da iluminação, a fatura do cenário: trata-se

242
Nancy glosa aqui trechos de “O barco bêbado” de Arthur Rimbaud. Em especial a terceira estrofe :
“Dans les clapotements furieux des marées,/ Moi, l’autre hiver, plus sourd que les cerveaux d’enfants,/ Je
courus! Et les Péninsules démarrées/ N’ont pas subi tobu-bohus plus triomphants.” Na tradução de
Augusto de Campos: “Imerso no furor do marulho oceânico,/ No inverno, eu , surdo como um cérebro
infantil,/ Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico/ Viam turbilhonar marés de verde e anil.” Mas aqui
se perdeu o jogo “ marré ” (“maré), e “démarrer ” (“desatracar, ligar, dar a partida”). Augusto de Campos.
Rimbaud livre . São Paulo: Ed. Perspectiva, col. Signos, 2002, 2ª edição, p. 29. (N.T.)
unicamente de uma vinda em presença, e de representação nesse sentido, isto é, de
um intensivo da presença.
Quando esse outro não é eu mesmo mas um outro si mesmo que se encosta
por sua vez na mesma escuridão por si mesmo - que se sabe tendido à mesma
impossibilidade de se ver e de se saber “mesmo”, a não ser pelo único ponto de fuga
de sua mancha cega -, quando o outro, portanto, me vê e me ouve, ele sabe que está
em um espetáculo. Não no espetáculo que denominamos “do mundo”, com o que
designamos mais frequentemente uma espécie de panorama da percepção desdobrada
diante do sujeito, e que faz parte, em última análise, do ser no mundo desse sujeito, e

sim um espetáculo
apresenta. no sentido
Ele recebe, mais dodo
queteatro: ele vê
percebe, que uma presença
a intensificação dessasepresença,
encena eisto
se lhe
é, a
sua encenação.
Não é necessário recorrer aos sentidos carregados dessas palavras –
“espetáculo”, “encenação” – e pensar em todas as tomadas de papel, nas paradas e
fanfarronadas, nas maneiras de se exibir e de tirar vantagem, na ostentação e na pose.
É suficiente experimentar o mais simplesmente e o mais discretamente possível o
seguinte: o que denominamos um “sujeito” vem em presença, isto é, ainda uma vez,
em “representação”, segundo o valor intensivo, e na verdade srcinário e próprio, da
palavra. Nesse sentido, um sujeito é um corpo.

É necessário precisá-lo mais? O sujeito jogado ao mundo, engajado no


mundo, não é ainda assim uma presença. Ele pode muito bem se distinguir do sujeito
do saber, nem por isso ele deixa de ser um ponto imaterial, ponto de vista ou ponto
de decisão, bifurcação, ramificação de atos, de condutas, de pensamentos. Nesse
sentido, o “da” do Dasein heideggeriano, o “aí” do existir encerra uma ambiguidade:
se ele é abertura e espacialidade ao sentido da ex-posição segundo a qual ele ek-siste,
ele é ao mesmo tempo, e dessa vez, a despeito do desejo do próprio Heidegger,
pontual e de certa maneira retido na subjetividade do seu “cada vez meu”
(Jemeinigkeit). “Subjetividade” aqui não significa relatividade e interioridade de
ponto de vista, mas somente, e em primeiro lugar – e ainda uma vez, a despeito do
que Heidegger se empenha em dizer – imaterialidade dessa posição “minha”,
pontual, topo do ângulo ou da articulação da decisão de existência. Em uma palavra,
ele não é corpo. Ele não acontece/chega243 a seu próprio corpo.
É por isso que ele não é mais teatral do que o são quaisquer dos sujeitos da
representação no sentido ordinário (a ideia, a imagem, a significação), e os sujeitos
do saber, da ação, do juízo, ou mesmo os sujeitos da relação e do afeto.
Na verdade, enquanto pensarmos em termos de “sujeito”, pensamos quer o
queiramos ou não em termos de substância incorporal – até mesmo quando essa
substância se faz propriamente sujeito, como o quer Hegel, ou seja, relação consigo
mesmo, passando pela extranadificação e a alienação de si para retornar a si mesmo.
Com Hegel tampouco tocamos verdadeiramente no teatro, e talvez não o toquemos
nunca na filosofia (salvo talvez Aristóteles, mas isso é uma outra história que não
vou abrir aqui). Estamos ao contrário sempre mais ou menos dentro da configuração
243
Nancy usa verbo “ arriver ”, que em francês tem o duplo sentido de “acontecer” e “chegar”. (N.T.)
incorporal de um ponto de projeção (inclusive projeção de si) religada a
significações, elas mesmas por definição incorporais.
Nesse sentido, há sempre unicamente o um, e é aliás por isso que a questão
do outro se coloca de maneira tão complexa, quando perguntamos como um sujeito
pode reconhecer um outro sujeito, como o ego se reporta ao alter ego. É que partindo
de um não se chega nunca ao outro. O próprio Heidegger o sabe, ele que recusa
qualquer outro modo de introdução do outro além do dado srcinário de um
Mitdasein, de um ser-aí-com e de um ser-com-o outro-aí. Mas esse “com”- ao qual
estou longe de negar que é preciso acordar a maior importância, e que é mesmo, sob

a forma do comum
dificuldade , aquilo
de pensar que
-, esse sem dúvida
“com” toda sempre
corre ainda a modernidade tempermanecer
o risco de a maior um
lado a lado de sujeitos. Não recuso tampouco, longe disso, a importância da
frequentação, da copresença e do comparecimento. Como tampouco a dessa outra
dimensão, ortogonal, de uma certa maneira, que é a do face a face e que nos remete à
tradição do “eu e você” (Buber) e ao “rosto do outro” (Levinas).
O que importa dizer aqui é de uma outra ordem, anterior de uma certa
maneira e exterior a toda espécie de comparecimento, seja o lado a lado ou o face a
face. Trata-se da condição pela qual pode haver presença. Presença ao mundo, é
claro, mas o que é o mundo senão uma disposição de presenças, estando entendido
que em “disposição” há tautologia – o simples espaçamento – e dinâmica – vinda e
retirada, chegada e partida, a presença não consistindo nunca na pura posição, na
situação com as suas coordenadas, mas na exposição, na apresentação, a vinda, a
aproximação e o afastamento? A palavra “presença” se constroi sobre um “pré-“ de
proximidade e não de anterioridade. O presente não é nem diante nem antes, mas à
beira [auprès]. É por isso que ele é tanto temporal quanto espacial: nem antes nem
depois, mas à beira, chegando à beira, e a espacialidade do “à beira” é ela mesma
uma espacialidade temporal, uma vinda, uma aproximação.

Encontramo-nos então na ordem do corpo e do teatro. O corpo é o que


vem, aproxima-se em uma cena – e o teatro é o que dá lugar à aproximação de um
corpo.
O que se passa quando venho ao mundo - cada dia, cada vez. “Eu” não
venho como a pontualidade sempre incorporal do sujeito de enunciação, nem de
nenhum sujeito. Poder-se-ia mesmo dizer: “eu” não venho nunca. Ele permanece
situado na anterioridade absoluta de sua pontualidade. Em compensação, seus olhos
se abrem, e a sua boca, suas orelhas, e seu corpo se estende, se escancara, se dispõe.
Dir-se-á, certo,o que
verdade. Mas que “eu”
vem,sai pela boca, pela
aproxima-se, “sua”doboca,
toca-nos, e isso
outro, é estritamente
é a boca, a voz, do mesmo
modo como são os olhos que se aproximam, o seu olhar, a sua maneira de virar o
rosto ou de encarar.
Isso é como com a Criação segundo Artaud – ele, é óbvio, como não
estaríamos em sua companhia? Segundo ao menos uma de suas trajetórias, é com
efeito da Criação – com maiúscula – que Artaud deduz, por assim dizer, o teatro.
Sem me deter sobre o simbolismo alquímico que preludia essa consideração,
reassalto somente o seguinte: tendo colocado que o teatro forma o Duplo “não dessa
realidade quotidiana e direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma
cópia inerte” e sim, antes, “de uma outra realidade perigosa e típica [...] que não é
humana mas inumana”244.
Ele descobre em seguida que essa realidade não é outra senão a da
Criação, enquanto esta faz a sua obra em dois tempos. O primeiro tempo é o ato “de
uma Vontade una – e sem conflito”245. Que é seguido de um segundo tempo, “o da
dificuldade e do Duplo, o da maneira e do espessamento da ideia”246.
Compreende-se que esses dois tempos são mais lógicos que cronológicos.
Há o momento da unidade sem conflito que é unicamente, em suma, “a ideia”,
digamos o princípio e a decisão de existência do mundo, e há o momento da
efetividade, que sobrevem menos como uma outra etapa do que como a abertura real
do mundo – do “Cosmos em ebulição” precisa o texto. O Cosmos é atravessado de
conflitos. Isso quer dizer que o real é conflitual, e que ele é – uma leitura detalhada
do texto o mostraria – precisamente em razão da matéria, isto é, o “espessamento da
ideia” que se pode compreender como “a expressão sólida e opaca da própria luz, da
raridade e da irredutibilidade”247. Trata-se então do ouro material da transmutação
alquímica, ele mesmo símbolo do ouro espiritual.
Mas – e é esse o ponto decisivo – símbolo necessário. Não examino as
razões dessa necessidade, pois não preciso penetrar na lógica de Artaud. Coloco
somente com ele que há uma opacidade, uma espessura material indispensável da
apresentação do que está em jogo na Criação ou no Cosmos – como criação e
cosmos – na medida em que o conflito pertence àquilo que está em jogo. É o conflito
cósmico (metafísico, diz ele alhures) que demanda a ser apresentado como “drama”.
Por que ele deve ser apresentado? Porque de si mesmo ele é ou exige a apresentação.
Um corpo não consiste simplesmente em uma concreção particular, uma
acumulação ou um espessamento local: o espessamento de que fala Artaud implica
evidentemente também a distinção e a multiplicidade do corpo. Ali onde a ideia pode
parecer única, aquilo de que é a ideia só pode ser plural. (Aventuro-me a pensar que
é isso mesmo que Artaud formula intuitivamente com a sua distinção de dois
“tempos” da criação.) Na verdade, a ideia do cosmos é a ideia da pluralidade e não
há criação que não seja antes de mais nada distinção, separação, espaçamento.
Mas o próprio espaçamento não é simples intervalo inerte. Ele é
exposição. O vazio – para falar de maneira tosca – entre os corpos não é uma
espessura negativa, como tampouco o são os outros modos do espaçamento ou do
incorporal. Solicito assim a teoria estoica dos incorporais, que eram para eles quatro:
o vazio, o tempo, o lugar e o lekton, o dizível ou o exprimível. O espaçamento de que
falo combina o vazio e o lugar, o primeiro permitindo a distinção dos lugares, e o
tempo não é outra coisa senão o espaçamento do sentido, a distensão por meio da
qual ele tende em direção a si mesmo (ou, se se quiser, o significante em direção ao
significado).

244
Antonin Artaud. « Le théâtre alchimique ». Le Théâtre et son Double . In : Œuvres , Paris : Gallimard,
col. « Quarto », 2004, p. 532 ; trad. brasileir a : O teatro e seu duplo . São Paulo : Martins Fontes, s/d, p.
49-50.
245
Ibid. É Artaud quem sublinha ; na tradução brasileira, p. 52.
246
Ibid., p. 534 ; tradução modificada (p. 52).
247
Ibid; tradução brasileira, p. 53.
Assim, os corpos são expostos não pelo acidente mas pela essência. A dis-
posição é a natureza de sua posição no ser e o dis- carrega com ele o ex-: os corpos
são dispostos partes extra partes, segundo a característica da extensão para
Descartes. Mas ainda aí, a exterioridade não é simples falta de interioridade ou de
presença a si: ela é condição da copresença dos corpos, ou do seu comparecimento,
que é simplesmente a regra e o efeito da criação.
Se eu ousasse eu diria que o teatro já começou nos espaços intersiderais ou
então no espaçamento infinitesimal das partículas, pois já se engajou ali o drama,
como diz Artaud, ou seja, antes de mais nada, a ação, o ato de uma consumação que

responde
do sentido:a uma espera (serviço,
do “dizível” culto, responsabilidade).
desse comparecimento das coisasAque
espera é com efeito
chamamos já a
“cosmos”.
Mas me será suficiente dizer que o corpo falante vem no meio dos corpos
como a manifestação dessa espera. E que dessa vez, com o corpo falante, o teatro é já
verdadeiramente dado ou pré-dado.
Este corpo se apresenta ao se abrir: isso se denomina “os sentidos”. Mas
ao mesmo tempo que eles recebem informações sensoriais, os sentidos as emitem por
sua própria conta, se posso dizer assim. Mais uma vez, o olho vê mas também olha.
Olhando ele expõe, ele joga diante de si alguma coisa do que, para ele, é ver e ser
visto. E sempre, além do mais, saber não poder se ver. Tudo isso se dá em um olhar
desses olhos, em que, como o escreve Proust, “a carne torna-se espelho e nos dá a
ilusão de nos deixar, mais do que as outras partes do corpo, que nos aproximemos da
alma”248.
A frase de Proust, como um todo, não é destituída de estranheza, pois se é
possível que eu me veja nos olhos de um outro, não é na verdade essa função de
espelho ótico que justifica a frase. Ela diz, antes, na verdade, que nos olhos do outro
eu me vejo a mim mesmo olhando, e por conseguinte também olhado – e sempre
segundo essa fundamental extro-versão que não me fará nunca me ver e que por isso
mesmo não me expõe absolutamente.
Mas “as outras partes do corpo”, como diz Proust, não oferecem tampouco
elas próprias aproximações da alma. Minhas mãos, minhas pernas, meu pescoço,
minhas posturas, meus portes, meus gestos, minhas caras ou meus ares, o timbre da
minha voz, tudo o que poderíamos denominar a pragmática do corpo, tudo sem
dúvida, tudo sem exceção sobre toda a superfície da minha pele e de tudo com o qual
posso recobri-la ou orná-la, tudo expõe, anuncia, declara, endereça alguma coisa:
maneiras de vir à beira ou de se afastar, forças de atração ou de repulsão, tensões
para tomar ou para largar, para engolir ou para rejeitar.
“Minha pele torna-se assim teatro de si mesma”, escreve Mohammed
Khair-Eddine, que continua: “O que explica o fato de que um ator ou um simples
dizedor seja movido pelas pulsações cuja significação srcinal ele próprio ignora.” 249
Em todas essas maneiras de se abrir e se fechar, de se colocar e deslocar,
de se dispor, de se impor ou de se esquivar, um corpo engaja um drama que não tem
nada de “pessoal” nem de “subjetivo”, mas que é a cada vez a dramatização singular

248
Marcel Proust. À l’ombre des jeunes filles en fleurs , À la recherche du temps perdu , t. 5. Paris :
Gallimard, 1919, p. 220 ; tradução brasileira, loc.cit., p. 427.
249
Mohammed Khaïr-Eddine. Soleil arachnide et autres poèmes . Nova ediçãao apresentada por Jean-Paul
Michel. Paris : Gallimard, col. « Poésie », 2009, p. 120.
de seu distanciamento singular em meio de outros corpos – jogado que ele é com eles
no cosmos.
Os afetos são aqui segundos (o amor, o ódio, o poder, a traição, a
rivalidade...), ou então, antes, são apenas modulações e transcrições da grande tensão
primordial entre os corpos: como eles se empurram um para o outro e se repelem,
como eles se tomam e retomam. Ou seja, como eles se relacionam uns com os
outros, não “através” do incorporal que os distingue – mas como esse mesmo
incorporal. Lugar, tempo, sentido e vazio (por “vazio”, compreendamos a ausência
de corpos desaparecidos ou bem não nascidos) são a matéria e a força da relação. (É

evidentedeque
mesmo nãocorpo:
cada distinguo,
cada aqui, entre asrelações
uma dessas relações dos corpos
passa entreé si
pelo outro, e a relação
a lógica do a si
comparecimento e da (re)presentação.)
Um lugar onde se engendra e se leva o tempo próprio de uma apresentação
(de corpo: esse complemento poderia ser elidido) enquanto pressões de sentido entre
os vazios de suas existências fortuitas, um lugar em que essa própria fortuitidade vira
necessidade de drama e em que o vazio assume a consistência de uma coletânea de
sentido – isso é o que denominamos uma cena.
A skene, sabemos, é inicialmente um abrigo leve, de fortuna, para se
retirar, dormir, beber, festar entre amigos, por exemplo em um barco. É um lugar de
intimidade e é diante desse lugar, tornado o fundo obscuro do teatro, o verso do
cenário, é sobre o proskénion que os atores se apresentam, saindo por uma das portas
dispostas na frente do cenário. (Não me deterei sobre a “obcena”, cuja etimologia é
por demais discutível para permitir algo mais do que solicitações de ressonância.
Permanece o fato de que longe da semântica toda a exposição tende à obcenidade.)
Diante do abrigo íntimo que se balança de uma certa maneira para fora do
espaço, em uma mancha cega, abre-se o espaço em que devemos sair, onde o corpo
se põe diante de si – pois toda a sua presença está ali, nesse fora de si que não se
destaca de um “dentro” mas que o evoca somente como impossível, o vazio fora do
lugar, do tempo e do sentido. “Si” torna-se assim: personagem, máscara, maneira,
andamento, exposição, apresentação – ou seja, variação singular da deiscência e
distinção pela qual há um corpo, uma presença.

No poema que se intitula O teatro da crueldade, Artaud escreve:

Ali onde há metafísica,


mística,
dialética irredutível,
escuto se torcer
o grande cólon
de minha fome
e sob os impulsos de sua vida sombria
dito a minhas mãos
a sua dança,
a meus pés
ou meus braços 250.

250
A. Artaud, dans Œuvres , op. cit. , p. 1662.
“Minha fome” é o meu apetite, o meu desejo, minha pulsão, ela que lança
os impulsos dessa “vida sombria” íntima, intestino que transmite cadência, ritmo,
toda essa “dança” que responde ao batimento profundo – “metafísica, mística” – ou à
“torção” que não responde a nada senão – “dialética irredutível” – o próprio pôr no
mundo, a criação na sua espessura, na coagulação, a condensação e a distinção.
Que essa dança não seja exclusivamente física mas pertença também ao
texto, à palavra do teatro e sobretudo à troca de palavras, de endereçamentos de
palavra, e que a literatura teatral receba disso seus traços mais próprios - não tenho
tempo para me deter nisso. O que conta é que no teatro o texto está em corpo, ele é

corpo. É por isso aliás


verdadeiramente, comoque se pode
Claudel dizer
o faz quea no
dizer umteatro “algo
de seus acontece”(uma atriz):
personagens

251
Vale a pena ir ao teatro para ver alguma coisa que acontece . O senhor entende! Que
acontece definitivament e! Que começa e que termina 252!

O que acontece “definitivamente”, que começa e termina é o que nunca


acontece para o sujeito, de que nascimento e morte, proveniência e fuga são as
suspensões. Mas é o que acontece aos corpos que de fato acontecem, vêm se destacar
e se singularizar, depois desaparecem na totalidade ou no nada. O que acontece
assim e o que vai embora – mas esse ir-embora é também um chegar [ arriver] -, é
uma presença. Ou seja, um sentido. Poder-se-ia dizer: um “sujeito” é uma visada
perdida do sentido, um “corpo” é um sentido em ato. Em ato de passagem, entre a
criação e a descriação.

A passagem
apresentando o começosee apresenta
o fim de umapresentando
sentido: uma sentido
sua chegada e a sua partida,
que consequentemente
não pode se realizar em significação, mas que é sentido da passagem, do ato de
passar. Sentido da duração inteira de uma presença e como duração escandida pela
subida e pela descida da cortina, ou seja, da não-espessura da verdade que cai no
través do sentido.
O que ignoramos, portanto, o parecer-desaparecer, chega ali, no espaço-
tempo do lugar em que se profere o sentido entre corpos – pois o sentido só pode ter
lugar “entre” e de um para o outro, só pode ser sentido de um pelo outro. Esse
espaço-tempo é o que denominamos “cena”, é oproskénion sobre o qual os corpos se
adiantam para apresentar o que todo o corpo faz enquanto corpo: apresentar-se em
seu aparecer e desaparecer, apresentar a ação – o “drama” – de uma partilha de
sentido.
Há início e fim, há – é a própria cena, que se abre e se fecha – o tempo
próprio dessa (re)representação. Tempo que não é de sucessão mas de passagem,
breve dilatação de um instante retirado no curso do tempo (assim, adivinha-se na
regra clássica das três unidades algo de menos formal do que parece).
Na boca de um personagem – designado como “criatura de teatro”-, Jean
Magnan põe as seguintes palavras:

251
Em todo esse trecho Nancy joga ainda com o duplo sentido do verbo “ arriver ”, em francês, ao mesmo
tempo “acontecer” e “chegar”. (N.T.)
252
Paul Claudel, L’Échange , Paris, Mercure de France, 1964, p. 166.
Aqui, entre esses três paredes,
sem espelho que me faça crer em
qualquer quarta,

o tempo. O tempo. O tempo.

Tempo fictício. Tempo pessoal. Mistura


Sensível de dois. 50% Arábica.
Tempo de teatro. Em estado puro.

Insone.

E sem açucar 253.

Com em Proust, cuja expressão é retomada aqui, o “tempo puro” é o


tempo da (re)representação, isto é, da apresentação em verdade. Tempo subtraído ao
curso do tempo, insônia na noite que envolve o teatro e na qual recai com a cortina
atores, cena e espectadores.
Na duração precisa – e como instantânea – desse tempo, os corpos se
dirigem palavras. Os atores a trocam a fim de que nos seja dirigida, a nós
espectadores, precisamente isso: que se tratam de endereçamentos. E não pode se
tratar de outra coisa. Heiner Müller escreve: “O que não é endereçado não pode ser
encenado254.”
Palavra dirigida é palavra corporal. É menos a significação do que a voz, e
com a voz – ou no silêncio – o gesto, a postura, o andamento do corpo. Os corpos
falantes mantêm aqui uma palavra corporal. É assim que eles se apresentam pelo que
eles são: presenças cujo espaçamento abre tensões – os “conflitos” como diz Artaud
– cujo jogo de cena [jeu] instrui o drama.
O jogo de cena: a palavra designa aqui ao mesmo tempo a articulação, o
ajuste dos endereçamentos e o fato de que eles são interpretados. Esse duplo sentido
de jogo de cena responde à dualidade que é de fato encenada [mise en jeu]: a
presença deve ser apresentada porque ela não é simplesmente dada: ela se dá. Ou
seja, ela não deixa de entrar na intensidade – tensão, intenção – do endereçamento.
Não há uma presença neutra que pudesse aqui e ali ser intensificada. Mas presença
quer dizer intensidade – um corpo é uma intensidade.
A representação no sentido teatral e no sentido – historicamente primeiro –
de pôr em presença é o jogo de cena intensivo da presença. Meu corpo é de cara
teatro por que a sua presença mesma é dupla – ele fora, ou em frente, e eu dentro ou
atrás (na verdade, em lugar nenhum). Toda presença se duplica para se apresentar, e
o teatro é também antigo e sem dúvida quase tão espalhado quanto o corpo falante.
Que se diga com Artaud e seu Duplo, com Lacoue-Labarthe e sua
“mimesis srcinária”, ou bem com François Regnault, afirmando em modo lacaniano

253
Jean Magnan. Un peu de temps à l’état pur . Genebra : Philippe Macasdar éditeur, 1987, p. 71.
254
Heiner Müller. « Adieu à la pièce dialectique ». In : Hamlet-Machine. Tr. fr. Jean Jourdheuil e Heinz
Schwarzinger. Paris : Minuit, 1985, p. 67.
que “o Teatro apresenta o Discurso do Outro255”, o teatro é a duplicação da presença
na medida em que ele põe em presença os presentes ou enquanto apresentacão de seu
ser-presente. O corpo é já ele próprio apresentação: um corpo, com efeito, não
consiste simplesmente em um “ser” – o que quer que queiramos pôr sob essa palavra
-. mas ele articula esse ser em aparecer ou bem indexa-o sobre um ser-aí que implica
a copresença – distância, proximidade, interação – com outros corpos. A teatralidade
procede da declaração da existência – e a própria existência é o ser declarado,
apresentado, não retido em si. É o ser dando sinal de si mesmo, dando-se a sentir não
em uma simples percepção, mas como espessura e como tensão.

Eisdizer
porque 256
eles vão lhe tudoHamlet
.” O pode dizer:
sentido “Os atores
particular dessanão
falasabem
dentroguardar um segredo,
da tramoia teatral
do príncipe da Dinamarca não faz mais do que duplicar o seu alcance geral. O teatro
é a cessação do segredo se o segredo for o do ser em si ou bem o de uma alma
retirada em sua intimidade. É o em si mesmo ou a intimidade como tal que sai e que
se expõe. Nada além do “mundo como teatro” como nós bem o sabemos, desde
Calderón e Shakespeare, mas tal que na verdade toda a nossa tradição – desde pelo
menos a caverna de Platão – a repisou, mas esse “mundo como teatro” enquanto
verdade, na medida que e por que o corpo se arroga à verdade da alma: verdade que
se empurra ela mesma na cena ou mais precisamente verdade que faz cena.
Nesse ponto, não é mais possível evitar de retornar ao que subtende e
talvez sempre sustente um teatro, qualquer que seja ele: a saber, alguma coisa como
um culto.
Brecht dizia que foi ao sair do culto que a tragédia nasceu, querendo
sublinhar com isso o caráter decisivo da “saída”257. Isso era no entanto também ficar
cego ao do
sentido queformalismo
toda a saídae da
levaobservância.
consigo. UmÉ culto não é simplesmente
em primeiro um ritual
lugar uma conduta no
regrada
pelo encontro com alguma coisa como um mistério, um segredo, uma parte
reservada, cuja aproximação o ato cultual permite (que nos aproximemos dela e que
ela se aproxime de nós). É a vinda em presença do que de si mesmo permanece
retirado.
Um culto se ordena assim sempre em torno da espera de que alguma coisa
aconteça, de que alguma coisa tenha lugar, produza-se e apareça do fundo de um
inaparecer essencial. Isso se denomina “sacrifício”: sagra-se, faz-se sagrado. O corpo
teatral é esse corpo que torna sagrada a própria presença – isto é, como se queira
dizê-lo, sua alma, sua criação também, sua inscrição cósmica, sua glória, seu gozo,
seu sofrimento, sua derrelição: em uma palavra, seu comparecimento como signo
entre signos.

255
François Regnault. Petite Éthique pour le comédien . Paris : Les Conférences du Perroquet, vol. 34,
março
256
de 1992.
Hamlet . Ato III, cena 2. Tr. fr. Yves Bonnefoy. Paris : Gallimard, col. « Folio », 1957, p. 118.
257
Florence Dupont, por seu lado, insiste sobre a proveniência cultual – nos ritos dos ludi – da comédia
latina. Para ele, em definitivo, essa comédia segue um verdadeiro ritual cuja celebração consiste em pôr
em cena – em todos os sentidos da expressão – as circunstâncias e os códigos do sério ordinário da vida.
Ela vê, ao contrário, em Aristóteles, aquele que se obriga, distanciando-se completament e do ritual
dionisíaco, a por o teatro sob a ascendência do mythos , ou seja, do relato, no qual, pela mimesis e a
catharsis , se joga a função do teatro ( cf. Aristote ou le vampire du théâtre occidental . Paris : Flammarion,
2007). Não entro nesse debate : observo somente que mímesis e catharsis representam sem dúvida,
também em Aristóteles, mas a despeito dele, as transformações e portanto os prolongamentos da
celebração ritual..
Todos os cultos comportam uma teatralidade, mesmo se o teatro só é o que
ele é deixando todos os cultos (inclusive o seu próprio, ou os seus, como ele não para
de fazê-lo). Mas o que permanece cultual no teatro, o que em um sentido bem
preciso se sacrifica nele (ou bem se ludifica nele, para remeter uma vez mais à
comédia romana) é o corpo falante – a palavra corpórea, não o relato, mas o
endereçamento, a sinalização dos corpos e portanto também o gestual, toda a física,
ou até mesmo a fisiologia, a energética e a dinâmica – a “biomecânica” para jogar
com a palavra de Meyerhold – que fazem propriamente a cena.
Tambem seria preciso dizer não tanto que o culto precede o teatro e o

engendra, mas
teatralidade nãoantes quenem
é aqui o corpo-teatro precede
religiosa nem todos
artística os cultos
– mesmo se ae religião
todas asecenas.
a arte A
procedem dela. Ela é a condição do corpo que é ele próprio condição do mundo: o
espaço do comparecimento dos corpos, de suas atrações e de suas repulsões. “Cada
cultura deu a si mesma, em espetáculo, os cumes mais altos da mestria do corpo em
movimento”, escreve Yves Lorelle, no início de seu estudo sobre o corpo e a cena.
Aquilo de que devemos tomar tenência é que uma “cultura” consiste precisamente na
possibilidade de reunir, de formar um modo do espetáculo, isto é, de apresentar e de
significar isso: desde que há mundo, há corpos que se encontram, que se afastam,
que se atraem, que se repelem, que se mostram uns aos outros, ao mesmo tempo que
mostram atrás deles, em volta deles, a noite incorpórea de sua proveniência.

Tradução: João Camillo Penna


4. Após a tragédia

Here in America – perhaps not « in the U.S. », but in America, as Jacques


Derrida states in « deconstruction is America », that is, the world we still have to
discover – here, then, Philippe did have many friends. Many of them are here. Some
have passed away, like Eugenio Donato, who was close to him, like Danielle Kormoz,
who has been as well an American friend.

We never believe that one is dead. We know that he/she is, but we cannot believe it.
Freud is wrong asserting that we cannot believe in our own death, for we believe in no
death. This is beyond any belief, any sharing out, any mimesis and methexis.

But we are right. I believe Philippe is not dead, for I hear his voice within mine –
like some other voices, the one of Jacques’own among them. Within what I will read for
you, he is speaking, with and without me, for me, against me, apart from me, resounding
forever in me258.

Há cinco anos, eu proferia na Grécia a conferência que vou hoje retomar


diante de vocês, e que foi até agora publicada apenas em grego. Há sete meses, eu a
retomava em alemão em Giessen, onde o Instituto de Estudos Teatrais fazia uma
homenagem a Philippe Lacoue-Labathe. Na primeira vez, eu a proferi na presença de
Philippe. O colóquio ao qual tínhamos sido convidados era consagrado à tragédia
“outrora e hoje” ou “Dos gregos antigos até nós”, e é essa extensão “até nós”, que
me havia decidido a aceitar falar sobre um assunto sobre o qual eu quase nunca me
exprimi, pois eu deixava todo o campo a Philippe. Eu tinha uma outra razão para
estar em Estagira, pois rendíamos ao mesmo tempo homenagem a um falecido
recente, Jean-Pierre Schobinger, professor em Zurique, velho camarada de trabalho e
grande amigo da Grécia. Hoje é ao próprio Philippe que rendemos homenagem – a

258
Esse parágrafo em inglês, assim como as duas notas seguintes, foram pronunciadas por Jean-Luc
Nancy, quando da leitura do texto em Nova York, no colóquio « Honoring the Work and Person(s) of
Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007) » [« Em honra da obra e da(s) pessoa(s) , de Philippe Lacoue-
Labarthe »], organizado por Avital Ronell e Denis Hollier. Universidade de Nova York (NYU) e Escola
de Direito de Cardozo, em abril de 2008. (N.E.F.) « Aqui na América – talvez não ‘nos E.U.’, mas na
América, como Jacques Derrida o afirma em « a desconstrução é a América », isto é, o mundo que ainda
devemos descobrir – aqui, então, Philippe de fato teve muitos amigos. Muitos dos quais estão aqui.
Alguns já faleceram, como Eugenio Donato, que era próximo a ele, como Danielle Kormoz, que foi
também uma amiga americana. » (N.T.)
Nunca acreditamos estar mortos. Sabemos que ele(a) está morto(a), mas não acreditamos. Freud
estava errado ao afirmar que não podemos acreditar em nossa própria morte, porque não acreditamos em
morte nenhuma. Isso está além de qualquer crença, de qualquer compartilhamento, de qualquer mimesis
ou methesis.
Mas estamos certos. Acredit o que Philippe não está morto, pois escuto a sua voz dentro de mim –
como algumas outras vozes, a do próprio Jacques, dentre elas. No que eu vou ler para vocês, ele está
falando, dentro e fora de mim, para mim, contra mim, separado de mim, ressoando para sempre em mim »
(N.T.)
Philippe cujo desaparecimento não está isento desse trágico de que ele fazia a
tonalidade maior de seu pensamento e de sua vida – de sua vida sempre
dolorosamente consciente de rumar para a morte. Doloroso foi-lhe também, como a
toda uma tradição cuja tenacidade ou resistência não cessa, apesar de tudo, de me
surpreender, de se saber vindo tão tarde após a tragédia: isto é, após esse momento
que acreditamos bendito de ter sabido dizer – cantar, representar, interpretar – a
maldição dos mortais. Desse momento grego em que, bem antes, Homero ainda
podia dizer que os deuses fomentam a ruína dos homens a fim de que estes possam
ser cantados. Em um sentido misterioso e terrível, Philippe chamava sobre si mesmo
essa vontade dos deuses.
Eis-me aqui portanto, seis anos depois, em sua ausência como o foi em sua
presença – eu o revejo me olhando, um leve sorriso às vezes nos lábios, pensando:
“sim, eu sei, Jean-Luc, eu sei o que você pensa sobre a minha nostalgia dos
gregos...” Estávamos em Estagira, a cidade natal de Aristóteles, escolhida de
propósito. Pois já Aristóteles – cuja teoria da tragédia Philippe e eu já tínhamos
discutido tanto – vinha após a própria tragédia. Muito antes de nós, que parecíamos
ao cabo dessa história, mas já após o tempo do canto trágico, que doravante seria
preciso compreender, raciocinar e justificar. Aristóteles é já um teórico e uma
espécie de historiador da tragédia, mas ele está apenas no início de uma história bem
longa.
Ora, toda essa história, e o próprio conceito tal qual ele foi elaborado
muito tempo após Aristóteles, consiste essencialmente em vir após. A dimensão do
após lhe é constitutiva e se posso dizer congenital. O começo ou a arkhé, o proteron,
o principium ou o initium constituem, por definição, o que lhe escapa ou bem aquilo
de que ela só pode se assegurar se apropriando e decidindo-se a ser ela própria o seu
próprio começo, a sua fundação e a sua srcem. Ambas as postulações insustentáveis
escandem com a sua repetição toda a história da filosofia, da literatura e da religião
do Ocidente. Ou bem somos nostálgicos de um para-sempre-perdido que sem dúvida
nunca esteve presente, ou bem desejamos fazer surgir um absolutamente-por-vir que
não poderia ser precedido por nenhuma espécie de presença. É assim que memória e
vontade são os dois axes e as duas figuras de nossa relação ao impossível: a nós
mesmos como aporia. Nossa aporia, nossa ausência de saída, reside no nascimento
que sucede à nossa ausência que não nos leva a outra coisa senão à morte, que cava o
após até apagar nela até mesmo a possibilidade de pensar uma sucessão, uma
posteridade ou uma herança. Sabemos todos como esse pensamento foi forte em
Philippe – como ele foi vivo, como uma ferida o pode ser.
É em grego que o ventre fecundo, a hystera, tomou o nome do que vem
por último, após, como para designar uma perpétua ulterioridade da proveniência em
si mesma, um após todo o antes, ou para dizê-lo na língua dos lógicos, um hysteron-
proteron permanente, em outras palavras, uma falta lógica constitutiva de nosso
ser259. Do mesmo modo que esse raciocínio vicioso consiste em dar como prova o
que de antemão deveria ser comprovado, assim também a condição ocidental
consiste em propor como ser o que desde o início deveríamos levar ao ser, e portanto
259
« Hysteron-próteron », do grego : « hysteron », « último » e « próteron », « primeiro », ou histerologia
é uma figura de retórica que consiste em pôr antes um elemento posterior no argumento ou na cadeia de
idéias. O exemplo coloquial é o provérbio: « por a carrroça na frente dos burros ». O exemplo classico é o
verso da Eneida de Virgílio : Moriamur, et in media arma ruamus" ("Morramos, e investiremos no meio
da luta”, livro II, v. 353.) Nancy retorna a essa figura adiante, em “Peã para Afrodite, na p. XX. (N.T.)
sair do não-ser. Mas nós não saímos de nada e nós não (nos) conduzimos rumo a
nada. Nenhuma proveniência nos é dada, nenhuma destinação, nenhuma saída nos é
prometida. Assim, a nossa condição ou a nossa constituição fundamental e destinal
poderia ser caracterizada como uma histeria aporética. Eu não diria no entanto que
se trata de uma patologia – como se eu soubesse a que modelo de normalidade
compará-la. Eu diria que é talvez menos e talvez mais que uma patologia: talvez seja
a sorte própria do Ocidente, ou então o seu perigo assegurado, e talvez nos dois casos
seja doravante o mundo inteiro que parte conosco nessa histeria aporética, que se
torce nela e se angustia nela, quer ele consiga ou não expor ali alguma coisa de uma
verdade ou de um sentido (a menos que a histeria aporética seja a última palavra de
toda a nossa verdade).

Nessas condições, as palavras “após a tragédia” podem assumir um valor


de emblema, e isso por duas razões. Essas duas razões são primeiramente bem
distintas, ou até opostas, mas elas terminam por se juntar.
A primeira razão é que entre todos os “após” do Ocidente (após a idade do
ouro, após os deuses, após a alvorada pré-socrática, após o mito, todos “após” ou
“post”, cada um tendo sido, além disso, muitas vezes repetido na história, sob o
modo grego tardio, o modo latino, cristão, renascentista, progressista, romântico,
enfim moderno e pós-moderno, segundo a lei de um post-x geral), o “após” a
tragédia ocupa um lugar particular e remarcável. Toda a nossa história pensou e se
pensou “após
lamentá-la a tragédia”,
e para seja para despedir
tentar reencontrar-lhe a dita “tragédia”,
a verdade. Seguramente,sejadevemos
ao contrário
dizerpara
igualmente que assim como a tragédia a cidade pertence à mesma lógica e à mesma
cronologia do “após”. Contudo, a chamada democracia nos parece ainda, para o bem
ou para o mal, representar um passo ganho sobre um passado sombrio e uma
promessa de futuro, por mais que seja ainda necessário um esforço para tornar a dita
democracia digna de futuro.
Em compensação, a tragédia nos parece a perda por excelência, e cujo
retorno ou substituição não devemos mais doravante esperar. Podemos recitá-la, não
restituí-la nem reinventá-la. Com ela, aliás, é o teatro inteiro que vacila e que se
inquieta em si mesmo há muito tempo. De resto, sabemos muito bem que a sorte das
duas – da democracia e da tragédia – está ligada e que não seria impossível que os
problemas e a fragilidade da primeira se deixasse exprimir pela perda da segunda.
Nesse sentido, qualquer que seja a reforma de si mesma que a democracia for capaz
de fazer, ela não encontrará nada, e não se encontrará a si mesma, se continuar a lhe
faltar a tragédia, ou lhe faltar aquilo cuja função a tragédia ocupava. (Não seria isso
que estava em jogo na “religião civil” desejada por Rousseau? Aquilo mesmo,
portanto, que a democracia teve até hoje, e desde o próprio Rousseau, que mais
manifestamente afastar ou deixar inexplorado...260)

260
Nancy refere-se ao célebre capítulo « A religião civil », no Contrato social de Jean-Jacques Rousseau,
que Maximilien Robespierre implement ou durante o terror jacobino sob a forma das Festas do Ser
Supremo. Rousseau : « Há, pois, uma profissão de fé meramente civil, cujos artigos o soberano [a união
de todos os membros do Estado ou da Cidade] deve fixar, não exatamente como dogmas de religião, mas
como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel ». Jean-
Segundo essa primeira razão, “após a tragédia” resultaria na fórmula de
uma tripla aporia - política, ética e estética - que nos obrigaria a pensar de novo,
ainda uma vez, a novas expensas, o que está em jogo no que designamos como a
perda da tragédia: ou seja, a pensá-la enfim, se isso é possível, de outra maneira
além de como uma perda seca e uma histeria aporética, sem no entanto cair na
armadilha da ressurreição (na qual Nietzsche, em um momento talvez, pôde
acreditar). Philippe, eu acho, pensava em tudo isso ao mesmo tempo.

A segunda razão recorre a todo um outro uso das palavras. “Após a


tragédia” soa para nós como um sintagma familiar – terrivelmente, tragicamente
familiar – em dois registros conjugados:
- é de um lado, uma fórmula familiar para designar a situação específica que sucede
a uma catástrofe (um drama, uma tragédia, retornarei mais tarde sobre essa confusão
das palavras): uma existência que soçobra no absurdo de um acidente ou de uma
decadência, um amor que se despedaça. Uma vida arruinada, uma dignidade ou uma
fidelidade quebrada; essa situação é a da privação de sentido em todos os sentidos,
privação de direção e de sensibilidade, apatia ou histeria, angústia da aporia,
necessidade de suporte e de terapias que não podem tocar no cerne da questão; para
resumir com um palavra, eu diria: “após a tragédia” evoca para nós uma situação na
qual o próprio luto não é possível, ou torna-se manifestamente e duramente infinito;
- ora, a mesma fórmula assombra por outro lado a história do último século – senão a
do fim do século XIX: desde pelo menos a primeira das guerras ditas mundiais,
desde as monstruosidades dos campos, dos gulags, dos genocídios, das purificações
étnicas, sem esquecer das catástrofes cada dia menos “naturais” do fogo, da água, da
terra, dos cânceres ou dos vírus, repetimos “após a tragédia”; as palavras “após
Auschwitz” e “após Hiroshima”, ambas com um escopo muito diferente, terão
formado como dois emblemas idiomáticos dessa repetição que não parou com elas;
para terminar, é em suma todo o Ocidente do século XXI que se olha e que se
pergunta o que pode vir “após a tragédia” que foi o próprio Ocidente, que ele
fomentou e propagou pelo mundo; mas sobre esse plano coletivo, político e
civilizacional, nada se oferece de mais consistente senão sob o plano das vidas
individuais; aqui também, o luto é impossível, aqui também permanece-se no a
posteriori [après-coup] de uma devastação privada de sentido, de proveniência e de
verdade. Basta destacar o seguinte: pôr em representação (em cena, em memória, em
interpretação) todos esses dramas suscita problemas que nenhuma outra forma
disponível, como a que foi a “tragédia”, permite resolver – ao ponto, aliás, que a
questão de sua representação (de suas imagens, de seus relatos) é sem cessar
levantada de novo. E, por outro lado, torna-se para nós cada vez mais claro que não
podemos nos contentar em designar os culpados da história (aqui uma religião, ali
uma política, alhures um povo, ou um indivíduo, uma ideologia, uma técnica...); é
uma história inteira que é ela própria culpada, e que portanto está para-além de
qualquer culpabilidade assinalável; é toda a história do Ocidente e através dele do
mundo que revela-se a si mesma como uma tragédia do Ocidente, ou como uma

Jacques Rousseau. O contrato social . Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo : Martins Fintes, 2001, p.
165. (N.T.)
sucessão de tragédias, de forma que após cada uma delas acaba por não haver mais
“após”, já que o retorno de uma outra tragédia é uma certeza, e que o após vira um
antes.
Ora, tocamos aqui no ponto de junção entre os dois motivos condutores da
expressão “após a tragédia”. Pois toda a história que aparece como uma tragédia é
também a história que se representa como tendo perdido a tragédia. Essa contradição
entre dois usos do termo não se explica senão pela impropriedade de um dos dois.
Essa impropriedade, de resto, é bem conhecida, e quando há pouco negligenciei de
me deter sobre as distinções necessárias entre “tragédia”, “drama” ou “catástrofe”

(palavra
um eladiferente),
sentido mesma retirada
a que do
eu léxico
poderialiterário trágico,
acrescentar mas claramente
“desastre” imbuídaeu
ou “desolação”, de
sabia que cada um de nós, por menos que tenha um mínimo de saber filológico e
filosófico, recusa-se a permanecer surdo a essas distinções, já que a tragédia não
representa inicialmente uma variedade de acontecimento terrível, nem como a pior
de suas variedades, mas denomina uma estrutura inteira de pensamento, no sentido
mais forte da palavra: uma construção de sentido, um sistema, no sentido mais
simples da palavra, ou se preferirmos, uma sinergia e uma simpatia que compõem
um ethos próprio. O ethos trágico não se reduz ao pathos daquele que é derrubado
por um desastre ou uma ruína.
Mas aqui desponta a dificuldade que consiste talvez na “tragédia” de nossa
história: se há confusão ou abuso de significações quando falamos de uma tragédia
dos campos, de uma tragédia do 11 de setembro, de uma tragédia de Ruanda ou da
Nigéria, da fome ou da prostituição de crianças, é porque não podemos juntar um uso
relaxado da palavra com seu uso próprio. E nós não podemos fazê-lo porque o
sentido próprio, na verdade, nos escapa. Nossa história é também a das
interpretações da própria tragédia, que foi ao mesmo tempo um enriquecimento,
mesmo que feito de contradições, e um retorno permanente a um segredo perdido e
ininterpretável. Quando falamos da katharsis de Aristóteles e dos valores sucessivos
que lhe emprestamos, do classicismo francês, do romantismo alemão ou inglês, de
Hegel, de Schelling, de Hölderlin, de Nietzsche ou de Benjamin, de Bataille ou de
Lacoue-Labarthe, para permanecer nesses nomes, qualquer que seja a leitura, resta
sempre um núcleo duro, um simples dejeto seco, que contém no mínimo essa
significação mínima: qualquer que tenha sido a verdade trágica, ela não é mais a
nossa, qualquer que tenha sido a proximidade, ou mesmo a intimidade que este ou
aquele pôde ter tido com ela, nenhum ethos, nenhuma tékhne poiétiké nos restitui a
possibilidade de vivê-la aqui e agora, como uma função de nossa vida de povo ou de
cidade.
Cada um e cada uma dentre nós pode compartilhar o jogo de cena [enjeu]
patético e ético de Édipo, de Antígona ou de Medéia (se nos for permitido dizer
“jogo de cena” no singular, já que se trata a cada vez de uma série de sotaques e
acentos261 indefinidamente variados ao sabor de tantas grades de leitura). Mas não
estamos, para resumi-lo com a palavra mais apropriada, em uma liturgia da tragédia;
não estamos em um ofício, nem em um serviço comum de cultura e de conduta, de
costumes e de estrutura, com a qual poderíamos designar, indistintamente,
sincreticamente, uma política e uma ética, uma teologia e uma estética. Mas não
podemos tampouco designar o que a tragédia pode muito bem ter sido para aqueles

261
“Accents ”, em francês, ao mesmo tempo “sotaque” e “acento” (no sentido rítmico-poét ico do termo).
Optei por explicitar os dois sentidos na frase. (N.T.)
que foram, não somente seus contemporâneos, mas seus atores, seus autores e seus
expectadores, em conjunto e a cada vez. Que a figura de Édipo tenha podido se
deslocar de duas peças de Sófocles até a posição de sinal e de significante para
investigações pessoais da psicanálise, que o filho de Laio e o interlocutor da Esfinge
tenha podido se transformar em pai e marco, eis o que sem dúvida diz muito (mesmo
se não sabemos o que diz) sobre os pais em geral, sobre os enigmas, sobre as
cidades, sobre o saber e sobre o poder, em nossas configurações presentes de cultura.

Há portanto uma exemplaridade inatingível da tragédia. Que ela seja


exemplar significa que pensamos (representamos, imaginamos, sonhamos, talvez -
isso importa pouco à experiência que se trava aí para nós) poder ou dever reportar
tudo a alguma coisa dela: ou seja, que nos é necessário pensar que nela se atava o nó
elementar da existência, aquele que a liga a sua própria insignificância ou a sua
infelicidade. Mas que ela seja inatingível significa que esse nó não pode ser atado
por nós (senão, como venho de evocar, a título individual, o que precisamente não
quer dizer nada aqui, pois a existência é essencialmente não individual, e é também
isso que o saber trágico nos parece ter sabido).
Nossa situação é portanto tal que quando leio no jornal, para tomar um
exemplo que ocorreu no momento em que escrevia isso, que o grande rabino da
Inglaterra declara: “Considero a situação atual complemente trágica”, no contexto de
uma oposição, em nome do judaísmo, à política de Israel, eu me digo que o “trágico”
(no sentido
palavra, de desastroso
“trágico”, e de desesperador)
não representar reside
para o rabino precisamente
nenhum recurso,no fato dessa
nenhuma verdade,
além da de uma infelicidade logo irreparável. Ele não tem, nós não temos, o recurso
a uma verdade mais alta (ou mais profunda), sobre a qual o próprio “trágico” abriria,
que teria a possibilidade de fazer, apesar de tudo, sentido, mesmo que fosse fazer
sentido do abandono do sentido.
Ora é exatamente algo dessa natureza que a tragédia grega (e talvez clássica)
representa para nós, mesmo que não saibamos nos apropriar desse modo bem
particular - e que dizemos perdido – do recurso, esse modo que poderíamos designar
como o do recurso sem socorro. Pois se a tragédia é o que é para nós (senão o que ela
foi para si mesma), é precisamente na medida em que nela a ruína se conjuga a uma
verdade, em lugar de carregar a verdade em sua ruína, como o fazem o desastre ou a
derrelição moderna.
Como isso é ou foi possível? É o que não podemos captar, mas de que
podemos ao menos nos aproximar, do exterior. Essa aproximação se impõe a partir
do seguinte:
seja, a própria tragédia
após o sacrifício. também,
Mas vindo já ela,
após, ela passaapós
nãovem . Ela vem após
simplesmente a religião,
alhures. Em umou
262
momento ao menos, o tempo de sua existência entre Tespis e Aristóteles, ela

262
Veja o que diz a respeito de Tespis, Rafaelle Cantarella : Tespis, de Icaria, teria “’recitado e
representado pela primeira vez um drama na cidade (ou seja, nas Grandes Dionisíadas), e o prêmio era um
caprino macho’” […]. Segundo diversas fontes, ele dispunha de um coro (de homens, não zoomorfo), e
haveria introduzido o prólogo e o ‘parlamento’, empregando para isso um ator mascarado. Restam dele
quatro títulos, provavelmente autênticos , e quatro fragmentos espúrios, que derivam talvez das tragédias
‘de Tespis’, falsificadas pelo peripatético Heráclides de Pôntico […]. Não obstante todas as incertezas e
representa um equilíbrio delicado e instável, no entanto mantido, entre o após o
sacrifício e o antes de nossa desolação. É sobre esse duplo valor que eu gostaria de
me deter um pouco, para uma simples reflexão que não procede de nenhuma ciência
filológica nem teórica da tragédia, mas somente da ruminação do seguinte, que repito
e condenso em uma fórmula: o “trágico” para nós não é mais e não pode mais ser
“uma tragédia”.

Como caracterizar esse momento de suspensão, de equilíbrio incerto, que


representa para nós a tragédia? Bertold Brecht escreveu o seguinte: que cito de
memória: “Quando se diz que a tragédia saiu do culto, esquece-se que é saindo dele
que ela se tornou tragédia.” 263Brecht tem completamente razão de se opor a uma
visão cultual da tragédia, já que, de fato, nada é mais óbvio que a saída do mundo
cultual pré-ocidental de que a tragédia faz parte, junto com a política e a filosofia.
Entretanto, a sua sentença deixa ainda por determinar mais de perto o que pode
significar a “saída’ para fora do culto, e portanto em que ela inaugura a tragédia - ou
o teatro - em sua especificidade. Trata-se de uma certa maneira de um caso particular
em uma reflexão geral sobre o que seria uma “proveniência”, ou um “ser saído de”:
encontramos aí sempre, ao mesmo tempo, um corte e uma transmissão. É essa dupla
articulação que precisamos localizar entre o culto e o teatro, ou mais precisamente
entre a circunstância cultual e o acontecimento teatral264.
Ao sair do culto, a tragédia sai da religião. Sair da religião significa sair de
um regime
supõe de cultura
a presença social na
dos deuses e aqual há comunicação
possibilidade com os deuses.
de estabelecer Esseeles.
liames com regime
O
culto consiste em pôr os liames em obra. Os deuses com os quais os participantes do
culto entram em relação não estão somente presentes: eles são as presenças por
excelência, as potências ativas, tutelares ou ameaçadoras, os Imortais aos quais os
mortais confiam a sua sorte ameaçada, ansiosos por conciliarem-se com as suas
forças. O culto invoca esses Presentes, ele os convoca, ele às vezes mesmo os
provoca, ao fazer-se advogado do mortal que entra pelo culto em presença dos
Presentes. O ato religioso é participação na ad-vocação ou da ad-oração: palavra
endereçada à presença.

obscuridades da tradição, pode- se admitir como a opinião mais provável que ao nome de Tespis se
relacionou uma das tentativas mais antigas de organizar em Atenas uma representação trágica em um
concurso regular, o que pressupõe obviamente a existência de outros poetas, cujos nomes permaneceram
no esquecimento diante do do vencedor”. Rafaelle Catarella. La literatura griega clasica. Trad. Antonio
Camarero.
263
Buenos Aires: Editorial Losada, 1971, p. 184. (N.T.)
Nancy se refere a um trecho do quarto parágrado do “Pequeno Organon para o teatro”. Eis o trecho:
“Dizer que o teatro surgiu das cerimônias do culto não é diferente do que dizer que o teatro surgiu
precisamente por se ter desprendido destas; não adotou a missão dos mistérios, adotou, sim, o prazer do
exercício do culto, pura e simplesmente.” Bertold Brecht. Estudos sobre o teatro . Trad. Fiama Pais
Brandão. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978, p. 102. (N.T.)
264
By the way, this is as well a case within the general concept which wears the very confuse and obscure
name of « secularization ». [ A propósito, este é também um exemplo no interior do conceito geral que
reveste o nome bastante confuso e obscuro de “secularização”] [Essa nota e a seguinte em inglês em
ingl6es foram acrescentadas por Jean-Luc Nancy no momento da leitura do texto. (N.E.F.) ]
Essa palavra é palavra participante: ela toma parte na presença a quem ela
fala. Ela o faz até o ponto em que ela própria se consuma como sacrifício: um
vivente mortal é consagrado aos imortais, e o seu sangue recolhe ou alimenta a sua
força ou a sua proteção. No sacrifício, a própria palavra torna-se ato; ela pronuncia a
fórmula que santifica o gesto do sacrificador, e ela própria se imola, em suma, na
faca e no sangue. Pois a presença, para terminar, nadifica a palavra.
Saindo do culto, a tragédia sai da presença. Os deuses se retiraram, ou quem
sabe foram os homens que os desampararam, passando da vida agrária à vida urbana,
da encantação à retórica e da palavra à escrita. Talvez fosse preciso dizer que a

primeira
não diferença entre o culto e o teatro reside no fato de que o primeiro no início
era escrito.
Esse adeus à presença (toda a escrita lhe dirige um adeus, como o sugere
Jean-Christophe Bailly) funda o teatro: a palavra não deve mais se dirigir aos deuses,
e mesmo se bem no início não deixamos de nomeá-los, ou até de invocá-los, os
rastros da religião não têm mais papel sacrificial. A palavra do teatro se dirige
precisamente à ausência dos deuses, o que quer dizer também que ela não se dirige
mais a eles, mas se troca entre os mortais que são doravante sós entre si.
É no teatro, no primeiro teatro grego, mas muito depois de Tespis, na
Antígona de Sófocles, que se levanta a voz que proclama o homem terrivelmente
estranho e técnico assustador, do mesmo modo como em Édipo trata-se daquele que
respondeu à pergunta sobre o homem. Entre o conquistador do mundo e o animal que
envelhece e morre, a tragédia condensa toda a intriga: não histórias humanas
trágicas, mas o próprio homem enquanto tragédia ou comédia. Ora, tragédia e
comédia se tramam em torno de acontecimentos: acontece, produz-se o que faz o
homem lastimável
Ecce homo e que
não é por apresenta
acaso a frase,esse lamentável,
o enunciado, seja àdacompaixão,
a divisa religião seseja à derrisão.
desconstruindo a si mesma.
Com os deuses, nada acontece: eles são os portadores ou os porta-vozes do
que denominamos Destino, Moira, Necessidade, isto é, o Acontecimento geral de
todas as coisas. Mas doravante o que acontece é um destino cada vez singular em
que soçobra o Acontecimento geral, com o culto que lhe poderíamos fazer.

Entretanto a tragédia participa ainda de um culto ou bem – é de novo o caso


eminente de dizê-lo - de um liturgia, essa palavra retomada pelos cristãos e que
designa inicialmente uma ação a serviço do povo. É mesmo ocioso afastar-se ainda
um pouco do léxico religioso e falar de cerimônia. A tragédia – e todo o teatro depois
dela guarda disso uma lembrança – forma um cerimonial. Não se trata somente do
cerimonial social, embora este, mesmo deslocado em mundanidade, não seja
negligenciável. Trata-se inicialmente dessa cerimônia que é em si mesma tragédia (e
cuja memória, mais uma vez, todo o teatro guardou, mesmo que apenas, justamente,
não tenha guardado nada além de uma memória...). Ali onde o culto sacrificial
consuma a invocação dos deuses na efetividade do sangue que lhe é consagrado, o
teatro consuma uma invocação ou uma advocação mútua dos homens entre si (os
personagens entre si e o coro com os personagens). Esse endereçamento mútuo e
esse canto alternado – onde reside sem dúvida alguma coisa de essencial a toda a
literatura após a tragédia, mesmo não teatral - constituem em suma o substituto do
sacrifício. Qualquer que seja o sentido da ação trágica (digamos, simplificando no
limite do ultraje: que o homem sofra nela a inimizade dos deuses inconciliáveis ou
bem que ele ponha em jogo ali a responsabilidade de sua própria infelicidade), e
mesmo se esse sentido expira na ferida mortal do sentido, a tragédia assegura a
manutenção, o ethos desse pathos do sentido.
Hölderlin265 ao tentar escrever ainda uma tragédia – uma tragédia de após a
tragédia, que deveria dizer esse após e que o diz de fato, mas renunciando a si
mesma – faz dizer a Empédocles: “Eis que a minha língua vai deixar de servir/ Ao
266

diálogoaodos
assim, mortais,
mesmo de vãs
tempo quepalavras
o próximo”silencio
– e me aventuro
da morte,a aarriscar
tenênciaque ] 267e o
ele pronuncia
[tenue
teor essencial da própria tragédia que lemos. Em outras palavras, a tragédia conserva
no cerimonial de sua palavra o rastro do sacrifício. Não tentarei tampouco aqui
caracterizar esse cerimonial: eu direi somente que ele se dá no modo do estilo direto,
do discurso endereçado, não de sua “imitação” (embora a mimesis seja oposta à
diegesis), pois não se trata de imitar o diálogo quotidiano, mas trata-se ao contrário
da produção do endereçamento como tal. (Talvez seja isso que devamos
compreender como a “mimesis sem modelo” de que fala Philippe.)
O caráter “teatral” implica, no melhor sentido da palavra, uma ênfase do
endereçamento: a palavra tendida em direção ao outro e assim tendida além dele e
além dela mesma. Não se endereçando mais aos deuses para lhe oferecer suas
vítimas, ela se endereça de um homem a um outro, para lhe apresentar o que excede
ao homem e que excede a ela mesma. É a palavra, nesse sentido, que se sacrifica. Por
essa palavra enfática ou cerimonial, a tragédia guarda ou inventa, guarda e inventa ao
mesmo tempo o ethos segundo o qual, na falta de socorro dos deuses e de todo outro
socorro, permanece havendo uma grandeza. A grandeza do mortal fulminado a quem
os deuses viram as costas se expõe na tenência da palavra trágica. No momento em
que ele furou os olhos, mas não cortou a língua, embora deplorasse não ter se
tornado surdo, Édipo ainda fala, ele fala mais ainda, ele recita a litania de seus
crimes ao mesmo momento em que declara ser tão vergonhoso falar deles quanto
cometê-los, e a tenência de seu discurso é identicamente a tenência da única
dignidade que lhe resta.

265
To remember: Philippe once told me: « I know what shall be done to have a new Hölderlin. I know, but
it is too difficult…» [Lembrar: Philippe me disse uma vez: “Eu sei o que deve ser feito para ter um novo
Hölderlin.
266
Eu sei, mas é difícil demais…”].
Empédocle (terceira versão). Trad. fr. Robert Rovini. In : Œuvres . Paris : Gallimard, col.
« Bibliothèque de la Pléiade », 1967, p. 573.
267
« Tenue ” em francês. Temo utilizado várias vezes no ensaio por Nancy, por meio do qual ele designa
algo como a essência do trágico. “ Tenue ” tem sentido múltiplo: continuidade, duração, maneira de gerir
um estabelecimento, ou de segurar um objeto, conduta, atitude do corpo, manutenção, aspecto, maneira de
se vestir, traje, porte. Embora intraduzível, encontrei em “tenência” alguns dos significados que
interessam aqui. A velha repartição militar (tenente-general da artilharia; posto de tenente; local onde
habita o tenente), caído em desuso, deixa ouvir algo da raiz verbal de “ter”, e cedeu lugar a ressonâncias
no discurso informal: teimosia, obstinação, precaução, cuidado, cautela, vigor, firmeza, força, corume,
hábito, jeito. (N.T.)
É essa grandeza, no mínimo, que nós nos representamos ter perdido, que nós
de fato perdemos, ou bem cuja perda já fora empenhada na passagem do culto à
tragédia. É essa grandeza que falta à “tragédia” moderna de uma civilização inteira
que pode tudo menos encontrar uma santidade em sua miséria, ou que não sabe mais
onde colocar aquilo que ela denomina de dignidade do homem, esse valor absoluto
que, desde que ele foi inventado, ou seja, expressamente, desde Kant, não sabe o que
ele vale ou bem deixa indefinidamente oscilar esse valer entre o bom e o mau
infinito. (Esse mesmo Kant, lembro, esse Kant tão bem lido por Hölderlin, escreve
que o sublime na arte exige uma das três fórmulas: o poema didático, o oratório ou a
tragédia em verso268. A precisão “em verso”, que confere aos três modos o traço
comum do poema e do canto, designa o regime da dignidade. Philippe amava essa
passagem particularmente enigmática de Kant.)
Dizendo adeus ao mundo, aos deuses e a si mesmo, Édipo se confere ainda a
si mesmo a dignidade desse adeus. “ Após a tragédia”, em compensação, é preciso
reconhecê-lo, quer dizer “após a cerimônia do adeus”. Isso quer dizer também,
conseqüentemente, após esse brilho e esse instante de tenência, cuja perda ou cuja
representação da perda organiza o que não podemos mais chamar de nossa tragédia,
mas nosso drama ou nossa desolação.
Isso não faz mais do que colocar os termos de um problema, ou de uma crise,
ou mesmo de uma aporia, e não pretendo hoje ir além disso. Mas quero para terminar
precisar esses termos. De um lado, deveria ser-nos claro que do mesmo modo como
a tragédia não respondeu ao fim do sacrifício retornando a ele, mas deslocando com
ele a totalidade do sagrado, tampouco podemos retornar à tragédia – por um retorno
cuja tentação nunca deixou de nos assombrar. Ele nos incumbe de encontrar também
o nosso adeus à tragédia, no mesmo movimento em que devemos reinventar uma
grandeza, uma dignidade, ou o que poderia lhe suceder – a menos que o pior não seja
uma certeza.
Mas nosso adeus deve também considerar o que a tragédia retinha do
elemento de onde ela saiu. O que denominei aqui a cerimônia da palavra trágica não
responde a outra coisa, no fim de contas, senão ao que indica de maneira muito
aproximativa a expressão “religião civil”, que lembrei há pouco. As questões da
tragédia, do teatro, da política, da história, da arte e de tudo o que denominamos
“ética”, sem discernir entre elas, têm sem dúvida em comum essa traço determinante
que conduz em direção a esse lugar deserto e, ao que parece, impossível de ocupar
que essa expressão nomeia. O que fazer com essa indicação, em um tempo que se
arroga não ser mais somente “após a tragédia”, mas decididamente “após a religião”
e “após a cidade”, o que aliás sem dúvida não faz mais do que decompor e precisar a
primeira fórmula?
É então que seria preciso, e que será preciso, é a última indicação, lembrar-se
que “após a tragédia” designa também 269
o duplo movimento daquanto
filosofia e do
cristianismo. Ambas quiseram suspender tanto o sacrifício a tragédia, e

268
Nancy se refere ao trecho do paragrafo 52 da Crítica da Faculdade do Juizo : « Também a
apresentação do sublime, na medida em que pertence à arte bela, pode unificar-se com a beleza em uma
tragédia rimada , em um poema didático, em um oratorio , e nessas ligações a arte é ainda mais artística
[…] ». Immanuel Kant. Crítica da Faculdade do Juízo . Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de
Janeiro : Forense Universitária, 1995, 2a edição, p. 170. (N.T.)
269
“Relever ”, que traduzo com o equívoco “suspender”, elevar e retirar, ou pelo nosso idiomático,
“render”, substituir. “ Relève ” é a tradução de Jacques Derrida da Aufhebung hegeliana, que tem o sentido
ambas o fizeram por um movimento que passa além – ou mais exatamente que
procura desesperadamente passar além do cerimonial da palavra. A filosofia
procurou essa ultrapassagem em um saber tornado idêntico ao seu próprio objeto, o
cristianismo o desejou em um amor tornado idêntico à existência.
Representamos por outro lado os dois como propondo uma franquia da
morte, uma passagem por águas rasas, o que não passa, com certeza, da sua
configuração mais exterior e mais ideológica, por trás da qual se trava um jogo mais
severo. Mas a força do espelhamento dessas representações (a morte vencida pela
sabedoria ou pela ressurreição) não é por isso menos sintomática dos desejos do

Ocidente:
perdeu com
– ou queo ele
sacrifício e em
acreditou terseguida
perdidocom a tragédia, é a relação à morte que ele
ou desregrado.
Mas como a morte permanece não-franqueável, engendrou-se nos dois
registros uma espécie de mutismo cujo último nome é niilismo. Há, haverá, ou há já
um “após o niilismo” que não pretende oferecer um “após a morte”, e que no
entanto assume ser “após a tragédia”? Essa é a nossa questão, “trágica”. Mas ela
exige, no mínimo, se existe alguma chance de responder a ela, que saibamos o
seguinte: aquilo para o qual deveríamos inventar uma outra cerimônia da palavra,
uma outra liturgia do sentido e da verdade, não pode tampouco proceder de outro
lugar senão do cerne mesmo de nosso mutismo, mas isso, com a condição de que
uma garganta murmure ainda ali apesar de tudo.
And, as I said, I believe Philippe’s throat is murmuring here and now270.

(Estagira, setembro de 2002 – Giessen outubro de 2007 – Nova York,


abril de 2008. )

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equívoco de elevar, manter e abolir, superar e destruir, com o qual Hegel cria captar o mecanismo do
movimento histórico. (N.T.)
270
Em inglês no texto. [E como disse, acho que a garganta de Philippe está murmurando aqui e agora.]
(N.E.F.)
5. Ressurreição de Blanchot

O motivo da ressurreição não parece, à primeira vista, ter em Blanchot um


lugar maior. Ao menos, o encontramos pouco frequentemente através de seus textos
reputados “teóricos”. Ele está mais presente, talvez, nos relatos, onde no entanto as
temáticas se deixam necessariamente isolar com menos facilidade enquanto tais. Não
obstante, a ressurreição é indissociável, nessa obra, da morte e do morrer, com os quais
temos, antes, o hábito de associar o nome de Blanchot. E se por sua vez o morrer é não
somente indissociável da literatura ou da escrita, mas consubstancial a ela, é somente na
medida em que ele se engaja na ressurreição e não faz nada senão esposar o seu
movimento. Qual é esse movimento, é o que tento acercar aqui, descartando no entanto
o projeto de reconstituir-lhe a economia integral através da obra de Blanchot, o que
seria o objeto de um livro inteiro.
Demo-nos de pronto o tom maior: a ressurreição de que se trata não escapa à
morte, não sai dela, nem a dialetiza. Ela forma, ao contrário, a extremidade e a verdade
do morrer. Ela entra na morte não para atravessá-la, mas para, afundando-se nela de
maneira irremissível, ressuscitá-la a si própria. Ressuscitar a morte difere
completamente de ressuscitar os mortos. Ressuscitar os mortos consiste em lhes
entregar à vida, em fazer ressurgir a vida ali onde a morte a tinha suprimido. É uma
operação prodigiosa, milagrosa, que substitui uma potência sobrenatural às leis da
natureza. Ressuscitar a morte é uma operação completamente diferente, se é que é uma
operação. Nãodalonge
uma questão obra,desse conceito,
da obra em todo o caso,
e seu desobramento 271 ela é seguramente uma obra, ou é
essencial. De fato, não podemos
compreender o próprio desobramento, senão a partir da ressurreição da morte, já que
pela obra “a fala dá voz à intimidade da morte272”.
Ora, a ressurreição da morte constitui em Blanchot uma formulação rara mas
decisiva. Talvez mesmo ele não a tenha enunciado senão uma vez, mas de maneira tão
decisiva e tão impressionante que essa única ocorrência lhe terá parecido suficiente –
sendo ao mesmo tempo demasiado arriscado que ela se tornasse perigosa se repetida.
Pois, bem entendido, ela é perigosa, e ela pode destampar todos os equívocos. Blanchot
sabe disso, ele faz questão de prevenir esse risco, tomando nisso uma parte cuidadosa, e
mesmo talvez, podemos dizê-lo, delicadamente calculada. Essa parte é aquela que
conserva, ao menos parcialmente, a raíz monoteísta e mais precisamente cristã do
pensamento da ressurreição.
Devemos começar por nos deter um momento sobre essa proveniência cristã,
sem excluir a possibilidade de retornar mais tarde a ela, de maneira detalhada. Pois
Blanchot poderia tê-la mantido em silencio, ou até tê-la suprimido completamente,
substituindo “ressurreição” por qualquer outro termo”, que seria, podemos imaginar, por
exemplo: “desobramento” - “obra sem acabamento”-, ou bem, “loucura”, “insônia”,

271
“Désoeuvrement ”, termo central da tese blanchotiana sobre a literatura a a arte moderna, foi traduzido
em português e em outras línguas de modos distintos. Em português, algumas vezes por “ociosidade”, ou
por “inoperância”; em inglês frequentemente por “inoperativeness ”, e em espanhol por “ inoperancia ”.
Opto agora por utilizar um neologismo, “desobramento”. (N.T.)
272
Maurice Blanchot. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 147.
“retorno”, “reversão273”, ou ainda “reconhecimento”, cujo movimento e “extravagância”
Christophe Bident se aplicou a discernir”274. Essa substituição seria até um certo ponto
pensável, e suspenderia qualquer hipoteca religiosa. Não obstante, vemos claramente
que ter-se-ia perdido assim o liame imediato e manifesto com a morte, a ressurreição
designando expressamente a libertação e saída dela. Tudo parece portanto ter-se passado
como se não fosse possível se isentar de um termo destinado a funcionar como operador
lógico em uma relação com a morte, posta como essencial à escrita – não menos que em
uma relação com a escrita (com a palavra, com o grito, com o poema) posta como
essencial ao morrer ou à mortalidade do homem. Isso no entanto não é de todo
suficiente: é preciso contar com o que, por essa mesma razão, só pode funcionar
também com a assunção de um motivo teológico.
Seria preciso aqui estender o exame ao conjunto do dado teológico ou bem, se
ouso dizer, teo-morfológico, no texto de Blanchot. Isso será para um outro trabalho.
Saliento somente, à propósito da ressurreição, que esse dado se precisa de maneira
bastante singular nas paragens desse motivo. Ele se precisa por uma referência
evangélica expressa, ao personagem que podemos dizer epônimo da ressurreição: o
Lázaro do Evangelho de João275. Com efeito, Lázaro aparece, para início de conversa,
ao mesmo tempo que a primeira e talvez a única ocorrência da expressão “morte
ressuscitada”. Isso se passa cedo na obra, já que é em 1941, na primeira edição de
Thomas l’Obscur [Tomás o obscuro]276. Este texto será conservado na segunda edição,
na qual em compensação serão modificadas as duas frases que precedem e que seguem
o enunciado que nomeia Lázaro. O que prova a atenção prestada pelo autor à seguinte
frase, que tem como sujeito Tomás: “Ele caminhava, único Lázaro verdadeiro, de quem
a própria morte foi ressuscitada277.”
Precisemos de antemão que seis linhas acima o texto trazia estas palavras: “ele
apareceu sobre a porta estreita do seu sepulcro, não ressuscitado, 278
mas morto, e tendo a
certeza de ter sido arrancado, ao mesmo tempo, à morte e à vida” . Essa última frase
transforma um pouco, tornando-o mais leve, o cariz da primeira edição, invertendo
também a ordem das palavras “à vida e à morte”. Quanto à leveza, ela consiste na
modificação desta modalização em inciso: “tendo bruscamente, pelo trovão mais
impiedoso, o sentimento que ele tinha sido arrancado [...]”. Essas precisões
micrológicas são instrutivas: se a porta do sepulcro continua a lembrar o episódio
evangélico e a prefaciar o nome de Lázaro, em compensação, a consciência de Tomás
passou do “sentimento” à “certeza”, e esta última se encontra despojada de toda
qualificação “fulminante” e espetacular. De uma espécie de comoção passamos à
afirmação de uma certeza - a qual não está nunca, de maneira geral, muito longe do
273
Descuro de ser mais preciso, indico apenas rapidamente cinco referências desses cinco termos, todos
tomados em O espaço literário , op.cit. , nas páginas: 39 [observe-se que o tradutor, Álvaro Cabral,
traduziu “ desoeuvrement ” por “ociosidade”, leia-se então a seção “A profundidade da ociosidade”] , 201
[o subcapítulo « A comunicação »], 225 [a seção « ‘Terra movediça, horrível, delicada’ », 268 [em
especial o anexo III, « O sono, a noit e »], 271 [por exemplo, o anexo IV, « O itinerá rio de Hölderlin »],
31 [« A experiência de Mallarmé »].
274
Cf. Christophe Bident. Reconnaissances – Antelme, Blanchot, Deleuze. [Reconhecimentos – Antelme,
Blanchot, Deleuze] Paris, Calman-Lévy, 2003.
275
A referência exata é: Evangelho segundo S. João, capítulo 11, 1-44. (N.T.)
276
M. Blanchot. Thomas l’Obscur . Paris : Gallimard, 1941. A passagem se encontra na p. 49 ; ela se
reencontra na p. 42, na segunda edição (Paris : Gallimard, 1950). Cito a primeira edição aqui e nas notas
seguintes. [Na reedição de 2005 da primeira versão, o trecho se encontra na p. 79. Maurice Blanchot.
Thomas l’Obscur. Première version, 1941 . Paris : Galimmard, , 2005. {N.T.}]
277
Ibid. O texto no srcinal: « Il marchait, seul Lazare véritable dont la mort même était ressuscitée ».
278
Ibid. [Nancy cita aqui o trecho da segunda edição. {N.T.}]
regime de um ego sum cartesiano. De uma impressão transtornada, Tomás passou a uma
espécie de cogito morto, na morte ou da morte. Ele se sabe “arrancado” tanto à morte
quanto à vida (donde a importância da mudança na ordem dos termos). Morto, nem por
isso ele deixa de ser mergulhado na coisa “morte”: ele se torna o sujeito morto de um
arrancamento à morte em si. É também por isso que ele não ressuscitou, ou seja, que ele
não recobra a vida após ter atravessado a morte: mas permanecendo morto ele avança na
morte (“ele caminhava”) e é a própria morte que se vê ressuscitada nesse “único Lázaro
verdadeiro”.
A morte é o sujeito279; o sujeito não é ou não é mais o seu próprio sujeito. É

isso o que estánem


ressuscitado” em jogo na ressurreição:
o cadáver nem ressuscitada”;
– mas “a morte subjetivação nem objetivação.
como Nemo “o
deitada sobre
cadáver e assim levantando-o sem o suspender280. Nada mais. Wo Ich war soll es
auferstehen281.
O outro Lázaro, o do Evangelho, não é portanto o verdadeiro : ele é o
personagem de um relato milagroso, de uma trangressão da morte por intermédio do
mais improvável dos recursos à vida. A verdade não cabe em um semelhante retorno :
ela reside na concomitância entre a morte e uma vida nela que não retorna à vida, mas
que faz viver a morte enquanto tal. Ou bem ainda : o verdadeiro Lázaro vive o seu
morrer como ele morre o seu viver. É assim que ele « caminha ». O texto prossegue,
concluindo o capítulo (e transformando-o também, tornando mais leve a primeira
versão, na qual, além disso, o capítulo estava longe do fim) : « Ele avançava, passando
por sobre as últimas sombras da noite, sem nada perder de sua glória, coberto de ervas e
de terra, indo, sob as estrelas cadentes, de um passo igual, o mesmo passo que, para os
homens que não estão envoltos em um suário, marca a ascenção em direção ao ponto
mais precioso da vida282. » Essa caminhada subterrânea e gloriosa no meio do desastre
anda com o mesmo passo com o qual vamos em direção à morte. Tomás está envolto no
suário, como Lázaro, enquanto que a caminhada dos homens é a de uma « ascenção »,
outro termo cristão que designa, dessa vez, a caminhada própria do Ressuscitado por
excelência. Assim, o afastamento do Evangelho só vale mediante uma lembrança
renovada de sua referência. O verdadeiro Lázaro é outro com relação ao Lázaro
ressuscitado pelo Cristo (por aquele que diz, nesse mesmo episódio de João, « eu sou a
ressurreição »), mas subsiste um resto : permanece nele alguma coisa desse miraculado.
Mas precisamente não é e o milagre. É antes o sentido dado ao relato milagroso
pelo relato de Tomás : esse sentido, ou essa verdade, não é uma travessia da morte, mas
a própria morte como travessia, como transporte e como transformação de si mesma em
si mesma, retirada em sua coisidade, em sua positividade objetiva de morte para se
revelar - « ponto mais precioso da vida » - enquanto extremidade, onde se retorna e se
destaca o acesso da vida ao que não é nem o seu contrário, nem o seu além, nem a sua
sublimação, mas somente, e ao mesmo tempo, infinitamente, o seu inverso e a sua

279
Em francês, “ sujet” significa ao mesmo tempo “assunto” e “sujeito”, no sentido gramatical, filosóf ico,
etc., do termo. Ambos os sentidos devem ser ouvidos nessa frase. (N.T.)
280
“Relever ”, pelo qual Nancy remete à “ relève ”, i.e. à Aufhebung hegeliana, na tradução de Jacques
Derrida, que traduzo aqui pelo verbo equívoco em português, “suspender”, ao mesmo tempo, elevar e
retirar. (N.T.)
281
Faço aqui uma tradução literal da frase. “Onde era o eu, isso deve ser ressuscitado.” Referência à frase
de Freud, “ Wo Es war, soll Ich werden” (Novas conferências introdutórias sobre psicanálise , 1933):
"Onde era isso devo eu advir," na tradução de Jacques Lacan. Onde havia o Es (Isso, Id, o inconsciente),
deve advir o eu (o sujeito do inconsciente, na formulação lacaniana. (N.T.)
282
Maurice Blanchot. Thomas l’obscur, op.cit.., ibidem. [Nancy cita aqui a segunda versão. {N.T.}]
iluminação pela face mais obscura, a face de Tomás, aquela que recebe uma luz das
trevas, e que portanto sabe renunciar à luz única das significações possíveis.
Devo precisar mais que isso ? Thomas l’obscur não propõe nada senão a
história de uma ressurreição ; melhor ainda, a história da ressurreição. Pois o próprio
Tomás é a ressurreição, à maneira deste Cristo, de quem se lembra uma outra palavra, a
propósito da morte de Ana, no momento em que Ana é a ressuscitada, a morta cujo
« corpo sem consolação »283 é ao mesmo tempo a presença que « dava à morte toda a
realidade e toda a existência que formavam a prova de seu próprio nada »284. Assim
prossegue o monólogo de Tomás ao velá-la: « Não impalpável nem dissolvida nas

sombras,
ler ela se da
a afirmação impunha cada vezsensível
forte presença mais aosdosentidos. » Ora
corpo, deve esta última
também frase,
ser lida que dáa a
segundo
indicação expressa do narrador que precisa que Tomás fala « como se os seus
pensamentos tivessem uma chance de serem ouvidos 285», e que doravante, segundo
essa oralidade, o plural de « aos sentidos » - fórmula aliás ligeiramente insólita nesse
lugar – torna-se inaudível e elide-se em um singular, calculado para se fazer entender,
sem por isso formalmente impor o seu conceito.
De todas as maneiras, Blanchot no-lo confirmará : a ressurreição designa o
acesso a um além do sentido, a caminhada nesse além por um passo que não vai a lugar
nenhum senão à repetição de sua igualdade286. Deste passo, sabemos, a escrita é o rastro
ou a marca. Mas ela só o é na medida em que descortina « um espaço onde,
propriamente dito, nada possui ainda sentido, em direção ao qual, entretanto, tudo o que
tem sentido reverte como à sua srcem 287». Negligenciemos aqui a circunstância de
esse texto de 1950 falar uma língua ligeiramente distinta da que Blanchot falará mais
tarde. Essa decalagem não é, certo, indiferente, e Blanchot o destacou, sem que isso
tenha impedido, todo o contrário, o impressionante repisamento, a remarcável
obstinação, de um pensamento através de suas variações necessárias. Permanece
portanto o fato de que o espaço da ressurreição, aquele que a define e que a torna
possível, é o espaço fora do sentido, que precede o sentido e que o sucede – admitindo-
se que aqui anterioridade e posteridade não tenham nenhum valor cronológico, mas
designem um fora-do-tempo tão interminável quanto instantâneo, a eternidade em seu
valor essencial de subtração. (Mas a observação feita assim no que toca o deslocamento
de termos em Blanchot, após a época de O espaço literário, deveria abrir sobre um
outro questionamento : até um certo ponto, Blanchot procedeu assim, sem dúvida, a
uma suspensão ou a uma interrupção do registro mítico. Entretanto, para além da
interrupção, o que, talvez, sem dúvida mesmo, insiste e não pode senão insistir ? Essa
insistência se junta em Blanchot à do nome de « Deus », à qual será preciso retornar em
outro lugar.)
A vida subtraída ao sentido, o morrer da vida que faz a sua escrita – não apenas
a do escritor, mas a do leitor, e mais ainda, a daquele que não escreve nem lê, quer seja

283
Ibid., p. 100.
284
Ibid., p. 101.
285
Ibid., p. 99.
286
Nancy joga aqui com o equívoco “ pas” em francês, ao mesmo tempo partícula negativa, e “passo”,
jogo que remete à fórmula do próprio Blanchot, no título de seu ensaio Le Pas au-delà (1951), em que se
ouve, ao mesmo tempo, “O passo além” e “O não-além” (Le pas d’au-delà). Jogo este que traduz
precisamente o esquema da hesitação entre transcendência (o passo além), e a não transcendência (não
além), passo que, por assim dizer, fica no mesmo lugar, esquema da própria escrita e da relação com o
corpo morto, para Blanchot. (N.T.)
287
Id., « Ler », em O espaço literário , op.cit.., p. 196.
ele analfabeto quer ele tenha deixado todo o comércio com o saber, a escrita enfim
definida pelo « morrer de um livro em todos os livros 288» ao qual responde também
essa definição : « Escrever, ‘formar’ no informal um sentido ausente289 » - essa vida é a
vida de que foi retirado o sentido e que não ressuscita como vida, mas que ressuscita a
morte : ela subtrai a morte ao seu advento e ao seu acontecimento, ela subtrai ao
falecimento da mortalidade o morrer da imortalidade, por intermédio da qual eu
conheço incessantemente essa retirada radical do sentido, e portanto a própria verdade.
Eu a conheço, eu a compartilho, isto é, eu retiro minha morte, minha expiração, de
qualquer propriedade, de qualquer presença própria. Assim é de mim mesmo que eu me
desprendi, ao transformar « o fato da morte 290», de uma maneira dupla : a morte não
ocorrre mais como corte infringido a « mim », ela se torna a sorte comum e anônima
que ela não pode senão ser, e o corolário disso, a morte ressuscitada, ausentando-me de
mim mesmo e do sentido, expõe-me não somente à verdade, como, enfim, expõe eu
mesmo, a verdade– eu mesmo, a glória tenebrosa do verdadeiro em ato.
De uma maneira sutil, a vida de Blanchot, cuja íntima retirada terá permitido a
afirmação e a exposição de uma vida inteiramente outra, cuja ausência declarada terá
engajado a mais insistente presença pública de uma vida retirada na morte da existência
objetivada, e identificada na pessoa e na obra – esta vida de Blanchot, desta forma, não
ocultada, mas, ao contrário, a mais publicada de todas as vidas, consistiu em uma vida
ressuscitada em vida, pela própria publicação de sua morte sempre em obra. Sem
dúvida, há ambivalência nessa atitude. Mas a sua coerência e a sua tenência não deixam
de dar a pensar. No mínimo, é certo que Blanchot nunca se guiou por uma revivescência
nem por um milagre, mas soube compreender a sua vida como de antemão morta e
assim retornada em ressurreição (se podemos dizer aqui “compreender”; no mínimo
podemos dizer “tomar”).
Que não haja aí nem revivescência nem milagre é o que precisa o texto
intitulado “Lázaro, veni foras”, de O Espaço literário. Blanchot se aplica ali a descrever
a leitura como ato de acesso à obra “escondida, ausente talvez radicalmente,
dissimulada, em todo o caso, ofuscada pela evidência do livro291”. Ele identifica a
“decisão libertadora292” da leitura ao “Lázaro, veni foras” do Evangelho293. Essa
identificação abre de fato um deslocamento considerável, pelo qual não se trata mais de
fazer sair um morto do túmulo, mas de discernir a própria pedra do sepulcro como “a
presença”, cuja “opacidade” não se deve dissolver, mas reconhecer e afirmar, enquanto
verdade da transparência esperada, ou bem “a escuridão” (a de Tomás, mais uma vez),
enquanto “claridade” verdadeira. Ora a operação de ler, enquanto revelação, só pode ser
considerada como um “milagre” (palavra que Blanchot usa entre aspas, assinalando ao
mesmo tempo um modo ordinário de dizer – “milagre da leitura” – e a operacão do
Cristo sobre Lázaro), se compreendermos a sua revelação a bem da opacidade
pedregosa que pode nos esclarecer também “sobre o sentido de toda taumaturgia294”.
Blanchot faz ou escorrega essa observação de maneira incidental. Ela não faz mais no
entanto do que epor
toma distancia em claro
repele o queevangélico
o milagre o milagre quer
para dizer. “Taumaturgia”-
o terreno de uma cena esse termo
mágica ou
288
Id., L’Écriture du désastre [A escrita do desastre ]. Paris: Gallimard, 1980, p. 191.
289
Ibid., p. 71.
290
Id., O espaço literário, op. cit. , p. 194.
291
Id., « Ler», em O espaço literário , op. cit., p. 195.
292
Ibid.
293
No latim da Vulgata, “ Lazaro, veni foras ”, “Lázaro, vem para fora!”. Evangelho segundo S. João,
capítulo 11, 43. (N.T.)
294
Ibid.
maravilhosa (esta última palavra intervém algumas linhas adiante, ela também em um
uso ligeiramente depreciativo). Destaquemos, no entanto, para todos os fins úteis, que
ele declina o nome de Tomás, o qual, tratado às vezes como palavra e não como nome
nesse livro epônimo, talvez não cesse de remeter a uma “maravilha” mais maravilhosa,
pois menos brilhante, que todas as maravilhas dos Evangelhos ou bem... da literatura
maravilhosa. Resulta disso, em todo o caso, que “o sentido de todo” milagre é dado pelo
da leitura, a saber, por nenhuma operação que desafia uma natureza dada, mas por essa
“dança com um parceiro invisível” que caracteriza por fim a leitura “leve”, não sábia,
ou seja, também, como se precisa, não “penetrada de devoção e quase religiosa”295, a
única leitura que não enrijece o livro em objeto de “culto”, que pode mesmo ser
“inculta” e que assim abre-se para a retirada da obra. O sentido do milagre é de não dar
lugar a nenhum sentido que exceda ou desvie o sentido comum, mas somente à
supensão do sentido em um passo de dança.
Essa imagem em si pode nos incomodar. Ela tem algo de muito imediatamente
sedutor por não ser demasiado fácil. Mas com tudo isso ela não deixa de indicar, da
melhor maneira que pode, a relação entre leveza e gravidade, em torno da qual Blanchot
a esboça. Ele conclui, de fato: “[...] onde a ligeireza nos é dada, a gravidade não
falta296”. Essa gravidade que não falta, mas que permanece discreta, opõe-se à gravidade
do peso que fixa o pensamento sobre a coisa, sobre o ser, sobre a substância: assim
também, portanto, a esse pensamento fixado sobre a substância da morte e que pensa
torná-lo mais leve e se consolar dele pela taumaturgia de um retorno pesado à vida. A
gravidade dançante não faz entrechats diante do túmulo, ela experimenta a pedra como
leve, ela põe ou sente na pedra pesada o alívio infinito do sentido. Tal é a oposição entre
a morte ressuscitada e a ressurreição do morto.
A partir daí, assim como o diz um outro texto, tudo se passa “como se esta [a
morte] somente em nós pudesse purificar-se, interiorizar-se e aplicar à sua própria
realidade essa potência de metamorfose, esta força de invisibilidade, de que ela é a
profundidade de fonte297”. Somente em nós: o contexto permite precisar que se trata aqui
não somente de nós enquanto homens, mas de nós enquanto mortos. “Somente nós”, é
também nós em nossa solidão e em nossa desolação de mortos e de mortais, “nós, os
mais perecíveis de todos os seres 298”, como será dito mais adiante. Neste texto
consagrado a Rilke é ao poema e ao seu canto que se confia a gravidade leve da
ressurreição da morte. “A fala – está escrito – dá voz à intimidade da morte.” Isso se
passa “no momento da quebra”, no momento em que a palavra morre. O canto do cisne
terá sempre formado o baixo contínuo do texto de Blanchot. Isso significa duas coisas,
cuja reunião compõe o difícil, estranho, e obstinadamente fugaz, pensamento da
ressurreição.
De um lado, esse canto só canta ou esse passo só dança no momento de se
quebrar, na medida em que se quebra, e assim ele só pode remeter ao seu próprio morrer
o cuidado de sustentar a sua nota, de dançar o seu passo. É preciso portanto que seja
assim no correr da escrita, é preciso que em cada ponto se inscreva aí o que se excreve
dali299: que não há nada mais a dizer, nenhum indizível, nenhum retorno de uma outra
palavra de verdade além da cessação do falar. Mas não há mais folga para essa excrição,
295
Ibid., p. 198. [No srcinal em francês, e na tradução de Álvaro Cabral: “{...} penetrada de devoção,
quase religiosa {...}”. Parece que Nancy substituiu à vírgula a conjunção “e”. {N.T.}]
296
Ibid.
297
Id., « Rilke e a exigência da morte», em O espaço literário, op. cit. , p. 147.
298
Ibid.
299
Sobre a noção de “ excrire ”, “excription ”, ver a nota X supra. (N.T.)
e a poesia – sive philosophia – só é uma palavra vã até o momento de morrer assim.
Neste ponto, a dança ou o canto não perseguem nenhum arabesco e em um certo sentido
não figuram mais. O seu único contorno é o do endereçamento, um endereçamento
tendido e confiado àquilo, àquele ou àquela, que está fora de questão atingir. Assim o
escreve Lacoue Labarthe, a propósito de um outro texto de Blanchot: “[...] uma espécie
de confidência, ou – é a mesma coisa - de confissão. Esse texto é simplesmente
confiado, ele faz apelo a uma fé e a uma fidelidade300”. Em outro lugar será preciso
retornar a essa “fé” em que está presumido evidentemente tudo o que engaja a
“ressurreição”, ou, qualquer que seja o seu nome, a “poesia”, ou bem o aplainamento de
todos os nomes. Por ora, digamos simplesmente que de fato o morrer confia o que a
morte, de fato, esquiva e enterra sem apelo. O morrer é o apelo.
De outro lado, a ressurreição não é apenas emprestada ao léxico do milagre por
ser uma imagem cômoda ou provocadora. Ela se propõe também como uma reescrita da
Escritura Santa: uma santidade substraída à maravilha religiosa, mas subtraindo também
a esta própria maravilha um acesso não crédulo e sem piedade ao que não convém mais
denominar “a morte”- realidade de um irreal – mas “consentimento”, realidade de uma
correspondência com o próprio real do morrer. Essa palavra retorna várias vezes nos
textos aqui evocados e em outros de Blanchot. Mais tarde denominado, sem dúvida,
“paciência da passividade301”, com o qual ele tenta “respond[er] ao impossível e sobre o
impossível302”, o consentimento não se submete nem se resigna: ele outorga um sentido
ou um sentir. Ele concorda precisamente com o sentido e com o sentir do insensível e
do sentido em ausência. Não é nada senão a experiência infinitamente simples, e por
essa razão, indefinidamente renovada, indefinidamente reinscrevível em nós, de ser sem
essência e assim de morrer. A ressurreição – ou bem, digamos, em grego, a anastasis –
levanta o morrer como a pedra espessa e pesada do túmulo, como a estela em que se
inscreve parasempre
inscrevível, se apagar ali aoEssa
excrita. fimestela
o nome de uma diante
levantada identidade imprescritível,
do vazio, sem além ee não-
sem
consolação, conforta de toda a sua massa uma desolação já levada para muito longe dela
mesma e da deploração. Uma leveza infinitesinal, discreta e insistente, que faz o
consentir desse consentimento ao insensível. Que o faz ou que o escreve, se escrever é o
nome, inconsistente como qualquer outro, mas inevitável – tanto quanto “poesia”,
quanto “santidade”- da recusa de qualquer crença em uma consistência estranha ao
mundo. O consentimento da ressurreição consente, antes de mais nada, a recusa da
crença, da mesma maneira como a fé recusa e foraclui303 essa mesma crença. Mas na
realidade, a crença nunca é crível, e sempre em nós alguma coisa ou alguém obscuro
soube disso por nós. Sempre esse pressentimento do absolutamente incrível, desafiando
sem apelo a toda credulidade, confiando-se em si mesmo, absolutamente, dispôs para
nós a via sem saída do consentimento.
Se o consentimento, ou a ressurreição – a “surreição” que levanta a morte na
morte como uma morte viva – sustenta-se na escrita, ou na literatura, isso significa que
a literatura suporta a cessação ou a dissipação do sentido. “Literatura”, aqui, não quer
300
Philippe Lacoue-Labarthe. Agonie terminée, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot seguido de
L’émoi. Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 2011, p. 149. É Philippe Lacoue-Labarthe quem
sublinha.
301
M. Blanchot. L’Écriture du désastre , op. cit., p. 35.
302
Ibid., p. 37.
303
Nancy utiliza-se aqui do termo técnico cunhado por Jacques Lacan, “ foraclusion ”, traduzido em
português por “foraclusão”, para designar o recalque específico da psicose, enquanto que o recalque é
associado à neurose. (Jacques Lacan. O Seminário: Livro V. As formações do inconsciente . Rio de
Janeiro: ed. Zahar, 1998.)
dizer “gênero literário”, mas toda espécie de dizer, de grito, de prece, de riso ou de
soluço que sustenta – como se sustenta uma nota, um acorde – essa infinita suspensão
de sentido. Compreendemos, essa tenência pertence à ética mais que à estética – mas no
fim das contas, ela desmonta e desfaz também essas categorias. Poder-se-ia dizê-lo
ainda de outro modo: na medida em que essas categorias pertencem à filosofia, elas nos
assinalam também que a onto-teologia filosófica pratica o embalsamento, a
metempsicose, ou bem a escapada da alma – mas nunca a ressurreição. As práticas
metafísicas designam sempre assim um a-diante, o futuro de um renascimento, uma
maneira de possível e de potência, enquanto a literatura só escreve o presente do que
sempre já nos aconteceu, ou seja, o impossível no qual o nosso ser consiste em
desaparecer.

Tradução: João Camillo Penna


6. O neutro, a neutralização do neutro

O motivo do neutro ocupa sem dúvida nenhuma um lugar determinante no


pensamento de Blanchot. Não é um exagero considerar que tudo nesse pensamento se
reporta ao “neutro”, como ao seu ponto de condensação, de incandescência e de fuga, ao
mesmo tempo.
É preciso, com Blanchot, partir da escrita: da literatura na medida em que ela
forma o jogo sempre relançado e o repisamento da “exigência de escrever304”. Esta
exigência quer que seja repetido o que não teve lugar305, ou seja, que o não-lugar ou a
não-presença de toda srcem, substância, sujeito, seja afirmado da única maneira
possível: em uma “afirmação nômade306”. Este último termo não deve somente ser
compreendido como o deslocamento perpétuo da afirmação, que não viria nunca se
sedentarizar em uma presença suposta “plena”, ou “viva”, e sim, bem mais (é pelo
menos a glosa que me parece necessário introduzir), como o regime da própria
afirmação (literária, escritural): ela firma em modo nômade, ou seja, ela afirma sem (se)
pôr a si mesma em sua afirmação – ou, se se prefirir, no afirmado da afirmação – como
se ela selasse nisso a verdade em um sentido adquirido. A afirmação nômade afirma que
o que ela afirma não tem nem forma, nem a natureza do “adquirido”, do “estabelecido”,
nem do “fundador”.
Em suma, a afirmação nômade é aquela para a qual não pode existir nenhum
acabamento de sentido; é toda a afirmação que subentende sempre essa outra afirmação:
“Deus está morto”, ou seja, “Deus” é “uma palavra a mais” 307, uma palavra deslocada
do estatuto de palavra, de significante, uma palavra perdida por e para a linguagem.
Uma palavra perdida, por outra, “sem que uma outra se anuncie aí: lapso absoluto308”.
Nessa medida, a preocupação maior de Blanchot é de fazer face sem concessão e
sem evitamento à necessidade de reconhecer que pode haver “uma palavra a mais” – e
várias versões, várias figuras, ou vários nomes da “palavra a mais”: ou seja, que é
preciso certificar uma clausura da significação. Que a nomeemos Deus, Homem,
História, uma ideia reguladora do Sentido, diremos demais, diremos o que precisamente
não deve ser dito – mas escrito no sentido que ele dá a esta palavra.

304
Maurice Blanchot. Le Pas au-delà. Paris: Gallimard, 1973, p. 48.
305
Ibid., p. 49.
306
Ibid. É Maurice Blanchot quem sublinha.
307
“Un mot de trop ”. Ibid. , p. 85. É Maurice Blanchot quem sublinha. [A expressão corrente em francês
significa “uma pala vra em demasia”, “em excesso”, a palavr a que não poderia ser dita, ao preço de uma
desteabilização qualquer. {N.T.}]
308
Ibid.
A exigência de Blanchot é essencialmente esta: fazer justiça sem reservas ao
além do sentido, este além que não é precisamente passo (não) além309, que é a
passagem aqui e agora, a cada instante, em cada lugar, em direção ao não-lugar ou ao
fora-do-lugar [hors-lieu] (passagem que ele denomina também “o morrer”, mas que nem
precisa dessa imagem para fazer compreender que se trata, muito simplesmente, da
condição mortal, ou seja, singular, ou seja, exposta por sua finitude à infinitude de sua
singularidade que não pode ser reabsorvida por nada).
A escrita se consagra ao contorno interminável dessa passagem que não passa.
Mas que passa sem passar. Que passa senãoa ( menos ainda até a), no mínimo, em

direção
nos ao Nesse
chega. não- e sentido,
fora-do-lugar, desse
a escrita “fora”à exigência
obedece ao qual não se trata
ética de “chegar”
fundamental: não–mentir
mas que
sobre esse “chegar”310.
O problema da morte de Deus – ou do “niilismo” – é assim perfeitamente
captado: nenhuma palavra a mais, mas o movimento que mantém a abertura além das
palavras.
O neutro é o nome dado ao que imanta esse movimento: ele qualifica a sua
destinação como sendo ne uter, “nem um nem outro311” – e mais exatamente, como
Blanchot o precisa em seguida: “Nem nem outro, nada de mais preciso.” Ou seja: nem o
que quer que seja, nem qualquer “um” que seja, nem o outro, nem um outro além do
primeiro, qualquer que seja ele. Blanchot insiste nisso na análise que enceta então (e que
não seguiremos no detalhe aqui): mais do que a deposição do “um”, é o deslocamento
do “outro”, que forma o efeito do neutro. Não podendo ser o outro do um, como, por
exemplo, o negativo de um positivo, o outro não pode tampouco ser “um “outro, muito
menos “o Outro”. O neutro faz valer “o outro do outro, o não-conhecido do outro312”.
Ora, essa alteridade do outro que o afasta – afastando com ele todo “um”, que ele
seja mesmo ou outro – afasta também o não-lugar de toda possibilidade de localização,
mesmo que negativa. O não-lugar ou o fora-do-lugar em direção ao qual se move a
exigência de escrever não é nada, nenhum lugar em direção ao qual se poderia fazer
movimento.
Se é portanto legítimo dizer que “escrever” significa abordar313 sem descanso o
limite da palavra, este limite que só a palavra designa e cuja designação nos ilimita, a
nós, falantes, que somos assim abertos para além de nós mesmos e do sentido, não é
menos necessário – estritamente necessário – lembrar, ao mesmo tempo, que nenhuma
“abordagem” tem sentido se a proximidade com o além não for proximidade do
absolutamente longínquo. “O próximo promete o que ele não segurará jamais. Louvor à
aproximação do que escapa: a morte próxima, o longínquo da morte próxima314”.

309
Nancy remete aqui à expressão equívoca, lapidar, cunhada por Blanchot, que dá título ao livro em
pauta, “ pas au-delà”, ao mesmo tempo “passo-além”, e “não-além” ( pas d’au-delà), em que o equívoco se
situa na palavra “ pas” em francês, ao mesmo tempo, passo e partícula negativa . A expressão “passo (não)
além” tenta restituir algo dessa equivocidade. (N.T.)
310
“Arriver ” tem sentido equívoco, ao mesmo tempo “chegar” e “acontecer”. Nancy joga aqui com os
dois sentidos: chegar ao (não) além e acontecer o (não) além. (N.T.)
311
Ibid., p. 104.
312
Ibid., p.105.
313
“Approcher”. O trecho insiste nas noções cognatas de “ approcher ”, “approche ”, “proximité ”,
“prochain ”, “prochaine”. Optei por não unificar a tradução, utilizando seja “abordar”, “abordagem” ou
“aproximação”, “aproximar”, “próximo”, segundo o contexto. (N.T.)
314
Ibid., p. 99.
Assim, o neutro não pode rigorosamente ser abordado, ou bem ele só pode sê-lo
sob a condição de um afastamento infinito inscrito na própria aproximação. É
precisamente por essa razão, à exemplo de “Deus315”, que o neutro é uma palavra a
mais. “O neutro: esta palavra a mais que se subtrai [...]316”. Ele se subtrai à linguagem,
ele “quase não fala317”, ele é “o nome sem nome318”.

descrita:Ninguém melhor
se o neutro do que
é o nome semBlanchot soubeportanto
nome, como a extrema
eledificuldade da situação
pode ser nomeado? assim
E no
entanto ele o é, ele deve sê-lo, já que não é possível renunciar à se aproximar –
distanciando-se na medida – do limite onde somos abertos, expostos. Tanto ele deve ser
que Blanchot o escreve às vezes com uma maiúscula, por exemplo, nesta frase: “O
Neutro não tem os títulos mitológicos antigos que toda a noite traz com ela319.”
Esta frase significa que a noite, toda noite, depõe seus títulos mitológicos, sendo
ela mesma – ela que é ou que faz a abertura – aberta pelo neutro, e assim, de uma certa
maneira, neutralizada como potência noturna (por exemplo, como o “horrível sol negro
de onde raia a noite” de Victor Hugo320). O neutro dissipa as potências míticas, ou seja,
aquelas que eram capazes de assegurar uma proximidade do longinquo.
Mas a dificuldade se endurece quando ponderamos sobre a potência apesar de
tudo suposta por essa dissipação. Enquanto “o Neutro” ou “o neutro” funcionar em um
discurso que lhe dê os seus predicados e que o descreva, é de se suspeitar um recurso
secreto a uma potência sobrenominal. O que ocorre, por exemplo, quando o neutro
autoriza de alguma forma uma “experiência” daquilo mesmo de que a aproximação é o
afastamento? Blanchot escreve: “[...] a escrita é corte para com o pensamento quando
este se dá como proximidade imediata, e corte com toda experiência empírica do
mundo. Nesse sentido, escrever é também ruptura com toda consciência presente,
estando sempre de antemão engajado na experiência do não-manifesto ou do
desconhecido (ouvido em neutro [au neutre])321.”
Como escrever se “engaja” nessa experiência não-empírica – ou seja, nessa
experiência que, segundo toda a tradição filosófica, é experiência ligada a uma
necessidade transcendental (ou seja, que pertence a um sujeito puro) ou trancendente
(experiência do além em si)? Ele só pode ser “engajado” de uma maneira que o
desprenda ao mesmo tempo de toda constituição transcendental ou transcendente da
experiência que ele faz ou que ele é.

315
Et d’autres mots : « peur », « folie » : ibid. , p. 85.
316
317
Id., L’Entretien infini. Paris: Gallimard, 1969, p. 458. Os itálicos estão no texto.
Id., Le Pas au-delà, op. cit. , p. 105.
318
Ibid., p. 162.
319
Ibid., p. 104. Observa-se nestas páginas uma alternância constante entre “Neutro” e “neutro”, que não
se deixa inteiramente explicar pela hipótese segundo a qual o segundo teria o valor gramatical corrente.
320
“Affreux soleil noir d’où rayonne la nuit », verso de “Ce que dit la bouche d’ombre” [“O que diz a
boca de sombra”], da coletânea “Les contemplations” [“As contemplações”] (1830-1855), de Victor
Hugo. (N.T.)
321
Id., L’Entretien infini, op. cit., p. 391. É Maurice Blanchot quem sublinha. (A rigor, deveríamos
considerar as datas respectivas dos textos convocados, e apreciar os deslocamentos e modificações do
pensamento de Blanchot; mas não é aqui o propósito.)
Então o recurso à instrumentação conceitual que subtende o emprego da palavra
“empírico” deve ser afastado, assim como deve o recurso à denominação – ela também
precisamente transcendental ou transcendente – de qualquer “nome a mais” como “o
neutro”. Nem condição a priori de um sujeito, nem instância divina, “o neutro” se
obriga a se apagar do discurso que se tem dele e sobre ele. Ele se obriga literalmente a
isso.
Não é aliás o que faz já, na frase citada há pouco, o emprego de “neutro” em
modo adverbial? “Em neutro” desloca a denominação do neutro. O neutro se encontra
ali neutralizado.

Essa fórmula não é de Blanchot, e ele próprio teria suspeitado nela o risco de
uma contorsão dialética. De fato, ele próprio escreve que “O Neutro [...] neutraliza, (se)
neutraliza, assim evoca (não faz senão evocar) o movimento da Aufhebung [...]322”. Se
ele não faz mais do que evocar a negação hegeliana da negação, e com ela a potência do
negativo, é precisamente porque não se neutraliza a si mesmo ou somente parece fazê-lo
(o que é indicado pelo parêntese em torno do “se”). O negativo hegeliano se nega a si
mesmo: ele tem já em si a potência de se efetuar. É exatamente essa potência que
Blanchot nega ao neutro. Ele só pode fazê-lo, no entanto, assinalando de passagem uma
perturbadora proximidade com a Aufhebung e portanto com a potência mesma de se
sustentar fora de si mesmo.
O que inscreve na verdade a impossibilidade de se deter nessa proximidade? O
que dá conta do fato de que “o neutro” não se sustenta no, nem como “fora”, nem como
a “noite”, de que ele designa a inapropriabilidade de fundo?
Neste ponto é possível caminhar com Blanchot ainda um pouco mais longe, ou
um pouco afastado do que ele próprio enuncia (sem com isso pretender ter destrinchado
a meada tão complexa e cerrada de seu pensamento).
Blanchot não para, de fato, de designar o que dá conta (se podemos dizer assim)
da neutralização (não autárquica) do neutro. Em outras palavras, o que se encarrega do
“passo (não) além”: é a escrita, é a literatura. Ora, a literatura, precisamente, não nomeia
“o Neutro”, nem tampouco “Deus”, nem “a loucura”, ou qualquer palavra a mais que
quisermos. A literatura não se serve de nenhuma palavra a mais: ela consiste ao
contrário em mobilizar todas as palavras, todos os seus recursos, de seus “títulos
mitológicos” até as suas insignificâncias, na convicção assumida de que não pode haver
palavras demais, nem nenhuma palavra a mais323.
É por isso que ela, a ficção, conta, recita e ficciona; a ficção – que podemos
ouvir em um sentido bastante amplo de forma a abraçar a poesia, a recitação com o
relato, e até...a música do recitativo – talvez compreendida como a única neutralização
efetiva de todo “um/outro”, de toda presença/ausência representada como dada, estável,
substancial e aproximável. A ficção literária consiste precisamente em afastar a verdade
que se supõe constituída, ou constituível, e por esse afastamento, a se “engajar”, com
efeito, na “experiência” de “nem um nem outro” – nem, nem, nenhuma palavra, mas o
infinito que precede e que sucede incansavelmente a todos os nomes.

Tradução: João Camillo Penna

322
Id., Le Pas au-delà, op. cit ., p. 105.
323
Em português e perde um pouco o jogo de palavras de Nancy: “il ne peut y avoir trop de mots, ni aucun
mot de trop”. (N.T.)
IV. Parodos (nota por vir: textos escritos ao lado
da...poesia)
1. PSYKHÉ

Psyche ist ausgedehnt, weiss nichts davon. É uma nota póstuma de Freud. A
psique é extensão [étendue], não sabe nada disso. Tudo termina, pois, por essa
breve melodia:

Psyche ist ausgedehnt, weiss nichts davon.

Psique é extensão, partes extra partes, é apenas dispersão de locais


indefinidamente despedaçados em lugares que se dividem e nunca se penetram.
Nenhum encaixe, nenhum encavalamento, tudo está no lado de fora de um outro
fora – cada um pode lhe calcular a ordem e lhe dar as relações. Psique só não
sabe nada disso: absolutamente nenhuma relação para ela entre esses lugares,
esses locais, esses pedaços de plano.

Psique é extensão à sombra de uma nogueira, enquanto o dia declina. Ela


repousa; os movimentos
Eros a contempla, levescom
bem junto do perturbação
sono descobriram metade
e malícia. de não
Psique sua sabe
garganta.
nada
disso. Seu sono é tão profundo que lhe furtou até o abandono de sua pose.

Psique é extensão em seu caixão. Logo vão fechá-lo. Entre os que estão
presentes, alguns escondem o rosto, outros mantêm os olhos desesperadamente
fixos sobre o corpo de Psique. Ela não sabe nada disso – e é isso que todos
sabem ao redor dela, de um saber tão exato e tão cruel.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla
2. A JOVEM CARPA

A Philippe Lacoue Labarthe


Sempre propenso
ao discurso alexandrino,
para o qual a sua prosa é por demais primitiva,
fiz este arabesco
que dedico a você.

Nota liminar

De certo modo, gostaria que esta nota não fosse lida. Temo que poder-se-ia ver nela seja
um modo de usar, seja uma teoria, seja uma justificativa para o texto que a segue. Além desse
temor, é verossímil que me repugne a ideia de propor este texto, de qualquer maneira. É um
caso, talvez, de amor e ódio. No entanto, não é possível deixá-lo propor-se por si mesmo, como
se ele se explicasse por si só. Digamos , então, brevemente, o seguin te:

Este texto deriva (emprego esta palavra de propósito, já que o movimento não foi totalmente
deliberado) do projeto de escrever um estudo sobre La Jeune Parque [A Jovem Parca ], de
Valéry. Esse poema já foi comentado por Alain. Isso não impediria uma recidiva, mas seria
necessário levar em conta uma outra circunstância: o próprioValéry comentou o comentário de
Alain, em sua fábula Le Philosophe et la Jeune Parque [O Filósofo e a Jovem Parca ]. Não é
estranho que o poeta tenha escrito – não sem ironia – o comentário de seu próprio poema e o
tenha feito no estilo de uma instrução acerca da lição filosófica da própria poesia. Toda a sua
poética é uma didática, uma didática da poesia enquanto esta, por sua vez, forma uma didática
do pensamento (releia-se, para ser rápido , L’Amateur de poèmes [ O amante de poemas ]). – Isso
deveria ser comentado, ou (então) versificad o? O que é um poema didáti co?

Mas também, ato contínuo: o que é a paródia? Não é um pastiche. E se a paródia não
passasse tampouco de uma imitação debochada ou do travesti burlesco de um gênero nobre? Se
ela fosse apenas isso? (E isso, o que é exatamente?) Se ela fosse ao mesmo tempo – para-ôdè –
o momento decalado do canto, o momento de um acesso ao poema (acesso da poesia, crise de
verso) que
Marcar não de
o passo acede a eleum(por
poesia: recusaparódico
Blanchot ou por incapacidade),
nos teria ditadoe essas marca o passo na soleira.
que palavras.

Mas ainda: e no caso da rivalidade do discurso com o poema e do filósofo com o poeta
(o caso em primeiro lugar de Valéry)? De que forma esta rivalidade poderia ao mesmo tempo
consistir em concorrência , asssalto ou encontro? A paródia encena facilmente a concorrência –
mas o que é uma concorrência paródica?
Mas enfim: não seria importante pensar que a paródia já opera em Valéry? Toda a sua
empresa de poeta (ou também a de Monsieur Teste ) não se definiria a partir disso? Neste caso,
teríamos aqui não uma paródia da paródia, mas a repetição de um passo marcado , um bater o pé
de poesia. Como se por força o solo fosse deformado ou reformado com isso. Não se teria aqui
ao menos uma convicção: de que a poesia não é a potência infinita de uma linguagem (um dos
episódios mais curiosos da modernidade é ter reativado essa tese romântica), mas obedece às leis
da finitude do discurso (paródia, questão de clausura, diria o meu vizinho lírico), e que o
concurso dos dois se acha, talvez, singularmente deslocado?

O que se segue foi, sem dúvida, escrito para deixar todas essas questões, por algum
tempo – e em algum lugar – em suspenso.

O número de versos, o metro e o agenciamento, a escolha das rimas a cada mudança de


página são exatamente as de La Jeune Parque (na edição de 1942). Em compensação, não é o
que geralmente ocorre com a prosódia, que mistura alguns outros modelos: se não fosse assim, o
gênero seria o do pastiche. Para o resto, «o silêncio é a fonte estranha dos poemas», como está
escrito em Le Philosophe et la Jeune Parque , ou, melhor ainda, nos Cahiers [Cadernos ]: «o
leitor encontrará aí um sentido».

Fevereiro de 1979
Ouço e confronto em meu espírito pensativo
O que fala àquele que murmura.
Victor Hugo, «Paroles sur la dune»

Quem recita o canto mais simples, quem o imita


No descuido de se dissipar?... Quem recita
Sem riso em sorriso no instante de citar?

Nenhuma oferta capaz de ressuscitar,


Mais tarde, junto a nós, o fervor do poema.
As guerras lançaram-no ao pálido emblema
E nossa gente anseia um tempo de vitórias,
Bocas rasgadas por litanias inglórias,
Gritos, fúrias, ofensas, sons sem cadência,
Tristes febres vociferadas na estridência...
E , em alvoroço, nós choramos nossos ais
Cantando ironias de encantos glaciais,
Nós te partilharemos, poeta cantor;
Que o adeus silente ecoa, repetidor,
E milhões de rumores úmidos de imagens
Povoam as ilhas nuas dessas paragens...
Um século de trégua à nossa vaidade.
Quem, portanto, nos levará à eternidade
Dos álbuns antigos presos nessa brochura,
Alvo tecido de perfeita dobradura?...
…Ah, unha sob a folha, e cifra absoluta
Que se sucede à página resoluta,
À cerimônia de sonho de um leitor
Sacrificando a imensa falta do autor,
Ao metro puro onde o pensamento se pensa.
A esse rito, abolição; ou fúria intensa.
Sem nome? Não, nós mesmos, anônimos, nós
Que jamais beijaremos o branco sem voz
De algum ídolo, nós, as pálpebras confusas,
Céticas a contemplar o brilho das musas
Civilizadas por nosso saber mortal;
Orna o ser com prosa o teu altar ancestral,
Ritos vãos, e cantos de bíblia sagrada,
Bêbada de sagas, ausência estragada
Sob uma tinta que constela um céu sem graça
Fermenta no odor desse romance que passa

Preenche os discursos a falta de ordenação.


Que Parca nos condenou a essa torção?
Um fio vai tecendo o poema ideal,
Ideia pura num alvo tecido astral.

Que Destino, apavorando a fiandeira


Em seu gesto suspenso de mão rezadeira,
O fuso caindo à terra, e a voz mais calma...
Quem enovelou essa cantilena da alma
Tão pura e presa à sua própria sina?
Reflete sobre si a centelha divina,
Alma em corpo formado por fragmentos de aço...

Transparência! tu te cessas no fracasso,


Silêncio que destrói o arco da saliva.
Assim, há pouco, ao som da estrofe alusiva,
Ciência sonhando início e fim,
Envolta em cálculos, cifras claras, enfim;
Código, frequência e amplitude tal
Desse discurso cego que desnuda o mal.
O Homem, pactário, a ele tem honrado
E ao tumulto imenso jamais renunciado.
Surge, loucamente, nos espaços vazios
O teu saber fechando-se em punhos bravios,
Pela articulação violenta de um grito
Caem por terra os flancos do animal proscrito
... E essa calma, suave, e indolente língua
Toda ela, grata, livra a palavra à míngua.
Obra exigente! monumento impaciente
Onde a estrela vira estrela de repente,
Momento contínuo de infinito glifo,
Grave, fértil e feroz instrumento, um grifo
Tirado da carne do fiel mutilado;
Pões a sigla num sacerdote iniciado.

O instante mortal nessa garganta profunda


Do ser de quem a boca engole o mundo, imunda.
Por quem te faz queimar num rio de perfume,
Musas, a madeira desses templos sem lume
Que segue, assim, numa palpitação de brasas
No odor impalpável e forte toma asas.
Olor!... coluna de ar em pedestal obscuro,
Indelével emoção de um impulso puro
Que vibra no sopro alto de tua funda…
O solo treme onde um vapor se eleva... inunda.
Nenhuma forma, nenhum reflexo, nem cor,
O infinito não se mostra revelador;
Disseminada... Toda presença termina
Numa efusão onde fecunda-se a narina,
Traço essencial, puro vestígio santo,
E o vento refina-se num gozo de espanto.
A cada palavra, permitir-se perder,
O aroma da ideia se faz rescender
Sublime, confiável no seu próprio olhar
Que um sol frio consagra, feroz, a matar,
Em sua chama, luminosa porcaria,
Perfeito esquecimento, pleno em teoria.
Mas esse olho valente não sente a ascensão;
No instável ar, somente, somente escansão,
Um cheiro novo sopra uma insolência nova,
A inspiração serena e doce de uma prova,
Mais para não ser o fim de uma coleção
Que o vão encantamento dessa presunção.
Assim celebras a tua srcem prudente
Nessa respiração furtiva de luz quente,
No ritmo de seu seio, graça de sentir
Um véu perfumado de coisas a vestir.

Esse SILÊNCIO leva a minh’alma num sonho…


E que SILÊNCIO, sopro de um corpo medonho!
Melhor que perfume, ondulação da vontade,
Abisma-se, assim, clarão de sensualidade?
Oh, Parca!... esse teu cheiro íntimo cativa
Sentindo ao teu redor a aparência furtiva
Do Homem, ser esculpido através de teus dedos
Com talo de cânhamo, fonte de segredos,
Fina fibra frágil, e corda tão instável.
Tua graça lhe propõe negócio agradável
Voltada para si, avara de se olhar
Gozar de si para si, e sempre em si gozar
Do seu vigor é testemunha a força, alento
Amante de sua emoção!... breu violento
Pelo Uno, grita para todos os iguais:
«Nem povo, nem comércio! as peças tais
De minha honra são feitas à minha imagem,
Obscura procissão de infinita contagem
Que me resume, e me acompanha, e reproduz,
Muda, em minha voz, esse apelo que a seduz.
Na sociedade dessa insignificância
Busco abolir-me em minha própria arrogância.
A lâmina de carne me espedaça, virgem,
Por sobre os meus altares... bagunça, vertigem
Do sacrifício à alma de quem morrerá,
Quem se prepara, se pinta, e se abismará
Em seu sangue... e no meu, observador obsceno;
Fiz correr o sangue puro nesse além pleno,
Pois muito me agrada misturar a essa chama
Esse deserto eterno e confim que me ama,
Defloramento com aroma da manhã
Onde choro a lembrança boa dessa irmã.
À linhagem nobre de minha estirpe aviso:
Dou a ti meu nome! Incestuoso Narciso,
Preciso esquecer essas florações de argila
De onde a seiva meu sonho de abelha destila
Nenhum mel, riqueza que não se leve embora
Da aliança do sangue sobra o lado de fora,
Essa casca intacta de um arrependimento;
A minha mão se une a mim nesse momento,
Oferenda sem música acompanha a calma,
Minha razão balança o balanço da palma,
Infinito que dança, lenta criação
De meu espanto é o saber da adoração;
Coisa pura do pensamento! eu te adivinho,
Incertezas do Signo à margem do caminho…»
... Aquela iminência brincou doravante
A tua festa, poema...
O anjo tremeu bastante
Cada palavra certa se alinha na margem
Que faz ecoar noutra similar miragem,
Sósia, duplo rival, eco lancinante
Que dá dinheiro ao aedo ambulante,
Esmola de ouro à festa da língua ofertada
E, com muito estilo, assim é enfeitada;
A orgia que a come viva e a vomita
Por tua garganta alterada, leitor!... grita
E regurgita o dom dessa comida pura,
Fruto da boca.... bruta... choque da escrita,
Lábios enfeitados com riscos musicais,
Traços de mistério, presságios vocais...
Todo o tímpano se enche e se agita e oscila
Ao ritmo bom que o peito atravessa e o asila
Numa das ilhas incertas do prazer... vejo
Crescer em ti, pelo cantor, mesmo desejo.
Vou espalhar-me em tuas pálpebras fechadas,
Enxame de sílabas certas das paradas
Nas quais as palavras, num oi, se reconhecem;
Emparelhadas, pois, elas voam, se esquecem...
Verbo faz-se carne no instante em que se imita
Na repetição fácil da rima que irrita,
Quando fazemos à sombra representada
Promessas estranhas de anunciar o nada.
Memória insaciada da queda de Tróia!

Piedade pela prenda de guerra, jóia


Que some, assim, ao vento puro, grega graça
Do dom de dizer, esse desejo que passa
E olha com raiva a presa, palavra despida
Na velhice fugaz do símbolo nascida;
Numa terrível, terna vociferação,
Eu cedo a garganta à luz de tua paixão
Deusa amada há tanto tempo, sopro sombrio
Que sobe do chão com sombras por atavio
É desse vapor sutil para o céu alado,
Relâmpago escuro de meu clamor gelado
Qual monstro, bicho saído da minha boca
No ofuscamento da geada que lhe toca
Na rara respiração dessa quintessência
Evaporando-se, assim, rumo à transparência,
É mais sonora, Helena, a fama de teu pejo?
Murmura ao ouvido, ao pé do meu desejo;
Eu me escuto... Epopeia do retornar
Múltiplo de brisa, astúcias do viajar.
Na língua dos deuses que o eterno clareia
Destrói pegadas em seu destino de areia.
Nada além de um canto... o impalpável peã
Assim batendo o tambor até de manhã;
E meus pulmões, há muito contando fraqueza,
Sopram ainda mais; forçam minha surpresa
A dançar! perseguir no meu corpo exilado
Movimentos de volta a meus mortos passados
... pois vos deixo, enfim, poetas protetores
Pasto de larvas, túmulos reveladores

Que voto vai se formar desses céus astrais?


Nem mesmo o agradável teatro dará mais
O óbolo murmurante das pombas quietas
Em vossas bocas e tumbas de ouro repletas
E eu, esquecimento da vida de outrora,
Perdido na desordem, confusão da aurora.
«Morra depois de ti aquele que te observa,
Oculto no além, exemplo que te conserva!»

Profetiza a voz que é mais surda que a minha


Mais insinuante, porém, de mim vizinha,
Na dobra da língua escrava, serpente fina
Dispõe-se a sua, sem cessar, a essa sina.
E a meu desastre... e quem reflete esse prazer?
Meu coração, é certo, em mim quer se perder
No abismo imenso de uma ausência bestial...

Amo a língua de cobra, e não a trivial


Tocada pela tua. Vá! Siga adiante,
Tira de minha boca o feixe tremulante
De cestos venenosos na pele de fel;
Abre na minha gengiva a chaga cruel
Que suja o teu veneno incandescente e lento,
Une meu respiro ao teu sopro pestilento,
Devasta em minha carne as mais secretas fontes
Do eterno lamento humano e sem horizontes;
Falo dessa que falo assim, a toda hora,
Como o verde-azul profundo que o sol ignora
Cego e sobre a língua um bloco de lava fria,
Transformo em pedra as ondas de quinquilharia;
O batimento das vagas, cheias de bichos,
Lançará nas sombras palavras e caprichos
Como um polvo soltando nas águas tintura,
Enorme e lendário... sopro da Escrita.
Na tempestade, os arquipélagos queimados
Descem aos abismos os sonhos naufragados.
No duro coral no qual seus corpos se enlaçam
Dissipa-se a esperança e flancos se espedaçam
Com ligeireza, num rasto de sangue quente
Destaca-se, assim, o nadador impotente
Ensurdecendo os ais do oceano soberbo,
Clamor de espuma... milhões de lascas do verbo...
Eu desfiz, então, essa ordem entre a gente,
Essa palavra?
De joelhos, penitente
Que assim me implora, a toda hora, lealdade;
Vapor sutil, estrofe fiel, falsidade,
Salmo preso na falha da minha garganta,
Tão breve e tão leve que um suspiro o levanta
Cinzas, ausência de chama, a fina Frase!
A boca atraída pela tira de Gaze,
Eu te abençôo, beijo o ar que respirares
A grama pisada dos caminhos que andares;
Cheiro lentamente sua doce aflição,
Tua fuga me inspira essa forte audição
Onde o silêncio negro se faz ouvir
Notando a iminência inquieta do devir:

Fala!... mantenha, porém, a boca fechada!

Frase úmida, da natureza brotada,


Eclode com o dia, duas maravilhas;
Do humor estéril da noite te desvencilhas.
És nascimento imenso no qual estou dentro.
Uterino, maternal… obscuro em meu centro,
Onde reina a cisão impossível… redijo
Que me botas no mundo gritos, regozijo,
Uivos de exílio do fundo da lembrança...
Berro de mil animais, choro de criança!
Velha harmonia surda... os acordes distantes,
Agudos, estridentes remorsos de amantes...
Sim, estertores frios!... música de eclipse...
Murmúrios, queimaduras do apocalipse...
Eu te suplico!... renuncio à minha voz,
Desposo a tua, dura comoção atroz
De uma breve agonia que foi meu começo,
Como um velho terror virado pelo avesso,
Reviva em ti a febre do ser, o cuidado;
Barqueiro de rios incertos... obrigado
Pelos soluços de espanto da minha infância,
Por essa tristeza em ti que agrada e dá ânsia!

Que agitação na língua… Oh, ruído bruto!

Um choque afaga o vazio, e me oferta o fruto,


Címbalo de carne. Eis o derradeiro pouso
Longe do obscuro sacrifício do gozo.
Os grandes lábios sugaram a água quente
Que envolve meu corpo nu, corpo pertencente
À chama viva do ar que o vem aquecer...
Breve sopro de vento deflora o meu ser
E ele, imutável aos pequenos sofrimentos
Que ferem a alma frágil, seus raros fragmentos
Esparsos no clarão distante de uma aurora...
Imersos na sombra enorme a forma sonora,
Cante a mim, oh dia, o versículo primeiro
Que fura em tua voz meu coração inteiro.

Por um rir difícil, a gritaria impura,


Suspiro de éter... Na língua uma mistura
Áspera de vozes quebradas, de grunhidos,
De bárbaras dicções, de chamados garridos,
Me leva para além de mim a mesma boca,
A mesma que, um dia, ao pé da cama oca,
Teceu longo tecido em enorme mudez;
O Sono! que sofrimento vivaz se fez
A suscitar severos jogos de teu sonho,
E essa ampla lição que o discurso tristonho
Ensina a cada noite o imóvel pavor
Do ser que desperta no momento do horror...
Ouso, nesse cerne intacto que me profere
Abrir-me a mim, por fim, e que o desejo altere
Essa vontade de esposar a invocação!

Prece abandonada na suplicação,


A carne fraca se cala... e a dor me forma...

Ninguém aqui... nenhum monstro que não deforma


O sonho do absurdo eterno do esquecimento.
E esse grito solo parte o ondeamento
Virgem e sangrento da garganta estrangeira
Essa suave laringe de alma ligeira...
Sim! E na pele morta de um triste contorno
Não existe ruído nesse dia morno
Para fazer o lento movimento de algo
Sem nome, coisa de quem escuto e galgo
O alto horror vindo do espectro da minha voz...
Imprudente em meu vagar, me entrevejo a sós;
Diz assim o eco que penha alguma oculta;

Nada te antecede, sossego que sepulta!...


Nada além do pavor, e do duro castigo...

Língua, a tua, a minha, a boca, falem comigo!


Um monumento calmo em ti o qual se adora,
Batuque longo e vão, som que me leva embora
A toda poderosa...
Falha. Mas o pescoço
Resiste... e não vai se saciar em teu poço,
Não se mistura o ácido humor da saliva
Ao mênstruo que dilui a espera alusiva
Há em mim um mudo pensamento, vapor,
Alga ignóbil e verde que consome a dor...
A memória da palavra pulsa e clama
À asfixia lenta das profundezas…
Oh, lama!
Ao perder-se em tais lembranças silenciosas,
Tu decompões essas lembranças graciosas!
Sujando, assim, o seu primeiro instante puro
Numa fermentação de turbas, pó escuro
Que corrói os joelhos de uma língua extinta…
Apaga-se a forma na ausência de tinta.

Nascido da intensa podridão do poema


Um povo sujo de versos aí blasfema
E profana o íntimo do ventre materno,
Onde se agita um filho selvagem e terno.
Tão delgada luz de seu desejo sem chama,
Círculos tortos rolam sobre minha escama...
A cara de espanto evoca um circo do mal.
Salve! Oh, sopro absoluto do azul tal qual
Boca tragada por seu próprio abismo
À hora atroz do nascimento e do batismo.
Criança! ... manterás o ídolo em teu nome,
O fetiche sem voz que a máscara diz: some!
Jamais! no tremor tranquilo de tua língua
Discurso nenhum separará a ganga à míngua
Virando pedra como os gritos do passado,
Destino imutável que não foi retraçado;
Criança, eis-me aqui, teu deus, húmido, teu ar;
Procurei a tua imagem para matar;
Nesse triste clarão de meu corpo gelado
Canto o delírio do ser exagerado
Na onda que dilui a bruma espacial,
Rastro de limo na minha sombra abissal,
Teus lábios banharão meu nado impossível;
E sem mesmo um sussurro, emoção impassível...
Roço este meu corpo lívido e ancestral
Nas ínfimas perdas desse verbo de sal
Já enunciado... tal prodígio calado
Que executo é um dever predestinado
De botar cada termo esparso numa pausa.

Nesse meio secreto de água que me causa


Conforto, o ar se afasta na sonoridade
Plural das aves de sua esterilidade.
A ordem de água traz pensamentos de luz...
Volume infinito que esse cristal produz
Sem que um átomo vibre, que ressoe um canto,
Lago no qual te lanço, nesse doce espanto
A ajustar a voz lúcida à tua medida;
Nada além do ângulo nu de uma ferida...

O orador explica o que pode acontecer;


O instante eterno... Que dizer?... com que prazer?
Essa boca aberta que escolhe seu suplício
Já desejou, uma vez, lançar-se ao precipício
Na hora em que a língua se agita, em alvoroço?
Ela precisa, no arco fino do pescoço,
Ferozmente tanger a corda virginal,
Fazer jorrar o sangue essa força rival
Da qual as transformações são a melodia?
... Se essa voz se descobre, em vão procuraria;
Precipita-se é uma cadência inútil,
Que se reprime, obstinadamente hostil...
E não me restará não mais que um simples resto
A ocultar em mim esse sopro que detesto...
A vasa me retém, ávido e solitário
Repousando em meu corpo esse silêncio vário.
A lentidão me pesa, e me esgota... Oh, destino!
Acaso atrevido alçando um voo menino!
A altitude agradável dos lábios em flor
Propicia mil beijos da língua em furor
É pela candura soberana do céu
Na lentíssima efusão dos signos de mel...
Quanto a mim, por lá... ali... num front que se entrincheira
Jamais divisarei a imóvel corredeira.
Sonho… e isso não é um sonho, não é nada,
É uma emoção tola e vazia que cada
Oculta confusão de meu langor escarpa.

Como o adorno sombrio do lar de uma carpa


Desliza ante o cortejo oblíquo de meus dias!
E o riso preso se vai pelas cercanias
Dessa rua fugaz e lenta que se pinta
Um pouco monótona, de uma cor extinta...
Cada momento me lança à hora traçada
De uma cifra de escama à escama enlaçada.

Assim, ornado em inflexível escrita,


Avanço, mascarado, à sentença pura!
Nenhum olhar aqui, nesse abismo inundado,
Lerá ou deixará o caminho riscado...

Só, eu me persigo; sozinho, me doutrino,


Ciência de pavor na qual eu me ensino...
E eu não morro; esqueço... livro-me do olvido,
Duro discurso em mim em silêncio fundido;
Um longo começo que jamais se inicia,
Dobra partida, ademais, na ausência de um dia;
No fundo das águas, louco batismo da alma
Pela aberração do meu desejo sem calma.
Aflição de nascença, cheia de bondade,
Na líquida repetição, felicidade;
Incrédula que se esconde de si, portanto;
E eu, tão contrário, assim, a meu próprio pranto,
Falante sem voz, ofereço-me a tal sanha,
Ao pronunciamento da garganta estranha...
Palavra!... um ar gelado que se quebra n’água!...
Minha casa de areia vai medir-lhe a mágoa,
Túmulo, morada que se abre num torpor
Como um evento secreto, tênue vapor
De um signo, na infância absoluta da sorte
Onde o dizer do nome representa a morte.

Tal nome... que já é meu!... se desencadeia


E depois pulveriza minutos de areia,
O astro descomposto que não sabe quem é,
Tumulto mudo e vão que me deixa sem fé.
E por que não mais fugir dessa trama obscura,
Tal boca se abrindo a uma eterna clausura?
Mas qual será o plano dessa adulação
De meu nado perdido?... Especulação?...
No meio do caminho a cruzar nossa história
Que então repete-se em desejos e memória,
Onde, felizes, recebemos o dom divino,
A srcem sonora, prólogo de violino,
Mora paixão tão pura do discurso a si
Que assim se entrega no poema que escrevi;
E se ele escolhe essa mensagem?...
Não mais ecoa
Perfeitamente em mim a sombra da lagoa,
Ímpeto confuso de pular sobre a margem,
Mentir de novo à imagem pura da virgem
A qual, com seus encantos, levará ao Inferno
Oh, meu Profeta, a marcha de teu verso terno.
Mas a ressurreição, tão bela, assim se ausenta;
O coração que é meu me falta... atormenta...

Minha máxima diz dessa triste clareza,


Lenda sem palavra; oh, signo sem nobreza!

(Fere tua garganta ignóbil essa urna


De cinzas... Tumba eternamente taciturna...
Se da onda vêm glaucos enfeites e conselhos...
Já não rezas mais... Despovoa teus espelhos...)
Minha longa noite calma, és um conforto
Tão intenso que a seiva em mim se torna porto.
A água se agita junto ao meu cerne encarnado
Como se festejasse um temporal sagrado!
Vejo... creio rever um ícone afastado
Erguer nas águas o seu trono decorado!
As algas contorcidas, a areia revolvida,
Tudo se move no reino mudo da vida!
Quem fala?... Enunciado na altivez marina,
Um signo suspenso em minha raça ciprina...
As línguas fogem... Lacuna prodigiosa
Enlaça-me a Vênus, deusa maravilhosa!
Uma história... acaso, talvez... me completa...
O que se cala se descobre em voz repleta,
Uma divina voz de volúpia ardente
Que me revela um nome de nudez luzente.
Deusa real! impulso de amor agradável
De um jorro puro de uma presença inefável,
No labirinto onde, por certo, quero entrar
A onda, por fim, se ondeia em si para gozar
Teu nascimento... Hora de frágil cadência
Solto na onda que te afaga com violência;
Um denso rumor de sede, anseio fremente
De um som que me atravessa, rito inconsciente
Da poesia pródiga de uma linguagem
Que desfaz minha obra, rito de passagem.
Como me sujeitar, vulgar, a tal pudor,
Sem que em meus pausados lábios um furor
Venha aguçar essa vontade de ceder?
Temo esse verbo obsceno que te faz nascer...

Suores frios!... No nó de tua garganta


O mito se consagra à cadência santa.
Sua ternura ruidosa a teus pés na espuma
Onde vêm rebentar minhas dores de bruma.
Não dizes nada; e agrava-se o meu temor,
Mas em teu seio leve palpita um favor;
Branca paródia à palavra consagrada,
É um mesmo batido, dobra que me agrada.
Estala o coração uma ínfima pulsão;
Em tempos cortantes... Profunda percussão.
Por teu metro cadente em meu ser insurgente...
A boca aberta... salvação... chaga inocente!
Ofereço, sem dó, a face, a tal rigor
Secreto e repleto de um santo pudor
Cuja virtude má, reino de minha sorte
Olha o segredo, mãe do silêncio forte...
Filha do sacrifício do sangue quente
Misturado à água de tua graça indecente.

Tradutores: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla


3. ELE DIZ

Ele vem, se apresenta, e diz:

Falei uma outra língua. Criança, não falando, eu falava uma outra língua.
« Infante »324 quer dizer em latim « aquele que não fala», é o que diz a ciência das
línguas. Mas isso prova somente que o latim, essa língua morta, ainda fala,
surdamente, obstinadamente, na língua que falo. Dentro desse latim fala o grego, e
quantas outras línguas mais, conhecidas ou desconhecidas? Há sempre, dentro de
uma língua, outras línguas que falam, nenhuma está sozinha quando fala, e não se
pode remontar para trás antes de toda língua. Não há infante [enfant].

Falei uma outra língua, e essa língua ainda fala presentemente, sem dúvida, na
língua que você me fez falar. Você não a ouvia, não podia compreendê-la. Não vá
crer, como você poderia imaginar, que ela era feita de gritos, soluços e mímicas, ou
de uma obscura sucessão de murmúrios. Não era uma língua de criança [ enfant],
nem uma língua na infância. Eu não balbuciava. Outros balbuciavam e
gaguejavam, pensando adaptar sua língua a uma criança. Você não era assim, você
não fingiu
Minha a infância
língua de uma
era tão antiga língua.
e tão bem Sem
feita dúvida
quanto avocê
sua, sabia que todas
e quanto isso não existe.
as línguas,
mortas ou vivas. Não há língua mal feita, nem língua elementar.

Você não me compreendia, e eu tampouco me compreendia. Não era por falta


de saber, ou de ter aprendido. Era mais antigo do que qualquer aprendizagem.
Minha língua não tinha nada a dizer. Mas pronunciava com exatidão, como toda
língua, tudo o que é para dizer, tudo o que se pode dizer, tudo o que também se
pode calar. Ela o articulava, fazia jogar nisso cada uma de suas juntas, desatava-lhe
todas as sílabas, observando uma justa medida entre uma e outra. Era uma cadência
ininterrupta. Não era algo aprendido, e isso não se pode aprender. Seria necessário
que se lhe pudesse indicar o começo, uma ordem com a qual abrir a cadência. Mas
não há ordem, ela não começa, ela começa em qualquer lugar, em qualquer língua.

Por que ter-me ensinado a sua língua? Eu já sabia a cadência dela, e não tinha
necessidade…

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Ele não diz nada. Talvez queira ir-se embora. Afasta-se. Diz:

Não tenho nada a dizer. Não posso te querer mal.

Faz silêncio, depois recomeça:

Não tenho nada a dizer. Você queria me ouvir falar, tinha necessidade disso. É
somente quando alguém nos fala que sabemos que existimos. O olhar não tem esse
poder. O olhar atravessa e se perde ao longe, por sobre o corpo olhado. Nem o
olhar, nem o tocar podem verdadeiramente ser endereçados. Eu te olhava, te
tocava, não era nada, você não existia, era necessário que eu te falasse. Era,
portanto, necessário que eu falasse a fim de te falar, e a fim de que você existisse.

Mas…

Ele não sabe se vai dizê-lo.

Mas
dizer quepor
nãoque
eraera necessárioque
impossível quefosse
vocêassim.
existisse?
VocêNão eranão
podia umaexistir,
necessidade. Quero
você podia…

Na verdade, já não havia mais nada a fazer. Você estava ali, e queria que eu te
falasse. Eu poderia não ter nascido, mas eu tinha nascido. E eu falava uma língua
que você não entendia, que eu mesmo não entendia. Tudo o que se pode dizer e
tudo o que se pode calar, essa língua o pronunciava, palavra por palavra,
incansavelmente. Eu imitava uma língua que me teriam ensinado, sem ter
aprendido nenhuma delas, e eu as imitava todas. Mas não falava com ninguém.
Quanto a você, não sabia nenhuma língua. Você não me ensinou nada. Ninguém
ensina uma criança a falar. A língua lhe é mais maternal do que sua mãe, é sempre
uma língua de ultra-mãe325.

Eleimri,Blau.
ganz e diz:I was
era azul, eu the
singing erablue
um azul. Er lacht, und sagt: Ich war blau, Ich war
note. 326

325
Jogo entre as palavras homófonas “ outre-mer ”, “ultramar” e “outre-mère ”, “ultra-mãe”. (N.T.)
326
Em alemão: “Ele ri e diz: eu era azul, eu estava todo em azul”. “ I was singing the blue note”, em
inglês, literalmente, “Eu estava cantando a nota azul”. A Blue Note é uma nota musical que provém das
escalas usadas nas canções de trabalho praticadas pelos negros da diáspora norte-americana.
Subsequentement e integrará as escalas de blues e jazz. (N. T.)
Eu não falava. Você abriu a minha boca, forçou a minha boca cerrada, quis me
ouvir, exigiu me ouvir, eu não tinha mais o direito de me calar, não tinha mais o
direito de gritar, você abria e fechava minha boca em cadência, a velha cadência
estava aqui, não era você quem a tinha fabricado, mas você se modelava sobre ela
para manejar meus lábios, e minha língua entre os meus dentes. Você me dirigiu a
palavra e eu lhe falei, foi você quem a dirigiu a mim e ela volta a você, eu não a
dirijo a você, não tenho nada a te dizer, mas você me faz falar, eu te digo tudo o
que se pode dizer, e o que também se pode calar. Você não me ensina nada, mas
me faz falar uma língua nova, e sempre ainda uma outra que fala nela e que você
faz por suaentre
tua língua vez meus
falar, dentes.
remexendo meus lábios e minha língua entre meus dentes, e

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla
4. PEÃ327 PARA AFRODITE

(Divina, canta-me a espuma, a franja e a pérola das ondas no mar tinto, e a do


amor que vem lavar os lábios, e aquela também que resta nos lábios do cantor, o

canto findo, o mito disperso.)


(Ainda um canto? É impossível. Tu o disseste, as vozes se apagaram.

— É verdade, mas é por isso que eu digo: canta-me o que resta.


— Mas não resta nada.
— É ainda verdade. Mas te digo, canta-me nada, a espuma.
— É demasiado fácil.
— Confessa, pois, que é demasiado difícil, e que tu bem o sabes.
— Não, eu não sei.
— Então, não cantes, espuma.)

Afrodite, nascida da espuma: é o que quer dizer seu nome, Aphrodite


aphrogeneia, segundo a etimologia dita popular, e que Platão recolhe em seu
Crátilo. Naturalmente, ninguém acredita nisso, e Platão a reporta sorrindo. Mas
Afrodite é « aquela que ama o sorriso », ou « aquela que sorri com prazer ».
Assim a nomeia o cantor cego, Aphrodite philomeides .

(Hesíodo a nomeia philommedes, « aquela que ama a verga »: que palavra


esconde a outra palavra? qual sorri da outra?)

As planícies dos mares te sorriem, tibi rident aequora ponti. Lucrécio diz
também, no limiar de seu poema: tu só governas a natureza das coisas, rerum
naturam sola gubernas.

O governo das coisas começa por um sorrir do etymon: um sorriso do


verdadeiro, do srcinal. Nem uma derrisão, nem uma paródia – justamente um

327
Recopio aqui o verbete do Houaiss. “Peã”: “entre os antigos gregos, canto ou hino coral de invocação,
celebração, agradeciment o, triunfo, louvor ou exaltação, srcinalme nte em honra a Apolo (no seu epíteto
ou aspecto de Peão, médico dos deuses), mas também estendido a outras divindades e a indivíduos
importantes, e cantado em ocasiões diversas como rituais, vitórias e campanhas militares, durante as
libações, e em acontecimentos públicos”. (N. T.)
sorriso. Os pretendentes ao étimo são aqui numerosos: aí encontram-se Astarte, e
o prítano, o senhor, e o fruto, e o tirano, e a Frígia, aí se encontra algo do etrusco
e do semita, do egeu e de tudo o que começou sempre por se perder, por se
mesclar nos contornos, nas agitações e nas profundezas do mar nos múltiplos
périplos, desse mar entre tantas terras.

O nome se diz também por esse epíteto ou por esse sobrenome: anadiômena,
que surge das profundezas, que delas remonta, ou mais exatamente, que mergulha
em direção do
o sentido às alturas, umaNela,
profundo. penetração assim comosobe
o afundamento uma elevação. A deusa
à superfície, ele inverte
se faz
superfície, se eleva e se leva embora com a espuma, ao pé do rochedo de Pafos,
em Chipre. Não é Afrodite quem sobe do abismo, é o abismo que sobe nela.

E o quê mais, com efeito, se ela está no governo das coisas, se por ela se fazem
as suas vindas primitivas, rerum primordia, semina rerum, os elementos de tudo
o que existe, todos os átomos, todas as suas quedas seminais, disseminais,
Afrodite atômica?

(Tu eouves
guerra as palavras que dizes? Tu sabes que elas são para nós palavras de
de desgraça?)

Não há deus oculto. Aqui, o divino é precisamente que não haja nada de
oculto, nada de absconso nem de secreto. A profundeza se eleva à superfície
multiplicada. Não é caso para os mistérios, nem para as teologias nem para as
filosofias. Aphros participa da nuvem (em sânscrito, abhra), mas essa nuvem não
obscurece nada, não dissimula coisa alguma. É também a claridade do céu, à qual
toca a água. É a claridade do céu lavada pela espuma.

Essesimples
muito ponto muito claro, essa
desnudamento dosnuvem
deuses,misturada de há
quando não céumais
e dedeuses.
água, é o lugar do

Sem dúvida, o étimo da « espuma » é também o do « obscuro », mas aqui se


inverte o étimo ao mesmo tempo que a profundeza. Anetimologia: o sentido não
está no fundo, atrás, em frente, ele está mesmo na superfície, ele a impele rumo à
nuvem.
Afrodite está nua 328 para todos os deuses.

A superfície não está posta sobre o fundo: é o fundo que aparece, que sobe
inteiramente à superfície. A superfície espumosa é o nascimento ele mesmo, ela é
abainha
deusade
queonda,
nasce, e que
e em não
cada é divina
uma senão poronde
das cavidades nascer assim, asecada
a espuma crista, a cada
espalha.

Os pássaros dos ares celebram a ti, divina, e a tua vinda. Aeriae volucres te,
diva, tuumque significant initum.329

Também essa eclosão do abismo não ergue nada acima da espuma. Afrodite
não é profunda, mas não é muito menos, erigido sobre o mar e tocando o céu,
nem um farol nem um falo. A penetração não clareia o mar, não o vasculha: ela
só molha, espuma, está molhada, é o mar destilando sua essência marinha.
Afrodite decepciona o amor brandido, ereto, de focinhadas. Ela é a decepção do
saber, não alicerça o céu das Ideias. (Eurípides e Platão recolhem o uso que
distingue a Afrodite uraniana da Afrodite pandemiana: mas assim decomposta, o
que resta dela?) Ela não toca senão à espuma, ela é o tocar da espuma.
Isso não diz, no entanto, que o falo tenha sido suprimido. Tampouco não há
castração. Não é a cena de Ouranos, e a espuma não é mais esperma do que ela é
cada fluido e cada licor do amor.

No entanto, é justamente a cena de Ouranoa: Afrodite nasce do mar fecundado


pelo sangue de sua verga decepada. Diógenes de Apolônia denomina o esperma
aphros haimatos, a espuma do sangue. Exaphroun: o sangue se torna espuma,
afro-hemorragia, alquimia, menstruum universale. É a efervescência do céu na
água, é o mar mesclado ao sol, e não é uma mutilação.

Há a cena de Atis, o falo cortado por Cibele-Astarte, a Boa Deusa, a Ideana das
montanhas, a grande
lâmina de pedra ou deMãe de Síria.
bronze, e nãoMas esse corte Ondas
há sacrifício. espumoso dissolve
banham também ea
a montanha,
nada é retalhado, quando um sexo passa pelo outro.

328
Nancy joga aqui com a homofonia de “ nue”, em francês, ao mesmo tempo “nua”(feminino de nu), e
“nuvem”. A frase “Aphrodite est nue pour tous les dieux” é perfeitamente equívoca, significa ao mesmo
tempo que Afrodite é nua e é nuvem para os deuses . (N.T.)
329
Trecho de De rerum natura de Lucrécio: […] A eriae primum volucres t e, diva, tuumque/ significant
initum perculsae corda tua vi . “[…] Primeiro os pássaros aéreos, aunciam-te assim que tua aproximação”.
Lucrécio, De rerum natura , I, 12-13. (N.T.)
Philommèdès, philomeidès, sempre irresoluta. A cena é sempre diferente. Ela é
a cena dessa metamorfose em que cada diferença imprime sobre a outra sua
marca diferente. Cada uma vai na outra além da outra e de si, e não volta a si,
nem se perde. Nunca identificável e claramente distinta, a verdade numa alma e
num corpo.

Afrodite oferece o falo com a espuma. Com o grão de sal, ele é apresentado em
seu culto. Dessa oferenda, nem o saber nem o mito podem compreender qualquer
coisa. Phallos não somente molhado, mas ele mesmo molhadura, espuma, nada
mais do que espuma salgada. Os primeiros ídolos da Grande Deusa de Chipre são
de sexo indeciso. A própria Afrodite, na ocasião, se torna Afroditos. Mais do que
um casal de falo e de excisão, seria o dublê do monte de vênus 330 e do pênis,
nosso hermafrodita comum, sustentato por nenhum étimo.

Afrodite duas vezes: fêmea, macho, sem mistura nem confusão. Dividida,
multiplicada, partilhada de srcem, sem medida comum. Cálculo diferencial do
limite ilimitado de uma dupla apalpada. De alto a baixo, de baixo ao alto, o sexo,
nome cortante, fende a Afrodite com uma fenda que não mutila nada. De uma
parte e de outra, uma e outra espuma intata – o charme e a chance do tato.

O nome de Afrodite está bem longe de ser o único nome, e o único nome
divino, cuja proveniência seja atormentada, disputada, desancorada, flutuando
entre as águas. Mas talvez seja o único do qual um étimo sorridente indica isso
mesmo: arfagem e rolagem, cristas e rolos, o ondulação e a espuma das ondas, o
movimento multiplicado no mesmo lugar, a ressaca repetida, o marulho, a esteira.
Afrodite marinha, e navegadora, pontia, euploia Aphrodité .

(Peã, tuas estrofes são sem emprego, tu nos dás uma espuma de palavras, um
vinho borbulhante, mas a festa chegou ao fim, Don Giovanni, a música está na
memória. A melodia infinita se perdeu nas brumas, e o ritornelo dá voltas.
Estamos acabrunhados. O teu espumoso nos enoja, é preciso te calar. Afrodite
está triste hoje.)

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*

À espuma brilhante responde o fulgor do astro: Ashtorith, mãe dos Baals,


planeta Vênus, ida e vinda, Innana de Suméria, Asthart, Ishtar de Babilônia ou de
Nínive, que fala com a Grande Onda do Mar, Hathor do Egito, a vaca de chifres
em lira, que carrega o Sol, Esther a Judia, todo um ano banhada de mirra e
arômatas pelo rei de quem ela desvia a cólera. Planètè Aphroditè, deusa da
errância, de povo em povo, de festa em festa, de nome em nome, sob os signos
errantes do céu: caeli subter latentia signa. Deusa do fato de que não há deus.

Estrela da noite e da manhã, Hesper e Lúcifer, estrela do pastor, deitada,


levantada de lugar em lugar, ida e vinda nos braços de Ares, de Dionísio, de
Hermes, de Anquises, de Adônis ou de Atis, mãe de Harmonia, de Eros e de
Antéros, de Deimos e de Fóbos, de Eneias, de Hermafrodita – e nua diante de
Páris, prometendo-lhe Helena em silêncio, por seu silêncio. Grande Mãe e filha,
onde cabe tudo: Homero, Flaubert, Freud e Offenbach.

Peã, Cântico dos cânticos, « tu és bela, minha bem-amada »: cantara-se isso em


Jerusalém, em honra de Ishtar e de Tammuz-Adônis. Mais tarde, apesar da cólera
de Jeremias, ofereceu-se a Astarte doces em forma de deusa nua. O rei Sargão da
Acádia não fora exposto sobre a água como Moisés, e recolhido por Ishtar?

Afrodite, panteão de marés, pandemônio de espuma; deles escorre caudaloso


um pleroma, mas que não abriga nenhuma gnose, nenhum saber secreto de
libertação.

(Como nós?

— Como nós, de fato.


— Mais nenhuma libertação, salvação, crença?
— E, até mesmo, mais nenhuma razão para se regozijar disso, nem de
lamentá-lo.)

Não o saber nem a sabedoria, mas a beleza. Platão deve reunir, no elã de Eros,
Urânia e Pandemos. A beleza passa dos corpos às almas – e como as almas, para
serem belas, deixariam de demandar de novo os corpos, e de passar a eles?
Afrodite é a passagem. O cortejo vai e vem, entre os dois templos de Urânia,
aquele onde a estátua é de Fídias, aquele onde ela é de Alcmeno, e o templo de
Pandemos, onde Sólon mandou instalar o ofício da prostituição.
(Estrabão diz que todas as mulheres da Babilônia, obedecendo a algum
preceito divino, se uniam aos estrangeiros no templo de Afrodite, em cerimônia e
no meio da afluência. O dinheiro pago pelos estrangeiros era consagrado ao
serviço da deusa. Eles pagavam pelos seios lambuzados de mel e pelas coxas
esfregadas com murta e aloé.)

Urânia é masculina, exclusivamente, e Pandemos procede dos dois sexos.


Assim o quer Platão. Mas que faz, pois, Eros, senão pôr um (ou uma) no outro
(ou na outra), e de todas as maneiras possíveis? Como Afrodite poderia dividir os
sexos? Ela não é senão a partilha deles, em um e em outro, entre um e outro.
Afrodite é um em dois, não dois em um. Não « bissexuada » (não é um
Gastrópoda Pulmonata), mas uma em dois sexos – e de tal sorte que não há um
sem dois, e que para terminar não há um. Nenhum sexo é um. Nem uma Afrodite
é uma. Aphroditè androgynos. Nua, sempre, para todos os deuses, para todos os
dois.

Platão a mantém a distância. A ela ele prefere Eros. Dele, ele não faz seu filho,
mas o rebento – nascido no mesmo dia que ela – de um casal de conceitos
laboriosos. Amor necessitado, Eros philosophos: irmão gêmeo da espuma,
retirado sobre o seco do pensamento. O solo seco e sólido onde se pode
duramente, duravelmente edificar.

Mas Platão-o-Amigo-das-Ideias não está quites para com o sexo-que-é-sem-


Ideia. Ele busca uma Afrodite filósofa, e esta é Diotima de Mantineia. Não se
sabe quem ela é, ficção, lembrança de uma pitagórica, ou de uma sacerdotisa de
Zeus lício? Não importa, ela diz o saber da beleza. Mas para se substituir a
Afrodite, é necessária uma bela sábia? Quem saberá quão bela é Diotima?
Hölderlin enlouquece por causa desse não-saber.

Diotima se esconde por trás de Sócrates, cuja feiura protege o Belo verdadeiro.
Entretanto, Platão ama a beleza – mais do que ele saberia dizer. Assim Diotima,
única Platão-mulher, Sócrates maquiado, disfarçado, enfim belo, invade nossas
memórias com seu ausentamento.

Mas por que a beleza não nos abandona jamais? Quando tudo é feio, ela
permanece mais do que uma lembrança. Por que ela é imemorial e sem história?
Por que Platão quer belos discursos?

*
(Peã, belo pensamento, não cantes mais, faze calar as flautistas, e dize-me a lei
« dessa potente Afrodite de quem se gaba a insubmissão». Ataktos Aphrodité,
qual é a sua ordem, sua regra e sua medida sem medida? Dize-me, se o podes, a
frase de um tal pensamento. Dize-me essa frase nua, Afrodite afasia.)

Afrodite, seu nome nasceu de uma espuma de palavras, da espuma das


palavras: sentido perfeitamente próprio, sentido idealmente apropriado por jogo,
por figura trançada e por ficção encharcada, escorrendo desse amor das palavras,
dos sentidos, dessa inalterável impropriedade das línguas que nos arrebata e nos
decepciona, a cada vez, em partes iguais, vai-e-vem que nos porta, nos transporta.

(Exatamente como se se dissesse: Afrodite vem da África, do aforismo, do


afrutado, da afronta ou da afrescalhada 331. E é claro que não seria falso. Tudo isso
pode se tornar étimo em bom estudo, toda espuma etima.332)

Vinda de alhures e de toda parte, filha das ilhas e das costas, ela põe os gregos
no mar, embarca Helena, a qual seguem todos os Reis. Ferida no jogo que ela
arrisca, ela embarca seus caros troianos, Anquises sobre Eneias, o Oriente sem
retorno até as orlas do Ocidente, Aeneadum genitrix, mãe da raça de Eneias.

Ela desloca e mescla os princípios, a harmonia, o prazer e a força, seduz as


srcens, levando ao longe povos vindos de longe, trazendo suas proveniências
ignoradas, fundações de um momento, invenções, capturas do instante, sulcos
traçados, palácios e pavões dourados, casas de campo. Seu verdadeiro templo é a
Cidade espumosa de templos inumeráveis, de passagens esquivas, idas e vindas.
Entretanto, na cadência dos trirremes abarrotados de escravos e de impostos, no
passo dos legionários, vem o tempo da religião imperial do Amor. Uma última
vez, Cleópatra encarna de novo a deusa e aperta contra seu seio o inimitável
Antônio.

Afrodite domada, submissa em Jesus Cristo. Devolvida às profundezas, às


elevações
entanto eleinfinitas.
também Devolvida
vem andar.ao céu e à terra – retirada do mar, sobre o qual no

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332
Verbo cunhado por Jean-Luc Nancy, de “ étymon ”, étimo, ligado à etimologia. O equivalente seria em
português “etimar”. (N.T.)
Pode-se imaginar por entre a espuma esse passo leve de um Filho do homem
que seria irmão de Atis? Mas não, todos os deuses vão embora com ele. Vem um
mundo de exílios, de peregrinações, de grandes migrações, e de curiosidades, e de
preocupações. Parada da ida e vinda: a história se põe na estrada.

Parada Afrodite ela volta, renasce mãe de Deus. Sábia como uma imagem,
pronta para a pintura do amor e da carne, perturbações já envelhecidas, murchas,
de uma jovem cultura. O renascimento é conduzido no luto, na viuvez de Deus.
Mas
comoAfrodite
devemosnunca
dizer? foi mais virgem do que viúva. Não compreendemos? Ou

É um velho caso, e é a nossa tradição mais cara: os gregos eram superficiais


por profundidade , eles conduziam o luto com um sorriso sereno. Eles não se
descobriam, ou então descobrir-se era ainda para eles uma maneira de se cobrir,
esquivados na nudez graciosa. Afrodite é a soberana das Graças: as Caritas tecem
seu vestido. O véu, a pele, o grão, os reflexos do mar tinto, os seios, as coxas, a
cabeleira e o sorriso.

Afrodite,
semita a mais égrega
(*Attor(i)t das gregas,
o menos e a menos
improvável reconhecível.
étimo). Troiana, Arqui-helena, antes
babilônica, siríaca,
etíope, judia, árabe. Helena raptada da Grécia, retornada ao Oriente, perdida no
Egito, dada ao Ocidente. Afrodite mestiça.

Mètis : pessoa. Mêtis: sábia e potente prudência. Roma negociando a Grécia e


Cartago. Roma sem raça, inepta à raça, propagando por toda parte o gosto dos
abraços: omnibus incutiens blandum per pectora amorem.333

Não há « raça » nela, nem mesmo mais a raça dos deuses.

A espuma dos povos com a espuma de suas palavras, com a das ondas sobre
suas
falas orlas
e de ecultos,
sob seus
de remos. A espuma
navegações de seus dias:
e de fadigas, desdeimaginem
os ídolossete mil anos de
de andesina de
sexos incertos até nós que captamos a espuma de seus nomes sobre a tela
brilhante de um computador.

333
Verso de De rerum natura de Lucrécio: omnibus incutiens blandum per pectora amorem , “jogando em
todos os corações doces traços de amor”. Lucrécio, De rerum natura , I, 19. (N.T.)
(Contam-se em Estrabão vinte e seis cidades e lugares de culto que portam o
nome de Afrodite, dos quais Aphroditè Polis, onde se cria o boi sagrado do Egito,
não longe de Crocodilópolis, e aquela que se nomeia em latim Veneris Portus,
Port Vendres.)

A espuma de suas noites: a deusa guiando seus membros, suas apalpadelas,


deitando-os sobre pedras saponáceas, levando os seios nas mãos, descobertos
acima de seu vestido – Afrodite da garganta maravilhosa, perikallea deire, do
peito de Canaãstethea
riachosdesejável, imereuota
», fazendo , « Via
escorrer Láctea,
licores ó irmã luminosa/
misturados, misturandoDos
as brancos
línguas,
os sangues e os relatos. Imaginem a inimaginável noite dos tempos, profundidade
sem espessura subindo até nós, hominum divumque voluptas.334

(Estamos cansados dessa imaginação. De que orgias, de que comunhões tu


crês te gabar?

— Tu não compreendes nada. Falo somente por teimosia.


— E não é derrisório?
— Deixa-me sorrir.)

Os mitos hoje se interromperam. Eles não desapareceram: há séculos, em


breve milênios, jogamos com sua espuma. Mas o mito não fala mais o que ele se
esperava que ele falasse (o que dizemos que se esperava que ele falasse): essa
palavra enunciada desde as coisas mesmas, desde o átomo, esse proferimento de
uma natureza, de um mundo, de uma srcem redesdobrados, tornados linguagem
e signos a partir deles mesmos. O mito não fala mais essa palavra fundadora, e
não deve mais falá-la. Veio uma época em que não tem sido mais possível que a
srcem se enuncie sem se fazer imediatamente furiosa, e provedora de ossários. O
mito se tornara vontade de raça.

E eis também por isso que há luto sem serenidade, e desnudamento sem sorriso
nem poema, e despojamento. Uma espuma paralisada, pornofilia afrodisíaca, e
obscenidades de tortura ou de inanição. E nada nem ninguém para dar razão ou
para dar graça.
334
Trecho do primeiro verso de De rerum natura de Lucrécio. O verso diz o seguinte: aeneadum genetrix,
hominum divumque voluptas , “Mãe de Eneias, prazer dois homens e dos deuses”. Lucrécio, De rerum
natura , I, 1. (N.T.)
O mito não fala mais a palavra geradora, em que o sentido se engendrava por si
mesmo, em que o mundo se enrolava sobre si mesmo, língua de seu próprio
sentido, e própria propriedade de sua língua. Que o mito tenha seja interrompido
quer dizer que esse modo do sentido é interrompido. A interrupção do sentido: eis
muito simplesmente essa época denominada « Ocidente ». Ou então esse tempo
que crê que se cortou dos tempos imemoriais.

O mito interrompido não fala mais como falava, miticamente (como pensamos
que ele falava: pois os ídolos cipriotas nunca nos disseram o que pronunciaram,
se eles pronunciaram alguma coisa).

Não é que não haja mais nada a dizer, nem um silêncio de Apocalipse. Do
próprio lado direito, ou do avesso, em que o mito é interrompido, alguma palavra
se faz ouvir. Esse lugar não é outro senão a superfície do mito, lá onde cessa sua
profundidade de sentido, a espuma de Afrodite.

O sentido não é mais dado, se jamais ele o foi. Mas a espuma das palavras
propõe o sentido. Algo de molhado: que escorre por toda parte, e que se perde,
desliza, evapora. Sentido mesclado sempre com outro sentido, com outra coisa
além do sentido, e com o sentido de outra coisa, sentido mestiçado. Mas a
mestiçagem do sentido não é um outro mito. É o que somos todos, mistura
ordinária infigurável, figura tão comum, tão perdida quanto um ídolo sem forma
com a idade de sete mil anos. A mestiçagem não é uma substância, não compõe
uma outra profundidade. Não é senão o muito lento movimento do corpo a corpo
[mêlée] de homens com homens, de homens com deuses, de homens com
mulheres. Saliva de palavras confusas pronunciadas, lábios contra lábios,
fielmente.

O sentido espumado, canta-me.

Canta-me a ilha franjada de espuma, tua terra no meio da água. Deusa de


Chipre, onde três cidades lhe são consagradas. A ilha não é um solo seco, nem
um local isolado. Ela é banhada, o seu solo é molhado por toda parte. A espuma
se junta ali, a espuma subindo à superfície, e à pele – chros. Amphi dè leukos
aphros ap’athanatou chrôs. Pele não mortal e pedaço destacado, vinda da jovem:
toi d’epi kourè ethrephthè. Pele e cor, chrôma.
Afrodite é uma ilha. Todas as Ilhas são Afrodite, mas a dela tem por nome
Chipre. Afrodite cromática tem a tez do cobre, Chyprios chalcos, cyprium aes,
cuprum. Só o metal de Chipre contém a pedra cadmiana, a calamina, o vitríolo e a
substância de cinzas: assim o atestam Posidonius, e Estrabão depois dele. Todo o
Oriente vem buscar o cobre, Creta e Egito. Vêm os micenianos, os aqueus, os
fenícios, os assírios, os persas. Vêm e cavam, carregam seus navios, ocupam as
cidades, constroem fortes, santuários e entrepostos. Vêm os gregos, os romanos, e
Paulo de Tarso. Vêm Bizâncio, os árabes, Ricardo Coração de Leão, a Ordem dos
Templários, e o Reino Franco de Chipre e de Jerusalém. Vêm os venezianos,
Eudes de Montreuil, os turcos e os ingleses. Vêm, vão embora, retornam.

Afrodite cúprica, brônzea, cor de gládio e de escudo. Chipre-a-guerra, mar do


Oriente/do Ocidente, coberta por rapinas, por ódios e pelas feridas de todos os
continentes. Não se vê mais o sorriso da espuma, não mais aqui do que no outro
mar, o Golfo além das areias. Expedido para lá, um soldado diz: « Quando a
gente é pirralho, a gente acha que é engraçado. Isso é falso. »

(Não há mais peã de vitória. A epopeia se cala junto com todos os cantos.
Guerra sem lenda: não é para se dizer.)

(O que resta, a voz velada.)

A profundeza que sobe é o nascimento. A espuma é sempre nascente, somente


nascente. Afrodite não tem um nascimento: ela é o nascimento, a vinda ao
mundo, a existência.

O nascimento exige a espuma. É preciso mesclar e molhar para que nasça a


coisa em si [la chose même]: sua forma inimitável. « O úmido é a causa para que
o seco tome contorno », diz Aristóteles.

O lugar do nascimento, Empédocles o nomeia: « os prados fendidos de


Afrodite ». Deusa dos jardins, Aphroditè èn kèpois. Mares de ervas, ervas do mar,
algas, sargaços, varechs, alfaces, cabeleira reluzente, tosão encharcado,
nascimento da fenda. O que vem à superfície, e que espuma, é uma fenda. A
fenda não é um entalhe, é uma forquilha na alga, é um fruto, um figo entreaberto
sobre uma espuma úmida. São lábios, lambidos pelo marulho. Nascer: o nome do
ser. Ser parido,335 vir ao aberto de um lugar.

(Sem) Passo336 de deuses: a chance dos lugares.

E o mar com lugares agitados multiplica o riso: Ésquilo o nomeia, kymaton


anarithmon gelasma, o riso inumerável das marés. E bem mais tarde, Opiano de
Cilícia diz o gelos, o grande mar de riso dotado, pele de pantera e clâmide
fendida.

Fenda, mas sem abismo, sem precipício e sem profundeza. Hystera, o que vem
por último, no fundo, vem antes. Hysteron proteron, figura de retórica, também
denominada histerologia. A palavra da deusa é uma doce histeria de espuma sem
angústia, sem potência. Uma divindade sem força, analkis theos, mas de onde se
escapa, quando ela sangra, ichôr, o sangue imortal cujo escoamento brilha e não
faz perecer.

Nada mais do que uma elevação sobre a água, nem mesmo um degrau, um
nascimento da fenda que aflora.

Cipris, a deusa da ilha, eleva docemente sua fenda. Ela é, inconcebível, bem
concebida, a desobstrução de uma fenda, a moita de erva partilhada, e sua gema,
e sua chave, kleitoris.

Mastos, também, o seio: o nascimento dos seios. Mais uma vez ainda, o étimo
pertence ao úmido. Ser molhado, escorrer, regurgitar, transbordar. Ser ébrio. Fora
de sentido, aphrosyne. Embriaguez de Cipris : a existência literalmente
exuberante. Uber, mamilo, generosidade, étimo que difere de um nada do de
hister (*ud-/udh-). Mais um sorriso ainda sobre o mar tinto. E o homem inveja no
seio da mulher o inchar sem arrogância, a elevação pacífica e o abandono.

O seio, a onda, a dobra. A onda, a partícula, a luz. Ela é o sujeito do verbo


propagar-se-à-velocidade-da-luz. O seio nasce como a luz, como a aurora na

335
O verbo é “ délivrer ”, cuja polissemia é intraduzível em português: libertar, soltar, livrar, entregar, dar a
luz, parir. Cf. supra, nota XX, p. XX (N.T.)
336
Em francês “ pas de dieux”, frase perfeitamente equívoca, ao mesmo “sem deuses” e “passo (ou passos)
de deuses”. (N.T.)
dobra do céu e do mar. Afrodite de olhos de luz, ommata marmainonta, Afrodite
dourada, chrysè Aphroditè.

A dobra multiplica as ocorrências da existência. A dobra não é a dobra do ser:


a dobra é o próprio ser.

Na ponta do seio, tudo se dobra. Em todas as pontas, em todas as elevações


sem fundo da profundeza anadiômena, tudo se dobra, se redobra e se desdobra,
estriações de colunas imersas, grão liso desse pulo de pele, alma láctea. Dobras
da tira que sustém os seios da deusa, poikilon, bordado de desenhos de cores
múltiplas, onde tudo é retraçado pela ternura, pelo amor e pela oaristis. O
« amor »: aquilo onde não entra nada de mítico.

Afrodite pensa: ela pesa o peso da espuma. Esse peso vago, perolado, que não
pesa nada sobre toda a profundeza. Argynnis aphroditè é uma borboleta brilhante
da América do Norte. O peso de um voo tênue, que não circunscreve território.
Que fende as algas, e as ondas, mas as deixa mescladas, tosão cheio de espuma,
aphrokomos.

Não « superficial por profundidade ». A dialética rompe, tanto quanto o mito.


A espuma a liquefaz e a liquida. Madeiras flutuantes, tetas e botões, conchas
lavadas pelas ondas.

Somente, em todo sentido diferida, difratada, uma extensão marinha, toda


aberta sob as axilas, rolando com a brancura entre as nádegas, ao contacto do céu
claro.

Essa claridade não cega, e, no entanto, não há nada para se guiar, nesse
nascimento nu dos sentidos. Nem uma gramática, nem uma lógica, nem uma fé,
nem uma política. É preciso que o pensamento se levante nu.

A profundeza se levantou em superfície, assim como o mais antigo se


transformou em novidade, em por vir. Essa fuga desvairada de sentidos que teve
que ser a srcem retorna a nós, toda igual e toda mudada: o pânico dos começos,
a memória de nossas trevas, branqueada de espuma, posta sobre a água, pesada,
lambida pelas cristas das ondas.
Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla
Revisão técnica: João Camillo Penna
5. EM MEU PEITO, AI, DUAS ALMAS...

Para acompanhar L’Isola del silenzio,


de Claudio Parmiggiani

Fausto 1

Pena perdida, filosofia,


juristeria e medicina,
outra pena perdida, teologia, fisiologia e vós,
saberes de toda espécie,
todas as vossas penas estão perdidas com as minhas.

Tomai tenência, pois em pouco tempo não restará nada de vós, conhecimentos,
sabedorias, depósitos veneráveis das noites de estudo e das vidas de pensamento. Nada
restará senão meu punho cerrado sobre vossas páginas rasgadas que lançarei no fogo da
lareira.

O sino fala (o sino da torre do campanário)

Faço ressoar o alarme de um incêndio que se propaga através de vós, vossas páginas,
vossos volumes e vossas prateleiras, vossas imagens, vossas ideias. Ó lembrança de
Alexandria, de Sarajevo, do imperador Chi Hoang Ti! Aqui, no entanto, uma substância
instável pegou fogo espontaneamente, sem que nenhuma causa externa viesse lhe trazer
a centelha. Nenhum incendiário, nenhum carregador de tocha ou de lança-chamas,
nenhum atirador de fósforo ou de napalm. Mas uma queimadura se formou diretamente
sobre vossas escritas e vossos símbolos, cujo abrasamento se estendeu sem pena através
das palavras e das frases, através das imagens, dos planos, das equações e dos
diagramas.

E, com certeza, através dos grimórios dos concebedores de fogo, de estopa, de piche,
de salitre e de pólvora negra, dos alquimistas da combustão e da consumação: para eles
também, seus volumes queimam.

Fausto 2
Penas perdidas, pensamentos, meditações e reflexões, e vós também pesquisas e
tratados, manuais, almagestos, antifonários e bestiários, missivas, breviários e
coletâneas, bíblias e corões, sutras, livros de salmos e cancioneiros, álbuns e atlas.
Tomai tenência pois não vos deixarei subsistir. Eu vos previno, mas não vos deixo
chance alguma de escapar ao meu furor. Em verdade, nada vos guardará, e não
encontrareis segurança em nenhum lugar. Faço levantar em vós mas contra vós uma
raiva sem precedentes, uma exasperação que ergue o ardor de consumir todo saber e
todo discurso.

O que eu quero é vosso espírito carbonizado, vossas razões chamuscadas e cremadas


sob vossas encadernações mudadas em carvões e esses carvões em terris, em aterros
espessos.

O sino fala (o do campanário)

Soo o sino a rebate mas não serve para nada. Não fugireis para lugar nenhum: não
tendes lugar para onde correr a vos refugiar. Não residis senão em vós mesmos e sobre
vós mesmos recurvados. Sois iguais a uma cidade fortificada e em brasas por todas as
partes, e cujas fortalezas interditam a fuga. Ei-vos aqui, livros, entregues livres à vossa
própria chama, e quem jamais se salvou daquilo que o destroi desde seu próprio
coração?
fogueiras,Não é um auto-de-fé
os pirômanos que vos
do espírito, destroi,
para pois paraseus
eles também, eleslivros
também, os fazedores
queimam de
com suas
doutrinas incendiárias.

Fausto 3

Uma considerável pirâmide de volumes calcinados e resfriados como os pedregulhos


de um mausoléu, eis o que cobiço e eis o que obtenho. Um amontoado, uma pilha de
volumes queimados, toda legibilidade escondida entre suas páginas que o calor soldou
dissipando a distinção entre a tinta e o papel, com ela a deiscência entre significante e
significado, enfim a distinção entre sentido e cinza. Eis o que quero: incendiar o signo e
o sentido.

O sino fala (o sino de ouro)

Ele não falará mais do sentido. Não o decifrará mais. Não o interpretará mais. Muito
simplesmente, não o compreenderá mais. Por isso não estará mais nesse ponto. Mas
cerrado em seu punho como um fruto demasiado maduro que se esmaga e cujo suco
escorre entre os seus dedos, o que foi o saber terminará por se absolver de toda relação,
de toda saliência, e tudo irá se abismar ou se exaltar no ato puro.

Ele não quer mais o saber, ele quer a sua morte e a anuncia. Recusa a insuportável
distância entre o saber sabido e o saber sabedor, entre o sábio e a ciência, entre a ciência
e ela mesma, esse intolerável e não redutível desvio que lhe remete sua consciência de
si, como a garantia necessária de sua segurança: a evidência de um saber de si no fundo
de todo saber do outro, o objeto, a coisa, o mundo, a língua também e enfim o próprio
pensamento, sua noese, sua noção, seu juízo.

Soo a extinção do conhecimento e do discurso, da proposição e da frase, das


categorias e dos sincategoremas, das cópulas e das vírgulas. Soo um carrilhão monótono
e interminável em sua ressonância silenciosa, pois a extinção é ela mesma interminável.
O pensamento não se abole nesse movimento violento que ele lhe imprime para esposar
a coisa e a ideia mesma, para fundir uma na outra e seu bloco compacto em uma pasta
de vidro negro. Forma-se um cristal que retine em frequências ritmadas do batimento de
seu próprio serviço fúnebre. O pensamento pensa ainda.

Fausto 4

O que quero é fazer o pensamento idêntico ao ser do qual ele é o pensamento. Não
igual, nem semelhante, nem análogo, mas idêntico. Ser e pensamento, uma mesma
coisa. Um velho poema dizia isso, mas não quero mais que um poema o diga. Esse
poema também queimará; aliás, ele já perdeu mais de um papiro e mais de um verso.

Mas é preciso para isso, para culminar na mesma coisa, que se entendam bem os
verbos: pensar e ser, não o pensamento e o ser. Pois o pensamento pode muito bem
tomar o ser por objeto, e o ser pode muito bem ter o pensamento como uma de suas
espécies, como uma coisa entre outras. Mas se pensar é ser, então não há mais objeto
nem coisa. Tudo vem dar no idêntico: pensar é pesar, ora vê-se bem que de maneira
idêntica ser é ainda pesar. Nada é sem peso, nada é sem apoiar sobre um solo ou sobre si
mesmo. O que não apoia nem pesa, mesmo que fosse do peso mais ínfimo, se dissipa em
vapor, em fumaça, depois em pura dissipação.

Eis por que, meus livros, eu vos queimo. Eu vos devolvo à vossa agravidade. Não
retenho nada de vós. Quero apenas o peso, a pesagem das coisas numa balança de
justiça. A gravidade de uma justa pesagem das coisas, sem interposição de significação
nem de valor.

O sino fala (the bell jar, o sino de indigência)


Ele amava os livros, suas linhas seguidas com o dedo, suas páginas viradas com
lentidão para acompanhar sem ruptura a passagem de uma palavra a outra entre o recto e
o verso, as duas faces da mesma finura. É somente o resto de espessura dessa finura que
o irrita e o põe fora de si. Mais ainda, por conseguinte, as finuras empilhadas do livro,
seu volume importuno entre ele e o mundo, entre ele e a coisa em si, entre ele e o ato.
Pois ele quer o ato, ele o quer do início ao fim e de tal sorte que não haja mais nem
começo nem acabamento, mas uma só ação presente a si de parte a parte e reunida em si
com uma tal energia, numa intensidade tal que toda a sua duração é igual a um instante e

que seunão
razões espetáculo
tem nemémais
aquele deporque
lugar um sonho onde tudo énão
sua consecução simultâneo
tem lugare de
onde
ser;a mas
ordem dasé
tudo
dado junto, a razão e o efeito, a concepção e a execução, ele mesmo enfim e aquilo que
não é ele, isso em que ele quer passar e ir existir como o homem o quer na criança, no
animal ou na mulher. Ai, quem não vê que o homem desaparece então, e que não é mais
ele que encontramos fora dele, mas a sua perda, sua confusão e sua demência? Quem
não o vê, salvo ele?

Ele não vê nada, mas se enterra na gravidade solene e compacta do ser.

Fausto 5

Vejo a extensão se resolver em um ponto, e a duração se contrair no instante em que


esse ponto se forma, no cruzamento de meu ato e da efetividade. Nenhuma dimensão,
nenhum prazo, nenhuma espera. Amanhã vem hoje e nele permanece. Estamos
extenuados de esperar e de transformar em espera o que não consiste em nada mais do
que em intervalos imóveis entre o mesmo e sua repetição. É preciso cerrar o punho,
quero dizer meu punho, « meine Faust», meus dedos fortemente dobrados sobre a palma
da mão e formando a mão em maça, em torno, em arma de destruição em massa que
logo de início esmaga nela a exterioridade do mundo, todas as suas excrescências e as
protuberâncias, os tumores do ser. Cessei de esperar um porvir, um salvador, uma
chance. Se já não sou o que sou, como poderia vir a sê-lo? Isso, eu mesmo, não me será
dado de lugar nenhum nem por ninguém se já meu punho cerrado não o contém como
seu cerramento mesmo, e seu juramento. Em meu punho se resolvem em cinzas os
saberes e as histórias, consumidos sem chama pela única constrição terrível de minhas
falanges que se soldam entre elas e não fazem mais do que um estilhaço de sílex
brandido
além desseemsílex
ponta de braço,
mesmo detudo
ao qual braço
se estendido doravante
conforma se dirigido em direção a nada
esmagando.

O sino fala (sino de vidro na horta)

É a crescência que ele suprime. Não esse crescimento que reproduz o idêntico e o
equivalente recapitalizando-o sempre em novos programas, mas o que segue de um
nascimento, aquele que desenvolve uma concepção, cresco, creo, o cuidado e o
amadurecimento de um ser que existe. Esse crescimento que sai de quase nada, de um
encontro, de um acaso, de um clinamen dos átomos, de uma inclinação das paixões.
Aquela que entrega [livre] não à espera, mas a essa disponibilidade que nem mesmo
espera e que somente se dispõe, se deixa dispor. O amadurecimento do fruto, mas
também como ele se destaca e cai podre na relva onde os insetos o comem com os
vermes e os pássaros. Como ele esqueceu isso? Ele quis estufas para forçá-las e frutos
imperecíveis, nunca podres e nunca tampouco maduros. Como ele quer o fruto sem
atraso, ele quer o saber sem livro e a história sem relato. Ele quer o homem sem rasgo
nem abertura, o punho fechado que o infinito ou então o improvável não desapertam
mais.

Fausto 6

O inominável é o único nome que no fim posso aceitar. Não o nome que ultrapassa
todos os nomes e os denomina a todos se sobrenomeando ele mesmo, mas o inominável
cujo próprio nome corrompe e roi todos os nomes, o inominável como um nojo [dégoût]
dos nomes, um embrulho-no-estômago e uma revulsão.

O sino
dasfala (sino impelido
bandeiras de prece,pelo vento nodomeio
à passagem pescoço)

É preciso para ouvir o nome primeiramente escutar o som. É preciso deixar ressoar o
efeito simples de um barulho de amarrotamento, de um batimento. O que um sino quer
dizer é, antes de tudo, o repique de seu batente contra suas paredes muito alargadas. Ele
bate em sua própria parede para remeter-se a si mesmo desde a outra borda de sua
abertura. Este vira em direção ao solo uma boca de sombra na qual bate essa língua
pesada, esse dedo ou esse plectro de ferro. Disso se pode tirar um suplício atroz, mas se
pode também compreendê-la como o anúncio de toda língua, como o chamado a toda
língua e a toda nominação – ou seja, ao desejo de abraço, a esse desejo exasperado de
ser enlaçado às coisas por seus nomes. O sino chama à palavra, o Glockenspiel aos jogos
e às preces da palavra que apazigua.

Fausto 7

Não mais decifrar, mas despedaçar337. Desfazer o tecido de signos que nos envolve o
mundo para no-lo desembalar mais tarde amargado, mal conservado. Ir às coisas em si:
Oh ! que minha quilha estilhace! Assim como se escorre o metal de um sino para fundir

337
Paronomásia entre « déchiffrer », decifrar, e « déchirer », despedaçar. dilacerar, rasgar, romper. (N.E.)
um canhão, do mesmo modo…

Mas eu o sei: à minha aproximação as coisas em si se esquivam. Aquilo que as fazia


em si [mêmes] , elas mesmas [elle-mêmes], se altera e se devasta. Sua bela mesmice
recua tão logo que, atingindo-a, eu a desarranje e a perturbe.

Devo, pois, além disso me desfazer dos signos e de todo meio de aproximação. É
preciso que eu me desprenda mesmo dos sentidos que me informam. Não se trata mais
de
umver, nem
tocar, depois
não, ouvir,
elenem mesmo
guarda de acheirar,
a coisa de de
distância degustar
pele, eou
nãodeéapalpar. Nem
aquilo que eumesmo
quero.
Não é aquilo que queremos, ó meus contemporâneos! Nenhuma pele, nenhuma
membrana, mas queremos nos unir com a coisa sem que nossa chegada modifique nada
nela.

Perder-me-ei no fundo dela, de modo que não se encontrará lá mais nenhum


vestígio, mais nenhum traço de mim. Abrirei um mundo sem traços, sem a menor risca
nem a menor flexão. Nenhum traço, nenhuma modificação da superfície sobre a qual
somente circulam grãos de energia vivamente deslocados, trocados, permutados e
combinados. Um instante basta, um ponto de instante basta, um simples clique – uma
onomatopeia, um barulho seco, um sino fixado em ponto de órgão – não o instante que
permanece mas aquele que estala à maneira de um chicote. Não o instante que se atrasa
a si mesmo e que goza, mas aquele que funde e que centelha abrasando uma carreira de
pólvora.

Petrificado e plastificado no coração da coisa, disperso os signos e não ajo mais do


que por sinais transmitidos de uma ponta a outra da minha aparelhagem, de minha
grande estação tentacular a partir da qual mensuro em tempo real as velocidades de
distanciamento de todos os mundos juntos, sua expansão indefinida a partir de um
enxamear de partículas em ações recíprocas. Através da comunidade das propagações, a
rede dos condutores, as cargas e descargas de suas tensões, faço subir em potência uma
frequência inaudita de trocas e de conexões. Eu mesmo, eis-me aqui, numa manutenção
impecável e transparente em si mesma, privada de sentido, verdade pura enfim capaz de
evanescer em sua própria manifestação.

O sino fala (o zangão)

Ele não sente como os signos insistem em torno dele. Não lhes percebe seus
deslizamentos. Não ouve seus pios. Não adivinha suas roçadas. Ninguém se desfaz
assim de suas intrigas. Eles trançam redes, estendem cabos no vazio, urdem, tramam,
atam e desatam.
Ele mesmo, quando fala, não se ouve? Ele não é o primeiro a receber, no eco de sua
voz sob seu crânio, o rastro de uma outra voz que se enviou na dele de mais longe, de
mais adiante do que ele? Sim, ele ouve isso: ele ouve em seu mundo rápido e feltrado
alguns sopros vindos de um mundo muito antigo, pleno de lentidão e de balbúrdia.

Ele não pode fazer com que ele se confunda com a coisa pois as coisas em si não se
confundem entre elas e seu princípio mais antigo do que todo princípio, sua razão de
antes de toda razão, tão recuada nas idades do mundo, que seu recuo é doloroso a
considerar, sua razão primordial e privada de razão não tem outra energia além da de
uma separação sempre recomeçada, e cuja srcem ela mesma é já separada de si, orifício
aberto, abismo e escancaramento dos lugares de onde se fazem os nascimentos, as
proveniências, as excrescências. Que ele seja separado até se provar decepado de todas
as coisas, eis por onde o mundo se dá a sentir, se abre a seu sentimento. Em seu peito,
infelizmente, duas almas se separam, se distinguem e se dilaceram mesmo puxando
demasiado forte sobre seus mínimos tegumentos. Mas ele, esse infeliz, eis que ele toma
essa tensão entre suas duas almas por uma cisão e uma expulsão do sentido. Por uma
liquidação e uma nadificação.

Ele tem e não tem razão. Bato sem descontinuar entre os dois, entre ele mesmo e ele
mesmo. Ele tem razão em recusar o separado. Ele está errado em não aceitá-lo. Somos
separados, e o sentido é feito de nossa separação. Somos separados em rochedos e em
peixes, em espumas e em nuvens, em lobos e em cidadãos, em eu e em tu, em homem e
mulher, em ver e tocar. Somos separados, isso faz sentido, quer dizer, distância
intransponível e frágil, portadora dela mesma e nada a mais – mas portadora sim, porta
aberta a nos entre-ter.

Fausto 8
Eu queria que o mundo cessasse de ser mudo como ele se tornou, e desde muito
tempo agora. Queria que o mundo falasse e que para esse fim uma palavra
verdadeiramente falante depusesse sua potência no oco das coisas mesmas. Queria um
silêncio desvairado de fervor para a imediatidade de nossos atos, de nossos cálculos, de
nossas operações prodigiosas. Queria que a língua cedesse o passo a um indizível
estupor e a transformações, revoluções insensatas. Sim, o insensato não cessava de me
guiar, e como, entretanto, ele poderia orientar?

Ele não pode guiar, mas extravia conscienciosa e obstinadamente. Entretanto o


insensato não é um outro que o irmão de sangue e de leite, de tudo o que reclama razão e
causa final,
destacar justificação,
por um corte claroredenção.
o instanteComo
que seé congela
difícil distingui-los! Como aquele
e aquele que passa, é impossível
que se
retém e aquele que se oferece. Como é improvável triar entre sentido e não-sentido,
entre signo e toque, entre palavra e silêncio.

A vós, livros queimados, vejo voltar um cortejo mudo de cinzas que espalham sobre
vós os rastros de uma fuga sempre por vir.
Não dizer nada e tudo dizer, fazer silêncio e reunir os sentidos em um verbo
soberano, é mesma ambição, mesma decepção. Livro santo e livro em cinzas têm o
mesmo texto cor de fuligem, cor de noite.

Mas vós restais, livros mal consumidos, fragmentos caídos sobre o lado das chamas
ou então permanecidos escondidos na espessura ainda intacta dos volumes espessos.
Vós sobreviveis ainda, páginas enegrecidas sobre as quais se podem decifrar os restos de
um poema, e se comover com sua beleza de ruína. Vós insistis, páginas chamuscadas
que deixais aparecer pensamentos implementados, conclusões truncadas, mas com eles o
movimento de uma inquietude, o levante de um elã, tantos convites a retomar.

Talvez seja necessário e desejável que os livros queimem e deles restem signos
calcinados para um deciframento febril, inquieto, en mal de sentido e de verdade. Mas
talvez não haja aí nada mais do que um desejo de me justificar?

O sino fala (o címbalo, o gongo)

Não dizer nada, dizer tudo, dizer a coisa em si e enterrar a palavra em sua pura
presença de coisa, isso dá no mesmo, no mesmo furor. É sempre esquecer a carícia do
signo, o afloramento das significações sempre enviesadas, jamais cumpridas. Nem o
explícito nem o implícito testemunham de nada, mas somente o desdobramento ou a
dobrura, sempre em meia-corrida. Não dizer tudo, mas deixar dizer alguma coisa de
todas as coisas.

A miséria do saber é grande, não menos grande é aquela do relato, na medida em que
se lhe espreite o fim e se lhe conte o ganho. Mas ao se fazer caminho, essa miséria se
conhece e se apiedade de si mesma. Ela se faz justiça assim. O saber se alivia das coisas
sabidas, e o relato, das coisas relatadas. Resta, entretanto, a queimadura do sentido que a
verdade fria e queimada não apaga.

Estes são os restos dos livros que se teriam por si mesmos abrasado – mas ele não
soube nada disso, ele que acreditou tê-los inflamado. Os restos são uma queimadura que
não se pode resfriar. As palavras não cessam por fim de nos faltar, no amor e no horror,
mas sua falta testemunha ainda por elas, testemunha pela sua insistência desajeitada. De
que as palavras lhe faltem no êxtase ou na síncope, terá sido preciso que de saída elas se
escrevam e de sua escrita terão restado sobre folhas enegrecidas traços ilegíveis que nos
retornam para enfim transcrever em uma língua a inventar.

É verdade que nosso saber não sabe mais que saber, e nosso relato recitar. Mas
falamos ainda com palavras de cinza, e traçamos ainda signos para somente nos
assinalar. Podemos esquecer todas as encantações e todas as evocações do inominável,
mas, adiante de nós, fazendo-nos sinal ainda, avança cada vez um novo inominado, que
faz signo sem significar.
Fausto 9
Os sinos se calaram. Não há mais alarme nem anúncio. Os próprios minaretes estão
mudos, e nos templos as campainhas são demasiado agudas. O incêndio é permanente ao
mesmo tempo que está em toda parte apagado. A cinza cobre os signos e os novos
signos são eles mesmos incinerados. Tudo se resolve em lava fria e círculos de fumaça
recortados sobre as paredes das bibliotecas.

O tinteiro que lancei na face do diabo enegreceu as páginas dos livros sagrados como
com uma bile negra e ardente. Não quero mais, livros, vos ler, mas cabe a vós me
decifrardes. Mas sei bem, oh ! sei apenas demasiado a que ponto sou ilegível e o quão
pouco vossos signos cegados poderão me interpretar!

Não se trata mais de interpretar: trata-se de somente provar a tinta queimada e sua
cinza resfriada. Não há mais alarme nem anúncio, pois eis que o pior é certo tanto
quanto o melhor e o indiferente – mas, sobretudo, o real é certo. Não há porvir pois não
há mais passado. Mais nada passa e tudo se mantém suspenso numa formidável
hesitação que abraça o instante presente. O presente não se apresenta mais, ele se depõe.

E, no entanto, sim, um novo inominado avança, ou então avançamos em direção a


ele. No entanto, sim, agora mesmo posso abrir um volume de páginas virgens e traçar a
primeira palavra de uma língua a inventar. Uma outra queimadura pode começar em
nosso desconhecimento, pois nosso desconhecimento é o saber exato do inominado.

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla


Revisão técnica : João Camillo Penna
6. Instantes da cidade

uma rua ficou calçada


entre ruas asfaltadas
belas pedras marrom-claro-luzidios
nas costas de grande lagarto
com um pouco de capim entre as escamas

terreno com vala barreira


guindaste pá cova
martelo pneumático compressor
gradeado de alarme
sobre todos esses canos
elétricos gasosos hidráulicos digitais

entranhas cabos condutores


esgotos porões catacumbas
abrigos fundação underground
metropolitano

rua ruptura via rupta


de um lado ao outro
sombra e sol ímpar par
passagem de pedestre

preenchida de outros assim como


de próximos e de longínquos
de vizinhanças
assembléia sem conjunto
conjunto de aparências
semelhantes entre-esfregados 338

nas cidades antigas


as cidades-cidades
há o instante do monumento
a glória dos deuses e dos homens
avisos do espírito
nas contemporâneas
há instantes de espera
um monumento surgirá?
ou bem um grande prédio
sem aviso

o trem o metrô o ônibus


cômodos transportes comuns
incômodas afluências
olhares à socapa
sonos em pé sentado e pescoços quebrados
jornais caídos

como supreende
pensar cada um
em seu apartamento
à parte virado todo para dentro
mônada mundo em si
a cidade fora
barulhenta longínqua outro mundo

*
rio fita riacho correia de água
margens de duas bordas ilhas e pontes
água preta e profunda mergulhada
em razão de ser da cidade
338
“[A]ssemblée sans ensemble/ ensemble de semblants/ semblables entrotées”. O trecho é todo composto
a partir das panaromásias: “ assemblée ”, “assembléia”; “ ensemble ”, “conjunto”; “ semblants ”,
“aparências”, “fingimentos”; “ semblables ”, “semelhante”. (N.T.)
*

urbanidade flutuante errante


pavilhões no campo
vamos trabalhar na cidade
zonas comerciais artesanais industriais
zonas cinturões toalhas expansões
até os confins de outras zonas

prazer da cidade esvaziada


férias grandes migrações
comuns transportes
vista das avenidas escancaradas

civilização de cidade
de que a cidade
foi signo emblema brasão
nem fortaleza nem santuário
nem domínio real
cidade
burgo de burguesia
falso burgo povo verdadeiro
periferia em zonas descivilizada
sem signos emblemas brasões
sinais sem placas concreto

centro da cidade
periférico downtown
enrolado em tornoem
dobaixo
embaixo
radial anel não penetrante
o embaixo fica impenetrável
a cidade está aí embaixo muito baixo
sob os arcos poderosos dos freeways

*
metrópole megalópole
cidade mãe grande cidade
polícia política polidez
cidade cidadão periferia banida339
vizindade civil
incivilidade de proximidade
urbana conurbação
tentáculos pseudópodos pseudópolis

na cidade ou em casa
para a cidade ou para a cena
na cidade ou no vilarejo

cidade completamente instantânea


sem vista de conjunto
sem paisagem
sem geografia
instantes pegados
locais juntados
juntas incertas

nem substância nem sujeito


encontro passagem cruzamento
des corpos chamadas índices gestos
marcas demarcações contramarcas
banco tribunal mercado
hotel estacionamento catedral
tabacaria farmácia drogaria
fastfood restauração rápida
kebab hotdog quiche pizza

339
« [B]anlieue banni ». Ambas as palavras tem como étimo o : « ban », a lei medieval que leva à pensa
aquele que não a cumpre. (N.T.)
sem duração tudo em momentos
aparições desaparições
sacada café plátano
corredor cabeleireiro florista
paliçada doceria
ruela porta campainha
antenas relais porta-tabuletas
cartaz filmes liquidações concertos
pessoas cruzadas esbarradas apressadas
pessoas apertadas pessoas absorvidas
maltrapilhos e maltrapilhas
anódinos e anódinas
contadinos contadinas
todos citadinos citadinas
modo de primos primas

Tradução: João Camillo Penna


7. Exclamações

Nota liminar. Esta rubrica não tem exatamente o caráter enciclopédico de um


artigo de dicionário, no sentido de que o seu objeto não está disponível de antemão e
suscetível
objeto de serdetratado
à espera como como
construção, um doso dados do campo
testemunha geral desta
a dificuldade queobra. É, antes, um
acompanhou a
escolha do título deste verbete, e que subsiste na medida em que apenas o contexto deste
dicionário pode sugerir o sentido preciso que se quer dar aqui ao termo “exclamações”.
Trata-se de considerar a significação ou o uso pornográfico do uso da fala na relação
sexual. (Pode-se aliás encontrar a palavra utilizada em certas descrições de caráter geral,
do gênero “o orgasmo pode ser acompanhado de exclamações ou de arrepios”. Mas não
existe um termo que se possa dizer próprio a esta significação, nem mesmo de conotação
pregnante como é o caso do termo “posição”. Entre várias razões possíveis, podemos
avançar o fato de que se trata de um registro bastante amplo em que podem entrar frases
inteiras, até discursos, assim como interjeições, gritos, gemidos: estamos em uma zona
intermediária, variada e situada no limite da linguagem.)

“Oh, céus, se Lúcifer se dipusesse a descarregar, ele espumaria menos, ele


dirgiria aos deuses blasfêmias e imprecações menos horrendas.” Esta comparação serve
para caracterizar o comportamento de um dos personagens de Sade (em Les prosperités
du vice [As prosperidades do vício], p. 171, da edição UGE). Como se sabe, em Sade
como frequentemente alhures na literatura erótica, as exclamações acompanham o ato
sexual, e singularmente o seu momento supremo. É exatamente assim no cinema (pornô
ou não), ou ainda em algumas canções (cf. “Jes vais et je viens” [“Eu vou e volto”] de
Gainsbourg ou bem Que je t’aime [Como te amo] de Johnny Hallyday).
O registro de palavras assim pronunciadas, assim como a sua tonalidade, pode
variar desde o grito ou da eructação até o murmúrio ou o grunhido – como entre dois
limites em que a linguagem desmaia. É assim que aos proferimentos obscenos e
blasfematórios do heroi sadiano podem se substituir breves emissões de aprovações ou
de implorações, como a série dos “”Por favor” e dos “sim”, nas cenas bastante delicadas
de Tout est illuminé [Tudo esta iluminado] de J.S. Foer. Podemos pensar então na
expressão religiosa da “oração jaculatória” que designa uma reza bastante breve,
monológica, repetida com fervor, expressão cuja ressonância involuntariamente obscena
provocou frequentemente sorrisos. A oração jaculatória está no cerne da tradição do
hesicasmo, cujo nome designa o apaziguamento pela repetição da exclamação fervorosa.
Não é um acaso, podemos imaginar, que um título de filme – Gritos e sussurros
– resuma a amplitude que vai de uma extremidade a outra das possibilidades
exclamatórias ou exclamativas. Embora o título do filme não seja exatamente dado na
intenção do que deve nos ocupar aqui, permanece o fato de que este título é
propositalmente desviado pelos locais ou sites pornográficos.
Mesmo se o desvio entre as duas possibilidades extremas é absoluto e oposto um
ao outro, como o cúmulo da crueldade gozosa no cúmulo da alegria amorosa, um fio
tênue quase imperceptível religa todos esses registros da exclamação (que esta seja por
outro lado o fato e a expressão para falar grego, de um(a) erasto no ardor de possuir ou
bem de um(a) erômano/a no fervor de ser possuída/o), segundo as diversas combinações
possíveis de quatro declarações elementares: “eu te como/eu gozo/você me come/você

goza”. Esse fio


pornográfico, contínuo
mesmo corresponde
se ele o é apenasade
ummaneira
carátervirtual
que se ou
pode dizer fundamentalmente
tendencial: alguma coisa
como uma pornografia ao menos possível, latente ou assintótica, parece pertencer ao
próprio fato do proferimento no ato amoroso. Esta é a razão que faz propôr esse verbete
de dicionário.
Se definirmos, com efeito, a pornografia como uma exposição do inexponível, e
este último não somente no sentido do indecente, mas literalmente no sentido do não-
mostrável, por exemplo, e precisamente, a emissão do licor sexual, feminino ou
masculino, e a emoção do gozar (tudo gira em torno dessas duas noções: a emissão e a
emoção) – então compreende-se como as exclamações, que o seu sentido seja
diretamente sexual ou antes amoroso (“eu te amo” pertence também a um dos registros
evocados: tudo se joga na entonação), sejam, de si mesmas, já na realidade vivida, uma
forma incoativa de pornografia, e por isso a pornografia qualificada deva fazer uso dela.
A fala vem aqui mostrar o que não se mostra, ou bem vem sublinhar que há um excesso
sobre o mostrável – como um paradoxal excesso de sentido sobre a própria sensualidade
e como um suplemento de confissão do inconfessável.
Que este uso, por outro lado, seja muito mais frequente na literatura do que no
cinema, ou nas diversas espécies possíveis de espetáculo pornô (pelo menos o autor do
artigo se aventura a conjecturá-lo a partir de experiências limitadas), isso pode sem
dúvida se explicar pelas dificuldades técnicas (exigências do jogo de cena, da tomada de
som, etc.), mas isso se explica também pelo fato de que a exclamação sexual pode ser
considerada tanto como uma espécie de poesia in nuce que como uma exibição
pornográfica de segundo grau, duplicando a visão sobre o plano da linguagem.
Com efeito, a exclamação – sobretudo sob a forma de uma certa maneira
paradigmática do “eu gozo!”- ou bem “Esporro! Não posso mais...!”, assim como aliás
“Sim”(pensemos na última linha de Ulisses de Joyce) - sob esta forma, portanto, cuja
essência o francês permite reunir na assonância “sim, eu (você) goza!”340 – não profere
nada senão uma evidência: ela enuncia o que tem lugar e que, por si mesmo, não tem
nenhuma necessidade de ser enunciado. Ela opera uma tautologia do ato, de que o uso
na língua oferece poucos equivalentes (senão, o que não é um acaso, a queixa: “Dói...”,
mas esta pode mais facilmente comportar também uma informação).
Este uso da fala remete ao mesmo tempo à tautologia (ou, melhor, à “tautegoria”,
segundo a palavra de Schelling para falar de mito) e à performatividade: tudo se passa
como se “eu/você gozo(a)” fizesse efetivamente gozar, ou pelo menos como se a
enunciação pertencesse ao gozar, e como se, consequentemente, gozar fizesse dizer, ou
se dizer, na medida em que dizer, e “o”dizer” (dizer “isso”) fizesse gozar. Daí seria

340
“Oui, je (tu) jouis”, a assonância se perde em português. (N.T.)
preciso ainda certamente aventurar-se a compreender também que “dizê-lo”, em si
mesmo e absolutamente, é gozo.
Da mesma maneira, e de próximo em próximo, devemos compreender as
designações do obsceno e do “vergonhoso” (gestos, partes do corpo, gostos...) como
tentativas propriamente desesperadas de atingir o coração esquivo do gozo, de exibir-lhe
o próprio eclipse. O “desespero” aqui pertence ao saber do “impossível” – mas ao
mesmo tempo ele o arremete além dessa designação demasiado simples de um
“impossível”: pois ele designa e enforma nisso, em suma, a própria possibilidade. É
aliás também por isso que se a pornografia consiste em permanecer presa ao fantasma da

exibição
quiser (e à exclamação
denominá-lo) comodosuperexibição),
se desfaz o amordo
fantasma retornando emgrito
compensação (ouecomo
ao murmúrio ao se
silêncio.
A exclamação toca portanto no centro do enigma pornográfico. De um lado, ela
não diz nada: ela dubla o ato de uma suposta nominação (como se “esporro!” pudesse
denominar do que se trata...) mas ela é apenas, na realidade, um abalo a mais deste ato.
Ora, não há, de fato, nada a dizer nem a mostrar. É o que faz o impasse constitutivo da
pornografia. Mas, ao mesmo tempo, o impasse se diz, nem que seja neste não-dizer no
entanto exclamado, nem que seja neste mal-dizer, esta “blasfêmia” e esta “imprecação”
que indexam a exclamação menos como transgressão religiosa do que como uma cólera
da fala desencadeada contra ela mesma, no ponto preciso em que ela não pode senão
dizer demais ou pouco demais. Poderíamos também fazer observar a Lacan que se a
relação sexual “não se escreve” (ou seja, se não há “relação”, relação consignada e
significante), em compensação, ela se diz, e ela se diz até – ou então a partir – da
extremidade de sua exclamação.

Bibliografia: Christian Prigent. « Un gros fil rouge ciré » [« Um grosso fio vermelho encerado »].
In : L’Intenable [ O insustentável]. Paris : P.O.L, 2004 ; Jean-Luc Nancy. L’« il y a » du rapport sexuel [ O
« há » da relação sexual ]. Paris : Galilée, col. « Incises », 2001 ; Jonathan Safran Foer. Tout est illuminé
[Tudo está iluminado ]. Tr. fr. Jacqueline Huet e Jean-Pierre Carasso. Seuil, col. « Points », 2003 ; para a
página 266 aqui evocada e que é apenas, como a última página de Ulisses, uma referência dentre um
milhão de outras possíveis na literatura : esta não sendo por acaso.o lugar verdadeiro em que se pode dar à
exclamação uma fala capaz, por um instante, de portä-la ; por essa razão, a bibliografia é aqui por
princípio impossível a delimitar. Preferir-se-ia portanto infringir a bibliografia para citar somente
Appolinaire em um de dos Poèmes à Madeleine [Poemas para Madalena]:

Eis do que é feito o canto sinfônico do amor que sussurra na conca de Vênus
Há o canto do amor de antigamente
O ruído dos beijos desvairados dos amantes ilustres
Os gritos de amor dos mortais violados pelos deuses
As
Há virilidades
também os dos herois
gritos fabulosdas
da loucura os bacantes
erigidos como
loucasosdecírios
amorvão
poreter
vêm comoo umhipômanes
comido rumor obsceno
secretado pela
vulva das éguas no cio
Os gritos de amor dos felinos nas selvas
O rumor surdo das seivas subindo nas plantas tropicais
O estrondo das marés
O trovão das artilharias em que a forma obscena dos canhões realiza o terrível amor dos povos
As ondas do mar onde nasce a vida e a beleza
E o canto vitorioso que os primeiros raios de sol faziam Mêmnom cantar o imóvel
Há o grito das Sabinas no momento do rapto
O canto nupcial da Sulamita
Sou mais bela mas negra
E o rugido de Jasão
Quando encontrou o tosão
E o mortal canto do cisne quando a sua penugem se apertava entre as coxas azuladas de Leda
Há o canto de amor de todo o amor do mundo
Há entre as coxas adoradas de Madalena
O rumor de todo o amor como o canto sagrado do mar sussura inteiro na concha.

Tradução: João Camillo Penna


8. La selva

para Jacqueline

Estaorla
Na múltipla que se
de nossas mantém
vidas
Esta toca de panteras
De enigmas de círculos de céus

Esta clareira disposta


Lá adiante nós indecisos
Se penetraremos suas vias
Suas pistas despidas de signos

Esta tão silvestre e folhuda


Onde galhos mal se abrem
Arranhadoras torcidas e fustigantes
Boas apenas para o javali

Esta silvana murmurante


Silvos e faunos atarefados
Ninfas sob a rude casca
Molhadas de licores arbóreos

Seiva de altíssima virtude


Desligada deliciosa nua
Graciosa dama florestal
Com gosto de espuma e de cova

Selva cerrada da lembrança


Descerrada pela bela força
De um poema o outro chamando
De árvore em árvore todo arrepiado

Tradução: João Camillo Penna


9. Sprung

Dem Sprung hatt ich Leib und Leben zu danken 341.

Ao salto devo a vida, ao salto para fora de minha mãe, ao salto para fora de mim mesmo.
Como eu estaria aqui sem para fora ter saltado?
Como sair senão por salto,
Por elã, pressa, lançado?
Como já que não há passagem,
nem menor continuidade
entre o dentro fechado
e o fora desdobrado?
entre imanência e transcendência?
entre vida viceral imersa
e sopro, grito, olhar, abalo?

Sim, é pelo salto que começa


o passo e o não, a passagem sem lei,
o lançamento no meio as coisas
dessa outra
que sai, coisa
surge, se de repente
precipita
cabeça antes, cabeça abaixada,
cabeça que salta para pensar

Es wär ein Sprung gewesen, wie man von einem Gedanken auf einen andern und
schönern hüpft342

saltando de um pensamento ao outro,


pensando de um salto, de um sprung, de um spring,
sperkos, salto, hopsala,
de um golpe, de um lance de dados,
de um apesar de tudo lançado,
pirueta e cambalhota,
entrechat, sobressalto, súbito salto,
sem conclusão nem premissa
lógica volteio e vertigem
Natur nimmt den kürzesten weg (lex parsimoniae); sie thut gleichwohl keinen sprung,
weder in der folge ihrer veränderungen, noch der zusammenstellung specifisch
verschiedener formen (lex continui in natura) 343.

341
Schiller. Die Räuber [Os ladrões ], 1, 2. [Schiller. Os ladrões . « Àquele salto eu devo a vida e o
corpo ». {N.T.}]
342
Ibid., 2,2. [“Teria sido apenas um salto, como saltamos de um pensamento a outro e melhor.” {N.T.}]
Mas natureza jorra e surge
primum aurora novo cum spargit lumine terras
…quam subito soleat sol…344

Oh como o sol pula, e todos os corpos celestes,


e como salta fora o broto de capim
verde súbito pontudo
e o pinto quebra a casca
e o homem dança,
o homem a mulher
e o deus dança
o fogo
e a poeira e a fagulha

e saltam um dois três


as cifras os átomos
quanta impulsos ultracurtos
tempos reais tempos fulgurantes

oh! o salto
que a vida se deve para ser
e o pensamento
a coisa em si

oh! o salto mesmo se


Salto mortale
A ele ainda
pertence o pulo por cima
do intransponível

Der ein grossen sprung wil thun, gehet zuvor hinder sich345.

Tradução: João Camillo Penna

343
Kant. Kritik der Urteilskraft, Erste Einleintung, V. [« A natureza toma o caminho mais curto ( lex
parsimoniae), de igual modo não dá saltos, nem na sequência das suas mudanças, nem na articulação de
formas específicas diferentes (lex continui in natura ) ». Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério
Rohden e António Marques. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995, 2a edição, p. 26. {N.T.}]
344
Lucrécio. De rerum natura [Da natureza], II, 144-147. [Lucrécio. « Primeiramente quando a aurora
inunda de nova luz […] quando subitamente o sol levantando-se .» {N.T.}]
345
Christian Egenolff, Sprichwoerter , 237a, 1565.
Coda
1. A única leitura

Se não há, para mim, uma única leitura e eu estaria em apuros para fornecer a forma
geral de uma atividade como esta.
Há a leitura informativa: leio para aprender o que o texto pode me informar. Esta
leitura nãoEla
exemplo). se distingue
domina nadeleitura
outrosde
tipos de registro
trabalhos de dados (a
de estudantes, deescuta de umà curso,
candidatos por
publicação.
Há a leitura embarcada: subimos à bordo, deixamo-nos levar, derivar em direção
a costas desconhecidas; vamos ao ritmo das ondas, ao sabor das correntes. Identificamo-
nos, não necessariamente com o heroi, mas como o movimento da escrita. Esta leitura
não se distingue de outros desatracamentos: escutar uma música, ver um filme. Ela
remete antes à literatura, sem excluir a filosofia: mas o seu limite é o tempo disponível.
Ao final de um momento, tenho pressa de escrever...
Há a leitura de uma cabeça de pesquisador: lê-se para encontrar alguma coisa,
persegue-se uma pista. Por exemplo, lê-se para descobrir a presença ou o funcionamento
de um conceito, de uma imagem, lê-se para descobrir uma estrutura, uma significação
latente, associações reveladoras. Esta leitura não se distingue de outras buscas analíticas,
interpretativas, seletivas.
Cada uma das minhas leituras, sem dúvida, combina alguma coisa dessas três
formas
ela em proporções
é a mais próxima davariáveis.
escrita. OsA rastros
terceiraque
assume mais são
descubro importância
destinadoscom
ao omeu
tempo: mas
próprio
uso. Eles se tornarão materiais, citações, alusões. Na realidade, não paro de pular da
leitura para a escrita.
Eu deveria concluir por onde comecei: a leitura me escapa enquanto forma,
essência ou propriedade definida.
Mas essa tentativa de aproximação descobriu para mim uma verdade bastante
simples. A única leitura que verdadeiramente se distingue desses modos insuficientes é a
leitura em voz alta. Só ela mantém à distância a informação, a identificação, a
interpretação. Ela confia o texto aos lábios, à garganta e à lingua: estas tomam a
dianteira sobre a cabeça. A voz toma a dianteira sobre a letra, ou seja, o sentido se
encontra afastado, não suprimido mas distraído, empurrado para a margem, adiado para
mais tarde, para nunca mais talvez. Ou bem o sentido se faz sensível, sensitivo, sensual,
o que é uma outra maneira de não terminar como sentido inteligível.
A leitura em voz alta – não muito alta, é preciso regular bem o volume – é a
única que dirige o texto de uma boca a uma orelha, mesmo que seja a minha própria
orelha. A orelha abre uma ressonância interminável, em mim e fora de mim, de mim
para fora de mim, de você em mim. Nada está mais perto da essência da linguagem: o
eco do murmúrio das coisas.

Tradução: João Camillo Penna


,- /01!2/!

Filosofia, literatura: demandas.

Cada uma demanda a verdade. Cada uma demanda também a verdade da outra, de
duas maneiras: cada uma interroga a outra sobre a sua verdade, cada uma detém a
verdade da outra.

A verdade: a coisa em si, o ser ou o outro, o existente, o parecer, o sentido. Cada uma
demanda tudo isso junto: demanda que tudo isso seja apresentado como tal.

Mas cada uma entende diferentemente esse « como tal ». A filosofia quer que a coisa
como coisa seja coisa que por si se indique, se designe e ao mesmo tempo retire seu ser-
coisa aquém de toda significação. Também a coisa como tal é aqui coisa alguma: coisa
da coisidade de todas as coisas, nada. Do mesmo modo o sentido como tal é o sentido
que se faz conhecer enquanto sentido – por exemplo, não uma impressão luminosa, mas
uma impressão tal que ela se clareie a si mesma como « impressão luminosa ». E, por
esse ato, ela se obscurece. Não estamos mais ocupados em ver, mas em ver a visão. O
sentido em geral será sentido verdadeiro lá onde ele poderá mostrar que ele é o sentido,
e assim cessar de remeter a outro, a outros: o que, no entanto, é o seu próprio ser de
sentido. Também a verdade é aqui interrupção do sentido.

A literatura entende « como tal » como comparação, figura, imagem, truque de


[tour]346 de apresentação. Por exemplo: eis um homem como « Leopold Bloom ». Ele é
parecido com ele, é composto por seus traços. E, antes de tudo, por seu nome. Depois,
por sua história, pois não há nome sem história. Então Leopold Bloom mostra o homem
como tal, quer dizer, como Leopold Bloom, ou seja, como o homem que tem um nome e
uma história, a sua história. Nesse caso, a operação não pode parar: a verdade do homem
está em Bloom, cuja verdade está no homem cuja verdade está no nome e na história de
Bloom. Aqui a verdade é a impossibilidade de interromper o sentido.

No entanto, é o inverso que vemos da maneira mais impressionante: a Filosofia não


para de prosseguir, continuar, retomar, tirar consequências; não pode nunca parar
(mesmo e, sobretudo, quando é « o fim da filosofia »). A literatura, ao contrário,
interrompe: corta o relato em algum lugar, sempre arbitrariamente, seja no início ou no
fim.

_PQ I$D(. $ 2.(1$ 92$)(;8 >.( 0)-(+8 + /$2+ cc8 /+ -A ccA <#AKA=
A filosofia demanda incessantemente que a verdade se consume. A literatura
demanda que a verdade prossiga. Mas cada uma demanda a outra, pois a consumação da
primeira seria o relato integral da segunda e o prosseguimento infinito da segunda seria a
consumação da primeira.

Se isso ocorre, não há mais demanda. Então não se fala de literatura e de filosofia:
fala-se de sabedoria e de mito. É um outro mundo, um mundo inverso ao mundo da
demanda de verdade.

A sabedoria se consuma dizendo – por exemplo, dizendo « faça isto, não faça
aquilo ». E para isso ela afirma e ordena, não demanda nada. Nem mesmo ser
reconhecida como sábia, pois ela também diz « não creia que a Sabedoria seja sábia:
cabe a você sê-lo ».

O mito dá no relato inteiro, desde o iníciozinho até eu (por exemplo, Mr. Bloom). Ao
mesmo tempo não há nada a acrescentar, nem antes nem depois, e o relato é
interminável pois ele não para de se recitar. Nada a demandar aí tampouco.

Filosofia e Literatura são Sabedoria e Mito que entraram em demanda. Portanto,


tendo cada um se perdido ou perdido um ao outro. Uma perda – ou então um
desdobramento.

A Sabedoria desdobra até o fim a sua verdade segundo a qual não há de modo algum
nem sabedoria nem caminho. Ela inaugura o caminho que não leva a lugar nenhum, mas
que sempre se demanda novamente como caminho: « método ».

O Mito desdobra até o fim o interminável de seu relato e sua verdade segundo a qual,
bem longe de terminar na interminável recitação, ele é interminável na terminação de
cada relato. Uma vez contada, a história de Ulisses se abre novamente pelo seu fim.
Haverá novas errâncias.

Errância e método, método de errância, errância metódica, caminho que não é


traçado, mas que é o próprio rastro de um passo que vai avançando, que vai passando,
que apenas vai despertando para si mesmo a possibilidade de uma direção, de um
destino, de um desejo.

Apenas fazendo conhecer seu desejo, que ele mesmo se inventa a cada passo, sendo,
no entanto, apenas o desejo do próprio passo.

Demanda de passagem: eu gostaria de ir por aqui, em direção àquilo que está do


outro lado de onde me encontro. Gostaria de sair daqui e que lá longe se tornasse aqui
para mim, de onde eu ainda partiria. Gostaria de passar o rio, a montanha, o mar.
Gostaria de passar a mim mesmo. Gostaria de passar sem mim.

Demando isso polidamente, sem violência, mas não se enganem com isso: « eu
gostaria » significa « eu quero », é a vontade mesma. É vontade de vontade: demanda
de eternidade, eterno retorno do mesmo passo, cujo rastro fugaz é a atestação disto: que
há aqui alguém que passa.

Demandamos
esqueçamos apenas
saberes isso. Há
e crenças. Esqueçamos
apenas essa« filosofia,
demanda: literatura, mito,
quero passar. Nãosabedoria »,
quero ser,
nem conhecer, mas passar e me sentir passar. Ou você – é igual.

Passar – o limite, forçadamente. Passar o limite do interrompido e do ininterrupto.


Nem acabamento, nem inacabamento. Nem conclusão, nem suspensão. Mas a passagem
que se demanda.

Jean-Luc NANCY

P. S.: Faço questão de mencionar aqui todo o meu reconhecimento a Ginette Michaud,
que assegurou o estabelecimento dos textos franceses e a própria composição do volume
com um cuidado incomparável.

Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do


Nascimento Loyolla
3#+4$&56&75( 8+% 9$:'+%

1. « Um dias, os deuses se retiram… » seguido de Documento em anexo


(« Un jour, les dieux se retirent… » . Bordeaux: William Blake & Co., col. « La pharmacie de Platon »,
2001. Primeira versão dos textos: « Entre-deux » foi publicado no Magazine littéraire (Paris), n° 392,
novembro de 2000 ; a primeira foi publica da com o título de: « À votre guise » em La Quinzaine littéraire
(Paris), n° 793, 1-15 outubro de 2000 ; tr. espanhola Juan Barja, Sileno (Madrid: Edicion Identificacion y
Desarrollo), vol. 9, 2000 ; tr. inglesa Franson Manjali. The little magazine (Delhi), « between story and
truth », vol. 2, n o 4, julho-agosto de 2001 ; tr. dinamarquesa Jesper Lohmann. Passe partout (Aarhus, DK,
Aarhus Universitet), n° 22, 2003.)

2. As razões de escrever
(Escrito em abril de 1977, este texto foi publicado em Misère de la littérature . Maurice Blanchot, Michel
Deutsch, Emmanuel Hocquard, Roger Laporte, Jean-Luc Nancy, Jean Louis Schefer, Mathieu Bénézet,
Philippe Lacoue-Labarthe. Paris: Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison », 1979.)

3. Vox clamans in deserto


(Foi primeiro publicado em inglês, tr. ingl. Nathalia King. In: Notebooks in Cultural Analysis (Durham,
Duke University), n o 3, 1986 ; depois em francês, em uma versão modificada em: Furor , nos 19-20, 1990 ;
retomado em: The Birth to Presence (Stanford: Stanford University Press, 1993) ; traduzido em hebraico
por Ariella Azoulay. Plastika (Tel Aviv: École d’Art Camera Oscura), n° 4, 2002 ; retomado em Le Poids
d’une pensée , L’approche. Strasbourg: La Phoci de, 2008 ; tr. ingl. Miguel de Beist egui, em: Jean-Luc
Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.). Stanford: Stanford University Press, 2006 ; tr.
espanhola Joana Masó e Javier Bassas Vila, em El peso de un pensamiento. Castellón: Ellago Ediciones,
2007.)

4. Relato, recitação, recitativo


(Publicado em Europe . Cahier « Philippe Lacoue-Labarthe », n o 973, maio de 2010.)

5. …deveria ser um romance…


(Publicado em Contemporary French and Francophone Studies (Londres: Routledge), vol. 16, n° 2,
março de 2012 ; et em Cerrados , tr. portuguesa (Brasil) Fabricia Walace Rodrigues et Piero Eyben,
« Acontecimento e Experiências Limites », vol. 1, n o 33, 2012.

6. Da obra e das obras


(Inédito ; conferência proferida no Museu Rodin, Paris, junho de 2011.)

7. Para abrir o livro


Prefácio a Didier Cahen. À livre ouvert . Paris: Hermann, 2013. (? À préciser plus tard).

8. Cálculo do poeta
(Publicado em Des lieux divins seguido de Calcul du poète . Mauvezin: Éditions T.E.R. Trans-Europ-
repress, 1997 [1987] ; tr. alemã Gisela Febel e Jutta Legueil. Kalkül des Dichters nach Hölderlins Mass.
Stuttgart: Jutta Legueil, 1997 ; tr. italiana Antonella Moscati, « Calcolo del poeta », Micromega.
Almanacco
desertati »].diPádova:
filosofiaIl, Poligrafo,
2/1998 ; tr.1999
italiana
; tr. [com Luoghi
japonesa divini] com
Masaichiro posfácio
Onishi. de Luisa
Shoraisha Bonesio
. Tokyo, [« Luoghi
2001.)

9. Fazer, a poesia
(Publicado primeiramente em: « Nous avons voué notre vie à des signes… » , Jean-Paul Michel (ed.).
Bordeaux: William Blake & Co., 1997 ; retomado em Résistance de la poésie . William Blake & Co.,
1997 ; tr. inglesa Leslie Hill, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanford University Press, 2006.)

10. Contar com a poesia


(Esssa entrevista com Pierre Alferi foi primeiro publicada em: Revue de littérature générale (Paris: P.O.L
éditeur), « La Mécanique lyrique », n o 1, 1995 ; retomado em Résistance de la poésie . William Blake &
Co., 1997 ; tr. italiana Alberto Folin. Anterem (Verona), n° 60, 2000 ; tr. inglesa Leslie Hill, em Jean-Luc
Nancy. Multiple Arts. The Muses II . Simon Sparks (ed.). Stanford: Stanford University Press, 2006 .)

11. A razão demanda a poesia


(Essa entrevista com Emmanuel Laugier foi publicada (sem título) em: L’Animal (Metz), « Cahier Jean-
Luc Nancy », n os 14-15, verão de 2003.)

12. Wozu dichter


À préciser par Jean-Luc plus tard.

13. Noli me frangere (com Philippe Lacoue-Labarthe)


(Esse texto, inicialment e destinado a ser publicado em alemão (tr. alemã Edmund Jacoby) em: Fragment
und Totalität (Lucien Dällenbach e Christian L. Hart Nibbrig (eds). Francfort-sur-le-Main: Suhrkamp,
1984), foi publicado em francês na Revue des sciences humaines (Lille: Université de Lille III), « La
littérature et la philosophie », n o 185, 1982 ; e na revista Europe , Cahier « Philippe Lacoue-Labarthe », n o
193, maio de 2010.)

14. Responder pelo sentido


(Po&sie (Paris: Éditions Belin), n° 92, 2000 ; retomado em La Pensée dérobée. Paris: Galilée, col. « La
philosophie en effet », 2001, p. 167-177 ; tr. espanhola Isaac D. Entrabasaguas e Juan-Manuel Garrido.
Vertebra (RIL Editores, Santiago de Chile), n° 6, novembro de 2000 ; tr. italiana Francesco Garritano e
Marina Machi. Ou. Riflessioni e provocazioni (Cosenza: Edizioni Scientifiche Italiana), vol. X, 2,
2000 ; tr. alemã Jadja Wolf. Singularitäten . Marianne Schuller e Elisabeth Strowick (eds). Freiburg im
Brisgau: Rombach Verlag, 2001 ; tr. americana Jean-Christophe Cloutier. A Time for the Humanities .
Futurity and the Limits of Autonomy . J. J. Bono, T. Dean et E. P. Ziarek (eds). New York: Fordham
University Press, 2008.)

15. Corpo-teatro
(Publicado em Passions du corps dans les dramaturgies contemporaines . Alexandra Poulain (dir.).
Villeneuve d’Ascq: Presses universitai res du Septentrion, col. « Arts du spectacle – théâtre », 2011.)

16. Após a tragédia


(Inédito em francês; conferência proferida no Colóquio « Honoring the Work and Person(s) of Philippe
Lacoue-Labarthe (1940-2007) », organisado por Avital Ronell e Denis Hollier. New York University e
Cardozo Law School em abril de 2008 ; publicado em traduções grega e alemã.

17. Ressurreição de Blanchot


(Conferência proferida em janeiro de 2004, na abertura do ciclo de conferências consagradas a Maurice
Blanchot. Centre Georges Pompidou, sob a direção de Christophe Bident ; publicado em: La Déclosion
(Déconstruction du christianisme, 1) . Paris: Galilée, col. « La philosophie en effet », 2005.)

18. O neutro, a neutralização do neutro


(Publicado em Cahiers Maurice Blanchot (Paris: Les Presses du Réel), n° 1, 2011.)

19. Psykhé
(« Psyche » foi primeiro publicado em Première Livraison (Paris), no 16, 1978. Esse texto foi citado in
extenso e comentado por Jacques Derrida em: Le Toucher, Jean-Luc Nancy . Paris: Galilée, col. « La
philosophie en effet », 2000.)

20. A Jovem Carpa


(Datado de fevereiro de 1979, esse texto foi publicado em: « Haine de la poésie ». Mathieu Bénézet,
Michel Deutsch, Emmanuel Hocquard, Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, Bernard Noël, Alain
Veinstein et Franck Venaille. Paris: Christian Bourgois éditeur, col. « Première livraison », 1979.)

21. Ele diz


(Texto escrito para o espetáculo do Teatro Tsaï, Celui qui ne parle pas , montado em Grenoble em 1983
(Paris, 1984) ; publicado em Cahiers du GRIF (Bruxelles), « L’Indépendance amoureuse », 1985 ;
retomado em Le Poids d’une pensée (Grenoble e Québec: Presses universitaires de Grenoble e Les
Éditions Le Griffon d’argile, 1991) em em: Le Poids d’une pensée. L’approche (Strasbourg: La Phocide,
2008) ; tr. ingl. Simon Sparks, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanfor d University Press, 2006 ; tr. espanhola Joana Masó e Javier Bassas Vila, em El peso de
un pensamiento . Castellón: Ellago Ediciones, 2007.)

22. Peã para Afrodite


(Publicado em: Po&sie (Paris), no 56, 1991 ; retomado em: Le Poids d’une pensée , op. cit., e em: La
Naissance des seins, com um desenho de Jean Le Gac. Paris: Galilée, col. « Lignes fictives », 2006 ; tr.
ingl. Jonathan Derbyshire, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanfor d University Press, 2006 ; tr. espanhola Joana Masó e Javier Bassas Vila, em: El peso de
un pensamiento . Castellón: Ellago Ediciones, 2007 .)

23. « No meu peito, ai, duas almas … »


(Inédito em francês; « Nel mio petto, ahimé, due anime… » , tr. italiana Alberto Panaro, em: Claudio
Parmiggiani. L’Isola del silenzio. Turin: Umberto Allemandi & C., 2006 ; tr. Inglesa. Topoi , vol. 25, nos 1-
2, primavera de 2006 ; tr. italiana Alberto Panaro, em: Jean-Luc Nancy. Narrazioni del fervore fervore. Il
desiderio, il sapere, il fuoco , com um ensaio de Flavio Ermini. Bergame: Moretti & Vitali Editori, col.
« Andar per storie », 2007.)

24. Instante da cidade


(Publicado em E-rea (revista eletrônica do mundo anglógfono), 7 : 2, 2010.)

25. Exclamações
(Publicado no Dictionnaire de la pornographie . Philippe Di Folco (dir.), prefácio de Jean-Claude
Carrière. Paris, PUF, col. « Grands dictionnaires », 2005, e « Il y a du rapport sexuel – et après »,
Littérature (Paris, Larousse) , n° 142, junho de 2006.)

26. La Selva
(Publicado em I pensieri dell’istante. Scritti per Jacqueline Risset. Roma: Editori Internazionali Riuniti,
2012.)

27. Sprung
(Publicado em francês e em alemão em Brink Magazin zwischen Kultur und Wissenschaft , n° 2, junho de
2012.)

28. A única leitura


(Publicado em La Quinzaine littéraire (Paris), n° 905, 1er ao 31 de agosto de 2005.)

29. Demanda
(Inédito, dezembro de 2009.)

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