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JEAN-LUC NANCY
DEMANDA
LITERATURA E FILOSOFIA
SUMÁRIO
Apresentação
Jean-Luc Nancy, A orla do sentido de Ginette Michaud
I. Literatura
1. « Um dia, os deuses se retiram… »
(Literatura/filosofia: entre-dois)
seguido de: Documento em anexo (2001)
2. As razoes de escrever (1977)
3. Vox clamans in deserto (1986)
4. Relato, recitação, recitativo (2008)
5. …deveria ser um romance… (2012)
6. Da obra e das obras (2011)
7. Para abrir o livro (2012)
II. Poesia
1. Cálculo do poeta (1987)
2. Fazer, a poesia (1997)
3. Contar com a poesia (1995)
Entrevista de Jean-Luc Nancy com Pierre Alferi
4. A razão demanda a poesia (2003)
Entrevista de Jean-Luc Nancy com Emmanuel Laugier
5. Wozu Dichter (2012)
III. Sentido
1. Noli me frangere, com Philippe Lacoue-Labarthe (1982)
2. Responder pelo sentido (2000)
3. Corpo-teatro (2011)
4. Após a tragédia (2002-2008)
5. Ressureição de Blanchot (2004; 2011)
6. O neutro, a neutralização do neutro (2011)
Coda
1. A única leitura (2005)
2. Demanda (2009)
1
Jean-Luc Nancy. « Les raisons d’écrire » [« As razões de escrever»]. In : Misère de la littérature ,
Maurice Blanchot, Michel Deutsch et al. Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison »,
1979, p. 83-96. Cf. texto retomado neste volume, p. XX.
2
J.-L. Nancy, « La Jeune Carpe » [“A Jovem Carpa”]. In: « Haine de la poésie », Mathieu Bénézet,
Michel Deutsch et al.. Paris: Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison », 1979, p. 95.
(Reconhece-se na paronomásia do título do poema célebre de Valéry, A Jovem Parca .) Cf. Nessa
coletânea, p. XX.
vozes” e do retorno da biblioteca (motivo que reecontraremos bem mais tarde em Sur le
commerce des pensées [Sobre o comércio dos pensamentos].3) Por outro lado, Nancy
consagrará não somente vários textos teóricos importantes à literatura – notadamente à
poética de Hölderlin (“Cálculo do poeta”), à questão do corte e do “vercejamento” do
verso, ao “de cor” da recitação, ao caráter imemorial do relato e da voz do aedo4 - , ele
escreverá igualmente numerosos ensaios críticos consagrados a Maurice Blanchot,
Pascal Quignard, Michel Butor, Roger Laporte, Michel Leiris e Jean-Christophe Bailly,
para nomear apenas esses. Isso não dá, no entanto, ainda, toda a medida de sua escrita,
que explora toda sorte de vias e toca em vários registros: recitativos para óperas (“No
meu peito, infelizmente, duas almas...”, “Stabat Mater”), prosas e ensaios inspirados
(Corpus, La Ville au loin [A cidade ao longe], Tombe de sommeil [Túmulo de sono]),
poemas (Les traces anémones [Os Rastros anêmonas]), relatos, leituras e
“acompanhamentos” (Fortino Sámano. Les débordements du poème [Fortino Sámano.
Os transbordamentos do poema]) – sem falar de O intruso5, relato dilacerante que tem
um status à parte nesse vasto corpus, Nancy abordando nele a experiência do seu
transplante, do “coração extrudado”, que sofreu em 1990, impulsionando uma
inesquecível ressonância com uma questão, que, entre todas, foi-lhe estreitamenre
associada desde o começo de seu trabalho filosófico: a interrupção, o suspense, a
síncopa (este era o título de seu primeiro opus de 1976, Le Discours de la syncope [O
Discurso da síncope]). O “syn” grego é também o “cum” latino, ou o “ com”, a separação
e a conjunção, a conjunção disjuntiva que não cessa de abrir-se e de se afastar em toda
essa obra de pensamento. “Síncope”: o que abre toda a síntese no seu próprio coração,
como ele dirá na entrevista “A razão demanda a poesia”(p. XX) ou ainda, como ele a
definiu também um dia: “o que mantém reunido o separado e põe o distinto de acordo,
also sprach ich zu Dir”.
importanteDesde a sua
obra que fezpublicação, em 1978,
data no campo L’Absolu
da teoria littéraire
literária [OPhilippe
e na qual AbsolutoLacoue-
literário],
Labarthe e Jean-Luc Nancy apresentavam uma primeira tradução dos escritos dos
Românticos alemães, a questão das relações entre literatura e poesia – a “filoliteratura” 6:
relação “de uma partilha extremamente complexa e ela própria sempre em
transformação”7, como ele o sublinha ainda em L’Adoration – esteve sempre no cerne
dos trabalhos perseguidos em comum pelos dois amigos filósofos. Contudo, um e outro
tomarão, depois de L’Absolu littéraire, vias bastante diferentes, Lacoue-Labarthe
engajando-se na grande questão da mímesis e de sua “ontotipologia”, localizada por ele
na metafísica e particularmente em especial no “nacional-esteticismo” de Heidegger,
enquanto Nancy se vira, antes, na esteira de Bataille (La Pensée dérobée [O Pensamento
esquivado]) e de Blanchot (La communauté désoeuvrée [A comunidade desobrada], La
Comparution [A coaparição]), para motivos que ele próprio descreve como “ontológicos
e comunitários (ou bem: de comunidade ontológica)”8. O “cum”, esse pensamento do
3
4
Paris : Galilée, col. « Écritures/Figures », 2005.
Questão que retorna em Pean para Afrodite (1991) e ainda em « Relato, recitaçã o, recitativo » (2008),
entre outros textos retomados nessa coletânea.
5
Há uma tradução em português : O intruso . Tradução de Aluisio Pereira de Meneses. In: Polichinelo.
Revista literária, n° 15. Poéticas da transgressão. Belém: Lumme editor, 2013, p. 23-30. (N.T.)
6
J.-L. Nancy, « D’une “ mimesis sans modèle”. Entretien avec Philippe Choulet au sujet de Philippe
Lacoue-Labarthe »[« De uma ‘ mimesis sem modelo’. Entrevista com Philippe Choulet sobre Philippe
Lacoue-Labarthe »], L’Animal , Cahier « Philippe Lacoue-Labarthe », n os 19-20, inverno 2008, p. 109.
7
J.-L. Nancy, L’Adoration (Déconstruction du christianisme 2) [A Adoração (Desconstrução do
cristianismo 2)].Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 2010, p. 62.
8
J.-L. Nancy, « D’une “ mimesis sans modèle” », L’Animal , loc. cit., p. 109.
“com” deixado em suspenso no Mitsein e no Mitdasein heideggerianos, a questão do
ser-em-comum – conceitos carregados de valores e de conotações “pesadas”,
particularmente as relativas à reunião (do povo), ao assunto do sentido – são assim
reexaminadas por Nancy, como o testemunham vários títulos de suas obras que
mostram, nos anos 1990 e até os dias de hoje, um pensamento filosófico em constante
expansão: L’Oubli de la philosophie [O esquecimento da filosofia] (1986), L’Éxpérience
de la liberté [A Experiência da liberdade](1988), Une Pensée finie [Um Pensamento
finito] (1991), Le Sens du monde [O Sentido do mundo] (1993), Être singulier pluriel
[Ser singular plural] (1996). De todos os conceitos saídos da tradição filosófica e
reavaliados pelo filósofo, menos para os “superar”, aliás, ou “terminar” com eles, do que
para instilar neles uma nova circulação de sentido, é sem qualquer dúvida o do comum,
ou do em-comum, o que mais mobiliza a sua atenção: esse “co-existente”, “esse ‘com’
constitutivo do existente deve ser compreendido, precisa ele, ‘não de maneira categorial,
mais existencial’. O que significa que não se deve tomá-los como uma simples
determinação extrínseca, mas como uma condição intrínseca da possiblidade mesma da
ek-sistência, isto é, nada menos do que pôr em jogo o próprio sentido do ser ou o sentido
de ser.9”
Essa “co-presença de todos os entes”, em que o “com” é “a condição do
sentido”, forma assim o cerne de uma posição filosófica, que é igualmente de parte a
parte filosófica, pois ela exige que se pense em consequência “a necessidade de uma
política não dominadora”10. Ora, é igualmente essa posição que se encontra
exemplarmente exposta na arte e na literatura, onde, de saída, a oralidade dá lugar a uma
antecedência infinita, à “suposição insuponível, insuportável, impossível de assujeitar,
de uma sujeito da fala”, como Nancy o sublinha em “Relato, recitação, recitativo” (p.
XX). Ele explicitará essa relação essencial da ficção com o mundo em L’Adoration:
É também por isso que o nosso mundo é o da literatura: o que esse termo designa de
uma maneira perigosamente insuficiente, decorat iva e ociosa, não é outra coisa senão que a
facilitação [ frayage ] das vozes do “com”. Ali onde o que nomeamos mito dava voz à srcem, a
literatura capta as vozes inumeráveis de nossa partilha. Partilhamos a retirada da srcem e a
literatura fala a partir da interrupção do mito e em alguma medida nela: é nessa interrupçãp que
ela faz, que fazemos sentido. Esse sentido é ficção: quer dizer que ele não é nem mítico nem
científico, mas se dá na criação, na moldagem [ façonnement] (fingo, fictum), de formas elas
mesmas móveis, plásticas, ducteis, segundo as quais o “com” se configura indefinidamente 11.
A literatura, ou a arte (pois não há nenhuma hierarquia aqui entre as artes em
sua relação ao sentido: trata-se para cada uma, em cada uma, de uma singularidade
plural, ao mesmo tempo distinta e aberta a todos, qualquer que seja a sua forma: textual,
visual, sonora, coreográfica, cinética, etc.), é o que é sensível à possibilidade do sentido;
é o que, por efeito de contágio, de contato, de comunicação (sempre esse “cum”), “é
sempre suscetível de ‘fazer’, ou pelo menos sugerir um sentido”12. Um sentido, sentidos,
e não o sentido; significância, significabilidade, e não significação. E na arte se designa
assim esquivando-se a relação à coisa em si, à coisidade de todas as coisas, isto é: nada
aquém ou além de toda significação: acesso, excesso, “demais”, endereçamento, graça e
9
J.-L. Nancy, « Mit - Sinn », inédito, 2010, p. 1. Agradeço a Jean-Luc Nancy de me haver dado acesso a
esse texto e de me autorizar a citá-lo. Verificar o texto aparecido desde emtão.
10
Ibid., p. 2.
11
J.-L. Nancy, L’Adoration , op. cit ., p. 62.
12
J.-L. Nancy, « Mit - Sinn », loc. cit ., p. 2.
adoração (ad-oratio13), como o sugerem igualmente de maneira particularmente forte as
proposições de Nancy sobre o traço do desenho14.
Paralelamente a esse imenso terreno em construção, em que os conceitos filosóficos
mais essenciais são analisados a novas expensas, como para esgotar a sua própria
“essência”, como é o caso com “a cesura da religião”, em La Déclosion, Nancy
prossegue, portanto, também, com formidável profusão e energia, toda uma série de
trabalhos relativos à imagem (Au fond des images [No fundo das imagens]), à “arte” e à
literatura (entendamos essa palavra segundo a acepção alargada que ele lhe confere em
“Fazer, a poesia”: “O poema, ou o verso. (Poder-se-ia também nomeá-la: a estrofe, a
estância, a poetas,
escritores, frase, a artistas
palavraplásticos,
– ou o canto)”(p.
músicos,XX). Nessas
nas quais eleintervenções
entra a cadacom artistas,
vez em contato
com um mundo de pensamento e de sensibilidade singular, Nancy analisa a
incondicionalidade na fonte da questão da “arte”, franqueando-a da estética, para, antes,
retomá-la a partir de aspectos insuficientemente considerados pelos discursos
dominantes na história da arte ou na estética: sua “fabricação”, seu “fazer”, sua arte de
apresentar e seus truques, sua maneira de fazer sentido, em suma, sua relação com o
mundo, sua maneira de modelá-lo. Pois a arte, ou a literatura, não tem para Nancy nem
utilidade nem função: ela é troca, partilha, passagem, trans-formação de formas, sem
dado prévio. Talvez a especificidade da arte (se há alguma) residiria para ele nessa
fórmula, a saber que a arte não faz sentido ( meaning), ela faz sentir (guardando a própria
palavra entre as línguas15): “Isso se denomina uma sensação: tal é a primeira feição do
sentido”16.
A arte é aqui o lugar da aproximação, sem apropriação possível, da coisa em
si, “abordagem de uma intimidade inimaginável”17, que se oferece ao se retirar,
captando de maneira sensível essa retirada, em que o tocar, o toque, só pode advir pelo
afastamento, espaçamento, envio ao outro. A arte – toda ars, toda tékhne: a literatura, o
poema , o canto, ou qualquer outra forma nascente – oferece assim um acesso
privilegiado na medida em que ela “se” faz sentido no transbordamento do sentido, pelo
excesso e a intensificação. O que a ars dá a pensar/sentir como relação ao mundo,
Nancy o condensa nesses termos: “No sentimento tal como o compreendemos
(enquanto afeto, emoção, perturbação) [...], não há nada de outro que o desenvolvimento
desse sentimento de si que faz o mundo: abrir-se e receber-se de sua própria abertura
como tantas pinceladas indefinidamente multiplicadas e repassadas de coisas em coisas,
de pressões em tomadas, de conversores em refletores, de ações em reações”. Esses
acessos sensíveis, eles próprios irredutivelmente diversos - o sensorial, o sentimental, o
sensual, o sensato -, são indissociáveis do prazer/desprazer, dimensão privilegiada em
toda essa aisthésica do corpo erótico, afetando-se, gozando/sofrendo (corpo duplo,
múltiplo até, com-pondo aqui também smpre com o outro).
13
Cf. J.-L. Nancy. L’Adoration , op. cit ., p. 18, 22, 28 et 32.
14 Cf. Trop. [Demais ] Jean-Luc Nancy, avec François Martin et Rodolphe Burger (curadores : Louise
Déry, Georges Leroux e Ginette Michaud. Montréal : Galerie de l’UQAM, 2006), À plus d’un titre –
Jacques Derrida [A mais de um título – Jacques Derrida ] (Paris : Galilée, col. « Écritures/Figures »,
2007) e o texto « Le plaisir au dessin » [« O Prazer do desenho »] para a exposição epônima ( Le Plaisir au
dessin , curadoria de Jean-Luc Nancy, com Sylvie Ramond e Éric Pagliano. Lyon : Musée des beaux-Arts
de Lyon, Paris, Hazan, 2007).
15
Jogo de palavras transli nguístico intraduzív el. Michaud joga aqui com os homófonos “ sens ”, em
francês, sentido, e “ sense ”, em inglês, sentido no sentido de sensação, dos cinco sentidos (olfato, gosto,
tato, etc.). (N.T.)
16
J.-L. Nancy, « Mit - Sinn », loc. cit ., p. 3.
17
Ibid.
As artes – e entre elas, a literatura, em primeiro lugar, embora ela não tenha
por isso um status privilegiado – são assim postas por Nancy como o lugar mesmo de
pôr em obra a différance18, do múltiplo em um, segundo essa fórmula enigmática de
Heráclito, a que ele remete com frequência (e retraduz de perto): “o um diferindo de si”
[“l’un différant de soi”]. Cada arte é assim única e heterogênea, isolada e exposta, forma
que divide e mescla ao mesmo tempo qualidades distintas (visuais, sonoras, tácteis, etc.)
e as faz comunicar, pondo-as em contato e afetando-as, localidade infinitamente
divisível, em extensão. As figuras da arte, das artes, são também subtraídas, em um jogo
geral de diferenças que as mescla todas “umas com relação às outras, todas assim fundo
ou figuras umas das outras19”. É então que o sentido – sempre ao mesmo tempo
inteligibilidade, sensibilidade sensualidade – se toca: “[...] é o que denominar-se-ia
também, justamente, ‘o sentido do mundo’. O sentido do mundo como suspensão da
significação – mas compreendemos doravante que uma tal ‘suspensão’ é o próprio
tocar20”. Desprendidas da significação, dislocando o “senso comum”, as artes, a
literatura, a poesia se dão como arte de apresentar uma coisa, alguma coisa, nenhuma
coisa: uma coisa de nada (res), que não é e não tem outro objeto (intenção, finalidade,
destinação) senão apresentar e espaçar essa pluralidade sensitiva ou sensual.
Não se trata, portanto, simplesmente para Nancy de reconhecer que a obra de
arte entretém uma relação com o mundo, e sim que o próprio mundo vem nela para
formar-se nela: forma formans, formação infinita de cores, de pinceladas, de vibrações,
de densidades, de torneios, nuances, tons, reflexos, brilhos, sombras... A cada vez, o que
atrai Nancy nessas obras-mundos, quer se trate de literatura ou de qualquer arte, de cada
arte, é apanhar ali – saudar ali – a vinda de um mundo em processo de nascer em uma
forma ainda não dada, não ainda fixada: uma forma que “joga de novo e relança o ex
nihilo que é [a] partilha21” do mundo.
O mundo é um mundo de relatos, de recitações de relatos. A começar por todos
esses relatos do mundo que todas as culturas sempre recitaram e das quais a nossa
« literatura » é em suma ela mesma por sua vez o relato: ela se esforça em contar
onde estamos, e como, não somente com esse fato do mundo e de nosso estar-no-
mundo, mas o modo como nós nos relacionamos com nossos próprios relatos do
mundo, a sua antiguidade e a sua perda, com aquilo que nos parece por isso ilusões
ingênuas ou promessas frustradas. Como interrompemos os mitos e quais vozes se
pressionam para falar através dessa interrupção. O mito – um mundo se recitando ele
mesmo, uma tautegoria como dizia Schelling – se interrompeu diante da injunção do
logos : a verdade apareceu como o objeto de uma alegoria , maneira de dizer um
objeto outro, inapresentável, somente representável.
Mas, na verdade, todo relato torna-se de novo mythos : não que ele fabrique
figuras mais ou menos potentes, sedutoras e críveis, mas abre a fala a ela mesma, à
sua própria pulsão e pulsação. A palavra, a voz, o relato sensível do sentido.
(“Relato, recitação, recitativo”, p. XX; Nancy sublinha.)
18
Referência à noção formulada por Jacques Derrida, num ensaio célebre de mesmo titulo. O
neografismo, différance , parte da alteraçã o da vogal “e” pela vogal “a”, quando a grafia corrente da
palavra é différ ence (diferença). Várias soluções foram adotadas na tradução do termo em português,
diferância , em Portugal, ou diferência no Brasil. Optei por deixar o termo em francês. Cf. a nota dos
tradutores brasilei ros do ensaio, Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. (Jacques Derrida.
“Diferença”. In: Margens da filosofia . Campinas: Papirus, 1991, p. 33-34.) (N.T.)
19
J.-L. Nancy. Les Muses [As musas ]. Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 1994, p. 47.
20
Ibid., p. 44.
21
J.-L. Nancy. L’Adoration , op. cit ., p. 61.
O leitor encontrará nessa coletânea vinte e nove textos de tons e formas bem
diversas, que compõem entretanto um conjunto de grande coerência. Dividido em quatro
partes que escandem nele as grandes articulações, o livro dá a ouvir a partilha das vozes
– timbre, modulações, fraseado, ritmo sobretudo – de Jean-Luc Nancy no que tange a
literatura.
A primeira parte, denominada simplesmente “Literatura”, reúne textos dos
“começos”, não importanto a esse respeito a data, 1977 ou 2012, em que foram
redigidos, pois é todo o pensamento do filósofo que é insistentemente atento a esse
nascimento do sentido. Tudo se abre portanto aqui sob o signo da retirada dos deuses,
como ocena
Nessa deixa ouvir o primeiro
inaugural texto
da retirada dosdessa seção,
deuses, “’Um dia
ao mesmo os deuses
tempo de lutose retiram...’”.
e de desejo, o
mythos se interrompe e se abre ao mesmo tempo, deixando em suspenso um intervalo,
uma fresta onde se entrevê um vestígio, “resto material e rastro evanescente de uma
presença que não vale como subsistência, como ser-presente-aí, estável e manifesto, mas
que vale como passar, ir e vir, chegar, sobrevir e partir” (“Cálculo do poeta”, p. XX).
Nancy reafirma assim, como o fará mais tarde em La Déclosion e L’Adoration, até que
ponto a ausência dos deuses é a condição comum da literatura e da filosofia, ambas
sendo portanto “irreversivelmente ateológicas”: é essa ausência, esse entre-dois
(seríamos tentados a escrever: “entre-deuses”) que as “legitima uma à outra”: “Mas,
quanto a elas duas, elas têm ofício de tomar cuidado com o entre-dois: de manter-lhe o
corpo aberto, de lhe deixar a chance dessa abertura”(“Um dia, os deuses se retiram...”, p.
XX). Essa questão do entre-dois, ao mesmo tempo abertura e afastamento, se faz
essencial portanto logo de saída.
Ainda nessa primeira seção, “As razões de escrever” retém igualmente a
atenção, ao pôr o acento sobre a questão –mais, a necessidade – da reescrita e da
recitação. Já em 1977, Nancy ouve, com efeito “[u]m chamado urgente [...] em várias
gargantas de escrita”(p. XX): “O chamado que se repete vem sempre dele. É o chamado
de uma solidão anterior a todo isolamento, a invocação de uma comunidade que
nenhuma sociedade contém nem precede. Como liberar o totalmente outro comum do
livro? Pergunta alguém, qualquer um escrevendo, um eu que se chama” (p. XX). Essa
atração pela voz, seja ela silenciosa ou muda, clamor ou murmúrio, infinitamente
“renovados de uma demanda, de um chamado urgente” (p. XX), Nancy não cessa de
ouvi-la ressoar, inspirando, expirando, e notadamente, no comovente, “Ele disse” ou no
mais irônico, “Vox clamans in deserto”, que encena essa câmera de ecos. Tratar-se-ia
nesse chamado reiterado, de “vocação, de invocação ou de advocacia” (p.XX)? “Relato,
recitação, recitativo” oferece uma resposta a essa questão, ao mesmo tempo que é um
exemplo privilegiado do entre-dois, quando entre ária e recitativo, entre melodia e
ritmo, um equilíbrio delicado surge de repente, que deixa passar “a efusão cantante tanto
quanto a pulsação falante, bordejando uma pela outra. Quando é bem sucedido, isso se
ouve” (p. XX, nota XX). Nessa seção que reagrupa igualmente textos bem recentes,
Nancy
romanceexamina assim,
(“...deveria seralém do relato, todas
um romance...”, as categorias
2012), as própriasfundamentais da literatura:
noções de autor e de obra o
(“Da obra e das obras”, 2011) e de livro (“Para abrir o livro”, 2012).
A segunda parte da coletânea se concentra na poesia, com razão, seríamos
tentados a acrescentar, já que “A razão demanda a poesia” (é o que sublinha também
fortemente o título, escolhido por Nancy, desse livro, Demanda, que, em sua elipse
característica, entre verbo e substantivo, reza e mandamento, mantém ele mesmo essa
oscilação vibrante do entre-dois). O metro, escreve Nancy, em “Cálculo do poeta”, “é
propriamente o divino: isto é, o incomensurável em sua precisão estritamente
determinada, a exatidão do impossível” (p. XX). Se o metro inscreve ele mesmo,
materialmente, insiste ele, a “passagem dos deuses”, comprende-se a importância de que
se revestem essas questões relativas à métrica e à prosódia que estão longe de ser
somente “técnicas”. Essa seção propõe portanto um sobrevoo sobre os principais
aspectos relativos ao “fazer” da poesia, ao cálculo e à desmedida, ao corte e à escansão
sobretudo, posta em obra pelo poema. Nesses textos teóricos maiores, que se distribuem
em trinta e cinco anos (de “Cálculo do poeta”, 1977, a “Wozu Dichter”, 2012), Nancy
persegue aqui uma reflexão exigente que esclarece as relações, ricas e complexas, que
ligam para ele o pensamento do poema à poética de Hölderlin, a sua “ars poetica”,
técnica de composição visando um “ponto absoluto de exatidão” (“Cálculo do poeta”, p.
XX) – e sabemos o alcance dessa palavra no pensamento do filósofo. O poeta propõe
assim “O ato que calcula exatamente o momento – o instante, a pesagem, a passagem –
da presença do todo. O ato que não deixa, pois, nada fora dele: nem o pano de fundo de
uma ‘intenção’ nem o de uma ‘coisa em si’. Mas a coisa mesma em presença do olhar
mesmo, na claridade mesma – e o afastamento, o escancaramento dessa ‘mesmidade’,
seu cálculo exato” (p.XX). As qualidade saudadas em Hölderlin – sobriedade, concisão,
obra como “lugar de um dizer exato: ponto de passagem, intonação, flexão” (p. XX) –
marcam precisamente a potência desse pensamento do poema e da relação singular para
com a língua representada por ele para Nancy: “[...] não saberíamos insistir demais sobre
o fato de que é nelas, língua, prosódia, rítmica, é diretamente sobre as palavras e sobre o
canto que se dispõem o tom e o tato de sua poética – quer dizer, de seu pensamento, o
lado de fora de seu pensamento, seu pensamento fora de pensamento” (p. XX). Com
uma coerência remarcável, Nancy propõe em “Wozu Dichter” (“Porque poetas em um
tempo de indigência?”) uma nova maneira de compreender esse verso célebre de
Hölderlin, tão frequentemente comentado em contrasenso, segundo ele, aliviando-o de
todo o pathos e sublinhando justamente essa inflexão, o “fazer” particular que lhe
confere o poeta, o mais próximo possível dos recursos da língua alemã e de “seu próprio
trabalho de ritmo e de canto” (p. XX).
A terceira parte da coletânea reúne, por sua vez, textos bastante diferentes,
mas que têm todos por núcleo a questão do sentido. Na esteira de L’Absolu littéraire,
prolongando-o e distanciado-se dele, essa seção se abre com uma entrevista com
Philippe Lacoue-Labarthe que reencena a forma do Gesprach dos Românticos e critica
as sugestões da escrita fragmentária à luz da publicação, então recente, de L’Écriture du
désastre [A Escrita do desastre] de Maurice Blanchot. Emprestando várias vozes – esse
diálogo (“Noli me frangere”), do “corpo-teatro”, da tragédia, da questão do neutro
segundo Blanchot, cujo pensamento do desobramento [ désœuvrement] importa tanto,
como sabemos, a Nancy (dois textos lhe são, aliás, consagrados, exceção notável já que
os textos que portam sobre autores particulares foram todos postos de lado na presente
seleção) -, a questão do sentido se traduz para Nancy em termos de resposta e responso,
de ressonância, o sentido sendo da saída pensado como envio e escuta, música ou
palavra à beira do canto. Ressonância, ou seja, também, tensão e espera, acesso que não
alcança, desejo desse ponto inaudito em que a literatura e o pensamento passam um ao
outro e se afinam (como instrumentos antes de tocar a partitura), antes mesmo de dizer
alguma coisa, nesse ponto singular extremo, de corte e toque, que é “escansão de
verdade no sentido” (“Responder ao sentido”, p. XX). O filósofo mescla então a sua voz
à do recitante sagrado: “A ressonância, ela, faz ouvir: não diga o que é, mas faça ser o
seu dizer. Essa inversão quiasmática não é uma pirueta: é o esboço mais simples, e com
certeza também o mais pobre, do que faz ressonância entre poesia e filosofia, dizer o ser
ou ser (fazer ser) o dizer”(“A razão demanda a poesia”, p. XX). Em “Responder do
sentido”, Nancy retorna ainda a essa questão da vocalidade e dispensa uma atenção
sustentada às inflexões infinitamente furta-cores e sutis da voz entre requisição,
demanda, desejo, reclamação, súplica, aos “rumores da língua”, para emprestar a
expressão de Roland Barthes e mesmo das “Exclamações, à beira de toda a linguagem
articulada: esse aspecto aparece, certo, como um dos traços mais significativos do
pensamento da língua desdobrado por Nancy.
Na quarta e última parte, intitulada por Nancy, “Parodos”, reencontramos vários textos
escritos, à margem, bem à margem... da poesia. De fatura diversa, esses textos
constituem explorações em todos os gêneros, franqueando as categorias genéricas, como
o testemunham o poema recitativo, que acompanha uma obra de Claudio Parmiggiani
o(“No meuem
poema peito, infelizmente,
prosa, “Pean paraduas almas...”),
Afrodite” (que afaz
suite
eco,poética
em umdeoutro
“Instantes daacidade”
registro, ou
“Um dia,
os deuses se retiram...”). Dentre todos esses textos, destacamos “Psyché” (um texto
bastante breve ao qual Nancy retorna várias vezes, aliás, em sua obra, e que sera
igualmente comentado por Jacques Derrida, em Le Tocuher, Jean-Luc Nancy [O tocar,
Jean-Luc Nancy]) e “Ele diz”, que ocupam um lugar bem particular, dando o lá ou a
“blue note”, a “nota azul”, se quisermos, em termos de justeza musical, de sua própria
voz. Ambos os textos constituem bem fortes e elípticas “cenas primitivas” da relação
entre literatura e filosofia tal como colocada por Nancy. Retém igualmente a atenção, “A
Jovem Carpa”, texto que “parodia” o grande texto de Valéry, mas que não é apenas
simplesmente o seu pastiche, como o sugeri acima, pois “Quem recita o canto mais
simples, quem o imita/ No descuido de se dissipar?... Quem recita/ Sem riso em sorriso
no instante de citar?” (p. XX). Esses textos “de juventude”, como se diz, trazem já, com
efeito, uma figura cardinal da obra filosófica de Nancy, aquela da boca se abrindo
(“Fala!... mantenha, porém, a boca fechada!”), do mesmo modo que “a tentação do
recitante” (“A Jovem Carpa”, p. XX) que impregna esses escritos. “ Sprung”. Poema
filosófico, ou filosofia feita
e do salto, emblemática poema,
de toda sublinha
a obra essa figura
de pensamento de primordial
Nancy. entre todas, do jorro
Enfim, uma Coda, formada de dois textos breves, vem ainda descerrar mais
do que cerrar este livro, insistindo, de um lado, sobre a “Demanda” incessante e
recíproca que se fazem Filosofia e Literatura (“A filosofia demanda incessantemente que
a verdade se consuma. A literatura demanda que a verdade prossiga”), sob pena de
retornar ao Mito e à Sabedoria; e, de outro lado, sobre a leitura, gesto ele também
enigmático, que “me escapa enquanto forma, essência ou propriedade definida” e que,
empurrando sempre o sentido para a margem, o distrai e o suspende infinitamente (“Só a
leitura”, p. XX).
Ginette Michaud
(Departamento de literaturas de língua francesa,
Universidade de Montreal)
Um dia, os deuses se retiram. Por si mesmos eles se retiram de sua divindade, quer
dizer, de sua presença. Não se ausentam simplesmente: não vão alhures, retiram-se de
sua própria presença: ausentam-se dentro.
O que resta de sua presença é o que resta de toda presença quando ela se ausentou:
resta o que se pode dizer dela. O que se pode dizer dela é o que resta quando ninguém
pode mais se dirigir a ela: nem lhe falar, nem tocá-la, nem olhá-la, nem lhe dar um
presente.
O que se pode dizer da presença ausentada é sempre de duas coisas uma: é a sua
verdade,
Mas comoou éa a presença
sua história. Bemnão
fugiu, entendido,
é maisconvém
certo que seja a sua história
qualquer históriaverdadeira.
dela seja
absolutamente verídica: pois nenhuma presença vem atestá-la.
Chama-se mythos o relato das ações e das paixões divinas, entre as quais sempre há o
que olha o mundo e sua marcha, o homem e sua sina. Mythos significa o dizer de alguma
coisa, pelo que se faz conhecer a coisa, o caso: em latim, sua narratio, que é seu saber.
Quando os deuses estão retirados, sua história não pode mais ser simplesmente
verdadeira, nem sua verdade ser simplesmente contada. Nelas falta a presença que
atestaria
conta. a existência do que se conta ao mesmo tempo que a veracidade da palavra que
Falta o corpo dos deuses: Osiris permanece desmembrado, o grande Pan está morto.
Falta o corpo verdadeiro que proferia ele mesmo sua verdade: sua estátua respingada do
sangue das vítimas, impregnada dos vapores do incenso, ou então o bosque sagrado no
qual se escuta rumorejar a fonte onde desemboca uma presença subterrânea.
Falta esse corpo proferidor, resta o que se pode dizer dele – e o dito se tornou
incorporal, igual ao vazio, ao lugar e ao tempo. São as quatro formas do incorpóreo, isto
é, do intervalo no qual os corpos podem ser achados, mas que não é nunca ele mesmo
um corpo. O intervalo tem por propriedade se abrir e se dividir.
O dito não é mais dado, compacto, com o corpo divino, oração de seus lábios: ele se
afasta de si, se distende, logos.
Verdade e narração, portanto, se separam. Sua separação é traçada pelo próprio traço
que se estira sobre a retirada dos deuses. O corpo dos deuses é o que resta entre as duas:
nelas ele resta como sua própria ausência. Nelas ele permanece corpo pintado, corpo
figurado, corpo contado: mas não há mais o corpo a corpo [mêlée] sagrado.
Entre literatura e filosofia falta esse enlaçamento, esse abraço, esse corpo a corpo
sagrado do homem com o deus, ou seja, com o animal, a planta, o raio e o rochedo. Sua
distinção é, por isso, exatamente o desenlaçamento, o desabraço. O corpo a corpo assim
desemaranhado é partilhado22 pela mais cortante das lâminas: mas o próprio corte traz
para sempre as aderências do emaranhado. Entre as duas, há algo de não-emaranhável.23
Verdade e narração se separam de tal maneira que é a sua separação que institui a
ambas. Sem a separação não haveria nem verdade nem narração: haveria o corpo divino.
Não só a narração é suscetível ou suspeita de carecer de verdade, mas ela é privada
de verdade desde o princípio, estando privada do corpo presente como boca de seu
próprio proferimento, como pele de sua própria exposição.
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2*>. ?). $-2+( -$( )1 $) $)2($ 0./2*3$A <#AKA=
23
Nancy joga aqui com um constelação de derivados de “ mêlée”, confusão de combatentes no corpo a
corpo, luta, conflito, palavra derivada de “ mêler ”, “misturar”, “mesclar”. Optei por traduzir os derivados
com variações do verbo “emaranhar: “ démêlée ”, “desemaranhar”, “ emmêlement ”, emaranhado”,
“indémêlable ”, “não-emaranhável”. (N.T.)
torna: « o que é a verdade? ». Transpor [ franchir] a questão, no entanto, libertar-se dela
[s’affranchir],24 permanece o ponto de fuga, a perspectiva infinita do que desde então se
nomeia logos.
A narração expõe figuras: ela se inventa como a figuralidade em geral, quer dizer, o
traçado dos contornos pelos quais um corpo se assinala e de antemão se faz corpo, mas
um traçado do qual permanece duvidoso se o corpo que ele envolve é verdadeiro. O
traçado narrativo expõe uma manifestação de corpos que não é seguro que seja
identicamente um corpo manifesto.
A perspectiva da verdade visa, pois, essa falta 25 como o lugar do que ela tanto
deseja, mas cuja falta ela se aplica a mostrar. Mostrando a falta – a própria figura, a
imitação, a representação, a alegoria, a mitologia, a literatura – ela diz a verdade dela:
que ela é uma falta, que está em falta (erro, ilusão, mentira, enganação). Dizendo essa
verdade, ela, no entanto, diz apenas a metade do verdadeiro: nela falta [ manque] a
presença para além da figura ou na própria figura. Mas o discurso da verdade profere
que essa presença está além do ser. O próprio discurso impele até esse além, onde ele se
abisma numa luz excessiva, deslumbramento no meio do qual se abole toda possível
figuralidade.
24
Em francês o verbo “ franchir ” significa tanto transpor (um obstáculo), atravess ar, saltar, quanto superar,
vencer (uma dificuldade), libertar-se. (N.T.)
25
“Défaut ”, significa em francês “falta”, “ausência”, “carênci a”, presente em expressões como: “ à
défaut ”, “na falta de”, “ faire défaut”, “fazer falta”, “faltar”; “être à défaut ”, “faltar um compromisso”; “ en
défaut ”, “estar em falta”. O sentido de “défaut” recobre um campo significante bastante dist into de
“manque ”, “manquer ”, “falta” e “faltar”, que se perde em português. (N.T.)
Mas é uma cena, e ela se atua de modo bastante efetivo. É uma cena simultânea de
luto e de desejo: filosofia, literatura, cada uma em luto e em desejo da outra (da outra em
si), mas cada uma também rivalizando com a outra no cumprimento do luto e do desejo.
Às vezes é a literatura que conduz o luto que a filosofia sofre ou denega. Às vezes é a
filosofia que sustenta a ausência que a literatura maquia. Mas o gesto de uma pode
muito bem ser o feito da outra. Também pode haver um poema filosófico que se esgota
no desejo da outra e de fazer poema: Zaratustra esbraveja para terminar:
E pode haver um pensamento, ligado sem religião em seus versos a Vênus, que
termina assim, excrito27 fora das palavras, seu canto da natureza levado ao rubor do
fogo:
26
Friedrich Nietzsche. Ainsi parlait Zarathoustra. Un livre pour tous et pour personne. Tradução e
apresentação de Georges-Arthur Goldschmidt, Paris, Le Livre de poche, col. « Le livre de poche
classique », 1972, p. 466. Tradução modificada por Jean-Luc Nancy. Nietzsche somente sublinha
« obra ». (N.E.F.)
27
Verbo e noção cunhada por Nancy, “ excrire ”, “ex-crever”, sublinhando-se o prefixo ex- de exterior; ou
“excrit ”, “excrito”, em que se ouve ainda al go como o “ex-grito”. Sobre essa questão, ver not adamente, o
seu “L’Excrit”, sobre a escrita de Georges Bataille (em Une pensée finie . Paris: Galilée, 1990; depois
retomado em Alea. Estudos neolatinos . Vol 15 #2, julho/dezembro 2013). (N.T.)
28
Lucrécio, De la nature. De rerum natura , VI, v. 1283-1286. Tradução, introdução et notas por José
Kany-Turpin. Paris : Aubier, col. « Bibliothèque bilingue », 1993, p. 467. (N.E.F.) s sobre piras que
tinham sido acumuladas para outros e depois chegavam-lhes as tochas], e preferiam bater-se, com grande
derramamento de sangue, a abandonar aqueles corpos
mundo, sempre mais atravessado de ausência, sempre mais em intervalo, incorpóreo,
sem por isso saturá-lo de significação, de revelação, de anúncio nem de apocalipse. A
ausência dos deuses é a condição das duas, literatura e filosofia, o entre-dois que
legitima tanto a uma quanto a outra, irreversivelmente ateológicas. Mas, as duas, elas
têm ofício de cuidar do entre-dois: de manter-lhe o corpo aberto, de deixar-lhe a chance
dessa abertura.
DOCUMENTO EM ANEXO29
« Filosofia », hoje, é um termo em voga, uma mercadoria pela qual somos gulosos.
Dizem que é o efeito de um déficit de sentido de nosso mundo e de um apetite de
consilium que resulta disso. Acham, com efeito, que se procura antes de tudo – e que se
põe à vendade– virtudes,
instrutiva uma filosofia conselheira:
provedora doadora de lições,
de representações, até mesmocom
preocupada de reconfortos,
sabedorias
(orientais ou orientadoras), sempre o diálogo nos lábios (em linguagem ordinária) e a
ética ao alcance da mão, com forte provisão de valores e de sentidos.
Mas filosofar não é de maneira alguma buscar num reservatório de sentidos. Não é
preencher um déficit, é remexer a verdade de fio a pavio. Filosofar começa exatamente
ali onde o sentido é/está interrompido. É assim que o caso [affaire] começou há vinte e
sete séculos: por uma grande interrupção das significações disponíveis nas margens do
Mediterrâneo (essas significações que iam receber o estatuto de « mitos »). Que nós
conheçamos hoje uma outra suspensão de sentidos (por exemplo: os significantes
« história », « homem », « comunidade », « arte »), isso não tem nada de novo – a não
ser a abertura de novas exigências e novas possibilidades para o pensamento, para a
palavra e para a escrita do pensamento.
Esta, para começar ou para recomeçar – o que ela faz sem cessar, sempre por
essência in statu nascendi –, tem necessidade de impetus. Filosofar não vai sem elã,
muito menos sem um elã violento, que lança adiante e que arranca também: que arranca
ao sentido depositado, sedimentado, meio decomposto e que lança em direção a um
sentido possível, sobretudo não dado, não disponível, que é preciso espreitar,
29
Aquilo que respondeu a uma proposição de escrever « à sua guisa ».
30
É Nancy quem traduz. (N.T.)
surpreender em sua vinda imprevisível e jamais simples, jamais unívoca. Para que um
prisioneiro saia da caverna de Platão, é necessária alguma violência: forçam-no a se
virar, a luz o fere. O pensamento não se acaba somente num fulgor ofuscante, ele
começa também por aí. Entre os dois, está o lento crepúsculo em que a coruja ergue, até
a aurora, suas potentes asas hegelianas.
Certamente, é preciso que pensemos. Tudo voltou a ser, de novo, não somente
digno de pensamento, mas precisando ser pensado. O capital, por exemplo, diante do
qual não basta agitar exorcismos, nem estender compromissos; a identidade, que parece
ter-se tornado incapaz de se afastar de si para se reportar a si; ou então a soberania, da
qual não se sabe mais nada, senão que ela provém de uma ordem teológico-política da
qual estamos desligados. Eu poderia continuar por muito tempo, e, bem entendido,
acrescentar à lista a filosofia, que seu uso intemperante tornará em breve insignificante.
(E a literatura junto? Mas – a poesia resiste.)
Isso demanda um elã: quer dizer, sobretudo não o movimento de buscar seguranças.
Isso demanda um levante, uma insurreição no pensamento. Risco portanto, e balbúrdia.
Não se pode ser demasiado sábio para filosofar; para isso é necessário mesmo um tanto
de loucura. Nada é mais próximo de uma loucura do que o ato de « se criar e se dar a si
mesmo seu objeto », que é para Hegel « o ato livre do pensamento31 ».
31
Georg Wilhelm Friedrich Hegel. La Science de la Logique, Encyclopédie des sciences philosophiques
III, Philosophie de l’esprit, edição de 1830, § 17. Tr. fr. Bernard Bourgeois. Paris: Vrin, 1988, p. 183. É
Hegel quem sublinha. Tradução modificada por Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)
2. AS RAZÕES DE ESCREVER
Não é mais possível escrever coisa qualquer sobre o assunto livro: se tratar-se,
com efeito, da « questão do livro », para retomar a expressão de um dos textos que
constituem o horizonte dessa impossibilidade (Edmond Jabès e a questão do livro, de
Jacques Derrida), é necessário que coloquemos sem delongas que essa questão seja
doravante tratada (ela no entanto não fez nem pode fazer o objeto de tratado algum). Querer
hoje avançar, inovar qualquer coisa sobre ela, só pode remeter à ignorância ou à
(verdadeira ou fingida) ingenuidade. Algo de definitivo se consumou, quanto a essa
questão, por um conjunto, uma rede, ou como se queira nomeá-la, de textos incontornáveis.
Eles se nomeiam: Mallarmé, Proust, Joyce, Kafka, Bataille, Borges, Blanchot, Laporte,
Derrida. Lista incompleta sem dúvida, lista talvez injusta – não é menos certo, por isso, que
seja preciso não somente passar por ela, mas permanecer nela. O que não tem nada de
fetichista, de idólatra ou de conservador – muito pelo contrário: deveríamos nos aperceber
disso. É tempo de afirmar que a questão do livro está aí, já. O pietismo reacionário
consiste, completamente ao inverso, em solicitar indefinidamente, com zelo ou voracidade,
esses mesmos textos, para deles extrair e relançar, de mil maneiras mais ou menos
declaradas, por glosa, imitação ou exploração, uma questão do livro em forma de
especulação, de mise en abyme,34 de encenação, de fragmentação, de denúncia ou de
enunciação do livro em um não acabar mais de livros.
32
« Il est sans doute à peu près impossible, aujourd’hui, de rien écrire sur le livre ». A frase em francês é
perfeitamente equívoca. J.-L. Nancy o explicita a seguir. O texto que se segue visita toda uma série de
autores e de textos que são convocados por Nancy e frequentemente cit ados, na maioria das vezes sem
aspas, ou pastichados, ou livremente adaptados, algumas vezes, quando se trata de autores antigos
(Montaigne, por exemplo), inclusive utili zando a grafia do tempo. Na tradução esas modificações gráficas
ou estilísticas se perdem.A lista de autores é muito grande: Bataille, Blanchot, Montaigne, Sterne,
Mallarmé, Borges, Joyce, Derrida, Sã o João... Não me preocupei em referenciar as citações e pastiches, o
que que retiraria parte do jogo de que é questão aqui. (N. T.)
33
“Au sujet du livre”. Sujet em francês significa ao mesmo tempo “assunto” e “sujeito”. (N. T.)
34
Traduzido frequentemente por « narrativa em abismo ». Literalmente "posição-em-abismo". Termo de
retórica e crítica de arte que designa o dispositivo auto-refl exivo. Nesta acepção, foi André Gide quem
resgatou a expressão de seu contexto de srcem, a herá ldica francesa do século XVI I. O Dictionnaire des
termes du blason de Jean-Marie Thiébaud (Besançon, Edtions Cêtre, 1994), por exemplo, diz no verbete
"abismo (em)": "Express ão que qualifica uma figura posta no centro do escudo". O sinônimo de "abismo"
Por mim, eu teria me contentado de pacientemente recopiar aqui esses textos, e até
recopiar nesse mesmo volume o texto de Blanchot que abre, fecha e arrasta este livro no
qual escrevo – este livro praticamente impossível. 35 Nada poderá me assegurar que não
seria necessário fazê-lo.
Mas – ao mesmo tempo, pelo mesmo imperativo categórico – não é mais possível se
dispensar de escrever sobre o livro.
Pois essa questão não é uma questão, não é um assunto [sujet] que se possa
considerar completa ou incompletamente explorado – e menos ainda como esgotado. O
esgotamento – o indefinido esgotamento – forma, antes, a matéria que é preciso aqui
enfrentar, aqui como alhures.
Segundo uma lei que todos esses textos trazem em si, e articulam, segundo uma lei
cujo rigor não precisa ser demonstrado, essa história tomada pela cãibra da escrita só
termina ao se repetir. Questão nunca tratada, a questão do livro marca o ressurgimento da
repetição. Não de sua própria repetição, pois ela é, se é alguma coisa, a questão do que
permanece sem propriedade (da propriedade e do comunismo literários, esta é a questão). A
repetição é a forma, a substância do que não tem, de uma vez por todas (nem várias vezes),
a sua identidade impressa no Livro intranscritível. Para quem quer que se encontre privado
no caso é "coração" ( coeur ), do escudo. O Dictionnaire historique de la langue française , de Alain Rey
(Paris, Dictionnai res Le Robert, 1992), no verbete "mise en abyme", conclui dizendo: "Sua especialização
em heráldica para designar o centro do escudo (1671) forneceu a [André] Gide a expressão mise en abyme
(1893, no Journal ) que restabelece o "y" etimológico [a grafia moderna é abîme ]. (N. T.)
35
Trata-se do fragmento que tem como incipit a frase “Il n’est d’explosion qu’un livre” [“Há apenas uma
explosão, o livro”], frase atribuída a Mallarmé ou a seu amigo Félix Féneon. O fragmento foi republicado
parcialmente em L’écriture du désastre . (Paris: Gallimard, 1980, p. 190-191). (N. T.)
36
A cãibra do escritor ( crampe de l’écrivain ) é uma patologia motora que se manifesta pela contração
incontrolável, por vezes espasmódica do músculos do braço ou da mão, que tornam impossível segurar um
lápis ou qualquer instrumento de escrever. (N. T.)
dessa identidade – para todo Ocidental – ela forma a questão do livro, a questão de que é
preciso escrever para dissolver em sua escrita – para dissolver o quê?
Para – mas o gesto de escrita não se satisfaz jamais com uma teleologia – dissolver
– mas de uma dissolução ela mesma dissociada dos valores de solução que a metafísica
sempre lhe confere – não somente a identidade ideal inscrita na brancura ofuscante do
Livro
(poistudo
um só livro, na profundidade da luz
aquilo que está eterna
esparso noseuniverso
acha reunido, como que ligado pelo amor em
– Dante)
mas para dissolver até a privação, que faz também a privatização, dessa identidade,
para dissolver até o próprio Livro, e até a privação, a privatização do Livro. O Livro está aí
– em cada livro tem lugar o redobramento [ reploiement] virgem do livro (Mallarmé) –, é
preciso escrever sobre ele, fazê-lo palimpsesto, sobrecarregá-lo, embaralhar suas páginas
com linhas acrescentadas até a pior confusão dos sinais e das escritas: é preciso consumar
em suma sua ilegibilidade de srcem, crispando-o com o informe esgotamento da cãibra.
Para quê? É preciso arriscar: é preciso escrever sobre o livro por uma libertação.37
Que não teria mais a ver com a Liberdade (entendo, com essa Liberdade subjetiva, sujeita,
assujeitada, que o Deus ou o Espírito da metafísica se confere automaticamente). A escrita
deveria passar no interstício da estranha homonímia liber/liber,38 na ambiguidade corrente
do livramento [livraison].
B. é a mulher desse relato, mas sua inicial e a própria frase deixam ler a mulher,
essa mulher, uma mulher, e um homem, e B.; o próprio Bataille, e um lugar, um livro, um
pensamento, e a libertação « mesma », em pessoa, sem nenhum alegorismo.
37
Délivrance em francês é ao mesmo tempo: “ libertação” “parto” e “entrega” (de um objeto, ou
especificamente de material impresso: capítulo, fascícul o, número de revista). O radical de “livro” ( livre)
também ressoa na palavra. Délivrer pode ser entendido como “libertar”, “dar à luz”, “entregar”, ou
literalmente, como um harmônico suplementar, “pôr-em-li vro”. (N. E.)
38
Em latim, liber, é ao mesmo tempo “livre”, social mente de condição livre”; e “livro”, lite ralmente
“parte viva da casca da árvore”. (N. T.)
sobre o livro é o clamor ou o murmúrio renovados de uma demanda, de um chamado
urgente. Se os textos dos quais falei permanecem doravante na nossa história, é porque não
trataram de nenhuma questão, mas porque enredaram esse chamado em várias gargantas de
escritas: um famoso espasmo da glote.
Eles enredaram o chamado ético e mais que ético de uma libertação, para uma
libertação. O imperativo não é responder a isso (…o neutro, escreve Blanchot de-
nominando neutro o ato literário, que, portando um problema sem resposta até a clausura
de um aliquid ao qual não corresponderia questão alguma) – ou, antes, seria indispensável
distinguir com todo o cuidado possível dois conceitos incomensuráveis: a resposta a uma
questão, e a resposta a um chamado.
Pode ser que não se responda ao chamado senão pela repetição do chamado – como
guardas encarregados de velar. Pode ser que o imperativo não seja o da resposta, mas
apenas o da obrigação de responder, que se chama responsabilidade. Como, no livro, é
possível tratar-se de responsabilidade? Não é mais possível eludi-lo, não mais do que evitá-
lo: como, na escrita onde a Voz se ausenta (uma voz sem escrita é ao mesmo tempo
absolutamente viva e absolutamente morta – Derrida), um chamado pode ser ouvido, como
é possível tratar-se de vocação, de invocação ou de advocação? Como, em geral, liberar o
totalmente outro do livro?
Quanto a mim, era outra coisa que eu tinha que escrever, de maior extensão e para
mais de uma pessoa. Demorado para escrever. Seria um livro tão extenso quanto as Mil e
uma Noites talvez, mas totalmente outro. (Proust)
Repetições
Ainda é sem dúvida preferível pôr os pingos nos is da repetição, mesmo que se
redizendo um pouco.
É o que o livro veio mais propriamente recitar e repetir fluentemente na era de sua
invenção material e técnica: na era da imprensa, a era do livro verdadeiro, a era do sujeito
maduro e da comunicação. A imprensa satisfez a necessidade de estarmos em relação uns
com os outros em um modo ideal (Hegel). Tudo se passa desde então como se todo o
conteúdo ideal da comunicação consistisse na autobibliografia. Cada livro exibe o ser ou a
lei do livro: de entrada de jogo, ele não tem mais outro objeto além de si mesmo e essa
satisfação. Eu vos escrevo, minha filha, com prazer, ainda que não tenha nada a vos
transmitir (Madame de Sévigné).
Tudo está dito, e viemos tarde demais, há mais de sete mil anos que há homens que
pensam: é assim que é preciso começar o primeiro capítulo, sobre os livros, de um livro
intitulado os Caracteres. O esgotamento da matéria impõe o infinito das possíveis maneiras
de lhe formar os signos. É a história desse mundo onde estamos agora em visita, diz-lhe a
deusa: é o livro dos destinos deste mundo. Passamos a um outro apartamento, e eis então
um outro mundo, um outro livro – em alguma parte você encontrará nele também os
Ensaios de teodiceia, onde isso se acha escrito, e você lerá aqui que Borges nunca escreveu
senão um pensamento de Leibniz que Lichtenberg já tinha recopiado: as bibliotecas serão
cidades. Nenhum lugar estará livre de livros, mas assim mesmo haveria falta deles. O
senhor tem totalmente razão, um capítulo inteiro falta nesse lugar, deixando no livro um
buraco de pelo menos dez páginas, escreve Tristram, o autor que conta também seu próprio
nascimento. Nenhum livro tampouco estará livre de livros, pois não contentes de inscrever
nosso nome sobre pensamentos anônimos de um único autor, apropriamo-nos dos
pensamentos de milhares de indivíduos, de épocas e bibliotecas inteiras, e roubamos até dos
plagiários, escreve Jean Paul, plagiando-se a si mesmo uma vez mais. A antologia – a
escolha das flores dos livros, escolha do livro para dispor em cada livro o buquê de sua
literariedade – textual prossegue sem parar até nós.
Toda essa repetição en abyme do livro constitui sua redundância nativa – e mais do
que a cremos, ingênua. A redundância é o transbordamento, o excesso da onda: o Livro
sempre se pensou como espuma que jorra de novo infinitamente de um oceano inesgotável
– um jato de grandeza, de pensamento ou de comoção, considerável, frase perseguida, em
caixa alta, uma linha por página em local graduado, não manteria o leitor sem respiração
durante a duração do livro? (Mallarmé). Onda redita e recaída, essa repetição talvez seja
propriamente a redação: redigir é recolher, fazer entrar, reconduzir e reduzir. Cada livro
reconduz a redundância do Livro ao espaço delimitado por uma inscrição. Em cada um
desses templos, a autobiografia é venerada –
Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz, livro consubstancial a seu autor. O sujeito
se erige em Livro, e só essa ereção nunca assegurou a substância de um sujeito – cuja
franca dissimulação faz ler o desejo em livro aberto: assim, leitor, sou eu mesmo a matéria
deste livro, o que será, talvez, razão suficiente para que não empregues teus lazeres em
assunto tão fútil e de tão mínima importância. Não ergo aqui uma estátua para a praça de
uma cidade, é para o canto de uma biblioteca e para divertir algum vizinho. Os outros
formam o homem; eu o recito e represento um em particular bem mal formado. Quero que
vejam meu passo natural e ordinário, tão desajustado como ele é. Minha razão de escrever é
alcançar B. – me alcançar, alcançar nela minha sociedade, sua solidão, alcançar aquele,
aquela que diz eu, passo natural, passo ordinário.
Mas ele escreve em seus livros – e escreve em todos os seus livros – o que foi o
comunismo, a ausência do livro. O livro não pretende jamais senão retraçar aquilo que o
excede. A questão sobre a srcem do livro não pertencerá nunca a nenhum livro (Derrida) –
e, entretanto, ó memória que tens escrito aquilo que vi, aqui vai se mostrar a tua nobreza
(Dante). Ele escreve, portanto, o mundo do aedo, do contador, do recitante sagrado. O
primeiro poeta, que fez esse passo para se desembaraçar da multidão pela imaginação, sabe
retornar a ela na vida real. Pois ele vai à direita e à esquerda, para contar à multidão as
proezas que sua imaginação atribui ao herói. Esse herói não é, no fundo, senão ele mesmo.
Mas os ouvintes, que compreendem o poeta, sabem se identificar com o herói (Freud). Essa
pura poiesia de si na pura comunidade assombra sem descontinuar a inteira literatura: e é
um homem daqui, um homem de agora, que é seu próprio narrador, enfim (Robbe-Grillet).
Este foi, diz ele, o mundo de um mímico, que não teve sequer exemplo e não terá
sequer imitador, o mundo do improvisador genial, do dançarino ébrio de deus, dos
batimentos, dos golpes, dos assobios de uma música não escrita, o mundo das preces, das
súplicas, das invocações. É a tribo com suas palavras e suas melopeias, o grito cantante da
comuna primitiva em torno de sua fogueira – silenciosa grafia de um fogo tão claro que ele
se dilacera sem deixar rastro (Laporte).
A isso se sucede, na história que nós nos contamos, a sociedade da escrita que não é
o livro, mas a gravura dos caracteres sagrados, a inscrição das Leis sobre tábuas de pedra
ou de metal, sobre colunas, pilastras, frontões e tiras de tecido, a escrita dura e a ereção por
toda parte de estelas que dão a ler a Ordem e a Disposição, a Estrutura e o Modelo – que os
dão a ler a ninguém, e portanto a todos: é o comunismo monumental, a escrita arquitetural e
a monarquia hieroglífica. Todas as suas palavras devem ter um caráter de encravamento ou
de relevo, de cinzeladura ou de escultura, diz da escrita sagrada aquele (Joubert) que
escreve em máximas. E cada livro tende perdidamente para a máxima: maxima sententia, o
maior pensamento…
Vem ao fim a muito tardia, a muito antiga, religião dos livros, e começam todos os
êxodos. Egito, Jônia, Canaã se deslocam para as travessias de desertos por comunas que
não param de se dispersar.
A história dos livros começa se perdendo no livro de história. Nele ninguém diz
quem escreveu, nem se foi escrito esse primeiríssimo pacto a que se dá o nome, no entanto,
de o Livro da Aliança (Êxodo, XXIV, 7). É a história do pacto – pacto de libertação –
rompido, sustentado, traído, sempre oferecido – e do chamado renovado para assiná-lo uma
nova vez. Quebradas tão logo gravadas, as Tábuas não são de modo algum erigidas, elas
caminham na Arca com as tribos a caminho. Os Rolos se desenrolam, e o volume da
história se amplifica até nós; o livro é inseparável do relato, a história do romance: a época
do livro é o romantismo. Em nossos escritos, o pensamento parece proceder pelo
movimento de um homem que caminha e que vai reto. Nos escritos dos antigos ela parece,
ao contrário, proceder pelo movimento de um pássaro que plana e avança em rodopios
(Joubert).
Quem não vê que tomei uma estrada pela qual, sem cessar e sem trabalho, irei
enquanto houver tinta e papel no mundo?
Os livros começam com sua repetição: dois relatos do gênese nele se misturam, se
acavalam, se redizem e se contradizem. Os livros são copiados, reproduzidos, publicados
porque eles não são por si mesmos públicos nem como um canto nem como um obelisco;
eles são transmitidos, traduzidos – setenta e dois judeus, seis de cada tribo, em setenta e
dois dias, na ilha de Fáros, tornam grega a Bíblia – os livros são traídos, contrafeitos,
imitados, recopiados, recitados e citados. Aquele que diz eu embaralha em seu livro livros e
assinaturas: Quanto às razões, às comparações, e aos argumentos que transplanto para meu
solo e confundo com os meus, omiti muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores, a
fim de pôr freio na temeridade dessas sentenças apressadas que se espojam sobre toda
sorte de escritos. Aqui já recomeça a dita repetição.
Os livros são uma matéria corruptível. Os livros são de madeira: biblos, liber,
codex, Buch, é sempre casca ou árvore. Isso queima, isso apodrece, isso se decompõe, isso
se apaga, isso passa à crítica roedora dos ratos.39 A bibliofilia é, tanto quanto a filosofia, um
amor impossível, de objetos curtidos, murchos, gastos, despedaçados, lacunares. O livro é
miserável, odiável. Descartes odeia o ofício de fazer livros. Não há nada ali para o Sujeito –
o outro, o mesmo, aquele que diz eu (penso) – nos « enormes volumes », nada além de
perda de tempo, consumação inútil de uma vida para ler cacos de uma ciência que eu posso
por mim mesmo instaurar. Deveria haver leis que punissem os escritores ineptos e inúteis,
como existem para os vagabundos e preguiçosos. Banir-se-ia das mãos de nosso povo as
minhas obras e de cem outros. Não é uma troça. A escreveção parece ser um sintoma de um
século sobrecarregado. Nunca escrevemos mais do que depois que somos perturbados? –
Desde que temos dificuldade para escrever.
39
Nancy utiliza aqui o pronome demonstrativo ça, « isto », ou « isso », num tipo de frase idiomática,
bastante coloquial em francês : « Ça brûle », literalmente « isso queima ». Jogo que evoca o ça, que
traduz, no vocabul ário psicanalítico francês o Es alemão, vertido em português como « id », ou mais
recentemente, como « isso », na segunda tópica (1920), como cifra do inconsciente. (N. T.).
apriórico teria encontrado desta mesma forma uma explicação racional de dignidade
superior, aquela de uma inteligibilidade última, de uma inteligibilidade transcendental.
Husserl escreve o que não quer – escrever. Ele escreve que a alteração srcinária do ego, a
comunidade dos homens, forma ou deforma o estilo, a escrita, até na inteligibilidade, cujo
êxito final ela decifra irremediavelmente.
Assim a súplica pelo livro começou ao mesmo tempo que a perseguição dos livros.
Escrever está ligado ao cruel simulacro de um suplício (Laporte). E agora, através do vidro,
todo mundo pode ver a inscrição se gravar no corpo do condenado. Ninguém pode
evidentemente se servir de uma escrita simples; ela não deve matar de imediato, mas em
média num prazo de doze horas (Kafka, Na colônia penal).
O apocalipse
João escreve nesse livro as visões que lhe foram dadas a ver: mas escreve apenas
porque as visões o mandam escrever. O Anjo lhe fala segurando o Livro, mas João não o
recopia: ele escreve o que o Anjo lhe dita. O que é revelado não é o Anjo, e não é o Livro: é
a escrita do homem. Aquele que se anuncia através da revelação, aquele que diz por sua vez
quem é ele, é aquele que diz – aquele de quem João escreve que ele diz que é o alfa e o
ômega. Ele é o Livro, com certeza, mas também: nada além da conta finita dos caracteres
de escrita – está aí tudo aquilo que se revela dos sete selos partidos do livro do Cordeiro
degolado. É o fim da religião.
João escreve todas as suas visões de escritas. Mas no meio lhe é proibido escrever
as palavras dos sete trovões. Nenhum livro libera a palavra inaudita, inaudível,
ensurdecedora – o tumulto primitivo ao som do qual teria tido lugar a exaltação da comuna
mística. Porém, o livro sabe a dispersão da comunhão – ele é a sua inscrição e comunica o
seu chamado: Que aquele que ouve, diga « Vem! ». Vem! escande o Apocalipse – e nossos
livros sobre os livros. Vem, e devolve-nos a conveniência daquilo que desaparece, o
movimento de um coração (Blanchot, citado por Derrida). Cabe a ti fazer o passo de
sentido. Não há nenhuma chance de decidir, para decidir, em qualquer linguagem que seja,
por aquilo que vem em « Vem » (Derrida).
Muito além e aquém do que qualquer palavra pode desvelar de verdadeiro – muito
aquém e além de qualquer Livro – resta a descobrir o apocalipse, a descoberta que abala
todos os livros: é que o livro e a comunhão estão postos a nu, a descoberto, em todos os
livros. A ausência do Livro é a ausência da Comunhão – nossa comunhão ou parte de um
para todos e de todos por um (Mallarmé). Mas do mesmo modo a presença – sempre
deglutida no instante – do livro. João deve engolir um pequeno livro. Tomei o livro e o
engoli; na minha boca ele tinha a doçura do mel, mas quando eu o comera, ele encheu
minhas entranhas de azedume.
40
O que comunica, O que se comunga não é nada, não é pouco, nada além de
azedume, mas um chamado; um outro comunismo, por vir sem arrematar a história, um
comunismo de êxodo e de repetição, não quereria dizer nada (mas, na frase de Blanchot,
além do que elas querem dizer, que querem as palavras: relações de troca, portanto de
produção?), mas ele escreveria, esse comunismo, a libertação dos livros, nos livros. Vã
enquanto é livresca (foi Montaigne quem fez essa frase) – e como ela não o seria, a
começar por aqui mesmo? –, essa libertação, seguramente, mas sem dúvida tão livresca
quanto vã, quanto a escrita, ainda e de novo, não se arrisca a isso, a descoberto.
40
“[…] N’est rien, n’est pas rien […], Nancy joga aqui com as pasonomásias. A segunda, é um litoto:
“[,…] n’est pas rien” significa: “não é pouco, é muito”. (N. T.)
Repito: as razões de escrever um livro podem ser reportadas ao desejo de modificar
as relações que existem entre um homem e seus semelhantes. Essas relações são julgadas
inaceitáveis e são percebidas como uma atroz miséria. (Bataille)
Chamados ao longe. Vindo, longe! Fim aqui. Nós então. Nós, então. (Joyce)
Abril 1977
— Pensei ter ouvido uma voz e, por causa disso, vim para o lado de cá. Era a sua?
— Não sei. Pode ser, pois acho que eu estava falando sozinho. Mas também havia um
cachorro latindo. Não foi a voz dele que você escutou?
— Porque não? Os chamados caninos, assim como os dos outros animais, não são
apenas ruídos. Cada um tem uma voz que pode ser reconhecida.
— Claro, a voz é a face sonora da fala, ao passo que o discurso, ou o sentido, forma a
sua face espiritual.
— Não, não estou, e, de resto, estou convencido de que o próprio Saussure não poderia
estar completamente. Ele estava muito atento, apesar de tudo, à unidade indissociável do
que chamava de «substância material das palavras» e do que designou como «sistema de
signos».
— Por certo ela não faz parte da língua, no sentido de Saussure, como tampouco
pertence propriamente à fala: pois precisamente não se pode confundi-la com a «fonação»
(que palavra horrível!), que é apenas uma «execução», como diz Saussure. A voz não é
uma execução, é outra coisa, ela vem antes da distinção entre uma língua disponível e uma
fala executora...
— Se o senhor prefere assim, no sentido estrito das palavras, não há dúvida. Mas,
justamente, o que quero que o senhor ouça – e estou certo de que Saussure estava perto de
ouvi-lo –, é que a voz, que é outra coisa além de fonação, pertence à linguagem pelo
próprio fato de lhe ser anterior e, de alguma maneira, exterior. Ela é como uma precessão
íntima da linguagem, estrangeira portanto à própria linguagem.
— Concordo. Mas, diga-me o que vem a ser essa precessão intimamente estrangeira .
— Eu lhe direi, se o senhor me escutar; a mim e a alguns outros. Este aqui, por exemplo,
o senhor o ouve?
(Entra Paul Valéry. Ele fala com voz bem baixa, quase a murmurar. Por fim, conseguimos
distinguir suas palavras.)
«voz, estado elevado, tônico, tenso, feito apenas de energia pura, livre, de alta potência,
dúctil… o essencial aqui é o fluido mesmo… a voz – evolução de uma energia livre…»
— Ouvi bem, mas não sei se compreendi. Porque me colocou para escutar esse
personagem ao invés de o senhor mesmo se explicar?
— É que deve-se ouvir a voz de cada um. Não é a mesma coisa. Cada um se explica de
uma outra maneira com sua própria voz. O senhor ignorava que as impressões vocais são
mais singulares, mais impossíveis de se confundir do que as impressões digitais, que já são
tão particulares a cada um?
— Não basta fazer um discurso sobre a voz. Ainda é preciso saber com qual voz deve-se
pronunciá-lo. Qual voz falará da voz? Veja, ouça esta aqui.
«O homem possui três tipos de voz, a saber, a voz falante ou articulada, a voz cantante ou
melodiosa, e a voz patética ou acentuada, que serve de linguagem para as paixões.»
— Se entendi bem o que ele acabou de dizer, assim como o que o senhor dizia
anteriormente, não somente cada indivíduo tem sua própria voz, mas também há várias
vozes possíveis para cada um. Entretanto, a voz em si, a vocalidade da voz, se quiser, ou
sua essência de voz, será o que não fala, nem canta, nem dá o tom de uma paixão, sendo
capaz ao quanto
sua voz mesmo atempo de representar
minha, esses
tanto a deste três papéis,quanto
personagem e estando
a deapta a tornar-se
outro tanto
qualquer. Masa
pergunto-lhe ainda: o que então é essa coisa?
— É a voz em si [la voix même] – e não é evidente que ela seja uma única coisa. É a voz
que não podemos dizer, uma vez que é uma precessão da fala, uma fala infante que se faz
ouvir aquém de toda fala, até o falar em si [ le parler lui-même]: pois se ela é infinitamente
mais arcaica que ele, em compensação, não há fala que não se faça ouvir por uma voz.
— De modo que a voz, em seu arcaísmo, seria, ao mesmo tempo, a verdadeira
atualidade da fala, que é ela mesma o ser em ato da língua...
— Não é a voz que é a atualidade da fala, é sempre apenas uma voz, a sua ou a minha,
falante ou cantante, cada vez uma outra. Ela é sempre compartilhada; é, em um certo
sentido, a própria partilha. Uma voz começa onde começa o entrincheiramento
[retranchement] de um ser singular. Mais tarde, com sua fala, ele refará os laços com o
mundo, dará sentido ao seu próprio entrincheiramento. Mas, antes, com sua voz, ele clama
por um puro afastamento, e isso não faz sentido.
«a voz responde ao seio ausente, ou é acionada na medida em que o acesso ao sono parece
preencher com vazios a tensão e a atenção da vigília. As cordas vocais se tensionam e vibram
para preencher
nervoso face aoo vazio
sono… da aboca
voze suspenderá
do tubo digestivo (resposta
o vazio… 41 à fome) e as fraquezas do sistema
A contração muscular, gástrica e
esfincteriana, expele, às vezes ao mesmo tempo, o ar, o alimento e os dejetos. A voz jorra dessa
rejeição [ rejet] de ar e de matéria nutritiva ou excremencial; as primeiras emissões sonoras, por
serem vocais, não possuem sua srcem somente na glote, elas são a marca audível de um
fenômeno complexo de contração muscular e vago-simpática que é uma rejeição que envolve o
corpo inteiro.»
— Não refutarei isso que o senhor acabou de nos fazer ouvir. Não contestarei essa
voz…
— Acredita que uma voz jamais possa ser contestável? Eu adoraria, ao contrário,
propor-lhe esta tese, de que a voz, ou, antes, a partilha infinita das vozes, forma o lugar ou
41
« Prendre la relève”. “Relève ” é a tradução proposta por Jacques Derrida à Aufhebung hegeliana. O
termo em francês tem muitos sentidos: levantar, erguer, mas também depender, demitir, exonerar.
Basicamente tem o duplo sentido de: elevar e substituir, algo contido na expressão idiomática em
português, “render”, no sentido de “substituir” ou “acumular”. Opto por traduzi-lo por: suspensão, no
sentido de “elevar” e “retirar”. Derrida propõe pela primeira vez essa tradução em Margens da filosofia ,
no ensaio "O poço e a pirâmide", em uma tradução do parágrafo 459 da Encicloplédia de Hegel. O
tradutores da edição brasileira optaram por traduzir “ relever ”, no caso, por “suprimir”, o que restitui
apenas um dos lados do sentido em francês (ou de Aufhebung em alemão). Margens da filosofia . Trad.
Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. São Paulo, Papir us, 1991, p.126. Tradução modificada. )
(N. T.)
o elemento de afirmação indefinidamente multiplicado, e que não há negação. Não há
dialética das vozes, há apenas linguagem e dentro da linguagem.
— Com efeito, não é. Ele é feito apenas do espaçamento ou do afastamento das vozes.
Cada uma diferente, e cada uma constituída por um afastamento, por uma abertura, tubo,
cano, laringe, garganta e boca atravessadas por esse nada, por essa emissão, essa expulsão
da voz. Ano
estendido vozmeio
gritadonocorpo,
deserto porque
aquém das ela própriaSeria
palavras. é, antes
essa de maisafirmação
a sua nada, esse
– edeserto
não a
contrapartida de uma negação. Um deserto, cada vez, cada voz, um deserto singular.
— O senhor tem sem dúvida razão. Mas gostaria de dizer que, sem refutar essa voz da
rejeição, poderíamos propor uma maneira completamente diferente de compreender o que
jorra nos gritos da primeira infância. Ou seja, uma maneira completamente diferente de
compreender a vox in deserto: vox clamans muito mais do que vox clamantis. A voz não
responderia ao vazio, como dizia esta pessoa, mas ela exporia o vazio, virando-o para fora.
A voz seria menos a rejeição [rejet] que o jato [jet] de um vazio infinito aberto no cerne do
ser singular, desse ser abandonado. O que ela exporia, assim, numa maneira de oferecer o
abismo, não seria uma falta. Mas seria esta falta [ défaut] de plenitude ou de presença que
não chega a ser um defeito [ défaut], uma vez que é a constituição mais própria da
existência, o que a fez aberta, por antecipação e para sempre aberta, fora dela mesma. Na
voz, haveria isso: que esse existente não é um sujeito, mas que ele é uma existência aberta e
atravessada por esse jato, uma existência, em si, lançada no mundo.42 Minha voz é, antes de
tudo, o que me lança no mundo. Se o senhor puder tomar minhas palavras com uma certa
leveza, eu diria que há na voz qualquer coisa de irrevogavelmente extático.
— Claro! Como não pensaria? Note bem que não falo ao senhor de pasmos líricos. Mas
aquele que canta – e aquele que o escuta cantar – são o mais certamente, o mais
simplesmente, mas também mais vertiginosamente, fora deles mesmos. Escute.
43
(Ele liga um gravador. Escutamos os vocalises de A Rainha da Noite, depois a cena da loucura do
rei em « Nabucco».44)
42
J.-L. Nancy joga aqui com a cadeia de semas, jet (“jato), rejet (“rejeição”), jeter (“lançar”, “jogar”). Um
elemento importante nessa discussão é a noção heideggeriana de Geworfenheit , “ser-lançado”, conforme a
tradução de Márcia de Sá Cavalcante, ou “dejecção”, na t radução de Fausto Castilho, ou “ser
abandonado”, como pode ser também traduzido em português, vertido em francês como être jeté. (Martin
Heidegger. Ser e tempo . Parte I. Tradução: Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 10ª
edição p. 321-322, para a definição; Tradução de Fasuto Castilho. Campinas/Petrópoli s: Editora
Unicamp/editora Vozes, 2012. Para a explicação sobre a tradução francesa, cf. Être et Temps . Traduçao:
Fraçois Vezin. Paris: Gallimard, 1986, p. 560.) (N. T.)
43
A ária da Rainha da noite é uma famosa ária de soprano da ópera A flauta mágica (Die Zauberflöte) de
Wolfgang Amadeus Mozart (1791). (N. E.)
— Esta ou este que canta, durante o tempo de seu canto, não é um sujeito.
— Mas por que o senhor repete que não há sujeito na voz? É preciso um sujeito da voz,
e mesmo, se o entendi bem, é preciso um sujeito para cada voz singular. Diria, ao contrário,
que a voz é a marca irrefutável da presença do sujeito. É sua impressão [ empreinte], como
o senhor dizia. E é exatamente assim que é preciso entender que falamos da voz de um
escritor: seu estilo, sua marca pessoal, inimitável.
— É verdade. Pensei mesmo, de resto, que o senhor iria reconhecê-la. Entretanto, Hegel
tem mais de uma voz – como costuma acontecer aos grandes…
eles—escrevem
Uma grande voz deve semprediálogos,
tão frequentemente ser mais como
de uma voz? Seria,
Platão, então,Galileu,
Aristóteles, por essaDescartes,
razão que
Heidegger?
— Talvez. Mas, diálogo ou não, há polifonia no seio de toda voz. Pois a voz não é uma
coisa, é a maneira pela qual alguma coisa – alguém – afasta-se de si mesmo e deixa ressoar
este afastamento. A voz não sai somente por uma abertura, ela se abre nela mesma, sobre si
mesma. A voz dá para algo da voz nela própria. Uma voz se oferece de chofre como uma
pluralidade de pautas vocais...
— É verdade, eu o esqueci. Mas, de fato, temos a tendência de ouvir apenas uma de suas
outras vozes.
antes do Precisamente,
sujeito. aquela
Ela o precede, com
o que a qual
quer elebem
dizer, falaentendido,
da voz. Pois
quea ela
voz,está
pararelacionada
Hegel, é dea
ele – e lhe concederia, se o senhor me permite usar a palavra, que ela lhe abre [ fraye] o
caminho. Mas ela não é a voz do sujeito.45
44
Nabucco , ópera de Giuseppe Verdi (1842). (N. E.)
45
J.-L. Nancy joga aqui com as palavras homófonas em francês voix (“voz”) e voie (“caminho”, “via”).
(N. T.)
— Se entendi bem, seria preciso dizer, ao contrário, que é a voz do sujeito – e
justamente porque é ela quem lhe abre o caminho –, mas que não há sujeito da voz. Mas
ainda não sei por que é assim. O senhor ainda não me fez ouvir as duas vozes de Hegel.
— A primeira é a voz do sujeito. Ela pronuncia, num tom imperturbável, que o senhor
reconheceu, que o ser e a verdade consistem em suportar em si sua própria contradição. O
sujeito é, desse modo, aquele cuja relação consigo mesmo passa por sua própria negação, e
é isso que lhe confere a unidade infinita de uma inesgotável presença a si mesmo – até na
sua ausência, vale dizer, no que nos ocupa aqui, até no seu silêncio. Com a voz, não se trata
de um silêncio que faria sentido, e essa não é uma ausência do sujeito que é ouvida. Já
disse, é uma afirmação, e não uma negação. A voz não é uma contradição tolerada, isto é,
ao mesmo tempo posta e deposta, superada. Ela se desvia da contradição assim como da
unidade. É então que é preciso ouvir a outra voz de Hegel, o outro tom que ele assume para
falar da voz. Ouça.
(Hegel conversa com Schelling e Hölderlin, que pronunciam eles também algumas das frases que
se seguem, sem que se possa considerá-la como uma conversa de verdade.)
«A voz começa com o som, o som é um estado de tremor , isto é, um ato de oscilação entre a
consistência de um corpo e a negação de sua coesão. É como um movimento dialético que não
chegaria a se consumar, e que permaneceria na pulsação… No tremor sonoro de um corpo
inanimado já existe alma, uma espécie de aptidão mecânica à alma… Mas a voz se eleva
propriamente antes no animal… Ela é seu ato de tremer livremente em si mesma… Neste tremor
há a sua alma, isto é, há essa efetividade da idealidade que faz uma existência determinada... A
identidade do existente – ou seja, a presença concreta da Ideia mesma – sempre começa no
tremor. Assim, a criança no seio de sua mãe, criança que não é autônoma e não é um sujeito, é
atravessada com um tremor pela partilha srcinária da substância maternal… Essa não é uma
voz audível, no entanto, ela deve fazer um ruído nas entranhas da mãe. É o vocalise balbuciado
do acesso ao ser… A alma é a existência singular que treme ao se apresentar, cujo tremor é a
apresentação… É o sujeito singular , ou seja, não é a unidade infinita da subjetividade, não é
nada além da singularidade… Essa alma singular dá a si sua forma ou figura, eis sua obra de
arte… a obra de arte do tremor… E quando se trata do homem, essa obra de arte é a fisionomia
humana, com a estação ereta, a mão, a boca, a voz, o riso, o suspiro, as lágrimas… e alguma
coisa banha tudo isso, um tom espiritual que revela imediatamente o corpo enquanto
exterioridade de uma natureza superior. Esse tom é uma modificação leve, indeterminada,
indizível: é apenas um signo indeterminado e imperfeito para o universal da Ideia que se
apresenta aqui. Esse tom não é a linguagem. Ele lhe abre caminho [ voie], talvez. É essa
modificação indizível, essa modulação da alma que treme, que chora e que suspira, e que
também ri… O espírito que treme ao se manifestar, sem ainda ter se apropriado de sua própria
substância espiritual…»
(Os três personagens se afastam. Ouvimos cantar, bem suavemente, o início do lied de
Schubert, «Gretchen am Spinnrade».)
«Meine Ruhe ist hin, mein Herz ist schwer, Ich finde, Ich finde sie nimmer…»46
— Prendeu-me, confesso. Mas o seu Hegel não está sozinho, são três que estão falando.
— De fato. Mas era ele, no entanto, asseguro-lhe, era ele, ou a voz de uma época…
— Compreendi direito se disser que esta modificação de que eles falavam, esta
modulação espiritual espalhada sobre todo o corpo seria em suma a voz da voz, seria o som
ou o tom no qual ressoa propriamente aquilo que, de outra parte, treme na garganta aberta?
Esse tom ou esse som geral – do homem, do animal, de tal homem ou de tal animal, o som
geral, a cada vez, da diferença singular que vibra – daria o tom da voz, e, reciprocamente, a
voz faria ouvir o tremor particular desse tom… Cada qual seria a voz do outro: a voz que
não é uma voz, que é o tom da alma espalhada sobre o corpo, dando-lhe a existência através
de sua expansão, e a voz que é a voz dessa existência, emitida por sua boca e por sua
garganta.
— Sim, creio que podemos dizê-lo dessa maneira. O senhor compreende, então, que,
nesse caso, não há sujeito. Uma voz tem sua voz fora dela mesma, ela não tem em si sua
própria contradição, ou então, em todo caso, ela não a suporta: ela a lança adiante dela
mesma. Elade
se oferece nãofora,
estáapresente
pulsaçãoemdesi,uma
é somente uma
abertura – apresentação
uma vez mais,fora
umdedeserto
si, um tremor que
estendido,
exposto, com lufadas de ar que vibram no calor. O deserto da voz no deserto, todo o seu
clamor – e nada de sujeito, nada de unidade infinita, isso [ ça] sai sempre para fora, sem
presença em si mesmo, sem consciência de si.
— Isso me lembra alguém que dizia – cito de memória – que o homem, diferentemente
dos animais, não tem voz, que ele tem somente a linguagem e a significação como uma
maneira de preencher essa falta de voz, de esforçar-se rumo a essa voz ausente…
— Foi Giorgio Agamben. Ele disse que a voz era o limite da significação, não como um
simples som desprovido de sentido, mas «como pura indicação de um evento da
linguagem».
46
Gretchen am Spinnrade ” [“Margarete na roca”] lied de Schubert com letra de Goethe, retirado do
Fausto A letra é de Goethe diz o seguinte: “Minha paz se foi/ Meu coração está pesado/ Nunca, nunca
mais...”. (N.T.)
«E essa voz que, não significando nada, significa a significação em si [ la signification même ],
coincide com a dimensão da significação mais universal, com o ser.»
«O sentido está abandonado à partilha, à diferença das vozes. Ele não é um dado anterior e
exterior à nossa voz. O senti do se doa, se abandona. Não há talvez outro sent ido além dessa
generosidade.»
— Este sentido do sentido é como a voz da voz: nada além de abertura, tremor da
abertura no envio, na emissão de algo que é destinado a ser compreendido – e nada mais.
Quer dizer que não foi feito para voltar a si…
— Sim, mas sem retornar a si, sem retomar o que disse para se repetir e se ouvir...
— Mas a voz que se ouve não pode fazê-lo guardando silêncio. O senhor sabe disso,
Derrida o mostrou.
— Claro. E é por isso que a voz que não guarda silêncio, a voz que é uma voz, não se
ouve. Ela não tem em si esse silêncio para se ouvir proferir um sentido além do som. É uma
outra maneira de não ter em si sua própria contradição. Ela não tem em si esse silêncio, ela
somente ressoa, fora, no deserto. Ela não se ouve – não de verdade – mas ela se faz ouvir.
Ela se dirige sempre ao outro. Observe, justamente, pois o senhor o citou neste instante;
ouça.
(Derrida falando diante de um gravador portátil, que uma jovem lhe estendeu.)
«Quando a voz treme… ela se faz ouvir porque seu lugar de emissão não é fixo… vibração
diferencial pura… um gozo que será gozo numa plenitude sem vibração, sem diferença, parece-
me ser às vezes o mito da metafísica – e a morte… No gozo vivo, plural, diferencial, o outro é
chamado…»
— Mas, então, ele é chamado por nada, nem mesmo por seu nome. É a voz solitária, que
não diz nada, mas que chama?
— Ela não diz nada, o que não quer dizer que não nomeie. Ou, ao menos, não quer dizer
que ela não abra caminho [voie] ao nome. A voz [voix] que chama, isto é, a voz que é um
chamado, sem articular língua alguma, abre o nome do outro, abre o outro a seu nome, que
é minha voz lançada na sua direção.
— Mas ainda não há nomes, se não há língua. Não há nada para fixar esse chamado.
— Sim, ela chama o outro lá aonde somente, enquanto é outro, ele pode vir. Isto é, no
deserto.
— Precisamente, a voz chama o outro nômade; ou então, ela o chama a devir nômade.
Ela lhe lança um nome nômade, que é uma precessão de seu nome próprio. Que o chama a
sair de si, a dar voz, por sua vez. A voz chama o outro a sair em sua voz. Preste atenção,
escute.
«A música é, antes de tudo, uma desterritorialização da voz, que se torna [ devien t] cada vez
menos linguagem… A voz está muito adiantada em relação ao rosto, muito adiantada…
Maquinar a voz é a primeira operação musical… É necessário que a voz atinja ela mesma um
devir-mulher ou um devir-criança. E eis aí o prodigioso conteúdo da música… É a voz musical
que se torna ela própria criança, mas, ao mesmo tempo, a criança se torna sonora, puramente
sonora…»
— O outro é chamado a esse lugar onde não há sujeito, nem significação. É o deserto do
gozo, ou da alegria. Não é desolado, apesar de ser árido. Não é nem desolador, nem
consolador. Está aquém do riso e das lágrimas.
— Será que é preciso entender que eles não sabem nada além de sua própria saída, sua
própria efusão, um corpo que se abre e que se exala, uma alma que se estende?
— Sim, é uma extensão aberta – partes extra partes – e que vibra – partes contra
partes. Isso [ça] não fala, isso [ça] convoca o outro a falar. A voz convoca o outro a falar, a
rir ou a chorar – em mim mesmo, agora. Não falaria a não ser que a minha voz, que não sou
eu e que não está em mim, embora ela me seja absolutamente própria, não me convoque,
isto é, não convoque a falar, rir ou chorar, esse outro em mim que pode fazê-lo.
«… o próprio balançar de minha voz tira tanto de meu espírito, que não o acho, quando o sondo
e o emprego à parte de mim.»
— Valéry dizia (tira um volume de seu bolso, e lê): «… a linguagem saída da voz, mais
do que a voz da linguagem»…
— E é por isso que ele podia dizer: «a voz define a poesia pura».
— Sim, ela fala, mas fala sobre esta palavra que não executa uma língua, e da qual, ao
contrário, saída da voz, uma língua vem de nascer. A voz é a precessão da linguagem, ela é
a iminência da linguagem no deserto no qual a alma ainda se encontra só.
— Com certeza, é assim que a alma está só: não solitária, mas com o outro, no chamado
do outro, e só no que tange aos discursos, às operações, às ocupações.
— Com efeito, é a própria alma que a voz chama no outro. É assim que ela faz vir o
sujeito, mas ainda não o instala. Ela o evita, pelo contrário. Ela não convoca a alma a se
ouvir, nem a ouvir discurso algum. Ela o chama, o que significa apenas que ela o faz
tremer, que o comove. É a alma que comove o outro na alma. É isso, uma voz.
[…] o sujeito como sujeito da arte, do mito e do relato [ relato ] (há outro?)
O relato põe em obra e em jogo o seu recitante: não há nenhum relato sem recitação e
nenhuma recitação sem recitante. Este último não se apresenta nunca senão como
distinto do relato, mesmo quando é o seu objeto, como é suposto sê-lo numa
autobiografia, ou então num romance cujo narrador se designa na primeira pessoa, tal
como os de Em busca do tempo perdido ou de Tristram Shandy, que não são por acaso
exempla privilegiados na história do relato moderno.49 O « eu », por si mesmo e por
natureza, tanto quanto por estrutura, se distingue. Essencialmente, ele está em
distinção e em discrição: distinto, afastado, separado, e discreto no sentido matemático
ou semiológico, descontínuo, isolado e impossível de decompor para ser inserido numa
continuidade. Sendo assim, o « eu » de um relato em primeira pessoa não é nem mais
nem menos retirado do que o narrador ausente, anônimo e mesmo como áfono, da forma
mais clássica do relato.
47
Em português perde-se a o vínculo etimológico dos três termos, em « relato » ( récit ). Em francês,
« recit, récitation, récitatif. » (N.T.)
48
Philippe Lacoue-Labarthe. Portrait de l’artiste, en général [Retrato do artista, em geral] . Paris :
Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison », 1979, p. 90 [retomado em Philippe Lacoue-
Labarthe. Écrits sur l’art. Genebra : Les Presses du réel, col. Mamco, 2009 (N.T.)] ; e L’« Allégorie »
[seguido de Un commencement de Jean-Luc Nancy (N.E.F.)]. Paris ; Galilée, col. « Lignes fictives »,
2005, p. 19. Vou falar aqui do relato e de Philippe Lacoue-Labarthe. De um e do outro e de um para o
outro. Do relato que ele fez de sua vida, da vida – do pensamento – que ele tirou dos relatos.
49
Respectivamente, de Marcel Proust e Lawrence Sterne. (N.T.)
própria emissão da exterioridade: a suposição insuponível, insuportável, impossível de
assujeitar, de um sujeito da fala [parole].
II
O relato pode, aliás, ir buscar esse sujeito para fazê-lo vir em presença,
desmascarando-o de alguma maneira, como quando Henry James faz de repente falar o
narrador em primeira pessoa, após tê-lo guardado trezentas páginas na ausência do
narrador clássico (em O que Maisie sabia). Um procedimento desse gênero não faz em
suma
que a senão mostrar
presença o quanto
em pessoa se amostra
separação diegeseo eequivalente
em sidamesma da mímese eé frágil na medida
o substituto em
de uma
ausência. « Literatura » talvez queira dizer: enunciado por ninguém [ personne] – e
« recitar » poderia ser o nome dessa enunciação que não é « a minha », no sentido em
que ela o é na palavra da vida ordinária e não literária. Pelo menos supõe-se que ela seja,
50
William Faulkner. « Vieux Père ». In : Si je t’oublie, Jérusalem . Tr. fr. Maurice Edgar Coindreau
revisto por François Pitavy, texto apresentado et anotado por François Pitavy. In : Œuvres romanesques
III, André Bleikasten, Michel Gresset et François Pitavy (eds). Paris : Gallimard, col. « Bibliothèque de la
Pléiade », 2000, p. 17. (N.E.F.)
pois é evidente que até mesmo a mais simples tomada de palavra [ parole] implica que
« eu [moi] » que falo deve, enquanto « eu » [ je], sujeito de minha fala [parole], e ao
mesmo tempo que avanço como locutor, recuar na intercambiabilidade de todos os
« eus », que é somente, em si mesma, uma condição geral da linguagem enquanto fala
[parole].51
O que chamamos de escrita, com o valor moderno da palavra, não é senão a forma
em que se exemplifica se amplificando – pela inscrição material onde se retém e se
expõe o movimento – o percurso do pro-ferimento e pro-dução, a facilitação 52 do
sentido tendido rumo a sua escapada. Na escrita se inscreve concretamente, com essa
escapada infinita, a dissociação do sujeito da fala [parole].
O relato procede dessa dissociação. Ele remete a ela: não somente o que ele conta
precedeu o relatório que faz dela, mas mesmo se ele fala no presente – esse presente dito
« narrativo » ou então o presente de uma declaração « mimética » - ele não pode deixar
de abrir um afastamento, pelo qual se mostra precedendo-se a si mesmo. Sempre um
recitante terá tomado a iniciativa de recitar, ou então terá recebido a sua injunção. Na
verdade, a fala [parole] comporta uma antecedência absoluta: nela, « eu” [je] recua
aquém do « eu” [moi] que fala – mas é assim que ele vem a si. Nenhum « eu” [je] vem a
ser « eu” [je] senão recitando-se como tal ou sendo o recitante de algum relato.
51
Em francês, “ parole ” significa em português tanto palavra, quanto fala, na dicotomia de Saussure, por
exemplo, langue/parole , língua/ fala. Optou-se por um ou por outro termo, conforme o contexto. (N.E.)
52
“Frayage ” é a tradução francesa da noção freudi ana de “ Bahnung ”, traduzido em geral em português
por “facilitação”. O termo aparece muito cedo em Freud na descrição do aparelho neurológico humano,
descrevendo a operação por meio da qual qual uma excitação abre passagem de um neurônio ao outro
vencendo uma certa resistência. (N.T.)
III
Só o relato põe em obra a tensão – espera e atenção 53, para além de toda intenção –
na qual se dá a sentir o irrecusável e irredutível privilégio do caminho, da via, do método
tal como a filosofia o reconhece, mas, mesmo o reconhecendo, não pode se impedir de
tendencialmente reduzir e de reabsorver. Se, como o diz Hegel, o Verdadeiro é o
resultado
integrado, mediante o resultado,
engolido no caminho, doissoqual
significa
ele terá -sido
parao meio.
terminar - que
É assim o caminho
desde a dialéticaé
platônica e o caminho ascendente ao céu das Ideias e do theos. O Verdadeiro não está
tampouco no caminho enquanto interminável, nem enquanto privado de termo e de
direção – caminho que não leva a parte nenhuma e se perde nos bosques 54 , que
Descartes ensinava a atravessar sempre em frente diante de si: pois, neste caminho, é a
nulidade de direção e de destinação que, a cada instante, a cada passo, se cumpre como
verdade e confere ao caminhar, de maneira subreptícia, a qualidade de um resultado.
Em todos os casos de caminho filosófico e metódico, o resultado é pressuposto. Essa
pressuposição pode permanecer relativamente indeterminada; à maneira da intuição
cartesiana, da liberdade kantiana, ou do absoluto hegeliano, nem por isso ela deixa de
ser posição prévia, reserva já formada e provisão de rota. Apesar dos trajetos
consideráveis que os filósofos sabem cumprir, as distâncias que eles franqueiam, seus
caminhos, recobrem uma imobilidade secreta. Essa imobilidade procede de seu olhar
fixado – mesmo que através dos olhos cerrados – sobre a ideia do resultado, do
preenchimento
regular por essada intenção
ideia: e da
ele deve ser reabsorção da que
de tal maneira tensão. O trajeto
de seu caminhare depode e deve se
seu andamento
possa se seguir uma resultante, uma consequência, que em troca clareie o caminho por
inteiro e justifique o seu traçado. Este se terá regulado pelo seu fim, terá tido seu fim por
regra, por guia e modelo: caminho mimético da meta, movimento que imita a estação.
53
Jean-Luc Nancy joga aqui com os parônimos, “ attente ”, espera, e “ attention ”, atenção. (N.T.)
54
Em francês, “chemin qui ne mène nul part” remete à tradução francesa do título da coletânea de ensaios
Martin Heidegger, Holzwege . (Martin Heidegger. Chemins qui ne mènent nulle part. Trad. Wolfgang
Brokmeier. Paris: Gallimard, col. “Tel”, 1962.) (N.T.)
Ou antes: esboço-a a fim de prosseguir à minha maneira o relato de sua vida e de seu
pensamento, o relato que foi seu pensamento, a recitação do interminável romance de
sua existência terminado precocemente demais.
IV
Digo « romance » para dizer o que para nós subsume ou representa exemplarmente o
relato. A saber, não a narração de aventuras pitorescas e de episódios altos em cores
(não o romanesco),
[arrivée mas oe pensamento
], da sobrevinda que se mantém
do desaparecimento. sob o signo
O pensamento quemaior da chegada
obedece ao que
Philippe assim enuncia: « Aquilo que é preciso pensar é o Acontece que. [Il arrive
que]».55
Ora, este «Acontece», a primeira condição para pensá-lo é compreender que o sujeito
desta frase, o « ele » de « (ele) acontece » é indissociavelmente impessoal e pessoal. Que
« aconteça» isto ou aquilo, que um « isso » aconteça não se produz efetiva e plenamente
– não acontece, portanto – senão quando este « ele » se torna alguém. Não mais então
« (ele) acontece que », mas « ele acontece » curto e grosso. « Acontece que “Ele”
acontece». Todo o pensamento de Philippe terá sido virado em direção a – revirado, e
transtornado por –– essa obsessão de que « Ele » acontece, Ele, ele mesmo,
propriamente, enfim que ele aconteça a si mesmo, que ele se aconteça.
Que alguém
nascimento (na aconteça, é tão pouco
mesma passagem de etexto,
tão pouco determinável
ele fala de « nós quanto
a quemo evento do
foi “dado
nascimento” »). Esse evento, nós o sabemos, é um advento sempre diferido. Nascer
parece pontual, mas começa antes da vinda ao mundo e dura – como Freud o sugere –
até a saída do mundo. Nascer se prossegue em morrer.
Eis por que ele – Philippe – prossegue escrevendo: « Mas de onde isso é pensável se
não a partir da […] ameaça de que o acontece cesse de acontecer56 ? » Ora essa ameaça
está inscrita na natureza e na estrutura do acontecer. Para que isso aconteça [arrive], é
preciso que parta 57 . É preciso que tenha primeiro partido – ausente, não dado,
distanciado, até mesmo desviado, inexistente – para que isso venha ou volte
[revienne]58. Vir e voltar [revenir] são aqui o mesmo, pois vir volta sempre de uma
mesma anterioridade vazia, vir volta de lugar nenhum, e para lá retorna. (Vir, gozar, é
claro.)
55
Philippe Lacoue-Labarthe . La Poésie comme expérience [A Poesia como experiência ]. Paris :
Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 1986, p. 126. [Os itálicos são de Philippe Lacoue-Labar the.
(N.E.F.)] Nancy joga aqui aproximando os dois sentidos de “ arriver ”, acontecer (“ il arrive que”, acontece
que) e chegar (“ J’arrive” , estou chegando; “ arrivée” , chegada), em português. (N.T.)
56
Ibid. [É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
57
Nancy joga com o duplo sentido de « arriver ”, acontecer e chegar (N.T.)
58
Nancy joga com os verbos da mesma família etimológica, “ venir ”, vir, e “ revenir ”, voltar. (N.T.)
Eis aí muito exatamente o que a filosofia ignora, recusa ou conjura. Hegel recusa que
a filosofia tenha um começo no sentido das outras ciências, quer dizer, na
« pressuposição de um objeto particular59 ». O saber absoluto não é um saber total,
integral e terminal: ele é o saber para o qual nada é pressuposto como um objeto, mas
que retoma em si todo objeto e dissolve sua objetividade, quer dizer, sua exterioridade.
Saber sujeito de si, retorno em si, no « conceito de seu conceito » e, por conseguinte,
reabsorção de todo acontecer e de todo vir (Hegel fala aqui de « satisfação », ou seja, do
que contradiz profundamente o gozo. Gozar ultrapassa a oposição da satisfação e da
falta. O que também pertence ao relato).
Se pode haver uma questão de começo, em filosofia, será somente, escreve Hegel,
para considerá-lo como uma « relação com o sujeito enquanto ele quer se decidir a
filosofar, mas não com a ciência como tal ». O começo é exterior ao saber, é empírico e
contingente. Está em um Era uma vez um sujeito – por exemplo, Georg Wilhelm
Friedrich Hegel – que quis filosofar . No fim, me dirão, esse sujeito deverá justamente
ser reabsorvido no saber de si do saber. É verdade, mas essa verdade ela mesma se
rechaça ao infinito para fora de toda apresentação que não seja estritamente o retorno em
si do conceito de seu próprio conceito. O próprio Hegel o sabe: isto, este retorno
absoluto, não acontece propriamente falando. Ele é, ao contrário, o que, não
acontecendo, abre a possibilidade de todo acontecer [arriver]60.
Ele é, este retorno em si, o nada, o insignificante, o inconsistente de uma
anterioridade e de uma posterioridade a todo vir, vir-e-partir. Em Hegel, isso se chama o
« ser » enquanto « cópula vazia ». O vazio de ser – ou então o ser vazio, ou seja, a
própria filosofia [la philosophie même] – forma para Lacoue-Labarthe ao mesmo tempo
o que o relato recusa e o que ele refuta.
Mas ele o refuta, pois, abrindo o relato, tentando dizer que acontece, esforçando-se
em chegar a dizer que acontece, e a dizer que acontece que [ele] acontece, ele engaja
efetivamente, praticamente e com uma tenacidade exemplar – a tenacidade do próprio
recitante – a resistência à nadificação mútua do vazio e da satisfação.
O relato terá começado antes de seu recitante, o qual, no entanto, deve tê-lo
precedido: tal é a lição da literatura – uma lição que a filosofia recusa por princípio, ela
própria repousando sobre a decisão de ser contemporânea de seu começo. O relato, ao
contrário, dissocia a srcem e o começo. Quando começa, ele já tem sua srcem atrás de
si. Qualquer início de relato pode nos dizer isso. Quando lemos « Por muito tempo, me
deitei cedo… »61, aprendemos antes de qualquer outra informação que esse muito tempo
precedeu, longamente, por uma duração irredutível e que se perde atrás dessa primeira
palavra. E essa extensão de tempo afeta de chofre o « eu » que quer se falar, que se
escreve aqui. Ela o distende – aqui visivelmente, legivelmente, mas cada incipit o
distende do mesmo modo: « era uma vez » dissocia o recitante dessa « vez » insituável
que, no entanto, ele atesta estar em medida de situar.
61
A primeira frase de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. (N.T.)
Nos termos de Lacoue-Labarthe, poderíamos dizer que essa distensão – a própria
dissociação do recitante em sua recitação – é o fato da falha [ défaillance] em se
identificar, em se tornar si mesmo62.
A dissociação mesma representa aquilo a partir do qual não seria possível haver
« mesmidade”: ela figura aqui a diferença (ou a différance)63 a partir da qual o sujeito se
institui, ou antes, se inicializa ou se inicia, ou melhor ainda, facilita para si [ se fraie]
uma via em direção ao que não pode senão se esquivar dele, não sendo dado senão como
já recuado, num longo tempo ou em uma vez que nenhum relato virá jamais recuperar.
O relato põe em movimento o que está tão recuado que nada saberia alcançá-lo para
abalá-lo ou animá-lo: a antecedência absoluta do sujeito da fala [ parole]. Mas « o sujeito
da fala» não é independente dela: ele é « ela mesma », e ele a forma, esta fala, ele a
torna falante, ao preço de vir expirar nela – literalmente e em todos os sentidos. Cito
Lacoue-Labarthe que escreve e descreve
O – isso ou este – que expira não na fala, mas em fala – isso ou este/esta que é aqui
nomeado (a) « pensamento », na falta de melhor termo, ou seja, na falta de uma palavra
para o que, aquém das palavras, remonta à antecedência absoluta, à separação srcinal,
sempre mais recuada do que qualquer designação, de um « um », de um « qualquer um »
sujeito falante, de alguma fala-sujeito. Bem longe de dever ser pensada como separação
para com uma mais ampla unidade, ou então para com uma unitotalidade (representada
como maternal, oceânica, cósmica, como se quiser), segundo o esquema conhecido
(« castração », « perda »…), essa separação deve ser compreendida como a separação do
« um » em si mesmo e para consigo mesmo. Esse « um » que sempre-já foi aquilo que é,
mas que não o torna senão expirando – morte e fala juntas, fala e sopro indo se perder
para se encontrar, formados em traço de união entre o imemorial e o inadveniente.
62
Cf. Philippe Lacoue-Labarthe. Musica ficta. Figures de Wagner . Paris : Christian Bourgois éditeur,
col. « Détroits », 1991, p. 160, onde essa falha é imputada à arte que se quereria a « ela mesma »: a
ausência do sujeito se mostra assim formar a mola íntima da arte (como da religião, segundo a passagem
em questão – mas aí é uma outra questão, se a arte é ela mesma « cesura da religião », como o afirma a
conclusão do mesmo livro). [É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
63
Referência à noção formulada por Jacques Derrida, num ensaio célebre de mesmo titulo. Ver supra p.
XX (N.T.)
64
Philippe Lacoue-Labarthe,, Phrase . Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 2000, p. 45.
[É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha. (N.E.F.)]
VI
A recitação é o regime desse traço de união, desse traço estirado do antes ao depois e
do dentro ou do em-si ao fora ou ao para-si, que são os dois polos da infinita torção pela
qual « um » se busca e, sem nunca se achar, todavia se estende e se estira, se traça e se
retira, se inspira e se expira.
VII
Eis por que o relato vem após. Vem após nada e após tudo: após sentido algum que o
teria precedido, e após tudo, pois tudo se depõe sempre fora-de-sentido, em blocos
erráticos. O relato volta. Recitare é recomeçar o chamado dos nomes no tribunal. Os
nomes que o recitante chama a comparecer são seus próprios nomes – seus nomes
próprios jamais inteiramente apropriados, em sua não-significância, a essa propriedade
insigne, inominável, que forma a verdade do que acontece [ arrive], a verdade de sua
chegada [arrivée], a verdade da história contada, recitada, verdade chamada, invocada,
evocada, inverificável, ela mesma errática e espalhada por toda parte no relato, tecendo
o próprio relato sem nele se mostrar senão pela arte do recitante. O que se chama de « a
arte », aqui como alhures, é um saber das verdades inverificáveis e modeladas,
figuradas, desfiguradas e transfiguradas ao ritmo e à velocidade de uma narração. (« [A
figura não é jamais uma […] não há unidade ou estabilidade do figural, nenhuma fixidez
ou propriedade da imago. Nenhuma “imagem própria” onde se identificar em totalidade,
nenhuma essência do imaginário68. »)
Pois a narração é saber (gnarus, co-gnosco, i-gnoro): ela é saber que reporta, que
relata aquilo que teve lugar, que isso teve lugar e como ele teve lugar, como, portanto, a
ordem e a sucessão das coisas foram encontradas e se encontram modificadas,
moduladas, alteradas. Não é um saber das coisas aprendidas ( mathèmata), é o saber das
coisas tais como elas se prendem e se desprendem segundo a sua proveniência e a sua
destinação incalculáveis.
O relato ou a narração supõe o curso das coisas, e que ele tenha sempre-já começado.
Lá onde a filosofia quer supor – e se impor – o próprio começo, o ponto da srcem e do
fim, o relato sabe que esses pontos estão no infinito e segundo o infinito se alcançam e
se anulam
própria juntos, anuma
dimensão: idêntica
distensão ausência de
do sempre-já dimensão.
e do Com ao suspensão
nunca-ainda, relato, desposa-se a
do evento.
67
“Tautegoria”, termo que Schelling encontra em Coleridge, num artigo sobre o Prometeu de Ésquilo. A
mitologia é para Schelling tautegórica e não alegórica, ou seja, deve sere entendida segundo os termos que
ela exprime e, em sentido próprio, não por outros termos, em sentido figurado. (F. W.J. Schelling,
Philosophie de la mythologie. Trad. Alain Pernet. Grenoble: Éditions Jerome Millon, 1994, p. 91.) (N.T.)
68
Philippe Lacoue-Labart he. « L’écho du sujet ». In : Le Sujet de la philosophie. Typographie I. Paris :
Flammarion, col. « La philosophie en effet », 1979, p. 261. [É Philippe Lacoue-Labarthe quem sublinha.
(N.E.F.]
« Mas como estabelecer o momento exato em que uma história começa? Tudo já
começou desde sempre […]69 », escreve Italo Calvino.
Aproximadamente duzentas páginas adiante, o relato se encerra com essa frase: « “Eu
lhe apresento a sra. Bundren”, que ele diz assim72. » A conclusão, antes cômica ou
cínica – a substituição da esposa morta – que verdadeiramente acaba a história, se junta
à ressonância ela mesma irônica, mas também vaga, indeterminada do « assim » dessa
fala, que abre de fato uma outra história possível.
Por mais implacável que seja o fim do relato, ele ressoa além dele. Ele abre seu
desobramento [désœuvrement] no sentido de Blanchot. Assim como o fim de Sob o
vulcão,73 com o qual Philippe tinha uma ligação por laços literários tanto quanto por
identificação.
O Cônsul cai no vale do vulcão e « seu grito foi lançado de uma árvore a outra, no
retorno de seus ecos; depois, foi como se as próprias árvores se aproximassem, se
apertassem, se fechassem acima dele, plenas de piedade... ». A essa ressonância do
último grito sucede, na linha seguinte, esta frase: « Depois dele, alguém jogou um cão
morto [crevé] no vale74. » Esta coda, que podemos dizer muito expressamente musical,
retoma e amplifica, com uma precisão estranha, para o relato inteiro a tonalidade do
grito. No trecho, e para permanecer no francês, o « morto » relança o « grito » ao mesmo
tempo que o abafa.75 Uma sonoridade tanto extinta quanto interminável mantém aberta a
voz, o tom e o canto do relato.
69
Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante. Capítulo VII. (N.T.)
70
W. Faulkner. Tandis que j’agonise [Enquanto agonizo ]. Tr. fr. Maurice Edgar Coindreau revista por
Michel Gresset. In : Œuvres romanesques I , Michel Gresset (ed.). Paris : Gallimard, col. « Bibliothèque
de la Pléiade », 1977, p. 899.
71
Nancy se refere à tirada atribuída a Valèry, segundo o qual todo o romance poderia ser reduzido e
deduzido inteiro do incipit : “A marquesa saiu à cinco horas”. (N.T.)
72
Ibid., p. 1072.
73
Under the Volcano , de Malcom Lowry (N.E.)
74
A tradução é de Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)
75
A última frase do romance de Lowry é: “Somebody threw a dead dog after him down the ravine”
(Alguém lançou um cão morto depois dele no vale). (Malcolm Lowry. Under the Volcano . Londres:
Penguin Modern Classics, (1963) 1977, p. 376.) Em francês, na tradução de Nancy: “Après lui, quelqu’un
balança un chien crevé dans le ravin (N.E.)
Que isso já começou e que isso continue para além de todo « fim » narrativo, é o que
a música dá à luz. O traço comum da música e do relato se liga a uma precedência e a
uma subsequência sempre abertas. O que ouço quando a música « começa », já
começou. O que deixa de se fazer ouvir quando a música se extingue, ressoa ainda. « No
canto – escreve Lacoue-Labarthe – exige-se da voz algo diferente do que ela faz
espontaneamente, exige-se talvez que ela reencontre um pouco da música de antes (do
nascimento) […]76 ».
A música não mobiliza somente a ressonância atual dos sons que ela amplifica,
intensifica, trabalha e modula. Ela mobiliza sua ressonância anterior e posterior, o
inacabamento e o incomeço que pertencem por essência à ressonância. A repetição –
retomada, retorno, tema e variação, melodia obcecante, da capo, etc. – que assombra a
música, que a pontua e a escande, governa o re- do relato, a iteração que retoma e
relança o que jamais teve lugar e que não terá lugar –, mas que define o momento
musical: a passagem do tempo para fora do tempo, a composição dos presentes passados
e por vir num presente que não é o da presença dada, mas o do lembrete e da espera, o
presente composto de uma tensão em direção ao retorno infinito de uma presença nunca
dada, sempre essencialmente – eternamente – escapada.
Um mestre de canto dizia a seu aluno: « Você não deve de modo algum fazer sentir
que começa. Isso já começou a cantar».
Essa distensão do presente, essa dilatação da presença além dela mesma e até uma
ausência plena de seu próprio batimento, preenchida pelo chamado repetido do ausente
tomado por seu « desejo de se atingir77 », é justamente o que faz o fundo verdadeiro e o
que está em jogo no relato.
A música é um relato. Não uma história. Não aquilo que se tenta inventar para
transformar uma música em relato, como quando se diz que a clarineta dialoga com a
orquestra ou que o movimento vivo vem substituir e arrastar em sua fuga o que o
movimento lento tinha deposto e como que abandonado – ou então o inverso, pois quase
tudo pode ser dito quando nos engajamos nesse registro. No entanto, podemos e
devemos nos engajar nisso, contanto que não imaginemos aventuras nem peripécias
entre personagens, paisagens e imagens. Precisamente, o sem-imagem é aqui
determinante (o sem-imagem ou a desestabilização íntima da imagem, tal como ela foi
evocada): ele está aí, se se pode dizer, para dar lugar ao elemento que denomino aqui de
« relato »: quer dizer, o vir-e-partir ou então o recitar-se e citar-se, chamar-se e ouvir-
se, mas perder-se tanto quanto encontrar-se nesse eco de si.
76
Ph. Lacoue-Labarthe. Le Chant des Muses [O canto das musas]. Paris : Bayard, col. « Les petites
conférences », 2005, p. 29-30. [É Lacoue-Labarthe quem sublinha). (N.E.F.)]
77
Ph. Lacoue-Labarthe . « L’écho du sujet ». In : Le Sujet de la philosophie, op. cit., p. 226.
reunião em saber absoluto do vazio e da satisfação, está o retinir num escancaramento
[béance] de uma chegada que irá embora. Esse escancaramento é o que abre o sujeito e
que se abre a ele para que nele ele se chame, se cite e recite.
VIII
78
A propósito de romantismo musical, conviria abrir aqui um exame do lied – forma amada por Philippe
como por todo um gosto contemporâneo cujos móveis profundos se atêm certamente a isto: o lied, na
maioria das vezes um pequeno relato, se ensaia num equilíbrio delicado entre melodia e ritmo, ou ainda,
para antecipar sobre aquilo que virá mais longe, entre ária e recitativo . Ele permite a efusão cantante tanto
quanto a pulsação falante, bordejando uma pela outra. Quando é bem sucedido, isso se ouve.
79
Do Sujeito maiúsculo distinguido do sujeito minúsculo, como ele escreve na página 149 de Musica
ficta. [A citação (« “ l’Un différant en lui-même” ») é modificada por Jean-Luc Nancy. (N.E.F.)] Trata-se
do fragmento 51 de Heráclito: “Eles não compreendem como o que se opõe a si mesmo concorda consigo
mesmo: ajuste por açõe s de sentido contrári o, como o arco e a lira”. Em grego: “ hen diapheron heauto ”,
que Hölderlin compact ou como: “O um se diferenciando de si mesmo” . (Diels, fragmento 51; Fragments .
Trad. M. Conche. Paris: PUF, s/d, p. 425; Hölderlin. Œuvres . Philippe Jaccottet (dir.). Paris: Gallimard,
col. « Bibliothèque de la Pléiade », 1973, p. 145.) (N.T.)
80
Não é tampouco com certeza fácil separar sem resto o ritmo da melodia. M as essa é uma outra
questão.
81
A Grande Fuga em si bemol maior de Beethoven é o quarteto de cordas opus 133, srcinalmente
quarto movimento do quarteto, opus 130, e depois editado separdamente. É uma das últimas obras de
Beethoven. (N.E.)
Antes da música e antes da fala, como seu obscuro impulso comum, há o que se
nomeará o recitativo. Não no sentido estritamente musicológico do termo (que, aliás,
tem variado e que atravessa hoje tão amplos territórios musicais 82), mas no sentido com
que ele designa ao mesmo tempo o que, da fala, precede o canto, vai em direção a ele
sem se destacar na forma de uma « ária », e o que, da música, entra na fala para dela
espaçar o tempo e erguê-la de uma cadência alheia a seu sentido. Nem declamação – que
se regula por um pathos – nem canto – conduzido por um melos –, o recitativo forma um
ethos: uma postura, uma conduta da linguagem. Essa conduta que de chofre lhe
reconhece
longe do queumsua
« antes » e um «linguística
constituição depois », que
e suasabe que ele
emissão vem deOmais
fonética. longe edesperta
recitativo vai maise
mantém na língua a voz que a profere enquanto ele chama e retém na música o sentido
que ela é a única a fazer vibrar.
Recita-se dessa maneira uma história cuja intriga ou aventura toda não se ata sem
desatar de momento em momento a sua progressão numa cadência, nem sem arrastar sua
significação numa pulsação que repõe em jogo, incessantemente, o nascimento da fala: o
abalo desse eco pelo qual um sujeito se sabe e se sente – é aqui uma mesma coisa –
precedido e seguido por ele mesmo numa alteridade infinita, eterna. Perdido, por
conseguinte, mais longe do que todo relato, mas recitante dessa perda a que ele dá o
nome de a perda de
Então
Não se descobre o que se esperava ver, mas uma extensão sem sombras, sem
nada que a divida (como o mar quando nenhum sopro o ergue e quando repousa
não cintilante, mas imóvel fulgurante – a não vê-lo), num rumor quase
dilacerante…84
82
É preciso analisar como o destino contemporâneo da música, desde Wagner e Debussy passando por
Schönberg, Berio ou pelo blues, Miles Davis, alguns aspectos das músicas pop e rock e até as músicas
eletrônicas e o rap, algo de recitativo penetrou lá onde só se conhecia apenas a « ária », e talvez
justamente demasiado a « bela ária » [“bel air’] . Bem longe de estar a serviço da ação para melhor dar
seu lugar às árias, como foi o caso na ópera clássica, o recitativo reencontra, sem dúvida, contra a ária
ornamental, um va lor menos ligado à lingu agem que à pulsação de fal a, à salmodia, à me lopeia, à
antífona – quer dizer, também ao responso e assim, através de uma outra forma do eco, ao passado
religioso do recitativo. Sem dúvida o relato tem sempre parte ligada, senão com a religião, pelo menos
com uma sacralidade que é a da alteridade que nos precede e nos sucede. « Cesura da religião », dizia
Lacoue-Labarthe.
83
Philippe Lacoue-Labarthe. Phrase , op. cit., p. 130.
84
Id., L’« Allégorie » , op. cit., p. 17 (« Réc itatif »). [Os itálicos são de Philippe Lacoue-Labarthe.]
(N.E.F.]
Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla e João
Camillo Penna
5. ...DEVERIA SER UM ROMANCE...
A literatura não é linguagem escrita: ela não o é, pelo menos, ao menos se a escrita não
for uma simples consignação gráfica da fala.
A escrita
linguagem não é épossível
anterior senão
à falaem
e talvez mesmo à implícita,
uma referência linguagem.mas Com efeito, umaà
constitutiva,
impossibilidade de passar acima dela para fundá-la em outra linguagem que a ela daria
seu sentido. Uma linguagem se funda apenas em si mesma, no reenvio circular a seu
próprio código. Sem metalinguagem é a fórmula dessa lei da linguagem.
Uma metalinguagem não seria uma linguagem: seria a manifestação pura da
coisa e, com ela, de seu sentido. Em verdade, não seria nem mesmo uma questão de
“sentido”. Haveria a coisa e no máximo um indicador apontado para mostrá-la ou algum
dispositivo de apresentação, o que nem mesmo é seguro, pois mal se discerne porque se
deveria mostrar o que se mostra em si mesmo (axioma que define a verdade para
Spinoza e no fundo para todos). É necessário mostrar somente quando se está no
elemento do sentido: isso remete àquilo, vai em direção àquilo, se funda sobre, se perde
em, etc. O sentido mostra, ele indica um horizonte, uma destinação. A verdade se
mostra: ela própria é o horizonte ou a destinação, a menos que ela se situe precisamente
para além de todo horizonte e de toda destinação (além ou bem aquém, no mais perto de
nós).
A “escrita” tornou-se recentemente o nome em que se contrai esta fórmula: “não
existe metalinguagem”85. Isso significa que a escrita tornou-se o nome do que precede o
sentido, ou daquilo que o sucede, ao invés de ser o nome de uma forma de consignar o
sentido. Isso significa ao mesmo tempo que ela é também, necessariamente, o nome da
verdade. Não a verdade enquanto correspondência correta com um objeto dado, mas a
verdade como o que se manifesta em si. A escrita designa o romance da verdade, o
romance verdadeiro, o verdadeiro poema.
Para isso foi necessário que a operação de consignação – ou de correspondência
– se encontrasse ela mesma deslocada ou transformada. De fato, o modelo de uma
consignação se decompôs gradualmente em favor do que se poderia chamar a invenção
de uma inscrição, o sulcamento, o engrama de um rastro. A expressão da realidade em
uma forma linguageira deu lugar à produção de uma ficção na qual o real sulca um
sentido.
Obviamente, trata-se aqui de representações: nós nos representamos que se
acreditava outrora em uma linguagem tradutora do real, representamo-nos hoje o real
85
Jean-Luc Nancy escreve entre aspas a frase “Il n’est point de métalangage”. A solução tradutória
encontrada levou em conta certa historicidade. Ao mesmo tempo em que Nancy participa da tradição
lacaniana (do “il n’y a pas de métalangage”), ele joga com a sentença, quase consolidada por Lacan,
preferindo a forma arcaizante da língua francesa. A expressão negativa formada por point constitui um
recurso estilíst ico, além de uma negação mais insistente no estar das coisas. Certamente ainda poderíamos
propor a solução, mais analítica, por “não existe nada que seja a metalinguagem”. (N. T.)
como o abismo da nossa criação86. Cada uma dessas representações é um andaime
erguido por uma precipitação ideológica. Quem quer que escreva – desde o contador de
histórias da tribo (pois essa oralidade, retomaremos isso adiante, é “escrita” no sentido
que se examina aqui) até o escritor de narrativas e poemas – pouco se importa com tais
representações. Ele pode utilizá-las quando interrogado sobre sua atividade, mas elas
não orientam seu gesto de escrita.
No entanto, estamos aqui na situação do interrogado. Perguntam-nos como
pensar a literatura. Talvez devêssemos desmontar a questão. Talvez devêssemos antes...
escrever?
Friedrich Schlegel, o próprio, escrevera esta frase: “A teoria do romance deveria
ser ela mesma um romance.”87 Em outras palavras, Schlegel colocava que há uma
metalinguagem literária e que ela é ela mesma literatura, portanto imediatamente
desprovida de qualquer pretensão de fazer metalinguagem ou metaliteratura.
O emprego recente da palavra “escrita” – deslocado do sentido de “grafia” ao de
“estilo” e, em seguida, ao de engendramento textual – significa somente que buscamos
delinear como a literatura se engaja antes de qualquer literatura e mesmo antes de
qualquer linguagem: ela se engaja em um gesto que abre um rastro.
Um rastro ordinário sucede a uma passagem. O rastro do qual se trata precede e
sulca a passagem. É a sua proveniência, sua vinda. É uma trilha aberta: mas abrir uma
trilha supõe simultaneamente uma antecipação, a escolha de uma direção, e a
precariedade do rastro cuja natureza é penosamente traçada rumo ao seu apagamento.
Ele também, o apagamento, de alguma forma, faz parte da antecipação de uma
destinação: o destino de um esvanecimento aí inscrito com a tensão de uma aparição e
de um passo à frente.
Para designar essa contradição interna Derrida falava do arqui-rastro (e da
arqui-escrita). O arqui não é aqui nem o mais antigo, nem o supremo: nem arqueologia,
nem arquitetura. Não é primitivo, não é primeiro. Ele é imemorial – dessa vez é a
palavra de Blanchot. O imemorial não reside em uma memória anterior a toda memória,
mas em uma ausência de memória. Trata-se daquilo que precedeu, mas em que nada se
liga ao presente enquanto passado. É um passado tão absolutamente passado que não é
nem mesmo passado ou nem passou: não atravessou um presente para se dispor como
presente passado. Ele nunca se apresentou.
86
A expressão francesa “nous nous représentons que” assume aqui uma importância significativa e, por
isso, foi mantida em português, mesmo sendo não usual. O jogo entre representação e o dar-se conta seria
perdido sem a manutenção desse arcaísmo na tradução. (N.T.)
87
Ele escreve em sua Carta sobre o romance que conviria criar “uma teoria do romance que seria teoria
no sentido srcinal do termo: uma intuição espiritual do objeto em um estado de espírito inteiramente
sossegado, sereno, assim como convém para a celebração alegre quando se contempla o jogo significativo
de imagens divinas. Tal teoria do romance deveria ser ela mesma um romance que reconstituiria
visionariamente cada uma das tonalidades eternas da imaginação visionária e que se dispersaria
novamente no caos da cavalaria”. ( eine Theorie des Romans, die im ursprünglichen Sinne des Wortes eine
Theorie wäre: eine geistige Anschauung des Gegenstandes mit ruhigem, heitern ganzen Gemüt, wie es
sich ziemt, das bedeutende Spiel göttlicher Bilder in festlicher Freude zu schauen. Eine solche Theorie des
Romans würde selbst ein Roman sein müssen, der jeden ewigen Ton der Fantasie fantastisch wiedergäbe,
und das Chaos der Ritterwelt noch einmal verwirrte.) Texto alemão:
http://www.zeno.org/Literatur/M/Schlegel,+Friedrich/%
C3%84sthetische+und+politische+Schriften/Gespr%C3%A4ch+%C3%BC ber+die+Poesie. Texto francês
em Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy. L’Absolu littéraire : Paris, Seuil, 1978, p. 328 (tradução
modificada pelo autor).
Esse terá precedido: eis o que se diz frequentemente. O que se chama um “futuro
anterior”. Mas o futuro anterior se encontra de alguma forma desdobrado neste caso:
não somente isso terá tido lugar88, mas o que terá tido lugar não é designado senão
como o fato de preceder. Neste desdobramento figuram duas atestações: por um lado,
nada teve lugar senão um “ter lugar” indeterminado (é um dos sentidos possíveis do
“nada terá tido lugar senão o lugar” de Mallarmé); por outro lado, os diversos valores
do futuro anterior jogam juntos: o valor da conjectura (não é absolutamente certo que
isso tenha tido lugar), o valor de ênfase (é necessário que tenha tido lugar um
acontecimento grandioso); o valor da antecipação (que supõe um contexto tal como:
“um dia se revelará que isso terá tido lugar”).
A conjunção destes três valores compõe o sentido que temos dado hoje à “escrita”.
Se “escrever” não consiste em transcrever dados prévios – acontecimentos, situações,
objetos, suas significações – mas em inscrever possibilidades de sentidos não dados, não
disponíveis, abertos pela escrita em si, então deve-se considerar:
! em primeiro lugar, que nenhum dado precedeu, senão a abertura em si, que não é um
dado, mas o dom em si – pois não se deve entendê-la como a abertura de um túnel,
sólido e fixo, mas como a de uma boca, móvel à mercê de falas pelas quais se afeta, ou
ainda como a de uma ópera, que se precipita para dar o tom, lançar o movimento, abrir a
barra da cortina do palco;
! depois, que nada é certo ao sujeito quanto ao que pode ter precedido sem, contudo,
nenhuma precedência, nenhuma anterioridade; “Escrever é ler onde não há nada”
escreve Philippe Grand89; mas também é possível que tudo tenha tido lugar, tudo, o
mundo inteiro, e que líamos no grande livro de deus ou da natureza: tudo retorna ao
mesmo, isto é, retorna a lugar algum;
! finalmente, que o que teve lugar antes do que tenha tido lugar seja lá o que for – esse
livro vazio ou essa ausência de livro, essa ausência de eu entre meus dois pais, esta
srcem sem orifício (ou então o inverso) constitui um acontecimento da maior
importância, tão verdadeiramente considerável que é a considerá-lo que a escritura se
consagra.
A escrita se consagra a considerar o acontecimento que não teve lugar ou cujo ter lugar
apenas pode permanecer conjectural, tanto que é recolhido para junto de todo vestígio,
de todo rastro que se poderia encontrar. Este acontecimento de fato não é ele mesmo
senão o prelúdio do rastro, o entalhe da linguagem: o envio do sentido.
Indiferentemente, ou ainda encaixados um no outro, a criação do mundo, a aparição do
homem, o achado da linguagem.
Em essência, este envio precede todo sentido possível. Mas “preceder” remete
aqui a desaparecer na ausência pura de toda anterioridade, no já-passado de toda
passagem. É o que a escrita sabe e o que ela põe em obra.
A literatura
que assinala sabe de
a passagem quenada,
nadaaprecedeu.
passagem Cada escritaaquele
do ausente: abre oque
rastro.
me O mesmo Pode-
precedeu. rastro
se nomeá-lo “o morto”. Não “a morte”, que não é nem uma coisa, nem uma pessoa, mas
88
A sentença “ cela aura eu lieu ”, no srcinal, configura o próprio acontecimento, com o sentido de “isso
aconteceu”. No entanto, e, como será mostrado logo adiante no texto, há um jogo entre a sentença de
Nancy e o verso de Mallarmé, “rien n’aura eu lieu que le lieu ”, traduzido por Haroldo de Campos por
“nada terá tido lugar senão o lugar”. A noção espacial é importante tanto aqui como no poema constelar
de Mallarmé. (N.T.)
89
Philippe Grand. Tas II . Marseille : Eric Pesty Editeur, 2006, p. 126.
ainda o morto, aquele que partiu, que é passado, o passado por excelência. Poder-se-ia
fazê-lo o personagem principal, o herói do romance que seria o romance da literatura:
Passado, o Passado, Sr. Passado90.
Mas esse herói até então não esteve presente em nenhum lugar – nem na
existência, nem nas imaginações dos Antigos: ele é, com efeito, ele mesmo, ele terá sido
o Antigo absolutamente antigo. Blanchot fala do “apavorantemente antigo”: apavorante
porque nós não podemos senão ser tomados de pavor ao considerar a obscuridade vazia
da noite que nos precede. Saímos dessa noite e entramos nela, incessantemente. Passado
– o Morto, ninguém então, mas ninguém ou o não-um, não-um-só, identificado como
91
Ninguém,, nessuno
niemand aquele, nemo
que como Ulisses
(todos para Polifemo
personagens chamou-se
de narrativas, Outis
poemas ninguém, nobody,
ou, canções).
Passado, o morto é aquele que sempre já terá vindo antes que eu venha, antes
que qualquer um venha. Sua vinda abre o rastro do que é vir em geral: vir ao mundo, vir
à luz, a vinda do dia em si. Manifestar-se, estar na manifestação das coisas, gozar de sua
manifestação. Nada precede a manifestação, do mesmo modo que nada lhe sucede.
“Literatura” vem nomear isto, este saber da manifestação como algo que sai do
não-manifesto, do cerrado, do nada. Desde quando ela vem a esta nomeação, afinal
incompreensível à luz dos significados anteriores da palavra: o domínio do literal,
depois a coisa letrada, em seguida as “belas-letras”, depois, à maneira alemã, o conjunto
de documentos escritos sobre um assunto [sujet], e também o “resto” de Verlaine, isto é,
a prosa prosaica92, ao mesmo tempo que a embriaguez de Flaubert 93 e antes que, bem
mais tarde, Roland Barthes declare que o escritor “golpeia de encantamento o sentido
intencional, virando a fala em direção de uma espécie de aquém do sentido”94 (enquanto
isso, é verdade, a reescrita da epopeia será jocosamente designada como uma
95
“barganhista
desejado jogarenciclopédica
de novo sem ereservas
caóticaseu
crônica” – isto quer
próprio sentido, dizer
aquém que adeliteratura
e além si mesmaterá
ou
ao menos da identidade que se lhe podia supor) – então, desde quando esse sentido se
libera – hoje, todavia, afastando-se de uma representação dominante que quer o
testemunho, o registro do real, o vivido que se diz “autoficcionalizado”, como que para
significar que ele não é de forma alguma fictício, pois estamos em falta de real, nós nos
cremos perdidos no virtual, na fantasia e nas formas ocas – desde quando, portanto,
senão desde sempre?
Não há nenhum contador, na verdade, nenhum fazedor ou recitador de histórias,
de mitos, de lendas, de parlendas ou de descidas de um ditado divino, não há ninguém
que ao mesmo tempo não dê total fé ao conto e não saiba, no entanto, que a inteira
90
Monsieur mon Passé é uma canção de Léo Ferré; no entanto, aqui o passado se vê mais obrigado a
passar realmente, a não mais obsedar o presente.
91 “Personne ”, ao mesmo tempo ninguém e pessoa em francês. (N.E.)
92
Última estrofe de A arte poética: Que ton vers soit la bonne aventure / Eparse au vent crispé du matin /
Qui va fleurant la menthe et le thym... / Et tout le reste est littérature . (N.A.) [« Que teu verso seja a boa
aventura/ Esparsa ao vento crispado da manhã/ Que vai florescendo a hortelã e o timo…/ E todo o resto é
literatura ». (N.E.)
93
“Entonteçamo-nos com o ruído da pluma e bebamos da tinta. Isto alucina mais que o vinho”. A Ernest
Feydeau, 15 juillet 1861.
94
Rolland Barthes. Nouveaux essais critiques. Paris : Seuil, 1972, p. 175.
95
James Joyce. Ulysse. Tradução francesa de Auguste Morel et Stuart Gilbert revista por Valéry Larbaud
e o autor. Paris : Gallimard, 1948, p. 417. Na tradução utilizada por Nancy: ”barguigneuse encyclopédique
et chaotique chronique”.
substância desse conto reside em sua fala, em sua proferição, que é também sua
invenção.
Assim, o filho caçula favorito da mãe, por ela protegido do grande macho da
horda, desperta um dia para a descoberta de sua própria proeza e conta a todos como
matou aquele que se torna assim o pai: tal é a srcem que Freud dá da literatura, tal é o
seu mito explícito da invenção do mito, da fala e da tribo a um só tempo.
A literatura é bem exatamente esta fala que sabe que seu sentido vai do nada ao
infinito, que ele a precede e a sucede, que ele se precede em si mesmo e se sucede em si
mesmo. Esta fala que vai do Morto – o Pai, a Figura insigne ficcionalizada como
imolada – e antes da Morte – a Mãe, não figura, mas partilha da fala – em direção à
possibilidade de algum sentido comum.
Escutemos, uma vez mais, o começo de cada um dos cantos com os quais nós,
mediterrâneos, inventamos a invenção sob o nome de Homero como nome e terra natal
de nossa literatura:
Pedindo seu canto à musa divina, o cantor declara a ficção, mas a ficção assim é também
declarada sagrada – inspirada, ou seja, insuflada a partir de um fora que ninguém
poderia ser tentado a situar alhures senão no mais íntimo do próprio canto96.
Esse fora é também designado pelo canto como aquele dos acontecimentos que
serão relatados e celebrados: a ira de um, as manobras e périplos de outro. Tudo isso
aconteceu em algum lugar e em algum tempo, e se, no entanto, é preciso pedir a
narrativa – quase em uma prece – ao sopro de uma voz mais que humana, é que temos
tudo a aprender sobre esses acontecimentos, ainda que os nomeemos. O que é para ser
cantado – a ira, as manobras – já está lá, mas ainda por vir.
O que é para ser dito em literatura, enquanto literatura, já está sempre aí e ainda
está por vir. Isso começou muito antes da narrativa e isso prossegue muito depois dela. É
a marca mais própria da narrativa e do canto – de fato, prosa e poema, letra e música são
envolvidas aí juntas – do que de ter iniciado antes que a boca pronuncie. A página, a
tela, a tábula ou o tablet sobre o quais se traça uma escrita figuram bem à próposito
dessa antecedência ao mesmo tempo virgem e encetada – essa abertura.
Igual abertura engaja, estrutura, desdobra, excita toda a literatura. Ela começa e
prossegue fora dela mesma, ela não é ela “mesma” nada mais que essa antecedência e
essa sucessão inesgotáveis. Não se esgota o sentido. A cada instante crê-se impor uma
significação: o sentido os depõe todos e os leva alhures, em direção a um fora anterior e
ulterior. Pacientemente, perdidamente, esse alhures inscreve, excreve seus rastros.
96
Mesmo quando Virgílio, por um deslocamento decisivo, começa com a primeira pessoa – Arma
virumque cano… Os feitos de armas e o homem eu canto... – esta pessoa se ouve ela mesma inspirada –
aspirada – pelo canto. O eu literário, mesmo o de Rousseau, sabe-se sempre como ficção de um sujeito da
fala e/mas como a verdade da/nessa fala. Ele sabe-se saído de lugar nenhum e também exposto.
Tradução de Fabricia Walace Rodrigues e Piero Eyben
Revisão técnica: João Camillo Penna
6. DA OBRA E DAS OBRAS
De um golpe de vista tomado a partir de uma inclinação sem dúvida discutível, mas que
é preciso saber ocupar um instante, podemos dizer que a ideia da “obra” agita, irrita e
excita toda a história de nossa cultura. Ela vem ao primeiro plano de um pensamento
inquieto sobre a realidade, isto é, de um pensamento para o qual o real não é mais
assegurado, nem pela evidência sensível, nem pela pulsão nela de um espírito que seria
no fim de contas apenas essa mesma evidência. É ao contrário pela disjunção da
presença sensível e de um sopro retirado por trás dela que devemos mais ou menos nos
representar o movimento constituinte de nossa tradição.
A partir daí se coloca a dupla questão da consistência do real e de sua proveniência, ou a
questão de sua efetividade e portanto de sua efetuação. O real enquanto efeito e
enquanto efetivo, eis o pano de fundo da “obra” e com ele as questões envolvidas na
possibilidade do operar e de pôr em obra, isto é, na realização do real: questões que são
tanto as da criação do mundo quanto da produção humana.
Trata-se do ergon grego, trabalho produtivo e produto do trabalho, cujo arremate é a
enérgeia, o real em ato em que se atualiza uma potência própria, uma dynamis. O latim
traduz ergon por opus de que fizemos “obra” (enquanto o alemão Werk e o inglês work
retomam a raíz erg-). A obra é em ato no sentido em que o actus – a realização97 – é o
particípio passado de ago e designa portanto a ação efetuada, levada a termo: levada ao
seu fim, portanto, à sua finalidade, o que dá em Aristóteles a palavra entelechia que
acrescenta à enérgeia a ideia de télos, de fim acabado.
A obra traz com ela o motivo da produção que comporta ele próprio uma tripla
implicação: a da ação produtiva, a do agente produtor e a do ato produzido. Como
sabemos, o curso de nossa cultura chegou, na idade contemporânea – ou seja, a partir do
desdobramento conjunto da técnica, da democracia e do capitalismo industrial – a
caraterizar a existência humana, e tendencialmente a do próprio mundo, como o fato da
produção pelo homem dessa existência. O agente, a ação e o ato se confundem na
autoprodução de um real, cuja essência é sua existência mesma, a que se confere assim
um valor absoluto – o valor em si, subtraído de toda avaliação de uso e de troca, não
consistindo a partir daí em nada senão na capacidade, ou melhor dizendo na dignidade
(essa grande palavra de Kant e dos direitos do homem) da energia autoprodutiva ou na
operatividade geral, tanto ontológica quanto axiológica. À autoprodução – que pode
também ser compreendida como a autoprodução na obra e como obra de seu sujeito
(autor, ator, agente) – responde o que podemos designar como autofinalidade: a obra se
realiza como seu próprio fim, a efetividade do produto é também a efetividade da
produção e do produtor. Esse é o sentido total até onde se pode levar o que está em jogo
no provérbio Finis coronat opus (o fim coroa a obra).
97
“Accomplissement”, “realização”, “acabament o”, “consumação”. O ensaio circula em torno de termos
de carga semântica semelhante, mas com nuances específicas. Além de “ accomplissement ” (ou
“inaccomplissement ”, “inaccompli ”), “achèvement ” (“acabamento”), e “réalisation ” (“realização”). Na
tradução, oscilei entre as diversas possibilidades, segundo o contexto, quando necessário, especificando
entre colchete o termo em francês. (N.T.)
É assim que a noção hoje mais comumente recebida de “obra” veio a se desprender. No
meio do campo semântico bastante extenso desse termo – que vai, como sabemos de
léxicos específicos como os da alquimia, da justiça ou da arquitetura a todos os registros
possíveis de operação, de realização ou de execução – emergiu, sobretudo a partir do
século XIX, um sentido que podemos considerar como privilegiado e que se reúne na
expressão “obra de arte”. Essa expressão ela mesma veio a soar como uma tautologia e a
“obra” pode designar, absolutamente, o produto ou o conjunto de produtos da atividade
de um artista. O romance de Zola que se intitula Obra consagra de uma certa maneira
Há portanto
sentido, uma tensão
sabemos surdadoque
muito bem quetrabalha
se trata.o De
usoum
e olado,
sentido
essadapalavra
“obra”.recolheu
Em um certo
toda a
força da realização efetiva desse tipo de produção, a que reservamos, mais ou menos no
mesmo tempo da história, a concentração bastante particular da palavra “arte”, tomada
absolutamente ela também, ou seja, destacada dos valores distintos dos diversos savoir-
faires que foram as artes mecânicas ou liberais, as artes companheiras dos ofícios e
enfim as belas-artes. A obra se encarregou desse tipo de realização, excedendo toda
espécie de artesanato e de técnica a que pretendeu aceder uma “arte” desligada de todo
ofício de transmissão, de representação ou de celebração de um conteúdo de pensamento
histórico, religioso, político ou moral. A obra passou para o lado da efetuação de uma
realidade que excede de algum modo qualquer outro real da natureza ou da producão.
Ela se produz a si mesma ao invés do homem, ou então, na verdade, é na obra e como
obra que o homem se produz além do “humano demasiado humano”. A obra acrescenta
ao mundo uma efetividade ou uma energia excedente.
É assim que a palavra se encarrega do que Proust, por exemplo, enuncia quando escreve:
“explicava à Albertine que os grandes literatos nunca fizeram mais que uma única obra,
98
Em francês, os dois termos utilizados por Nancy, “ ouvrage ” e “œuvre ”, recobrem dois sentidos
ligeiramente diferentes: “œuvre ” contém uma dimensão artística , enquanto que “ ouvrage ” aplica-se ao
resultado de um trabalho em geral (de construção, mil itar). “ Ouvrage ” pode ser também aplicado ao texto
científico, técnico ou literário, mas nesse caso, “ œuvre ” insiste na qualidade artística. Em português a
diferença inexiste, usando-se em ambos os registros, indiferentemente , “obra”. Temos em português o
termo “obragem”, derivado de “ ouvrage ”, de contrução, ligeiramente antiquado. Optei por manter o termo
francês “ ouvrage ” (N.T.)
ou melhor, que refrata através de meios diversos uma mesma beleza que eles trazem ao
mundo”.99
Mas por outro lado, essa mesma carga hiperbólica da obra a levou além dela mesma,
pelo menos enquanto representação de uma efetuação consumada e de uma enteléquia
assegurada de seu fim último. É permitido datar esse excesso, que dessa vez é o da obra
sobre ela mesma, no momento – a partir de 1923 – em que Joyce adota a expressão
“work in progress” para caracterizar, e até, em um dado momento, para intitular
Finnegans Wake. A expressão terminará por caracterizar o livro não somente como um
texto sempre “em obra”, mas também como uma obra cuja leitura pode indefinidamente
Desde Joyce, sabemos quantas formas pôde tomar a afirmação do inacabamento da obra,
ou mesmo da essência da obra em seu inacabamanento, em sua “abertura” ou em seu
“desobramento”, à medida em que a obra era confrontada a essa modalidade de
incompletude ou de desestabilizaçào que representa a sua reprodução técnica. Ao
mesmo tempo, é o autor que se viu desestabilizado como figura do agente ou do
produtor da obra. Tanto a sua potência operatória de gênio quanto a sua expressão, ou
até mesmo a sua hierofania, sob o aspecto da obra, perderam o brilho e a magia.
De toda maneira, a obra se estragou nos dois sentidos do termo: ela se degradou em sua
exigência de realização monumental, ela renunciou à edificação de um real arquitetônico
que trouxesse verdade ao lugar ou bem sobre o ordinário real imperceptível. É ao
contrário este último que tomou o seu lugar em uma mímesis e em uma methéxis da
inconsistente, inconstante e inconsciente existência trivial, tanto das coisas quanto das
figuras de um mundo que tende para a insignificância. À obra se substituiu a manobra de
um autoengendramento de impressões, de combinações formais, de modos de dizer que
não há nada a a dizer, ou pelo menos, nada que se possa enunciar como a fórmula de
uma verdade acabada.
Nesse sentido, a obra e toda a lógica e a simbólica da produção, da autoprodução ou do
engendramento de um mundo, não ocuparam por muito tempo o lugar que, na verdade,
eles foram levados a ocupar, e que não era outro senão a de um Deus, que, ele próprio,
desde as suas elaborações metafísicas, tinha sido representado à imagem da energia
produtiva. A morte de Deus é a morte da produção e é por pura falta de invenção que
não clareamos ainda, de uma outra luz, a sombra que se estende diante de seu túmulo: ao
contrário, derrapamos em uma produtividade que sabe apenas reproduzir mais à frente a
sua ausência de fins.
Apesar disso, não lamentamos a obra se ela fosse apenas um sucedâneo de Deus, sem
dúvida ainda mais decepcionante que o próprio Deus. Aprendemos outra coisa, uma
outra realidade da obra: não a sua realização mas a sua operação, não o seu fim mas a
sua infinidade, não a sua enteléquia, mas a sua energia como ato de uma dinâmica que
99
La Prisonnière [A Prisoneira ] (1922), p. 363. Em português na tradução de Fernando Py bastante
modificada. (Marcel Proust. A Prisoneira . Em busca do tempo perdido . Rio de Janeiro: Ediouro, 2009.
Versão digitalizada, p. 1097.)
não é reabsorvida em um produto – mesmo que seja o “homem – mas que atualiza a sua
tensão, sua vibração, e - porque não dizê-lo com essa palavra? – sua vida.
4
A vida da obra é quem sabe uma coisa completamente diferente do que uma puntura100.
Se a vida consiste na “tarefa de não cessar de ser”, como escreve Juan-Manuel
Garrido101, e se, para isso, ela não cessa de operar a diferença entre a vida e a morte –
diferença na qual ela se manifesta como o que ela é (para o que ela vive) – então, a obra
vive à proporção de que ela não cessa de abrir nela a diferença entre prosseguir e cessar
de ser. A obra acabada, opus operati, põe fim por definição à sua operação. Esta, ao
contrário, se persegue como opus operans. Não é mais a obra no sentido de sua
execução acabada e de sua manifestação plena, embora isso não exclua nada dessa
plenitude.
Sem dúvida, é preciso mesmo que uma obra seja realizada para que ela manifeste em sua
realização o que a excede, ou melhor, para que ela manifeste a sua realização como seu
próprio ultrapassamento. Atingindo a sua morte uma vida se ultrapassa às vezes em
outras vidas, que podem ser vidas de viventes ou bem vidas de obras, ou bem – pois, por
fim, como o diz Proust, “por mais que brilhem as obras dos homens nas gerações
futuras, é necessário que os homens ainda existam”102 – nem vivente, nem obra, mas a
simples afirmação que essa vida viveu, foi vivida, esforçou-se em ser e em dar lugar ao
acontecimento dessa diferença.
A obra, do mesmo modo, acabando-se pode abrir sobre outras obras e sobre outros
autores de obras, mas pode também – excedendo a duração das gerações humanas, ou
melhor, esquivando-se
houve essa delas
tensão em ser – ultrapassar
e em dar lugar aoo acontecimento
seu próprio acabamento na afirmação
obrante. Nesse sentido,de
nãoque
há nada mais a dizer dessa história sem historicidade, em que se encadeiam até nós 3000
anos de obras postas, desde as pinturas das grutas paleolíticas (sem esquecer que não
temos documentos eventualmente mais antigos de dança, de música, e porque não de
poesia?). A vida dos homens é indiscernível da das obras, e estas vivem à medida em
que procuramos não somente fazer obra de nossa vidas, mas também deixar a vida fazer
através de nós – ou mesmo fazer de nós – suas obras de vida e de morte.
Essa sucessão de obras põe em evidência a sua ausência de fim, de acabamento, pelo fim
renovado de cada uma delas, de cada um de seus modos, de suas maneiras de relançar a
energia, sempre a mesma e sempre diferente que, assim que ela atinge o seu acabamento
– obra-prima, grande obra, duplo modelo artesanal e alquímico de toda operação - se
depreende dela e manifesta que o que ela realiza, o que ela atualiza, é sempre novamente
a sua dynamis, a sua potência que, como toda a força, se exerce unicamente pelo jogo de
uma diferença de forças. A obra é assim sempre o jogo de uma diferença entre ela
mesma e ela mesma, por meio da qual ela vai sempre além dela mesma.
100
O termo francês, “ poncif ”, assim como a sua tradução em português, “puntura”, pertencem ao
vocabulário técnico de impressão. “ Poncif ” denomina a folha de papel contendo um desenho picotado
aplicado sobre um outro papel ou tecido, mediante a passagem de uma pedra (uma “ ponce ”) de maneira a
reproduzir em pontilhado oo contorno do desenho. Em português, “puntura”, é a chapa de ferro a que se
prende a folha de papel aonde será feito o registro da impressão. O termo francês equivale a estereótipo,
clichê. (N.T.)
101
Juan-Manuel Garrido. Chances de la pensée [Chances do pensamento ]. Paris : Galilée, 2011, p. 38.
102
Marcel Proust. La Prisonnière. La Recherche du tempos perdu . Paris : La Pleïade, tomo III p. 184.
Tradução brasileira, op.cit., p. 1018.
5
A obra vai além assim como ela vem do aquém: ela não projeta a sua realização
[réalisation] como um plano pode ser projetado, uma antecipação determinada do seu
acabamento [achèvement]. Do mesmo modo como este não será a verdade da obra,
tampouco a sua produção (se a palavra não é ela própria aqui posta em dificuldade), a sua
realização, ou a sua operação não estão ligados à predição, nem tampouco mais
rigorosamente ao projeto. Há sempre um surgimento que excede a espera, como há sempre
um tateamento que escapa ao cálculo. A obra é assim transbordada por trás pela manobra
que se esboça em sua direção, que ela ignora, e pela frente pelo desobramento que a subtrai
ao acabamento, em que, no entanto, ela se acaba simplesmente, mas também se arruina.
Blanchot escreve: “A obra, sempre já em ruína, é pela reverência, pelo que a prolonga, a
mantém, a consagra (a idolatria própria a um nome), que ela se congela ou se acrescenta às
boas obras da cultura.”103
O que não impede, no entanto, que não seja simples, em todos os aspectos, manejar essa
ironia diante das “boas obras”. Pois essa expressão nos reconduz, ao mesmo tempo, a uma
longa série semântica que a pieguice de toda sorte de obras pias de fato reduziram à figura
de um opus dei. Ora é preciso lembrar que as “obras”- os erga da koiné transcritas em
seguida em opera – designaram a ação efetiva, por oposição à disposição espiritual dita da
fé (pistis). Se Paulo sublinhava que as obras de fé permanecem sem valor, Tiago lhe
opunha com rigor a primazia das obras, e muito precisamente das obras ditas de amor
(agapé, caritas). Não temos aqui que entrar nesse debate, senão talvez para fazer observar
que, na operação da obra, a fé, ou seja, a confiança no que deve exceder a toda espera, é
inseparavel da ação que obra, que manobra e que se desobra sem parar. De resto, de
Agostinho a Lutero, sempre se soube muito bem que as obras são elas mesmas amor e fé e
que, além disso, não são nossas, mas efeito da graça.
O que chamamos de boas obras é o triste resíduo de uma longa genealogia em que a
efetividade de agir prevaleceu de saída e por muito tempo, antes de se perder na confusão
dos gestos prescritos, dos méritos e das jactâncias. Mesclou-se no entanto aí a significação
da obra prática, arquitetural sobretudo: a cada catedral se juntava uma “casa de obra”,
encarregada de um conjunto de problemas sociais e financeiros ligados ao canteiro de
obras. Daí proveio a “obra” ou a “fábrica”, no sentido de conselho de gestão de um edifício
religioso. Ao mesmo tempo, “obra” tornou-se o nome de um organismo de sustento e de
assistência com visadas determinadas, como as inúmeras “obras missionárias”, mas
também, mais tarde, laicizadas, como as “obras socialistas”: tal “obra parisiense para
banhos-ducha baratos” ou aquela outra “do livro para todos”. Um jornal importante nascido
em 1904 foi batizado de A Obra como em uma condensação absoluta desse valor de serviço
de uma causa (jornal que aliás privilegiou as “assinaturas” como se dizia então, os artigos
autorais).
A obra compreendida assim representa, com efeito, a energia devotada a uma causa que
interpela, mas ao mesmo tempo ultrapassa, todas as realizações possíveis.
103
L’Ecriture du désastre , Gallimard, 1980, p. 127.
É nesse sentido que não há distinção entre a fé e as obras na operação da obra, não há
diferença entre uma disposição confiante e as realizações. Como na mais forte tradição
espiritual, as obras da fé ou as do amor – são as mesmas – não são nada senão o exercício e
a efetividade da fé e do amor. As obras do que chamamos “arte” seguem ao menos a
mesma lógica formal, mesmo se elas não lhe encerram o conteúdo verdadeiro. É então na
verdade precisamente uma confiança que se realizou; é uma fidelidade que se afirma em
ato, não como a apoteose de uma consumação – que não deveria mais ser fiel ao que quer
que seja – mas como tensão nunca resolvida, nunca satisfeita, de uma confiança cujo objeto
104
Michel Foucault. « La folie, l’absence d’œuvre ». In : Dits et écrits I, Gallimard, 1994, p. 417-419.
Tradução brasil eira : « A loucura, a ausência de obra ». In : Ditos e escritos I. Problematização do
sujeito : Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
1999, p. 195.
7. PARA ABRIR O LIVRO
saber.
que Lemos
filma salmodiando
o texto, baixinho
somos presos o texto
ao acaso porem algum
uma lugarpor
palavra, aoum
fundo da camera
truque oscura
de língua em que
recolhemos uma espécie de augúrio que não concerne a nossa vida, mas o sentimento de
um possível e inédito acréscimo de sentido.
E continuamos a virar as páginas, mantendo o livro aberto, pelo menos na medida
em que desejamos prosseguir. E o desejamos se entramos no livro. É assim que o
exprimimos: dizemos: “não pude entrar nele”, ou bem: “uma vez que estamos dentro, não
paramos mais”. Há portanto um estado, ou melhor, uma relação, em que o livro não está
apenas aberto diante de nós, mas estamos dentro dele, avançamos segundo o seu
andamento, reconhecemo-nos nele, e quando após ter que interromper a leitura, a
retomamos, todo um mundo se recoloca no lugar. Esse mundo está em volta de nós, em
nós, não é possível fazer a diferença: estamos ali, é um lugar, quer dizer que
acontecimentos têm lugar ali, durações se perseguem ou se contraem, espaços se estendem
ou se cerram novamente. Vemos pessoas, paisagens, compartilhamos impressões, esperas,
surpresas. (É o que faz a decepção mais ou menos inevitável com toda transposição de um
romance para o cinema: ela pode ser mais ou menos hábil, fina e bem sucedida, o que
permanece pouco superável é a imposição de imagens ali onde havíamos criado nosso
próprio mundo de visões e evanescências.)
Não é apenas o caso do relato e da ficção. Um texto de pensamento – o que não
quer dizer um documento de informação – não ocorre sem ritmo, sem andamento, sem
inflexões, nem sem evocações de imagens ou de afetos.
Leiamos, por exemplo, o seguinte em Merleau-Ponty: “só o motivo central de
uma filosofia, uma vez compreendido, dá aos textos do filósofo o valor de signos
adequados. Portanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma
reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro, que enriquece nossos
pensamentos próprios.105.”
Essa frase, não lhe compreendemos somente o sentido, mas ela se comunica
conosco sensivelmente, por palavras como “retomada” ou “reflexão no”, pelo itálico de
“segundo”, etc. Poder-se-ia dizer que a frase faz o que ela diz... Que toda palavra seja
performativa é uma indicação que podemos encontrar pelo menos em Derrrida, mas
também na experiência, e singularmente na da literatura.
Pois esta última não leva o seu nome sem razão: ela põe a letra em ato. A letra é a
articulação, o cerne da palavra e da linguagem. Isto é, não somente as duas articulações –
semântica e fonética – próprias à linguagem, mas a pronúncia, a emissão, a modulação, o
tom, o estilo e o que o acabamos chamando de escrita.
Merleau-Ponty prossegue no mesmo local: “é preciso que o sentido das palavras
finalmente seja induzido pelas próprias palavras ou, mais exatamente, que sua
significação conceitual se forme por antecipação a partir de uma significação gestual
que, ela, é imanente à fala.”106
A literatura é gesto, na medida em que é fala. Ora, ela é essencialmente oral,
como Lacoue-Labarthe amava afirmar107. O que quer dizer, ao mesmo tempo,
endereçada, enviada e apenas encontrando ou fornecendo o seu sentido no envio (não se
ousa dizer em seu voo...108 e no entanto...). A abertura do livro é a cortina que sobe sobre
a cena desse
invenções gesto que
daquilo de envio.
reúneJogam-se ali todas
a sua energia inicialasnessa
possibilidades,
fórmula deposturas, andamentos,
Didier Cahen: “eu
falo pelo outro109”. Em vista dele, para ele, no lugar dele, em seu nome.
E o outro, bem entendido – sim, aquele cujo endereçamento ouvimos – é também
“eu próprio”, que não tem nada ou muito pouco a ver com esse eu que fala. E é em mim
mesmo como no outro em si mesmo que ocorre a abertura a um pelo outro: para um
alhures, para um fora, de que essencialmente é necessário não ter forma nem função de
meta ou de destinação, de acabamento de trajeto, nem de conclusão de operação. É ao
contrário esperado que se saia de todos os registros, que se esqueça deles e se deixe
substituir nele uma espécie de deriva ocupada consigo mesmo: aquela a que o leitor
consente quando vai mais longe no livro.
É então que este é aberto. Ele é aberto ao que ele contém e entrega: um sentido
se desenrolando (produzindo-se, traçando-se) para si mesmo e par nenhum outro fim.
Que se veja nisso descanso, divertimento, não há nada de chocante: trata-se com efeito
de se deixar divertir, de desviar as necessidades de intenção e de produção, e deixar
sobrevir um gesto
um instante, que o que faz signo
mundo emquando
aparece direçãooao deslumbramento,
fazemos aparecer. E no qualé compreende-se,
“nós” a cada vez
105
Phénoménologie de la perception . In : Œuvres . Paris : Gallimard, col. « Quarto », 2010, p. 865.
Tradução brasileira : Fenomenologia do espírito. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo :
Martins Fontes, 1999, 2ª edição, p. 243. (É Merleau-Ponty quem sublinha. [N.T.])
106
Ibidem, p. 243-244.
107
Cf. Phrase . Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 2000, p. 173.
108
Nancy joga aqui com os parônimos, “ envoi ”, “envio, e “ envol ”, “voo”, “revoada”. (N.T.)
109
Didier Cahen. À livre ouvert – título a completar. Paris : Hermann,….
“eu”, um único para todos, ou pelo menos para muitos.
“Compreende-se”: é dizer demais, é mal dizer. Somos, antes, compreendidos,
tomados, presos pela abertura do livro no qual fomos enredados (ou não: há livros que
me permanecem fechados, ou outros que se fecham novamente; não se explora nunca o
suficiente essa questão delicada do gosto, das inclinações, das pulsações singulares –
aqui como em toda matéria sensível, estésica...). E no entanto compreendemos, somos
tomados em um pensamento. Que é sempre ao mesmo tempo pensamento de um relato,
de uma figura, de um tom, de uma língua e pensamento do seguinte: que isso nos é dito,
contado, ali em frente, no livro, à distância, na ficção ou num discurso – pouco importa:
Que flutua incerto, lábil, inconsistente, irreal: literatura – todo o resto! O resto do
sério, do construído, do importante, do certo, do atestado. Mas esse resto é também o
que precede a toda ocupação séria, do gênero a-vida-a-morte, a-dor-o-prazer, o-labor-o-
repouso. Precede porque o falar é mais antigo que tudo isso e porque ainda mais antigo
do que falar é o proferir: levá-lo diante de si, apresentá-lo, declará-lo.
Declarar – como se declara uma mercadoria, um amor, uma associação, a
abertura de uma sessão. Isso significa ( calo, clamo) fazer soar. O real não é se ele não
soa no irreal. É ali o que nos precede e sem o qual não seríamos animais falantes, sem o
qual os próprios animais não seriam os que mugindo, assobiando, aboiando fazem retinir
o mundo.
Eis porque a literatura é oral: ela se abre em uma ressonância nunca começada,
nunca terminada, em uma glossolalia da presença sem a qual tudo seria ausente.
Mas eis a razão pela qual ela é escrita: a ressonância deve retornar, deve se
repetir, fazer-se eco, afim de se entender e de se relançar. A literatura é escrita na sua
própria oralidade: ela se recita, ele se aprende de cor, ela é formulário e cadência.
Quando vem a escrita é somente essa antecedência da ressonância que se expõe como
tal.
E é precisamente por isso que, entre todos os ofícios, apenas um ignora a
hierarquia: o escriba é o seu próprio chefe, afirma o egípcio Khéty (cuja brincadeira
esperta comporta o seu reverso bastante sério: é precisamente entre as mãos do escriba
que todas as outras atividades se encontram consignadas, contadas, declaradas).
A literatura: a declaração que não tem outra conta a prestar senão a sua própria
inscrição, sua articulação, sua circulação, sua recitação, sua leitura. O escrito não se
junta verdadeiramente ao mundo das coisas: a prova é que o livro vale unicamente pela
sua abertura e pela sua ressonância, quando ele se fecha, provisoriamente sempre. O
livro só é objeto remarcável e bibliofílico na medida em que ele é matéria sensivelmente
impalpável. Ele é liber, película fina extraída entre o cortex e a materia, tem a
consistência ínfima de uma forma.
A folha – pele, papiro, papel, tela – é o lugar do que Duchamp denomina o
infrafino e de que um dos exemplos é: ”O oco no papel entre a frente e o verso de uma
fina folha...” Apoiando-se em Hésiquio pode-se estimar que a literatura deva o seu nome
a uma transcrição da palavra grega diphtera que designa a pele curtida, o couro
adelgaçado de que se fará o pergaminho. Trata-se sempre de pele, de película, daquilo
por meio do qual as coisas vêm se declarar na superfície e umas às outras.
O livro aberto, todas as folhas soam entre elas e, todos os livros, um de cada vez, se
abrem uns aos outros, uns em e pelos outros – resto eloquente desse mundo fortuito.
Essas duas hipóteses estão ligadas entre si: o cálculo remete à atividade e à
decisão do poeta, antes de remeter à disposição do poema, onde ele inscreve somente seu
resultado. Isso faz da poética hölderliniana outra coisa que uma « arte poética », que uma
teoria literária e estética. E, no entanto, isso coloca ao mesmo tempo em primeiro lugar, em
Hölderlin, a ars poetica, a técnica de composição, e o que deve ser o seu técnico, aquele
que « é entendido nela ». A poesia não é a mesma coisa que a poesia, e outra coisa também
que o pensamento. É assim que ela é aqui, muito precisamente, esse duplo limite dela
mesma: o próprio poeta, e seu cálculo.110
O jato desse olhar atinge um todo: a totalidade desse todo é assim tocada
para além – ou no além de – toda composição ou síntese, no centro, no coração, na junta
111
p. 662. Estes números de página remetem à edição da Pléiade, sob a direção de Philippe Jaccottet
(Hölderlin. Œuvres . Philippe Jaccottet (dir.). Paris: Gallimard, col. « Bibliothèque de la Pléiade », 1967).
Atenho-me a essa referência, por comodidade, modificando às vezes as traduções, quando é absolutamente
necessário. Salvo indicações contrárias , é sempre Hölderlin quem sublinha.
que não totaliza, mas que é o todo. É o ser-todo do todo que é visado e visto, diretamente,
impecavelmente. E já que é o todo – Hölderlin não sublinha a palavra em vão – esse centro
não é mais interior do que é exterior. Ele é idêntica e imediatamente o contorno e a
periferia. Não é o conceito, mas a figura e a existência do todo: o todo se mostrando como
todo. O todo se fazendo ver para um olhar, por um olhar exatamente pousado sobre ele –
para um olhar e por um olhar que não é, no final das contas, senão o se-fazer-ver do todo
ele mesmo.
Nada além disso: nessas condições seria mais justo dizer « ninguém
[personne] mais». O poeta não é « sujeito » da representação do todo, mas o lugar da visão
do todo in persona. Hölderlin nomeia também isso « o puro », ou a « pura individualidade
[poética] » (622 e passim).
112 O ensaio de Nancy percorre uma gama de noções que se reúnem em torno da « coisa em si » kantiana,
« chose en soi », ou « chose même ». Em português a tradução mais comum para a Ding an sich kantiana é
« coisa em si », já em francês é mais comum « chose même ». Este território repercutirá no texto pelo uso
abundante do adjetivo « même », « mesmo/mesma » sozinho, ou acoplado ao pronome pessoal, « elle-
même », « ela mesma », « lui-même », que trazem problemas para traducão. Às vezes optei por traduzir
« même » por « proprio », « própria », mais comum em português, sempre que me pareceram soar melhor.
(N.T.)
113
A preposição « pour » em francês comporta uma ambivalência que é explorada aqui e mais adiante por
Nancy. Ela significa ao mesmo tempo, « por », no sentido de « no lugar de », e « para », « em direção a ».
Nesta frase, ambas as traducões « o olhar para a coisa » e « o olhar pela coisa » são possíveis e
solicitadas. (N.T.)
alhures de « imagem » e que se torna « olhar » quando se escreve, por exemplo : « desde
que somos um diálogo114 » (861).
Não é uma imagem, é uma estrita proposição predicativa, que diz que
somos, de fato, um diálogo (uma entrevista, um falar-junto ou o um-com-o-outro, um
Gespräch, um conjunto falante). Não que sejamos em diálogo, mas que somos nosso
diálogo. « Nós »: nós todos, aqueles que falam, definidos em seu ser pelo falar-entre-eles.
Assim, o todo do « nós » indeterminado é absolutamente determinado: somos esse entre-
nós, que é linguagem e, reciprocamente, a linguagem é o entre-nós.
Mas é preciso entender a medida tal como ela é calculada em alemão. « Seit
ein Gespräch wir sind »: a ordem gramatical usual não é respeitada. Seria preciso traduzir:
« Desde que um diálogo nós somos [ Depuis qu’un dialogue nous sommes] », e poderíamos
mesmo entender: « Desde um diálogo nós somos [Depuis un dialogue nous sommes] ». Em
lugar de estarem tecidos juntos na sintaxe ( Seit wir ein Gespräch sind), « um diálogo » e
« nós somos » permanecem dois blocos lado a lado, exatamente justapostos. « Nós »,
deslocado de seu lugar ordinário, porta o acento: o que é um Gespräch, eis o que nós
somos. Mesmo se não lermos o verso na íntegra, esse ser se precisará ainda: « Seit ein
Gespräch wir sind und hören voneinander » = « Desde que somos um diálogo e temos
notícias um do outro [Depuis que nous sommes un dialogue et que nous avons l’un de
l’autre nouvelles]», mas também: « Desde que um diálogo somos e ouvimos um do outro»;
nós somos que nós nos ouvimos um ao outro, somos que ouvimos um do outro o que
somos, ficamos sabendo um do outro, como nossa própria conversa [entretien]..
114
Em francês : “Depuis que nous sommes un dialogue. » Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê na
tradução francesa: « Depuis que nous avons l’un de l’autre nouvelles, et sommes un entretien. » (Hölderlin.
Œuvres , op. cit .. Tr. fr. Philippe Jaccottet, Gustave Roud et André du Bouchet, p. 861.) (N.E.F.)
115
« Pour nous », conforme Nancy esdobra na frase a seguir significa ao mesmo tempo « para nós » e
« por nós ». Cf. a nota 112 supra. (N.T.)
5. Cada vez, assim, o que é calculado, é propriamente um incalculável. Ora o
« que não pode ser calculado » (952), é « o sentido vivo » (951). O cálculo consiste em
reportar esse sentido incalculável ao « modo » ou ao « estatuto » de « equilíbrio » (952) que
é aquele da obra.
peu-près
prático). ],Assim,
nem por
ele excesso
cai justo,nem por cai.
ou não ausência. Nãoaproximação,
Nenhuma admite margem (porque
nenhum halonão
de tem fim
sentido:
mas a coincidência, sem transbordamento nem resto, mesmo que num só ponto, do dizer e
do dito.
Importa, antes de tudo, que os seres perfeitos não afastem demais o que é
inferior, que os melhores não se distanciem demais do que é bárbaro; mas que eles
tampouco se misturem demais a isso, que eles saibam reconhecer exatamente e sem
paixão a distância que os separa dos outros e que esse conhecimento lhes dite aquilo
que eles têm que fazer e sofrer . (608) 116
116
Trecho do fragmento « Reflexão ». Há uma tra dução brasileir a do fragmento de Márcia de Sá
Cavalcante, em Hölderlin. Reflexões . Rio de Janeiro: Relume-Dumar á, 1994, p. 26. Aqui traduzimos a
versão francesa da Pléiade, utilizada por Nancy. (N.E.)
117
“Et l’accorde ”, de “ accorder ”, verbo polissêmico em francês: “concordar” (pôr de acordo),
“conceder”, “consentir”, “afinar” (instrumentos musicais), próximo de “ accord ”, “acordo”, mas também
“acorde”, emissão de sons simultâneos. O sentido musical é sugerido por Nancy por conta da relação com
a voz, e o tom, na frase seguinte. (N.E.)
de « o tom justo »118, quer dizer também, « justo o tom », sem nada a mais nem a menos.
Justo o tom daquele que encontra o tom, e como esse tom o afine [ l’accorde] aos outros
separando-o deles.
O curso do sentido deve ser interrompido para que o sentido tenha lugar,
para que ele seja captado na passagem – para que seja captada a unidade de um todo que é
mais e outra coisa que o todo de seus momentos, sendo ao contrário sua escansão comum e
sua síncope. Eis aqui todo o cálculo do poeta, e seu gesto tenso, inaplacável, o gesto de um
« arrancamento » (952).
118
« Le ton juste », expressão pol issêmica em francês que si gnifica « a nota af inada ». A passagem joga
com as diversas expressões que contém « juste », « justo », ou « apenas », com o pano de fundo do campo
semântico musical da afinação. (N.T.)
119
É aqui evidentemente o ponto de intercessão entre essa análise e a do trágico hölderliniano feita por
Philippe Lacoue-Labarthe sob o título de « A cesura do especulativo» [tradução brasileira em A imitação dos
modernos . Virgnia Araújo Figueiredo e João Camillo Penna (orgs). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000].
Veremos também os prolongamentos que lhe dá Arnaud Villani no Cahier de L’Herne , e depois ainda
Philippe Lacoue-Labarthe em « Coragem da poesia » (também em A imitação dos modernos ), assim como
com o estudo, por Jean-François Courtine, do afastamento [ écart ] hölderliniano em relação ao idealismo
especulativo , « Hölderlin au seuil de l’idéalisme allemand », em Extase de la raison. Essais sur Schelling
(Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 1990).
120
Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê como segue: « la consécution du calcul, c’est-à-dire le
rythme est divisé ». [« a consecução do cálculo, quer dizer, o ritmo está dividido »] (Hölderlin, Œuvres , op.
cit., tr. fr. Denise Naville et François Fédier, p. 952.) (N.E.F.)
Arrancar – a tudo aquilo que causaria arrebatamento, crescimento,
excrescência de significações, a tudo aquilo que faria um conjunto e uma totalização do
todo, em lugar de deixar o todo à sua pausa [coupe]121 única – arrancar deve se fazer « no
bom momento e no bom lugar » (607). Isso exige « uma grande rapidez de compreensão »
(607), pois é o todo, a pureza do todo enquanto tal, que deve ser captada e escandida. Mas
para isso, aliás, nenhum critério é dado, nenhuma garantia. A unidade do todo, o sentido do
sentido, não é uma parte que se poderia deduzir do conjunto dos outros. O cálculo não é
uma dedução: é uma visada. Não há, para visar a unidade do todo, medida exterior à
própria visada.
próprio O coincidência
todo, sua bom momentoeme opessoa.
bom lugar, o !"#$%&
O todo, [kairós
cada todo, e ]mesmo
do poeta, deve,depois,
o todo todosseroso
todos, não se define por um preenchimento, mas por uma coincidência.
121
« Coupe » em francês, termo associado à lingua poética de Mallarmé, contém uma polissemia
explorada por Nancy em diversos pontos do ensaio. No sentido geral significa «taça », « copo », « copa »,
a que se acrescenta o sentido comum, de « corte », e o sentido técnico, de « coupe du vers », significa
« pausa », ou « divisão do verso ». Opto por traduzi-lo por « pausa », indicando quando necessário o
termo srcinal entre colchetes. (N.T.)
se conta como um, cada vez um, não encadeável e não adicionável, um sem soma, suspenso
da continuidade, a verdade do sentido, sua vinda, seu evento122.
122
Nancy glosa aqui a fórmula de Heráclito ,“ hen diapheron heauto ”, “o um se diferenciando em si
mesmo”, comentada por Hölderlin em Hipérion . Ver a nota 76, supra. (N.T.)
123
É Jean-Luc Nancy quem sublinha. (N.E.F.)
porém mais precisamente, o pensamento do pensamento em poesia, está implicado aqui
como o outro do pensamento: como o próprio não-idealismo [le non-idéalisme-même]. A
poesia, ou a derrota do idealismo.
Mas em Hölderlin não temos que proceder a essa conformação mútua das
duas ordens, « espiritual » e « sensível », ou seja, não temos que lidar com essa auto-
manifestação mimética do « conteúdo » ou do « espírito ». A ordem da « alternância » e da
« tensão » não é o exterior do interior « espiritual »: é o lado de fora, o fora, como tal, o
partes extra partes. O « conteúdo » não é, para terminar, a verdadeira forma da forma. A
forma é o incontenível do conteúdo, o inconciliável da conciliação: o um do todo, como
pausa [coupe] e não como totalidade. « A significação do poema […] concilia os extremos
porque nela eles entram em contato se opondo » (614). Contato não é confusão, é o
contrário. Na linguagem da lógica, diríamos que há aqui « contrariedade » e não
« contradição »: os dois citados em presença não se excluem, podem ser falsos ao mesmo
tempo. Um não é a negação do outro, e o outro não é a manifestação do um. Mas eles se
tocam ao se opor, e o ponto do contato é o ponto de um tanto quanto o ponto de sua visão, a
escansão de seu « fora », o instante de sua vinda em presença, de uma presença em si
mesma infinita e exatamente oposta.
124
Na edição da Pléiade, o título é: « La démarche de l’esprit poétique” [“A conduta do espírito
poético”]. (N.E.F.) Nancy traduz o título do ensaio de Hölderlin como”Le procedé de l’esprit poétique”
(“O procedimento do espírito poético”). Tradução brasileir a de Márcia de Sá Cavalcante. Hölderlin.
Reflexões , loc.cit., p. 29-53. (N.E.)
disjunta e põe em contato. Dito de outro modo, a « significação » poética não pode se
contentar de « significar », ela deve ainda se distinguir dela mesma, ser posta e oposta no
lado de fora, numa individualidade sensível. Entre o sentido e esse átomo, e esse ponto fora
impenetrável, há contato, coincidência e pausa [coupe]. É assim que pode haver, mesmo na
cadência poética, compreensão instantânea que também está fora da inteligência: não
« ininteligência », mas « amor » desse fora no qual tocar, no !"#$%&, a apreensão-
desprendimento [saisie-dessaisie] do um.
Eis também por que o poema, a obra enquanto tal, não é privilegiada, e eis
por que Hölderlin pratica muito pouco uma poética das regras, dos gêneros e dos exemplos.
Quando ele examina « a diferença dos gêneros poéticos » (632), é para propor uma série de
variações sobre o único dado da « [a]lternância dos tons » (639), segundo a necessidade de
suas distinções e de suas remissões mútuas. O tom marca a separação e a distinção da
tensão inerente ao tocar como tal.
125
« Livre”, do verbo “ livrer”, entregar, mas também homófono de livro. (N.T.)
126
Hölderlin sublinha essas palavras. (N.E.F.)
O que é tocado é um corpo. Não um corpo enquanto assunção orgânica e
finalidade interna, mas esse oposto do orgânico que Hölderlin denomina o aórgico, uma
materialidade, uma divisibilidade (635), um corpo enquanto extensão e distinção: uma
« coesão objetiva, mas ainda uma coesão sentida e sensível, uma identidade que persiste
através da alternância das oposições » (619), a unidade da própria divisibilidade, da
« separação real » (635) que responde ao « arbitrário de Zeus » (635), ou seja, à lei da
distinção sensível e individual.
Peras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.
Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça [...] 127
Mas mais ainda, o tocar da língua mesma, dos timbres e dos ritmos das palavras, e
que não podemos citar senão em sua língua:
127
Trecho de « Hälfte des Lebens » [« Metade da vida »], na tradução de Manuel Bandeira. A tradução
citada por Nancy de G. Roud, na edição da Pleiade diz o seguinte : « Avec des poires jaunes/
Et tout fleuri de roses sauvages/ Se suspend/ Le paysage dans le lac,/ Ô cygnes pleins de grâce !/ Et tout ivres
de baisers […] » (p.833). Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira . Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
(N.T.)
128
Trecho de “Das nächste Beste”[“O mais imediato”, ou: “O mais próximo melhor”] , terceira versão. Na
tradução da edição da Pleiade a cargo de F. Fédier: “[…] droit de la pierre fauve/ Les eaux d’argent
ruissellent/ Et saintement le vert se montre/ Sur l’humide prairie de la Charente (p. 905). (N.T.)
Zu uns, die Erweckerin,
Die menschenbildende Stimme.
Tradução:
Não posso falar com grande precisão técnica nem da língua nem da prosódia de
Hölderlin, ou seja, no final das contas, de sua ars poetica. Mas não saberíamos insistir
demais sobre o fato de que é nelas: língua, prosódia, rítmica, é diretamente sobre as
palavras e sobre o canto, que se dispõem o tom e o tato de sua poética – ou seja, de seu
pensamento, o fora de seu pensamento, seu pensamento fora de pensamento. É preciso
também relembrar o que ele mesmo escreveu no caput de « Festa da paz [“Fiedensfeier”] »:
« Se, no entanto, alguns deviam achar essa linguagem pouquíssimo convencional, devo lhes
confessar que não posso fazer de outro modo. Num belo dia, quase todas as maneiras de
cantar se fazem ouvir, e a Natureza, de onde isso saiu, o retoma também. » 131 A língua é
singular,
nele –, masela deve sê-lo:língua
enquanto não enquanto idioma reservado
da extremidade que toca eno
precioso – nãodo
impossível há real,
maneirismo
na sua
distância e no afastamento correlativo de todas as línguas entre elas, de todos os cantos.
Cada linguagem deve ser uma, exatamente como cada ponto tocado. O « canto », essa
metáfora/metonímia ordinária do poema, nomeia mais precisamente para Hölderlin o que
« envolve » o « raio » de Deus, o fulgor ou o relâmpago da « tempestade de Deus » que o
poeta, « cabeça nua », « pega com [sua] própria mão » (835). O canto não dissimula a luz:
ele lhe transmite o contato.
129
Trecho de “Am Quell der Donau” [“Junto à nascente do Danúbio”]. Na tradução de Paulo Quintela.
Hölderlin. Poemas . Lisboa: Relógio d’Água. 1991, p. 317. Na tradução da Pleiade citada por Nancy: “Une
étrangère s’en vient à nous, celle qui rompt/ Le sommeil, la/ Voix façonneuse d’hommes » (p. 841). (N. T.)
130
Em francês: “Vient une d’ailleurs/ À nous, la réveilleuse,/ La voix faiseuse d’hommes.” (N.T.)
131
Trata-se de uma nota escrita por Hölderlin que precedia a versão definitiva do hino “Versöhnender”
[“Conciliador” ou”Ó conciliante”, na tradução de Paulo Quintela] (Pleiade, p.1214). Paulo Quintela traduz
o trecho, op.cit., p. 347. (N.E.)
132
Um deus, de improviso, e ninguém sabe: Quando?
Assim:
132
Trecho de “Festa da paz”, na tradução de Paulo Quintela, op.cit., p. 351. Na tradução utilizada por Nancy:
“Soucieux de la mesure, toujours, avec précaution, touche,/ L’espace d’un moment, aux demeures des
hommes/ Un Dieu, à l’improviste : quand, nul ne sait » (p. 860). (N.T.)
133
Trecho de “Der Wanderer” [“O peregrino” ou “O errante”]. Na tradução de Paulo Quintela, op.cit ., p. 243.
A tradução citada por Nancy, da Pléiade, a cargo de F. Fédier, é a seguinte: “Ici il ne lui mouvait pas, avec le
regard du soleil, le sein,/ Et en pluie et rosée il ne parlait pas amicalement à elle ;/ Et cela m’étonnait et
follement je dis : ô Mère/ Terre, perds-tu donc toujours, comme veuve, le temps ? […]/ Mais peut-être vas-tu
t’échauffer quelque jour au rayon du ciel,/ Hors du pauvre sommeil te caressera son haleine, à t’éveiller;/ De
sorte que, comme un grain semé, tu fasses éclater la coque antérieure,/ Se libère et salue la lumière le monde
délié» (p. 799-800). (N.T.)
– e aqui ainda é preciso fazer ouvir como o ponto desse acordo, a primavera da terra,
se dá, no último verso citado, no cálculo de uma cadência cerrada: « Los sich rei!t und das
Licht grü!t die entbundene Welt ». « Los» desencadeia e descarrega a explosão, a
libertação [délivrance], simultaneamente, no sentido, no som e no ritmo; poderíamos dizer:
esse verso é a onomatopeia da primavera, ou do amor, daqueles que o seguem:
– mas não é uma imitação, é um tocar da língua que a afasta dela mesma e do sentido, e que
faz sentido no intervalo, como a marcação [ battue] do intervalo. Não há onomatopeia do
« sentido vivo » (951), mas há o ataque 135 de uma tecla sonora, o ataque de um acorde
desse afastamento do sentido: a poesia não é o sentido, ela não faz sentido, nem o exprime,
mas concorda com o seu afastamento, ou afina [ accorde] o seu afastamento, como o
próprio acorde de sua « lira »136. É assim que se exige « rimar com a alegria » (« Sei zur
Freude gereimt »).137 « Rimar » aqui só é a metáfora de «concordar» [s’accorde{r}] porque
é também a metonímia da poesia, e a « alegria » só é « pensada » (789) – ou só é « dita » –,
como sendo o acorde que ela é (ou de que ela é, por sua vez, a « metáfora »), por causa do
intervalo sonoro do acorde poético.138 (Ou então, seria preciso dizer: é ainda uma imitação,
esse movimento ritmado de acentos e assonâncias – glühen/sprudelt/kärglich, etc. –, mas
uma imitação de quê? Será que a rosa imita a brasa ou seria o inverso? Será que a palavra
glühen imita a incandescência ou seria o inverso? Será que glühen, sprudelt, kärglich se
imitam ou se respondem uns aos outros? Tudo pode se virar em todos os sentidos, em torno
134
Ibidem. Na tradução de Fédier: “Toute la force rassemblée s’embrase dans l’exubérant printemps,/ Les
roses flamboient et le vin pétille dans le Nord parcimonieux » (p, 800).
135
« Frappe » é um termo polissêmico, que signi fica « cunhagem », « digitação » (« faute de frappe »,
« erro de digitação »), mas aqui me parece estar sendo utilizado no sentido musical, de « ataque », por
exemplo, de uma nota musical, de um som, de um intrumento, de uma tecla. (N.T.)
136
Toda esta passgem explora a polissemia de « accord », « accorder » em francês. O verbo « accorder »,
como foi dito na nota X supra, comporta dentre outros o sentido de « afinar » (« accorder un
instrument », « afinar um instrumento »), e sua forma nominal, « accord », significa, « acorde », em sua
forma pronominal, « s’accorder », « concordar », « pôr-se de accordo ». Assim, em « […] elle s’accorde
à son écart », a frase de Nancy funde vários dos sent idos. O que está sugerido aqui é algo como : « […]
ela concorda com o seu desvio » ou : « […] ela se afina com o acorde de seu afastamento ». A frase
seguinte: « […] ella accorde son écart », significa ao mesmo tempo: « […] ela concorda, concede ou
afina
137
o seu afastamento » (N.T.)
Em francês: “rimer avec la joie”. Tradução de Jean-Luc Nancy. O poema “Blödigkeit”, [« Timidez »] ao
qual Nancy faz referência se lê como segue na edição da Pléiade: « Que tout soit à ton gré de ce qu’il
adviendra !/ Que la joie te trouve accordé, ou qu’elle peine/ Crois-tu, mon cœur, qui pourrait te blesser,/ Où tu
dois aller quelle malencontre ? ». (Hölderlin, Œuvres , op. cit., tr. fr. Gustave Roud et Robert Rovini, p. 789.)
(N.E.F.) O trecho, na tradução de Vicente de Arruda Sampaio : « O que aconteça, seja tudo oportuno para ti !/
Sê para a alegria rimado, ou o que poderia então/ Te ofender, coração, o que/ Lá encontrarias, aonde deves
ir ? » (Tradução em : Walter Benjamin, « Dois poemas de Friedrich Hölderlin ». Trad. Susana Kampff Lages.
Escritos sobre mito e linguagem . Duas Cidades/Editora 34, col. Espírito crítico, 2011, p. 23.) (N.E.)
138
« S’accorder » e « accord » são termos que se inserem tanto no léxico musical, « afinar », « acorde »,
quanto no político-psicológico : concordar, acordo. Nancy joga com essa polissemia. (N.E.)
do mesmo ponto: como o sentido toca no som e o som no sentido – o que quer dizer
« canto »).
O ponto do contato é, pois, ele mesmo, uma distância ou um afastamento
[écart]. Esse ponto não é um ponto geométrico, de dimensão nula: é ele mesmo a
dimensão, a distensão da relação poética com a unidade e com a totalidade. Ele é, em suma,
a distância absoluta do absoluto. Essa distância absoluta é também uma proximidade: ela
não se mede segundo a quantidade do apartamento [éloignement], mas segundo a simples
natureza e a simples intensidade do intervalo enquanto tal.
139
Trecho de “Brot und Wein” [“O pão e o vinho”], citado aqui na tradução de Paulo Quintela, op.cit..,
p.255). A tradução utilizada por Nancy, da Pléiade, de Gustave Roud é a seguinte: “Une chose demeure
ferme. Que midi sonne ou que le temps s’allonge/ Dans le cœur de la nuit, une mesure est là toujours,
commune/ À tous, et chacun cependant reçoit en propre son destin » (p. 809). (N.T.)
140
Tradução modificada por Jean-Luc Nancy. O texto se lê como segue: « le point fixe qui déterminera le
mode de relation du dessin ainsi que le caractère et l’intensité de la couleur locale et de l’éclairage ».
(Hölderlin, Œuvres , op. cit ., tr. fr. D. Naville, p. 628.) (N.E.F.) [« o ponto fixo que determinará o modo de
relação do desenho assim como o caráter e a intensidade da cor local e da iluminação»]. (N.T.)
medida abraça tudo, a totalidade do todo, e circunscreve rigorosamente o estreito espaço-
tempo do ponto e do tocar.
141
Sobre a noçao de « excrição » ver X a nota supra. (N.T.)
142
Trecho de “Der Wanderer” [“O peregrino”], aqui na tradução de Paulo Quintela, op.cit.. , p. 247. A
tradução utilizada por Nancy, da edição de Pléiade, de François Fédier, diz o seguinte: « Lourd est devenu
cependant de fruits, sombre, mon cerisier,/ Et à la main qui cueille les branches se tendent d’elles-mêmes./
[…] / Mais je le sens déjà, en lointains sacrés ils sont partis/ Maintenant aussi, eux, pour moi […] » (p. 801-
802).
143
Ibidem, p. 241. Na tradução utilizada por Nancy: “[…] il y a ici aussi des dieux, ils règnent,/ Grand est leur
Mètre, pourtant il mesure volontiers à l’empan, l’homme » (p. 799).
se apresenta, se mantém aí, evidente, e se eclipsa nesse mesmo lugar, nesse mesmo
instante, na única passagem do sentido.
O metro mede isso mesmo, esse « vestígio dos deuses que fugiram » (814)
que não é nem a pura perda, nem o signo remetendo ao longe, mas o rastro da passagem
enquanto presença verdadeira, definitivamente efetiva nesse presente, do qual o contato se
afasta tocando-o. Assim, a palavra dos poetas « é verdadeira » (814) e se endereça
sobretudo aos « Anjos e a Ele » (816) não pelo sentido do que ela enuncia ou do que ela
evoca, mas pelo metro, que é ele mesmo – que é materialmente ele mesmo – o
vestígio sensível e exato da passagem dos deuses, quer dizer, dessa passagem que são os
deuses.
Isso não quer dizer que a verdade do poeta consista no que quer seja,
harmonizado por uma métrica… Isso quer dizer que o que deve ser dito – o verdadeiro, o
justo, o sentido –, o poeta deve dizê-lo em sua condição de unidade e de passagem, sob o
toque de sua passagem.
O divino é a passagem, e não é senão isso: eis por que o divino por essência
é vestígio, e não imagem, ao mesmo tempo, resto material e rastro evanescente de uma
presença que não vale como subsistência, como ser-presente-aí, estável e manifesto, mas
que vale como passar, ir e vir, chegar, sobrevir e partir.
Fogo divino
A partir. [...]incita
144 também, de dia e de noite,
146
Trecho de « In lieblicher Bläue » [« En bleu adorable »[...]. Na versão de André du Bouchet utilizada
por Nancy : « Tant que dans son cœur/ Dure la bienveillance, toujours pure,/ L’homme peut avec le Divin
se mesurer/ Non sans bonheur. Dieu est-il inconnu ?/ Est-il, comme le ciel, évident ? Je le croirais/ Plutôt.
Telle est la mesure de l’homme » (p. 939). (N.T.)
« o deserto ».) Não há generalidade da presença, não há senão lugares de passagem,
exatamente delimitados, até esse lugar do « coveiro » (931) :
147
Trecho de um dos « Planos e fragmentos » de Hölderlin. Tradução a cargo da Revue de Poésie, na édição
da Pléiade: « Là il doit tout / Conduire/ Hors des longues/ À un endroit net,/ Où on verse/ La cendre, et le tout
doit/ Être brûlé sur le bois avec du feu (p. 932-933). (N.T.)
148
« Défaut », « falta », « ausência », cf. a nota X supra. (N.T.)
149
Trata-se do final de « Heimkunft. An die Verwandten » [« Retour. Aux proches »]. Nancy retraduz os
quatro últimos versos. Na tradução de Michel Deguy : « Souvent il faut nous taire. Ils manquent, les noms
sacrés./ Les cœurs battent, et le discours ferait défaut ?/ Mais une lyre accorde à chaque heure le ton/ Et peut-
être réjouit les célestes, qui s’approchent./ Prémices... – ET ainsi Le souci presque/ S’apaise dejà, qui venait
11. O metro responde à falta do divino. Sua exatidão é o ponto de contato [la
mise en contact], o ponto de tangência de duas abordagens, de duas aproximações: a dos
celestes (Himmlische, welche sich nahn), e a do canto (beinahe […] befriediget). Beinahe
deveria se traduzir por « junto ao próximo ». « [S]ich nahn […] beinahe »: ao mais
próximo da aproximação. É a proximidade mesma, quer dizer, o afastamento, mas esse
afastamento que é necessário para tocar na coisa em si [la chose même] – e essa coisa em si
é uma aproximação, uma iminência. Nem uma imanência nem uma transcendência, mas
uma iminência, uma infinita proximidade que passa mais perto, que passa ao tocar o
coração do
unidade quetodo,
bate.e oÉ espaço-tempo
o toque do « desse
sentido vivo » sobre o « sentido nulo », é o ponto de
ponto.
O metro mede o escancaramento [ béance] da evidência, mede-a em seu
lugar próprio, no ponto de sua vinda, na « beleza do instante » (511), ou seja, na própria
passagem. O metro responde à evidência: à claridade do vazio, sem dúvida, mas
identicamente, à abertura da claridade. O metro mede o desmedido, a plenitude do aberto.
O olho direto sobre o visível no ponto de sua totalidade. Tal é a conversa:
Fala sozinhos
Com Deus. 150
O metro não fala senão ao metro divino. O cálculo visa essa exatidão:
responder ao surgimento e à passagem instantânea do incomensurável. Isso não pode se
nomear, senão « com palavras jorradas como flores » (811) – mas aqui ainda é preciso
ouvir a língua, e a medida cerrada:
sous La joie./ Des soucis, tels, Il faut, de son gré ou non, qu’en l’âme/ Les porte un poète et souvent – mais lês
autres non!» (p. 818-819). (N.E.F.; N.T.)
150
Trecho de “Am Quell des Donau” [“Junto à nascente do Danúbio”], na tradução de Paulo Qunitela,
op.cit.., p. 319. Na tradução de Gustave Roud, utilizada por Nancy, os versos dizem o seguinte: “L’entretien
seul à seul/ Avec Dieu […] ” (p. 842). Mantive as duas traduções do verbo entstehn, por “jorrar”, “ jaillir”, na
tradução de Gustave Roud, utilizada por Nancy, ou “desabrochar”, na tradução de Paulo Qintela. (N.T.)
151
Em francês : « Alors, alors il faut à cette fin paroles écloses comme fleurs ». Tradução de Jean-Luc
Nancy. O texto na tradução de G. Roud se lê como segue: « Enfin ! avec des mots jaillis comme des fleurs. »
[« Enfim! com palavras jorradas como flores. »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit.,, p. 811.) (N.E.F.)
152
Nancy joga aqui com dois dos sentido da palavra “ coupe ” em francês, ao mesmo tempo taça e pausa (e
corte), intraduzí vel em português. Cf. a nota X supra. O jogo remete específicamente ao poema de
Que tomemos esses dois versos:
Drin in den Alpen ist’s noch helle Nacht und die Wolke,
Freudiges dichtend, sie deckt drinnen das gähnende Tal.
Meu desejo não é propor deles uma tradução melhor, mas, antes, ressaltar o
que não é traduzível porque não se deixa tampouco traduzir na própria língua alemã – pelo
menos se « traduzir » se limita a « restituir uma significação ». Seria preciso ouvir de fato:
Stéphane Mallarmé, “Salut ”, “Brinde”, na tradução de Augusto de Campos. Optei pela composição “taça
da pausa”, para tentar restituir a equivocidade (N.T.)
153
“No coração dos Alpes, noite clara ainda, e a nuvem,/ Fonte do poema de alegria, cobre lá o vale aberto.”
(N.T.)
- mas não é, justamente, senão o fim infinito, que consiste ele mesmo em abrir outros fins, a
se abrir como fim, e também como seu único fim sonoro, seu único eco prolongado,
« LfMreudiges dichtend ».
A cada passo, a poesia de Hölderlin – talvez nesse aspecto uma das mais
monótonas que existam (mas será preciso retrabalhar toda a avaliação habitual da
« monotonia ») – repete essa mesma coisa, ou seja, repete-se a si mesma assim: uma frase
que avança e que se suspende sobre o seu próprio sentido, que surpreende o seu sentido
adiantado ou atrasado, e cujo metro mede esse adianto ou esse atraso, cada vez infinito.
Assim:
154
Trecho de “Stimme des Volks”[A voz do povo”]. Citado por Nancy na tradução de Robert Rovini: “Il
cherche le repos, il se précipite ainsi,/ Le fleuve […] » (p. 781). (N.T.)
155 Em francês : « […] ainsi chute/ Le flot en bas, il cherche le repos, il est tiré,/ Entraîné contre son gré, de/
Roche en roche, le sans-gouverne,/ Par la prodigieuse attirance à l’abîme ». Tradução de Jean-Luc Nancy. O
texto na tradução de R. Rovini é o que se segue: « « Par le plus court chemin revenir au Tout ;/ Il cherche le
repos, il se précipite ainsi,/ Le fleuve que malgré lui attire/ Et désemparé de roc en roc emporte// Le
prodigieux, le nostalgique appel de l’abîme ; ». [« Pelo mais curto caminho retornar ao Todo ;/ Ele busca o
repouso, se precipit a assim,/ O rio que contra a vontade atrai/ E desampar ado de rochedo em rochedo carrega
// O prodigioso, o nostálgico chamado do abismo; »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit., p. 781.) . (N.E.F.)
156
Cf. Hölderlin, Œuvres , op. cit ., p. 782 : « Les fils en connaissaient le relato, et bonnes/ Sont certes les
légendes, car du Très-Haut/ Elles sont une mémoire, mais les sacrées,/ Il faut aussi pour les déchiffrer
quelqu’un. » [« Os filhos conheciam o relato disso, e boas/ São certamente as lendas, pois do Altíssimo / Elas
são uma memória, mas as sagradas,/ É necessário também para alguém decifrá-las. »] ((N.E.F.)
Seguir em toda clareza o movimento do sentido, sua verdade, não como um
caminho dotado de uma meta e de uma progressividade, mas como uma cadência que se
mantém sem no entanto fazer uma progressão –
- ou ainda:
– o incalculável, é sempre aquilo que vai para além do sentido, até o que não se pode
nomear nem perda nem ganho de sentido, mas justamente a verdade do sentido, mas
justamente a verdade do sentido, o que é ao mesmo tempo « alegria » (789) e « luto ». A
conjunção entre alegria e luto – sem dúvida o motivo hölderliniano por excelência –
responde à conjunção do sentido e de sua suspensão:
157
Em francês : « comme la source suit le fleuve/ Vers où il veut aller, il faut que j’aille aussi / Suivre son
assurance dans l’errance ».Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê assim na tradução de G. Roud e R.
Rovini: « […] et comme au fleuve va la source,/ De force où il va il m’entraîne, et lui,/ Si sûr, je le suis à
tâtons. » [« {…} e como ao rio vai a fonte,/ Por força aonde ele vai ele me arrasta, e ele,/ Tão seguro, eu o
sigo às tateadas. »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit ., p. 783.) (N.E.F.)
158 Trecho de “Dichtermut”[“Coragem de poeta”], na tradução de Paulo Quintela, op.cit. , p. 217. Nancy cita a
tradução de R. Rovini: “[…] et vois ! l’astre sublime/ Sait la route changeante et la suit/ L’âme sereine
jusqu’au déclin” (p. 788). (N.T.)
159
Em francês : « L’écho de la fête s’éteint, et toute chose ira demain/ Son chemin sur l’étroite terre ».
Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê como segue na tradução de Ph. Jaccottet: « La fête passe, et toute
chose reprendra demain/ Son chemin sur l’étroite terre. » [« A festa passa, e todas as coisas retomarão amanhã
/ Seu caminho sobre a estreita terra. »] (Hölderlin, Œuvres , op. cit., p. 831.) (N.E.F.)
160
Trecho de “Am Quell der Donau” [“Junto à nascente do Danúnio”], tradução de Paulo Quintela, op.cit.. , p.
321. Nancy cita a tradução de G. Roud: “[…] quand votre nuée sainte enveloppe l’un de nous,/ Une stupeur
nous saisit et nous ne savons en dire/ Le sens. Mais avec le nectar vous confortez d’arôme notre souffle » (p.
843). (N.T.)
Othem (o sopro, forma religiosa, luterana, de Athem) rima com deuten
(significar, interpretar). O ritmo do sopro responde à interrupção do sentido. O metro é a
medida própria desta: não é nem a sua expressão (ou mimesis) nem o seu saber, é o seu
modo e seu tom.
O corte separa aqui mesmo o canto de seu enigma, e toca ao mesmo tempo no
jorrar mesmo. O ato do poeta, o ato da medida, é de concordar [ s’accorder] com essa
« brusca presença » (849) ou com essa « sobrevinda » do divino que faz o divino como tal.
Se « o homem/ Ama o que é presente»,162 ele deve aprender a sustentar-lhe a vinda e a
partida – a partida « que vai com », se é permitido dizer assim – a totalidade da presença
como o ponto, o corte único da « medida que é de cada um 163 » (854).
Tudo é íntimo
Isso separa
Assim guarda o poeta. (924)
161
Em francês : « Une énigme est le pur jailli. Même/ Le chant à peine peut la dévoiler ». Tradução de Jean-
Luc Nancy. O texto se lê na tradução de G. Roud como segue: « Énigme, ce qui naît d’un jaillissement pur! Et
par/ Le chant lui-même à peine dévoilée. Oui,/ Tel que tu naquis tu perdures. » [« Enigma, o que nasce de um
jorrar puro! E pelo / Próprio canto há pouco desvelado. Sim,/ Tal como nasceste tu perduras. »] Hölderlin,
Œuvres , op. ci t., p. 850.) (N.E.F.) O verso em alemão diz o seguinte : « Ein Rätsel ist Reinentsprungenes.
Auch/ Der Gesang kaum darf es enthüllen. […]”. Na tradução de Paulo Quintela, o trecho se lê : « Um
mistério é o que brota em pureza. E mesmo/ O canto mal pode desvendá-lo […] », op.cit.. , p. 373. (N.T.)
162
Em francês : « [L’] homme/ Aime ce qui est présent ». Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê na
tradução de G. Roud como segue: « « Ionie, je songe à toi ! Mais l’homme/ A le désir profond de la présence.
Et c’est pourquoi/ […] » [« Iônia, sonho contigo! Mas o homem/ Tem o desejo profundo da presença. E é por
isso / {…}] »(Hölderlin, Œuvres , op. cit., p. 848.) (N.E.F.)
163
Em francês : “[L]a mesure qui est à chacun”. Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê na tradução de
G. Roud como segue : « Mais à chacun sa mesure. » [« Mas a cada um a sua medida. »] (Hölderlin, Œuvres ,
op. cit., p. 854.) (N.E.F.)
O poeta deve « sentir e se apropriar da alma comum, que é de todos em comum
e própria a cada um164». E:
[…] Muitos
Ajudam o céu. E o poeta
Os vê. É bom tomar apoio
Junto aos outros. Pois ninguém suporta sozinho a vida. (893)
Eis por que « a individualidade poética srcinal » deve ser ela mesma
« abolid[a] » na « mais audaciosa, na última tentativa do espírito poético » (620) que deve,
através de sua própria « liberdade », pôr, apresentar sua própria individualidade fora dele,
diante dele, como uma figura exterior, como a objetividade de sua presença. Não é « nele
mesmo » que esse espírito « pode se reconhecer », mas fora de si. Esse fora de si do espírito
– seu corpo, sua medida, sua exatidão deposta diante dele –, é o real, presente, impenetrável
e pontual.
164
Em francês : “[S]entir et s’approprier l’âme commune, qui est à tous en commun et propre à
chacun”. Tradução de Jean-Luc Nancy. O texto se lê assim na tradução de Denise Naville: « Quand le poète
s’est rendu maître de l’esprit, quand il a senti et retenu, qu’il a pris possession, qu’il s’est assuré de l’âme
collective, commune à tout et propre à chacun ; […] » [« Quando o poeta se tornou mestre do espírito, quando
sentiu e reteve, que ele tomou posse, que ele se assegurou da alma coletiva, comum a tudo e própria a cada
um; {…]}»]. (Hölderlin, Œuvres , op. cit., tr. fr., p. 610.) (N.E.F.) Na tradução de Márcia Cavalcante o trecho
se lê: “Quando o poeta chega a assenhorear-se do espírito, quando sente, apropria-se, consolida, assegura-se
da alma comunitária, essaa que pertence a todos e não obstante é própria a cada um; [...].Hölderlin. Reflexões ,
op.cit.., p. 30. (N.T. )
165
Sobre essa noção cunhada por Nancy, ver a nota X supra. (N.T.)
essa exterioridade na qual e segundo a medida da qual, somente, a presença pode vir, vir e
ir embora.
O real está sempre fora, sempre em face, exatamente lá onde pousa « o olhar
aberto », aquele para o qual « se abre a luz », « a evidência do céu»: « Venha para o aberto,
amigo! ». O real em direção ao qual é preciso ir, infinitamente, exatamente, e a medida
poética dá disso a distância e a proximidade, o distanciamento e a iminência no instante da
passagem.
O olhar exato não se apropria de sua visão. Ele olha o que o vê, ele olha que
ele é visto de mais longe, de sempre mais longe na unidade de tudo. Ele toca nesse
deslumbramento, em sua iminência, em sua passagem ínfima, inapreensível, nunca
assegurada e, no entanto, tão clara e tão real.
[E]u me ligo cada vez mais aos homens, pois reconheço nos pequenos assim como
nos grandes lados de sua atividade e de seus caracteres um só e mesmo caráter srcinal, um
só e mesmo destino. Sim, é essa necessidade de avançar, de sacrificar um presente
assegurado a alguma coisa de incerta, de diferente, de melhor, e desde sempre melhor, que eu
considero como a causa primeira dos feitos e gestos de todos os homens que estão ao meu
redor. 166 (710)
166
Carta a seu irmão Karl datada de 4 de junho de 1799, de Hamburgo. (N.T.)
Tradução: João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder do
Nascimento Loyolla
2. FAZER, A POESIA
Eis por que a palavra « poesia » designa tão bem uma espécie de discurso, um
gênero em meio às artes, ou uma qualidade que pode se apresentar fora dessa espécie ou
desse gênero, tanto quanto pode estar ausente das obras dessa espécie ou desse gênero.
Segundo Littré, a palavra tomada de modo absoluto significa: « Qualidades que
caracterizam os bons versos, e que podem se encontrar alhures que nos versos. (...)
Resplendor e riqueza poéticos, mesmo em prosa. Platão é pleno de poesia. » A poesia é,
pois, a unidade indeterminada de um conjunto de qualidades que não são reservadas ao
tipo de composição denominado de « poesia », e que não podem elas mesmas ser
designadas, senão afetando com o epíteto « poético » termos tais como riqueza,
resplendor, ousadia, cor, profundidade, etc.
Littré declara ainda que, em seu sentido figurado, « diz-se poesia de tudo aquilo
que há de elevado, de tocante, numa obra de arte, no caráter ou na beleza de uma pessoa
e até mesmo numa produção natural ». Assim, desde que sai de seu emprego literário,
essa palavra toma um sentido somente figurado, mas esse sentido não é, no entanto,
senão a extensão do sentido absoluto, quer dizer, da unidade indeterminada de
qualidades, de que os termos « elevado » e « tocante » fornecem os caracteres genéricos.
A poesia como tal é, pois, sempre propriamente idêntica a si mesma, da composição de
versos até a coisa natural, e ao mesmo tempo sempre somente uma figura dessa
propriedade inassinalável em qualquer sentido próprio, propriamente próprio. « Poesia »
não tem exatamente um sentido, mas, antes, o sentido do acesso a um sentido cada vez
ausente, e reportado para mais longe. O sentido de « poesia » é um sentido sempre a se
fazer.
A poesia é, por essência, mais e outra coisa que a própria poesia. Ou então: a
própria poesia pode muito bem se encontrar lá onde não há mesmo poesia. Ela pode
mesmo ser o contrário ou a recusa da poesia, e de toda poesia. A poesia não coincide
consigo mesma:
propriamente talvez essa não-coincidência, essa impropriedade substancial, faça
a poesia.
A poesia não será, pois, o que ela é senão com a condição de ser, ao menos,
capaz de se negar: de se renegar, de se denegar ou de se suprimir. Ao se negar, a poesia
nega que o acesso ao sentido possa ser confundido com um modo qualquer de expressão
ou de figuração. Ela nega que aquilo que é « elevado » possa ser posto ao alcance das
mãos, e que aquilo que é « tocante » possa ter saído da reserva a partir da qual,
precisamente, ele toca.
A poesia é, pois, a negatividade em que o acesso se faz o que ele é: isso que
deve ceder, e, para isso, de saída deve se esquivar, se recusar. O acesso é difícil, não é
uma qualidade acidental: isso quer dizer que a dificuldade faz o acesso. O difícil é o que
não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. Porque ela o
faz, isso parece fácil, e eis porque, desde muito tempo, a poesia é dita « coisa ligeira ».
Ora, não é somente uma aparência. A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente
difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não quer dizer que ela seja aplainada.
Isso quer dizer que ela é poesia, apresentada para aquilo que ela é, e que nós estamos
engajados nela. De repente, facilmente, estamos no acesso, quer dizer, na absoluta
dificuldade, « elevada » e « tocante ».
(Essa diferença, todavia, não pode se resolver numa distinção entre a poesia e a
filosofia, já que a poesia não admite ser circunscrita a um gênero do discurso e já que
« Platão » pode ser « pleno de poesia ». Filosofia versus poesia não constitui uma
oposição. Cada uma faz a dificuldade da outra. Juntas, elas são a dificuldade mesma: de
fazer sentido.)
Decorre disso que a poesia é igualmente a negatividade nesse sentido de que ela
nega, no acesso ao sentido, o que determinaria esse acesso como uma passagem, uma
via ou um caminho, e que ela o afirma como uma presença, uma invasão. Mais do que
um acesso ao sentido, é um acesso de sentido. De repente (facilmente), o ser ou a
verdade, o coração ou a razão, cedem seu sentido, e a dificuldade está aí, cativante.
De maneira correlativa, a poesia nega que o acesso possa ser determinado como
um em meio a outros, ou um relativamente a outros. A filosofia admite que a poesia seja
uma outra via (e, às vezes, a religião). Por isso mesmo, Descartes pode escrever: « Há
em nós sementes de verdade: os filósofos as extraem pela razão, os poetas as arrancam
pela imaginação, e elas brilham então com mais resplendor. » (recitado de memória).167
A poesia não admite nada de recíproco. Ela afirma o acesso absoluto e exclusivo,
imediatamente presente, concreto, e, como tal, incambiável. (Não sendo/estando na
ordem dos problemas, não há muito menos diversidade de soluções.)
167
A frase exata de Descartes diz : « Há em nós sementes de ciências, como em um sílex há sementes de
fogo; os filósofos as extraem da razão, os poetas as arrancam pela imaginação: elas bri lham então com
mais força”. Descartes. Olympiques . Édition Alquié des Oeuvres Philosophiques. Tomo 1. Paris: Éditions
Classiques Garnier, col. "Textes de philosophie", 2010, p. 61. (N.T.)
A poesia afirma, pois, o acesso, não no regime da precisão - suscetível de mais
e de menos, de aproximação infinita e de deslocamentos ínfimos -, mas no regime da
exatidão. Está feito, está acabado, o infinito é atual.
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Ela não pronuncia, pois, nada além daquilo que faz o ofício da linguagem, ao
mesmo tempo sua estrutura e sua responsabilidade: articular sentido, sendo entendido
que não há sentido senão numa articulação. Mas a poesia articula o sentido, exatamente,
absolutamente (não uma aproximação, uma imagem ou uma evocação).
Que a articulação não seja unicamente verbal, e que a linguagem deixe passar
infinitamente a linguagem, é uma outra questão - ou então, é a mesma: diz-se « poesia »
de « tudo o que há de elevado e tocante ». Na linguagem ou alhures, a poesia não produz
significações: ela faz a identidade objetiva, concreta e exatamente determinada, do
« elevado » e do « tocante » com uma coisa.
Eis também por que « poesia » diz mais do que o que « poesia » quer dizer. E
mais precisamente - ou melhor, exatamente: « poesia » diz o mais-que-dizer enquanto
tal, e enquanto ele estrutura o dizer. « Poesia » diz o dizer-mais de um mais-que-dizer. E
diz também, por conseguinte, o não-mais-o-dizer. Mas dizer isso. Cantar também, por
conseguinte, timbrar, entoar, bater ou tocar.
Porque então a poesia seria a excelência da coisa feita? Porque nada pode ser
mais acabado do que o acesso ao sentido. Ele é todo inteiramente, se ele é, de uma
exatidão absoluta, ou então não é (nem mesmo aproximativo). Ele é, quando é, perfeito,
e mais que perfeito. Quando o acesso tem lugar, sabe-se que ele tinha sempre estado ali,
e que, do mesmo modo, ele retornará sempre (mesmo que se devesse não saber nada
disso: mas deve-se pensar que, a cada instante, alguém, em alguma parte, acede). O
poema tira o acesso de uma ancestralidade imemorial, que não deve nada à
reminiscência de uma idealidade, mas que é a exata existência atual do infinito, seu
retorno eterno.
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A coisa feita é finita. Sua finição é a perfeita atualidade do sentido infinito. Daí
que a poesia é representada mais antiga do que toda distinção entre prosa e poesia, entre
gêneros ou entre modos da arte de fazer, ou seja, da arte, absolutamente. « Poesia » quer
dizer: o primeiro fazer, ou então o fazer enquanto ele é sempre primeiro, cada vez
srcinal.
O que é fazer? É pôr no ser. O fazer se esgota na posição assim como em seu
fim. Esse fim que o fazer teve como sua meta, eis que ele é seu fim assim como sua
negação, pois o fazer se desfaz em sua perfeição. Mas aquilo que é desfeito é
identicamente o que é posto, perfeito e mais que perfeito. O fazer acaba cada vez alguma
coisa e a si mesmo. Seu fim é a sua finição: nisso ele se põe infinito, cada vez
infinitamente para além de sua obra.
A apresentação deve ser feita, o sentido deve ser feito, e perfeito. Isso não quer
dizer: produzido, nem operado, nem realizado, nem criado, nem acionado, nem
engendrado. Exatamente, isso não quer dizer nada de tudo isso, nada pelo menos que
não seja de saída, em tudo isso, aquilo que o fazer quer dizer: aquilo que o fazer faz à
linguagem quando ele a perfaz em seu ser, que é o acesso ao sentido. Quando dizer é
fazer, e quando fazer é dizer. Como se diz: fazer amor, que é não fazer nada, mas fazer
um acesso ser. Fazer ou deixar: simplesmente pôr, depor exatamente.
Não há fazer (nenhuma arte ou técnica, nenhum gesto, nenhuma obra) que não
seja mais ou menos surdamente trabalhado por essa deposição.
Poesia é fazer tudo falar - e depor, em retorno, todo falar nas coisas, ele mesmo
como uma coisa feita e mais que perfeita.
Recitação de infância:
Es schläft ein Lied in allen Dingen
Die da träumen fort und fort,
Und die Welt hebt an zu singen
Triffst Du nur das Zauberwort170.
Essa questão da poesia, tão velha e tão pesada , embaraçosa e pegajosa, resiste
ao nosso tédio e ao nosso desgosto mais forte por todas as mentiras poéticas, pelos
mimos e pelas sublimidades. Mesmo se ela não nos interessa, ela nos detém,
necessariamente. Hoje tanto quanto, diferentemente, na época de Horácio ou na de
Scève, na de Eichendorff, de Eliot ou de Ponge. E, se foi dito que, depois de Auschwitz,
a poesia seria impossível, depois às avessas que ela seria necessária depois de
Auschwitz, é precisamente da poesia que pareceu necessário dizer as duas coisas. A
exigência do acesso do sentido - sua exação, seu pedido exorbitante - não pode cessar de
deter o discurso e a história, o saber e a filosofia, o agir e a lei.
170
Tradução rápida : « Um canto dormita em todas as coisas/ Que estão aí sem parar a sonhar/ E o mundo
se põe a cantar/ Se você encontrar a palavra mágica » (J.-L. N.). Joseph von Eichendorff, « Wünschelruthe
», em Sämtliche Werke des Freiherrn Joseph von Eichendorff , Volume I « Gedichte », primeira parte,
Harry Fröhlich et Ursula Regener (éds), Stuttgart/Berlin/Cologne, Verlag W. Kohlhammer, 1993, p. 121.
(N.E.F.)
3. CONTAR COM A POESIA
Entrevista de Jean-Luc Nancy com Pierre Alferi
« práticas
Por artísticas
quê? Talvez » que aperderam
porque o nome
poesia, para próprio de sua
os românticos, identidade
mas comum
já para Kant – a poesia.
e para outros
antes deles, designava o órgão do infinito. O órgão do infinito deveria ser aquilo que põe
em obra, no sentido forte da palavra « obra », uma transcendência absoluta de toda
171
« Embrayeur”, tradução francesa do “ shifter ”, a embreagem, segundo denominação de Roman
Jakobson, designando as expressões que só podem ser determinadas em relação aos interlocutores, os
dêiticos . Roman Jakobson. Essais de linguistique générale . Paris: Minuit, 1963. Cf. Oswald Ducrot e
Tzvetan Todorov. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem . Trad. Alice Kyoko Miyashiro e
outros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. (N.T.)
determinação. O romantismo é a liquidação (pelo menos, é a sua vontade) da
determinação – como se uma angústia geral se tivesse apossado de uma sociedade que se
via mergulhar na determinação.
Isso dito, uma observação: o senhor parece considerar que seria tempo, hoje, de
certificar-se dessa perda de privilégio da poesia. O senhor faz como se o « ódio da
poesia » (expressão de Bataille, o senhor o sabe) não tivesse sido desencadeado desde
muito tempo, desde Rimbaud, depois Valéry, em seguida Bataille ou Artaud, e outros
ainda. De modo que me pergunto se não é, antes, preciso se interrogar a partir dessa
situação desde muito tempo suicida, ou autodenunciadora, que faz com que hoje, senão
a poesia, pelo menos o poético, seja amplamente mantido em suspeição. De tal modo
que eu seria quase levado a me perguntar se essa própria suspeita não deve ser, por sua
vez, posta sob suspeita. Não quero dizer que se trata de anulá-la, mas de saber
justamente o que ela recobre: e se fosse de fato desejável redescobrir uma « verdadeira »
poesia? Vou voltar a esta questão no item 3.
Não posso responder a essa pergunta, antes de mais nada, porque compreendo
mal os termos de sua primeira frase – principalmente « a mais arbitrária das práticas
artísticas »: melhor me pareceria que, desde então, e se quisermos dizer as coisas nesses
termos, o «arbitrário » está aceitavelmente espalhado, não somente através da
diversidade das artes, mas mais amplamente, no que toca à definição mesma dos
« gêneros artísticos », no que toca a suas economias, transgressões, hibridações, e enfim
no que toca à categoria mesma da « arte ». Parece-me, então, que é antes nessa
perspectiva que seria preciso abordar a questão. Em seguida, eu não saberia responder
ao que é perguntado, pois não tenho nada a prescrever à poesia. Quando muito posso
dizer que ela não saberia como ficar quites com a vizinhança da filosofia, vizinhança
íntima, complexa, conflitual, sedutora e captadora ao mesmo tempo - e isso, uma com
relação à outra e vice-versa. Será preciso justamente, voltar de novo a esse
enfrentamento. O filósofo não pode, em todo caso, deixar de ser tocado - ou atenazado -
por uma espécie de necessidade de poesia que lhe vem do mais vivo de sua prática, e
independentemente de toda exaltação, de toda tentação « poetizante». Isso não quer
dizer que a poesia deva - como dizer? - tomar a seu cargo a metafísica. Não é, em todo
caso, uma questão de « grandes temas » ou de « pensamentos profundos », nem só nem
simplesmente. Seria, antes, a questão do que, na relação com a língua (ou do ser-na-
língua), é comum entre filosofia e poesia - que é comum e que as partilha (nos dois
sentidos da palavra) do interior dessa comunidade. Não posso dizer mais sobre isso por
agora, mas há aí, em todo caso, necessidade, e não arbitrário.
Não somente o anúncio romântico da « prosa » vale ainda hoje, mas é certo que
estamos mais do que antes sob sua injunção, ou, se preferirem, sob o seu comando
(como diriam em língua de computador, « na linha de comando POE.SIA/>, digite cd
PRO/SA...). Essa questão nos assombra literalmente, e poderíamos multiplicar-lhe as
provas e os índices. Mas é precisamente aqui que eu gostaria de introduzir aquilo que
anunciei no fim do item 1.
172
Novalis, citado por Walter Benjamin em : O conceito de crítica de arte no romantismo alemão . Tradução :
Márcio Seligmann-Silva. São Paulo : Iluminuras, 1999, 2ª edição, p. 107. ( Le Concept de critique esthétique
dans le romantisme allemand . Tradução : Philippe Lacoue-Labarthe e Anne-Marie Lang, Paris, Flammarion,
col. « La philosophie en effet », 1986, p. 152.) (N.E.F. ; N.T.)
quiser, mas no momento preciso sublinhar o seguinte: a « prosa » da qual falamos aqui é
a « verdadeira » poesia, ou a verdade da poesia. Ora, acredito observar que hoje, em
muitas maneiras de falar sobre a questão e também em sua própria pergunta, produz-se
um tal deslizamento que a prosa aparece como « o outro » da poesia, ou sem dúvida
como sua realização, mas por « estranhamento», como se dizia outrora para traduzir o
Entfremdung em Hegel. O senhor mesmo diz « auto-superação ». Deveríamos discutir
esse termo dialético - mas por ora peço uma única coisa: que ponhamos novamente
sobre a poesia, nessa questão, o acento que lhe compete ou que permanece ligado a ela,
em lugar de dar a impressão de que tudo cai na « prosaicização », que poderia deixar
crer que um « prosaísmo » não está longe, enquanto o senhor mesmo (assim como
aqueles que citei) se guarda de empregar uma tal palavra!
Quero dizer o seguinte, muito simplesmente: se, de um lado, está claro que não
se quer mais, que ninguém aguenta mais, o poético e a poetização, a exaltação
grandiloquente, as suavidades evocatórias, o que Bataille denominava « a tentação
pegajosa da poesia », para não dizer nada dos academicismos, que estão mortos, mesmo
quando academicismos românticos, simbolistas, mallarmeanos, surrealistas ou « pós-
modernistas », de outro, no entanto, não está claro o que se demanda com a prosa.
Para os românticos, ainda aí, era mais claro: a « prosa » era de uma parte a
« sobriedade » (sugiro que a deixemos no momento em reserva: é um vasto programa,
sobre o qual, ainda aí, todo mundo hoje está mais ou menos de acordo – sem que o que
se trata esteja ainda bem nítido), mas era de outra parte essa dissolução ou fluidificação
dos gêneros, cujo paradigma era para eles o romance. Sei bem que o que eles entendiam
por « romance » não era exatamente o que nós entendemos por isso. Por uma ponta, isso
se atinha ainda à ideia de um devir moderno da epopeia (e de um devir épico da
modernidade), enquanto que pela outra ponta não era senão um nome para batizar o
problema: a « auto-superação » infinita da poesia. Resta que não podemos mesmo mais
usar esse nome como suporte ou como índice. Salvo erro, o romance está atrás de nós - e
ele não representa há muito tempo essa ideia da « prosa ». (Ou então, seu nome é
utilizado deliberadamente em contra-senso, quando alguns intitulam « romance » o que
não tem nada a ver com esse « gênero » - e seria preciso comentar esses gestos.)
Tudo isso faz com que « a ideia da poesia » insista mais do que nunca enquanto
tal, se posso dizer assim, ou seja, como ideia da poesia, e que é apesar de tudo com essa
palavra, volens nolens173, que é preciso se virar - ou antes, se confrontar, se bater talvez,
mas também, inevitavelmente, imperativamente, contar.
Eis o que eu diria: não se pode mais não contar com a poesia. Ou: é preciso
contar com a poesia. É preciso contar com ela em tudo o que fazemos e pensamos dever
fazer, em discurso, em pensamento, em prosa e em « arte » em geral. O que quer que
haja sob essa palavra, e supondo que não haja aí mais nada que não seja datado, finito,
desalojado, aplainado, resta essa palavra. Resta uma palavra com a qual é preciso contar
porque ela exige o que lhe é devido. Podemos suprimir o « poético », o « poema » e o
« poeta » sem muitos danos (talvez). Mas com « a poesia », como todo o indeterminado
4. Essa superação estaria ligada, ainda aí, às relações da poesia com as outras
artes? E mais particularmente a uma nova maneira de conceber sua tecnologia? Les
Muses denuncia no plano dos princípios as oposições e as reticências onde se aferra o
pensamento da técnica em se tratando das artes: qual esforço particular a sua
superação suporia da parte da poesia?
Permita que eu aproveite o ponto precedente para passar à sua quarta questão.
Pelo menos, vou me servir dela para encadear sobre isto:
Se a poesia insiste e resiste - ela resiste a tudo, de uma certa maneira, e é talvez
também porque os poetas se nos afiguram frequentemente como «pintores de domingo»,
como o senhor diz com razão: a insistência da poesia percorre até as formas mais
humildes, mais pobres, mais desmunidas, até verdadeiras misérias literárias, até o gosto
mais açucarado ou mais imbecil por mingaus meio cadenciados de esoterismo e de
sentimentalidade (há aí como que uma mendicância), mas se ela vai até aí, tão baixo, é
porque ela insiste, porque ela demanda alguma coisa, e alguma coisa que, creio
verdadeiramente, não podemos reduzir às recaídas pequeno-burguesas do pior
romantismo (do gênero « poesia de adolescente », ou mesmo, antes disso, as « manias
de rimar » das quais se ri em Molière), alguma coisa que não é « subcultura », nem
mesmo « cultura » simplesmente -, se a poesia insiste e resiste, portanto, é além dessas
manifestações derrisórias, e é por outras razões.
(Com certeza seria preciso ainda analisar como a vulgaridade poética tão
espalhada se atém à aparente proximidade das técnicas poéticas, diferentemente das
técnicas das outras artes. Não me deterei nisso aqui.)
Tomo um exemplo, porque me parece que seja necessário dar um. Sem a menor
vontade de faltar ao respeito com Husserl, citarei essa conclusão (o que foi colocado em
conclusão, e que, portanto, não chega a concluir esse texto inacabado) da Krisis [Crise].
Ouça:
[...] Razão justamente significa aquilo que o homem enquanto homem deseja em seu
mais íntimo, a única coisa que pode satisfazê-lo, torná-lo « feliz »; significa que a Razão não
admite nenhuma separação entre razão « prática », « teórica », « estética » e não sei o que mais;
que ser-homem é ser teleologicamente e é dever-ser, e que essa teleologia reina em tudo aquilo
que fazemos, e em tudo aquilo que temos em vista egologicamente, que ela pode reconhecer
sempre nisso, pela compreensão de si, o telos apodítico, e que esse reconhecimento da última
compreensão de si não tem outra forma senão a compreensão de si segundo princípios a priori, a
compreensão de si na forma da filosofia. 174
Penso que o senhor entende o que quero sugerir: esse discurso, indefinidamente
desenvolvível (e que Fink projetava prosseguir), diz tudo exceto aquilo de que fala
« por último », a forma da filosofia - ou antes, ele diz, ele discorre sobre ela, mas ele é
também a indefinida de-formação ou o indefinido retardamento disso (o senhor notou
além disso, a propósito, a invocação de uma razão « estética » que não deveria estar
« separada »...). A isso, a « poesia » resiste. Ela pode admitir tudo o que está dito aí (por
ora, não façamos tempestade num copo d´água por causa do que está dito, tal como está
dito aqui), mas ela não pode admitir que a « forma » em questão se envolva, e em suma
« se forme » a si mesma de sua própria denegação. Quando digo que « a poesia não
admite », isso não quer dizer que ela seja uma instância de autoridade que teria o direito
e o poder de uma tal recusa. É preciso antes dizer: essa recusa é a poesia, e mesmo
quando a « poesia » permanece ou parece, nesse instante, completamente indeterminada,
esta palavra é, ao menos, determinada por essa recusa e como seu próprio gesto.
(Acrescentemos o seguinte: na 3ª. pergunta, não sei muito bem o que o senhor
entende por « gosto da poesia por objetos parciais », mas se devo compreender que se
trata do »que
«objeto quenão
nãoseria
seja o« «parcial
objeto»,infinito
mas que» do
o «discurso,
parcial »,então
aqui,eunão
diria
é aque não há
separação
concertada de uma falta. É, ao contrário, a distinção, o destacamento - sobre fundo de
nada – graças ao qual pode haver « objeto » em geral.)
De outra parte, o que resiste com a poesia - e muito certamente, numa conexão
estreita com o que precede - é o que, na língua ou da língua, anuncia ou retém mais do
que a língua. Não da « supra-língua » nem da «ultra-língua », mas a articulação que
precede a língua « n »’ela mesma (e que é tanto uma « seção » e uma « praxis », ou um
« ethos », quanto propriamente uma « enunciação ») e, sem dúvida, alguma coisa dessa
articulação enquanto « ritmo », « cadência », « pausa », « síncope » (« espaçamento »,
« batimento »), e com isso, nisso, alguma coisa do que eu denominaria de um desenho,
para não dizer « figuração ». O sentido enquanto desenho, e não no continuum do...
sentido. O sentido retirado, nesse sentido, e não discorrido. Ou então, se o senhor quiser,
a inflexão (a voz, o tom subido, abaixado ou mantido; o retorno ao lugar da linha reta; a
dobradura
também aténoo discurso,
lugar da sintaxe, etc.). por
com certeza, Issovias
insiste
maisdesde a canção,
ou menos desde
discretas de aretórica
parlenda,
e dee
prosódia. Diria mesmo, e ainda que eu não goste desse léxico, isso insiste no
« inconsciente » e como « inconsciente » que a língua é (o que diz uma coisa totalmente
diferente, o senhor o compreende, do que a fórmula do « inconsciente estruturado como
174
Edmund Husserl. La Crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale [A crise das
ciências europeias e a fenomenologia transcendental ] Tradução francesa de Gérard Grane l. Paris :
Gallimard, col. Bibliothèque de philosophie , 1976, p. 304-305. (N.E.F.)
uma linguagem»).
Essa insistência não é nem infantil nem popular, no sentido de que se poderia
roçar aqui um infantilismo e um populismo da poesia. Em compensação, eu diria com
prazer que se esconde aí algo do que o « povo » tem para nós de tão problemático e de
tão difícil, de tão longínquo, e algo da existência forçosamente popular da língua.
« Popular » quer dizer aqui: não dominado, não regido, não normalizado.
Mas é preciso então que eu acrescente alguma coisa: desde que se considera a
poesia sob esse ângulo « técnico », que não é sem dúvida totalmente um ângulo
particular, é bem possível que a poesia re-encene por si só a cena da diferença entre as
artes. Do mesmo modo como não há mais, em ato, uma arte geral, a arte estando ao
contrário na diferença entre as artes, tampouco há mais poesia em geral, mas a poesia
está cada vez na diferença do que recentemente se denominava de seus gêneros e suas
formas, diferença ela própria combinada com a diferença das línguas, e com essa outra
175
« Auseinandergeschieben”, palavra cunhada por Paul Celan, “escrita-separada” (na tradução de
Martine Broda),“escr ita desarticulada” (na de Jean-Pierre Lefebvre), ou “escrita-espalhada”, na tradução
de Cláudia Cavalcante. A palavra que designa a própria escrita poética celania na e aparece no poema
“Engführung” [“Stretto”]. Paul Celan. Cristal . Tradução: Claudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras,
1999, p. 73, 85. (N.T.)
diferença que a poesia, precisamente, põe em jogo de cada língua. Não há senão
« poesias », segundo o uso da palavra na escola primária. Naturalmente não renuncio de
modo algum assim à interrogação sobre o ser ou a essência na poesia: mas quero dizer
que a pluralidade das poesias faz parte dessa essência.
De uma parte, sobre esse silêncio que constitui precisamente todas as artes no
limite da significação discursiva, e que as partilha segundo a lei de uma
incomunicabilidade de suas ordens « sensíveis », e de outra parte, sobre esse silêncio, o
mesmo, que mantém a poesia (no sentido específico) em retração e em recusa do
discurso, constituindo-a também, ao mesmo tempo, como uma das artes e como
diferenciada nela mesma. Não é preciso se perguntar se a inflação/implosão da poesia
não se ateve - e por razões filosóficas muito precisas (veja-se do lado da história do
« sublime ») -- a uma sobredeterminação do silêncio compreendido, não como um ser
silencioso, mas como um fazer silêncio, um « calar » e um « se calar », ou seja, não
como a borda soberanamente silenciosa da linguagem, mas como sua « auto-superação»,
que leva à efusão, à exaltação, e para dizer tudo enfim, à tagarelice absoluta (tagarelando
também sobre o silêncio) com a qual « poesia » terminou por parecer se confundir?
Eis também por que a resistência poética é mais sensível, mas também mais
difícil, quando uma época tem consciência (com ou sem razão) de estar mais do que uma
outra entregue à tagarelice (é assim com a nossa). (Ao contrário, numa época de língua
cerrada, exata, a poesia declina: há mais « poesia » em Rousseau ou Diderot do que em
Delille ou Chénier.)
176
Referência ao termo de Paul Celan, “auseinandergeschrieben ”, citado acima (e objeto da nota
anterior). “Auseinander”, espalhar, separar... (N.T.)
177
Nancy retorna ao motivo em “Cálculo do poeta” supra. O motivo surge no comentário de Heidegger ao
poema de Hölderlin, “O reno”, no curso de 1934-1935, em torno dos versos, “[…] poeticamente habita/ O
homem esta terra”. Cf. dentre outros, Martin Heidegger. Hinos de Hölderlin . Tradução: Lumir Nahodil.
Lisboa: Instgituto Piaget, 2004; “…poeticamente o homem habita…”. Ensaios e conferências . Tradução:
Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. (N.T.)
4. A RAZÃO demanda A POESIA
ENTREVISTA DE JEAN-LUC NANCY COM EMMANUEL LAUGIER
muito direto,
obras gira em
de filosofia, de torno de dos
poesia, umaensaios
srcem: sobre
quer ela
as seja
artes,a da
etc.,escrita,
eu me ou a da leitura
pergunto comodese
chega a abordá-la em si e como, mais precisamente, Jean-Luc Nancy chegou à poesia?
Pergunto-lhe se é a filosofia – que não cessou, o sabemos, de ter com a poesia uma
relação apaixonada e amarga, desde a exclusão que lhe reserva Platão na República
(afora, é verdade, Píndaro) até a sua auto-dissolução no sistema hegeliano, até mesmo
à leitura tão complexa em um certo sentido que Heidegger faz de Hölderlin – quem
decidiu por sua leitura ou, precisamente, em um certo momento, um puro encontro de
alguns versos ao acaso de um livro aberto, tal estrofe, alguma coisa como uma leitura
siderada?
JEAN-LUC NANCY: De onde me chegou a poesia? Ela de fato chegou a mim? Não sei.
Ocorre que escrevi alguns textos sobre poesia, e também arranhei certas maneiras
poéticas em alguns pequenos textos, mas isso foi tardio em mim e me demandou duas
coisas: de uma parte, ter que responder a um sentimento de necessidade, de dever de
algum modo defender a vergonha
certo constrangimento, poesia entre
ou os filósofos;
pudor, de outra
de deixar parte, poder
a retenção me liberar
do conceito de um
e arriscar
aquilo que Bataille nomeava « a tentação pegajosa da poesia ». Cada um desses motivos
pediria um longo desenvolvimento. Tentarei não ser excessivo.
Mas de saída quero situar um trajeto, de resto muito banal: como tantos outros,
cometi em minha juventude uma grande quantidade de « poemas ». Eu passava mesmo
nisso muito tempo entre os treze e os vinte e três anos, aproximadamente. É banal, mas
essa banalidade é reveladora: ela designa um modelo e quase uma imposição, até mesmo
uma injunção da poesia em nossa cultura. Hoje talvez um rapaz de treze anos esteja
menos submetido a esse modelo, mas nem por isso, me parece, ele deixa de subsistir.
Escrever é escrever um poema. Ler, por outro lado, seria, antes, ler um romance – pelo
menos caso se tratar de uma leitura silenciosa e absorvida no que é « lido », se ouso
dizer. Mas ler um poema é já ler em voz alta, é « recitar », senão « declamar », e isso
também pertence ao modelo. O aedo, o trovador, « eu digo: “uma flor”… », « música
antes de qualquer coisa… », me parece que o cânone estético da minha juventude (que
era muito inculta, de fato, muito tosca nesses domínios e na arte em geral) se atinha a
estes marcos. Mas eu mostrava pouco os meus poemas, sentia a sua mediocridade,
embora me obstinasse neles, e ao mesmo tempo era o exercício do discurso e do
pensamento que me permitia falar para fora. Eu poderia dizer: a paixão lógica era em
mim clara e comunicável, a febre poética, obscura e vergonhosa. Um dia eu sofri uma
crítica severa de um autor e crítico literário de então a quem eu tinha mostrado o
manuscrito de uma coletânea de textos. Com isso concebi o que chamaria de « complexo
de Kant »: Kant se julgava incapaz de escrever bem, e eu fiz mesmo naquela época todo
um estudo sobre esse traço que, pode ser mostrado, toca no pensamento de muitos
outros. Digo « complexo » para brincar, pois penso simplesmente que alguém é filósofo
ou poeta e muito raramente senão nunca os dois, e isso por razões fundamentais, das
quais teremos talvez que voltar a falar.
Eis o contexto, e acredito que ele não é anedótico. É o contexto de uma filosofia
presa a uma interrogação muito potente, que vinha dela mesma, sobre sua própria
« forma » ou « escrita », ou seja, evidentemente sobre o « fundo » do que ela põe em
jogo, quer o nomeemos sentido, verdade, logos ou ainda « pensamento », no sentido de
Heidegger (em quem tudo isso estava in nuce). E essa situação nossa, eu a reencontro,
diversamente modulada, tanto em Deleuze quanto em Badiou ou Rancière.
Penso que se joga nisso uma grande e interminável partida, que teve início com efeito
com Platão, como o senhor o lembra. Não é o lugar de tratar disso ex professo. É, antes,
o lugar de tentar, como eu faço, juntar os traços de uma imposição cultural, somada a
um mal-estar, e de uma inquietude do pensamento, somada a um desejo, com a
finalidade de simplesmente designar o seguinte: ainda não demos conta da « poesia »179,
quer a odiemos (Bataille, Artaud), quer a veneremos. É a isso que eu acabei querendo
dedicar alguns pequenos textos, a esse motivo (nem mesmo uma ideia!), de que o título
Résistance de la poésie [Resistência da poesia]180 dá bem conta.
No curso desse trajeto, com efeito, estive por todos os lados: fiz filosofia, arrisquei
até mesmo alguns « poemas » ( sit venia verbo), joguei e gozei compondo uma paródia
completa de La Jeune Parque [A Jovem Parca] («A Jovem Carpa»), num volume
N^R `00. -($U.2$ +'+D$) /&$ 0. (.+,*X+/3$A S ./2(.>*02+ 3+2+ 3. "aa_8 . 6+'$).56+D+(2:. 1$((.(J
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+'+D+1$0 '$1 + -$.0*+8 . +*/3+ 3.>.1$0 */2.(($FJ5,+A <#AKA=
180
Résistance de la poésie . Bordeaux : William Blake & Co., 1997. (N.E.F.)
coletivo dirigido por Philippe [Lacoue-Labarthe] e Mathieu Bénézet sob o título Haine
de la poésie181 [Ódio da poesia]), e enfim provei a « resistência » em questão. (Mas a
propósito da « A jovem Carpa», acrescentarei esse testemunho interessante: essa paródia
de Valéry, de metro, extensão e maneira calcados sobre seu poema, foi julgada por
Roger Munier – este é justamente o lugar de nomeá-lo, já que a revista L’Animal lhe
dedicou um número (o 11/12) – verdadeiramente poética: ele me havia dito que não via
nela uma paródia no sentido bufão do termo. Fiquei muito satisfeito com esse
comentário, mas Munier foi o único a me dizer isso, e sua observação sempre me deixou
perplexo quanto às possibilidades, necessidades e critérios da leitura do « poema ».
(Acrescento ainda isto: já o poema de Valéry, sem dúvida, é paródico em algum
respeito…) Nesse caso ainda, o senhor o compreende, a sombra de Heidegger não está
longe… Eu diria portanto: não estamos quites com a poesia, seguramente – mas nem
muito menos com a questão: qual poesia? Para permanecer num pequeno círculo outrora
« maldito »: Mallarmé, Corbière ou Verlaine?
Enfim, nesse interesse complexo pela poesia (e pela arte, pois uma não vai sem a
outra) a renovação recente da poesia na França desempenhou um papel decisivo. Há
trinta anos se produz um trabalho considerável, polimórfico, certamente desordenado e
aventuroso, em muitos dos aspectos – mas como seria de outra maneira? – que
testemunha de um desejo tenaz, áspero até, e tenso, exigente, de uma poesia subtraída,
ao mesmo tempo, ao romantismo, ao surrealismo, ao conceitualismo – e, se quisermos,
tendencialmente despoetizada… Não vou citar nomes, haveria nomes demais ou não o
bastante. Mas o fenômeno é notável, e generoso.
E. L.: Se lhe faço essa pergunta, é também porque a relação da filosofia com a poesia
não é indene: no entanto, o que interessa aqui não é abordar a indenidade que a
filosofia deveria verter [verser] sobre a poesia, ainda que fosse preciso talvez também
pensar com isso a relação entre elas, mas antes saber, a partir do problema que Beda
Alleman enfatiza desde as primeiras páginas de seu ensaio Hölderlin et Heidegger
([Hölderlin e Heidegger] PUF, 1959), como se dá o diálogo entre a filosofia e a poesia,
ou então ainda, « como o próprio pensamento se reencontra na poesia, e o que se passa
quando a poesia ressoa no pensamento »?
181
Haine de la poésie . Paris, Christian Bourgois éditeur, 1979. (N.E.F.) Ver aqui mesmo, “A jovem
parca”, de Jean-Luc Nancy. (N.T.)
discurso, para modificar uma frase de Wittgenstein. Essa ressonância é o eco de uma
certa sonoridade, talvez uma voz, talvez um chamado, que vou tentar situar – ao menos,
já que por outro lado fracasso em caracterizá-la – acrescentando um detalhe ao apólogo
platônico da caverna.
Nesse apólogo, sempre fiquei intrigado com o momento em que se destaca um dos
prisioneiros – que se tornará filósofo. Quem o destaca? Não está dito. É forçosamente
alguém que já é filósofo, já que ele vai dizer ao prisioneiro que o que ele via não era
senão « futilidades » (phluariai). É forçosamente um filósofo quem faz esse gesto de
libertação, em cuja violência Platão insiste: violência de fazer aquele que estava
acorrentado virar o pescoço e levantar os olhos. Mas quem terá libertado o primeiríssimo
futuro filósofo? Um outro, um não-filósofo, forçosamente. Quem? Não procuro
adivinhá-lo. Ressalto por outro lado que ele deve não somente violentar o prisioneiro,
mas lhe falar. Platão escreve: alguém « diz ao prisioneiro que o que ele via eram
phluariai ». Essa palavra designa de fato mais propriamente « tagarelices », « espuma
verbal » (há uma ideia de ebulição, de transbordamento, até de vomição). Certo, essa
palavra já faz ouvir o discurso filosófico, mas mais uma vez, quando do primeiro
episódio é preciso imaginar, ou uma antecedência infinita sobre si da filosofia (é a sua
lógica mais constante, de fato), ou então, apesar de tudo, uma outra voz, estrangeira ou
não ainda filósofa, que chama e que denuncia a tagarelice, a logorreia. O fundo da cena
está numa voz, por trás das imagens espetaculares dos jogos de sombras e do
deslumbramento do prisioneiro destacado. Essa outra e mesma voz que denuncia a
phluaria, não é a poesia? Ou então, se é cedo demais para falar dela, uma outra, próxima
e distinta maneira de interpelar para cortar de cara o fluxo? Ora, é isso que importa: o
chamado a uma língua que não espuma, que não propaga sinais sonoros, mas que fala e
que ensina, que revela ou que profere o que é falar.
Note, além do mais, que pode haver eco na caverna: isso foi dito um pouco antes.
Esse eco é como a sombra carregada das vozes dos passantes do lado de fora. Mas é
preciso justamente que tudo comece por um eco de uma voz vinda de nenhuma parte e
que interrompe o fluxo linguageiro, a futilidade linguageira, a fim de falar. Não um eco
enquanto reflexo, mas enquanto ressonância, porque isso não vem de um « fora » mais
« real », mas vem, de fato, do interior da caverna, do mais profundo dela (ou então, já
que é a mesma coisa, da simples superfície de sua parede). Eis o que ressoa no discurso
filosófico assim que ele abre a boca, no momento mesmo em que se põe a filosofar, em
que ele vai importunar o prisioneiro libertado com o inesgotável ti esti, « o que é? diga!
Diga, pois, o que é! o que é realmente! ». A ressonância, ela, faz ouvir: não diga o que é,
mas faça ser o seu dizer. Essa inversão quiasmática não é uma pirueta: é o esboço mais
simples, e com certeza também o mais pobre, do que faz ressonância entre poesia e
filosofia,
isca. dizer o ser ou ser (fazer ser) o dizer. O que ainda não dá nada mais do que uma
E. L.: Pois o que « resta », todavia, como ponto exato da tensão poética (ou do
poético?), é uma forma de afastamento que ela integra ao seu processo (à sua tekhnè,
ao seu poiein, ao seu fazer) — afastamento que a conduz a parar o pensamento nela, a
se retirar, como o senhor pôde escrevê-lo em Cálculo do poeta182, do espírito de síntese
ou de operação própria à filosofia, para apreender alguma coisa que, entre a
linguagem e o mundo, faz síncope…
J.-L. N. : « Síncope », sim, obrigado por me repassar essa palavra que amo faz muito
tempo. (Fiz dela o título de uma obra prevista em duas partes, cuja primeira tratou do
Kant não-poeta, precisamente, e cuja segunda jamais veio à luz (ela teria tratado da
terceira Crítica e da analogia, do símbolo, etc.). Houve síncope: esse outro volume se
distribuiu parcialmente em alguns ensaios. Talvez eu tivesse menos vontade de trabalhar
sob o modo mais sistemático do que teria sido requerido pelo meu plano inicial.)
Uma parada, sim, uma suspensão, um batimento, um tempo forte em silêncio. E uma
perda de consciência. Síncope contra síntese, ou mais precisamente, síncope no coração
da síntese, bem no meio. Podemos e devemos sempre nos perguntar se não há uma
síncope escondida no meio de cada síntese, exatamente como podemos e devemos nos
perguntar se não há um estranho e paradoxal parentesco entre a suspensão [relève] de
Hegel e o salto de Kierkegaard.
Mas aquilo que evoco desta maneira se produz em suma por surpresa na filosofia. A
poesia toma essa surpresa como objeto, tarefa ou proposta. O que quer dizer, muito
evidentemente, que ela se impõe a renunciar a todo « objeto », « tarefa » ou « proposta »
para deixar a surpresa surpreender. Mas eu disse justamente « para deixar »: a
dificuldade, a aporia, talvez caiba nesse « para ». O poeta não deve querer aquilo que a
poesia quer, sob pena de descambar no efeito (o silêncio ou a polissemia, a efusão, a
182
Cf. Des lieux divins suivi de Calcul du poète . Mauvezin : Éditions T.E.R. Trans-Europ-repress, 1997
[1987]. (N.E.F. ) Aqui mesmo, neste volume, « Cálculo do poeta ». (N.T.)
183
Nancy joga aqui com o sentido equívoco do vertbo “ sauter ” em francês, “saltar” e “desaparecer”. Uma
duplicidade equivalent e em português seria o verbo “dançar”, no sentido de “movimento com o corpo” e
na gíria, “perder”, “desaparecer”. Adotei como equivalente a fórmula meio idiomática “saltar (fora)”; que
condensa: “saltar fora”, i.e., sair; e “saltar”, pular. (N.T.)
184
Referência à noção formulada por Jacques Derrida, num ensaio célebre de mesmo titulo. Ver supra, p.
XX. (N.T.)
encantação: retorno em direção ao ódio da poesia). Mas deve querer ser surpreendido
em seu próprio querer. Ou então deve querer por surpresa.
Digressão: vou copiar aqui para o senhor uma citação de Sêneca transcrita num
pedaço de papel que anda por cima da minha escrivaninha há já não sei mais quantos
anos. Neminem mihi dabis qui sciat quomodo, quod vult, coeperit velle : non consilio
adductus illo, sed impetu impactus est. (« Tu não me mostrarás ninguém que saiba como
começou a querer o que quer: ele não foi conduzido a isso pela reflexão, mas impelido
por um ímpeto [poussée]. ») – Se amo essa frase, é porque sou muito sensível ao ímpeto
em questão, sem o qual sinto que eu permaneceria indefinidamente veleidoso. Ora, é
exatamente o mesmo ímpeto, a mesma sacudida, que eu sinto decidir da justeza do dizer
– e digo com precisão: não um achado ou uma invenção da palavra justa, coisa tão rara,
mas no mínimo um sentimento tão potente, tão agudo, de que em tal momento, em tal
lugar do discurso e da existência, é necessária, seria necessária, a palavra justa. Nem a
primeira nem a última palavra, mas a palavra justa do momento. Um kairós de língua.
O poeta deve ser técnico desse kairós. Uma tékhne kaírica, eis o osso poético –
entendo o osso como aquele dos crânios das Vaidades.185 Duro, ameaçador, que faz
obstáculo e dá a pensar. Uma tékhne que saiba lidar com o kairós, mas primeiramente
com aquele que permita captá-la ela mesma…
E. L.:
do O senhor
sentido deve escreve então, nopara
ser interrompido mesmo
quelivro, e diríamos
o sentido em consequência:
tenha lugar, para que seja«captado
o curso
na passagem – para que seja captada a unidade de um todo que é mais e outra coisa do
que o todo de seus momentos, sendo, ao contrário, a sua escansão comum e a sua
síncope ».186 A pausa [coupe]187 e o enjambement, pelos quais se distingue o poema da
prosa, seriam assim, enquanto medida do que excede o sentido (e, portanto, para além
de uma simples métrica contada), do que é distintamente fora de seu fora, o
arrancamento necessário pelo qual ela reencena « todas as vezes em uma » a sua
experiência…
J.-L. N.: A pausa, sim – o verso: versus, o retorno do arado na ponta do campo e os
versos como sulcos que voltam para trás em seu curso junto à clausura. Isso se opõe à
prosa que vai prorsus, sempre reto adiante – pro-vorsus, mantém-se a raiz ver-vor, mas
o « tornar » [tourner] ou « virar-se» [se tourner] tem lugar para frente unicamente e não
volta para trás [ne se retourne pas]..
Não me canso de explorar essa mina que é o étimo e o pensamento do verso. Ela me
encanta porque dá tudo a pensar: a suspensão do curso, a inversão, o retorno (em direção
185
A Vaidade é um gênero de natureza morta, muito comum no barroco sobretudo flamengo, que contém
invariavelmente, dentre outros elementos alegóricos, uma caveira, significando o vazio da existência
humana. (N.T.)
186
Supra, p. XX. (N.T.)
NR^ I$D(. 93"#5&; >.( 0)-(+8 -A ccA <#AKA=
a quê?), a passagem ao limite (a ponta do campo), o ritmo das idas-vindas, o labor…
188
Em francês “ vers ”, “verso”, e “ ver”, “verme” são homófonos. A frase no iriginal: “ le vers/le ver fait
entendre la mort .” (N.E.F.)
189
Nancy joga aqui com o duplo sentido do verbo “ entendre ” em francês, ouvir e entender. (N.T.)
N\a 4+'?).0 6+'+/A 9S 3*(.%&$ 3$ 2(+2+1./2$;A d/Y :'3$-!"'A K(+3A e.(+ f*D.*($A f*$ 3. 4+/.*($Y .3A
g+:+(8 N\\R8 -A QPRA <#AKA=
191
« Ser-para-a-morte”, tema em especial do primeiro capítulo da segunda seção (parágrafo 46 a 53) de
Ser e tempo de Heidegger. (N.T.)
phluariai. E nessas condições, é o que eu gostaria, sobretudo, de sublinhar: a « morte »
não é nada de oposto à « vida » – ou antes, não deveria ser questão senão das duas em
conjuntos, juntas e disjuntas, juntadas por sua disjunção – a síncope, sempre.
J.-L. N. : O verter na prosa, segundo a sua feliz expressão, é de uma delicadeza e de uma
ambivalência extremas. Mallarmé diz justamente que há verso em toda prosa. Mas é na
medida em que há volta do versus, por mais escondido que ele seja. Isso pode ser
questão de leitura. Um leitor pode escandir uma prosa que não mostrava seus versos. O
todo consiste, mais uma vez, em escandir de modo justo.
No possibilidade:
dupla movimento doouromantismo,
bem a novaque se reproduz
prosa crê abrirsempre de infinito;
um sulco diversas ou
maneiras,
bem, elaháevita
uma
essa armadilha da crença. Isso pode ainda se dizer assim: ou bem o « infinito » é
concebido como prolongamento indefinido do finito, ou bem é concebido ao contrário
como suspensão absoluta do finito sobre ele mesmo. É num sentido a oposição
hegeliana do mau e do bom infinito. O infinito da poesia, como aquele da surpresa
evocada mais acima, é instantâneo. Ele está instantaneamente em ato, e está aí o versus.
Oscilação do eixo horizontal da frase em eixo vertical – portanto, de um silêncio.
192
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy. L’Absolu littéraire. Théorie de la littérature du
romantisme allemand , com a collaboração de Anne-Marie Laing. Paris : Le Seuil, col. Poétique », 1978.
(N.E.F.)
193
Emmanuel Laugier joga com o duplo sentido de “ verser ”em francês, virar e derramar. (N.T.)
194
Emmanuel Lauglier usa o termo “ versement ”, literalmente “vertimento ”, em português, e diferente de
“versão” (“ version ”), substantivo derivado de “verter”, que não dispomos em português. Optamos pelo
infinitivo substantivado “o verter” para traduzir o sentido em português. (N.T.)
supostamente dado – uma necessidade renovada da pausa [coupe].
E. L. : De quê finalmente é feita essa atenção calculadora, e onde ela se choca, ela tem
alguma relação, mesmo que paradoxal, com a faculdade da razão?
J.-L. N. : Certamente. A razão dá razão, é seu ofício. Como dar razão da parada do
sentido, quer dizer, justamente da suspensão da razão? Mas, entenda-se bem, isso é
necessário e é possível: é o que faz a poesia. É assim que compreendo, ou antes, que
imagino o laço em Heidegger entre a análise do « princípio de razão » e a poesia. Não
constitui nenhuma dúvida de que Heidegger « poetizou » em excesso, que deu numa
celebração piegas e, além do mais, nacionalista (« o canto alemão » de Hölderlin) da
poesia. Resta que sua análise do « princípio de razão », de sua « incubação » no curso da
história do Ocidente e da atualização pela técnica de sua ausência de fundamento ou de
fundo não pode nem ser recusada nem riscada com um traço de pluma.
De fato, a razão kantiana, hoje revisitada, nos expõe isso: o comando de sempre visar
um mundo racional ou razoável, ao mesmo tempo despojando a razão cognitiva dos
meios de construir esse mundo (ela constroi objetos de conhecimento, não um
« mundo » como espaço de sentido), ou mesmo somente fazer um modelo disso (é no
fundo o que está em jogo na « típica » da segunda Crítica: a ideia de « natureza » não
pode fornecer um « esquema » organizador, mas somente um « tipo » distanciado para
indicar a forma de um mundo « moral »), eis uma problemática com a qual ainda não
estamos quites. O que não quer dizer que seja preciso voltar a Kant – ao contrário! Pois
o que quereria dizer um tal retorno? A qual « Kant »?…
Mas volto à razão: sim, absolutamente, a razão demanda a poesia. Ou seja, demanda
seu próprio excesso, que não é o seu esquecimento. A razão calcula seu próprio excesso,
a razão, portanto, excede seu próprio cálculo: perdoe-me, todavia, essa aparente
facilidade. Razão não é raciocínio. Kant sabia muito bem disso. Hegel, depois dele,
tanto quanto, para não dizer melhor. A poesia era aí, a cada vez, como o duplo incerto,
inquieto e inquietante, segundo os momentos, da razão raciocinante. Essa não é uma
questão pequena, se o senhor pensar no que « razão » quer dizer para toda a nossa
tradição. Se « poesia » permanece uma palavra tão potente, mesmo ao preço de
«recobertas
tentaçõespela
pegajosas », é exatamente
dita « razão ». na medida das potências inquietas e contraditórias
O que queria Platão, no fim das contas? Regular a poesia pela razão, e produzir uma
poesia racional – pois ele retoma todos os elementos da poesia para regulá-los segundo
exigências precisas. A filosofia como « o mais belo dos poemas », assim como o dizem
as Leis. Durante muito tempo, até o romantismo em definitivo, essa possibilidade de
regulação mútua, essa possibilidade de um « poema de razão » e de uma « razão
poética » existiu, ou bem nos parece ter existido. Ao mesmo tempo, a falha estava
sempre lá, já que ela consiste precisamente na distinção entre razão e poesia, ou então
entre duas razões, uma filosófica e a outra poética, ou então entre duas poesias, uma da
razão, a outra sem razão, etc. Todas as figuras dessa partilha/interferência existiram…
J.-L. N. : Não posso lhe responder segundo critérios formais nem a partir de referências
a autores, pois deveríamos a cada vez nos entregar a um exame preciso deles. Não os
conheço a todos no mesmo grau, nem os aprecio sempre talvez como o senhor. Percebo
sinais dos tempos, ou que penso ser sinais dos tempos, mas não pretendo ter uma
verdadeira visão do estado das coisas: estou longe disso! Leio movido por acasos, por
encontros… E sou também muito sensível a isto: que os textos são uma coisa, suas
leituras uma outra. Busco, antes, onde está hoje o lugar do juízo de gosto… Essa é uma
questão muito intrigante. Por um lado, não temos mais critérios (como dizia Lyotard),
por outro
mundo semlado temosNão
regras? todos e cada
é nada, masumo gostos
quê? Amuito
qual «marcados.
universal O
», que
comoé dizia
um gosto
Kant,num
ele
pode pretender? Adoraria ser capaz de apreender essa questão…
J.-L. N. : Sim, mas, de pronto, não vejo o que acrescentar… Senão que a questão do
« povo »», me importa.e Parece-me
na grande fútil afastá-la
mesmo imponente divisãocom
de um
seu aceno
sentidode– mão.
entre Como dizer? Oo
a população,
populacho, a multidão e a comunidade – persiste para mim a designar o lugar de uma
interrogação necessária: não podemos afastá-la por causa do nacionalismo ou da
etnomania. Há outra coisa. Ser sem povo, absolutamente – sem língua, sem história, sem
marcos… mas é tendencialmente aquilo que se gostaria de fazer aos deportados dos
campos. Então é preciso reler esse capítulo de Améry « O quanto tem-se necessidade de
Heimat196 ? » (cito de memória…). Sei que aí também muitos próximos me dizem
recusar essa palavra. Consinto nisso, mas o que diremos? Não podemos somente dizer
« a língua ». Uma língua pode ter mais de um povo, e um povo mais de uma língua. Não
sou em nada nacionalista ou regionalista, não tenho nenhum terreno de srcem, vivi
minha infância na Alemanha, depois no sul da França, vivo na Alsácia há trinta anos, em
suma… Mas nem por isso deixo de considerar que é necessário um espaço de marco
simbólico, não somente o « familiar »… e aliás este último corre sempre o risco do
infantilismo: literalmente a infantia que não fala; é necessário um espaço no qual e
graças ao qual falemos, sintamos, nos orientemos e nos aventuremos. Permita-me uma
leve provocação: povo e poesia – como tratar disso hoje? Negar a questão? Repetir com
Hölderlin « o canto alemão » ? Não, não! Mas eis aqui um verso de Mandelstam: « O
povo precisa que um verso misterioso o abrace » (19 de janeiro de 1937). Diremos que
seus poemas de então são suspeitos?… Mesmo se há aí algo verdadeiro, é bastante
insuficiente. Eu poderia dizer também que é um povo – o judeu – que carrega entre nós a
figura do não-povo por excelência, que essa expressão seja entendida com um valor de
196
Cf. Jean Améry, « Em que medida temos necessidade da terra natal ? », em Além do crime e castigo.
Tentativa de superação. Trad. Marijanne Lisboa. Rio de Janeiro : Contraponto Editora, 2013. (N.T.)
destruição ou ao contrário de elevação à dimensão mundial. Mandelstam é judeu; é
judeu e russo. Como ele compreende « povo » neste verso? Evidentemente segundo dois
sentidos misturados, russo e comunista… (o contexto do poema mostra isso melhor).
Mas dizer mais sobre isso daria todo um outro capítulo, e esta entrevista já começa a
ficar longa!
Todavia, eu gostaria assim mesmo de acrescentar o seguinte – e que seria talvez para
terminar o essencial: afastado do semantismo e do semiotismo, como o senhor diz, o quê
então? Mas a voz, e na voz ou do fundo da voz, o quê? Mas a ressonância daquilo que
faz levantar-se desejo e receio, uma ressonância a que se dava o nome de « lirismo », de
um nome que deve no mínimo sempre nos lembrar a proximidade com a música –
proximidade difícil, ambígua e incerta, como toda proximidade, mas inapagável. A
poesia não pode não ser exposta em um limite instável, até mesmo inconsistente, entre
palavra e música. Isso quer dizer « canto ». Seria necessário falar agora – …uma outra
vez – do canto (« alemão » ou não…). Mas também disto: que o canto seja de amor ou
de morte, os dois juntos ou alternados: quero dizer muito precisamente, não que o amor
e a morte (sua assonância em nossa língua…) sejam conteúdos ou temas líricos, mas que
eles (os « sentidos » dessas palavras, e de todas as suas combinações entre si) não têm
lugar senão na poesia, como poesia. E que a poesia não dê corpo a nada além deles,
desde a própria Ilíada, ou seja, ao que passa entre os dedos da filosofia (entre seus
dedos, não entre seus lábios, pois justamente, ela não os tem).
E. L.: Enfim, como e o que constitui a sua relação (penso nos pós- e prefácios escritos
para Dernière Mode familiale [Última moda familiar] de Philippe Beck197 e Météoriques
[Meteóricas] de Gérard Haller198, no artigo dedicado aos cantos em « prosa pausada »
de Basse continue [Baixo contínuo] de Jean-Christophe Bailly 199 ) com a poesia
contemporânea ou com aquilo que se escreve nesse campo do contemporâneo?
Eu queria evitar mencionar nomes, por receio de parecer, ou bem proceder a uma
lista de honra ridícula, ou bem exibir uma não menos ridícula antologia privada. Mas já
que o senhor o faz citando os nomes daqueles sobre os quais ou a propósito dos quais
tenho escrito, será justo acrescentar a eles, desordenadamente, Christian Prigent, Jean-
Paul Michel, Michel Deguy, Claude Royet-Journoud, assim como Pierre Alferi e Olivier
Cadiot, cuja revista efêmera foi a primeira ocasião de Résistance de la poésie e que
continuam cada um a seu modo uma exploração eficaz de nossas questões « poéticas ».
197
Cf. J.-L. Nancy, « Vers endurci », posfácio de : Philippe Beck. Dernière Mode familiale . Paris :
Flammarion, 2000. (N.E.F.)
198
Cf. J.-L. Nancy, prefácio de: Gérard Haller. Météoriques. Paris: Poésie Seghers, 2001. (N.E.F.)
199
Cf. J.-L. Nancy, « Poème de l’adieu au poème : Bailly ». Po&sie (Paris, Éditions Belin), n o 89, 1999,
p. 59-63. (N.E.F.)
Fico só com esses nomes uma vez que minha relação com eles é pública, e pertence, de
fato, à minha preocupação pela coisa « poesia », mas haveria outros dos quais eu não
saberia mesmo esboçar uma lista. Tantas vozes ouvidas na curva de uma revista, de um
livro recebido ou descoberto – vozes de mulheres, em particular (há algumas, aqui, neste
mesmo dossiê, e já que estou nesse ponto, nomearei pelo menos Ryoko Sekiguchi, cujo
poema está inserido em um dos meus textos200). Há aí uma abundância jocosa, até em
seus riscos ou em seus extravios. Tantas vozes ou versos que me tocam ou me
interessam: o « interesse » deveria ser construído como uma categoria não do gosto, mas
de um quase-gosto pelo tempo das dúvidas e explorações. Mas não há aí nenhuma
classificação, e não é uma cláusula de estilo. Há tantas obras que não conheço, e talvez
tantas bem mais consideráveis! Mas gosto muito da situação que é a do contemporâneo
enquanto tal: é um encontro marcado em estado bruto. Uma ocasião nos reúne, nenhum
critério nos precedeu, e nós nos experimentamos um ao outro… É em suma ready-made,
em cuja concepção, como o senhor sabe, o « encontro marcado» desempenha um papel
determinante. Não tenho nenhuma espécie de pretensão a legislar, por pouco que seja,
num tal domínio: que ridículo seria! É um prazer, um pouco, uma curiosidade, uma
sensibilidade ou, para dizer melhor, uma suscetibilidade, uma excitabilidade. Sou
suscetível a impressões que excitam, implicam, espetam ou enervam em mim algumas
cordas estranhas, das quais não sei e das quais no entanto creio muito bem saber por que
elas estão postas aí, falsamente paralisadas, ao lado dos teclados e tabuladores do
trabalho dos conceitos… Os sentidos do verso, do vertimento, da “chuvarada”
[averse]201 e do reverso. O reverso da filosofia… eis um tema… Mas filosofia e poesia
não tem um nascimento comum, estruturadas que são como um anel de Moebius ?
Uma última palavra: há nesse anel justamente ao mesmo tempo uma possibilidade de
angústia (não nos livramos dela) e uma disposição brincalhona (como um fort-da! que
remeteria sem fim uma à outra). A conjunção – ou quem sabe, mais, a identidade
[mêmeté] – entre angústia e jogo, eis o que a poesia tem a temeridade de assumir, ou
bem de… brincar202. Tornou-se para nós, hoje, muito difícil brincar, entendido em
modo nietzscheano, o « grande jogo do mundo » e a « divina criança brincalhona». Mas
ao mesmo tempo, que haja « jogo» no sentido, no mundo, nos mais cerrados dos
sistemas e no amor/morte, jogo no sentido de um conjunto brincalhão que não junta as
peças de maneira totalmente correta, isso também faz parte de nós hoje. Paradoxo: o que
resiste, é porque há brincadeira.
200
Cf. Ryoko Sekiguchi, Calque [Calco ]. Paris : P. O. L, 2001, citado por Jean-Luc Nancy em
« L’oscillation distincte » {« A oscilação distinta »]. In : Sans commune mesure (image et texte dans l’art
actuel) [ Sem medida comum (imagem e texto na arte atual) ]. Paris : éditions Léo Scheer, 2002 ; retomado
em Au fond des images [ No fundos das imagens ]. Paris : Galilée, col. « Écritures/Figures », 2003, p. 145.
Esse texto figura em alemão na tradução deste último livro e, retomado na mesma tradução de Emmanuel
Alloa, no coletivo Bilderfragen. Die Bildwissenschaften im Aufbruch {Questões de imagem. A ciência da
imagem em movimento ]. Hans Belting (dir.). Munich: Wilhelm Fink Verlag, 2007). (N.E.F.)
201
“Averse ” em francês é uma chuva abundante (N.T.)
"a" 9?"#&$;8 2.(1$ -$,*00G1*'$8 9D(*/'+(;8 9U$F+(;8 3.(*>+3$ 3. 9 @&#;8 U$F$;8 9D(*/'+3.*(+;A B 2(.':$
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5. WOZU DICHTER
A questão de Hölderlin não cessa de ser repetida. Sua repetição a confirma como
questão desesperada, assim como promete-lhe uma profusão interminável de respostas.
É entretanto remarcável que ao isolar essa questão – a ponto de reduzi-la facilmente a
suas duas primeiras palavras em alemão ( Wozu Dichter, por que poetas) – corremos o
risco de nos distanciarmos levianamente do pensamento de Hölderlin.
Este, com efeito, não isola essa questão, de forma que ela pode talvez ser lida em
seu texto como a simples subordinada da proposição que a precede.
Tudo é aqui questão de sintaxe e de pontuação. De um lado, é certo que “eu não
sei” tem já como complementos as proposições que precedem, posto que o texto diz:
Frequentemente parece-me
Melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Assim, permanecendo a esperar, mas o que fazer e o que dizer
Não sei, e por que poetas em um tempo de indigência 204.
203 Neste breve artigo, permito-me traduzir sem passar em revista as traduções – numerosas e em sua
maior parte de grande autoridade – nem dar no que concerne o alemão, salvo de maneira pontual, as
justificativas necessárias. Não faço obra de filólogo, nem tampouco, aliás, de filósofo de Hölderlin : nada
senão uma apostila convidando a prosseguir o trabalho. (N.A.) Traduzo aqui e adiante as traduções para o
francês feitas pelo própri o Nancy. Na tradução de Paulo Quintela, o verso lê-se assim : « Não sei; e para
quê Poetas em tempos de indigência ? » A tradução de Quintela introduz um curioso matiz portuguê s ao
Wozu alemão, ao pontuar a diferença entre « por que ? », que remete a uma causa, e « para quê ? », que
remete a uma finalidade. (Hölderlin. Poemas . Lisboa : Relógio d’Agua Editores, 1991, p. 261.) (N.T.)
204
Na tradução de Quintela, os versos se leem assim: “[…] Entretanto, às vezes melhor me parece/ Dormir
do que viver assim sem companheiros, ter/ De esperar assim; e o que fazer e dizer entretanto/ Não sei; e
para quê Poetas em tempos de indigência?” ( ibidem, idem .) (N.T.)
interrogação vem a Hölderlin por um treinamento que lhe faz decidir quase
involuntariamente pela ruptura, já que ele escreveu primeiro “e por que...” encadeando
com o que precedia.
O tradutor francês pode objetar que se esperava, na hipótese da subordinação, um
“nem” antes de “Por que”: “nem por que poetas...”. O que é exato em francês não vale
contudo, sobretudo em poesia, no alemão, para o qual esse “e” se alinha com o
precedente: “o que fazer e o que dizer... e por que...” (mais precisamente: o alemão tem
aqui apenas um único was (que), complemento de “fazer” e de “dizer”, o que impediria
ou tornaria mais difícil um “nem” (o qual poderia se destacar de maneiras diferentes,
weder...noch , auch nicht, mas não de maneira tão econômica como em francês).
Toda essa micrologia torna-se rapidamente cansativa. O que se quer extrair daí é
que o acento patétito do questionamento desesperado, ansioso, não é tão marcado, de
toda maneira, quanto somos habituados a perceber, pelo efeito de uma seleção abusiva
de uma única metade de um único verso. A dramatização da questão isolada falseia o
andamento do texto e desloca o acento de sua preocupação.
O mesmo ocorre com a apalvra “dürfig”, que se traduz frequentemente por “de
infortúnio”, quando “indigência”205 parece mais apropriado, inclusive com a sua
conotação social.
outras sobre
De umo seu
lado,contexto.
a estrofe 7 de Pão e Vinho não pára nesse verso. Ela prossegue em
um último dístico, onde está escrito:
Mas eles são, dizes tu, como os santos sacerdotes do deus do vinho
Que na noite santa se vão de país em país.
A verdade do Wozu poderia então ser achada, quanto a ela, no diálogo entre
“eu” que “não sabe” e “tu” que “dizes que”. Não sei por que há poetas em um tempo de
indigência, mas tu dizes que os poetas são os sacerdotes do deus do vinho. Não sei
porque há – ou haveria – poetas porque este tempo é o tempo em que o homem é
incapaz de “suportar a plenitude divina” como foi dito alguns versos acima. Só podemos
esperar a vinda do herois, cujos corações “sejam de força semelhante à dos Celestes”.
Eles virão, parece certo, mas na espera pode-se achar preferível dormir, já que não se
sabe o que fazer nem dizer.
Não se sabe o que fazer nem dizer assim como não se sabe por que poetas... Mas
talvez tampouco se sabe o que fazer nem dizer porque não se sabe por que poetas.... Mas
tu dizes o que eles são: tu sabes portanto o que dizer e eu não sei mo dizer a mim
mesmo, ouvindo-o de ti. Se tu sabes, isso não está ausente. Não é apenas uma lembrança
da Grécia. Tu o dizes no presente: eles são.
206
É preciso destacar que Philippe Lacoue-L abarthe, de que conhecemos a proximidade atenta para com
Hölderlin, escolhe u traduzir a sexta versão – revelando-a assim, se não abuso da coisa, ao público francês
– quando apresentou cinco traduções de Brot und Wien para fazer apreciar a evolução das abordagens do
texto hölderliniano. Ele o fez sem comentário, deixando o leitor apreciar, dentr e todas as outras
diferenças, o afa stamento considerá vel de que essa estrofe é afetada . Sou bastante tentado a pensar que
não lhe desgostava marcar uma certa distância com relação à antífona do Wozu Dichter .
Além do mais, eu o digo eu próprio no presente. O último dístico toma o cuidado
de colocar no topo a afirmação de seu ser: “Aber sie sind, sagst du...” (mas eles são,
dizes tu...) Essa afirmação permanece suspensa um breve instante como uma pura
atestação ontológica, independente de qualquer outra precisão. Primeiro eles são - os
poetas. E eis porque eles são também em tempos de indigência. Eis porque os há.
Eles são sacerdotes do deus do vinho e eles percorrem o mundo na noite. Ora, a
noite é precisamente o tempo em que nós somos: o poema inteiro é cantado na noite,
descrita na primeira estrofe, e cujo nome retorna nove vezes207 em todo o texto. O oitavo
verso de nossa estrofe disse que “o infortúnio da noite torna forte”. A noite é o tempo do
sono (duasno
nomeado, vezes
qualna
seestrofe evocada
distanciam e se ou invocada),
irrealizam paratempo
nós osdodeuses,
sonho,tempo
ele também
em que
dormir pode ser preferível a roer-se de impotência. Nessa noite, à beira do sono, ouço o
que o meu alter ego me diz dos poetas e de seu santo sacerdócio na santa noite208.
207
Contando-se a palavra « Mitternacht » (meia-noite).
208
Heilige Nacht são as últimas palavras da estrofe. Seríamos tentados a ouvir aí o muito famoso cântico
de Natal nascido na Alemanha ( Stille Nacht, heilige Nacht – Noite feliz, Noite feliz), mas ele foi composto
mais tarde que Brot und Wein, em 1818. O que não impede de pensar que a expressão era já recebida
como designação da noite de Natal.
209
Seria preciso começar por levar em conta o recente trabalho de Wolfram Groddeck, Hölderlins Elegie
Brod und Wein oder Die Nacht. Frankfurt/Main : Stroemfeld Verlag, 2012. (É necessário precisar que
Brod é o ortógrafo utili zado na época de Hölderlin para o que se escreve hoje, Brot [pão].)
Por mais frágil que seja essa incursão na prosódia, é bastante verossímil que o
ritmo tenda aqui antes a ligar o que precede a vírgula com o que a segue, acentuando
portanto o sentido de “não sei tampouco por que...” É a única razão pela qual me permiti
essa divagação. Não a levarei mais longe pois a teoria e a prática do que se denomina o
pentâmetro iâmbico e as estrofes asclepiadeu ou alcaico excede de longe aos meus
meios.
Mais modestamente, pode-se acrescentar o seguinte: o verso faz ouvir duas
aliterações ou assonâncias maiores. Uma remete ao hexâmetro que precede no dístico e
porta sobre o zu presente três vezes no primeiro verso, retornando no segundo com o
wozu e ressoando enfim no Zeit. A segunda se joga entre ich, nicht e Dicht-. Para
sublinhar o papel dessas ocorrências, comparar-se-á as sonoridades contrastadas dos
dois versos do dístico, já que o primeiro se apresenta assim:
Do fragmento, pouco escrever. Não é um objeto, não é um gênero, não constitui uma
obra. (A vontade
voltemos fragmentária
a isso. Mas de Friedrich
o que Blanchot Schlegel
nomeia é a vontade
exigência mesmaexcede
fragmentária da Obra, não
a obra,
porque excede a vontade.)
Fragmento: o texto é frágil. Ele não é senão isso [ça]. Isso se quebra, isso não se
quebra. No mesmo lugar. Onde? Em algum lugar, sempre em algum lugar, um lugar
inconsignável, incalculável.
210
Noli me frangere, em latim : « não me quebres, não me fragmentes »., construído a partir do modelo do
« Noli me tangere », « não me toques » , frase pronunciada por Cristo a Maria Madalena, após a
ressureição, no evangelo segundo S. João (capítulo 20, versículo 11-18), tradução de S. Jerônimo
(Vulgata). Jean-L uc Nancy dedica à frase e ao tema um livro, Noli me tangere (Paris : Bayard, 2003). (N.
T.)
211
Maurice Blanchot. L’Écriture du desastre . Paris: Gallimard., 1980. NRF, Nouvelle Revue Française,
nome de uma coleção da editora Gallimard. (N.T.)
O fragmento, enquanto fragmento s, tende a dissolver a totalidade que ele supõe e que
ele traz rumo à dissolução, de onde ele (propriamente falando) não se forma, à qual ele
se expõe para, desaparecendo, e, com ele, toda identidade, manter-se como energia de
desaparecer […] 212.
Não é somente o efeito de uma vontade de se proteger. Não mais do que o Noli me
tangere da Escritura. Não me toques, diz o Cristo ressuscitado, porque tu não o poderias,
porque tu não
querer nada saberias
daquilo queo se
que tocas, e um
denomina porque crês
corpo sabê-lo. Tu não podes saber nada nem
glorioso.
Sobretudo, não devemos crer que se poderia saber fragmentar. Que se poderia ser um
entendido em fragmentos. E que se poderia fragmentar. Ninguém fragmenta, senão
talvez esse Noli me frangere que toda escrita pronuncia: não me fragmentes, não queiras
me fragmentar – isso se fragmenta e isso me fragmenta bastante, não está à medida de
tua decisão.
Tudo isso está escrito na escrita fragmentária de Blanchot. Não há nada a acrescentar,
nada a cortar. Nada a dialetizar, nada a fragmentar. Sobretudo, não cair na armadilha
dupla da superdialetização e da superfragmentação. Blanchot suporta até o
extenuamento – até não mais suportá-la – a exigência arriscada de escrever justamente
entre essas duas armadilhas gêmeas. Assim, sua escrita também (e não somente seu
discurso) declara: Noli me frangere. Não quebres a minha insistência e meu murmúrio.
212
A versão srcinal do texto não comportava nenhuma nota nem referência: conforme a vontade dos
autores, esse caráter alusivo do texto é mantido aqui (N. E. F.).
Tu não tocarias mais no fragmento: ele já precedeu teu gesto e o meu, e os seguirá
sempre.
Para terminar, é o fragmento (os fragmentos, a exigência fragmentária) que diz Noli
me frangere. Não preservando nisso nenhum átomo puro, nenhuma obra indivisível –
mas sem relação, simplesmente, com operação alguma, em sentido algum. O fragmento
é indestrutível, quer dizer, a destruição é assegurada, e essa segurança não é uma
segurança – em todo caso não é uma segurança para saber algum, para sujeito algum.
Alguém escreve, alguém lê, alguns falam, algo toma forma, algo faz sentido, algo se
acaba em obra ou em fragmentos, em obra, isto é, em fragmentos. Ato contínuo, é
indestrutível: uma conversação tanto quanto um poema. O que é indestrutível é a
fragilidade mesma, mais miúda, mais trêmula, mais insustentável que qualquer
fragmentação. A fragilidade que há em tomar a palavra ou em escrever. Em abrir a boca,
em traçar uma palavra. É aí, é então que algo se quebra – em nenhum outro lugar, em
nenhum outro tempo. A fragilidade de um corpo glorioso (nem transcendente, nem
imanente, nem seu, nem meu, nem corpo, nem alma) quebra uma garganta ou uma mão.
Eleva-se uma palavra, um discurso, um canto, uma escrita. O corpo glorioso não cessará
de neles repetir essa ordem tão frágil quanto uma imploração: Noli me frangere.
……………………………………………………………………………………………
……
— Então?
— Estou dividido, hesito… Noli me frangere, bem. Mas é um pouco: « Não o toques,
ele está quebrado» – e esse lado Sully Prudhomme especulativo…213
— Não, claro. Porque ao mesmo tempo, é o polo não irônico (ou ainda, mais
« irônico ») de meu Schweben,214 reconheço aqui alguma coisa. Se você quiser, aquilo
que me chama a atenção é a que ponto o fragmento está ligado a uma emoção do
pensamento.
— Ou seja?
— E sua « comoção» [émoi], que seria não obstante melhor aqui que « emoção »
[émotion].
"N_ René Armand François Prudhomme, dito Sully Prudhomme (1839-1907), poeta parnasiano francês.
Nancy e Lacoue-Labarthe se referem ao poema “Le Vase brisé” [“O Vaso quebrado”], metáfora do
coração partido, que se termina com este dois versos: “Sa blessure, fine et profonde;/ Il est brisé, n’y
touchez pas”.”[“Sua ferida, fina e profunda;/ Ele está quebrado, não o toques.” (N.T.)
214
« Schweben », “flutuar”em alemão. (N.T.)
215
Referência ao livro L´Absolu littéraire: La Théorie de la Littérature dans Le Romantisme Allemand [ O
absoluto literário : a Teoria da Literatura no Romantismo alemão ] de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-
Luc Nancy (Paris: Seuil, 1978). Um capítulo do volume, “A exigência fragmentária”, foi traduzido em
Terceira Margem. Estética, Filosofia e Ciência nos séculos XVIII e XIX . Revista do Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura , ano VIII, nº 10, 2004. Tradução de João Camillo Penna. (N.E.)
— Sem dúvida. Com a condição de mantermo-nos convictos sobre o sentido estrito:
perda de meio (ou sobre o chiste [Witz]: comoção [é-moi]). Não poderia ser: E eu [ et
moi]!216
— Sim, há pouco, é nisso que eu pensava também: o fragmento como uma espécie de
espasmo do pensamento. Hoje, naturalmente, se falaria imediatamente de gozo.
— Sim, no fundo, por que não? Na perda de gozo há, é verdade, um movimento
irreprimível de imploração. Mas a imploração é contraditória: ao mesmo tempo
« Toque-me (perca-me) » e, com efeito, « Não me toques (ajude-me, proteja-me) ».
— Justamente: se o seu Noli me frangere é justo – e o creio justo –, é não obstante o que
faz do gozo um « momento ». Na realidade, no início, minha reticência estava neste
ponto. Tenho
especulação a impressão
sobre de que esses fragmentos consolidam paradoxalmente a
o fragmento.
— Então, escreva! Decidimos assinar este texto a dois. Por que não fazer suceder aos
fragmentos um diálogo, no gênero do Gespräch,217 porém mais curto?
216
Os interlocutores jogam aqui com a homofonia em francês entre “ émoi ”, “comoção”, e “ et moi ”, “e
eu”. (N.T.)
217
“Gespräch ”, “entrevista”, em alemão. (N.T.)
218
A grafia arcaica de abyme com “y” sugere a referência à mise-en-abyme . Ver supra a nota XX na
página. (N.T.)
— De fato, vá saber… Talvez não seja o pior meio de desfazer a armadilha do especular.
— Pois bem, meu caro Lothario! À pena ! Cubra-nos com os hieróglifos de sua divina
escrita uma ou duas dessas pequenas folhas pelas quais você tem tanta afeição. Para
mim será um prazer – e um dever – responder-lhe.
Longe de mim a intenção de reprová-lo por isso: sei como o senhor que é preciso
uma vigilância extrema nessas matérias (quantas fracas repetições, hoje, da escrita
romântica; quantas fracas especulações miméticas!); e aliás sou-lhe grato por creditar
Blanchot de ter evitado (ou sabido evitar?) as duas « armadilhas gêmeas » da
« superdialetização » e da « superfragmentação ». Entretanto uma dialética – mesmo
suplementar, mesmo negativa – permanece uma dialética. Ou seja, uma economia. No
fundo, compreendo mal a frase de Blanchot sobre a qual o senhor se apoia porque, se
sigo o seu pensamento, ela lhe parece traduzir da melhor maneira possível « a exigência
fragmentária » (por oposição à « vontade fragmentária » dos românticos); não entendo o
« manter-se como energia de desaparecer » – essa espécie de suspensão relève [ ]219
negativa que seria insensata se não se mantivesse, precisamente, uma energia: uma
operação [mise en oeuvre]. Há, ainda aí, vontade (é, aliás, evitável?), e portanto também,
provavelmente, um cálculo, o ardil de um último cálculo: o do incalculável. É a sua
dialética indestrutível que pronuncia o Noli me frangere… De minha parte, eu me
perguntaria antes, ou seja, mais brutalmente, se não é a própria energia, a vontade de
obra, que dá lugar à fragmentação. A obstinação com vista à obra. Seria exemplarmente,
mas aquém de sua « vontade fragmentar », o que se passa em Schlegel. E em todos
aqueles que tão simplesmente sofreram220 a fragmentação – que eles não queriam.
LUDOVICO : Lothario, o senhor me leu muito bem, tanto quanto talvez tenha entendido
mal uma das minhas intenções. Et pela mesma razão. É exato, com efeito, que meus
fragmentos são um discurso. Acrescentarei que a « mise en abyme » – tão tentadora, tão
219
"Relève" é a tradução proposta por Jacques Derrida para a Aufhebung hegeliana. Sobre o termo ver
supra, a nota XX na p. X. (N. E.)
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insidiosa e imperiosa nessa ocasião – do fragmento deveria segundo creio manifestar a
irresistível reconstituição do discurso, à qual a vontade fragmentária não escapa: mais
ainda, à qual ela se curva de antemão sem o saber. Mas é também assim a esse título que
Blanchot me surpreendeu e interrompeu um primeiro esboço sobre o qual eu tentava
expressamente discorrer. Pois eu via, numa passagem tal como a que citei, uma singular
ressurgência dialética, e muito precisamente, como o senhor disse, a manutenção de uma
visada da obra. Semelhante ao Espírito hegeliano, a energia da obra – se o senhor me
perdoar essa expressão redundante – seria aqui o que se mantém na morte fragmentária.
Que Blanchot, por conta disso, escreva justo ao lado do dialético significa precisamente
também que ele repete, se quiser, o contorno externo do dialético. E que pedimos todos,
assim, para não ser quebrados.
Mas ao mesmo tempo eu tentava ler ou entender essa mesma dialética como uma
confissão, como a confissão (e não a vontade) de uma fragilidade do discurso, que o
discurso confessa ao mesmo tempo que suplica que o poupem. Energia é uma palavra
tão estranha nesse contexto que é preciso sem dúvida também lhe dar o sentido (se é um
« sentido ») de uma renúncia à energia. Eu quis falar de « dialética negativa » no sentido
em que Adorno escreve: « A dialética é a consciência rigorosa da não-identidade »221. O
livro de Adorno é ele também, à sua maneira, escrito em fragmentos. Sem vontade
visível de fragmentar, mas pelo efeito, parece-me, de uma atenção extrema, quase
insustentável, à oposição aguda, em Hegel, da dialética ao « ponto de vista da
consciência», a qual conduz à sua identidade tudo aquilo que difere dela mesma. Adorno
tenta (não digo que consiga, não faria sentido) não manter a contradição, mas suportar
a sua ruptura. O negativo nele e o fragmento em Blanchot tentam converter maestria
[maîtrise] em prova222. Apesar de tudo. Como se houvesse um além de Hegel e do
absoluto romântico, o nosso além (passo além,223 o senhor sabe…), onde mais nada se
quer, mas onde se trata de provar [éprouver] a não-identidade. De suportar assim o peso
do pensamento e da escrita. E que começa, paradoxalmente, no coração da identidade, lá
onde o discurso e a consciência suplicam: Noli me frangere, confessam que isso [ça] já
se fragmentou, que uma interrupção ou uma suspensão teve lugar, e que não remeteria a
uma totalidade, que não quebraria uma unidade, já que esta não é produzida. Um
fragmento que fragmenta – nada. Mas não sei se entendo essa prova como o senhor
entende o fato de « sofrer » a fragmentação…
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223
Le Pas au-delà, é o título de uma obra de Maurice Blanchot. (Mauri ce Blanchot,. Le Pas au-delà.
Paris: Gallimard, 1973). O título é equívoco, significa ndo, ao mesmo tempo, “O passo além” e “O não
além”. literalmente dialético, no sentido de que ele realiza em si o próprio sentido da “dialética”
blanchotiana. Sobre a noção cf. Abaixo, a nota XX, p. XX. (N.T.)
convém perfeitamente; e tudo o que sugere a propósito de uma tal prova, creio possível
fazê-lo meu – não somente subscrevê-lo. Creio saber – por « saber » nenhum – o que é
suportar a não-identidade, ser votado à suspensão, a essa ruptura ou cesura que sempre
já teve lugar (como o que nunca teve lugar). Reconheço isso como o « difícil », o
« infactível » – a pena. Em meu pathos, que nunca está tão distanciado do seu, direi:
escrever, pensar: nada acontece.
Há, portanto, certamente um mal-entendido entre nós. Ele está onde o senhor o situa,
mas não somente aí. E para aproveitar a bola levantada, preferiria falar, se tenho que
fazê-lo, de mal-estar. O que me constrange de fato, veja – talvez tivesse valido mais que
eu o dissesse de saída –, é a sua referência ao « corpo glorioso ». A ressurreição, em
qualquer registro que seja (místico, especulativo), me é impenetrável. Nada me choca
mais no cristianismo. Eis por que minha mística, se há algo como uma mística em mim
(o que no fundo duvido muito), tem pouco a ver com essa espécie de « teologia
negativa » que o senhor me parece ostenta e da qual não posso me impedir de suspeitar a
absoluta positividade. Constrange-me em suma que por um truque [tour] lógico ou
retórico suplementar, como que acarretado por um movimento, diríamos hoje, de
« maximização », o senhor reforce, sob a aparência de combatê-la, a mística do
fragmento. Se não nos decidimos sobre o que está em jogo na fragmentação – e nisso
estou totalmente de acordo com o senhor –, não é sob a injunção silenciosa
(terrivelmente eloquente) do « corpo glorioso » da escrita. A indecisão é uma pobre
experiência.
LUDOVICO: Pobre experiência… é preciso na verdade que eu lhe conceda. Ou antes, não
tenho nada aqui a lhe « conceder », como se se tratasse de debater tese contra tese. O
senhor fala daquilo em quê ou por quê todas as teses, todas as posições de discurso, se
desmoronam, mas silenciosamente – ou num murmúrio obstinado –, esquivando até o
evento desse desmoronamento. Blanchot não cessou de assombrar essas paragens, por
meio da escrita ou do pensamento. Isso se prova [s’éprouve], e quase não se pode dizer,
ainda menos se justificar. Há – é isso que acontece – um esgotamento do discurso – um
esgotamento da linguagem – que não pode nunca ser conhecido, nem reconhecido, e, do
qual é preciso dizer, no entanto, que o seu desconhecimento vota o discurso à vaidade.
Não é uma mística do inefável, pois não há aí o segredo de um sentido escondido, de
uma Palavra além das palavras. É, antes, uma mística da fragilidade pela qual só se
revela o que o senhor me perdoará de chamar, apesar de tudo, uma verdade na palavra
do homem (não há outra). Não recuso, como vê, a palavra ‘ mística’. Eu a colocarei, ao
contrário, e para fazer eco à sua prece, sob o patrocínio de uma palavra mística, a de
Mestre Eckhart: « Oremos a Deus para que possamos ser livres e quites para com
Deus ».
Se isso ainda lhe cheira muito a teologia negativa (mas a diferença para com a
mística, ainda que bem real, é sem dúvida infinita para ser produzida no discurso…), é
preciso, enfim, Lothario, que eu faça uma confissão a respeito de meu « corpo
glorioso ». Não deduzi o discurso desses fragmentos a partir de um pensamento do
corpo glorioso. Mas ao contrário, a frase do Evangelho, sozinha, veio primeiro ao meu
ouvido. Noli me tangere , nesse latim carregado de velhas sonoridades da Igreja, de um
tom de salmodia e de recitação sagrada. Não saberia lhe explicar a razão disso. (Seria
porque L’Écriture du desastre [A Escrita do desastre], tendo interrompido meu trabalho,
tendo-me tocado da maneira complexa como eu lhe dizia, me fazia dizer: não me
toques? Eu o ignoro.) Mas essa frase se impôs, com a pálida lembrança de um relato,
que vou agora lhe relembrar: Maria de Magdala se encontra no túmulo, e, vendo Jesus,
de pé, não o reconhece. « Jesus lhe diz: “Mariam”». Virando-se, ela lhe diz em hebraico:
« Rabbuni! », o que quer dizer « Mestre! ». Jesus lhe diz: « Não me toques, pois ainda
não subi para o Pai, mas vai para os irmãos… ».
O senhor percebe o quanto esse relato – que João é o único a fazer – é feito de uma
extrema e pudica fragilidade. É uma prova [épreuve], uma alegria e um desaparecimento
ao mesmo tempo. E o corpo glorioso, que incomoda o senhor, brilha nele com uma
glória tão pobre que ele não é nem reconhecido nem designado como tal. Confesso que
não recusei o que uma frase frágil, um fragmento de som e de sentido, me trazia desta
maneira. Mas no que toca ao corpo glorioso, eu o escrevi, não há nada a saber nem a
tocar. Ele está aqui, e se esquiva. Eu quis menos fazer uma alegoria da escrita do que
experimentar [éprouver] a maneira com a qual essa frase, esse relato, seu sentido
espiritual e sua emoção fugitiva, se suspendiam, se fragmentavam, instantaneamente. E
a ideia da « glória », de um fulgor invisível… Creio que se escreve sempre, não somente
para a glória, mas nessa glória esquiva. Eu lhe falava justo agora do peso do
pensamento: na palavra hebraica que diz a « glória » bíblica, há a ideia de um peso, de
uma gravidade…
LOTHARIO: Esse « corpus », se ouso dizer, não me é muito familiar. O senhor o sabe:
esqueci realmente bastante. Exceto, no entanto, essa personagem de Maria Madalena
que, por toda a sorte de razões (dentre as quais algumas pouco confessáveis), sempre me
foi – como dizer? – muito « próxima ». É estranho aliás, eu não a sabia implicada no
caso do Noli me tangere (estranho e, sob um certo ângulo, perturbador). Isso vem talvez
do fato de que, para mim, ela é em primeiro lugar uma figura – secreta, enigmática – da
pintura. Se quiser: a imagem da mulher associada – lembrança imemorial – à luz de La
Tour.224 De fato, é a minha imagem do amor; ou o belo em si.
LUDOVICO: Ousaria dizer que ela não me repele? É preciso fazê-lo, por minha própria
conta e risco. Não a reivindico e não a erijo por oposição ao fulgor retido, evanescente,
totalmente interiorizado, como o senhor parece indicar. Diria, antes, que a fragmentação
responde para mim ao fato de que não há (ou não há mais) interioridade. E por
conseguinte, com efeito, a algo de barroco. A passividade à qual ambos nos referimos
pode se concentrar ou se dispersar. Por incapacidade talvez para deixá-la se concentrar,
vejo-a se dispersar nessa fragmentação barroca da qual soube falar o Benjamim do
Trauerspiel225 (o romantismo tendo sem dúvida misturado, em proporções variáveis, as
duas fragmentações). O barroco deixa a perda da totalidade orgânica como interioridade
e se entrega ao « caráter inacabado e quebrado da physis sensível e bela ». Por certo, na
própria ruptura e na intermitência, nas bruscas imobilizações e nas simultaneidades
surpreendentes, nos jogos de espelhos e de chamalotes226, a escrita se vê novamente
« preocupada com a maior complacência em desenvolver sua energia própria ». Eu não
deixaria de reivindicar (não para « mim », mas para a « literatura ») o risco dessa
complacência – e a(jogo,
certo, chiste. Este possibilidade de que ela
achado, colisão do se quebre, e voe
heterogêneo) estáem estilhaços
bem próximo. Haveria aí, é
da dialética,
nós escrevemos isso. (O senhor lembra também que Heidegger em seu Schelling fala da
« transposição romântica da dialética idealista».) 227 Mas ele não está ausente de
nenhuma escrita. Simplesmente, isso não depende da sua vontade – e nisso estamos,
parece-me, de acordo. Há esse insigne desfalecimento do querer, ou do projeto, que faz a
fragmentação – ou a escrita. Ela me entrega a uma espécie de devastação, de fato
estilhaçante, da qual não está excluído o jogo, por derrisão ou por júbilo. O senhor me
parece, sobre esse ponto, se recolher, e devo confessar que de minha parte é o
recolhimento que esqueci, ou que jamais conheci. O que é apenas, sem dúvida, nada
mais do que o sinal dos tempos modernos… Não sei dissociar o fragmento, por fim, da
clausura do mundo moderno.
— Pois bem, tenho a impressão de que seria melhor se ficássemos por aqui.
Curiosamente aliás, com essa maneira de proceder, terminei por dizer, creio, o que eu
queria dizer.
224
Georges de La Tour (1593-1652), pintor francês. (N. T.)
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226
Ludovico joga aqui com a paronomásia, « miroir », « espelho », e « moire », « chamalote. (N. T.)
227
Martin Heidegger. Schelling . Paris: Gallimard, 1993.(N. T.)
— E o fragmento póstumo de Schlegel do qual o senhor tinha me falado, não fez nada
com ele?
— Mas?
— Sim e não.
— Em todo caso, em seu texto, isso funciona. Quando penso que você me aprontou, no
fim, aquela história da interioridade, do recolhimento. E se eu tivesse aprontado com
você a da piedade? Retive-me para não enfeitar com um Ad majorem scriptionis (ou
cogitationis) gloriam… Mas sejamos sérios. Não sei se é isso que você procurava dizer
afinal, mas quando fala do fragmento como sinal da « clausura do mundo moderno »,
parece-me que você toca em algo de justo.
— Eu queria
Moderno. dizer: oarrancá-lo
É impossível fragmento, mesmo em Blanchot, marca demasiadamente o
ao Moderno…
— Entendo. Não, o fragmento como gênero é ainda a vontade de fragmentar, com tudo o
que isso acarreta: a literatura, em sua delimitação mesma: a letra do sujeito. Com
Barthes, chama a atenção: Montaigne, a recorrência do auto-retrato. E quanto ao
apagamento anônimo de Blanchot…
— Um dia, será preciso no entanto que nos decidamos a distinguir com um mínimo de
rigor entre literatura e literatura.
— Exatamente!
Ainda falamos muito sobre essa questão, – naquele dia, mas também mais tarde.
A quem ou a que ele ou ela responde, a tradição deu muitos nomes. Houve a
Musa, o Furor poético, o Gênio com ou sem maiúscula, a inspiração, algumas vezes
a missão ou a vocação, algumas vezes ainda uma necessidade da alma ou da mente,
uma graça do céu, uma injunção sagrada, um dever de memória ou de esquecimento,
um auto-engendramento do texto. Mas o nome mais antigo é thea no primeiro verso
da Ilíada: « Canta, deusa, a cólera de Aquiles… ». Nesse incipit da literatura
ocidental o poeta pronuncia apenas a primeira frase – ou, no mais, as frases que
levam à questão:
e de Zeus « Qual
») engaja deus
todo os lançou
o poema, emnaque
guerra? » – e ouvir
é preciso a resposta
que (« O filho de
doravante Leto
é Thea
quem o canta.
O próprio Homero não escreve: ele deixa a voz divina cantar. Ele, o aedo,
canta enquanto interpreta o canto divino – esse canto que Homero pede a ela para
cantar (« menin aeide thea… »): ele assim faz o que espera que ela faça a fim de se
eclipsar ele mesmo nesse canto – o seu (dela) se tornando o seu (dele) mas
permanecendo sempre esse canto divino. Ele deixa, pois, a voz cantar; ou então, ele a
faz ouvir, ele a recita. Sempre, desde então, aquele que escreve não escreve de outro
modo que se deixando ditar em vários sentidos desse termo. Dicto é dizer repetindo,
insistindo, é também comandar, prescrever. Quem escreve se deixa injungir a
escrever: ele responde a um comando, até mesmo a uma objurgação, ou então, a uma
exortação, a uma excitação ou a uma pressão. Mas também recebe o ditado: ele deita
por escrito o texto que compõe e recita para esse fim uma outra voz, uma voz que
nãodiktieren
de escreve, uma vozoque
(ditar), arqui-escreve.
outro verbo dichten palavra dictare
Da (compor , o alemão
um escrito, tirou, ao lado
singularmente um
poema). Aquele que escreve responde de uma maneira ou de outra, por eco ou por
execução, por transcrição ou por tradução, à ditadura de uma dictatio. Aquilo que,
na Ilíada, parece manifestado como a resposta de Thea – da thea, de uma thea não
nomeada, não identificada –, é de fato, ao inverso, a resposta do aedo ao ditado da
228
Emmanuel Loi. D’ordinaire . Romainville: Al Dante, 2000, p. 7 (Esse livro se compõe das cartas
e diários de um preso).
229
Philippe Lacoue-Labarthe. Phrase . Paris : Christian Bourgois éditeur, col. « Détroits », 2000, p. 17.
voz divina: mas, precisamente, essa resposta se dá por sua figura invertida pela razão
de que em verdade é o aedo quem responde – ou então, mais verdadeiramente ainda,
há apenas resposta a uma resposta, e ninguém nunca começou.
Quando Hegel afirma que uma verdade escrita não perde nada ao ser conservada
fora da circunstância singular de sua enunciação – assim, « anoitece » pronunciado
ao meio-dia – não quer dizer que a verdade não seja da ordem da verificabilidade
empírica, mas é justamente da ordem do endereçamento e da ressonância. Se digo
« anoitece » ao meio-dia, o que é, pois, que quero dizer e qual escuta pode se engajar
ao encontro do meu dizer?
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Dizer « anoitece » à meia-noite enuncia alguma coisa, mas não anuncia nada: ou
então, essa frase anuncia um sentido que deve ultrapassar a significação referencial
imediatamente atestada. Do mesmo modo, essa frase dita ao meio-dia – ou seja, essa
frase escrita – anuncia um sentido que, antes de mais nada, se subtrai da referência e
sinaliza para outra coisa. Essa « outra coisa » consiste, antes de mais nada, no
endereçamento da frase e na ressonância através da qual ela se endereça: poder-se-ia,
aliás, dizer em francês que ela engaja o seu sentido mais em seu fraseado do que em
sua significação. O fraseado designa a maneira ou a arte de articular, em escrita ou
em música, os conjuntos considerados como unidades de sentido: é o canto do
sentido.
O canto do sentido não é outra coisa que o sentido ele mesmo. O sentido não é a
significação ou a designação – a remissão233 por um significante a um conceito
significado e ele mesmo suposto fora-da-língua: é, antes, a abertura da estrutura e da
dinâmica da remissão em geral, pela qual alguma coisa como uma remissão
significante pode ter lugar: remissão de significante a significado, ele mesmo
acompanhado de uma remissão de significante a significante, segundo o jogo das
diferenças na língua, e enfim, ou para começar, da remissão de uma voz a uma
escuta, sem a qual nenhuma das duas remissões precedentes poderia nem mesmo ter
lugar, já que tanto uma como a outra, e uma através da outra supõem, em suma,
possível o entendimento (no duplo sentido da palavra em francês234 – em alemão,
poderíamos dizer a obediência ou o pertencimento a – gehören, gehorchen – outros
modos da «resposta »).
Se eu quero dizer quer dizer, antes de tudo, que eu quero me dizer e assim
imediatamente que eu quero lhe dizer, que eu quero lhe dizer « eu » e assim
imediatamente lhe dizer « você », a você que no meu querer é, pois, já aquele que me
diz « você» para me chamar a dizer e a lhe dizer « eu ».
Se o responsável é aquele que responde não a, mas por ou para, é porque é aquele
que se engaja assim, indiretamente ou de maneira mediata e diferida – diferida, mas
prometida, engajada –, a responder àquilo que poderia ser demandado ao tema disso
ou daquilo cujo responsável assume a responsabilidade. O responsável toma a seu
cargo e em sua conta o engajamento de um outro – o engajamento que um outro não
pode tomar ele mesmo – ou bem o engajamento que o estado presente das coisas
torna impossível tomar em todo conhecimento de causa: ao declarar-me responsável
de um projeto, por exemplo, eu assumo o imprevisível que ele comporta. A
responsabilidade é resposta antecipada a questões, a demandas, a interpelações ainda
não formuladas, e não exatamente previsíveis.
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9(.1.2.(50.;A <#AKA=
236
“Canta, Thea”. (N.T.)
Quem escreve se constitui como responsável pelo sentido absoluto. Ele não se
engaja a nada mais nada menos do que na totalidade e na infinidade desse sentido.
Ao mesmo tempo, ele testemunha sobre a existência de thea e toma sobre si seu
desejo: o desejo que ele tem de thea e o desejo que é a própria thea.
Testemunho da existência de thea, ele próprio se declara como sendo seu aedo, ou
seja, também seu hermeneuta. O hermeneuta não é de saída aquele que decifra e
decodifica as significações, ainda que ele tenha também, por vezes, que fazê-lo – e
Mas, assim, aquele que escreve não testemunha somente sobre a existência de
thea: testemunha também sobre sua natureza, e que esta é inteiramente feita dessa
partilha das vozes da qual ele é, ele que escreve (ou ela), uma parte, um momento,
um sotaque [accent] e um sentido ao lado de tantos outros.
Aquele« que
de Rimbaud: escreve
É muito nãoé pode
certo, nãoo fazer
oráculo sua,238no».tempo
que digo em que escreve,
Ele pronuncia a frase
essa frase sem
arrogância alguma, mas igualmente sem restringi-la ao ângulo derrisório de uma
subjetividade. A certeza é aqui a verdade do engajamento e da responsabilidade no
sentido e para com o sentido. O oráculo é aquele que fala em nome dos deuses. Este
oráculo – o oráculo escritor – fala em nome da sempre mesma divindade, thea,
237
Cf. J.-L. Nancy. Le Partage des voix . Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 1982.
238
Em francês : « C’est très-certain, c’est oracle, ce que je dis », Arthur Rimbaud. « Mauvais sang » .
Une saison en enfer , em : Œuvres , Paris, Garnier, 1987, p. 214.
aquela que não tem nome, aquela que não tem nem mesmo o nome impronunciável e
que não é « divina » em nenhum outro sentido senão no sentido em que a sua
verdade se partilha, aqui e agora, nessa palavra singular que se engaja abrindo a boca
(oraculum) para deixar passar o sentido – ou melhor: que se engaja abrindo a boca ao
sentido, nos dois sentidos da expressão.
generalidade
um « sujeito”sob
[“je” ] 239.) A
feições de verdade
particularsó–pode
no lugar
vir aodesentido
se abrirseà lhe
remissão
é dadosingular
acesso de
ao
seu corte [coupe]240 e ao seu toque. Esse toque que corta, que incisa com uma escrita
o espaço indiferenciado e a boca fechada, só pode vir do fora. Esse fora não é aquele
de uma autoridade nem de um espírito que sopra. É o fora no qual e para o qual a
responsabilidade se engajou: esse fora no qual, logo de saída, não há nada, e no seio
silencioso do qual nenhum deus, nenhuma musa, nenhum gênio faz vigília – nem
vigia. É esse silêncio do fora que detém toda autoridade e que exala toda inspiração.
Num sentido – num sentido totalmente primeiro – esse fora é aquele do próprio
sentido absoluto enquanto ele é estranho a toda significação, e por conseguinte
primeiramente à língua ela mesma: à língua, em todo caso, formada, composta e
articulada na ordem das significações recebidas e mesmo das significações possíveis.
A verdade vem da língua já perdida ou ainda por vir. Ela vem da voz que se
deseja
primeiroe seafastamento
busca atrás que
da voz – no
sobe atéfundo da garganta,
os lábios, lá onde
mas que os alábios
incisãoainda
abre não
um
conheceram. Ela vem como um por-vir de língua: uma língua inaudita, uma feição de
língua que não terá lugar senão essa vez, uma inflexão, um sotaque ou um estilo – ou
seja, a incisão gravada por um estilete. Não é uma cinzeladura, é verdadeiramente
uma incisão praticada na língua toda feita pela lâmina de um fora que é feito ao
mesmo tempo de não-língua e de língua por vir ou de desejo de língua.
Para vir do fora, para responder a esse fora e para responder por ele, é preciso que
a incisão deva alguma coisa à sorte, à surpresa e ao kairós, o momento favorável
cujo favor consiste em se oferecer somente àquele que se expõe ao fora, e que, por
"_\ S 3*H.(./%+ ./2(. 9,"-; . 9@&; 0. -.(3. .1 -$(2)F)G08 +1D$0 $0 -($/$1.0 0./3$ 2(+3)X*3$0 -$(
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"Pa I$D(. $ 2.(1$ .?)@>$'$ 93"#5&; 'HA + /$2+ cc /+ -A ccA <#AK=
conseguinte, assim veio a não mais querer seu querer-dizer: a deixar esse desejo ser
tocado pelo favor de um excesso sobre todo « dizer » possível.
Mas para se deixar dispor a esse favor, à sua raridade, é necessária uma retração
de língua. É preciso ter sido conduzido para aquém da língua: lá onde a linguagem
ela mesma sabe já – sabe sempre-já, lá onde ela se forma, lá onde se esboça um ser
passível de sentido, um ser suscetível ao sentido – que não há nada a dizer, em
definitivo, nada que não envolva de alguma maneira um nada de significação, e que
por esse nada toque na coisa mesma, na coisa em si, quer dizer, na coisa fora e na
coisa do fora.
Quem escreve responde a essa coisa e responde por essa coisa. Essa coisa é ela
mesma thea: ela é o sentido e é o desejo de dizer, é a partilha infinita disso. Ela não é
a massa inerte que subsistiria fora da linguagem como um « real » que a linguagem
não saberia atingir. Não: ela é o fora que a linguagem ela mesma entalha nela mesma
e apresenta em cada verdade à qual a linguagem dá lugar ou na qual ela põe fogo.
Cada vez que venho ao mundo, cada dia, portanto, minhas pálpebras se
erguem sobre o que não se trata de denominar um espetáculo, pois logo eu estou
preso ali, metido, enredado, por todas as molas de meu corpo que se adianta no
mundo, que incorpora o seu espaço, suas direções, suas resistências, suas aberturas,
que se move nessa percepção de que ele é apenas o ponto de vista a partir do qual se
organiza esse perceber que é também agir. O ponto de vista não tem nenhuma
dimensão, como todo o ponto. E ele é, como sabemos, ponto cego, mancha que
permite que em torno dela se disponham as perspectivas, as relações, o próximo e o
longínquo. Ponto de fuga obscuro que se mantém no fundo de mim – “no fundo”, no
sentido do fundo do quarto - do pano de fundo que eu poderia representar como um
ponto, isto é, como um não-espaço alojado, justo atrás do espaço que se desenvolve
como a minha cabeça, o meu crânio, as minhas costas e todo esse aquém de si
mesmo, de onde um corpo que percebe e age se sabe carregado e projetado.
Desse ponto, portanto, não há espetáculo possível, mas somente o
engajamento, o baralhamento no mundo, as atrações e repulsões, as travessias e
obstáculos, as tomadas e desprendimentos, penhoras e alienações. Estar no mundo é
todo o contrário de estar num espetáculo. É estar dentro, não em frente. Aliás, o que
nos habituamos a denominar, mesmo fora do círculo filosófico, “estar no mundo”,
traduz o alemão in der Welt sein, com o qual Heidegger se empenha em significar
que in
um , um
lhe “em” que–precisamente
preexistiria não é de inclusão
mas de copertencimento – de
dos dois um “sujeito”
e mais no “mundo”
precisamente sob o
modo do que ele denomina o “ser-jogado” [“être-jeté”] – Geworfensein241, onde se
deve ouvir ao mesmo tempo o jato [jet], a projeção nessa queda que faz “se encontrar
aí” e o esboço – Entwurf – a projeção de um gesto, de um andamento possível do
existir – a existência ela mesma não sendo nada senão a reposição em jogo seus
próprios esboços.
Fiz esse pequeno desvio por Heidegger apenas para destacar o quanto, na
mais potente insistência sobre a primazia do “ser-para”, do ser como dedicado,
lançado, devotado, mobilizado em seu ser pelo fato mesmo de ser, somos o menos
concernidos possível pelos fenômenos da representação – a qual demanda um
“sujeito”, para o qual ela tem lugar, sujeito que só pode ser, no que toca ao existente,
perfeitamente secundário, derivado e limitado (por exemplo, sujeito de um saber,
sujeito de uma concepção ou de uma visão). Na medida em que se trata assim de
dissociar tão profundamente quanto possível a ordem do existir das ordens do
conhecer, do representar, do figurar e também do medir e do avaliar, para reconduzi-
241
O « Geworfenheit ” heideggeriano foi traduzido em francês por Emmanuel Martineau por “ être-jeté ”,
“ser-jogado”, “ser-l ançado”, que poderíamos quase traduzir por “ser-ejetado” ou “ser-dejeto”. Na tradução
de Fausto Castilho a noção foi traduzida por “dejecção”. Na passagem de Ser e tempo , Heidegger fala do
“caráter-de-jacto […] da dejecção”. Da mesma forma, a diante, o “ Entwurf ”, traduzido em francês por
“projet ” e por Fausto Castilho por “projeto”. Na tradução, se perdem os jogos com o verbo “ jeter”,
“jogar”, “lançar”, “ejetar”, inscritos no trecho: “ être-jeté ”, “jet” (“jato”), projet (“projeto”), “ projection ”
(“projeção”), mas que se inscritos na tradução de Castilho, “ejecção”. Martin Heidegger. Etre et Temps .
Trad. Emmanuel Martineau. Édition numérique hors-commerce; tradução brasileira: Ser e tempo . Trad.
Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp/ Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p. 501, p. 413. (N.T.)
los todos, sem negá-los, mas em última instância, à condição do existir, é preciso
fazer o registro do que assim começou, de maneira irreversível, a época em que o
“sujeito” foi “desatracado” - como as penínsulas de Rimbaud – desamarrado,
destacado dos “antigos peitoris” e jogado, projetado em direção a um outro momento
desse destino bem singular de que somos, nós e o mundo, a destinação infinita.242
Em compensação, esse envio sem reserva nem retorno não nos impede de
destacar que falta algo nessa descrição do existir. Não somente não somos impedidos
de fazê-lo, mas somos mesmo conduzidos, de maneira bastante precisa e também
bastante insistente, a ressaltar essa falta. Aquilo de que se trata se diz simplesmente:
a existência
ou quer também
de seu ser-jogado. Faz se encenar.
parte de seuIsso fazmundo.
ser no parte do seu projeto, de sua projeção
Sem dúvida Heidegger não o ignora - seria fácil demais emprestar-lhe uma
visão tão curta. Contudo, essa necessidade da encenação não é nunca tematizada nele
como tal. Ela passa, sem dúvida, pela atenção dada por ele à arte em geral, à poesia
em particular, mas sem qualquer dúvida essa atenção não toca no teatro. Esse ponto
foi sublinhado por Philippe Lacoue-Labarthe, para quem ele consistia em um ponto
decisivo, na distância que ele fazia questão de tomar, no seio de sua proximidade,
para com Heidegger. Ele ressaltava em particular o quanto, nas considerações deste
último sobre Hölderlin, o teatro não intervinha nunca, enquanto a sua importância
para o tradutor de Sófocles e autor de A morte de Empédocles não pode não saltar
aos olhos.
Eu não irei mais longe na pista das questões que eram as de Lacoue-
Labarthe. Elas permanecem as dele. Mas recebo dele essa indicação: o existente quer
se encenar, e esse querer (desejo, pulsão, como se quiser) pertence ao próprio existir.
Veremos mais tarde,
detenhamo-nos sobresea primeira.
o pudermos, como justificar a segunda proposição. Por ora,
E retomemos a cena da minha vinda ao mundo. Cada vez que ela tem
lugar, cada dia, portanto, minhas pálpebras não se erguem somente sobre o não-
espetáculo do mundo percebido, experimentado, agido. Elas se erguem também, ao
mesmo tempo, sobre essa escuridão que eu disse, primeiramente, ser mancha cega,
situada no fundo ou atrás de mim: elas se erguem assim não para mim, para o meu
olhar, mas para o olhar possível de um outro, de uma multidão de outros. Olhar
possível e sem dúvida certo, pois mesmo na estrita solidão, faço também parte dessa
multidão de outros. Faço parte dela no mínimo como aquele que sabe que não lhe é
permitido ver aquilo sobre o qual essa cortininha dupla vem se erguer: meu olhar.
Mas fazendo isso, sou como um espectador que não conseguiu um lugar no teatro e
que mesmo assim não deixa de saber o que falta: no interior do recinto fechado e
sobre o fundo encostado à escuridão do resto da cidade, a cortina se ergue sobre uma
cena, isto é, sobre o espaço próprio de uma vinda em presença. Pouco importa o
número de personagens, a intensidade da iluminação, a fatura do cenário: trata-se
242
Nancy glosa aqui trechos de “O barco bêbado” de Arthur Rimbaud. Em especial a terceira estrofe :
“Dans les clapotements furieux des marées,/ Moi, l’autre hiver, plus sourd que les cerveaux d’enfants,/ Je
courus! Et les Péninsules démarrées/ N’ont pas subi tobu-bohus plus triomphants.” Na tradução de
Augusto de Campos: “Imerso no furor do marulho oceânico,/ No inverno, eu , surdo como um cérebro
infantil,/ Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico/ Viam turbilhonar marés de verde e anil.” Mas aqui
se perdeu o jogo “ marré ” (“maré), e “démarrer ” (“desatracar, ligar, dar a partida”). Augusto de Campos.
Rimbaud livre . São Paulo: Ed. Perspectiva, col. Signos, 2002, 2ª edição, p. 29. (N.T.)
unicamente de uma vinda em presença, e de representação nesse sentido, isto é, de
um intensivo da presença.
Quando esse outro não é eu mesmo mas um outro si mesmo que se encosta
por sua vez na mesma escuridão por si mesmo - que se sabe tendido à mesma
impossibilidade de se ver e de se saber “mesmo”, a não ser pelo único ponto de fuga
de sua mancha cega -, quando o outro, portanto, me vê e me ouve, ele sabe que está
em um espetáculo. Não no espetáculo que denominamos “do mundo”, com o que
designamos mais frequentemente uma espécie de panorama da percepção desdobrada
diante do sujeito, e que faz parte, em última análise, do ser no mundo desse sujeito, e
sim um espetáculo
apresenta. no sentido
Ele recebe, mais dodo
queteatro: ele vê
percebe, que uma presença
a intensificação dessasepresença,
encena eisto
se lhe
é, a
sua encenação.
Não é necessário recorrer aos sentidos carregados dessas palavras –
“espetáculo”, “encenação” – e pensar em todas as tomadas de papel, nas paradas e
fanfarronadas, nas maneiras de se exibir e de tirar vantagem, na ostentação e na pose.
É suficiente experimentar o mais simplesmente e o mais discretamente possível o
seguinte: o que denominamos um “sujeito” vem em presença, isto é, ainda uma vez,
em “representação”, segundo o valor intensivo, e na verdade srcinário e próprio, da
palavra. Nesse sentido, um sujeito é um corpo.
a forma do comum
dificuldade , aquilo
de pensar que
-, esse sem dúvida
“com” toda sempre
corre ainda a modernidade tempermanecer
o risco de a maior um
lado a lado de sujeitos. Não recuso tampouco, longe disso, a importância da
frequentação, da copresença e do comparecimento. Como tampouco a dessa outra
dimensão, ortogonal, de uma certa maneira, que é a do face a face e que nos remete à
tradição do “eu e você” (Buber) e ao “rosto do outro” (Levinas).
O que importa dizer aqui é de uma outra ordem, anterior de uma certa
maneira e exterior a toda espécie de comparecimento, seja o lado a lado ou o face a
face. Trata-se da condição pela qual pode haver presença. Presença ao mundo, é
claro, mas o que é o mundo senão uma disposição de presenças, estando entendido
que em “disposição” há tautologia – o simples espaçamento – e dinâmica – vinda e
retirada, chegada e partida, a presença não consistindo nunca na pura posição, na
situação com as suas coordenadas, mas na exposição, na apresentação, a vinda, a
aproximação e o afastamento? A palavra “presença” se constroi sobre um “pré-“ de
proximidade e não de anterioridade. O presente não é nem diante nem antes, mas à
beira [auprès]. É por isso que ele é tanto temporal quanto espacial: nem antes nem
depois, mas à beira, chegando à beira, e a espacialidade do “à beira” é ela mesma
uma espacialidade temporal, uma vinda, uma aproximação.
244
Antonin Artaud. « Le théâtre alchimique ». Le Théâtre et son Double . In : Œuvres , Paris : Gallimard,
col. « Quarto », 2004, p. 532 ; trad. brasileir a : O teatro e seu duplo . São Paulo : Martins Fontes, s/d, p.
49-50.
245
Ibid. É Artaud quem sublinha ; na tradução brasileira, p. 52.
246
Ibid., p. 534 ; tradução modificada (p. 52).
247
Ibid; tradução brasileira, p. 53.
Assim, os corpos são expostos não pelo acidente mas pela essência. A dis-
posição é a natureza de sua posição no ser e o dis- carrega com ele o ex-: os corpos
são dispostos partes extra partes, segundo a característica da extensão para
Descartes. Mas ainda aí, a exterioridade não é simples falta de interioridade ou de
presença a si: ela é condição da copresença dos corpos, ou do seu comparecimento,
que é simplesmente a regra e o efeito da criação.
Se eu ousasse eu diria que o teatro já começou nos espaços intersiderais ou
então no espaçamento infinitesimal das partículas, pois já se engajou ali o drama,
como diz Artaud, ou seja, antes de mais nada, a ação, o ato de uma consumação que
responde
do sentido:a uma espera (serviço,
do “dizível” culto, responsabilidade).
desse comparecimento das coisasAque
espera é com efeito
chamamos já a
“cosmos”.
Mas me será suficiente dizer que o corpo falante vem no meio dos corpos
como a manifestação dessa espera. E que dessa vez, com o corpo falante, o teatro é já
verdadeiramente dado ou pré-dado.
Este corpo se apresenta ao se abrir: isso se denomina “os sentidos”. Mas
ao mesmo tempo que eles recebem informações sensoriais, os sentidos as emitem por
sua própria conta, se posso dizer assim. Mais uma vez, o olho vê mas também olha.
Olhando ele expõe, ele joga diante de si alguma coisa do que, para ele, é ver e ser
visto. E sempre, além do mais, saber não poder se ver. Tudo isso se dá em um olhar
desses olhos, em que, como o escreve Proust, “a carne torna-se espelho e nos dá a
ilusão de nos deixar, mais do que as outras partes do corpo, que nos aproximemos da
alma”248.
A frase de Proust, como um todo, não é destituída de estranheza, pois se é
possível que eu me veja nos olhos de um outro, não é na verdade essa função de
espelho ótico que justifica a frase. Ela diz, antes, na verdade, que nos olhos do outro
eu me vejo a mim mesmo olhando, e por conseguinte também olhado – e sempre
segundo essa fundamental extro-versão que não me fará nunca me ver e que por isso
mesmo não me expõe absolutamente.
Mas “as outras partes do corpo”, como diz Proust, não oferecem tampouco
elas próprias aproximações da alma. Minhas mãos, minhas pernas, meu pescoço,
minhas posturas, meus portes, meus gestos, minhas caras ou meus ares, o timbre da
minha voz, tudo o que poderíamos denominar a pragmática do corpo, tudo sem
dúvida, tudo sem exceção sobre toda a superfície da minha pele e de tudo com o qual
posso recobri-la ou orná-la, tudo expõe, anuncia, declara, endereça alguma coisa:
maneiras de vir à beira ou de se afastar, forças de atração ou de repulsão, tensões
para tomar ou para largar, para engolir ou para rejeitar.
“Minha pele torna-se assim teatro de si mesma”, escreve Mohammed
Khair-Eddine, que continua: “O que explica o fato de que um ator ou um simples
dizedor seja movido pelas pulsações cuja significação srcinal ele próprio ignora.” 249
Em todas essas maneiras de se abrir e se fechar, de se colocar e deslocar,
de se dispor, de se impor ou de se esquivar, um corpo engaja um drama que não tem
nada de “pessoal” nem de “subjetivo”, mas que é a cada vez a dramatização singular
248
Marcel Proust. À l’ombre des jeunes filles en fleurs , À la recherche du temps perdu , t. 5. Paris :
Gallimard, 1919, p. 220 ; tradução brasileira, loc.cit., p. 427.
249
Mohammed Khaïr-Eddine. Soleil arachnide et autres poèmes . Nova ediçãao apresentada por Jean-Paul
Michel. Paris : Gallimard, col. « Poésie », 2009, p. 120.
de seu distanciamento singular em meio de outros corpos – jogado que ele é com eles
no cosmos.
Os afetos são aqui segundos (o amor, o ódio, o poder, a traição, a
rivalidade...), ou então, antes, são apenas modulações e transcrições da grande tensão
primordial entre os corpos: como eles se empurram um para o outro e se repelem,
como eles se tomam e retomam. Ou seja, como eles se relacionam uns com os
outros, não “através” do incorporal que os distingue – mas como esse mesmo
incorporal. Lugar, tempo, sentido e vazio (por “vazio”, compreendamos a ausência
de corpos desaparecidos ou bem não nascidos) são a matéria e a força da relação. (É
evidentedeque
mesmo nãocorpo:
cada distinguo,
cada aqui, entre asrelações
uma dessas relações dos corpos
passa entreé si
pelo outro, e a relação
a lógica do a si
comparecimento e da (re)presentação.)
Um lugar onde se engendra e se leva o tempo próprio de uma apresentação
(de corpo: esse complemento poderia ser elidido) enquanto pressões de sentido entre
os vazios de suas existências fortuitas, um lugar em que essa própria fortuitidade vira
necessidade de drama e em que o vazio assume a consistência de uma coletânea de
sentido – isso é o que denominamos uma cena.
A skene, sabemos, é inicialmente um abrigo leve, de fortuna, para se
retirar, dormir, beber, festar entre amigos, por exemplo em um barco. É um lugar de
intimidade e é diante desse lugar, tornado o fundo obscuro do teatro, o verso do
cenário, é sobre o proskénion que os atores se apresentam, saindo por uma das portas
dispostas na frente do cenário. (Não me deterei sobre a “obcena”, cuja etimologia é
por demais discutível para permitir algo mais do que solicitações de ressonância.
Permanece o fato de que longe da semântica toda a exposição tende à obcenidade.)
Diante do abrigo íntimo que se balança de uma certa maneira para fora do
espaço, em uma mancha cega, abre-se o espaço em que devemos sair, onde o corpo
se põe diante de si – pois toda a sua presença está ali, nesse fora de si que não se
destaca de um “dentro” mas que o evoca somente como impossível, o vazio fora do
lugar, do tempo e do sentido. “Si” torna-se assim: personagem, máscara, maneira,
andamento, exposição, apresentação – ou seja, variação singular da deiscência e
distinção pela qual há um corpo, uma presença.
250
A. Artaud, dans Œuvres , op. cit. , p. 1662.
“Minha fome” é o meu apetite, o meu desejo, minha pulsão, ela que lança
os impulsos dessa “vida sombria” íntima, intestino que transmite cadência, ritmo,
toda essa “dança” que responde ao batimento profundo – “metafísica, mística” – ou à
“torção” que não responde a nada senão – “dialética irredutível” – o próprio pôr no
mundo, a criação na sua espessura, na coagulação, a condensação e a distinção.
Que essa dança não seja exclusivamente física mas pertença também ao
texto, à palavra do teatro e sobretudo à troca de palavras, de endereçamentos de
palavra, e que a literatura teatral receba disso seus traços mais próprios - não tenho
tempo para me deter nisso. O que conta é que no teatro o texto está em corpo, ele é
251
Vale a pena ir ao teatro para ver alguma coisa que acontece . O senhor entende! Que
acontece definitivament e! Que começa e que termina 252!
A passagem
apresentando o começosee apresenta
o fim de umapresentando
sentido: uma sentido
sua chegada e a sua partida,
que consequentemente
não pode se realizar em significação, mas que é sentido da passagem, do ato de
passar. Sentido da duração inteira de uma presença e como duração escandida pela
subida e pela descida da cortina, ou seja, da não-espessura da verdade que cai no
través do sentido.
O que ignoramos, portanto, o parecer-desaparecer, chega ali, no espaço-
tempo do lugar em que se profere o sentido entre corpos – pois o sentido só pode ter
lugar “entre” e de um para o outro, só pode ser sentido de um pelo outro. Esse
espaço-tempo é o que denominamos “cena”, é oproskénion sobre o qual os corpos se
adiantam para apresentar o que todo o corpo faz enquanto corpo: apresentar-se em
seu aparecer e desaparecer, apresentar a ação – o “drama” – de uma partilha de
sentido.
Há início e fim, há – é a própria cena, que se abre e se fecha – o tempo
próprio dessa (re)representação. Tempo que não é de sucessão mas de passagem,
breve dilatação de um instante retirado no curso do tempo (assim, adivinha-se na
regra clássica das três unidades algo de menos formal do que parece).
Na boca de um personagem – designado como “criatura de teatro”-, Jean
Magnan põe as seguintes palavras:
251
Em todo esse trecho Nancy joga ainda com o duplo sentido do verbo “ arriver ”, em francês, ao mesmo
tempo “acontecer” e “chegar”. (N.T.)
252
Paul Claudel, L’Échange , Paris, Mercure de France, 1964, p. 166.
Aqui, entre esses três paredes,
sem espelho que me faça crer em
qualquer quarta,
Insone.
253
Jean Magnan. Un peu de temps à l’état pur . Genebra : Philippe Macasdar éditeur, 1987, p. 71.
254
Heiner Müller. « Adieu à la pièce dialectique ». In : Hamlet-Machine. Tr. fr. Jean Jourdheuil e Heinz
Schwarzinger. Paris : Minuit, 1985, p. 67.
que “o Teatro apresenta o Discurso do Outro255”, o teatro é a duplicação da presença
na medida em que ele põe em presença os presentes ou enquanto apresentacão de seu
ser-presente. O corpo é já ele próprio apresentação: um corpo, com efeito, não
consiste simplesmente em um “ser” – o que quer que queiramos pôr sob essa palavra
-. mas ele articula esse ser em aparecer ou bem indexa-o sobre um ser-aí que implica
a copresença – distância, proximidade, interação – com outros corpos. A teatralidade
procede da declaração da existência – e a própria existência é o ser declarado,
apresentado, não retido em si. É o ser dando sinal de si mesmo, dando-se a sentir não
em uma simples percepção, mas como espessura e como tensão.
Eisdizer
porque 256
eles vão lhe tudoHamlet
.” O pode dizer:
sentido “Os atores
particular dessanão
falasabem
dentroguardar um segredo,
da tramoia teatral
do príncipe da Dinamarca não faz mais do que duplicar o seu alcance geral. O teatro
é a cessação do segredo se o segredo for o do ser em si ou bem o de uma alma
retirada em sua intimidade. É o em si mesmo ou a intimidade como tal que sai e que
se expõe. Nada além do “mundo como teatro” como nós bem o sabemos, desde
Calderón e Shakespeare, mas tal que na verdade toda a nossa tradição – desde pelo
menos a caverna de Platão – a repisou, mas esse “mundo como teatro” enquanto
verdade, na medida que e por que o corpo se arroga à verdade da alma: verdade que
se empurra ela mesma na cena ou mais precisamente verdade que faz cena.
Nesse ponto, não é mais possível evitar de retornar ao que subtende e
talvez sempre sustente um teatro, qualquer que seja ele: a saber, alguma coisa como
um culto.
Brecht dizia que foi ao sair do culto que a tragédia nasceu, querendo
sublinhar com isso o caráter decisivo da “saída”257. Isso era no entanto também ficar
cego ao do
sentido queformalismo
toda a saídae da
levaobservância.
consigo. UmÉ culto não é simplesmente
em primeiro um ritual
lugar uma conduta no
regrada
pelo encontro com alguma coisa como um mistério, um segredo, uma parte
reservada, cuja aproximação o ato cultual permite (que nos aproximemos dela e que
ela se aproxime de nós). É a vinda em presença do que de si mesmo permanece
retirado.
Um culto se ordena assim sempre em torno da espera de que alguma coisa
aconteça, de que alguma coisa tenha lugar, produza-se e apareça do fundo de um
inaparecer essencial. Isso se denomina “sacrifício”: sagra-se, faz-se sagrado. O corpo
teatral é esse corpo que torna sagrada a própria presença – isto é, como se queira
dizê-lo, sua alma, sua criação também, sua inscrição cósmica, sua glória, seu gozo,
seu sofrimento, sua derrelição: em uma palavra, seu comparecimento como signo
entre signos.
255
François Regnault. Petite Éthique pour le comédien . Paris : Les Conférences du Perroquet, vol. 34,
março
256
de 1992.
Hamlet . Ato III, cena 2. Tr. fr. Yves Bonnefoy. Paris : Gallimard, col. « Folio », 1957, p. 118.
257
Florence Dupont, por seu lado, insiste sobre a proveniência cultual – nos ritos dos ludi – da comédia
latina. Para ele, em definitivo, essa comédia segue um verdadeiro ritual cuja celebração consiste em pôr
em cena – em todos os sentidos da expressão – as circunstâncias e os códigos do sério ordinário da vida.
Ela vê, ao contrário, em Aristóteles, aquele que se obriga, distanciando-se completament e do ritual
dionisíaco, a por o teatro sob a ascendência do mythos , ou seja, do relato, no qual, pela mimesis e a
catharsis , se joga a função do teatro ( cf. Aristote ou le vampire du théâtre occidental . Paris : Flammarion,
2007). Não entro nesse debate : observo somente que mímesis e catharsis representam sem dúvida,
também em Aristóteles, mas a despeito dele, as transformações e portanto os prolongamentos da
celebração ritual..
Todos os cultos comportam uma teatralidade, mesmo se o teatro só é o que
ele é deixando todos os cultos (inclusive o seu próprio, ou os seus, como ele não para
de fazê-lo). Mas o que permanece cultual no teatro, o que em um sentido bem
preciso se sacrifica nele (ou bem se ludifica nele, para remeter uma vez mais à
comédia romana) é o corpo falante – a palavra corpórea, não o relato, mas o
endereçamento, a sinalização dos corpos e portanto também o gestual, toda a física,
ou até mesmo a fisiologia, a energética e a dinâmica – a “biomecânica” para jogar
com a palavra de Meyerhold – que fazem propriamente a cena.
Tambem seria preciso dizer não tanto que o culto precede o teatro e o
engendra, mas
teatralidade nãoantes quenem
é aqui o corpo-teatro precede
religiosa nem todos
artística os cultos
– mesmo se ae religião
todas asecenas.
a arte A
procedem dela. Ela é a condição do corpo que é ele próprio condição do mundo: o
espaço do comparecimento dos corpos, de suas atrações e de suas repulsões. “Cada
cultura deu a si mesma, em espetáculo, os cumes mais altos da mestria do corpo em
movimento”, escreve Yves Lorelle, no início de seu estudo sobre o corpo e a cena.
Aquilo de que devemos tomar tenência é que uma “cultura” consiste precisamente na
possibilidade de reunir, de formar um modo do espetáculo, isto é, de apresentar e de
significar isso: desde que há mundo, há corpos que se encontram, que se afastam,
que se atraem, que se repelem, que se mostram uns aos outros, ao mesmo tempo que
mostram atrás deles, em volta deles, a noite incorpórea de sua proveniência.
We never believe that one is dead. We know that he/she is, but we cannot believe it.
Freud is wrong asserting that we cannot believe in our own death, for we believe in no
death. This is beyond any belief, any sharing out, any mimesis and methexis.
But we are right. I believe Philippe is not dead, for I hear his voice within mine –
like some other voices, the one of Jacques’own among them. Within what I will read for
you, he is speaking, with and without me, for me, against me, apart from me, resounding
forever in me258.
258
Esse parágrafo em inglês, assim como as duas notas seguintes, foram pronunciadas por Jean-Luc
Nancy, quando da leitura do texto em Nova York, no colóquio « Honoring the Work and Person(s) of
Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007) » [« Em honra da obra e da(s) pessoa(s) , de Philippe Lacoue-
Labarthe »], organizado por Avital Ronell e Denis Hollier. Universidade de Nova York (NYU) e Escola
de Direito de Cardozo, em abril de 2008. (N.E.F.) « Aqui na América – talvez não ‘nos E.U.’, mas na
América, como Jacques Derrida o afirma em « a desconstrução é a América », isto é, o mundo que ainda
devemos descobrir – aqui, então, Philippe de fato teve muitos amigos. Muitos dos quais estão aqui.
Alguns já faleceram, como Eugenio Donato, que era próximo a ele, como Danielle Kormoz, que foi
também uma amiga americana. » (N.T.)
Nunca acreditamos estar mortos. Sabemos que ele(a) está morto(a), mas não acreditamos. Freud
estava errado ao afirmar que não podemos acreditar em nossa própria morte, porque não acreditamos em
morte nenhuma. Isso está além de qualquer crença, de qualquer compartilhamento, de qualquer mimesis
ou methesis.
Mas estamos certos. Acredit o que Philippe não está morto, pois escuto a sua voz dentro de mim –
como algumas outras vozes, a do próprio Jacques, dentre elas. No que eu vou ler para vocês, ele está
falando, dentro e fora de mim, para mim, contra mim, separado de mim, ressoando para sempre em mim »
(N.T.)
Philippe cujo desaparecimento não está isento desse trágico de que ele fazia a
tonalidade maior de seu pensamento e de sua vida – de sua vida sempre
dolorosamente consciente de rumar para a morte. Doloroso foi-lhe também, como a
toda uma tradição cuja tenacidade ou resistência não cessa, apesar de tudo, de me
surpreender, de se saber vindo tão tarde após a tragédia: isto é, após esse momento
que acreditamos bendito de ter sabido dizer – cantar, representar, interpretar – a
maldição dos mortais. Desse momento grego em que, bem antes, Homero ainda
podia dizer que os deuses fomentam a ruína dos homens a fim de que estes possam
ser cantados. Em um sentido misterioso e terrível, Philippe chamava sobre si mesmo
essa vontade dos deuses.
Eis-me aqui portanto, seis anos depois, em sua ausência como o foi em sua
presença – eu o revejo me olhando, um leve sorriso às vezes nos lábios, pensando:
“sim, eu sei, Jean-Luc, eu sei o que você pensa sobre a minha nostalgia dos
gregos...” Estávamos em Estagira, a cidade natal de Aristóteles, escolhida de
propósito. Pois já Aristóteles – cuja teoria da tragédia Philippe e eu já tínhamos
discutido tanto – vinha após a própria tragédia. Muito antes de nós, que parecíamos
ao cabo dessa história, mas já após o tempo do canto trágico, que doravante seria
preciso compreender, raciocinar e justificar. Aristóteles é já um teórico e uma
espécie de historiador da tragédia, mas ele está apenas no início de uma história bem
longa.
Ora, toda essa história, e o próprio conceito tal qual ele foi elaborado
muito tempo após Aristóteles, consiste essencialmente em vir após. A dimensão do
após lhe é constitutiva e se posso dizer congenital. O começo ou a arkhé, o proteron,
o principium ou o initium constituem, por definição, o que lhe escapa ou bem aquilo
de que ela só pode se assegurar se apropriando e decidindo-se a ser ela própria o seu
próprio começo, a sua fundação e a sua srcem. Ambas as postulações insustentáveis
escandem com a sua repetição toda a história da filosofia, da literatura e da religião
do Ocidente. Ou bem somos nostálgicos de um para-sempre-perdido que sem dúvida
nunca esteve presente, ou bem desejamos fazer surgir um absolutamente-por-vir que
não poderia ser precedido por nenhuma espécie de presença. É assim que memória e
vontade são os dois axes e as duas figuras de nossa relação ao impossível: a nós
mesmos como aporia. Nossa aporia, nossa ausência de saída, reside no nascimento
que sucede à nossa ausência que não nos leva a outra coisa senão à morte, que cava o
após até apagar nela até mesmo a possibilidade de pensar uma sucessão, uma
posteridade ou uma herança. Sabemos todos como esse pensamento foi forte em
Philippe – como ele foi vivo, como uma ferida o pode ser.
É em grego que o ventre fecundo, a hystera, tomou o nome do que vem
por último, após, como para designar uma perpétua ulterioridade da proveniência em
si mesma, um após todo o antes, ou para dizê-lo na língua dos lógicos, um hysteron-
proteron permanente, em outras palavras, uma falta lógica constitutiva de nosso
ser259. Do mesmo modo que esse raciocínio vicioso consiste em dar como prova o
que de antemão deveria ser comprovado, assim também a condição ocidental
consiste em propor como ser o que desde o início deveríamos levar ao ser, e portanto
259
« Hysteron-próteron », do grego : « hysteron », « último » e « próteron », « primeiro », ou histerologia
é uma figura de retórica que consiste em pôr antes um elemento posterior no argumento ou na cadeia de
idéias. O exemplo coloquial é o provérbio: « por a carrroça na frente dos burros ». O exemplo classico é o
verso da Eneida de Virgílio : Moriamur, et in media arma ruamus" ("Morramos, e investiremos no meio
da luta”, livro II, v. 353.) Nancy retorna a essa figura adiante, em “Peã para Afrodite, na p. XX. (N.T.)
sair do não-ser. Mas nós não saímos de nada e nós não (nos) conduzimos rumo a
nada. Nenhuma proveniência nos é dada, nenhuma destinação, nenhuma saída nos é
prometida. Assim, a nossa condição ou a nossa constituição fundamental e destinal
poderia ser caracterizada como uma histeria aporética. Eu não diria no entanto que
se trata de uma patologia – como se eu soubesse a que modelo de normalidade
compará-la. Eu diria que é talvez menos e talvez mais que uma patologia: talvez seja
a sorte própria do Ocidente, ou então o seu perigo assegurado, e talvez nos dois casos
seja doravante o mundo inteiro que parte conosco nessa histeria aporética, que se
torce nela e se angustia nela, quer ele consiga ou não expor ali alguma coisa de uma
verdade ou de um sentido (a menos que a histeria aporética seja a última palavra de
toda a nossa verdade).
260
Nancy refere-se ao célebre capítulo « A religião civil », no Contrato social de Jean-Jacques Rousseau,
que Maximilien Robespierre implement ou durante o terror jacobino sob a forma das Festas do Ser
Supremo. Rousseau : « Há, pois, uma profissão de fé meramente civil, cujos artigos o soberano [a união
de todos os membros do Estado ou da Cidade] deve fixar, não exatamente como dogmas de religião, mas
como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel ». Jean-
Segundo essa primeira razão, “após a tragédia” resultaria na fórmula de
uma tripla aporia - política, ética e estética - que nos obrigaria a pensar de novo,
ainda uma vez, a novas expensas, o que está em jogo no que designamos como a
perda da tragédia: ou seja, a pensá-la enfim, se isso é possível, de outra maneira
além de como uma perda seca e uma histeria aporética, sem no entanto cair na
armadilha da ressurreição (na qual Nietzsche, em um momento talvez, pôde
acreditar). Philippe, eu acho, pensava em tudo isso ao mesmo tempo.
Jacques Rousseau. O contrato social . Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo : Martins Fintes, 2001, p.
165. (N.T.)
sucessão de tragédias, de forma que após cada uma delas acaba por não haver mais
“após”, já que o retorno de uma outra tragédia é uma certeza, e que o após vira um
antes.
Ora, tocamos aqui no ponto de junção entre os dois motivos condutores da
expressão “após a tragédia”. Pois toda a história que aparece como uma tragédia é
também a história que se representa como tendo perdido a tragédia. Essa contradição
entre dois usos do termo não se explica senão pela impropriedade de um dos dois.
Essa impropriedade, de resto, é bem conhecida, e quando há pouco negligenciei de
me deter sobre as distinções necessárias entre “tragédia”, “drama” ou “catástrofe”
(palavra
um eladiferente),
sentido mesma retirada
a que do
eu léxico
poderialiterário trágico,
acrescentar mas claramente
“desastre” imbuídaeu
ou “desolação”, de
sabia que cada um de nós, por menos que tenha um mínimo de saber filológico e
filosófico, recusa-se a permanecer surdo a essas distinções, já que a tragédia não
representa inicialmente uma variedade de acontecimento terrível, nem como a pior
de suas variedades, mas denomina uma estrutura inteira de pensamento, no sentido
mais forte da palavra: uma construção de sentido, um sistema, no sentido mais
simples da palavra, ou se preferirmos, uma sinergia e uma simpatia que compõem
um ethos próprio. O ethos trágico não se reduz ao pathos daquele que é derrubado
por um desastre ou uma ruína.
Mas aqui desponta a dificuldade que consiste talvez na “tragédia” de nossa
história: se há confusão ou abuso de significações quando falamos de uma tragédia
dos campos, de uma tragédia do 11 de setembro, de uma tragédia de Ruanda ou da
Nigéria, da fome ou da prostituição de crianças, é porque não podemos juntar um uso
relaxado da palavra com seu uso próprio. E nós não podemos fazê-lo porque o
sentido próprio, na verdade, nos escapa. Nossa história é também a das
interpretações da própria tragédia, que foi ao mesmo tempo um enriquecimento,
mesmo que feito de contradições, e um retorno permanente a um segredo perdido e
ininterpretável. Quando falamos da katharsis de Aristóteles e dos valores sucessivos
que lhe emprestamos, do classicismo francês, do romantismo alemão ou inglês, de
Hegel, de Schelling, de Hölderlin, de Nietzsche ou de Benjamin, de Bataille ou de
Lacoue-Labarthe, para permanecer nesses nomes, qualquer que seja a leitura, resta
sempre um núcleo duro, um simples dejeto seco, que contém no mínimo essa
significação mínima: qualquer que tenha sido a verdade trágica, ela não é mais a
nossa, qualquer que tenha sido a proximidade, ou mesmo a intimidade que este ou
aquele pôde ter tido com ela, nenhum ethos, nenhuma tékhne poiétiké nos restitui a
possibilidade de vivê-la aqui e agora, como uma função de nossa vida de povo ou de
cidade.
Cada um e cada uma dentre nós pode compartilhar o jogo de cena [enjeu]
patético e ético de Édipo, de Antígona ou de Medéia (se nos for permitido dizer
“jogo de cena” no singular, já que se trata a cada vez de uma série de sotaques e
acentos261 indefinidamente variados ao sabor de tantas grades de leitura). Mas não
estamos, para resumi-lo com a palavra mais apropriada, em uma liturgia da tragédia;
não estamos em um ofício, nem em um serviço comum de cultura e de conduta, de
costumes e de estrutura, com a qual poderíamos designar, indistintamente,
sincreticamente, uma política e uma ética, uma teologia e uma estética. Mas não
podemos tampouco designar o que a tragédia pode muito bem ter sido para aqueles
261
“Accents ”, em francês, ao mesmo tempo “sotaque” e “acento” (no sentido rítmico-poét ico do termo).
Optei por explicitar os dois sentidos na frase. (N.T.)
que foram, não somente seus contemporâneos, mas seus atores, seus autores e seus
expectadores, em conjunto e a cada vez. Que a figura de Édipo tenha podido se
deslocar de duas peças de Sófocles até a posição de sinal e de significante para
investigações pessoais da psicanálise, que o filho de Laio e o interlocutor da Esfinge
tenha podido se transformar em pai e marco, eis o que sem dúvida diz muito (mesmo
se não sabemos o que diz) sobre os pais em geral, sobre os enigmas, sobre as
cidades, sobre o saber e sobre o poder, em nossas configurações presentes de cultura.
262
Veja o que diz a respeito de Tespis, Rafaelle Cantarella : Tespis, de Icaria, teria “’recitado e
representado pela primeira vez um drama na cidade (ou seja, nas Grandes Dionisíadas), e o prêmio era um
caprino macho’” […]. Segundo diversas fontes, ele dispunha de um coro (de homens, não zoomorfo), e
haveria introduzido o prólogo e o ‘parlamento’, empregando para isso um ator mascarado. Restam dele
quatro títulos, provavelmente autênticos , e quatro fragmentos espúrios, que derivam talvez das tragédias
‘de Tespis’, falsificadas pelo peripatético Heráclides de Pôntico […]. Não obstante todas as incertezas e
representa um equilíbrio delicado e instável, no entanto mantido, entre o após o
sacrifício e o antes de nossa desolação. É sobre esse duplo valor que eu gostaria de
me deter um pouco, para uma simples reflexão que não procede de nenhuma ciência
filológica nem teórica da tragédia, mas somente da ruminação do seguinte, que repito
e condenso em uma fórmula: o “trágico” para nós não é mais e não pode mais ser
“uma tragédia”.
obscuridades da tradição, pode- se admitir como a opinião mais provável que ao nome de Tespis se
relacionou uma das tentativas mais antigas de organizar em Atenas uma representação trágica em um
concurso regular, o que pressupõe obviamente a existência de outros poetas, cujos nomes permaneceram
no esquecimento diante do do vencedor”. Rafaelle Catarella. La literatura griega clasica. Trad. Antonio
Camarero.
263
Buenos Aires: Editorial Losada, 1971, p. 184. (N.T.)
Nancy se refere a um trecho do quarto parágrado do “Pequeno Organon para o teatro”. Eis o trecho:
“Dizer que o teatro surgiu das cerimônias do culto não é diferente do que dizer que o teatro surgiu
precisamente por se ter desprendido destas; não adotou a missão dos mistérios, adotou, sim, o prazer do
exercício do culto, pura e simplesmente.” Bertold Brecht. Estudos sobre o teatro . Trad. Fiama Pais
Brandão. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978, p. 102. (N.T.)
264
By the way, this is as well a case within the general concept which wears the very confuse and obscure
name of « secularization ». [ A propósito, este é também um exemplo no interior do conceito geral que
reveste o nome bastante confuso e obscuro de “secularização”] [Essa nota e a seguinte em inglês em
ingl6es foram acrescentadas por Jean-Luc Nancy no momento da leitura do texto. (N.E.F.) ]
Essa palavra é palavra participante: ela toma parte na presença a quem ela
fala. Ela o faz até o ponto em que ela própria se consuma como sacrifício: um
vivente mortal é consagrado aos imortais, e o seu sangue recolhe ou alimenta a sua
força ou a sua proteção. No sacrifício, a própria palavra torna-se ato; ela pronuncia a
fórmula que santifica o gesto do sacrificador, e ela própria se imola, em suma, na
faca e no sangue. Pois a presença, para terminar, nadifica a palavra.
Saindo do culto, a tragédia sai da presença. Os deuses se retiraram, ou quem
sabe foram os homens que os desampararam, passando da vida agrária à vida urbana,
da encantação à retórica e da palavra à escrita. Talvez fosse preciso dizer que a
primeira
não diferença entre o culto e o teatro reside no fato de que o primeiro no início
era escrito.
Esse adeus à presença (toda a escrita lhe dirige um adeus, como o sugere
Jean-Christophe Bailly) funda o teatro: a palavra não deve mais se dirigir aos deuses,
e mesmo se bem no início não deixamos de nomeá-los, ou até de invocá-los, os
rastros da religião não têm mais papel sacrificial. A palavra do teatro se dirige
precisamente à ausência dos deuses, o que quer dizer também que ela não se dirige
mais a eles, mas se troca entre os mortais que são doravante sós entre si.
É no teatro, no primeiro teatro grego, mas muito depois de Tespis, na
Antígona de Sófocles, que se levanta a voz que proclama o homem terrivelmente
estranho e técnico assustador, do mesmo modo como em Édipo trata-se daquele que
respondeu à pergunta sobre o homem. Entre o conquistador do mundo e o animal que
envelhece e morre, a tragédia condensa toda a intriga: não histórias humanas
trágicas, mas o próprio homem enquanto tragédia ou comédia. Ora, tragédia e
comédia se tramam em torno de acontecimentos: acontece, produz-se o que faz o
homem lastimável
Ecce homo e que
não é por apresenta
acaso a frase,esse lamentável,
o enunciado, seja àdacompaixão,
a divisa religião seseja à derrisão.
desconstruindo a si mesma.
Com os deuses, nada acontece: eles são os portadores ou os porta-vozes do
que denominamos Destino, Moira, Necessidade, isto é, o Acontecimento geral de
todas as coisas. Mas doravante o que acontece é um destino cada vez singular em
que soçobra o Acontecimento geral, com o culto que lhe poderíamos fazer.
diálogoaodos
assim, mortais,
mesmo de vãs
tempo quepalavras
o próximo”silencio
– e me aventuro
da morte,a aarriscar
tenênciaque ] 267e o
ele pronuncia
[tenue
teor essencial da própria tragédia que lemos. Em outras palavras, a tragédia conserva
no cerimonial de sua palavra o rastro do sacrifício. Não tentarei tampouco aqui
caracterizar esse cerimonial: eu direi somente que ele se dá no modo do estilo direto,
do discurso endereçado, não de sua “imitação” (embora a mimesis seja oposta à
diegesis), pois não se trata de imitar o diálogo quotidiano, mas trata-se ao contrário
da produção do endereçamento como tal. (Talvez seja isso que devamos
compreender como a “mimesis sem modelo” de que fala Philippe.)
O caráter “teatral” implica, no melhor sentido da palavra, uma ênfase do
endereçamento: a palavra tendida em direção ao outro e assim tendida além dele e
além dela mesma. Não se endereçando mais aos deuses para lhe oferecer suas
vítimas, ela se endereça de um homem a um outro, para lhe apresentar o que excede
ao homem e que excede a ela mesma. É a palavra, nesse sentido, que se sacrifica. Por
essa palavra enfática ou cerimonial, a tragédia guarda ou inventa, guarda e inventa ao
mesmo tempo o ethos segundo o qual, na falta de socorro dos deuses e de todo outro
socorro, permanece havendo uma grandeza. A grandeza do mortal fulminado a quem
os deuses viram as costas se expõe na tenência da palavra trágica. No momento em
que ele furou os olhos, mas não cortou a língua, embora deplorasse não ter se
tornado surdo, Édipo ainda fala, ele fala mais ainda, ele recita a litania de seus
crimes ao mesmo momento em que declara ser tão vergonhoso falar deles quanto
cometê-los, e a tenência de seu discurso é identicamente a tenência da única
dignidade que lhe resta.
265
To remember: Philippe once told me: « I know what shall be done to have a new Hölderlin. I know, but
it is too difficult…» [Lembrar: Philippe me disse uma vez: “Eu sei o que deve ser feito para ter um novo
Hölderlin.
266
Eu sei, mas é difícil demais…”].
Empédocle (terceira versão). Trad. fr. Robert Rovini. In : Œuvres . Paris : Gallimard, col.
« Bibliothèque de la Pléiade », 1967, p. 573.
267
« Tenue ” em francês. Temo utilizado várias vezes no ensaio por Nancy, por meio do qual ele designa
algo como a essência do trágico. “ Tenue ” tem sentido múltiplo: continuidade, duração, maneira de gerir
um estabelecimento, ou de segurar um objeto, conduta, atitude do corpo, manutenção, aspecto, maneira de
se vestir, traje, porte. Embora intraduzível, encontrei em “tenência” alguns dos significados que
interessam aqui. A velha repartição militar (tenente-general da artilharia; posto de tenente; local onde
habita o tenente), caído em desuso, deixa ouvir algo da raiz verbal de “ter”, e cedeu lugar a ressonâncias
no discurso informal: teimosia, obstinação, precaução, cuidado, cautela, vigor, firmeza, força, corume,
hábito, jeito. (N.T.)
É essa grandeza, no mínimo, que nós nos representamos ter perdido, que nós
de fato perdemos, ou bem cuja perda já fora empenhada na passagem do culto à
tragédia. É essa grandeza que falta à “tragédia” moderna de uma civilização inteira
que pode tudo menos encontrar uma santidade em sua miséria, ou que não sabe mais
onde colocar aquilo que ela denomina de dignidade do homem, esse valor absoluto
que, desde que ele foi inventado, ou seja, expressamente, desde Kant, não sabe o que
ele vale ou bem deixa indefinidamente oscilar esse valer entre o bom e o mau
infinito. (Esse mesmo Kant, lembro, esse Kant tão bem lido por Hölderlin, escreve
que o sublime na arte exige uma das três fórmulas: o poema didático, o oratório ou a
tragédia em verso268. A precisão “em verso”, que confere aos três modos o traço
comum do poema e do canto, designa o regime da dignidade. Philippe amava essa
passagem particularmente enigmática de Kant.)
Dizendo adeus ao mundo, aos deuses e a si mesmo, Édipo se confere ainda a
si mesmo a dignidade desse adeus. “ Após a tragédia”, em compensação, é preciso
reconhecê-lo, quer dizer “após a cerimônia do adeus”. Isso quer dizer também,
conseqüentemente, após esse brilho e esse instante de tenência, cuja perda ou cuja
representação da perda organiza o que não podemos mais chamar de nossa tragédia,
mas nosso drama ou nossa desolação.
Isso não faz mais do que colocar os termos de um problema, ou de uma crise,
ou mesmo de uma aporia, e não pretendo hoje ir além disso. Mas quero para terminar
precisar esses termos. De um lado, deveria ser-nos claro que do mesmo modo como
a tragédia não respondeu ao fim do sacrifício retornando a ele, mas deslocando com
ele a totalidade do sagrado, tampouco podemos retornar à tragédia – por um retorno
cuja tentação nunca deixou de nos assombrar. Ele nos incumbe de encontrar também
o nosso adeus à tragédia, no mesmo movimento em que devemos reinventar uma
grandeza, uma dignidade, ou o que poderia lhe suceder – a menos que o pior não seja
uma certeza.
Mas nosso adeus deve também considerar o que a tragédia retinha do
elemento de onde ela saiu. O que denominei aqui a cerimônia da palavra trágica não
responde a outra coisa, no fim de contas, senão ao que indica de maneira muito
aproximativa a expressão “religião civil”, que lembrei há pouco. As questões da
tragédia, do teatro, da política, da história, da arte e de tudo o que denominamos
“ética”, sem discernir entre elas, têm sem dúvida em comum essa traço determinante
que conduz em direção a esse lugar deserto e, ao que parece, impossível de ocupar
que essa expressão nomeia. O que fazer com essa indicação, em um tempo que se
arroga não ser mais somente “após a tragédia”, mas decididamente “após a religião”
e “após a cidade”, o que aliás sem dúvida não faz mais do que decompor e precisar a
primeira fórmula?
É então que seria preciso, e que será preciso, é a última indicação, lembrar-se
que “após a tragédia” designa também 269
o duplo movimento daquanto
filosofia e do
cristianismo. Ambas quiseram suspender tanto o sacrifício a tragédia, e
268
Nancy se refere ao trecho do paragrafo 52 da Crítica da Faculdade do Juizo : « Também a
apresentação do sublime, na medida em que pertence à arte bela, pode unificar-se com a beleza em uma
tragédia rimada , em um poema didático, em um oratorio , e nessas ligações a arte é ainda mais artística
[…] ». Immanuel Kant. Crítica da Faculdade do Juízo . Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de
Janeiro : Forense Universitária, 1995, 2a edição, p. 170. (N.T.)
269
“Relever ”, que traduzo com o equívoco “suspender”, elevar e retirar, ou pelo nosso idiomático,
“render”, substituir. “ Relève ” é a tradução de Jacques Derrida da Aufhebung hegeliana, que tem o sentido
ambas o fizeram por um movimento que passa além – ou mais exatamente que
procura desesperadamente passar além do cerimonial da palavra. A filosofia
procurou essa ultrapassagem em um saber tornado idêntico ao seu próprio objeto, o
cristianismo o desejou em um amor tornado idêntico à existência.
Representamos por outro lado os dois como propondo uma franquia da
morte, uma passagem por águas rasas, o que não passa, com certeza, da sua
configuração mais exterior e mais ideológica, por trás da qual se trava um jogo mais
severo. Mas a força do espelhamento dessas representações (a morte vencida pela
sabedoria ou pela ressurreição) não é por isso menos sintomática dos desejos do
Ocidente:
perdeu com
– ou queo ele
sacrifício e em
acreditou terseguida
perdidocom a tragédia, é a relação à morte que ele
ou desregrado.
Mas como a morte permanece não-franqueável, engendrou-se nos dois
registros uma espécie de mutismo cujo último nome é niilismo. Há, haverá, ou há já
um “após o niilismo” que não pretende oferecer um “após a morte”, e que no
entanto assume ser “após a tragédia”? Essa é a nossa questão, “trágica”. Mas ela
exige, no mínimo, se existe alguma chance de responder a ela, que saibamos o
seguinte: aquilo para o qual deveríamos inventar uma outra cerimônia da palavra,
uma outra liturgia do sentido e da verdade, não pode tampouco proceder de outro
lugar senão do cerne mesmo de nosso mutismo, mas isso, com a condição de que
uma garganta murmure ainda ali apesar de tudo.
And, as I said, I believe Philippe’s throat is murmuring here and now270.
equívoco de elevar, manter e abolir, superar e destruir, com o qual Hegel cria captar o mecanismo do
movimento histórico. (N.T.)
270
Em inglês no texto. [E como disse, acho que a garganta de Philippe está murmurando aqui e agora.]
(N.E.F.)
5. Ressurreição de Blanchot
271
“Désoeuvrement ”, termo central da tese blanchotiana sobre a literatura a a arte moderna, foi traduzido
em português e em outras línguas de modos distintos. Em português, algumas vezes por “ociosidade”, ou
por “inoperância”; em inglês frequentemente por “inoperativeness ”, e em espanhol por “ inoperancia ”.
Opto agora por utilizar um neologismo, “desobramento”. (N.T.)
272
Maurice Blanchot. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 147.
“retorno”, “reversão273”, ou ainda “reconhecimento”, cujo movimento e “extravagância”
Christophe Bident se aplicou a discernir”274. Essa substituição seria até um certo ponto
pensável, e suspenderia qualquer hipoteca religiosa. Não obstante, vemos claramente
que ter-se-ia perdido assim o liame imediato e manifesto com a morte, a ressurreição
designando expressamente a libertação e saída dela. Tudo parece portanto ter-se passado
como se não fosse possível se isentar de um termo destinado a funcionar como operador
lógico em uma relação com a morte, posta como essencial à escrita – não menos que em
uma relação com a escrita (com a palavra, com o grito, com o poema) posta como
essencial ao morrer ou à mortalidade do homem. Isso no entanto não é de todo
suficiente: é preciso contar com o que, por essa mesma razão, só pode funcionar
também com a assunção de um motivo teológico.
Seria preciso aqui estender o exame ao conjunto do dado teológico ou bem, se
ouso dizer, teo-morfológico, no texto de Blanchot. Isso será para um outro trabalho.
Saliento somente, à propósito da ressurreição, que esse dado se precisa de maneira
bastante singular nas paragens desse motivo. Ele se precisa por uma referência
evangélica expressa, ao personagem que podemos dizer epônimo da ressurreição: o
Lázaro do Evangelho de João275. Com efeito, Lázaro aparece, para início de conversa,
ao mesmo tempo que a primeira e talvez a única ocorrência da expressão “morte
ressuscitada”. Isso se passa cedo na obra, já que é em 1941, na primeira edição de
Thomas l’Obscur [Tomás o obscuro]276. Este texto será conservado na segunda edição,
na qual em compensação serão modificadas as duas frases que precedem e que seguem
o enunciado que nomeia Lázaro. O que prova a atenção prestada pelo autor à seguinte
frase, que tem como sujeito Tomás: “Ele caminhava, único Lázaro verdadeiro, de quem
a própria morte foi ressuscitada277.”
Precisemos de antemão que seis linhas acima o texto trazia estas palavras: “ele
apareceu sobre a porta estreita do seu sepulcro, não ressuscitado, 278
mas morto, e tendo a
certeza de ter sido arrancado, ao mesmo tempo, à morte e à vida” . Essa última frase
transforma um pouco, tornando-o mais leve, o cariz da primeira edição, invertendo
também a ordem das palavras “à vida e à morte”. Quanto à leveza, ela consiste na
modificação desta modalização em inciso: “tendo bruscamente, pelo trovão mais
impiedoso, o sentimento que ele tinha sido arrancado [...]”. Essas precisões
micrológicas são instrutivas: se a porta do sepulcro continua a lembrar o episódio
evangélico e a prefaciar o nome de Lázaro, em compensação, a consciência de Tomás
passou do “sentimento” à “certeza”, e esta última se encontra despojada de toda
qualificação “fulminante” e espetacular. De uma espécie de comoção passamos à
afirmação de uma certeza - a qual não está nunca, de maneira geral, muito longe do
273
Descuro de ser mais preciso, indico apenas rapidamente cinco referências desses cinco termos, todos
tomados em O espaço literário , op.cit. , nas páginas: 39 [observe-se que o tradutor, Álvaro Cabral,
traduziu “ desoeuvrement ” por “ociosidade”, leia-se então a seção “A profundidade da ociosidade”] , 201
[o subcapítulo « A comunicação »], 225 [a seção « ‘Terra movediça, horrível, delicada’ », 268 [em
especial o anexo III, « O sono, a noit e »], 271 [por exemplo, o anexo IV, « O itinerá rio de Hölderlin »],
31 [« A experiência de Mallarmé »].
274
Cf. Christophe Bident. Reconnaissances – Antelme, Blanchot, Deleuze. [Reconhecimentos – Antelme,
Blanchot, Deleuze] Paris, Calman-Lévy, 2003.
275
A referência exata é: Evangelho segundo S. João, capítulo 11, 1-44. (N.T.)
276
M. Blanchot. Thomas l’Obscur . Paris : Gallimard, 1941. A passagem se encontra na p. 49 ; ela se
reencontra na p. 42, na segunda edição (Paris : Gallimard, 1950). Cito a primeira edição aqui e nas notas
seguintes. [Na reedição de 2005 da primeira versão, o trecho se encontra na p. 79. Maurice Blanchot.
Thomas l’Obscur. Première version, 1941 . Paris : Galimmard, , 2005. {N.T.}]
277
Ibid. O texto no srcinal: « Il marchait, seul Lazare véritable dont la mort même était ressuscitée ».
278
Ibid. [Nancy cita aqui o trecho da segunda edição. {N.T.}]
regime de um ego sum cartesiano. De uma impressão transtornada, Tomás passou a uma
espécie de cogito morto, na morte ou da morte. Ele se sabe “arrancado” tanto à morte
quanto à vida (donde a importância da mudança na ordem dos termos). Morto, nem por
isso ele deixa de ser mergulhado na coisa “morte”: ele se torna o sujeito morto de um
arrancamento à morte em si. É também por isso que ele não ressuscitou, ou seja, que ele
não recobra a vida após ter atravessado a morte: mas permanecendo morto ele avança na
morte (“ele caminhava”) e é a própria morte que se vê ressuscitada nesse “único Lázaro
verdadeiro”.
A morte é o sujeito279; o sujeito não é ou não é mais o seu próprio sujeito. É
279
Em francês, “ sujet” significa ao mesmo tempo “assunto” e “sujeito”, no sentido gramatical, filosóf ico,
etc., do termo. Ambos os sentidos devem ser ouvidos nessa frase. (N.T.)
280
“Relever ”, pelo qual Nancy remete à “ relève ”, i.e. à Aufhebung hegeliana, na tradução de Jacques
Derrida, que traduzo aqui pelo verbo equívoco em português, “suspender”, ao mesmo tempo, elevar e
retirar. (N.T.)
281
Faço aqui uma tradução literal da frase. “Onde era o eu, isso deve ser ressuscitado.” Referência à frase
de Freud, “ Wo Es war, soll Ich werden” (Novas conferências introdutórias sobre psicanálise , 1933):
"Onde era isso devo eu advir," na tradução de Jacques Lacan. Onde havia o Es (Isso, Id, o inconsciente),
deve advir o eu (o sujeito do inconsciente, na formulação lacaniana. (N.T.)
282
Maurice Blanchot. Thomas l’obscur, op.cit.., ibidem. [Nancy cita aqui a segunda versão. {N.T.}]
iluminação pela face mais obscura, a face de Tomás, aquela que recebe uma luz das
trevas, e que portanto sabe renunciar à luz única das significações possíveis.
Devo precisar mais que isso ? Thomas l’obscur não propõe nada senão a
história de uma ressurreição ; melhor ainda, a história da ressurreição. Pois o próprio
Tomás é a ressurreição, à maneira deste Cristo, de quem se lembra uma outra palavra, a
propósito da morte de Ana, no momento em que Ana é a ressuscitada, a morta cujo
« corpo sem consolação »283 é ao mesmo tempo a presença que « dava à morte toda a
realidade e toda a existência que formavam a prova de seu próprio nada »284. Assim
prossegue o monólogo de Tomás ao velá-la: « Não impalpável nem dissolvida nas
sombras,
ler ela se da
a afirmação impunha cada vezsensível
forte presença mais aosdosentidos. » Ora
corpo, deve esta última
também frase,
ser lida que dáa a
segundo
indicação expressa do narrador que precisa que Tomás fala « como se os seus
pensamentos tivessem uma chance de serem ouvidos 285», e que doravante, segundo
essa oralidade, o plural de « aos sentidos » - fórmula aliás ligeiramente insólita nesse
lugar – torna-se inaudível e elide-se em um singular, calculado para se fazer entender,
sem por isso formalmente impor o seu conceito.
De todas as maneiras, Blanchot no-lo confirmará : a ressurreição designa o
acesso a um além do sentido, a caminhada nesse além por um passo que não vai a lugar
nenhum senão à repetição de sua igualdade286. Deste passo, sabemos, a escrita é o rastro
ou a marca. Mas ela só o é na medida em que descortina « um espaço onde,
propriamente dito, nada possui ainda sentido, em direção ao qual, entretanto, tudo o que
tem sentido reverte como à sua srcem 287». Negligenciemos aqui a circunstância de
esse texto de 1950 falar uma língua ligeiramente distinta da que Blanchot falará mais
tarde. Essa decalagem não é, certo, indiferente, e Blanchot o destacou, sem que isso
tenha impedido, todo o contrário, o impressionante repisamento, a remarcável
obstinação, de um pensamento através de suas variações necessárias. Permanece
portanto o fato de que o espaço da ressurreição, aquele que a define e que a torna
possível, é o espaço fora do sentido, que precede o sentido e que o sucede – admitindo-
se que aqui anterioridade e posteridade não tenham nenhum valor cronológico, mas
designem um fora-do-tempo tão interminável quanto instantâneo, a eternidade em seu
valor essencial de subtração. (Mas a observação feita assim no que toca o deslocamento
de termos em Blanchot, após a época de O espaço literário, deveria abrir sobre um
outro questionamento : até um certo ponto, Blanchot procedeu assim, sem dúvida, a
uma suspensão ou a uma interrupção do registro mítico. Entretanto, para além da
interrupção, o que, talvez, sem dúvida mesmo, insiste e não pode senão insistir ? Essa
insistência se junta em Blanchot à do nome de « Deus », à qual será preciso retornar em
outro lugar.)
A vida subtraída ao sentido, o morrer da vida que faz a sua escrita – não apenas
a do escritor, mas a do leitor, e mais ainda, a daquele que não escreve nem lê, quer seja
283
Ibid., p. 100.
284
Ibid., p. 101.
285
Ibid., p. 99.
286
Nancy joga aqui com o equívoco “ pas” em francês, ao mesmo tempo partícula negativa, e “passo”,
jogo que remete à fórmula do próprio Blanchot, no título de seu ensaio Le Pas au-delà (1951), em que se
ouve, ao mesmo tempo, “O passo além” e “O não-além” (Le pas d’au-delà). Jogo este que traduz
precisamente o esquema da hesitação entre transcendência (o passo além), e a não transcendência (não
além), passo que, por assim dizer, fica no mesmo lugar, esquema da própria escrita e da relação com o
corpo morto, para Blanchot. (N.T.)
287
Id., « Ler », em O espaço literário , op.cit.., p. 196.
ele analfabeto quer ele tenha deixado todo o comércio com o saber, a escrita enfim
definida pelo « morrer de um livro em todos os livros 288» ao qual responde também
essa definição : « Escrever, ‘formar’ no informal um sentido ausente289 » - essa vida é a
vida de que foi retirado o sentido e que não ressuscita como vida, mas que ressuscita a
morte : ela subtrai a morte ao seu advento e ao seu acontecimento, ela subtrai ao
falecimento da mortalidade o morrer da imortalidade, por intermédio da qual eu
conheço incessantemente essa retirada radical do sentido, e portanto a própria verdade.
Eu a conheço, eu a compartilho, isto é, eu retiro minha morte, minha expiração, de
qualquer propriedade, de qualquer presença própria. Assim é de mim mesmo que eu me
desprendi, ao transformar « o fato da morte 290», de uma maneira dupla : a morte não
ocorrre mais como corte infringido a « mim », ela se torna a sorte comum e anônima
que ela não pode senão ser, e o corolário disso, a morte ressuscitada, ausentando-me de
mim mesmo e do sentido, expõe-me não somente à verdade, como, enfim, expõe eu
mesmo, a verdade– eu mesmo, a glória tenebrosa do verdadeiro em ato.
De uma maneira sutil, a vida de Blanchot, cuja íntima retirada terá permitido a
afirmação e a exposição de uma vida inteiramente outra, cuja ausência declarada terá
engajado a mais insistente presença pública de uma vida retirada na morte da existência
objetivada, e identificada na pessoa e na obra – esta vida de Blanchot, desta forma, não
ocultada, mas, ao contrário, a mais publicada de todas as vidas, consistiu em uma vida
ressuscitada em vida, pela própria publicação de sua morte sempre em obra. Sem
dúvida, há ambivalência nessa atitude. Mas a sua coerência e a sua tenência não deixam
de dar a pensar. No mínimo, é certo que Blanchot nunca se guiou por uma revivescência
nem por um milagre, mas soube compreender a sua vida como de antemão morta e
assim retornada em ressurreição (se podemos dizer aqui “compreender”; no mínimo
podemos dizer “tomar”).
Que não haja aí nem revivescência nem milagre é o que precisa o texto
intitulado “Lázaro, veni foras”, de O Espaço literário. Blanchot se aplica ali a descrever
a leitura como ato de acesso à obra “escondida, ausente talvez radicalmente,
dissimulada, em todo o caso, ofuscada pela evidência do livro291”. Ele identifica a
“decisão libertadora292” da leitura ao “Lázaro, veni foras” do Evangelho293. Essa
identificação abre de fato um deslocamento considerável, pelo qual não se trata mais de
fazer sair um morto do túmulo, mas de discernir a própria pedra do sepulcro como “a
presença”, cuja “opacidade” não se deve dissolver, mas reconhecer e afirmar, enquanto
verdade da transparência esperada, ou bem “a escuridão” (a de Tomás, mais uma vez),
enquanto “claridade” verdadeira. Ora a operação de ler, enquanto revelação, só pode ser
considerada como um “milagre” (palavra que Blanchot usa entre aspas, assinalando ao
mesmo tempo um modo ordinário de dizer – “milagre da leitura” – e a operacão do
Cristo sobre Lázaro), se compreendermos a sua revelação a bem da opacidade
pedregosa que pode nos esclarecer também “sobre o sentido de toda taumaturgia294”.
Blanchot faz ou escorrega essa observação de maneira incidental. Ela não faz mais no
entanto do que epor
toma distancia em claro
repele o queevangélico
o milagre o milagre quer
para dizer. “Taumaturgia”-
o terreno de uma cena esse termo
mágica ou
288
Id., L’Écriture du désastre [A escrita do desastre ]. Paris: Gallimard, 1980, p. 191.
289
Ibid., p. 71.
290
Id., O espaço literário, op. cit. , p. 194.
291
Id., « Ler», em O espaço literário , op. cit., p. 195.
292
Ibid.
293
No latim da Vulgata, “ Lazaro, veni foras ”, “Lázaro, vem para fora!”. Evangelho segundo S. João,
capítulo 11, 43. (N.T.)
294
Ibid.
maravilhosa (esta última palavra intervém algumas linhas adiante, ela também em um
uso ligeiramente depreciativo). Destaquemos, no entanto, para todos os fins úteis, que
ele declina o nome de Tomás, o qual, tratado às vezes como palavra e não como nome
nesse livro epônimo, talvez não cesse de remeter a uma “maravilha” mais maravilhosa,
pois menos brilhante, que todas as maravilhas dos Evangelhos ou bem... da literatura
maravilhosa. Resulta disso, em todo o caso, que “o sentido de todo” milagre é dado pelo
da leitura, a saber, por nenhuma operação que desafia uma natureza dada, mas por essa
“dança com um parceiro invisível” que caracteriza por fim a leitura “leve”, não sábia,
ou seja, também, como se precisa, não “penetrada de devoção e quase religiosa”295, a
única leitura que não enrijece o livro em objeto de “culto”, que pode mesmo ser
“inculta” e que assim abre-se para a retirada da obra. O sentido do milagre é de não dar
lugar a nenhum sentido que exceda ou desvie o sentido comum, mas somente à
supensão do sentido em um passo de dança.
Essa imagem em si pode nos incomodar. Ela tem algo de muito imediatamente
sedutor por não ser demasiado fácil. Mas com tudo isso ela não deixa de indicar, da
melhor maneira que pode, a relação entre leveza e gravidade, em torno da qual Blanchot
a esboça. Ele conclui, de fato: “[...] onde a ligeireza nos é dada, a gravidade não
falta296”. Essa gravidade que não falta, mas que permanece discreta, opõe-se à gravidade
do peso que fixa o pensamento sobre a coisa, sobre o ser, sobre a substância: assim
também, portanto, a esse pensamento fixado sobre a substância da morte e que pensa
torná-lo mais leve e se consolar dele pela taumaturgia de um retorno pesado à vida. A
gravidade dançante não faz entrechats diante do túmulo, ela experimenta a pedra como
leve, ela põe ou sente na pedra pesada o alívio infinito do sentido. Tal é a oposição entre
a morte ressuscitada e a ressurreição do morto.
A partir daí, assim como o diz um outro texto, tudo se passa “como se esta [a
morte] somente em nós pudesse purificar-se, interiorizar-se e aplicar à sua própria
realidade essa potência de metamorfose, esta força de invisibilidade, de que ela é a
profundidade de fonte297”. Somente em nós: o contexto permite precisar que se trata aqui
não somente de nós enquanto homens, mas de nós enquanto mortos. “Somente nós”, é
também nós em nossa solidão e em nossa desolação de mortos e de mortais, “nós, os
mais perecíveis de todos os seres 298”, como será dito mais adiante. Neste texto
consagrado a Rilke é ao poema e ao seu canto que se confia a gravidade leve da
ressurreição da morte. “A fala – está escrito – dá voz à intimidade da morte.” Isso se
passa “no momento da quebra”, no momento em que a palavra morre. O canto do cisne
terá sempre formado o baixo contínuo do texto de Blanchot. Isso significa duas coisas,
cuja reunião compõe o difícil, estranho, e obstinadamente fugaz, pensamento da
ressurreição.
De um lado, esse canto só canta ou esse passo só dança no momento de se
quebrar, na medida em que se quebra, e assim ele só pode remeter ao seu próprio morrer
o cuidado de sustentar a sua nota, de dançar o seu passo. É preciso portanto que seja
assim no correr da escrita, é preciso que em cada ponto se inscreva aí o que se excreve
dali299: que não há nada mais a dizer, nenhum indizível, nenhum retorno de uma outra
palavra de verdade além da cessação do falar. Mas não há mais folga para essa excrição,
295
Ibid., p. 198. [No srcinal em francês, e na tradução de Álvaro Cabral: “{...} penetrada de devoção,
quase religiosa {...}”. Parece que Nancy substituiu à vírgula a conjunção “e”. {N.T.}]
296
Ibid.
297
Id., « Rilke e a exigência da morte», em O espaço literário, op. cit. , p. 147.
298
Ibid.
299
Sobre a noção de “ excrire ”, “excription ”, ver a nota X supra. (N.T.)
e a poesia – sive philosophia – só é uma palavra vã até o momento de morrer assim.
Neste ponto, a dança ou o canto não perseguem nenhum arabesco e em um certo sentido
não figuram mais. O seu único contorno é o do endereçamento, um endereçamento
tendido e confiado àquilo, àquele ou àquela, que está fora de questão atingir. Assim o
escreve Lacoue Labarthe, a propósito de um outro texto de Blanchot: “[...] uma espécie
de confidência, ou – é a mesma coisa - de confissão. Esse texto é simplesmente
confiado, ele faz apelo a uma fé e a uma fidelidade300”. Em outro lugar será preciso
retornar a essa “fé” em que está presumido evidentemente tudo o que engaja a
“ressurreição”, ou, qualquer que seja o seu nome, a “poesia”, ou bem o aplainamento de
todos os nomes. Por ora, digamos simplesmente que de fato o morrer confia o que a
morte, de fato, esquiva e enterra sem apelo. O morrer é o apelo.
De outro lado, a ressurreição não é apenas emprestada ao léxico do milagre por
ser uma imagem cômoda ou provocadora. Ela se propõe também como uma reescrita da
Escritura Santa: uma santidade substraída à maravilha religiosa, mas subtraindo também
a esta própria maravilha um acesso não crédulo e sem piedade ao que não convém mais
denominar “a morte”- realidade de um irreal – mas “consentimento”, realidade de uma
correspondência com o próprio real do morrer. Essa palavra retorna várias vezes nos
textos aqui evocados e em outros de Blanchot. Mais tarde denominado, sem dúvida,
“paciência da passividade301”, com o qual ele tenta “respond[er] ao impossível e sobre o
impossível302”, o consentimento não se submete nem se resigna: ele outorga um sentido
ou um sentir. Ele concorda precisamente com o sentido e com o sentir do insensível e
do sentido em ausência. Não é nada senão a experiência infinitamente simples, e por
essa razão, indefinidamente renovada, indefinidamente reinscrevível em nós, de ser sem
essência e assim de morrer. A ressurreição – ou bem, digamos, em grego, a anastasis –
levanta o morrer como a pedra espessa e pesada do túmulo, como a estela em que se
inscreve parasempre
inscrevível, se apagar ali aoEssa
excrita. fimestela
o nome de uma diante
levantada identidade imprescritível,
do vazio, sem além ee não-
sem
consolação, conforta de toda a sua massa uma desolação já levada para muito longe dela
mesma e da deploração. Uma leveza infinitesinal, discreta e insistente, que faz o
consentir desse consentimento ao insensível. Que o faz ou que o escreve, se escrever é o
nome, inconsistente como qualquer outro, mas inevitável – tanto quanto “poesia”,
quanto “santidade”- da recusa de qualquer crença em uma consistência estranha ao
mundo. O consentimento da ressurreição consente, antes de mais nada, a recusa da
crença, da mesma maneira como a fé recusa e foraclui303 essa mesma crença. Mas na
realidade, a crença nunca é crível, e sempre em nós alguma coisa ou alguém obscuro
soube disso por nós. Sempre esse pressentimento do absolutamente incrível, desafiando
sem apelo a toda credulidade, confiando-se em si mesmo, absolutamente, dispôs para
nós a via sem saída do consentimento.
Se o consentimento, ou a ressurreição – a “surreição” que levanta a morte na
morte como uma morte viva – sustenta-se na escrita, ou na literatura, isso significa que
a literatura suporta a cessação ou a dissipação do sentido. “Literatura”, aqui, não quer
300
Philippe Lacoue-Labarthe. Agonie terminée, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot seguido de
L’émoi. Paris : Galilée, col. « La philosophie en effet », 2011, p. 149. É Philippe Lacoue-Labarthe quem
sublinha.
301
M. Blanchot. L’Écriture du désastre , op. cit., p. 35.
302
Ibid., p. 37.
303
Nancy utiliza-se aqui do termo técnico cunhado por Jacques Lacan, “ foraclusion ”, traduzido em
português por “foraclusão”, para designar o recalque específico da psicose, enquanto que o recalque é
associado à neurose. (Jacques Lacan. O Seminário: Livro V. As formações do inconsciente . Rio de
Janeiro: ed. Zahar, 1998.)
dizer “gênero literário”, mas toda espécie de dizer, de grito, de prece, de riso ou de
soluço que sustenta – como se sustenta uma nota, um acorde – essa infinita suspensão
de sentido. Compreendemos, essa tenência pertence à ética mais que à estética – mas no
fim das contas, ela desmonta e desfaz também essas categorias. Poder-se-ia dizê-lo
ainda de outro modo: na medida em que essas categorias pertencem à filosofia, elas nos
assinalam também que a onto-teologia filosófica pratica o embalsamento, a
metempsicose, ou bem a escapada da alma – mas nunca a ressurreição. As práticas
metafísicas designam sempre assim um a-diante, o futuro de um renascimento, uma
maneira de possível e de potência, enquanto a literatura só escreve o presente do que
sempre já nos aconteceu, ou seja, o impossível no qual o nosso ser consiste em
desaparecer.
304
Maurice Blanchot. Le Pas au-delà. Paris: Gallimard, 1973, p. 48.
305
Ibid., p. 49.
306
Ibid. É Maurice Blanchot quem sublinha.
307
“Un mot de trop ”. Ibid. , p. 85. É Maurice Blanchot quem sublinha. [A expressão corrente em francês
significa “uma pala vra em demasia”, “em excesso”, a palavr a que não poderia ser dita, ao preço de uma
desteabilização qualquer. {N.T.}]
308
Ibid.
A exigência de Blanchot é essencialmente esta: fazer justiça sem reservas ao
além do sentido, este além que não é precisamente passo (não) além309, que é a
passagem aqui e agora, a cada instante, em cada lugar, em direção ao não-lugar ou ao
fora-do-lugar [hors-lieu] (passagem que ele denomina também “o morrer”, mas que nem
precisa dessa imagem para fazer compreender que se trata, muito simplesmente, da
condição mortal, ou seja, singular, ou seja, exposta por sua finitude à infinitude de sua
singularidade que não pode ser reabsorvida por nada).
A escrita se consagra ao contorno interminável dessa passagem que não passa.
Mas que passa sem passar. Que passa senãoa ( menos ainda até a), no mínimo, em
direção
nos ao Nesse
chega. não- e sentido,
fora-do-lugar, desse
a escrita “fora”à exigência
obedece ao qual não se trata
ética de “chegar”
fundamental: não–mentir
mas que
sobre esse “chegar”310.
O problema da morte de Deus – ou do “niilismo” – é assim perfeitamente
captado: nenhuma palavra a mais, mas o movimento que mantém a abertura além das
palavras.
O neutro é o nome dado ao que imanta esse movimento: ele qualifica a sua
destinação como sendo ne uter, “nem um nem outro311” – e mais exatamente, como
Blanchot o precisa em seguida: “Nem nem outro, nada de mais preciso.” Ou seja: nem o
que quer que seja, nem qualquer “um” que seja, nem o outro, nem um outro além do
primeiro, qualquer que seja ele. Blanchot insiste nisso na análise que enceta então (e que
não seguiremos no detalhe aqui): mais do que a deposição do “um”, é o deslocamento
do “outro”, que forma o efeito do neutro. Não podendo ser o outro do um, como, por
exemplo, o negativo de um positivo, o outro não pode tampouco ser “um “outro, muito
menos “o Outro”. O neutro faz valer “o outro do outro, o não-conhecido do outro312”.
Ora, essa alteridade do outro que o afasta – afastando com ele todo “um”, que ele
seja mesmo ou outro – afasta também o não-lugar de toda possibilidade de localização,
mesmo que negativa. O não-lugar ou o fora-do-lugar em direção ao qual se move a
exigência de escrever não é nada, nenhum lugar em direção ao qual se poderia fazer
movimento.
Se é portanto legítimo dizer que “escrever” significa abordar313 sem descanso o
limite da palavra, este limite que só a palavra designa e cuja designação nos ilimita, a
nós, falantes, que somos assim abertos para além de nós mesmos e do sentido, não é
menos necessário – estritamente necessário – lembrar, ao mesmo tempo, que nenhuma
“abordagem” tem sentido se a proximidade com o além não for proximidade do
absolutamente longínquo. “O próximo promete o que ele não segurará jamais. Louvor à
aproximação do que escapa: a morte próxima, o longínquo da morte próxima314”.
309
Nancy remete aqui à expressão equívoca, lapidar, cunhada por Blanchot, que dá título ao livro em
pauta, “ pas au-delà”, ao mesmo tempo “passo-além”, e “não-além” ( pas d’au-delà), em que o equívoco se
situa na palavra “ pas” em francês, ao mesmo tempo, passo e partícula negativa . A expressão “passo (não)
além” tenta restituir algo dessa equivocidade. (N.T.)
310
“Arriver ” tem sentido equívoco, ao mesmo tempo “chegar” e “acontecer”. Nancy joga aqui com os
dois sentidos: chegar ao (não) além e acontecer o (não) além. (N.T.)
311
Ibid., p. 104.
312
Ibid., p.105.
313
“Approcher”. O trecho insiste nas noções cognatas de “ approcher ”, “approche ”, “proximité ”,
“prochain ”, “prochaine”. Optei por não unificar a tradução, utilizando seja “abordar”, “abordagem” ou
“aproximação”, “aproximar”, “próximo”, segundo o contexto. (N.T.)
314
Ibid., p. 99.
Assim, o neutro não pode rigorosamente ser abordado, ou bem ele só pode sê-lo
sob a condição de um afastamento infinito inscrito na própria aproximação. É
precisamente por essa razão, à exemplo de “Deus315”, que o neutro é uma palavra a
mais. “O neutro: esta palavra a mais que se subtrai [...]316”. Ele se subtrai à linguagem,
ele “quase não fala317”, ele é “o nome sem nome318”.
descrita:Ninguém melhor
se o neutro do que
é o nome semBlanchot soubeportanto
nome, como a extrema
eledificuldade da situação
pode ser nomeado? assim
E no
entanto ele o é, ele deve sê-lo, já que não é possível renunciar à se aproximar –
distanciando-se na medida – do limite onde somos abertos, expostos. Tanto ele deve ser
que Blanchot o escreve às vezes com uma maiúscula, por exemplo, nesta frase: “O
Neutro não tem os títulos mitológicos antigos que toda a noite traz com ela319.”
Esta frase significa que a noite, toda noite, depõe seus títulos mitológicos, sendo
ela mesma – ela que é ou que faz a abertura – aberta pelo neutro, e assim, de uma certa
maneira, neutralizada como potência noturna (por exemplo, como o “horrível sol negro
de onde raia a noite” de Victor Hugo320). O neutro dissipa as potências míticas, ou seja,
aquelas que eram capazes de assegurar uma proximidade do longinquo.
Mas a dificuldade se endurece quando ponderamos sobre a potência apesar de
tudo suposta por essa dissipação. Enquanto “o Neutro” ou “o neutro” funcionar em um
discurso que lhe dê os seus predicados e que o descreva, é de se suspeitar um recurso
secreto a uma potência sobrenominal. O que ocorre, por exemplo, quando o neutro
autoriza de alguma forma uma “experiência” daquilo mesmo de que a aproximação é o
afastamento? Blanchot escreve: “[...] a escrita é corte para com o pensamento quando
este se dá como proximidade imediata, e corte com toda experiência empírica do
mundo. Nesse sentido, escrever é também ruptura com toda consciência presente,
estando sempre de antemão engajado na experiência do não-manifesto ou do
desconhecido (ouvido em neutro [au neutre])321.”
Como escrever se “engaja” nessa experiência não-empírica – ou seja, nessa
experiência que, segundo toda a tradição filosófica, é experiência ligada a uma
necessidade transcendental (ou seja, que pertence a um sujeito puro) ou trancendente
(experiência do além em si)? Ele só pode ser “engajado” de uma maneira que o
desprenda ao mesmo tempo de toda constituição transcendental ou transcendente da
experiência que ele faz ou que ele é.
315
Et d’autres mots : « peur », « folie » : ibid. , p. 85.
316
317
Id., L’Entretien infini. Paris: Gallimard, 1969, p. 458. Os itálicos estão no texto.
Id., Le Pas au-delà, op. cit. , p. 105.
318
Ibid., p. 162.
319
Ibid., p. 104. Observa-se nestas páginas uma alternância constante entre “Neutro” e “neutro”, que não
se deixa inteiramente explicar pela hipótese segundo a qual o segundo teria o valor gramatical corrente.
320
“Affreux soleil noir d’où rayonne la nuit », verso de “Ce que dit la bouche d’ombre” [“O que diz a
boca de sombra”], da coletânea “Les contemplations” [“As contemplações”] (1830-1855), de Victor
Hugo. (N.T.)
321
Id., L’Entretien infini, op. cit., p. 391. É Maurice Blanchot quem sublinha. (A rigor, deveríamos
considerar as datas respectivas dos textos convocados, e apreciar os deslocamentos e modificações do
pensamento de Blanchot; mas não é aqui o propósito.)
Então o recurso à instrumentação conceitual que subtende o emprego da palavra
“empírico” deve ser afastado, assim como deve o recurso à denominação – ela também
precisamente transcendental ou transcendente – de qualquer “nome a mais” como “o
neutro”. Nem condição a priori de um sujeito, nem instância divina, “o neutro” se
obriga a se apagar do discurso que se tem dele e sobre ele. Ele se obriga literalmente a
isso.
Não é aliás o que faz já, na frase citada há pouco, o emprego de “neutro” em
modo adverbial? “Em neutro” desloca a denominação do neutro. O neutro se encontra
ali neutralizado.
Essa fórmula não é de Blanchot, e ele próprio teria suspeitado nela o risco de
uma contorsão dialética. De fato, ele próprio escreve que “O Neutro [...] neutraliza, (se)
neutraliza, assim evoca (não faz senão evocar) o movimento da Aufhebung [...]322”. Se
ele não faz mais do que evocar a negação hegeliana da negação, e com ela a potência do
negativo, é precisamente porque não se neutraliza a si mesmo ou somente parece fazê-lo
(o que é indicado pelo parêntese em torno do “se”). O negativo hegeliano se nega a si
mesmo: ele tem já em si a potência de se efetuar. É exatamente essa potência que
Blanchot nega ao neutro. Ele só pode fazê-lo, no entanto, assinalando de passagem uma
perturbadora proximidade com a Aufhebung e portanto com a potência mesma de se
sustentar fora de si mesmo.
O que inscreve na verdade a impossibilidade de se deter nessa proximidade? O
que dá conta do fato de que “o neutro” não se sustenta no, nem como “fora”, nem como
a “noite”, de que ele designa a inapropriabilidade de fundo?
Neste ponto é possível caminhar com Blanchot ainda um pouco mais longe, ou
um pouco afastado do que ele próprio enuncia (sem com isso pretender ter destrinchado
a meada tão complexa e cerrada de seu pensamento).
Blanchot não para, de fato, de designar o que dá conta (se podemos dizer assim)
da neutralização (não autárquica) do neutro. Em outras palavras, o que se encarrega do
“passo (não) além”: é a escrita, é a literatura. Ora, a literatura, precisamente, não nomeia
“o Neutro”, nem tampouco “Deus”, nem “a loucura”, ou qualquer palavra a mais que
quisermos. A literatura não se serve de nenhuma palavra a mais: ela consiste ao
contrário em mobilizar todas as palavras, todos os seus recursos, de seus “títulos
mitológicos” até as suas insignificâncias, na convicção assumida de que não pode haver
palavras demais, nem nenhuma palavra a mais323.
É por isso que ela, a ficção, conta, recita e ficciona; a ficção – que podemos
ouvir em um sentido bastante amplo de forma a abraçar a poesia, a recitação com o
relato, e até...a música do recitativo – talvez compreendida como a única neutralização
efetiva de todo “um/outro”, de toda presença/ausência representada como dada, estável,
substancial e aproximável. A ficção literária consiste precisamente em afastar a verdade
que se supõe constituída, ou constituível, e por esse afastamento, a se “engajar”, com
efeito, na “experiência” de “nem um nem outro” – nem, nem, nenhuma palavra, mas o
infinito que precede e que sucede incansavelmente a todos os nomes.
322
Id., Le Pas au-delà, op. cit ., p. 105.
323
Em português e perde um pouco o jogo de palavras de Nancy: “il ne peut y avoir trop de mots, ni aucun
mot de trop”. (N.T.)
IV. Parodos (nota por vir: textos escritos ao lado
da...poesia)
1. PSYKHÉ
Psyche ist ausgedehnt, weiss nichts davon. É uma nota póstuma de Freud. A
psique é extensão [étendue], não sabe nada disso. Tudo termina, pois, por essa
breve melodia:
Psique é extensão em seu caixão. Logo vão fechá-lo. Entre os que estão
presentes, alguns escondem o rosto, outros mantêm os olhos desesperadamente
fixos sobre o corpo de Psique. Ela não sabe nada disso – e é isso que todos
sabem ao redor dela, de um saber tão exato e tão cruel.
Nota liminar
De certo modo, gostaria que esta nota não fosse lida. Temo que poder-se-ia ver nela seja
um modo de usar, seja uma teoria, seja uma justificativa para o texto que a segue. Além desse
temor, é verossímil que me repugne a ideia de propor este texto, de qualquer maneira. É um
caso, talvez, de amor e ódio. No entanto, não é possível deixá-lo propor-se por si mesmo, como
se ele se explicasse por si só. Digamos , então, brevemente, o seguin te:
Este texto deriva (emprego esta palavra de propósito, já que o movimento não foi totalmente
deliberado) do projeto de escrever um estudo sobre La Jeune Parque [A Jovem Parca ], de
Valéry. Esse poema já foi comentado por Alain. Isso não impediria uma recidiva, mas seria
necessário levar em conta uma outra circunstância: o próprioValéry comentou o comentário de
Alain, em sua fábula Le Philosophe et la Jeune Parque [O Filósofo e a Jovem Parca ]. Não é
estranho que o poeta tenha escrito – não sem ironia – o comentário de seu próprio poema e o
tenha feito no estilo de uma instrução acerca da lição filosófica da própria poesia. Toda a sua
poética é uma didática, uma didática da poesia enquanto esta, por sua vez, forma uma didática
do pensamento (releia-se, para ser rápido , L’Amateur de poèmes [ O amante de poemas ]). – Isso
deveria ser comentado, ou (então) versificad o? O que é um poema didáti co?
Mas também, ato contínuo: o que é a paródia? Não é um pastiche. E se a paródia não
passasse tampouco de uma imitação debochada ou do travesti burlesco de um gênero nobre? Se
ela fosse apenas isso? (E isso, o que é exatamente?) Se ela fosse ao mesmo tempo – para-ôdè –
o momento decalado do canto, o momento de um acesso ao poema (acesso da poesia, crise de
verso) que
Marcar não de
o passo acede a eleum(por
poesia: recusaparódico
Blanchot ou por incapacidade),
nos teria ditadoe essas marca o passo na soleira.
que palavras.
Mas ainda: e no caso da rivalidade do discurso com o poema e do filósofo com o poeta
(o caso em primeiro lugar de Valéry)? De que forma esta rivalidade poderia ao mesmo tempo
consistir em concorrência , asssalto ou encontro? A paródia encena facilmente a concorrência –
mas o que é uma concorrência paródica?
Mas enfim: não seria importante pensar que a paródia já opera em Valéry? Toda a sua
empresa de poeta (ou também a de Monsieur Teste ) não se definiria a partir disso? Neste caso,
teríamos aqui não uma paródia da paródia, mas a repetição de um passo marcado , um bater o pé
de poesia. Como se por força o solo fosse deformado ou reformado com isso. Não se teria aqui
ao menos uma convicção: de que a poesia não é a potência infinita de uma linguagem (um dos
episódios mais curiosos da modernidade é ter reativado essa tese romântica), mas obedece às leis
da finitude do discurso (paródia, questão de clausura, diria o meu vizinho lírico), e que o
concurso dos dois se acha, talvez, singularmente deslocado?
O que se segue foi, sem dúvida, escrito para deixar todas essas questões, por algum
tempo – e em algum lugar – em suspenso.
Fevereiro de 1979
Ouço e confronto em meu espírito pensativo
O que fala àquele que murmura.
Victor Hugo, «Paroles sur la dune»
Falei uma outra língua. Criança, não falando, eu falava uma outra língua.
« Infante »324 quer dizer em latim « aquele que não fala», é o que diz a ciência das
línguas. Mas isso prova somente que o latim, essa língua morta, ainda fala,
surdamente, obstinadamente, na língua que falo. Dentro desse latim fala o grego, e
quantas outras línguas mais, conhecidas ou desconhecidas? Há sempre, dentro de
uma língua, outras línguas que falam, nenhuma está sozinha quando fala, e não se
pode remontar para trás antes de toda língua. Não há infante [enfant].
Falei uma outra língua, e essa língua ainda fala presentemente, sem dúvida, na
língua que você me fez falar. Você não a ouvia, não podia compreendê-la. Não vá
crer, como você poderia imaginar, que ela era feita de gritos, soluços e mímicas, ou
de uma obscura sucessão de murmúrios. Não era uma língua de criança [ enfant],
nem uma língua na infância. Eu não balbuciava. Outros balbuciavam e
gaguejavam, pensando adaptar sua língua a uma criança. Você não era assim, você
não fingiu
Minha a infância
língua de uma
era tão antiga língua.
e tão bem Sem
feita dúvida
quanto avocê
sua, sabia que todas
e quanto isso não existe.
as línguas,
mortas ou vivas. Não há língua mal feita, nem língua elementar.
Por que ter-me ensinado a sua língua? Eu já sabia a cadência dela, e não tinha
necessidade…
_"PV j(*+/%+; .1 H(+/'G0 E 9&19+1!;8 E2*1$ ?). +-+(.'. .1 -$(2)F)G0 .1 -+,+>(+0 '$1$ 9*/Hp/'*+;8
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#+/'7 )2*,*X.* +?)* $ 2.(1$ 9*/H+/2.;8 ?). 1+/2E1 )1 0./2*3$ )/*'+1./2. /$D*,*J(?)*'$ -$(2)F)G0A
<#AKA=
Ele não diz nada. Talvez queira ir-se embora. Afasta-se. Diz:
Não tenho nada a dizer. Você queria me ouvir falar, tinha necessidade disso. É
somente quando alguém nos fala que sabemos que existimos. O olhar não tem esse
poder. O olhar atravessa e se perde ao longe, por sobre o corpo olhado. Nem o
olhar, nem o tocar podem verdadeiramente ser endereçados. Eu te olhava, te
tocava, não era nada, você não existia, era necessário que eu te falasse. Era,
portanto, necessário que eu falasse a fim de te falar, e a fim de que você existisse.
Mas…
Mas
dizer quepor
nãoque
eraera necessárioque
impossível quefosse
vocêassim.
existisse?
VocêNão eranão
podia umaexistir,
necessidade. Quero
você podia…
Na verdade, já não havia mais nada a fazer. Você estava ali, e queria que eu te
falasse. Eu poderia não ter nascido, mas eu tinha nascido. E eu falava uma língua
que você não entendia, que eu mesmo não entendia. Tudo o que se pode dizer e
tudo o que se pode calar, essa língua o pronunciava, palavra por palavra,
incansavelmente. Eu imitava uma língua que me teriam ensinado, sem ter
aprendido nenhuma delas, e eu as imitava todas. Mas não falava com ninguém.
Quanto a você, não sabia nenhuma língua. Você não me ensinou nada. Ninguém
ensina uma criança a falar. A língua lhe é mais maternal do que sua mãe, é sempre
uma língua de ultra-mãe325.
Eleimri,Blau.
ganz e diz:I was
era azul, eu the
singing erablue
um azul. Er lacht, und sagt: Ich war blau, Ich war
note. 326
325
Jogo entre as palavras homófonas “ outre-mer ”, “ultramar” e “outre-mère ”, “ultra-mãe”. (N.T.)
326
Em alemão: “Ele ri e diz: eu era azul, eu estava todo em azul”. “ I was singing the blue note”, em
inglês, literalmente, “Eu estava cantando a nota azul”. A Blue Note é uma nota musical que provém das
escalas usadas nas canções de trabalho praticadas pelos negros da diáspora norte-americana.
Subsequentement e integrará as escalas de blues e jazz. (N. T.)
Eu não falava. Você abriu a minha boca, forçou a minha boca cerrada, quis me
ouvir, exigiu me ouvir, eu não tinha mais o direito de me calar, não tinha mais o
direito de gritar, você abria e fechava minha boca em cadência, a velha cadência
estava aqui, não era você quem a tinha fabricado, mas você se modelava sobre ela
para manejar meus lábios, e minha língua entre os meus dentes. Você me dirigiu a
palavra e eu lhe falei, foi você quem a dirigiu a mim e ela volta a você, eu não a
dirijo a você, não tenho nada a te dizer, mas você me faz falar, eu te digo tudo o
que se pode dizer, e o que também se pode calar. Você não me ensina nada, mas
me faz falar uma língua nova, e sempre ainda uma outra que fala nela e que você
faz por suaentre
tua língua vez meus
falar, dentes.
remexendo meus lábios e minha língua entre meus dentes, e
As planícies dos mares te sorriem, tibi rident aequora ponti. Lucrécio diz
também, no limiar de seu poema: tu só governas a natureza das coisas, rerum
naturam sola gubernas.
327
Recopio aqui o verbete do Houaiss. “Peã”: “entre os antigos gregos, canto ou hino coral de invocação,
celebração, agradeciment o, triunfo, louvor ou exaltação, srcinalme nte em honra a Apolo (no seu epíteto
ou aspecto de Peão, médico dos deuses), mas também estendido a outras divindades e a indivíduos
importantes, e cantado em ocasiões diversas como rituais, vitórias e campanhas militares, durante as
libações, e em acontecimentos públicos”. (N. T.)
sorriso. Os pretendentes ao étimo são aqui numerosos: aí encontram-se Astarte, e
o prítano, o senhor, e o fruto, e o tirano, e a Frígia, aí se encontra algo do etrusco
e do semita, do egeu e de tudo o que começou sempre por se perder, por se
mesclar nos contornos, nas agitações e nas profundezas do mar nos múltiplos
périplos, desse mar entre tantas terras.
O nome se diz também por esse epíteto ou por esse sobrenome: anadiômena,
que surge das profundezas, que delas remonta, ou mais exatamente, que mergulha
em direção do
o sentido às alturas, umaNela,
profundo. penetração assim comosobe
o afundamento uma elevação. A deusa
à superfície, ele inverte
se faz
superfície, se eleva e se leva embora com a espuma, ao pé do rochedo de Pafos,
em Chipre. Não é Afrodite quem sobe do abismo, é o abismo que sobe nela.
E o quê mais, com efeito, se ela está no governo das coisas, se por ela se fazem
as suas vindas primitivas, rerum primordia, semina rerum, os elementos de tudo
o que existe, todos os átomos, todas as suas quedas seminais, disseminais,
Afrodite atômica?
(Tu eouves
guerra as palavras que dizes? Tu sabes que elas são para nós palavras de
de desgraça?)
Não há deus oculto. Aqui, o divino é precisamente que não haja nada de
oculto, nada de absconso nem de secreto. A profundeza se eleva à superfície
multiplicada. Não é caso para os mistérios, nem para as teologias nem para as
filosofias. Aphros participa da nuvem (em sânscrito, abhra), mas essa nuvem não
obscurece nada, não dissimula coisa alguma. É também a claridade do céu, à qual
toca a água. É a claridade do céu lavada pela espuma.
Essesimples
muito ponto muito claro, essa
desnudamento dosnuvem
deuses,misturada de há
quando não céumais
e dedeuses.
água, é o lugar do
A superfície não está posta sobre o fundo: é o fundo que aparece, que sobe
inteiramente à superfície. A superfície espumosa é o nascimento ele mesmo, ela é
abainha
deusade
queonda,
nasce, e que
e em não
cada é divina
uma senão poronde
das cavidades nascer assim, asecada
a espuma crista, a cada
espalha.
Os pássaros dos ares celebram a ti, divina, e a tua vinda. Aeriae volucres te,
diva, tuumque significant initum.329
Também essa eclosão do abismo não ergue nada acima da espuma. Afrodite
não é profunda, mas não é muito menos, erigido sobre o mar e tocando o céu,
nem um farol nem um falo. A penetração não clareia o mar, não o vasculha: ela
só molha, espuma, está molhada, é o mar destilando sua essência marinha.
Afrodite decepciona o amor brandido, ereto, de focinhadas. Ela é a decepção do
saber, não alicerça o céu das Ideias. (Eurípides e Platão recolhem o uso que
distingue a Afrodite uraniana da Afrodite pandemiana: mas assim decomposta, o
que resta dela?) Ela não toca senão à espuma, ela é o tocar da espuma.
Isso não diz, no entanto, que o falo tenha sido suprimido. Tampouco não há
castração. Não é a cena de Ouranos, e a espuma não é mais esperma do que ela é
cada fluido e cada licor do amor.
Há a cena de Atis, o falo cortado por Cibele-Astarte, a Boa Deusa, a Ideana das
montanhas, a grande
lâmina de pedra ou deMãe de Síria.
bronze, e nãoMas esse corte Ondas
há sacrifício. espumoso dissolve
banham também ea
a montanha,
nada é retalhado, quando um sexo passa pelo outro.
328
Nancy joga aqui com a homofonia de “ nue”, em francês, ao mesmo tempo “nua”(feminino de nu), e
“nuvem”. A frase “Aphrodite est nue pour tous les dieux” é perfeitamente equívoca, significa ao mesmo
tempo que Afrodite é nua e é nuvem para os deuses . (N.T.)
329
Trecho de De rerum natura de Lucrécio: […] A eriae primum volucres t e, diva, tuumque/ significant
initum perculsae corda tua vi . “[…] Primeiro os pássaros aéreos, aunciam-te assim que tua aproximação”.
Lucrécio, De rerum natura , I, 12-13. (N.T.)
Philommèdès, philomeidès, sempre irresoluta. A cena é sempre diferente. Ela é
a cena dessa metamorfose em que cada diferença imprime sobre a outra sua
marca diferente. Cada uma vai na outra além da outra e de si, e não volta a si,
nem se perde. Nunca identificável e claramente distinta, a verdade numa alma e
num corpo.
Afrodite oferece o falo com a espuma. Com o grão de sal, ele é apresentado em
seu culto. Dessa oferenda, nem o saber nem o mito podem compreender qualquer
coisa. Phallos não somente molhado, mas ele mesmo molhadura, espuma, nada
mais do que espuma salgada. Os primeiros ídolos da Grande Deusa de Chipre são
de sexo indeciso. A própria Afrodite, na ocasião, se torna Afroditos. Mais do que
um casal de falo e de excisão, seria o dublê do monte de vênus 330 e do pênis,
nosso hermafrodita comum, sustentato por nenhum étimo.
Afrodite duas vezes: fêmea, macho, sem mistura nem confusão. Dividida,
multiplicada, partilhada de srcem, sem medida comum. Cálculo diferencial do
limite ilimitado de uma dupla apalpada. De alto a baixo, de baixo ao alto, o sexo,
nome cortante, fende a Afrodite com uma fenda que não mutila nada. De uma
parte e de outra, uma e outra espuma intata – o charme e a chance do tato.
O nome de Afrodite está bem longe de ser o único nome, e o único nome
divino, cuja proveniência seja atormentada, disputada, desancorada, flutuando
entre as águas. Mas talvez seja o único do qual um étimo sorridente indica isso
mesmo: arfagem e rolagem, cristas e rolos, o ondulação e a espuma das ondas, o
movimento multiplicado no mesmo lugar, a ressaca repetida, o marulho, a esteira.
Afrodite marinha, e navegadora, pontia, euploia Aphrodité .
(Peã, tuas estrofes são sem emprego, tu nos dás uma espuma de palavras, um
vinho borbulhante, mas a festa chegou ao fim, Don Giovanni, a música está na
memória. A melodia infinita se perdeu nas brumas, e o ritornelo dá voltas.
Estamos acabrunhados. O teu espumoso nos enoja, é preciso te calar. Afrodite
está triste hoje.)
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<9-G/*0;= 0. */0'(.>. +?)* /+ -+(+/$1J0*+A <#AKA=
*
(Como nós?
Não o saber nem a sabedoria, mas a beleza. Platão deve reunir, no elã de Eros,
Urânia e Pandemos. A beleza passa dos corpos às almas – e como as almas, para
serem belas, deixariam de demandar de novo os corpos, e de passar a eles?
Afrodite é a passagem. O cortejo vai e vem, entre os dois templos de Urânia,
aquele onde a estátua é de Fídias, aquele onde ela é de Alcmeno, e o templo de
Pandemos, onde Sólon mandou instalar o ofício da prostituição.
(Estrabão diz que todas as mulheres da Babilônia, obedecendo a algum
preceito divino, se uniam aos estrangeiros no templo de Afrodite, em cerimônia e
no meio da afluência. O dinheiro pago pelos estrangeiros era consagrado ao
serviço da deusa. Eles pagavam pelos seios lambuzados de mel e pelas coxas
esfregadas com murta e aloé.)
Platão a mantém a distância. A ela ele prefere Eros. Dele, ele não faz seu filho,
mas o rebento – nascido no mesmo dia que ela – de um casal de conceitos
laboriosos. Amor necessitado, Eros philosophos: irmão gêmeo da espuma,
retirado sobre o seco do pensamento. O solo seco e sólido onde se pode
duramente, duravelmente edificar.
Diotima se esconde por trás de Sócrates, cuja feiura protege o Belo verdadeiro.
Entretanto, Platão ama a beleza – mais do que ele saberia dizer. Assim Diotima,
única Platão-mulher, Sócrates maquiado, disfarçado, enfim belo, invade nossas
memórias com seu ausentamento.
Mas por que a beleza não nos abandona jamais? Quando tudo é feio, ela
permanece mais do que uma lembrança. Por que ela é imemorial e sem história?
Por que Platão quer belos discursos?
*
(Peã, belo pensamento, não cantes mais, faze calar as flautistas, e dize-me a lei
« dessa potente Afrodite de quem se gaba a insubmissão». Ataktos Aphrodité,
qual é a sua ordem, sua regra e sua medida sem medida? Dize-me, se o podes, a
frase de um tal pensamento. Dize-me essa frase nua, Afrodite afasia.)
Vinda de alhures e de toda parte, filha das ilhas e das costas, ela põe os gregos
no mar, embarca Helena, a qual seguem todos os Reis. Ferida no jogo que ela
arrisca, ela embarca seus caros troianos, Anquises sobre Eneias, o Oriente sem
retorno até as orlas do Ocidente, Aeneadum genitrix, mãe da raça de Eneias.
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332
Verbo cunhado por Jean-Luc Nancy, de “ étymon ”, étimo, ligado à etimologia. O equivalente seria em
português “etimar”. (N.T.)
Pode-se imaginar por entre a espuma esse passo leve de um Filho do homem
que seria irmão de Atis? Mas não, todos os deuses vão embora com ele. Vem um
mundo de exílios, de peregrinações, de grandes migrações, e de curiosidades, e de
preocupações. Parada da ida e vinda: a história se põe na estrada.
Parada Afrodite ela volta, renasce mãe de Deus. Sábia como uma imagem,
pronta para a pintura do amor e da carne, perturbações já envelhecidas, murchas,
de uma jovem cultura. O renascimento é conduzido no luto, na viuvez de Deus.
Mas
comoAfrodite
devemosnunca
dizer? foi mais virgem do que viúva. Não compreendemos? Ou
Afrodite,
semita a mais égrega
(*Attor(i)t das gregas,
o menos e a menos
improvável reconhecível.
étimo). Troiana, Arqui-helena, antes
babilônica, siríaca,
etíope, judia, árabe. Helena raptada da Grécia, retornada ao Oriente, perdida no
Egito, dada ao Ocidente. Afrodite mestiça.
A espuma dos povos com a espuma de suas palavras, com a das ondas sobre
suas
falas orlas
e de ecultos,
sob seus
de remos. A espuma
navegações de seus dias:
e de fadigas, desdeimaginem
os ídolossete mil anos de
de andesina de
sexos incertos até nós que captamos a espuma de seus nomes sobre a tela
brilhante de um computador.
333
Verso de De rerum natura de Lucrécio: omnibus incutiens blandum per pectora amorem , “jogando em
todos os corações doces traços de amor”. Lucrécio, De rerum natura , I, 19. (N.T.)
(Contam-se em Estrabão vinte e seis cidades e lugares de culto que portam o
nome de Afrodite, dos quais Aphroditè Polis, onde se cria o boi sagrado do Egito,
não longe de Crocodilópolis, e aquela que se nomeia em latim Veneris Portus,
Port Vendres.)
E eis também por isso que há luto sem serenidade, e desnudamento sem sorriso
nem poema, e despojamento. Uma espuma paralisada, pornofilia afrodisíaca, e
obscenidades de tortura ou de inanição. E nada nem ninguém para dar razão ou
para dar graça.
334
Trecho do primeiro verso de De rerum natura de Lucrécio. O verso diz o seguinte: aeneadum genetrix,
hominum divumque voluptas , “Mãe de Eneias, prazer dois homens e dos deuses”. Lucrécio, De rerum
natura , I, 1. (N.T.)
O mito não fala mais a palavra geradora, em que o sentido se engendrava por si
mesmo, em que o mundo se enrolava sobre si mesmo, língua de seu próprio
sentido, e própria propriedade de sua língua. Que o mito tenha seja interrompido
quer dizer que esse modo do sentido é interrompido. A interrupção do sentido: eis
muito simplesmente essa época denominada « Ocidente ». Ou então esse tempo
que crê que se cortou dos tempos imemoriais.
O mito interrompido não fala mais como falava, miticamente (como pensamos
que ele falava: pois os ídolos cipriotas nunca nos disseram o que pronunciaram,
se eles pronunciaram alguma coisa).
Não é que não haja mais nada a dizer, nem um silêncio de Apocalipse. Do
próprio lado direito, ou do avesso, em que o mito é interrompido, alguma palavra
se faz ouvir. Esse lugar não é outro senão a superfície do mito, lá onde cessa sua
profundidade de sentido, a espuma de Afrodite.
O sentido não é mais dado, se jamais ele o foi. Mas a espuma das palavras
propõe o sentido. Algo de molhado: que escorre por toda parte, e que se perde,
desliza, evapora. Sentido mesclado sempre com outro sentido, com outra coisa
além do sentido, e com o sentido de outra coisa, sentido mestiçado. Mas a
mestiçagem do sentido não é um outro mito. É o que somos todos, mistura
ordinária infigurável, figura tão comum, tão perdida quanto um ídolo sem forma
com a idade de sete mil anos. A mestiçagem não é uma substância, não compõe
uma outra profundidade. Não é senão o muito lento movimento do corpo a corpo
[mêlée] de homens com homens, de homens com deuses, de homens com
mulheres. Saliva de palavras confusas pronunciadas, lábios contra lábios,
fielmente.
(Não há mais peã de vitória. A epopeia se cala junto com todos os cantos.
Guerra sem lenda: não é para se dizer.)
Fenda, mas sem abismo, sem precipício e sem profundeza. Hystera, o que vem
por último, no fundo, vem antes. Hysteron proteron, figura de retórica, também
denominada histerologia. A palavra da deusa é uma doce histeria de espuma sem
angústia, sem potência. Uma divindade sem força, analkis theos, mas de onde se
escapa, quando ela sangra, ichôr, o sangue imortal cujo escoamento brilha e não
faz perecer.
Nada mais do que uma elevação sobre a água, nem mesmo um degrau, um
nascimento da fenda que aflora.
Cipris, a deusa da ilha, eleva docemente sua fenda. Ela é, inconcebível, bem
concebida, a desobstrução de uma fenda, a moita de erva partilhada, e sua gema,
e sua chave, kleitoris.
Mastos, também, o seio: o nascimento dos seios. Mais uma vez ainda, o étimo
pertence ao úmido. Ser molhado, escorrer, regurgitar, transbordar. Ser ébrio. Fora
de sentido, aphrosyne. Embriaguez de Cipris : a existência literalmente
exuberante. Uber, mamilo, generosidade, étimo que difere de um nada do de
hister (*ud-/udh-). Mais um sorriso ainda sobre o mar tinto. E o homem inveja no
seio da mulher o inchar sem arrogância, a elevação pacífica e o abandono.
335
O verbo é “ délivrer ”, cuja polissemia é intraduzível em português: libertar, soltar, livrar, entregar, dar a
luz, parir. Cf. supra, nota XX, p. XX (N.T.)
336
Em francês “ pas de dieux”, frase perfeitamente equívoca, ao mesmo “sem deuses” e “passo (ou passos)
de deuses”. (N.T.)
dobra do céu e do mar. Afrodite de olhos de luz, ommata marmainonta, Afrodite
dourada, chrysè Aphroditè.
Afrodite pensa: ela pesa o peso da espuma. Esse peso vago, perolado, que não
pesa nada sobre toda a profundeza. Argynnis aphroditè é uma borboleta brilhante
da América do Norte. O peso de um voo tênue, que não circunscreve território.
Que fende as algas, e as ondas, mas as deixa mescladas, tosão cheio de espuma,
aphrokomos.
Essa claridade não cega, e, no entanto, não há nada para se guiar, nesse
nascimento nu dos sentidos. Nem uma gramática, nem uma lógica, nem uma fé,
nem uma política. É preciso que o pensamento se levante nu.
Fausto 1
Tomai tenência, pois em pouco tempo não restará nada de vós, conhecimentos,
sabedorias, depósitos veneráveis das noites de estudo e das vidas de pensamento. Nada
restará senão meu punho cerrado sobre vossas páginas rasgadas que lançarei no fogo da
lareira.
Faço ressoar o alarme de um incêndio que se propaga através de vós, vossas páginas,
vossos volumes e vossas prateleiras, vossas imagens, vossas ideias. Ó lembrança de
Alexandria, de Sarajevo, do imperador Chi Hoang Ti! Aqui, no entanto, uma substância
instável pegou fogo espontaneamente, sem que nenhuma causa externa viesse lhe trazer
a centelha. Nenhum incendiário, nenhum carregador de tocha ou de lança-chamas,
nenhum atirador de fósforo ou de napalm. Mas uma queimadura se formou diretamente
sobre vossas escritas e vossos símbolos, cujo abrasamento se estendeu sem pena através
das palavras e das frases, através das imagens, dos planos, das equações e dos
diagramas.
E, com certeza, através dos grimórios dos concebedores de fogo, de estopa, de piche,
de salitre e de pólvora negra, dos alquimistas da combustão e da consumação: para eles
também, seus volumes queimam.
Fausto 2
Penas perdidas, pensamentos, meditações e reflexões, e vós também pesquisas e
tratados, manuais, almagestos, antifonários e bestiários, missivas, breviários e
coletâneas, bíblias e corões, sutras, livros de salmos e cancioneiros, álbuns e atlas.
Tomai tenência pois não vos deixarei subsistir. Eu vos previno, mas não vos deixo
chance alguma de escapar ao meu furor. Em verdade, nada vos guardará, e não
encontrareis segurança em nenhum lugar. Faço levantar em vós mas contra vós uma
raiva sem precedentes, uma exasperação que ergue o ardor de consumir todo saber e
todo discurso.
Soo o sino a rebate mas não serve para nada. Não fugireis para lugar nenhum: não
tendes lugar para onde correr a vos refugiar. Não residis senão em vós mesmos e sobre
vós mesmos recurvados. Sois iguais a uma cidade fortificada e em brasas por todas as
partes, e cujas fortalezas interditam a fuga. Ei-vos aqui, livros, entregues livres à vossa
própria chama, e quem jamais se salvou daquilo que o destroi desde seu próprio
coração?
fogueiras,Não é um auto-de-fé
os pirômanos que vos
do espírito, destroi,
para pois paraseus
eles também, eleslivros
também, os fazedores
queimam de
com suas
doutrinas incendiárias.
Fausto 3
Ele não falará mais do sentido. Não o decifrará mais. Não o interpretará mais. Muito
simplesmente, não o compreenderá mais. Por isso não estará mais nesse ponto. Mas
cerrado em seu punho como um fruto demasiado maduro que se esmaga e cujo suco
escorre entre os seus dedos, o que foi o saber terminará por se absolver de toda relação,
de toda saliência, e tudo irá se abismar ou se exaltar no ato puro.
Ele não quer mais o saber, ele quer a sua morte e a anuncia. Recusa a insuportável
distância entre o saber sabido e o saber sabedor, entre o sábio e a ciência, entre a ciência
e ela mesma, esse intolerável e não redutível desvio que lhe remete sua consciência de
si, como a garantia necessária de sua segurança: a evidência de um saber de si no fundo
de todo saber do outro, o objeto, a coisa, o mundo, a língua também e enfim o próprio
pensamento, sua noese, sua noção, seu juízo.
Fausto 4
O que quero é fazer o pensamento idêntico ao ser do qual ele é o pensamento. Não
igual, nem semelhante, nem análogo, mas idêntico. Ser e pensamento, uma mesma
coisa. Um velho poema dizia isso, mas não quero mais que um poema o diga. Esse
poema também queimará; aliás, ele já perdeu mais de um papiro e mais de um verso.
Mas é preciso para isso, para culminar na mesma coisa, que se entendam bem os
verbos: pensar e ser, não o pensamento e o ser. Pois o pensamento pode muito bem
tomar o ser por objeto, e o ser pode muito bem ter o pensamento como uma de suas
espécies, como uma coisa entre outras. Mas se pensar é ser, então não há mais objeto
nem coisa. Tudo vem dar no idêntico: pensar é pesar, ora vê-se bem que de maneira
idêntica ser é ainda pesar. Nada é sem peso, nada é sem apoiar sobre um solo ou sobre si
mesmo. O que não apoia nem pesa, mesmo que fosse do peso mais ínfimo, se dissipa em
vapor, em fumaça, depois em pura dissipação.
Eis por que, meus livros, eu vos queimo. Eu vos devolvo à vossa agravidade. Não
retenho nada de vós. Quero apenas o peso, a pesagem das coisas numa balança de
justiça. A gravidade de uma justa pesagem das coisas, sem interposição de significação
nem de valor.
que seunão
razões espetáculo
tem nemémais
aquele deporque
lugar um sonho onde tudo énão
sua consecução simultâneo
tem lugare de
onde
ser;a mas
ordem dasé
tudo
dado junto, a razão e o efeito, a concepção e a execução, ele mesmo enfim e aquilo que
não é ele, isso em que ele quer passar e ir existir como o homem o quer na criança, no
animal ou na mulher. Ai, quem não vê que o homem desaparece então, e que não é mais
ele que encontramos fora dele, mas a sua perda, sua confusão e sua demência? Quem
não o vê, salvo ele?
Fausto 5
É a crescência que ele suprime. Não esse crescimento que reproduz o idêntico e o
equivalente recapitalizando-o sempre em novos programas, mas o que segue de um
nascimento, aquele que desenvolve uma concepção, cresco, creo, o cuidado e o
amadurecimento de um ser que existe. Esse crescimento que sai de quase nada, de um
encontro, de um acaso, de um clinamen dos átomos, de uma inclinação das paixões.
Aquela que entrega [livre] não à espera, mas a essa disponibilidade que nem mesmo
espera e que somente se dispõe, se deixa dispor. O amadurecimento do fruto, mas
também como ele se destaca e cai podre na relva onde os insetos o comem com os
vermes e os pássaros. Como ele esqueceu isso? Ele quis estufas para forçá-las e frutos
imperecíveis, nunca podres e nunca tampouco maduros. Como ele quer o fruto sem
atraso, ele quer o saber sem livro e a história sem relato. Ele quer o homem sem rasgo
nem abertura, o punho fechado que o infinito ou então o improvável não desapertam
mais.
Fausto 6
O inominável é o único nome que no fim posso aceitar. Não o nome que ultrapassa
todos os nomes e os denomina a todos se sobrenomeando ele mesmo, mas o inominável
cujo próprio nome corrompe e roi todos os nomes, o inominável como um nojo [dégoût]
dos nomes, um embrulho-no-estômago e uma revulsão.
O sino
dasfala (sino impelido
bandeiras de prece,pelo vento nodomeio
à passagem pescoço)
É preciso para ouvir o nome primeiramente escutar o som. É preciso deixar ressoar o
efeito simples de um barulho de amarrotamento, de um batimento. O que um sino quer
dizer é, antes de tudo, o repique de seu batente contra suas paredes muito alargadas. Ele
bate em sua própria parede para remeter-se a si mesmo desde a outra borda de sua
abertura. Este vira em direção ao solo uma boca de sombra na qual bate essa língua
pesada, esse dedo ou esse plectro de ferro. Disso se pode tirar um suplício atroz, mas se
pode também compreendê-la como o anúncio de toda língua, como o chamado a toda
língua e a toda nominação – ou seja, ao desejo de abraço, a esse desejo exasperado de
ser enlaçado às coisas por seus nomes. O sino chama à palavra, o Glockenspiel aos jogos
e às preces da palavra que apazigua.
Fausto 7
Não mais decifrar, mas despedaçar337. Desfazer o tecido de signos que nos envolve o
mundo para no-lo desembalar mais tarde amargado, mal conservado. Ir às coisas em si:
Oh ! que minha quilha estilhace! Assim como se escorre o metal de um sino para fundir
337
Paronomásia entre « déchiffrer », decifrar, e « déchirer », despedaçar. dilacerar, rasgar, romper. (N.E.)
um canhão, do mesmo modo…
Devo, pois, além disso me desfazer dos signos e de todo meio de aproximação. É
preciso que eu me desprenda mesmo dos sentidos que me informam. Não se trata mais
de
umver, nem
tocar, depois
não, ouvir,
elenem mesmo
guarda de acheirar,
a coisa de de
distância degustar
pele, eou
nãodeéapalpar. Nem
aquilo que eumesmo
quero.
Não é aquilo que queremos, ó meus contemporâneos! Nenhuma pele, nenhuma
membrana, mas queremos nos unir com a coisa sem que nossa chegada modifique nada
nela.
Ele não sente como os signos insistem em torno dele. Não lhes percebe seus
deslizamentos. Não ouve seus pios. Não adivinha suas roçadas. Ninguém se desfaz
assim de suas intrigas. Eles trançam redes, estendem cabos no vazio, urdem, tramam,
atam e desatam.
Ele mesmo, quando fala, não se ouve? Ele não é o primeiro a receber, no eco de sua
voz sob seu crânio, o rastro de uma outra voz que se enviou na dele de mais longe, de
mais adiante do que ele? Sim, ele ouve isso: ele ouve em seu mundo rápido e feltrado
alguns sopros vindos de um mundo muito antigo, pleno de lentidão e de balbúrdia.
Ele não pode fazer com que ele se confunda com a coisa pois as coisas em si não se
confundem entre elas e seu princípio mais antigo do que todo princípio, sua razão de
antes de toda razão, tão recuada nas idades do mundo, que seu recuo é doloroso a
considerar, sua razão primordial e privada de razão não tem outra energia além da de
uma separação sempre recomeçada, e cuja srcem ela mesma é já separada de si, orifício
aberto, abismo e escancaramento dos lugares de onde se fazem os nascimentos, as
proveniências, as excrescências. Que ele seja separado até se provar decepado de todas
as coisas, eis por onde o mundo se dá a sentir, se abre a seu sentimento. Em seu peito,
infelizmente, duas almas se separam, se distinguem e se dilaceram mesmo puxando
demasiado forte sobre seus mínimos tegumentos. Mas ele, esse infeliz, eis que ele toma
essa tensão entre suas duas almas por uma cisão e uma expulsão do sentido. Por uma
liquidação e uma nadificação.
Ele tem e não tem razão. Bato sem descontinuar entre os dois, entre ele mesmo e ele
mesmo. Ele tem razão em recusar o separado. Ele está errado em não aceitá-lo. Somos
separados, e o sentido é feito de nossa separação. Somos separados em rochedos e em
peixes, em espumas e em nuvens, em lobos e em cidadãos, em eu e em tu, em homem e
mulher, em ver e tocar. Somos separados, isso faz sentido, quer dizer, distância
intransponível e frágil, portadora dela mesma e nada a mais – mas portadora sim, porta
aberta a nos entre-ter.
Fausto 8
Eu queria que o mundo cessasse de ser mudo como ele se tornou, e desde muito
tempo agora. Queria que o mundo falasse e que para esse fim uma palavra
verdadeiramente falante depusesse sua potência no oco das coisas mesmas. Queria um
silêncio desvairado de fervor para a imediatidade de nossos atos, de nossos cálculos, de
nossas operações prodigiosas. Queria que a língua cedesse o passo a um indizível
estupor e a transformações, revoluções insensatas. Sim, o insensato não cessava de me
guiar, e como, entretanto, ele poderia orientar?
A vós, livros queimados, vejo voltar um cortejo mudo de cinzas que espalham sobre
vós os rastros de uma fuga sempre por vir.
Não dizer nada e tudo dizer, fazer silêncio e reunir os sentidos em um verbo
soberano, é mesma ambição, mesma decepção. Livro santo e livro em cinzas têm o
mesmo texto cor de fuligem, cor de noite.
Mas vós restais, livros mal consumidos, fragmentos caídos sobre o lado das chamas
ou então permanecidos escondidos na espessura ainda intacta dos volumes espessos.
Vós sobreviveis ainda, páginas enegrecidas sobre as quais se podem decifrar os restos de
um poema, e se comover com sua beleza de ruína. Vós insistis, páginas chamuscadas
que deixais aparecer pensamentos implementados, conclusões truncadas, mas com eles o
movimento de uma inquietude, o levante de um elã, tantos convites a retomar.
Talvez seja necessário e desejável que os livros queimem e deles restem signos
calcinados para um deciframento febril, inquieto, en mal de sentido e de verdade. Mas
talvez não haja aí nada mais do que um desejo de me justificar?
Não dizer nada, dizer tudo, dizer a coisa em si e enterrar a palavra em sua pura
presença de coisa, isso dá no mesmo, no mesmo furor. É sempre esquecer a carícia do
signo, o afloramento das significações sempre enviesadas, jamais cumpridas. Nem o
explícito nem o implícito testemunham de nada, mas somente o desdobramento ou a
dobrura, sempre em meia-corrida. Não dizer tudo, mas deixar dizer alguma coisa de
todas as coisas.
A miséria do saber é grande, não menos grande é aquela do relato, na medida em que
se lhe espreite o fim e se lhe conte o ganho. Mas ao se fazer caminho, essa miséria se
conhece e se apiedade de si mesma. Ela se faz justiça assim. O saber se alivia das coisas
sabidas, e o relato, das coisas relatadas. Resta, entretanto, a queimadura do sentido que a
verdade fria e queimada não apaga.
Estes são os restos dos livros que se teriam por si mesmos abrasado – mas ele não
soube nada disso, ele que acreditou tê-los inflamado. Os restos são uma queimadura que
não se pode resfriar. As palavras não cessam por fim de nos faltar, no amor e no horror,
mas sua falta testemunha ainda por elas, testemunha pela sua insistência desajeitada. De
que as palavras lhe faltem no êxtase ou na síncope, terá sido preciso que de saída elas se
escrevam e de sua escrita terão restado sobre folhas enegrecidas traços ilegíveis que nos
retornam para enfim transcrever em uma língua a inventar.
É verdade que nosso saber não sabe mais que saber, e nosso relato recitar. Mas
falamos ainda com palavras de cinza, e traçamos ainda signos para somente nos
assinalar. Podemos esquecer todas as encantações e todas as evocações do inominável,
mas, adiante de nós, fazendo-nos sinal ainda, avança cada vez um novo inominado, que
faz signo sem significar.
Fausto 9
Os sinos se calaram. Não há mais alarme nem anúncio. Os próprios minaretes estão
mudos, e nos templos as campainhas são demasiado agudas. O incêndio é permanente ao
mesmo tempo que está em toda parte apagado. A cinza cobre os signos e os novos
signos são eles mesmos incinerados. Tudo se resolve em lava fria e círculos de fumaça
recortados sobre as paredes das bibliotecas.
O tinteiro que lancei na face do diabo enegreceu as páginas dos livros sagrados como
com uma bile negra e ardente. Não quero mais, livros, vos ler, mas cabe a vós me
decifrardes. Mas sei bem, oh ! sei apenas demasiado a que ponto sou ilegível e o quão
pouco vossos signos cegados poderão me interpretar!
Não se trata mais de interpretar: trata-se de somente provar a tinta queimada e sua
cinza resfriada. Não há mais alarme nem anúncio, pois eis que o pior é certo tanto
quanto o melhor e o indiferente – mas, sobretudo, o real é certo. Não há porvir pois não
há mais passado. Mais nada passa e tudo se mantém suspenso numa formidável
hesitação que abraça o instante presente. O presente não se apresenta mais, ele se depõe.
como supreende
pensar cada um
em seu apartamento
à parte virado todo para dentro
mônada mundo em si
a cidade fora
barulhenta longínqua outro mundo
*
rio fita riacho correia de água
margens de duas bordas ilhas e pontes
água preta e profunda mergulhada
em razão de ser da cidade
338
“[A]ssemblée sans ensemble/ ensemble de semblants/ semblables entrotées”. O trecho é todo composto
a partir das panaromásias: “ assemblée ”, “assembléia”; “ ensemble ”, “conjunto”; “ semblants ”,
“aparências”, “fingimentos”; “ semblables ”, “semelhante”. (N.T.)
*
civilização de cidade
de que a cidade
foi signo emblema brasão
nem fortaleza nem santuário
nem domínio real
cidade
burgo de burguesia
falso burgo povo verdadeiro
periferia em zonas descivilizada
sem signos emblemas brasões
sinais sem placas concreto
centro da cidade
periférico downtown
enrolado em tornoem
dobaixo
embaixo
radial anel não penetrante
o embaixo fica impenetrável
a cidade está aí embaixo muito baixo
sob os arcos poderosos dos freeways
*
metrópole megalópole
cidade mãe grande cidade
polícia política polidez
cidade cidadão periferia banida339
vizindade civil
incivilidade de proximidade
urbana conurbação
tentáculos pseudópodos pseudópolis
na cidade ou em casa
para a cidade ou para a cena
na cidade ou no vilarejo
339
« [B]anlieue banni ». Ambas as palavras tem como étimo o : « ban », a lei medieval que leva à pensa
aquele que não a cumpre. (N.T.)
sem duração tudo em momentos
aparições desaparições
sacada café plátano
corredor cabeleireiro florista
paliçada doceria
ruela porta campainha
antenas relais porta-tabuletas
cartaz filmes liquidações concertos
pessoas cruzadas esbarradas apressadas
pessoas apertadas pessoas absorvidas
maltrapilhos e maltrapilhas
anódinos e anódinas
contadinos contadinas
todos citadinos citadinas
modo de primos primas
340
“Oui, je (tu) jouis”, a assonância se perde em português. (N.T.)
preciso ainda certamente aventurar-se a compreender também que “dizê-lo”, em si
mesmo e absolutamente, é gozo.
Da mesma maneira, e de próximo em próximo, devemos compreender as
designações do obsceno e do “vergonhoso” (gestos, partes do corpo, gostos...) como
tentativas propriamente desesperadas de atingir o coração esquivo do gozo, de exibir-lhe
o próprio eclipse. O “desespero” aqui pertence ao saber do “impossível” – mas ao
mesmo tempo ele o arremete além dessa designação demasiado simples de um
“impossível”: pois ele designa e enforma nisso, em suma, a própria possibilidade. É
aliás também por isso que se a pornografia consiste em permanecer presa ao fantasma da
exibição
quiser (e à exclamação
denominá-lo) comodosuperexibição),
se desfaz o amordo
fantasma retornando emgrito
compensação (ouecomo
ao murmúrio ao se
silêncio.
A exclamação toca portanto no centro do enigma pornográfico. De um lado, ela
não diz nada: ela dubla o ato de uma suposta nominação (como se “esporro!” pudesse
denominar do que se trata...) mas ela é apenas, na realidade, um abalo a mais deste ato.
Ora, não há, de fato, nada a dizer nem a mostrar. É o que faz o impasse constitutivo da
pornografia. Mas, ao mesmo tempo, o impasse se diz, nem que seja neste não-dizer no
entanto exclamado, nem que seja neste mal-dizer, esta “blasfêmia” e esta “imprecação”
que indexam a exclamação menos como transgressão religiosa do que como uma cólera
da fala desencadeada contra ela mesma, no ponto preciso em que ela não pode senão
dizer demais ou pouco demais. Poderíamos também fazer observar a Lacan que se a
relação sexual “não se escreve” (ou seja, se não há “relação”, relação consignada e
significante), em compensação, ela se diz, e ela se diz até – ou então a partir – da
extremidade de sua exclamação.
Bibliografia: Christian Prigent. « Un gros fil rouge ciré » [« Um grosso fio vermelho encerado »].
In : L’Intenable [ O insustentável]. Paris : P.O.L, 2004 ; Jean-Luc Nancy. L’« il y a » du rapport sexuel [ O
« há » da relação sexual ]. Paris : Galilée, col. « Incises », 2001 ; Jonathan Safran Foer. Tout est illuminé
[Tudo está iluminado ]. Tr. fr. Jacqueline Huet e Jean-Pierre Carasso. Seuil, col. « Points », 2003 ; para a
página 266 aqui evocada e que é apenas, como a última página de Ulisses, uma referência dentre um
milhão de outras possíveis na literatura : esta não sendo por acaso.o lugar verdadeiro em que se pode dar à
exclamação uma fala capaz, por um instante, de portä-la ; por essa razão, a bibliografia é aqui por
princípio impossível a delimitar. Preferir-se-ia portanto infringir a bibliografia para citar somente
Appolinaire em um de dos Poèmes à Madeleine [Poemas para Madalena]:
Eis do que é feito o canto sinfônico do amor que sussurra na conca de Vênus
Há o canto do amor de antigamente
O ruído dos beijos desvairados dos amantes ilustres
Os gritos de amor dos mortais violados pelos deuses
As
Há virilidades
também os dos herois
gritos fabulosdas
da loucura os bacantes
erigidos como
loucasosdecírios
amorvão
poreter
vêm comoo umhipômanes
comido rumor obsceno
secretado pela
vulva das éguas no cio
Os gritos de amor dos felinos nas selvas
O rumor surdo das seivas subindo nas plantas tropicais
O estrondo das marés
O trovão das artilharias em que a forma obscena dos canhões realiza o terrível amor dos povos
As ondas do mar onde nasce a vida e a beleza
E o canto vitorioso que os primeiros raios de sol faziam Mêmnom cantar o imóvel
Há o grito das Sabinas no momento do rapto
O canto nupcial da Sulamita
Sou mais bela mas negra
E o rugido de Jasão
Quando encontrou o tosão
E o mortal canto do cisne quando a sua penugem se apertava entre as coxas azuladas de Leda
Há o canto de amor de todo o amor do mundo
Há entre as coxas adoradas de Madalena
O rumor de todo o amor como o canto sagrado do mar sussura inteiro na concha.
para Jacqueline
Estaorla
Na múltipla que se
de nossas mantém
vidas
Esta toca de panteras
De enigmas de círculos de céus
Ao salto devo a vida, ao salto para fora de minha mãe, ao salto para fora de mim mesmo.
Como eu estaria aqui sem para fora ter saltado?
Como sair senão por salto,
Por elã, pressa, lançado?
Como já que não há passagem,
nem menor continuidade
entre o dentro fechado
e o fora desdobrado?
entre imanência e transcendência?
entre vida viceral imersa
e sopro, grito, olhar, abalo?
Es wär ein Sprung gewesen, wie man von einem Gedanken auf einen andern und
schönern hüpft342
341
Schiller. Die Räuber [Os ladrões ], 1, 2. [Schiller. Os ladrões . « Àquele salto eu devo a vida e o
corpo ». {N.T.}]
342
Ibid., 2,2. [“Teria sido apenas um salto, como saltamos de um pensamento a outro e melhor.” {N.T.}]
Mas natureza jorra e surge
primum aurora novo cum spargit lumine terras
…quam subito soleat sol…344
oh! o salto
que a vida se deve para ser
e o pensamento
a coisa em si
Der ein grossen sprung wil thun, gehet zuvor hinder sich345.
343
Kant. Kritik der Urteilskraft, Erste Einleintung, V. [« A natureza toma o caminho mais curto ( lex
parsimoniae), de igual modo não dá saltos, nem na sequência das suas mudanças, nem na articulação de
formas específicas diferentes (lex continui in natura ) ». Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério
Rohden e António Marques. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995, 2a edição, p. 26. {N.T.}]
344
Lucrécio. De rerum natura [Da natureza], II, 144-147. [Lucrécio. « Primeiramente quando a aurora
inunda de nova luz […] quando subitamente o sol levantando-se .» {N.T.}]
345
Christian Egenolff, Sprichwoerter , 237a, 1565.
Coda
1. A única leitura
Se não há, para mim, uma única leitura e eu estaria em apuros para fornecer a forma
geral de uma atividade como esta.
Há a leitura informativa: leio para aprender o que o texto pode me informar. Esta
leitura nãoEla
exemplo). se distingue
domina nadeleitura
outrosde
tipos de registro
trabalhos de dados (a
de estudantes, deescuta de umà curso,
candidatos por
publicação.
Há a leitura embarcada: subimos à bordo, deixamo-nos levar, derivar em direção
a costas desconhecidas; vamos ao ritmo das ondas, ao sabor das correntes. Identificamo-
nos, não necessariamente com o heroi, mas como o movimento da escrita. Esta leitura
não se distingue de outros desatracamentos: escutar uma música, ver um filme. Ela
remete antes à literatura, sem excluir a filosofia: mas o seu limite é o tempo disponível.
Ao final de um momento, tenho pressa de escrever...
Há a leitura de uma cabeça de pesquisador: lê-se para encontrar alguma coisa,
persegue-se uma pista. Por exemplo, lê-se para descobrir a presença ou o funcionamento
de um conceito, de uma imagem, lê-se para descobrir uma estrutura, uma significação
latente, associações reveladoras. Esta leitura não se distingue de outras buscas analíticas,
interpretativas, seletivas.
Cada uma das minhas leituras, sem dúvida, combina alguma coisa dessas três
formas
ela em proporções
é a mais próxima davariáveis.
escrita. OsA rastros
terceiraque
assume mais são
descubro importância
destinadoscom
ao omeu
tempo: mas
próprio
uso. Eles se tornarão materiais, citações, alusões. Na realidade, não paro de pular da
leitura para a escrita.
Eu deveria concluir por onde comecei: a leitura me escapa enquanto forma,
essência ou propriedade definida.
Mas essa tentativa de aproximação descobriu para mim uma verdade bastante
simples. A única leitura que verdadeiramente se distingue desses modos insuficientes é a
leitura em voz alta. Só ela mantém à distância a informação, a identificação, a
interpretação. Ela confia o texto aos lábios, à garganta e à lingua: estas tomam a
dianteira sobre a cabeça. A voz toma a dianteira sobre a letra, ou seja, o sentido se
encontra afastado, não suprimido mas distraído, empurrado para a margem, adiado para
mais tarde, para nunca mais talvez. Ou bem o sentido se faz sensível, sensitivo, sensual,
o que é uma outra maneira de não terminar como sentido inteligível.
A leitura em voz alta – não muito alta, é preciso regular bem o volume – é a
única que dirige o texto de uma boca a uma orelha, mesmo que seja a minha própria
orelha. A orelha abre uma ressonância interminável, em mim e fora de mim, de mim
para fora de mim, de você em mim. Nada está mais perto da essência da linguagem: o
eco do murmúrio das coisas.
Cada uma demanda a verdade. Cada uma demanda também a verdade da outra, de
duas maneiras: cada uma interroga a outra sobre a sua verdade, cada uma detém a
verdade da outra.
A verdade: a coisa em si, o ser ou o outro, o existente, o parecer, o sentido. Cada uma
demanda tudo isso junto: demanda que tudo isso seja apresentado como tal.
Mas cada uma entende diferentemente esse « como tal ». A filosofia quer que a coisa
como coisa seja coisa que por si se indique, se designe e ao mesmo tempo retire seu ser-
coisa aquém de toda significação. Também a coisa como tal é aqui coisa alguma: coisa
da coisidade de todas as coisas, nada. Do mesmo modo o sentido como tal é o sentido
que se faz conhecer enquanto sentido – por exemplo, não uma impressão luminosa, mas
uma impressão tal que ela se clareie a si mesma como « impressão luminosa ». E, por
esse ato, ela se obscurece. Não estamos mais ocupados em ver, mas em ver a visão. O
sentido em geral será sentido verdadeiro lá onde ele poderá mostrar que ele é o sentido,
e assim cessar de remeter a outro, a outros: o que, no entanto, é o seu próprio ser de
sentido. Também a verdade é aqui interrupção do sentido.
_PQ I$D(. $ 2.(1$ 92$)(;8 >.( 0)-(+8 + /$2+ cc8 /+ -A ccA <#AKA=
A filosofia demanda incessantemente que a verdade se consume. A literatura
demanda que a verdade prossiga. Mas cada uma demanda a outra, pois a consumação da
primeira seria o relato integral da segunda e o prosseguimento infinito da segunda seria a
consumação da primeira.
Se isso ocorre, não há mais demanda. Então não se fala de literatura e de filosofia:
fala-se de sabedoria e de mito. É um outro mundo, um mundo inverso ao mundo da
demanda de verdade.
A sabedoria se consuma dizendo – por exemplo, dizendo « faça isto, não faça
aquilo ». E para isso ela afirma e ordena, não demanda nada. Nem mesmo ser
reconhecida como sábia, pois ela também diz « não creia que a Sabedoria seja sábia:
cabe a você sê-lo ».
O mito dá no relato inteiro, desde o iníciozinho até eu (por exemplo, Mr. Bloom). Ao
mesmo tempo não há nada a acrescentar, nem antes nem depois, e o relato é
interminável pois ele não para de se recitar. Nada a demandar aí tampouco.
A Sabedoria desdobra até o fim a sua verdade segundo a qual não há de modo algum
nem sabedoria nem caminho. Ela inaugura o caminho que não leva a lugar nenhum, mas
que sempre se demanda novamente como caminho: « método ».
O Mito desdobra até o fim o interminável de seu relato e sua verdade segundo a qual,
bem longe de terminar na interminável recitação, ele é interminável na terminação de
cada relato. Uma vez contada, a história de Ulisses se abre novamente pelo seu fim.
Haverá novas errâncias.
Apenas fazendo conhecer seu desejo, que ele mesmo se inventa a cada passo, sendo,
no entanto, apenas o desejo do próprio passo.
Demando isso polidamente, sem violência, mas não se enganem com isso: « eu
gostaria » significa « eu quero », é a vontade mesma. É vontade de vontade: demanda
de eternidade, eterno retorno do mesmo passo, cujo rastro fugaz é a atestação disto: que
há aqui alguém que passa.
Demandamos
esqueçamos apenas
saberes isso. Há
e crenças. Esqueçamos
apenas essa« filosofia,
demanda: literatura, mito,
quero passar. Nãosabedoria »,
quero ser,
nem conhecer, mas passar e me sentir passar. Ou você – é igual.
Jean-Luc NANCY
P. S.: Faço questão de mencionar aqui todo o meu reconhecimento a Ginette Michaud,
que assegurou o estabelecimento dos textos franceses e a própria composição do volume
com um cuidado incomparável.
2. As razões de escrever
(Escrito em abril de 1977, este texto foi publicado em Misère de la littérature . Maurice Blanchot, Michel
Deutsch, Emmanuel Hocquard, Roger Laporte, Jean-Luc Nancy, Jean Louis Schefer, Mathieu Bénézet,
Philippe Lacoue-Labarthe. Paris: Christian Bourgois éditeur, col. « Première Livraison », 1979.)
8. Cálculo do poeta
(Publicado em Des lieux divins seguido de Calcul du poète . Mauvezin: Éditions T.E.R. Trans-Europ-
repress, 1997 [1987] ; tr. alemã Gisela Febel e Jutta Legueil. Kalkül des Dichters nach Hölderlins Mass.
Stuttgart: Jutta Legueil, 1997 ; tr. italiana Antonella Moscati, « Calcolo del poeta », Micromega.
Almanacco
desertati »].diPádova:
filosofiaIl, Poligrafo,
2/1998 ; tr.1999
italiana
; tr. [com Luoghi
japonesa divini] com
Masaichiro posfácio
Onishi. de Luisa
Shoraisha Bonesio
. Tokyo, [« Luoghi
2001.)
9. Fazer, a poesia
(Publicado primeiramente em: « Nous avons voué notre vie à des signes… » , Jean-Paul Michel (ed.).
Bordeaux: William Blake & Co., 1997 ; retomado em Résistance de la poésie . William Blake & Co.,
1997 ; tr. inglesa Leslie Hill, em: Jean-Luc Nancy. Multiple Arts. The Muses II. Simon Sparks (ed.).
Stanford: Stanford University Press, 2006.)
15. Corpo-teatro
(Publicado em Passions du corps dans les dramaturgies contemporaines . Alexandra Poulain (dir.).
Villeneuve d’Ascq: Presses universitai res du Septentrion, col. « Arts du spectacle – théâtre », 2011.)
19. Psykhé
(« Psyche » foi primeiro publicado em Première Livraison (Paris), no 16, 1978. Esse texto foi citado in
extenso e comentado por Jacques Derrida em: Le Toucher, Jean-Luc Nancy . Paris: Galilée, col. « La
philosophie en effet », 2000.)
25. Exclamações
(Publicado no Dictionnaire de la pornographie . Philippe Di Folco (dir.), prefácio de Jean-Claude
Carrière. Paris, PUF, col. « Grands dictionnaires », 2005, e « Il y a du rapport sexuel – et après »,
Littérature (Paris, Larousse) , n° 142, junho de 2006.)
26. La Selva
(Publicado em I pensieri dell’istante. Scritti per Jacqueline Risset. Roma: Editori Internazionali Riuniti,
2012.)
27. Sprung
(Publicado em francês e em alemão em Brink Magazin zwischen Kultur und Wissenschaft , n° 2, junho de
2012.)
29. Demanda
(Inédito, dezembro de 2009.)