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2018
2
INTRODUÇÃO
1
PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Trad. de Manuel Losa, S. J. Lisboa: Fundação Calouste-
Gulbenkian, 1987. p. 271.
2
GUDEMAN, Alfred. Historia de la literatura latina. Trad. Carlos Riba. 3. ed. reimp. Barcelona: Editorial Labor, 1952.
p. 82
3
PARATORE, 1987. p. 276
4
Idem.
5
CONTE, Gianbiagio. Latin Literature – A history. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1987. p. 159
3
O segundo par dessa estrutura triádica (Livros III e IV) trata de aspectos
psicológicos dos homens, contemplando a natureza da alma e a agregação
diferenciada dos átomos, gerando sempre diferentes formas 10.
Por fim, o Livro V traz a história do cosmos e da humanidade, atacando a ideia
de progresso, apresentada como ilusória. Este canto traz ainda uma cosmologia,
com a descrição do movimento das estrelas e suas causas. No Livro VI temos as
causas e os prenúncios da aniquilação do mundo e da humanidade, e também
explicações de vários fenômenos da natureza, como raios, trovões, relâmpagos,
vulcões, etc., sem que nestes interfira a vontade divina.
6
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. 4ª reimp. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 21
7
FOWLER, Don. Lucretius on Atomic Motion – A commentary on De rerum natura. Book Two, Lines 1-332. Oxford:
Oxford University Press, 2002. p. 407
8
SERRES, Michel. O nascimento da física no texto de Lucrécio – Correntes e turbulências. Trad. Péricles Trevisan. São
Paulo: Ed. UNESP / São Carlos: EDUFSCAR, 2003. p. 15
9
CALVINO, 1990. p. 21
10
CONTE, 1994, p. 159
4
11
pelo ímpeto de paixão que o atravessa” . De fato, o poema possui este aspecto
ambíguo, ora remetendo à ciência ora à poesia (o que implica recorrer também ao mito,
como sói ocorrer na épica), e mesmo Lucrécio demonstra uma grande paixão pela
12
observação científica . De acordo com Calvino,
Mais tarde, o poeta epicurista foi lido por alguns apologetas cristãos, antes de
15
cair em ostracismo na Idade Média . Já no Renascimento, quando seu poema foi
redescoberto, Lucrécio contribuiu para difundir as concepções da antiga filosofia
16
naturalista . Os novos leitores de Lucrécio eram Thomas More, Américo Vespúcio,
William Shakespeare, John Donne, Maquiavel, Giordano Bruno, Francis Bacon e,
17
posteriormente, Montaigne . Entre os séculos XVI e XVIII, o poema foi traduzido
para o francês, italiano e o inglês 18.
Sobre os ecos da poética lucreciana na poesia ocidental moderna, ressoam
principalmente em Bertolt Brecht, Fernando Pessoa e, sobretudo, em Francis Ponge.
11
BIGNONE, Ettore. Historia de la literatura latina. Trad. de Gregório Halperín. Buenos Aires: Editorial Losada, 1952.
p. 118
12
MASSON, John. Lucretius – Epicurean and poet. London: John Murray, Albemarle Street, W. 1907. p. 374
13
CALVINO, 1990. p. 20-21
14
SEDLEY, David. Lucretius and the transformation of the greek wisdom. Cambridge: Cambridge University Press,
1998. p. 156
15
PARATORE, 1987. p. 286
16
Idem.
17
GREENBLATT, Stephen. A Virada – o nascimento do mundo moderno. Trad. Caetano W. Galindo. 1 ed. São Paulo:
Ed. Cia. das Letras, 2012. p. 185-202
18
Idem, p. 215
5
(...) se ele adere ao movimento em 1930, no momento em que as cisões no cerne deste
são anunciadoras do declínio, esta adesão é superficial e sem que suas relações
episódicas com os surrealistas exerçam a menor influência em sua criação poética – (…)
que não tem igual e não fará escola. 20
Sua obra passará a causar impacto com o seu livro Le parti pris des choses, que chamou
a atenção de Jean-Paul Sartre, e este frisará que, por trás do aparente inventário de coisas,
está o “homem em sua capacidade de puro olhar” 21. O desenvolvimento de sua obra segue
marcado pelas experiências modernas de Le parti pris.
Apesar de o termo ser de início redutor, o mais característico traço da poética de Ponge é
sua abordagem do real por meio de objetos, não lhe interessando as grandes questões de
teor filosófico. Para Leda Tenório da Motta:
Estes objetos, que vão compondo um inventário, são aqueles os mais comuns, que
Ponge afirmava constituírem “o universo familiar dos homens de nossa sociedade, na
23
nossa época”. De acordo com Calvino, “em Ponge o mundo tem a forma das coisas mais
humildes, contingentes e assimétricas, e a palavra é o meio de dar conta da variedade
infinita dessas formas irregulares e minuciosamente complexas” 24.
19
MOTTA, Leda Tenório da. Francis Ponge – O objeto em jogo. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999. p. 109.
20
REBUZZI, Solange. In: PONGE, Francis. Nioque antes da primavera. Trad. Solange Rebuzzi. São Paulo: Lumme Editor,
2012. p. 11
21
Idem. p. 13
22
MOTTA, 1999. p. 15
23
Idem. p. 27
24
CALVINO, 1990. p. 90
6
(...) o justo emprego da linguagem é, para mim, aquele que permite o aproximar-se
das coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando
o que as coisas (presentes ou ausentes) comunicam sem o recurso das palavras.
30
Enfim, uma síntese possível da abordagem objetualista de Ponge seria que seu esforço
31
“dizer o objeto” . Simultaneamente a este esforço por buscar uma dicção objetiva em
detrimento de qualquer subjetividade, Ponge opera consciente da tridimensionalidade do
signo linguístico: seu aspecto gráfico, sua expressão sonora e seu sentido. Assim, na
fronteira entre a muda linguagem das coisas e a multidimensionalidade da palavra, o objet
25
MOTTA, 1999. p. 20
26
Idem. p. 30
27
Id. p. 20
28
CAMPOS, Haroldo de. Drummond, Mestre de coisas. Coleção Fortuna Crítica. Org. Sonia Brayner. Rio de Janeiro:
Ed. Civilização Brasileira, 1978. p. 249
29
CALVINO, 1990. p. 89
30
Idem. p. 90-91
31
MOTTA, 1999. p. 23
7
Para Ponge, é antes a linguagem que é tridimensional, com suas duas dimensões,
uma para o olho, outra para os ouvidos, acrescida de uma terceira, a significação.
(...) É desse fundo sonoro, plástico, conceitual (...) que também sai o objeto. Por
isso mesmo, nunca inteiramente centrado em si, nunca inteiro, sempre entre dois
fogos, sempre dúbio. Por isso mesmo, na expressão do poeta, um “objeu”: algo
entre o objeto e o jogo (jeu), que permite ficar com as duas coisas: o inventário do
mundo e a “jogada de linguagem.32
Ponge pensava que a originalidade, em arte, viria não do sujeito, e sim do objeto. Assim,
cada obra manifestaria “as qualidades morais do autor” e a “qualidade diferencial do objeto”.
33
Ele prefere pensar em “qualidade diferencial” do que em “qualidade analógica”. Portanto,
com isso parece apontar o primado do diferencial de cada objeto, que definirá um possível
conjunto de analogias.
Em sua obra-inventário, Ponge adota as acepções dos dicionários como um “modelo
34
contrapoético de texto (...) fulminante em suas definições, sensual em suas descrições” .
Neste aspecto, o latim, donde se origina o francês, surge com ponto de inflexão importante,
pois é a base para a sua pesquisa etimológica:
Assim, o étimo de cada palavra, “a primeira camada de sentido é que faz o movimento
transitivo da língua até a realidade sensível” e sua poesia é “devedora de perfeições do
36
próprio idioma, de um fundo castiço de palavras maravilhosamente adequadas”.
Ponge tinha fascínio por línguas antigas, conhecia a lingual grega e latina, tendo sido
37
leitor de poetas como Teócrito, Virgílio e principalmente de Lucrécio. No curioso texto “A
Eletricidade” encontramos uma menção expressa do apreço que Ponge tinha pelo De
rerum Natura, juntamente com uma visada sobre a poesia que lança luzes para a
32
MOTTA, 1999. p. 39
33
PONGE, Francis. Nioque antes da primavera. Trad. Solange Rebuzzi. São Paulo: Lumme Editor, 2012. p. 81
34
MOTTA, 1999. p. 25
35
Idem. p. 34
36
Id. p. 35
37
PONGE, 2012. p. 111
8
Quando vejo, por exemplo, um esquema do trajeto dos elétrons livres, de seus
imprevisíveis zigue-zagues e de sua lenta engrenagem concomitante, nisto que nós
chamamos uma corrente elétrica, não vejo nada que não me remeta, considerando a
noção de quantum da ação e o princípio de incerteza – que não fazem senão o confirmar –
o famoso clinâmen de Demócrito e Epicuro, que eles tinham muito bem concebido. (...) E
então reli Lucrécio e disse a mim mesmo que nada jamais foi escrito de mais belo; em
nada do que ele avançou, de qualquer ordem, parece-me ter sido seriamente desmentido,
mas pelo contrário, bastante confirmado.39
38
PONGE, Francis. Le Grand Recueil – V. I – Lyres. Nouvelle édition revue et corrigée par l’auteur. Paris: Éditions
Gallimard. 1961. p. 145-182
39
Idem. p. 161
40
MOTTA, 1999. p. 38
41
CALVINO, 1990. p. 89-90
42
MOTTA, 1999. p. 28
9
Mais uma marca da poética de Ponge é a prosa, “materializada quase sempre em linha
tipográfica, com todo o peso do verso rompido (...) como em Mallarmé, mas que, no caso,
incursiona francamente pela dissertação, de resto, com narrador capcioso”, e que “constitui-se
num dos fraseados mais inquietantes da literatura francesa neste século”. 44 Isto envolve
também a sintaxe, com “um acirramento das possibilidades do verso branco e livre, agora
tornado frase”. 45
Com a prosa, temos então o “proema” como recurso do “método pongiano”, diverso do
poema em prosa simbolista: “Pelos seus efeitos de surdina poética, o ‘proema’ é não apenas o
problemático gênero, a indecidível forma dos textos (...) – mas reivindicadamente, o da obra
toda.” 46 O proême ainda traz outra significação:
43
CALVINO, 1990. p. 89
44
MOTTA, 1999. p. 20-21
45
Idem. p. 25
46
l Id. p. 25-26
47
Id. p. 26
48
Id. p. 27
49
Id. p. 28
10
50
questão é mais científica do que poética’.
Sendo assim, a poesia de Ponge prescinde de sugestão e está muito distante da ideia de
inspiração poética: “Há, sim, ênfase no enunciado, perseguição ao texto (...) sem marca de
autoria” 51.
Sua obra está reunida em “Grand Recueil”, em três volumes, publicado sob supervisão do
poeta em 1961, pela editora Gallimard.
3 – A chuva em Lucrécio
50
MOTTA, 1999. p. 31
51
Idem. p. 38
11
52
LUCRÉCE. De La nature. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 5. tir. Tome I. Paris: Les Belles Lettres, 1985. p. 121-
122. Tradução do autor.
53
Cf. nota 11.
12
metafórica em Lucrécio não para por aqui: não apenas os átomos são os grãos das coisas,
mas tais grãos “germinam”. Vemos o procedimento metafórico no uso do verbo cresco, cuja
etimologia informa o “brotar” como sentido primeiro, portanto, por toda a nuvem, brotam grãos
de água.
Outro aspecto das metáforas de Lucrécio é a opção por objetos colhidos na
cotidianidade imediata, como no caso do tosão de lã que é análogo às nuvens sobre o mar (v.
504), e no caso do amolecimento da cera (v. 516). Na primeira metáfora está se explorando a
capacidade de absorção da lã e de a cera, ainda em estado sólido, poder ser dura ou mole.
Além de claramente remeter às propriedade físicas da matéria, cumpre notar que tais
imagens aqui estão ligadas ao trabalho, e por que não dizer manual. Posto que a iconoclastia é
um intento maior do poema, estas metáforas participam dela sutilmente ao sugerir que as
nuvens se formam sem que seja pelas mãos dos deuses, expressão usada por Lucrécio: “Dos
fenômenos são incógnitas as causas / e pensam serem feitos pelas mãos dos deuses” (vv. 56-
54
57, L. VI) . Em suma, tais imagens fazem atentar para as propriedades físicas dos materiais
de trabalho, que podem ser reconhecidos, via sentidos, por seus artífices.
Ao tratar do aumento do volume de água dentro da nuvem, e de seu movimento,
Lucrécio afirma que os grãos de água “aumentam de mil modos”, tocando num ponto
fundamental da doutrina epicurista e de sua poética: fluidos em movimento respondem às leis
do turbilhão, donde a imprevisibilidade das maneiras com que cada “átomo de água” cresce
dentro da nuvem. Este fator de acaso na mecânica dos fluidos está, como veremos adiante,
ligado ao princípio de diversidade na natureza.
Por fim, ao explicar a chuva, Lucrécio recorre a uma figura retórica cara a si e ao
epicurismo, a saber, o princípio da multiplicidade das causas. São duas as razões de a nuvem
precipitar água: a força dos ventos e a compactação das nuvens (vv. 508-512).
4- A chuva, em Ponge
Chuva
54
DOMINGUES, Mario Henrique. O trovão, o relâmpago: tradução do Canto VI do poema de Lucrécio e análise de
função poética de fragmentos. Dissertação – Depto. de Letras Clássicas e Vernáculas – FFLCH – Universidade de São
Paulo – São Paulo, 2013.
13
A chuva, no pátio onde a observo tombar, cai com gestos muito diversos. No centro é uma fina
cortina (ou rede) puída, um golpe implacável mas relativamente lento de gotas provavelmente muito
ligeiras, uma precipitação perene sem vigor, uma fração intensa do meteoro absoluto. À pouca distância
dos muros da direita e da esquerda tombam com mais fragor as gotas mais pesadas, individuadas. Aqui
elas parecem do tamanho de um grão de trigo, acolá de uma ervilha, e além, quase uma bola de gude.
Sobre as venezianas, sobre os parapeitos das janelas a chuva escorre horizontalmente enquanto sobre
a face inferior destes mesmos obstáculos ela pende em caramelos convexos. Conforme à superfície
inteira de um pequeno teto de zinco que o olhar de cima abrange ela desliza como um lençol muito
delgado, com um sedoso ondeado por conta das correntes muito variadas pelas imperceptíveis
ondulações e pelos calos da cobertura. Da bica contígua, donde ela escoa com a contenção de um
riacho fundo sem grande declive, ela sucumbe de pronto em um filete perfeitamente vertical, muito
grosseiramente trançado, até o solo onde ela se rompe e esguicha em agulhas cintilantes.
Cada uma de suas formas tem um compasso particular; responde-lhe um ruído particular. O todo
vigora intensamente como um mecanismo complexo, tanto preciso quanto ao acaso, como um relógio
cuja mola é o peso de certa massa de vapor se precipitando.
A campainha ao solo dos filetes verticais, o pinga-pinga das goteiras, os minúsculos golpes de
gongo multiplicam-se e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem
delicadeza.
Quando a mola está descontraída, certas rodagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez
mais minguadas, pois toda a maquinaria se detém. Então, se o sol reaparece, tudo logo desaparece. O
brilhante aparelho evapora: choveu.
observador. Não se constitui apenas de gotas: a chuva varia de “caramelos convexos”, “lençol
muito delgado”, “ondeado” por variadas correntes; seu escoamento é tanto vertical, como em
bicas, filetes e agulhas, quanto horizontal, como riacho; e por fim, os sons da chuva, dos
pingos, das goteiras, dos gongos e campainhas.
Este princípio de diversidade foi um dos aspectos que ganhou a atenção de Gilles Deleuze
para com a filosofia de Epicuro e a poesia de Lucrécio. Deleuze inferirá que a essência da
natureza é o diverso e sua produção, que resulta em uma “soma infinita, que não totaliza seus
próprios elementos”. Se não existe uma combinação que seja capaz de abranger
simultaneamente todos os elementos da natureza, então, não existe um mundo único ou um
universo total.
Vale lembrar que este elemento lucreciano da diversidade é reivindicado por Ponge, ao
conceber seu livro Métodos como sendo um outro De rerum natura, um De rerum varietate.
Outro exemplo do princípio de diversidade lucreciana está na riqueza imagética das
formas da água, como na passagem de “filetes” para “agulhas cintilantes”. Note-se aqui a
acuidade visual que flagra o cintilante na superfície do translúcido, expondo a luz na cena
complexa da chuva. Este brilho como que vai antecipando a aparição do sol que ao fim do
poema surge e “evapora” toda esta realidade.
Na passagem da dimensão visual para a expressão sonora da chuva temos mais um
traço do princípio de diversidade, onde cada forma possui um “compasso particular”, a que
responde um “ruído particular”. Note-se o empréstimo do termo musical “compasso” para
referir-se à cinemática da imagem, aludindo ao ritmo do movimento de cada coisa, de cada
forma que a chuva toma. O “narrador capcioso” a que se refere Motta 57 sugere com isso que
estaria a começar a tratar, de modo simbolista, da “música da chuva”, mas, decerto,
“compasso” refere-se à forma visual, ao movimento, que por sua vez emitirá ruído. Sendo
assim, a chuva para Ponge é feita mais de ruídos do que de música.
56
DELEUZE, Giles. A lógica do sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Ed. Perspectiva/EDUSP, 1974. p.
274. A contradição a que Deleuze se refere é o fato de o De rerum natura – ao fim e ao cabo um épico didático-
filosófico materialista e, mesmo que tolerante com a crença nos deuses, ateu – trazer em seu introito uma invocação à
deusa Vênus.
57
MOTTA, 1999. p. 25
15
Vimos tratando do princípio de incerteza até tocar a ruptura paradigmática requerida por Serres
58
LUCRÉCE, 1985. p. 110. Tradução do autor.
59
SERRES, 2003. p. 16
60
Idem. p. 47
61
SERRES, 2003. p. 18
16
para melhor compreensão de Lucrécio, e parece ser possível afirmar não ser à toa que num
“proema” sobre a chuva Ponge trouxesse à tona, sutilizados, elementos dos princípios de
incerteza e diversidade, ambos derivados do clinamen (declinação), pondo em prática esse
abandono do “quadro geral da mecânica dos sólidos”, considerando metonimicamente a chuva
como um fluido.
Um traço expressivo do princípio de incerteza lucreciano está em uma breve panorâmica
em que Ponge aborda a chuva como um “todo”: “tanto preciso quanto ao acaso, como um
relógio cuja mola é o peso de certa massa de vapor se precipitando” . Seu aspecto de precisão
encontra analogia com o relógio, enquanto o acaso está relacionado ao princípio de incerteza.
Temos aqui ainda a questão causal do vapor em relação à chuva e uma alusão ao clinâmen
em “precipitando”. Cumpre notar aqui que mesmo o aspecto preciso da chuva resvala na
incerteza, posto que sua mola é o peso da massa de vapor que está se precipitando, ou seja,
enquanto se precipita essa massa vai mudando de peso a todo momento. Assim, a mola da
chuva, que no relógio é responsável pela precisão, está submetida constantemente à alteração
do peso da massa de vapor, resultando imprecisa, aproximativa.
Um traço da mestria com que Ponge emula Lucrécio está no uso dos paradoxos para
efeito de princípio de incerteza: como o “golpe” d’água do “centro” da chuva pode ser lento se
as gotas são “provavelmente” muito ligeiras? Como a chuva pode ser perene se não tem vigor,
e ser fração do absoluto?
O uso da etimologia latina também aparece nesta peça, por meio da expressão
“meteoro absoluto”, que não deve ser tomado como meteorito ou estrela cadente, mas como
“qualquer fenômeno atmosférico”. É neste recorte que opera Lucrécio no livro VI do De rerum
natura, abordando fenômenos que ocorrem no mundo sublunar, ou seja, entre a Terra e a Lua.
Com esta nuançada menção, Ponge parece indicar que tem consciência de que está
abordando a chuva como uma “fração intensa” da chuva lucreciana, o “meteoro absoluto” que
se quer como modelo para toda e qualquer chuva.
Sendo assim, ao mesmo tempo que homenageia profundamente seu mestre, Ponge
delimita seu espaço, imprime sua assinatura, de pelo menos dois modos: 1) pela recusa do
“absoluto” que sua poesia reivindica, posto que opera por aproximações, esboços, como o
62
“caderno de exercícios” apontado por Calvino ; 2) por sua chuva resultar mais humana, mais
familiar e cotidiana que a de Lucrécio. No fragmento latino o poeta parece querer nos
transportar para dentro da nuvem, enquanto Ponge nos convida a observar de cima um pátio.
Se é mais intimista a chuva pongiana, resiste ainda o elemento da analogia usando
62
CALVINO, 1990. p. 89
17
63
MOTTA, 1999. p. 32
64
Segundo a versão on-line do Larousse Dictionnaire, berlingot significa “bonbon de sucre cuit aromatisé, ayant la
forme d’un tétraèdre”. https://www.larousse.fr/dictionnaires/français/berlingot/8861/?q=berlingot#8801.
65
PONGE, 1961. p. 149
66
“(...) nada admirável não haja / paz entre os elementos no abissal vazio, / e sob vários constantes movimentos
saltam / rebatidos, em parte lançados ao longe, / em parte em breve espaço sofrem as pancadas”. In: LUCRÉCE, 1985.
L. II, vv. 95-99. p. 45. Tradução do autor.
18
Vale apontar dois traços estilísticos do “proema” que também remetem à poética de
Lucrécio. No trecho “a campainha ao solo dos filetes verticais” traz uma combinação de
hipérbato e ambiguidade, em solo, no original sol, que remeterá tanto a chão, onde caem os
filetes, quanto a sol, nota musical. Depois, na última frase da peça lemos “O brilhante aparelho
evapora: choveu”, em um laconismo que lembra o Lucrécio dos bordões epicuristas em que a
frase coincide dimensionalmente com o verso.
Vale indicar que Ponge assimila certa iconicidade da poesia de Lucrécio. É icônica a
frase que descreve a água escorrendo horizontalmente no teto de zinco em seu gesto
estendido, onde a sequencia de subordinações seguem sem pontuação como que
mimetizando o correr contínuo da água. Vemos a mesma recursividade de fluidez em Lucrécio:
“Quando os ventos desfazem as nuvens ou quando / se dissolvem sob golpes de calor do
sol / expelem e destilam a água da chuva, / como a cera amolece e derrete no fogo” 68.
Finalmente, cumpre notar que na ideia pongiana da peculiaridade de cada objeto
69
ressoa o conceito em Lucrécio de que “cada ser tem potência e força singulares” . Isto está
expresso no “proema” em descrições que envolvem paradoxos, como a chuva, análoga a uma
rede contínua e puída, no golpe lento de gotas ligeiras ou mesmo na superfície do lençol
d’água, sedosa pelas calosidades do teto de zinco.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
20
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso.
4ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CAMPOS, H. Drummond, Mestre de coisas. In: Coleção Fortuna Crítica. Org. Sonia
Brayner. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1978.
CONTE, G. Latin Literature – A history. Baltimore: The John Hopkins University Press,
1987.
DELEUZE, G. A lógica do sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Ed.
Perspectiva/EDUSP, 1974.
LUCRÉCE. De La nature. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 5. tir. Paris: Les Belles
Lettres, 1985.
MASSON, J. Lucretius – Epicurean and poet. London: John Murray, Albemarle Street, W.
1907.
21
MOTTA, L. T. Francis Ponge – O objeto em jogo. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.
PONGE, F. Le Grand Recueil – V. I – Lyres. Nouvelle édition revue et corrigée par l’auteur.
Paris: Éditions Gallimard, 1961.
________. Le parti pris des choses. Paris: Éditions Gallimard, 1980. p. 31-32.
________. Nioque antes da primavera. Trad. Solange Rebuzzi. São Paulo: Lumme Editor,
2012.
SEDLEY, D. Lucretius and the transformation of the greek wisdom. Cambridge: Cambridge
University Press, 1998.