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MAISA BARBOSA DA SILVA CORDEIRO

FEMINISMO E GÊNERO:
A LITERATURA JUVENIL ESCRITA POR MULHERES
(1979-1984)

TRÊS LAGOAS – MS
DEZEMBRO/2019

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MAISA BARBOSA DA SILVA CORDEIRO

FEMINISMO E GÊNERO:
A LITERATURA JUVENIL ESCRITA POR MULHERES
(1979-1984)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras / Estudos Literários
do Campus de Três Lagoas da
Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul como recurso parcial para obtenção
do título de doutora em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues

TRÊS LAGOAS – MS
DEZEMBRO/2019

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FEMINISMO E GÊNERO:
A LITERATURA JUVENIL ESCRITA POR MULHERES
(1979-1984)

Tese aprovada como requisito para obtenção do grau de Doutor no Programa de Pós-
Graduação em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários, da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três Lagoas, pela seguinte banca
examinadora:

Presidente: Rauer Ribeiro Rodrigues


CPAN / UFMS

Titular: Ana Paula Caixeta


UnB

Titular: Eunice Prudenciano de Souza


IFSP

Titular: Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado


CPTL / UFMS

Titular: Kelcilene Grácia-Rodrigues


CPTL / UFMS

Suplente Interno: Carina Marques Duarte


CPAN / UFMS

Suplente Externo: Renata Junqueira


CPAN / UFMS

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A noite não adormece
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
do nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede de nossa
milenar resistência.
(Conceição Evaristo,
Cadernos Negros).

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Aos meus meninos, Alisson e Raul.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Cléia, que, direta e indiretamente, me deu apoio e condições para
que eu pudesse desenvolver não somente esta pesquisa, mas todo o meu percurso
acadêmico.
Aos meus filhos, Alisson e Raul e ao meu esposo Vilson, pelo suporte afetivo
em meio ao caos que, por vezes, se fazia presente: a todo o amor, compreensão e
incentivo nas alegrias e nas angústias.
Ao meu orientador, Rauer, pela acolhida no GPLV, pelas discussões e
apontamentos críticos e decisivos em todo o processo de escrita desta tese. Também
agradeço pela organização de debates da pesquisa por outros professores, nos eventos
do GPLV, pois eles foram essenciais para o aprimoramento do texto.
À Analu, in memorian, que me acolheu em Três Lagoas e em sua casa e com
quem o convívio foi tão necessário e determinante.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFMS/Campus de
Três Lagoas, por todas as discussões, leituras e partilhas ao longo das disciplinas.
À Andréia e Érica, por todo amor, pela amizade, pelo respeito, pela escuta
atenta, por tudo.
Aos colegas do PPG-Letras e aos do GPLV, pelas discussões e trocas ao longo
das disciplinas, das conversas e dos eventos.
A todas e todos que lutam por uma educação de qualidade, humanizadora e
política e por um ensino superior público e gratuito.
A todas e todos que se preocupam com a literatura voltada a crianças e jovens e
atentam à importância de ela estar acessível em escolas, bibliotecas e espaços públicos
para que alcance o maior número possível de leitoras e de leitores.
A todas as mulheres que se voltam para as causas do feminismo: em tempos em
que os índices de violência contra a mulher crescem, o feminismo se torna, cada vez
mais, necessário.

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CORDEIRO, Maisa Barbosa da Silva. Feminismo e gênero: a literatura juvenil escrita
por mulheres (1979-1984). Três Lagoas, MS, 2019, 225 f. Tese (Doutorado, Estudos
Literários) – PPG - Letras, UFMS. Orientador: Rauer Ribeiro Rodrigues.

RESUMO: Este trabalho analisa, na interseção entre a crítica literária feminista e a


crítica literária juvenil, em corpus de autoria de mulheres, como a mulher é representada
no que tange aos papéis sociais de gênero, de modo a compreender por meio de quais
estratégias discursivas as autoras elaboram a emancipação e a resistência da mulher
frente ao patriarcado. Partimos da análise de personagens primárias e secundárias em
obras brasileiras publicadas no período de 1979-1984, no final do governo militar e
início do processo de redemocratização do país. Há duas justificativas para delimitação
do período: a primeira é que nesse momento começa a haver maior interesse de
escritores e editoras em fomentar a produção literária destinada à juventude – motivado
pelo crescimento do mercado do livro e pela criação dos primeiros programas de
fomento à leitura. Há, então, maior inserção de personagens adolescentes e jovens com
problemáticas relacionadas às suas vivências. A literatura juvenil ganha, assim, maior
diversidade quanto a temas e formas. A segunda justificativa é o fato de que a crítica
literária feminista também começa a se tornar mais sólida no Brasil a partir da década
de 1980. Delimitado tal contexto, debruçamo-nos sobre a literatura juvenil para analisar,
especificamente, as representações do protagonismo da mulher em um corpus composto
por seis obras: Uma ideia toda azul (1979), de Marina Colasanti; O sofá estampado
(1980), de Lygia Bojunga; Bisa Bia, Bisa Bel (1982), de Ana Maria Machado; O
mágico de olho verde (1984), de Alciene Ribeiro Leite; O outro lado do tabuleiro
(1984), de Eliane Ganem e A cor do azul (1984), de Jane Tutikian. Nossa tese propõe
uma pesquisa inaugural para o campo literário juvenil, pois não há, ainda, pesquisa de
doutorado que analise a literatura juvenil pela perspectiva da crítica literária feminista.
Nosso trabalho capta o momento em que a literatura juvenil escrita por mulheres é
reinventada no campo editorial brasileiro e é inaugurado um intenso processo de
questionamento dos papéis sociais de gênero na literatura escrita por mulheres. Tal
movimento é motivado, especialmente, pela segunda onda feminista. Defendemos a tese
de que o sistema literário (CANDIDO, 1999; 2000), que se fundamenta sob o discurso
patriarcal, tem uma ruptura na passagem da década de 1970 para a de 1980, quando as
escritoras se apropriam da literatura juvenil. Assim, além de as mulheres terem sido
decisivas para a solidificação dessa literatura, rompem com a hegemonia do patriarcado
nas narrativas, que passam a ser imbuídas de uma perspectiva feminista, e no mercado
do livro, que passa a contar com maior diversidade de mulheres escritoras.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira; Literatura juvenil; Mercado editorial;
Mulher; Personagem; Redemocratização.

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ABSTRACT: This essay aims to analyze, within the intersection of feminist literary
criticism and youth literature criticism, how the woman is represented with regards to
gender social roles, in such a manner as to understand through which discourse
strategies the authors elaborate the emancipation and resistance of the woman faced
with the patriarchy, from a corpus of female authors. It starts with the analysis of both
main and minor characters in Brazilian works published during the 1970-1984 period, at
the end of the military government and the start of the Brazilian re-democratization
period. There are two reasons for limiting it to this period: the first is that this period
starts an increase of interest in writers and editors to foment a literary production aimed
at the youth age bracket – motivated by the growth of the reader market and by the
creation of the first readership stimulus programs. There is, thus, a higher insertion of
teenage and young adult characters with issues related to their lives, and young
literature earns a higher diversity regarding themes and forms. The second reason is the
fact that the feminist literary criticism also starts to become sturdier in Brazil in the
decade of 1980. With such context outlined, this project covers youth literature aiming
to analyze, specifically, the portrayals of female protagonists in a corpus composed of
six works: Uma ideia toda azul, by Marina Colasanti (1979); O sofá estampado, by
Lygia Bojunga (1980); Bisa Bia, Bisa Bel, by Ana Maria Machado (1982); O mágico de
olho verde, by Alciene Ribeiro Leite (1984); O outro lado do tabuleiro by Eliane
Ganem (1984) and A cor do azul, by Jane Tutikian (1984). This thesis suggests a
breakthrough research for the field of youth literature, seeing as how there is not, as of
yet, a doctoral thesis analyzing youth literature through the perspective of feminist
literary criticism. This essay captures the moment where youth literature written by
women is reinvented in the Brazilian publishing field, and starts an intense inquisitive
process of the gender social roles in the works of female authors. Such a movement is
motivated, especially, by second wave feminism. We defend the thesis that the literary
system (CANDIDO, 1999; 2000), which is supported by patriarchal discourse, has a
breach in the passage of the decade of 1970 to 1980, at the moment where female
authors take hold of youth literature. Thus, not only have women been decisive to
solidifying this literature, they also break the patriarchal narrative hegemony, imbuing
them with a feminist perspective, and within the publishing market, granting it a greater
diversity of female authors.

KEYWORDS: Character; Youth literature; Editorial market; Woman; Character; Re-


democratization.

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RESUMEN: Este trabajo analiza, en la intersección entre la crítica literaria feminista y
la crítica literaria juvenil, en corpus de autoría de mujeres, como la mujer es
representada en el que tange a los papeles sociales de género, de modo a comprender
por medio de cuáles estrategias discursivas las autoras elaboran la emancipación y la
resistencia de la mujer frente al patriarcado. Partimos del análisis de personajes
principales y secundarias en obras brasileñas publicadas en el periodo de 1979-1984, a
finales del gobierno militar e inicio del proceso de redemocratização del país. Hay dos
justificaciones para delimitación del periodo: la primera es que en ese momento
comienza a haber mayor interés de escritores y editoras en fomentar la producción
literaria destinada a la juventud- motivado por el crecimiento del mercado del libro y
por la creación de los primeros programas de fomento a la lectura. Hay, entonces,
mayor inserción de personajes adolescentes y jóvenes con problemáticas relacionadas a
sus vivencias, y la literatura juvenil gana, así, mayor diversidad en cuanto a temas y
formas. La segunda justificación es el hecho de que la crítica literaria feminista también
comienza a hacerse más sólida en Brasil a partir de la década de 1980. Delimitado tal
contexto, debruçamo-nos sobre la literatura juvenil para analizar, específicamente, las
representaciones del protagonismo de la mujer en un corpus compuesto por seis obras:
Uma ideia toda azul (1979), de Marina Colasanti; O sofá estampado (1980), de Lygia
Bojunga; Bisa Bia, Bisa Bel (1982), de Ana Maria Machado; O mágico de olho verde
(1984), de Alciene Ribeiro Leite; O outro lado do tabuleiro (1984), de Eliane Ganem e
A cor do azul (1984), de Jane Tutikian. Nuestra tesis propone una investigación
inaugural para el campo literario juvenil, pues no hay, aún, investigación de doctorado
que analiza la literatura juvenil por la perspectiva de la crítica literaria feminista.
Nuestro trabajo capta el momento en que la literatura juvenil escrita por mujeres es
reinventada en el campo editorial brasileño, y comienza intenso proceso de
cuestionamiento de los papeles sociales de género en la literatura escrita por mujeres.
Tal movimiento es motivado, especialmente, por la segunda onda feminista.
Defendemos la tesis de que el sistema literario (CANDIDO, 1999; 2000), que se
fundamenta bajo el discurso patriarcal, tiene una ruptura en el pasaje de la década de
1970 para a de 1980, en el momento en que las escritoras se apropian de la literatura
juvenil. Así, además de las mujeres hayan sido decisivas para la solidificacion de esta
literatura, rompen con la hegemonia del patriarcado en las narrativas, que son imbuídas
de una perspectiva feminista, y en el mercado del libro, que pasa a contar con mayor
diversidad de mujeres escritoras.

PALABRAS CLAVE: Literatura Brasileña; Literatura juvenil; Mercado editorial;


Mujer; Personaje; Redemocratización.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................................ 11


CAPÍTULO 1: LITERATURA JUVENIL, MERCADO E MULHER ................................ 18
1.1 Mercado e a produção literária para a juventude.................................................. 20
1.2 Crítica literária e a literatura juvenil ............................................................................ 36
1.3 Crítica literária feminista no Brasil ............................................................................... 47
1.4 Personagens mulheres na ficção na ficção juvenil e o referente histórico brasileiro 66
CAPÍTULO 2: MULHERES NA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA ..................... 92
2.1 Panorama da literatura juvenil ...................................................................................... 95
2.2 Seleção do corpus de análise ......................................................................................... 102
2.3. Obras do corpus ............................................................................................................ 105
2.3.1 Marina Colasanti: a tecelã das palavras ................................................................ 105
2.3.2 Lygia Bojunga: o desejo pela liberdade .................................................................. 109
2.3.3 Ana Maria Machado: a defesa do não ser ............................................................. 111
2.3.4 Jane Tutikian: sonhos como rupturas .................................................................... 114
2.3.5 Eliane Ganem: a velhice em descoberta ................................................................. 116
2.3.6 Alciene Ribeiro: reinvenções a partir da ausência................................................. 120
CAPÍTULO 3: VOZES FEMINISTAS NAS PERSONAGENS DA LITERATURA
JUVENIL ................................................................................................................................. 124
3.1 Os lares ........................................................................................................................... 129
3.2 As angústias ................................................................................................................... 160
3.3 Os enfrentamentos......................................................................................................... 190
3.4 Transgressões de gênero na literatura juvenil ............................................................ 212
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 220
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 225
APÊNDICE: Lista de tabelas ................................................................................................. 236

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Quinta Sugestão: Ensine Chizalum a ler. Ensine- a amar


os livros. [...] Os livros vão ajudá-la a entender e
questionar o mundo, vão ajudá-la a se expressar, vão
ajudá-la a se tornar o que ela quiser ser — uma chef,
uma cientista, uma artista. Todo mundo se beneficia das
habilidades que a leitura traz. Eu quero dizer livros que
não tem nada a ver com a escola, autobiografias,
romances, histórias1.
(Chimamanda Ngozi Adichie,
Querida Ijeawele, ou um manifesto feminista em quinze
sugestões, tradução nossa).

[...] Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor2.

O crescimento da crítica literária feminista no Brasil, desde a década de 1980,


vem desvelando os modos distintos de representar as relações e as assimetrias de
gênero, mas, também, as diferentes estratégias de resistência, manipulação da
obediência e enfrentamento à voz do patriarcado presentes na literatura escrita por
mulheres. O fortalecimento da crítica feminista, assim, no campo literário, verticaliza a
compreensão acerca dos recursos dos quais se valem as escritoras para denunciar, na
literatura, a existência de uma violência estruturada em relação à mulher e atos de
tensão em relação a essa violência. Acreditamos, como aponta Toril Moi (1988), que o
propósito central da crítica feminista é político: expor as práticas machistas e patriarcais
para erradicá-las.
Em um movimento mais recente, a crítica literária feminista vem se ocupando,
ainda, do estudo das representações de gênero na literatura infantil e juvenil. Esse
interesse é bastante relevante, pois, como constata a pesquisadora estadunidense Eleanor
Maccoby (2003), em pesquisa sobre comportamentos de crianças em idade pré-escolar
nos Estados Unidos, há duas culturas para a infância: elas levam meninos e meninas,
mesmo aos três anos, idade sobre a qual se centra a sua pesquisa, a fazerem escolhas
com base nos papéis sociais de gênero já incorporados. Desde muito cedo, meninos e

1
―Fifth Suggestion: Teach Chizalum to read. Teach her to love books. [...]. Books will help her
understand and question the world, help her express herself, and help her in whatever she wants to
become – a chef, a scientist, a singer, all enefit from the skills that reading brings. I do not mean school
books. I mean books that have nothing to do with school, autobiographies and novels and histories‖
(Chimamanda Ngozi Adichie, Dear Ijeawele or a feminist manifesto in fifteen suggestions).
2
Trecho de uma ciranda feminista entoada a partir de 2015, no auge da quarta onda feminista.

11
meninas são condicionados para lugares diferentes e educados para agir, se comportar e
elaborar sua subjetividade considerando, prioritariamente, seu sexo biológico.
Nosso trabalho analisa, então, na interseção entre a crítica literária feminista e a
crítica literária juvenil, a partir de um corpus de obras literárias escritas por mulheres,
como a mulher é representada no que tange aos papéis sociais de gênero de modo a
compreender por meio de quais estratégias as autoras elaboram a emancipação e a
resistência da mulher frente ao patriarcado.
Defendemos a tese de que o sistema literário (CANDIDO, 1999; 2000), que se
fundamenta sob o discurso patriarcal, tem uma ruptura na passagem da década de 1970
para a de 1980, quando as escritoras se apropriam da literatura juvenil. Assim, além
terem sido decisivas para a solidificação dessa literatura, as escritoras romperam com a
hegemonia do patriarcado de dois modos: na literatura para a juventude, que passou a
ser imbuída de uma perspectiva feminista; no mercado do livro, que passa a contar com
maior diversidade de mulheres escritoras.
Nosso corpus é composto por seis obras: Uma ideia toda azul, de Marina
Colasanti (1979), do qual analisamos quatro contos de fadas; O sofá estampado, de
Lygia Bojunga (1980); Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado (1982); O mágico de
olho verde, de Alciene Ribeiro Leite (1984); O outro lado do tabuleiro de Eliane
Ganem (1984) e A cor do azul, de Jane Tutikian (1984). As obras, publicadas entre
1979 e 1984, foram selecionadas pelas seguintes razões:
1. terem sido publicadas em um período significativo para a crítica literária
feminista, que começava a se fortalecer nesse período, devido ao início
da abertura política nos últimos anos da ditadura civil-militar, momento
que favoreceu o crescimento de um discurso libertário para as mulheres;
2. a expansão do mercado do livro, que aconteceu na passagem da década
de 1970 para 1980;
3. por, finalmente, acreditarmos que a literatura juvenil publicada nos anos
finais de um período de repressão dialoga, mesmo que por meio de um
discurso simbólico, com aspectos sociais relacionados ao período
histórico no qual se localiza.
Consideramos que as estratégias de enfrentamento ao machismo e ao patriarcado
estão presentes nas obras, especialmente, por que: (1) o feminismo estava em expansão
no Brasil no período analisado; (2) as autoras que constituem o nosso corpus são
mulheres pertencentes a contextos socioeconômicos privilegiados, atuantes em diversas

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áreas de trabalho, com formação acadêmica, e, por essa razão, pressupomos que as
escritoras dispunham de um contato com o discurso feminista que favoreceram a
elaboração de narrativas alicerçadas no desejo por condições menos desiguais para as
personagens.
Acrescentamos à relevância de se analisar as representações dos papéis sociais
de gênero na produção literária para a juventude a observação, por meio de pesquisas
em bancos de teses brasileiros, da inexistência de um estudo que se ocupasse,
exclusivamente das personagens na literatura juvenil. Há apenas seis pesquisas são
encontradas, no Banco de Teses da Capes, com foco na análise da representação da
mulher ou do feminino na literatura infantil e juvenil. Mesmo assim, centrando-se em
uma ou duas autoras, entre as quais predominam Marina Colasanti e Lygia Bojunga.
A crítica literária, contudo, assinala as diferenças entre os dois campos literários
– infantil e juvenil –, tendo em vista que, assim como são duas etapas distintas da
formação humana, há uma produção cultural e literária significativa, em crescimento
desde a década de 1970, como resultado da expansão do mercado do livro e da
segmentação das produções, que passaram a ser voltadas para cada um dos dois
públicos.
Além do crescimento significativo do mercado, as instâncias de legitimação
também vêm fazendo com que as literaturas infantil e juvenil venham constituindo um
campo literário autônomo. Publicações de livros, teses, dissertações, monografias, entre
outros, contribuem para atestar a qualidade dessa produção. Igualmente, disciplinas dos
cursos de Letras, em nível de graduação e de pós-graduação, bem como o Programa de
Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS, voltado para a profissionalização
docente, curso de pós-graduação stricto sensu, criado em 2013, favorecem o
fortalecimento da crítica literária infantil e juvenil. O PROFLETRAS, por ser voltado à
profissionalização docente, exige que as pesquisas sejam voltadas, também, à prática, e
contribui para que a literatura juvenil seja discutida no aspecto das metodologias de
ensino. Assim, a crítica literária juvenil, pouco a pouco, se emancipa da crítica literária
infantil, em um processo iniciado na década de 1990.
As premiações literárias também auxiliam na solidificação da escrita literária
enquanto profissão, pois contribuem para a consolidação do mercado e possibilitam
autonomia para que escritores possam viver de sua produção. Das premiações para a
literatura juvenil, há o prêmio Jabuti, lançado pela Câmara Brasileira do Livro com a
categoria Juvenil, inaugurada em 1959, e a premiação vinculada à Fundação Nacional

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do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, que atua desde 1975, mas somente no ano de 1979
lançou uma Categoria Jovem.
Na década de 1970, a Coleção do Pinto também foi fundamental para ampliação
do mercado do livro infantil e juvenil, bem como a renovação de suas temáticas.
Publicada pela Editora Comunicação, de Belo Horizonte, a Coleção teve como
diferencial disponibilizar a crianças e jovens obras com temáticas denunciadoras dos
conflitos contemporâneos, em um mundo que, à época, tornava-se brutalizado e
dominado pelo consumo (ZILBERMAN, 1985).
Se a literatura juvenil tem interesse recente da academia, escritores e editores
perceberam há tempos sua relevância. Larissa Cruvinel (2009) comprova tal assertiva
quando analisa as obras da Série Vagalume da Editora Ática, pioneira em destinar
narrativas para o público jovem. Ela mostra, na tese Narrativas juvenis brasileiras: em
busca da especificidade do gênero, que há uma produção literária relevante para a
juventude desde a década de 1970. João Luís Ceccantini (2000), também em tese de
doutorado, Uma estética de formação: vinte anos de literatura juvenil brasileira
premiada (1978 – 1997), empreende um extenso estudo acerca da literatura juvenil
premiada entre os anos de 1978 e 1997. O estudioso aponta o papel das premiações para
a consolidação da literatura juvenil, bem como constata a existência de uma produção
qualitativa voltada à juventude desde a década de 1970. Raquel Souza (2015), por sua
vez, em sua tese intitulada A ficção juvenil brasileira em busca de identidade: a
formação do campo e do leitor, mostra como a literatura juvenil vem constituindo, nas
últimas décadas, um sistema próprio de produção, circulação e consumo.
Neste trabalho, analisamos, a partir de um corpus de obras escritas por mulheres,
como a mulher é representada no que concerne aos papéis sociais de gênero, para
compreender por meio de quais estratégias as autoras elaboram a emancipação e a
resistência da mulher frente ao patriarcado. Levamos em conta, ainda, que o modo com
que as personagens são construídas no que tange ao seu corpo interno e externo
(BAKHTIN, 2011) revela um discurso exterior a ela, e, por essa razão, se centra em
obras de autoria de mulheres.
Para análise, almejamos responder algumas questões norteadoras:
 As mulheres representadas nas narrativas participam de situações de
confronto com o patriarcado e com o machismo?
 Há, nas narrativas, a emancipação das mulheres como uma temática
majoritária?
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 Além das protagonistas, as personagens mulheres secundárias
apresentam experiências relevantes para as questões de gênero?
 As vozes narrativas interferem nos aspectos relacionados às relações de
gênero?

Ressaltamos que privilegiar a produção da mulher não garante necessariamente


que se encontrarão vozes feministas ou emancipadoras. No entanto, é um modo de
conhecer os sentidos sobre as relações sociais de gênero produzidos pelas escritoras de
obras juvenis.
Para análise das personagens, partimos da defesa de Antonio Candido (2007)
sobre o texto literário. Para ele, o texto literário não pode ser lido como algo
desvinculado da realidade, mas ele também não é manifestação materializada. Por meio
da verossimilhança, o leitor se depara com construções ficcionais que contribuem com
sua percepção de relações sociais autênticas, favorecendo a humanização do sujeito, a
partir das impressões construídas por meio da ficção.
É necessário que se analise, juntamente à categoria personagem, o tempo,
espaço, narrador e focalização, pois são categorias imbricadas nas narrativas. Tais
categorias, contudo, serão analisadas a partir da personagem enquanto categoria central
para nossa análise. Pretendemos, com isso, entender como se constitui a cosmovisão nas
obras do corpus para verificar a relação das personagens com o patriarcado,
considerando em quais momentos ele corrói a alteridade, e em quais momentos a
emancipação da mulher prevalece.
A tese está organizada em três capítulos.
No primeiro, ―Literatura juvenil, mercado e mulher‖, analisamos os meandros
das relações econômicas no que diz respeito à produção literária juvenil. Defendemos,
como afirma Dalcastagnè (2007), que a literatura é produzida, majoritariamente, por
uma elite branca masculina. Num primeiro momento, então, buscamos compreender
como são feitas as interferências do mercado na produção literária juvenil e a formação
do campo literário juvenil, e, posteriormente, apresentamos outras instâncias de
legitimação para a literatura juvenil de modo a evidenciar que essa literatura circula
seguindo algumas regras que não são somente as do mercado. A própria academia,
enquanto uma instância legitimadora, problematiza a qualidade da literatura juvenil. Já
as premiações literárias contribuem para a circulação de obras literárias juvenis que não
sejam meros produtos de massa.

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Ainda no primeiro capítulo, fazemos um percurso da crítica literária feminista no
Brasil, que está dentro do que Marlise Matos (2008) chama de campo de gênero e
feminista e atua de modo as produções acadêmicas meio de um viés emancipatório da
condição de subordinação das mulheres em relação ao patriarcado, entendido aqui na
acepção feminista, como uma formação social na qual homens detêm o poder. Como
aponta Christine Delphy (2009), é quase um sinônimo de dominação masculina. O
patriarcado comporta a noção de autoridade masculina e, na compreensão feminista, é o
sistema que precisa ser combatido.
No primeiro capítulo, também discutimos aspectos relativos às teorias da
narrativa com foco na personagem do texto ficcional e na personagem da literatura
juvenil. Vale ressaltar que os estudos da personagem na literatura juvenil são feitos
somente muito recentemente no Brasil. Pautamo-nos, especialmente, na pesquisa de
doutorado de Ceccantini (2000), tendo sido o primeiro estudo amplo sobre a literatura
juvenil brasileira, realizada somente no ano 2000. Concluímos o capítulo com uma
retomada da história do Brasil com foco nos primeiros anos da década de 1980 e
destacamos alguns acontecimentos que impactaram tanto no crescimento do campo
literário juvenil quanto na formação da segunda onda feminista no Brasil.
O segundo capítulo, ―Mulheres na literatura juvenil brasileira‖, aborda como o
sistema literário juvenil se desenvolveu nesse período; também observamos o espaço da
mulher nesse campo. Para tanto, apresentamos um mapeamento a partir da literatura
juvenil premiada desde 1960 até a década de 1980. Esse mapeamento evidencia que, a
produção literária para a juventude esteve em expansão desde a década de 1970, mas é
especialmente na década de 1980 que ela se consolida e permite a profissionalização do
escritor para esse público. É possível perceber, também, que, enquanto o interesse do
mercado e das políticas públicas de fomento à leitura era menor, a literatura premiada
era dominada por nomes femininos. Já quando a circulação das obras cresce, há mais
homens interessados na produção para a juventude, e a mulher começa a contar com um
concorrente que tende a dominar o mercado, que, nessa época, torna-se mais rentável do
que na década anterior.
O terceiro capítulo, ―Vozes feministas nas personagens da literatura juvenil‖, no
qual analisamos as obras do corpus, está dividido em quatro subcapítulos: no primeiro,
intitulado ―O lar‖, descrevemos as personagens e suas relações com o espaço da casa. A
casa, predominantemente, é elaborada como um espaço de clausura, mas também é o
lugar no qual se mostram as estratégias de supressão ao poder que engendra um

16
patrimônio de gênero (AMORÓS, 1997) para o masculino. O segundo, intitulado ―As
angústias‖, ausculta por meio de quais estratégias as obras apresentam um
questionamento dos papéis sociais de gênero. Todas as narrativas do corpus apresentam,
em maior ou menor medida, reflexões sobre esses papéis, e algumas apontam para sua
desconstrução. Tal desconstrução foi analisada no terceiro subtítulo do capítulo, ―O
enfrentamento‖, no qual debruçamo-nos sobre as obras que, efetivamente, propõem um
enfrentamento às assimetrias de gênero. Finalmente, no último subtítulo do capítulo,
―Transgressões de gênero na literatura juvenil‖, fazemos uma análise comparativa de
modo a conhecer as similaridades e as diferenças entre as obras no que tange às
representações de gênero e do enfrentamento ao patriarcado.
A tese desenvolve uma pesquisa inaugural para o campo literário juvenil, pois
não há uma que analise a literatura juvenil pela perspectiva da crítica literária feminista.
Além disso, capta o momento em que há uma ruptura na hegemonia do discurso do
patriarcado na literatura juvenil no campo editorial brasileiro3, e é iniciado um intenso
processo de reinvenção dos papéis sociais de gênero na literatura juvenil escrita por
mulheres, motivado, especialmente, pela segunda onda feminista.

3
Em pesquisa sobre as meninas na literatura infantil e juvenil brasileira, Fúlvia Rosemberg e Edith Piza
apontam que, até 1975, mesmo a literatura infantil e juvenil que se propunha a discutir sexo e gênero
partiam de modelos estereotipados não somente de gênero, mas também de raça e classe
(ROSEMBERG; PIZA, 1995).

17
CAPÍTULO 1: LITERATURA JUVENIL, MERCADO E MULHER

Jerusalém, 9 de setembro de 2003


[...] Algumas meninas de minha sala de aula mantêm
diários e contam o que acontece com elas todos os dias.
Eu nunca fiz isso. Nem para esmiuçar minhas histórias
de amor, para dizer que meus pais são velhos e chatos,
ou para revelar meus sonhos. Enfim, suponho que seja
isso que se escreva num diário.
(Valérie Zenatti,
Uma garrafa no mar de Gaza).

A literatura juvenil tem como característica a problematização de aspectos


sociais e culturais relacionados à juventude. Ela aparece imersa em contextos sociais e
culturais que lhes são próprios e em confronto com problemáticas que lhes são
concernentes. As personagens são elaboradas em conflitos consigo mesmas e com
dilemas particulares da fase em que estão inseridas, como é o caso da personagem
representada na epígrafe, que, vivenciando uma situação de guerra, compara seu
comportamento com os das amigas que costumam escrever diários, enquanto ela se
sentiu motivada à escrita de si somente quando viu seu país passar por profundas
transformações.
Assim, a personagem na literatura juvenil constrói a sua subjetividade enquanto
entende sua relação com o mundo, participando de embates de ideias, de gerações e de
formas de entender as relações humanas. Ao serem lidas, elas encontram outros jovens,
leitores e leitoras, que participam de confrontos, por vezes, similares aos ficcionais, e
que, por meio da leitura, têm elementos distintos para compor a sua própria
subjetividade, dada a possibilidade de a literatura contribuir para humanizar os sujeitos.
Como postula Candido, a literatura exprime os sujeitos ao passo em que atua em sua
formação, conforme A literatura e a formação do homem (2012) e O direito à literatura
(2004).
As etapas de produção, divulgação e circulação da literatura juvenil, contudo,
acontecem no cerne uma cadeia de interesses que envolvem mais do que a oferta de
obras que contribuam com a formação humana. A literatura juvenil precisa considerar,
por exemplo, a multiplicidade de maneiras de se exercer a juventude e, em
consequência, de representá-las nos textos literários, especialmente no contexto

18
brasileiro, em que há abismos sociais, culturais e econômicos, que fazem com que as
juventudes sejam heterogêneas.
Nem sempre, contudo, os jovens da ficção, com sua pluralidade de experiências,
se encontram com uma multiplicidade de leitores, ficando restritos, não raro, a leitores
com melhores condições socioeconômicas.
Se a juventude que tem fácil acesso à literatura dispõe, majoritariamente, de
condições materiais e culturais privilegiadas, escritores e escritoras também. Como
aponta Dalcastagnè (2012), a literatura não é um espaço, em nada, democrático, pois
está sendo produzida por uma elite branca, masculina e altamente escolarizada. Em
Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, Glória
Anzaldúa ([1980] 2000) sublinha a necessidade de rompermos com a ideia, produzida
em outro momento histórico por Virgínia Woolf ([1929] 2014), em Um teto todo seu, de
que a mulher precisa de um espaço privado para escrever. Anzaldúa evidencia que esse
é um privilégio que as mulheres pobres, e, especialmente as mulheres negras, não têm:
―Esqueça o quarto só para si — escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no
ônibus ou na fila da previdência social, no trabalho ou durante as refeições, entre o
dormir e o acordar. Eu escrevo sentada no vaso‖ (ANZALDUA, 2000, p. 233).
Assim, quando se observam os modos de produção e de circulação de livros
literários, é possível pressupor que serão encontrados determinados tipos de
representação, tendo em vista que o mercado do livro privilegia grupos favorecidos
social e historicamente, como mostra a pesquisa de Dalcastagnè (2005). Se os leitores se
depararem, majoritariamente, com representações de grupos privilegiados,
internalizarão as representações ali encontradas, o que contribui para a manutenção do
habitus (BOURDIEU, 1989) relacionado às relações de dominação entre homens e
mulheres.
O habitus, para o pensamento bourdieusiano (1989), é o instrumento que permite
compreender o modo como os condicionamentos sociais determinam aspectos da
subjetividade dos sujeitos. Assim, a maneira por meio da qual o sujeito formula a sua
subjetividade é disposta a partir de uma rede de experiências exteriores a ele. Mesmo as
escolhas mais controversas que o sujeito faz durante sua existência e que pareçam não
condicionadas, são feitas a partir desse arcabouço que envolve uma identidade social.
Compreendemos subjetividade na esteira do pensamento de Michel Foucault
([1978] 2008), em Segurança, território e população, que defende que a subjetividade
não é apenas submissão, ou seja, não é somente o externo determinando o eu-para-si,

19
mas uma forma de resistência ao poder ―como se tornar sujeito sem ser sujeitado‖
(FOUCAULT, 2008, p. 511).
As representações, certamente, não estão presentes somente na literatura. Elas
são elaboradas, em um primeiro momento, na família, e, depois, multiplicam-se os
canais, conforme se proliferam, também, as experiências sociais e culturais dos sujeitos.
A sociedade, consequentemente, ―[...] introjeta nos indivíduos as representações
geradoras de atitudes e comportamentos que se mantêm ao longo de suas vidas‖
(BOURDIEU, 1989, p. 42).
Neste capítulo, então, buscamos entender as relações entre a literatura juvenil e o
mercado para compreender, em um primeiro momento, como essa instância interfere na
produção das obras literárias, para, posteriormente, verificar como as representações das
mulheres, pareadas ao discurso feminista, se mostram como espaços de resistência na
literatura juvenil, que se equilibra entre, de um lado, qualidade ética e estética e, de
outro, as vendagens. Para verticalizar o entendimento de tal relação, também se analisa
a crítica literária feminista no Brasil e como se constrói a personagem mulher nas
narrativas juvenis do corpus.

1.1 Mercado e a produção literária para a juventude

Estudar a literatura juvenil implica considerar que ela, além de objeto artístico,
também é mercadoria, o que leva à necessidade de conhecer seus processos de
produção, divulgação e circulação. Desde sua gênese, a literatura para a juventude
esteve atrelada aos interesses do mercado. Foram necessárias algumas décadas para que
ela começasse a ser validada por outras instituições além do mercado editorial.
Como mostra Tânia Pellegrini (2017), a propagação da literatura foi possível a
partir do fortalecimento do mercado do livro no Brasil, na década de 1970. Como ela
defende a pesquisadora, a maior parte dos meios técnicos para produção, divulgação e
circulação do livro ainda está atrelada aos mecanismos da indústria cultural, ―instituição
cujo funcionamento bem azeitado implica um casamento feliz entre a mídia e o
mercado‖ (PELLEGRINI, 2017, s.p).
As pesquisas sobre a indústria cultural têm início com a publicação de Dialética
do esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, em 1944, e se estende, na

20
Escola de Frankfurt, por meio de estudos promovidos pelo grupo de Adorno. As
reflexões de Adorno e Horkheimer (2002) sobre a indústria cultural não se centram na
literatura. Os filósofos partem do conceito para problematizar o quanto a produção
cultural possui um ar de semelhança. De modo taxativo, asseveram que toda a cultura de
massa é idêntica, pois, na concepção deles, não há propósito, por parte dos dirigentes,
em esconder os interesses econômicos por trás das produções.
Como defendem, todas as produções na esfera da indústria cultural possuem um
ar de semelhança, não havendo objetivo de se ampliar o acesso à arte ou à cultura
erudita, mas, sim, de se ofertar algo que possa distrair e, ao mesmo tempo, manter os
consumidores fiéis ao que produzem. Assim, as produções no campo da cultura de
massas não provocam enfrentamento, estranhamento ao consumidor, e focam somente
na promoção de um prazer imediato: ―Os clichês seriam causados pelas necessidades
dos consumidores: e só por isso seriam aceitos sem oposição. Na realidade, é neste
círculo de manipulações e necessidades derivadas que a unidade do sistema se restringe
sempre mais‖ (ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p. 9). Há, portanto, a manipulação
gradativa dos gostos.
Para Adorno e Horkheimer (2002), as produções, após o advento da indústria
cultural, são sempre iguais, não tendo particularidades, individualidades, qualidades,
enfim, nada que as façam se destacar. Ao mencionarem que há, por um lado, quem
questione o desamparo em valores anteriores, dando início a um chamado caos cultural,
os autores defendem que esse caos não existe, já que tudo está organizado, pois tudo se
destina a setores sociais: ―A cultura contemporânea a tudo confere um ar de
semelhança. Filmes, rádio e semanários constituem um sistema. Cada setor se
harmoniza em si e todos entre si‖ (ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p. 7).
Tais relações e tais condições de reprodutibilidade por parte da indústria da arte
conduzem à existência do que os autores chamam de arte ―leve‖ e arte séria: segundo
eles, a última é negada à sociedade. A estratégia da indústria cultural é reproduzir
versões simplificadas da arte séria à grande massa, e suprem, momentaneamente, a
necessidade humana de fabulação:

A arte séria foi negada àqueles a quem a necessidade e a pressão da


existência tornam a seriedade uma farsa e que, necessariamente, se
sentem felizes nas horas em que folgam da roda-viva. A arte ‗leve‘
acompanhou a arte autônoma como uma sombra. Ela representa a má
consciência social da arte séria. O que esta em verdade devia perder,
em virtude de suas condições sociais, confere à arte leve uma

21
aparência de legitimidade. A verdade se encontra na própria cisão: que
pelo menos exprime a negatividade da cultura a que as duas esferas,
somando-se, dão lugar. (ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p. 28).

Como se nota, para Adorno e Horkheimer (2002), a arte leve sonega o caráter
artístico dos produtos culturais por meio da deturpação e mercantilização, de maneira
que possa ser acessível e despertar interesse em um público amplo, que, por sua vez,
não tem acesso à arte séria. O problema, certamente, não é a ampliação do grupo que
tem acesso à arte, mas sim a supressão do caráter artístico nesse processo.
Contemporaneamente, por mais que o mercado do livro tenha se fortalecido e a
literatura juvenil seja um campo no qual os seus influxos são percebidos, a distância
temporal permite constatar que elas não controlam todas as produções literárias para a
juventude. Há, como defende Raquel Souza (2015), uma subordinação dos produtores
culturais aos que detém instrumentos de produção e difusão, mas essa subordinação não
impede que haja a propagação de obras com qualidade estética, já que o mercado
editorial, regido mais por objetivos financeiros do que pela qualidade de suas produções
não é a única instância de legitimação da literatura juvenil.
Hoje, a literatura juvenil campo conta com premiações independentes, como as
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ e do Jabuti; críticas
especializadas, seja por meio de dissertações, teses e diversas publicações em artigos e
livros e em Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Letras e Linguística – ANPOLL: o grupo Leitura e Literatura Infantil e Juvenil.
Considerando que há diferentes instâncias de legitimação para a literatura juvenil,
acreditamos que, se o mercado é decisivo para o fortalecimento das vendas e para a
profissionalização do escritor, outras instâncias contribuem para que a sua qualidade
não seja sonegada.
A produção literária destinada à juventude constitui, cada vez mais, significativo
filão para o mercado do livro. Consumidora de produtos culturais voltados aos seus
interesses, a juventude encontra, com a ampliação das produções voltadas para seu
grupo, personagens, temáticas e espaços que constituem narrativas com as quais se
identifique. Já a produção juvenil impulsiona o mercado a partir do momento que
avoluma as tiragens de venda.
Maria Amélia Cruz (2017), que faz um estudo comparativo entre a literatura
juvenil portuguesa e alemã no livro A identidade adolescente no romance juvenil
contemporâneo, defende que o ―romance adolescente‖ moderno surgiu por volta da

22
década de 1970, nos Estados Unidos, justamente quando as editoras perceberam que
havia procura, por parte do público juvenil, de textos centrados nos conflitos internos
próprios da adolescência, e também na busca de uma identidade própria.
O surgimento da literatura juvenil foi, então, motivado pelo interesse do
mercado em um grupo social sobre o qual se elaboravam novas percepções, tendo em
vista que se percebiam as suas especificidades. Entre essas especificidades, Rossana
Reguillo (2003) discute que o aumento da violência por parte de jovens foi uma das
razões para que se começasse a pensar sobre a necessidade de proteger esse grupo
social; também o crescimento de diferentes modelos familiares proporcionou certa
perda de identidade por parte da juventude, que precisava elaborar a sua própria
representação nesse cenário; o fortalecimento da indústria cultural que oferecia bens
voltados para o consumo da juventude e, finalmente, a percepção de que a juventude
não é uma mera etapa de transição no desenvolvimento do sujeito, mas, sim, um estado
em que o ser e o fazer estão ancorados no presente e não necessariamente na projeção
com quem do que se tornará no futuro. A literatura juvenil, portanto, contribui para que
se valorizem as experiências da juventude inserindo-a no centro da narrativa e
construindo a ficção a partir das aventuras e angústias comuns a essa etapa da vida, ao
mesmo tempo em que problematiza aspectos sociais e culturais, bem como as relações
humanas.
Considerando a figura do jovem, questionamos: a produção literária juvenil é
necessariamente massificada e superficial pelo fato de que os autores dependem das
regras do jogo do mercado para circularem? A produção literária juvenil ser destinada a
um público que depende de uma literatura específica no que tange à linguagem e
estrutura narrativa determina que essa literatura tenha menos qualidade?
Para tentar responder a essa questão, voltemo-nos para as reflexões de David
Lodge (2015) no prefácio de O nome da rosa, de Umberto Eco. Ele considera que a obra
consegue atingir diferentes públicos mesmo tendo indiscutível qualidade estética e
consegue transpor os muros dos grupos especializados e atinge leitores com menos
acesso à chamada literatura canônica. Lodge (2015) retoma a discussão que envolve
qualidade literária, leitores e críticos e deixa entrever que, para ele, há diferentes níveis
de qualidade nos textos que, de certo modo, direcionam o público, bem como as
tiragens de vendas. Há livros, contudo, que, como O nome da rosa, transbordam tais
limites e atingem a públicos distintos porque, por conterem níveis de profundidade,
podem interessar leitores não especialistas.

23
No momento de saída de um livro das editoras para as prateleiras, o livro já
conta, anteriormente, com ampla divulgação e trabalho de marketing. Esse movimento
não se constituiria um problema, não fossem as estratégias para angariar números cada
vez mais expressivos de consumidores. Se observarmos, por exemplo, a lista dos vinte
livros infantis e juvenis mais vendidos em 20164 é possível perceber que alguns dos
títulos que compõem a lista são assinados por jovens possuidores de canais no Youtube
que contam milhões de seguidores. Marco Túlio, de vinte anos, dono do canal
AuthenticGames, com onze milhões de inscritos e quase cinco bilhões de views5, é autor
dos títulos AuthenticGames (3º) e AuthenticGames – a batalha da torre (11º). Pedro
Rezende, de dezenove anos, dono do canal Rezendeevil, com mais de treze milhões de
inscritos e pouco mais de cinco bilhões de views6, é autor de Dois mundos, um herói (5º)
e De volta ao jogo (8º).
Já em 2017, na primeira posição com livro que leva seu nome está Felipe Neto,
de vinte e nove anos, dono do canal Felipe Neto, com mais de dezesseis milhões de
inscritos e mais de dois bilhões de views7. AuthenticGames - A batalha da torre muda
para a nona posição. Marco Túlio lança à lista dos mais vendidos mais um livro:
AuthenticGames - A batalha contra Ender Dragon (16º). Aparece na lista, ainda, o livro
Você sabia? (10º), de Lukas Marques e Daniel Molo, donos do canal também intitulado
Você sabia?, com mais de nove milhões de inscritos e quase um bilhão views8.
Em 2018, na primeira posição, está Luccas Neto, com o título As aventuras na
Netoland com Luccas Neto, e, em segundo, seu irmão Felipe Neto, com Felipe Neto - A
vida por trás das câmeras. O título Felipe Neto se mantém na lista (5º)9.
Certamente, firmar parcerias com jovens que já contam com um público cativo é
apenas um entre os modos recentes de direcionamento das publicações por parte das
editoras. Tais parcerias resultam, inclusive, em poucos livros literários de escritores e
escritoras brasileiros entre os preferidos do público, já que os mais vendidos versam
sobre a vida dos próprios autores, ou sobre as temáticas abordadas em seus canais.

4
Lista disponibilizada no link: http://www.publishnews.com.br/ranking/anual. Acesso em: 7 out. 2019.
5
https://socialblade.com/youtube/channel/UCIPA6iWNaoetaa1T46RkzXw. Acesso em 7 out. 2019.
6
https://socialblade.com/youtube/user/rezendeevil. Acesso em 7 out. 2019.
7
https://socialblade.com/youtube/user/felipeneto. Acesso em 7 out. 2019.
8
https://socialblade.com/youtube/user/vcsabiavideos. Acesso em 7 out. 2019.
9
https://www.publishnews.com.br/ranking/anual/11/2018/0/0. Acesso em 7 out. 2019.

24
Destacamos, contudo, que o uso de estratégias como a aproximação do mercado
do livro com os youtubers para aumento das vendagens e fortalecimento da produção
para a juventude não é uma descoberta do mercado do livro contemporâneo. Tania
Pellegrini (2017), em A literatura e o leitor em tempos de mídia e mercado, apresenta as
primeiras estratégias utilizadas em um momento em que a nosso mercado ainda era
muito recente, ainda em 1980. Entre essas estratégias, frisamos a segmentação do
público. Para a autora, no Brasil, a dinâmica de funcionamento do mercado editorial foi
sendo adequada à medida que ia sendo posta em prática, ou seja, o mercado editorial
estabelecia a sua dinâmica de funcionamento à medida que criavam setores de consumo
específicos para a juventude:

[...] a quem, nos anos 80, foram destinadas várias coleções de


―divulgação‖ como Primeiros Passos, Tudo é história, Encanto
Radical, Circo de Letras e Cantadas Literárias, pela
Editora Brasiliense, com temas, modos e abordagem e linguagens
específicas. Dessas, apenas Circo de Letras e Cantadas Literárias
eram totalmente dedicadas à literatura, tentando criar/suprir com
temas e linguagem ―jovens‖ as jovens necessidades de um público já
formado no interior da nossa ainda jovem indústria
cultural. (PELLEGRINI, 2017, s.p.).

A segmentação do público permitiu que se conhecessem melhor os interesses


dos consumidores aos quais os títulos estavam sendo destinados. Coleções como as
citadas por Pellegrini (2017) favoreceram o contato dos jovens com temáticas não
tratadas com o público na década anterior, que, devido à censura, eram consideradas
subversivas ou atentatórias à moral. As coleções de literatura, inclusive, alcançavam o
público jovem universitário e o secundarista.
Se, por um lado, as adequações aos públicos infantil e juvenil contribuem com a
sua formação e amadurecimento, tendo em vista as particularidades de cada grupo
social, há evidente interesse econômico por parte do mercado quando busca fortalecer
tal segmentação. No Brasil, então, é possível perceber que, por mais que as estratégias
do mercado sejam utilizadas para produzir lucro, ao mesmo tempo, contribuíram com a
propagação do livro e para a profissionalização da atividade da escrita. Conforme
Schøllamer (2011, p. 47): ―Nos anos 1980, os escritores já se davam conta de que a
literatura era também produção de mercadoria em circulação e que, na maior parte das
vezes, nesse circuito, eram eles próprios os que mais saíam perdendo‖. Como poucos
escritores tinham experimentado, até então, o sabor das grandes vendagens, começa-se a

25
perceber a necessidade da profissionalização para não sucumbir aos formatos
pasteurizados que, certamente, promoveriam mais lucro.
Um exemplo da possibilidade de articular a busca pela manutenção da qualidade
estética com a inserção no mercado é a escritora Lygia Bojunga, que consegue expandir
sua obra para além do território brasileiro justamente por meio de instâncias de
legitimação ligadas ao mercado: as premiações literárias. Após receber a medalha Hans
Christian Andersen, em 1982, a principal premiação para escritores de literatura infantil
e juvenil, sua obra foi traduzida para mais de 23 idiomas. É em 2004, contudo, que
recebe a premiação que irá promover uma transformação em sua carreira: o prêmio
sueco Astrid Lindgren Memorial Award. O prêmio, com valor de 520 mil euros, deu
condições para que a escritora inaugurasse a Casa Lygia Bojunga, sua própria editora,
para publicar exclusivamente suas obras. Ela consegue, então, manter uma editora
própria, com preços muito abaixo de outros livros infantis e juvenis, situação que não
seria possível sem unir qualidade estética e o suporte financeiro proporcionado pela
indústria do livro.
Pellegrini (2017) discute, no que tange ao livro e aos hábitos dos brasileiros,
como se deu, década a década, os efeitos do crescimento do mercado do livro no modo
de seleção das obras por parte do público. Como ela mostra, em 1960, gênero e autor
eram, ainda, os principais critérios de seleção de títulos; já em 1970, com a expansão do
mercado e a articulação com a mídia, já havia tendência à escolha com base nas
expectativas geradas pelo mercado; em 1980, amplia-se a relação entre a mídia e o
mercado – com o crescimento do número de novelas e minisséries televisivas baseadas
em livros –. O mercado, por sua vez, cresce gradativamente e tem cada vez mais
influência na escolha dos livros por parte dos leitores.
Entre as décadas de 1970 e 1980, devido à progressiva industrialização da
cultura promovida nesse período, revelamos algumas mudanças históricas, como o
crescimento substancial do acesso à escola e à universidade. Como aponta Sandra
Reimão (1996), em 1970, houve redução nas taxas de analfabetismo, ampliação do
número de universitários e crescimento, ainda, do Produto Interno Bruto. Esse novo
cenário faz com que haja crescimento do mercado editorial nacional, e, finalmente, se
ultrapassa a ―[...] deplorável barreira de um livro por habitante ao ano‖ (REIMÃO,
1996, p. 18).
A análise de Reimão (1996) sobre a configuração do mercado da cultura
brasileiro compreende três décadas – 1960, 1970 e 1980 – e mostra que a

26
industrialização da cultura proporcionou, além do fortalecimento dos meios de
comunicação de massa, a segmentação da cultura. Essa segmentação também é
percebida no mercado do livro. Ganham relevância produções com diferentes níveis de
complexidade e produções culturais bastante distintas e amplia-se o número de:

[...] textos atrelados ao star system televisivo, romances políticos,


literatura nacional formalmente inventiva e de difícil fruição, literatura
de massa e de gosto médio de autores nacionais consagrados, tudo isso
ao lado de narrativas de massa de autores norte-americanos ao boom
do ―realismo fantástico‖ latino-americano. (REIMÃO, 1996, p. 70-
71).

Entre o final da década de 1970 e 1980, essa segmentação também é percebida


no campo literário juvenil, que passa a contar com uma pluralidade de temas e formas
que não existia. Do mesmo modo, a profissionalização também contribui para que um
número mais amplo de escritores se dedique à produção para o jovem10.
Esses três movimentos, a segmentação da cultura, a industrialização da produção
cultural e a profissionalização do escritor alteraram, também, o discurso utilizado na
produção literária. Até 1970, predominava um tom moralista, como o presente na
―Coleção Cachorrinho Samba‖, sucesso nas décadas de 1950 e 1960, de Maria José
Dupré, protagonizada por Samba e um grupo de pré-adolescentes, que, geralmente, se
prejudicavam após desobedecer às ordens dos adultos e terminavam com uma lição ao
final da narrativa. Já a partir da década de 1970 começa-se a explorar narrativas
centradas em contextos sociais menos privilegiados e a condição do jovem nesses
contextos. Enfraquece-se o discurso moralista e entra em cena um discurso formador.
As personagens criadas a partir de então, comumente, estão com alguma problemática
em relação a si ou ao seu grupo social e amadurecem ao longo da narrativa. Entre as
obras que promovem modificação no discurso e na temática, ganha destaque A infância
dos mortos, de José Loureiro (1977), que narra o cotidiano de meninos em situação de
rua. O livro, aliás, angaria sucesso posteriormente a um processo facilitado pela
segmentação do mercado, que é a adaptação da literatura para o cinema, após ser
dirigido por Hector Babenco, com o título Pixote, a lei do mais fraco. Depois do
sucesso nacional e internacional do filme, que o rendeu várias premiações, Loureiro

10
Nas tabelas 1, 2 e 3 presentes no Apêndice deste trabalho é possível perceber o crescimento de
temáticas e de escritores no campo literário juvenil a partir da literatura juvenil premiada de 1960 a
1980.

27
altera o nome do livro para Pixote, a lei do mais forte11. A narrativa de Loureiro (1977)
não se centra em jovens privilegiados nem tem um discurso moralista, mas, sim,
denuncia as condições nas quais os jovens representados se encontram, bem como o
mundo da criminalidade no qual estão imersos.
Além da denúncia de condições precárias de vida, a literatura juvenil também
favoreceu uma abertura a críticas em relação à condição da mulher. Se, entre as décadas
de 1930 e 1960 angariou sucesso entre o público-alvo a Coleção Menina e Moça, com
obras traduzidas do francês destinadas a uma formação moral e ideológica de meninas
pré-adolescentes e adolescentes12, a partir da abertura do mercado, foi possível a
participação de discursos mais libertários para as leitoras, pois surgiam escritoras como
Marina Colasanti, que já produzia, em 1970, textos editoriais com teor feminista. Ela,
ao iniciar sua produção literária para a juventude, também imprime esse discurso em
suas sobras.
Se a primeira instância de legitimação da literatura juvenil foi, portanto, o
mercado, a profissionalização do escritor possibilitou que ela se expandisse para além
de interesses meramente comerciais, já que contribuiu para o que John Thompson
(2013) chama de diversidade de produção e diversidade de mercado. A diversidade de
produção diz respeito ao momento em que o aumento do número de escritores promove
ampliação na variedade de obras escritas; já a diversidade de mercado diz respeito à
existência de variedade, também, para o leitor, pois nem sempre o fato de haver
diversidade de produção garantirá que haverá diversidade de mercado. No caso
brasileiro, analisando especificamente a literatura juvenil, percebemos que a
segmentação da cultura favoreceu a introdução de um número mais significativo de
produções literárias para a juventude nas prateleiras das livrarias.
Notamos, então, que, mesmo que o mercado se fortaleça, ele não impede que
obras com qualidade estética continuem sendo produzidas e, principalmente, circulando,
pois a existência de outras instâncias de legitimação dinamiza o mercado do livro.
Recorrendo a Umberto Eco (2015), entendemos que a diferença entre a indústria

11
A obra de Loureiro é analisada em Literatura juvenil em questão: aventura e desventura de heróis
menores, de Malu Zoega de Souza (2003).
12
Mirian Hisae Yaegashi Zappone faz, em artigo intitulado ―Caminhos da leitura no Brasil: a Coleção
Menina e Moça e a formação de leitoras mirins nas décadas de 1930-1960‖, uma análise da Coleção
Menina e Moça e de como a coleção dispunha de estratégias para formar, ideologicamente, o público
feminino.

28
editorial dos outros bens industriais é que a produção editorial é regida, também, por
pessoas vinculadas à cultura, para quem o interesse principal, o fim primeiro, na difusão
dos livros não é a venda do objeto livro, mas a propagação de valores.
Já para Pierre Bourdieu (1996), o campo literário, que se trata das relações entre
produção, circulação e consumo de bens simbólicos, se organiza na oposição entre a
produção destinada a produtores, em um mercado restrito, e a grande produção, dirigida
ao grande público para satisfazer suas expectativas. Conforme foi visto, não há
produção, nem divulgação e nem consumo alheio às relações de poder que permeiam o
texto literário e que define as estratégias adotadas.
O campo literário é conduzido na tensão entre os possuidores do capital, seja ele
econômico, cultural, social ou simbólico e os que estão determinados a romper com a
rotinização da produção literária. Raquel Souza (2015) propõe, a partir da concepção de
campo literário de Bourdieu, que há, também, um campo literário juvenil. Ela defende
que esse campo é cada vez mais autônomo, pois vem contando com um sistema
particular de produção, circulação e consumo que depende de quatro instâncias de
legitimação: escola, universidade, eventos e prêmios literários e mercado.
Ao pensar no lugar da literatura juvenil no sistema literário e na autoria de
mulheres com base nesse campo, a partir do pensamento bourdieusiano, consideramos
que as escritoras, enquanto agentes do campo literário, representam determinados papéis
sociais e, quando imprimem suas vozes, inserem novas possibilidades de interação
discursiva, não orientadas somente por um sujeito masculino.
Por discurso, entendemos, com base em Foucault ([1971) 1996), em A ordem do
discurso, que se trata da rede na qual signos se conectam e se encontram a outras redes e
outros discursos em um processo que é controlado pelas instituições disciplinares e
reproduzem valores da sociedade e os perpetuam, instrumentalizando o poder, mas ao
mesmo tempo, não somente, permitem que este seja alterado conforme os discursos se
imbricam.
Buscamos entender, então, as representações das personagens, especialmente, a
partir do advento da crítica feminista no momento histórico para o qual se volta este
trabalho, e, considerando, ainda, o lugar social do qual as escritoras falam: mulheres
brancas e altamente escolarizadas.
Umberto Eco (2015), em Cultura de massa e ‗níveis‘ de cultura, menciona a
necessidade de se pensar a problemática relacionada ao poder econômico que rege a
cultura de passa. Para ele, raramente se considera o fato de que ela é produzida por

29
grupos de poder econômico que têm fins lucrativos e está submetida às leis econômicas
de outros produtos industriais. Para que o consumidor seja fiel a essa produção, precisa
ter seus problemas sanados, ou seja, não pode encontrar grandes dilemas. Estabelece-se,
assim, uma relação paternalista entre produtor e consumidor.
A cultura de massa, então, produzida em série, segue as leis de mercado, que,
por sua vez, precisam manter o consumidor cativo, em uma relação que Eco (2015)
chama de paternalista. Tendo em vista o poder econômico que rege o mercado, não é
pertinente seguir o caminho ―do protesto e da reserva‖ (ECO, 2015, p. 51) escolhido
pelos ―homens da cultura‖, tendo em vista que a resistência, nesse caso, não tende a
gerar nenhum tipo de impacto no que é produzido de fato. Parece relevante, então,
considerar que, independentemente da resistência dos responsáveis por pensar no
caráter artístico das produções contemporâneas, a cultura de massa continuará sendo
regida por especialistas em lucro.
A dúvida lançada é a base para a discussão: se a derrocada da cultura de massa é
algo impossível, pensar sobre como veicular a arte por meio dela é um caminho bastante
viável. Eis como Umberto Eco define tal situação:

A falha está em formular o problema nestes termos: ‗é bom ou mal


que exista a cultura de massa?‘ [...] Quando, na verdade, o problema
é: ‗do momento em que a presente situação de uma sociedade
industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa
conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural
possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular
valores culturais?‘ (ECO, 2015, p. 50).

Para ele, não é utópico acreditar que é possível haver uma intervenção cultural
na lógica de mercado que parece dominar a produção artística porque, a exemplo da
fabricação de livros, o interesse existente em veicular cultura por parte dos sujeitos
envolvidos na produção mantém viva a possibilidade de a produção cultural não ser
regida exclusivamente por interesses financeiros. É possível, então, que a crítica cultural
ofereça resistência no cerne de um sistema que agiria seguindo somente a lógica do
mercado, pois, como aponta Eco (2015), os pequenos fatos e ações têm capacidade de
alterar a natureza de um sistema e revolucioná-lo.
Como se observa, a cultura de massa está posta, sendo mais relevante pensar
quais as maneiras por meio das quais a cultura de massa pode veicular valores culturais
do que, necessariamente, questionar as vantagens ou desvantagens de sua existência, há

30
tempos já consolidada, ao passo que entender que o olhar crítico para a cultura de massa
implica considerar a existência de críticas sobre a própria massa.
Bourdieu (1982) assevera, ainda, o fato de que a produção artística fica restrita a
um grupo muito pequeno e não alcança o ―[...] o público dos não-produtores, ou seja,
com as frações não-intelectuais das classes dominantes‖ (BOURDIEU, 1982, p. 105).
Ao escolherem essa forma de atuação, ao mesmo tempo em que afirmam a
singularidade da produção artística, também delimitam seus pares, pois o campo de
produção erudita funciona por meio de um mercado extremamente restrito. A esse
mercado tem acesso apenas quem tem condições de acessar, no que tange ao código, as
produções que dele resultam. Outro nível de acesso é gerador de restrições: o financeiro.
Os sujeitos precisam dispor, portanto, de dois tipos de moeda para acessarem tais
produções: a simbólica e a financeira.
Compreendemos que, mesmo que o processo de escolha das obras por parte do
leitor nem sempre se dê com base em critérios estabelecidos pelo leitor, há agentes, no
campo literário, que têm interesse em veicular obras com qualidade estética. No caso da
literatura juvenil, o fortalecimento da crítica literária nesse campo amplia, também, as
instâncias de legitimação dessa literatura.
A consolidação dos estudos nesse campo, contudo, é, ainda, muito recente. A
história da literatura juvenil foi produzida de modo paralelo à da literatura infantil. É
somente nas duas últimas décadas que a literatura juvenil começa a ter maior
visibilidade por parte da crítica. Se o trabalho foi, inicialmente, de validar a literatura
infantojuvenil, busca-se, atualmente, legitimar a literatura juvenil, a partir do
reconhecimento de que a infância e a juventude são grupos sociais bastante distintos.
Para Martha (2014, p. 11-12):

O reconhecimento da qualidade artística da literatura juvenil torna-se,


portanto, uma meta, cuja consecução pode ser observada na
confluência dos elementos do campo literário que constituem esse
subsistema. Dessa forma, além da construção linguística, do modo de
formar o texto – narrativa, poema, drama –, outros fatores, externos à
obra, devem ser considerados, como sua produção, circulação e
consumo. A consolidação da literatura juvenil por instâncias
legitimadoras diversificadas – social, mercadológica, editorial e
acadêmica – permite-lhe reivindicar um lugar na sistematização dos
estudos literários. (MARTHA, 2014, p. 11-12).

A partir da compreensão de que a juventude é um momento singular na


formação dos sujeitos, acreditamos, também, que sua legitimação se dá na medida em
31
que determinadas instâncias atestem sua qualidade. Ao se buscar essa legitimação,
almejamos, também, um lugar na sistematização dos estudos literários para a literatura
juvenil.
A dificuldade na consolidação do campo literário juvenil atrela-se ao surgimento
tardio de uma literatura infantil e juvenil brasileira. É Monteiro Lobato quem inaugura
uma literatura desvinculada de valores moralizantes e com foco na construção de
leitores críticos, tendo em vista a inserção de temáticas relacionadas, por exemplo, ao
momento político e econômico vivenciado pelo Brasil na época. O Sítio do Pica-Pau
Amarelo torna-se, ele próprio, metáfora do Brasil almejado por Lobato, como defendem
Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007).
Outro momento bastante significativo para a literatura infantil e juvenil foi o
período entre os anos 1960 e 1970, que foi marcado pela ditadura civil-militar e pela
luta por um Estado democrático. Durante a ditadura, a literatura infantil e juvenil foi
utilizada como forma de denúncia de uma sociedade repressora. Desempenhou, então,
―[...] importante papel na divulgação dos anseios da sociedade brasileira, uma vez que
os autores buscavam, no imaginário, formas e modos diferenciados de protesto contra o
cerceamento da liberdade‖ (MARTHA, 2014, p. 14). É nesse momento, quando há o
conhecido boom da literatura infantil, especialmente devido ao fortalecimento do
mercado do livro no Brasil, que a produção de literatura infantil e juvenil começa a ser
uma atividade rentável no Brasil. O crescimento do mercado é decisivo para o
surgimento da literatura juvenil enquanto uma categoria relevante para esse setor, e,
consequentemente, para escritores de literatura.
É certo que, mesmo antes da década de 1970, já existiam títulos adequados aos
leitores jovens. Contudo, não havia, até então uma crítica especializada nesse campo. É
somente na década de 1980 que os estudos acerca da literatura infantil e juvenil
começam a ganhar maior notoriedade por parte dos estudiosos de literatura. Lajolo e
Zilberman (2007), em Literatura infantil brasileira: história e histórias, estudo
publicado pela primeira vez em 1984, atestam a dificuldade de encontrar uma base
bibliográfica sobre a literatura infantil, principalmente quando comparada à europeia,
que, na mesma época, segundo as autoras, já dispunham de uma tradição de pesquisa a
respeito da temática, enquanto que, no Brasil, as publicações ainda eram muito
limitadas.
A aproximação dos grupos editoriais com a escola foi fundamental para o
fortalecimento da literatura infantil e juvenil, pois como a escola estava em expansão na

32
década de 1980, havia a carência de materiais didáticos e literários. É na década de 1980
que são inauguradas as compras governamentais de acervos literários, o que foi muito
significativo para a indústria do livro, já que a participação das políticas públicas de
leitura inauguradas pelo Ministério da Educação – MEC passou a movimentar esse
mercado13 e impulsionou, com o alto número das compras, que escritores e editoras
passassem a se dedicar mais atentamente a esses segmentos.
Se em 1975, como aponta Laura Sandroni (2008), a oferta de títulos nacionais
em 1ª edição era de 42 obras e, em 1978, de 107, a partir de 1980 esses números
crescem: em 1982, segundo a autora, com base em dados do SNEL, haviam sido
editados 913 títulos nacionais. Igualmente, em termos de qualidade, também há
alterações, pois na década de 1980 já se começa a observar a busca dos escritores e das
editoras para atingir qualidade editorial e literária como as requeridas pela FNLIJ. Ela
também nota a elevação na qualidade das ilustrações das obras infantis e juvenis: a
ampliação das traduções das obras brasileiras; na recepção de prêmios estrangeiros.
Esses fatos foram fundamentais para a profissionalização do escritor de literatura
infantil e juvenil e para o fortalecimento de um grupo de pesquisadores nesse campo.
Também aumentaram editoras interessadas em lançar ao mercado obras infantis e
juvenis obras com maior preocupação no que tange à ética e à estética.
A década de 1980 promoveu, então, alterações no cenário da literatura infantil e
juvenil não somente pelo fato de que as vendas aumentaram, mas, também, porque a
qualidade de boa parte dessa produção também foi crescendo. Para Sandroni (2008),
esse crescimento permite que a literatura juvenil comece a ser mais pontualmente
problematizada, pois, já em 1981 o número de obras juvenis inscritas na FNLIJ já
superava o número de infantis. Ademais, além dos números mais elevados, era possível
perceber que a qualidade dos textos e das ilustrações também estava em franco processo
de aprimoramento da qualidade.
Em texto anterior, Sandroni (1985) ressalta o papel dos editores conscientes para
que a produção eleve seu nível de qualidade, pois, por mais que a qualidade estivesse
aumentando, também havia o crescimento desenfreado de uma produção superficial,

13
A história dos programas brasileiros de fomento à leitura é discutida em artigo anterior intitulado
Políticas Públicas de Fomento à Leitura no Brasil: uma análise (1930-2014). CORDEIRO, Maisa
Barbosa da Silva. Políticas Públicas de Fomento à Leitura no Brasil: uma análise (1930-2014). In: Educ.
Real., Porto Alegre, v. 43, n. 4, p. 1477-1497, Oct. 2018. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-
62362018000401477&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 2 out. 2019.

33
moralista e acrítica. Para ela, o editor também é responsável pela manutenção da
qualidade na produção literária.
É, então, é responsabilidade do editor consciente buscar manter a qualidade da
produção, pensando, inclusive, na manutenção de leitores especializados e na
consolidação não somente pelo número de vendagens, mas da qualidade estética. Sob
nosso olhar, é uma visão otimista de Sandroni (1985) supor a participação
despretensiosa do mercado na manutenção da qualidade da leitura destinada ao jovem
leitor, tendo em vista a sua função decisiva no mercado do livro. Para Souza (2015), é
justamente o editor o responsável por, nas relações de poder no campo literário, fazer
com que texto e autor sejam conhecidos pelo público. Com base no pensamento
bourdieusiano, ela elucida que:

Quando se fala em editor, fala-se na verdade de uma entidade que


congrega um amalgamado de relações entre diferentes agentes que
contribuem para a decisão de publicar ou não uma obra e, num
segundo momento, uma vez aprovada a publicação, decide que marcas
de circulação e difusão lhe atribuir: grupos de especialistas, diretor de
coleção, tradutores, comissões e comitês de toda sorte. (SOUZA,
2015, p. 61).

O editor acaba por ser responsável, então, por questões para além da publicação
ou não de um título, mas também por decidir todos os aspectos relacionados à
publicação e difusão da obra. Não se pode perder de vista, ainda, os interesses políticos
e ideológicos relacionados às escolhas feitas no processo editorial, considerando as
orientações materiais e simbólicas que norteiam as tomadas de decisão.
Para o fortalecimento do mercado do livro, foram essenciais, além de um olhar
mais atento da crítica para essa produção, compras governamentais em larga escala e
premiações literárias, além de estratégias de divulgação dos títulos publicados, pois, já
que estava sendo produzida uma quantidade crescente de títulos, era necessário fazer
com que eles chegassem ao leitor. Entre as estratégias, estava a divulgação de
suplementos literários com as obras publicadas. Esses suplementos contavam com
discussão e apresentação de novos escritores, publicação de contos inéditos em alguns
deles, linguagem voltada para a juventude, entre outras estratégias.
Alguns trabalhos foram empreendidos com esse propósito. Um deles foi a
publicação da Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil – BBLIJ,
produzida pela Seção de Bibliografia e Documentação da Biblioteca Infantojuvenil

34
Monteiro Lobato, que esteve em atuação no período de 1953 a 200514 possuía listagem
das obras publicadas ano a ano, e, em algumas edições, verbetes e comentários críticos
acerca das obras.
A FNLIJ também promoveu um trabalho similar, quando lançou, a partir de
1977, a Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil (1965-
1974). O segundo volume foi publicado em 1984 (1975-1978).
Tanto a Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil – BBLIJ quanto a
Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil promoveram um trabalho que
favoreceu a divulgação das recentes publicações. Por meio das bibliografias,
divulgavam-se, além dos livros publicados, o nome de escritores que estavam se
dedicando ao campo literário infantil e juvenil.
Ainda a Série Vaga-Lume foi fundamental para a solidificação de um público
consumidor para a leitura juvenil. Com obras sobre temáticas variadas, foi criada em
1972 com o propósito de publicar, especificamente, obras voltadas para o jovem leitor.
Como angariou, desde o seu lançamento, bastante sucesso, o catálogo da editora divulga
novos livros, ao passo que reedita as edições mais antigas. Larissa Cruvinel, em
Narrativas juvenis brasileiras: em busca da especificidade de gênero (2009), promove
um estudo acerca da qualidade das obras publicadas na série.
Evidenciamos, então, a academia como instância de legitimação que contribui
para que se estudem as produções literárias dedicadas à juventude. Também as
premiações literárias exercem a função de contribuir para a divulgação da literatura
juvenil ao público: eventos como o Salão FNLIJ, nos quais há intensa circulação de
professores e alunos do ensino básico, promovem contato com um público para além de
uma crítica universitária, bastante restrita.
Há, como se nota, então, conflitos relacionados à produção literária. O fato de o
livro ser um bem de mercado, ou seja, uma mercadoria, faz com que sua circulação seja
condicionada pelas regras do mercado. O livro literário não deixa de ser, contudo, bem
simbólico, o que faz com que muitos editores também busquem divulgar obras com
qualidade estética, e, assim, exercem um papel decisivo na legitimação literária. Essa
via de mão dupla é, de fato, uma consequência sofrida por todo bem cultural regido pela
lógica capitalista apontada por Adorno e Horkheimer (2002) na formação da indústria

14
Mais informações sobre a BBLIJ estão disponíveis no link:
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliotecas/acervos_especiais/lit__infantojuv
enil/index.php?p=11564. Acesso em: 9 set. 2019.

35
cultural. Constrói-se uma disputa acirrada do livro enquanto bem simbólico e enquanto
mercadoria, especialmente, quando pensamos que o livro juvenil é consumido por um
grupo social não conhecedor desses embates.

1.2 Crítica literária e a literatura juvenil

A juventude é grupo social bastante distinto dos outros dois grupos sociais que o
fazem fronteira: o infantil e o adulto. Na juventude, os sujeitos têm alterações não
somente no desenvolvimento de seu corpo, mas, também, em sua vida psíquica, bem
como nas suas relações com os outros. Também começam a compreender a si próprios
de uma maneira nova. A literatura juvenil atende a esse público, destinando-lhe
produções com temáticas concernentes ao seu mundo, particularizando-se não pela
facilidade da linguagem, mas pela adequação estética a um público que não dispõe de
plena maturação.
O reconhecimento da existência da literatura juvenil está atrelado à construção
da juventude enquanto categoria social. Fazendo a mesma reflexão a respeito da
literatura infantil, a pesquisadora portuguesa Maria Amélia Cruz (2017) defende que a
existência de uma literatura infantil foi possível somente a partir do momento em que se
reconheceu a infância enquanto um grupo social distinto do adulto, com desejos e
anseios particulares. Para a autora, é a percepção de que crianças têm necessidades
diferentes das dos adultos que possibilitam o aparecimento de uma literatura infantil.
É, então, a construção da infância enquanto categoria social é quem possibilita a
existência de uma literatura voltada a ela. Assim, caso não houvesse sido construída
uma concepção de que crianças possuem necessidades particulares para seu pleno
desenvolvimento, não existiram produções a ela destinadas. É o caso dos contos
maravilhosos, que passaram por adaptações para a infância, já que, anteriormente, eram
narrativas de experiências partilhadas para adultos, jovens e crianças. Mais
recentemente, se elaborou o entendimento da juventude como uma categoria social
diferente da infância, o que motivou o crescimento das produções culturais destinadas a
ela.
A legitimação da literatura juvenil, no entanto, não é tarefa tão simples, pois, a
rotulação dessa literatura nem sempre é vista com bons olhos por parte da crítica

36
literária, pois muitas das produções para o jovem acabam por ser confundidas com a
cultura de massa, tendo em vista que a literatura juvenil conta com estratégias de
divulgação particulares, mas também, com uma organização estética da obra voltada
para a juventude. É comum as obras contarem com capas mais coloridas; linguagem na
quarta capa com interlocução, enfim, com uma caracterização editorial voltada para seu
público. Para Emili Teixidor (2005), a negação da existência de esforço e de demanda
na literatura ofertada ao jovem faz com que muitos estudiosos da literatura entendam
que toda literatura juvenil é cultura de massa, que atende a um público amplo e reduz a
qualidade de seus textos para alcançar leitores com diferentes níveis de letramento.
Maria Albuquerque (2009), no verbete ―Literatura juvenil‖ do E-dicionário de
termos literários de Carlos Ceia, elenca algumas características encontradas na
produção literária para o jovem. Para ela, a literatura juvenil é dirigida a um público
com mais de doze anos. Nessa etapa, o jovem começa a interpretar o mundo, pois entra
em uma fase em que têm um alargamento cognitivo de si próprio, distanciando-se de
sua realidade imediata. Ao ter sua compreensão de mundo alargada, se interessa por
explorá-lo e pode desenvolver maior capacidade para racionalizar suas vivências,
analisando-as e criticando-as. Ao se relacionarem com a literatura, interioriza as leituras
de maneira particular, de modo que ela contribua com a vida de cada um de modo
individual.
Recorremos, ainda, a Teixidor (2005) em sua definição do que seja literatura
juvenil. Para ele, a literatura juvenil é constituída por obras destinadas a um público
jovem, não infantil e não adulto. Essa etapa se inicia por volta de doze até e vai até a
idade que seja necessária para que o leitor passe, sem dificuldades, para uma etapa em
que se torne um leitor adulto, não em idade, mas na qual lide com complexidade do
texto literário.
O escritor esclarece que uma das particularidades da literatura juvenil é a
existência de uma destinação a um público jovem, situado entre o infantil e o adulto.
Essa localização permite, ao mesmo tempo, transitar da etapa anterior – na qual lia
obras nas quais o diálogo verbo-visual era muito presente; o texto era organizado em
períodos curtos e objetivos; havia forte mediação do adulto no momento da leitura –
para uma etapa na qual se consolidará enquanto leitor independente – na qual haverá
menos apelo do projeto gráfico e as narrativas são mais densas.
Cruz (2017) defende que tanto a literatura infantil quanto a juvenil se
caracterizam por alguns elementos: são destinadas a públicos específicos, mas mediadas

37
por adultos, que selecionam a elas temáticas, ambientes e discursos que sejam
pertinentes às referidas fases. O público-alvo – a criança e o jovem –, não faz, sozinho,
tais mediações, especialmente, a criança. As obras infantis e juvenis precisam, então,
agradar as crianças ou os jovens, mas também precisam agradar aos adultos.
A literatura juvenil é fortemente caracterizada pela presença de personagens
jovens, em debate com problemas concernentes a essa etapa, variando-se os contextos
socioculturais que elaboram, de formas distintas, a percepção do que seja a juventude.
Podemos citar como exemplo o livro Você viu meu pai por aí?, de Charles
Kiefer (2007), que tem como protagonista José, menino indígena de doze anos. A
personagem parece ter sido forjada para atingir a um público muito específico, já que,
como tem por volta de doze anos de idade e está buscando sua independência, busca
conseguir a identificação de pré-adolescentes. Estes estão em conflito com o que
encontrarão na idade adulta: se irão conseguir realizar-se plenamente; se irão ser
notados por suas próprias conquistas. Ao mesmo tempo, a obra problematiza a
interferência do vício por bebidas no cerne da aldeia, bem como a interferência do
cristianismo na tribo. A narrativa, portanto, não se limita em problemáticas sociais
exclusivas do jovem, mas conduz o público a refletir sobre uma questão política
fundamental: os conflitos gerados a partir da invasão da população branca a territórios
indígenas.
É certo que a figura do jovem desperta na indústria cultural forte poder de
atração. Por enxergar as particularidades concernentes a esse período da vida, ela
aproveita para a formação de um público consumidor diferenciado. A indústria cultural
dirige, contudo, seus produtos para um público ideal, com problemas, angústias e
necessidades construídas a partir de um ideário social do que seja a juventude. Parte-se,
mesmo na literatura, de uma concepção de juventude que se pauta na classe média, com
pais presentes e escolarizados, em contextos distantes das diversas esferas sociais das
quais são oriundos a maioria dos brasileiros. A difícil inserção de escritores negros e
indígenas denuncia a existência das representações de espaços socialmente privilegiados
na literatura. Igualmente, mesmo quando se fala da presença de traduções nas livrarias e
no contexto escolar, predominam obras de países norte-americanos ou europeu, havendo
pouco espaço para a inserção de obras oriundas de países africanos ou latino-
americanos.
Há a construção, então, de um ideário do que é ser jovem, pois se parte de uma
realidade restrita, desconsiderando a multiplicidade de contextos nos quais as

38
juventudes se constituem. Positiva-se, assim, a condição juvenil nas produções para o
público, não abordando as problemáticas sociais nas quais as juventudes, muitas vezes,
estão imersas. Entre essas problemáticas, podem ser citadas: dificuldade de acesso à
escolaridade, necessidade de se trabalhar muito cedo, delinquência, violência sexual,
gravidez na adolescência, entre outras uma gama de agruras que são acentuadas com as
desigualdades de classe, raça e gênero.
Para Afrânio Catani e Renato Gilioli (2008), mesmo em casos em que existam
comportamentos em desacordo com o que a sociedade estipula como normal, a indústria
cultural os valoriza como marcas de expressão, mas não de modo a conferir o desejo de
construir uma voz própria, e, sim, de aproveitar as diferentes características da
juventude para seccionar as produções, pois o discurso publicitário atribui ao jovem o
papel de consumidor. Essa imagem construída acerca do jovem, contudo, é bastante
perigosa, tendo em vista que, por mais que haja uma construção positivada da juventude
por parte da indústria cultural. Ainda que essa construção pareça favorável ao
desenvolvimento da subjetividade, ela é excludente, pois a existência de distintas
condições socioeconômicas não permite que os jovens experimentem uma juventude
plena de descobertas. Segundo os autores, o mercado contribui sobremaneira para que
haja exclusões segmentações em relação às condições juvenis, que são diversas. Jovens
oriundos das camadas populares, por exemplo, terão menos condições de frequentar
lugares como restaurantes, concertos, shows e shopping, ou de realizar viagens e ter
acesso a bens culturais, como livros variados e teatros.
Se os autores ressaltam o modo como as diferenças socioeconômicas impedem o
acesso de boa parte dos jovens em relação aos produtos culturais voltados para a
juventude, promovendo exclusões no que diz respeito a esse grupo, é necessário pensar
que não é somente o acesso a tais produtos culturais que garantem, ao jovem, essa
inserção. Em um país com dimensões continentais, como o Brasil, com inúmeras etnias,
orientações religiosas, entre outros aspectos, certamente, as formas de exercer a
juventude são diversificadas.
Catani e Gilioli (2008) fazem um percurso no qual esclarecem como o mercado
cultural voltado ao jovem passou por momentos distintos no Brasil. Na década de 1980,
por exemplo, enfrentava sérias críticas pelo fato de que boa parte da produção cultural
era considerada alienadora da juventude. No Brasil, a partir dos estudos desenvolvidos
na década de 1980, passou-se a questionar a defesa de que ―[...] as expressões do
consumo juvenil, o lazer e a cultura se reduziam apenas a essa dimensão de dominação.

39
Desse modo, os múltiplos estilos e comportamentos da juventude passaram a ser
valorizados como produções culturais legítimas‖ (CATANI; GILIOLI, 2008, p. 21).
A partir do momento em que os movimentos juvenis começaram a se fortalecer,
passaram a ser vistos como grupo de resistência ao discurso tradicional, como hippies,
punks, entre outros. Mesmo assim, o jovem era representado com base em uma espécie
de modelo, a despeito do grande número de grupos que surgem com o intuito de
questionar e se opor às forças conservadoras.
A compreensão sobre o que é ser jovem envolve, inclusive, a discussão sobre a
faixa etária. Luís Groppo (2004) entende a juventude como uma categoria social, e,
assim, uma criação histórica, não sendo uma invariante universal. A puberdade, por sua
vez, é um fenômeno universal, abstrato e generalizante. Já a juventude diz respeito ao
modo como as sociedades irão interpretar essa fase. Para ele, então: ―[...] a realidade da
juventude não é tão somente da ordem da ―natureza‖, mas principalmente da ordem do
―social‖ e, portanto, uma criação histórica, não um invariante universal‖ (GROPPO,
2004, p. 11).
A diferença entre puberdade e juventude, contudo, não impediu que esta fosse
lida tal como aquela: de modo a buscar características generalizantes e abstratas. O
estudo das juventudes precisa considerar que, enquanto categoria social, ela deve ser
analisada em cruzamento com outras categorias sociais e condicionantes históricos
(GROPPO, 2004), tornando possível perceber que há, na verdade, grupos juvenis
múltiplos e diversificados, não uma única juventude.
A literatura juvenil se caracteriza como um dos espaços nos quais há a
representação juvenil, e, ao mesmo tempo, é uma produção cultural voltada a esse
público. Assim, o estudo das juventudes precisa considerar que, enquanto categoria
social, ela deve ser analisada em cruzamento com outras categorias sociais e
condicionantes históricos, pois não há uma única juventude, e, sim, grupos juvenis
múltiplos e diversificados. No caso deste trabalho, a análise da juventude é feita em
paralelo ao estudo das personagens mulheres na literatura juvenil escrita por mulheres.
Os inícios dos estudos, no campo da crítica literária, acerca da literatura juvenil,
tinham, entre seus propósitos, validar a existência de uma produção com qualidade. Tal
discussão sobre a busca pela qualidade da juvenil não se deu, evidentemente, somente
no Brasil. Teresa Colomer (2003), pesquisadora espanhola, relata que, após a década de
1960, na Espanha, houve reformulações do conceito de literatura e também a
desvalorização da literatura infantil e juvenil, considerada como texto menor, já que é

40
pouco vanguardista e desvia pouco nas normas. Os críticos, no princípio, passaram a ler
o texto infantil e juvenil seguindo os mesmos princípios da literatura para adultos, o
que, certamente, fazia com que ele fosse entendido como menor, ou como textos
paradidáticos.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, Colomer (2003) aponta que a polêmica
em torno da qualidade da literatura infantil se deu até 1970. A partir de então, devido ao
surgimento de uma crítica especializada, foram desaparecendo, gradativamente, os
discursos contra a existência de qualidade literária nas obras infantis e juvenis. Colomer
(2003) ressalta, contudo, que a literatura juvenil ainda não dispõe do mesmo grau de
reconhecimento que a literatura infantil.
É possível notar que, mesmo que as discussões a respeito da especificidade da
literatura ainda reverberam, pois se questionam, ainda hoje, as produções culturais que
perpassam por algum tipo de condicionamento criativo, como aponta Colomer (2003).
Buscando legitimar a literatura juvenil, uma das questões enfrentadas pelos estudiosos
da área diz respeito à necessidade de defender a existência de particularidades na
literatura destinada ao jovem.
É o caso, por exemplo, dos debates surgidos a partir da polêmica decisão do
Prêmio Jabuti, em 2018, de agrupar as categorias infantil e juvenil em uma única
categoria, o que gerou resistência por parte de pesquisadores da literatura infantil e
juvenil, bem como de escritores15. A argumentação de que a solenidade de premiação
era um evento longo e cansativo não pareceu suficientemente convincente para a
mudança, ainda mais que a decisão veio da premiação que inaugurou, no Brasil, as
premiações para a literatura juvenil, em 1959, ano de sua primeira edição.
Apesar do caminho traçado até agora, que envolveu desde o investimento das
editoras, das premiações literárias, de pesquisadores dos cursos de Letras, nem sempre é
simples atestar a existência de um campo literário juvenil. Seguramente, tal discussão
ganha fôlego por girar em torno do conceito de valor. Segundo Jaime Ginzburg (2004),

Entre os elementos que podem ser examinados em cursos


universitários de Teoria da Literatura, está o valor. Os estudantes
devem saber distinguir uma boa obra literária de uma obra sem
interesse, um autor relevante de um nome sem importância. Devem

15
―Jabuti é criticado por mudanças, e curador polemiza com autores‖. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/06/jabuti-e-criticado-por-mudancas-e-curador-polemiza-
com-autores.shtml. Acesso em: 8 set. 209.

41
fazê-lo não aleatoriamente ou por impulso emocional, mas com base
em argumentos fundamentados em um conhecimento seguro.
(GINZBURG, 2004, p. 98).

Ginzburg (2004) chama a atenção para o fato de que a ideia de valor promove
debates em torno da qualidade da obra literária. Para ele, a seleção de obras com ou sem
valor deve partir de determinados critérios e não de um critério pessoal de gosto. Para
ele, contudo, a análise da história da literatura esclarece que a ideia de valor da obra
literária, muitas vezes, tem como base a noção de cânone, pois a atribuição de valor para
uma obra não é feita a esmo, mas com base em referências historicamente firmadas.
Essas referências de obras e de autores estão disponíveis nos manuais de história
literária e começam a ser estudadas já no Ensino Médio, com a articulação do ensino de
literatura com os vestibulares, que seguem os valores canônicos advindos da
universidade.
Nessa perspectiva, é preciso analisar a discussão à luz do caráter excludente que
a tradição literária possui, pois ela deixa uma série de segmentos em segundo plano,
inclusive, a literatura escrita por mulheres, ao que a crítica literária feminista vem se
opondo e promovendo o resgate de autoras esquecidas pela historiografia literária,
promovendo a valorização de escritoras de literatura. Ginzburg (2004), então, confronta
a obra de Harold Bloom, que, para ele, tem uma visão bastante elitista do fazer e do ler
literatura: ―Mais importante é o fato de que se trata de uma teoria autoritária da
literatura, que legitima a postura elitista de ensino, sustentando que é parte da
concepção do fenômeno literário o fato de que poucos podem compreendê-lo‖
(GINZBURG, 2004, p. 106)16.
Visões elitistas sobre o valor literário promovem a compreensão errônea de que
a literatura juvenil é uma literatura menor por se destinar a um público específico.
Ainda a associação da literatura juvenil, seja em catálogos editoriais, ou mesmo em
pesquisas acadêmicas, com a leitura infantil, mostrando que ainda há um longo caminho
a percorrer para que, de fato, os estudiosos da literatura compreendam a distinção entre
os dois campos.

16
As críticas de Ginzburg a Bloom se referem às ideias expressas em sua obra, de modo geral, e não a
uma específica. Entre os livros de Bloom citados por Ginzburg estão Angústia da influência e Cabala e
crítica, O cânone ocidental e Gênio. Ginzburg cita, inclusive, as entrevistas de Bloom a revistas como
Veja e Época como sendo os textos que permitiram com que o público brasileiro se familiarizasse com a
obra do pesquisador.

42
Emili Teixidor (1995) defende que os livros destinados à juventude não se
caracterizam pela moral que possam conter, mas pelo quanto, por meio dessas leituras,
os jovens podem se desenvolver e afirmar a sua identidade e escolher seu lugar em um
mundo movente e ambivalente. Teixidor (1995) defende que a literatura destinada ao
jovem pode contribuir com a afirmação de sua identidade e com a escolha de seu lugar
no mundo. A literatura pode, então, favorecer o entendimento dos jovens de suas
próprias experiências e em relação ao modo como ele atuará no mundo.
A literatura juvenil mostra preocupações com o processo de maturação do
público, as problemáticas relacionadas a ele e o apresenta formas distintas de enxergar a
relação consigo mesmo, mas também com o outro. Não raro, essas narrativas versam
sobre a conquista do desenvolvimento acadêmico, social ou amoroso, bem como
apresenta a conquista da autonomia da personagem principal que, comumente, é jovem.
Teixidor (1995) entende que a literatura juvenil tem particularidades que fazem
com que elas sejam destinadas para determinado público; essas características não a
tornam menos literária, ou com menos qualidade estética. Para ele, entre as
características da literatura juvenil estão:

A busca da identidade pelo protagonista, o envolvimento do leitor no


desenvolvimento dessa identidade, o uso de fórmulas de literatura
popular que, nesse caso, é de mistério, respeito total pela idade dos
leitores ideais sem transgredir em nenhum momento os segredos que
preservam essa idade dos mistérios da vida, atenção para apresentar
ou apontar alguns desses mistérios de forma psicologicamente
adequada para que não prejudiquem em nenhum caso o
amadurecimento dos jovens leitores, uma intenção didática
manifestada na exposição luz e entretenimento da história da filosofia,
as notas éticas sobre formas de caminho e a ênfase claramente
favorável aos direitos das mulheres e seu esquecimento ao longo da
história sem agressividade. (TEIXIDOR, 1995, p. 10, tradução
nossa)17.

O escritor espanhol aponta, na citação, três aspectos a respeito das características


da literatura juvenil. O primeiro, que é a busca da identidade, é fator presente nessa

17
La búsqueda de la identidad por parte de la protagonista, la implicación del lector en el desarrollo de
esa identidad, la utilización de fórmulas de literatura popular que en ese caso es la de misterio, el
respeto total a la edad de los lectores ideales sin transgredir en ningún momento los secretos que
preservan esa edad de los misterios de la vida, atención a presentar o apuntar algunos de esos
misterios de forma psicológicamente adecuada para que no dañen en ningún caso la maduración de los
lectores jóvenes, una intención didáctica manifiesta en la exposición leve y entretenida de la historia de
la filosofía, los apuntes éticos sobre formas de vía y el subrayado claramente favorable a los derechos
de la mujer y a su olvido a lo largo de la historia sin agresividad. (TEIXIDOR, 1995, p. 10).

43
literatura. Os protagonistas passam por um processo de amadurecimento ao longo da
narrativa, no qual tem seus dilemas resolvidos, e, ao final, saem mais seguros e
entendendo melhor aos seus dilemas. É o caso de Sapato de Salto, de Lygia Bojunga
(2006). O livro conta a história de Sabrina, uma menina criada em um orfanado e
adotada aos onze anos. Na nova casa, sofreu abusos sexuais por parte do pai adotivo.
Após ser recolhida por sua família biológica, constituída por uma tia e pela avó materna,
contempla o assassinato da tia que a acolheu. Mais tarde, precisa se prostituir para poder
cuidar de sua avó. Ao final da narrativa, se afasta da prostituição, com o auxílio de uma
nova família adotiva, mas as marcas de suas vivências são percebidas mesmo após a
solução de seus problemas.
Um segundo aspecto apontado por Teixidor (1995) é sobre a apresentação das
problemáticas de forma psicologicamente adequada. Considerando que as obras não se
destinam aos adultos, mesmo que esses possam ter interesse pela obra, como ocorre, por
exemplo, com O mundo de Sofia, publicada para ser lida pelo público jovem, mas que
despertou o interesse do grande público (TEIXIDOR, 1995), as obras destinadas aos
jovens, são, geralmente, redigidas de modo a não contrapor a maturidade dos leitores. É
o que acontece com O diário de Anne Frank, escrito pela judia Anne Frank (2015), que
recebeu adequações, quando foi publicado, no que tange à linguagem, especialmente,
nas discussões de Anne a respeito de sexo e dos problemas conjugais dos pais.
O terceiro aspecto revelado por Teixidor (1995) é em relação às questões éticas
reveladas nas obras. Em linhas gerais, as obras não podem conter dubiedade nos
julgamentos e valores éticos apresentados. É o caso de obras que apresentem uma visão
eticamente pensada frente a uma situação crítica. Podemos citar a obra O olho de vidro
do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós (2004), que encena a relação de uma
criança com seu avô e mostra como aquele vislumbra o mundo deste, que enxerga o
mundo com um olho de vidro. A delicada relação entre os dois conduz o leitor na
imersão em um mundo de fantasias descortinado pelo olho de vidro:

Um dia virei meu avô. Minha mãe me vestiu de pirata, no carnaval.


Coloquei aquela venda no olho. Eu desejava retirar a venda que cobria
o meu olho e me impedia de ver melhor. Faltava luz para o meu olhar.
Nesse momento, eu me imaginei com um olho de vidro, como aquele
do meu avô e comecei a imaginar como era a vida dele. Foi então que
me acostumei com aquela venda nos olhos. Com um olho eu via as
fantasias, as máscaras e confetes. Com o outro eu invadia os sonhos,
via navios e encontrava tesouros. Com um olho eu via as pessoas no

44
carnaval e com o outro eu as imaginava em um baile de reis e rainhas.
(QUEIRÓS, 2004, p. 11-12).

Os três aspectos da literatura juvenil presentes na discussão de Teixidor (1995)


deixam claro que o que caracteriza a literatura juvenil não é a existência de textos
inferiores, mas, sim, de uma organização estética que se volta a esse público, cuja
maturidade está acontecendo.
Há, nas obras juvenis, um processo de identificação que ocorre de forma mais
natural quando o protagonista vivencia adversidades comuns aos jovens, mesmo que
possibilitem o contato com experiências muito distantes. Os conflitos psicológicos
despertam melhor atratividade por parte dos leitores jovens quando vivenciados, na
literatura, por personagens semelhantes a ele, mesmo que essa personagem tenha uma
história de vida diferente da do leitor.
Acerca do processo de consolidação da crítica literária juvenil brasileira, é a tese
de Ceccantini, Uma estética de formação: vinte anos de literatura juvenil brasileira
premiada (1978 – 1997) que se constitui como o primeiro estudo de fôlego acerca da
literatura juvenil, pois parte do estudo de vinte anos da literatura juvenil premiada,
entendida como uma das instâncias de legitimação da literatura juvenil. Apesar disso,
ainda não é fácil localizar pesquisas que apresentem uma historiografia da literatura
juvenil. Buscas em bancos de teses da Capes retornam quatorze pesquisas, em nível de
mestrado e doutorado, a respeito da constituição de um campo literário juvenil18. Ainda
assim, eventos, congressos livros e periódicos mantém a discussão sobre esse campo,
permitindo que a crítica literária juvenil se consolide.
Malu Souza (2003) reflete, também, sobre o processo de consolidação da
literatura juvenil. Para ela, uma questão relevante no período do boom da literatura
infantil e juvenil diz respeito ao fato de que a tentativa de invalidar a qualidade dessa
produção caminhava paralelamente ao crescimento das publicações na área. Para ela, a
escola foi de grande motivação nesse crescimento, tendo em vista que muitos livros
eram publicados com fichas de leitura com foco na rede escolar.
Souza (2003) defende a hipótese de que

18
Foram consideradas somente as pesquisas com o ―juvenil‖ no título. Há, ainda, pesquisas que abordam
a literatura juvenil sob o viés da estética da recepção e que analisam a relação entre livro e leitores. Há,
também, pesquisas que enfocam na obra de um único escritor ou escritora.

45
[...] o aumento da produção e a ampliação da faixa de idade a ser
atendida por livros catalogados como juvenis estariam diretamente
ligados ao espaço deixado em aberto pela fragilidade do ensino de
leitura e literatura nas nossas escolas, uma vez que a leitura de textos
literários (como confirmam muitas pesquisas) não vem fazendo parte
nem do lazer, nem da formação profissional dos professores em geral.
(SOUZA, 2003, p. 15).

Contrariamente à prerrogativa da autora, que defende que a literatura juvenil


ocupa um lugar vazio deixado pela escola no imaginário leitor da maioria dos sujeitos,
parece-nos, contudo, que o lugar vazio é ocasionado, antes, pela dificuldade de acesso
aos bens culturais por parte da maior parte da população. Do mesmo modo, devido aos
números negativos em relação à leitura, certamente, a mesma população enfrenta
dificuldade para ter acesso, inclusive, à produção juvenil. A pesquisa Retratos da leitura
no Brasil realizada no ano de 2001 (SNEL, 2001), dois anos antes da publicação da
pesquisa de Souza (2003), evidencia a dificuldade das classes mais baixas em acessar
materiais não didáticos quando comparado às classes mais altas: enquanto que a Classe
A tem fácil acesso a livrarias, as Classes D/E têm um acesso limitado e recorrem,
portanto, ou a bancas de jornal ou a igrejas. Os dados revelam, assim, que as classes
mais altas conseguem mais acesso a obras ficcionais de qualidade, tendo em vista o
maior acesso a livrarias (SNEL, 2001).
A última publicação da pesquisa Retratos da leitura no Brasil apresenta aspectos
consideráveis, também, sobre os comportamentos leitores dos brasileiros, como o fato
de que somente 33% dos brasileiros relatam não ter nenhuma dificuldade para ler,
porcentagem que, segundo Failla (2016), é menor a cada edição da pesquisa.
Notamos, na pesquisa, que a barreira na formação de leitores
contemporaneamente se associa com as dificuldades na leitura, o que aumentou do ano
2011 para o ano de 2015, momento em que foi feita a última pesquisa. Reafirmamos,
com os dados, que entre as maiores dificuldades para a leitura precisa-se voltar o olhar
para a possibilidade de acesso aos bens culturais.
A associação com a escola favoreceu o crescimento da literatura infantil e
juvenil brasileira, como apontado por Souza (2003), porém, há que se reconhecer
existência de outros fatores, como a adequação das temáticas que tratam e
problematizam questões pertinentes aos jovens. Tanto o fortalecimento da crítica
literária quanto o investimento maciço das editoras contribuem para o fortalecimento
desse mercado.

46
No Brasil, Alice Martha (2014), mais recentemente, aponta que a produção
literária brasileira já se caracteriza por ter:

Marcas formais e temáticas diversificadas, apropriadas à faixa etária


de seus leitores e inerentes ao contexto sociocultural em que transitam
autores e receptores. Com linguagem questionadora de convenções e
normas, técnicas mais complexas de narrar, as obras contemporâneas
tratam de assuntos anteriormente proibidos a leitores mais jovens –
morte, separações, violência, crises de identidade, escolhas,
relacionamentos, perdas, sexualidades e afetividades –, temas que
podem levar à sistematização, ainda que precária, das linhas mais
evidentes na produção contemporânea: amorosa, fantasia, psicológica
(introspectiva), suspense e/ou terror, policial, realismo cotidiano ou
denúncia, folclore, histórica, entre outras. (MARTHA, 2014, p. 12-
13).

A literatura juvenil, em pleno processo de expansão, apresenta ao leitor opções


para diversos gostos literários. As temáticas predominantes apresentadas pela
pesquisadora evidenciam que o jovem deixa de ser visto como uma figura à sombra do
adulto, preparando-se para essa fase da vida, mas, sim, como sujeitos que têm uma
identidade própria em construção, vivenciando e adquirindo experiências de sua fase da
vida e não à espera de se tornar adulto.
É, então, necessário extrapolar a discussão sobre a literatura juvenil para além
dos da defesa da qualidade literária. Mesmo que já tenha seu espaço consolidado, a
crítica precisa a considerar por meio de diversas óticas e perspectivas de análise,
principalmente, devido ao seu crescimento contemporaneamente.
De fato, quando se deixa de questionar a literatura juvenil tem ou não validade,
ou, pelo menos, quando esse debate não é o centro das problematizações, é possível que
as diferentes vertentes teóricas no campo da literatura sejam válidas para a análise,
também, dos livros para a juventude, o que, por sua vez, contribui para que qualidade da
produção literária a esse público seja prioridade.

1.3 Crítica literária feminista no Brasil

A crítica literária feminista está no cerne dos estudos do que Marlise Matos
(2008) chama de ―campo de gênero e feminista‖, que atua de modo à ressignificar o

47
campo científico, por meio de um viés emancipatório da condição de subordinação,
opressão e subalternização das mulheres em relação ao patriarcado (MATOS, 2008, p.
334). Há, no Brasil, uma história no campo de estudos de gênero e feminista que
possibilitou que, hoje, os estudos dialogassem com diversas áreas, tornando-se cada vez
mais diversificado, pois foi se metamorfoseando ao longo de sua existência.
Assim, a crítica literária feminista amplia a compreensão acerca das estratégias
por meio das quais as representações de gênero se relacionam, ou rompem, com valores,
crenças e atitudes no cerne de uma sociedade patriarcal. Ela se ocupa, ainda, do estudo
das relações de gênero no campo editorial e das diferenças dos espaços ocupados por
homens e mulheres nos processos de produção literária. Há, também, uma terceira
vertente da crítica literária feminista: a que estuda as leitoras e o modo como,
historicamente, elas foram se apropriando da leitura, a partir de sua tardia escolarização
e como o mercado foi vislumbrando esse novo público, ao qual era destinada,
inicialmente, uma produção própria: com romances sentimentais e melodramáticos,
ambientados em espaços julgados tipicamente femininos.
Em Uma história do feminismo no Brasil, Céli Regina Jardim Pinto (2003) traça
uma retrospectiva do movimento feminista no Brasil destacando o alcance e conquistas
do movimento ao longo de sua existência. A autora ressalta a dificuldade de se escrever
sobre essa história devido à natureza fragmentada do feminismo, com inúmeras
manifestações, objetivos e propósitos. O modo de atuação das feministas também torna
difícil a reconstrução de uma história do feminismo, pois ele costuma envolver de
reuniões em casas de intelectuais a encontros com mais de três mil participantes, e,
muitas vezes, a reunião restrita obtém mais alcance do que um evento grandioso.
Ao se olhar para a história do feminismo, observamos a existência de algumas
ondas, momentos que houve modificações e lutas características de cada uma das ondas
feministas.
Antes das demarcadas ondas, no Brasil, é Direitos das mulheres e injustiça dos
homens, de Nísia Floresta (1810-1885) a obra a promover problematizações acerca dos
direitos das mulheres de modo intenso19. Nessa mesma época, segundo Constância
Duarte (2003), é possível perceber a ampla utilização de materiais jornalísticos para a

19
Como aponta Isabela Campoi (2011), acreditava-se que o livro de Floresta era uma tradução
livre de A Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft (1759-1797). Hoje,
contudo, sabe-se que é uma tradução de Woman not inferior to man, de Mary Wortley Montagu
(1689-1762).

48
luta feminista, tendo em vista que há uma gama de jornais e revistas publicados com o
objetivo de divulgar as pautas da luta das mulheres.
Para Marlise Matos (2010), a primeira onda aconteceu o entre o fim do século
XIX e início do século XX até 1932, foi expressa pela luta pelo voto pelo chamado
movimento sufragista, que era uma luta pelos direitos políticos, lideradas por Bertha
Luz. Mesmo que as sufragistas tenham alcançado o direito ao voto e essa luta tenha sido
bastante significativa na busca pelos direitos, havia, ainda, outra tendência, mais radical
frente ao que se denominava como dominação do homem. O grupo que se posicionava
de modo mais radical frente à dominação masculina é chamado por Pinto (2003) de
feminismo malcomportado, pois fazia um enfrentamento concreto em relação às
desigualdades de gênero, além de envolver tanto uma parcela intelectualizada, mas
também anarquistas e líderes operárias.
Em 1949, foi publicada a obra O segundo sexo, de Simone de Beauvoir. A obra
aponta o fato de que a mulher é construída sempre a partir do referencial masculino,
superior, enquanto as feminilidades são vistas como negativas, o que faz com que, caso
a mulher queira alcançar projeção, precisa incorporar características atribuídas
socialmente ao homem. Beauvoir (2009) também evidencia que os homens são dotados
de um poder que, historicamente, fez com que a mulher fosse constituída como o Outro:

A história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os


poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado,
julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos
estabeleceram-se contra ela; e foi assim que ela se constituiu
concretamente como o Outro. (BEAUVOIR, 2009, p. 207).

Ao entender que a mulher se constrói à sombra do homem, a partir dele


entendido como normativo, ideal, Beauvoir (2009) inicia o segundo volume da obra
com a célebre afirmação ―Ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖ (BEAUVOIR,
2009, p. 99). Essa afirmação demonstra que as normas de atuação da mulher em um
mundo dominado pelo homem são aprendidas, e não naturais, como se acreditou
durante tanto tempo. Assim, as mulheres são socializadas, desde o nascimento, em um
mundo patriarcal e vão aprendendo, gradativamente, formas de comportamento e
aspectos culturais necessários para que sejam consideradas mulheres.
Marcada pela existência de uma gama de pautas feministas, a segunda onda
feminista no Brasil acontece em 1970, fruto de engajamento político e social bastante
intenso. 1975 foi tornado o Ano Internacional da Mulher: ―[...] logo estendido por todo

49
o decênio (de 1975 a 1985), tal o estado de penúria da condição feminina, e tantas as
metas para eliminar a discriminação‖ (DUARTE, 2003, s.p.). Surgem, em diversas
regiões do Brasil, eventos, organizações, encontros, entre outros, com o intuito de
problematizar a condição da mulher. Para Matos (2010): a segunda onda se caracterizou
como resistência à ditadura civil-militar, de um lado, e, de outro, o enfrentamento ao
domínio masculino, à violência sexual e luta pelo direito ao exercício do prazer. A
eclosão da segunda onda do movimento feminista no Brasil durante a ditadura civil-
militar revela uma parte significativa de mulheres que se engajaram em uma luta que
envolvia a busca pela conquista dos direitos civis, mas, também, a denúncia da condição
da mulher em uma sociedade patriarcal.
Para Pinto (2003), boa parte das pautas feministas em 1970 foi elaborada por
feministas exiladas que, fora do país, podiam perceber mais de perto os movimentos que
aconteciam em outros países. Heloísa Buarque de Hollanda (2018), em Explosão
feminista: arte, cultura, política e universidade, relata sua história pessoal em relação à
aproximação com o feminismo. Para ela, foi somente em 1982 quando estava estudando
fora, que ela percebeu que, fora do Brasil, o feminismo não tinha o mesmo estigma
negativo e já dispunha de um número significativo de estudos. Foi só então que ela
menciona ter se percebido feminista, pois, até o momento, estava imbuída de uma visão
estereotipada a respeito do feminismo. Como ela sublinha, muitas das feministas, nessa
época, passaram um tempo fora do país, fosse por exílio ou por outras razões, e, no
contato com o feminismo em outros lugares, podiam encontrar os estudos feministas
mais desenvolvidos.
No Brasil, o movimento feminista foi fortemente marcado pelas militâncias que
visavam o alcance da democracia, o que impactava no modo com o qual o feminismo
era condicionado dentro das pautas: devido ao momento histórico, as discussões sobre
os direitos das mulheres acabavam sendo percebidas como menores.
Entre as principais contribuições da segunda onda foi o início da utilização do
termo gênero como categoria de análise. Ao ampliarem a discussão para além da
diferenciação sexual entre homens e mulheres, foi possível começar a perceber que o as
assimetrias tinham base nas construções sociais e culturais a partir do sexo e manifestas
nas relações de gênero, que não somente atribuíam funções diferentes para o masculino
e o feminino, mas, principalmente, as valoravam de formas diferentes. O gênero,
portanto, é a manifestação e hierarquização dos papéis sociais de gênero.

50
Já a terceira onda feminista brasileira (MATOS, 2010) foi caracterizada por uma
intensa participação das mulheres no processo de redemocratização do país. Esse
movimento, iniciado, segundo Pinto (2003), em 1979, com a anistia aos presos e
exilados políticos, trouxe, ao Brasil, militantes que haviam sido a vanguarda da
esquerda brasileira e que, de volta ao Brasil, compartilhavam novas ideias, trazidas do
exílio. Começou a haver maior participação da mulher na política. Segundo Pinto
(1979), houve intensa participação das mulheres no processo de redemocratização
brasileiro. Também surge o que Pinto (1979) chama de ―feminismo difuso‖, que se
caracteriza pela identificação e análise das diferentes experiências entre as mulheres.
Começa-se a perceber, então, que categorias como raça e classe deveriam ser abraçadas
pela categoria gênero de análise, pois as mulheres passavam por vivências diferentes,
marcadas pelo cruzamento entre as três categorias.
A terceira onda feminista, no Brasil, a partir do gênero enquanto categoria de
análise, amplia os estudos a partir das produções culturais com base na crítica feminista,
seja por um viés histórico, documental, ou mesmo das produções contemporâneas. A
análise das representações, em nosso caso, literárias, permite entender como as obras
revelam as marcas das sociedades nas quais se inserem. Alexandra Santos Pinheiro
(2007), por exemplo, em tese intitulada Para além da amenidade - O Jornal das
Famílias (1863-1878) e sua rede de produção, interroga as condições de leitura e das
leitoras a partir da literatura publicada no Jornal das Famílias.
As três ondas do movimento feminista, então, promoveram, cada uma em seu
tempo, avanços na luta das mulheres. Se a primeira onda se caracterizou por um
movimento bastante centralizado em pautas específicas, a segunda e a terceira onda
permitiram que essas pautas se multiplicassem, encontrando, gradativamente, a
multiplicidade de experiências pelas quais passa o feminino.
As lutas feministas no Brasil ocorridas em 1970 tiveram que enfrentar um
inimigo duplo: o patriarcado e a ditadura civil-militar, o que, sem dúvida, fez com que o
feminismo brasileiro ganhasse características próprias. Se, por exemplo, em países
como Estados Unidos e França o aborto já era legal e seguro na década de 1970, em
1980, no Brasil, ainda em 2015, votava-se um projeto de lei, PL 5069/201320, de autoria

20
PL: 5069/2013:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F1BBBBBA3905B663D86A
1 D8 A7470D858.proposicoesWeb1?codteor=1402444&filename=Tramitacao-PL+5069/2013. Acesso
em: 30 jan. 2019.

51
de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para impedir que mulheres praticassem o aborto
mesmo em caso de estupro. Outro dado para análise é o fato de que o feminismo, no
Brasil, acaba por atender mais pontualmente às mulheres brancas: se, para elas, as taxas
de feminicídio reduziram, para as negras e para as indígenas, ampliaram-se
significativamente, como aponta o último Mapa da Violência21. Os dados evidenciam
que, devido às raízes profundas das desigualdades de classe e raça, o alcance do
feminismo não é igual para todos os grupos de mulheres, pois as mais escolarizadas,
brancas e pertencentes a classes sociais mais elevadas serão mais beneficiadas com o
discurso de equidade que está incluso nas pautas feministas.
Em 2010, Marlise Matos (2010) delineia o surgimento de uma quarta onda, em
artigo intitulado ―Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista
a partir do sul global?‖, no qual faz uma proposta de teoria feminista a partir das
experiências da América Latina e, também, do Brasil, pois defende que é preciso
desconstruir uma visão hegemônica nas discussões teórico-feministas, pois as demandas
das mulheres latino-americanas são distintas das demandas das mulheres europeias e
estadunidenses, e as teorias cunhadas nesses lugares tendem, muitas vezes, a serem
tomadas como modelos para lugares que têm experiências de gênero e do patriarcado
bastantes diversas desses lugares.
Para a pesquisadora, quatro aspectos confirmam o surgimento de uma quarta
onda. O primeiro se relaciona à multiplicação das demandas do feminismo: ―[...] por
intermédio da elaboração, implantação e tentativas de monitoramento e controle de
políticas públicas para as mulheres que tenham claramente o recorte racial, sexual e
etário, bem como a busca do poder político, inclusive o parlamentar‖ (MATOS, 2010,
p. 69). Ao serem exigidas novas abordagens, no campo das políticas públicas, para
mulheres pertencentes a grupos minorizados, é necessário que essas abordagens sejam
pensadas a partir das condições das mulheres latino-americanas. Tais demandas vêm
obtendo certo respaldo com o surgimento de iniciativas legais, como a Lei nº 11.340, de
7 de agosto de 2006, a chamada Lei Maria da Penha, que favoreceu o crescimento das
denúncias de violência contra a mulher.
O segundo aspecto é a ―criação de novos mecanismos e órgãos executivos de
coordenação e gestão de tais políticas no âmbito federal, estadual e municipal‖

21
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Fonte:
https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em 30 nov.
2019.

52
(MATOS, 2010, p. 69). Há, no campo das políticas públicas, não somente ações
isoladas, mas ações realizadas de modo dialogado entre os poderes federal, estadual e
municipal, como as discussões mais recentes acerca da pouca presença da mulher nos
cargos políticos. Sabino e Lima (2015) apresentam, no artigo ―Igualdade de gênero no
exercício do poder‖, uma análise da disparidade entre a presença de homens e mulheres
nos espaços políticos, que permite vislumbrar a diferença dos lugares ocupados pela
mulher nesse espaço. Por mais que ainda haja bastante desigualdade, se percebe um
movimento, por parte de grupos feministas, para corrigi-las.
O terceiro aspecto se relaciona à criação de ONG‘s, fóruns e redes feministas
―sob a influência das inúmeras redes comunicativas do feminismo transnacional e da
agenda internacional das mulheres‖ (MATOS, 2010, p. 69). Há diversas iniciativas que
buscam integralizar as discussões a respeito das lutas das mulheres e promover o
crescimento do debate.
O quarto e último aspecto diz respeito à necessidade de o feminismo atuar em
uma perspectiva trans ou pós-nacional sob o esforço de duas frentes: ―uma luta por
radicalização anticapitalista, por meio do esforço de construção da articulação entre
feminismos horizontais, e de uma luta radicalizada pelo encontro de feminismos no
âmbito das articulações globais de países na moldura Sul-Sul‖ (MATOS, 2010, p. 69).
Há, então, especialmente a partir do século XXI, feminismos, não mais no singular, e o
reconhecimento de que é preciso considerar um enfrentamento anticapitalista e anti-
hegemônico, bem como a consideração de outros movimentos sociais.
Essa ampliação contribui para o questionamento de diversos aspectos do próprio
feminismo, tendo em vista que os feminismos ocidentais tendem a colonizar e a
suprimir os conflitos e diferenças oriundos das vidas das mulheres que pertençam a
classes, raças, religiões, culturas e castas distintas, fazendo como haja uma visão
reducionista que inserem essas na categoria de ―as outras‖.
Retomando o gênero como categoria de análise, que será base para análise dos
papéis sociais representados nas narrativas, serão consideradas, principalmente, as
discussões elaboradas nos seguintes trabalhos: ―Sobre la categoria gênero: uma
introduccion teórico-metodologica‖, de Teresita de Barbieri (1993); e ―Gênero: uma
categoria útil para análise histórica‖, de Joan Scott (1995).
O gênero começa a ser utilizado no cerne dos estudos feministas em meados da
década 1960, como aponta Teresita de Barbieri (1993), com o ressurgimento dos
movimentos feministas. Nesse momento, as feministas puderam perceber que não havia,

53
nas disciplinas sociais e humanas, informações suficientes para explicar a razão da
subordinação, nem uma história que mostrasse a gênese e o desenvolvimento da
dominação e do predomínio dos homens sobre as mulheres.
Das primeiras hipóteses formuladas pelas feministas, destacamos a que afirma
que a subordinação existe por uma questão de poder que não se manifesta somente por
meio da autoridade do estado, pois ele é localizado em diferentes espaços sociais, e
pode ser percebido por meio de uma voz imperativa, mas também transvestido por
sentimentos de afeto, ternura e amor.
Barbieri (1993) defende que foi necessário, a partir daí, voltar as atenções para a
relação entre natureza e cultura para revitalizar hipóteses que explicavam a
desigualdade a partir do determinismo biológico para que se comprovasse que a
explicação da desigualdade era social, cultural e política. A utilização do conceito de
gênero no campo feminista possibilitou que se conhecessem os meandros das
assimetrias de gênero, e o modo como a associação entre o corpo biológico com o
gênero construído social e culturalmente faz com que os sujeitos elaborem a si próprios
de acordo com categorias externas e limitantes. Já o desvio a essa lógica provoca
tensões seja do sujeito em relação a sua própria identidade quanto no que se refere aos
grupos sociais desse sujeito.
O gênero enquanto categoria de análise abriga o conjunto de práticas, símbolos,
representações, normas e valores sociais elaborados a partir da diferença sexual. O
estudo das sociedades e das manifestações culturais com base no gênero almejam, como
aponta Joan Scott (1995), rejeitar o determinismo biológico para explicar as assimetrias.
Para além das formas de subordinação, nosso estudo se interessa pelas formas de
resistência representadas, tendo em vista que o poder encontra formas de promover a
sua própria manutenção. Como se vê em Barbieri (1993), o poder:

Produz verdades, disciplina e ordem, mas também está sempre em


perigo e ameaçado de se perder. Por esta razão, não bastam leis e
regulamentos, ameaças e punições exemplares. Os dominados têm um
campo de possibilidades de reajuste, aparente obediência, mas real
desobediência, resistência, manipulação de subordinação. Assim, os
lugares de controle sobre as mulheres [...] também são espaços de
poder das mulheres: o reprodutivo, o acesso ao corpo e a sedução, a

54
organização da vida doméstica. (BARBIERI, 1993, p. 160, tradução
nossa)22.

As estratégias de resistência delineadas nas narrativas de nosso corpus são


percebidas nas maneiras como as personagens, especialmente as adolescentes, lidam
com a expressão física, com as mudanças de seus corpos na transição da infância para a
adolescência. Ao receberem a gramática do gênero feminino de modo mais incisivo
quando entram na pré-adolescência, as personagens mais novas enfrentam o discurso
limitador de suas mães e avós. Considerando o que aponta Scott (1995) sobre o fato de
que a história do pensamento feminista é uma história de recusa à construção
hierárquica entre masculino e feminino, defendemos que é necessário questionar as
representações de gênero, pois é essa atitude que pode contribuir para que se revertam
assimetrias historicamente construídas.
No campo dos estudos de gênero e feminista, subscreve-se a crítica literária
feminista. Com o propósito de investigar as relações entre gênero, mulher e literatura,
ela permite reverificar e questionar de que modo se constitui a nossa tradição
historiográfica, tendo em vista o perceptível favorecimento masculino por parte das
premiações e instâncias de legitimação da literatura. Igualmente, favorece o resgate de
escritoras que não obtiveram valorização em sua época. Possibilita, ainda, que se
delineiem aspectos relacionados à produção, editoração e circulação da literatura escrita
por mulheres, seja em uma perspectiva histórica ou se centrando nas publicações
contemporâneas.
Elaine Showalter ([1980] 1994), em A crítica feminista no território selvagem,
defende que há dois tipos de crítica literária feminista. O primeiro estuda estereótipos da
mulher presentes na literatura, questionando essas formas de representação a partir da
percepção da dominação masculina; o segundo volta-se à produção de mulheres e à
análise da história, bem como à estrutura da escrita de mulheres. A partir de então, passa
a ser questionado, de modo mais assertivo, o privilégio masculino do campo das letras,
mas também se começa a resgatar escritoras de literatura esquecidas pela historiografia
literária, bem como a produção contemporânea.

22
Produce verdades, disciplina y orden, pero también siempre está en peligro y amenazado de perderse.
Por ello no bastan leyes y normas, amenazas cumplidas y castigos ejemplares. Laslos dominadaslos
tienen un campo de posibilidades de readecuación, obediencia aparente pero desobediencia real,
resistencia, manipulación de la subordinación. De ahí entonces que los lugares de control sobre las
mujeres [...] sean también espacios de poder de las mujeres: el reproductivo, el acceso al cuerpo y la
seducción, la organización de la vida doméstica. (BARBIERI, 1993, p. 160).

55
Showalter (1994) foi determinante para a ampliação dos estudos acerca da
literatura produzida por mulheres. Um dos avanços conquistados por suas discussões é a
consideração de que as mulheres não são estudadas de modo específico por se
constituírem um grupo unívoco, ou que irão, necessariamente, escrever por meio de
uma perspectiva feminista. A estudiosa considera, contudo, que a história das mulheres
escritoras é atravessada pelo patriarcado e pelas assimetrias de gênero, e isso possibilita
a leitura da produção literária das mulheres por uma perspectiva feminista, já que o
machismo é observado não somente na constituição do campo literário, mas, também,
em diversas obras escritas por mulheres.
Para Dalcastagnè (2012), ainda no século XXI, há monopólio de voz na
literatura brasileira, tendo em vista o pouco espaço cedido para autores e temáticas que
não estejam entre os detentores da cena literária. É fundamental, então, questionar o
privilégio masculino, branco e heteronormativo no campo literário; reinventar os modos
de operação de premiações nacionais e abandonar preconceitos frente à valorização da
multiplicidade de vozes, sejam elas as que elucubram suas vivências, enquanto
escritoras, ou as que as representam. Faz-se, então, urgente a multiplicidade de vozes e
experiências no cenário literário.
No que tange especificamente à literatura juvenil, é necessário entender como
ela apresenta personagens mais libertas dos condicionamentos sociais relacionados ao
gênero, e como essa libertação é representada.
No que diz respeito ao estudo da relação mulher e literatura, tem relevância
histórica o Grupo de Trabalho da ANPOLL A mulher na literatura. Está em atuação
desde 1985 e contribui para impulsionar e centralizar parte dos estudos desenvolvidos
nesse campo. Por estar em atuação desde o período de redemocratização brasileiro,
indica o fortalecimento dos estudos feministas e de gênero no campo literário desde
então. Para Duarte (2010):

Hoje, podemos dizer (diferentemente de dez ou vinte anos atrás) que


conhecemos nossas primeiras escritoras, que estamos mais atentas aos
valores agregados às figuras femininas, que a revisão crítica dos
códigos culturais encontra-se em processo, e que, por fim,
enfrentamos a questão do cânone e da ausência de escritoras na
maioria das antologias. E é esse esforço, realizado por dezenas de
pesquisadoras ao longo das últimas décadas, que está permitindo a
reconstrução da história literária feminina brasileira. A diversidade
dos aspectos investigados, aliada a um aprofundamento do
conhecimento teórico metodológico, começa a atender aos principais

56
problemas inerentes aos estudos, ao mesmo tempo em que mais e mais
questões se colocam a todo instante. (DUARTE, 2010, p. 23).

Se, hoje, deparamos com um cenário propício à investigação sobre


representações de mulheres no Brasil, ele foi, certamente, fruto de forte atuação por
parte de pesquisadores engajados com a crítica literária feminista. Cada vez mais, os
aspectos investigados se multiplicam, permitindo que o campo se amplie. Então, se há
algumas décadas havia carência de estudos no campo feminista e de gênero, hoje,
cursos de extensão, graduação e pós-graduação, bem como as publicações sobre o tema
vão modificando o cenário dos estudos a respeito da mulher e literatura.
A criação da Editora Mulheres, como aponta Zahidé Muzart (2010), foi decisiva
para a ampliação da participação da mulher no campo literário. Dedicada, desde 1996, a
reunir publicações de mulheres cujas obras foram esquecidas pela historiografia
literária, a editora teve inspiração em editoras de outros países, que, muito
anteriormente, já resgatavam escritoras não valorizadas pela historiografia literária.
Muzart (2010) explica: ―[...] a inspiração nos veio das várias editoras feministas já
existentes desde muito tempo como a Des Femmes, na França, a mais antiga, Um
Cuarto Próprio, que existe há 25 anos, no Chile, a Virago, na Inglaterra, com mais de
trinta anos de existência‖ (MUZART, 2010, p. 169). No Brasil, também temos a Quintal
Edições, outra editora que se propõe a publicar somente mulheres. Fundada em 2015
pela editora mineira Carol Magalhães, ela tem como missão priorizar as mulheres em
todas as etapas da cadeia produtiva de um livro, tanto que até o design tem sido feito
por uma equipe de mulheres.
Não raro, vista com olhos enviesados pela crítica, o avanço das teorias
feministas e da crítica feminista impulsionou o que Rita Terezinha Schmidt (2002)
chama de ―virada historiográfica‖, que é como a pesquisadora nomeia a atividade de
resgatar as obras de autoria de mulheres, recuperando-as e dando visibilidade às obras
marginalizadas pela historiografia literária. Certamente, não é somente essa a função da
crítica literária feminista, especialmente após a virada do século XXI, em que esses
estudos se multiplicaram sobremaneira e passaram a dialogar com outros campos de
estudo. Schmidt (2002) faz uma síntese do que, para ela, têm sido as principais
contribuições da crítica literária feminista:

[...] Tal resgate da voz e presença das mulheres escritoras no período


pós-independência, a preocupação com a representatividade e

57
representações de e por mulheres nas redes sociopolíticas e culturais
do século XIX, os debates sobre configurações do cânone e o poder
dos críticos em lhe conferir legitimidade têm sido,
inquestionavelmente, o grande investimento da crítica feminista, a
qual emerge como uma das formas vitais de intervenção na construção
nacional/cultural das subjetividades, na medida em que coloca em
questão as determinações ideológicas dos códigos interpretativos e de
valor que autorizaram a atividade literária como um privilégio de
homens letrados. (SCHMIDT, 2002, p. 109).

Analisar as representações advindas de obras escritas por mulheres possibilitou,


assim, a formulação de indagações no que tange ao cânone e aos críticos, tendo em vista
o poder deste na legitimação de autores. Igualmente, questionaram-se as formas de
representação das mulheres em diferentes contextos sociopolíticos e culturais no século
XIX. Quando realiza essa gama de estudos, os estudos feministas mostram o quanto eles
se associam à construção das subjetividades, profundamente associadas a aspectos
ideológicos em um país em que a atividade literária foi, durante a história, um privilégio
dos homens letrados.
A respeito da atividade literária enquanto privilégio dos homens letrados,
Dalcastagnè (2012) coordenou um estudo de fôlego acerca do mercado editorial e suas
configurações no que tange a autores e personagens. Parte dela, a que discute os
aspectos sociais de autores e personagens das obras, está publicada no texto ―A
personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004‖ e revela que três
quartos dos autores publicados são homens.
Também Regina Zilberman (2017) desenvolve uma análise das premiações
brasileiras na qual conclui que, entre os autores mais indicados, é possível fazer uma
leitura pela ótica de gênero, tendo em vista que constata, como Dalcastagnè (2005), a
presença majoritária de escritores homens: dezesseis escritoras23 contra quarenta e cinco
escritores24. Se a pesquisa de Dalcastagnè investigou a década de 1990 e o início do

23
Adriana Lisboa, Adriana Lunardi, Ana Luísa Escorel, Ana Maria Machado, Carol Bensimon, Carola
Saavedra, Eliane Brum, Elvira Vigna, Luciana Hidalgo, Luisa Geisler, Marcia Tiburi, Maria José
Silveira, Noemi Jaffe, Paloma Vidal, Tatiana Salem Levy e Veronica Stigger. (ZILBERMAN, 2017, p.
430).
24
Alberto Martins, Alberto Mussa, Amilcar Bettega, Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, Bartolomeu
Campos Queirós, Bernando Kucinski, Bernardo Carvalho, Carlos de Brito e Mello, Chico Buarque,
Chico Lopes, Daniel Galera, Domingos Pellegrini, Edney Silvestre, Evandro Affonso Ferreira, Ferrez,
Flávio Cafiero, Francisco Dantas, Helio Pólvora, João Almino, João Anzanello Carrascoza, João
Gilberto Noll, João Ubaldo Ribeiro, Joca Reiners Terron, José Castello, José Luiz Passos, Julián Fuks,
Luiz Ruffato, Luiz Vilela, Marcelino Freire, Marco Lucchesi, Marcos Peres, Menalton Braff, Michel
Laub, Miguel Sanches Neto, Paulo Lins, Paulo Scott, Raimundo Carrero, Reinaldo Moraes, Ricardo

58
século XXI, o estudo de Zilberman (2017) se centra nos anos de 2010 a 2014.
Percebemos, portanto, que no campo da autoria, houve poucas alterações, já que 75%
dos autores selecionados pelas premiações foram homens.
A seleção de, majoritariamente, escritores homens pelas premiações impacta em
menor validação das escritoras mulheres, e, igualmente, incita a reflexão acerca das
condições materiais de homens e mulheres para escreverem. Para o linguista Dominique
Maingueneau (1995), a literatura não é somente uma maneira por meio da qual os
sujeitos, localizados historicamente, tomam de empréstimo para exprimir-se, mas é,
também ―[...] um ato que implica instituições, define um regime enunciativo e papéis
específicos dentro de uma sociedade‖ (MAINGUENEAU, 1995, p. 7). Assim, associar
a afirmação do linguista aos estudos sobre o espaço restrito da mulher na literatura
evidencia que há um domínio enunciativo masculino e que papéis sociais de gênero se
refletem no campo literário.
É a partir do reconhecimento das diferentes condições de acesso ao espaço
literário que Anzaldúa (2000) afirma que as mulheres do terceiro mundo, especialmente,
as mulheres negras, não podem esperar um teto todo seu para escrever, pois jamais terão
alguém que as financie, tendo em vista que não há quem considere seus textos e suas
histórias dignos de serem ouvidos. Segue citação da autora:

A mulher do terceiro mundo se revolta: Nós anulamos, nós apagamos


suas impressões de homem branco. Quando você vier bater em nossas
portas e carimbar nossas faces com ESTÚPIDA, HISTÉRICA, PUTA
PASSIVA, PERVERTIDA, quando você chegar com seus ferretes e
marcar PROPRIEDADE PRIVADA em nossas nádegas, nós
vomitaremos de volta na sua boca a culpa, a auto-recusa e o ódio
racial que você nos fez engolir à força. Não seremos mais suporte para
seus medos projetados. Estamos cansadas do papel de cordeiros
sacrificiais e bodes expiatórios. (ANZALDÚA, 2000, p. 231).

Se, durante muito tempo as publicações das mulheres eram esporádicas e


raramente legitimadas, hoje, a crítica literária feminista tem lugar na reconstrução da
historiografia literária e, consequentemente, na reverificação do lugar ocupado pela
mulher que escreve. Também as relações de gênero representadas nas obras vêm sendo
bastante estudadas. Duas problemáticas decorrem dessa abertura: a primeira, a negativa,

Lísias, Rodrigo Lacerda, Rogério Pereira, Ronaldo Lima Lins, Rubens Figueiredo, Sérgio Rodrigues,
Xico Sá, Zuenir Ventura. Verifica-se, pois, o predomínio do gênero masculino, que corresponde a 75%
dos indicados. (ZILBERMAN, 2017, p. 430).

59
muitas vezes, por parte das escritoras, de um rótulo feminino, pois se pergunta
intensivamente às escritoras se elas têm uma escrita feminista ou feminina. Virgínia
Leal (2008) faz, em tese de doutorado, uma retomada das escritoras e de suas respostas
à questão, que, dentre suas variações, indagam a autenticidade da escrita das mulheres.
A outra problemática diz respeito à multiplicidade das experiências do que é ser mulher,
pois é necessário refletir: basta a mulher ser protagonista nas produções literárias se
suas experiências não são multifacetadas?
A crítica literária feminista possibilita a divulgação da produção literária de
mulheres quando a coloca em cena por meio de pesquisas, sejam as obras
contemporâneas ou não. Também é possível considerar as pesquisas que se voltam para
a produção masculina, que, muitas vezes, também revela as marcas do machismo e do
patriarcado nas relações de gênero representadas.
Leal (2010) analisa as recusas ao rótulo ―literatura feminina‖ por parte de muitas
escritoras. Ela indaga quais são os motivos que as levam a evitar caracterizar sua obra
como feminina, ou com características femininas. Igualmente, questiona o que quer
dizer literatura feminina, pois a busca por questionar a feminilidade na literatura
produzida por mulheres talvez seja uma maneira de inferiorizar tal literatura ao dar-lhe
um estigma. Certamente, não se pergunta ao homem se a literatura que ele produz é
masculina: a literatura masculina é considerada, em equívoco, claro, como território
neutro. Independente se as escritoras assumam ou não o rótulo ―literatura feminina‖,
―[...] a pergunta persiste. Sinal que, apesar de alguns avanços terem efetivamente
acontecido, as assimetrias de gênero contemplam também o campo literário‖ (LEAL,
2010, p. 193).
Ao retomar a fala das escritoras a respeito das marcas da feminilidade em sua
escrita, é possível perceber que, apesar de ser uma pergunta que incomoda, ela persiste
em entrevistas. Marina Colasanti, por exemplo, tem sido forte questionadora dessa
recorrente indagação às escritoras. Para ela:

[...] a sociedade não quer de fato saber se existe uma literatura


feminina. O que ela quer é colocar em dúvida a sua existência. Ao me
perguntar, sobretudo a mim, escritora, se o que eu faço existe
realmente, está afirmando que, embora possa existir, sua existência é
tão fraca, tão imperceptível, que é bem provável que não exista
(COLASANTI, 1997, p. 37).

60
Também Nélida Piñon, quando indagada sobre existir uma escrita de mulher,
responde com certa ironia: ―Eu aceito que se fale em escrita de mulher. Mas eu vou
sempre me opor porque há embutido nessa designação um preconceito restritivo
(risos)‖. É perceptível que há uma necessidade, por parte de quem entrevista, de
vincular as temáticas da autora ao seu gênero, como se este direcionasse a sua literatura.
A necessidade de conduzir a escrita de autoria feminina a um rótulo é tão forte que a
chamada da entrevista com Piñon é: ―Nélida Piñon: ‗detesto o termo literatura
feminina‘‖ (TORRES, 2017, s.p.)25. Invertendo-se os papéis, é impensável atribuir a
mesma pergunta para escritores homens, sobre uma suposta escrita masculina.
Invariavelmente, tais perguntas delimitam certo preconceito, mesmo com escritoras que
já tenham seu lugar consolidado.
Para Leal (2008), questionamentos a respeito da existência de uma literatura
feminina existem porque se parte da pressuposição de que as escritoras são um grupo
com um propósito comum, ou, ainda, que tenham atributos que compartilham as
mesmas experiências. Não se supõe que sejam indivíduos com trajetórias que refletem
obras também individuais.
As discussões sobre aspectos da autoria contribuem para deslindar os modos
como são elaboradas as representações. Para Teresa de Lauretis (1994, p. 209), ―A
representação do gênero é a sua construção‖, e estudar as formas de representação do
gênero permite desconstruir os lugares nos quais os gêneros foram fixados e
naturalizados, ampliando as possibilidades de desenvolvimento da subjetividade.
Questionar os modos de representação de gênero na literatura escrita por
mulheres é importante, ainda, pelo fato de que autores falam a partir de seus lócus de
enunciação. A escrita é resultado de suas experiências enquanto sujeitos. As mulheres,
por enfrentarem experiências distintas das dos homens, podem deixar entrever tais
experiências em suas produções literárias, bem como a escrita de autoria masculina
evidenciará aspectos relacionados às vivências de seus autores.
Esse é um aspecto da produção literária que Virginia Woolf já apontava. Em Um
teto todo seu ([1929] 2014), ela reflete sobre as condições nas quais as mulheres
produzem ficção nas primeiras décadas do século XX, atestando que há uma
disparidade entre as possibilidades de homens e mulheres escreverem ficção. Como ela

25
Entrevista com a escritora Nélida Piñon: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/nelida-pinon-detesto-
termo-literatura-feminina-21281900. Acesso em: 6 nov. 2019.

61
aponta, ―[...] uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se
quiser escrever ficção; e isso, como vocês verão, deixa sem solução o grande problema
da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção‖ (WOOLF, 2014,
p. 12). O homem, por sua vez, não precisa se preocupar com as lides do lar, o cuidado
com as crianças, entre outras funções atribuídas às mulheres, e que sonegam tempo livre
fundamental para a escrita.
Na obra, que é uma simbiose de ficção e realidade, Woolf (2014) traz à tona seu
desejo de entender os efeitos da dependência financeira da mulher em relação ao
homem, pois essa dependência afasta muitas mulheres da escrita ficcional. Para a
escritora:

[...] a ficção, quer dizer, o trabalho imaginativo, não cai como uma
pedra no chão, como na ciência; na ficção é como uma teia de aranha,
presa por muito pouco, mas ainda assim presa à vida pelos quatro
cantos [...]; essas teias são o resultado do sofrimento de seres humanos
e estão inteiramente presas a coisas matérias, como saúde, dinheiro e a
casa que se mora. (WOOLF, 2014, p. 63-64).

Pensar na relação mulher e ficção é, certamente, trazer à tona, como bem


elucubra a autora, a necessidade de um teto todo seu.
Já em 1949, em O segundo sexo, Beauvoir (2009) observa a condição da mulher,
bem como sua dependência em relação ao homem. Para ela, é possível entender a
condição feminina como à sombra da condição masculina, tida como normativa e ideal.
A fêmea, como ela mostra, não ocupa o papel de sujeito, pois a mulher é sempre
construída em contraponto ao macho, que, tomado como referência, serve como base
para interpretação de comportamentos atribuídos à fêmea.
Assim, mesmo que por vieses diferentes, Woolf e Beauvoir deixam entrever
aspectos relacionados à condição financeira da escritora. Se Woolf (2014) descreve a
problemática no plano particular, centrando-se na necessidade de uma renda para que a
mulher escreva, Beauvoir (2009) explana que a consciência de si não é definida somente
por meio da sexualidade, mas, também, por meio da estrutura econômica da sociedade
na qual a mulher está localizada. Para ela, a consciência da mulher acerca de si própria:
―depende da estrutura econômica da sociedade, estrutura que traduz o grau de evolução
técnica a que chegou a humanidade‖ (BEAUVOIR, 2009, p. 87).
Se em Um teto todo seu Woolf (2014) aponta para a série de dificuldades de a
mulher se tornar escritora, tendo em vista que nem sempre dispõe de tempo e de

62
recursos, em ―Profissões para mulheres‖ ([1942] 2016) evidencia ser a escrita uma
profissão relativamente fácil, pelo menos quando comparada às outras. Mas,
igualmente, defende que a questão financeira é elemento fulcral sob o qual se deve
pautar a análise da relação homem/mulher e a conquista de espaços por parte da mulher
dentro da sociedade. Tanto que é pela relevância do dinheiro que considera a escrita
uma profissão mais viável às mulheres, pelo menos, quando comparada às outras, pois,
tratando de sua própria experiência, defende que, ao iniciar sua trajetória na escrita,
havia poucos obstáculos concretos em seu caminho: ―[...] Escrever era uma atividade
respeitável e inofensiva. O riscar da caneta não perturbava a paz do lar. Não se retirava
nada do orçamento familiar. Dezesseis pences bastam para comprar papel para todas as
peças de Shakespeare‖ (WOOLF, 2016, p. 10).
Certamente, diversas questões se modificaram desde o momento em que Woolf
(2014; 2016) elucubra sobre as dificuldades materiais para que a mulher se torne uma
ficcionista. Apesar das mudanças, pensar sobre as condições por meio das quais as
mulheres se tornam escritoras é, ainda, uma urgência, bem como é urgente pensar o
espaço cedido à mulher nos textos literários. Guardamos, novamente, observações no
que tange ao lugar social ocupado por Woolf, já que a entrada da mulher no mercado de
trabalho sobre a qual ela reflete diz respeito a mulheres privilegiadas economicamente,
pois para as mulheres de camadas mais baixas, o trabalho sempre foi uma realidade.
Voltando-nos às representações de gênero, considera a relação
dominador/dominado acaba por deixar marcas nas subjetividades. Para Erika
Apfelbaum (2009), no Dicionário crítico do feminismo, qualquer relação de dominação
impõe sujeição ao dominado e elabora uma dissimetria estrutural no modo como os
sujeitos constroem suas próprias identidades. A autora explica que a relação de
dominação se dá em duas vias: por um lado, um grupo, o dominador, é visto como
representante e criador das normas e valores sociais entendidos como corretas e ideias.
O outro grupo, o dominado, não possui suas normas e valores validados porque esses
são vistos como particulares, e, em muitos casos, como exótico. No caso das mulheres,
é comum que elas sejam vistas como frágeis, delicadas ou extremamente emotivas. Ao
nascer em uma sociedade que a vê dessa forma, a mulher acaba por formular a sua
identidade pautando-se nesses preceitos.
Para Bourdieu (2007), o que valida a perpetuação das assimetrias de gênero é
que há uma espécie de cumplicidade por parte do dominado. Este, diante da dificuldade
de construir ideias que não sejam centradas no discurso do dominador, ―[...] não dispõe

63
de outras figuras e formas de pensamento do que as que têm em comum com o
dominante‖ (BOURDIEU, 2007). O ―contrato social‖ firmado, então, circunscreve
discursos, corpos e a naturalização das formas de violência simbólica que se instituem.
O autor define a violência simbólica como:

[...] violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que


se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da
comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento, ou, em última instância, do
sentimento. (BOURDIEU, 2007, p. 7- 8).

Por ser tão sutil, ela nem sempre é percebida pelo dominado, que, por não dispor
de outros modelos de formas de se relacionar, acaba por entender que a situação que
vivencia diz respeito à normalidade. Ela se institui, então, por intermédio da adesão que
o dominado não pode deixar de conceder ao dominante, após absorver e naturalizar as
formas de violência na qual está imerso desde o nascimento.
A violência simbólica, contudo, não pode ser compreendida como menos
perigosa ou menos abusiva do que a violência física. Se esta é mais facilmente
percebida, por chegar ao nível do concreto, aquela deixa marcas profundas por ser
constante e provocar efeitos no modo como o dominado se compreende e, assim,
compactua, por vezes, com a violência, e, ainda, porque, para ser desfeita, precisa de
uma tomada de consciência por parte do dominado.
As relações de poder tornam-se mais profundamente perigosas pelo fato de que
se perpetuam por meio de uma relação de troca, indo além de uma repressão unilateral,
de cima para baixo. É necessário que o dominado possibilite a perpetuação de tal
violência. Contudo, mais do que mera aceitação do poder, a violência é propagada por
meio de um atravessamento de discursos. Assim, a violência simbólica é um meio de
perpetuação de poder, pois parte da ordem de polarização para situar os sujeitos
socialmente e culturalmente, fazendo com que, ao nascer, o indivíduo já atue de acordo
com os lugares socioculturais a eles destinados, e qualquer reconstrução da
subjetividade exigirá enfrentamento e desconstrução de si. Até, então, antes de se
desconstruir, o sujeito participará de uma ―cumplicidade ativa‖ (DEVREUX, 2014, p.
89) que envolve tanto dominador quanto dominado. É essa cumplicidade ativa que
favorece a durabilidade da violência simbólica.
As ideias de Bourdieu (2007) no que tange à violência simbólica são, contudo,
modalizadas por Constância Duarte. A pesquisadora afirma que é uma alternativa mais

64
fácil vitimizar a vítima ao dizer que esta também é culpada pela agressão imposta pelo
dominador:

[...] questiono sua explicação simplista de que a dominação masculina


se perpetua porque as mulheres naturalmente a aceitam. Ao invés de
buscar a explicação da conduta agressiva no próprio agressor, e o
porquê das categorias sociais estarem tão assimiladas ao masculino,
parece mais fácil vitimizar, mais uma vez, a vítima. (DUARTE, 2017,
p. 1).

Pontuamos, então, que as relações de poder não partem de uma condição


assimilada e permitida pelo dominado. Quando se aceita a afirmação de que o dominado
permite a violência, dificultam-se, também, as possibilidades de luta contra um sistema
opressor, pois se concorda a ideia de que ele, o grupo dominado, é responsável pela
violência que sobre. O machismo apresentado por Duarte como norteador da violência
simbólica na relação dominador/dominado entre masculino e feminino encontra eco nas
vozes ficcionais. Para citar somente um exemplo, trazemos Olímpico, personagem de A
hora da estrela, forte representante da sociedade patriarcal, que tenta provar,
recorrentemente, sua segurança e sua superioridade frente à Macabéa:

— Eu não entendo o seu nome — disse ela. — Olímpico? Macabéa


fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela nunca entendia
tudo muito bem e que isso era assim mesmo. Mas ele, galinho de briga
que era, arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não sabia
responder. Disse aborrecido: — Eu sei mas não quero dizer!
(LISPECTOR,1998, p. 44).

Macabéa sempre se desculpa quando enfrentada por Olímpico, pois ela introjeta
as marcas da violência simbólica: aprendeu que o homem é superior e forte e a ele deve
obediência. Questioná-lo ou enfrentá-lo não são alternativas frente ao machismo de
Olímpico. A personagem representa, assim, a violência simbólica que afeta toda a sua
condição e sua atuação no mundo.
Ao inscrever, portanto, nossa proposta na crítica literária feminista, intentamos
contribuir para o questionamento dos modos de representação do protagonismo da
mulher na literatura destinada à juventude, tendo em vista ser, este, um sujeito em
formação. É necessário evidenciar com quais relações de gênero a juventude leitura se
encontra ao se deparar com obras a ela dedicadas, e em que medida elas apontam para a
emancipação da mulher e para relações de gênero menos assimétricas e por meio de

65
quais estratégias de enfrentamento às diversas formas de violência que se apresentam na
literatura juvenil.

1.4 Personagens mulheres na ficção na ficção juvenil e o referente histórico


brasileiro

Neste subcapítulo, verificamos de que maneira as mulheres são representadas na


ficção juvenil e como se delineia o momento histórico no qual o campo literário juvenil
começa a conquistar a sua independência do campo literário infantil. Para tanto, ele se
subdivide em três tópicos. No primeiro, ―A personagem de ficção‖, fazemos um estudo
da personagem, que é categoria da narrativa sobre a qual nos debruçamos
prioritariamente neste trabalho. No segundo, ―A construção da personagem na literatura
juvenil‖, buscamos entender as particularidades da construção como ela é elaborada no
campo literário juvenil, pois, se percebe que ela é elaborada com foco no público ao
qual as narrativas se destinam. No terceiro, ―O Brasil, entre o fim da ditadura civil-
militar e os primeiros anos de redemocratização‖, analisamos o momento histórico no
qual o corpus de análise foi publicado.

a. A personagem de ficção

A moça tecelã, conhecido conto de Marina Colasanti (2015), uma das autoras
que compõem o nosso corpus, tem como protagonista uma moça que estava, há muito
tempo, entediada devido à solidão que a acompanhava em seus dias. Sentindo-se
sozinha, decide tecer um marido. Este, ao perceber que a moça poderia tecer o que fosse
possível imaginar, ordena que ela teça todos os dias objetos frutos do desejo dele. A
moça, ao se ver infeliz, pois passava os dias a tecer, puxa um fio do marido e o
desmancha completamente, voltando outra vez à solidão.
Ao observar o modo narrativo presente em A moça tecelã, é possível se
perguntar: de que forma uma narrativa com personagens elaborados no campo do

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maravilhoso podem provocar, no leitor, o sentimento de verossimilhança, já que não se
tratam de personagens que figuram na estrutura do real? Essa pergunta ganha relevância
quando se trata da literatura juvenil, tendo em vista que os modos fantástico e
maravilhoso compõem grande parte das narrativas juvenis.
Essa questão pode ser respondida a partir da ideia paradoxal proposta por
Antonio Candido (2007) em A personagem do romance. Candido (2007) pergunta:
―como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe?‖ (CANDIDO, 2007,
p. 55). O crítico e sociólogo responde que: ―[...] a criação literária repousa sobre este
paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de
um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da
mais lídima verdade existencial‖ (CANDIDO, 2007, p. 55). Assim, o que irá despertar o
interesse do leitor e provocar nele sentimento de verossimilhança não é o quanto as
personagens se parecem com sujeitos reais, mas, sim, as criações que comunicam, ao
leitor, uma verdade existencial.
Na literatura juvenil, a dificuldade em provocar um sentimento de
verossimilhança está em dialogar com um público bastante distinto de quem produz o
texto ficcional. Às vezes, há o uso de uma linguagem extremamente pobre ou
infantilizada como recurso para atração do público, o que nem sempre provoca o efeito
desejado. Por outro lado, a compreensão da juventude como um grupo social
homogêneo provoca resistência seja por parte dos leitores.
A ficção comunica, então, por meio da criação de algo que não existe, que não
pode ser percebido no nível do real, mas, nem por isso, é inverossímil. É verossímil
porque, no plano da ficção, as ações e os comportamentos das personagens precisam ser
coerentes não com a realidade do leitor, mas com a da história contada.
Beth Brait, em A personagem, indaga: ―Que tipo de manipulação requer esse
processo capaz de reproduzir e inventar seres que se confundem, em nível de recepção,
com a complexidade e a força dos seres humanos?‖ (BRAIT, 1985, p. 13). O
questionamento de Brait (1985) ausculta o modo por meio do qual o escritor manipula a
linguagem e a realidade ficcional de forma que seja possível formar seres tão complexos
quanto os seres humanos
Para entender essa dualidade da escrita ficcional, que diz respeito à capacidade
de promover efeitos de sentido mesmo não sendo realidade, analisamos a personagem
enquanto elemento narrativo, como apontou Brait (1985), cujas características se
emaranham às do ser humano.

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Para Bakhtin (2011), a personagem age de modo análogo a como agimos, não
raro, na vida. Na vida, contudo, ao entrar em contato com outras pessoas, partimos de
manifestações de caráter e de personalidade e embasamo-nos em definições e conceitos
de caráter que aprendemos socialmente. Na literatura, por sua vez, partimos de um todo
previamente construído por alguém alheio àquele universo de papel e tinta: o autor. Se
os sujeitos reais são multifacetados e plurais, de modo algum conseguiríamos apreender
o outro, em sua plenitude; na arte, contudo, todos os dados da personagem devem ser
considerados: porque ―O homem na arte é o homem integral‖ (BAKHTIN, 2011, p. 91).
Voltando a Candido (2007), é possível entender que a verossimilhança na ficção
é possível porque a personagem, constituída por um elemento externo, o escritor, se
apresenta com um número limitado de características, pois o ser ficcional precisa ser
assimilado integralmente no que tange à sua personalidade, diferentemente do que
ocorre com os seres humanos, que são misteriosos e imprevisíveis naturalmente. As
personagens, mesmo que pareçam extremamente fragmentadas, têm uma personalidade
que:

[...] é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que


delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que
é, na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação,
que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos
significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor,
sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza.
(CANDIDO, 2007, p. 57).

A personagem precisa, então, ser elaborada de forma que deixe transparecer a


sensação de complexidade e riqueza, mas que, ao mesmo tempo, encerre em si os
elementos necessários para que a narrativa não pareça desarticulada no que tange aos
demais elementos da narrativa.
Para Bakhtin (2011), na vida, quando estamos diante de outro, estamos diante de
um número ilimitado de informações a respeito dele, tendo em vista que, tanto em
relação ao corpo exterior quanto ao corpo interior - a alma, o sujeito tem acesso somente
a uma fração do outro: ―[...] Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo
essa diferença de horizonte, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em todo
único e tornar-se uma só pessoa‖ (BAKHTIN, 2011, p. 21).
No primeiro capítulo de Estética da criação verbal, Bakhtin (2011) reflete
acerca dos modos de relação entre dois elementos da produção artística: autor e

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personagem. Para ele, a relação autor/personagem é, ao mesmo, ―arquitetonicamente
estável‖ (BAKHTIN, 2011, s.p.) e ―dinamicamente viva‖ (BAKHTIN, 2011, s.p.).
Bakhtin (2011), então, entende que, por mais que a personagem seja uma criação do
autor, não pode ser vista como um produto de um indivíduo, já que não é possível tratar
vida e obra como planos individualizados. Para ele, a ficção bebe, justamente, no plano
do real, e, portanto, não está dele tão afastada. São, então, planos distintos que se
encontram.
Dialogando com a ideia de que ficção e realidade são planos distintos que se
encontram, é possível recorrer ao célebre ―A literatura e a formação do homem‖ (2002),
no qual Candido defende que todos nós necessitamos, em algum nível, de fabulação,
pois ela é fundamental para que os sujeitos elaborem e suportem a realidade. Para ele, é
profundamente necessário à existência humana exercer a fabulação, mesmo que seja em
níveis extremamente primários, como na partilha de uma anedota ou chiste.
Bakhtin (2011) esclarece que a construção de uma visão não aleatória da
personagem, ou seja, como um todo bem-acabado, exigirá do autor uma luta consigo
mesmo. Continuando, ele define autor e personagem para mostrar a relação de
reciprocidade entre um e outro. Assim, autor é entendido como

[...] o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da


personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento
particular desta. Na medida em que nos compenetramos da
personagem, esse todo que a conclui não pode ser dado de dentro dela
em termos de princípio e ela não pode viver dele nem por ele guiar-se
em seus vivenciamentos e ações, esse todo lhe chega de cima para
baixo – como um dom – de outra consciência ativa: da consciência
criadora do autor. A consciência do autor é a consciência da
consciência, isto é, a consciência que abrange a consciência e o
mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da
personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma
e que, sendo imanentes, a tornariam falsa (BAKHTIN, 2011, p. 10-
11).

É o autor, então, o responsável pela elaboração do ser ficcional, a personagem, e


pelo acabamento dado a ele, pois é o autor o agente por ela responsável. É a
personagem, por sua vez, no encontro com o leitor, quem irá levar adiante a consciência
de quem a criou, pois, o criador, no momento da construção da personagem, o fez de
modo a transcender a consciência do ser ficcional. Sendo o autor, então, a consciência
por trás da consciência da personagem, ele é responsável pela verdade que ela transmite.

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Contudo, mesmo que se trate de um todo aparentemente acabado, a personagem
é transgrediente à obra, ou seja, ultrapassa as suas fronteiras. Ao interagir com os
sujeitos que são, assim como a obra, localizados social, cultural e historicamente, as
personagens são atos responsáveis, pois nada se altera sem o outro, já que o eu não
existe sem a alteridade.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin (2014) define que os
enunciados são produtos da interação entre sujeitos situados socialmente, cultural e
historicamente. Ao entrar em contato com o outro, nosso discurso está impregnado da
carga social, cultural e histórica que nos constitui e, do mesmo modo, somos
respondidos. Por esse motivo, no contato com o outro, lidamos com o que o autor
chama de ―excedente de visão‖, conceito que ele explana em Estética da criação verbal
(2011), que diz respeito a tudo que não conseguimos apreender do outro,
independentemente do quando se vivencie com ele. O excedente de visão deve nortear a
relação com o outro:

[...] Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver


axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me
no lugar dele e, depois de ter retornado o meu lugar, completar o
horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se
descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente
concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu
conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento. (BAKHTIN,
2011, p. 23).

Se diante de um sujeito real temos uma visão parcial do outro, por isso, devemos
nos colocar no lugar do outro e compreender suas axiologias, na literatura, o outro, a
personagem, é sempre um todo apreendido – tanto o corpo externo quanto o corpo
interno – por um agente criador, e, portanto, passou por um processo de enformação
(BAKHTIN, 2011, p. 93), foi acabado esteticamente, ou seja, não há excedentes de
visão. Cada palavra contribui para o acabamento estético da personagem, e apresenta,
do mesmo modo, como defende o filósofo da linguagem: ―[...] valores plástico-picturais
e espaciais que são transgredientes à consciência e ao mundo da personagem, à sua
diretriz ético-cognitiva no mundo, e o concluem de fora, a partir da consciência do outro
sobre ele, da consciência do autor-contemplador‖ (BAKHTIN, 2011, p. 25).
Reafirmamos, assim, sobre a transgrediência da personagem, a importância de se
considerar a sua ressignificação a partir da responsividade ativa do outro, do leitor, que,
fora da consciência da personagem, possibilita uma relação dialógica com a obra.

70
A diretriz ético-cognitiva da personagem é transcendente a ela e reflete, também,
a diretriz ético-cognitiva do seu agente criador. Bakhtin (2011), então, defende que a
vida interior da personagem é enformada tanto na autoconsciência quanto na
consciência do outro. A alma da personagem se constrói em uma relação semelhante ao
entendimento do corpo exterior do outro: do mesmo modo como no corpo exterior,
também não tenho como apreender o todo interior se não tiver o que ele chama de
―ativismo que vem de fora e visa ao mundo interior do outro‖ (BAKHTIN, 2011, p. 94).
Por conta disso, a alma, do outro, enquanto todo semântico, enquanto construção
estética, é sempre predeterminada.
Como se vê, é necessário compreender autor/personagem de modo a não se
separar a arte e a vida, logo, é possível perceber que Bakhtin trata a personagem,
também, desse modo. Para ele, não se pode perceber, portanto, a personagem como
mero produto de papel e tinta.
As reflexões empreendidas por Bakhtin (2011) em Estética da criação verbal
também contribuem para o entendimento da necessidade de se pensar na necessidade da
democratização do acesso a diferentes tipos de bens culturais, entre eles, a literatura, já
que os bens culturais elucidam distintos valores ético-cognitivos. Ao contatar as obras
literárias, os leitores, e, aqui, tratamos especialmente dos jovens, têm oportunidade de
conhecer outros axiomas e outros modos de se compreender as relações humanas, mas
também a si próprios, de acordo com outras perspectivas.
Ao elucidar o processo de construção artística nas obras literárias e de sua
relação com a observação dos seres reais, recorremos a Antonio Candido (2004), que
considera a leitura literária um bem incompressível, tendo em vista seu caráter
humanizador: ―[...] A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida
em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante‖ (CANDIDO, 2004, p. 180). Na medida em que a literatura lança mão a
experiências plurais, o leitor, quando possui uma bagagem de leitura também plural, se
vê diante de situações e vivências distintas das suas, mas que o deixam se perceber
como integrantes de grupos sociais sócio, histórico e culturalmente localizados.
A personagem, como esclarece Candido (2004), foi pensada por um ser vivo.
Contudo, ela não pode ser analisada com foco nas intenções do autor, pois seria uma
análise claudicante, tendo em vista que a realidade somente comunica o sentimento da
verdade com a realidade da obra e não com o mundo externo:

71
Esta observação nos faz passar ao aspecto porventura decisivo do
problema: o da coerência interna. De fato, afirmar que a natureza da
personagem depende da concepção e das intenções do autor, é sugerir
que a observação da realidade só comunica o sentimento da verdade,
no romance, quando todos os elementos dêste estão ajustados entre si
de maneira adequada. (CANDIDO, 1976, p. 74-75).

No cerne dessas reflexões, as produções literárias são entendidas como sendo de


um determinado contexto. A obra literária carrega em si marcas da sociedade em que foi
produzida, levando, também, ressonâncias ideológicas da época, sociedade e local em
que foi constituída, bem como de quem a produz.
Esse processo é ininterrupto. Produzimos discursos que respondem a outros
discursos, e outros discursos surgirão reagindo aos nossos. À exceção do Adão bíblico,
estamos em um constante processo de reconstrução de nossos discursos: ―A vida
começa apenas no momento em que uma enunciação encontra outra, isto é, quando
começa a interação verbal, mesmo que não seja direta, ―de pessoa a pessoa‖, mas
mediatizada pela literatura‖ (BAKHTIN, 2014, p. 186). É no encontro entre os
discursos, então, que o sujeito vai se constituindo e se modificando, já que é, ao longo
de sua existência, inacabado.
A relação entre a literatura e a realidade, que se manifesta por meio da
personagem, impede que o texto literário somente como algo desvinculado da realidade.
Ao mesmo tempo, é necessário compreender que ele não é a realidade materializada. É
latente, portanto, que, por meio das personagens, o leitor se depara com construções
ficcionais que contribuem com sua percepção de relações sociais autênticas, a partir das
impressões construídas por meio da ficção.
Percebendo a confluência entre realidade e ficção, é fundamental entender as
relações entre a literatura e o entendimento de seus aspectos sociais, tema discutido por
Candido (2006) em Literatura e sociedade. O crítico evidencia o quanto os estudos que
buscam compreender os aspectos sociais da obra evoluíram, pois durante muito tempo
defendeu-se que o valor da obra dependia de ela refletir a exterioridade. Posteriormente,
em outro momento, defendia-se que os aspectos sociais não tinham relevância, e o
determinante da qualidade da obra seriam as operações formais, a estrutura, que deveria
ser articulada de tal forma que fosse, ao mesmo tempo, peculiar e independente de
condicionamentos sociais.
Em um primeiro momento, então, supunha-se que o valor de uma obra dependia
dos reflexos da sociedade na qual estava inserida. No momento posterior, defendia-se

72
que o contexto era matéria secundária. Chega-se, finalmente, ao momento em que
Candido (2006) elucida que as duas visões passam a ser entendidas como
indissociáveis. Para ele, somente compreendemos a obra:

[...] fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente


íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos
fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a
estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos
necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo
(no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição
da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2006, p. 12-
13).

Para ele, as representações sociais se apresentam, então, como ―agentes da


estrutura‖ (CANDIDO, 2006), e os aspectos sociais são mais do que mero
esquadrinhantes, pois na obra ―[...] tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua
sobre a outra‖ (CANDIDO, 2006, p. 15). Assim, os aspectos sociais presentes nas
produções literárias são aqui entendidos como fatores por meio dos quais se elaboram
os sentidos. Já os aspectos e significados são construídos tendo como forte interrogante
o momento no qual se contextualiza e se escreve.
Candido (2006), discorrendo sobre os aspectos sociais, discute o que chama de
agentes da estrutura:

É o que vem sendo percebido ou intuído por vários estudiosos


contemporâneos, que, ao se interessarem pelos fatores sociais e
psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura, não como
enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criador; e
isto permite alinhá-los entre os fatores estéticos. (CANDIDO, 2006, p.
15).

Os agentes da estrutura são os fatores sociais e psíquicos presentes na obra


literária, que não são vistos como os aspectos mais relevantes na análise literária, mas
que são elementos que estão pareados aos fatores estéticos a serem analisados. Evita-se
o risco de se utilizar a literatura como pretexto para a discussão de questões que não
estejam, necessariamente, relacionadas à literatura.
Tendo em vista o propósito deste trabalho, que é o de verificar as representações
das mulheres, entendidas aqui como agentes da estrutura, bem como seu protagonismo
nas obras de literatura juvenil, a nossa análise será pautada nas categorias personagem

73
principal e personagem secundária. A análise das personagens secundárias amplia
sobremaneira as possibilidades de obras e de leituras, tendo em vista que no período
delimitado para análise – 1980, comprovadamente, a mulher dificilmente ocupava papel
de protagonista na narrativa. Também, frequentemente, era representada como
personagem plana, e, dentro desse grupo, tanto a personagem tipo quanto a personagem
estereótipo.

b. A construção da personagem na literatura juvenil

A literatura juvenil, nos últimos anos, vem se constituindo como um campo


literário cada vez mais autônomo, pois conta com formas de produção, divulgação e
circulação próprias. Chamamos de literatura juvenil, basicamente, a literatura que:
escrita para um público amplo, dialoga com a juventude e foi a ela destinada por meio
de instâncias legitimadoras, como editoras, crítica literária, premiações literárias ou
acervos selecionados por políticas públicas; e a literatura que foi elaborada já com
destino certo: a juventude, e, portanto, possuirá um arranjo estético voltado para esse
consumidor.
As obras pertencentes ao primeiro e ao segundo grupo carregam algumas marcas
que despertam o interesse do público-alvo. Elas apresentam espaço e ambientação
limitados, sendo facilmente determináveis no contexto da narrativa; as temáticas são
possíveis de sistematização; e as normas formais também são bem demarcadas.
Outra característica da literatura juvenil é a distinção que se dá na relação
autor/leitor. O leitor é norteador, muitas vezes, do processo da escrita, já que para
despertar a atenção do público, o autor precisa conhecer os interesses, as necessidades
afetivas e problemáticas sociais e psicológicas vivenciadas pelo grupo, bem como
entender as temáticas que despertam mais interesse. Muitos autores, contudo, dizem não
destinar sua narrativa especificamente ao jovem, mas suas obras atendem, muitas vezes,
às especificidades da literatura juvenil, além de mostrar extremo cuidado na inserção da
temática sexual, que, ou não está presente ou é abordada de forma bastante sutil.
Questionamos, então, se, de fato, esse escritor não pensa na especificidade do leitor, ou
se evita rotular sua literatura para não a limitar a um único público.

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Outra particularidade da literatura juvenil é que há uma relação particular entre
autor e leitor. Para Albuquerque (2009), o jovem leitor sente-se próximo do escritor,
especialmente devido ao uso da interlocução, recurso responsável por aproximar
escritor e leitor. Para Albuquerque (2009):

Esta alteração de relacionamento do escritor com o seu público não


constitui uma limitação deste modo literário, antes, é uma
determinante fundamental, consequência natural do facto que, pelas
suas características afectivas, este jovem leitor ainda liga o prazer
estético ao lado lúdico da vida, além de rejeitar certos parâmetros
elitistas que lhe asseguram que o escritor é um ser especial que paira
acima do vulgo. Para qualquer jovem, o autor é sobretudo um
contador de histórias emocionantes, que consegue transferir para
palavras, interpretações sensatas da realidade que nos cerca.
(ALBUQUERQUE, 2009, p. s.p).

O jovem leitor, como defende a pesquisadora, possui um relacionamento distinto


com o escritor, já que sua relação com a literatura também não é distinta da relação com
o adulto. Ele entende a figura do escritor como um contador de histórias e como alguém
próximo a ele. Exemplo dessa condição é a relação estabelecida entre J.K. Rowling,
autora da trilogia Harry Potter, que utiliza as redes sociais como ponte para chegar ao
seu público, predominantemente juvenil, e que é recebida de forma muito afetiva pelos
leitores26. Mesmo no caso da literatura infantil, o contato direto com o público funciona
como estratégia de sedução do leitor. Monteiro Lobato, por exemplo, precursor de uma
literatura infantil à brasileira, costumava responder cartas dos pequenos leitores
incorporando personagens tratando do ambiente do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
No que diz respeito à estrutura narrativa, as diferenças da literatura adulta
também são encontradas. As personagens são geralmente descritas tanto em seu aspecto
físico quanto psicológico de modo tipificado para que sejam mais facilmente
assimiladas pelo público e promova mais facilmente a sua adesão. Para Albuquerque
(2009), as personagens possuem famílias comuns, têm amigos com os quais partilham
momentos bons e ruins e praticam atividades comuns ao adolescente, variando-se os
contextos sociais aos quais pertencem.

26
A relação de J.K. Rowling com os seus leitores, via redes sociais, é melhor abordada no artigo
Intermitencias de lo fantástico en la obra de J. K. Rowling: Épica, policial y sátira en un fantasy
híbrido, de autoria de Lucas Gagliardi (2018).

75
Ainda seguindo a descrição da estrutura narrativa da literatura juvenil proposta
por Albuquerque (2009), o enredo possui uma sucessão de eventos em ritmo ascendente
no qual há o suspense como elemento intensificador, com conclusão feliz. Há presença
forte de diálogos e raros monólogos. A linguagem é muito próxima da língua coloquial,
inclusive, com marcas da oralidade. Mesmo no caso de obras que fazem denúncias
sociais, os jovens são representados com as angústias e dúvidas pertinentes a fase da
vida em que estão, e a problemática social é apresentada em paralelo ao
desenvolvimento da personagem.
Uma constatação significativa feita por Colomer (2003) é que os jovens
representados são muito sensatos, mesmo estando na adolescência, promovendo uma
visão idealizada da juventude. As personagens costumam atender a uma expectativa nas
representações de modo atuando como uma espécie de modelos aos leitores. Cruvinel
(2009) também verifica algo semelhante em sua tese de doutorado. Para ela, há uma
tentativa de educar para a vida nas narrativas juvenis. É comum encontrar obras nas
quais personagens adolescentes sejam ávidas leitoras, e, desse modo, promova, por
meio da intertextualidade, convite ao leitor para migrarem a outras obras, ou, ainda,
personagens que se relacionam com descobertas históricas. De qualquer modo, a
personagem jovem mapeada por Colomer (2003) é alguém que não causa problemas,
mas, também, que tem poucos problemas sociais, pois se destaca o contexto social
privilegiado da qual participam a maior parte das personagens. Esse aspecto dialoga,
certamente, com o fato de que a literatura juvenil deve atender a dois espectadores: os
jovens e os adultos.
A literatura juvenil também é palco para a problematização de questões sociais e
do debate de temáticas que, mesmo que não estejam relacionadas diretamente à
juventude, possibilitam que as narrativas dialoguem com um contexto para além do
universo particular do jovem, favorecendo-o entrar em contato com debates acerca de
aspectos políticos e éticos.
No Brasil, discussões políticas e sociais foram bastante exploradas na literatura
infantil e juvenil nos momentos da ditadura civil-militar e no período da
redemocratização. Mesmo em obras que tinham uma temática predominante com foco
em problemáticas concernentes ao mundo do jovem, era comum a inserção de subtemas
que questionavam a situação política e os diversos aspectos a ela relacionados. Apenas
para mencionar alguns exemplos com o objetivo de esclarecer como a discussão de

76
temas políticos era feita, vejamos alguns livros juvenis que exploram a política
enquanto temática ficcional.
Stella Carr (1991), em Acordar ou morrer, cujo enredo tem o insólito como
modo narrativo, promove uma visão crítica da organização social e da ideia de
progresso assimilada pela população no contexto da ditadura civil-militar. Mesmo
permeada pelo insólito, em uma narrativa em que a personagem vive dois mundos
paralelos, um real e o outro fruto de seus sonhos, mas que entram em conflito diversas
vezes, a obra consegue extrapolar o mundo do irreal e dialogar com aspectos sociais.
De olho nas penas, de Ana Maria Machado ([1981] 1985), trata da história de
Miguel, que tem dois pais, e nasceu no Chile. A diegese aborda de maneira bastante
delicada a questão do exílio, tema abordado algumas vezes na literatura juvenil, e o
crescimento da personagem nos cinco países pelos quais passou.
A menina que fez a América ([1989] 2002), obra de Ilka Brunhilde Laurito, tem
como protagonista Fortunatella, pré-adolescente que conta sua trajetória de imigrante
italiana para terras brasileiras. Fortunatella narra, em primeira pessoa as agruras
familiares. Seu pai morre, sua mãe se casa novamente, e, nesse contexto, precisa ir se
adaptando a uma nova família ao mesmo tempo em que se adapta a uma terra nova.
Narradora-protagonista, Fortunatella é personagem bastante recorrente na literatura
juvenil: tem diálogo íntimo com o leitor. A literatura juvenil busca, comumente,
promover a metalinguagem como forma de atrair o leitor, a partir do momento que fala
diretamente com ele.
Os títulos elencados são trazidos para exemplo com o objetivo de mostrar que a
literatura juvenil possui uma gama de temáticas, conteúdos e formas de abordagens, e
em ganhando em qualidade desde 1970, quando, cada vez mais autores passaram a se
voltar para esse público.
No que se refere à análise da representação das mulheres na literatura juvenil,
mapeamos os resultados de alguns trabalhos para entender tanto o caminho percorrido
pelos pesquisadores quanto os resultados obtidos, de forma que fosse possível entender
os critérios de análise de cada pesquisa para, posteriormente, proceder à análise das
obras do corpus. É pertinente frisar que o estudo da categoria personagem perpassa pelo
estudo de outras categorias, que também serão observadas.
Dada a escassez de referenciais teóricos brasileiros, buscamos obras publicadas
em outros países, como o já citado A formação do leitor literário, empreendido na
Espanha, e resultado da tese de doutorado de Teresa Colomer (2003); Sobre literatura

77
juvenil portuguesa contemporânea: identidade e alteridade, de Francesca Blockeel
(2005), também resultado de pesquisa de doutorado; Uma estética de formação: vinte
anos de literatura juvenil brasileira premiada (1978 – 1997), tese de doutorado de João
Luís Ceccantini (2000).
Em A formação do leitor literário, Colomer analisa um corpus de 150 obras
infantis e juvenis publicadas em língua catalã ou espanhola. Colomer (2003) categoriza,
para sua análise, quatro públicos: 5 a 8 anos de idade; 8 a 10; 10 a 12 e 12 a 15 anos.
Nesta última, se enquadram as obras juvenis. No que tange às temáticas voltadas para
esse público, Colomer (2003) aponta que é nessa fase em que mais se exploram
aspectos sociais, temas relacionados a amor e sexo e temas relacionados a problemas
familiares. Contudo, os problemas abordados não estão presentes na sociedade imediata
e familiar ao leitor. Ou distancia-se temporalmente, no caso das narrativas históricas, ou
espacialmente, no caso de narrativas ambientadas fora do planeta. Em ambas as
narrativas, há o resgate de temas atuais, como racismo ou intolerância. Colomer (2003)
também aponta que a narrativa para os jovens também lida com conflitos psicológicos
centrados no amadurecimento individual do protagonista adolescente.
No que tange à estrutura e inovação literária, Colomer (2003) constata que há
pouca transgressão das normas. Apesar disso, a literatura juvenil é a que mais lida –
seguindo as categorias etárias estipuladas – com desfechos inesperados: ―No caso da
leitura adolescente são finais dramáticos, que se colocam a serviço da conscientização
cultural‖ (COLOMER, 2003, p. 291).
A pesquisadora percebe uma tendência ao protagonismo individual na qual a
personagem busca identificar um modo de ser adulto ou adolescente, ou seja, ela já se
percebe distante da infância e está elaborando uma nova identidade. Do mesmo modo,
nota que há, majoritariamente, protagonistas masculinos, e maior número de
personagens mulheres é percebido somente quando se inclui também a análise de
personagens secundárias, ou, coprotagonistas. Aqui, é forte a presença da ―figura
secundária de um tipo de mulher admirada pelos protagonistas adolescentes‖
(COLOMER, 2003, p. 300), como tias, professores e outras mulheres com vida
independente, exercendo um papel de modelo positivo de mulher adulta. No que tange a
antagonistas, a literatura para jovens não centra sua atenção em um inimigo externo,
pois a maior parte dos problemas são questões relacionadas ao adolescente.
Analisando o espaço e o cenário narrativo, Colomer (2003) obtém que a maior
parte das obras juvenis se centra no contexto familiar, havendo forte presença de

78
famílias monoparentais, e, aqui, predominam famílias constituídas de mães e crianças
e/ou adolescentes. Ainda acerca do espaço, as cidades não são vistas de modo negativo,
como na literatura infantil, por exemplo, em que há críticas acerca da extrema
urbanização ou das diferenças sociais, sendo mero cenário de fundo para o desenrolar da
diegese: ―[...] a cidade não se conota negativamente porque a crítica à sociedade
industrial se deslocou a terras distantes para denunciar seu impacto‖ (COLOMER,
2003, p. 309).
Colomer (2003) aponta que, no que tange ao narrador, há pouca interferência de
uma voz adulta. Os personagens contam por si próprios as suas histórias. Há a presença
de personagens jovens que questionam os eventos e as ações ao redor. Seja
individualmente ou em diálogo com outras pessoas, os aspectos negativos observados
pelas personagens são sempre postos em confronto com valores éticos.
Outra pesquisa é Sobre literatura juvenil portuguesa contemporânea: identidade
e alteridade, de Francesca Blockeel (2005), que investigou as marcas do nacionalismo
na literatura juvenil portuguesa. A pesquisadora atenta para a inexistência de um estudo
aprofundado sobre a literatura juvenil em Portugal em 1994, ano em que começa sua
pesquisa. O que havia, segundo ela, era alguns artigos e pesquisas sobre obras ou
autores individualmente, mas não um estudo voltado à análise de um corpus extenso.
Como mostra, é em 1980 que a produção ao jovem se avoluma, de modo similar ao que
ocorre no Brasil. A autora traça um comparativo entre o antes e o depois desse boom e
constata que o público-alvo se modificou consideravelmente, o que fez com que as
narrativas também se alterassem.
Antes, a faixa etária a qual se destinavam as produções não ultrapassavam doze
anos. A produção para os jovens era de pouca qualidade literária, tanto nas temáticas e
conteúdos quanto no aspecto da linguagem. É na década de 1980 que se nota a carência
de obras que dialoguem com a realidade dos jovens, e que, ao mesmo tempo, promova a
transição entre literatura infantil para todo o sistema literário:

A pouco e pouco foi-se descobrindo que existia uma falta de livros de


autores portugueses que fizessem a transição entre os livros ilustrados
e com pouco texto, e os de estudo, mais pesados, como, por exemplo,
de Eça de Queiroz. Nos anos 80 nota-se um aumento espantoso de
interesse pelos mais crescidos, os pré-adolescentes e adolescentes, e
daí uma explosão na produção de literatura juvenil. (BLOCKEEL,
2005, p. 127).

79
A autora evidencia que a percepção da juventude como um público em potencial
faz com que surja, em Portugal, o fenômeno formula fiction, estrutura que segue um
padrão temático, como relato de aventura, mistério ou namoro, de modo bastante linear.
O sucesso da formula fiction, não impede, contudo, o fortalecimento de romances e
novelas juvenis realistas, com foco nas problemáticas dos jovens. É na década de 1990
que este tipo de narrativa se estende ao público dos 14 aos 17 anos.
Blockeel (2005) destaca, contudo, que apesar do crescimento do ramo no que
tange ao número de vendas (nos anos 1990 a literatura juvenil já representava 35% do
mercado editorial português), não houve crescimento em relação à qualidade, pois como
surgiram muitos títulos imitando o gênero formula fiction, as narrativas eram muito
padronizadas e pouco elaboradas. Para ela, isso deixa evidente a necessidade de maiores
investimentos para essa literatura.
O estudo de Blockeel (2005) tem no espaço uma categoria de análise
fundamental, tendo em vista que o objetivo dela foi o de perceber a visão nacionalista
presente nas narrativas. Ela verificou que, por meio do espaço geográfico, é feita a
valorização da imagem nacional, dialogando diretamente com o propósito de se
construir uma imagem nacionalista do país. As narrativas analisadas por ela valorizam o
espaço da casa, mais próximo do leitor, e também monumentos e artefatos culturais, o
que reflete, além do espaço geográfico, o espaço social. O salazarismo (1933-1974)
conduziu as temáticas discutidas na literatura infantil e juvenil, principalmente, as que
circulavam sob a tutela escolar, pois havia representações de exacerbada valorização da
pátria de da história de Portugal. Já as leituras consideradas subversivas ficavam fora de
circulação:

No plano dos conteúdos é de referir que a censura instalada pelo


regime salazarista fizera com que houvesse muitas obras menores que
nada punham em causa e por isso eram toleradas. Com a liberalização
político-social pós-25 de Abril assistiu-se no plano temático a uma
abordagem mais vivida e autêntica do universo da adolescência.
Começaram a abordar-se problemas antes tabus, problemas cruciais
dos dias de hoje, como a crise dos núcleos familiares, o desabrochar
da sexualidade, os desejos de afirmação juvenil, a denúncia das
desigualdades sociais e a luta contra a alienação na sociedade
moderna. (BLOCKEEL, 2005, p. 130).

Ao comparar os estudos de Colomer (2003) e de Blockeel (2005), realizadas na


Espanha e em Portugal, observamos o quanto a existência de um governo autocrático
impacta na produção artística. A primeira considera que o espaço, na literatura juvenil,

80
era majoritariamente pano de fundo do desenrolar da narrativa, já a segunda evidencia
que era mais uma maneira de construção de uma imagem nacionalista e idealizada da
nação. Como, no Brasil, vivíamos a saída de um regime autoritário, o tempo e o espaço
são categorias de análise nas narrativas juvenis para entender se e em que medida a
violência transparece nas obras do corpus.
A literatura juvenil portuguesa, como aponta Blockeel (2005), tem fortemente a
presença de protagonistas fictícios ao lado de figuras históricas. Na literatura juvenil
portuguesa, então, não necessariamente os personagens são jovens abordando suas
próprias problemáticas, pois revelam a necessidade de se contar os percalços e as lutas
do país. Nesse processo, são valorizados os aspectos positivos dessa luta e não os
negativos.
Blockeel (2005) também aponta o quanto a literatura juvenil portuguesa busca
aproximar a ficção com a realidade das personagens. Os autores inserem dados
históricos reais e centram as narrativas no espaço de Portugal: ―apenas 6% das
narrativas do período 1974-1994 tem um cenário situado fora de Portugal e 15 % dizem
respeito às figuras míticas de outras culturas, como o Rei Artur, Kepler, Galileu ou
Mozart‖ (BLOCKEEL, 2005, p. 132).
A última pesquisa selecionada para análise, a de Ceccantini (2000), centra-se no
período que vai de 1978 a 1997, recorte temporal de seu estudo, pois, para ele, é o
momento em que a literatura juvenil se consolida como um segmento autônomo no
horizonte brasileiro.
A pesquisa, realizada em nível de doutorado, é a primeira desenvolvida no Brasil
que empreende uma análise sistemática da literatura juvenil, e tem como corpus vinte e
sete obras premiadas uma ou mais de uma vez pelas instituições: Câmara Brasileira do
Livro (Prêmio Jabuti); Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e
Associação Paulista de Críticos de Arte (Prêmio APCA).
Ceccantini obtém que 60% das narrativas se enquadram em narrativa
psicológica; 33% em narrativa de aventura e 7% em narrativa social. Desse total, pelo
menos metade trata-se de narrativas de formação.
No que tange ao espaço, pelo menos 40% são ambientados exclusivamente em
um espaço urbano, majoritariamente em capitais. Caso se considere a associação do
espaço urbano com outros, como ―[...] espaço rural, mítico, fantástico ou primitivo‖
(CECCANTINI, 2000, p. 321), esse número de eleva para 90%.

81
Nas obras que retratam grandes espaços urbanos, há oscilação entre neutralidade
e conotação negativa. Ou a cidade é abordada como um espaço que permite identificar o
espaço da narrativa, ou há uma intenção crítica, mencionando as megalópoles como
espaço caótico no qual há desarmonia ou desigualdade social, e na qual o jovem
representado está sempre em tensão. Há, portanto, muitas vezes, um discurso literário
crítico sobre o espaço urbano e as problemáticas nele presentes, como, por exemplo, a
violência e a desigualdade social.
No que tange ao tempo, há uma preferência pela manutenção de imprecisão da
demarcação temporal. Do mesmo modo, apenas 11% são localizadas em tempo muito
diferente do tempo da publicação da obra. Assim como na descrição do espaço, não há
uma preocupação sistemática dos escritores em detalhar a ação nem mesmo caracterizar
minuciosamente a época da qual se fala: ―É como se, para aquele ideal de ‗universo
urbano genérico‘ verificado no âmbito da representação do espaço, houvesse também a
contrapartida, no nível temporal, de um ‗tempo presente genérico‘ abarcando a maior
parte das obras analisadas‖ (CECCANTINI, 2000, p. 333).
É comum a não determinação nem do tempo nem do espaço, já que não há
informações como data e referências culturais e históricas. Essa, aliás, é uma
característica bastante presente na literatura infantil e juvenil. Talvez, em consequência
dos próprios contos de fadas, primeiros textos ficcionais destinados às crianças, e que
possui referência somente a um tempo e local distantes.
Há, contudo, segundo Ceccantini (2000), pelo menos 22% de obras que façam
referência à época da ditadura ou ao regime militar:

São feitas alusões à fuga do regime militar e à busca de asilo político,


à Anistia, à morte de jovens que participaram da guerrilha do
Araguaia, à militância de esquerda e sua sustentação filosófica, à
censura e à repressão (alegoricamente em A visitação do amor), a ex-
presos políticos, a Che Guevara, ao ―desbunde‖, a policiais corruptos
ex-torturadores, nos ―anos de chumbo‖. (CECCANTINI, 2000, p.
335).

As referências ao período político nas obras publicadas no período da ditadura


civil-militar ou logo depois indicam a não neutralidade, em relação à política, do
discurso literário nas obras juvenis. Mesmo em obras que não discutam,
predominantemente, o momento histórico da ditadura, há referência a ele, em algum

82
nível. Há, em menor proporção, referências a outros momentos políticos e/ou sociais
históricos, como a época da colonização, guerra de Canudos, entre outros.
Esclarecendo que não é objetivo da tese uma análise aprofundada das
personagens, Ceccantini (2000) aponta algumas tendências para a literatura juvenil no
corpus analisado. Predominam, nas obras, protagonistas únicos (CECCANTINI, 2000,
70%) sobre turmas, diferentemente de décadas anteriores por influxo de Monteiro
Lobato na década de 1920, e da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo, em que se notava
um grupo de crianças ou adolescentes protagonizando as narrativas.
Por meio de uma análise do gênero dos protagonistas, de um universo de trinta e
cinco personagens-protagonistas (considerando-se somente os indivíduos à frente ação
narrativa): ―[...] chega-se a uma proporção de aproximadamente 74% de personagens
masculinas para 26% de personagens femininas, ou, em outros termos, cerca de 1
mulher para cada 3 homens‖ (CECCANTINI, 2000, p. 341). Na pesquisa, então,
também se observa maior protagonismo masculino. Para Ceccantini, a proporção é
desconcertante, principalmente, quando se consideram dois aspectos: há superioridade
de mulheres-escritoras das obras premiadas; a já presente, à época, militância pela
igualdade nos papéis de gênero.
Sobre a presença de antagonistas, Ceccantini (2000) esclarece que identificá-las
se mostra uma tarefa complexa pelo fato de que a maior parte das obras se trata de
narrativas psicológicas, portanto, há pouca presença de uma personagem que se oponha
aos protagonistas. Em 40% das narrativas, há essa presença, e é representada por meio
de uma personagem adulta, e, predominantemente, em narrativas policiais ou de
suspense.
No que concerne à representação da família, Ceccantini (2000) obtém que 82%
das narrativas têm a presença da família, e, em 62%, há posição de destaque, de modo
associado à temática central. 38% inserem a família na narrativa, mesmo que em
segundo plano, como pano de fundo.
Das obras que inserem a família em posição de destaque, Ceccantini (2000)
utiliza os modelos propostos por Regina Zilberman, no artigo ―A representação da
família‖, do livro da mesma autora A literatura infantil na escola para mapear as
famílias representadas. Ele obtém que ―4% das representações podem ser associadas ao
modelo eufórico, 48% ao modelo crítico e 48% ao modelo emancipatório‖
(CECCANTINI, 2000, p. 366). O modelo eufórico é aquele em que a representação da
família é feita a partir de uma ―perspectiva unidimensional e francamente positiva‖

83
(CECCANTINI, 2000, p. 366). Há, nesse modelo, valorização do mundo doméstico, e
as personagens estão ali encerradas. O modelo crítico é aquele em que a família é
representada em uma perspectiva negativa, e expõe as contradições do modelo burguês
de família, que é valorizado como modelo harmônico de família, mas cujos conflitos
expõe sua fragilidade. Já no modelo emancipatório, há, assim como no modelo anterior,
uma crítica ao modelo familiar burguês, mas, diferentemente dele, há a superação por
meio da autotransformação do herói.
A personagem na narrativa juvenil, como se nota, dialoga muito de perto com
aspectos éticos concernentes, muitas vezes, ao mundo dos adultos. Parece-nos, então,
talvez pelo fato de haver uma relação estrutural direta entre adulto e jovem, a literatura
juvenil se apresenta como uma oportunidade de se cambiar experiências, tendo em vista
a existência de personagens jovens questionadores das injustiças sociais; pouco
transgressores aos valores éticos (e sempre que o fazem, há oportunidade de redenção);
buscando melhorar a si próprio enquanto sujeitos, ou seja, há, quase sempre, um
crescimento pessoal dos protagonistas; valorizando a família, mesmo que, por vezes, a
interrogando.
As personagens adultas presentes nas narrativas também precisam dialogar com
os aspectos éticos fundamentais à narrativa juvenil. Ou são adultos considerados
exemplos para os protagonistas, ensinando-os aspectos da vida em sociedade, ou mesmo
sobre como entender sua subjetividade, ou são adultos em debate com valores éticos,
mas que até o desfecho se voltam a ele completamente.
É objetivo desse trabalho, portanto, analisar as narrativas de modo que se
entenda se os resultados obtidos pelas pesquisas aqui apresentadas se aproximam ou se
distanciam das obras do corpus, e de que modo que esses resultados contribuem para o
entendimento das relações de gênero representadas nas obras.

c. O Brasil, entre o fim da ditadura civil-militar e os primeiros anos da


redemocratização

O período sobre o qual se delimita este trabalho compreende uma fase de


mudanças para os dois campos literários que norteiam as análises deste trabalho: o da
crítica literária feminista e o da literatura juvenil. Tanto um quanto outro tiveram

84
sofreram influxos, ao longo da história, dos conflitos políticos, e, no período de
transição da ditadura civil-militar para a redemocratização, não seria diferente.
Refletir sobre a relação entre literatura e história nos permite perceber o quanto a
primeira está suscetível à segunda, e torna compreensível o fato de que a circulação das
obras; a profissionalização do escritor; a seleção das temáticas, espaços, personagens e
modos de narrar, entre outras questões relacionadas à produção literária, não dependem
exclusivamente dos aspectos artísticos imbricados à obra, mas, também, às condições
materiais, culturais e políticas de cada época.
Ao considerar que os acontecimentos históricos são, muitas vezes,
condicionantes da produção literária da época em questão, almejamos entender como
ocorreu o desenvolvimento da literatura juvenil no momento em que o Brasil passa de
um Estado controlado pelo militarismo a um país que começa a acenar para a
democracia.
Adotamos, aqui, a denominação civil-militar para a ditadura compreendida entre
o período de 1964 a 1985, no Brasil. Essa denominação compreende que o golpe foi
apoiado por parte dos civis desde o início da ditadura até o seu fim, em 1985 como
aponta Demian de Melo (2012).
Cabe lembrar que a experiência da ditadura não foi exclusivamente brasileira,
mas, ocorreu paralelamente, em outros países da América Latina. Em texto intitulado
―Narrar na pós-ditadura‖, Ana Cecilia Olmos (2012) reflete acerca das vivências do
autoritarismo de Estado dos últimos regimes militares no cone sul da América Latina;
do momento de transição e dos sistemas de exclusão social advindos das políticas
neoliberais dos anos 1990. Sua discussão parte da tríade: estética, política e ética, e
versa sobre como os três campos se apresentam imbricados na escrita literária. Não
podendo estar alheia a experiência dos governos ditatoriais: ―[...] a literatura colocou em
circulação uma diversidade de estratégias narrativas que trazem a um primeiro plano a
inevitabilidade dos vínculos que, em situação de exceção social, se estabelecem entre o
estético, o político e o ético‖ (OLMOS, 2012, p. 133). Não é possível, então, que a
literatura se mantenha alheia ou intacta ao fluxo da história, e revela tanto no
desenvolvimento da indústria cultural – externo à obra – quanto no conteúdo literário –
interno à obra, a tríade apresentada por ela.
No cerne das discussões acerca do fazer literário em uma sociedade na qual a
liberdade se encontra cerceada, o discurso literário se propõe dissonante ao do poder
hegemônico. Assim, a análise crítica da literatura implica buscar compreender as

85
estratégias narrativas em diálogo com os aspectos políticos presentes na obra.
Entendemos que ler criticamente a literatura produzida no período posterior a uma
época ditatorial implica que se considere as estratégias narrativas que ―[...] concentram
um potencial crítico que, nos anos de terror, visou desestabilizar o silêncio imposto pelo
monopólio da voz do Estado e, nos anos posteriores, objetivou trabalhar pela construção
de uma memória crítica do passado imediato‖ (OLMOS, 2012, p. 133). Se a literatura
escrita no contexto ditatorial busca transgredir as barreiras dos sensores e conseguir
publicar, por meio de um discurso metafórico e velado, valores contrários aos do poder,
a literatura produzida no período posterior, já não mais sob o jugo dos sensores, almeja
construir uma memória em diálogo com os anos de repressão, pensando-os e
questionando-os.
Devido às relações irredutíveis entre o estético, o político e o ético, Olmos
(2012) defende que elas devem ser levadas em conta, pela crítica literária, quando esta
se debruça sobre as obras produzidas em diálogo com períodos ditatoriais. Sobre as
formas alegóricas utilizadas nesse período, a autora menciona que, utilizando a elipse e
a alusão, elas garantem o feito de reconhecimento do real, mas sem partir da
representação realista.
Olmos (2012) analisa romances publicados na década de 1990, todos
tematizando os períodos de ditadura vivenciados. Ao discutir as maneiras por meio das
quais abordam a violência de um sistema repressivo, ela aponta que:

Em todos esses romances retornam as cenas da violência perpetrada


pelo sistema repressivo do Estado autoritário, porém, sua
representação prescinde do cuidadoso distanciamento que fornecia a
figuração alegórica e coloca num primeiro plano narrativo a
vulnerabilidade da vítima e a crueldade do algoz. No entanto, cientes
da dimensão ética que essas cenas de horror instalam na representação
literária, esses romances apelam a estratégias narrativas que atenuam o
gesto apelativo de um realismo descarnado. É nesse sentido que pode
ser pensada a posição enviesada que o narrador assume com relação à
história que relata . (OLMOS, 2012, p. 136).

Os romances, então, buscam abranger uma realidade social que envolve as


referências às instâncias repressoras de um Estado autoritário, mas também por uma
rede de adesão social que tem sua parcela de responsabilidade na configuração do
momento histórico representado. Não há espaço, quando se considera a dimensão ética
da representação literária, para a inserção de discursos apelativos, daí a importância do
narrador e do modo como ele relata a história.
86
Nem todas as obras que circulam em momentos de repressão, contudo, são
necessariamente críticas à violência política. Como já discutimos neste trabalho, a
indústria cultural e o modo como ela ocorreu no Brasil, percebemos que o momento de
sua expansão coincidiu com a ditadura civil-militar, e acabou sendo influenciada por
esse contexto político, e pelos interesses dos que estavam no poder à época. Justamente
por manter seu caráter ―[...] aético, apolítico, aideológico e acrítico‖ (VENTURA, 2000,
p. 60) atrai a parcela menos crítica da população. A sua face mais aparente, neutra, não
é verdadeira, já que ao não se posicionar em relação à então condição do país, também
revela uma intenção.
Em um momento em que se buscava reprimir qualquer tentativa de pensamento
alheio ao projeto de nação que vinha sido construído, o fortalecimento da indústria
cultural contribuiu para que se perpetuassem obras que não questionassem os ideais do
poder hegemônico e para nivelar parte das produções artísticas no que tange à reflexão e
à crítica. Assim, o fortalecimento do mercado do livro no Brasil a partir da década de
1970 contribuiu com o veículo de ideias no esteio do projeto de nação.
Se, no plano econômico, com o decênio iniciado em 1964, o Brasil
experimentou considerável desenvolvimento, com a repressão promovida no campo da
cultura, as produções artísticas não obtiveram o mesmo êxito devido aos constantes
ataques dos órgãos de censura. Para Ventura (2000):

Ao contrário da economia e tanto quanto a política, a cultura brasileira


viveu nesses dez anos alguns de seus momentos mais dramáticos e
sofridos. Caminhando da onipotência à impotência, do choque à
apatia, dividida entre os apelos fáceis do conformismo e o seu
compromisso crítico, a criação intelectual atraiu ódios e suspeitas, e
mergulhou no vazio e na fossa. Agora, amadurecida pelo sofrimento,
busca de novo a vontade, abre-se ao diálogo e alimenta-se de uma
esperança: a de que a liberdade tantas vezes invocada lhe seja
restituída: não como um favor concedido, mas como adquirido, como
atributo natural do pensamento. (VENTURA, 2000, p. 88).

Como forma de governo completamente controlada pelo estado, os governos


autocráticos lidam com o impedimento à liberdade de expressão, controle dos meios de
comunicação e das produções artísticas, com severa restrição ao descumprimento às
normas estabelecidas. Como se percebe, no Brasil, no período da ditadura civil-militar,
não há o impedimento à leitura, mas a leituras que veiculassem valores contrários ao do
poder hegemônico, pois, como descreve Zuenir Ventura (2000), em 1971,
multiplicaram-se as produções em consonância com os valores requeridos pelo Estado.
87
Tanto livros e folhetos quanto livros literários aprovados pelos órgãos reguladores
foram amplamente divulgados, como mostra Ventura (2000).
Foi momento de valorização, por parte das instâncias governamentais, de obras
que se mantivessem alheias à situação política do país, por isso, ou as publicações
abordavam temáticas extremamente distantes de qualquer temática de ordem política,
ou, deveria fazê-lo de modo metafórico, a ponto de conseguir aprovação pelos órgãos de
censura. Segue Decreto-lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970:

Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias


à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de
comunicação.
Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de
Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da
divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente
da proibição enunciada no artigo anterior.
Parágrafo único. O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o
modo e a forma da verificação prevista neste artigo.
Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons
costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e
determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.
Art. 4º As publicações vindas do estrangeiro e destinadas à
distribuição ou venda no Brasil também ficarão sujeitas, quando de
sua entrada no país, à verificação estabelecida na forma do artigo 2º
dêste Decreto-lei.
Art. 5º A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que
não hajam sido liberados ou que tenham sido proibidos, após a
verificação prevista neste Decreto-lei, sujeita os infratores,
independentemente da responsabilidade criminal. (BRASIL, 2019a,
s.p.).

Havia regulação pontual das obras publicadas, que não deveriam ferir a moral e
os bons costumes. O Departamento de Polícia Federal tinha plenos poderes para avaliar
livros e periódicos quanto ao seu conteúdo. Também obras estrangeiras passavam pelo
crivo dos sensores, que aprovavam ou não o seu conteúdo.
Foi nessa época, também, que se estreitaram os laços entre editoras e escolas.
Voltando-se a um público em potencial, o escolar, as editoras passaram a destinar um
número significativamente maior de títulos. Foi no campo do livro didático, contudo,
que houve crescimento mais relevante por meio de ações iniciadas ainda nos anos finais
da década de 1960. A criação da polêmica Comissão do Livro Técnico e Livro Didático
(Colted), em 1966, contribuiu para essa aproximação, pois centralizava a coordenação
da produção, da edição e da distribuição de livros didáticos, dispondo de substancial
quantia de recursos públicos. A Colted recebia recursos de duas instâncias: o Ministério

88
da Educação e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento internacional, por
meio do acordo MEC – Usaid. Durante três anos, esse acordo garantiu distribuição de
51 milhões de livros, com uma visível interferência estadunidense na produção editorial
brasileira (BRASIL, 2011, p. 18).
A parceria com o governo estadunidense garantiu ao governo brasileiro verbas
suficientes para fortalecer o mercado editorial. Assim, no período da ditadura civil-
militar, é perceptível o investimento na produção de livros didáticos, à época,
controlados pelos órgãos de censura. Disciplinas como Educação Moral e Cívica e
Organização Social e Política Brasileira, instituídas pelo Decreto-lei nº 869, de 12 de
setembro de 1969 (BRASIL, 2019b), também contribuíam para a propagação dos
valores ditatoriais junto ao público escolar e para a propagação de materiais didáticos
que dialogassem com as propostas do governo.
Como aponta Zita Oliveira (1994), o período de 1964 a 1985 contou com
diversas iniciativas em vista do fortalecimento da biblioteca escolar e da biblioteca
pública por todo o Brasil. Esses investimentos tiveram duas funções: a de apoio à
atividade educacional, sendo espaço para que se realizassem práticas educativas
diversas, e de responsável pela manutenção das obras mais relevantes da cultura
brasileira.
Com o fortalecimento das bibliotecas no período da ditadura, foi possível maior
distribuição de livros para todo o Brasil. A iniciativa almejava, como discute Oliveira
(1994), o fortalecimento do mercado do livro seguindo os propósitos do INL no
momento da ditadura civil-militar. Além dos livros didáticos, as obras de literatura
infantil e juvenil também passaram a receber investimentos pelas mesmas razões que
motivaram as publicações de livros didáticos e o fortalecimento da biblioteca escolar: o
fortalecimento do mercado. Para Lajolo e Zilberman (1986):

Vários indícios parecem confirmar que a literatura infantil brasileira


mais recente incorporou em diferentes níveis sua destinação
pedagógica. No nível externo – o de sua circulação – ela se beneficia
da legislação que recomenda sua adoção: seu acervo é divulgado
diretamente nas escolas, seu marketing visa diretamente o professor e
já se tornou familiar, na sala de aula, a figura de um autor visitante
que discute com os alunos seus textos previamente adotados naquela
classe (LAJOLO; ZILBERMAN, 1986, p. 174).

Se a década de 1970 favoreceu a consolidação de um mercado editorial


brasileiro do público infantil e juvenil, a década de 1980, como aponta a citação, traz

89
modificações políticas em relação ao livro e à sua presença na escola. Passa a haver, por
exemplo, participação dos professores nos processos de escolha dos livros e extinção do
livro descartável de modo a permitir a sua reutilização (BRASIL, 2011, p. 18).
Há significativo aumento também no campo da produção literária voltada à
escola. A redemocratização pela qual passa o país na década de 1980 permite que a
formação do leitor literário ganhe fôlego por meio dos programas nacionais de leitura.
Os programas governamentais foram fulcrais para fortalecer a produção literária para a
infância e juventude, pois as compras governamentais despertavam o interesse das
editoras e, também, dos escritores, já que a compra de um único título garantia uma
quantia financeira significativa. O primeiro foi o Programa Nacional Salas de Leitura
(PNSL), criado em 1984 e extinto em 1996, que construía salas de leitura e enviava
acervos literários para composição delas.
O período ditatorial e o momento posterior, de transição para a democracia,
contudo, promoveram alterações não somente no que tange ao mercado editorial, mas,
também, nas próprias temáticas da literatura. Após o golpe de 1964, a literatura se
caracterizava pelo compromisso com a realidade social e política, mesmo que de forma
fantástica ou alegórica, como defende Schøllamer (2011). Fica de lado a inserção na
literatura brasileira de questões universais e utópicas, ou mesmo temas nacionais
clássicos. Também a abordagem de um otimismo futurista e as urgências da
modernização não são mais postas em evidência, e o que marca a prosa pós-golpe de
1960 e 1970 é a vocação política.
Schøllamer (2011) defende que a década de 1980 é palco do fim do ciclo
nacionalista da literatura brasileira, tendo em vista que ela começa a contar com uma
perspectiva mais aberta no que tange às possibilidades de inserção de temáticas voltadas
ao espaço e à fronteira, mas sem precisar legitimá-las sub a insígnia da identidade
nacional. A literatura que enaltecia a imagem nacional do Brasil perdia espaço, e surgia
uma literatura urbana que se voltava para as condições de desenvolvimento do Brasil:

As novas metrópoles brasileiras tornavam-se palco para uma série de


narradores que decidiam assumir um franco compromisso com a
realidade social, tendo, como foco preferencial, as consequências
inumanas da miséria humana, do crime e da violência. O grande
romance nacional, cunhado no modelo de Euclides da Cunha e João
Guimarães Rosa, perdia posição, assim como as narrativas intimistas e
de introspecção psicológica que tinham em Lúcio Cardoso e Clarice
Lispector seus paradigmas, embora sem desaparecer por completo.
(SCHØLLAMER, 2011, p. 22).

90
A abertura política permitiu inovações literárias não somente no modo de
representar a cidade, principal espaço associado ao desenvolvimento do Brasil, mas,
também pode ser percebido no fortalecimento de uma escrita mais psicológica ―que
configura uma subjetividade em crise‖ (SCHØLLAMER, 2011, p. 27) e no surgimento
do brutalismo, termo criado por Alfredo Bosi, como diz Schøllamer (2011), a partir da
obra de Rubem Fonseca.
Como se nota nas discussões, em momentos de ditadura e mesmo no período
que o procede, a literatura sofre o influxo desses momentos políticos. A composição das
temáticas, do espaço e das personagens é fortemente influenciada por momentos
políticos decisivos. No que tange à literatura juvenil, buscamos entender como se
delineia as relações das personagens com os espaços das cidades.

91
CAPÍTULO 2: MULHERES NA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA

Você tem que viver sua vida ao seu modo e não do modo
que os outros decidem, ô, Lena.
(Lygia Fagundes Telles,
As meninas).

A especificidade da literatura juvenil, como já apontamos, não está em aspectos


relacionados à qualidade do texto literário, mas na importância de se adequar produções
culturais para um público em um momento significativo de sua existência, com dúvidas
e anseios particulares de uma fase em que estão amadurecendo.
O pesquisador espanhol Antonio Verdulla (2006), em ―Identidad y límites de la
literatura juvenil‖, caracteriza a literatura juvenil como um conjunto de manifestações
literárias que circula em diversos suportes, é produzida por adultos e é intencionalmente
direcionado a leitores que estão na primeira adolescência ou na primeira juventude.
Acrescentamos a essa definição de literatura juvenil – que perpassa pela
consideração de um receptor adolescente ou jovem e pela autoria adulta; que insere a
juventude como protagonista e que revela problemáticas comuns aos jovens – o fato de
que há atenção intensa abordagem de problemáticas sociais, tendo em vista ao processo
de amadurecimento que se encontra o público ao qual se destina; cuidado na discussão
de temas como sexo, morte, suicídio, entre outros, e adequação quanto à linguagem,
com o predomínio de diálogos longos e de um modo de falar que representam os
personagens, majoritariamente, ao passo que buscam alcançar o público leitor.
Pensando na abordagem de problemáticas sociais na literatura juvenil, a
literatura juvenil produzida, especialmente, após a segunda onda feminista, no Brasil,
contribui sobremaneira para que o público leitor entre em contato com uma produção
menos machista. Ao pensarmos, por exemplo, nos contos de fadas, é possível observar
que eles naturalizavam os papéis sociais atribuídos ao masculino e ao feminino. Esse
aspecto, aliás, foi investigado em Don‘t Bet on the Prince. Contemporary Feminist
Fairy-Tales in North America and England, por Jack Zipes ([1989] 2006). Em território
brasileiro, o conhecido boom da literatura infantil e juvenil propiciou ampliação dos
temas e formas da literatura juvenil, enquanto que a segunda onda feminista (MATOS,

92
2010) favoreceu, já no final da década de 1970, a inserção de temas críticos no que
tange aos papéis sociais de gênero na literatura para a juventude.
Destacamos, entre essas primeiras obras, A bolsa amarela, de Lygia Bojunga. A
obra conta a história de Raquel, uma menina de oito anos que tem três vontades:
crescer, ser escritora e ser menino. A narrativa, publicada pela primeira vez em 1976,
faz uma importante abordagem dos condicionamentos dos papéis sociais de gênero, pois
Raquel questiona os privilégios dos meninos, pois eles podem fazer coisas que ela não
pode. Suas vontades são tão fortes que ela precisa de um lugar para escondê-las: sua
bolsa amarela. É somente a partir de 1979, contudo, que outras obras, de outras autoras,
centradas na mesma temática se multiplicam.
No livro intitulado Tendências e impasses: o feminismo como crítico da cultura,
Heloisa Buarque de Hollanda (1994) defende que o feminismo despontou como
novidade no campo teórico na década de 1970 e 1980 e com importante potencial
político e crítico. Estando a crítica feminista, em 1994, momento de publicação da obra,
em expansão, a autora se questiona sobre qual seria o grau de engajamento das gerações
futuras com o feminismo, tendo em vista que as segunda e terceira onda do feminismo,
no Brasil, sempre tiveram suas agendas atravessadas por pautas políticas não
relacionadas, diretamente, as assimetrias de gênero ou aos direitos das mulheres.
A década de 1980, especialmente, com o início da abertura política, foi central
para o fortalecimento da crítica feminista e da institucionalização acadêmica dessa
crítica. A crítica literária feminista, por sua vez, favoreceu maior participação das
mulheres na escrita literária, mas, também, a revisão da historiografia literária, por meio
de um esforço, como aponta Duarte (2010), de dezenas de pesquisadoras ao longo das
últimas décadas.
No que concerne à literatura juvenil, a crítica literária feminista favorece a
compreensão de como essa literatura elabora as relações de gênero. É importante
destacar que, mesmo que a literatura juvenil não apresente uma voz masculina patriarcal
e/ou violenta no que tange ao gênero, a não inserção de heroínas com o mesmo
potencial dos heróis, ou de personagens mulheres tão fortes como as personagens
homens, já assenta valores ideológicos do patriarcado. A crítica literária feminista
contribui, assim, para além de um questionamento das concepções patriarcais a respeito
das relações de gênero, mas, também, para a inserção de um discurso convergente com
a crítica feminista na literatura juvenil, especialmente, a de autoria de mulheres.

93
A crítica feminista, conforme aponta Cecil Zanini (2012), em ―Crítica feminista:
lendo como mulher‖, almeja desconstruir os processos ideológicos tradicionais,
problematizando as relações de gênero e trazendo à tona os aspectos relacionados às
identidades de gênero. Assim, a crítica literária feminista favorece novas leituras da
literatura considerando, também, os aspectos relacionados às representações de gênero,
às violências, físicas ou simbólicas, originadas do patriarcado e o modo como mulheres
enfrentam, nas obras, essas violências.
Para Eliane Showalter, em A crítica feminista no território selvagem ([1980]
1994), há dois tipos de crítica literária feminista. O primeiro estuda estereótipos e
representações da mulher na literatura, investigando essas formas de representação a
partir da percepção da dominação masculina, e o segundo volta-se à produção de
mulheres e à análise de seus textos e temas, e também, o estudo da história da literatura
e ao resgate histórico de textos de mulheres esquecidos pela tradição. Questiona, assim,
o privilégio masculino do campo das letras, mas também se começa a resgatar escritoras
de literatura esquecidas pela historiografia literária, bem como se valoriza e divulga a
literatura contemporânea escrita por mulheres. Este trabalho se centra no segundo tipo
apontado por Showalter, pois faz o que ela chama de ginocrítica, ―e seus tópicos são a
história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres‖
(SHOWALTER, 1994, p. 30). Ela objetiva, assim, mudar o foco de uma leitura
revisionista para investigar, de modo acentuado, a literatura feita por mulheres.
Incorporamos, ainda, em nossa análise, a categoria gênero para compreender de
que modo às personagens são representadas no que tange às assimetrias de gênero.
Como aponta Greicy Bellin (2011), quando um texto ficcional é lido dentro de uma
perspectiva feminista, o interpretamos à luz de ações políticas, que estão relacionadas
tanto à ideologia quanto às relações de poder na sociedade, pois, como ela defende: ―As
convenções estéticas, por sua vez, são também produtos sociais, capazes de dizer muita
coisa sobre a época em que foram produzidas‖ (BELLIN, 2011, p. 10).
A análise atuação da mulher na escrita a permite veicular novos discursos a
respeito de si e de seu lugar no mundo, bem como ser palco para oposição ao lugar de
privilégio dos homens na sociedade. Quando as representações de mulheres também são
elaboradas considerando tal propósito, podem contribuir com a disseminação de formas
de convivências pautadas em uma lógica menos patriarcal. Quando trazemos Antonio
Candido (2012) para a discussão, entendemos a importância da ficção para a construção

94
de novos modelos de pensamento e, pelo nosso olhar, especificamente no período em
que o sujeito se forma para a vida. Para ele:

A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que


costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa – o
verdadeiro, o bom, o belo, definidos conforme os interesses dos
grupos dominantes, para reforço da sua concepção de vida. Longe de
ser um apêndice da instrução moral e cívica [...], ela age com o
impacto indiscriminatório da própria vida e educa como ela ― com
altos e baixos, luzes e sombras. Daí as atitudes ambivalentes que
suscita nos moralistas e nos educadores, ao mesmo tempo fascinados
pela sua força humanizadora e temerosos da sua indiscriminada
riqueza. (CANDIDO, 2012, p. 84).

Como elucida Candido (2012), a formação não é sinônima de uma proposta de


atuação, por parte da literatura, como ―manual de virtude‖ (CANDIDO, 2012, p. 84),
tendo em vista que a literatura ―[...] não corrompe nem edifica‖ (CANDIDO, 2012, p.
85), mas, a partir do momento em que disponibiliza representações heterogêneas, ela
realiza-se como formadora de consciências e, eventualmente, como indutora de
transformações sociais. As reinvindicações sobre a necessidade de transformação nos
textos apoiam-se justamente em resultados de pesquisas que descrevem relações de
gênero predominantemente estereotipados na literatura infantil e juvenil.
A análise das mulheres dentro do sistema literário, na literatura juvenil, contribui
para perceber se as personagens requerem o direito à própria autonomia ou em que
medida rompem com o discurso do patriarcado, pois, como aponta Lauretis (1994), o
lugar de representação é, além de lugar para reprodução, mas campo potencial para
mudanças desejadas. É importante entender, então, se a literatura juvenil tem sido palco
para mudanças, ou se ela se apresenta como lugar de reprodução.

2.1 Panorama da literatura juvenil

Traçar um panorama da literatura juvenil se apresenta como uma tarefa bastante


complicada pelo fato de que, como vimos, a literatura juvenil começa a ter interesse da
crítica literária no Brasil somente a partir dos anos 2000, com a já citada tese de
Ceccantini.

95
Até então, os estudos acerca da literatura juvenil eram feitos em paralelo à
literatura infantil, por meio de diferentes classificações: literatura infantil – utilizada,
muitas vezes, para englobar também a juvenil; literatura infantojuvenil e literatura
infantil e juvenil.
O interesse tardio da crítica literária na literatura juvenil é bem explicado por
Souza (2015). Ela defende que o escritor dedicado à literatura juvenil não passa por um
embate somente com o mercado, mas, principalmente, com os meios acadêmicos, por
escrever uma literatura que é, ao mesmo tempo, um campo literário, mas, também, um
nicho comercial particularmente lucrativo. Ao escrever para um setor do mercado, tem-
se aparência, quando se lança um olhar ligeiro à produção literária juvenil, de que as
únicas regras são as da lógica das vendagens.
Reconhecendo a ausência de uma historiografia literária juvenil devido ao
interesse muito recente da crítica especializada, realizamos um mapeamento por meio
das premiações literárias, única das instâncias de legitimação da literatura a apresentar,
de certa forma, um histórico da literatura juvenil. Dado o recorte temporal apresentado
neste trabalho, a análise é alicerçada nas premiações concedidas nesse período.
Regina Zilberman (2017), em artigo intitulado O romance brasileiro
contemporâneo conforme os prêmios literários (2010-2014), destaca o papel das
premiações literárias para o desenvolvimento da literatura nacional. Para a
pesquisadora, as premiações atuam de modo a divulgar os escritores junto ao grande
público; contribuem para sua autonomia financeira e fortalecem a imagem das editoras.
Elas também movimentam o mercado do livro literário e, com isso, favorecem a
autonomização dos escritores. Para a pesquisadora, os prêmios literários ainda sinalizam
tendências e funcionam como um termômetro para se medir o estado de uma literatura.
Por marcar tendências, então, é possível perceber, ao se observar as premiações
literárias em dado momento histórico, quais foram, naquela época, as marcas da
literatura:

Para o pesquisador de literatura, prêmios concedidos a obras literárias,


considerando a data em que aquelas foram publicadas, têm uma
qualidade a mais: sinalizam quais livros alcançaram mais visibilidade
no ano em que apareceram no mercado editorial e consumidor. [...] As
relações de finalistas ou de vencedores de premiações sugerem que as
obras carregam consigo algum valor artístico, independentemente da
fama de seu autor, do local onde tenham sido editadas, do número de
volumes comercializados. (ZILBERMAN, 2017, p. 438-439).

96
A autora esclarece, então, a diferença entre se observar as listas de obras
premiadas e as listas de best-seller: a segunda aponta quais foram as obras a alcançarem
maior projeção, independentemente de sua qualidade estética, enquanto que a primeira
categoria não se centra no alcance de vendagens. Assim, as listas de premiações
fornecem informações sobre o estado atual de uma literatura, e, também, em relação aos
aspectos que foram considerados mais significativos pelos envolvidos no campo
cultural para mensurar as qualidades estéticas das obras selecionadas.
Ao evidenciar a importância das premiações literárias para a constituição de um
cenário literário nacional, o objetivo é verificar algumas características da literatura
premiada na década de 198027 para, a partir de tais características, delimitarmos as obras
com o propósito de constituirmos um corpus para a análise da mulher na literatura
juvenil também de autoria feminina.
A literatura juvenil tem, nas premiações literárias, uma instância de legitimação
que contribui para seu fortalecimento. Dada à carência de pesquisas acadêmicas, uma
possível maneira de se entender como a literatura juvenil se constituiu como um sistema
literário independente é por meio dos estudos das premiações literárias.
Na tese La discusión sobre el valor literario en la narrativa juvenil actual: una
mirada política, Luz Muxica (2015) defende que os prêmios para obras literárias são,
paralelamente, amostra e consequência da alta produção de obras juvenis, que
contribuem para atestar a qualidade das publicações. No caso da literatura juvenil, ainda
auxilia os mediadores com a seleção de obras de desenvolver suas práticas de leitura,
pois as premiações vão permitindo que se reconheça obras e autores.
Os prêmios movimentam significativamente a cena literária porque envolve, ao
mesmo tempo, a indústria do livro e os integrantes dos meios acadêmicos. Enquanto que
a primeira garante a parte financeira, que contribui para a profissionalização, os
segundos são fundamentais para que se ateste a qualidade das obras selecionadas. Para
Ana Elisa Ribeiro (2016), os prêmios literários brasileiros se dividem em dois grupos:
os prêmios para livros inéditos, inscritos sob pseudônimo, que revelam os novos
escritores, e os oferecidos a obras e autores já publicados. Este segundo tipo contribui
para legitimar e reiterar a qualidade dos autores e livros que já circulam. No caso da

27
Nossa análise se faz de maneira mais assertiva no período em questão, mas o mapeamento que
apresentamos tem início assim que começam a ser concedidas premiações para o jovem.

97
literatura juvenil, há premiações com categorias independentes somente para autores já
publicados.
Voltando-nos à especificidade das premiações para o jovem, a primeira
instituição que lançou uma categoria juvenil foi a Câmara Brasileira do Livro, com o
prêmio Jabuti, em 1959. Nos primeiros onze anos de premiações, foram concedidos
somente quatro títulos na categoria juvenil [Cf. Tabela 1 do Apêndice]. Os títulos
premiados foram: Glorinha (1959); Único amor de Ana Maria (1962); Xisto no espaço
(1968) e O menino dos palmares (1969). Dos quatro títulos, Xisto no espaço é de
autoria de Lucia Machado de Almeida e os outros três de Isa Silveira Leal.
É curioso notar que, entre o período de 1959 até 1969, há diversas lacunas
temporais na premiação para a categoria juvenil, mesmo a premiação sendo anual.
Talvez isso se dê pela produção, ainda esparsa, de literatura juvenil. Também se observa
que somente mulheres foram premiadas em um período que compreende onze anos.
Ainda assim, três premiações foram para a mesma autora, Isa Silveira Leal, o que indica
que havia poucos escritores interessados nessa literatura. Durante toda a década
seguinte, somente em 1972 houve premiação na categoria juvenil, com Uma rua como
aquela, de Lucilia Junqueira de Almeida Prado.
No que tange ao conteúdo, Isa Leal e Lucilia Junqueira assinalam uma ruptura
importante para a história da literatura juvenil: a demarcação do espaço urbano como
cenário. Para Lajolo & Zilberman (2007), contudo, em Leal, as cidades permanecem
idealizadas, tais como as imagens da vida rural, que era o cenário predominante na
literatura infantil e juvenil até então. Uma rua como aquela promove outra leitura do
cenário urbano, evidenciando as consequências do início da urbanização pela qual
passava a capital paulista. A obra também promove uma renovação importante quando
faz uma abordagem direta de temas relacionados à adolescência e a inserção do
protagonismo em grupo, bastante recorrente na literatura juvenil.
Na década de 1980, há importantes alterações nas premiações na literatura
juvenil pelo Jabuti [Cf. Tabela 2 do Apêndice]. As premiações para a categoria juvenil
foram mais constantes, e apenas nos anos de 1987 e 1988 não houve premiação. Outra
alteração que se percebe é a presença de homens premiados e com importante vantagem
em relação às autoras mulheres: quatro premiações para homens e duas para mulheres
(além desses, uma das obras é escrita por um homem e uma mulher). Também não se
nota nenhuma repetição autoral, como nas primeiras premiações, o que evidencia a

98
presença de um número maior de escritores voltados à literatura juvenil, consequência
da profissionalização do escritor de literatura.
Ao observar o aspecto autoral da premiação para o jovem na década de 1980, a
pesquisa das biografias dos autores revela alguns dados que vão ao encontro dos
resultados apontados por Dalcastagnè (2005) em pesquisa sobre a literatura
contemporânea: todos os premiados pelo Jabuti na década de 1980 são brancos. Todos
eles, também, são altamente escolarizados. Entre os dados obtidos por Dalcastagnè
(2005), ela apresenta que: ―São brancos 93,9% dos autores e autoras estudados [...].
Uma imensa maioria possui escolaridade superior (78,8%, contra apenas 7,3% de não
superior)‖ (DALCASTAGNÉ, 2005, p. 31-32).
Há, assim, a consolidação dos privilégios dos homens brancos e de classe média
alta a partir da década de 1980 na literatura juvenil. Se, até a década de 1980, a literatura
juvenil premiada era exclusivamente de autoria feminina, assim que o campo literário
começa a se solidificar, os homens predominam nesse espaço.
Outra instituição que premia obras para o jovem é a Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil – FNLIJ, desde 1975. As premiações da FNLIJ são sempre em relação
à produção do ano anterior. Havia, contudo, uma única categoria durante os quatro anos
iniciais, intitulada Categoria Criança. É só no ano de 1979 que foi inserida uma
Categoria Jovem, e premiou a produção de 1978. A primeira obra premiada na
Categoria Jovem foi A casa da madrinha, de Lygia Bojunga Nunes, pela Editora Agir.
A obra premiada no ano seguinte foi Raul da ferrugem azul, de Ana Maria Machado.
Observando os autores premiados pela FNLIJ, percebemos que, ao contrário do
Jabuti, não houve edição em que o livro para o jovem não tenha sido premiado. Há,
também, a maior presença de nomes femininos. Observamos, também, a repetição de
prêmios para Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, que, a essa época, já eram
reconhecidas escritoras de literatura infantil e juvenil, e que já recebiam, premiações
também na categoria infantil.
A mesma constância em relação aos autores se nota nos autores premiados pela
FNLIJ: também são todos autores brancos e altamente escolarizados. Não, há, portanto,
escritores pertencentes aos grupos minorizados entre as premiações nos anos 1980. Ao
perceber tais constâncias no que tange aos aspectos relacionados à etnia e à
escolaridade, Zilberman (2017) também aponta, em trabalho acerca das premiações
literárias, que os concursos literários permitem que se desenhe o romance ideal para os
jurados nacionais. Ao abordar os aspectos autorais no período de 2010 a 2014, ela

99
descreve o que os prêmios consideram autor ideal: ―[...] seu autor pertenceria ao sexo
masculino; teria nascido ou residiria atualmente em São Paulo ou no Rio de Janeiro;
enquadrar-se-ia à etnia caucasiana; sua idade oscilaria entre 35 e 45 anos, um pouco
para mais ou para menos‖ (ZILBERMAN, 2017, p. 440). Os dados obtidos por
Zilberman, então, convergem com os obtidos nesta pesquisa, sobre a premiação juvenil,
e também por Dalcastagnè, citada anteriormente.
Voltando-nos aos dados das tabelas sobre as premiações da FNLIJ e do Jabuti da
década de 1980, é possível perceber que não há autores premiados nas duas instituições.
Já observando as premiações individualmente, a respeito do prêmio Jabuti, nenhum
autor se repete. Contudo, nas premiações da FNLIJ, percebemos autoras que se repetem:
Lygia Bojunga e Ana Maria Machado obtiveram, cada uma, duas premiações [Cf.
Tabelas 2 e 3 do Apêndice].
Notando as Tabelas 1 e 2 do Apêndice, também se percebe que os títulos
premiados são, em larga maioria, narrativas. Das premiações concedidas pelo Jabuti,
todas são narrativas. Já entre as premiações concedidas pela FNLIJ, há Fruta no ponto,
de Roseane Murray, que obteve a premiação no ano de 1987. Entre as narrativas
premiadas, se tratam, também majoritariamente, de narrativas longas. Das premiadas
pelo Jabuti, todas se tratam de narrativas longas. Já a FNLIJ possui Uma ideia toda
azul, de Marina Colasanti, publicada em 1979 e premiada em 1980, de contos.
Buscando focalizar no aspecto central de nosso trabalho, a literatura juvenil
escrita por mulheres, reunindo as mulheres premiadas em uma única tabela, há dez
premiações concedidas a escritoras mulheres de um total de dezoito premiações, e
perceptível vantagem das mulheres escritoras premiadas em relação aos homens. Na
literatura para adultos, há maior número de autores homens premiados, conforme aponta
Dalcastagnè (2005), enquanto que, na literatura juvenil, pelo menos até década de 1980,
a mulher alcança perceptível superioridade em relação aos homens. Esses dados nos
levam a construir algumas hipóteses: o fato de a literatura juvenil estar, desde sua
gênese, fortemente vinculada à escola, e à docência ser uma profissão na qual a mulher
alcançou maior êxito, consequentemente, ela teve, também, mais facilidade em
subscrever-se enquanto escritora de literatura juvenil? Tal hipótese poderia ser afirmada
com maior assertividade se, na literatura infantil a mulher também tivesse maior
destaque que o homem, e se, na literatura para adultos, o homem conseguisse maior
projeção, o que pode ser analisado na sequência.

100
Nas premiações nas categorias Literatura infantil e Criança, respectivamente,
dos prêmios Jabuti e FNLIJ, temos um total de vinte obras premiadas na década de 1980
[Cf. Tabela 4 do Apêndice]. Desse total, treze premiações concedidas a mulheres. Os
dados das tabelas deixam evidente a maior possibilidade de inserção, em um cenário
literário nacional, das mulheres, na literatura infantil e juvenil, corroborando a hipótese
de que, para a mulher conseguir legitimação enquanto escritora, a literatura infantil e
juvenil eram, nos anos 1980, caminho mais fácil.
Nas premiações do Jabuti da década de 1980 três categorias eram voltadas à
premiação de literatura: Literatura adulta (autor revelação); Poesia e Romance [Cf.
Tabela 5 do Apêndice]. Das vinte e nove premiações concedidas nesse período, apenas
nove mulheres receberam premiações. Há, portanto, significativa maioria de homens
premiados na literatura para adultos. Isso comprova a nossa hipótese de que a mulher
dispunha de maior espaço na literatura infantil e juvenil por dois motivos: o primeiro, a
associação da mulher com o espaço escolar e com a docência, e o segundo, o fato de
que a literatura infantil e juvenil parece um espaço mais feminino, já que se atrela a
contação de histórias e a leitura às crianças com a figura da mãe ou da avó.
Essa disparidade, então, talvez venha de uma possível associação das mulheres
com o mundo da criança, da contação de histórias e da educação dos sujeitos em
formação. É, sem dúvida, uma aproximação bastante machista, mas que está, ainda,
arraigado no imaginário popular. Colasanti, por exemplo, ao ser questionada, em
entrevista, se a maternidade interferiu no seu modo de escrever, é taxativa:

Não tem nada a ver. Eu tenho horror a essa conversa de ―eu conto
histórias maravilhosas pros meus netinhos, então agora vou fazer um
livrinho‖. Tenho horror. Isso é uma profissão. [...] Eu sou uma
profissional, não sou uma babá. Não se trata de livrinhos ou
historinhas, isso é literatura. Então, não tem nada a ver eu ter tido
filhos. Quando elas nasceram, eu já era escritora, e esse era o
diferencial. Eu era escritora e já tinha livros editados, e também era
jornalista e cronista. Eu já era uma profissional28.

A fala de Colasanti a respeito da produção de contos de fadas está atrelada a uma


crença anterior: a de que há uma escrita típica feminina e com características e temáticas

28
Entrevista com Marina Colasanti:
https://www20.opovo.com.br/app/opovo/paginasazuis/2015/11/09/noticiasjornalpaginasazuis,3530992/e
ntrevista-com-marina-colasanti-sou-uma-profissional-nao-uma-baba.shtml. Acesso em: 4 mar. 2019.

101
particulares à feminilidade. É dentro dessa falácia que surge uma outra: a de que a
mulher que escreve literatura infantil e juvenil, especialmente contos de fadas, pensou,
inicialmente, em escrever para seus filhos ou netos, pois, não raro, a literatura infantil e
juvenil é vista como menor.

2.2 Seleção do corpus de análise

Selecionar as obras para comporem o corpus exigiu que se determinassem


critérios que permitissem um diálogo das obras selecionadas com as questões a serem
respondidas para que elas fossem norteadoras não somente da análise, mas,
favorecessem, também, uma interpretação do sistema literário juvenil do período
histórico sobre o qual nos debruçamos.
O primeiro elemento que restringiu o número de títulos foi a opção pela autoria
de mulheres. A opção por obras que tivessem sido escritas por mulheres vai ao encontro
do que elucida Constância Lima Duarte (2009) em relação ao fato de que é preciso se
traçar uma historiografia literária na qual a voz da mulher esteja presente, e que essa
historiografia revele as temáticas abordadas, as personagens, os espaços, enfim, é
preciso auscultar sobre o que fala a mulher escritora.
Um segundo aspecto foi o período selecionado. Como já discutido
anteriormente, a década de 1970 foi um momento bastante difícil para a consolidação de
uma crítica feminista e, por consequência, de uma crítica literária feminista. Optamos,
então, pela análise das obras que foram publicadas na transição da década de 1970 e
primeiros anos da década de 1980 devido ao início da consolidação da literatura juvenil
e da crítica feminista.
A terceira etapa foi observar as premiações para a literatura juvenil.
Considerando a lista de obras premiadas, chegamos, após a leitura das obras, às sete
narrativas com a presença de personagens mulheres relevantes ao enredo [Cf. Tabela 6
do Apêndice].
A leitura das oito obras de autoria de mulheres premiadas no referido período
nos dá um dado bastante significativo: sete das obras apresentam narrativas importantes
de meninas, adolescentes e/ou mulheres adultas. A única em divergência é O mundo é
para ser voado, de Vivina de Assis Viana, que centra a narrativa em um adolescente de

102
quinze anos, e em seu processo de mudança de cidade devido ao serviço dos pais. Há,
na obra, pouca participação pouco significativa da mulher na narrativa. De olho nas
penas conta, também, com um menino protagonista, e não há presença de mulheres em
atuações relevantes nem em papéis secundários.
Observando as obras de autoria masculina premiadas no período, percebemos
uma constante: os autores homens tendem a escrever de uma realidade masculina. O
misterioso rapto da Flor de Sereno, de Haroldo Bruno, tem como protagonista Zé
Grande, que sai em busca de sua esposa, após ela ser sequestrada. Por sua vez, A
vingança do Timão centra a narrativa em um time de futebol masculino. Já Sangue
fresco, também com protagonismo de um grupo, apresenta a turma do gordo em
confronto com um bandido que sequestra crianças para extrair o sangue. Ciganos, de
Bartolomeu Campos de Queirós, apresenta as observações de um menino sobre um
grupo de ciganos em sua cidade. Finalmente, A morte na selva, de Mustafa Yazbek,
apresenta a história de dois homens que, perdidos na selva após a queda de um avião,
aguardam resgate.
A leitura das obras, de forma ampla, permite que seja observada a pouca
presença da violência em boa parte delas. Sobre essa questão, Duarte (2017) alerta que
as obras de autoria feminina, por mais que abordem problemáticas concernentes ao
mundo da mulher, se esquivam de temáticas como violência:

Já há algum tempo, quando leio escritos de autoria feminina, reparo


que raramente eles tratam da questão que me parece a mais urgente, a
mais premente, que nenhuma mulher pode ignorar. Onde estão as
marcas literárias da violência a que cotidianamente as mulheres são
submetidas? Onde, as dores do espancamento, do estupro, do aborto?
(DUARTE, 2017, p. 1).

Considerando a relevância da inserção de obras de mulheres que se refiram


diretamente à violência, buscamos ampliar as autoras do corpus para além das obras
premiadas.
Delimitado o corpus, dada à escassez de referenciais teóricos brasileiros acerca
da literatura juvenil, buscaramos obras publicadas em outros países, como o já citado A
formação do leitor literário, empreendido na Espanha, e resultado da tese de doutorado
de Teresa Colomer (2003); Sobre literatura juvenil portuguesa contemporânea:
identidade e alteridade, de Francesca Blockeel (2005), também já mencionada.

103
Em Iniciação à literatura brasileira ([1987]1999) e Formação da literatura
brasileira: momentos decisivos ([1975] 2000), Antonio Candido desenvolve a noção de
sistema literário com o propósito de explicar de que modo a literatura brasileira se
formou. Nas obras, o sociólogo demonstra de que maneira, a partir da metade do século
XVIII, a literatura brasileira começa a se configurar e a se solidificar, dada a ampliação
das publicações e maior recepção das obras a partir desse período; o desenvolvimento
de uma consciência de grupo pelos intelectuais; a percepção da existência de um
passado literário local; o início da articulação dos fatos literários. Já no século XIX, o
pesquisador estuda como o movimento das academias e a consciência de autonomia
contribuíram para o fortalecimento do sistema literário brasileiro.
Os momentos decisivos para a formação desse sistema literário foram, como
aponta Candido, o Arcadismo e o Romantismo, tendo em vista que a produção anterior
ao Arcadismo se tratava de manifestações literárias, pois não havia uma continuidade
entre as gerações de escritores.
Candido valoriza uma organização literária completa, e acentua que o autor não
é isolado em sua produção, pois está em diálogo com outros autores. Seu esquema
considera a tríade autor-obra-público para desenvolver um panorama da literatura
brasileira, já que, como ele mostra, essa tríade envolve o meio social, a história, a
produção, a formação e a tradição.
Em Iniciação à literatura brasileira (1999), o autor faz a seguinte síntese:

Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que constituem


a atividade literária regular: autores formando um conjunto virtual, e
veículos que permitem o seu relacionamento, definindo uma ―vida
literária‖: públicos, restritos ou amplos, capazes de ler ou ouvir as
obras, permitindo com isso que elas circulem e atuem; tradição, que é
o reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionando como
exemplo ou justificativa daquilo que se quer fazer, mesmo que seja
para rejeitar. (CANDIDO, 1999, p. 14-15).

O processo de formação do sistema literário brasileiro é condicionado pelo poder


masculino, tendo em vista que a tradição literária que começa a ser formada em meados
do século XVIII é condicionada pelo discurso do patriarcado e pelo poder do homem. É
somente a partir da segunda metade do século XX, com a solidificação da crítica
literária feminista, que se iniciam modificações nessa constante.
A literatura juvenil, por sua vez, na transição entre as décadas de 1970 e 1980,
passa por alterações importantes no que diz respeito ao seu sistema: como, no período

104
referenciado, o mercado literário brasileiro estava se solidificando, é na literatura
juvenil que as mulheres encontram espaço para serem publicadas e reconhecidas pelo
público, como comprovamos por meio das análises comparativas das premiações para a
literatura infantil, juvenil e adulta.
Os estudos acerca da temática mulher e literatura estão em expansão no Brasil
devido à ascensão da crítica literária feminista desde a década de 1980. Da mesma
maneira, há inúmeras pesquisas realizadas acerca da representação da mulher e das
relações de gênero na literatura infantil. No campo da literatura juvenil, contudo, esse é
um campo ainda bastante embrionário, o que dificulta o levantamento de um corpus
bibliográfico nacional consistente.

2.3. Obras do corpus

Neste momento, será feita uma breve apresentação de cada uma das obras do
corpus com base nos elementos da narrativa. Essa primeira análise não será exaustiva,
tendo em vista que a análise das personagens se dá em paralelo às outras categorias.
Antes de realizar uma análise pautada na crítica literária feminista é importante entender
como se procede os elementos centrais da narrativa, pois, como postula Candido (2007),
―A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos‖ (CANDIDO, 2007, p. 54). É
preciso, então, verificar como cada obra apresenta a personagem, o enredo, bem como
as ideias. A apresentação seguirá a ordem de publicação das obras. Fazemos,
inicialmente, breve apresentação de cada uma das escritoras das obras do corpus.

2.3.1 Marina Colasanti: a tecelã das palavras

Ainda fazia frio na manhã em que a primeira mulher


tirou o xale. Sacudiu a cabeça. [...] E porque aquela
havia tirado o xale, uma e logo outra a imitaram, uma
quarta desfez sobre a testa o nó que prendia o lenço,
cabeças de mulheres assomaram às janelas, descobertas.
(Marina Colasanti,
―São os cabelos das mulheres‖).

105
Marina Colasanti nasceu em Asmara, capital da Eritreia, em 1937. Migrou para
o Brasil em 1948 e permaneceu aqui. Artista plástica por formação, atuou também no
jornalismo e publicidade, além de ter sido também tradutora de diversos livros. Seu
primeiro livro foi publicado em 1968. Lançou mais de cinquenta títulos, entre literários
e não literários.
Colasanti é, também, ilustradora de boa parte dos seus livros literários. Recebeu
diversos prêmios, entre eles, Jabutis, Grande Prêmio da Crítica da APCA, Biblioteca
Nacional para Poesia, Portugal Telecom de Literatura, em 2011. Tornou-se hors-
concours FNLIJ após ter sido várias vezes premiada29.
Sua atenção para a condição da mulher é percebida para além de seus textos
literários. Há, em sua produção, por exemplo, os livros Mulher daqui pra frente, Uma
nova mulher e Intimidade Pública, que reúnem textos elaborados a partir de suas
respostas para as cartas de leitores da ―Revista Nova‖ entre o final da década de 1970 e
início de 1980, na qual a autora já questionava os papéis sociais de gênero.
Atualmente, participa muito de congressos, simpósios, cursos e feiras literárias
no Brasil e em outros países, falando, especialmente, sobre sua obra. Ainda escreve,
regularmente, as ―Crônicas de quinta‖, publicadas em seu site. Nas crônicas, aborda
temáticas plurais e vinculadas a acontecimentos atuais30.
De sua obra, analisamos, aqui, quatro contos de fadas presentes em Uma ideia
toda azul ([1979] 2015): ―A primeira só‖; ―Entre as folhas do verde O‖; ―Além do
bastidor‖ e ―Fio após fio‖. Entre as temáticas centrais do livro, estão o enfrentamento ao
poder patriarcal, por meio de personagens que questionam e rompem com as ordens e
imposições dos homens, inclusive, recorrendo ao suicídio quando não há outra
alternativa. Os contos de fadas de Colasanti contam com o simbólico como recurso para
elaboração das relações entre sujeitos, recorrendo, em alguns casos, para o uso da
intertextualidade com os mitos para composição de suas tramas.

29
No site de Marina Colasanti estão elencados cada um dos quarenta e sete prêmios por ela recebidos no
período de 1979 a 2017. Por Uma ideia toda azul, aqui analisado, recebeu, O Melhor para o jovem –
FNLIJ; Grande Prêmio da Crítica Livro/Autor, em lit. infantil; APCA; Orígenes Lessa. Informações
disponíveis no link: https://www.marinacolasanti.com/p/biografia.html. Acesso em: 28 set. 2018.

30 As informações sobre a vida e obra de Marina Colasanti foram obtidas em seu site:
https://www.marinacolasanti.com/. Acesso em: 17 out. 2019.

106
Desde seus primeiros contos, Colasanti promove importantes rupturas em
relação à estrutura tradicional dos contos de fadas. Seu interesse pelo maravilhoso
decorre de considerar que o inconsciente humano tem se mantido inalterado ao longo do
tempo, pois, para ela, ―[...] muda a realidade externa, mas a nossa realidade interior,
feita de medos e fantasias, se mantém inalterada. E é com esta que dialogam as fadas,
interagindo simbolicamente, em qualquer idade e em todos os tempos‖ (COLASANTI,
2014, s.p.). Ao mesmo tempo, realiza alterações, também, nos modos de representação
das personagens, que não pertencem mais as categorias heróis e antagonistas, mas são
sujeitos atuando na resolução de seus conflitos por meio de erros e acertos. O embate
das personagens mulheres com o patriarcado, nesse viés, é temática recorrente.
Além do psicanalista, Nelly Novaes Coelho (1987), crítica literária, defende os
contos maravilhosos e sua relação com a formação do ser humano. Para a autora, os
contos maravilhosos contribuem para que a criança vislumbre formas de solução de
problemáticas inerentes à existência humana que a possibilitem entender que, para a
resolução de conflitos internos, será necessário um embate que a levará ao alcance de
um estado diferente do estado anterior no qual se encontrava, ou seja, haverá um
amadurecimento.
Os contos maravilhosos e os contos de fadas têm estreita relação com a
necessidade humana de cambiar experiências. São eles que aconselham e mostram às
crianças as primeiras histórias acerca de desafios, vitórias, ganhos, medos e a relação
humana com o que lhes é desconhecido. Imerso em um ambiente marcado pelo insólito,
os contos de fadas despertam grande atração das crianças. Para Walter Benjamin (1994)
o conto de fadas é o primeiro conselheiro das crianças, e revela: ―[...] revela as
primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico‖
(BENJAMIM, 1994, p. 215).
O conto de fadas tem por função o aconselhamento, e mostra à criança
experiências advindas do comportamento humano frente ao desconhecido. Ao dispor de
personagens em conflito, que passarão por adversidades até conquistar o prêmio final,
ele mostra que há sempre um caminho a ser traçado, independentemente de qual seja a
problemática que se apresenta.
Tempo e espaço são postos como anteriores ao tempo da narrativa, mas, eles
não podem ser demarcados. Todas as descrições do local, do espaço, são, para tanto,
abstratas: as narrativas se desenrolam em uma aldeia, ou uma floresta, ou em um reino

107
antigo. A ausência de uma delimitação precisa de tempo e espaço conduz o leitor para
um tempo e um local distantes, mas imprecisos.
Verificando a estrutura dos dois contos entre as motivações para a ação, de
acordo com Morfologia do conto maravilhoso, de Vladimir Propp (1984), está a falta, a
ausência de algo desejado pelo protagonista, que buscará tentar conquistar o que lhe
falta. No caso dos contos aqui analisados, há, justamente, a falta de algo desejado pelas
protagonistas. Diferentemente dos contos de fadas tradicionais, contudo, quem iniciam a
busca não são as protagonistas, em um momento inicial, são os homens, que julgam ter
resposta para a problemática das mulheres.
Nos contos de fadas, a personagem chega ao final da narrativa com experiência
adquirida. Independentemente das variações temáticas. Nos contos de fadas tradicionais,
ela é explícita, afinal, é o propósito maior do narrador mostrar que há um aprendizado a
ser tomado, tendo em vista sua destinação às crianças, como no caso de Chapeuzinho
Vermelho, que aprende a não desviar do caminho, ou mais fortalecido, como em João e
o pé de feijão, que consegue o sustento para a família ao enfrentar o gigante. Já nos
contos de Colasanti esse aconselhamento é significativamente alterado, pois eles
conduzem o leitor a questionar suas próprias experiências.
Um dos aspectos nos quais Colasanti altera seus contos de fadas parece dizer
respeito aos leitores aos quais se destina. Como há ampliação das temáticas, a ausência
de um final especialmente feliz, bem como a utilização de uma linguagem mais
elaborada, simbólica e poética31 faz com que os contos não alcancem somente os
pequenos leitores. Por serem contos de fadas, fica evidente a exploração dos espaços
tradicionais a essas narrativas, como o espaço da floresta, posto como metáfora da
liberdade, e o espaço do castelo, posto como lugar da civilidade, mas também da
clausura e da domesticação da mulher.

31
A dissertação de Nilma Medeiros (2009), utilizada em alguns momentos de nossa análise, versa
especialmente sobre os aspectos da linguagem nos contos de Marina Colasanti: A enunciação poética
nos contos de Marina Colasanti.

108
2.3.2 Lygia Bojunga: o desejo pela liberdade

Eu confundo as palavras livro e livre:


me acontece muito querer dizer uma e sair a outra.
(Lygia Bojunga,
Os colegas).

Lygia Bojunga nasceu em 1932, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Mudou-se aos
oito anos com a família para o Rio de Janeiro. Atuou no teatro, como atriz de rádio e em
alguns programas de televisão. Publicou sua primeira obra em 1972, Os colegas, pela
qual ganhou um prêmio FNLIJ, um Jabuti, e que também proporcionou sua entrada na
lista de honra da International Board on Books for Young People (IBBY).
Tem uma produção bastante premiada, e foi a primeira autora fora dos Estados
Unidos e Europa a receber o Prêmio Hans Christian Anderson, o maior prêmio para a
literatura infantil e juvenil.
Em 2002, publicou Retratos de Carolina, o primeiro livro em sua própria
editora, a Casa Lygia Bojunga, editora própria que publica exclusivamente as suas
obras. Foi com dinheiro do Prêmio Hans Christian Anderson que ela abriu a sua editora.
Em 2004, é a primeira escritora infantil e juvenil a ganhar o prêmio Astrid Lindgren
Memorial Award, criado pelo governo da Suécia, pelo conjunto de sua obra.
Lygia atuou, também, como atriz e passou dez anos escrevendo para rádio e
televisão. Manteve, também, junto com seu segundo marido, uma escola rural durante
cinco anos. No final da década de 1980, Lygia retornou aos palcos com o monólogo
Livro, criado e apresentado por ela. Com o monólogo, esteve em bibliotecas,
universidades e espaços culturais em diversos lugares do Brasil e do exterior32.
O sofá estampado, de Lygia Bojunga ([1980] 2015), é uma novela que narra, em
terceira pessoa, a paixão de um tatu, Vítor, por uma gata angorá, Dalva. Ao lado dessa
temática, apresenta-se, também, a trajetória do Vítor, protagonista, na descoberta de
quem ele é, bem como a influência da avó, uma ativista, no caminho da personagem.
Vítor possui diversos medos, como a dificuldade de falar em público, de impor suas
vontades, e mesmo de entender o que realmente ele quer. O espaço no qual a diegese

32
As informações sobre a vida e obra de Lygia Bojunga foram obtidas em seu site:
http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/. Acesso em: 17 out. 2019.

109
acontece é, majoritariamente, o espaço interno, revezando-se entre a casa de Vítor, a
casa de Dalva, e o espaço imaginário, permitido pelo diálogo da narrativa com o
maravilhoso, para o qual Vítor cava para se esconder, e vivencia uma outra história. O
espaço interno é posto como lugar de conforto para os personagens; é onde se
aconchegam e fogem dos enfrentamentos. Os espaços abertos, quando aparecem, são
postos como lugares de aventura, aos quais as personagens se lançam para realizar
descobertas. Vítor, por exemplo, se afasta de sua casa quando precisa, ao concluir a
escola, decidir o que quer fazer da vida. Como é bastante inseguro, sempre que fica
nervoso, precisa apelar para outro espaço: cava, então, e, longe de todos, fica mais
confortável e seguro. A sua avó, personagem sempre em trânsito, luta pelas questões
que considera injustas, viaja e descobre o mundo. Já o espaço da casa de Dalva, a sala, é
seu lugar de conforto, no qual ela pode ser quem deseja, assistindo aos seus programas
e, por vezes, entreolhando-se no espelho.
No que diz respeito ao tempo, ela inicia-se no tempo da narrativa, contudo,
analepses sempre que se precisa explicar algum comportamento dos personagens a
partir de um acontecimento anterior.
Os personagens são, majoritariamente, animais com características humanas.
Eles falam, pensam e sentem como seres humanos. De suas características animais,
predominam-se apenas as necessárias para a caracterização: como o ato de cavar de
Vítor, ou a bela pelagem de Dalva. Os personagens humanos são personagens tipos, já
que são vistos apenas por sua categoria social, como a Dona-da-casa, e não tem um
papel decisivo na narrativa, toda protagonizada pelos animais.
A narração de O sofá estampado é feita em terceira pessoa, e o narrador é do
tipo observador. Então, ele não participa da narrativa enquanto personagem, mas é
capaz de analisar as ações e os pensamentos delas, sendo, então, onisciente.
A família tem papel bastante importante na diegese, pois ao mesmo tempo em
que simboliza a tentativa de manutenção de um núcleo patriarcal por parte do pai, que
tenta fazer com que Vítor siga seus passos na venda de carapaças, e a mãe que é seu
esteio, mediando os conflitos entre os dois, a figura da avó rompe com esse estereótipo
de família. Ao chegar na vida de Vítor, tem um papel decisivo, pois é a partir do
convívio com ela que ele irá conhecer formas de existir que não sejam somente
centradas nas expectativas de seus pais.
O sofá estampado tem como característica a chamada para discussão de
problemas sociais. A personagem Dalva é vetor para problematizar a alienação

110
provocada pela televisão. Ela acredita piamente no que os programas televisivos
apresentam, e deseja tudo que vê ser comercializado pelas propagandas. Seu vício na
televisão a afasta de todos, especialmente, de seu namorado Vítor. Já a avó de Vítor
convida o leitor para refletir acerca da importância de se posicionar em relação a causas
sociais. A sua existência gira em torno da luta por melhores condições para os animais e
para os índios, tanto que é assassinada em um de seus protestos na floresta. Luta contra
as injustiças, mas também contra o crescimento econômico desenfreado, pois ele acaba
por produzir mais desigualdade social.

2.3.3 Ana Maria Machado: a defesa do não ser

— Um homem que adora ficar na cozinha e uma mulher


que gosta de viajar sozinha... Não é só uma rima. É, isso
sim, um sinal dos tempos. Papéis trocados. Duas ideias
impensáveis no século XIX. Uma contribuição de nosso
século para a história da humanidade.
(Ana Maria Machado,
A audácia dessa mulher).

Ana Maria Machado nasceu em 1941, no Rio de Janeiro. Formou-se Letras,


atuou como professora universitária. Começou a escrever literatura infantil e juvenil em
1969, contribuindo para a revista Recreio. Atuou, também, em programas de rádio e já
teve uma livraria, Livraria Malasarte, voltadas para o público infantil e juvenil.
Logo após o mestrado, já casada, escrevia para a revista Realidade e para a
Enciclopédia Bloch. Ao mesmo tempo, também atuava como tradutora e continuava
pintando. Em 1969, sofre com a ditadura civil-militar, já que foi presa, bem como
alguns de seus amigos e alunos.
Exilou-se em Paris, em 1970. Escreve sobre o exílio tempos depois, em Tropical
sol da liberdade. Em Paris, deu aula na Sorbonne e foi colunista da revista francesa Elle,
além de ter trabalhado, também, em uma biblioteca. Também em Paris fez o doutorado,
sob orientação de Roland Barthes. Sua tese deu origem ao livro O Recado do Nome, que
sobre a obra de Guimarães Rosa.
Voltou para o Brasil em 1972, e atuou, nesse momento, no jornalismo e na
televisão. Seu primeiro livro infantil foi Bento que-bento-é-o-frade, publicado em 1977.

111
É a escritora brasileira de literatura infantil e juvenil mais premiada, sendo, desde 1993,
hors-concours da FNLIJ. Recebeu, em 2000, o Prêmio Hans Christian Andersen. Tem
mais de uma centena de livros escritos em língua portuguesa; a maior parte voltada para
o público infantil e juvenil.
Em 1983, publicou seu primeiro livro para adultos, Alice e Ulisses. Por essa
época, também, seus livros começavam a chegar ao exterior. Em 2003, entrou para a
Academia Brasileira de Letras, na vaga de Evandro Lins e Silva. Foi a primeira vez que
se elegeu para a ABL um autor com obra significativa para o público infantil.33
Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado ([1983] 2007), tem como narradora
protagonista a adolescente Isabel Miranda, a Bisa Bia. Na narrativa, a protagonista
conta como conheceu a história de sua avó: ―dentro do quarto da minha mãe tinha um
armário, dentro do armário tinha uma gaveta, dentro da gaveta tinha uma caixa, dentro
da caixa tinha um envelope, dentro do envelope tinha um monte de retratos, dentro de
um retrato tinha Bisa Bia‖ (MACHADO, 2007, p. 8).
Há três gerações de mulheres representadas no universo ficcional de Bisa Bia,
Bisa Bel. Cada uma traz a voz das mulheres das gerações a que são correspondentes: do
presente, a personagem é Isabel, que encontra a foto de sua avó e se depara com todo
um universo distinto do seu; do passado, tem-se como representante a personagem Bisa
Bia, e o futuro é representado por Neta Beta, bisneta de Isabel.
A linguagem utilizada é bastante próxima da coloquialidade e há exploração de
diálogos longos entre crianças. Os espaços nos quais as personagens circulam são três: a
casa de Isabel, a escola e a rua, remetendo o leitor a um tempo em que havia a utilização
desse espaço enquanto local de brincadeiras. O espaço, contudo, não é decisivo na
narrativa, pois serve para ambientar os lugares nos quais circulam as personagens.
O tempo utilizado é o contemporâneo da diegese. Mesmo no momento em que
há o embate entre gerações, tanto o passado quanto o futuro são trazidos para o tempo
da protagonista, Bisa Bia, que também é a narradora. Ela apresenta, constantemente, sua
avaliação às situações vivenciadas. Toda a narrativa passa por seu crivo.
É durante uma das arrumações repentinas da mãe que um porta-retratos salta à
vista e Bisa Bel se depara com uma imagem da avó. Ela e sua mãe, diante de algumas
fotografias antigas, voltam a um passado no qual Bisa Bia nunca esteve para conhecer a

33
As informações sobre a vida e obra de Ana Maria Machado foram obtidas em seu site:
https://www.aancart.org/ana-maria-machado/. Acesso em: 17 out. 2019.

112
história da infância de sua mãe. Enxergar a mãe ainda criança provoca, em Bisa Bia, um
misto de sentimentos. Aos poucos, elas vão entrando nesse mundo, muito distante de
sua realidade. A mãe a vai apresentando o universo de sua infância, e, aos poucos, Bisa
Bia vai mergulhando no passado.
A descoberta da existência de uma bisavó provoca um interesse muito grande
em Bisa Bia, que se propõe a saber tudo a respeito dela. Há, a partir daí, uma intensa
exploração do imaginário da protagonista. A menina, quanto mais conhece o mundo da
avó, mais vai fazendo com que as crenças do presente dialoguem com as do passado.
Inicia-se, então, um processo no qual a menina consegue elaborar um paralelo entre os
costumes de sua realidade com o mundo da avó.
Após Isabel insistir, sua mãe a deixa ficar, por um tempo, com o retrato. A
menina, por sua vez, quer andar com ele todo o tempo. Nesse momento, começam a ser
percebidos elementos insólitos na narrativa, pois no momento que Isabel começa a
andar com o retrato da bisavó, a bisavó começa a dialogar com ela e a demonstrar
vontades próprias, transpondo a barreira do real.
Aos poucos, os diálogos entre as personagens vão elucidando gerações distintas,
e que enxergam as práticas humanas de modo bastante diferentes. Ao mesmo tempo em
que se admiram em relação a alguns aspectos dessas práticas, em outros, as distinções
provocam enfrentamentos entre as personagens, especialmente no que tange às relações
de gênero.
Isabel não entende porque a avó enxerga as mulheres como pessoas que devem
ser protegidas, e agirem de modo a agradar os homens. Ela não concorda com a crença
da avó no que diz respeito à necessidade de as meninas serem mais contidas, ou melhor
comportadas do que os meninos, como se determinadas atividades estivessem sempre
restritas a elas. O contraponto da voz da avó evidencia a carga de valores atribuídos às
mulheres, vinda de uma geração muito anterior a Bisa Bel. Como a sua mãe não
reproduzia esse comportamento, tais questões não faziam sentido para ela.
A narrativa se encerra com Isabel se entendendo, finalmente, com Bisa Bia e
com Neta Beta, já que uma acaba ajudando a outra a reverificar seus modos de enxergar
a mulher, e o relacionamento entre homens e mulheres. Juntas, vão questionando os
valores sociais atribuídos a homens e mulheres, e contatando novas formas de agir no
mundo. A narrativa finaliza com uma imagem bastante simbólica das relações entre as
mulheres: elas estão, juntas, trançando os cabelos uma da outra, e problematizando as
relações entre homens e mulheres.

113
2.3.4 Jane Tutikian: sonhos como rupturas

Aprendi uma vez a olhar o mundo de cabeça para baixo.


Já pensaste como é que pode funcionar em determinados
momentos? O que é ruim fica bom, o que é infeliz fica
feliz, o que é triste fica alegre e, quando a gente olha
para o chão, vê o céu.
(Jane Tutikian,
A rua dos secretos amores).

Jane Tutikian nasceu em 1952, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. É


formada em Letras, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição pela
qual também é doutora em Literatura Comparada. Em 1976, tornou-se colaboradora do
suplemento ―Mulher‖, da Folha da Tarde. Atuou escrevendo para jornais durante boa
parte de sua carreira.
Em 1978, recebeu seu primeiro prêmio na literatura: o Destaque, Prêmio Apesul
Revelação Literária. Em 1980, começou a lecionar na Rede Pública Estadual. Na rede
escolar, foi, também, diretora. Seu primeiro livro publicado foi Batalha Naval. Em
1984, publicou A cor do azul, pelo qual recebeu Menção Honrosa da Fundação
Nacional do Livro Infantil e juvenil e o Prêmio Jabuti.
Recebeu, ainda, como escritora, recebeu os Prêmios Érico Veríssimo, da Câmara
Municipal de Porto Alegre, Gralha Azul de Literatura Brasileira da Assembleia
Legislativa do Estado do Paraná, Tibicuera de Literatura Infanto-Juvenil da Secretaria
Municipal de Cultura de Porto Alegre, Prêmio Açorianos, na categoria infantojuvenil,
da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, entre outros. Suas publicações
envolvem contos, novelas e romances voltados, especialmente, para o público jovem.
Atua, hoje, como professora universitária: é professora titular no Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
instituição na qual foi Diretora do Instituto de Letras e, hoje, é vice-reitora da
instituição.
Como escritora, e publicou, entre outros, Batalha naval, O Sentido das estações,
A rua dos secretos amores, Entre Mulheres, Geração Traída e Um Time Muito

114
Especial. Sua última publicação foi Ele sabe, voltado, assim como a maior parte de sua
produção, para o público adolescente34.
A cor do azul, de Jane Tutikian ([1984] 2005), é uma novela organizada em sete
capítulos, e narra a chegada da adolescência à vida de uma menina de treze anos,
narradora-protagonista. A história se centra nas primeiras descobertas adolescentes da
garota, não nomeada, como o primeiro amor, as primeiras necessidades de criar um
espaço sem mãe, as primeiras preocupações com o corpo e com a estética, e a chegada
do primeiro ciclo menstrual. A diegese possui algumas analepses, que interrompem a
linearidade da narrativa, geralmente, para situar algum evento do passado, como, por
exemplo, quando ela conta a respeito da morte do pai. É a única das narrativas do
corpus que se centra em personagens negras: a mãe e a filha. O núcleo familiar é
composto somente pelas duas, pois o pai foi assassinado quando ela era pequena.
A história é ambientada em uma rua pobre, na qual a menina vive pequenas
aventuras com seus seis amigos. Entre as aventuras, está a que é central na narrativa: a
chegada de um circo à rua. A diegese acompanha desde as primeiras negociações para
montagem do circo, até o momento em que ele vai embora, e a rua retorna à sua
normalidade.
São descritas as dificuldades geradas pela da falta de dinheiro da protagonista e
de sua mãe, mas explora-se de modo mais incisivo, as noções de partilha originadas da
pobreza de todos da vila, tanto entre os adolescentes protagonistas da narrativa, quanto
dos adultos, que reconhecem uns nos outros a dificuldade que comungam
Boa parte da obra descreve o encontro mágico da narradora-protagonista com o
circo. Ali, ela descobre um mundo mágico que extrapola sua realidade carente. No
circo, as luzes, as cores e o encanto a faziam esquecer momentaneamente de sua vida
sofrida, e, somente, ficasse deslumbrada com aquele cenário.
A narrativa de A cor do azul parece corresponder ao que Antonio Cuevas (2012)
chama de respeito aos códigos juvenis, que ele defende serem cinco: 1 – para ele, os
jovens são mais abertos a acreditar em mundos inexistentes, por isso o fantástico é tão
explorado nas narrativas para esse público; 2 – os jovens criam fortes vínculos sociais,
por isso, nas obras destinadas ao jovem é comum a existência de grupos de amigos
inseparáveis; 3 – os jovens vivem uma etapa vital de reconhecimento de sua

34
As informações sobre a vida e obra de Jane Tutikian foram obtidas em seu site:
http://janetutikian.com.br/?pg=4102. Acesso em: 17 out. 2019.

115
sexualidade, e, por isso, os temas amorosos são bem aceitos por esse público; 4 – os
jovens sempre se sentem incompreendidos, e isso se reflete em narrativas cujos
personagens jovens se isolam da família, acreditando que eles não o entendem; 5 – os
jovens buscam um reconhecimento e um lugar no mundo, ou seja, buscam elaborar a
sua própria identidade, frente aos conflitos surgidos com as mudanças físicas e
psicológicas provenientes da adolescência.
Em A cor do azul, por exemplo, esse respeito aos códigos juvenis se confirma: 1
–o espaço do circo é quem irá transpor os personagens, se não para um mundo
fantástico, mas para um mundo de imaginação e inventividade; 2 – há um protagonismo
de grupo importante na narrativa, pois as aventuras são vividas em conjunto pelos seis
amigos representados; 3 – a protagonista vive um dilema com sua primeira paixão, pois
ao mesmo tempo que quer ser vista pelo menino por quem está interessada, também se
acha feia demais, e não gosta de seus cabelos crespos; 4 – a protagonista começa a se
incomodar com a condição financeira de sua família, e desconta na mãe a sua
frustração; 5 – a narradora protagonista tenta se constituir em meio ao emaranhado de
sensações nunca sentidas.

2.3.5 Eliane Ganem: a velhice em descoberta

Mas nunca se deve menosprezar a arte. Fechado o cerco


é na arte que explode a melhor metáfora. Chico Buarque,
o poeta da resistência, cantava de uma forma inusitada
tudo o que os jornais não podiam.
(Eliane Ganem,
A espera: a história de Ipanema).

Eliane Ganem nasceu em 1947, no Rio de Janeiro. É escritora, jornalista e


publicitária. É doutora em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo, Mestre
em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada em
Jornalismo. Como jornalista, atuou no Jornal do Brasil, com coluna própria sobre
Literatura Infantojuvenil durante alguns anos.
Ganem tem trinta e dois livros publicados no Brasil e no exterior. Recebeu o
Prêmio Monteiro Lobato, da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Bienal do Instituto

116
Nacional do Livro, Prêmio Alfredo Machado Quintella da Fundação Nacional do Livro,
Prêmio Selo de Ouro da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e o Prêmio de
Dramaturgia do Instituto Nacional de Artes Cênicas, entre outros. Compõe o Catálogo
da Feira de Frankfurt entre os vinte e cinco principais escritores brasileiros do gênero
infantojuvenil.
É, atualmente, além de escritora, professora da Universidade Federal
Fluminense. Na instituição, foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Arte/UFF. Como editora, recebeu o Prêmio Personalidade Ano Internacional
da Criança pelo seu trabalho nas editoras Paz e Terra e Codecri.
É autora dos livros para o público infantil e juvenil, entre outros, de Faustino,
um Fausto nordestino, O coração de Corali, Uma ideia sem tamanho, O caso Elefante
Dourado e As Treze Chaves. A obra que analisamos aqui, O outro lado do tabuleiro
(1985), recebeu os prêmios Alfredo Machado Quintella da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil e Selo de Ouro - O Melhor para o Jovem - da Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil35.
O outro lado do tabuleiro (1985), de Eliane Ganem, encontra-se com uma série
de outras que eram comuns para a juventude na época: a narrativa policial e de
suspense. Diferentemente de outros títulos nacionais, contudo, observamos que em O
outro lado do tabuleiro há uma protagonista mulher: Judith, de setenta e dois anos. A
obra é a primeira de uma trilogia seguida pelos títulos: O caso do elefante dourado e As
treze chaves.
Destacamos, na narrativa, a inserção de passagens críticas em relação ao
crescimento urbano e suas consequências, especialmente, para a acentuação das
desigualdades sociais. A protagonista é incisiva em relação ao modo como os sujeitos
têm importância desigual em uma sociedade que funcione por meio de uma lógica
capitalista, e o papel da arte para constituir sujeitos diferentes. Acentuamos, ainda, as
duras críticas traçadas à ditadura civil-militar, de modo bastante direto.
A trama gira em torno de Judith, de setenta e dois anos, que, na volta para casa,
de metrô, no Rio de Janeiro, acaba envolvida em um crime. Um homem morre no
assento próximo ao seu, e a menina que estava ao lado dele sofre uma tentativa de
sequestro. Ela, agilmente, consegue impedir o sequestro, e se apoderar da menina, que

35
As informações sobre a vida e obra de Eliane Ganem foram obtidas em seu site:
http://www.elianeganem.com/. Acesso em: 17 out. 2019.

117
leva para a delegacia. A menina, contudo, é sequestrada enquanto está na casa de Judith.
Esta, por sua vez, se encarrega de tentar descobrir onde e com quem a menina está.
A narrativa policial, ou romance de enigma, como aponta Sandra Reimão (1983)
em O que é romance policial?, se caracteriza por ter como centro o propósito de se
resolver um enigma, que é o desencadeante da narrativa, bem como a busca de sua
solução. Assim que se esclarece o enigma, a narrativa se encerra. Gênero que tem sua
gênese na escrita de Edgar Alan Põe, e com a introdução, por parte dele, de uma
estrutura narrativa organizada em torno do enigma, surge o romance policial, que
somente foi possível com a alteração na maneira por meio da qual a sociedade lidava
com o criminoso. Se, na Idade Média, as infrações eram resolvidas com um acordo
entre as partes lesadas, com o surgimento do poder judiciário, aprimora-se a ideia do
crime como uma infração não somente a outro indivíduo, mas ao estado.
A partir da concepção construída, após a Idade Média, do criminoso como um
inimigo social, Põe escreve aquele que é considerado o primeiro romance policial:
Assassinatos da rua Morgue. O que falta para o criminoso é o sentimento de ética e de
moral, o que fará com que surja, mais adiante, segundo Reimão (1983), a ideia de gênio
do crime, que se opõe ao gênio da justiça, o detetive. Em O outro lado do tabuleiro, a
protagonista reconhece, também, o sequestrador como uma figura bastante inteligente:
―[...] Ah, inspetor, já não sei mais se torço pela gente ou pelo brilhantismo desses
bandidos‖ (GANEM, 2004, p. 126).
A narrativa de enigma clássica, conforme apontam Medeiros e Albuquerque
(1979), conta com duas histórias distintas: uma que é voltada ao crime, e, a segunda, ao
inquérito. Nas narrativas clássicas de enigma, garante-se a imunidade do detetive, e,
portanto, não há ação externa aos limites da racionalização lógica. O enfoque recai
sobre a forma de investigação acerca da ação passada, bem como sobre o modo por
meio do qual o inquérito é conduzido.
De acordo com Jorge Marques (2016), a escrita, por mulheres, de ficção policial,
é inaugurada por Pagu, nos anos de 1940, com a Saga macabra ([1944] 1989). Nessa
época, Pagu dispunha de um pseudônimo masculino estrangeiro, King Shelter, devido
ao desprestígio que o gênero tinha no meio literário. Como destaca Marques (2016), a
escolha de um pseudônimo estrangeiro masculino tanto protegeu Pagu da associação
com a produção de literatura de massa, e, também, possibilitava maior sucesso, já que
autores estrangeiros de ficção policial já estavam sendo importados, e, portanto, nomes
estrangeiros tinham maior aceitação entre o público.

118
Pagu, no entanto, produzia contos. A primeira escritora de romances policiais no
Brasil é Lúcia Machado de Almeida, que se dedicou à produção literária para a
juventude. Seus títulos foram publicados pela Coleção Vaga-Lume, que foi fundamental
para a aproximação do adolescente com o livro: ―Ainda que muitos dos volumes
constituam efetivamente paraliteratura, não é possível deixar de se observar a
importância que eles tiveram no imaginário e na formação daqueles que hoje já
passaram dos 30 anos de idade‖ (MARQUES, 2016, p. 185)36.
Em outra publicação, acerca da ―Literatura policial brasileira: dificuldades e
especificidades‖, Reimão (2017) destaca que o gênero policial, no Brasil, teve o gênero
cômico acentuado, o que foi importante para demarcar a diferença entre as narrativas
policiais brasileiras de modelos europeus e norte-americanos do gênero. Essa estratégia
é bastante adotada em O outro lado do tabuleiro, pois o delegado, a figura que deveria
auxiliar Judith nas investigações, é desajeitado e sem poder de liderança, mostrando-se
como uma figura desconsertada e cômica.
A inserção de mulheres idosas no cerne da narrativa policial já havia sido feita,
também, pela inglesa Agatha Christie, bastante popular entre os leitores brasileiros. O
outro lado do tabuleiro, inclusive, promove intertextualidade com as outras da autora.
Judith, aliás, se assemelha a uma personagem bastante presente na obra de Ágatha
Christie: Miss Jane Marple, uma idosa solteira, que leva vida resolvendo mistérios.
Assim como Judith, também tem uma vida bastante comum, realizando tarefas como
jardinagem e tricotando. Judith é, ela própria, leitora de Christie: ―[...] Lia Agatha
Christie. Estava ligada. [...] Ali ficaria até nove, o telefone do lado, lendo os Dez
negrinhos. (GANEM, 2004, p. 161).
A voz narrativa, em O outro lado do tabuleiro, é em terceira pessoa, com a
presença de um narrador onisciente. A diegese inicia-se com Judith voltando para casa,
de metrô. Durante a viagem, ela observa as pessoas que compõem a cena narrativa e
pensa sobre o cenário que tem diante de si.
Sobre o ambiente urbano que se apresenta na abertura da diegese, Judith irá
apresentar diversas observações, inclusive, sobre as diferenças sociais que se acentuam

36
Marques faz, no capítulo de livro ―Anotações sobre os primórdios da autoria feminina no romance
policial brasileiro‖, um estudo da obra de Lúcia Machado de Almeida, apontando, desde a precariedade
da narrativa e dos problemas na construção linguísticas da primeira publicação da autora, O caso da
borboleta Atíria, até crescimento da qualidade da escrita de Almeida com O escaravelho do diabo, com
o propósito de demonstrar a importância da autora para a produção ficcional de suspense para a
juventude, mas também para a aproximação desse grupo social com o universo da leitura literária.

119
com a urbanização. O cenário urbano, é posto como um lugar no qual as
individualidades desaparecem, e as pessoas se tornam os grupos sociais que
representam. Ao mesmo tempo, as diferenças de classe serão postas, como se verá,
como um elemento a ser criticado.
A linguagem é organizada por meio de frases curtas, com pouco uso de
conectivos entre elas. Como se percebe, ainda, a protagonista não é observadora
somente do mundo que a cerceia, mas também sobre um dos aspectos centrais da obra:
as reflexões em torno da idade, já que ela já passa dos setenta, e das dificuldades que ela
carrega. Ela analisa os produtos encarecendo, observa as dificuldades que vêm sendo
enfrentadas por ela e observa, especialmente, o crescimento das cidades e as
dificuldades de viver em um centro urbanizado e caótico: ―Pelo visto ia chegar quase
sete em casa. Também, que idéia pegar o metrô. Antes tivesse ido direto de ônibus.
Levantou os ombros. Tudo cheio nessa época do ano, pensou (GANEM, p. 10). Na
tradição inglesa, berço das narrativas policiais, o trem é um importante cenário para a
narrativa policial. Na narrativa de Ganem, transfere-se esse espaço para o metrô,
transporte público predominante no Rio de Janeiro.

2.3.6 Alciene Ribeiro: reinvenções a partir da ausência

Num ângulo discreto do velório a mulher questiona


adiamentos vãos. Questiona o silêncio imóvel do homem,
os porquês de travesseiros expectantes e manhãs
intocadas e xícaras gêmeas. A palidez aureolada de
flores repousa sob olhares compungidos, e o homem
tranca respostas nos lábios hirtos para todo o sempre.
(Alciene Ribeiro,
―A porta de serviço é serventia
da morte‖, em Mulher explícita).

Alciene Ribeiro Leite nasceu em 1939, na zona rural de Ituiutaba, Minas Gerais.
Iniciou os estudos aos oito anos de idade, em 1947, quando sua família se mudou para a
cidade. Começou a trabalhar cedo, como caixa de loja, o que a obrigou a interromper os
estudos. Somente em 1967 voltou aos bancos escolares para realizar o Curso Normal,

120
hoje, período correspondente ao ensino médio. Concluiu a licenciatura em História, em
1975, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte.
Iniciou, no universo da escrita, por meio do ―Suplemento Literário‖, de Minas
Gerais. O primeiro deles foi o conto ―Antevéspera de finados‖, que foi classificado em
1º lugar no I Festival de Teatro Amador de Ituiutaba. No Suplemento Literário, também
publicava textos de crítica literária.
Entre 1977 e 1982, assinou diversas colunas em jornais e atuou no campo da
cultura, tendo sido Chefe da Divisão de Cultura em Ituiutaba. Como jornalista, editou
duas seções no jornal Folha de Ituiutaba: ―Literatura‖ e ―Folha Mulher‖.
Publicou seu primeiro conto em livro em 1977: ―Vinte anos de Amélia‖, na
ontologia Queda de braço, de Glauco Mattoso e Nilto Maciel. Por suas publicações
literárias, recebeu vários prêmios, entre eles, o Prêmio Coleção do Pinto, voltado para a
literatura infantil, o Galeão Coutinho, da União Brasileira de Escritores de 1978, por seu
primeiro livro de contos e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte.
Como aponta Natália Portela (2018), Alciene Ribeiro foi a primeira mulher
ituiutabana que fez da escrita literária sua profissão, vem publicando obras literárias
para crianças, jovens e adultos. Para o público infantil e juvenil, publicou: Borracha
nele! (1985); Tecelã de sonhos. (1987); Ora, pipocas! (1988); Moça Baleia. (1990);
Idéias às pampas (1990); Bicho de goiaba. (1992); Lagarta atrevida, borboleta e vida
(2001) Gêmeos muito diferentes (2002); Troca-troca (2010) (PORTELA, 2018, p. 16)37.
Sobre sua obra, Karina Gomes (2019) analisa:

A diversidade de arquivos encontrados em sua fortuna crítica expõe o


universo literário de Alciene Ribeiro Leite, sua importância no
circuito literário de Minas Gerais nas décadas de 80 e 90 e a
profundidade de sua obra, que tem temáticas e assuntos que exploram
o cotidiano e levam à reflexão, principalmente com relação ao
feminino e à condição da mulher na segunda metade do século XX em
uma sociedade agrária, patriarcal, provinciana, em transmutação para
o mundo urbano, consumista e em plena revolução dos costumes, em
período no qual o Brasil via-se sufocado pelo regime militar.
(GOMES, 2019, p. 85)

37
As informações sobre a vida e obra de Alciene Ribeiro foram obtidas no site do Grupo de Pesquisa
Literatura e Vida, http://gpalcieneribeiro.blogspot.com/p/fortuna-critica.html e na dissertação de
mestrado de Natália Tano Portela (2018).

121
Sua última publicação foi pela editora Pangeia, Mulher explícita (2019). A obra
reúne seus contos inéditos e contos já publicados anteriormente, seja em coletâneas ou
suplementos literários. Neste último livro, a mineira se centra em uma temática
recorrente em sua escrita: a mulher.
O mágico de olho verde é uma novela organizada em dezesseis capítulos que se
centra na vida de Mila, uma pré-adolescente que é a narradora-protagonista da narrativa.
Ela sofre, logo na abertura da diegese, com o falecimento recente do pai. Devido à
lacuna deixada pelo patriarca na família, ela está em constante confronto com a mãe,
pois, para ela, a mãe já se esqueceu dele. Ela, então, se sente a responsável por manter
viva as memórias de seu pai. Ao lado desse esforço para impedir que a figura do pai se
dilua, ela revela conflitos inerentes à adolescência e seu amadurecimento ao longo da
narrativa. Carmem, a mãe, por sua vez, evidencia as dificuldades para manter a família
após o falecimento do marido, único provedor do lar até então, as dificuldades para lidar
com a resistência da filha, ao mesmo tempo em que traz à tona os conflitos que tinha
com o marido.
Na narrativa, evidenciamos um recurso bastante comum à literatura juvenil, que
é o de representar o amadurecimento da personagem jovem conforme ela cresce e,
progressivamente, resolve os conflitos familiares. O mágico de olho verde aborda,
também, formas de emancipação feminina e, neste artigo, elas serão analisadas seguindo
duas categorias centrais: a casa e a rua. Na obra, a personagem Carmem está reclusa ao
lar, e, conforme se dá a sua emancipação, ela conquista o espaço da rua, em um
processo similar à da própria história das mulheres.
A linguagem, característica importante a ser analisado na literatura juvenil, em O
mágico de olho verde, é realista e muito próxima da coloquialidade. A protagonista está
entrando na adolescência, e a linguagem promove a aproximação com a idade da
protagonista, mas, também, com a do público ao qual se destina.
A narrativa, feita in media res, se inicia com Mila, a narradora protagonista
falando sobre sua experiência de vida. Apresenta, de início, o que será o fio condutor da
narrativa: a morte do pai.
Os eventos relatados na diegese são organizados com base nesse acontecimento,
pois a família de Mila está se reorganizando após o falecimento do patriarca, e, em
vários momentos, há analepses na narrativa para explicar as razões da relação tão
conflituosa entre Mila e a mãe. As vozes narrativas se centram ora nos confrontos entre
mãe e filha, ora nas problemáticas advindas da chegada de Mila à adolescência, ora nas

122
dificuldades da mãe com a recente viuvez. Assim, narração oscila entre o tempo
presente e entre as observações de Mila sobre o tempo em que o pai era vivo, momentos
em que se volta para o passado. No tempo presente, há linearidade na sequência de
acontecimentos. Já no tempo passado, retorna-se para algum momento importante para
esclarecimento do tempo presente de modo não linear. As analepses são essenciais,
especialmente, para que o leitor possa ter acesso à outra imagem do pai, não idealizada,
evocada pelo olhar da mãe, que, quando narra, mostra os conflitos vivenciados com o
marido.

123
CAPÍTULO 3: VOZES FEMINISTAS NAS PERSONAGENS DA LITERATURA
JUVENIL

Vi as raízes. As mãos estendidas, chamando-me.


[...]
Tudo ficou em silêncio quando se foi; não escutei sons de
templo, movimento de sacerdotes. Só a mulher habita
esta moradia e seu jardim. Não tem família, nem senhor,
e não é deusa porque teme: trancou portas e cadeados
antes de ir embora.
(Gioconda Belli,
A mulher habitada).

A produção e difusão da literatura escrita por mulheres têm uma virada


significativa durante a década de 1980 a partir do fortalecimento da crítica literária
feminista, que melhor antologização da literatura escrita por mulheres, ampliou a
participação de nomes de mulheres no sistema literário e na historiografia brasileira da
literatura, entre outras conquistas no que diz respeito à participação da mulher no campo
literário.
A ampliação da crítica feminista, possível a partir da segunda onda feminista no
Brasil, provocou influxos, também, no campo literário juvenil, pois possibilitou que o
discurso feminista fosse incorporado nessa produção. Como se discutiu no segundo
capítulo, na passagem da década de 1970 para a década de 1980, houve verdadeira
reinvenção dos temas abordados na literatura juvenil escrita por mulheres, que passou a
contar com um discurso crítico das relações de gênero.
Ao considerar a incorporação do discurso feminista na literatura juvenil, nossa
pesquisa se volta para a análise de um corpus de nove narrativas publicadas entre 1979
e 1984: cinco longas e quatro contos de fadas de autoria de Marina Colasanti presentes
em Uma ideia toda azul (1979), seguindo-se de O sofá estampado, de Lygia Bojunga
(1980) Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado (1982) A cor do azul, de Jane
Tutikian (1984) O mágico de olho verde, de Alciene Ribeiro Leite (1984) e O outro
lado do tabuleiro, de Eliane Ganem (1984).
A ginocrítica (SHOWALTER, 1994), na qual se inscreve nosso trabalho, como
já apontamos, não compreende as mulheres como um grupo uniforme e coeso e que por
isso é necessário que se estude suas obras considerando a categoria gênero como

124
ferramenta de análise. Na verdade, a ginocrítica almeja compreender a produção
literária de mulheres a partir da consideração de que homens e mulheres ocupam
espaços distintos e que essa distinção se revela, de múltiplas formas, nas produções
artísticas. Como mostramos em ―Mulheres na literatura juvenil brasileira‖, o estudo do
sistema literário brasileiro permitiu entender de que maneira a mulher ocupou um
espaço significativo na produção premiada na passagem da década de 1970 para 1980.
A análise corroborou a assertiva de que as assimetrias de gênero impactaram
sobremaneira na valorização da mulher enquanto escritora na literatura infantil e
juvenil, campos que não dispunham de tanta atenção dos escritores homens que, à
época, tinha mais facilidade que a mulher para se consolidar na literatura para adultos.
Ao considerarmos a alteração no sistema literário promovida pela maior participação
das mulheres no mercado do livro juvenil, conforme discutimos no Capítulo 2,
favorecida pela segunda onda feminista, defende-se que há um movimento ético que
possibilita a ressignificação da relação mulher e escrita literária.
Importa-nos, agora, em um segundo momento, entender de que maneira as
assimetrias de gênero são reveladas, também, nas narrativas selecionadas para análise.
É nosso propósito, então, neste capítulo, analisar as estratégias discursivas por
meio das quais as autoras revelam os influxos das alterações promovidas no sistema
literário em sua escrita, pois, segundo Showalter (1994), é essencial, segundo a
perspectiva da ginocrítica, é necessário entender tanto o saber que as mulheres
acumulam sobre si próprias, mas também seu papel enquanto agentes, seja na história,
na filosofia, nas ciências, na literatura, entre outros. Como defende a autora, a crítica
feminista envolve:

[...] o estudo da mulher como escritora, e seus tópicos são a história,


os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de
mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da
carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma
tradição literária de mulheres. (SHOWALTER, 1994, p. 29).

Como vemos em Showalter (1994), a crítica feminista permite que se delineiem


os meandros da relação da mulher e escrita literária, mas também, como ela aponta mais
adiante, que se entendam as diferenças das mulheres como escritoras sob outros
aspectos: classe, raça, nacionalidade e história são citados por ela como determinantes
literários que são tão significativos quanto o gênero. Assim, caso se deseje falar em uma
cultura das mulheres, ao estudar a sua produção, deve-se tratar das múltiplas

125
experiências dentro de um todo cultural. A crítica feminista Toril Moi (1988) aponta
que ―[...] todos falam a partir de uma posição conformada por fatores culturais,
políticos, sociais e pessoais‖ (MOI, 1988, p. 55).
Nota-se que a incorporação do discurso feminista, nas narrativas, é feita de
modo diverso. São diversas, também, as personagens no que tange às representações de
personagens femininas e masculinas. Algumas incorporam um discurso feminista
bastante direto e claro, enquanto que outras, por meio de uma linguagem mais
metafórica e simbólica, também questionam as desigualdades de gênero.
Entre as estratégias de questionamento do machismo, das assimetrias de gênero
e da hegemonia do discurso patriarcal, elencamos algumas a seguir.
Ironia: algumas personagens, de modo bastante irônico, interrogam as
assimetrias de gênero e o poder masculino, especialmente, as personagens crianças ou
adolescentes. Em Bisa Bia, Bisa Bel há uma discussão constante da neta com a bisavó
sobre papéis de gênero, e a neta busca entender as razões pelas quais a bisavó acredita
que as meninas devem ser mais contidas em seus gestos. No exemplo a seguir, ela tenta
entender porque meninas não devem assoviar:

— E que mal tem assoviar? — desafiei.


[...]
— O que é muito feio não é o assovio. É uma menina assoviando,
uma mocinha que não sabe se comportar e fica com esses modos de
moleque de rua. (MACHADO, 2007, p. 39).

 Interlocução: algumas personagens ou narradores convidam leitores e


leitoras para decisões frente a alguma situação machista, intencionando conduzi-
los a rever suas perspectivas a respeito dos confrontos representados nas
narrativas. No primeiro exemplo a seguir, a dona de Dalva tenta justificar seu
descontentamento com Vítor, e, no segundo, Carmem se convence de que não
deve se relacionar com outro homem após a morte do marido:

Que choque! E claro que ela queria pra Dalva um namorado bem
angorá, mas, já que a Dalva não queria, pelo menos ela queria pra
Dalva um namorado assim... sabe como é que é, não é? (BOJUNGA,
2015, p. 12).
O óbito quita o teto, verdade. Mas manda a fome para o orfanato.
Outro homem tão cedo não, besteira de novo? Só muito bem pensado,
um cara rico, carinhoso. Bonito não, basta de dor de cabeça, o
mulherio de olho. (LEITE, 1984, p. 27).

126
 Inversão dos papéis tradicionais de gênero: algumas qualidades
frequentemente associadas ao masculino ao feminino são invertidas nas obras. Há,
assim, personagens femininas, por exemplo, determinados e fortes lidando com
personagens masculinos confusos e extremamente sensíveis. No exemplo a seguir,
tentando convencer a mãe de que não deve interferir na criminalidade, o filho de
Judith menciona como ele age quando vê um conflito, e contrapõe, assim, sua
imagem com a da mãe:

— Levanta o nariz e passa por cima, ora. Ou você acha que isso só
acontece com você? Outro dia... outro dia mesmo, tava eu muito bem
andando na rua, um pivete, menino, sabe?, roubou a bolsa de uma
dona bem na minha frente... Pergunta se eu me mexi, pergunta se
alguém se mexeu... (GANEM, p. 33).

 Metáfora: especialmente nos contos de fadas, há uso das construções


metafóricas para questionar as relações de poder. As personagens precisam, em
algum momento, enfrentar os grilhões que as aprisionam, e, assim, acabam se
libertando, ou, se ferindo nesse processo. No exemplo a seguir, extraído do conto
―Entre as folhas do verde O‖, a protagonista tem sua natureza selvagem suprimida
pelo parceiro que a quer civilizada:

E no dia em que a primeira lágrima rolou dos olhos dela, o príncipe


pensou ter entendido e mandou chamar o feiticeiro. Quando a corça
acordou, já não era mais corça. Duas pernas só e compridas, um corpo
branco. Tentou levantar, não conseguiu. (COLASANTI, 2015, p. 24).

 Denúncia das desigualdades sociais: as desigualdades de gênero, em


algumas obras, são associadas a outras desigualdades, como as de classe, e,
também, as de raça (esta última apenas em A cor do azul). Assim, algumas obras
acusam outras raízes para a exploração das mulheres além das assimetrias de
gênero. No exemplo a seguir, a protagonista de A cor do azul relata as
dificuldades da mãe, que passava uniformes para um fábrica:

No começo, ela chorava muito e tinha a mão direita enrolada num


pano por causa das bolhas. Depois, como tudo, acostumou, mesmo
porque não encontraria emprego melhor, e acostumamos.
(TUTIKIAN, 2005, p. 19).

127
As estratégias foram organizadas de modo a analisar como as obras do corpus
apontam para uma perspectiva feminista no que diz respeito às emancipações
representadas. Defendemos que a escrita das mulheres, longe de fazer com que estas
constituam um grupo homogêneo, tem influxos, em maior ou menor medida, e de
diferentes maneiras, do momento histórico que se vivenciava na transição entre as
décadas de 1970 e 1980.
Como aponta Regina Dalcastagnè (1999), a literatura revela perspectivas dos
sujeitos e dialoga com a realidade de seu tempo. Para a pesquisadora, ao mesmo tempo
em que a literatura reflete aspectos da vida social de um determinado período, ela
também interfere nas discussões e no modo como se enxerga essa realidade devido a sua
legitimidade, mesmo que não a influencie amplamente a ponto de provocar mudanças
sociais, ainda mais quando se considera a concorrência com vozes de outros segmentos
sociais.
Para entender como são representadas as questões de gênero nas obras aqui
selecionadas, este capítulo se dividirá em quatro momentos. No primeiro, ―O lar‖
analisamos como se constituem as famílias representadas nas narrativas, e o quanto essa
instituição distanciam-se ou aproximam-se dos valores do patriarcado, bem como
verificaremos se o espaço da casa é posto como lugar de afetividade ou de clausura.
No segundo, ―Papéis diluídos‖, procuramos auscultar os momentos em que as
personagens não correspondem aos papéis que foram construídas socialmente para
representar, bem como as estratégias por meio das quais as narrativas apresentam a
desconstrução de tais papéis.
No terceiro momento deste capítulo, intitulado ―O enfrentamento‖, analisaremos
em quais narrativas as personagens que, de fato, enfrentam o discurso do patriarcado e
do machismo e se apresentam como questionadora direta dessas vozes, e quais as
consequências desses enfrentamentos.
No quarto subitem, fazemos uma leitura comparativa das obras analisando que
de maneira elas apontam, em seus atravessamentos, para a construção da autonomia das
personagens e para o questionamento das experiências de gênero representadas nas
obras.

128
3.1 Os lares

O espaço do lar, ainda que seja o ficcional, abriga em seus cômodos conflitos,
enfrentamentos e mágoas ao passo que também guarda memória, afeto, partilhas e
resistência. A análise do espaço da casa evidencia as problemáticas concernentes às
relações familiares, que, devido à proximidade e à relação cotidiana, acabam por ser
exacerbadas. Como aponta Gaston Bachelard (1993), em A poética do espaço, ―[...] a
casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz freqüentemente, nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo‖
(BACHELARD, 1993, p. 200). O estudioso defende que a casa, nosso primeiro refúgio,
determina muito do que seremos, pois é ali que tomamos nossos primeiros aprendizados
antes de migrarmos para o mundo.
Entendemos que o lar, na literatura escrita por mulheres, pode ser representativo
do jogo de poderes entre homens e mulheres, podendo exercer uma função maior do que
mera ambientação: ele pode ser determinante para compreender o modo por meio do
qual as personagens vão demonstrando opressões e resistências, pois, como aponta
Showalter (1994), a crítica feminista ―[...] diz respeito à feminista como leitora e
oferece leituras feministas dos textos que levam em consideração as imagens e
estereótipos das mulheres na literatura, as omissões e falsos juízos sobre mulheres na
crítica‖ (SHOWALTER, 1994, p. 26). Assim, como já evidenciamos, defendemos que
as obras do corpus, como corroboraremos ao longo das análises, apresentam, de
diferentes maneiras, perspectivas feministas, e analisaremos, aqui, como essas
perspectivas são relacionadas com o espaço do lar.
A análise das representações do lar na literatura perpassa pelo entendimento das
relações com a família, com o trabalho doméstico ou remunerado, e outros elementos
relacionados aos papéis desempenhados pelas personagens nesse espaço. Em suas casas,
as mulheres aproximam-se ou distanciam-se do ideário patriarcal. Assim, o lar é posto
como lugar de resistência, de afetos, de enfrentamentos ou de questionamento dos
papéis sociais de gênero, e, portanto, neste subitem, será analisado como as personagens
se relacionam esse espaço. Investigaremos, para tanto, de que maneira se dão as
relações das personagens com esse espaço e se a libertação delas dependem do
rompimento ou da reconfiguração de sua vivência no espaço da casa. Nossa escolha

129
pela análise do lar se deu porque a segunda onda feminista se caracterizou, entre outros
aspectos, por promover uma profunda politização da vida cotidiana.
Devido a uma construção histórica, à mulher coube a função de ser uma
extensão do lar, pelo menos como compreende o senso comum. A amamentação, o
cuidado com os filhos e a divisão social do trabalho condicionaram muitas mulheres
para o interior desse espaço, reservando-as para um suposto domínio e controle das
atividades domésticas, enquanto as atividades do espaço público ficaram a cargo dos
homens.
A segunda onda feminista proporcionou um intenso questionamento das razões e
dos efeitos da associação das mulheres com o espaço doméstico, o que contribuiu com
uma das importantes bandeiras do feminismo: a de que ―o pessoal é político‖.
Expressão replicada e problematizada em publicações feministas 38 da segunda onda
feminista, ela considera que as realidades individuais são um reflexo do modo como a
sociedade se organiza, e, portanto, as dificuldades que mulheres julgavam ser de ordem
doméstica, eram, também, sentidas por outras mulheres.
O sociólogo Roberto DaMatta (1997), analisando o caso específico brasileiro no
que tange à relação das mulheres com o espaço público e o privado, menciona que o
espaço nem sempre existe como um uma dimensão independente e individualizada, pois
precisam ser interpretados considerando outros aspectos sociais. Assim, o estudo do
espaço da casa pela perspectiva da crítica literária feminista favorece o entendimento de
que os domínios da casa não são uma dimensão social independente e sua compreensão
pode revelar as disputas de gênero ali realizadas:

Afinal de contas, o espaço é demarcado quando alguém estabelece


fronteiras, separando um pedaço de chão do outro. Mas nada pode ser
tão simples assim, porque é preciso explicar de que modo as
separações são feitas e como são legitimadas e aceitas pela
comunidade da propriedade privada e suas origens. (DAMATTA,
1997, p. 21).

O espaço é uma categoria complexa por estar imbricada a outras e por ter valor e
organização particular em cada sociedade. No Brasil, como mostra o sociólogo, o
estudo do espaço da casa revela que boa parte das mulheres permaneceram reclusas no

38
Entre as publicações que se valem da expressão ―O pessoal é político‖, há o texto homônimo de Carol
Hanisch, publicado em 1969, e ―Beleza e misoginia‖, de Sheila Jeffreys, publicado em 2005.

130
lar devido a uma tradição patriarcal que coloca o homem como provedor e revela os
valores do masculino e do feminino no espaço privado. Além da reclusão a que
mulheres estiveram submetidas, há, ainda, falseamento de seu poder, pois, por mais que
ela seja o centro das rotinas familiares, os ritos de poder ressaltam apenas os homens,
como demonstra Damatta (1997, p. 26).
Para Beauvoir (2009), a casa tem materializado o ideal de felicidade. Como
descreve a autora de O segundo sexo:

O ideal de felicidade sempre se materializou na casa, na choupana ou


no castelo: encarna a permanência e a separação. É entre seus muros
que a família se constitui numa célula isolada e afirma sua identidade
para além da passagem das gerações; o passado conservado sob forma
de móveis e retratos de antepassados prefigura um futuro sem riscos.
(BEAUVOIR, 2009, p. 582).

Percebemos, então, que a casa pode ser vista como esse espaço acolhedor, no
qual a família se constitui como um seio que nutre, protege os seus e passa sua história
às próximas gerações, mas a literatura escrita por mulheres evidencia, em contrapartida,
que nem sempre a felicidade é concretizada nesse espaço. Buscamos, então, nas obras
que constituem nosso corpus de análise, entender os modos de representação do espaço
da casa, e, por consequência, da família.
Ao espaço da casa uma figura costuma ser imediatamente atrelada: a figura da
mãe. Principal responsável pela educação dos filhos, mãe e lar, às vezes, são
simbióticos nas narrativas ficcionais. Crianças e adolescentes são socializados, em seus
primeiros anos de vida, de formas distintas, e isso determina, em certa medida, os
comportamentos do sujeito em toda a vida adulta. Maccoby (2003), em The two sexes,
reflete acerca do modo como as crianças, desde a primeira idade, participam de
maneiras diferentes do contexto familiar, passando por formas distintas de socialização,
o que determina muito de seu comportamento em sua vida adulta. As diferenças entre o
modo como crianças e adolescentes são socializados estão presentes na literatura juvenil
e nas obras de nosso corpus, pois se percebe que as formas por meio das quais as
meninas são socializadas, nas narrativas, são diferentes das maneiras por meio das quais
os meninos são educados.
É, também, no espaço da casa que a personagens são condicionadas para atuar
no espaço externo. Isso se torna mais evidente na análise dos papéis sociais das
mulheres, tendo em vista que é ali, na casa, espaço historicamente construído como

131
feminino, que as mulheres se elaboram e costuram as relações familiares, conduzindo os
filhos e as filhas a como se comportarem nas diferentes esferas sociais das quais façam
parte. Edna Góis (2015), refletindo sobre o espaço da casa na literatura, alerta para o
fato de que ela pode se transformar de um lugar acolhedor para um local de martírio na
vida adulta ―quando as expectativas dos sujeitos que vivem nela se tornam opostas‖
(GÓIS, 2015, p. 136).
A casa, enquanto espaço de análise, permite entender como se dão as relações
das personagens com sua família, que é uma categoria de análise bastante importante no
que tange à literatura juvenil, pois costuma evidenciar como as personagens se
relacionam com esse lugar. Permite, ainda, entender como as relações entre homens e
mulheres são constituídas, no que diz respeito às assimetrias de gênero. De acordo com
Cara Crandall (2012):

As relações de poder são uma característica importante dos romances


juvenis desde o início do gênero, mas os títulos de hoje refletem cada
vez mais o envolvimento com mulheres jovens, sexualidade feminina
e poder, questões que tem feito parte, cada vez mais, de conversas no
mundo real entre pais, educadores e pesquisadores e as próprias
meninas39. (CRANDALL, 2012, p. 39, tradução nossa).

Como aponta a pesquisadora, a literatura juvenil vem inserindo, de modo


crescente, temas que são relacionados ao mundo do jovem, mas que também são
considerados importantes pelos adultos a sua volta. Assim, por falarmos de um público
específico, ainda em formação, é fundamental entender de que forma as relações de
gênero são abordadas nessa literatura, e o quanto elas contribuem para a construção de
um olhar acerca da necessidade de emancipação da mulher e das reconstruções das
relações de gênero. Como aponta Bakhtin (2011), é necessário ―[...] ver o mundo
através dos valores do outro‖ (BAKHTIN, 2011, p. 27). Assim, acreditamos que, ao
enfrentar diferentes axiomas relacionados às relações humanas na narrativa, os leitores
têm condições de ampliar suas percepções de mundo.

39
Power relations are thus an important feature of YA novels since the genre‘s inception, but today‘s
titles increasingly reflect an engagement with young women, female sexuality, and power, issues that
have become increasingly part of conversations in the real world among parents, educators,
researchers, and girls themselves. (CRANDALL, 2012, p. 39).

132
a. Uma ideia toda azul

Nos contos de Marina Colasanti, as personagens se reelaboram ao longo das


narrativas, entrando em conflito seja com suas crenças, seja com sua família, ou com o
grupo social no qual estão inseridos. Mesmo em contos que não abordem a temática do
gênero, há um intenso questionar, por parte das personagens, das próprias experiências,
e elas saem, assim, transformadas ao final da narrativa. Dos contos de Uma ideia toda
azul, selecionamos quatro contos nos quais há enfrentamento do discurso patriarcal. As
personagens dos contos selecionados enfrentam diretamente uma voz autoritária, e,
nesse processo, se reelaboram. Para Nilma Medeiros (2015), nos contos de Marina
Colasanti, priorizam-se as buscas existenciais enquanto temáticas, havendo a presença
de personagens que se emancipam no que tange às identidades de gênero.
Neste momento, analisaremos dois contos da obra: ―Entre as folhas do verde O‖
e ―A primeira só‖, nos quais o espaço aos quais as personagens são condicionadas ao
longo da diegese são determinantes para a sua atuação.
―Entre as folhas do verde O‖ inicia-se com um príncipe que, em um dia de
caçada, encontra à beira de um riacho, uma criatura que é metade mulher e metade
corça. Ele, fascinado diante da criatura nunca vista, decide capturá-la. A distância, o
príncipe fica um tempo a observá-la enquanto ela, distraidamente, mata sua sede sem
que perceba estar sendo observada. Ele consegue capturar a mulher-corça facilmente
após atravessá-la com uma flecha: ―A mulher ele queria amar, a corça ele queria matar‖
(COLASANTI, 2015, p. 24).
A caçada, porém, não é feita somente por ele: ele dispõe de súditos que o
ajudam. Ela, por sua vez, não tem a oportunidade de lutar, já que está sozinha: ―Então o
príncipe botou a flecha no arco, retesou a corda, atirou bem na pata direita. E quando a
corça-mulher dobrou os joelhos tentando arrancar a flecha, ele correu e a segurou,
chamando homens e cães‖ (COLASANTI, 2015, p. 24). O príncipe, que a captura em
campo aberto, sem chance de defesa e auxiliado por seus homens, não trava uma luta
justa. O príncipe, contudo, não questiona a sua violência, pois a dominação da corça-
mulher é natural para ele, já que ele a deseja. A linguagem que remete à linguagem
imperativa, pois ele é uma autoridade em seu ambiente. Assim, não supõe que a mulher-
corça não deseje estar sob as suas ordens:

133
Então o príncipe botou a flecha no arco, retesou a corda, atirou bem na
pata direita. E quando a corça-mulher dobrou os joelhos tentando
arrancar a flecha, ele correu e a segurou, chamando homens e cães.
Levaram a corça para o castelo. Veio o médico, trataram do ferimento
(COLASANTI, 2015, p. 25).

Ao levá-la para o castelo, o príncipe a tranca imediatamente, trata de seu


ferimento e a mantém enclausurada. Novamente, percebemos a atuação de outras
pessoas no processo de dominação da mulher-corça, pois não foi somente o príncipe
quem a trancou, pois ele contou com auxílio. Porém, somente ele a visitava diariamente:
―Puseram a corça num quarto de porta trancada. Todos os dias o príncipe ia visitá-la. Só
ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais‖ (COLASANTI, 2015, p. 25). Por
estar ferida, ela precisava ficar condicionada às decisões do príncipe, que, mesmo com a
corça-mulher ali aprisionada, não questiona a violência a qual a submete, pois estava
manifestando o seu amor.
A casa, então, reflete é um espaço de clausura para aquela mulher selvagem que
é mantida, ali, aprisionada, contra seus desejos, devido a uma suposta proteção para
atender aos desejos do príncipe. Ele se apaixona a cada vez que olha para a moça, e
tenta convencê-la, em uma língua que para ela é ininteligível, de que a cobriria de joias
e a transformaria totalmente em mulher. É interessante perceber que o desejo de
dominação por parte do príncipe não reflete uma violência direta, mas, sim, uma
violência travestida de afeto e cuidado (BARBIERI, 1993), como se a imposição de seu
amor e de sua condição de vida fosse o ideal para ela, porque ele assim o considera.
Barbieri (1993) defende que uma das dificuldades para a percepção da violência contra
o feminino é que comumente ela é, além de sutil, disfarçada por um discurso de cuidado
e proteção. Por essa razão, mesmo a mulher-corça estando infeliz ao lado do príncipe,
ela se prende à ideia de que o ama para, pelo menos inicialmente, não o abandonar.
A mulher-corça, que acaba se apaixonando pelo príncipe, ao contrário dele,
deseja levá-lo para a floresta e permiti-lo ter a vida de liberdade da qual ela desfruta:
―Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo para a floresta,
que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças
para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho‖ (COLASANTI, 2015, p. 26).
Assim, se, para ele, o objetivo era manter-se em uma vida de civilidade e desfrutando de
suas posses, para ela, o desejo era de que eles dispusessem de toda a liberdade que a
vida fora dos muros do castelo possibilitaria. O príncipe e a mulher-corsa, portanto, não

134
conseguiam se entender apesar de se amarem, como se pode verificar nas passagens a
seguir:

Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só


sabia ouvir a língua do palácio (COLASANTI, 2015, p. 26).

Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da


palavra (COLASANTI, 2015, p. 26).

A conjunção adversativa no início das duas orações apresenta o contraste entre o


príncipe e a corça-mulher. As passagens denunciam que, por mais que os dois
estivessem apaixonados um pelo outro, o desejo de liberdade por parte dela e a vontade
dele de tê-la aprisionada, impedia que se entendessem. A língua do palácio, metáfora da
civilidade, é a marca do que o príncipe considera bom, mas que é visto com suplício
para a prisioneira. Contudo, apesar de serem diferentes em seus desejos, é ele quem
consegue mantê-la aprisionada no castelo. A casa, para ela, portanto, é o lugar da
clausura e do silenciamento, já que, mesmo que ela o amasse, não queria perder sua
liberdade. Ele, contudo, acreditando que ela desejasse estar ali, chama um feiticeiro para
transformá-la em mulher.
O conto dialoga com a máxima de Beauvoir (2009), em O segundo sexo. Como
afirma a filósofa, ―Não se nasce mulher. Torna-se‖ (BEAUVOIR, 2009, p. 361). No
conto, a mulher-corça não tinha desejo de ser. Pelo menos, não a mulher desprovida de
sua liberdade, e dominada pelo príncipe e pela feminilidade: ―Só não tinha a palavra. E
o desejo de ser mulher‖ (COLASANTI, 2015, p. 25). Assim, impedida de manifestar
seu descontentamento, pois não tinha se expressava na mesma linguagem que o
príncipe, ela era obrigada a permanecer naquele espaço.
A ausência de palavra também é representada em outro conto de Uma ideia
toda azul: ―A primeira só‖, que também aborda a relação da mulher com o lar. Nele,
narra-se a trajetória de uma princesa que, solitária em seu quarto no castelo, se
entristece por não ter ninguém para brincar.
O castelo, seu lar, é representativo de um cárcere construído pelo poder
patriarcal, pois ela não se sente feliz ao estar ali: ―Era linda, era filha, era única. Filha de
rei. Mas de que adiantava ser princesa se não tinha com quem brincar? Sozinha, no
palácio, chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de
brinquedos. Queria uma amiga para gostar‖ (COLASANTI, 2015, p. 29).

135
Notamos, então, que a princesa dispunha de muitas coisas, mas, elas não faziam
com que ela fosse feliz, pois, mesmo tendo tudo, ela ainda era sozinha. A repetição do
verbo ―era‖ acentua a referência a um tempo anterior, ao longe, como já acentuamos,
recorrendo a Medeiros (2009), que é fundamental ao conto de fadas. Da solidão da
princesa, nasce o anseio por uma amiga. O pai, penalizado, resolve interferir, e manda
construir em seu quarto um grande espelho enquanto ela dorme:

De noite o rei ouvia os soluços da filha. De que adiantava a coroa


se a filha da gente chora à noite? Decidiu acabar com tanta tristeza.
Chamou o vidraceiro, chamou o moldureiro. E em segredo mandou
fazer o maior espelho do reino. E em silêncio mandou colocar o
espelho ao pé da cama da filha que dormia. (COLASANTI, 2015, p.
29).

A voz do pai aparece, no início, de modo mais impetuoso em relação à voz da


filha: os verbos, quando associados a ela, estão no pretérito imperfeito, o que deixa a
impressão de um tempo que se arrasta. Quando o pai toma a decisão de presenteá-la
com o espelho, os verbos se modificam e são conjugados no pretérito perfeito, não
deixando dúvidas das ações da personagem:
Quando a princesa acordou, já não estava sozinha. Uma menina
linda e única olhava para ela, os cabelos ainda desfeitos do sono.
Rápido saltaram as duas da cama. Rápido chegaram perto e ficaram se
encontrando. Uma sorriu e deu bom dia. A outra deu bom dia
sorrindo.
— Engraçado — pensou uma —, a outra é canhota.
E riram as duas. (COLASANTI, 2015, p. 29).

Ao acordar, a menina não enxerga o reflexo de si própria, mas uma amiga, com
quem se põe imediatamente a brincar. O conto apresenta a relação entre a mulher e o
discurso patriarcal, pois vai se percebendo, ao longo da narrativa, que todos os
problemas apresentados pela princesa são imediatamente solucionados por seu pai, o
que gera consequências na vida dela.
A cena na sequência evidencia a personagem feliz com a presença da nova
amiga, e é possível recorrer ao mito de Narciso: a amiga da qual se encanta não é
ninguém além de si própria: ―Riram muito depois. Felizes juntas, felizes iguais. A
brincadeira de uma era a graça da outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando
uma estava cansada, a outra dormia‖ (COLASANTI, 2015, p. 29). Ela não percebe que
não se trata de outra pessoa e imediatamente se fascina com a nova presença em seu
quarto e se põe a brincar com a amiga. A decisão tomada pelo rei tem o resultado

136
desejado, de tal forma que o rei providencia outros brinquedos à filha: ―O rei, encantado
com tanta alegria, mandou fazer brinquedos novos, que entregou à filha numa
cesta‖ (COLASANTI, 2015, p. 29).
Entre os novos brinquedos, contudo, está uma bola de ouro com a qual a
princesa quebra o espelho ao tentar brincar com seu reflexo. Do espelho quebrado
surgem outras amigas, pois o espelho, antes um, agora, estilhaçado, reflete diversas
amigas das quais a princesa vai se cansando rapidamente:

A tristeza pesou nos olhos da única filha do rei. Abaixou a cabeça


para chorar. A lágrima inchou, já ia cair, quando a princesa viu o rosto
que tanto amava. Não um só rosto de amiga, mas tantos rostos de
tantas amigas. Não na lágrima que logo caiu, mas nos cacos que
cobriam o chão.
— Engraçado são canhotas — pensou.
E riram.
Riram por algum tempo depois. Era diferente brincar com tantas
amigas. Agora podia escolher. Um dia escolheu uma e logo se cansou.
No dia seguinte preferiu outra, e esqueceu-se dela logo em seguida.
Depois outra e outra, até achar que todas eram poucas. (COLASANTI,
2015, p. 30).

Soberana entre as novas amigas, ela já não se sente feliz como se sentiu quando
se viu diante da primeira. Então, das amigas, vão sobrando pequenos fragmentos nos
pequenos pedaços do espelho que vão sobrando diante dela. Ela quebra o espelho para
obter novas amigas, de tal forma que logo resta somente pó. Assim, se vê sozinha
novamente, e ficando, outra vez, angustiada com a solidão do castelo.
O castelo, portanto, é local de clausura para a filha do rei que, sozinha, passa
seus dias brincando apenas com objetos. A ausência de pessoas para conviver a
transforma em um ser triste, mas a presença da amiga e, posteriormente, a chegada de
outras a fazem perceber a importância do outro. Nesse cenário, a figura autoritária do
pai torna-se irrelevante, pois o que passa a importar é a presença das amigas.
Os espaços privados, assim, são fulcrais nos dois contos aqui analisados. Em
―Entre as folhas do verde O‖ a protagonista, retirada da natureza, da qual era tão
familiar, mas na qual vivia sem a companhia de humanos, torna-se lugar de martírio
para ela, mesmo que esteja na companhia do homem que ama, pois aceitar pertencer ao
castelo é aceitar pertencer à civilidade, e, assim, negar sua origem selvagem e livre. Já
em ―A primeira só‖, a protagonista é familiar desse espaço de civilidade, mas, para ela,

137
de solidão. O que deseja é justamente outras pessoas, em especial, uma amiga, para
conviver. Estar no castelo, portanto, é estar em um lugar de solidão que a deixa infeliz.
De acordo com Apfelbaum (2009), as relações de dominação entre grupos ou
classes de indivíduos impõem limites, sujeição e servidão ao grupo dominado. É
possível perceber a relação de dominação imposta entre masculino e feminino nas
narrativas, pois, nos contos, consecutivamente, o príncipe e o rei determinam, de acordo
com suas escolhas, o que é mais adequado, no primeiro, para a mulher-corça, e, no
segundo, para a princesa. Assim, a relação de dominação:

[...] introduz uma dissimetria estrutural que é, simultaneamente, o


efeito e o alicerce da dominação: um se apresenta como representante
da totalidade e o único depositário de valores e normas sociais
impostas como universais porque os do outro são explicitamente
designados como particularidades. (APFELBAUM, 2009, p. 76).

Como esclarece Apfelbaum (2009), as relações de dominação entre homens e


mulheres determinam como o sujeito constrói a sua identidade. Em ―A primeira só‖ o
pai se via como o protetor de sua filha, e, portanto, acreditava ter o poder de decidir o
que a faria se sentir mais feliz. O quarto a sufoca, justamente porque a isola. É somente
quando a princesa rompe com esse espaço que ela se liberta, também, dos grilhões do
discurso de poder de seu pai. Já em ―Entre as folhas do verde O‖ a relação entre o
príncipe e a mulher-corça é muito semelhante, pois ele é capaz de exercer seu poder
sobre ela assim como o pai consegue exercer o poder sobre a filha em ―A primeira só‖.
Notamos que, em nenhum deles, se considera a possibilidade de questionar às mulheres
o que elas consideram melhor para si próprias, mas, determina-se, por meio de um
discurso afetivo, a maneira por meio da qual elas devem ser protegidas e, também, o que
deve ser feito para que elas sejam felizes.
Nos dois contos, portanto, há uma dissimetria de poder revelada por meio do
discurso. Como aponta Foucault (1996), em A ordem do discurso, o direito à produção
discursiva é justamente do que se deseja se apoderar, tendo em vista que, quem
consegue enunciar, e, principalmente, ter seu discurso proliferado, também pode
provocar exclusão: quem detém o poder do discurso tem suas vontades e verdades
reproduzidas, enquanto quem sofre o silenciamento, a exclusão, precisa lutar contra
sistemas de opressão para que consiga se fazer ouvir. Assim, o patriarcado, enquanto
um sistema de opressão, atua tentando silenciar as vozes que o enfrentam, enquanto cria
estratégias para sua própria manutenção.

138
b. O sofá estampado

A casa tem um significado distinto em O sofá estampado. Por se tratar de uma


narrativa longa, a obra conta com diversos personagens, e, portanto, há relações diversas
das personagens com as suas casas. É a única obra do corpus protagonizada por uma
personagem masculina: o tatu Vítor. As personagens femininas, contudo, são essenciais
para o autoconhecimento de Vítor, pois todas elas influenciam significativamente para
seu fortalecimento. É na convivência com elas que Vítor desenvolve se fortalece e
encontra seu próprio caminho, longe das imposições de seu pai.
O espaço no qual o início da narrativa é ambientado é a casa da personagem
Dona-da-casa, dona de Dalva, a gata angorá. É no sofá estampado que Dalva passa
assistindo, ininterruptamente, aos programas televisivos. A voz narrativa descreve
detalhadamente o espaço da sala e aponta que Dalva e o sofá são uma coisa só. A
descrição detalhada do espaço da sala é extremamente relevante, pois contribui para
perceber que Dona-da-casa preza por ter tudo combinando e todas as coisas em seu
lugar:
É pequeno, tem só dois lugares. E fica perto da janela. Pro sol não
desbotar o estampado, a Dona-da-casa fez uma cortina branca, fininha
e toda franzida; no fim de atravessar tanto pano, a luz entra cansada na
sala, clareando tudo de neve.
É só passar pelo sofá que a Dona-da-casa começa: ajeita um
almofadão, estica a ponta do tapete, arruma a cortina na janela, anda
pra trás pra ver o efeito, e aí suspira contente ‗é uma graça!‘.
(BOJUNGA, 2015, p. 10).

O lugar cuidadosamente arrumado pela mulher é um reflexo de seu


comportamento em outros campos: Dona-da-casa acredita que é importante manter a
ordem e o equilíbrio. Assim, a figura de Dalva, como ela acredita, contribui para que a
sua sala tenha ainda mais harmonia. Assim como a narrativa caracteriza
minuciosamente a sala, também Dona-da-casa se atenta aos menores detalhes, pois ela,
quando observa tudo perfeitamente arrumado, fica extremamente satisfeita: ver que está
tudo em seu lugar é o principal objetivo de Dona-da-casa, e sua visão sobre a sala se
estende, também, para a vida, como veremos mais adiante.
A gata, por sua vez, gosta de assistir televisão o dia todo, especialmente, as
propagandas, pois ela deseja comprar todos os produtos divulgados. Dalva se considera

139
extremamente bonita, tanto que o único motivo que a faz, às vezes, desviar o foco da
televisão, é a necessidade de se olhar no espelho:

De vez em quando a Dalva levanta o pescoço querendo se ver no


espelho; ela sabe que é tão bonita, ainda mais sentada no sofá
estampado. Mas é só muito de vez em quando: o resto do tempo ela vê
televisão. Colorida. 24 polegadas. Controle remoto. Do lado, uma
jarra com flor. (BOJUNGA, 2015, p. 11).

Dalva acredita em tudo que houve da televisão. A narrativa, publicada em 1980,


tem em Dalva uma metáfora de um público fortemente influenciado pela cultura de
massa que se expandia nesse momento, alavancado pela industrialização da cultura
iniciada em 1970 (REIMÃO, 1996). Tanto os programas ficcionais, como novelas,
quanto propagandas dos mais diferentes produtos é de interesse de Dalva. Para a gata,
todos os acontecimentos exteriores à televisão são distrativos, e mesmo seu
relacionamento com Vítor é colocado em segundo plano.
Vítor e Dalva se encontram por acaso, quando ele está andando nas ruas, recém-
chegado à cidade e, de longe, observa uma aglomeração de pessoas. Ao chegar mais
perto, enxerga, no centro, Dalva, sendo entrevistada e fotografada: ela havia acabado de
receber um prêmio por assistir muita televisão: mais de doze horas por dia. Vítor se
apaixona imediatamente, mas ela não nota a sua presença. Ele vê, contudo, que o
prêmio caiu no chão, e aproveita a oportunidade para reencontrá-la. Para tal, sai
conversando com as pessoas e pedindo informações para descobrir onde ela mora.
Depois que encontra o endereço de Dalva, Vítor precisa de tempo para reunir
coragem e ir conversar com ela. Decide, finalmente, ir à sua casa entregar a medalha e
dizer que estava apaixonado. É, contudo, recebido por Dona-da-casa, que, interessada
em contar sobre as razões para a premiação de Dalva, dificulta a aproximação de Vítor:

— Mas o que que eu estava dizendo? Ah, o prêmio! Tá bom de


açúcar? Depois do prêmio ela resolveu se aplicar ainda mais: passou
pra 15 horas por dia. Eles já lançaram um novo concurso, sabe, agora
a medalha é de ouro e o prêmio ainda maior [...].
— Bom, prêmio incentiva por um lado, mas por outro cria
problemas, não é? Agora estão sempre telefonando pra ver se a Dalva
tá de olho na tevê: ela não pode mais largar o sofá. (BOJUNGA, 2015,
p. 118-119).

Após muita tentativa, Vítor encontra na propaganda televisiva uma maneira de


se aproximar de Dalva. Como ela assistia televisão o dia todo, ele imagina que, se

140
aparecer na televisão, ela irá notá-lo. Participa, então, de uma propaganda, e,
finalmente, é percebido por Dalva:

O Vítor se impressionou com o sucesso; telefonou pra Dalva. Ela


gritou:
— Vi você na tevê! Vi você na tevê! Adorei. A minha dona já
comprou.
— Você tá com tosse?
— Eu não, mas a tevê não disse pra gente comprar?
Aí o Vítor não aguentou mais: se agarrou no telefone e desabafou:
— Dalva, eu quero te namorar!
— Tá.
O Vítor nem acreditou: — Tá??
— Tá, ué. (BOJUNGA, 2015, p. 180).

A partir da aparição na TV, Vítor, finalmente, toma iniciativa para falar com
Dalva; é quando começam a namorar. Ela não mostra, contudo, empolgação no namoro
como demonstra por ter o visto na televisão: mesmo na companhia de seu novo
namorado, ela continua a assistir televisão ininterruptamente.
As abordagens sobre o poder da televisão em influenciar Dalva são feitas por
meio de comentários irônicos em diversas passagens da narrativa. A televisão é o seu
universo e o seu guia, portanto, tudo que os programas dizem ser bom e ideal, ela
acredita veementemente: ―– Olha a casa dele, que bacana. Nossa, quanto empregado!
Olha o carro dele, olha, olha. Ah, e o Vitor não fuma! Ele nunca vai ter uma casa assim,
nem um carro assim, nem...‖ (BOJUNGA, 2010, p. 18).
Vítor, quando chega à casa de Dalva, se acomoda em outro sofá para não a
distrair. Os dois se cumprimentam e ficam, cada um, em seu lado do sofá. Ele evita, a
todo o custo, tornar sua presença um peso para Dalva, e acaba por ficar somente a
olhando. Todas as vezes que tenta conversar com ela, ela o ignora. Já Dona-da-casa
desaprova o relacionamento dos dois, pois não compreendia como Dalva, tão bonita, se
envolve com um animal de outra espécie. Fica nítido, nesse momento, o preconceito da
Dona-da-casa em relação a Vítor:

Que choque! É claro que ela queria pra Dalva um namorado bem
angorá, mas, já que a Dalva não queria, pelo menos ela queria pra
Dalva um namorado assim... sabe como é que é, não é? assim... como
é mesmo que ela ia explicar?... assim, feito, ah, ela não sabia explicar
direito, mas um bicho diferente do Vítor. Não era por causa do
focinho comprido, não, de jeito nenhum! Nem por causa da carapaça.
Ela não usava vestido? a Dalva não usava pêlo? então? por que que o
Vítor não podia usar carapaça? Claro que podia, ué, cada um usa o

141
que quer e pronto. Mas o problema era o jeito do Vítor, é isso: o jeito.
(BOJUNGA, 2015, p. 14-15).

Dona-da-casa tenta camuflar o seu preconceito. O narrador onisciente permite


que se acompanhem as estratégias de Dona-da-casa para explicar sua contrariedade ao
relacionamento de Vítor e Dalva. A passagem a mostra oscilando na tentativa de
encontrar algo que valide sua reprovação. Ela ressalta, primeiramente, aspectos físicos
de Vítor, com bastante insegurança, dizendo, por fim, que o problema era, na verdade, o
jeito de Vítor, não ele, necessariamente. Quando ela encontra uma razão que acredita ser
suficiente, afirma com certeza que é esse, realmente, o motivo pelo qual desaprova o
relacionamento. O jeito de Vítor ao qual ela se refere é a sua ansiedade. Ele, quando fica
ansioso, sente necessidade de cavar. Como fica sempre ao lado da namorada sem
receber atenção, está sempre querendo cavar. A Dona-da-casa, que gostava de sua sala
bastante arrumada, com o tecido sobre o sofá estampado bem esticado, ficava
apreensiva com Vítor, especialmente, após o dia que ele abriu um buraco no sofá
cavando. Ela tenta, em vão, alertar Dalva: ―— Escuta, meu bem, vê se ele não cava
demais, sim?‖ (BOJUNGA, 2015, p. 19).
Vítor enviava muitas cartas a Dalva, já que ele gostava de escrever, mas ela
sequer as abria. Vítor descobriu as cartas não lidas em um dia em que, frustrado, cavou
até no fundo do sofá, onde achou as cartas fechadas. Encontrar as cartas fechadas é
desolador para Vítor, mas, é muito singular, pois permite observar a alienação e
egoísmo da namorada. Nas primeiras cartas que recebeu, ela abria, mas, assim que
percebeu que não havia imagens, ela deixou de abrir e, simplesmente, colocava dentro
do sofá. Isso mostra sua falta de cuidado com Vítor, única pessoa que se interessava
verdadeiramente por ela:

Do lado tinha três envelopes abertos com papel saindo pra fora.
Mas depois não vinha mais papel nenhum: só envelope fechado. Só
envelope fechado. Só envelope fechado. Será que mais nenhuma?
‗nunca mais a Dalva abriu carta nenhuma?‘. O olho ficava olhando,
querendo achar um pedaço descolado, uma janela, uma frestinha: se a
Dalva não estava a fim de ler a carta, podia pelo menos querer ver a
letra dele, não podia? Mas cada envelope que ele pegava estava
igualzinho como ele tinha mandado. E a unha já ia arranhando, já ia
vendo se cavava o envelope que o olho olhava, que a pata pegava e
jogava no chão. (BOJUNGA, 2015, p. 30-31).

A desatenção de Dalva faz com que ele cave o sofá até atravessar o chão da casa.
Nesse momento, representa-se a primeira vez que ele retorna para etapa de sua vida,

142
pois, ao cavar o chão, metaforicamente, cava para dentro de si próprio. Ele tem,
finalmente, a oportunidade de elucubrar sobre momentos decisivos de sua vida. Altera-
se, então, a ordem narrativa, que passa a se centrar na infância de Vítor.
Dalva, contudo, não tem dimensão da alienação a qual é submetida, e nem se
desconstrói ao longo da narrativa. Ela exerce a ―cumplicidade ativa‖, conceito abordado
por Devreux (p. 89), como já discutindo. Confirmando a feminilidade que a Dona-da-
casa constrói para ela, Dalva é uma personagem bonita, delicada e dócil, e não enfrenta
os papéis sociais que foi preparada para desempenhar. Ela permanece ali, na sala,
assistindo cada vez mais televisão, tanto que nem tenta impedir quando Vítor decide ir
embora. A televisão é seu universo, pois permite que sua beleza se mantenha inalterada,
ao mesmo tempo em que é reconhecida por isso, com as premiações. Sua relação com o
lar é, assim, seu refúgio do mundo real, pois a sala é seu espaço idealizado. Já para
Dona-da-casa, o lar é onde ela exerce seu poder de controle, já que tudo em sua casa
precisa ser extremamente equilibrado:

A dona da casa tinha a mania do combina: o sapato precisava


combinar com o vestido, ‗ih, que horror, esse vestido não combina
com a poltrona, deixa eu ir lá trocar de roupa antes de vir me sentar‘, a
cortina tinha que combinar com o tapete, a poltrona com o sofá, a flor
na jarra tinha que combinar com os dois... (BOJUNGA, 2010, p.21).

A relação entre Vítor e Dalva chega ao fim tão logo Vítor perceba que ela não
vai alterar seu comportamento. Ele deixa de insistir no relacionamento quando ela avisa
pela Dona-da-casa que não quer mais vê-lo. Se Dalva permanece na mesma condição
em que estava no início da diegese, Vítor se fortalece. Mesmo gostando, ainda, de
Dalva, e lembrando-se dela inúmeras vezes, ele decide continuar sua trajetória em outro
lugar.
Do relacionamento, porém, que chega ao fim, a narrativa faz diversas denúncias
relacionadas ao preconceito. A voz narrativa introjeta a sua opinião após a descrição de
um preconceito social comum. ―Teve gente que achou esquisitíssimo uma gata angorá
namorar um tatu, e os dois ficarem assim tanto tempo num sofá estampado, ainda mais
com a tevê ligada‖ (BOJUNGA, 2015, p. 11). A voz narrativa quebra a expectativa da
problematização do preconceito entre o relacionamento de uma gata angorá e um tatu
quando insere que as pessoas também acharam igualmente estranho eles permanecerem
durante muito tempo em um sofá estampado, com a tevê ligada.

143
A Dona-da-casa é uma figura que almeja a normalidade, e acaba por representar
o olhar de uma sociedade patriarcal frente às mudanças ocorridas nas relações,
especialmente, entre Dalva e Vítor. Dalva atua como se fosse uma extensão da própria
sala, pois a Dona-da-casa se preocupa com a composição formada pela sala toda,
juntamente à gata. Quando a preservação desse cenário é ameaçada, com a chegada de
Vítor, Dona-da-casa se preocupa, mas não com a gata, e, sim, com a tentativa de manter
a normalidade do ambiente. Em dado momento, as pessoas descobrem do namoro de
Dalva e Vítor, começam a comentar, e isso desperta uma reação na Dona-da-casa, que
tenta justificar para si própria a alteração no cenário:

‗Pensando bem, tem coisa muito mais esquisita‘ Foi o que a Dona-
da-casa falou quando começaram a comentar o caso. E botou uma
pedra no assunto. E não quis saber de fofoca. E achou melhor não
contar pra ninguém o choque que ela tinha tido quando um dia entrou
na sala, deu de cara com o Vítor, e a Dalva anunciou: ‗Esse é o meu
novo namorado‘. (BOJUNGA, 2015, p. 14).

Do relacionamento entre Dalva e Vítor se notam, ainda, algumas válvulas de


escape para a ansiedade nos três personagens daquele núcleo narrativo: Vítor cava,
Dalva chupa balas de caramelo e Dona-da-casa arruma compulsivamente. A voz
narrativa, contudo, se centra somente nos sentimentos e pensamentos de Vítor, e fica
evidente ao leitor as razões pelas quais ele tem tal comportamento. A inserção de
comportamentos compulsivos nas outras personagens, contudo, parece deixar claro que
possivelmente as outras duas personagens não sejam tão conformadas com seus papéis.
Este é, aliás, um recurso comum à escrita de Lygia Bojunga. Em Sapato de salto
(BOJUNGA, 2006), por exemplo, há uma personagem viciada em balas: ela sabe das
ações de seu marido pedófilo, mesmo que nunca o critique diretamente.
Vítor, portanto, ao sair de casa, inicia um processo de enfrentamento às ordens
familiares, mas seu caminho não é tranquilo: precisa passar por adversidades para que
se fortaleça. Dalva, a gata angorá pela qual se apaixona, deixa marcas profundas em sua
subjetividade.

144
c. Bisa Bia, Bisa Bel

Em Bisa Bia, Bisa Bel (2007), ao contrário de O sofá estampado (2015), a casa é
um espaço para a partilha das memórias da família. A narrativa é protagonizada
somente por mulheres. A narradora-protagonista é Bisa Bia, uma pré-adolescente e
responsável por elaborar encontros, por meio da imaginação, com sua bisavó e com sua
bisneta. Esses contatos a permitirão entender melhor sua própria história, a história de
sua família e descobrir um universo de contradições e desigualdades nas relações entre
homens e mulheres.
A obra foca, inicialmente, na relação entre mãe e filha, e, na sequência, entre
Bisa Bel, sua bisavó e sua bisneta. A mãe de Bisa Bel uma arquiteta extremamente
dedicada ao trabalho. A distância da mãe, em alguns momentos específicos da carreira,
como, por exemplo, quando ela está concorrendo a um concurso de projeto para um
hospital, faz com que Bisa Bel se sinta solitária, mas ela evidencia, também, entender a
distância da mãe. Não é mencionada, em nenhum momento, a figura paterna. Assim, da
estrutura familiar de Bisa Bel, conhece-se somente mãe e filha.
A narrativa se inicia com Bisa Bel olhando, com sua mãe, fotos familiares
antigas. Durante a atividade, as duas param e olham cada um dos retratos, com a mãe de
Bisa Bel explicando o contexto e a época de cada uma das fotos observadas. A retomada
da mãe dos momentos em que as fotos foram tiradas faz com que a menina se interesse
por aquele universo, e, aos poucos, vão sendo conduzidas para uma época anterior:

A gente ia conversando e olhando os retratos. De repente eu vi um


que era a coisa mais fofa que você puder imaginar. Para começar, não
era quadrado nem retangular, como os retratos que a gente sempre vê.
Era meio redondo, espichado. Oval, mamãe explicou depois, em
forma de ovo. E não era colorido nem preto-e-branco. Era marrom e
bege clarinho. Mamãe disse que essa cor de retrato velho chamava
sépia. E não ficava solto, que nem essas fotos que a gente tira e busca
depois na loja, num álbum pequeno ou dentro de um envelope. Nada
disso. Esse retrato oval e sépia ficava preso num cartão duro cinzento,
todo enfeitado de flores e laços de papel mesmo, só que mais alto,
como se o papelão estivesse meio inchado naquele lugar — gostoso de
ficar passando o dedo por aquele cartão alto. E dentro disso tudo é que
estava a fofura maior. Uma menininha linda, de cabelo todo cacheado.
Vestido claro cheio de fitas e rendas, segurando numa das mãos uma
boneca de chapéu e na outra uma espécie de pneu de bicicleta
soltinho, sem bicicleta, nem raio, nem pedal, sei lá, uma coisa
parecida com um bambolê de metal. (MACHADO, 2007, p. 10).

145
No trecho, presente nas primeiras páginas de Bisa Bia, Bisa Bel, há o tom
memorialístico que norteará a diegese e conduzirá o leitor para um universo em que, aos
poucos, denunciará as diferenças entre gerações. A narrativa trava um importante
confronto gerações a partir do momento em que, descobrindo um pequeno quadrinho
com a figura da bisavó, Bisa Bel diz aos amigos realmente conseguir conversar com ela.
O espaço da casa é espaço revelador das alterações das tradições familiares que
vão se modificando ao longo do tempo. O contato com a bisavó e os diálogos com a
mãe são fulcrais para que a protagonista questione as desigualdades de gênero.
A menina destaca que a avó acredita na necessidade de as meninas se
preocuparem com o olhar da sociedade sobre o modo como elas se comportam, mas,
especialmente, precisam procurar serem bem vistas pelos meninos para não perderem a
chance de se casar:

— Viu só? Ele acha você parecida com um menino. Homem não
gosta disso. Agora ele fica pensando que você é um moleque igual a
ele e vai levar uma goiaba de presente para aquela menininha bem
arrumada e penteada que está esperando quieta na calçada... Finge que
se machuca, sua boba, assim ele te ajuda. Chora um pouco, para ele
cuidar de você... (MACHADO, 2007, p. 43).

De acordo com o olhar da avó, meninas devem apresentar um comportamento


mais delicado para não serem mal interpretadas pelo sexo oposto. Ao corresponderem
com um ideal social de comportamento elas podem chamar a atenção dos meninos.
Portanto, a avó considera importante que Bisa Bel deixe que o menino mostre a sua
força. O modo por meio do qual a narrativa é organizada, com uma personagem
narradora que apresenta o ponto de vista das outras personagens, permite que os
contrapontos entre o pensamento de Bisa Bel e sua bisavó Bisa Bia:

O que mais chateia em Bisa Bia é a mania que ela tem de dar
conselhos, como se ela fosse a maior e soubesse de tudo, só porque
viveu mais tempo (um tempo que nem tinha televisão...). E sempre
vem com uma conversa assim:
— Meu coraçãozinho, eu estou falando é para o seu bem... Um
dia, você vai crescer e vai me dar razão... (MACHADO, 2007, p. 56).

O espaço externo à casa a que remete Bisa Bia, Bisa Bel é o universo das
brincadeiras, das peripécias, das pequenas aventuras do início da adolescência e das

146
primeiras paixões. Bisa Bel, que é apaixonada por Sérgio, tenta despertar a atenção dele
de diversos modos, inclusive, reproduzindo algumas sugestões da bisavó que nunca dão
certo.
Bisa Bia, Bisa Bel parece corroborar o que Butler (2003) estabelece em
Problemas de gênero. Para Butler (2003), somos sujeitos que aprendemos a
desempenhar certa performance ao longo de nossa formação por meio de práticas que se
se inscrevem corporalmente por meio do discurso. Butler (2003), para refletir sobre as
subversões performativas, questiona se ser mulher é em um fato natural, ou uma
performance cultural que se constitui como natural, mas que, na verdade, se trata de atos
performativos discursivamente compelidos que produzem o corpo de acordo com as
categorias de sexo. Como defende Butler (2003): ―[...] o gênero não é um substantivo,
mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito
substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da
coerência do gênero‖ (BUTLER, 2003, p. 26). Em Bisa Bia, Bisa Bel, que, para a
bisavó, ser mulher perpassa pela incorporação de práticas e comportamentos como a
delicadeza, a preocupação com o lar e a gentileza, por exemplo.
Ademais, a percepção de uma performance é atestada quando se nota que,
estando mais próxima de um dito ideário feminino, a mulher mais se enclausura no
espaço do lar. Para a bisavó, atos como escolher uma toalhinha para cobrir a bandeja,
são decisivos no que estamos tratando da formação de uma boa moça. Alertamos para o
que postula Beauvoir (2009), quando afirma que:

Um homem normal considera os objetos que o cercam como


instrumentos; arruma-os segundo o fim a que se destinam; sua
‗ordem‘ — na qual a mulher verá muitas vezes apenas uma desordem
— é ter ao alcance da mão seus cigarros, seus papéis, suas
ferramentas. (BEAUVOIR, 2009, p. 583).

Se a organização do lar, então, não está relacionada ao mundo masculino, faz


parte da performance feminina se atentar a como organizar a casa para si e para os
outros. Assim, mesmo que a mulher exerça atividade remunerada, o trabalho doméstico
faz parte de suas obrigações. A mãe de Bisa Bel rompe com esse estereótipo, pois não
se preocupa com a organização da casa, que é descrita pela menina como um ambiente
desorganizado. Sobre a mãe, Bisa Bel assinala: ―[...] na hora em que precisa de alguma
coisa quase deixa todo mundo maluco, revirando pra lá e pra cá‖ (MACHADO, 2007, p.
7).

147
No convívio com a bisavó, ela percebe pensamentos sexistas que se contrapõem
ao seu mundo: ―− Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito, pulando
assim nessas brincadeiras de menino. Acho muito melhor quando você fica quieta e
sossegada num canto, como uma mocinha bonita e bem-comportada‖ (MACHADO,
2007, p. 23). A avó avalia o comportamento de Bisa Bel e assim deixa claro que não
concorda com a maior parte dos comportamentos da menina. Há diversos outros em que
se nota a observação das mulheres presentes na narrativa em relação aos papéis sociais
de gênero, com um intenso enfrentamento de pontos de vista.
Para a bisavó, a casa também é o espaço em que os alimentos são mais saudáveis
e mais limpos, no qual tudo é melhor do que o que é de fora, pois há o conhecimento
sobre o modo como foram produzidos:

Mais tarde fiquei sabendo que só tinha geladeira de madeira e era


preciso comprar barra de gelo e botar dentro, e que Bisa Bia só
gostava de sorvete se fosse de fruta, e feito em casa, que ela sempre
acha que essas coisas que a gente come na rua — ela não fala ―comer
na rua‖, fala ―se encher de bobagem por aí‖ — são feitas sem higiene
e acabam fazendo mal. (MACHADO, 2007, p. 23-24)

Bisa Bia tenta, de todas as formas, fazer com que Bisa Bel aprenda como se
comporta e cuidar do lar. Também tenta ensinar algumas atividades manuais, como
crochê, para que a bisneta corresponda ao que considera uma boa menina. Mesmo
assim, fica evidente que a mãe a educou de outra maneira, pois, para a mãe de Bisa Bel,
as meninas não precisam se voltar para as lides domésticas. Ela também não acredita
que o modo como as mulheres cuidam de suas casas são definidores de sua
personalidade. Enfim, Bisa Bel não é educada para exercer uma performance feminina,
ou para corresponder expectativas sociais que acabam por estabelecer hierarquias de
gênero.
O lar, então, em Bisa Bia, Bisa Bel, é lugar de acolhida para a pré-adolescente. É
nele que ela se refugia quando as suas pequenas peripécias não acabam bem, ou quando
o menino pelo qual é apaixonada não corresponde às suas tentativas de aproximação.
Também, no lar, ela entra em confronto com os padrões das outras gerações e com os
preceitos culturais, entendendo as mulheres de seu tempo, mas também respeitando os
comportamentos das mulheres das gerações anteriores, por meio de um vínculo
memorialístico e afetivo, despertado no convívio imaginário com a bisavó que conhece
por meio de uma pequena fotografia.

148
d. O mágico de olho verde

O mágico de olho verde remete a um tipo bastante tradicional de família, a


nuclear, na qual o homem é responsável pelos proventos e a mulher por educar as
crianças e sustentar o lar. A narrativa, que ocorre in media res, inicia-se com a família
tentando se reconstruir logo após a morte do patriarca. O pai, após a morte recente,
ganha um espaço de predileção para a menina, que acredita que é a única da família a
sofrer com a ausência dele. A mãe, Carmem, tenta organizar a vida da família, já que
agora precisará suprir a família que foi sempre sustentada pelo marido enquanto ela era
dona de casa:

Futuro incerto, hipótese de viuvez sem recurso. Profissão dona-de-


casa não rende salário nem aposentadoria. Esmaltar madame jejua
família. O óbito quita o teto, verdade. Mas manda a fome para o
orfanato. Outro homem tão cedo não, besteira de novo? Só muito bem
pensado, um cara rico, carinhoso. Bonito não, basta de dor de cabeça,
o mulherio de olho. (LEITE, 1984, p. 27).

A narrativa revela o quanto o trabalho doméstico não somente restringe os


espaços de atuação da mulher, mas como também faz com que ela seja inferiorizada
pela sociedade, pois, como aponta Beauvoir (2009), seu trabalho, o doméstico, não é
digno de ajuda e nem de reconhecimento:

[...] em sua maioria as mulheres que trabalham não se evadem do


mundo feminino tradicional; não recebem da sociedade, nem do
marido, a ajuda que lhes seria necessária para se tornarem
concretamente iguais aos homens. [...] É natural que, não recebendo
em troca de seu trabalho os benefícios morais e sociais com que
teriam direito de contar, lhe suportem sem entusiasmo os
constrangimentos. (BEAUVOIR, 2009, p. 880).

Para Beauvoir (2009), o trabalho doméstico é feito quase que exclusivamente


pelas mulheres e não tem valor social. A situação é similar em O mágico de olho verde,
pois o aprisionamento de Carmem ao contexto doméstico faz com que ela não enfrente
o marido, e se resigne em sua condição de mulher do lar. São muitas as passagens que
evidenciam o sentimento da clausura de Carmem em relação ao ambiente doméstico.

149
Ela também se sente inferiorizada pelo esposo, já que ele conseguiu estudar e ter
independência financeira. Ela inveja sua capacidade de se expressar sobre uma a gama
de assuntos, já que ela não possui a mesma desenvoltura para argumentar. Assim,
quando ela se sente afrontada pelo marido, acaba tentando minimizá-lo, chamando de
intelectual de araque.
Apesar de o pai não revidar nos momentos em que Carmem o confronta, a voz
narrativa onisciente denuncia que ele não entende a passividade da mãe diante da
própria vida:

O pai se calou. Discussão boba. Magoaria a mãe e a si mesmo.


Depois, com jeito, resolvia aquilo. Para ciência com o gênio dela.
Meia dúzia de vocábulos despertavam complexos, descuidado, dissera
dois. Culpada de não evoluir, fechada em casa. Acomodada.
Dependente até numa insignificância de feitio de roupa. Assim, desde
o início. Terá de pegar as rédeas, não vê? Anda cansado, desgostoso.
Estranha a paixão do começo. Exausto, a perna. Muito serviço
amanhã. Fazer dinheiro, tapar a boca dos derrotistas, o boato de
falência. (LEITE, 1984, p. 25).

O pai de Mila acredita que a mãe não se esforça para progredir. Para ele, é a
esposa quem não procura melhorar sua vida, e que a maior parte de suas reclamações é
fruto de um sentimento de inferioridade gerado a partir de sua condição. Ele próprio a
vê como alguém fechada em casa, e que é devido à sua reclusão que ela tem tantos
complexos, já que ela não tem as rédeas da própria vida. Como exerce a sua autonomia,
o pai não consegue compreender que a condição que a mãe vive lhe foi imposta: do
contrário, ele precisaria assumir um papel que não assume, de corresponsável pelos
cuidados com os filhos. A mudança no foco narrativo permite que se contraponham os
pontos de vista do casal em relação ao trabalho doméstico de Carmem e à sua não
progressão nos estudos:

Escolhida a hora da obrigação, criação de filho é leve. Com a


vantagem do pai mostrar só bom humor e daí influir na dose de amor
deles. E ele também gosta mais das crianças. Como se mãe não
contasse no existir de filho, nove meses, parto, leite do peito.
Ciúme dos meninos, pena do sacrifício. Anula-se por eles, o pai
nem vê. Estará se enfeiando em rabugices? Só vinte e seis anos, mas
muito atrás das meninas da firma, cuidadas, roupas na moda. Não sabe
dos assuntos do marido, política, botânica, ecologia. Nada de nada.
Velha antes do tempo, não adianta, destino de fotonovela, televisão,
Roberto Carlos, Hebe Camargo, Tarcísio Meira. O mundinho fechado,
vida miúda, limites, seu basta que ninguém contesta. Sem risco de
gafe em conversa erudita. (LEITE, 1984, p. 26).

150
A mãe admite que não se vê confortável com o fato de o pai pouco atuar na
educação dos filhos, e ficar majoritariamente com as brincadeiras e com a diversão
enquanto ela precisa se ater a aspectos mais práticos da criação dos filhos. Devido à
diferença de papel que eles realizam no que tange às crianças, a mãe se sente
enciumada. Além do ciúme, também entende que está se sacrificando por eles, pois a
obrigação com os filhos a restringem ao mundo doméstico e dificulta qualquer acesso
atividades alheias ao seu cotidiano.
Assim, ao contrário do que pensa o marido, ela conhece suas limitações por não
ter desenvolvido nem carreira acadêmica nem exercer um trabalho além do doméstico.
Carmem se preocupa com o futuro que a espera, sem estudo nem trabalho. Ela lamenta
a reclusão imposta pela maternidade. Igualmente, se sente inferior ao marido que
trabalha e conseguiu estudar, pois os filhos nunca foram empecilho. A discussão entre
Carmem e o marido permite perceber como este faz o que Duarte (2017) chama de
vitimizar, novamente, a vítima, pois Carmem já tem sua autonomia sonegada pelo poder
patriarcal e, outra vez, o marido acredita que ela somente é acomodada.
Quando se compara com o marido, Carmem aproveita pequenos detalhes para se
colocar em uma posição minimamente superior a dele. Carmem usa como elemento de
comparação, em determinado momento, suas unhas, que consegue manter feitas,
enquanto o marido, sempre lidando com a terra, as têm sempre encardidas. Admite,
contudo, que, mesmo tentando despertar o interesse do marido, ela o tem sempre
distante do seu toque.
A dominação masculina (BOURDIEU, 1989), portanto, é percebida quando se
contrapõe as vozes de Carmem e do marido, pois ela tem consciência de seu lugar de
inferioridade enquanto ele a julga como acomodada, não tendo noção de seus
privilégios. Há uma insatisfação expressa evidente sempre que ela assume a voz
narrativa e reflete sobre as dificuldades de gerir o lar e sobre o seu casamento. Ao
mesmo tempo em que Carmem percebe a sua condição de assujeitada, ela também não
tem condições para alterá-la, por conta dos dois filhos que precisa cuidar, no dia a dia:

Carmem, a mãe, não dormiu logo. Duas lágrimas mancharam a


fronha antes dos olhos fechados para o dia igual a tantos. O marido
jogou-lhe a pequenez na cara, humilhou-a. Mas não pediu a vida que
leva nas costas, Tão vidinha que mal aparece aos olhos dele. Tão sem
importância que a ninguém incomoda. Aula noturna, ele deixa, mas:
— Não assumo compromisso de babá. (LEITE, 1984, p. 25-6).

151
Quando a mãe reflete sobre sua condição, ela questiona, ainda, o falso apoio do
marido em sua emancipação, pois, para que ela possa estudar, ele estabelece condições
que, na verdade, são empecilhos. Para o pai, então, a responsabilidade de cuidar das
crianças é exclusivamente da mãe, e, caso ela decida estudar, é ela quem tem que arcar
com as consequências dessa decisão.
Os lugares ocupados pelos membros da família dialogam com o que aponta
Beauvoir (2009) em O segundo sexo. Para a filósofa, a autoridade do patriarca não se
faz presente no cotidiano, mas ela é justamente a soberana. Como ela destaca, tem-se,
na aparência, a dominação da mulher no espaço doméstico, mas, nos momentos
decisivos, é a opinião do homem que tem mais valor, pois é ele quem vive o mundo
exterior e sustenta a família, e, por isso, é o chefe.
As comparações feitas por Beauvoir (2009) são vistas em O mágico de olho
verde, pois Carmem, mesmo sendo a responsável pelas lides domésticas e pela educação
dos filhos, não é ela que dispõe de maior prestígio nesse ambiente: quando o marido
chega, não somente as atenções se voltam para ele, mas, também, modifica-se a
atmosfera, que é tomada, na presença do pai, por risos e brincadeiras.
Outra problemática que Carmem precisa enfrentar com a morte do marido é a
rebeldia da filha frente à morte do pai. Além de lidar com o próprio luto, e com a
necessidade de sustentar as crianças, após a morte dele, Carmem também se depara com
uma pré-adolescente que não aceita as mudanças necessárias com a morte do pai, como,
por exemplo, terem que mudar de casa. Mila briga cotidianamente com sua família
porque acredita que é a única quem ainda se preocupa em guardar o luto.
A casa é local de clausura para Carmem, que se vê limitada aquele lugar toda a
sua vida de casada, pois é para o espaço doméstico que ela foi impelida para que o
marido pudesse trabalhar fora e prover a família. Ela começa a enxergar a casa de um
outro modo após o falecimento do marido: a ausência dele a obriga a modificar a
estrutura familiar e começar a exercer o papel de provedora da família. A saída para
uma nova casa simboliza esse novo momento, pois, na nova casa, não vive mais à
sombra da imagem do marido. Para a filha, contudo, a casa se torna espaço de clausura
justamente com a morte do pai, pois sente que a família está rompendo seus laços e se
esquecendo da imagem do patriarca. A representação da mudança, para Mila, se
aproxima do que aponta Bachelard (1993). Para ele, ―A casa é um corpo de imagens que
dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade‖ (BACHELARD, 1993, p. 208). Para

152
Mila, a saída para uma nova casa representava a perda de sua estabilidade, que começou
a se desconstruir com a ausência de seu pai.

e. A cor do azul

A cor do azul, a despeito das necessidades financeiras das personagens,


apresenta o lar como espaço de aconchego. É um lugar para onde a protagonista volta
após sofrer devido, especialmente, as diferenças de classe, que sente na pele por
pertencer a uma família pobre e negra. Família, aliás, constituída por ela e sua mãe,
somente. Única das narrativas com protagonistas negras, A cor do azul versa sobre uma
família extremamente pobre moradora de uma comunidade que lida com as surpresas
provindas de um circo recém-chegado à cidade.
São descritas as dificuldades geradas pela da falta de dinheiro para a
protagonista e de sua mãe, mas explora-se de modo mais incisivo, as noções de partilha
originadas da pobreza de todos da vila, tanto entre os adolescentes protagonistas da
narrativa, quanto dos adultos, que reconhecem uns nos outros a dificuldade que
comungam, e tentam torná-la melhor partilhando o que têm:

Amizade? Existia, sim, e, dentro dela, uma espécie de consciência


de que, se se dividisse a pobreza, poder-se-ia transformá-la, senão em
fartura, pelo menos em variedade. E era gostoso.
Vizinhávamos as roupas — as que iam ficando pequenas — e até a
comida — eram panelas e pratos que iam e vinham cheios de coisas
diferentes, ia feijão, voltava abóbora, ia sopa, voltavam bolinhos de
arroz — para, depois do almoço, sentarmos nas porta e calçadas,
aproveitando o calor triste do sol de inverno, e comermos as laranjas
de umbigo e a vergamotas do portuga. (TUTIKIAN, 2005, p. 9).

Da pobreza, então, surgia uma noção de comunidade e de partilha, pois cada um


auxiliava o vizinho como podia, mesmo que todos tivessem muitas limitações
financeiras. Fosse redistribuindo os objetos usados, as ações acabavam por manter as
pessoas da rua unidas.
Tão logo descobrem que um circo está sendo montado na cidade, as crianças
ficam na expectativa pela chegada dele. É a vinda do circo que movimenta esse cenário,
pois nasce uma preocupação, especialmente para a protagonista e seus amigos, que

153
planejam exatamente o que fazer quando o circo estiver aberto, tendo em vista que o
circo representa o acesso das personagens a um mundo mágico ao qual dificilmente
teriam acesso outra vez:

Indiscutível o fato de que assistiríamos a todas as sessões. Maria da


Glória faria longos cachos nos seus cabelos dourados e usaria o
vestido branco do aniversário. Elisa usaria rabo-de-cavalo e não sabia,
ainda, bem a roupa que poria. Quanto a mim, só poderia tentar pentear
o toco, que me sobrava, de cabelo para o lado e pediria à minha mãe
que me fizesse um vestido lingo, e compraria um par de sapatos novos
que os meus tênis já estavam furando no dedão e eu até queria uma
bolsa. (TUTIKIAN, 2005, p. 17-18).

A protagonista não demora a perceber, contudo, que a sua condição dificilmente


a permitirá que ela realize o desejo de ir ao circo, o que a deixa ciente das restrições
financeiras de sua família. Ela, que havia sido sempre muito unida a sua mãe nas
dificuldades, com a vinda do circo, lamenta, como nunca, as limitações a elas impostas.
Ao conversar com a mãe, sua hipótese se confirma: elas não têm dinheiro para que a
menina vá ao circo.
A menina e sua mãe enfrentam as agruras de pertencerem a uma família tão
desfavorecida socialmente, mas, ao mesmo tempo, as dificuldades as aproximam, e
fazem com que a filha evitasse entrar em conflito com a mãe, especialmente, por causa
de dinheiro, pois ambas eram conhecedoras de suas condições. O espaço do lar é, então,
lugar nas quais as duas encontravam abrigo, mesmo que em alguns momentos também
se evidencie o constrangimento pela situação financeira da qual participavam:

Claro! Algumas vezes sentíamos vergonha da nossa pobreza,


porque algumas vezes se sente vergonha de não se ter mais. Muitas e
muitas vezes peguei minha mãe chorando, agarrada ao ferro. Ela
resumia tudo o que achava que eu não podia entender em apenas duas
palavras: muito calor... e Eu aceitava, mesmo sabendo que o um
pouco melhor era sempre mais caro e o sempre, sempre impossível,
aceitava com uma dor na garganta, mas optara, desde pequena, por ser
forte e presa a ela como o filhote que se alimenta do cheiro da mãe,
disfarçava e disfarçávamos o que, pelo menos naquela hora, parecia
tão sem solução. (TUTIKIAN, 2005, p. 8).

As duas escolhiam não lamentar a situação de pobreza na qual se encontravam, e


constituírem entre si laços a despeito das dificuldades, que começam a se acentuar com
a chegada da menina à adolescência.

154
Moradoras de uma pequena comunidade, o espaço da rua era a extensão da casa.
Ali, ela e os amigos de sua idade passavam os dias brincando, e participando de
pequenas aventuras. A vizinhança também dividia as fofocas sobre os acontecidos na
vila, cedia as roupas que não serviam mais para os menores e participava das vidas uns
dos outros.
A chegada do circo altera o cenário de aparente tranquilidade que reina sobre a
vila, especialmente, muda significativamente a vida da protagonista, que, até então,
quase nunca lamentava a falta de dinheiro, sente, mais do que nunca as dificuldades que
a vida lhe impôs: ―Dona Margarida jamais entenderia que tudo o que eu jamais pensei
de bom estava tão próximo de mim, tão palpável, tão fascinante. Comecei a chorar‖
(TUTIKIAN, 2005, p. 19).
Apesar da existência de uma relação bastante harmoniosa com a mãe, a menina
sente dificuldade em partilhar suas angústias sobre duas questões: a ausência de
dinheiro, e o fato de se considerar extremamente feia. Ela não gosta de seu cabelo, nem
de sua cor de pele e sempre se refugia em seu quarto quando se sente triste em relação a
esses aspectos. Com a chegada do circo, ela acaba se apaixonando pelo rapaz que cuida
da portaria e isso acentua a sua baixa autoestima, pois começa a observar mais
atentamente a sua imagem, o que a faz com que se afasta da mãe:

Minha mãe invadiu o quarto e o meu pensamento:


 Como é que tu estás, filha?
 Bem.
 Aconteceu alguma coisa na rua?
 Não.
 Filha...
 Eu já sei, não precisa nem dizer, não tem dinheiro, não é? –
disse-lhe numa voz ríspida. (TUTIKIAN, 2005, p. 42).

Por mais que a menina tivesse certa liberdade, como sair para brincar e estar
com seus amigos, à mãe, restava sempre o espaço doméstico. A filha lamentava, pois,
além de não ter pai, precisava lidar com a ausência da mãe nas apresentações e festas
escolares, nas comemorações do dia mães, ou mesmo para buscar seu boletim escolar
no final do ano.
Em casa, a protagonista também aprendia, com sua mãe, a como se comportar
como mulher. A menina, que cresceu livre dividindo o terreno das brincadeiras com os
amigos, devido à chegada à adolescência, precisa ir aprendendo alguns comportamentos

155
considerados femininos, ou seja, precisa começar a atuar de acordo com certa
performance (BUTLER, 2003) feminina:

Ficava me imaginando pelas costas e não me gostava, os meus


braços compridos perdiam o ritmo. Logo no dia em que precisava de
todo o ritmo possível!
Tentei requebrar. Minha mãe já havia reclamado do meu caminhar
de guri. Endireita as costas. Para lá, para cá, para lá, para cá, mas. Não
dava. Não era assim que eu era e, quando tentava, meu pé tocava
firme no chão e meu corpo enrijecia. (TUTIKIAN, 2005, p. 55).

Ela começa a tentar reproduzir os ensinamentos da mãe somente quando se


percebe apaixonada: decide que, para chamar a atenção do adolescente que trabalha no
circo, precisa se comportar de um modo mais delicado.
As representações do lar em A cor do azul trazem à cena uma família
extremamente unida, reconhecedora de suas dificuldades financeiras que encontra nas
dificuldades uma maneira de estreitarem os laços e contribuírem entre si. Mãe e filha,
sozinhas, desde a morte do pai, precisam conduzir juntas as suas dificuldades. No
espaço de sua casa, então, a pré-adolescente narradora-protagonista encontra abrigo
sempre que o peso das condições de vida ou quando os efeitos de sua autoestima baixa
são intensos demais.

f. O outro lado do tabuleiro

O outro lado do tabuleiro revela dois tipos de relação com o lar: a da idosa
Judith, que tem no lar um espaço para reflexão acerca de sua condição de vida; a de
Alice, que tinha uma relação conflituosa com o lar, já que a única pessoa com a qual era
apegada era o tio que morava em sua casa de favor. Também morava com seu pai, mas
não tinha a mesma relação de afeto com ele.
Em seu apartamento, para o qual leva Alice logo após a tentativa de sequestro da
qual a menina é vítima, Judith consegue conversar com ela e entender sobre a sua
família. Alice conta que o pai é muito ausente, motivo pelo qual ela é mais próxima de
seu tio, com o qual viajava. Judith fica bastante penalizada pela história de vida da
menina, o que faz ela se interesse ainda mais pela história da menina. Esse é um aspecto
bastante importante da narrativa policial: ao passo que a personagem-detetive se

156
interessa pela solução do crime, quem lê, também é impelido à resolução do conflito. O
leitor participa da trama para que, ao final, se depare com um final surpreendente para
ambos: detetive e leitor.
Há dois núcleos familiares: a família de Judith e a família de Alice. Sobre a
família de Judith, ela está presente já no início da narrativa. Quanto a família de Alice, é
revelada pelo olhar da personagem e, posteriormente, pela participação de Judith na
resolução do crime.
Alice tem nove anos, e reside com seu pai e com o tio, pois sua mãe já é morta,
segundo o pai a leva a acreditar. O pai é muito rico, dono de uma rede de
supermercados. Como trabalha muito, ela se tornou muito próxima do tio, que é
bastante desapegado de bens materiais e desinteressado na fortuna que o irmão
acumulou ao longo da vida. É um leitor voraz, e compartilha com Alice suas histórias
preferidas. As referências literárias são incorporadas na narrativa e conduzem a
descobertas necessárias à revelação do suspense da trama:

— Alice é o seu nome, não é? Bonito nome. Você já leu Alice no


País ...
— ... das Maravilhas? Puxa, todo mundo me pergunta a mesma
coisa toda vez.
[...]
— Meu tio leu pra mim. Tem um coelho apressado que vive
dizendo ‗tô atrasado, tô atrasado!. Até parece meu pai. (GANEM,
2004, p. 16).

Há, na obra, um intenso processo de intertextualidade, com referências a obras


com protagonismo juvenil, como Alice no país das maravilhas, Alice através do
espelho, ou obras dedicadas ao público jovem, como os títulos de Agatha Christie,
famosa por suas obras de ficção policial e de suspense para a juventude, e clássicos
como Poe e Simenon. Na citação, observamos o diálogo com Alice no país das
maravilhas no momento em que a protagonista avalia o comportamento do pai.
A narrativa é construída em um processo de diálogo com a conhecida obra de
Lewis Carroll, inclusive, com a inclusão de citações diretas de trechos da obra para
auxiliar a protagonista solucionar a problemática central da narrativa. Do mesmo modo,
as referências ao jogo de xadrez também são fulcrais na diegese, pois, juntamente com a
narrativa de Alice no país das maravilhas, são essenciais para a resolução do crime:

157
Tide parou. Realmente, e ela frisou esse trecho da Rainha com um
lápis vermelho, é esse o trecho que Alice se referia no bilhete. Só pode
ser!, pensou. Um crime! Um crime que se paga antes! E se o bilhete
fosse apenas uma brincadeira de mau gosto da menina? Quem sabe
uma lembrança no meio da noite, que nada tinha com o rapto. Fechou
o livro. Pobre Tide, pensava, você já tá tão velha que nem consegue se
lembrar das regras do xadrez. Xadrez?, quase berrou. É, é isso. Carroll
tem razão. Isso é xadrez. A Rainha branca que vive pra trás. É xadrez!
(GANEM, 2004, p. 70-71).

As intertextualidades, aliás, estão profundamente atreladas ao gênero policial.


Seja por meio do diálogo com outra obra, ou da semelhança e trechos da narrativa, o
gênero policial conta com a busca, em outros textos de elementos que possam ser
importantes para a narrativa. Na obra de Poe, preconizador desse gênero, o diálogo
acontece, inclusive, entre personagens de contos diferentes, como destaca Reimão
(1983): ―Entre os contos policiais de Poe, há sempre um jogo de referência e de
metalinguagem. ―O Mistério de Marie Roget‘ é apresentado como uma continuação de
―Assassinatos na Rua Morgue‘; logo no início de ―A Carta Roubada‖, o narrador se
refere às suas lembranças, anteriores às de Dupin‖. Em O outro lado do tabuleiro, há,
também, a metalinguagem, quando o filho, inconformado pela participação da mãe em
mais um escândalo policial, a lembra de uma participação dela em uma investigação
anterior, o caso do Elefante Dourado. Este caso que foi retomado, por sua vez, na
continuidade da trilogia de Ganem O caso do elefante dourado e As treze chaves.
Assim, a voz narrativa introduz e adianta o leitor para outras histórias sobre a
protagonista.
No dia seguinte à tentativa de sequestro, ao acordar, Judith vê que Alice
desapareceu. Ao notar que polícia atua extremamente devagar na resolução do
sequestro, ela própria acaba se empenhando na solução do conflito. No processo de
tentar encontrar Alice, a vida da própria Judith vai sendo revelada. Do mesmo modo,
percebem-se suas dificuldades frente à velhice. Quando a voz narrativa descreve o
espaço do lar, por exemplo, detalha a existência de móveis acumulados ao longo da vida
e herdados da família que, antes, dispunha de melhores condições financeiras.
A casa de Judith, então, é posta como seu lugar de elucubrações sobre suas
dificuldades com a velhice. Por mais que ela seja atuante, com iniciativa e
independente, ela também revela as dificuldades de viver sozinha, mas, especialmente,
as limitações impostas pela idade.

158
Judith tem um filho que já vive com a sua própria família. A voz narrativa conta,
assim, concomitantemente, duas histórias: a primeira, de Judith, e sua busca para
solucionar um crime, e a da própria Judith, e seus anseios, dificuldades e sentimentos
em relação à velhice: ―O espelho mostrava o seu ar, as inúmeras ruguinhas em volta dos
olhos. Não, não se lembrava jamais de ter tido aquele olhar. A vida não tinha sido fácil
pra ela. Quem sabe tinha perdido muito tempo nas expressões do seu próprio medo‖
(GANEM, 2004, p. 25). O narrador-observador revela, parcialmente, parte dos
pensamentos de Judith, o que é fulcral para entender seu modo de atuar no mundo: ela é
determinada e forte, mas, sozinha, traz à tona seus sentimentos em relação à solidão e à
desigualdade social.
Além do campo para reflexões sobre a velhice, na casa, Judith aborda sua
relação com seu filho único, que repreende seus comportamentos. Ele a considera
excessivamente interessada por questões que, segundo ele, não lhe dizem respeito.
Ainda o fato de ela não corresponder, em alguns aspectos, ao que considere uma mãe
ideal, o faz reprovar algumas atitudes e decisões da mãe. Mesmo admirando a mulher
forte que é Judith, por vezes, se surpreende com suas ações e seu modo de conduzir a
própria vida, principalmente, pelo fato de ela ser uma mulher idosa.
A discordância do filho frente a algumas ações da mãe é motivo constante de
discussões entre os dois, já que ela não silencia e responde ao filho: ―− Você é igual a
seu pai. O que você quer mesmo é que eu fique em casa parada feito velha...− Mas você
tá velha, Judith!‖ (GANEM, 2004, p. 35).
Ao mesmo tempo, a inserção dessa personagem, Rogério, filho de Judith,
possibilita a crítica à apatia social frente à criminalidade. Aliás, o distanciamento dos
problemas sociais é justamente o comportamento que Rogério espera dela:

— Mas, que é que eu posso fazer se as coisas acontecem bem na


minha frente?
— Levanta o nariz e passa por cima, ora. Ou você acha que isso só
acontece com você? Outro dia... outro dia mesmo, tava eu muito bem
andando na rua, um pivete, menino, sabe?, roubou a bolsa de uma
dona bem na minha frente... Pergunta se eu me mexi, pergunta se
alguém se mexeu... (GANEM, p. 33).

A voz narrativa, então, contraponto as ações de Judith ao ponto de vista do filho


representante de uma voz conservadora, conduz o leitor a tomar uma posição, pois, a
apatia dele frente ao assalto ocorrido é oposta às tomadas de iniciativa de Judith que não

159
se importa com os riscos que corre com suas tentativas se solucionar os problemas ao
seu redor.
A casa de Judith é o lugar, portanto, em que ela também precisa enfrentar uma
sociedade conservadora e patriarcal, pois a figura de seu filho, que não mora ali, mas
sempre a visita, insiste em lembrar dos perigos que ela corre, especialmente, devido a
sua idade. Para ela, contudo, é fulcral que se tenha um posicionamento diante dos
problemas sociais, mas, também, o lugar em que ela conduz o leitor a pensar sobre as
dificuldades da vida dela, especialmente, as relacionadas à velhice.
É interessante que, ao contrário das outras obras, que possuem jovens enquanto
protagonistas, O outro lado do tabuleiro se centra mais no autoconhecimento de Judith,
bem como em seu modo de observar o mundo a sua volta e os efeitos do capitalismo e
na relação do sujeito com seu meio. Trites (2000) faz uma observação semelhante em
sua pesquisa quando trata de obras com protagonistas idosos: o mergulho da
personagem em suas problemáticas contribui para que o leitor percorra um caminho de
descobertas das dificuldades, mas também dos enfrentamentos das personagens idosas.

3.2 As angústias

Em ―3.1 O lar‖, analisamos as relações das personagens com suas casas.


Percebemos que a literatura juvenil escrita por mulheres é instrumento de denúncias do
assujeitamento das mulheres permitido a partir da construção histórica do lar como
sendo o universo da mulher e do mundo externo como sendo território de conquista do
homem. Ao questionarem a naturalização da destinação das mulheres ao espaço
doméstico na literatura destinada à juventude, as autoras assimilam um discurso
feminista fundamental na conquista de uma sociedade menos machista.
Para além do questionar das relações das mulheres com o espaço doméstico,
contudo, as obras se propõem a reinventar o modo como as personagens eram
representadas no que tange ao gênero. Assim, neste subtítulo, verificamos por meio de
quais estratégias as personagens rompem com o discurso do patriarcado e lutam pela
reinvenção dos papéis de gênero.
Buscamos compreender se as obras contêm mulheres e meninas participando de
aventuras, profissões ou atividades tipicamente consideradas como masculinas;

160
personagens mulheres/meninas com qualidades tipicamente associadas aos
homens/meninos; personagens homens/meninos com características tipicamente
associados a mulheres/meninas; interferência da voz narrativa no que tange à
desconstrução das relações assimétricas de gênero e relações de afeto e de amor para
além do amor romântico.
A crítica feminista, como vimos, contribuiu sobremaneira para a inserção, na
literatura juvenil, de personagens questionadoras das estruturas patriarcais, pois mesmo
quando não inserem personagens que vivenciam relações de gênero simétricas, as
relações de gênero assimétricas são questionadas, especialmente, na literatura de autoria
de mulheres. É necessário considerar, sobre a inserção do discurso feminista junto à
juventude, que a incorporação do feminismo no discurso é gradativa, pois é parte de um
reaprendizado que contraria e enfrenta as bases históricas e culturais nas quais estão
assentadas crenças, valores, ideais de família, de homem e de mulher.
Para que se observe o modo por meio dos quais as personagens promovem o
enfrentamento ao discurso patriarcal, é necessário entender, inicialmente, como o
gênero é hierarquizado nas narrativas. As relações de gênero são opressivas não
somente porque designam papéis distintos a homens em mulheres, mas, especialmente,
porque esses papéis são hierarquizados.
Consideramos que, mesmo que as narrativas não apresentem uma reinvenção
dos papéis de gênero, elas contribuem, à luz do que defende Lauretis (1994), para a sua
reconstrução, pois o gênero, como ela defende, é elaborado e condicionado por forças
sociais, culturais e econômicas, e as produções nas quais os gêneros são representados
promovem o movimento sobre o modo como o gênero é compreendido, mas também
elaborado em cada sociedade.
Se, como defende Segato (1998), o entendimento dos papéis sociais ou mesmo a
reorganização dos direitos e deveres entre os gêneros são não suficientes para garantir
que haja simetria de gênero em uma determinada sociedade, pois o poder se apresenta
de maneiras muito sutis, muitas vezes, travestidas de afetuosidade, mesmo que, por
exemplo, no aspecto da legislação se aponte para a necessidade de igualdade. O
discurso literário, em nossa concepção, contribui para elucidar as estratégias por meio
das quais o poder se revela nas relações, pois é justamente as representações do gênero,
ainda com base em Lauretis, que permitem: ―[...] uma possibilidade de agenciamento e
autodeterminação ao nível subjetivo e até individual das práticas micropolíticas‖ (1994,
p. 216).

161
O enfrentamento aos papéis sociais de gênero é feito de maneiras diversificadas
nas narrativas. De qualquer modo, em todas elas as relações de gênero são postas como
problemáticas entre personagens femininos e masculinos, mesmo quando as
personagens não rompem com o patriarcado e não há uma emancipação da mulher.
Pautamo-nos no gênero como categoria de análise para auscultar as maneiras por
meio das quais as masculinidades e as feminilidades vão se descontruindo, dando vazão
às outras formas de existir, fundamentadas, além de, em uma lógica menos patriarcal,
mais plural e menos limitativa.

a. Uma ideia toda azul

Os contos de fadas de Marina Colasanti promovem importante ruptura no


modo como as relações de gênero são representadas. As representações de gênero, em
sua contística, não perpetuam a mulher como submissa ao homem, mas, sim, como
alguém dona de sua própria história que não precisa estar atrelada a figura do outro para
significar. Como aponta Marisa Lajolo (1988), é importante pensar que a literatura
infantil e juvenil, muitas vezes, espelha e reforça as imagens de mulher elaboradas pela
sociedade brasileira.
A docilidade da figura feminina é vista, por exemplo, no conto da Bela
Adormecida, em que a personagem, ao espetar o dedo na roca, é conduzida ao sono
profundo, e, para sair dele, precisará da interferência do homem para que desperte.
Então, as personagens são outras nos contos de Colasanti. Nos contos de fadas
clássicos, as mulheres são postas como extremamente inocentes, ignorantes e frágeis,
tendo um papel secundário, ou com características como ingenuidade ou ignorância, e
as transgressões são, como em Chapeuzinho Vermelho, punidas.
Em dois dos contos de Uma ideia toda azul, ―Além do bastidor‖ e ―Fio após
fio‖, é possível observar a maneira por meio da qual esse ideário em torno do feminino
é reelaborado. As duas narrativas metaforizam o ato de tecer e o bordado e a costura são
postos não somente como uma ação desenvolvida pelas personagens, mas como uma
prática na qual as personagens também se bordam. A tessitura como metáfora da vida é
recorrente na obra de Marina Colasanti, mas nos contos em questão, ela é ferramenta
por meio da qual as personagens transfiguram seus corpos quando se veem

162
demasiadamente atreladas à feitura, por meio da agulha e da linha, de uma nova
realidade. Nos contos, há a ausência da figura masculina e as personagens mulheres são
responsáveis por seu próprio sucesso e pelo seu insucesso.
Nos dois contos, além de toda a trama narrativa fazer diálogo com o ato de
bordar, a tessitura é intrínseca à história das próprias personagens, pois, ao tecerem têm
seus corpos transfigurados: a protagonista de ―Além do bastidor‖ é transformada em
peça do próprio trabalho, ou seja, ela própria se torna parte do tecido, e a personagem de
―Fio a fio‖ é transformada em aranha.
Nos dois contos, há diálogo em relação a mitos. Por meio deles, é possível notar
a retomada dessas narrativas, que passam, na escrita de Colasanti, a ressignificar a
condição da mulher. Para conceituar mito, partimos da definição proposta por Marilena
Chauí (2003, p. 43), para quem o mito é uma narrativa com uma explicação sobre a
origem de algo, seja dos astros, da terra, do ser humano, das guerras, entre outros.
A retomada das narrativas primordiais é feita pelo diálogo com histórias que
remetem ao bordado. É importante destacar que a atividade da tessitura está associada a
toda a trajetória das mulheres. Como uma atividade realizada na esfera doméstica, a
mulher tece e borda, ao longo da história, para vestir os seus, para produzir arte e como
atividade de distração. Sobre a atividade da tessitura, Nieves Valle (2012) destaca,
ainda:

Na civilização ocidental, a deusa mãe, cuja tarefa era precisamente


fiar, era representada, dinamicamente, em fases, personas ou
personalidades que ela poderia adotar ao longo da vida; cada uma das
três fases, ou Moiras ou Parcas, completam um ciclo e têm um papel
atribuído: o fio da vida é girado no eixo de Cloto, é medido com o
bastão de Láquesis e cortado com a tesoura de Átropo. (VALLE,
2012, p. 3, tradução nossa40).

Valle (2012) retoma a tessitura como a costura da própria existência humana,


pois a deusa mãe, responsável pela determinação de cada ciclo da vida. Assim, nos dois
contos, a tessitura é determinante para uma mudança na vida das personagens, assim

40
En la civilización occidental la diosa madre, cuyo quehacer era precisamente el hilar, se representó
dinámicamente en fases o personae o personalidades que podía adoptar a lo largo de la vida; cada una
de las tres fases o Moiras o Parcas completan un ciclo y tienen asignado un papel: el hilo de la vida es
hilado en el huso de Cloto, es medido con la vara de Láquesis y es cortado con las tijeras de Átropo.
(VALLE, 2012, p. 3).

163
como é determinante o momento em que se corta uma linha que vinculava o objeto à
continuidade do bordado, pois, quando a linha é cortada, o bordado é interrompido.
Em ―Além do bastidor‖, o título já indica um possível caminho de alteração da
realidade das personagens. O bastidor, objeto de madeira em que se prende o tecido a
ser bordado para mantê-lo firme, é um círculo pequeno e fechado. Notamos, então, que
a narrativa irá ser conduzida para fora além desse pequeno círculo.
O conto é iniciado com a personagem decidindo o que irá bordar. Em meio às
dúvidas, uma única certeza: a cor verde: ―Começou com linha verde. Não sabia o que
bordar, mas tinha certeza do verde, verde brilhante‖ (COLASANTI, 2015, p. 16).
Iniciado o bordado, logo, ele toma a forma de capim: ―Um capim alto, com as pontas
bordadas como se olhasse para alguma coisa‖ (COLASANTI, 2015, p. 16). O cenário
que começa a tomar forma não é planejado, e os elementos que vão compondo o cenário
simplesmente surgem das mãos da personagem.
O jardim que se origina do bordado é feito todo da mesma maneira: surge
espontaneamente das mãos da personagem, que: ―[...] Obedecia às suas mãos, obedecia
ao seu próprio jeito, e surgia como se no orvalho da noite se fizesse a brotação‖
(COLASANTI, 2015, p. 16). Obedecendo, então, à sua própria vontade, o bordado toma
forma. A modificação do cenário, contudo, é bastante perceptível, já que é comparada
com a brotação que surge no orvalho da noite e que, no amanhecer, já permite que se
olhe para outra cena, diferente da que se via antes da noite cair.
O exercício de bordar da personagem é cotidiano, como se pode perceber
conforme seu trabalho vai ganhando forma: ―Toda manhã a menina corria para o
bastidor, olhava, sorria, e acrescentava mais um pássaro, uma abelha, um grilo
escondido atrás de uma haste‖ (COLASANTI, 2015, p. 16). É, também, um ato
individual e feliz, pois ela o faz de modo voluntário e se sente satisfeita com os
resultados.
Nesse mundo construído por suas próprias mãos, a menina mergulha de tal
forma que nada a interessa, se não ele. Ela perde o interesse pelas coisas alheias ao
universo do seu bordado ―O sol brilhava no bordado da menina. E era tão lindo o
jardim, que ela começou a gostar dele mais do que de qualquer outra coisa‖
(COLASANTI, 2015, p. 16).
Há, repentinamente, uma alteração no uso do verbo, que, até então, era
flexionado no pretérito imperfeito e dava uma ideia de vagarosidade ao tempo da
narrativa, para pretérito perfeito: ―Foi no dia da árvore‖ (COLASANTI, 2015, p. 16). A

164
mudança indica que algo definitivo irá acontecer: a personagem estava finalizando o
bordado e precisava bordar a única coisa que anda faltava: os frutos: ―Bordou uma fruta
roxa, brilhante, como ela nunca tinha visto. E outra, e outra, até a árvore ficar carregada,
até a árvore ficar rica, e sua boca se encher do desejo daquela fruta nunca provada‖
(COLASANTI, 2015, p. 16). A presença da fruta desperta, na personagem, novos
desejos.
A fruta bordada a conduz para um mundo de descoberta. Provado esse novo
sabor, todos os dias, a personagem busca por ele, descendo ao seu bordado. Passeava
pelo mundo criado por suas mãos cotidianamente. No seu universo particular, brincava
e descobria coisas novas. Cotidianamente, bordava algo que desejava, e, depois,
interagia com esse elemento, fosse ele um animal ou uma planta:

Agora que já tinha o caminho, todo dia a menina descia para o


bordado. Escolhia primeiro aquilo que gostaria de ver, uma borboleta,
um louva-deus. Bordava com cuidado, depois descia pela linha para as
costas do inseto, e voava com ele, e pousava nas flores, e ria e
brincava e deitava na grama. (COLASANTI, 2015, p. 16-17.)

O ato de bordar é posto, na narrativa, como um rito de passagem. O narrador


refere-se à pessoa que está bordando como menina, mas ela passa por uma
transformação ao experimentar do fruto tão desejado, e do qual prova até se sentir
saciada: ―A menina não soube como aconteceu. Quando viu, já estava a cavalo do galho
mais alto da árvore, catando as frutas e limpando o caldo que lhe escorria da boca‖
(COLASANTI, 2015, p. 16).
Ao voltar de sua imersão nesse mundo criado por ela, ela não sabe descrever de
que forma, exatamente, mergulhou nele, mas julgava que havia sido pela linha: ―Na
certa tinha sido pela linha, pensou na hora de voltar para casa. Olhou. A última fruta não
estava pronta, tocou no ponto que acabava em fio. E lá estava ela, de volta na sua casa‖.
É a linha, então, que a mantém na confluência entre os dois mundos: o real e o
ideal. Faz-se uma menção ao bordado, mais especificamente, à linha, elemento crucial
para essa atividade, como recurso para a personagem se transfigurar de pessoa humana
ao elemento que faz parte do tecido.
É interessante notar que o tecer, abordado nesse conto, que expressa o retorno da
personagem ao jardim do Éden, se encontra com o mito que originou o próprio bordado,
advindo do desejo de cobrir o corpo após provar do fruto proibido. Ao contrário da

165
narrativa original, contudo, a personagem fica presa no jardim, como consequência para
sua transgressão: ter provado do fruto desejado.
O ato de tecer está vinculado, muito antes de ser uma atividade artística, a uma
gama de valores simbólicos por meio dos quais o homem questiona, de acordo com
Valle (2012), os grandes temas que os seres humanos sempre se perguntaram e seguem
se perguntando: as conceituações sobre a vida, a morte o destino, entre outros.
Retomando o título, então, ―Além do bastidor‖, o além ao qual a personagem é
conduzida é, justamente, o próprio bastidor, que deixa de ser um restrito círculo de
madeira utilizado para firmar o tecido e se torna palco para realização das fantasias da
personagem, que, finalmente, prova o fruto tão desejado.
É possível notar uma intertextualidade com a história mítica religiosa do Jardim
do Éden. Tal qual na história bíblica, há um jardim enquanto pano de fundo para o
desenrolar da diegese. A diferença é que em ―Além do bastidor‖ a personagem sai do
seu mundo e mergulha naquele, sem ser retirada da costela dele, mas bordando ela
mesma o que deseja e construindo seu destino a partir de suas decisões, não das
consequências de seus atos. Do mesmo modo, ao provar da fruta que tanto deseja, não é
expulsa desse mundo, e, sim, permanece nele em definitivo pelas mãos da irmã, que, tal
qual Deus tem o poder de determinar a vida da irmã: se Deus expulsou definitivamente
Eva do paraíso, a personagem é mantida lá para sempre, ao cortar o fio que vinculava os
dois mundos.
O conto se encerra, assim, quando, a irmã, fica muito admirada com a beleza da
menina no bastidor, como se fosse um mundo ao qual ela sempre pertencesse. Esse
aspecto é perceptível a partir de dois elementos: marca-se, em dois momentos, que era
pela linha que a menina descia ao seu jardim, e é, também, cortando a linha que a irmã a
encerra ele:
Foi assim, de pé ao lado da garça, acariciando-lhe o pescoço, que a
irmã mais velha a viu ao debruçar-se sobre o bastidor. Era só o que
não estava bordado. E o risco era tão bonito, que a irmã pegou a
agulha, a cesta de linhas, e começou a bordar. Bordou os cabelos, e o
vento não mexeu mais neles. Bordou a saia, e as pregas se fixaram.
Bordou as mãos, para sempre paradas no pescoço da garça. Quis
bordar os pés mas estavam escondidos na grama. Quis bordar o rosto
mas estava escondido pela sombra. Então bordou a fita dos cabelos,
arrematou o ponto, e com muito cuidado cortou a linha.
(COLASANTI, 2015, p. 17).

A irmã, que se apaixona tanto pelo fruto de seu trabalho parece revelar sua
humanidade: ao provar do fruto proibido, tal como Eva, no Éden, já não pode mais

166
voltar a seu lugar de origem; seu lugar é ali, no mundo que originou. Sua irmã, ao vê-la
ali debruçada, corta a linha, e encerra, assim como Átropo, o fio que ligava a irmã ao
estado anterior. Antes, tecelã, e, agora, tecido, ao se revelar humana, ela fará parte da
tapeçaria.
Assim, ―Além do bastidor‖ ressignifica a história da criação do mundo. A figura
patriarcal de um Deus cristão não existe na narrativa, e quem cria o mundo, aliás, o
próprio mundo, é a personagem. A função da irmã, que observa de fora, é unicamente
colocá-la ali em definitivo ao cortar a linha.
―Fio após fio‖ também gira. Neste conto, ao contrário do primeiro, as
personagens são nomeadas, Nemésia e Gloxínia, nomes de flores. O conto é situado em
um castelo, no qual as duas moravam: ―Todas as tardes, na torre mais alta do castelo de
vidro, Nemésia e Gloxínia bordavam‖ (COLASANTI, 2015, p. 27). Então, a costura é
posta como uma atividade compartilhada, já que as irmãs Nemésia e Gloxínia bordam
juntas.
Na oração que inaugura o conto, remete-se ao lugar em que bordam: uma torre
de vidro, um elemento transparente, dando a ideia de que é possível ver, do lado de fora,
o que elas bordam, e, do mesmo modo, elas têm dimensão do que acontece no mundo
externo. Estando as duas na torre mais alta desse castelo, demarca-se uma posição de
superioridade, pois elas estão em um lugar ao qual somente elas têm acesso, mas do
qual se observa o mundo. Ainda na primeira oração, destaca-se que o bordado era uma
atividade cotidiana, já que, juntas, as irmãs bordavam todas as tardes. O próprio título
remete ao cotidiano, pois o fio após fio é posto como uma atividade em que algo é
construído de modo muito devagar, etapa por etapa, como se o bordado ao qual dão
origem não pudesse ser acelerado.
Na segunda oração, tem-se ideia do que está sendo produzido: um longo manto
branco que somente uma delas iria utilizar. Do mesmo modo, não há referência acerca
de quais das duas utilizaria tal manto: ―Longo era o manto de seda branca que as duas
fadas floresciam e que uma haveria de usar‖ (COLASANTI, 2015, p. 27). Remete-se,
então, a uma ideia de competição entre as duas, pois não se esclarece a determinação
prévia de quem o vestiria.
As duas irmãs, que cotidianamente estavam envolvidas com o bordado, tinham
diferenças entre si: Gloxínia nunca estava satisfeita com seu trabalho, e, diariamente, o
desmanchava. Já Nemésia seguia firme em seu trabalho:

167
Mas Gloxínia, nunca satisfeita com seu trabalho, desmanchava ao
fim de cada dia o que tinha feito, para recomeçar no dia seguinte.
Nemésia, gestos seguros, desenhava flores e folhas de um jardim em
que todas as pétalas eram irmãs, e a cada dia arrematava o ponto mais
adiante. (COLASANTI, 2015, p. 27).

As duas, cada uma trabalhando a seu modo: Nemésia bordando


incansavelmente, dando forma a um jardim, e Gloxínia desmanchando e impedindo
cada avanço, sem ver correr os dias. A insatisfação de Gloxínia era tanta que seus dedos
se machucavam, ao desmanchar o bordado. Assim, o tecido se sujava de sangue,
enquanto que à irmã nada abalava, e o manto branco ia substituído pelo bordado: ―Fio
após fio feriam-se os dedos de Gloxínia de tanto desmanchar. Sujava-se o pano. Os
dedos de Nemésia, tranquilos, brotavam o manto branco‖ (COLASANTI, 2015, p. 27).
Enquanto o lado do bordado de uma irmã era sujo de sangue, o da outra era limpo e
branco.
Ao perceber que a linha se findava, Gloxínia nota que não bordou um ramo
sequer, portanto, a irmã ficaria com o manto branco que bordavam: ―Caberia à irmã
acabar o manto e ficar com ele, sem que ela a nada tivesse direito por seus esforços‖.
(COLASANTI, 2015, p. 27). Concluímos, então, que o critério para utilizar o manto
seria o quanto haviam trabalhado nele.
Ela, nota, então, que a única maneira de tentar ter direito ao manto é abandonar a
busca pela perfeição, e fazer o trabalho conforme fosse possível: ―De nada adiantava
agora procurar a perfeição. Abandonando por um instante a tentativa de suas pétalas,
Gloxínia aproveitou o último fio para bordar sobre a seda, letra por letra, a palavra
mágica‖ (COLASANTI, 2015, p. 27). Não se diz qual é a palavra mágica, mas é ela, a
palavra bordada, que faz com que haja a transfiguração do corpo da personagem
Nemésia, que é transformada em aranha assim que Gloxínia termina de bordar.
A transformação de Nemésia dá a Gloxínia a quantidade de linha necessária
para, finalmente, bordar. ―Paciente, Nemésia teceu o primeiro fio. Que na agulha de
Gloxínia revelou-se perfeito, permitindo um bordado certo sem precisar a irmã recorrer
à tesoura‖ (COLASANTI, 2015, p. 27). Pela primeira vez, Gloxínia borda em
continuidade, sem desmanchar seu próprio trabalho, pois o fio tecido pela irmã se revela
perfeito. Passa, então, os dias e as noites bordando, encantada pelo fio. Assim como o
fio era perfeito, o bordado se revelava da mesma maneira, já que não exigia que
Gloxínia voltasse para consertá-lo: ―Colhia o fio da teia mais próxima e logo

168
mergulhava a agulha cantando na cadência dos pontos obedientes‖ (COLASANTI,
2015, p. 27-28).
Fiel ao bordado, a fada passava dias e dias sem necessidade de recorrer a outras
atividades. A tarefa, contudo, fez com que Gloxínia deixasse de perceber a irmã,
fornecedora de seu fio, e se prendesse somente ao resultado de seu bordado ―Fio após
fio esqueceu-se da irmã. Havia linha, o bordado enriquecia, e Gloxínia trabalhava feliz
no passar dos anos‖ (COLASANTI, 2015, p. 28). Seu fascínio, então, fez com que ela
se esqueça completamente de sua irmã: o fio por ela ofertado é sua única preocupação.
Finalizado o bordado, chegou o dia em que Gloxínia finalmente usaria o manto
perfeito. A irmã, transformada em uma aranha, não foi sequer lembrada por Gloxínia
quando a conquista fosse ser celebrada. Após um trabalho que durou anos, ela se
apresentaria e surpreenderia a corte:

Chegou o dia do último ponto. Gloxínia acabou uma pétala,


arrematou um espinho, e percebeu num sorriso que nada mais havia
para bordar; a primavera desabrochava no manto e a seda desaparecia
debaixo das ramagens. Guardada a agulha, Gloxínia levantou-se.
Usaria o manto, surpreenderia enfim a corte. Prendeu as fitas largas no
pescoço, ajeitou a cauda e virou-se para a porta. (COLASANTI, 2015,
p. 28).

Ao voltar-se para a porta, contudo, Gloxínia descobre que o trabalho de anos


havia tomado o quarto. As teias da bordadeira paciente estavam por todos os lados, e,
em vão, Gloxínia procura a saída. Presa no emaranhado de linhas, ela os rasgava
somente para se ver presa em outras linhas ―Mas onde estava a porta? Ao redor de
Gloxínia, as teias de Nemésia. Teia encostada em outra teia, que Gloxínia rasgava sem
chegar a lugar algum, somente a outras e mais teias‖ (COLASANTI, 2015, p. 28).
Nemésia já estava do lado de fora da corte, bordando, quando a irmã percebeu
que estaria presa ali para sempre: ―Ao redor da corte, ao redor das salas, ao redor do
castelo e dos jardins, lá fora fiava e tecia a paciente Nemésia, esquecida da corte,
esquecida da irmã para sempre prisioneira do seu casulo de prata‖ (COLASANTI, 2015,
p. 28). Nemésia, então, se viu ali para sempre, aprisionada pela irmã, que, por sua vez,
ficou presa no quarto em que bordou, pacientemente, por anos. Nenhuma das duas
usaria o manto, cada uma aprisionada de uma forma distinta.
Fio a fio‖, então, parece dialogar com o mito de Aracne. Aracne era filha de
Ídmon, um rico tintureiro de Cólofon. Ela bordava e tecia de forma tão perfeita que as

169
ninfas dos bosques vinham para contemplá-la. Era considerada discípula de Atena, que,
justamente, era a deusa dos trabalhos da fiação, da tecelagem e do bordado. Aracne,
vaidosa, desafiou Atena, que aceitou: mas apareceu-lhe sob a forma de uma anciã,
aconselhando-a a que fosse mais comedida, porque os deuses não admitiam competição
por parte dos mortais. A jovem, em resposta, insultou a anciã. Ao ser vencida no desfio,
pois o trabalho de Aracne era perfeito, Atena a transforma em aranha e ela é obrigada a
tecer pelo resto da vida (BRANDÃO, 1986). As irmãs, em ―Além do bastidor‖, também
disputam por meio do bordado e a consequência para a irmã que bordava perfeitamente
foi ser transformada em aranha, assim como Aracne.
A manifestação de outras vozes no discurso pode ser direta e evidente, ou,
interna, indivisível e é dessa forma que se encontra a presença dos mitos nos contos de
fadas. O dialogismo (BAKHTIN, 2014), assim, altera o lugar social da mulher
comumente representado em diferentes textos. As vozes incorporadas nos textos
analisados são, justamente, os textos provenientes das narrativas fundadoras, como de
Adão e Eva, das Moiras, ou mesmo o mito de Aracne.
Nos dois contos, que abordam a temática do bordado de formas distintas, o
bordado é utilizado enquanto uma atividade vinculada ao universo da mulher, mas que,
no conto, serve para questionamento das relações entre mulheres. A presença do
bordado no mundo da mulher é já antigo, e foi reafirmada ao longo da história. Para
Flores (2000), a relação da mulher com o bordado atravessou os séculos porque esteve
relacionado ao espaço doméstico e à mulher cabia a administração do lar.
Percebe-se, então, a ausência das figuras masculinas enquanto estratégia para
valorização das mulheres nos dois contos aqui analisados: no primeiro conto, a
personagem borda seu próprio mundo, reinventando a história bíblica da criação do
mundo; no segundo, as irmãs disputam e decidem entre elas a função do manto tão
importante, revelando, ao mesmo tempo, uma relação de disputa.

b. Bisa Bia, Bisa Bel

Se em Marina Colasanti há a ressignificação das atividades historicamente


atribuídas às mulheres, em Bisa Bia, Bisa Bel a feminilidade é questionada por meio do
conflito entre gerações de mulheres. Nos diálogos entre elas, o gênero é posto como

170
definidor da condição da mulher. Já a desconstrução é elaborada como um processo que
não é individual, mas da sociedade e da cultura. Na narrativa, há um cruzamento, por
meio do maravilhoso, das mulheres da família da protagonista. O parágrafo que dá
início à diegese marca a presença do maravilhoso na narrativa: ―Sabe? Vou lhe contar
uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. É que Bisa Bia mora comigo. Ninguém
sabe mesmo. Ninguém consegue ver‖ (MACHADO, 2007). Essa abertura ao mundo do
imaginário condicionada pela ideia inicial de que a bisavó está presente na vida de
Isabel possibilita uma sequência de trocas de pontos de vista a respeito dos
comportamentos de homens e mulheres, bem como dos papéis sociais de gênero. Há
intensos confrontos acerca do que Bisa Bia, a bisavó, considera como comportamento
ideal para meninas e mulheres, que é visto por Isabel como as ideias esquisitas da avó.
A contraposição de três mulheres de três momentos históricos distintos – a
bisavó de Isabel, a Isabel e a bisneta de Isabel – permite que se delineie uma evolução
dos direitos conquistados pelas mulheres, pois cada uma delas apresenta seu ponto de
vista no que tange ao patriarcado. De convivência de Isabel com a bisavó, são
contrapostos os modos por meio dos quais as duas consideram o comportamento da
mulher:

Só depois que eu fiquei conhecendo melhor Bisa Bia é que soube


da verdade: ela não gosta de ver menina usando calça comprida,
―short‖, todas essas roupas gostosas de brincar. Acha que isso é roupa
de homem, já pensou? De vez em quando ela vem com umas ideias
assim esquisitas. Por ela, menina só usava vestido, saia, avental, e
tudo daqueles bem bordados, e de babado. Mas isso eu só soube
depois. (MACHADO, 2007, p. 12).

Isabel revela, então, as formas diferentes de ela e a bisavó perceberem roupas de


menino e de menina. De início, já se aponta o conflito de gerações que irá dar a tônica
da narrativa: mostram-se as ideias da avó como sendo antiquadas, já ultrapassadas. Há,
por meio da descoberta de outra forma de pensar sobre as relações entre homens e
mulheres, ainda mais interesse, por parte de Isabel, para conhecer o mundo da avó, pois,
à medida que elas vão se aproximando, Isabel confronta sua visão de mundo com as
anteriores. A interlocução presente em diversos momentos da narrativa possibilita que,
quem lê, tome um posicionamento. Quando a voz narrativa aponta que a bisavó
considera short como exclusivo do vestuário masculino, questiona na sequência: já
pensou?. Convida, assim, quem lê, a para pensar sobre o aspecto mencionado.

171
As indagações na literatura juvenil não são inseridas por acaso. Elas convidam
quem lê para se posicionar frente a um dilema ético, chamando-o para um processo que
Bakhtin (2011) chama de responsividade ativa:

Toda compreensão da palavra viva, do enunciado vivo é de natureza


ativamente responsiva [...]; toda compreensão é prenhe de resposta, e
nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna
falante. A compreensão passiva do discurso ouvido é apenas um
momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena,
que se utiliza na subsequente resposta em voz real e alta. (BAKHTIN,
2011, p. 271).

As interlocuções, assim, suscitam uma participação crítica do leitor, figura ativa


na comunicação. Ao ser indagado pela narrativa, espera-se que ele tenha uma resposta
mais ou menos distante do aspecto ético instaurado.
A presença cada vez maior de Bisa Bia na vida de Bisa Bel faz com que ela não
saiba, exatamente, qual o lugar que a avó ocupa. Isso acontece, também, com as
interferências da bisavó no que diz respeito aos comportamentos de Isabel, já que suas
opiniões se tornam constantes, mostrando, assim, que a voz do patriarcado também não
está tão distante como se parecia no início da narrativa:

Corre-que-corre, pula-que-pula, foge-que-foge, o cartão da


moldura do retrato toda hora machucava minha barriga. Era como se
Bisa Bia ficasse de vez em quando me dando umas cutucadas para
dizer alguma coisa. E o que ela dizia e, aos poucos, eu ia aprendendo a
entender, era mais ou menos assim:
— Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito,
pulando assim nessas brincadeiras de menino. Acho muito melhor
quando você fica quieta e sossegada num canto, como uma mocinha
bonita e bem-comportada. (MACHADO, 2007, p. 23).

A bisavó acentua que tentará determinar o modo certo de a bisneta se portar,


alterando comportamentos que não julgue adequado. Assim, a evolução na compreensão
do gênero como algo associado à busca pela subjugação do feminino é apresentada na
medida em que essas relações se modificam ao longo da história. A narrativa traz
implícita a ideia de que a feminilidade é construída e se manifesta de acordo com a
época em que as mulheres estão inseridas, pois, conforme avançam as gerações,
também se modifica o comportamento das mulheres, especialmente, em relação ao
masculino.

172
Além da percepção acerca das relações de gênero observadas na comparação das
experiências entre as três personagens, também há contraposição nas relações de gênero
a partir dos conflitos com o único sujeito do sexo masculino representado, a
personagem Sérgio, colega de Isabel por quem ela é apaixonada:

O Sérgio é um amor, tem horas que eu quero casar com ele quando
crescer, e coisa e tal. Mas se tem um troço que me deixa louca de
raiva com ele é essa mania de rir de mim quando os amigos estão
perto, esse jeito de fazer de conta que menina é uma pessoa sem
importância, de me tratar como se eu fosse uma boboca.
(MACHADO, 2007, p. 11).

Como se nota na citação, a personagem se incomoda com o comportamento de


Sérgio em relação a ela, que a desvaloriza sempre que está perto dos amigos. Mesmo
assim, Isabel tenta chamar a atenção dele, seja participando de alguma atividade em
comum ou buscando conversar sobre coisas que o interessem, ou, ainda, relevando
comportamentos dos quais não gosta.
A fala de Isabel acerca dos meninos, contudo, reproduz alguns valores
assentados historicamente para o feminino, como a crença de que as meninas precisam
modificar seu comportamento para agradar os meninos. A retomada à fala de uma tia
corrobora essa reprodução: ―Eu já ia ficando com raiva quando lembrei que minha tia
diz que homem é assim mesmo, vive ocupado com coisas mais importantes, não
entende muito de moda, a gente precisa ter muita paciência com eles‖ (MACHADO,
2007, p. 12).
A narrativa com um tom profundamente feminista, questiona, mais adiante, a
tentativa de Isabel de modificar seu comportamento para agradar a Sérgio. É Neta, A
Bisneta, quem irá contribuir para que Isabel perceba que não deve alterar seu
comportamento, como tentar aparentar fragilidade, para conquistar Sérgio. Isabel, que
tinha somente a bisavó como questionadora de suas ações, passa a contar com a
interferência do futuro para questionar suas ações.
Assim, percebemos as mudanças no comportamento da mulher na confluência
entre as três gerações: para a bisavó, Isabel precisava ser mais delicada e feminina para
chamar a atenção de Sérgio, mas, para a bisneta, ela não devia mudar para agradá-lo:

— Viu só? Ele acha você parecida com um menino. Homem não
gosta disso. Agora ele fica pensando que você é um moleque igual a
ele e vai levar uma goiaba de presente para aquela menininha bem

173
arrumada e penteada que está esperando quieta na calçada... Finge que
se machuca, sua boba, assim ele te ajuda. Chora um pouco, para ele
cuidar de você...
— Não finge nada. Se ele não gosta de você do jeito que você é, só
pode ser porque ele é um bobo e não merece que você goste dele. Fica
firme. (MACHADO, 2007, p. 43).

Não é na relação de Isabel com Sérgio, contudo, que a narrativa se centra, mas
na convivência entre mulheres. Assim como nos contos de fadas de Colasanti, o
enfoque é em como as mulheres convivem e exercem influências na existência uma das
outras. Essa é uma marca importante da literatura juvenil escrita por mulheres nesse
período, pois, se a década anterior contava com obras que se centravam em conflitos
oriundos das paixões adolescentes, e, especialmente, no comportamento das jovens
diante de tais dilemas, esse padrão já não é observado nas obras do corpus.
Se o contraponto inicial entre a menina Isabel e a bisavó marca rupturas e
atravessamentos entre presente e passado no que diz respeito à história das mulheres,
quando se observa a distância temporal entre Isabel e sua bisneta, a narrativa mira a
construção do futuro. As vozes, profundamente imbricadas até o final da narrativa,
assinalam as modificações da condição da mulher entre passado, presente e futuro,
rompendo, progressivamente, com os modelos e papéis sociais de gênero. As mulheres
na narrativa de Bisa Bia, Bisa Bel, então, redefinem seus papéis sociais por meio da
partilha de pontos de vista acerca das relações entre homens e mulheres. Cada uma, a
seu tempo, ensina e aprende com a outra tendo como ponto de partida a
problematização do que sejam papéis de meninos/meninas e homem/mulher.
A obra apresenta, assim, uma renovação importante ao convocar a bisavó para
rever o próprio discurso. Recorrendo a Bakhtin (2014), vemos que, em Bisa Bia, Bisa
Bel, há mais do que uma atualização das relações de gênero por meio da inserção de
uma perspectiva feminista, pois, como defende o filósofo, os sentidos, mesmo os do
passado, não são estanques: ―Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo
dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas): eles sempre vão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento
subsequente, futuro do diálogo‖ (BAKHTIN, 2014, p. 410). As relações interdiscursivas
existem somente no pensamento de Bisa Bel, que acessa pensamentos do passado e do
futuro acerca das relações de gênero quando, juntamente com sua mãe, encontra
fotografias antigas em uma caixa há muito tempo guardada. Assim, quando a bisavó é
trazida, por meio das memorizações da bisneta, mostra-se que a cada aparição do

174
discurso do passado há uma atualização dele, que não é apagado, mas com o qual se
propõe um dialogismo. O sujeito bakhtiniano, situado temporal e historicamente, é
atualizado, assim, pois é inacabado. Quando se traz, ainda, uma voz do futuro para a
narrativa de Machado (2007), a narrativa propõe perspectivas para o futuro, que não são
exatas, pois não há como determinar quais avanços realmente acontecerão, mas que são
possíveis de se elucubrar, mesmo passível de mudanças.
Da convivência com as duas, Isabel vai percebendo a importância de
desenvolver autonomia para tomar suas próprias decisões:

Impossível saber sempre qual o melhor palpite. Mesmo quando eu


acho que minha bisneta é que está certa, às vezes meu coração quer
porque-quer fazer as coisas que minha bisavó palpita, cutum-
cutumcutum, com ele... Mas também tem horas em que, apesar de
saber que é tão mais fácil seguir os conselhos de Bisa Bia, e que nesse
caso todos vão ficar tão contentes com o meu bom comportamento de
mocinha, tenho uma gana lá de dentro me empurrando para seguir
Neta Beta, lutar com o mundo, mesmo sabendo que ainda vão se
passar muitas décadas até alguém me entender. Mas eu já estou me
entendendo um pouco – e às vezes isto me basta. (MACHADO, 2007,
p. 65).

Ela percebe que, por vezes, quer seguir os conselhos de sua bisavó, e, em outras,
de sua bisneta, até o momento em que reconhece que ela própria deverá tomar suas
próprias decisões, e escolher, por si, sua maneira de estar no mundo. A necessidade de
desenvolver a autonomia, contudo, é elaborada gradativamente por parte de Bisa Bel,
que, até dado momento, tenta agradar tanto a bisavó quanto a bisneta. A relação entre as
personagens, então, revela uma pré-adolescente que vai se fortalecendo ao passo que
constrói a sua subjetividade com base nas experiências das outras mulheres.
Para além do questionar das experiências anteriores, a narrativa mostra
profundas relações de sororidade, quando uma mostra para a outra fatos importantes de
seu(s) mundo(s). O desfecho da narrativa não poderia ser mais representativo das
relações de parceria entre mulheres: elas terminam, trançando-se os cabelos: ―Eu, Bel,
uma trança de gente, igualzinho a quando faço uma trança no meu cabelo, dividido em
três partes e vou cruzando com as outras, a parte de mim mesma, a parte de Bisa Bel, a
parte de Neta Beta. E Neta Beta vai fazer o mesmo comigo, a Bisa Bel dela‖.
(MACHADO, 2007, p. 65).O ato de trançar os cabelos, assim, metaforiza a importância
de se considerar que a história da condição da mulher é um imbricado de relações
anteriores, pois Bisa Bel é ela própria uma ―trança de gente‖ entre mulheres, e que é

175
somente por meio do fortalecimento do grupo social que é possível evoluir nas relações
de gênero.

c. O mágico de olho verde

O mágico de olho verde versa sobre uma família com uma estrutura nuclear, na
qual o homem é responsável pelos proventos e a mulher por educar as crianças e manter
a organização do lar. A mãe, Carmem, tenta reconduzir a vida da família após o
falecimento do marido, pois, sem ele, precisará suprir financeiramente os filhos.
A narrativa, mesmo que conte com Mila sendo narradora-protagonista, em
alguns momentos, tem o foco narrativo alterado para uma voz narrativa onisciente, que
tem acesso ao pensamento da mãe e do pai. Na citação anterior, percebe-se, por
exemplo, a mãe preocupada com o que fazer para sustentar a família ao mesmo tempo
em que pensa sobre a possibilidade de se casar novamente. As orações curtas indicam o
pensamento acelerado da mãe, que tenta decidir e resolver vários problemas ao mesmo
tempo.
Quando se altera o foco narrativo em momentos estratégicos para esclarecer
aspectos deixados em aberto deixados pela voz narrativa principal, a de Mila, quem lê
tem acesso a problemas que Mila não conhece. Se a menina acusa a mãe de estar
esquecendo o pai, esta, por sua vez, revela que sua principal preocupação é suprir
financeiramente a família e tentar resolver problemas que antes eram do pai.
A organização familiar na qual o pai é responsável pelo sustento da família e a
mãe pelos cuidados domésticos é típica das famílias urbanas, já que, como defende
Michel Lallament (2014, p. 379), em análise sobre as famílias francesas, nas zonas
rurais, a mulher participa igualmente do trabalho produtivo. O autor ressalta, ainda, que
nos espaços urbanos a ausência ou o pouco número de creches impele a mulher para
dentro do lar, dificultando que ela exerça uma profissão, pois precisa ficar responsável
pelos cuidados com os filhos. Valéria Penna (1988), analisando a situação da mulher
trabalhadora no Brasil, traz um dado bastante relevante: em 1892, as mulheres
constituíam aproximadamente 45% da população trabalhadora, de acordo com o Censo

176
(não se consideravam as donas de casa). Das mulheres que trabalhavam fora de casa,
25% eram empregadas pela agricultura e 33% pelos serviços domésticos.
Esse foi um cenário comum no Brasil até 1970, momento em que as creches
começaram a se expandir, como relata Lucimary Andrade (2010). Em O mágico de olho
verde, percebemos a mãe às voltas com as dificuldades em assumir mais uma função
familiar, já que até então exercia o papel para o qual estava preparada: o trabalho
doméstico.
Como aponta Barbieri (1993), o sistema de gênero é um sistema de poder, e,
portanto, se estrutura e se exerce em múltiplos espaços. Assim, quando se observa como
se organiza a vida doméstica, ela pode ser entendida, inicialmente, como um espaço de
privilégio das mulheres, mas se trata de um espaço de subordinação, pois o trabalho
doméstico não dispõe do mesmo valor social que o trabalho externo.
O estudo dos espaços domésticos na literatura, assim, revela como são
elaboradas, no discurso ficcional, as relações de gênero e os papéis que os sujeitos
desempenham na família. Em O mágico de olho verde são questionadas, de modo
incisivo, as consequências da relação entre a mulher e sua subordinação ao lar:
Carmem, para o marido, era alguém apática e sem poder de decisão, mas quando ela
revela suas dores, traz à tona as relações desiguais às quais ela era submetida.
A família, na obra, constituída por pai, mãe e filhos, é reveladora de uma
matriarca consciente do lugar social que ocupa e de um patriarca que, em muitos
aspectos, inferioriza a mulher, pois, para ele, todas as dificuldades familiares são
enfrentadas por ele, que precisa sustentar a família, já que ele é quem lida com o mundo
externo, o mundo da rua, no qual, para ele, estão os verdadeiros desafios:

O pai se calou. Discussão boba. Magoaria a mãe e a si mesmo.


Depois, com jeito, resolvia aquilo. Para ciência com o gênio dela.
Meia dúzia de vocábulos despertavam complexos, descuidado, dissera
dois. Culpada de não evoluir, fechada em casa. Acomodada.
Dependente até numa insignificância de feitio de roupa. Assim, desde
o início. Terá de pegar as rédeas, não vê? Anda cansado, desgostoso.
Estranha a paixão do começo. (LEITE, 1984, p. 25).

Para o marido, as reclamações da mãe eram insustentáveis, pois, se ela


dependida dele, é porque era acomodada, e não porque alguém precisava ficar
responsável pela organização da família e educação dos filhos enquanto ele estava fora.

177
A narrativa revela o quanto o trabalho faz com que ela seja inferiorizada
socialmente, inclusive, por depender financeiramente do marido e ter pouca autonomia
para decidir aspectos importantes da vida familiar:

Cismou com piscina no jardim, cimento vermelhão em metade do


quintal, um fim na sujeira, sua fixação. Pedreiro em punho, sem
prevenir papai.
 Sim senhora, dona, empreito sim senhora.
Entrou pelo cano nessa iniciativa, a primeira e última, papai vivo,
acho. Daí, murchou. Ele podou os ramos atrevidos. Agora, reage,
ferrugem na tesoura, adubo novo, nome de gente. (LEITE, 1984, p.
19).

A cena descrita na citação é de um momento em que, logo após uma grande


briga entre o casal, o pai de Mila dormiu fora de casa, e a mãe, motivada pelo
comportamento dele, resolve, sozinha fazer alterações na estrutura da casa, e é logo
impedida pelo pai, que alegou não terem dinheiro. A voz narrativa aponta essa atitude
da mãe como única iniciativa dela enquanto o pai estava vivo, pois, depois disso, ele
podou seus ramos atrevidos. Mila, narrando as mudanças pelas quais a mãe vem
passando, compara o comportamento do pai em relação a mãe com a profissão dele,
agrônomo. Para Mila, assim como o pai fazia com as plantas, ele fazia com a mãe, a
podava. A ausência dele, por sua vez, permite que sua mãe tenha novos galhos, pois a
antiga tesoura está enferrujada. É, então, somente após a morte dele que ela pode, de
fato, tomar decisões sobre a família e sobre sua própria vida.
É a morte dele o momento decisivo para Carmem, pois irá impeli-la a ter uma
outra atitude diante da família. Ela precisa descobrir, sozinha, enquanto vivencia seu
luto, como reconduzir a família.

d. O sofá estampado

Já O sofá estampado conta com uma estratégia bastante importante no que se


refere ao questionamento dos papéis sociais de gênero. Como já vimos, Vítor, o
protagonista, tem sua história atravessada pela convivência com diversas personagens
femininas. Uma delas é Dona Popô, que ele conhece quando vai procurar trabalho na
televisão quando ele está morando na cidade. Dona Popô é dona da agência na qual

178
Vítor vai procurar emprego. O primeiro encontro é marcado pela surpresa de Vítor
quando a vê pela primeira vez, pois a imagem dela em seu escritório destoa de tudo que
ele conhecia:

Era uma sala enorme. Tapete enorme. Gravador, rádio, televisão,


computador grande pequeno médio, microfone, interfone, máquina
por todo lado. E no meio daquilo tudo, a Dona Popô. Sentada numa
cadeira baixa, de rodinha; na frente de uma mesa redonda. O susto do
Vítor virou pânico: ele nunca tinha visto uma hipopótama 41. E a Dona
Popô ficou olhando pra ele: era a primeira vez que ela encontrava um
tatu. (BOJUNGA, 2015, p. 127).

A descrição do espaço permite ver o ambiente de poder ao qual Dona Popô


parecia pertencer muito bem. Ela é dona de uma importante agência de publicidade e
nos capítulos que tratam sobre ela, é possível conhecer sua trajetória para chegar até ali.
Os dois ficam surpresos quando se veem, estranhando a figura um do outro e
Vítor sente logo necessidade de cavar. Como já explanado em ―3.1 O lar‖, uma das
características da ansiedade de Vítor é que ele cava quando está nervoso: a figura
imponente de Dona Popô o tira de sua zona de conforto e ele sente necessidade de
cavar.
Se Dona-da-casa representa a sua categoria social e a parcela conservadora da
sociedade, Dona Popô parece ser o oposto dessa personagem, pois ocupa um lugar de
poder tipicamente masculino:

A Dona Popô ficou parada. Depois tirou charuto e isqueiro do


bolso e acendeu devagar. A fumaça fez desenho; a Dona Popô olhou e
resolveu que o Vítor também ia anunciar ladeira de poço de petróleo e
cavadeira elétrica. Sentiu que ia poder usar o Vítor pra poder faturar
um dinheiro alto, e aí a orelha direita deu uma tremidinha: quando a
Dona Popô ficava contente a orelha dela tremia assim. (BOJUNGA,
2015, p. 129-130).

Dona Popô, em seu universo, ela é a figura mais importante. Com um tino para o
lucro, ela vê em Vítor uma oportunidade para ganhar dinheiro com publicidade. Se,
quando ela aparece pela primeira vez na narrativa, já está vivendo na cidade grande e é
dona de uma importante agência publicitária, os capítulos seguintes, por meio de

41
A língua portuguesa reconhece, somente, a expressão hipopótamo-fêmea, mas, aqui, manteremos a
expressão hipopótama quando a personagem Dona Popô for citada, pois é assim que está presente em O
sofá estampado.

179
analepses, mostram que, para que ela se transformasse em uma figura autônoma e
decidida, precisou percorrer um longo caminho.
O charuto que costuma fumar marca a sua separação completa de seu estado
anterior: quando chegou à cidade grande, desmaiou na primeira vez que fumou. Agora,
já habituada a esse espaço, tem no charuto um novo vício. Já a divisão entre classes por
meio do dinheiro que antes não compreendia, agora faz parte de seu jogo: ao se deparar
com Vítor, sabia que ele lhe traria bastante lucro, mas não se preocupa com as
consequências que isso trará para ele.
Ao contrário de Dalva e Dona-da-casa, acerca das quais não há maiores
esclarecimentos sobre suas experiências anteriores, Dona Popô tem seu passado
revelado. A analepse que retoma o seu passado mostra que ela nem sempre uma figura
independente, forte e decidida.
Ela morava com sua mãe em uma grande floresta e tinha como única
preocupação comer. Seus dias eram pacatos e as conversas se centravam no cotidiano
dos animais: ―E tudo que é parente e amigo vivia igual, a principal diversão era juntar
pra bater papo, e o papo não variava: o que que eles tinham comido, o que eles iam
comer‖ (BOJUNGA, 2015, p. 132). Em dado momento, a mãe de Dona Popô menciona
ter escolhido um marido para ela, que era um bom partido para arranjá-la comida. Ela,
que aceitava pacificamente as decisões da mãe, não questiona a ideia de casar:

A Dona Zuleica já tinha escolhido o hipopótamo que um dia ia


casar com a Pôzinha, ‗ele é ótimo pra arranjar comida, viu Pôzinha? e
a Pôzinha disse tá. A Dona Zuleica já tinha escolhido o lugar que a
Pôzinha ia morar, é um lugar ótimo pra arranjar comida, viu Pôzinha?
A Pôzinha disse tá. A Dona Zuleica tinha até mandado: ‗Uma hora
dessas vai lá ver o lugar.‘ A Pôzinha foi. (BOJUNGA, 2015, p. 132-
133).

Até esse momento, dona Popô estava conformada com o destino que a mãe
estava reservando a ela. O uso do itálico nas respostas de dona Popô marca,
graficamente, as respostas simples e diretas frente às decisões da mãe. Há um destino
bastante tradicional desejado pela mãe: um marido para sustentá-la e um bom lugar para
morar. Ela não menciona se gostava ou não do destino que se desenhava para ela, pois,
nesse momento, ela ainda não revelava seus desejos. Há, também, uma diferença no
modo como ela é chamada: nesse tempo, ela ainda era Pôzinha.

180
Quando vai conhecer o novo lugar em que ia morar, contudo, dona Popô é
capturada e trazida para um zoológico no Brasil. No zoológico, fica deprimida e
pensando em como fugir, já que ouvia histórias de animais que haviam conseguido. Um
dia, porém, aparece um hipopótamo que mudaria seu destino: Ipo.
Ipo era um sujeito de posses. Chega ao zoológico em um carro grande com
motorista. Mesmo assim, é confundido com um hipopótamo comum e aprisionado.
Preso em uma das jaulas próximo de Dona Popô, ele se interessa por ela assim que a vê.
Em sua fala, acentua não ser um simples hipopótamo, pois tem uma condição diferente
da dos hipopótamos daquele lugar:

— São uns idiotas! pensam que porque a gente é hipopótamo tem


que viver no Zôo.
E não tem não?
Claro que não! Eu só vim aqui soltar o irmão de um elefante que
trabalha numa das minhas empresas. (BOJUNGA, 2015, p. 138-139).

A fala de Ipo demarca sua tentativa de se separar de seu grupo, pois quando ele
questiona a obrigatoriedade de os hipopótamos viverem no zoológico, ele não está
falando por todos, mas de alguns que, por diversas razões, acabam conquistando esse
direito à liberdade. Ao mesmo tempo, ficam claro os processos de corrupção para
libertar determinados animais:

— E só pagar pra sair.


Ela baixou a voz:
— Falaram que só fugindo...
— Bom, se o bicho é pobre e só conhece gente pobre, o jeito é
mesmo fugir. (BOJUNGA, 2015, p. 139).

Por mais que a voz narrativa, nesse momento, não apresente sua opinião sobre as
injustiças sociais perceptíveis nos diálogos entre as personagens, ao passo que Ipo e
Dona Popô discutem, elas são expostas, pois o contraponto entre a visão ingênua de
Dona Popô e o discurso de Ipo, conhecedor dos meios para conquistar a liberdade,
sejam eles mais ou menos corruptos, vai deixando claro que aquele é um ambiente
bastante injusto e desigual. Quando se traz o pensamento do zelador do zoológico, a
desigualdade social fica latente:

‗Como é que pode?‘, ele pensava; e lembrava de um outro


hipopótamo que um dia tinha passa do por lá pedindo um prato de
comida. Dava até pena: o hipopótamo estava com tanta fome que foi

181
logo comendo tudo que é samambaia que enfeitava o portão. E ele
prendeu o hipopótamo. E ganhou parabéns de todo mundo. E o diretor
deu aumento de ordenado e tudo. Agora ele prendia esse outro
igualzinho... (BOJUNGA, 2015, p. 142-143).

Contrapondo o pensamento do zelador com o diálogo de Dona Popô e Ipo, a


narrativa expõe a crítica à diferença de classes e à corrupção, pois é mostrado que,
quando o animal conhece alguém importante ou tem dinheiro, sairá do zoológico de um
jeito, mas, quando não, permanecerá preso ou precisará fugir.
Ipo e Dona Popô se aproximam, pois ele a ajuda a sair do zoológico e ela se
apaixona por ele. Ipo, personagem que representa o sujeito muito ocupado e preocupado
com lucro, não percebe a intenção de dona Popô em se casar com ele, mas, como ela
declara desejar a mesma condição de vida que ele, ele a emprega em uma de suas
fábricas. Contudo, o modo por meio do qual ela queria ascender socialmente era o
casamento:

— Eu queria te perguntar como é que a gente vive assim feito


você.
— Trabalhando, ué.
A Pôzinha baixou a cara: estava crente que ele ia dizer ‗casando
comigo, ué‘. O Ipo quis saber:
Por quê? Você quer um emprego? A Pôzinha continuou de cara
baixa.
Tenho fábrica de carro, televisão, iogurte e capim em lata: onde é
que você quer trabalhar?
E quase chorando a Pôzinha respondeu capim em lata.
(BOJUNGA, 2015, p. 148-149).

O novo estilo de vida com o qual começa a ter contato, com luxos e viagens,
bastante diferente da vida simples que levava, no qual a única preocupação era a
comida, logo desperta o interesse de Dona Popô, que quer participar desse novo
universo.
Ipo a emprega em uma das fábricas e ela se sai muito bem. A dedicação e talento
de Dona Popô fazem com que ela chegue a administrar várias fábricas. Esse
crescimento faz com que ela modifique seu comportamento e não mais fique esperando
por Ipo, pois percebe que ele não vai se casar com ela, tendo em vista que não
correspondia aos seus sentimentos. Quando ele percebe a alteração no comportamento
de Dona Popô, contudo, tenta se reaproximar dela. Ela, porém, já havia incorporado

182
outras atitudes que a distanciam da figura anterior. O excerto seguinte revela o momento
em que ela, finalmente, confronta Ipo:

Alto lá! não sou mais Pôzinha: agora sou a Dona Popô. Dei festa e
tudo pra mudar de nome. Uma festa linda, você precisava ver.
O Ipo tirou o alfinete da gravata, limpou a unha com ele e disse:
 Ah, é?
Festa à fantasia, sabe, gente e bicho assim! — Acendeu um charuto
na calma, jogou a fumaça pro ar que nem o Ipo jogava, e contou: —
Eu me fantasiei de rainha. Com manto vermelho e tudo. No fundo da
sala tinha um trono, e em cima do trono estava escrito Pôzinha com
letra dourada. O acento do Pô era uma coroa, sabe, cheinha de água-
marinha, e aí, quando eu fui andando pro trono, começou a cair
dinheiro do teto feito pétala de rosa, foi lindo-lindo, você precisava
ver. E tinha orquestra tocando essas músicas que você gosta, e quando
eu sentei no trono veio empregado de luva me acender o charuto com
um isqueiro de ouro igualzinho ao seu. E aí, sabe, eu soprei a fumaça
no Pôzinha e tudo que é letra desmanchou, foi lindo-lindo, só ficou a
coroa do Pô. E nessa hora o teto abriu e desceu um empregado da
fábrica de capim em lata vestido de anjo, uma beleza! — todo mundo
até fez hmm! e aí ele tirou da asa uma pena dourada e no lugar que
tinha Pôzinha ele escreveu Dona Popô, deixando a coroa do Pô bem
em cima do Pô. Foi bonito à beça.
 Ah, é?
Ela deu uma risadinha:
De modo que, agora, já sabe: querendo falar comigo tem que
chamar pela Dona Popô. E como eu ando até aqui de trabalho, na certa
você vai ter que esperar. — Foi assim mesmo que a Pôzinha falou. Só
pra chatear. E aí o Ipo olhou bem no olho dela e disse:
 Eu também dei uma festa, sabe, só que foi de casamento. -
Enfiou o alfinete na gravata. — O meu. — E saiu. Sem contar nada da
festa. Só pra chatear.
A Dona Popô teve uma dor-de-cotovelo histórica. E ainda por cima
o Ipo tirou ela das empresas dele, dizendo que ela estava ficando
muito poderosa, e que mais cedo ou mais tarde mulher bota tudo que é
negócio a perder, e que mais isso e mais aquilo. (BOJUNGA, 2015, p.
154-155).

Na passagem, constatamos que, para participar desse universo, Dona Popô


aprende a desempenhar uma nova performance e se espelha nas atitudes que observou
em Ipo. Seja o cigarro ou o dinheiro sendo esbanjado, esse novo papel que ela
representa tem o uso do dinheiro como categoria marcante. A descrição da festa para
mudar de nome revela que, para ela, tão importante como se modificar, era mostrar para
ele que ela havia mudado. Para ter condições de confrontar Ipo, precisou, antes,
participar do universo do trabalho produtivo, dedicando-se às fábricas que administrava
para participar da nova classe social com a qual tinha contato. Para tanto, precisa negar,
inclusive, seu nome anterior, Pôzinha, que revelava sua fragilidade.

183
A inversão dos papéis de gênero como estratégia na obra de Lygia Bojunga tem
seu ápice com a personagem Dona Popô. Ela nega o papel que foi condicionada para
assumir: a da figura feminina dócil e que deveria obedecer primeiro a mãe, e, depois, o
marido. Quando é colocada em um cenário de competição, contudo, ela mostra que
consegue pertencer, também, a esse universo. Quando ela acende seu charuto, e ―joga a
fumaça pro ar que nem o Ipo jogava‖, ela comprova que a hipopótama que engasgava
com a fumaça já não está mais ali.
Se o comportamento de Dona Popô parece revelar uma personagem que
reelabora sua identidade a partir do confronto com o masculino, a passagem também
aborda o comportamento do sujeito masculino frente a essa reelaboração. Ipo, quando
percebe a autoconfiança recém-adquirida pela personagem, entra em conflito com a sua
própria, precisando atacá-la no nível do gênero. Não obstante o modo como revela seu
casamento e a retira de Dona Popô da administração de suas empresas, que vinham
obtendo um lucro crescente, ele justifica com a afirmação de que ―mulher bota tudo que
é negócio a perder‖, desconsiderando que ela era a melhor gerente das empresas dele.
Ocorre, assim, um processo semelhante ao afirmado por Beauvoir (2009):

Há muitas outras maneiras mais sutis mediante as quais os homens


tiram proveito da alteridade da mulher. Para todos os que sofrem de
complexo de inferioridade, há nisso um linimento milagroso: ninguém
é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou
desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade.
(BEAUVOIR, 2009, p. 548).

Assim que Dona Popô confronta Ipo no espaço dele, ele revida, pois, tal como
não aceita a negativa dela frente às suas investidas, ofende-se com o fato de ela o dizer
isso diretamente.
As tomadas de consciência não raro são contrapostas a uma resistência
masculina frente a ela. Ipo, por mais que tenha se interessado por dona Popô no começo,
também percebe que o interesse foi recíproco e se aproveita disso para desvalorizá-la.
Ela vê no trabalho a oportunidade para ascender socialmente, mas seu crescimento
social e trabalho excessivo não a tornam mais feliz. Dona Popô passa a ser uma cópia de
Ipo: autoritária, rude e sem preocupação nenhuma com as pessoas a seu redor. Quando
Vítor a procura para fazer propagandas, ela o coloca para fazer tantas outras que o
público, cansado da figura do tatu, já não dá o retorno positivo desejado por ela. Ela,
então, simplesmente não o recebe mais em sua sala, sem explicar as razões pelas quais

184
ele não será mais contratado. Assim como Dalva, Dona Popô avisa por outra pessoa que
não quer mais vê-lo, e, rejeitado tanto profissionalmente como amorosamente, ele
decide voltar para casa.
O sofá estampado, ao contrário das obras anteriores, acompanha uma
personagem que consegue se emancipar por meio do trabalho. Além de sua
emancipação, contudo, a obra acompanha desde o momento em que Dona Popô seguiria
o destino tradicional desejado por sua mãe até o momento em que decide por outro
estilo de vida, mais urbano e sofisticado. Suas escolhas vêm acompanhadas de
consequências: ela é se vicia em seu charuto e em remédios, tem uma dor de cabeça
incurável e deixa de ser uma figura gentil para se tornar uma profissional agressiva e
rude.
A narrativa de O sofá estampado indaga aspectos, assim, da emancipação da
mulher em uma sociedade capitalista por meio do trabalho produtivo. Se Dona Popô
realmente construiu sua autonomia e participado do mundo privilegiado
financeiramente que ela conheceu, ela também se isolou em seu novo universo e se
afastou de tudo que antes a fazia bem, pois agora somente o lucro a interessava.

e. O outro lado do tabuleiro

O outro lado do tabuleiro tem como estratégia, assim como O sofá estampado, a
contraposição de personagens mulheres decididas e fortes contracenando por
personagens masculinas que se debatem em indecisões, falta de atitude e de coragem.
Judith está sempre no cerne dos embates presentes na trama. O enfrentamento aos
papéis sociais de gênero é demarcado por sua primeira atitude para se libertar do
casamento. A voz narrativa, trazendo o pensamento do filho de Judith, elucida: ―Ainda
lembrava da cara do pai, da cara de todo mundo, quando ela anunciou que o que todos
acabavam de comemorar, além das bodas, é claro, era o descasamento. Foi assim. A
cara de tacho de todos. O pai morrendo de vergonha, tentando despistar‖ (GANEM,
2004, p. 35).
Judith termina o casamento diante de todos, assinalando, publicamente, o fim de
sua dependência de uma relação conjugal falida. A comemoração do casamento passa a
ser a comemoração do início de sua vida sem o marido. A partir de sua decisão, ela

185
passa a ser responsável pela sua própria vida, na qual, inclusive, se põe em diversas
situações perigosas devido ao seu ímpeto de se envolver na solução de crimes.
O modo como ela anuncia o divórcio também é típico de seu comportamento ao
longo da vida: decidida em sem paciência para grandes explicações. Essas
características são percebidas ao longo da narrativa, pois, a cada vez que ela se depara
com uma pessoa que não tenha um raciocínio rápido, ela se irrita facilmente, e essas
pessoas estão representadas por figuras masculinas.
Ao mesmo tempo, ela se apresenta como uma senhora que faz bolachinhas de
nata, chá para as visitas, casaco de lã para o filho, participa de jogos de tabuleiro com os
netos e cuida dos netos quando o filho dela precisa. Assim, ela conserva a figura da avó
tradicional que corrobora os papéis sociais comumente atribuídos à mulher idosa. Por
outro lado, ela se apresenta como uma figura irreverente e disposta a entrar em
confrontos que não lhe digam respeito, caso considere importante buscar por justiça.
Judith também comete pequenos furtos em supermercados como forma de resistência ao
crescimento econômico exacerbado. Justificando os pequenos furtos com as altas nos
preços dos produtos, a narrativa leva o leitor a concordar com ela e não julgar suas
contravenções:

Deixou o carrinho no balcão da frente, entrou com a bolsa pequena


enrolada debaixo do braço. Era uma bolsa feita de encomenda
praquelas ocasiões. Ocasiões de dureza e muita vontade guardada,
vontade espremida o inteiro entre a responsabilidade e o desejo, e que
explodia no Natal, Ano-Novo e, algumas vezes, no Carnaval. Uma
bolsa que ela mesma tinha feito. Na frente um fecho ecler onde
guardava o dinheiro. Dobrava em quatro, depois enrolava. Um
verdadeiro sapo, como ela chamava. E nessas ocasiões ela ia enfiando
o que podia, o que não fazia volume, pra não chamar a atenção de
nenhum fiscal. E como tinha fiscal por ali. Todo homem empinado,
circulante, era dedo-duro. (GANEM, 2004, p. 65).

Judith, de posse de sua pequena bolsa costurada por ela mesma, cometia
pequenos furtos nos grandes mercados. Geralmente, produtos que ela não conseguia
comprar com a aposentadoria, como castanha para a ceia de natal, por exemplo. Os
furtos de Judith são postos como resistência ao crescimento desenfreado da
desigualdade social e não são questionados pela voz narrativa, nem conduzem o leitor a
considerar suas atitudes como erradas. Na verdade, os pequenos furtos de Judith são
mais um elemento para constituir uma figura distante do ideal social para a pessoa
idosa.

186
Nas buscas por Alice, também revela seu descontentamento no que tange à
vagarosidade do sistema policial, mas, também, a fraqueza e a dificuldade do inspetor
responsável por conduzir a investigação. Ela se torna, assim, a figura central para que o
desaparecimento de Alice seja solucionado e precisa lidar com diversas figuras
masculinas. Nesse processo, sua figura, a de uma mulher forte, determinada e
questionadora se contrasta a de figuras masculinas que acabam ficando sem reação ao
lidar com alguém que rompe os padrões. Ao discutir com o inspetor, por exemplo, ela
percebe que, caso queira ver o caso de Alice resolvido, ela mesma precisará agir, e, cada
vez mais, assume o lugar de liderança nas investigações, já que o inspetor não consegue
se atentar a pequenos detalhes fundamentais para a investigação:

— Rainha Branca... — ele repetiu.


— Alice, inspetor, só pode ser. Alice através do espelho.
— Que espelho? — o inspetor levantou de um pulo tão forte que
bateu a cabeça no tampo da mesa. — A senhora não me mostrou
nenhum espelho. — Correu então pra sala, a mão na cabeça
esfregando, o galo cantando já no seu ouvido. Olhou ávido por detrás
do grande espelho velho dependurado acima do carrinho de bebidas:
— Não há nada aqui!
— Ah, inspetor — Tide desabou no sofá. Tudo, menos burrice.
Odeio pessoas burras! — o inspetor se recompôs. — Alice através do
espelho – Judith falava pausado – é o nome de um livro do Lewis
Carroll. Este aqui! – levantou e mostrou o livro pro inspetor. Foi uma
pergunta que eu fiz pra Alice na noite em que ela dormiu aqui.
— Sei...
[...]
— Compra na livraria aí embaixo, tem em qualquer lugar. Aliás, o
senhor já devia ter lido, né? Na sua idade, sem conhecer o Carroll?
Imperdoável! (GANEM, 2004, p. 42-43).

No diálogo com inspetor, ela se irrita com o desconhecimento literário dele ao


mesmo tempo em que o confronta devido à dificuldade dele para acompanhar a linha de
raciocínio dela, pois as intertextualidades desenvolvidas por Alice e percebidas por
Judith na reconstrução das pistas são imperceptíveis para ele que não conhece a obra.
Há, também, uma tentativa de interferência na relação do próprio leitor com a
leitura de obras literárias, pois Judith, ao questionar sobre o desconhecimento dele sobre
Alice no país das maravilhas, também julga esse desconhecimento, buscando conduzir,
junto ao leitor, a ideia da importância da obra. A inserção de certo viés ideológico é
bastante comum na literatura destinada aos jovens leitores. Como aponta Trites (2000),
escritores adultos acabam por inserir influências desejáveis junto ao público, e, aqui,
destacamos a busca pela compreensão da leitura literária como algo importante.

187
É interessante que, ao contrário obras que possuem jovens enquanto
protagonistas, a narrativa de Ganem (2004) se concentra no autoconhecimento de Judith
e nas suas dificuldades com a velhice e em suas reflexões sobre os efeitos do
capitalismo do que na relação do sujeito com seu meio, como é comum na literatura
juvenil, como observa Trites (2000) em sua pesquisa. Ao passo que contribui para as
investigações do desaparecimento de Alice, Judith elucubra sobre a velhice, e, em
determinado momento, sobre o desejo sexual, reacendido quando descobre que uma
amiga com sua idade se casou com um homem mais novo. Judith lida, assim, com os
desejos sexuais e afetivos que permaneciam:

O dia com a Odete tinha despertado dentro dela desejos


incontroláveis, vontades que não se roubavam em supermercados.
Levantou lenta. Abriu o chuveiro. Precisava lavar as idéias, refrescar o
sangue que fervia. Ela que era quase espírito, tão velha e cansada se
achava, tinha que suportar aquele corpo que pedia ainda mais.
(GANEM, 2004, p. 95).

Destacam-se, então, às reflexões de Judith sobre a própria sexualidade. O fato de


ela ter uma amiga da mesma idade com um namorado recente, dez anos mais novo,
desperta na personagem sentimentos de felicidade pela amiga que está se redescobrindo,
mas, ao mesmo tempo, de inveja, por também querer vivenciar um novo amor.
Desconstrói-se, então, a imagem da avó tradicional. A proximidade com a amiga Odete,
que começa a construir uma nova história já na velhice aflora em Judith as emoções
relacionadas ao desejo de ter uma companhia.

f. A cor do azul

A cor do azul aborda as relações entre homens e mulheres imersos em um


contexto social desprivilegiado e quais os efeitos que eles provocam nos sujeitos,
especialmente, na juventude. As assimetrias de gênero são denunciadas ao passo em que
outras mazelas sociais também são. A pobreza, o racismo e a misoginia são postos
como problemáticas que conduzem indivíduos e grupos sociais a ocuparem
determinados lugares sociais.

188
A narradora-protagonista descreve acentuação das dificuldades financeiras da
família, especialmente, após a ausência do pai. A mãe é descrita como uma mulher forte
que preferia a conversa às brigas. Quando o pai deixa a família, há mudanças não
somente na estrutura familiar, mas, também, na mãe, que precisou alterar sua vida por
conta da necessidade de, agora, suprir a família financeiramente:

Era ainda pequena, quando meu pai nos deixou, mas


suficientemente grande para perceber a transformação que se operara
nela. Ficou muito mais triste e muito mais cansada. Ficou feia. Trocou
o tempo que tinha para arrumar a casa e ficar comigo e todas aquelas
coisas de todas as outras mães por um ferro de passar roupas.
(TUTIKIAN, 2005, p. 19).

Tal como O mágico de olho verde, A cor do azul denuncia os efeitos das
construções dos papéis sociais de gênero, especialmente, pelo fato de, nas duas
narrativas, o patriarca da família se fazer ausente. Nesses casos, sem estudo ou
qualificação profissional, as mulheres precisam fazer o que está ao seu alcance para
sustentar a família. Em O mágico de olho verde, por contar com a ajuda da mãe,
Carmem consegue estudar. Já em A cor do Azul, dispondo de menos condições
financeiras ou ajuda de familiares, a mãe da protagonista não tem a opção nem de
pleitear um bom serviço ou estudar.
A ausência do pai obriga a mãe a trabalhar passando roupas para uma fábrica,
que é um trabalho mal remunerado e exaustivo, para que nem ela nem a filha passem
fome. Além do cansaço, o trabalho lhe rende marcas nas mãos às quais ela precisa se
habituar: ―No começo, ela chorava muito e tinha a mão direita enrolada num pano por
causa das bolhas. Depois, como tudo, acostumou, mesmo porque não encontraria
emprego melhor, e acostumamos‖ (TUTIKIAN, 2005, p. 19).
Sob o olhar atento da filha, as mazelas da mãe vão sendo descritas. A cor do
azul, apesar das denúncias das desigualdades, mostra o esforço da mãe para manter a
filha na escola para um destino diferente do dela.
O assujeitamento da mãe, então, é percebido não somente pela desigualdade de
gênero, mas, por outros marcadores sociais, como a pobreza e o racismo. As assimetrias
provocadas pela interseccionalidade de raça, gênero e classe a impelem a se submeter a
um trabalho mal pago para que tenha condições de, pelo menos, sustentar a filha e
almejar, pelo menos para esta, um futuro mais promissor. O estudo, então, é posto como
forma de se vislumbrar outras condições.

189
3.3 Os enfrentamentos

Ao longo da história, as mulheres tiveram seus espaços de atuação restringidos e


sua autonomia minimizada, quando não negada. Ao serem elaboradas como o ―segundo
sexo‖, as dificuldades para elas acessarem o espaço privado, conseguirem educação
formal, dispor de trabalho remunerado e ter voz decisiva nos espaços políticos ou
domésticos sempre estiveram presentes. Beauvoir (2009) mostra que a jovem, mesmo
quando tem condições de escolher o próprio destino e libertar-se da obsessão do
homem, ainda tem mais dificuldade do que o jovem em se realizar como indivíduo
autônomo, pois nem a família nem as construções sociais favorecem para o
entendimento de que a felicidade ou a realização pessoal podem ser conquistadas para
além do casamento.
Assim, mesmo que a mulher escolha não seguir o destino tradicional, são
impostas a ela diversas expectativas atreladas à realização pessoal. Essas expectativas
envolvem a constituição de uma família nuclear para que, mesmo que independente
financeiramente, exerça sua feminilidade nessa instituição. Chimamanda Adichie
(2017), em Dear Ijeawele, or a feminist manifesto in fifteen suggestions, defende que o
que se diz para as meninas faz muita diferença e, por isso, é importante escolher e
decidir o que não se dirá para elas. Como a escritora defende, não se deve incentivar
meninas a acreditarem que o casamento é algo a que se deve aspirar, ou que ele é um
prêmio para uma conquista, pois é necessário ensinar às meninas a desejarem mais do
que a realização por meio do casamento ou da capacidade de servir ao outro.
Em ―3.1 O lar‖, deste capítulo, analisamos como a literatura juvenil escrita por
mulheres desconstrói essa idealização ao apresentar, ou lares desestruturados, ou
famílias que sentem as consequências da restrição da mulher ao espaço doméstico,
corroborando a ideia de que, mais do que diferentes, a socialização de gênero é
hierarquizada. A literatura juvenil contribui, assim, para desnaturalizar atos e
pensamentos tão impregnados nas práticas discursivas que os sujeitos que delas
participam têm dificuldade para percebê-los, pois, como aponta Bourdieu (2007),
parecem naturais, mas que, na verdade, funcionam como ―[...] sistemas de esquemas de
percepção, de pensamento e de ação‖ (BOURDIEU, 2007, p. 17).
A maneira pela qual a divisão dos sexos se estabelece naturaliza a ordem
masculina de tal forma que se incorpora nas práticas, fazendo com que ela seja vista

190
como neutra, e, portanto, não precise ser enunciada e nem legitimada, pois a dominação
masculina já está alicerçada na divisão social do trabalho e condiciona espaços que
homens e mulheres ocupam:

É na lógica da economia de trocas simbólicas — e, mais precisamente,


na construção social das relações de parentesco e do casamento, em
que se determina às mulheres seu estatuto social de objetos de troca,
definidos segundo os interesses masculinos, e destinados assim a
contribuir para a reprodução do capital simbólico dos homens —, que
reside a explicação do primado concedido à masculinidade nas
taxinomias culturais. (BOURDIEU, 2007, p. 56).

Ao se abordar, contudo, as maneiras por meio da quais as mulheres foram


socializadas, é importante, tanto quanto destacar a violência das quais as mulheres
foram vítimas, considerar atos resistências que sempre existiram, pois sempre houve
mulheres que questionaram o privilégio da masculinidade na economia das trocas
simbólicas. Se as relações de gênero são assimétricas mesmo com o crescimento das
discussões sobre feminismo, é fundamental saber que, ao longo a história, houve
mulheres que não se resignaram. Para Adichie (2019):

Então, é assim que se cria uma única história: mostre um povo como
uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que ele
se tornará. É impossível falar sobre única história sem falar sobre
poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro
sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é
―nkali‖. É um substantivo que livremente se traduz: ―ser maior do que
o outro‖. Como nossos mundos econômico e político, histórias
também são definidas pelo princípio do ―nkali‖. Como é contada,
quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo
realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a
história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela
pessoa. (ADICHIE, 2019, s.p.).

Em O perigo de uma história única, a escritora destaca a importância de se


construir outra história sobre as coisas, e, aqui, importa-nos as relações de gênero. A
literatura escrita por mulheres conta com diversas personagens que, condicionadas para
desempenhar determinados papéis, acabam por não se resignar ao seu destino, o
enfrentam, reelaborando seu modo de estar no mundo. As representações distintas no
que tange às maneiras por meio das quais as mulheres se relacionam com o seu gênero,
na literatura, são importantes porque, como aponta Virginia Leal (20080: as pessoas se

191
relacionam de forma variável com as estruturas de gênero e as escritoras atuam, assim,
particularizando as experiências de suas personagens.
No momento em que o mercado do livro juvenil se expande, em paralelo ao
período em que o movimento feminista se fortalecia, as experiências na esfera das
relações de gênero passam a ser representadas, nas produções literárias, de modo plural.
Assim, vamos analisar, neste subcapítulo, as estratégias por meio das quais as
personagens questionam e rompem com o discurso do patriarcado e com as imposições
dos papéis sociais de gênero.
As obras de nosso corpus, como vimos no primeiro e segundo subtítulo,
perpassam por importantes questionamentos das experiências relacionadas ao gênero.
Algumas personagens, contudo, enfrentam de modo incisivo o discurso do patriarcado,
questionando, seja a violência, seja o destino ao qual homens e mulheres são
condicionados. Assim, por meio da inserção de um discurso feminista, algumas obras
trazem personagens que rompem com a violência fruto das relações assimétricas de
gênero.
Se o espaço da casa é posto como clausura, como mostramos em ―3.1 O lar‖,
cabe indagar o que acontece quando a mulher sai desse local, ou quando a mulher não é
construída em continuidade a ele, pois, se a existência masculina não é conduzida por
problemas relacionados ao ir e vir do espaço do lar para o espaço da rua, as obras de
nosso corpus mostram que a existência da mulher também não é. Portanto, se a mulher
ainda se encontra em posição de desigualdade no que tange à violência de gênero, do
mesmo modo, ocupa um espaço de desvantagem nos cargos mais elevados, cabe indagar
como a mulher participa dos espaços nos quais ela está inserida no universo literário.

a. Uma ideia toda azul

Retomando os contos de fadas de Marina Colasanti, é importante olhar para o


desfecho da trama propostos em ―Entre as folhas do verde O‖ e ―A primeira só‖, que
vimos em ―3.1 O lar‖. Os dois contos apresentam personagens que estão, por diferentes
razões, aprisionadas: no primeiro, a protagonista é uma mulher-corça que foi capturada
e presa por um príncipe que deseja que ela se torne civilizada para viver com ele; no

192
segundo, um rei mantém a filha sozinha e infeliz em seu quarto. Para tentar distrai-la,
ele tenta, de distintas maneiras, fazê-la feliz, mas ela permanece solitária.
Em ―Entre as folhas do verde O‖ a liberdade é alcançada quando a mulher-corça
rompe completamente com o mundo em que está. Ela precisa se libertar, inclusive, do
homem que ama, pois ele é parte desse universo que a faz infeliz.
A mulher-corça tenta, desesperadamente, se comunicar com o homem que ama.
Da tristeza dela, o príncipe conclui que ela quer se tornar mulher, ou seja, abandonar
completamente sua ligação com o mundo de liberdade no qual vivia antes:

Todos os dias se encontravam. Agora se seguravam as mãos. E no


dia em que a primeira lágrima rolou dos olhos dela, o príncipe pensou
ter entendido e mandou chamar o feiticeiro. Quando a corça acordou,
já não era mais corça. Duas pernas só e compridas, um corpo branco.
Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as
costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram
de joias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não
tinha a palavra. E o desejo de ser mulher. (COLASANTI, 2015, p. 26).

Devido aos encontros cotidianos com o príncipe, o sentimento entre eles


aumenta. Ela, contudo, percebe que eles não se entenderão devido à divergência entre os
dois mundos. Já o príncipe interfere de tal forma na autonomia dela que modifica o
corpo dela. Ao transformá-la em mulher, ele anula sua natureza, pois a parte corça da
mulher era o que a vinculava com a sua liberdade anterior. As tentativas de civilizá-la
não surtem o efeito desejado, pois ela não se sente bem naquele universo. Assim,
consciente dos prejuízos que aquele universo trazia à sua liberdade, ela decide retornar
ao seu mundo anterior. Como já não tem mais o mesmo corpo, precisa reaprender a se
movimentar com um novo corpo:

Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do


oitavo dia, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e
mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e
correu para a floresta à procura de sua Rainha. O sol ainda brilhava
quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a
pastar sob as janelas do palácio. (COLASANTI, 2015, p. 26).

O início do último parágrafo mostra que o processo de libertação da mulher-


corça foi gradativo: ela precisou de tempo para aprender a andar, que era o que a
garantiria a chance de sair de sua clausura. A metáfora implícita ao texto bíblico, que
trata da criação do mundo, em sete dias, a mulher-corça cria seu próprio mundo,
também em sete dias. Com seus passos contados, ela vai, gradativamente, saindo

193
daquele lugar ao qual não pertence. Já na floresta, com o auxílio da corça-Rainha, ela
nega a sua parte mulher, e rompe qualquer ligação com sua civilidade, pois, agora,
completamente corça, pertence completamente à natureza.
O desfecho do conto enfoca somente na corça. O príncipe, responsável por
conduzir às decisões durante quase todo o conto, não tem espaço no encerrar da
narrativa que encena a transformação da princesa. Os desejos e a vontade do príncipe
parecem não importar mais quando a corça começa a se libertar. É interessante que esse
tipo de desfecho também se repete em ―A primeira só‖.
―A primeira só‖ tem um desfecho que promove uma positivação da morte da
protagonista, o que é bastante incomum para a literatura juvenil, que, comumente, insere
desfechos nos quais se permitam vislumbrar um futuro melhor para personagens que
sofreram muito ao longo das narrativas. Em ―A primeira só‖, o desfecho e o
enfrentamento à subjugação acontecem quando a menina encontra a morte, e consegue,
finalmente, sua liberdade.
Zolin (2009) mostra, em análise de República dos sonhos, de Nélida Piñon, que
a morte também é posta como grito de independência quando a personagem Eulália
decide que não quer mais seguir a cartilha do patriarcado aprendida com o pai e, depois,
com o marido.
Em ―A primeira só‖, a liberdade acontece quando, por meio da morte, a
personagem tem, também, seu grito de liberdade, pois, pela primeira vez, tem
capacidade de decidir algo por si própria. A narrativa se inicia, como já vimos, com a
princesa triste e sozinha por não ter ninguém para brincar. Seu pai, o rei, tenta
solucionar a tristeza da filha em uma preocupação bastante sincera sobre sua solidão.
Corrobora-se a assertiva de Barbieri (1994), sobre a dominação nem sempre acontecer
por meio de agressividade, mas travestida de afeto e cuidado que provocam o
silenciamento da voz e dos desejos do dominado: o rei, em momento algum, pergunta o
que ela realmente deseja. Assim, as soluções dadas pelo pai têm resultado temporário,
pois não se trata do que a princesa realmente quer.
O espelho que o pai coloca no quarto da filha para alegrá-la logo desperta nela a
sensação de alegria nunca experimentada ao ver a amiga, que nada mais é do que sua
própria imagem refletida.
Contente com a alegria experimentada pela filha, o pai a cerca de novos
brinquedos, entre eles, uma bola de ouro com a qual a princesa quebra o espelho ao
tentar brincar com seu reflexo. A tristeza da princesa ao ver a imagem da amiga se

194
quebrando é momentânea, pois dali surgem outras amigas, pois o espelho, antes um,
agora estilhaçado reflete diversas amigas das quais a princesa vai se cansando
rapidamente e quebrando o espelho para obter novas amigas, de tal forma que logo resta
somente pó:

Mas duas eram menores do que uma, quatro menores do que duas,
oito menores do que quatro, doze menores do que oito.
Menores cada vez menores.
Tão menores que não cabiam em si, pedaços de amigas com as
quais não se podia brincar. Um olho, um sorriso, um pedaço de si.
Depois, nem isso, pó brilhante de amigas espalhado pelo chão.
(COLASANTI, 2015, p. 30).

Quando quebra o espelho em tantos pedaços que logo se trata apenas de pó, a
princesa sente, também, um desespero novo: ela já não suporta a solidão:

Sozinha outra vez a filha do rei.


Não queria saber das bonecas, não queria saber dos brinquedos.
Saiu do palácio e foi correr no jardim para cansar a tristeza.
(COLASANTI, 2015, p. 30).

Depois de ter uma amiga, e depois tantas, quando se vê sozinha, a princesa entra
em desespero. As orações curtas contribuem para corroborar a tristeza da princesa, que,
agora, não se conforma com o universo que antes lhe pertencia. Finalmente, toma a
primeira decisão sem ser mediada pelo pai: ―Saiu do palácio e foi correr no jardim para
cansar a tristeza‖ (COLASANTI, 2015, p. 30). Quando ela resolve tomar suas próprias
decisões, ela finalmente sai do palácio, rompendo com o espaço ao qual havia sido
restringida. Ela, que cresceu isolada em seu quarto, sente o vento e a natureza quando
rompe com o castelo que a cerceava.
A liberdade da princesa transparece em suas várias tentativas de se sentir
melhor: ―Correu, correu, e a tristeza continuava com ela. Correu pelo bosque, correu
pelo prado‖ (COLASANTI, 2015, p. 30). Mesmo vivenciando sua nova condição de
liberdade, ela não está feliz, pois continua sozinha. É somente quando para à beira do
lado, que vê uma surpresa que a espera: a amiga, finalmente, está ali novamente. Essa
amiga, contudo, não é suficiente: ela quer todas as outras com as quais brincava
anteriormente. Finamente, toma sua última decisão, ao se atirar na água:

195
No reflexo da água a amiga esperava por ela.
Mas a princesa não queria mais uma única amiga, queria tantas,
queria todas, aquelas que tinha tido e as novas que encontraria. Soprou
na água. A amiga encrespou-se, mas continuou sendo uma.
Então a linda filha do rei atirou-se na água de braços abertos,
estilhaçando o espelho em tantos cacos, tantas amigas que foram
afundando com ela, sumindo nas pequenas ondas com que o lago
arrumava sua superfície. (COLASANTI, 2015, p. 30).

A narrativa finaliza com a princesa se atirando no lago em busca das amigas


perdidas. Nesse momento, o verbo sinaliza a ação da princesa: ao decidir se atirar no
lago em busca da antiga companhia, o verbo também é o pretérito perfeito. A menina
põe fim à sua trajetória sozinha sem a interferência do pai, longe do castelo e do
autoritarismo que sempre a mantiveram em uma situação de passividade. Quando se
atira em busca do próprio reflexo, portanto, ela se reencontra com ela mesma. Como
apontam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1988), a água, justamente, reflete o íntimo
do sujeito. É o íntimo de si própria que a princesa já não vive mais sem: ―[...] água serve
de espelho, mas um espelho aberto sobre as profundezas do eu: o reflexo do eu que aí se
mira, trai uma tendência à ‗idealização‘ (grifo dos autores)‖ (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1988, p. 830). Assim, a diegese culmina a morte da princesa em busca
de suas amigas perdidas.
A narrativa, que tratava do sentimento do pai em relação à filha, agora, sequer
o menciona, pois, ela se centra somente na princesa e em suas escolhas. Na oração
―Então a linda filha do rei atirou-se na água de braços abertos‖ (COLASANTI, 2015, p.
30) o verbo marca a ação da princesa: ao tomar a decisão de se atirar no lago em busca
das amigas, o verbo também é o pretérito perfeito.
Em ―A primeira só‖, é possível perceber a atuação do discurso patriarcal
quando o pai, toma, ele próprio, a iniciativa de fazer a filha feliz. A marca do discurso
patriarcal está bastante presente, também, nos contos tradicionais. O que torna os contos
de Colasanti transgressores, então, é o fato de que a tentativa de interferência na
subjetividade das mulheres e meninas irá provocar efeito contrário ao esperado: a busca
para tirar a filha da tristeza culmina na paixão dela por sua própria imagem, em um
diálogo com o mito de Narciso. Devido a essa paixão, sua filha se atira no lago.
Do mesmo modo, em ―Entre as folhas do verde O‖ a interferência masculina
para dar um novo destino à vida da mulher-corça distancia o príncipe de sua amada,
pois o amor dele é acompanhado de sua dominação. Mesmo que o sentimento dele seja
recíproco, a perda da liberdade é um preço que a mulher-corça é um preço que ela não

196
está disposta a pagar, o que a leva romper com a civilidade, com o homem que ama e
com sua parte humana, mas encontrar, de vez, sua liberdade sob o abrigo de sua Rainha.
Os contos analisados rompem com a estrutura tradicional dos contos de fadas
por dois motivos centrais: o primeiro é o final feliz. Em nenhum dos dois há um final
feliz, especialmente, ―A primeira só‖, que culmina com a morte da protagonista. Mesmo
―Entre as folhas do verde O‖, em que há a libertação a personagem, não há o anúncio de
um final feliz, mesmo que de liberdade para a protagonista. O segundo motivo diz
respeito à ausência de uma interferência mágica para solucionar as adversidades
enfrentadas pelo protagonista. O que predomina nos contos de Colasanti é uma espécie
de busca pelo fortalecimento da subjetividade: o ponto em que os contos culminam é
quando se encontra uma solução, por meio da própria personagem, para o problema
enfrentado. Por mais que a solução para uma problemática seja comum à estrutura dos
contos de fadas (PROPP, 1984), em Colasanti, essa busca permite com que as
personagens encontrem a si próprias e se fortaleçam.
Como se percebe, as personagens não se destacam por serem boas ou más: são
perceptíveis, nelas, contudo, as marcas de suas formações sociais. Essas marcas
conduzem o modo de relação entre protagonistas e personagens secundários.
Analisando as relações de gênero nas personagens, é possível notar que os homens
atuam seguindo seu ―patrimônio de gênero‖ (AMORÓS, 1997), e veem-se como
salvadores das personagens femininas, enquanto elas precisam romper com seu
cerceamento para, finalmente, terem poder de decisão sobre suas próprias vidas.
Tomando como referência os contos de Perrault, as personagens femininas têm,
entre seus atributos, a ingenuidade e a fragilidade, e, portanto, não podem se defender
sozinhas. A ingenuidade atribuída à mulher é um aspecto importante de análise dos
contos de fadas tradicionais. Como se nota, por exemplo, em ―Gato de botas‖, a
princesa é enganada pelo Gato ao vê-lo forjado com as roupas do marquês,
comportamento que se repete em vários outros contos conhecidos.
Marisa Mendes (2000) evidencia, também, que as narrativas de origem popular
são fortemente influenciadas pela presença de prêmios e castigos para as boas e más
ações das personagens. Em alguns contos de Perrault, por exemplo, há prêmios e
castigos especiais às mulheres, e, dessa maneira, como o comportamento feminino nos
contos de fadas é manipulado de forma a beneficiar o masculino. Ao analisar as ações
das personagens femininas em Colasanti, Regina Michelli (2010) afirma:

197
A ação das personagens femininas é geralmente marcada pela
transcendência, pelo contato com o sagrado, entendendo-se o sentido
original deste vocábulo, saccer, ligado à bendição e à maldição. São
figuras que sofrem o fado, mas têm a capacidade – graças a um poder
na esfera do maravilhoso – de modificá-lo, prerrogativa das fadas,
descendentes das Moiras gregas, das Parcas latinas, das grandes
deusas celtas. Trazem os cabelos soltos ao vento, símbolo de sua
liberdade vital e autonomia, e uma jóia fria e brilhante no tornozelo,
marca de distinção e profunda ligação com a natureza, em sua pureza
pagã. São soberanas, ainda que não pareçam. (MICHELLI, 2010, p.
84).

O feminino, nos contos analisados, é forte revelador das marcas do patriarcado,


mas, também, valorizam ações de enfrentamento ao patriarcado. Colasanti traz à tona
cenários que nos permitem perceber que a busca do cerceamento da mulher sempre
esteve presente, mas que, do mesmo modo, sempre houve enfrentamento, mesmo que
de modo muito sutil, ou, ainda que não gerando um efeito positivo.
O questionamento das feminilidades é feito por meio de uma linguagem
bastante próxima da oralidade, e guardando algumas características importantes dos
contos maravilhosos, como a ausência de demarcação de tempo e espaço; a presença de
poucos personagens; há falas curtas e pouca interação entre personagens; não há
especificação do gênero em nenhum dos narradores; há pouca participação de
personagens secundários. Em termos de conteúdo, há um problema existencial ao redor
do qual a diegese é constituída e o amadurecimento sofrido ao longo do conto. É esse
amadurecimento que permite às personagens lidar com a clausura a que estão
submetidas.
Ao elaborar contos de fadas em uma época em que, como defendeu Benjamin
(1994), já não é possível dar conselhos, Colasanti também reelabora o modo narrativo
em questão: as personagens solucionam, elas próprias, seus dilemas, e os problemas
sociais impactam fortemente no modo como as personagens atuam nas narrativas. Em
Colasanti, então, o protagonismo da mulher é ativo, enquanto na maior parte dos contos
de fadas tradicionais, mesmo quando a mulher é a protagonista da narrativa, a solução
dos dilemas vivenciados é sempre ofertada por alguém externo.

198
b. Bisa Bia, Bisa Bel

Em Bisa Bia, Bisa Bel, o questionamento ao patriarcado é feito pela inserção da


voz de uma personagem em paralelo à trama principal. Insere-se, à trama, a voz da mãe
de Bisa Bel, personagem que não tem seu nome revelado e participa pouco da narrativa,
mas apresenta seu ponto de vista acerca das relações de gênero e dos papéis sociais
atribuídos a homens e mulheres. Em alguns momentos, Bisa Bel conversa com sua mãe
sobre a condição das mulheres ao longo da história e ouve, atenta, sua opinião:

 Acho que também eram um sintoma de um tempo em que as


mulheres geralmente não trabalhavam fora e ficavam inventando
trabalho dentro de casa para se sentirem úteis. Já imaginou que tristeza
devia ser passar os dias esperando o marido e os filhos chegarem? Um
monte de empregadas e só um trabalho pouco criativo na casa?
(MACHADO, 2007, p. 56).

A mãe de Isabel, como não é uma personagem que se expressa somente a partir
da voz narrativa da menina, não tem a voz infantilizada como as demais personagens e
expõe seus pontos de vista de forma mais crítica. Na narrativa, também se nota a
interlocução enquanto estratégia de questionamento dos papéis sociais de gênero. Ao
questionar a filha sobre como deveria ser difícil ficar cerceada ao ambiente doméstico, a
personagem questiona quem lê. No excerto, as duas conversam sobre a importância do
trabalho remunerado para a independência da mulher e a mãe de Isabel defende a
necessidade de as mulheres estarem em espaços para além do doméstico.
A personagem é apresentada por Isabel, logo no início da diegese, como uma
mãe diferente das outras, sem manias de arrumação. É uma profissional liberal que se
divide entre os cuidados com a filha e seu trabalho enquanto arquiteta. A organização
doméstica não é uma de susa prioridades:

Minha mãe é gozada. Não tem essas manias de arrumação que


muita mãe dos outros tem, ela até que vai deixando as coisas meio
espalhadas na casa, um bocado fora do lugar, e na hora em que precisa
de alguma coisa quase deixa todo mundo maluco, revirando pra lá e
pra cá. (MACHADO, 2007, p. 7).

A mãe de Isabel contribui para a inserção da temática feminista para além das
problematizações da menina. Na primeira vez em que se apresenta a mãe de Isabel, é

199
pela perspectiva da menina, que mostra como ela é diferente das outras mães. Ela conta,
que sua mãe, arquiteta, não tem tanta preocupação em como a casa se aparenta. Ao
contrário de sua bisavó, para quem a casa deve estar sempre arrumada, pois por meio do
zelo com a casa é possível avaliar a própria mulher, a mãe de Bisa Bel não vê a mesma
relevância em manter a casa organizada e, especialmente, não vê os cuidados
domésticos como uma função da mulher.
Mais adiante, o diálogo entre mãe e menina traz uma reflexão bastante
importante sobre papéis sociais de gênero:

 Você acha que trabalho de dona-de-casa é só inventado, mãe?


Não é útil?
 Não é isso que eu quis dizer. Acho que me expliquei mal. O
que eu acho é que é um trabalho que não transforma o mundo, não
melhora as coisas, é só manter como estava, lavar para ficar limpo e
depois sujar, cozinhar para comer e depois ter mais fome, sei lá...
Claro que educar filho é trabalho que transforma o mundo, mas isso é
coisa que pai também faz, e mãe que trabalha fora também...
(MACHADO, 2007, p. 56).

A mãe de Isabel acredita que as mulheres também devem ter um papel decisivo
na transformação do mundo, enquanto os homens também devem ter um papel decisivo
na criação dos filhos. A sua voz, portanto, contribui que as problematizações sobre os
papéis sociais de gênero sejam feitas para além da visão ainda infantil de Bisa Bel. A
mãe, enquanto adulta e independente financeiramente, consegue elucubrar sobre os
papéis de homens e mulheres na sociedade de modo incisivo.
Como apontam Raewyn Connell e Rebecca Pearse (2015), o gênero é uma
estrutura social, ou seja, um padrão nos arranjos sociais que norteiam as atividades do
cotidiano. Assim, a inserção de uma personagem com uma perspectiva feminista na
narrativa contribui para que se modifique, junto ao público ao qual se destina, as
percepções a respeito das relações de gênero. O olhar da mãe, enquanto mulher adulta,
contraposto ao de Bisa Bel, ainda aprendendo sobre as relações entre homens e
mulheres, apresenta uma discussão necessária e profundamente atual.
Quando elas discutem a adoção do nome do marido, a mãe contribui para que se
perceba como a adoção do nome da família do marido é um ato permeado pelo
machismo:

Aproveitei para perguntar uma coisa que eu sempre quis saber:


— Por que minha avó é Almeida e eu sou Miranda?

200
— Porque quando sua avó casou, ficou sendo Ferreira, e eu nasci
sendo Ferreira. Mas quando casei, fiquei sendo Miranda, que é o
sobrenome do seu pai.
— Mas eu quero ter o mesmo sobrenome de você, da vovó e da
Bisa Bia.
— Não pode, filha, cada um de nós ficou com um sobrenome
diferente. Mulher quando casa é assim.
— Meu pai, meu avô e meu bisavô, todos têm o mesmo
sobrenome?
— Do lado dele, tem... Porque são homens.
— Eu não quero.
— Não quer o quê? Não quer casar?
— Não quero mudar de sobrenome.
— Isso você resolve mais adiante, com seu marido. Mas eu estava
decidida mesmo:
— Não. Já resolvi. O nome é meu. Desde que nasci. Meu marido
ainda nem me conhece. Não tem nada com isso.
Mamãe olhou para mim com atenção e perguntou:
— E por quê, Bel?
— Porque eu sou eu, ora. (MACHADO, 2007, p.57-58).

Assim, as vozes centrais da diegese são modalizadas pela voz de uma narradora
de modo a conferir autenticidade às experiências de Isabel, mas também apresenta uma
voz mais madura e crítica sobre as relações de gênero: mãe e filha conversam e
elaboram, juntas, vários aspectos das relações entre homens e mulheres. A convivência
entre elas deixa evidente outro aspecto central da obra: a importância da manutenção
das relações afetivas entre as mulheres.

c. O mágico de olho verde

Relações entre mãe e filha menos afetivas e mais conflituosas estão presentes
nas obras do corpus, como em O mágico de olho verde, em que a reinvenção dos papéis
sociais de gênero somente é possível a partir da lacuna deixada pela morte do patriarca
da família, acontecimento que conduz a família à vivência de novos dramas, como a
acentuação dos conflitos entre mãe e filha. A tentativa de Mila de manter o pai vivo,
como uma entidade, dificulta não somente a nova reconfiguração familiar, mas o
esforço da mãe em seguir adiante com sua própria vida.
Os conflitos se intensificam quanto Carmem arruma um novo namorado,
professor da faculdade que ela recém-iniciou. Mila se consterna com a presença dele na

201
casa, para a qual mudaram logo após a morte do pai, e com o fato de ele se sentir à
vontade, abrindo a geladeira, conversando alegremente, participando, enfim, da família,
ocupando, inclusive, um lugar bastante simbólico para Mila: o lugar à cabeceira da
mesa. É somente no quarto que Mila encontra abrigo e pode, enfim, se distanciar da
família, na qual ela não consegue mais encontrar seu espaço.
Com efeito, quando a mãe começa a se relacionar com outro homem, Mila se
afasta significativamente da família, e enfrenta a mãe sempre que possível. Após uma
discussão entre as duas, ela se nega a permitir que Fernando, namorado da mãe, se sente
no lugar do pai à mesa:

— Aí é o lugar do papai, a ponta da mesa é dele, não quero.


— Mila, escute aqui – o tom também novo, das profundezas da
garganta, dizendo Mila, não mais Pitchura.
Certa de perder a guerra, sem olhá-la de frente, a última bala do
canhão:
— Não quero, no lugar do papai não pode, Fernando não é o nosso
pai e eu não gosto dele! (LEITE, 1984, p. 39).

Em diversos outros momentos, Mila se culpa pelo fato de a mãe estar


namorando. Em sua concepção, isso aconteceu somente porque ela não se opôs o
suficiente. Ao mesmo tempo em que vê a presença de Fernando, namorado da mãe,
cada vez mais assídua, ela também percebe que as histórias sobre o pai vão perdendo
espaço.
A casa, então, que era local de clausura para Carmem, limitada àquele lugar toda
a sua vida de casada para que o marido pudesse exercer atividade remunerada e prover a
família, começa a ter outro sentido com falecimento do marido, o que a compele a
estudar e começar, enfim, a cuidar de si e ficar, inclusive, mais vaidosa.
Mila, aos poucos, vai aceitando a presença de Fernando. Ela, que sempre via o
pai falecido devido à saudade, progressivamente, o vê com menos frequência, até o
momento em que compreende, definitivamente, a presença de Fernando na casa: ―Que o
pai não viesse esta noite. ‗Amém‘. E se Fernando ficasse definitivo, que não viesse
nunca mais‖ (LEITE, 1984 p. 57).
A narrativa de O mágico de olho verde, então, é uma metáfora da própria
história das mulheres, pois, Carmem, enquanto esteve sob o jugo do marido, esteve,
também, à mercê das decisões e das condições permitidas por ele. Quando ela se vê
sozinha, ela tem a oportunidade de atuar socialmente, ganhando, finalmente, o espaço
externo da casa, que é, como vimos, o espaço valorizado socialmente.

202
Ao evidenciar os posicionamentos entre o casal, a narrativa explana as diferentes
percepções acerca de si e do outro. Enquanto o pai, que não enxergava seus privilégios
na estrutura familiar, via a mãe como acomodada, a mãe conhecia bem o lugar que
ocupava, não somente na família, mas socialmente. O contraponto entre a presença e a
ausência do pai na família traz à tona o fato de que ele é quem assenta a limitação da
mulher ao ambiente doméstico. A ausência dele, por mais que sofrida para a mãe,
também é reveladora das possibilidades de ocupação de novos espaços por parte dela,
que, enfim, inicia um ciclo de conquistas pessoais.

d. O sofá estampado

Em O sofá estampado, o enfrentamento às relações assimétricas de gênero se dá


por meio da avó de Vítor, que é extremamente engajada. Quando Vítor se frustra com a
falta de atenção de Dalva, apresenta-se a primeira analepse na narrativa. Nesse
momento, ele é direcionado ao momento de sua infância. Ao cavar, Vítor volta para
quando estava na segunda série. Na infância, Vítor era extremamente tímido e buscava
se camuflar sempre que possível atrás da árvore ao lado da qual se sentava. Um dia, a
professora, sabendo que Vítor gostava de Cecília Meireles, pede que ele leia um poema
dela na frente dos colegas. Nesse dia, Vítor descobre que cavar o faz se esconder de
todo mundo a seu redor, pois ao ser pressionado pela professora para realizar a leitura,
Vítor tem um ataque de tosse e, instintivamente, começou a cavar para se esconder. A
partir de então, sempre que fica nervoso, ele cava para se esconder
A figura da avó de Vítor, personagem não nomeada, é inserida a partir da
memória retomada por Vítor quando ele ganha a antiga mala da avó de presente do pai
no dia do seu aniversário. A frustração de Vítor começa quando o pai conta que não é a
mala original, mas uma cópia comprada por ele, já que a mala verdadeira nunca foi
encontrada.
Ao pegar a mala, Vítor se recorda da figura da avó e dos objetos que ela sempre
guardava:
 Tem coisa da Vó aqui dentro?
O pai fez que sim. O Vítor abriu o fecho devagar, pensando nas
coisas que ele sempre via na mala: o álbum de fotos, a lente, o diário

203
de viagem... Quem sabe por fora não era, mas por dentro ia ser a mala
da Vó? (BOJUNGA, 2015, p. 62).

A partir desse momento, a diegese se centra na vida da avó. Ela sempre quis
viajar desde a infância. Por meio dos estudos, viajou muito e foi bandeirante,
excursionista e bolsista. Estudando arqueologia, viajava cada vez mais longe a fim de
fazer descobertas sobre os tatus mais antigos. Tinha ânsia pelo conhecimento e pelo
contato com outras culturas:

Desde pequena ela tinha mania de viajar: queria por força conhecer
o mundo. E queria conhecer tudo de tatu; como é que eles eram
antigamente, o que eles comiam, onde é que tinha vivido o primeiro
tatu. Foi ser bandeirante, excursionista, bolsista. Só pra viver pra
baixo e pra cima. Voltava pra casa com um monte de histórias pra
contar. (BOJUNGA, 2015, p. 64).

Um dia ela se casa e seu esposo a presenteia com uma mala. Arquimedes, o
esposo da avó de Vítor, não tenta impedi-la de viajar e demonstra apoio à trajetória
acadêmica da esposa. Ele, contudo, morre durante uma das viagens e a avó de Vítor fica
sozinha com os cinco filhos e precisa parar de viajar para sustentá-los. A temporada que
ela precisa se afastar de seu sonho, contudo, não é definitiva. Assim que eles crescem,
ela avisa:

Bom, meus queridos, vocês estão com a cabeça cheia de idéias,


estão com saúde; daqui pra frente, cada um se vira à vontade, tá?
— Tirou a poeira da mala e voltou a viajar.
A Vó do Vítor passou muito tempo fora. Mas de vez em quando
chegava carta dela. O pai do Vítor lia a carta alto; a mãe sacudia a
cabeça:
Sempre pra baixo e pra cima, sempre com essa mania de trabalhar.
Não sei pra quê: ela não liga pra dinheiro, não liga pra moda, não faz
questão nem de ter casa...
E o Vítor ficava um tempão pensando como é que era a Vó.
(BOJUNGA, 2015, p. 66-67).

Apesar de ter tido pensamentos à frente de seu tempo, e ter encontrado um


parceiro que respeitasse seu estilo de vida e vontades, a avó não é compreendida pela
própria família, que deseja que ela se fixe em uma casa, pois não compreendem suas
razões para viajar, já que não é o dinheiro que a motiva. A figura da avó era idealizada
por Vítor, que não a conhecia, e só ouvia histórias sobre ela. Ele tentava imaginar como
a avó era, até que ela decide retornar para conhecer o neto. Quando se conhecem,

204
nutrem uma admiração profunda um pelo outro. Vítor se impressiona com a atenção que
a avó dá a ele, sem recriminá-lo, por exemplo, por falar baixo:

Naquela noite eles ficaram conversando até tarde, quer dizer, a Vó


contando viagem e Vítor só escutando. Mas de vez em quando ele
arriscava uma pergunta:
— Você viaja sozinha, Vó? — E ficava encantado: a pergunta
podia sair baixinho toda a vida, e não é que a Vó sempre escutava?
(BOJUNGA, 2015, p. 68).

Finalmente, Vítor se sente compreendido. Até conhecer a avó, toda a sua família
tentava modificar o comportamento dele, e é a avó quem, pela primeira vez, respeita
suas particularidades. A avó escutá-lo, mesmo que fale muito baixo, é extremamente
importante para Vítor, que pela primeira vez se sente ouvido e respeitado. Vítor tinha
curiosidade pelo universo da avó, tão diferente do dele, já que a vida dela era livre e
permeada de aventuras. Em uma das conversas, ela revela sua preocupação com o
mundo e com as injustiças sociais, que é justamente o que a move para viajar:

 Vó, quando você faz essas viagens compridas, o que que você
vê mais: floresta ou mar?
A Vó franziu a testa. E só aí que o Vítor reparou que quando ela
franzia a testa daquele jeito aparecia uma ruga diferente: curtinha,
mas bem funda.
 O que eu vejo mais é gente pobre e bicho perseguido, é isso
que eu vejo mais. (BOJUNGA, 2015, p. 70-71).

Nas falas da avó, se percebe a observação crítica em relação ao mundo e as


injustiças sociais. Ela expõe uma preocupação para além das questões de gênero, mas
sobre as injustiças sociais e os efeitos da busca por lucro. Para Dalva, por exemplo, não
havia um olhar para as diferenças sociais, já para Dona Popô, havia o desejo de
participar de um mundo de riquezas. Para a avó de Dalva, a diferença de classes, as
injustiças e a opressão são problemas que ela precisa combater:

Um dia a Vó chegou afobada, ninguém estava esperando por ela.


Mas nem deu tempo do Vítor curtir a surpresa, a Vó foi logo dizendo
que estava só de passagem.
 Tô indo pra Amazônia, estão perseguindo muito bicho por lá.
Recebi notícia segura que anda uma destruição horrível na mata, diz
que matam bicho e árvore aos milhares, falaram que até índio eles
estão querendo matar, eu tenho que ir lá ajudar. (BOJUNGA, 2015, p.
75).

205
A avó de Vítor se contrapõe à figura de seu próprio filho, o patriarca de uma
família bastante tradicional. O pai de Vítor, responsável pelos negócios da família,
tenta, a todo o custo, convencê-lo a, também, entrar na empresa da família. Vítor não se
sente satisfeito com a ideia, mas acredita que muito dificilmente irá expor seu
posicionamento ao pai, então, tenta convencer a si próprio de que não terá outra escolha.
A mãe, por sua vez, é a figura que intermedeia os conflitos entre os dois, desmaiando,
sempre que os embates se acentuam. Ela representa uma categoria de mulher
apresentada por Beauvoir (2009), cuja ―tarefa consiste em assegurar a felicidade do
grupo familiar‖ (BEAUVOIR, 2009, p. 583), evitando conturbar o universo da família,
exercendo a função não somente de dona de casa, mas sendo a responsável pela paz da
família.
Para o pai, a realização de Vítor se daria quando ele seguisse seus passos e
trabalhasse na empresa da família. Ele se responsabiliza por decidir o futuro do filho,
acreditando que é o melhor para ele. Já sua esposa nutre profunda admiração por ele
pelo fato de ele se preocupar tanto com o filho. Vítor, contudo, não deseja participar da
indústria de carapaças de plástico, o negócio liderado pelo pai, encontrando refúgio
somente no seu quarto, pois se sente pressionado e reprimido em sua própria casa, tendo
em vista que os pais atuam decidindo todo o seu futuro.
A família de Vítor se caracteriza pela tentativa excessiva de corresponder aos
ideais da família tradicional, já que a mãe e o pai se preocupam desde como ele se
comporta com os vizinhos, na escola e com os amigos, mas também se ele conseguirá
sucesso no futuro, se irá casar, ter filhos e ter um bom desempenho quando assumir o
lugar do pai na empresa.
A estrutura familiar começa a se abalar com a participação da avó de Vítor, que,
viúva, milita em prol do que considera injusto. A cada visita da avó, Vítor se sente mais
seguro de si, promovendo pequenas revoluções na ordem familiar, o que causa
desespero no pai, que tem medo da influência da avó no comportamento do filho.
A avó de Vítor é assassinada na Amazônia quando está protestando pela
preservação da floresta. Como ela já estava ali há um tempo, e reconhecia que a luta
poderia ter um desfecho trágico, ela envia uma carta a seu neto, Vítor. Devido ao
conteúdo da carta, no entanto, os pais julgam mais adequado entregar apenas quando ele
crescesse, já que ele era muito sensível:

206
―QUERIDO VÍTOR,
Vou largar de viajar e então passo a mala pra você. Tínhamos
combinado de trocar o fecho e forrar ela juntos antes de ir ver o mar,
lembra? Mas você já está ficando um tatu crescidinho e pode fazer
tudo sozinho muito bem.
Um beijo carinhoso da Vó
P.S. Tem muito mais bicho de barriga vazia que bicho de barriga
cheia. Não se esqueça dessa injustiça na hora de escolher sua
profissão.
Vó‖. (BOJUNGA, 2015, p. 92).

É interessante que durante todo o tempo em que a carta fica guardada, o P.S., em
que a avó aconselha Vítor acerca da necessidade de relacionar o trabalho às
desigualdades de classe, é consumido pelo tempo, nunca chegando a Vítor. Na carta, ela
também o aconselha acerca da necessidade de independência, motivando-o para
consertar a mala sozinho. O tratamento da avó em relação a Vítor é muito diferente do
dos pais dele, pois, enquanto ela o motiva para o mundo e para a participação social, a
sua família procura cercá-lo de proteção e preparar-se para um futuro no qual se
preocupe somente em ser bem-sucedido, ou seja, conseguir assumir o lugar do pai no
negócio das carapaças de plástico.
É espelhado nela que Vítor decide que quer mais do que a família lhe oferece e,
sozinho, sai a busca de um novo horizonte para sua vida. Ele, já adulto, motivado pela
coragem da avó, mas também fortalecido pelas decepções anteriores na vida amorosa e
profissional, nega o futuro decidido pelo seu pai e o confronta. Agora, já livre da
vontade de cavar, também consegue falar sem engasgar-se, e, agora, nem tão baixo:

Só depois é que ele explicou na calma pro pai que agora ele sabia o
que queria ‗e eu não quero mesmo vender carapaça, viu, pai?‘. E falou
muito do trabalho da Vó. Contou que queria fazer uma coisa parecida.
E o bom foi que ele falou tudo sem se engasgar e nem tão baixinho
assim... Aos poucos, o Vítor foi se esquecendo da Dalva, do sofá, da
agência Z. (BOJUNGA, 2015, p. 206).

A narrativa finaliza com Vítor seguindo os passos da avó na luta por um mundo
menos desigual. Influenciado pelo engajamento social da avó, é na militância que Vítor
encontra o caminho que quer seguir em sua vida. Assim como ela, vai lutar na
Amazônia. Pequenas recordações de Dalva e Dona Popô, contudo, demonstram a
importância que elas também tiveram nas suas escolhas e no seu amadurecimento:
―Mas, às vezes, quando ele anda na floresta e vê o vento sacudindo uma folha, ele ainda

207
lembra da orelha da Dona Popô; e outras vezes, quando ele encontra uma flor no
caminho, a lembrança ainda dói pensando na Dalva‖ (BOJUNGA, 2015, p. 206).
Vítor, personagem extremamente fraco ao longo da narrativa, se fortalece
somente quando encontra o caminho que quer seguir, mas, o excerto que encerra a
narrativa revela a importância das outras personagens femininas para a trajetória de
Vítor. O enfrentamento, então, se dá com Vítor rompendo com os efeitos das
construções sociais para as masculinidades e, finalmente, descobrindo seu próprio
caminho, a partir do cruzamento, em sua vida, com a história de personagens femininas
distintas. É por meio da figura forte e ativa da avó que Vítor decide que sua vida terá
um destino mais significativo do que somente assumir o lugar do patriarca da família.
O sofá estampado mostra que o machismo também é prejudicial ao masculino.
Guardadas as proporções da violência de gênero, que atinge as mulheres de forma mais
intensa, Vítor sofria porque não atendia às expectativas que a família tinha para ele. Sua
família almejava que ele, enquanto um sujeito masculino, atingisse o ideal para a
masculinidade. Ele, que sempre se sentia frustrado por não conseguir atuar em
sociedade, entrava em pânico sempre que percebia não estar atendendo às expectativas.
A narrativa de O sofá estampado conta com elementos importantes para a
percepção, por parte de leitores jovens, das relações humanas: as personagens femininas
provocam diferentes influências na construção da autonomia de Vítor; o modelo
familiar do qual faz parte é extremamente opressor; a escola dificulta a participação de
Vítor; as vizinhas não respeitam as particularidades de Vítor, entre outros aspectos.
Como aponta Candido (2006):

A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem


pode viver e contemplar, através de personagens variadas a plenitude
da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em
que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros
papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua
condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de
desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria
situação. (CANDIDO, 2006, p. 48).

Assim, em O sofá estampado, a personagem principal vai se transformando e se


tornando consciente das opressões às quais é submetida. Ao lidar com personagens mais
ou menos conscientes de seus papéis sociais e assimetrias sociais e de gênero, vai
modificando sua forma de pensar. Oportuniza, assim, a quem lê, o contato de algo que

208
se manifesta na vida: transformamo-nos no contato com o outro, que deixam marcas
distintas e fundamentais na constituição de nossa subjetividade.

e. O outro lado do tabuleiro

O enfrentamento, em O outro lado do tabuleiro, é representado por meio de uma


personagem secundária, mas bastante importante para a problematização de fatos
históricos, uma amiga de infância de Judith, Odete. Apesar da pouca participação na
diegese, é pela participação dela que se apontam críticas à ditadura civil-militar, pois a
filha de Odete morreu na guerrilha do Araguaia, mas a própria Odete havia sido,
também, uma revolucionária:

Odete era mineira. Tinha participado da resistência de Passa


Quatro, uma cidadezinha do interior de Minas, na Revolução de 32.
Namorada de Polônio, na época, foi com ele que minou a estrada de
ferro, impedindo a ocupação pelas tropas federais no interior do
estado. Uma revolucionária, na acepção da palavra, contra todas as
ditaduras, todos os regimes de força e de exceção. Tinha uma filha
igual a ela: Bernadete. A filha morreu esmagada pela repressão na
guerrilha do Araguaia, na época da ditadura militar, em 74. Odete
tinha quase enlouquecido. E até hoje, quando comenta o fato, os olhos
dela ficam inundados, o que não impede alguns lampejos de orgulho,
pequenas estrelas lançadas ao mar. Nessas horas, Tide ouvia sempre
calada. Admirava a força da mãe e da filha, mas não conseguia
aprovar integralmente. Indignava-se com a chacina daquelas crianças
todas no Araguaia. Um erro crasso de estratégia. Ainda se lembrava
do Arlindo e da mulher, amigos da família. Os dois recém-casados.
Como eram crianças. Arlindo e Vera partiram em lua-de-mel pro
Araguaia, pra guerrilha, aqueles dois loucos e pequenos enamorados.
Não voltaram. Também mortos, crianças ainda, ele e ela, ainda
cheirando a leite, cueiro e fralda mijada. Lembrava também do sufoco
que foi esconder seu filho. Não estava envolvido, mas era amigo de
muita gente que foi presa e massacrada. (GANEM, 2004, p. 85-86).

O excerto no qual se apresenta a história de Odete faz uma menção ao momento


histórico da ditadura de Getúlio Vargas sobre o enfrentamento ocorrido em Passa
Quatro, cidade de Minas Gerais. Na ocasião, houve um combate entre contrários ao
golpe de Getúlio Vargas e os mineiros fiéis ao governo de Vargas. Na época, houve
diversos combates desse tipo, com explosões em estradas de ferro, especialmente, em
São Paulo e Minas Gerais.

209
Além da apresentação dos fatos históricos, atrelada à vida da personagem, Odete
também opina sobre o envolvimento de Judith com o sequestro de Alice. Como ela
aponta ―Burguês e polícia se entendem‖ (GANEM, 2004, p. 86), em uma crítica a
atuação parcial da polícia para favorecer os grupos sociais mais ricos e influentes. Já
quando trata da morte da filha de Odete, destaca a violência com a qual ela morreu, e as
diversas prisões de seus amigos e colegas.
Ela destaca, ainda, a confusão quando se queimam livros sobre Dalí, que foram
confundidos com os livros de Allende, ironizando o pouco conhecimento dos censores a
respeito do que era, de fato, considerado subversivo: ―Os livros que tiveram que
queimar. Até o Salvador Dalí queimaram por engano, leram Salvador Allende e
passaram fogo‖ (GANEM, 2004, p. 86).
Judith admira a amiga que, da história de luta consegue reconstruir sua vida e
olhar para o futuro, que inclui um novo namorado. A passagem sobre Odete, mesmo
que breve, acentua a importância das mulheres na narrativa. A discussão dos momentos
históricos é feita por meio da valorização das mulheres revolucionárias. Mãe e filha,
mesmo que tenham sofrido suas agruras, foram mulheres engajadas, cada uma em seu
tempo.

f. A cor do azul

A cor do azul se centra na autodescoberta da protagonista, nas dificuldades e nas


conquistas que ela tem durante esse processo. Conta, também, com o protagonismo de
um grupo adolescente, comum à literatura juvenil. A protagonista e seus amigos e
amigas vivenciam juntos a ansiedade em ver o circo sendo montado e as aventuras
decorrentes na alteração do espaço que o circo proporciona. Ao mesmo tempo, em
dados momentos, a diegese se volta para a protagonista e para as dificuldades que
precisa passar.
Não há, na diegese, um enfrentamento das relações assimétricas de gênero, mas
o anseio dos adultos em ver os filhos conquistando novos lugares por meio do estudo.
O estudo e o conhecimento são postos, na narrativa, como elementos
importantes para a emancipação dos filhos quando forem adultos. Mesmo a mãe da
protagonista, com todas as dificuldades que passam, incentiva a filha a estudar, manter

210
boas notas e cumprir rigorosamente com suas atividades. É por meio do estudo que
vislumbram uma vida melhor para seus filhos: ―As mães aproveitavam para falar dos
planos que tinham para os filhos, e nos olhos emocionados havia sempre uma aposta,
vaga e melancólica, num quem sabe? doutor... que só quem está bem de vida, hoje em
dia, é doutor‖ (TUTIKIAN, 2005, p. 9).
A narradora conta a história das dificuldades que vem enfrentando com a
chegada da nova fase, a adolescência. Ela percebe o surgimento de novas necessidades,
de preocupações que antes não tinha, como o interesse em estar melhor arrumada, de
aprender a se comportar melhor, mas também de ficar sozinha em seu quarto, pensando,
especialmente, em sua primeira paixão: o adolescente funcionário do circo recém-
chegado à cidade. Ela começa a tentar reproduzir os ensinamentos da mãe quando se
percebe apaixonada, e decide que, para chamar a atenção do adolescente que trabalha no
circo, deve se comportar de um modo mais delicado.
Ao mesmo tempo em que a protagonista observa esse universo no qual está
inserida, ela também nota que está se transformando, e entende que as mudanças em seu
corpo a conduzirão para uma nova fase de sua vida. Justamente por isso ela tenta evitá-
las o máximo possível, travando uma: ―[...] secreta [...] luta de uma infância que tentava
permanecer num corpo em que a adolescência insistia em chegar‖ (TUTIKIAN, 2005,
p. 9).
A relação da protagonista com a escola ganha um espaço de destaque no
encerramento da diegese, pois a personagem consegue se entender com a professora,
com a qual tinha uma relação bastante conflituosa. A turbulência de emoções pela qual
a protagonista passa, em dado momento, é razão para que ela consiga se aproximar da
professora e expor seus sentimentos:

Continuei sem falar. Disse-lhe tudo com os olhos: queria que, um


dia, sentássemos e falássemos. Assim: uma na frente da outra. Assim:
e queria que nos oferecêssemos as nossas próprias experiências: as
minhas de começo, as dela de mulher madura, mas que em algum
ponto do tempo tivessem sido e seriam comuns... Poderíamos falar do
mundo de mistérios que é o mundo que ocupa nosso corpo e se
entrega — convicto, sonhador, honesto e despudorado em sensações
necessárias ao encanto de pertencer a alguém e aos prazeres
conquistados como carne animal, pura e simples — e se multiplica
buscando a continuação, por entre as pernas... Poderíamos falar dos
segredos da nossa alma forte e frágil, vaidosa, feminina, curiosa e
insegura, pronta a. A romper os cordões de isolamento e se lançar à
ventura, à aventura de ser alguém total enquanto independente mas.
Presa terna e eternamente presa aos cordões umbilicais expulsos na

211
mais forte contração... Poderíamos, talvez, nos emprestar as nossas
defesas e, então, nos fortalecer as nossas fraquezas. Poderíamos,
talvez, rir de uma mesma pequena felicidade e até chorar de uma
imensa tristeza comum... (TUTIKIAN, 2005, p. 95).

O excerto trata da relação de sororidade que a protagonista deseja construir com


a professora, pois agora que percebe sua chegada à adolescência, não tem a necessidade
anterior de se opor a ela. A partir de então, as duas passam a respeitar as singularidades
uma da outra. A aproximação das duas coincide com a chegada da menstruação da
protagonista, que, tem, no final da diegese, um ciclo que se encerra – a ida do circo –, e
um outro que se inicia – a entrada na adolescência, que ela tanto temeu.
Assim, a narrativa valoriza a partilha de experiências entre mulheres e aponta a
narradora-protagonista resolvendo seus conflitos no que tange à chegada da
adolescência. O enfrentamento para o qual se encena no desfecho da diegese, assim, não
é relacionado ao enfrentamento do patriarcado, mas à necessidade de construção de um
sentimento de pertencimento no universo das mulheres no momento em que a
protagonista é marcada pela introdução na adolescência por meio da menstruação.

3.4 Transgressões de gênero na literatura juvenil

Nosso corpus de análise, composto por nove narrativas, representa as mulheres


de modo consideravelmente plural. As obras narrativas denunciam as assimetrias das
relações de gênero por meio de personagens que, ora enfrentam o patriarcado, ora
sentem as dificuldades de serem socializadas para desempenharem papéis pré-definidos.
O corpus contribui, assim, para que se desconstrua, pelo menos na literatura, o habitus
(BOURDIEU, 1989) do privilégio do homem na sociedade.
É importante destacar que a literatura para a juventude escrita por mulheres
publicada no período de análise selecionado (1979-1984) se modificou, como
apontamos anteriormente, devido à alteração promovida no campo literário juvenil, que,
por sua vez, foi favorecida pela ampliação do mercado do livro e pela segunda onda
feminista, assim, mesmo obras que não estão no corpus apresentam uma tendência
similar, ou seja, outras obras premiadas contam com uma perspectiva feminista.

212
No que tange às obras do corpus, todas as narrativas, à exceção dos contos de
fadas de Uma ideia toda azul, acontecem em espaços urbanos. As personagens se
encontram em maior ou menor conflito com a urbanidade e com o desenvolvimento
urbano, mas elas nunca são completamente alheias a ele. Elas convergem, assim, com
os apontamentos de Schøllamer (2011) sobre a literatura, de modo amplo, que, na
década de 1980 perde o caráter nacionalista e começa a abordar os espaços urbanos de
modo crítico.
A análise das obras se centrou, em um primeiro momento, nos lares e na relação
das personagens com esse espaço. Nas obras que assinalam a presença de lares com
uma família nuclear, esse modelo familiar não é despido de críticas.
Em O mágico de olho verde ressaltamos o sofrimento da mãe ao se ver presa ao
ambiente doméstico enquanto o marido trabalha fora e não é o responsável por
disciplinar as crianças. Carmem sabe de sua condição enquanto alguém subjugada, mas,
ao mesmo tempo, não dispõe de condições materiais, como um emprego, para alterá-la.
É somente com a morte do marido que sua situação se modifica, pois, ao se ver sozinha,
precisa assumir para si a responsabilidade pelo sustento dos filhos.
As representações do lar em A cor do azul trazem à cena uma família
extremamente unida, reconhecedora de suas dificuldades financeiras, que encontra na
desigualdade social espaço para estreitarem os laços e contribuírem entre si. Mãe e
filha, sozinhas, desde a ausência do pai, precisam conduzir juntas as suas dificuldades.
No espaço de sua casa, então, a pré-adolescente encontra espaço para se abrigar sempre
que o peso das condições de vida ou que os efeitos de sua baixa autoestima são intensos
demais.
As personagens, em Bisa Bia, Bisa Bel, tem a casa como espaço acolhedor e de
partilha. Não há a presença de um patriarca, pois a narrativa se centra somente nas
mulheres da família. Assim, não é possível saber se a mãe é divorciada, ou se há um pai
que não é mencionado.
Em O outro lado do tabuleiro, há duas famílias representadas: a de Judith, que
passou por um divórcio após a protagonista se ver infeliz em seu casamento; e a de
Alice. A análise do núcleo familiar da menina permite perceber a não participação do
pai na educação da filha, pois ele trabalhava o tempo todo.
O sofá estampado, conta com uma família nuclear, e o pai é posto como um
sujeito controlador, que acaba influenciando negativamente na personalidade fraca de
seu filho, que, ao menor sinal de enfrentamento, se excessivamente, pois tem

213
dificuldade de se posicionar em seus círculos sociais. Já a mãe é, também, subjugada às
ordens do marido, mesmo que ele não seja violento, e é responsável por promover o
diálogo e proteger Vítor das ordens do pai. Mesmo assim, Vítor não encontra abrigo na
família, já que lida o tempo todo com os embates com seu pai.
As obras parecem conquistar evolução no que tange às representações de
família, quando as comparamos com os estudos obtidos por Fúlvia Rosemberg e Edith
Piza (1994). As pesquisadoras constatam, sobre a literatura infantil e juvenil brasileira
publicada até 1970, que as mulheres representadas convergiam para a família e a casa e
nessa instituição se construía a expectativa da felicidade duradoura. Analisando, ainda, a
marca da individualidade das personagens, as autoras apontam que as personagens
mulheres são associadas comumente associadas à sua função familiar e à sua condição
de cônjuge.
No que tange à associação da mulher exclusivamente à sua função familiar, nas
obras do corpus, essa associação é permeada de críticas, como se notou em O mágico de
olho verde, na qual a figura da mulher que trabalha exclusivamente nas atividades
domésticas se debate com a sua condição.
Para Lallament (2014), é importante questionar o senso comum de que a
mulheres, historicamente, estiveram restritas somente ao trabalho doméstico. Ele
defende que há um mito da mulher inativa, tendo em vista que a camponesa, ou a
mulher do pequeno comerciante, sempre trabalhou, tese também defendida por
Beauvoir (2009). Aqui, também é importante inserir a mulher pertencente às camadas
populares, já que ela está, há muito, exercendo atividade remunerada. Essa
representação se faz presente em A cor do azul, em que a mãe da protagonista exerce
trabalho remunerado para sustentar a família, composta por ela e a filha no próprio
ambiente doméstico, já que não dispõe de ninguém para cuidar dela enquanto ela
trabalha. Essa representação é distinta da de O mágico de olho verde, em que mãe,
responsável pelo lar, é impelida para o mundo externo a partir do momento em que se
fica viúva. Já em Bisa Bia, Bisa Bel, a mãe, arquiteta, é uma profissional formada que
defende as possibilidades e benefícios que a independência financeira lhe proporciona.
Nesta última, percebe-se a representação do acesso ao ensino superior, pois a mãe tem
no trabalho não somente fonte de renda, mas de realização pessoal.
No que diz respeito à análise da casa, além dos modelos familiares, é importante
destacar a relevância da representação do quarto nas narrativas. As representações aqui
encontradas convergem com as da pesquisa de Blockeel (2005), que afirma que, na

214
literatura juvenil, o quarto tem papel fundamental na vida do jovem, pois é o único lugar
que ele consegue elucubrar suas problemáticas e encontrar-se consigo mesmo. Em obra
que se centram no universo do jovem, percebemos esse fato em O mágico de olho verde
a protagonista Mila nunca encontra seu lugar na família, pois está sempre alheia aos
propósitos familiares, buscando manter viva a memória do pai falecido, e sozinha, como
ela acredita, sendo no quarto que ela se isola sempre que não está de acordo com o
restante da família. Também O sofá estampado traz um personagem, Vítor, que se
refugia no quarto quando a família tenta determinar seu futuro. Mesmo em A cor do
azul, em que a protagonista tem uma relação bastante afetiva com a mãe, ela se isola no
quarto quando está infeliz.
Já nos contos ―Entre as folhas do verde O‖ e ―A primeira só‖ o quarto o espaço
da clausura e símbolo de cerceamento. Para que as mulheres consigam construir sua
libertação, precisam romper com o espaço do quarto, representado como o ambiente em
que estão reclusas precisam, em todos os contos, tomar atitudes drásticas, pois se nota a
ausência de diálogo entre elas e os homens que regem as suas vidas. Já nos outros
contos de Colasanti (2015) aqui analisados, ―Fio a fio‖ e ―Além do bastidor‖ não há
uma representação positivada ou negativada dos quartos. Devido a ausência de
personagens masculinos nos dois contos, não há um sistema de opressão de gênero ali
representado.
Em ―3.2 As angústias‖ analisamos o modo como os papéis de gênero são
questionados. Constatamos que todas as narrativas, de modo distintos, indagam a
construção social dos papéis de gênero.
Em algumas narrativas, há a inserção de um discurso feminista evidente, ou, o
questionamento direto das assimetrias de gênero, como é o caso de O sofá estampado,
que compara três personagens femininas bastante diferentes: a primeira, a gata angorá
Dalva, personagem fútil, submissa ao discurso midiático e que não se modifica ao longo
da narrativa. Ela não enxerga nenhum conflito em sua existência, pois se conforma com
a sua condição; a segunda, a hipopótama Dona Popô, que altera sua condição por meio
do trabalho, mas que se transforma em uma personagem egoísta e gananciosa; a
terceira, a avó de Vítor, engajada e atuante, determinada a contribuir para a construção
de um mundo mais igualitário. Como contraponto das personagens mulheres fortes e
determinadas, há Vítor, o protagonista, que vai se reelaborando ao passo que entra em
contato com personagens tão diferentes. Considerando que O sofá estampado é
destinado ao jovem, não se pode deixar de dialogá-la com seu público-alvo. A narrativa

215
deixa evidente um tipo de sujeito que quer formar. Dalva é completamente alheia à
leitura e à escrita, sendo representada como uma figura fútil e egocêntrica. Dona Popô
consegue bastante dinheiro com seu trabalho, mas isso não a torna mais feliz e
realizada. Já a avó, com uma carreira acadêmica, leitora e engajada é posta como uma
figura idealizada, pois é a única admirada, intelectualmente, por Vítor, que, justamente,
segue seus passos.
Bisa Bia, Bisa Bel também conta com um discurso feminista evidente. Há três
personagens mulheres, cujas histórias se entrecruzam. Cada uma, pertencendo a um
momento da história – passado, presente e futuro – apresenta sua visão sobre as relações
de gênero, e elaborando reflexões sobre como elas foram se modificando ao longo da
história. Uma estratégia importante utilizada na narrativa é o enfoque nas relações entre
mulheres, com participação de apenas um menino, e que não tem uma atuação decisiva
ao enredo. A narrativa promove, assim, a valorização das relações entre mulheres,
harmoniosas ou não, de modo a corroborar as influências que umas exercem sobre as
outras.
O outro lado do tabuleiro, assim como O sofá estampado, também apresenta
mulheres fortes atuando contra personagens masculinas fracas ou indecisas. Judith e
Alice são protagonistas dessa trama policial e responsáveis pelo esclarecimento do
crime. Ao mesmo tempo, a obra expõe as fragilidades das famílias patriarcais,
perpassando pela forma não habitual como terminou o casamento de Judith e expondo
as estratégias do pai de Alice para se livrar da mãe dela. A narrativa não questiona,
necessariamente, diretamente, as relações de gênero. Não se pode dizer, contudo, que a
narrativa não perpassa por um discurso feminista, pois desde o modo como Judith acaba
com o casamento e como ela atua na velhice aponta para a transgressão dos papéis
sociais de gênero. Judith rompe, especialmente, com o papel comumente associado à
pessoa idosa, pois está no centro da resolução dos conflitos instaurados na narrativa,
confrontando os anseios do próprio filho, que acredita que ela deve permanecer em casa
devido à idade.
O outro lado do tabuleiro distancia-se das ficções policiais juvenis por não
possuir um protagonismo de grupos, como, por exemplo, O gênio do crime, que, sendo,
uma narrativa de suspense, alcançou bastante projeção, tendo aberto caminho para a
publicação de outras narrativas similares. Também o fato de dispor de uma protagonista
idosa desvendando os mistérios é algo bastante inovador. Outro aspecto relevante é o
fato de que algumas personagens são bastante engajadas, como a própria Judith, que

216
tenta resolver problemas alheios a ela e o tio de Alice, que, de certa forma, substitui o
lugar do pai. Ele, aliás, promove o contraponto em relação à figura do irmão. Enquanto
o pai de Alice preocupa-se somente com sua rede de supermercados e com os lucros
dela advindos, Samuel reflete sobre o mundo, sobre a literatura e sobre as artes.
Uma questão bastante inovadora em O outro lado do tabuleiro é o fato de
conduzir o leitor a concordar com algumas contravenções. Os pequenos furtos de Judith
ao supermercado não são comuns em narrativas para jovens leitores, pois não se busca
fazer com que eles se deparem com situações que promovam dúvidas no que tange à
ética. Também o golpe promovido por Samuel é algo bastante atípico na literatura para
jovens, pelo mesmo motivo. Em nenhum dos dois momentos essa situação é
questionada ou enfrentada pelos leitores, pois a avaliação sobre certo e errado não é
feita, como é comum, pelo narrador, deixando a decisão a cargo do leitor, como se
exemplifica pela frase de Brecht citada por Samuel: ―O que é o roubo de um banco
comparado à fundação de um banco?‖.
O mágico de olho verde, igualmente, denuncia a falência da família patriarcal ao
expor um marido controlador, mas que se veste da insígnia do bom pai, impedindo a
mulher de enfrentar suas dificuldades e controlar a própria vida. A narrativa de O
mágico de olho verde parece ser uma metáfora da história das mulheres, já que
Carmem, enquanto esteve sob o jugo do marido, esteve, também, à mercê das decisões e
das condições permitidas por ele. Quando ela se vê sozinha, ela tem a oportunidade de
atuar socialmente, ganhando, finalmente, o espaço externo da casa, que é, como vimos,
o espaço valorizado socialmente.
A cor do azul é a única obra que se centra em um lugar bastante pobre. As
personagens são moradoras de uma pequena comunidade esquecida pelas autoridades,
como se cita na narrativa. Ali, a jovem protagonista e os amigos de sua idade passavam
os dias brincando e participando de pequenas aventuras.
Apesar da existência de uma relação bastante harmoniosa entre mãe e filha,
personagens centrais, a menina sente dificuldade em partilhar suas angústias que pairam
sobre duas questões: a ausência de dinheiro e o fato de se considerar extremamente feia.
Ela não gosta de seu cabelo, nem de sua cor de pele, e sempre se refugia em seu quarto
quando se sente triste em relação a esses aspectos. É a única obra que problematiza o
racismo, já que insere uma protagonista atentando construir sua autonomia na fase a
qual recém chegou: a adolescência.

217
No que tange especificamente à literatura juvenil, notamos, como Roberta Trites
(2000), que as narrativas juvenis interrogam as construções sociais, priorizando as
relações entre sociedade e indivíduo, já que se destinam a um público em que valores
éticos e as percepções acerca das relações humanas estão se constituindo. Aqui,
interessou-nos especialmente as relações de gênero e o patriarcado. Representa, ainda,
as relações de poder entre homens e mulheres e seus embates nas narrativas, pois as
personagens mulheres se mostraram questionadoras não somente da voz masculina, mas
do patriarcado e seus valores.
Um aspecto importante percebido nas obras do corpus é a tematização da morte.
Dois dos contos de Marina Colasanti tratam da morte: ―A primeira só‖ – que trata
diretamente da morte, quando a princesa se joga no lago – e ―Fio após fio‖ – no qual a
morte é implícita, pois Nemésia fica soterrada no meio dos fios produzidos pela irmã. O
outro lado do tabuleiro traz a morte do companheiro de Alice, no metrô, e a morte é
decisiva para que se instaure o conflito na trama policial. O mágico de olho verde tem a
morte do patriarca como um evento que desencadeia vários outros, pois é responsável
para provocar os conflitos na narrativa. Percebemos, então, a morte não somente como
uma tematização importante na literatura juvenil, mas uma temática que, nas obras do
corpus, se relacionam com as discussões sobre as relações de gênero.
Tanto Crandall (2012) quanto Trites (2000) percebem a morte como uma
temática recorrente em seus estudos sobre a literatura juvenil. Para Trites (2000), o
modo como a literatura juvenil tematiza a morte coloca os leitores de frente com esse
evento onipotente e inerente à condição humana. Quando a morte também provoca uma
crise existencial, como também é o caso de algumas das narrativas de nossos corpus,
elas evidenciam, também, as maneiras por meio das quais as personagens conseguem se
refazer após se deparar com a morte de alguém importante.
Para Crandall (2012), as mortes na literatura juvenil também mostram uma
constante, que é o fato de que as mulheres que experenciam a morte de alguém
importante apresentam-se, posteriormente, radicalmente diferente da norma, já que
passam a ter outro comportamento ou atitude. A morte e as mulheres tornam-se
estratégias para rupturas e transgressões, que trazem consequências às mulheres. No
caso de O mágico de olho verde, por exemplo, a consequência é a libertação de
Carmem, já no caso de ―A primeira só‖, a consequência é a morte da protagonista.
Também em O sofá estampado o protagonista Vítor é impelido a se engajar socialmente
quando recebe a notícia da morte da avó, de quem gostava tanto.

218
As obras do corpus permitem-nos atestar, assim, a renovação nos modos de
representação das relações assimétricas de gênero em nosso corpus, pois verticalizam,
em maior ou menor medida, as estratégias de resistência ao patriarcado. Defendemos,
portanto, que, como postula Bakhtin (2014), nada é imutável, pois ―cada sentido terá
sua festa de renovação‖ (BAKHTIN, 2014, p. 410). As personagens debatem-se com as
injustiças e com as desigualdades que são a elas impostam e encontram estratégias para
resistir e enfrentar.

219
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sexta Sugestão: Ensine-a a questionar a linguagem. A


linguagem é o repositório de nossos preconceitos, nossas
crenças, nossos pressupostos. Mas para ensiná-la, você
terá que questionar sua própria linguagem42.
(Chimamanda Ngozi Adichie,
Querida Ijeawele, ou um manifesto feminista em quinze
sugestões, tradução nossa).

O pessoal é político43.

Nas epígrafes que inauguram as considerações iniciais e as configurações finais


desta tese, temos, respectivamente, as sugestões quinta e sexta de Chimamanda Adichie
para educar crianças feministas. O livro foi escrito a partir da solicitação de uma amiga
de Chimamanda que, mãe de uma pequena menina, se sentia angustiada sobre como
possibilitar que sua filha tivesse contato com maneiras de construir a sua própria
identidade e autoestima a partir de bases radicadas em um lado oposto ao do
patriarcado. No livro, Adichie verbaliza quinze sugestões para que sua amiga possa
favorecer, junto a sua filha, o fortalecimento da autoestima, o pensamento feminista e a
valorização de sua identidade Igbo.
Na quinta e sexta sugestões, temos dois pequenos textos que nos parecem
essenciais para educar crianças feministas: a necessidade de se pluralizar as leituras,
especialmente, as que se fazem de modo livre, não as que são feitas para estudo. Para
educar crianças feministas, de fato, é importante, entre outras coisas, permiti-la que ela
conheça histórias, tenha contato com os mais variados possíveis tipos de discurso e
modos de se entender as relações entre as pessoas, e entre as pessoas e o mundo. É
preciso estimular a criança para que ela conheça mundo além dos seus e universos para
além de sua realidade imediata. Já na sexta sugestão, Adichie destaca a importância de
se questionar a linguagem, que é onde mora e por meio da qual reproduzimos
preconceitos e estereótipos. Assim, atestamos o que postulou Bakhtin (2014): a

42
Sixth Suggestion: Teach her to question language. Language is the repository of our prejudices, our
beliefs, our assumptions. But to teach her that, you will have to question your own language.
(Chimamanda Ngozi Adichie, Dear Ijeawele or a feminist manifesto in fifteen suggestions).
43
Slogan feminista cunhado por Carol Hanisch e que se tornou um dos símbolos da segunda onda
feminista.

220
linguagem não é neutra, pois quando ela é proferida, já está prenhe de significados, e
eles precisam ser questionados.
Abrem, também, nossas considerações iniciais e considerações finais dois motes
feministas bastante divulgados por ocasião, respectivamente, da quarta e da segunda
onda feministas. O primeiro é parte de uma pequena ciranda – ―Companheira, me ajude,
eu não posso andar só/Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor‖ – que
vocaliza um convite, nas marchas, para que as mulheres entendam a importância da luta
coletiva, pois a violência estruturada contra a mulher é um problema de todas. Essa
ciranda surgiu na ocasião das marchas de 2015, auge da quarta onda feminista, e foi
novamente propagado em 2018, quando, nas marchas que pediam justiça pela morte de
Marielle Franco44, ele era anunciado porque ela, Marielle, também o repetia. Já o slogan
―O pessoal é político‖ ganha força em meados de 1960, no início da segunda onda
feminista nos Estados Unidos45, e busca propagar a ideia de que os sofrimentos e
violências individuais pelos quais passam as mulheres não são individuais, ou
exclusivamente pessoais, e, sim, tem uma explicação social e cultural, pois estão
vinculados a uma violência estruturada.
Os motes feministas, assim, parecem dialogar com a escrita de Adichie, pois, se
eles ecoam as ideias que nem os sofrimentos nem os levantes contra o patriarcado são
individuais, a escritora nigeriana convida para essas lutas um público fulcral: as
crianças. Para nós, então, é essencial pensar como o feminismo é divulgado junto a este
público, ou, ainda, quando e como ele começou a ser propagado, por meio do discurso
literário, junto à juventude em terras brasileiras?
A tese que defendemos é a de que o sistema literário se fundamenta sob o
discurso do patriarcado, mas esse discurso tem uma ruptura na passagem da década de
1970 para a de 1980, no momento em que as escritoras se apropriam da literatura
juvenil. Assim, além de elas terem sido decisivas para a solidificação dessa literatura,

44
Marielle Francisco da Silva foi uma socióloga e política brasileira. Era filiada ao Partido Socialismo e
Liberdade e elegeu-se vereadora no Rio de Janeiro no ano de 2017. Foi a quinta candidata mais votada.
Foi assassinada, em razão de sua atuação política, no dia 14 de março de 2018 e as circunstâncias, bem
como mandantes de seu assassinato, ainda permanecem sem esclarecimentos. Marielle atuava,
especialmente, junto a grupos minorizados. Defendia pautas como aborto livre e legal, proteção da
juventude das favelas e diversidade. Defendeu, no de 2014, a dissertação de mestrado intitulada: ―UPP – a
redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do rio de janeiro‖
na Universidade Federal Fluminense.

45 A expressão O pessoal é político afirma o caráter estrutural da dominação, que se expressa em


violências, simbólicas ou físicas, que se repetem nas experiências individuais das mulheres. Questiona,
assim, os frágeis limites do público e do privado.

221
rompem com a hegemonia do patriarcado nas narrativas, que são imbuídas de uma
perspectiva feminista, e no mercado do livro, que passa a contar com maior diversidade
de mulheres escritoras.
Para tanto, fizemos um caminho organizado em três capítulos que nos
permitissem compreender o campo literário juvenil da década de 1980, como a mulher
esteve presente nesse campo e de que modo a participação da mulher na literatura
juvenil provocou influxos nas temáticas relacionadas às assimetrias de gênero nas
publicações.
Assim, no capítulo 1, ―Literatura juvenil, mercado e mulher‖, fizemos um
percurso que nos permitiu compreender as relações do mercado com a literatura juvenil
e com a literatura produzida por mulheres. Vimos que o mercado do livro no Brasil se
solidificou, especialmente, entre as décadas de 1970 e isso fez com que o mercado do
livro se fortalecesse também, especialmente, na década de 1980. Ficou evidente que,
mesmo que o mercado do livro seja regido, especialmente, pela lógica do dinheiro,
outras instâncias de legitimação atuam e conseguem garantir uma produção de
qualidade. Tanto os prêmios literários quanto as pesquisas acadêmicas favorecem a
solidificação da escrita enquanto atividade profissional e contribuem para a divulgação
e circulação das obras.
Observando, inicialmente, os aspectos relacionados à produção da literatura
juvenil, foi possível perceber que vem sendo traçado um caminho com o objetivo de
consolidá-la por meio de uma crítica especializada, ao lado de outras instâncias de
legitimação. Vimos que premiações brasileiras, há tempos, apontam a especificidade da
literatura juvenil ao inseri-la como categoria. O Prêmio Jabuti, por exemplo, dispôs da
categoria Literatura Juvenil de 1959 a 201846. Já o Prêmio FNLIJ inseriu a categoria
Jovem em 1979, ano de sua terceira edição47. Os exemplos vislumbrados evidenciam a
proposição de que as obras destinadas ao público juvenil vêm ganhando relevância.
Também a questão de que os números de vendagens, bem como as edições em série e a
extensão das obras catalogadas como juvenis indicam a consolidação do público.

46
Informações disponíveis no site do Prêmio Jabuti: http://premiojabuti.com.br/edicoes-
anteriores/premio-1959/. Acesso em: 26 out. 2019.
47
Informações disponíveis no site do Prêmio Fnlij: http http://www.fnlij.org.br/site/premio-fnlij/livros-
premiados/item/178-pr%C3%AAmio-fnlij-1979-produ%C3%A7%C3%A3o-1978.htm l. Acesso em: 26
out. 2019.

222
Também no Capítulo I delineamos o corpo teórico que fundamenta a nossa
análise. Nosso trabalho se centra no escopo da crítica literária feminista, e, mais
especificamente, no segundo tipo de crítica feminista apontado por Showalter (1994), a
ginocrítica, que almeja promover a análise da produção das mulheres. Em nosso
trabalho, fazemos essa análise, também, orientados pela inserção da categoria gênero, e,
para tanto, pautamo-nos em Barbieri (1993) e Scott (1995).
Finalmente, no Capítulo I, e ainda delineando o corpo teórico de nossa análise,
discutimos a personagem, na literatura e na literatura juvenil. Pautamo-nos,
prioritariamente, em Candido (2007) e Bakhtin (2011) para entender a personagem, e
em Bakhtin (2014) para compreender como se manifesta, nas obras, o discurso das
personagens e das vozes narrativas.
Já no capítulo 2, a partir de uma interpretação do sistema literário juvenil das
décadas de 1970 e 1980, atestamos que as mulheres escritoras conseguiram promover
uma ruptura importante no sistema literário ao pluralizarem a literatura, no que tange à
autoria, a partir de um sistema sobre o qual, à época, os homens não tinham tanto
interesse. Essa pluralização, com efeito, não se restringiu ao aspecto da autoria, pois as
personagens também o foram. Como vimos, homens escritores, na literatura juvenil,
tendem a narrar a partir de suas experiências, assim, fica latente o discurso do
dominante quanto as narrativas escritas por homens enfocam muito pouco nas
experiências das meninas e das adolescentes, e tendem a narrar as dificuldades e
cotidiano dos meninos. Quando as mulheres passam a ser publicadas de modo
constante, sob a insígnia da literatura juvenil, podem, enfim, narrar as experiências das
meninas e das mulheres. Assim, colhemos dados interessantes a partir desse corpus.
No último capítulo, fizemos a análise das obras do corpus. A análise foi
organizada em quatro momentos. Os três primeiros permitem que se acompanhe a
alteração das relações de gênero nas nove narrativas do corpus. Assim, se o primeiro
tópico, ―3.1 Os lares‖, se centra em personagens que têm uma relação conflituosa com
seus lares, muitas vezes, estando atreladas a ele devido às subjugações de gênero, ele
também indica que as personagens mulheres também, em algum momento, parecem
romper ou manifestam o desejo de romper com esse espaço, que é posto nas narrativas
como uma metáfora do próprio patriarcado, pois as mulheres precisam ressignificar sua
relação com o lar para que consigam exercer sua emancipação.
O segundo tópico, ―3.2 As angústias‖, se centrou nas razões e nos modos que as
mulheres manifestam, nas obras, suas primeiras crises e questionamentos em relação às

223
assimetrias de gênero. Percebeu-se que em todas as narrativas as relações de gênero são
trazidas à baila para que as mulheres, ou as enfrentem, incisivamente, ou, pelo menos,
expressem seu desconforto em relação a elas.
Já no tópico ―3.3 Os enfrentamentos‖, debruçamo-nos sobre as propostas de
ressignificação das relações de gênero pelas quais passam as personagens. Percebemos
que o enfrentamento ao patriarcado causa efeitos: sejam eles positivados (nos quais as
personagens se libertam do machismo) ou negativados (nos casos em que as
personagens não conseguem sua liberdade, ou, morrem quando decide fazê-lo).
Finalmente, no tópico ―3.4 Transgressões de gênero na literatura juvenil‖,
fizemos uma leitura comparativa das obras a partir dos três tópicos anteriores de modo a
corroborar nossa tese: as personagens, com efeito, sofrem o influxo da crítica feminista,
em expansão no momento de publicação das obras, e complementam o que já havíamos
atestado no tópico 2 – não é somente o campo e o sistema literário que se alteram
quando a mulher se apropria da literatura juvenil, mas, também, o próprio texto literário,
que se beneficia da pluralidade inaugurada, na literatura juvenil brasileira, na transição
entre as décadas de 1970 e 1980.
Finalizamos nossa tese com o anseio de que a crítica literária feminista se
expanda de tal modo que verticalize, cada vez mais, seus efeitos na produção literária
para a juventude, e que a pluralização das vozes se estendam em diapasão, de modo que
as mulheres que publicam literatura sejam, cada vez mais, diversas, e instaurem, na cena
literária, vozes, angústias e resistências de etnias, experiências e classes múltiplas.

224
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235
APÊNDICE: Lista de tabelas

Tabela 1: Prêmio Jabuti: 1959 a 1969


Ano de publicação Título Autora
1959 Glorinha Isa Silveira Leal
1962 Único Amor de Ana Maria Isa Silveira Leal
1968 Xisto no Espaço Lucia Machado de Almeida
1969 O Menino dos Palmares Isa Silveira Leal

Tabela 2: Obras juvenis premiadas na década de 1980 (JABUTI)


Ano de Título Autor(a)
publicação
1980 O Misterioso Rapto da Flor de Haroldo Bruno
Sereno
1981 A Vingança do Timão Carlos Moraes
1982 Sangue Fresco João Carlos Marinho
1983 Ciganos Bartolomeu Campos Queiros
1984 A Cor Azul Jane Tutikian
1985 Awankana Giselda Laporta Nicolelis e Ganymedes
José
1986 A Morte na Selva Mustafa Yazbek
1989 O Mundo é para ser Voado Vivina de Assis Viana

Tabela 3: Obras juvenis premiadas na década de 1980 (FNLIJ)


Título Autor(a)
1980 produção 1979 Uma ideia toda azul Marina Colasanti
1981 produção 1980 O sofá estampado Lygia Bojunga
1982 produção 1981 De olho nas penas Ana Maria Machado
1983 produção 1982 Bisa Bia, Bisa Bel Ana Maria Machado
1984 produção 1983 Vida e paixão de Pandomar, o cruel João Ubaldo Ribeiro
1985 produção 1984 O outro lado do tabuleiro Eliane Ganem
1986 produção 1985 Tchau Lygia Bojunga
1987 produção 1986 Fruta no ponto Roseana Murray
1988 produção 1987 A visitação do amor Jorge Miguel Marinho
1989 produção 1988 Indez Bartolomeu Campos de Queiróz
1990 produção 1989 O assassinato do conto policial Paulo Rangel

236
Tabela 4: Premiações para a literatura infantil no Jabuti da década de 1980
ANO JABUTI FNLIJ
1980 La de Umbigo O curumim que virou gigante
Elvira Vigna Joel Rufino dos Santos

1981 As Muitas Mães de Ariel O que os olhos não vêem


Mirna Pinsk Ruth Rocha
1982 Vovô Fugiu de Casa Uni, duni e tê
Sérgio Caparelli Angela Lago
1983 A Vaca Mimosa e a Mosca Zenilda Os bichos que tive
Silvia Orthof Sylvia Orthof
1984 O Homem do Violão Quebrado É isso ali
Camila Cerqueira César José Paulo Paes
1985 Terra sem Males Uxa, ora fada, ora bruxa
Luis Galdino Sylvia Orthof
1986 O Fantástico Mistério da Feiurinha O menino marrom
Pedro Bandeira Ziraldo
1987 A Velha Fridela Uma ilha lá longe
Maria Heloisa Penteado Cora Rónai
1988 Aos Trancos e Relâmpagos A mãe da mãe da minha mãe
Vilma Áreas Terezinha Alvarenga
1989 Alguma Coisa As viagens de Raoni
Ricardo Azevedo Pedro Veludo

Tabela 5: Premiações literárias no Jabuti da década de 1980


Poesia Romance Autor revelação – literatura
adulta
1980 Antologia – Sebastião Uchôa O Grande Mentecapto – Ioio Pequeno da Várzea Nova –
Leite Fernando Sabino Mario Leônidas Casanova
1981 O vôo circunflexo – Rubens Não houve premiados nesta O cego e a dançarina – João
Rodrigues Filho categoria Gilberto Noll
1982 Passatempo e outros poemas – Em liberdade – Sylviano As Mulheres de Tijucopapo –
Francisco Alvim Santiago Marilene Felinto
1983 Alba – Orides Fontela Aquele Mundo de Feliz Ano Velho – Marcelo
Vasabarros – José J. Veiga Rubens Paiva

1984 Cantares de Perda e A Grande Arte – Rubem Reconquista – Iola de Oliveira


Predileção – Hilda Hilst Fonseca Azevedo

1985 Nó – Alphonsus Guimarães Viva o Povo Brasileiro – Tal Brasil, Qual Romance –
Filho João Ubaldo Ribeiro Flora Sussekind

1986 3x4 – Amando Freitas Filho A idade da paixão – Rubem Tarde revelada – Antonio
Mauro Machado Fernando de Franceschi
1987 Canteiro de obras – Ilke Luisa – Maria Adelaite Debussy e Poe – Arthur
Brunhilde Laurito Amaral Rosenblant Nestrovski
1988 Caminho das águas - Antonio Dinheiro na Estrada – Emil Espelho – Ana Carolina
Fernando de Franceschi Farhat Medeiros Assed

1989 Poesias Reunidas (1968-1988) A Saga do Cavalo Indomado Páginas Amarelas – João
– Francisco Alvim – Maria Alice Barroso Moura Jr.

237
Tabela 6: Obras premiadas com mulheres relevantes ao enredo
1980 Uma idéia toda azul Marina Colasanti
1981 O sofá estampado Lygia Bojunga Nunes
1982 De olho nas penas Ana Maria Machado
1983 Bisa Bia, Bisa Bel Ana Maria Machado
1984 A Cor do Azul Jane Tutikian
1985 O outro lado do tabuleiro Eliane Ganem
1986 Tchau Lygia Bojunga

238
ÍNDICE

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................................ 11


CAPÍTULO 1: LITERATURA JUVENIL, MERCADO E MULHER ................................ 18
1.1 Mercado e a produção literária para a juventude ........................................................ 20
1.2 Crítica literária e a literatura juvenil ............................................................................ 36
1.3 Crítica literária feminista no Brasil ............................................................................... 47
1.4 Personagens mulheres na ficção na ficção juvenil e o referente histórico brasileiro 66
a. A personagem de ficção .................................................................................................. 66
b. A construção da personagem na literatura juvenil ......................................................... 74
c. O Brasil, entre o fim da ditadura civil-militar e os primeiros anos da redemocratização
............................................................................................................................................. 84
CAPÍTULO 2: MULHERES NA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA ..................... 92
2.1 Panorama da literatura juvenil ...................................................................................... 95
2.2 Seleção do corpus de análise ......................................................................................... 102
2.3. Obras do corpus ............................................................................................................ 105
2.3.1 Marina Colasanti: a tecelã das palavras ................................................................. 105
2.3.2 Lygia Bojunga: o desejo pela liberdade................................................................... 109
2.3.3 Ana Maria Machado: a defesa do não ser ............................................................... 111
2.3.4 Jane Tutikian: sonhos como rupturas ...................................................................... 114
2.3.5 Eliane Ganem: a velhice em descoberta .................................................................. 116
2.3.6 Alciene Ribeiro: reinvenções a partir da ausência .................................................. 120
CAPÍTULO 3: VOZES FEMINISTAS NAS PERSONAGENS DA LITERATURA
JUVENIL ................................................................................................................................. 124
3.1 Os lares ........................................................................................................................... 129
a. Uma ideia toda azul ...................................................................................................... 133
b. O sofá estampado .......................................................................................................... 139
c. Bisa Bia, Bisa Bel .......................................................................................................... 145
d. O mágico de olho verde ................................................................................................ 149
e. A cor do azul.................................................................................................................. 153
f. O outro lado do tabuleiro .............................................................................................. 156
3.2 As angústias ................................................................................................................... 160
a. Uma ideia toda azul ...................................................................................................... 162
b. Bisa Bia, Bisa Bel .......................................................................................................... 170
c. O mágico de olho verde ................................................................................................. 176
d. O sofá estampado .......................................................................................................... 178

239
e. O outro lado do tabuleiro .............................................................................................. 185
f. A cor do azul .................................................................................................................. 188
3.3 Os enfrentamentos......................................................................................................... 190
a. Uma ideia toda azul ...................................................................................................... 192
b. Bisa Bia, Bisa Bel .......................................................................................................... 199
c. O mágico de olho verde ................................................................................................. 201
d. O sofá estampado .......................................................................................................... 203
e. O outro lado do tabuleiro .............................................................................................. 209
f. A cor do azul .................................................................................................................. 210
3.4 Transgressões de gênero na literatura juvenil ............................................................ 212
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 220
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 225
APÊNDICE: Lista de tabelas ................................................................................................. 236

240

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