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Axioma – Publicações da Faculdade de


Filosofia
Um mapa poético nas Vidas e Razos do cancioneiro occitano

MARCELLA LOPES GUIMARÃES


UFPR/NEMED
marcella974@gmail.com

Abstract

Vidas and Razos are poetic prose chapters, conceived from poetry. These brief narratives
can be studied through the intertextual relations made with the troubadours songbook,
but they also show the intense geographical movement and circulation of information that
were part of the lives of those who fought and sang throughout the 12th and 13th centu-
ries. Although they never correspond to the paths covered, they would be unacceptable
expressions if they did not hold a recognizable condition among the public. This is one
of the possible relations to be explored when we ask: how to describe the landscape and
why?
Keywords: Vidas and Razos, geographical movement, circulation of information,
Occitan songbook.

1. Vidas e razos: a História como compreensão1

Tudo o que sabemos sobre os trovadores e sobre a poesia medieval provém da


lição dos cancioneiros (Zink 2013: 20). O tema deste ensaio nasce de uma dessas
lições, ou seja, da leitura de vidas e razos, publicadas em 23 manuscritos, que se
referem a 101 trovadores atuantes entre os séculos XII e XIV (Gauvard, Libera &
Zink 2012: 1446). Por vida, compreende-se a biografia mais ou menos ficcional do
trovador e, por razo, explicações de determinadas composições. Como também
as razos apresentam detalhes biográficos, os gêneros se confundem muitas vezes
(Gougaud 2009: 101). Juntas, somam 225 textos, escritos em vermelho; enquanto
os poemas foram copiados com tinta preta. Essas composições são capítulos
importantes de prosa poética; são pequenos contos cheios de imaginação que
interessam, entretanto e muito, à História pelo seu caráter narrativo, ou seja,
pelo modo racional de constituírem sentido a partir do vivido. Segundo Rüsen:

1 
Prost 2014:133-152.

Revista Portuguesa de Humanidades  |  Estudos Literários, 21-2 (2017), 49-58

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“A narrativa é um processo de poiesis, de fazer ou produzir uma trama da expe-


riência temporal tecida de acordo com a necessidade de orientação de si no curso
do tempo. O produto deste processo narrativo, a trama capaz de tal orientação, é
uma ‘história’” (Rüsen 2010: 95-96).
Vidas e razos são histórias em que sobressaem formas de compreender o
mundo à luz da poesia e das informações que os autores dessas “biografias” e
“explicações” puderam recolher. Se “narrar é superar a morte” (Rüsen 2010: 96)2,
uma primeira questão seria como esses autores lidaram com um dos elementos
constitutivos da narrativa, o espaço? Na verdade, Paul Zumthor nos obriga a rever
a questão ao observar que uma das funções primeiras da linguagem parece ser
marcar o lugar do sujeito e que a experiência do espaço constitui uma das bases
sobre as quais o ser humano organiza de forma conceitual outros âmbitos de sua
“realidade” (Zumthor 1994: 26-27). Portanto, para afirmar ou ordenar a expe-
riência de forma narrativa, o espaço é um dos elementos fundamentais, para além
de ser elemento da teoria da literatura... Na verdade, como célula do tecido da
experiência narrada, a questão que se interpõe é como o espaço escrito revela
uma maneira de perceber o indivíduo, afinal tratamos de pequenas biografias,
em sua relação com os outros e com o espaço empírico e histórico? Em tempos de
grandes mobilidades populacionais, de desenraizamento e “deslocação”3, como o
presente em que vivemos, o medievalista se pergunta sobre relações estabelecidas
com o espaço por agentes que pautavam a vida segundo valores e condicionantes
bastante diversos dos nossos. A diferença, contudo, amplia a nossa capacidade
de compreensão: “De fato, na história, compreender é sempre, de certa maneira,
colocar-se pelo pensamento no lugar daqueles que são objeto da história que se
escreve” (Prost 2014: 147).
Para esse ensaio em especial, primeiro exercício de um novo projeto
de pesquisa, escolhemos quatro trovadores e suas vidas e razos4. São eles:
Guilherme da Aquitânia (1071-1126), o primeiro trovador conhecido, pelo que há
de desmesurado em relação ao espaço narrado em sua vida; Jaufre Rudel (séc.
XII) que talvez seja o trovador que mais que qualquer outro instituiu o amor de
longe; Raimbaut de Vaqueiras (†1207) pelo seu famoso descordo que manifesta
de forma exemplar a cartografia da poesia trovadoresca e Folquet de Marseille
(†1231), cuja vida costuma ser reputada como uma das mais “verdadeiras” do

2 
Rüsen faz referência à Scherazade.
3 
Indivíduos adultos e crianças que foram expulsos de suas habitações por situações
de extremo risco e que se deslocam por diversas paragens, acompanhando grandes ou
pequenos grupos.
4 
Esse ensaio também propõe traduções das vidas.

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Um mapa poético nas Vidas e Razos do cancioneiro occitano 51

cancioneiro occitano. Esses documentos serão uma espécie de guia, do qual o


historiador tem necessidade para a compreensão de um universo tão distante.
Guilherme da Aquitânia, Jaufre Rudel, Raimbaut de Vaqueiras e Folquet de
Marseille foram escolhidos para esse ensaio em razão da sua ampla mobilidade
espacial e do diverso significado do elemento espaço nas suas vidas. Este ensaio
propõe, assim, a primeira reflexão de um projeto que não se constrói a partir
da ambição de escrever a “palavra final” sobre tema tão amplo e instigante. O
projeto intenta colaborar para a discussão do elemento nas narrativas biográficas
do cancioneiro occitano e para a análise da circulação dos trovadores entre os
séculos XII e XIII.

2. “Não existe lugar sem presença”5

Em um dos trechos mais extraordinários de Guilherme IX da Aquitânia, o


trovador afirma:

O nosso amor parece afim


Do espinheiro na ruim
Noite em que treme com o quebranto
Da chuva e do vento gelado
Mas de manhã vemos com espanto
Esbelto e verde ao sol dourado6

Como sintetizou Michel Zink sobre esses versos: “au milieu de tous ces
poètes narcissiques, plus attentifs à leur amour qu’à l’ être aimé, lui seul, le
premier de tous, lui seul, le trompeur de dames (...) sait que si l’amour est fragile
et menacé, c’est parce qu’il n’est pas ‘mon amour’, mais ‘notre amour’” (Zink 2013:
69). Então, o primeiro trovador conhecido é aquele que propôs uma relação muito
pouco explorada por seus continuadores, a de que toda a complexidade do amor
estaria no fato de unir dois seres diferentes, compreendidos em nosso amor. A
“ousadia” de ter visto primeiro o que poucos continuaram a ver depois encontra
paralelo na relação com o espaço. Assim, expressou-se o autor da vida do Duque
da Aquitânia e Conde de Poitiers:

5 
Zumthor 1994: 54. Aqui, o subtítulo alude ao “lugar” de Guilherme da Aquitânia
como primeiro trovador conhecido.
6 
Aquitânia 2009: 87. Destaque do primeiro verso, de nossa responsabilidade.

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O conde de Poitiers foi um dos maiores cortesãos do mundo e um dos maiores enga-
nadores de mulheres; em armas, bom cavaleiro; pródigo nas manobras da sedução;
e sabia bem trovar e cantar. Por muito tempo, foi pelo mundo enganar as mulheres.
Teve um filho, que tomou por mulher a duquesa da Normandia, da qual houve uma
filha que se tornou mulher do rei Henrique da Inglaterra; mãe do rei João, do senhor
Ricardo e do conde Geoffroi da Bretanha. (Aquitaine 2013: 22-23)7

Uma narrativa reduzida com uma informação incorreta: Guilherme X não


tomou por mulher uma duquesa, mas a filha da amante de seu pai. Depois da
identificação do trovador, o primeiro aspecto apontado pelo autor da biografia
introduz o espaço: “foi um dos maiores cortesãos do mundo”. Mas como esse
autor compreendia o mundo? A resposta parece estar na segunda vez em que
menciona esse espaço desmesurado: “Foi por muito tempo pelo mundo enganar
as mulheres”. Ou seja, a compreensão de mundo parece ligada à movimentação do
trovador: é todo lugar pelo qual passou, trapaceando amorosamente.
Guilherme da Aquitânia tinha em torno de 15 anos quando herdou o condado
de Poitiers e o ducado da Aquitânia (Bernard apud Aquitaine 2013: 24). Era
um domínio maior que o domínio real, ainda mais depois do seu segundo casa-
mento, quando poderia pretender também o condado de Toulouse (Bernard apud
Aquitaine 2013: 25). O trovador se engajou nas fileiras da primeira Cruzada e
chegou a Jerusalém. Muitos anos depois da volta, ainda apoiaria os esforços de
Afonso o Batalhador rei de Aragão; conheceria o príncipe de Saragoça Mitadolus...
o mundo que Guilherme conheceu era grande. Para a sua vida empírica e histó-
rica converge um elemento importante de ampliação do universo daqueles que
lutaram no contexto: as cruzadas estendem o mundo dos cavaleiros. Não podemos
esperar que essa extensão tivesse sido acompanhada de uma compreensão das
diferenças..., os documentos apontam mesmo o contrário. Nisso, não somos desse-
melhantes no presente... Para além do confronto contra aqueles que eram consi-
derados infiéis, os cruzados conheceram paisagens, entretanto; sua geografia se
diversificou. Se por um lado, quem compôs a vida do trovador não julgou perti-
nente referir a campanha, não poderia desconhecê-la, nem seu público, entre os
séculos XIII e XIV. O mundo já era grande então, o de Guilherme ia da Península

7 
Tradução nossa.

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Ibérica até Jerusalém, e nele, foi um grande enganador de mulheres (dado refe-
rido duas vezes).

3. Trajetórias em movimento8

A vida de Jaufre Rudel é uma das mais conhecidas; inspirou poetas român-
ticos e uma ópera no início deste século (Zink 2013: 147).
Jaufré Rudel de Blaye foi gentil homem de grande nobreza e príncipe de Blaye; e ele
se enamorou da Condessa de Trípoli, sem vê-la, pelo bem que ouviu dizerem dela os
peregrinos que vinham de Antioquia; e fez sobre ela um grande número de poemas
com boa música e pobres palavras. E pela vontade de vê-la, cruzou-se e lançou-se ao
mar. E na embarcação caiu doente e foi conduzido a Trípoli, para uma hospedaria,
como morto. Isto foi sabido pela Condessa e ela veio ao pé dele, de sua cama e lhe
tomou nos braços. E ele soube que era a Condessa e imediatamente recuperou visão,
audição e olfato; e agradeceu a Deus por ter assegurado sua vida até que a tivesse
visto. E assim morreu entre seus braços; e ela o fez sepultar com grande honra na
Casa do Templo. E no mesmo dia, ela se fez religiosa pela dor que teve de sua morte.
(Gougaud 2009: 107)9

Graças a Marcabru, sabemos que o fim do trovador não foi exatamente o


consignado na narrativa (Zink 2013: 147); por um sirventês desse trovador somos
informados de que Rudel participou da 2ª cruzada (Zink 2013: 149), nas fileiras
dos fundadores do Condado. Portanto, tanto como Guilherme da Aquitânia o
mundo empírico e histórico do trovador da dama distante era muito maior que o
seu principado de Blaye. Muito já se escreveu sobre a identidade da Condessa de
Trípoli, mas o fato é que nenhuma conclusão segura pôde encerrar o debate.
Conhecemos 6 cantigas de Jaufre Rudel. Em metade delas, lemos o tema do
amor distante. Esse elemento é a essência de sua vida. Em uma de suas compo-
sições, “Lanquan li jorn son lonc en may”, logo na primeira cobra sobressai uma
contraposição espacial: entre o lugar em que está amada e onde está o eu. Para
remediar a distância, o poeta deseja ser um peregrino e ser albergado pela dama
em sua travessia. Nesse espaço de encontro, “será agradável o colóquio, quando
o amante longínquo estiver tão próximo que se alegre com as belas palavras de
carinho” (Spina 1996: 118). Nessa mesma cantiga, a referência ao “ouvir dizer”, a

8 
Por “trajetórias em movimento” compreendemos a circulação dos trovadores, como
a leitura das vidas comprova.
9 
Tradução nossa.

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reputação que se dissemina até alcançar o eu, revela uma rede de circulação de
notícias. Sua experiência como cruzado se afirma na declaração de que queria
ser cativo dela, no reino dos mouros. Levando em conta a convergência entre a
cantiga e a vida do trovador, Jerusalém ou a reconquista do condado de Edessa
(Fernandes 2006: 117) são pretexto, ou seja, o objetivo da viagem poética é chegar
onde está o amor longínquo tão somente. Indeterminado, porém, o espaço iden-
tifica a natureza do amor proposta pelo poeta, em permanente expectativa. Na
narrativa, por outro lado, o espaço é determinado, trata-se do Condado Trípoli,
um dos três principados resultantes das campanhas dos barões cruzados. Os
outros eram Antioquia e Edessa.
Por que justamente Trípoli? O condado cristão de Trípoli foi o último a ser
estabelecido pelos cruzados. Raimundo de Saint-Gilles (de Toulouse) trabalhou
com afinco pela sua conquista, mas só um de seus filhos, Bertrand de Saint-Gilles,
haveria de completar a campanha. Steven Runciman nos lembra que “trata-
va-se de um feudo rico e próspero, que, por sua afluência e posição, fazendo a
ponte entre os francos do Norte da Síria e os da Palestina, desempenharia um
papel crucial na história das Cruzadas” (Runciman 2002: 69). Além da opulência
e da importância estratégica do condado, é preciso destacar que o fato de esse
principado ter sido estabelecido por um senhor do Midi francês favoreceu o seu
caráter provençal (Laurent 1950: 281-282), como singularidade frente a Edessa,
Antioquia e mesmo Jerusalém. A leitura da vida, da poesia e a exploração da
história das cruzadas convergem para a importância do rumor, para a relação
do poeta com a Casa de Toulouse e para a especificidade de Trípoli como lugar
poético e empírico-histórico: o poeta só pode ouvir falar da condessa porque ela,
quem fala dela e ele próprio se expressam na mesma língua e, os braços da dama
distante podem ser, na verdade, o conforto da Casa estendida de uma cultura
comum.
Abordar a importância da língua como possibilidade de uma Casa esten-
dida ou como prova de uma cartografia poética nos leva ao descordo plurilíngue
de Raimbaut de Vaqueiras. O trovador escreve no século XII uma canção em 5
línguas: provençal, italiano, francês, galego-português e gascão. O que isso signi-
fica? A resposta foi dada por Souto Cabo: “o uso [do galego-português] no descordo
só se justifica pela existência de um público receptivo a esse idioma e à modali-
dade literária que nele se exprimia” (Cabo 2012: 214). Nessa resposta, fica claro
que o galego-português era uma língua poética reconhecida no contexto em que
o trovador viveu. Poderíamos acrescentar, como consequência da importância do
veículo, a necessidade de o poeta se exprimir para além da sua língua materna.
A vida do trovador narra uma série de espaços que também apontam para a sua

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circulação geográfica, em que as línguas do descordo deviam ser usadas para


além da expressão poética:

Raimbaut de Vaqueiras foi filho de um pobre cavaleiro da Provença, do castelo de


Vaqueiras, chamado Peirors, que era louco.
Raimbaut se fez jogral e passou uma temporada com o Príncipe de Aurenga (Orange),
Guilherme de Baus. Sabia bem cantar e fazer cobras e sirventês; e o Príncipe lhe fez
grande bem e honra, levando-o a conhecer e a apreciar boas gentes.
[Deixando o Principado de Orange] Vindo a Montferrat, onde vivia o Marquês
Bonifácio, estabeleceu-se por um bom tempo em sua corte, engrandecendo-se no
sentido das armas e na poesia.
Enamorou-se da irmã do Marquês, que se chamava Beatriz, mulher de Henri del
Caret. Compunha para ela boas canções e lhe chamava nessas canções de “Belo
Cavaleiro”. Acreditava-se que ela lhe queria bem por amor.
Quando o Marquês seguiu para Bizâncio10, ele o levou e lhe fez cavaleiro. Deu-lhe
uma grande terra e rendas do reino de Salônica. E lá morreu. (Biographies des
Troubadours 1950: 266-267)

Um dos primeiros elementos da vida de Raimbaut de Vaqueiras é a sua


condição social e econômica, de filho de pobre cavaleiro. O trovador primeiro
encontrou oportunidade como jogral, mas soube galgar posições mais presti-
giadas por talento, privança e conhecimento adquirido. Do principado de Orange,
transferiu-se para a Itália, para a Marca de Montferrato. Lá, viveu a história de
amor que é explorada nas razos e onde se explica afinal por que Madame Beatriz
era o “Belo cavaleiro” das cantigas. Com Bonifácio de Montferrat, seguiu para
Bizâncio. Bonifácio haveria de ser rei da segunda maior cidade de Bizâncio, no
contexto da 4ª cruzada. O narrador da vida de Raimbaut de Vaqueiras demarca
as transformações sociais pelas quais ele passou com a menção ao espaço, ou seja,
com a identificação de cada corte. A mobilidade do trovador lhe vai engrande-
cendo.
Na vida de Folquet de Marseille, o narrador não está interessado em estabe-
lecer uma relação tão direta entre espaço e ascensão social:

Folquet de Marseille era filho de um mercador de Gênova, que se chamava Mestre


Afonso. Quando seu pai morreu, deixou-o rico. Dedicou-se ao preço e ao valor, e se
colocou a serviço de bravos barões e corajosos homens, a seguir com eles, a dar e a
servir, a ir e a vir.

10 
“Romanie”. Vincenzo 1899: 417-438.

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Ele foi muito prezado e honrado pelo rei Ricardo11 e pelo conde Raimundo de
Toulouse, assim como pelo senhor Barral, seu senhor de Marseille.
Ele se encontrava bem e sua pessoa era muito agradável [a todos]. Ele cortejava
a dama de seu senhor, senhor Barral. Ele lhe suplicava amor e fazia para ela suas
cantigas. Mas nunca, nem por canções e súplicas, ele pode obter seu favor, de modo
que ela nunca lhe fez nenhum bem, em direito de amor. É por isso que ele se lamenta
sempre em suas cantigas.
E deu-se que sua dama morreu, e o senhor Barral, seu marido, e o senhor de Folquet,
que tanto lhe honrava, e o bom rei Ricardo e o bom conde Raimundo de Toulouse,
e o rei Afonso de Aragão. Então, por causa da tristeza com a morte de sua dama
e dos príncipes que lhes mencionei, ele abandonou o mundo; e entrou na Ordem
dos Cistercienses, com sua mulher e dois filhos que tinha. E foi feito abade de uma
rica abadia, na Provença, chamada Torondet. Depois foi feito bispo de Toulouse e lá
morreu. (Gougaud 2009: 145-146)

Segundo Stronski, as informações dessa vida são “precisas e exatas”


(Stronski apud Gougaud 2009: 146). Mas a narrativa do espaço acha-se subme-
tida a outros elementos por causa dessa prerrogativa? Como nas outras vidas que
lemos, a primeira referência espacial identifica o indivíduo. Não falamos neces-
sariamente de identificação atrelada à naturalidade, mas ao prestígio, o que se
coaduna à natureza das relações que vinculavam os indivíduos no perímetro
cultural desses trovadores. Seu pai era natural de Gênova, mas até o personagem
tornar-se Folquet de Marseille ele seguiu diversos senhores. Outro elemento
importante é que o trovador não parece ter sofrido constrangimento econômico,
como Raimbaut de Vaqueiras sofrera, afinal seu pai o deixou rico. As referências
espaciais identificam seus senhores e confirmam o prestígio individual, como
nos três casos acima mencionados. Em sua vida, há um desdobramento que é
consequência da vicissitude de ter perdido vários dos senhores a quem estava
ligado por relações de afeto. O autor da vida afirma: “por causa da tristeza (...)
abandonou o mundo”. Mesmo tendo abandonado o mundo, a vida ainda refere a
sua mobilidade como prestigiado homem religioso: primeiro abade, depois bispo.
Novamente, espaço é lugar de presença social.

4. Conclusões parciais

No momento em que as línguas românicas têm desenvolvidos os elementos


linguísticos responsáveis por realizar conexões entre as informações, mesmo que

11 
Rei Ricardo Coração de Leão.

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de forma ainda muito paratática, ou apenas com conjunções coordenadas aditivas,


como é o caso das vidas e razos, a demarcação dos espaços é essencial para a
representação da existência. No contexto em que esses textos foram compostos,
a narrativa já assumia ambições de representação mais diversificadas, entre as
quais a própria narrativa histórica. As vidas e razos são algumas das primeiras
manifestações de escrita do indivíduo no medievo latino, já em romance. Assim,
para quem as escreveu, convergem experiências diversas: por um lado, um poten-
cial linguístico mais diversificado; por outro, a poesia dos cancioneiros, a narra-
tiva histórica e documentos vários, incluímos aqui mesmo o testemunho.
A ousadia do primeiro trovador, o único a ver o desafio do amor que não é
narcisista, encontra a desmesura do espaço de sua atuação como cavaleiro cortês
e enganador de mulheres. Ao mapear, porém, os seus senhorios e a sua movi-
mentação, não há dessintonia entre a amplitude da sua circulação e poder e a
incomensurabilidade com que o autor da vida representou o espaço na narrativa:
o mundo... No caso de Jaufre Rudel, a dama distante parece paradoxalmente
próxima, o que não tem sido bem observado pelos estudos historiográficos,
quando confrontamos a sua identificação e a extensão da Casa, com o lugar de
reconhecimento na Trípoli que se expressava em langue d’oc. No caso da vida
de Raimbaut de Vaqueiras, o espaço demarca claramente a ascensão do trovador
e ratifica a mobilidade desses homens que lutavam e cantavam. Por fim, na
narrativa protagonizada por Folquet de Marseille, reputada como uma das mais
verídicas do cancioneiro occitano, essa singularidade não transparece na organi-
zação da narrativa a partir de um conjunto de relações muito diversas das que são
tecidas pelos elementos conjugados nas vidas e razosque examinamos.
Voltemos à pergunta inicial do texto: como o espaço escrito revela uma
maneira de perceber o indivíduo, em sua relação com os outros e com o
espaço empírico e histórico? Esses textos que entronizam as cantigas nos
cancioneiros occitanos, pelo menos no caso das trajetórias estudadas aqui,
revelam sintonia extraordinária entre a experiência e a narrativa. A conquista do
eu, como experiência narrada, passa pela deambulação e pelo domínio do espaço
que organizam assim a vida dos indivíduos no tempo. Essa sintonia nos provoca
a pensar nas consequências da perda de referências dos sujeitos deslocados do
presente e a avaliar a experiência do espaço como uma das mais constitutivas de
homens e mulheres.

Referências

Aquitane, Guillaume d’ (2013). Le Néant et la Joie. Présentation et traduction de Katy Bernard. Gardonne:
ÉditionsFédérop.

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58 Revista Portuguesa de Humanidades |  Estudos Literários

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dezembro de 2016).
Les Biographies des Troubadours en Langue Provençale, publiées intégralement pour la premières fois
avec une introduction et des notes accompagnées des textes latins, provençaux, italiens et espagnols
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Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4102n/f11.item.r=Biographies%20des%20
troubadours.zoom (acesso em 12 de dezembro de 2016).
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books.google.fr/books?id=4e1AAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_
summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false (acesso em 12 de dezembro de 2016).
Gougaud, Henri(2009). Poésie des troubadours. Anthologie présentée et établie par Henri Gougaud.
Texte français de René Nelli et René Lavaud, revu et corrigé par Henri Gougaud. Éditions Points.
Prost, Antoine. Doze lições sobre a História. (2ª ed., 2ª reimp.) (2014). Belo Horizonte: Autêntica Ed..
Runciman, Steven (2002). História das Cruzadas. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago.
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