Você está na página 1de 24

Hyppolite Adolphe TAINE (Vouziers, 1828 – Paris, 1893) atuou como filósofo,

historiador e crítico literário. De tendência positivista, erigiu o meio físico-geográfico, a raça e o


momento como fatores determinantes dos processos históricos, concebendo a literatura e as artes
em geral sobretudo como documento desses processos. Seu pensamento teve grande influência
nos estudos literários (na história da literatura principalmente, mas também na crítica literária),
mas encontrou sempre muita resistência por parte daquelas correntes mais interessadas em
questões de forma do que numa investigação da literatura de base sociológica ou historiográfica.

INTRODUÇÃO [À HISTÓRIA DA LITERATURA INGLESA] ∗

(1863)

O historiador poderia situar-se no seio da alma humana, durante um certo


tempo, uma série de séculos, ou num determinado povo. Ele poderia
estudar, descrever, relatar todos os acontecimentos, todas as
transformações, todas as revoluções que se tivessem realizado no interior
do homem; e quando chegasse ao termo, teria uma história da civilização
no povo e no tempo que escolhera.

(Guizot,1 Civilização na Europa, p. 25.)

A história transformou-se há cem anos na Alemanha, há sessenta anos na França, e isto se


deu pelo estudo das literaturas.
Descobriu-se que uma obra literária não é um simples jogo de imaginação, capricho
isolado de uma mente calorosa, e sim uma cópia dos costumes circundantes e o sinal de um
estado de espírito. Concluiu-se daí que era possível, a partir dos monumentos literários,
reencontrar a maneira como os homens sentiram e pensaram há vários séculos. Isso foi tentado
com sucesso.


In: Histoire de la littérature anglaise. 7. ed. Paris: Hachette, 1891 [1863]. V. 1, p. III-XLIX.

Tradução de Cláudia Neiva de Matos.


1
François Guizot (1787-1874), crítico francês.

1
Refletiu-se sobre tais maneiras de sentir e pensar, e estimou-se que se tratava de fatos de
primeira ordem. Viu-se que estavam vinculados aos maiores acontecimentos; que os explicavam,
que eram por eles explicados, que doravante era preciso dar-lhes na história um lugar, e dos mais
elevados. Esse lugar lhes foi dado, e desde então tudo foi mudando na história: objeto, método,
instrumentos, concepção das leis e das causas. É esta modificação, tal como se dá e deve se dar,
que vamos tentar expor aqui.

Quando viramos as páginas rijas de um in-fólio, as folhas amarelecidas de um manuscrito,


enfim, um poema, um código, um símbolo de fé, o que é que notamos primeiro? É que ele não se
fez sozinho. Não passa de um molde semelhante a uma concha fóssil, uma marca, semelhante a
uma dessas formas depostas na pedra por um animal que viveu e pereceu. Sob a concha havia um
animal, e sob o documento havia um homem. Por que se estuda a concha, senão para imaginar o
animal? Do mesmo modo, é para conhecer o homem que se estuda o documento; concha e
documento são destroços mortos, e só valem como índices do ser inteiro e vivo. É até este ser que
precisamos chegar; é ele que devemos tentar reconstruir. Enganamo-nos ao estudar o documento
como se ele estivesse só. Isso é lidar com as coisas como simples erudito, e cair numa ilusão de
biblioteca. No fundo não há nem mitologia, nem línguas, mas meramente homens que combinam
palavras e imagens conforme as necessidades de seus órgãos e a forma original de sua mente. Um
dogma não é nada por si mesmo; vejam-se as pessoas que o fizeram, como num retrato do século
XVI, a rija e enérgica figura de um arcebispo ou mártir inglês. Nada existe senão pelo indivíduo;
é o próprio indivíduo que precisamos conhecer. Quando estabelecemos a filiação dos dogmas, ou
a classificação dos poemas, ou o progresso das constituições, ou a transformação dos idiomas, só
fizemos aplainar o terreno; a verdadeira história apenas se levanta quando o historiador começa a
desentranhar, através da distância dos tempos, o homem vivo, em ação, dotado de paixões,
munido de hábitos, com sua voz e sua fisionomia, seus gestos e roupas, distinto e completo como
aquele que há pouco deixamos na rua. Procuremos portanto suprimir, tanto quanto possível, o
grande intervalo de tempo que nos impede de observar o homem com nossos olhos, com os olhos
de nossa cabeça. O que é que existe sob as lindas folhas acetinadas de um poema moderno? Um

2
poeta moderno, um homem como Alfred de Musset, Hugo, Lamartine2 ou Heine,3 que fez seus
estudos e viajou, usando luvas e roupa preta, apreciado pelas senhoras e oferecendo à noite na
sociedade mundana umas cinqüenta saudações e vinte frases de efeito, lendo os jornais de manhã,
morando geralmente num sobrado, não muito alegre porque anda meio nervoso, e sobretudo
porque, nesta espessa democracia em que sufocamos, o descrédito das dignidades oficiais
exagerou-lhe as pretensões realçando-lhe a importância, e cuja fineza de sensações habituais lhe
dá certo desejo de pensar que é Deus. Isso é o que percebemos em meditações ou sonetos
modernos. Do mesmo modo, sob uma tragédia do século XVII, há um poeta, um poeta como
Racine, por exemplo, elegante, ajustado, cortesão, bem falante, usando uma peruca majestosa e
sapatos com fitas, monarquista e cristão de coração, “que recebeu de Deus a graça de não corar
na presença de ninguém, nem do rei, nem do Evangelho”; hábil em divertir o príncipe, traduzir-
lhe em belo francês “o gaulês de Amyot”,4 muito respeitoso para com os poderosos, e sabendo
sempre, perto deles, “manter-se em seu lugar”, pressuroso e reservado tanto em Marly5 como em
Versalhes,6 no meio dos deleites regulares de uma natureza policiada e decorativa, entre as
reverências, graças, manobras e finezas dos senhores engalanados que se levantaram de manhã
para merecer uma titularidade, e das encantadoras senhoras que contam nos dedos as genealogias
a fim de obter um tabouret”.7 A esse respeito, consultem-se Saint-Simon8 e as estampas de
Pérelle,9 como há pouco se consultaram Balzac e as aquarelas de Eugène Lami.10
Analogamente, quando lemos uma tragédia grega, nosso primeiro cuidado deve ser o de
imaginar gregos, isto é, homens que vivem meio nus, em ginásios ou praças públicas, sob um céu
resplandecente, diante das mais finas e nobres paisagens, ocupados em moldar um corpo ágil e
forte, em conversar, discutir, votar, executar pirataria patriótica, ademais ociosos e sóbrios,
possuindo como mobiliário três cântaros em casa, e como provisões duas anchovas num jarro de
óleo, servidas por escravos que lhes deixam o lazer de cultivar o espírito e exercitar os membros,
sem outro cuidado que o desejo de ter a mais bela cidade, os mais belos cortejos, as mais belas

2
Alphonse Marie Louis de Prat Lamartine (1790-1869), poeta francês.
3
Harry Heine, ou Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856), poeta e jornalista alemão.
4
Jacques Amyot (1513-1593), escritor e tradutor francês.
5
Espécie de palácio de campo do rei Luís XIV.
6
Palácio real francês, símbolo do poder monárquico absolutista.
7
Espécie de banquinho. Refere-se aqui ao direito que tinham certos nobres de sentar-se no tambouret durante a ceia
do rei ou na companhia da rainha. (Nota da tradutora.)
8
Louis de Rouvroy, ou Saint-Simon (1675-1755), memorialista da vida cortesã sob Luís XIV.
9
Gabriel Pérelle (1604-1677), gravador francês.
10
Eugéne Louis Lami (1800-1890), pintor e ilustrador francês.

3
idéias e os mais belos homens. No alto uma estátua como o Meleagro11 ou o Teseu12 do
Partenão,13 ou ainda a vista do Mediterrâneo lustroso e azul como uma túnica de seda e do qual
saem as ilhas como corpos de mármore, mais vinte frases escolhidas em Platão e Aristófanes,14 e
estaremos muito mais instruídos que com a profusão das dissertações e comentários.
De modo semelhante também, para entender um Purana15 indiano, principie imaginando o
pai de família que, “tendo visto um filho no colo de seu filho”, retira-se conforme a lei, na
solidão, com um machado e um vaso, sob uma bananeira à beira de um riacho, pára de falar,
multiplica os jejuns, fica nu entre quatro fogueiras, e sob a quinta fogueira, isto é, o terrível sol
devorador e renovador incessante de todas as coisas vivas; que, alternadamente, e durante
semanas inteiras, mantém a imaginação fixada no pé de Brama,16 depois no joelho, depois na
coxa, depois no umbigo, e assim por diante até que, com o esforço dessa intensa meditação, as
alucinações apareçam, até que todas as formas do ser, confundidas e transformadas uma na outra,
oscilem através desta cabeça levada pela vertigem, até que o homem imóvel, prendendo a
respiração, com os olhos fixos, veja o universo esvanecer-se como fumaça acima do Ser universal
e vazio, no qual almeja mergulhar. A esse respeito, uma viagem pela Índia seria o melhor ensino;
na sua falta, os relatos dos viajantes, dos livros de geografia, de botânica e de etnologia também
serviriam. Em todo caso, a pesquisa deve ser a mesma. Uma língua, uma legislação, um
catecismo nunca é mais que uma coisa abstrata; a coisa completa é o homem agindo, o homem
corporal e visível, que come, anda, luta, trabalha; esqueçamos a teoria das constituições e seu
mecanismo, das religiões e seu sistema, e tentemos enxergar os homens na oficina deles, nos
escritórios, nos campos, com seu céu, seu chão, suas casas, suas roupas, suas culturas, suas
refeições, como fazemos quando, desembarcando na Inglaterra ou na Itália, olhamos os rostos e
gestos, as calçadas e tabernas, o citadino que passeia e o operário que bebe. Nossa grande
preocupação deve ser a de suprir, tanto quanto possível, a observação presente, pessoal, direta e
sensível, que já não podemos praticar: pois ela é a única via que permite conhecer o homem;
tornemos o passado presente; para julgar alguma coisa, é preciso que ela esteja presente; não há
experiência dos objetos ausentes. Sem dúvida, a reconstrução é sempre incompleta; só pode

11
Herói mitológico grego.
12
Herói mitológico grego.
13
Templo da deusa Atena, construído no século V a. C. na acrópole de Atenas.
14
Comediógrafo grego (século V-IV a. C.)
15
A palavra provém do sânscrito e significa “antigo”. Os Puranas constituem uma série de 18 livros, formando o
corpo da doutrina mitológica dos indianos, complementando os Vedas, os quatro livros sagrados do hinduísmo.
16
Deus supremo do panteão hindu.

4
produzir juízos incompletos; mas é preciso resignar-se com isso; mais vale um conhecimento
mutilado que um conhecimento nulo ou falso, e não há outro meio para conhecer
aproximadamente as ações de outrora, senão ver aproximadamente os homens de outrora.
Este é o primeiro passo em história; ele foi dado na Europa no renascimento da
imaginação, no fim do século passado, com Lessing,17 Walter Scott; um pouco mais tarde na
França com Chateaubriand, Augustin Thierry,18 Sr. Michelet19 e tantos outros. Eis agora o
segundo passo:

II

Quando observamos com os olhos o homem visível, o que é que procuramos nele? O
homem invisível. Essas palavras que nos chegam aos ouvidos, esses gestos, fisionomias,
vestimentas, ações e obras sensíveis de toda sorte, para nós não passam de expressões; algo se
expressa aí, uma alma. Há um homem interior escondido sob o homem exterior, e este só faz
manifestar aquele. Olhamos a casa dele, seus móveis e sua roupa; é para buscar as marcas de seus
hábitos e gostos, o grau de elegância ou de rusticidade, prodigalidade ou economia, tolice ou
argúcia. Escutamos a conversa dele, e reparamos nas inflexões da voz, mudanças de atitude; é
para avaliar sua verve, seu abandono e sua alegria, ou sua energia e rigidez. Aprecia os seus
escritos, as obras de arte, os empreendimentos nas finanças ou na política; é para medir o alcance
e os limites de sua inteligência, inventividade e sangue frio, para descobrir qual é a ordem, a
espécie e a potência costumeira de suas idéias, de que maneira ele pensa e toma decisões. Todas
essas exterioridades são apenas caminhos que se reúnem num centro, e é apenas para alcançar o
centro que nos embrenhamos por eles; lá está o homem de verdade, ou seja, o grupo de
faculdades e sentimentos que produz o resto. Eis um novo mundo, mundo infinito, pois cada ação
visível arrasta atrás de si uma seqüência infinita de raciocínios, emoções, sensações antigas ou
recentes, que contribuíram para trazê-la à luz, e que, semelhantes a longas rochas profundamente
enterradas no chão, atingem nela seu ponto extremo e seu afloramento. Esse mundo subterrâneo é
que é o segundo objeto, o objeto próprio do historiador. Quando sua educação crítica é suficiente,
ele é capaz de desentranhar sob cada ornamento de uma arquitetura, sob cada traço de um quadro,

17
Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), escritor, crítico e dramaturgo alemão.
18
Jacques Nicolas Augustin Thiery (1795-1856), historiador francês.
19
Jules Michelet (1798-1874), historiador francês.

5
sob cada frase de um escrito, o sentimento particular de onde saíram o ornamento, o traço, a
frase; assiste ao drama interior que se travou no artista ou no escritor; a escolha das palavras, a
brevidade ou o comprimento dos períodos, o tipo de metáforas, a acentuação do verso, a ordem
do raciocínio, tudo para ele constitui um índice; à proporção que seus olhos lêem um texto, alma
e espírito seguem o desenrolar contínuo e a série mutante das emoções e concepções que
originaram o texto; ele faz a psicologia do texto. Se quisermos observar tal operação, olhemos o
promotor e modelo de toda a grande cultura contemporânea, Goethe, o qual, antes de escrever sua
Ifigênia, passa dias a desenhar as mais perfeitas estátuas, e finalmente, com os olhos repletos
pelas nobres formas da paisagem antiga, e o espírito penetrado pelas belezas harmoniosas da vida
antiga, logra reproduzir tão exatamente em si mesmo os hábitos e inclinações da imaginação
grega que engendra uma irmã quase gêmea da Antígona de Sófocles e das deusas de Fídias.20 Tal
divinação precisa e comprovada dos sentimentos esvanecidos renovou a história nos dias que
correm; era ela quase completamente ignorada no século passado; os homens de todas as raças e
de todos os séculos eram imaginados como mais ou menos semelhantes, o grego, o bárbaro, o
hindu, o homem do Renascimento e o do século XVIII como se moldados pela mesma fôrma, e
isso a partir de certa concepção abstrata, que servia para todo o gênero humano. Conhecia-se o
homem, não se conheciam os homens; não se havia penetrado na alma; não se havia enxergado a
diversidade infinita e a maravilhosa complexidade das almas; não se sabia que a estrutura moral
de um povo e de uma era é quase tão particular e distinta quanto a estrutura física de uma família
de plantas ou de uma ordem de animais. Hoje em dia, a história, tal como a zoologia, encontrou
sua anatomia, e qualquer que seja o ramo histórico ao qual estejamos ligados, filologia,
lingüística ou mitologia, é por essa via que trabalhamos para fazê-lo produzir novos frutos. Entre
tantos escritores que, desde Herder, Otfried Müller21 e Goethe, continuaram e retificaram
incessantemente esse grande esforço, considere o leitor somente dois historiadores e duas obras,
sendo uma o comentário sobre Cromwell de Carlyle, e a outra o Port-Royal de Sainte-Beuve;
verá com que justeza, segurança, profundidade, pode-se descobrir uma alma sob suas ações e
obras; de que modo no velho general, em lugar de um ambicioso vulgarmente hipócrita,
encontra-se um homem trabalhado pelos confusos devaneios de uma imaginação melancólica,
mas positivo no instinto e nas faculdades, inglês até o fundo, estranho e incompreensível para

20
Escultor grego (século 490-430 a. C.).
21
Karl Otfried Müller (1797-1840), helenista alemão.

6
quem não tenha estudado o clima e a raça; de que modo com uma centena de cartas esparsas e
uns vinte discursos mutilados, é possível segui-lo desde sua quinta e suas parelhas até sua barraca
de general e seu trono de protetor, em sua transformação e desenvolvimento, nas inquietações de
sua consciência e nas resoluções de estadista, a tal ponto que o mecanismo de seu pensamento e
de suas ações torna-se visível, e a tragédia íntima, perpetuamente renovada e mutante, que lavrou
essa grande alma tenebrosa, passa, como as de Shakespeare, para a alma dos espectadores. Verá
de que modo, sob querelas de convento e resistências de freiras, pode-se encontrar uma grande
província de psicologia humana, como cinqüenta caracteres ocultos sob a uniformidade de uma
narrativa decente vêm à tona, cada um com seu relevo próprio e suas inúmeras diversidades;
como, sob dissertações teológicas e sermões monótonos, destrincham-se as palpitações de
corações sempre vivos, os acessos e prostrações da vida religiosa, as reviravoltas imprevistas e o
tumulto ondulante da natureza, as infiltrações do mundo ao redor, as conquistas intermitentes da
graça, com tamanha variedade de matizes que a mais abundante descrição e o estilo mais flexível
mal chegam a colher a inesgotável seara que a crítica faz germinar nesse campo abandonado. Em
outros lugares dá-se a mesma coisa. A Alemanha, com seu gênio tão flexível, tão amplo, tão
pronto às metamorfoses, tão apropriado para reproduzir os mais remotos e estranhos estados do
pensamento humano; a Inglaterra, com seu espírito tão exato, próprio para abraçar as questões
morais, especificá-las por meio de cifras, pesos, medidas, geografia, estatística, à força de textos
e de bom senso; a França enfim, com sua cultura parisiense, costumes de salão, análise incessante
dos caracteres e obras, sua ironia tão pronta em assinalar as fraquezas, sua argúcia tão bem
treinada em distinguir os matizes; todos lavraram a mesma gleba, e começamos a compreender
que não há região da história onde não se deva cultivar a camada profunda, se quisermos ver
colheitas úteis erguendo-se por entre os sulcos.
Tal é segundo passo; é o que estamos realizando. É a obra própria da crítica
contemporânea. Ninguém o fez tão grande e justamente quanto Sainte-Beuve; nesse ponto, somos
todos seus alunos; seu método renova hoje nos livros e até nos jornais toda a crítica literária,
filosófica e religiosa. É dele que se deve partir para começar a evolução ulterior. Várias vezes
tentei indicar essa evolução; a meu ver, existe aí um novo caminho aberto à história, e vou tratar
de descrevê-lo mais detalhadamente.

7
III

Quando, num homem, observamos e tomamos nota de um, dois, três, enfim, de um grande
número de sentimentos, isso nos basta, e nosso conhecimento dele nos parece completo? Um
caderno de anotações será uma psicologia? Não, não é uma psicologia, e, aqui como em outra
parte, a procura das causas deve intervir após a coleta dos fatos. Que os fatos sejam físicos ou
morais, não importa, eles sempre têm causas, há causas para a ambição, a coragem, a sinceridade,
assim como para a digestão, o movimento muscular, o calor animal. O vício e a virtude são
produtos como o vitríolo e o açúcar, e qualquer dado complexo nasce da conjunção de outros
dados mais simples de que ele depende. Procuremos portanto os dados simples para as qualidades
morais, como os procuramos para as qualidades físicas, e consideremos o primeiro fato que se
apresente; por exemplo, uma música religiosa, a de um templo protestante. Há uma causa interior
que dirigiu o espírito dos fiéis para essas graves e monótonas melodias, uma causa mais ampla
que seu efeito, quero dizer, a idéia geral do verdadeiro culto exterior que o homem deve a Deus;
foi ela que modelou a arquitetura do templo, derrubou as estátuas, afastou os quadros, destruiu os
ornamentos, encurtou as cerimônias, encerrou os assistentes em bancos altos que lhes tapam a
vista, e governou os mil detalhes da decoração, das posturas e de todas as exterioridades. Ela
própria provém de outra causa mais geral, a idéia da conduta humana por inteiro, interior e
exterior, preces, ações, disposições de toda sorte às quais o homem se entrega diante de Deus; foi
esta que entronizou a doutrina e a graça, reduziu o clero, modificou os sacramentos, suprimiu as
práticas, e transformou a religião disciplinar em religião moral. Esta segunda idéia, por sua vez,
depende de uma terceira ainda mais geral, a da perfeição geral, a da perfeição moral, tal qual
encontra-se no Deus perfeito, juiz implacável, rigoroso vigia das almas, diante de quem toda alma
é pecadora, digna de suplício, incapaz de virtude e salvação, a não ser pela crise de consciência
que provoca e pela renovação do coração que produz. Eis a concepção mestra, que consiste em
erigir o dever em rei absoluto da vida humana, e prostrar todos os modelos ideais aos pés do
modelo moral. Toca-se aqui no fundo do homem; pois para explicar essa concepção, é preciso
considerar a própria raça, isto é, o germânico e o homem do Norte, sua estrutura de caráter e de
espírito, suas maneiras mais gerais de pensar e sentir, a lentidão e frieza da sensação que o
impedem de cair violenta e facilmente sob o império do prazer sensível, a rudeza do gosto, a
irregularidade e os sobressaltos da concepção, que estancam nele o nascimento dos belos arranjos

8
e das formas harmoniosas, o desdém das aparências, a necessidade de verdade, o apego às idéias
abstratas e nuas, que desenvolve nele a consciência em detrimento do resto. Aí se detém a
pesquisa: deparamos com certa disposição primitiva, com certo traço próprio de todas as
sensações, todas as concepções de um século ou de uma raça, certa particularidade inseparável de
todos os procedimentos da mente e do coração. Aí estão as grandes causas, pois são as causas
universais e permanentes, presentes em cada momento e em cada caso, por toda parte e sempre
em ação, indestrutíveis e afinal infalivelmente dominantes, uma vez que os acidentes que se
lançam através delas, sendo limitados e parciais, acabam por ceder à surda e incessante repetição
de seu esforço; de modo que a estrutura geral das coisas e os grandes traços dos acontecimentos
são obra delas, e as religiões, filosofias, poesias, indústrias, formas de sociedade e de família, são
apenas, em definitivo, sinais cravados pelo seu timbre.

IV

Há portanto um sistema nos sentimentos e nas idéias humanas, e tal sistema tem por
motor primeiro certos traços gerais, certas características de espírito e coração comuns aos
homens de uma raça, de um século ou de um país. Assim como em mineralogia os cristais, por
mais diversos que sejam, derivam de algumas formas corporais simples, assim também, na
história, as civilizações, por mais diversas que sejam, derivam de algumas formas espirituais
simples. Aqueles se explicam por um elemento geométrico primitivo, estas por um elemento
psicológico primitivo. Para captar o conjunto das espécies mineralógicas, é preciso
antecipadamente considerar em seus traços gerais um sólido regular, suas faces e ângulos, e neste
sumário perceber as inúmeras transformações de que ele é capaz. Analogamente, se quisermos
captar o conjunto das variedades históricas, consideremos antes uma alma humana em geral, com
suas duas ou três faculdades fundamentais, e neste sumário perceberemos as principais formas
que ela pode apresentar. Afinal, essa espécie de quadro ideal, o geométrico como o psicológico,
não é lá muito complexo, e vêem-se bem depressa os limites do caixilho em que as civilizações,
assim como os cristais, são obrigadas a se encerrar. O que é que existe, no ponto de partida, no
homem? Imagens, ou representações dos objetos, isto é, o que flutua interiormente diante dele,
subsiste por algum tempo, apaga-se, e retorna, quando ele contempla uma determinada árvore,
um certo animal, em suma, uma coisa sensível. Isso é a matéria do resto, e o desenvolvimento

9
dessa matéria é duplo, especulativo ou prático, conforme as representações resultem numa
concepção geral ou numa resolução ativa. Eis o homem inteiro em resumo; e é nesse
compartimento limitado que as diversidades humanas se encontram, ora no seio da matéria
primordial, ora no duplo desenvolvimento primordial. Por menores que sejam nos elementos, são
enormes na massa, e a mínima alteração nos fatores acarreta alterações gigantescas nos produtos.
Conforme seja a representação nítida e como que recortada de um só golpe, ou então confusa e
mal delimitada, conforme concentre em si um grande ou pequeno número de características do
objeto, conforme seja violenta e acompanhada de impulsos ou tranqüila e rodeada de calma,
todas as operações e todo o funcionamento da máquina humana são transformados.
Analogamente ainda, segundo varia o desenvolvimento ulterior da representação, varia todo o
desenvolvimento humano. Se a concepção geral em que ela resulta é uma simples notação seca, à
maneira chinesa, a língua torna-se uma espécie de álgebra, a religião e a poesia atenuam-se, a
filosofia reduz-se a uma espécie de bom senso moral e prático, a ciência a uma coleção de
receitas, classificações, mnemotécnicas utilitárias, o espírito inteiro assume uma feição
positivista. Se, ao contrário, a concepção geral em que resulta a representação é uma criação
poética e figurativa, um símbolo vivo, como entre as raças arianas, a língua torna-se uma espécie
de epopéia matizada e colorida na qual cada palavra é um personagem, a poesia e a religião
ganham magnífica e inesgotável amplidão, a metafísica desenvolve-se extensa e sutilmente, sem
cuidar das aplicações positivas; o espírito inteiro, através dos desvios e falhas inevitáveis de seu
esforço, enamora-se do belo e do sublime e concebe um modelo ideal capaz, com sua nobreza e
harmonia, de congregar ao seu redor as ternuras e entusiasmos do gênero humano. Agora, se a
concepção geral em que resulta a representação é poética, mas não conduzida, se o homem chega
até ela não por uma gradação contínua, mas por uma brusca intuição, se a operação original não é
o desenvolvimento regular, mas a explosão violenta, então, como entre as raças semíticas, a
metafísica falta, a religião somente concebe o Deus rei, devorador e solitário, a ciência não se
pode formar, o espírito acha-se demasiado rígido e compacto para reproduzir a ordenação
delicada da natureza, a poesia só sabe gerar uma série de exclamações veementes e grandiosas, a
língua só pode exprimir o enredamento do raciocínio e da eloqüência, o homem se reduz ao
entusiasmo lírico, à paixão desenfreada, à ação fanática e bitolada. É nesse intervalo entre a
representação particular e a concepção universal que se encontram os germes das maiores
diferenças humanas. Algumas raças, por exemplo as clássicas, passam da primeira à segunda por

10
uma escala graduada de idéias regularmente classificadas e cada vez mais gerais; outras, as
germânicas por exemplo, operam a mesma travessia por meio de saltos, sem uniformidade, após
tatear vaga e prolongadamente. Alguns, como os romanos e os ingleses, detêm-se nos primeiros
patamares; outros, como os hindus e os alemães, sobem até os últimos. Se agora, após ter
considerado a passagem da representação à idéia, olhássemos a passagem da representação à
resolução, acharíamos aí diferenças elementares da mesma ordem e importância, conforme seja a
impressão viva, como nos climas do Sul, ou baça, como nos climas do Norte, conforme resulte
em ação desde o primeiro instante, como entre os bárbaros, ou tardiamente, como entre os povos
civilizados, conforme seja ou não capaz de crescimento, desigualdade, persistência e vínculos.
Todo o sistema das paixões humanas, todas as oportunidades de paz e segurança públicas, todas
as fontes de trabalho e ação derivam daí. Assim acontece com as outras diferenças primordiais;
seus desdobramentos abrangem uma civilização inteira, e podemos compará-los a fórmulas de
álgebra que, em seus limites estreitos, contêm antecipadamente toda a curva de que são a lei. Não
que essa lei sempre se cumpra até o fim; às vezes verificam-se perturbações; mas quando isso
acontece, não é que a lei seja falsa, é que ela não agiu sozinha. Novos elementos vieram misturar-
se aos elementos antigos; grandes forças estranhas vieram contrariar as forças primitivas. A raça
emigrou, como o antigo povo ariano, e a mudança de clima alterou nela toda a economia da
inteligência e toda a organização da sociedade. O povo foi conquistado, como a nação saxônica, e
a nova estrutura política lhe impôs costumes, capacidades e inclinações que não possuía. A nação
instalou-se por um tempo no meio de vencidos explorados e ameaçadores, como os antigos
espartanos, e a obrigação de viver à maneira de um bando acampado torceu violentamente para
um só lado toda a sua constituição moral e social. Em todo caso, o mecanismo da história
humana é semelhante. Acha-se sempre como mola primitiva alguma disposição muito geral da
mente e da alma, seja ela inata e naturalmente vinculada à raça, seja adquirida e produzida por
alguma circunstância aplicada na raça. Essas grandes molas determinadas fazem efeito aos
poucos, penso que ao cabo de alguns séculos põem a nação em novo estado, religioso, literário,
social, econômico; condição nova que, combinada com o renovado esforço delas, produz uma
outra condição, ora boa, ora ruim, ora lentamente, ora depressa, e assim por diante; de modo que
se pode considerar o movimento total de cada civilização distinta como o efeito de uma força
permanente que, a cada instante, varia sua obra modificando as circunstâncias em que atua.

11
V

Três diferentes fontes contribuem para produzir esse estado moral elementar, a raça, o
meio e o momento. O que se chama raça são as disposições inatas e hereditárias que o homem
traz consigo à luz, e que normalmente andam junto com diferenças marcadas no temperamento e
na estrutura do corpo. Elas variam segundo os povos. Há naturalmente variedades de homens,
como há variedades de touros e cavalos, umas valentes e espertas, outras tímidas e acanhadas,
umas capazes de conceitos e criações superiores, outras reduzidas às idéias e invenções
rudimentares, umas mais particularmente adequadas para certas obras e mais ricamente providas
de certos instintos, como se vêem raças de cães mais bem dotadas, umas para a corrida, outras
para o combate, outras para a caça, outras enfim para a guarda das casas ou dos rebanhos. Aí
existe uma força distinta, tão distinta que, através dos enormes desvios impelidos pelos dois
outros motores, ainda se pode reconhecer, e que uma raça, como o antigo povo ariano, dispersa
do Ganges às Hébridas,22 estabelecida sob todos os climas, escalonada em todos os graus da
civilização, transformada por trinta séculos de revoluções, manifesta todavia em suas línguas,
religiões, literaturas e filosofias a comunidade de sangue e de espírito que ainda hoje reúne todos
os seus rebentos. Por mais diferentes que eles sejam, o parentesco não está destruído; a
selvageria, a cultura e o enxerto, as diferenças de céu e solo, os acidentes felizes ou infelizes
trabalharam em vão; os grandes traços da forma original subsistiram, e reencontram-se os dois ou
três principais traçados da marca primitiva sob as marcas secundárias que o tempo colocou por
cima. Nada de espantoso nessa tenacidade extraordinária. Embora a imensidade da distância nos
deixe entrever apenas em parte e sob luz duvidosa a origem das espécies,23 os acontecimentos da
história iluminam os acontecimentos anteriores à história o bastante para explicar a solidez quase
inabalável das características primordiais. No momento em que deparamos com elas, quinze,
vinte, trinta séculos antes de nossa era, num ariano, egípcio, chinês, representam o produto de um
número de séculos muito maior, talvez de várias miríades de séculos. Pois desde que vive um
animal, é preciso que ele se acomode a seu meio; respira de outro modo, renova-se de outro
modo, é afetado de outro modo, conforme são outros o ar, os alimentos, a temperatura. Clima e
situação diferentes acarretam nele necessidades diferentes, por conseguinte um sistema de ações
diferentes, por conseguinte também um sistema de hábitos diferentes, por conseguinte enfim um
22
Ilhas Hébridas; arquipélago situado na costa oeste da Escócia.
23
Darwin, A origem das espécies. Prosper Lucas, A hereditariedade. (Nota do autor.)

12
sistema de aptidões e instintos diferentes. O homem, obrigado a equilibrar-se com as
circunstâncias, contrai um temperamento e um caráter que lhes correspondem; e seu caráter bem
como seu temperamento são aquisições tanto mais estáveis quanto mais a impressão exterior
enfiou-se nele por repetições mais numerosas e transmitiu-se à sua progenitura por um legado
mais antigo. De modo que a cada momento pode-se considerar o caráter de um povo como o
resumo de todas as suas ações e sensações precedentes, isto é, como uma quantidade e um peso,
porém não infinito,24 visto que tudo na natureza tem limites, mas em desproporção com o resto e
quase impossível de levantar, visto que cada minuto de um passado quase infinito contribuiu para
avolumá-lo, e que, para equilibrar a balança, seria preciso acumular no outro prato um número
ainda maior de ações e sensações. Tal é a primeira e mais rica fonte das faculdades mestras de
que derivam os fatos históricos; e vê-se logo que, se ela é poderosa, é porque não é uma simples
fonte, e sim uma espécie de largo e profundo reservatório onde as outras fontes, durante uma
porção de séculos, vieram despejar suas próprias águas.
Havendo assim constatado a estrutura interior de uma raça, é preciso considerar o meio no
qual ela vive. Pois o homem não está só no mundo; a natureza envolve-o e os outros homens
rodeiam-no; por sobre a dobra primitiva e permanente vêm espalhar-se as dobras acidentais e
secundárias, e as circunstâncias físicas ou sociais perturbam ou completam a natureza que lhes é
entregue. Às vezes foi o clima que fez efeito. Embora só obscuramente possamos seguir a história
dos povos arianos desde sua pátria comum até as pátrias definitivas, podemos afirmar todavia que
a profunda diferença que se mostra entre as raças germânicas, por um lado, e as raças helênicas e
latinas, por outro, provém em grande parte da diferença das regiões em que se estabeleceram,
umas em países frios e úmidos, no fundo de rudes florestas lodacentas ou nas margens de um
oceano selvagem, encerradas em sensações melancólicas ou violentas, inclinadas à bebedeira e à
comilança, voltadas para a vida militante e carniceira; outras ao contrário em meio às mais belas
paisagens, à beira de um mar luzente e risonho, propensas à navegação e ao comércio, livres das
necessidades grosseiras do estômago, conduzidas desde cedo para os hábitos sociais, a
organização política, os sentimentos e faculdades que desenvolvem a arte de falar, o talento de
fruir, a invenção das ciências, letras e artes.
Outras vezes foram as circunstâncias políticas que trabalharam, como nas duas

24
Spinoza, Ética, 4ª parte, axioma. (Nota do autor.)

13
civilizações italianas: a primeira voltada inteiramente para a ação, a conquista, o governo e a
legislação, pela situação primitiva de cidade de refúgio, emporium de fronteira, e uma
aristocracia armada que, importando e arregimentando sob seu mando estrangeiros e vencidos,
punha de pé dois corpos hostis um na frente da outro, e só encontrava escoamento para seus
próprios embaraços interiores e instintos de rapina na guerra sistemática; a segunda excluída da
unidade e da grande ambição política pela permanência de sua forma municipal, pela situação
cosmopolita de seu papa e pela intervenção militar das nações vizinhas, toda ela conduzida, na
esteira de seu magnífico e harmonioso gênio, ao culto da volúpia e da beleza.
Às vezes, enfim, as condições sociais é que imprimiram sua marca, como se deu há
dezoito séculos com o cristianismo, e há vinte e cinco séculos com o budismo, quando, ao redor
do Mediterrâneo e no Hindustão, as graves conseqüências da conquista e da organização ariana
provocaram a opressão intolerável, o esmagamento do indivíduo, o desespero completo, a
maldição lançada sobre o mundo, com o desenvolvimento da metafísica e do sonho; e o homem
nesse cárcere de misérias, sentindo o coração desmanchar-se, concebeu a abnegação, a caridade,
o amor terno, o carinho, a humildade, a fraternidade humana, lá, na idéia do vazio universal, e
aqui, sob a paternidade de Deus.
Olhem-se à volta os instintos reguladores e as faculdades implantadas numa raça, em
suma, a feição mental segundo a qual ela pensa e age; aí se descobrirá na maior parte dos casos o
resultado de uma dessas situações prolongadas, circunstâncias envolventes, persistentes e
gigantescas pressões exercidas sobre um monte de homens que, um por um, e todos juntos, de
geração em geração, não cessaram de ser vergados e moldados pelo esforço delas: na Espanha,
uma cruzada de oito séculos contra os muçulmanos, prolongada mais além e até o esgotamento
da nação pela expulsão dos mouros, a espoliação dos judeus, o estabelecimento da Inquisição, as
guerras católicas; na Inglaterra, um estabelecimento político de oito séculos que mantém o
homem aprumado e respeitoso, na independência e na obediência, acostumando-o a lutar em
corporação sob a autoridade da lei; na França, uma organização latina que, imposta inicialmente a
bárbaros dóceis, depois quebrada na demolição universal, reforma-se a si mesma sob a
conspiração latente do instinto nacional, desenvolve-se sob reis hereditários, e termina numa
espécie de república igualitária, centralizada, administrativa, sob dinastias expostas a revoluções.
Aí estão as mais eficazes entre as causas observáveis que modelam o homem primitivo; são elas
para as nações o que a educação, a profissão, a condição, a moradia são para os indivíduos, e

14
parecem compreender tudo, uma vez que compreendem todas as potências exteriores que
moldam a matéria humana, e por meio das quais o que está fora age sobre o que está dentro.
Há entretanto uma terceira ordem de causas; pois com as forças de dentro e de fora, existe
a obra que já fizeram juntas, e esta própria obra contribui para produzir a que se lhe segue; além
do impulso permanente e do meio dado, há a velocidade adquirida. Quando o caráter nacional e
as circunstâncias envolventes operam, não o fazem sobre uma tabula rasa, mas sobre uma
superfície onde já se fizeram marcas. Segundo ela for considerada num ou noutro momento, a
marca é diferente; e isso basta para que o efeito total seja diferente. Consideremos, por exemplo,
dois momentos de uma literatura ou de uma arte, a tragédia francesa sob Corneille e Voltaire, o
teatro grego sob Ésquilo e Eurípides, a poesia latina sob Lucrécio25 e Claudiano,26 a pintura
italiana sob Vinci e Guido.27 Certamente, em cada um desses pontos extremos, a concepção geral
não mudou; é sempre o mesmo tipo humano que se trata de representar ou pintar; a forma do
verso, a estrutura do drama, a espécie dos corpos persistiram. Mas entre outras diferenças, há
esta, que um dos artistas é o precursor, e o outro é o sucessor, o primeiro não tem modelo, e o
segundo tem, o primeiro vê as coisas cara a cara, o segundo as vê por intermédio do primeiro,
vários grandes aspectos da arte se aperfeiçoaram, a simplicidade e a grandeza da impressão
diminuíram, o deleite e o refinamento da forma aumentaram, em suma, a primeira obra
determinou a segunda. Dá-se aqui com um povo o que se dá com uma planta: a mesma seiva sob
a mesma temperatura e no mesmo solo produz, nos diversos graus de sua elaboração sucessiva,
formações diferentes, brotos, flores, frutos, sementes, de tal maneira que a seguinte sempre tem
por condição a precedente, e nasce de sua morte. Se agora olharmos não mais um curto momento
como antes, mas algum desses amplos desenvolvimentos que abarcam um ou vários séculos,
como a Idade Média ou nossa última época clássica, a conclusão será semelhante. Certa
concepção dominante reinou ali; os homens, durante duzentos, quinhentos anos, imaginaram
certo modelo ideal do homem: na Idade Média, o cavaleiro e o monge, em nossa era clássica, o
cortesão e o bem falante; essa idéia criadora e universal manifestou-se em todo o campo da ação
e do pensamento, e, após haver coberto o mundo com suas obras involuntariamente sistemáticas,
ela esmoreceu, depois morreu, e eis que uma nova idéia se levanta, destinada a igual dominação e
criações igualmente numerosas. Admitamos aqui que a segunda depende em parte da primeira, e

25
Tito Lucrécio Caro (século I a. C.).
26
Cláudio Claudiano (século IV-V d. C.).
27
Guido Reni (1575-1642).

15
que é a primeira que, combinando seu efeito com os do gênio nacional e das circunstâncias
envolventes, vai impor às coisas nascentes seu feitio e direção. É de acordo com essa lei que se
formam as grandes correntes históricas, que são a meu ver os longos reinados de uma forma de
espírito ou idéia mestra, como aquele período de criações espontâneas a que se chama
Renascença, ou o de classificações oratórias a que se chama época clássica, ou a série de sínteses
místicas a que se chama época alexandrina e cristã, ou a série de florações mitológicas, que se
encontra nas origens da Germânia, da Índia e da Grécia. Aqui como em toda parte há somente um
problema de mecânica: o efeito total é um composto determinado inteiramente pela grandeza e
direção das forças que o produzem. A única diferença que separa esses problemas morais dos
problemas físicos é que as direções e grandezas dos últimos não se deixam avaliar nem
especificar como as dos primeiros. Se uma necessidade, uma faculdade é uma quantidade sujeita
a graduações assim como uma pressão ou um peso, tal quantidade não é mensurável como a de
uma pressão ou peso. Não podemos fixá-la numa fórmula exata ou aproximativa; a seu respeito,
podemos ter e oferecer apenas uma impressão literária; estamos reduzidos a assinalar e citar os
fatos proeminentes pelos quais ela se manifesta, e que indicam, mais ou menos, grosseiramente,
aproximadamente a que altura da escala ela deve situar-se. Mas, embora os meios de notação não
sejam nas ciências morais os mesmos que nas ciências físicas, não obstante, como nos dois casos
a matéria é a mesma, e se compõe igualmente de forças, direções e grandezas, pode-se dizer que
em umas e outras o efeito final se produz de acordo com a mesma regra. É ele grande ou pequeno
na medida em que as forças fundamentais sejam grandes ou pequenas, e pressionem mais ou
menos exatamente no mesmo sentido, na medida em que os efeitos distintos da raça, do meio e
do momento se combinem para adicionar-se uns aos outros ou anular-se uns pelos outros. É
assim que se explicam as longas impotências e os êxitos fulgurantes que ocorrem irregularmente
e sem razão aparente na vida de um povo; eles têm como causas concordâncias ou contrariedades
interiores. Houve uma dessas concordâncias quando, no século dezessete, o caráter sociável e o
espírito de conversação inatos na França encontraram os hábitos de salão e o momento da análise
oratória, quando, no século dezenove, o flexível e profundo gênio da Alemanha encontrou a era
das sínteses filosóficas e da crítica cosmopolita. Houve uma dessas contrariedades, quando, no
século dezessete, o rude e solitário gênio inglês tentou desajeitadamente apropriar-se da nova
urbanidade, quando, no século dezesseis, o lúcido e prosaico espírito francês tentou inutilmente
dar à luz uma poesia viva. Foi a concordância secreta das forças criadoras que produziu a perfeita

16
polidez e a nobre literatura regular sob Luís XIV e Bossuet,28 a metafísica grandiosa e a ampla
simpatia crítica sob Hegel e Goethe. Foi a contrariedade secreta das forças criadoras que produziu
a literatura incompleta, a comédia escandalosa, o teatro abortado sob Dryden29 e Wycherley,30 as
más importações gregas, tentativas, invenções, miúdas belezas parciais sob Ronsard e a Plêiade.31
Podemos afirmar com segurança que as criações desconhecidas para as quais nos arrasta a
corrente dos séculos serão suscitadas e inteiramente reguladas pelas três forças primordiais; que,
se tais forças pudessem ser medidas e cifradas, delas se deduziriam como de uma fórmula as
propriedades da civilização futura, e que, se, apesar de nossas notações visivelmente toscas e
medições basicamente inexatas, quisermos hoje formar uma idéia de nossos destinos gerais, é no
exame de tais forças que será preciso basear nossas previsões. Pois ao enumerá-las, percorremos
o círculo completo dos poderes em ação, e quando consideramos a raça, o meio, o momento, vale
dizer, a mola de dentro, a pressão de fora e o impulso já adquirido, temos esgotado não somente
todas as causas reais, mas ainda todas as causas possíveis do movimento.

VI

Resta pesquisar de que maneira as causas aplicadas a uma nação ou século distribuem
neles seus efeitos. Assim como uma nascente brotando em um lugar elevado distribui seus
lençóis de acordo com as altitudes e de patamar em patamar até que finalmente tenha chegado ao
mais baixo assentamento do solo, assim também a disposição de espírito ou de alma introduzida
num povo pela raça, o momento ou o meio se espalha com proporções diferentes e por declives
regulares sobre as diversas ordens de fatos que compõem sua civilização.32 Se estabelecemos o
mapa geográfico de um país, a partir do local da divisão de águas, vê-se abaixo do ponto comum
as vertentes dividirem-se cm cinco ou seis bacias principais, depois cada uma delas em várias
bacias secundárias, e assim por diante até que toda a região com seus milhares de acidentes esteja

28
Jacques-Bénig de Bossuet (1627-1704), sermonista francês.
29
John Dryden (1631-1700), poeta, crítico e dramaturgo inglês.
30
William Wycherley (1640-1715), dramaturgo inglês.
31
Grupo de poetas franceses reunidos em torno de Pierre Ronsard (1524-1585).
32
Para ver essa escala de efeitos coordenados, consultar: Renan [Nota do organizador: Ernest Renan (1823-1892),
filósofo e escritor francês.], Línguas semíticas, 1º capítulo. Mommsen [Nota do organizador: Christian Matthias
Theodor Mommsen (1817-1903), historiador, arqueólogo e político alemão.], Comparação das civilizações grega e
romana, 2º capítulo, 1º volume, 3ª edição. Tocqueville [Nota do organizador: Aléxis Henri Charles Clérel, visconde
de Tocqueville (1805-1859), pensador político e historiador francês.], Conseqüências da democracia na América, 3º
volume. (Nota do autor.)

17
compreendida nas ramificações dessa rede. Analogamente, se estabelecemos o mapa psicológico
dos eventos e sentimentos de uma civilização humana, acham-se inicialmente cinco ou seis
províncias bem definidas, a religião, a arte, a filosofia, o estado, a família, as indústrias; depois,
em cada uma dessas províncias, departamentos naturais, depois enfim, em cada um desses
departamentos, territórios menores, até que se chega aos detalhes incontáveis da vida que
observamos todos os dias em nós e em torno de nós. Se agora examinarmos e compararmos entre
si esses diversos grupos de fatos, acharemos inicialmente que são compostos de partes, e que
todos possuem partes comuns. Tomemos inicialmente as três principais obras da inteligência
humana, a religião, a arte, a filosofia. Que é uma filosofia senão uma concepção da natureza e de
suas causas primordiais, em forma de abstrações e fórmulas? Que é que há no fundo de uma
religião e de uma arte senão uma concepção da mesma natureza e das mesmas causas
primordiais, em forma de símbolos mais ou menos determinados e personagens mais ou menos
precisos, com a diferença de que no primeiro caso acredita-se que eles existam, e no segundo que
não existam? Considere o leitor algumas dessas grandes criações do espírito na Índia, na
Escandinávia, na Pérsia, em Roma, na Grécia, e verá que por toda parte a arte é uma espécie de
filosofia que se tornou sensível, a religião uma espécie de poema tido por verdadeiro, a filosofia
uma espécie de arte e religião dissecada e reduzida às idéias puras. Há pois no centro de cada um
desses três grupos um elemento comum, a concepção do mundo e de seu princípio, e, se diferem
entre si, é porque cada um combina com o elemento comum um elemento distinto: aqui o poder
de abstrair, lá a faculdade de personificar e de crer, acolá enfim o talento de personificar sem
crer. Tomemos agora as duas principais obras da associação humana, a família e o estado. O que
é que gera o estado senão o sentimento de obediência em função do qual uma multidão de
homens se reúne sob a autoridade de um chefe? E o que é que gera a família senão o sentimento
de obediência em função do qual uma mulher e crianças agem sob a direção de um pai e marido?
A família é um estado natural, primitivo e restrito, assim como o estado é uma família artificial,
ulterior e extensa; e sob as diferenças introduzidas pelo número, origem e condição dos membros,
desvenda-se, tanto na grande quanto na pequena sociedade, uma mesma disposição de espírito
fundamental que as aproxima e une. Agora suponha que esse elemento comum receba do meio,
do momento ou da raça características próprias; é claro que todos os grupos onde ele entra serão
modificados na mesma proporção. Se o sentimento de obediência é apenas temor,33

33
Montesquieu, Espírito das leis, Princípios dos três governos. (Nota do autor.)

18
encontraremos, como na maioria dos estados orientais, a brutalidade do despotismo, a
prodigalidade dos suplícios, a exploração do súdito, o servilismo dos costumes, a incerteza da
propriedade, o empobrecimento da produção, a escravidão da mulher e os hábitos do harém. Se o
sentimento de obediência tem como raiz o instinto de disciplina, a sociabilidade e a honra,
encontraremos, como na França, a perfeita organização militar, a bela hierarquia administrativa, a
falta de espírito público com os repelões do patriotismo, a pronta docilidade do súdito com as
impaciências do revolucionário, as mesuras do cortesão com as resistências do fidalgo, o deleite
delicado da conversação e da sociedade com as arrelias do lar e da família, a igualdade dos
esposos e a imperfeição do matrimônio sob a necessária coação da lei. Se enfim o sentimento de
obediência tem como raiz o instinto de subordinação à idéia do dever, perceberemos, como nas
nações germânicas, a segurança e felicidade do casal, o sólido assentamento da vida doméstica, o
desenvolvimento tardio e incompleto da vida mundana, a deferência inata para com as dignidades
estabelecidas, a superstição do passado, a manutenção das desigualdades sociais, o respeito
natural e habitual da lei. Da mesma maneira, numa raça, segundo for diferente a aptidão às idéias
gerais, serão diferentes a religião, a arte e a filosofia. Se o homem é naturalmente apto às mais
amplas noções universais, ao mesmo tempo que inclinado a perturbá-las com a delicadeza
nervosa de seu organismo superexcitado, ver-se-á, como na Índia, uma espantosa abundância de
gigantescas criações religiosas, uma esplêndida floração de epopéias desmesuradas e
transparentes, um estranho embaralhamento de filosofias sutis e imaginativas, todas tão bem
ligadas entre si e tão penetradas de uma seiva comum que, por sua amplidão, sua cor, sua
desordem, serão imediatamente reconhecidas como produtos do mesmo clima e do mesmo
espírito. Se, ao contrário, o homem naturalmente sadio e equilibrado limita de bom grado a
extensão de suas concepções para melhor definir-lhes a forma, ver-se-á, como na Grécia, uma
teologia de artistas e narradores, deuses distintos prontamente separados das coisas e
transformados quase imediatamente em pessoas sólidas, o sentimento da unidade universal quase
apagado e tenuemente conservado na vaga noção do Destino, uma filosofia antes fina e cerrada
que grandiosa e sistemática, limitada na alta metafísica,34 mas incomparável na lógica, na
sofística e na moral, uma poesia e artes superiores em sua clareza, naturalidade, medida, verdade

34
A filosofia alexandrina nasce apenas ao contato do Oriente. As visadas metafísicas de Aristóteles são isoladas;
aliás, nele, como em Platão, elas não passam de um esboço. Veja-se em contraste a potência sistemática em Plotino
[Nota do organizador: filósofo grego (século III d. C.).], Proclo [Nota do organizador: Proclo Lício Diádoco (século
V d. C.), filósofo grego.], Schelling e Hegel, ou ainda a admirável audácia da especulação bramânica e búdica. (Nota
do autor.)

19
e beleza a tudo o que jamais se viu. Se enfim o homem, reduzido a concepções estreitas e privado
de qualquer finura especulativa, acha-se ao mesmo tempo absorvido e todo enrijecido pelas
preocupações práticas, ver-se-ão, como em Roma, deuses rudimentares, simples nomes vazios,
bons para anotar os detalhes mais miúdos da agricultura, da geração e da família, verdadeiras
etiquetas de matrimônio e fazenda, e portanto uma mitologia, filosofia e poesia nulas ou tomadas
de empréstimo. Aqui, como em toda parte, aplica-se a lei das dependências mútuas.35 Uma
civilização constitui um corpo, e suas partes se mantêm unidas à maneira das partes de um corpo
orgânico. Do mesmo modo que num animal os instintos, os dentes, os membros, o arcabouço
ósseo, o aparelho muscular, estão ligados entre si, de tal maneira que a variação de um deles
determina em cada um dos outros uma variação correspondente, e um naturalista hábil pode a
partir de alguns fragmentos reconstruir por meio do raciocínio o corpo quase inteiro; assim
também numa civilização a religião, a filosofia, a forma de família, a literatura, as artes compõem
um sistema em que qualquer mudança local acarreta uma mudança geral, de modo que um
historiador experiente que nele estude determinada porção restrita percebe antecipadamente e
prediz em parte as características do resto. Não há nada de vago nessa dependência. O que a
regula num corpo vivo é em primeiro lugar sua tendência a manifestar um certo tipo primordial,
em segundo lugar o fato de precisar possuir órgãos que atendam às suas necessidades e achar-se
de acordo consigo mesmo a fim de viver. O que a regula numa civilização é a presença em cada
grande criação humana de um elemento produtor igualmente presente nas outras criações
circundantes, quero dizer, uma faculdade, aptidão, disposição eficaz e notável que, tendo um
caráter próprio, leva-o consigo para dentro de todas as operações de que participa, e segundo suas
variações faz variar todas as obras para as quais concorre.

VII

Aqui chegando, podemos entrever os principais traços das transformações humanas, e


começar a buscar as leis gerais que regem já não acontecimentos, mas classes de acontecimentos,
já não tal ou qual religião ou literatura, mas o grupo das literaturas ou das religiões. Se por
exemplo admitíssemos que uma religião é um poema metafísico acompanhado de crença; se
observássemos além disso que há certos momentos, certas raças e certos meios, em que a crença,

35
Várias vezes tentei exprimir essa lei, notadamente no prefácio dos Ensaios de crítica e história. (Nota do autor.)

20
a faculdade poética e a faculdade metafísica se desenvolvem juntas com um vigor inusitado; se
considerássemos que o cristianismo e o budismo desabrocharam em épocas de sínteses
grandiosas e no meio de misérias semelhantes à opressão que sublevou os exaltados das
Cevenas;36 se por outro lado reconhecêssemos que as religiões primitivas nasceram no alvorecer
da razão humana, durante a mais rica floração da imaginação humana, no tempo da mais bela
ingenuidade e da maior credulidade; se considerássemos ainda que o maometismo apareceu com
o advento da prosa poética e o conceito da unidade nacional, no seio de um povo desprovido de
ciência, por ocasião de um súbito desenvolvimento do espírito; poderíamos concluir que uma
religião nasce, declina, reforma-se e transforma-se conforme as circunstâncias fortificam e
reúnem com mais ou menos justeza e energia seus três instintos gerais, e compreenderíamos por
que ela é endêmica na Índia, entre cérebros imaginativos, filosóficos, exaltados por excelência;
por que desabrochou tão ampla e estranhamente na Idade Média, numa sociedade opressiva, entre
línguas e literaturas novas; por que se reergueu no século dezesseis com um caráter novo e um
entusiasmo heróico, no momento do renascimento universal, e no despertar das raças germânicas;
por que pulula em seitas esquisitas na grosseira democracia americana, e sob o despotismo
burocrático da Rússia; por que enfim acha-se hoje espalhada na Europa com proporções e
particularidades tão diferentes segundo as diferenças das raças e civilizações. Isso se dá com cada
espécie de produção humana, na literatura, na música, nas artes do desenho, filosofia, ciências,
estado, indústria, e o mais. Cada uma delas tem como causa direta uma disposição moral, ou um
concurso de disposições morais; dada essa causa, ela aparece; retirada a causa, desaparece; a
fraqueza ou intensidade da causa mede sua própria intensidade ou fraqueza. Está ligada a ela
como um fenômeno físico à sua condição, como o orvalho ao esfriamento da temperatura
ambiente, como a dilatação ao calor. Cá existem pares no mundo moral, como existem no mundo
físico, tão rigorosamente encadeados, e tão universalmente espalhados naquele como neste. Tudo
o que num desses pares produz, altera ou suprime o primeiro termo, produz, altera ou suprime por
conseqüência o segundo. Tudo o que resfria a temperatura ambiente faz o orvalho depositar-se.
Tudo o que desenvolve a credulidade ao mesmo tempo que as visões poéticas de conjunto gera a
religião. Foi assim que se deram as coisas; é assim que continuarão a se dar. Tão logo sabemos
qual é a condição suficiente e necessária de uma dessas vastas aparições, nosso espírito apreende

36
Região do centro-sul da França, cenário de guerras religiosas entre protestantes e católicos do século XVI ao
XVIII.

21
tanto o futuro quanto o passado. Podemos dizer com segurança em quais circunstâncias ela
deverá renascer, prever sem temeridade várias partes de sua história próxima e esboçar com
precaução alguns traços de seu desenvolvimento ulterior.

VIII

Hoje a história está nesse ponto, ou antes está bem perto dele, no limiar dessa pesquisa. A
questão que se coloca no momento é a seguinte: sendo dadas uma literatura, filosofia, sociedade,
arte, certa classe de artes, qual é o estado moral que as produz? E quais são as condições de raça,
momento e meio mais próprias para produzir esse estado moral? Há um estado moral distinto
para cada uma dessas formações e cada uma de suas ramificações; há um para a arte em geral, e
para cada espécie de arte, para a arquitetura, a pintura, a escultura, a música, a poesia; cada uma
tem seu germe especial no amplo domínio da psicologia humana; cada uma tem sua lei, e é em
virtude dessa lei que a vemos levantar-se aparentemente ao acaso, solitária em meio aos abortos
de suas vizinhas, como a pintura na Flandres e na Holanda no século dezessete, a poesia na
Inglaterra no século dezesseis, a música na Alemanha no século dezoito. Naquele momento e
naqueles países, acharam-se preenchidas as condições para uma arte, e não para as outras, e
apenas um ramo deu brotos na esterilidade geral. São as regras da vegetação humana que a
história deve buscar atualmente; essa psicologia especial de cada formação especial é que é
preciso fazer; é na composição do quadro completo de tais condições próprias que é preciso
atualmente trabalhar. Nada mais delicado e difícil; Montesquieu tentou fazê-lo, mas no tempo
dele a história era nova demais para que pudesse lograr êxito; ainda nem sequer se suspeitava do
rumo que era necessário tomar, e hoje em dia mal começamos a entrevê-lo. Assim como no
fundo a astronomia é um problema de mecânica e a fisiologia um problema de química, assim
também a história é no fundo um problema de psicologia. Há um sistema particular de
impressões e operações interiores que faz o artista, o crente, o músico, o pintor, o nômade, o
homem na sociedade; para cada um deles, a filiação, a intensidade, as dependências das idéias e
emoções são diferentes; cada um deles tem sua história moral e sua estrutura própria, com
alguma disposição mestra e algum traço dominante. Para explicar cada um deles, seria preciso
escrever um capítulo de análise íntima, e hoje em dia esse trabalho mal está esboçado. Um único
homem, Stendhal, por uma feição de espírito e educação singular, tentou a empreitada, e ainda

22
hoje a maioria dos leitores acha seus livros paradoxais e obscuros; seu talento e suas idéias eram
prematuros; não lhe compreenderam os admiráveis vaticínios, as profundas palavras lançadas de
passagem, a espantosa precisão das observações e da lógica; não viram que sob aparências de
conversador e mundano, ele explicava os mais complicados mecanismos internos, apontava as
grandes molas, trazia para dentro da história do coração os procedimentos científicos, a arte de
cifrar, decompor e deduzir, que era o primeiro a marcar as causas fundamentais, ou seja, as
nacionalidades, os climas e os temperamentos; em suma, que tratava de sentimentos como se
deve tratar, isto é, como naturalista e físico, fazendo classificações e pesando forças. Em razão de
tudo isso, julgaram-no seco e excêntrico, e ele permaneceu isolado, escrevendo romances, relatos
de viagem, anotações, para os quais almejava e obtinha vinte leitores. E no entanto, é em seus
livros que encontraremos hoje em dia os ensaios mais apropriados para desbravar o caminho que
tentei descrever. Ninguém melhor que ele ensinou a abrir os olhos e olhar, primeiramente olhar
os homens ao redor e a vida presente, depois os documentos antigos e autênticos, a ler para além
do branco e preto das páginas, a enxergar sob a velha impressão, sob os rabiscos de um texto, o
sentimento preciso, o movimento de idéias, o estado de espírito no qual se escrevia. É nos seus
escritos, em Sainte-Beuve, nos críticos alemães que o leitor verá todo o partido que se pode tirar
de um documento literário; quando esse documento é rico e sabemos interpretá-lo, encontramos
nele a psicologia de uma alma, freqüentemente a de um século, e às vezes a de uma raça. A este
respeito um grande poema, um belo romance, as confissões de um homem superior são mais
instrutivos que um amontoado de historiadores e histórias; daria eu cinqüenta volumes de códigos
e cem volumes de peças diplomáticas pelas memórias de Cellini,37 pelas cartas de São Paulo,
pelas conversas à mesa de Lutero ou as comédias de Aristófanes. Nisso consiste a importância
das obras literárias, elas são instrutivas, porque são belas; sua utilidade cresce com sua perfeição;
e se fornecem documentos, é porque são monumentos. Quanto mais um livro torna os
sentimentos visíveis, mais ele é literário; pois o ofício próprio da literatura é registrar os
sentimentos. Quanto mais um livro registra sentimentos importantes, mais alto ele se coloca na
literatura; pois é representando a maneira de ser de toda uma nação e de todo um século que um
escritor congrega em torno de si as simpatias de todo um século e toda uma nação. É por isso
que, entre os documentos que repõem diante de nossos olhos os sentimentos das gerações
precedentes, uma literatura, e especialmente uma grande literatura é incomparavelmente o

37
Benvenuto Cellini (1500-1571), escultor, ourives, músico e escritor italiano.

23
melhor. Ela se parece com aqueles aparelhos admiráveis, de uma sensibilidade extraordinária, por
meio dos quais os físicos captam e medem as mudanças mais íntimas e delicadas de um corpo.
As constituições, as religiões não chegam perto disso; artigos de código e catecismo só
grosseiramente retratam o espírito, e sem finura; se há documentos nos quais a política e o dogma
estão vivos, são os discursos eloqüentes de cátedra e tribuna, as memórias, as confissões íntimas,
e tudo isso pertence à literatura; de modo que, além das próprias vantagens, ela tem as alheias.
Portanto é principalmente pelo estudo das literaturas que se poderá fazer a história moral e
caminhar rumo ao conhecimento das leis psicológicas, de que dependem os acontecimentos.
Dedico-me aqui a escrever a história de uma literatura e a procurar nela a psicologia de um povo;
se escolhi justamente esta, não foi sem motivo. Era preciso achar um povo que possuísse uma
grande literatura completa, e isso é raro; há poucas nações que tenham, durante toda a sua vida,
realmente pensado e escrito. Entre os antigos, a literatura latina é nula no começo, depois tomada
de empréstimo e imitada. Entre os modernos, a literatura alemã é quase vazia durante dois
séculos;38 a literatura italiana e a literatura espanhola acabam no meio do século dezessete.
Somente a Grécia antiga, a França e a Inglaterra modernas oferecem uma série completa de
grandes monumentos expressivos. Escolhi a Inglaterra, porque, estando ainda viva e submetida à
observação direta, pode ser mais bem estudada que uma civilização destruída da qual hoje só
temos os farrapos, e porque, sendo diferente, apresenta melhor que a França características
definidas aos olhos de um francês. Aliás, há algo de particular nessa civilização: é que, além de
seu desenvolvimento espontâneo, ela oferece um desvio forçado, sofreu a última e mais eficaz de
todas as conquistas, e os três elementos de que saiu, a raça, o clima, a invasão normanda, podem
ser observados nos monumentos com perfeita precisão; tanto que se estudam nessa história os
dois mais poderosos motores das transformações humanas, a saber, a natureza e a coação, e é
possível estudá-los sem incerteza nem lacuna, numa série de monumentos autênticos e inteiros.
Tentei definir essas molas primitivas, mostrar seus efeitos graduais, explicar como eles acabaram
por alçar à luz as grandes obras políticas, religiosas, literárias, e desenvolver o mecanismo
interior pelo qual o bárbaro saxão veio a ser o inglês que vemos hoje em dia.

38
De 1550 a 1750. (Nota do autor.)

24

Você também pode gostar