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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PLUIE / CHUVA: ELEMENTOS DA POÉTICA DE LUCRÉCIO NA REPRESENTAÇÃO DO


REAL EM FRANCIS PONGE

Mario Henrique Domingues

Trabalho apresentado à disciplina Debates sobre o realismo, ministrada


pela Prof.a Dr.a Danielle Corpas – Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura – Faculdade de Letras

2018
2

INTRODUÇÃO

Este trabalho consiste na detecção de elementos da poética de Lucrécio, poeta latino do


séc. I a. C., em um poema em prosa do poeta francês Francis Ponge, considerando
características de ambos os poetas que nos permitem cotejar seus projetos de representação
do real.
Analisaremos o texto Pluie (Chuva) em face de um fragmento do De rerum natura (A
natureza das coisas), épico didático-filosófico de Lucrécio, poema que se tornou a mais rica
fonte sobre a doutrina de Epicuro, filósofo grego que viveu no séc. III a. C. Além dos pontos de
contato mais diretos entre o texto de Ponge e o fragmento de Lucrécio, analisaremos também
outros elementos da poética lucreciana presentes no poema em prosa.

1- LUCRÉCIO E O DE RERUM NATURA

A respeito da biografia de Lucrécio se desconhece a maior parte dos particulares, mas


pode-se afirmar que nasceu em 94, 96 ou 98 e morreu em 53, 54 ou 55 a. C. Cícero teria
publicado seu poema A Natureza das coisas depois de uma rápida correção1. Eram-lhe
familiares as doutrinas de Heráclito, Empédocles, Anaxágoras e Demócrito, Platão e
Hipócrates. Dentre os poetas, suas referências maiores foram Homero e Ênio. 2
Sua única obra, o De rerum natura é um épico didático-filosófico que trata da
natureza das coisas de acordo com a doutrina de Epicuro, filósofo materialista
ateniense do séc. III a.C. O poema apresenta uma estrutura tripartite , cada uma
composta de dois cantos, com ”ritmo ternário do conjunto” 3.

A primeira parte (Livros I e II) enfeixa o canonicato epicurista, com os conceitos de


átomo e de vácuo e o problema cosmológico, com destaque para a concepção da
infinitude do universo 4. Trata também da indestrutibilidade e imutabilidade dos átomos,
constituinte mínimo da matéria, movendo-se no espaço vazio e infinito, sendo capazes
de se unir e se desmembrar uns dos outros. Nascimento e morte se dão a partir da
agregação e desagregação dos átomos 5. Para Ítalo Calvino,

1
PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Trad. de Manuel Losa, S. J. Lisboa: Fundação Calouste-
Gulbenkian, 1987. p. 271.
2
GUDEMAN, Alfred. Historia de la literatura latina. Trad. Carlos Riba. 3. ed. reimp. Barcelona: Editorial Labor, 1952.
p. 82
3
PARATORE, 1987. p. 276
4
Idem.
5
CONTE, Gianbiagio. Latin Literature – A history. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1987. p. 159
3

Essa pulverização da realidade estende-se igualmente aos seus aspectos visíveis,


e é aí que excele a qualidade poética de Lucrécio: os grãos de poeira que
turbilhonam num raio de sol, na penumbra de um quarto (II, 114-124); as
pequeninas conchas, todas iguais e todas diferentes, que a onda empurra
docemente para a bibula harena, a areia embebida (II, 374-376); as teias de
aranha que nos envolvem sem que nos demos conta, enquanto passeamos (III,
381-390). 6

No Livro II temos a teoria do clinamen, a propriedade que têm os átomos de


cometerem desvios de uma mínima unidade espaço em seus trajetos, em hora e
lugar incertos, quando se precipitam verticalmente no vazio7 . Este desvio se dá
com um ângulo mínimo, microscópico, mas suficiente para que se possa dizer que
mudou seu movimento 8. Para Calvino,

No momento de estabelecer as rigorosas leis mecânicas que determinam todos os


acontecimentos, ele sente a necessidade de permitir que os átomos se desviem
imprevisivelmente da linha reta, de modo a garantir tanto a liberdade da matéria
quanto a dos seres humanos. A poesia do invisível, a poesia das infinitas
potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada nascem de um poeta
que não nutre qualquer dúvida quanto ao caráter físico do mundo. 9

O segundo par dessa estrutura triádica (Livros III e IV) trata de aspectos
psicológicos dos homens, contemplando a natureza da alma e a agregação
diferenciada dos átomos, gerando sempre diferentes formas 10.
Por fim, o Livro V traz a história do cosmos e da humanidade, atacando a ideia
de progresso, apresentada como ilusória. Este canto traz ainda uma cosmologia,
com a descrição do movimento das estrelas e suas causas. No Livro VI temos as
causas e os prenúncios da aniquilação do mundo e da humanidade, e também
explicações de vários fenômenos da natureza, como raios, trovões, relâmpagos,
vulcões, etc., sem que nestes interfira a vontade divina.

O poema de Lucrécio combina o científico e o poético, subordinando o


conhecimento à poesia: “uma vasta sinfonia dramática, mais drama do que tratado,

6
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. 4ª reimp. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 21
7
FOWLER, Don. Lucretius on Atomic Motion – A commentary on De rerum natura. Book Two, Lines 1-332. Oxford:
Oxford University Press, 2002. p. 407
8
SERRES, Michel. O nascimento da física no texto de Lucrécio – Correntes e turbulências. Trad. Péricles Trevisan. São
Paulo: Ed. UNESP / São Carlos: EDUFSCAR, 2003. p. 15
9
CALVINO, 1990. p. 21
10
CONTE, 1994, p. 159
4

11
pelo ímpeto de paixão que o atravessa” . De fato, o poema possui este aspecto
ambíguo, ora remetendo à ciência ora à poesia (o que implica recorrer também ao mito,
como sói ocorrer na épica), e mesmo Lucrécio demonstra uma grande paixão pela
12
observação científica . De acordo com Calvino,

O De rerum natura, de Lucrécio, é a primeira grande obra poética em que o


conhecimento do mundo se transforma em dissolução da compacidade do mundo,
na percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve. Lucrécio quer
escrever o poema dessa matéria, mas nos adverte, desde logo, que a verdadeira
realidade dessa matéria se compõe de corpúsculos invisíveis. É o poeta da
concreção física, entendida em sua substância permanente e imutável, mas a
primeira coisa que nos diz é que o vácuo é tão concreto quanto os corpos sólidos.
13

A introjeção do epicurismo em Roma alcança seu ápice no poema de Lucrécio.


Tendo nos sobrado tão pouco da obra de Epicuro, o De rerum natura tornou-se a
14
maior e mais fiel fonte para conhecimento de sua doutrina . Lucrécio foi o poeta
latino mais influente durante o Império de Augusto, tendo sido lido por Virgílio, Horácio,
Propércio e principalmente por Ovídio.

Mais tarde, o poeta epicurista foi lido por alguns apologetas cristãos, antes de
15
cair em ostracismo na Idade Média . Já no Renascimento, quando seu poema foi
redescoberto, Lucrécio contribuiu para difundir as concepções da antiga filosofia
16
naturalista . Os novos leitores de Lucrécio eram Thomas More, Américo Vespúcio,
William Shakespeare, John Donne, Maquiavel, Giordano Bruno, Francis Bacon e,
17
posteriormente, Montaigne . Entre os séculos XVI e XVIII, o poema foi traduzido
para o francês, italiano e o inglês 18.
Sobre os ecos da poética lucreciana na poesia ocidental moderna, ressoam
principalmente em Bertolt Brecht, Fernando Pessoa e, sobretudo, em Francis Ponge.

11
BIGNONE, Ettore. Historia de la literatura latina. Trad. de Gregório Halperín. Buenos Aires: Editorial Losada, 1952.
p. 118
12
MASSON, John. Lucretius – Epicurean and poet. London: John Murray, Albemarle Street, W. 1907. p. 374
13
CALVINO, 1990. p. 20-21
14
SEDLEY, David. Lucretius and the transformation of the greek wisdom. Cambridge: Cambridge University Press,
1998. p. 156
15
PARATORE, 1987. p. 286
16
Idem.
17
GREENBLATT, Stephen. A Virada – o nascimento do mundo moderno. Trad. Caetano W. Galindo. 1 ed. São Paulo:
Ed. Cia. das Letras, 2012. p. 185-202
18
Idem, p. 215
5

2 – FRANCIS PONGE E SUA POÉTICA

Francis Ponge (1899-1988) nasceu em Montpellier, de uma família oriunda do


Languedoc. Sua formação se dá, desde a infância até à universidade (formou-se em
Direito), entre as cidades de Caen, Louis-le-Grand, Falaise e Strasbourg. Em 1923, passa a
trabalhar na Nouvelle Revue Française (NRF), como secretário de redação. 19
Sua ligação com o surrealismo é controversa, mesmo tendo assinado um dos manifestos
do movimento:

(...) se ele adere ao movimento em 1930, no momento em que as cisões no cerne deste
são anunciadoras do declínio, esta adesão é superficial e sem que suas relações
episódicas com os surrealistas exerçam a menor influência em sua criação poética – (…)
que não tem igual e não fará escola. 20

Sua obra passará a causar impacto com o seu livro Le parti pris des choses, que chamou
a atenção de Jean-Paul Sartre, e este frisará que, por trás do aparente inventário de coisas,
está o “homem em sua capacidade de puro olhar” 21. O desenvolvimento de sua obra segue
marcado pelas experiências modernas de Le parti pris.
Apesar de o termo ser de início redutor, o mais característico traço da poética de Ponge é
sua abordagem do real por meio de objetos, não lhe interessando as grandes questões de
teor filosófico. Para Leda Tenório da Motta:

O homem, a história do homem, as questões do homem, ideias e sentimentos – “o


espírito e o coração” (...) “o humanismo todo” (...) em princípio, não lhe interessam.
(...) ele descarta o “papel social” da poesia, ele que foi resistente ativo, no sul francês,
sob a Ocupação. 22

Estes objetos, que vão compondo um inventário, são aqueles os mais comuns, que
Ponge afirmava constituírem “o universo familiar dos homens de nossa sociedade, na
23
nossa época”. De acordo com Calvino, “em Ponge o mundo tem a forma das coisas mais
humildes, contingentes e assimétricas, e a palavra é o meio de dar conta da variedade
infinita dessas formas irregulares e minuciosamente complexas” 24.

19
MOTTA, Leda Tenório da. Francis Ponge – O objeto em jogo. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999. p. 109.
20
REBUZZI, Solange. In: PONGE, Francis. Nioque antes da primavera. Trad. Solange Rebuzzi. São Paulo: Lumme Editor,
2012. p. 11
21
Idem. p. 13
22
MOTTA, 1999. p. 15
23
Idem. p. 27
24
CALVINO, 1990. p. 90
6

Nessa abordagem, Ponge aplicará um tour de force visual, revelando-se um “genial


visualista”, “com um olho que não se deixa toldar pelos vapores internos da alma”. O poeta
entendia “que, em literatura, nunca ninguém se pôs a observar objetos muito de perto,
ninguém nunca soube, por isso mesmo, dizer as coisas mais elementares a respeito de
nenhum”.

Assim seus objetos serão minuciosos de realidade. Objetos de um verdadeiro


expert, de quem João Cabral de Melo Neto, dos poucos a conhecê-lo entre nós,
junto com Haroldo de Campos, tem razão de dizer que ‘gira as coisas nos dedos’
ou ‘gira ao redor das coisas’. 25

Mesmo que sua mirada sobre os objetos envolva incontornavelmente um


“descritivismo”26, sua escritura é plena de “acuidade, aprofundamento, precisão,
percuciência” em uma poesia que se propõe como crítica, “que ao trabalho do olhar
acrescenta uma reflexão sobre maneiras de olhar”27.
Para Haroldo de Campos, Ponge redescobre cada objeto do mundo por meio de
28
termos sempre humanos, bem como Lucrécio . Para Calvino, Ponge foi “um mestre sem
igual” por ser o melhor exemplo de um poeta que luta para transformar a linguagem verbal
na linguagem das coisas, “que parte das coisas e retorna a nós trazendo consigo toda a
carga humana que nelas havíamos investido”. 29 Ainda com Calvino,

(...) o justo emprego da linguagem é, para mim, aquele que permite o aproximar-se
das coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando
o que as coisas (presentes ou ausentes) comunicam sem o recurso das palavras.
30

Enfim, uma síntese possível da abordagem objetualista de Ponge seria que seu esforço
31
“dizer o objeto” . Simultaneamente a este esforço por buscar uma dicção objetiva em
detrimento de qualquer subjetividade, Ponge opera consciente da tridimensionalidade do
signo linguístico: seu aspecto gráfico, sua expressão sonora e seu sentido. Assim, na
fronteira entre a muda linguagem das coisas e a multidimensionalidade da palavra, o objet

25
MOTTA, 1999. p. 20
26
Idem. p. 30
27
Id. p. 20
28
CAMPOS, Haroldo de. Drummond, Mestre de coisas. Coleção Fortuna Crítica. Org. Sonia Brayner. Rio de Janeiro:
Ed. Civilização Brasileira, 1978. p. 249
29
CALVINO, 1990. p. 89
30
Idem. p. 90-91
31
MOTTA, 1999. p. 23
7

(objeto) passa a ser objeu (objeto-jogo, “objogo”):

Para Ponge, é antes a linguagem que é tridimensional, com suas duas dimensões,
uma para o olho, outra para os ouvidos, acrescida de uma terceira, a significação.
(...) É desse fundo sonoro, plástico, conceitual (...) que também sai o objeto. Por
isso mesmo, nunca inteiramente centrado em si, nunca inteiro, sempre entre dois
fogos, sempre dúbio. Por isso mesmo, na expressão do poeta, um “objeu”: algo
entre o objeto e o jogo (jeu), que permite ficar com as duas coisas: o inventário do
mundo e a “jogada de linguagem.32

Ponge pensava que a originalidade, em arte, viria não do sujeito, e sim do objeto. Assim,
cada obra manifestaria “as qualidades morais do autor” e a “qualidade diferencial do objeto”.
33
Ele prefere pensar em “qualidade diferencial” do que em “qualidade analógica”. Portanto,
com isso parece apontar o primado do diferencial de cada objeto, que definirá um possível
conjunto de analogias.
Em sua obra-inventário, Ponge adota as acepções dos dicionários como um “modelo
34
contrapoético de texto (...) fulminante em suas definições, sensual em suas descrições” .
Neste aspecto, o latim, donde se origina o francês, surge com ponto de inflexão importante,
pois é a base para a sua pesquisa etimológica:

E com a apologia do latim, a do Dictionnaire de La langue française de Émile Littré. (...)


Dicionário etimológico, ele é um repositório do mot juste, porque acena com o primeiro
movimento de designação de cada coisa, e assim, para Ponge, com a verdade. (...)
Resultado: a nova poesia que quer aí se originar será tão estrita quanto cada objeto, e só
assim poderá fazê-lo visível”. 35

Assim, o étimo de cada palavra, “a primeira camada de sentido é que faz o movimento
transitivo da língua até a realidade sensível” e sua poesia é “devedora de perfeições do
36
próprio idioma, de um fundo castiço de palavras maravilhosamente adequadas”.
Ponge tinha fascínio por línguas antigas, conhecia a lingual grega e latina, tendo sido
37
leitor de poetas como Teócrito, Virgílio e principalmente de Lucrécio. No curioso texto “A
Eletricidade” encontramos uma menção expressa do apreço que Ponge tinha pelo De
rerum Natura, juntamente com uma visada sobre a poesia que lança luzes para a

32
MOTTA, 1999. p. 39
33
PONGE, Francis. Nioque antes da primavera. Trad. Solange Rebuzzi. São Paulo: Lumme Editor, 2012. p. 81
34
MOTTA, 1999. p. 25
35
Idem. p. 34
36
Id. p. 35
37
PONGE, 2012. p. 111
8

compreensão de sua poética. 38


Este escrito foi encomendado a Ponge pela Companhia de Eletricidade francesa, para
estimular os arquitetos a considerarem a infraestrutura elétrica em seus projetos. É
precisamente neste texto que se encontra um significativo elogio a Lucrécio, ao perceber a
analogia possível entre a imprevisibilidade do comportamento do elétron em seu curso livre
e a teoria do clinâmen em Demócrito e Epicuro:

Quando vejo, por exemplo, um esquema do trajeto dos elétrons livres, de seus
imprevisíveis zigue-zagues e de sua lenta engrenagem concomitante, nisto que nós
chamamos uma corrente elétrica, não vejo nada que não me remeta, considerando a
noção de quantum da ação e o princípio de incerteza – que não fazem senão o confirmar –
o famoso clinâmen de Demócrito e Epicuro, que eles tinham muito bem concebido. (...) E
então reli Lucrécio e disse a mim mesmo que nada jamais foi escrito de mais belo; em
nada do que ele avançou, de qualquer ordem, parece-me ter sido seriamente desmentido,
mas pelo contrário, bastante confirmado.39

É valioso, do ponto de vista da exegese de Lucrécio, que Ponge considere o clinamen, a


princípio concebido no plano atômico, como pertinente também para o elétron no plano
sub-atômico. Porém, mais importante aqui é a menção de que o “princípio de incerteza” da
física dos fluidos confirma o clinâmen.
Outra menção importante que Ponge faz a Lucrécio está em seu o livro Métodos,
pensado para ser “uma espécie de cosmogonia, ou De natura rerum, ou De varietate
rerum”. Assim, vemos como o princípio lucreciano de diversidade na natureza se faz
40
presente na poética de Ponge. As lições do poeta latino são de tal importância que
Calvino afirma ser Ponge “o Lucrécio de nosso tempo, que reconstrói a fisicidade do mundo
por meio da impalpável poeira das palavras”. 41
Outro aspecto da estilística pongiana é o caráter assumidamente provisório de suas
peças, compostas em “céleres, porém decisivas “pinceladas”, “esboços” – pochades (...)
passadas de tinta cujo traço-relâmpago, cuja rápida execução, no calor da hora, pleiteia um
42
exterior, por assim dizer, na ponta da língua”. Novamente com Calvino, Ponge “criou um
gênero único na literatura contemporânea”:

(...) exatamente o “caderno de exercícios” de um escolar que começa a exercitar-se


dispondo suas palavras sobre a extensão dos aspectos do mundo e consegue exprimi-los

38
PONGE, Francis. Le Grand Recueil – V. I – Lyres. Nouvelle édition revue et corrigée par l’auteur. Paris: Éditions
Gallimard. 1961. p. 145-182
39
Idem. p. 161
40
MOTTA, 1999. p. 38
41
CALVINO, 1990. p. 89-90
42
MOTTA, 1999. p. 28
9

após uma série de tentativas, rascunhos, aproximações. 43

Mais uma marca da poética de Ponge é a prosa, “materializada quase sempre em linha
tipográfica, com todo o peso do verso rompido (...) como em Mallarmé, mas que, no caso,
incursiona francamente pela dissertação, de resto, com narrador capcioso”, e que “constitui-se
num dos fraseados mais inquietantes da literatura francesa neste século”. 44 Isto envolve
também a sintaxe, com “um acirramento das possibilidades do verso branco e livre, agora
tornado frase”. 45
Com a prosa, temos então o “proema” como recurso do “método pongiano”, diverso do
poema em prosa simbolista: “Pelos seus efeitos de surdina poética, o ‘proema’ é não apenas o
problemático gênero, a indecidível forma dos textos (...) – mas reivindicadamente, o da obra
toda.” 46 O proême ainda traz outra significação:

(...) repercute uma outra, em português “proêmio” (...) solidária do proemium


latino, que nomeia o exórdio, o introito, a entrada em discurso. Ela é (...) o
exercício para os dedos a que se dedicam, antes de começar a cantar, os
tocadores de lira. (...) simples esquentamento, simples preparação (...) é um
eterno adiamento. 47

Então, o proema é uma forma de evitar as afetações, “a ciranda das convenções


48
poéticas, o peso todo da tradição” de modo que não prejudique os objetos. Estes proemas
pretendem captar “o mundo exterior contemplável” e intentam “nos introduzir ao aqui-agora, ao
aí está, aos eis pois, ao toma, ao assim das coisas”. 49
Considerados os aspectos expostos até aqui, a radicalidade de seu projeto objetual, a
presença da prosa, sua pesquisa etimológica, a busca pelo apagamento da subjetividade,
pode-se afirmar que Ponge leva a cabo um projeto antilírico:

Dizer o objeto é, repita-se, abster-se de poesia que o exceda, controlar-se como


um admirador intimidado e solícito”. (...) Não se trata de forma nenhuma do
nascimento de um poema, mas antes um esforço contra a poesia. (...) ‘A minha

43
CALVINO, 1990. p. 89
44
MOTTA, 1999. p. 20-21
45
Idem. p. 25
46
l Id. p. 25-26
47
Id. p. 26
48
Id. p. 27
49
Id. p. 28
10

50
questão é mais científica do que poética’.

Sendo assim, a poesia de Ponge prescinde de sugestão e está muito distante da ideia de
inspiração poética: “Há, sim, ênfase no enunciado, perseguição ao texto (...) sem marca de
autoria” 51.
Sua obra está reunida em “Grand Recueil”, em três volumes, publicado sob supervisão do
poeta em 1961, pela editora Gallimard.

3 – A chuva em Lucrécio

Agora explicarei como cresce a umidade 595


nas nuvens altas, como a chuva jorra água
sobre a terra. Primeiro vários grãos de água,
sincrônicos, germinam destas mesmas nuvens,
e ao mesmo tempo brotam de todos os corpos;
a água líquida aparece em toda a nuvem, 500
bem como nossos corpos incham-se de sangue,
de suor e de toda a umidade dos membros.
Também absorvem muita umidade marinha,
como um tosão de lã suspenso sobre o mar
imenso, quando os ventos carregam as nuvens. 505
Mesmo modo, a umidade dos rios correntes
é embarcada na nuvem. Quando muitos grãos
de água afluem, aumentando de mil modos,
as nuvens cheias tentam excluir o líquido
por dois motivos: pelo vento ser tão forte 510
e porque a multidão de nuvens os expulsa –
comprimindo de cima, faz fluir a chuva.
Quando os ventos desfazem as nuvens ou quando
se dissolvem sob golpes de calor do sol
expelem e destilam a água da chuva,
515
como a cera amolece e derrete no fogo.
Mas a chuva se faz feroz, quando o poder

50
MOTTA, 1999. p. 31
51
Idem. p. 38
11

e a cólera do vento compactam as nuvens.


Deste modo, costumam as chuvas se deter
quando são agitados muitos grãos de água; 520
quando se fundem outras nuvens e outras névoas
os grãos decaem, regam todos os lugares
e a terra fumegante exala seus humores.
Quando os raios do sol batem na tempestade
opaca, aspergem contra as nuvens: então surgem 525
as cores do arco-íris sobre escuras nuvens.
Outros fenômenos que nascem e acontecem
nas altitudes, que se agregam lá nas nuvens,
os ventos, o granizo, a geada gelada,
todos, a neve, os longos enrijecimentos 530
da água, que confundem e retardam o curso
dos rios – é sereno saber como nascem,
por que são criados, quando as propriedades
fulcrais dos elementos são bem entendidas.

A natureza das coisas, Livro VI – vv. 495-534 52

O que primeiro se pode notar no fragmento lucreciano é a ênfase para a causa da


chuva, ou seja, o aumento da umidade das nuvens – inclusive o trecho que antecede esta
passagem trata das nuvens. Em outros termos, faz-se presente o Lucrécio-discípulo, fiel à
física epicurista 53, retoricamente rigoroso quanto à ordem da exposição dos temas.
Outro aspecto importante da poética de Lucrécio é o uso da metáfora, e talvez a
principal metáfora do De rerum natura são aquelas que giram em torno do referente “átomo”:
sendo Lucrécio um poeta, não usa sequer uma vez o termo científico, nomeado ora de semina
rerum (semente das coisas), ora de corpora prima (primeiros corpos), ora de elementa
(elementos), ou mesmo de primordia rerum (primórdios ou princípios das coisas).
Neste entrecho, então, temos um procedimento que perpassa todo o poema, perceptível
em semina aquai, “as sementes da água”, ou os “grãos da água”. Filosoficamente, o
procedimento está atado ao projeto atomista de propor uma explicação para cada coisa ou
fenômeno sempre a partir do nível atômico da composição da matéria. Mas a operação

52
LUCRÉCE. De La nature. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 5. tir. Tome I. Paris: Les Belles Lettres, 1985. p. 121-
122. Tradução do autor.
53
Cf. nota 11.
12

metafórica em Lucrécio não para por aqui: não apenas os átomos são os grãos das coisas,
mas tais grãos “germinam”. Vemos o procedimento metafórico no uso do verbo cresco, cuja
etimologia informa o “brotar” como sentido primeiro, portanto, por toda a nuvem, brotam grãos
de água.
Outro aspecto das metáforas de Lucrécio é a opção por objetos colhidos na
cotidianidade imediata, como no caso do tosão de lã que é análogo às nuvens sobre o mar (v.
504), e no caso do amolecimento da cera (v. 516). Na primeira metáfora está se explorando a
capacidade de absorção da lã e de a cera, ainda em estado sólido, poder ser dura ou mole.
Além de claramente remeter às propriedade físicas da matéria, cumpre notar que tais
imagens aqui estão ligadas ao trabalho, e por que não dizer manual. Posto que a iconoclastia é
um intento maior do poema, estas metáforas participam dela sutilmente ao sugerir que as
nuvens se formam sem que seja pelas mãos dos deuses, expressão usada por Lucrécio: “Dos
fenômenos são incógnitas as causas / e pensam serem feitos pelas mãos dos deuses” (vv. 56-
54
57, L. VI) . Em suma, tais imagens fazem atentar para as propriedades físicas dos materiais
de trabalho, que podem ser reconhecidos, via sentidos, por seus artífices.
Ao tratar do aumento do volume de água dentro da nuvem, e de seu movimento,
Lucrécio afirma que os grãos de água “aumentam de mil modos”, tocando num ponto
fundamental da doutrina epicurista e de sua poética: fluidos em movimento respondem às leis
do turbilhão, donde a imprevisibilidade das maneiras com que cada “átomo de água” cresce
dentro da nuvem. Este fator de acaso na mecânica dos fluidos está, como veremos adiante,
ligado ao princípio de diversidade na natureza.
Por fim, ao explicar a chuva, Lucrécio recorre a uma figura retórica cara a si e ao
epicurismo, a saber, o princípio da multiplicidade das causas. São duas as razões de a nuvem
precipitar água: a força dos ventos e a compactação das nuvens (vv. 508-512).

4- A chuva, em Ponge

Chuva
54
DOMINGUES, Mario Henrique. O trovão, o relâmpago: tradução do Canto VI do poema de Lucrécio e análise de
função poética de fragmentos. Dissertação – Depto. de Letras Clássicas e Vernáculas – FFLCH – Universidade de São
Paulo – São Paulo, 2013.
13

A chuva, no pátio onde a observo tombar, cai com gestos muito diversos. No centro é uma fina
cortina (ou rede) puída, um golpe implacável mas relativamente lento de gotas provavelmente muito
ligeiras, uma precipitação perene sem vigor, uma fração intensa do meteoro absoluto. À pouca distância
dos muros da direita e da esquerda tombam com mais fragor as gotas mais pesadas, individuadas. Aqui
elas parecem do tamanho de um grão de trigo, acolá de uma ervilha, e além, quase uma bola de gude.
Sobre as venezianas, sobre os parapeitos das janelas a chuva escorre horizontalmente enquanto sobre
a face inferior destes mesmos obstáculos ela pende em caramelos convexos. Conforme à superfície
inteira de um pequeno teto de zinco que o olhar de cima abrange ela desliza como um lençol muito
delgado, com um sedoso ondeado por conta das correntes muito variadas pelas imperceptíveis
ondulações e pelos calos da cobertura. Da bica contígua, donde ela escoa com a contenção de um
riacho fundo sem grande declive, ela sucumbe de pronto em um filete perfeitamente vertical, muito
grosseiramente trançado, até o solo onde ela se rompe e esguicha em agulhas cintilantes.
Cada uma de suas formas tem um compasso particular; responde-lhe um ruído particular. O todo
vigora intensamente como um mecanismo complexo, tanto preciso quanto ao acaso, como um relógio
cuja mola é o peso de certa massa de vapor se precipitando.
A campainha ao solo dos filetes verticais, o pinga-pinga das goteiras, os minúsculos golpes de
gongo multiplicam-se e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem
delicadeza.
Quando a mola está descontraída, certas rodagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez
mais minguadas, pois toda a maquinaria se detém. Então, se o sol reaparece, tudo logo desaparece. O
brilhante aparelho evapora: choveu.

Francis Ponge, O partido das coisas. 55

Visto em panorâmica, este “proema” apresenta a chuva em três momentos. Primeiramente


em sua dimensão visual, caindo no pátio, escorrendo pelas venezianas, formando bicas e
caindo no chão. Depois, com o olhar como que desfocado dos detalhes, passa a dar ouvidos a
sua dimensão sonora, aos seus diferentes ruídos. Por fim, há como que um acompanhamento
do fim da chuva que tem um teor algo científico, na menção ao vapor (sugerido como causa da
chuva), em abordagens abrangentes como em “todo”, usando a analogia do relógio e sua
engrenagem de molas e rodagens: é a maquinaria da chuva.
O primeiro elemento lucreciano, além da óbvia escolha do tema emulado, é o princípio de
diversidade, pois a chuva cai com “gestos diversos”, com gotas que são “individuadas”, têm
formas variadas e essa percepção depende da distância entre seu ponto de queda e o
55
PONGE, Francis. Le parti pris des choses. Paris: Éditions Gallimard, 1980. p. 31-32. Tradução do autor.
14

observador. Não se constitui apenas de gotas: a chuva varia de “caramelos convexos”, “lençol
muito delgado”, “ondeado” por variadas correntes; seu escoamento é tanto vertical, como em
bicas, filetes e agulhas, quanto horizontal, como riacho; e por fim, os sons da chuva, dos
pingos, das goteiras, dos gongos e campainhas.
Este princípio de diversidade foi um dos aspectos que ganhou a atenção de Gilles Deleuze
para com a filosofia de Epicuro e a poesia de Lucrécio. Deleuze inferirá que a essência da
natureza é o diverso e sua produção, que resulta em uma “soma infinita, que não totaliza seus
próprios elementos”. Se não existe uma combinação que seja capaz de abranger
simultaneamente todos os elementos da natureza, então, não existe um mundo único ou um
universo total.

Physis não é uma determinação do Uno, do Ser ou do todo. A Natureza não é


coletiva, mas distributiva. As leis da Natureza (foedera naturai...) distribuem partes
que não se totalizam. (...) Com Epicuro e Lucrécio começam os verdadeiros atos
de nobreza do pluralismo em filosofia. Não veremos mais contradição entre o hino
à Natureza-Vênus e o pluralismo essencial a esta filosofia da Natureza. 56

Vale lembrar que este elemento lucreciano da diversidade é reivindicado por Ponge, ao
conceber seu livro Métodos como sendo um outro De rerum natura, um De rerum varietate.
Outro exemplo do princípio de diversidade lucreciana está na riqueza imagética das
formas da água, como na passagem de “filetes” para “agulhas cintilantes”. Note-se aqui a
acuidade visual que flagra o cintilante na superfície do translúcido, expondo a luz na cena
complexa da chuva. Este brilho como que vai antecipando a aparição do sol que ao fim do
poema surge e “evapora” toda esta realidade.
Na passagem da dimensão visual para a expressão sonora da chuva temos mais um
traço do princípio de diversidade, onde cada forma possui um “compasso particular”, a que
responde um “ruído particular”. Note-se o empréstimo do termo musical “compasso” para
referir-se à cinemática da imagem, aludindo ao ritmo do movimento de cada coisa, de cada
forma que a chuva toma. O “narrador capcioso” a que se refere Motta 57 sugere com isso que
estaria a começar a tratar, de modo simbolista, da “música da chuva”, mas, decerto,
“compasso” refere-se à forma visual, ao movimento, que por sua vez emitirá ruído. Sendo
assim, a chuva para Ponge é feita mais de ruídos do que de música.
56
DELEUZE, Giles. A lógica do sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Ed. Perspectiva/EDUSP, 1974. p.
274. A contradição a que Deleuze se refere é o fato de o De rerum natura – ao fim e ao cabo um épico didático-
filosófico materialista e, mesmo que tolerante com a crença nos deuses, ateu – trazer em seu introito uma invocação à
deusa Vênus.
57
MOTTA, 1999. p. 25
15

O princípio de incerteza é outro elemento da física lucreciana presente neste texto de


Ponge, expresso na asserção científica indicando a causa da chuva, “certa massa de vapor”,
ou na descrição das gotas “provavelmente muito ligeiras”. Este princípio ocorre também na
descrição de coisas que podem acontecer de modo imprevisível, quanto ao tempo e o espaço,
como as próprias gotas, que “parecem” diversas conforme ocorrem “aqui”, “acolá” ou “além”.
Ponge parece estar evocando as fórmulas lucrecianas para a lei de imprecisão do turbilhão:
nunc hinc, nunc illinc (ora aqui, ora acolá) e incertis modisque incerto tempore (de modo incerto
e em tempo incerto): nunc hinc nunc illinc fremitus per nubila mittunt, “Aqui e ali, um
frêmito atravessa as nuvens”L. VI, v. 199) 58.
Este princípio de incerteza está ligado, na física epicurista, ao clinamen e à formação
dos turbilhões. Michel Serres percebeu o poema de Lucrécio como um dos primórdios da
física moderna no que tange à mecânica dos fluidos. Em sua física atomista, o escoamento
dos átomos é laminar: os elementos primordiais são “lamínulas” sólidas, mas a
“catarata”, sua queda, é fluida. Trata-se de entender o corpúsculo mínimo, newtonianamente
visto sob as leis da mecânica dos sólidos, obedecendo às leis da mecânica dos fluidos. Assim,
o clinamen, “a menor condição concebível para a formação primeira de uma turbulência”,
59
ocasiona o turbilhão, a “forma primeira de constituição das coisas”. Justamente sobre
esta questão do escoamento temos uma referência no poema de Ponge: “Da bica contígua,
donde ela escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive”.
O turbilhão segue as leis do acaso, pois acontece aqui e ali, incerto noem tempo
incógnito e noem local indeterminado. Serres aponta a etimologia de turbo, donde provem
“turbilhão”: “forma redonda em movimento como um pião ou como a tupia, cone que gira
60
em espiral turbilhonante”. Por fim, Serres percebe no poema de Lucrécio um marco do
pensamento atomista:

Para compreender a empresa atomista e não a reputar absurda e arcaica, é


preciso abandonar o quadro geral da mecânica dos sólidos. Ele é o do nosso
mundo moderno em sua técnica própria e sua especulação. (...) O que é
incompreensível não é o acontecimento local da declinação, mas sua
inscrição na referência de uma outra mecânica, de uma outra ciência que a
dos fluidos. Ora, é nesta que está inteiramente mergulhada a física de
Lucrécio. 61

Vimos tratando do princípio de incerteza até tocar a ruptura paradigmática requerida por Serres
58
LUCRÉCE, 1985. p. 110. Tradução do autor.
59
SERRES, 2003. p. 16
60
Idem. p. 47
61
SERRES, 2003. p. 18
16

para melhor compreensão de Lucrécio, e parece ser possível afirmar não ser à toa que num
“proema” sobre a chuva Ponge trouxesse à tona, sutilizados, elementos dos princípios de
incerteza e diversidade, ambos derivados do clinamen (declinação), pondo em prática esse
abandono do “quadro geral da mecânica dos sólidos”, considerando metonimicamente a chuva
como um fluido.
Um traço expressivo do princípio de incerteza lucreciano está em uma breve panorâmica
em que Ponge aborda a chuva como um “todo”: “tanto preciso quanto ao acaso, como um
relógio cuja mola é o peso de certa massa de vapor se precipitando” . Seu aspecto de precisão
encontra analogia com o relógio, enquanto o acaso está relacionado ao princípio de incerteza.
Temos aqui ainda a questão causal do vapor em relação à chuva e uma alusão ao clinâmen
em “precipitando”. Cumpre notar aqui que mesmo o aspecto preciso da chuva resvala na
incerteza, posto que sua mola é o peso da massa de vapor que está se precipitando, ou seja,
enquanto se precipita essa massa vai mudando de peso a todo momento. Assim, a mola da
chuva, que no relógio é responsável pela precisão, está submetida constantemente à alteração
do peso da massa de vapor, resultando imprecisa, aproximativa.
Um traço da mestria com que Ponge emula Lucrécio está no uso dos paradoxos para
efeito de princípio de incerteza: como o “golpe” d’água do “centro” da chuva pode ser lento se
as gotas são “provavelmente” muito ligeiras? Como a chuva pode ser perene se não tem vigor,
e ser fração do absoluto?
O uso da etimologia latina também aparece nesta peça, por meio da expressão
“meteoro absoluto”, que não deve ser tomado como meteorito ou estrela cadente, mas como
“qualquer fenômeno atmosférico”. É neste recorte que opera Lucrécio no livro VI do De rerum
natura, abordando fenômenos que ocorrem no mundo sublunar, ou seja, entre a Terra e a Lua.
Com esta nuançada menção, Ponge parece indicar que tem consciência de que está
abordando a chuva como uma “fração intensa” da chuva lucreciana, o “meteoro absoluto” que
se quer como modelo para toda e qualquer chuva.
Sendo assim, ao mesmo tempo que homenageia profundamente seu mestre, Ponge
delimita seu espaço, imprime sua assinatura, de pelo menos dois modos: 1) pela recusa do
“absoluto” que sua poesia reivindica, posto que opera por aproximações, esboços, como o
62
“caderno de exercícios” apontado por Calvino ; 2) por sua chuva resultar mais humana, mais
familiar e cotidiana que a de Lucrécio. No fragmento latino o poeta parece querer nos
transportar para dentro da nuvem, enquanto Ponge nos convida a observar de cima um pátio.
Se é mais intimista a chuva pongiana, resiste ainda o elemento da analogia usando
62
CALVINO, 1990. p. 89
17

objetos os mais prosaicos, tanto em Lucrécio quanto em Ponge. No primeiro, o tosão de lã e a


cera; no segundo, a ervilha e a campainha.
63
Seguindo na esteira da imagética pongiana, temos a “geometria” como um dos pontos
de inflexão do imagismo de Ponge. Pode-se perceber esta característica no jogo minimalista
entre a chuva na disposição horizontal (sobre venezianas, parapeitos e janelas) e na vertical
(caindo das bicas em filetes).
Mais ousada, neste sentido, é a forma de “caramelos convexos” que a chuva assume.
Sendo a substância e a forma deste doce um dado cultural variável, na França o berlingot é
64
“um bombom de açúcar cozido e aromatizado, tendo a forma de um tetraedro” . Esta insólita
imagem de um tetraedro convexo como que estabelece uma dialética entre a curva e a reta.
Na tradução, optei pela omissão do termo tetraedro, como esforço de fidelidade à estilística de
Ponge, que combina a preocupação científica com a exploração do poder da palavra de tornar
tudo compreensível sem que se assuma o termo técnico, como maneira de manter profana sua
poesia 65.
Pode-se considerar discreto o traço lucreciano do atomismo nesta peça de Ponge, como
no caso da descrição da superfície ondulada do lençol d’água, “por conta das correntes muito
variadas pelas imperceptíveis ondulações e pelos calos da cobertura”. Aqui o átomo é
microscopicamente aludido na palavra “imperceptível”, pois de fato a ondulação é resultado do
clinâmen. Parece interessar mais a Ponge certos valores do átomo, sua invisibilidade, leveza,
mobilidade, imprevisibilidade (daí, sua liberdade) do que seu valor ontológico, de constituinte
mínimo da matéria.
Cumpre observar ainda dois fatores acerca do trecho acima comentado, envolvendo
processos de sutilização da estética lucreciana. Primeiro, Ponge transfere o princípio de
diversidade das coisas para os seus “gestos”, ou seja, para os movimentos, apontando a
66
multiplicidade dos movimentos dos átomos devido à sua imprevisível declinação, o que fica
expresso em “correntes muito variadas”. Depois, é o princípio lucreciano da multiplicidade das
causas, no caso, do “sedoso ondeado” do lençol d’água, devido às várias correntes e à
calosidade da cobertura. Vejamos em Lucrécio esta multiplicidade causal:

63
MOTTA, 1999. p. 32
64
Segundo a versão on-line do Larousse Dictionnaire, berlingot significa “bonbon de sucre cuit aromatisé, ayant la
forme d’un tétraèdre”. https://www.larousse.fr/dictionnaires/français/berlingot/8861/?q=berlingot#8801.
65
PONGE, 1961. p. 149
66
“(...) nada admirável não haja / paz entre os elementos no abissal vazio, / e sob vários constantes movimentos
saltam / rebatidos, em parte lançados ao longe, / em parte em breve espaço sofrem as pancadas”. In: LUCRÉCE, 1985.
L. II, vv. 95-99. p. 45. Tradução do autor.
18

Há fatos para os quais não basta assinalar


uma causa, e sim muitas, delas uma é certa:
se avistares, a alguma distância, um cadáver,
convém averiguar os motivos plausíveis
da morte, para ser apontado um exato.
Não se pode afirmar que morreu de frio, fogo,
de doença ou veneno, que são as possíveis
mas, destes acidentes, um seria a causa,
e isso vale para tantas outras coisas.67

Vale apontar dois traços estilísticos do “proema” que também remetem à poética de
Lucrécio. No trecho “a campainha ao solo dos filetes verticais” traz uma combinação de
hipérbato e ambiguidade, em solo, no original sol, que remeterá tanto a chão, onde caem os
filetes, quanto a sol, nota musical. Depois, na última frase da peça lemos “O brilhante aparelho
evapora: choveu”, em um laconismo que lembra o Lucrécio dos bordões epicuristas em que a
frase coincide dimensionalmente com o verso.
Vale indicar que Ponge assimila certa iconicidade da poesia de Lucrécio. É icônica a
frase que descreve a água escorrendo horizontalmente no teto de zinco em seu gesto
estendido, onde a sequencia de subordinações seguem sem pontuação como que
mimetizando o correr contínuo da água. Vemos a mesma recursividade de fluidez em Lucrécio:
“Quando os ventos desfazem as nuvens ou quando / se dissolvem sob golpes de calor do
sol / expelem e destilam a água da chuva, / como a cera amolece e derrete no fogo” 68.
Finalmente, cumpre notar que na ideia pongiana da peculiaridade de cada objeto
69
ressoa o conceito em Lucrécio de que “cada ser tem potência e força singulares” . Isto está
expresso no “proema” em descrições que envolvem paradoxos, como a chuva, análoga a uma
rede contínua e puída, no golpe lento de gotas ligeiras ou mesmo na superfície do lençol
d’água, sedosa pelas calosidades do teto de zinco.

CONCLUSÃO

Na análise do poema em prosa Pluie, de Francis Ponge, pudemos notar a profunda


influência de Lucrécio em sua poética. Sendo esta influência assumida pelo autor e
referendada pela crítica, podemos afirmar que não se restringe a elementos isolados
encontrado nesta peça, mas que se estende ao longo de sua obra. Dos elementos
lucrecianos perceptíveis aqui é uma aplicação por vezes enviesada e complexa de dois
67
LUCRÉCE, 1985. L. VI, Tome I I, vv. 703-711. p. 129. Trad. do autor.
68
Idem. Trad. do autor.
69
Id. p. 8. Trad. do autor.
19

princípios, o da diversidade e o da incerteza.


Ambos os princípios são intrinsecamente relacionados, pois são derivados de um
mesmo tópico da física de Demócrito e Epicuro, o do clinâmen. Trata-se de uma leitura
sofisticada do legado de Lucrécio, muito além do que seria tratar dos átomos, do vazio ou
da ataraxia epicureana. E é notável tal sofisticação sobretudo por tratar de aspectos do
poeta latino antes que pudesse vir a contar com as interpretações de Deleuze, sobre a
diversidade, e Serres, sobre a indeterminação. Inferimos assim que Ponge leu a física de
Lucrécio imbuído de conhecimentos sobre a física atômica moderna, da qual pode ter
absorvido algo do calor da hora das descobertas sobre o universo subatômico.
Não menos importante que os dados teóricos, percebemos que Ponge, em sua
assinatura, em seu traço de individualidade (dado de diversidade) alcança uma eficaz
emulatio de Lucrécio por meio da sutilização na articulação daqueles dados. Sendo assim,
o princípio de diversidade se expressa tanto nas coisas quanto em seus gestos, enquanto o
princípio de incerteza perpassa todo o entorno de seus objetos.
Importa notar que se o cerne da poética pongiana é “dizer o objeto” ele o faz por meio da
fusão da aplicação dos princípios de diversidade e incerteza, ou seja, o faz com
instrumentos lucrecianos. O método de Ponge, buscar o intrínseco ao objeto perscrutando
o ponto de vista do objeto, se dá em uma atenta análise de suas circunstancialidades.
Outra contribuição original da abordagem Ponge é a chuva que permite uma cotidianidade
imediata, uma familiaridade, o que os fenômenos abordados por Lucrécio, que o vulcão, o
raio, o relâmpago e até mesmo a chuva, como apresentada pelo poeta-filósofo, não
permitem.
Por fim, se Ponge é mesmo como propõe Calvino o Lucrécio de nosso tempo, isto deve
estar relacionado com a história da recepção do De rerum natura na França. A começar por
leitores de peso como Montaigne e Voltaire, e mais atualmente Paul Valéry e Phillipe
Sollers, devemos considerar também o belo estudo que Henri Bergson o dedicou e as
várias traduções do poema para o francês, tais como as de Henri Clouard, Alfred Érnout,
André Lefèvre, René Waltz, F. de Parnajon e La Grange, entre outros. Vale acrescentar o
estudo de Constant Martha, do fim do XIX, até hoje ser considerado uma das mais
importantes obras sobre Lucrécio. E aos estudos de Deleuze e Serres, podemos acrescer
também a obra “O mel e o absinto”, de André Compte-Sponville.

REFERÊNCIAS
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21

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