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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA


FLUMINENSE

INSTITUTO FEDERAL FLUMINENSE CAMPUS CAMPOS CENTRO


LICENCIATURA EM LETRAS: PORTUGUÊS E LITERATURAS

Anna Karollina Araujo Faria


Yasmim Barbosa da Silveira

O SILENCIAMENTO DAS ESCRITORAS OITOCENTISTAS: UMA ANÁLISE


SOBRE O TRABALHO DE ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART

Campos dos Goytacazes - RJ


2022
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Anna Karollina Araujo Faria


Yasmim Barbosa da Silveira

O SILENCIAMENTO DAS ESCRITORAS OITOCENTISTAS: UMA ANÁLISE


SOBRE O TRABALHO DE ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Fluminense campus Campos
Centro, como requisito parcial para conclusão
do Curso Superior de Licenciatura em Letras -
Português e Literaturas.

Orientadora: Profa. Dra. Érica Luciana de


Souza Silva

Campos dos Goytacazes - RJ


2022
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Às mulheres brasileiras de letras


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AGRADECIMENTOS

O desenvolvimento deste trabalho contou com a ajuda de diversas pessoas, dentre as quais
agradecemos:
Às nossas mães, as fortes mulheres e donas de casa que inúmeras vezes colocaram os
nossos sonhos em primeiro lugar. Às nossas primeiras educadoras, que proporcionaram de
forma tão dedicada o nosso primeiro contato com as letras. Aos colegas do curso de Letras do
Instituto Federal Fluminense campus Centro, em especial ao querido amigo Maycon Dias
Prado, por ter segurado nossa mão quando pensamos em desistir, e às nossas inspiradoras
amigas Cessiani Monteiro, por ter nos cedido espaço seguro e apoio em sua casa quando
precisamos nos reunir na pandemia; Maria Isadora Caldas, por ter nos auxiliado a estruturar
inicialmente nossas ideias no papel; e a Ulli Marques, pela escuta e pelas preciosas e certeiras
dicas.
A todos os professores e professoras do curso, que compartilharam os conhecimentos que
nos trouxeram até aqui. Dentre eles, agradecemos especialmente a Eduarda Araújo da Silva
Martins, que foi nossa orientadora na primeira etapa da pesquisa até a defesa para a pré-banca,
e a Sarita Erthal, que foi nossa mentora no período entre orientadoras. Sem a dedicação, o
carinho e o norte inicial de vocês, não teríamos conseguido manter o trabalho em andamento
durante esse tempo tão difícil que foi a pandemia.
Por último, mas fundamental: queremos agradecer à nossa sábia orientadora Érica
Luciana de Souza Silva, a admirável mulher e profissional que abraçou e desenvolveu junto
conosco esta pesquisa, sempre apontando os melhores caminhos e nos ensinando a superar os
percalços.
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“A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade”

Conceição Evaristo
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RESUMO

Este trabalho pretende investigar e analisar o processo de apagamento de escritoras do cânone


literário do século XIX, averiguando na história do desenvolvimento da nossa sociedade
contemporânea, desde a colonização pelos portugueses até o atual século, as estruturas sociais
que embasam a manutenção contínua desse apagamento, visto que, mesmo após a realização
nas últimas duas décadas de projetos de resgate de várias dessas escritoras e de recuperação de
parte da historiografia literária brasileira, principalmente pelo árduo trabalho da pesquisadora
Zahidé Lupinacci Muzart e seus colaboradores, ainda não foi oferecido a esses nomes o devido
espaço de reconhecimento pela crítica literária. O objetivo é levantar uma discussão sobre a
importância e a necessidade de dar voz a essas mulheres como uma forma de lutar contra o
sexismo que há séculos afeta profundamente as mulheres e dificulta o exercício do direito à
equivalência de integridade, valor e reconhecimento por suas contribuições, além de propor
uma aula de Literatura que aborda a produção literária de uma autora referente ao período do
Romantismo, para aproximar estas reflexões do cotidiano escolar.

Palavras-chave: Literatura Brasileira. Século XIX. Cânone literário. Feminismo. Zahidé


Muzart.
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ABSTRACT

This study intends to investigate and analyze the process of erasure of 19th century female
writers from the literary canon, ascertaining through the historical development of our
contemporary society, from the Portuguese colonization until the current century, the social
structures that sustain the continuous upkeep of these erasure, given the fact that even after the
implementation, through the last couple decades, of rescue projects from many of these female
writers and the recovering of part of brazilian literary history, mainly because of researcher
Zahidé Lupinacci Muzart and her collaborators’ arduous work, still hasn’t been offered to these
writers the proper recognition space from the literary critics. The main goal is to raise a
discussion about the importance and need of providing a platform to these women, as a way to
fight against sexism, that for centuries has affected women profoundly, hampering the proper
exercise of the right to integrity, value and recognition equivalence for their contributions, in
addition to proposing a Literature class that addresses the literary production of an author
referring to the period of Romanticism, to bring these reflections closer to everyday school life.

Keywords: Brazilian Literature. 19th Century. Literary canon. Feminism. Zahidé Muzart.
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
2 A MULHER NAS LETRAS ............................................................................................... 12
2.1 A mulher personagem......................................................................................................... 17
2.1.1 A mulher virtuosa ............................................................................................................ 21
2.1.2 A mulher imoral .............................................................................................................. 23
2.2 O gênero do cânone ............................................................................................................ 26
3 ZAHIDÉ: A PESQUISA SOBRE UMA PESQUISADORA ........................................... 29
3.1 Editora e editora ................................................................................................................. 32
3.2 As oitocentistas nas escolas ................................................................................................ 36
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 40
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 43
ANEXOS ................................................................................................................................. 47
Anexo I - O plano de aula......................................................................................................... 47
Anexo II – Poemas para a aula ................................................................................................. 50
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1 INTRODUÇÃO

Desde que os corpos desnudos dos índios e das índias tupi escandalizaram os
exploradores recém-chegados das terras além-mar, a então Ilha de Vera Cruz passou a servir
como um dos grandes palcos da dominação europeia sobre os povos das Américas e, com esse
novo modelo cultural, vieram os ideais da Igreja Católica que, além de ser a instituição religiosa
que mais propaga o patriarcalismo, ainda exercia, na época, um poder governante quase tão
soberano quanto o do Estado em grande parte do continente Europeu até fins do século XVIII.
A opressão, a imposição cultural e a escravização de índios e índias e de africanos e africanas
alicerçaram o processo de colonização; e, no caso particular das mulheres, houve ainda um lado
da subjugação que seus conterrâneos não conheceram: a de seus próprios corpos.
Violentamente, Portugal crava sua bandeira, deixando bem claro que o indivíduo dominante é
o homem branco e católico. Isso, no entanto, não era novidade para as senhoras e senhoritas
europeias. Na obra A história das mulheres no Brasil (2018), organizada por Mary Del Priore,
o escritor e historiador Emanuel Araújo, sobre a realidade das mulheres no Brasil colônia,
afirma:

O fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o


homem era superior, e, portanto, cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo,
na Epístola aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a isso: ‘As mulheres estejam
sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da
mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja… Como a Igreja está sujeita a Cristo,
estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos’. De modo que o macho
(marido, pai, irmão etc.) representava Cristo no lar. A mulher estava
condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira
fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade
de gozar da inocência paradisíaca. Já que a mulher partilhava da essência de
Eva, tinha de ser permanentemente controlada.” (ARAÚJO, 2018, p. 45-46).

De colônia portuguesa escravocrata nos primeiros séculos de dominação à República


independente às portas do abolicionismo no século XIX, o país se vê a ritmo de modernização
e urbanização de suas cidades e, embora face a face com esse progresso, ainda segue ecoando
os valores e regras, fundamentalmente machistas, propagados na Europa, sobretudo, pelos
ideais conservadores da Igreja, para a configuração da sociedade. O domínio europeu, por meio
de certas particularidades opressoras, dava seus primeiros passos no Novo Continente.
O tema deste trabalho foi pensado e escolhido por nós enquanto mulheres, universitárias
e profissionais do ramo de Letras, como uma forma de contribuição para a discussão, que ainda
divide opiniões no século vinte e um, sobre a luta pela emancipação feminina em todos os
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âmbitos da vida em sociedade. A realidade de muitas, principalmente no ramo profissional no


Brasil, mesmo que mais disfarçadamente do que há algumas décadas, é negativamente afetada
pela cultura patriarcal e é preciso abrir cada vez mais espaço para que esse problema seja
exposto, debatido e, quem sabe um dia, erradicado.
Na Literatura, a resistência do patriarcado em protagonizar o homem como produtor de
conteúdo se estendeu por muito tempo e, ainda que tenhamos hoje renomadas mulheres
escritoras, a grande maioria delas só teve acesso a esse espaço de reconhecimento a partir do
século XX. Quando estávamos no processo de escolha do tema para o trabalho de conclusão de
curso, sabíamos que a preferência em comum entre nós era tratar de assuntos que abordassem
a falta de representatividade feminina nos livros didáticos. Ao pesquisarmos mais a fundo,
percebemos a total ausência de autoras mulheres nos livros de Literatura referentes ao segundo
ano do Ensino Médio, em que é ensinado o movimento literário do Romantismo. Causou-nos o
mesmo estranhamento que motivou Muzart, décadas antes, a ir atrás desses nomes. Assim,
esbarramos nesse imenso e importantíssimo projeto de resgate liderado por ela e do qual nunca
tínhamos ouvido falar antes, surpreendendo-nos a cada etapa desta pesquisa.
O questionamento levantado é: E antes do século XX, as mulheres não escreviam? Não
publicavam? Por que, ainda hoje, apesar de certas autoras já terem sido resgatadas pela
historiografia, os compêndios literários ainda não dão espaço equivalente às produções cujos
autores são homens para a produção feminina oitocentista? Nosso trabalho quer trazer à luz e
ajudar a ressaltar os nomes e as vozes de algumas dessas mulheres e, principalmente, investigar
por que elas não obtiveram o devido reconhecimento nas décadas posteriores nem na atual, em
que o movimento feminista já conquistara algum espaço significativo na sociedade.
Essas e outras questões serão abordadas, analisadas e discutidas aqui por nós, pois
acreditamos que é de suma importância reavaliar nossa história cultural para que haja cada vez
mais o reconhecimento de figuras femininas que foram invisibilizadas, principalmente no
tocante à produção de cultura, arte e conhecimento, âmbitos de tanto peso para a identidade e
para a história da nação brasileira, por uma mentalidade tradicionalista que outrora fora a voz
mais imponente de todas.
As ideias aqui tratadas estão organizadas em dois capítulos, sendo o primeiro, A mulher
nas letras, uma contextualização histórica sobre a posição das mulheres na sociedade
oitocentista, analisando o papel no núcleo familiar, o acesso precário aos estudos formais, não
deixando de lado o recorte de classe e raça, visto que mulheres brancas, negras e indígenas
tiveram contextos sociais distintos. Ainda no Capítulo 2, serão apresentadas as seções 2.1 e 2.2,
nas quais serão trabalhadas, respectivamente, A mulher personagem e O gênero do cânone. Na
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primeira seção haverá, ainda, uma subdivisão em 2.1.1, A mulher ‘virtuosa’ e 2.1.2, A mulher
‘imoral’, isto é, os dois estereótipos atribuídos às personagens femininas na literatura de autoria
masculina. Enquanto isso, na segunda seção será apresentada a discussão acerca do apagamento
das mulheres como produtoras de bens simbólicos nos registros canônicos da Literatura
Brasileira e como essa exclusão foi realizada com base nos papéis de gênero que inferiorizam
a mulher através dos séculos.
Nossa escolha por estudar sobre Zahidé Lupinacci Muzart, e não sobre uma autora
oitocentista em específico, se deu por compreendermos a grande importância desta
pesquisadora para a Academia e para o meio editorial como uma estudiosa das mulheres de
antes, mas também como escritora que passa por silenciamento, desta vez no século XXI. No
Capítulo 3, intitulado Zahidé: a pesquisa sobre uma pesquisadora, serão concentradas as
reflexões acerca do impacto de seu trabalho e seus esforços. Este Capítulo será dividido em
duas seções: em 3.1, o foco será a Editora Mulheres e Zahidé enquanto editora; já em 3.2, será
apresentada uma proposta de plano de aula, que é a nossa contribuição para o combate ao
silenciamento das autoras oitocentistas, luta que pode servir como incentivo, ainda, a jovens
que pensam em tornar-se escritoras.

2 A MULHER NAS LETRAS

A relação da mulher com as Letras, mais especificamente da mulher como produtora de


literatura, é uma temática que apenas nas últimas décadas vem recebendo o enfoque de
estudiosos da área e ganhando maior espaço no cenário acadêmico. A ausência de autoras nas
coletâneas de crítica e compêndios, especialmente as obras produzidas durante o século XIX,
não era vista com estranhamento, o que não provocava as reflexões que, atualmente, permeiam
as discussões acerca do papel social da mulher. Desta forma, o exercício da intelectualidade,
em quase sua totalidade, era uma função social e artística destinada ao homem escritor, branco
e pertencente às elites brasileiras. A participação feminina resumia-se à posição de leitora
restrita ao espaço privado, ou seja, elas apenas liam o que os homens pensavam e escreviam
sobre as mulheres.
Voltando o olhar para a sala de aula, local onde era oferecido o ensino das letras, nota-
se também essa discriminação com as mulheres 1. No Brasil oitocentista, após a proclamação

1
A presente pesquisa trata de um grupo específico de mulheres, no caso meninas, majoritariamente brancas e
pertencentes às classes mais elevadas da sociedade da época, fato decorrente da escravização, que impossibilitou
o acesso da maior parte das meninas negras ao ensino formal.
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da Independência, havia as chamadas escolas de primeiras letras, que eram divididas por
gênero. A educação oferecida por essas escolas era a mesma para meninos e meninas apenas
nos primeiros anos, quando todos deveriam aprender a ler, a escrever e a realizar as quatro
operações. As doutrinas cristãs também faziam parte deste currículo. Finalizado este ciclo
básico e comum a todos, os percursos educacionais se tornavam distintos e a cada grupo cabia
uma orientação específica: aos meninos eram oferecidos conhecimentos escolares,
especialmente nas áreas de geometria e ciências, e às meninas cabia a formação para a vida
doméstica, com aulas de bordado, costura, culinária, entre outras habilidades voltadas para a
vida familiar. Isto é, o percurso científico e artístico era praticamente impossibilitado às
meninas, enquanto que, para os meninos, a produção técnico-científica-intelectual era destino
certo. De acordo com tal perspectiva, as instituições de ensino superior, o mercado de trabalho
e a atuação política eram campos sociais, exclusivamente, deles. Como resultado dessa
imposição de papéis ainda na juventude, Norma Telles descreve:

Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de


ocuparem cargos públicos, de assegurarem dignamente sua própria
sobrevivência e até mesmo impedidas do acesso à educação superior, as
mulheres do século XIX ficavam trancadas, fechadas dentro de casas ou
sobrados, mocambos e senzalas, construídos por pais, maridos, senhores. Além
disso, estavam enredadas e constritas pelos enredos da arte e ficção masculina.
Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado 2 aprendia a ser tola,
a se adequar a um retrato do qual não era a autora. (TELLES, 2018, p. 408)

Além disso, segundo Maria Amélia Teles (1999, p. 28), o número de escolas para
meninos era muito maior do que para meninas: no Rio de Janeiro, nessa primeira metade do
século, foram registradas 17 escolas primárias para eles e apenas 9 para elas. O registro do
primeiro ingresso de uma mulher no ensino superior brasileiro data de 1881, já quase na virada
do século. Logo, quando se fala em relação de mulheres e letras no país oitocentista, fala-se
também da trajetória percorrida por elas rumo à emancipação, à conquista de direitos e espaços
para além do doméstico, especialmente no que diz respeito à participação ativa nos âmbitos
sociopolíticos e culturais das comunidades em que viviam; e essa trajetória não ocorreu sem
obstáculos. No período referido, a elite brasileira se encontrava no processo de formação de
uma identidade nacional e tomava para si o modelo europeizado de civilização, marcadamente
branco, católico e masculino 3. Rita Terezinha Schmidt, sobre isso, afirma:

O nacional, enquanto espaço das projeções imaginárias de uma comunidade


que buscava afirmar sua autonomia e soberania em relação à metrópole,

2
O texto citado foi publicado em 1997, sendo assim o "século passado" ao qual se refere é o século XIX.
3
Este assunto será abordado na próxima seção.
14

constituiu-se como um domínio masculino, de forma explícita e excludente.


As figuras do pensador, do crítico e do escritor definiam o lugar de sujeito que
fala em nome da cultura e da cidadania [...] (SCHMIDT, 2019, p. 65)

Pensar em uma mulher ocupando um cargo público, por exemplo, seria transgredir essa
matriz ideológica, sendo considerado, portanto, um cenário socialmente inaceitável. Júlia Lopes
de Almeida, escritora de grande destaque e sucesso editorial do final do século XIX, foi a
primeira a alcançar amplo reconhecimento público e autonomia financeira pela venda de seus
livros, que abrangem diversos gêneros literários, entre contos, crônicas, poesias, ensaios,
romances e peças teatrais. Participou ativamente do cenário artístico e literário carioca, junto
com seu marido, o também escritor Filinto de Almeida, sendo considerada “a ‘primeira dama’
da Belle Époque brasileira” (SHARPE, 2004, p. 188). Michelle Asmar Fanini (2009) relata que
ela se dividia num “equilíbrio tenso” entre os papéis de esposa, mãe e escritora, e que foi peça
fundamental na criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897. Também chegou a
receber indicação a uma Cadeira, porém não recebeu apoio suficiente da maior parte dos
“homens de letras”:

a aceitação da indicação do nome de Júlia Lopes sugeriria acolher na


agremiação uma mulher, algo inesperado e indesejável, já que, sobre o
“segundo sexo” pesava o fardo de ser “essencialmente inferior” ao homem.
Não se tratava, pois, de uma decisão completamente injustificada, posto que
este período assiste à profusão de um sem-número de teorias e discursos,
muitos deles nas ideias positivistas e no determinismo biológico, cuja tônica
recaía sobre a vinculação dos papéis femininos a um conjunto de estereótipos
[...] (FANINI, 2009, p. 325)

Impedida por causa de seu sexo, a escritora perde a Cadeira para o marido. Júlia Lopes
de Almeida foi um dos grandes nomes da Literatura Brasileira dos séculos XIX e XX e, no
entanto, os principais manuais e compêndios de história da literatura nacional sequer
registraram seu nome em notas de rodapé. Desta maneira, o silenciamento da autoria feminina
na literatura do passado é uma forma de manutenção da dominância masculina nesse espaço e
também do pensamento de que o único campo de atuação válido para a mulher é o da
administração do lar, do casamento e da prole. Em suma: falar de mulher nas letras é também
falar de feminismo.
Entre meados do século XVIII e a segunda metade do século XIX, nos Estados Unidos
e na Europa, mais especificamente França e Inglaterra, as mulheres começaram a se levantar
contra as condições de opressão impostas por seus respectivos governos, e esse movimento
ecoou nas mulheres latinas. De acordo com Maria Amélia Teles (1999, p. 36), elas começaram
a se organizar em clubes para discutir questões sociopolíticas e direitos das mulheres, fundaram
15

revistas e jornais (como os famosos franceses A Opinião das Mulheres e Tribuna das Mulheres)
para o público feminino onde escreviam e publicavam suas ideias. Elas exigiam igualdade
política e civil entre os sexos, o que incluía maior acesso à educação formal, direitos sindicais,
direito ao divórcio e ao voto. Este período correspondeu ao que ficou conhecido como a
primeira onda do feminismo no mundo. Nomes como o da britânica Mary Wollstonecraft, que
publicou um dos primeiros tratados feministas, intitulado Vindications of the Rights of Woman 4
(1792), e o da francesa Olympe de Gouges, com os famosos artigos da Declaração dos Direitos
da Mulher e da Cidadã (1791), foram considerados precursores do movimento na Europa.
No Brasil, as pouquíssimas pessoas que tinham contato com educação estrangeira na
primeira metade do século XIX, que eram os filhos da “elite” burguesa, foram as responsáveis
por trazer os ideais vigentes nos países do hemisfério norte a seus conterrâneos. Ainda sobre
este cenário, Constância Lima Duarte (2000, p. 177) destaca como grande precursora do
feminismo a professora e escritora Nísia Floresta. Depois de muitas viagens por terras
estrangeiras, como França e Itália, em 1832, Floresta publica em Recife seu primeiro livro,
intitulado Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), um apanhado de ideias
traduzidas de autoras feministas europeias, como as duas citadas no parágrafo anterior,
absorvidas e aplicadas à situação das mulheres de seu país. Nele, ela defende a necessidade de
conceder às mulheres pleno direito à instrução e ao trabalho, afirmando que depende disto o
progresso da sociedade, e critica o interesse dos homens em mantê-las em situação de exclusão,
dependência e submissão.
Além disso, foi uma das primeiras mulheres a ter nome ativo na grande imprensa e, em
1838, ela fundou, no Rio de Janeiro, um colégio para meninas com um currículo inovador para
sua época, como o ensino de línguas estrangeiras em detrimento do de habilidades manuais
voltados para o ambiente doméstico. Foi muito elogiada pelos cariocas pela qualidade do ensino
oferecido a essas meninas, porém, também duramente criticada pela “audácia” de romper com
os padrões vigentes (DUARTE, 2000, p. 175), caindo posteriormente no esquecimento da
história do Brasil. Nísia Floresta vem sendo, há apenas poucas décadas, trazida a público, com
suas obras sendo resgatadas, reeditadas e republicadas, e recebendo o reconhecimento da
Academia pelos seus feitos pelas mulheres brasileiras.
Apenas a partir do fim da década de 60, com a chamada segunda onda do movimento
feminista, é que foi fortemente trazida à consciência a importância do olhar atento das mais
diversas áreas de estudo à questão da condição feminina, não mais apenas como uma minoria,

4
Tradução livre: Reivindicação dos Direitos da Mulher.
16

desviante da regra que é a masculina. Os estudos sobre mulher aqui considerados são
concordantes com os critérios escolhidos por Albertina de Oliveira Costa, Carmen Barroso e
Cynthia Sarti no artigo Pesquisa sobre mulher no Brasil: do limbo ao gueto? (2019), que são
os que carregam uma intenção crítica em relação à (pouca) produção que ocorria anteriormente:

Os estudos sobre mulher, críticos da produção anterior e de suas explicações


naturalizantes sobre as desigualdades entre os sexos, e que se inserem em uma
perspectiva de mudança do status quo, pelo menos do status quo científico,
constituem o núcleo central daquilo que consideramos o novo recorte
temático. (COSTA, BARROSO, SARTI, 2019, p. 111)

Desta forma, durante a segunda onda, especialmente ao longo da década de 70, em que
as mulheres invadem as universidades e inserem temas no campo de pesquisa que falam de si,
de suas próprias histórias e das de suas antepassadas, permitindo a investigação e compreensão
da origem de suas crenças e valores e o reconhecimento de práticas sociais opressivas a elas
(RAGO, 2019, p. 382), houve uma forte emergência na historiografia brasileira de novos temas
e objetos de estudo que reconheciam, finalmente, as mulheres como agentes históricos.
Como consequência, no Brasil, a empreitada de dar voz àquelas que foram colocadas à
margem da história da Literatura, interferindo na estrutura há muito engessada do cânone, ganha
força com o trabalho de pesquisadores e pesquisadoras que atuam como verdadeiras
arqueólogas, resgatando nomes e obras que não receberam o devido valor da crítica de sua
época. Dentre alguns nomes, um de grande destaque – e impulsionador deste trabalho – é o da
professora, editora e crítica feminista Zahidé Lupinacci Muzart 5, que desde 1991 até o ano de
sua morte, 2015, atuou como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) em seu projeto de resgate de escritoras brasileiras do século XIX, ligado
à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Muzart trabalhou como professora nas áreas de Literatura Brasileira e Teoria Literária
na UFSC entre os anos de 1976 e 1993, quando se aposentou. Apesar disso, ela mesma conta,
levou o projeto a frente por mais de uma década e, dele, nasce a ideia de se criar uma editora.
Fundada em 1995, juntamente com outra grande pesquisadora na área de Literatura,
Feminismo e Estudos de gênero, Susana Funck, e com a professora Elvira Sponholz 6, a Editora
Mulheres estreia com a edição e republicação da obra “Mulheres illustres do Brazil” (1899), de

5
Conforme descrito na Introdução, as reflexões acerca da autora e de seu legado serão desdobradas no capítulo
III.
6
Susana Funck e Elvira Sponholz são duas professoras aposentadas pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Ambas atuaram ativamente como pesquisadoras em Literaturas e Estudos de gênero na mesma universidade; ao
que se sabe, Funck atuou até o ano de 2014.
17

Ignez Sabino, que reúne diversas escritoras de sua época com fotos e biografias. Zahidé conta
ainda que a inspiração para o propósito desta editora veio principalmente da primeira editora
feminista francesa, a Des Femmes, criada em 1973 por Antoinette Fouque, cinco anos após a
fundação do Mouvement de Libération des Femmes (MLF), que foi um dos maiores marcos do
movimento feminista na Europa.
Além de republicar obras de autoras do passado e difundir pesquisas na área de estudos
de gênero, a Editora Mulheres também assina outro grande fruto de todo esse projeto de resgate
de Zahidé: a importantíssima antologia, composta por três volumes, Escritoras brasileiras do
século XIX (1999), que é o somatório do trabalho integrado por diversas pesquisadoras lideradas
por Muzart e que trouxe de volta a público mais de cem escritoras oitocentistas, suas vidas e
obras. Nomes como Júlia Lopes de Almeida e Maria Firmina dos Reis 7, que, graças a esses
esforços, estão aos poucos sendo reinseridos na historiografia, vêm para recontar o século do
Romantismo brasileiro.
Após todo esse tempo, há ainda muitos esforços para revisitar esse passado literário
que fora contado apenas pela classe dominante essencialmente masculina e questionar a forma
como ele vem sendo ensinado nas salas de aula – tanto do ensino básico quanto do ensino
superior, especialmente nas licenciaturas. Há redescobertas de narrativas, fatos, nomes; novas
histórias, reinterpretações, republicações de obras que estavam há muito perdidas. Tirar as
mulheres do lugar de sombra que lhes foi por tanto tempo imposto e lhes dar o lugar de destaque
na historiografia literária que lhes é devido é essencial e extremamente enriquecedor para a
memória cultural da nação. Nas palavras da própria Zahidé (1995): “A mulher, no século XIX,
só entrou para a História da Literatura como objeto. É importante, para reverter o cânone
literário, mostrar o que aconteceu quando o objeto começou a falar”.

2.1 A mulher personagem

O mundo ocidental vivia, durante o século XIX, o período de maior abrangência do


imperialismo europeu. Durante seu processo de expansão nos séculos anteriores, países como
Inglaterra, França, Portugal e Espanha se arriscaram no além-mar em busca de colonizar novas
terras, enraizando sua cultura em diversos povos através de dominação e colonização. Eles
massacraram esses povos, tentando modificar aqueles que se diferiam, na tentativa de fazer de

7
Maria Firmina dos Reis é hoje considerada por muitos estudiosos a primeira romancista brasileira. Sendo uma
das escritoras mais importantes do século XIX, ela quebrou os paradigmas de sua época, sendo uma mulher negra
numa sociedade escravocrata que escreveu e, em 1859, publicou o romance “Úrsula”.
18

outros à sua imagem e semelhança, dobrados ao seu ideal civilizatório que consideravam ser
superior.
Considerando isto, ao investigar o contexto histórico em que as brasileiras viviam dois
séculos atrás e os fatores que levaram ao processo de apagamento das que ousaram produzir
literatura neste período, depara-se com uma sociedade que, mesmo após proclamar sua
independência em 1822 e se tornar uma nação “livre”, ainda era profundamente afetada pelas
designações culturais da metrópole – afinal, o poder ainda estava nas mãos da Família Real,
que residia em terras nacionais desde 1808 e comandou o Brasil império durante boa parte do
século XIX. Além disso, atrás dela, de seus empregos e de suas famílias, ainda desembarcaram
outros milhares de portugueses (ALENCASTRO, 1997, p. 12).
Sendo assim, quando o Brasil pós-colonial começa a dar os primeiros passos no
processo de modernização de sua sociedade e na busca por uma identidade própria, ainda se
seguia os modelos e os ideais europeus, importados e aplicados pela elite letrada, funcionários
da corte e da Igreja. Segundo Norma Telles, era uma influência que acontecia da maior para a
menor escala: “das grandes teorias científicas ou filosóficas ao modo de se portar em
determinado ambiente, como cuidar do corpo ou se dirigir ao outro” (TELLES, 2018, p. 401).
O rosto que se queria dar à sociedade brasileira diante do mundo era antes o do colonizador e,
depois, o do “colono europeizado, herdeiro dos seus valores e candidato à sua posição de
domínio” (CANDIDO, 1989, p. 164), mantendo, portanto, os aspectos que caracterizam o
sujeito dominante na hierarquia social 8: gênero masculino, raça caucasiana e de religião
católica.
O objetivo deste trabalho é focar na hierarquização do gênero masculino em detrimento
do feminino na produção da historiografia literária do país, mas é imprescindível destacar que,
no Brasil, outro elemento trazido da cultura europeia e que se tornou a base da economia
brasileira foi o regime escravista, que perdurou do século XVI até o fim do XIX. Insere-se,
portanto, nessa hierarquia, os grupos étnicos dominados e escravizados pelo homem branco, o
qual acreditava ser superior a todos os demais: primeiramente, os indígenas nativos. Depois,
perante o visível fracasso de dominação dos povos autóctones brasileiros, a sociedade colonial
brasileira lança-se à escravização de homens e mulheres africanas. Logo, a mulher branca

8
O conceito aqui utilizado segue a linha de pensamento do sociólogo Max Weber, observado pelo professor e
doutor em sociologia contemporâneo Márcio Mucedula Aguiar, em comparação com o conceito apresentado por
Karl Marx: “Observamos que para Marx, a classe era um conceito objetivo decorrente da esfera produtiva. Max
Weber amplia o debate, na medida em que separa na sua teoria as dimensões econômicas, políticas e sociais da
distribuição do poder na sociedade” (AGUIAR, 2007, p. 84).
19

oitocentista está em posição de privilégio social 9 em relação à mulher negra escravizada da


mesma época – uma situação que ainda ecoa na contemporaneidade. É válido ressaltar ainda
que, para a sociedade oitocentista, a ideia de tal hierarquia nem era considerada porque a figura
da mulher negra escravizada era totalmente esvaziada enquanto ser humano. Elas não eram
consideradas sob nenhum aspecto, exceto como fonte de prazer de seus donos e geradoras de
mais mão de obra escrava.
Ainda no decorrer do século XIX, o país, assim como boa parte do mundo ocidental
neste período, passa por profundas transformações sociais com a consolidação do capitalismo,
o início do processo de urbanização dos principais centros urbanos, como Salvador (BA) e Rio
de Janeiro (RJ), e a ascensão da burguesia. A implementação dos considerados novos e
“modernos” 10 valores europeus vigentes numa sociedade que ainda vivia baseada em sistema
de escravidão e de exploração agrária – que, por sua vez, ecoara o estilo de vida da aristocracia
portuguesa – não fora um processo simples e rápido. A ideia de uma sociedade modernizada
batia de frente com o uso de mão de obra escrava, sistema considerado cada vez mais retrógrado
e mal visto na Europa, mas a elite brasileira não abriu mão dele tão facilmente. Em vez de
extingui-lo, o império, atendendo os interesses dos grandes fazendeiros, foi cedendo muito
lentamente às pressões da Inglaterra, país com o qual tinha importantes acordos comerciais e
era extremamente contra o sistema escravista 11, enquanto a elite transacionava o sistema para a
ilegalidade. Por fim, o tráfico continuou acontecendo mesmo após a lei que decretava a sua
abolição em 1850 e o capitalismo no Brasil se construiu em cima do enriquecimento das grandes
fazendas escravocratas de cana e café.
Mais para o fim do século, com a modernização das cidades e com a cristalização do
estilo de vida burguês, vieram novas formas de comportamentos e relações sociais que
causaram grande impacto na vida pública e privada da ex-colônia. A exploração dos povos
negros continuava, mas agora havia um novo verniz de “civilidade”. O novo ideal, o cidadão

9
É necessário frisar que o privilégio referido diz respeito ao falso poder que estas mulheres burguesas, as sinhás,
possuíam, que era limitado ao ambiente familiar. A estas mulheres era permitida a dominação das mulheres
escravizadas e somente enquanto fosse do interesse dos homens, que poderiam revogar tal poder quando bem
entendessem.
10
A concepção de modernidade é tomada como novos e refinados hábitos adotados pela aristocracia europeia e
que chegavam em terras brasileiras com economia essencialmente agrária. Sendo assim, tudo isso se apresentava
por aqui como avanços modernos advindos do Velho Mundo.
11
É importante destacar, ainda, que o posicionamento da Inglaterra contra o sistema de escravização se dá por
motivos meramente econômicos. Inglaterra era um grande produtor industrial, especialmente de tecidos. Pessoas
escravizadas produzem, mas não possuem renda. Sendo assim, é um mercado em potencial, mas totalmente
desprovido de recursos para adquirirem os produtos ingleses. Para resolver tal impasse, a Inglaterra se posicionou
contra a escravidão, proibindo e dificultando o tráfego negreiro. A questão posta é que tal posicionamento não é
fruto de consciência crítica ou social, mas adequação de um determinado contexto aos interesses econômicos
ingleses.
20

burguês, deveria ser “civilizado”, como nos padrões europeus e, principalmente, franceses.
Faziam parte desse grupo os capitalistas: banqueiros, comerciantes, proprietários de indústria,
grandes latifundiários, entre outros. Eram os que detinham os bens de produção e os bens de
capital.
Com esta nova configuração social, surge também um novo ideal de mulher esposa e
mãe burguesa – não apenas avaliado entre as famílias, como ocorria anteriormente quando a
mulher ocupava apenas o lugar doméstico, mas agora também pela sociedade nos ambientes
nos quais passam a conviver os conterrâneos: saraus, bailes, teatros, cafés e outros eventos
sociais; tendo de aprender regras sobre como se comportar em público e de maneira educada
(D’INCAO, 2018, p. 228). Ela devia ser recatada, mas ter alguns dotes que a enfeitassem
socialmente, como saber tocar piano, falar francês e ler romances.
Na obra O primo Basílio (1878), de Eça de Queirós, publicada originalmente em 1878,
o autor faz uma crítica ao ideal burguês de sua época e à ideia de “refinamento” que as mulheres
deveriam ter. Logo nas primeiras páginas do romance, ele faz uma descrição da personagem
Luísa como a mulher ideal do período do Romantismo e, ainda que em forma de crítica, o trecho
torna possível ao leitor a noção dessa “mulher enfeite de sala” moldada como exemplo para as
concepções burguesas.

Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito
simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como
uma passarinha amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho
louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério. — É um anjinho cheio
de dignidade! — dizia então Sebastião... (QUEIRÓS, 2002, p. 5-6)

Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa


banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer!
Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música!
Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno,
branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas:
— em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a
jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera... (QUEIRÓS, 2002, p.
8)

Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades


daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo nas vésperas
do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se
prolongavam em tão suaves preguiças! (QUEIRÓS, 2002, p. 4)

Além disso, passa a ser considerada de total responsabilidade desta mulher a criação
dos filhos, que antes eram cuidados pelas “amas”, juntamente com a responsabilidade pelo
prestígio social de toda a família. Sobre isto, Maria Ângela D’Incao ainda afirma que, embora
21

a autoridade ainda estivesse nas mãos do homem, ele estava sempre rodeado de mulheres (mães,
esposas, tias) que cuidavam de sua imagem pública.
Sendo assim, agora era esperado por toda a sociedade um certo tipo de comportamento
e comprometimento da mulher burguesa para com seu papel de mulher educada, boa esposa e
mãe. A Literatura, neste cenário de muita valorização das artes, vem como uma potente
ferramenta de cristalização desse novo ideal. Isso porque, assim como ela funciona como uma
expressão da “alma” de sua época, servindo inclusive como um registro histórico para a
posteridade, ela também pode ser utilizada como uma forma de reforçar costumes dessa época
ao influenciar o imaginário de quem a consome. No Brasil, ela teve grande atuação no processo
de imposição de padrões culturais (CANDIDO, 1989, p. 171) bem como de expressão da cultura
dominante. Nesse sentido, a Literatura tanto representa quanto reforça o ideal da figura mulher
burguesa oitocentista e a desumanização da figura da mulher negra escravizada, sendo ambas,
em diferentes níveis, sistematicamente silenciadas pelos valores discriminatórios de sua época.
Nas subseções, abordaremos essas duas realidades femininas na ficção literária.

2.1.1 A mulher virtuosa

Em meados do século XIX, durante a segunda fase do Romantismo, ocorre uma forte
expressão de sentimentalismo, de exaltação ao amor romântico e ao objeto desse amor, a
mulher, nas obras literárias. Esta última era descrita muitas vezes “de uma forma idealizada,
pura e angelical, segundo a concepção platônica da mera contemplação, distante do contato
corporal – um ser diáfano, imaginário e imaterial” (OLIVA, 2017, p. 97) 12. Essa idealização,
carregada de uma religiosidade lusófona, demonstra o arquétipo da mulher que é digna do amor
na concepção do homem escritor oitocentista. Neste período, a Província do Rio de Janeiro
torna-se o centro cultural do Brasil graças à presença da corte europeia e “seu protocolo, os seus
concertos e festas, o exemplo de maneiras refinadas dado pela nobreza, diplomatas, altos
funcionários” (CANDIDO, 2002, p. 11), e era principalmente lá que os escritores absorviam
essa cultura e passaram a imprimi-la em suas obras. Além disso, havia os que possuíam poder
aquisitivo (os filhos da elite) para estudar no exterior, geralmente em países como Portugal,
França e Inglaterra, e também importavam para a literatura brasileira os costumes-modelo
europeus.

12
A existência de um certo nível de erotismo faz parte também das características dos textos literários produzidos
durante o Romantismo brasileiro. Vale destacar, entretanto, que era apenas uma ideia, ou seja, este erotismo nunca
se concretiza, porque a mulher era idealizada e vista como pura e intocável.
22

A pele alva, a forma europeizada de se vestir e de se portar, discreta e contida, e a


“pureza” (virgindade) dessa mulher eram elementos que compunham o padrão a ser alcançado
por todas que queriam realizar sua única função social: casar-se. A mulher burguesa ideal era
narrada por homens que visavam ao seu domínio, por isso geralmente eram representadas como
figuras passivas, sem voz ativa, inocentes, “adormecidas”.
A exemplo disto, cita-se alguns trechos de poemas reunidos no livro Lira dos vinte anos
(1853) de um dos grandes nomes da segunda fase do Romantismo, o poeta Álvares de Azevedo:

Na praia deserta que a lua branqueia, /Que mimo! que rosa! que filha de Deus!
/Tão pálida... ao vê-la meu ser devaneia, /Sufoco nos lábios os hálitos meus!
/Não corras na areia, /Não corras assim! /Donzela, onde vais? /Tem pena de
mim! (AZEVEDO, 1996, p. 3);

Por que, pálida inocência, /Os olhos teus em dormência /A medo lanças em
mim? / [...] Quem te amasse! e um momento /Respirando o teu alento
/Recendesse os lábios seus! /Quem lera, divina e bela, /Teu romance de
donzela /Cheio de amor e de Deus! (AZEVEDO, 1996, p. 24);

Pálida, a luz da lâmpada sombria, /Sobre o leito de flores reclinada, /Como a


lua por noite embalsamada, /Entre as nuvens do amor ela dormia! /Era a
virgem do mar! na escuma fria /Pela maré das águas embalada... /— Era um
anjo entre nuvens d’alvorada (AZEVEDO, 1996, p. 24).

Na prosa, além da exaltação dessa mulher pálida e virginal, havia também os “alertas”
para as que fugissem do ideal cristão e patriarcalmente controlável. Em Lucíola (1862), de José
de Alencar, a protagonista Lúcia é uma prostituta que se apaixona por Paulo, um rapaz do
interior que recém chegara à capital a fim de conhecer a Corte. No romance, há uma dualidade
simbólica cristã entre o bem e o mal: a Lúcia prostituta está para Lúcifer, o anjo caído, e a Maria
da Glória, seu verdadeiro nome – o qual volta ao usar quando é tomada por esposa por Paulo,
está para Virgem Maria, mãe de Jesus (OSTERNE, 2004, p. 83), a mais sagrada e virtuosa
figura de mulher para a religião católica. Sobre a mensagem passada na obra aos leitores,
principalmente às leitoras, Higor Cavalcante e Valdeci Batista de Melo Oliveira afirmam:

[...] os exemplos vêm temperados de comentários pedagógicos para a


educação das mulheres, comentários postos na fala da própria protagonista,
que avisa sobre riscos que uma mulher enfrenta fora da proteção patriarcal.
[...] A personagem é plasmada, desde o começo do romance, dentro da lógica
pastoral do arrependimento e do sofrimento físico e psíquico impostos à
mulher pecadora. Tal qual Maria Madalena, Lúcia/Lúcifer será redimida pelo
amor que sente por Paulo, ainda que as dores e a febre do aborto retido sejam
penitências para a sua caminhada rumo à redenção pela morte.
(CAVALCANTE, OLIVEIRA, 2019, p. 21)
23

A personagem, que vive uma vida de luxúria e carrega em si um sistema de


características socialmente condenáveis, é “salva” pelo amor de um homem e pelo casamento,
mas ainda paga pelos seus pecados ao fim do romance através da morte. Sendo assim, a mulher
ideal deve seguir os parâmetros católicos, ela deve se espelhar na sublimidade da figura de
Maria mãe de Jesus, inclusive no que diz respeito à (não) expressão da sexualidade fora da
esfera de dominância de um marido.

2.1.2 A mulher imoral

É possível observar referências sobre o negro nos textos de Gregório de Matos, no


século XVII, como nos versos do poema satírico “Epílogo”. Contudo, ele era tratado como
temática despersonalizada, apenas um meio de mencionar de forma distante a vivência da
escravidão; um objeto no cenário dos senhores. Foi apenas a partir do século XIX que a presença
da pessoa negra se tornou mais significativa nas obras literárias como personagem, porém sob
o olhar estigmatizado e estereotipado do escritor branco. Na terceira fase do Romantismo
brasileiro, o negro é retratado como o “pobre coitado”, necessitado de proteção contra os males
e a violência da escravidão. Neste cenário, pouco ou quase nada sobre a mulher negra, exceto
o verso “Negras mulheres suspendendo às tetas/ magras crianças, cujas brancas pretas/ rega o
sangue das mães” (ALVES, 2007, p. 13).
Domício Proença Filho, no artigo “A trajetória do negro na Literatura Brasileira”
(2004), categoriza quatro principais estereótipos da pessoa negra presentes na literatura de
autoria branca: o escravo nobre, o fiel e submisso, “que vence por força de seu branqueamento,
embora a custo de muito sacrifício e humilhação” (p. 162), como a protagonista da obra
“Escrava Isaura” (1872), de Bernardo Guimarães; o negro vítima, idealizado sob pretexto de
exaltar a liberdade e defender a causa abolicionista, como nos versos de “Navio Negreiro”
(1870), de Castro Alves; o negro infantilizado, que é o serviçal e subalterno, tratado como
incapaz, animalizado, como o personagem Bartoleza, de “O cortiço” (1900), de Aluísio de
Azevedo.
O último estereótipo, e o que se quer destacar nessa subseção por ser sempre muito
associado à figura da mulher negra, é o do negro pervertido. Também extremamente
animalizado, ele é a figura que foi erotizada, hiper sensualizada, transformada em objeto sexual,
como a personagem Rita Baiana, também de “O cortiço”.
Fora da ficção, a mulher negra escravizada era propriedade de seu senhor, que, além de
explorar desumanamente a força de trabalho dela, ainda a violentava sexualmente, prática
24

normalizada na época. Era comum também o destrato, e até violência física, por parte da
senhora burguesa, por “ciúmes” de seu marido. A mulher negra como personagem na Literatura
era comumente retratada como esse animal sensual, mais atraente que a mulher branca,
irresistível e que seduzia os homens. Dessa forma, há uma inversão de papéis e o homem é
posto no lugar de objeto da sedução (GIACOMINI, 1988, p.66), responsabilizando a mulher
negra pela prática do estupro. Aos olhos da sociedade burguesa, ela era impura, imoral,
portanto, desprezível.
Na ficção oitocentista, a narrativa “Lucinda, a mucama”, presente na obra As vítimas
algozes (1869) 13, de Joaquim Manuel de Macedo, é um excelente exemplo desse tipo de
representação estereotipada da mulher negra. Na obra, a moça burguesa, Cândida, recebe de
presente pelo seu décimo primeiro aniversário a jovem escrava Lucinda, depois da perda de sua
antiga ama cuidadora Joana, que se casara. O narrador, ao apresentar a personagem Lucinda, já
a compara de forma pejorativa com Joana, que era descrita como “a companhia inapreciável”,
de “serviço dedicado de uma boa senhora, mulher pobre, mas livre e de sãos costumes”,
“agradável” e “sempre fora honesta”, era também “segunda mãe”, “criada amiga” e “nobre”
(MACEDO, 2010, p. 144). Em seguida, descreve Lucinda:

E em substituição da companheira livre, amiga, e devotada, recebeu alegre a


crioula quase de sua idade, a mulher escrava, uma filha da mãe fera, uma
vítima da opressão social, uma onda envenenada desse oceano de vícios
obrigados, de perversão lógica, de imoralidade congênita, de influência
corruptora e falaz, desse monstro desumanizador de criaturas humanas, que se
chama escravidão. (MACEDO, 2010, p. 144)

Em comparação com a descrição da própria Cândida, cujas características exaltadas pelo


narrador fazem alusão à ingenuidade, cor e pureza, a descrição de Lucinda, para além das boas
habilidades domésticas, fazem alusão aos seus atributos físicos, à sua sensualidade e à
imoralidade (produtos do tal “monstro desumanizador”). Além disso, o narrador também afirma
que a convivência da menina branca com a menina negra inevitavelmente irá corromper e
“manchar” a primeira:

Lucinda era aos doze anos de idade uma crioula quase mulher, tendo tomado
as formas que se modificam ao chegar à puberdade: um pouco magra, de
estatura regular, ligeira de movimentos, [...] (MACEDO, 2010, p. 150);

A escrava abandonada aos desprezos da escravidão, crescendo no meio da


prática dos vícios mais escandalosos e repugnantes, desde a infância, desde a

13
As citações elencadas neste trabalho foram retiradas da edição de 2010.
25

primeira infância testemunhando torpezas de luxúria, e ouvindo eloquência


lodosa da palavra sem freio, fica pervertida muito antes de ter consciência de
sua perversão, e não pode mais viver sem violenta imposição fora da atmosfera
empestada de semelhantes costumes, e das suas ideias sensuais; a mucama,
pois, colocada ao pé da menina inocente, inexperiente e curiosa, leva-a,
arrasta-a tanto quanto lhe é possível, para a conversação que mais a encanta,
para as ideias e os quadros do seu sensualismo brutal./Além disso a mucama
escrava, que é sempre escolhida entre as mais inteligentes, compara-se com a
senhora, e tendo muitas vezes presunção de excedê-la em dotes físicos, tem
inveja da sua pureza e procura manchá-la para que ela não tenha essa auréola
que nunca sentiu em si. (MACEDO, 2010, p. 160-161)

Desta forma, quando se analisa a representação da mulher negra na literatura


oitocentista consagrada, o que se percebe é a desumanização desta figura ainda menina. Isto
serviu para reforçar os estigmas raciais já muito massacrantes no Brasil, tanto no século XIX,
durante o período escravista, como na contemporaneidade. Entretanto, em uma busca mais
minuciosa na Literatura romântica, encontram-se raras exceções, como é o caso da escritora
Maria Firmina dos Reis – uma das oitocentistas resgatadas por Muzart. A maranhense, autora
de obras como Úrsula (1859) 14 e A escrava (1887), quebra a regra ao dar voz ativa aos seus
personagens negros, preocupando-se genuinamente com a situação de violência, subalternidade
e desumanização sob a qual a população negra vivia.
Em Úrsula (2021), a personagem Susana questiona a condição de liberto de Túlio,
personagem negro que se torna a companhia inseparável de Tancredo, o homem branco que lhe
comprou a alforria, pelo sentimento de dívida pela liberdade concedida. Na ocasião, Túlio está
partindo de casa para acompanhar Tancredo em uma viagem:

— [...] Que adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o


encontrarás melhor? Olha, chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma
palavra para defender-te. — Oh, quanto a isso não, mãe Susana — tornou
Túlio. — [...] Não troco cativeiro por cativeiro, oh não! Troco escravidão por
liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe Susana, se deve ter limites a minha
gratidão: veja se devo, ou não, acompanhá-lo, se devo ou não provar-lhe até a
morte o meu reconhecimento! — Tu! Tu, livre? Ah, não me iludas! —
exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. — Meu filho, tu és já
livre?... (REIS, 2021, p. 132-134)

Além disso, Maria Firmina dos Reis dedica todo este capítulo à narrativa da personagem
Susana, que conta sua trajetória de sofrimento por ter sido arrancada de sua terra natal, obrigada
a abandonar sua família e sofrido os horrores no navio negreiro. A autora confere-lhe uma
identidade cultural de forma extremamente sensível:

14
As citações elencadas neste trabalho foram retiradas da edição de 2021.
26

— Sim, para que estas lágrimas?... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus;
mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto
me foi caro! Liberdade! Liberdade... Ali eu a gozei na minha mocidade! —
continuou Susana com amargura. [...] Mais tarde deram-me em matrimônio a
um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união
veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o
amor da minha alma. Uma filha que era minha vida, [...] Tudo me obrigaram
os bárbaros a deixar! Oh, tudo, tudo até a própria liberdade! — Estava
extenuada de aflição, a dor era-lhe viva, e assoberbava-lhe o coração. (REIS,
2021, p. 135)

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de


cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis
tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida
passamos nessa sepultura, até que abordamos às praias brasileiras. Para caber
a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e, para que não
houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas
matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa: davam-nos a água
imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca;
vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e
de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes
assim, e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e
famintos! (REIS, 2021, p. 138, 140)

A obra é considerada o primeiro romance abolicionista e um dos primeiros publicados


por uma mulher no Brasil; no entanto, “por ter sido editado na periferia, longe da Corte, e por
ser de uma mulher e negra” (MUZART, 2000, p. 266) não teve a merecida repercussão. Desta
forma, a narrativa mais respeitada e, portanto, a mais difundida que trata de personagem mulher
negra era a que estava subjugada ao olhar desumanizador do narrador homem branco.

2.2 O gênero do cânone

A história do mundo vem sendo contada pelo ponto de vista masculino desde o início
dos registros ocidentais, o que a tornou parcial e fez com que as mulheres fossem relegadas ao
lugar de espectadoras da história e dos feitos dos homens. Segundo a escritora e filósofa Simone
de Beauvoir, “a representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles
o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta.”
(BEAUVOIR, 2009, p. 183). Dessa forma, o que se conhece como verdade sobre a história do
mundo é a verdade singular dos homens pertencentes a uma determinada elite social registrada
formalmente, como uma documentação das culturas, constituindo o que se conhece hoje como
historiografia.
Na historiografia literária, o cânone é a assinatura que valida concretamente essa
verdade para a posteridade. Ele é a lista oficial das obras clássicas, “valiosas”, “universais”,
27

“merecedoras de prestígio acadêmico permanente e de imprescindível imitação” (BONNICI,


2011, p.105). De acordo com a perspectiva ocidental, é o cânone que sela os “imortais” de cada
tempo e geração, com suas próprias representações e pontos de vista. No que diz respeito à
Literatura Brasileira, apenas na lista do período correspondente a meados do século XX que
algumas poucas mulheres começam a ser inseridas nela, como Rachel de Queiroz e Cecília
Meireles – isso sem mencionar os outros grupos considerados minoritários, como pessoas de
outras etnias, religiões e/ou orientação sexual, ou seja, todos que fogem ao molde considerado
padrão. Até então, desde o Quinhentismo, só autores masculinos, brancos e de origem judaico-
cristã ganhavam esse prestígio.
Os críticos mais conservadores da área de Teoria Literária, como o americano Harold
Bloom, um dos mais renomados da atualidade, defendem um sistema de critérios puristas para
atribuição de valor às obras; critérios que considerem apenas os elementos textuais e estéticos
presentes nas obras literárias, ignorando fatores que permeiam a obra e o artista, como o
contexto histórico e social. Desta forma, para Bloom, o cânone literário deve ser “impermeável
a qualquer efeito material da história social, política, econômica e cultural” (BONNICI, 2011,
p. 111). Dito isso, o cânone deveria ser composto, então, por obras esteticamente memoráveis,
entretanto neutras no que diz respeito à realidade material de seus autores e épocas.
Numa movimentação contrária a isso, grandes pesquisadores contemporâneos como
John Gillroy e Henry Louis Gates, tecem críticas aos preceitos que norteiam as decisões acerca
do cânone, indo de encontro à ortodoxia de Bloom e apontando-os como ideias ultrapassadas e
essencialmente excludentes, pois desconsideram totalmente a materialidade das temáticas e a
relevância dos pontos de vista que fogem ao padrão elitista europeu. Numa sociedade em que
as mulheres são intelectualmente menosprezadas, suas narrativas são vistas como “menores” e
não merecedoras de destaque, sendo tratadas com descaso devido ao “enredo sem profundidade,
assuntos domésticos, diários, carência de personagens complexas” (BONNICI, 2011, p.114).
Desta forma, estudos que se baseiam nos conceitos e definições traçados por Harold Bloom não
contribuem para mudanças neste cenário, pois reforçam ideais retrógrados e excludentes, o que
impede a ampliação do universo literário para novos campos e construções epistemológicas.
Diante deste cenário, e considerando os séculos de perpetuação desses ideais, é possível
afirmar que as obras das escritoras oitocentistas foram sistematicamente excluídas desse rol
canônico não por serem literariamente desmerecedoras, mas apenas por serem assinadas por
mulheres. Desta forma, a relação de poder de homens sobre mulheres na hierarquia social era
mantida. Dos fatores que contribuíram para a manutenção dessa estrutura excludente com base
em gênero, Cristiane Ribeiro (2018, p. 35) aponta os muitos anos de recusa de mulheres em
28

instituições de grande prestígio, como a Academia Brasileira de Letras, como um determinante.


Consequentemente, a recepção crítica oitocentista atuou ativamente para manter essa
relação de poder. Aos textos de autoria feminina, a resposta do público poderia até ser favorável,
porém quando se analisa atentamente o tratamento dado pela imprensa e crítica literária, ainda
que aparentemente favorável, também, nota-se a presença de discursos depreciativos e
desencorajadores. Desta forma, muitas escritoras buscaram por artifícios que pudessem
disfarçar a autoria e possibilitar, quem sabe, um olhar que não fosse tendencioso. Ribeiro, sobre
isso, afirma:

[...] a aceitação se deu durante muito tempo apenas no campo dos homens, ser
escritor era uma profissão masculina, as mulheres que se arriscaram por tal
terreno ficaram em grande medida, negligenciadas. Suas obras, na maioria das
vezes, vinham assinaladas sob pseudônimos, muitas vezes até mesmo
masculinos. Tal prática se dava como uma forma de aceitação e legitimação
para os seus escritos, [...]. (RIBEIRO, 2018, p.32)

Sobre isso, a pesquisadora Anna Faedrich, que é doutora em Teoria Literária (PUCRS)
e coordenadora de um Grupo de Trabalho (FAPERJ) com foco em repertórios de exclusão de
Literatura Brasileira de autoria feminina na Belle Époque, publicou, também em 2018, um
artigo argumentando que essa recepção crítica discriminatória foi outro fator que contribuiu
para o gradual apagamento das mulheres oitocentistas da memória literária brasileira. De acordo
com ela, as reações de escritores homens prestigiados da época, como Olavo Bilac e Lima
Barreto, “revelam os jogos de poder e as implicações políticas com possível desdobramento
sobre a fortuna das carreiras de mulheres no mundo das letras” (FAEDRICH, 2018, p. 164) pois
eles “desestimularam uma série de escritoras com comentários que diminuíam sua capacidade
intelectual e o valor literário de suas obras” (FAEDRICH, 2018, p. 168), muitas vezes
utilizando-se de tom supostamente elogioso.
Para citar alguns exemplos, com destaque para os trechos grifados: no trecho do prefácio
de Horto (1900), de Auta de Souza, escrito por Olavo Bilac, ele diz que: “Não há nas estrofes
do Horto o labor pertinaz de um artista, transformando as suas ideias, as suas torturas, as suas
esperanças, os seus desenganos em pequeninas joias" (2009, p. 29 apud FAEDRICH, 2018,
p.168 grifo nosso); em outro trecho, ele ainda afirma que: “Aqui a alma vibra em liberdade,
sem a preocupação dos enfeites da Forma, livre da complicada teia de artifício” (2009, p. 29
apud FAEDRICH, 2018, p.168 grifo nosso). Torna-se evidente que o poeta parnasiano julga a
escritora como incapaz de uma produção literária complexa e que, por isso, ele não a considera
uma verdadeira artista.
Outra mulher que sofreu com o descrédito de seus contemporâneos foi Albertina Bertha,
29

uma importante voz na literatura do início do século XX. Faedrich a considera como “voz
dissonante” e “corrompedora” do conservadorismo de sua época por:

demonstrar visão crítica à condição feminina à época e inconformidade com a


sociedade patriarcal; levantar bandeira a favor da educação das mulheres;
escrever romances com ousadia temática, tratando de temas tabu como o
adultério e o desejo feminino; por ser uma erudita que escreve ensaios e
ministra conferências sobre filosofia, em especial sobre Nietzsche; [...]
(FAEDRICH, 2018, p. 171)

Seu primeiro romance, Exaltação, foi publicado em 1916 e teve sucesso de vendas,
tendo sido reeditado seis vezes em vida. Ainda assim, Lima Barreto, em correspondência no
mesmo ano com a escritora, julga sua obra como:

[...] um poema de mulher, de senhora, pouco conhecedora da vida total, dos


altos e baixos dela, da variedade de suas cores e das suas injustiças. Vivendo
à parte, em um mundo muito restrito, a senhora, muito naturalmente, não podia
conhecer senão uma espécie de dor, a dor de amar; e, dessa mesma, a senhora
faz dela uma Exaltação. [...] (BARRETO,1956, p. 284-285 apud FAEDRICH,
2018, p. 171)

Portanto, como consequência de séculos de menosprezo à “condição” feminina, o que


é apresentado atualmente nos compêndios de Literatura Brasileira como o cânone do período
referente, principalmente ao Romantismo, é o de escritores exclusivamente masculinos. A
movimentação pelo resgate da história das mulheres (bem como de outros grupos “menores”)
é ainda relativamente nova: desde o fim do século XX, como abordado anteriormente neste
trabalho, as mulheres que conquistaram espaço e voz ativa na Academia vêm lutando para
garantir que apagamentos como esse não continuem acontecendo. Para isto, é imprescindível
que haja novos olhares sobre o cânone e seus processos de formação; e estudos como os de
Gillroy e Gates, que apontem perspectivas mais inclusivas e abrangentes para a crítica literária.
É importante ressaltar que o nosso objetivo não é desqualificar o cânone literário nacional e,
sim, propor uma reflexão sobre sua formação, impactos e desdobramentos numa sociedade que
ainda se mostra hostil às suas pluralidades.

3 ZAHIDÉ: A PESQUISA SOBRE UMA PESQUISADORA

Para tratar da história das mulheres como parte integrante da história geral, é preciso
que ela seja percebida com a sua devida representatividade, não apenas como um estudo menor
ou à parte do todo. Para tanto, torna-se necessário reavaliar a forma como toda a história
30

brasileira vem sendo registrada, e pesquisas como esta são uma forma de dar mais força a esse
debate, para que assim ele avance.
O resgate da literatura escrita por mulheres é uma tentativa de dar a visibilidade que
lhes fora negada em sua época, pois, ainda que tivessem uma boa recepção por parte do público,
essas escritoras foram desprezadas pela crítica e, consequentemente, excluídas dos registros
formais que são os responsáveis pela propagação da Literatura através dos tempos. É necessário
questionar, também, a estrutura acadêmica responsável por formar profissionais da área de
Letras, já que é por meio do ensino de Literatura nos cursos de graduação que os futuros
docentes terão acesso formal a esta literatura e, consequentemente, poderão levá-la para as salas
de aula da Educação Básica.
Sem o pioneirismo de Zahidé Lupinacci Muzart, é provável que esse quadro de
apagamento/esquecimento fosse ainda mais profundo do que é atualmente, pois a reunião feita
por ela e suas colaboradoras é o que existe de mais completo sobre o assunto até o presente
momento e que serve de base para pesquisas espalhadas por todo o país. Também é importante
destacar que esse tipo de trabalho tem cunho social e político, pois falar sobre o apagamento
das mulheres como produtoras de bens simbólicos 15 evidencia a invisibilização delas como
sujeitos na sociedade oitocentista. Afinal, esse é um “trabalho árduo e extenso do feminismo
histórico, um movimento que tem ressonância política” (MUZART, 2011 p. 17).
Zahidé Muzart, além de professora, editora e crítica feminista, também foi bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no início da década
de 1990, com seu projeto de resgate das escritoras brasileiras oitocentistas. Suas pesquisas
contaram com uma predominância de abordagens voltadas à articulação entre o texto literário
e seu contexto de produção, demonstrando a preocupação com o papel político da pesquisa e
sua possibilidade de afetar a sociedade. Segundo Muzart, elas estão inseridas

[...]na tendência de uma crítica feminista interessada no estabelecimento de


uma tradição literária escrita por mulheres: uma literatura própria. Porém, vai
mais além desse propósito, pois, ao mesmo tempo que contribui para a história
da escritura de mulheres no Brasil, participa da (re) escritura de sua história
cultural e contribui não só para escrever a história da mulher de letras, em
nosso país, mas também para trazer subsídios para a nossa história cultural,
discutindo o lugar das escritoras na História da Literatura. (MUZART, 2014,
p.430-431)

15
Segundo Pierre Bourdieu (2007), ‘bem simbólico’ define-se como objeto artístico ou cultural ao qual foi
atribuído um valor de mercado e transformado em mercadoria. Nesse sistema, vão existir grupos de produtores e
grupos de consumidores de bens simbólicos.
31

Em mais de uma década dedicando-se a um grande projeto de resgate, que contou com
a colaboração de outros grandes nomes da área, como Constância Lima Duarte 16, Rita
Terezinha Schmidt 17 e Eliane Vasconcellos 18, Zahidé Lupinacci Muzart trouxe 160 nomes de
escritoras que produziram literatura no século XIX, reunindo-os na antologia composta por três
volumes Escritoras brasileiras do século XIX (1999). Nos livros, ela e suas colaboradoras
discorrem sobre a vida dessas mulheres e mostram vários excertos de suas obras. Dentre essas
escritoras, alguns nomes que se destacam e ganharam a atenção da Academia, principalmente
após o projeto, foram os de Júlia Lopes de Almeida, Maria Firmina dos Reis (já mencionadas
neste trabalho) e Narcisa Amália, poetisa fluminense, nascida em São João da Barra (RJ),
cidade vizinha de Campos dos Goytacazes. Sobre ela, Sylvia Paixão, no primeiro volume da
obra organizada por Muzart, escreve:

Narcisa Amália foi a primeira mulher a se profissionalizar como jornalista,


alcançando projeção em todo o Brasil com seus artigos em favor da Abolição
da Escravatura, em defesa da mulher e dos oprimidos em geral. Embora
admirasse o Imperador Pedro II, a quem conheceu em 1874, era uma
republicana, uma abolicionista, colocando sua arte a serviço do seu ideário de
libertação. (PAIXÃO, 2000, p. 536)

Sylvia Paixão ainda menciona dois trabalhos anteriores que tratam da vida e obra da
escritora oitocentista, difundindo ainda mais informações sobre essa tão importante mulher que
por pouco não fora esquecida da história. Desta forma, em aproximadamente três mil páginas,
Muzart alcança o objetivo de jogar o holofote dos estudos acadêmicos para as mulheres que,
assim como Narcisa Amália, ficaram à margem da narrativa histórica hegemônica da Literatura
Brasileira.
Além disso, Muzart, sendo pioneira nos estudos sobre Literatura e Mulher no Brasil,
contribuiu forte e incansavelmente para a “definição do status da crítica literária enquanto uma
disciplina de caráter científico, assim como para a consolidação de uma crítica literária
feminista” (HELLMANN, 2017, p. 3), desde meados de 1980 até os últimos dias de sua vida.
Ela veio a falecer em 2015, tendo enviado seu último projeto como bolsista da CNPq três meses
antes. O legado que ela deixa é importantíssimo para a historiografia literária brasileira e é o

16
Constância Lima Duarte é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1991), com vasta
experiência em pesquisa sobre os temas literatura de autoria feminina e crítica literária feminista;
17
Rita Terezinha Schmidt é doutora em Literatura pela Universidade de Pittsburgh (1983) e atua na área de
Literatura Comparada com foco na literatura de autoria de mulheres a partir de aportes de teorias feministas e pós-
coloniais;
18
Eliane Vasconcellos é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade do Rio de Janeiro (1990), é museóloga
e especialista em acervos literários e também se dedica aos estudos que tratam da relação mulher-literatura.
32

objeto central de estudo deste trabalho. Neste capítulo será abordado o que Zahidé Muzart
revelou e quais foram os ecos de seu legado no campo acadêmico e editorial do Brasil.

3.1 Editora e editora

Muzart deixa claro nas primeiras páginas do primeiro volume de sua antologia que a
obra não é a primeira sobre mulheres escritoras a ser publicada no Brasil. Inês Sabino, em 1899,
publica o importante livro Mulheres ilustres do Brasil; Henriqueta Galeno, em 1971, organiza
e publica a coleção de quatro volumes Mulheres do Brasil. Existem ainda algumas antologias
sobre o tema, como a de Cândida Brito de 1929, intitulada Antologia feminina, e a de Alzira
Tacques, Perfis de musas, poetas e prosadoras brasileiras (1956), entre outras. Contudo, como
aponta a autora, são ainda muito poucas as obras que, de fato, reproduzem os textos dessas
escritoras do passado (MUZART, 2000, p.17).
Sendo assim, Muzart é considerada atualmente a pioneira no que diz respeito ao resgate
desses textos que tanto têm a dizer sobre uma época em que a mulher tinha que transgredir para
produzir literatura. Sua antologia traz vários excertos de cada escritora citada, além de sua
biografia e contexto histórico-social arrumados de forma cronológica, o que permite ao leitor e
a outros pesquisadores acesso a um material riquíssimo da geração oitocentista.
Advindo do Grupo de Trabalho (GT) “A Mulher na Literatura”, da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), que se calca nos chamados
Estudos da Mulher e no feminismo, o trabalho integrante que resultou nesta antologia revela
ainda algumas análises sobre os fatores que levaram a não-canonização dessas escritoras,
considerando que algumas delas tiveram espaço para publicar e algum apoio da crítica da época.
De acordo com Muzart, para além da questão de gênero feminino e todos os aparatos sociais
limitantes concernentes a esta “condição” (tratados no Capítulo anterior deste trabalho), existia
também a questão do gênero literário: as poetisas eram as mais aceitas e, em certo ponto, até
respeitadas do que as que escreviam em outros formatos, isto porque esses textos se mantinham
numa “temática nobre” e “dentro do âmbito dos sentimentos familiares” (MUZART, 2000, p.
26). Eram as poetisas, portanto, mais aceitas, pois ainda estavam dentro do código de
moralidade da burguesia; as dramaturgas e as narradoras, em contrapartida, eram as mais
ignoradas.
A escritora Maria Benedita Câmara Bormann (1853-1895), de pseudônimo Délia, é
mais um grande exemplo citado por Muzart de narradora omitida, por esses motivos, da
historiografia literária brasileira. Natural de Porto Alegre, Maria Benedita foi uma cronista,
33

contista e romancista que viveu no Rio de Janeiro desde os dez anos de idade e passou boa parte
de sua carreira literária publicando nos principais jornais cariocas, como Gazeta da Tarde, O
País e A Notícia. Além disso, publicou ainda diversos livros, entre eles: Aurélia (1883); Uma
vítima, Duas Irmãs e Magdalena (1884); Lésbia (1890) e Celeste (1893). A seção presente no
primeiro volume de Escritoras Brasileiras do Século XIX (2 ed., 2000) que aborda vida e obra
de Délia fica a cargo de Norma Telles, que conta:

Os títulos de Délia são nomes de mulher, ou apontam para mulheres como em


‘duas irmãs’ e ‘a vítima’, o que já explicita seu tema central: o coração da
escuridão que é a mulher do século dezenove, [...] A mulher não como
retratada pelos textos hegemônicos [...]; mas como vista por ela própria em
sua vida restrita, com suas ambições, anseios, sofrimentos [...]; seus enredos e
sua afirmação como pessoa e artista. A autora deu às suas personagens
independência e coragem, intelecto, educação primorosa, determinação e
propósito. As personagens ansiavam por autonomia financeira, intelectual e
sexual numa sociedade que Délia considerava hipócrita e numa época em que
pensava ser difícil sobreviver. (TELLES, 2000, p. 576)

A pesquisadora ainda destaca que Délia, apesar de pessimista quanto às possibilidades


de mudanças deste cenário que julgava hipócrita, desafiava, em sua ficção, os limites impostos
por ele e oferecia alternativas para a existência de minorias, “mostrando que as mulheres, os
escravos e os pobres pouco teriam a perder com o desaparecimento das formas sociais
tradicionais de sua época” (TELLES, 2000, p. 576). Délia escreveu romances e folhetins, mas
foi nos gêneros conto e crônica que ela conseguiu fugir do tradicionalismo, pois eram mais
flexíveis e ofereciam mais liberdade para experimentação (tanto na linguagem quanto no enredo
propriamente).
As tramas com protagonismo feminino típicas da época encerravam-se sempre com o
casamento como objetivo final ou a morte como redenção da heroína. Ao construir personagens
muito bem instruídas, com autonomia intelectual, independência, coragem e propósito – algo
considerado malvisto para sua geração – Délia deixava claro, através delas, seu posicionamento
sobre as imposições limitantes à mulher oitocentista e sobre a forma em que isso era retratado
na literatura homogênea:

Daí a ênfase contrária adotada por Délia, e outras escritoras, no casamento


como armadilha trágica, gerador de tédio e desenganos e na morte voluntária
da protagonista, escolha entre um desviver prescrito e um difícil viver uma
vida própria, liberta das imposições, regras e constrangimentos sociais.
(TELLES, 2000, p. 572)

Desta forma, a autora enfatiza que só há libertação para as mulheres por meio
principalmente da instrução. Nesse sentido, Zahidé se junta a ela e às tantas outras escritoras
34

resgatadas por sua iniciativa, como Nísia Floresta, em um lugar de luta pelo direito das mulheres
ao pleno acesso ao conhecimento, à instrução, e pelo mesmo espaço de produção e
reconhecimento que é, até hoje, muito mais conferido aos homens. O movimento de resgatar
essas escritoras é uma forma de mostrar que sempre houve a mesma capacidade de produção
que eles, só não havia equidade de atribuição de valor às obras:

No início de minha pesquisa, era voz corrente que aquelas mulheres do século
XIX nada tinham escrito, e, por conseguinte, menos ainda publicado enquanto
viveram. No entanto, logo ficou claro que, na verdade, não só escreveram e
publicaram uma grande quantidade de textos, mas, bem mais que isso, que
esses textos constituíam um legado de boa qualidade literária e de valor
histórico inquestionável. Tudo ficou ainda mais evidente quando descobrimos
que de nada adiantaria apenas revelar os nomes dessas escritoras, os
pormenores de suas vidas, relacionar o que escreveram. Era fundamental
republicá-las hoje. (MUZART, 2014, p. 431)

Como já dito no capítulo 2 deste trabalho, a partir dos anos 70 acontece a inserção de
mulheres nas universidades brasileiras e, com isso, surgem muitas pesquisas que legitimam a
mulher como objeto de estudo e a reconhecem como agente histórico. Dessa década para frente,
como contam Costa, Barroso e Sarti (2019), há uma fase muito importante de “consolidação e
expansão em que a legitimidade dessa área de estudo não está mais por comprovar, e as
exigências são de outra ordem, maior rigor científico e elaboração teórica mais sólida” (p. 112).
É nessa perspectiva que é criada por Zahidé Muzart, Susana Funck e Elvira Sponholz, em 1991,
a Editora Mulheres. O papel que ela desempenhou foi importantíssimo para a Literatura
Brasileira e para o campo editorial no país, porque foi criada com o intuito de republicar não
apenas os textos literários das escritoras oitocentistas, como também investir na publicação e
tradução de ensaios sobre estudos de gênero e feminismo de outras pesquisadoras, trilhando a
linha da crítica feminista e contribuindo ricamente para essa consolidação e expansão citada
por Costa, Barroso e Sarti.
De acordo ainda com Ana Elisa Ribeiro e Sérgio Karam (2020), muitas das obras
publicadas pela Editora se tornaram, posteriormente, “referência na formação de outras
gerações de pesquisadoras/es e mesmo de escritoras brasileiras” (RIBEIRO e KARAM, 2020,
p. 5), mas não sem obstáculos: além das dificuldades financeiras, se colocando, Zahidé, como
uma editora mais preocupada com consciência política e cultural do que com lucros comerciais,
a Editora ainda sofria com o descrédito e preconceito do mercado por ser de pequeno porte,
com o título “Mulheres” e por ser dirigida por mulheres mais velhas e aposentadas (MUZART,
2004, p. 104). Resiliente, a mulher editora não deixou que esses obstáculos impedissem a
Editora Mulheres de funcionar: supervisionava diretamente todo o processo editorial das obras
35

e tomava todas as providências relativas à distribuição. Assim, em duas décadas de vida, a


Editora publicou mais de uma centena de livros, entre os romances do século XIX e início de
XX e ensaios sobre gênero e feminismo, tendo um impacto indispensável para a história da
Literatura Brasileira:

O trabalho de edição e reedição levado a cabo por Muzart confrontava – e


afrontava – a narrativa hegemônica da história literária brasileira, deixando
evidentes os “sequestros” e, ao mesmo tempo, estremecendo os alicerces (nas
palavras de Schmidt e Ramos) da tradição à qual estávamos acostumados. A
palavra de ordem era “inclusão”, a fim de trazer à superfície as escritoras
asfixiadas pelo machismo estrutural e, ao mesmo tempo, evitar que o século
XX também tivesse de ser recontado, mais adiante. (RIBEIRO, KARAM,
2020, p. 5-6)

Foi nessa linha de inclusão e confronto de alicerces que a Editora funcionou entre os
anos de 1991 e 2015. Seu catálogo pode ser acessado pelo link: Catálogo novembro 2015
(nonada.com.br). A título de legado, escritoras de importante relevância, como Júlia Lopes de
Almeida, tiveram suas obras trazidas, novamente ou de forma inédita, a conhecimento e acesso
público, como já foi mencionado anteriormente neste trabalho.
Assim como as oitocentistas, a própria Muzart vem experimentando apagamentos.
Primeiro, a Editora Mulheres foi vendida por seus herdeiros após a morte de sua principal
idealizadora em 2015, e deixou de cumprir o objetivo para o qual foi criada. Sobre isso, Ana
Elisa Ribeiro e Sérgio Karam (2020) contam que visitaram o site em 2019 e o que encontraram
foi uma Editora Mulheres que presta outro tipo de serviço: “Pesquisadoras do GT Mulher na
Literatura mantiveram certo ritmo de publicações, empregando a marca da editora, no entanto
a perda de força do selo é sensível” (2020, p. 4). Contudo, neste ano de 2022, não se encontra
nenhuma página na web da empresa e nem informação mais recente sobre a que fim levou,
deixando a ideia que a Editora possivelmente não existe mais.
Além disso, nós mesmas tivemos muita dificuldade em adquirir a antologia completa
Escritoras Brasileiras do Século XIX para a realização deste trabalho – isso sem contar que
nunca tínhamos ouvido falar do nome Zahidé Muzart nem das escritoras aqui citadas, exceto
uma menção ou outra a Júlia Lopes, durante todo o curso de formação. Havia pouquíssimos ou
nenhum exemplar da antologia em livrarias e sebos (físicos e virtuais) e, quando
encontrávamos, era apenas um dos três volumes. Foi preciso entrar em contato com a
Universidade de Santa Catarina – momento no qual também nos deparamos com outro
empecilho, pois cada site da internet informava um número de telefone diferente e, quando
conseguimos algum existente e a ligação completava, transferiam-nos de setor em setor até
36

chegarmos finalmente ao responsável pelo material produzido pela antiga Editora. Por fim,
conseguimos os três volumes.
A pergunta “Onde está Zahidé?” foi feita a Ribeiro e Karam no IX Colóquio de
Mulheres em Letras da UFMG em 2017, quando apresentaram uma pesquisa sobre mulheres
editoras no Brasil sem o nome de Zahidé Lupinacci Muzart em sua lista, o que levou parte da
plateia a confrontar os pesquisadores sobre esta ausência. Em resposta, eles produziram o artigo
“Editora Mulheres, Zahidé Muzart e um caso relevante de edição de livros no Brasil” (2020),
que foi utilizado neste trabalho. Como eles, alguns poucos nomes também produzem pesquisas
na tentativa de manter vivo o nome e a importante contribuição desta mulher para o Brasil. A
este propósito, humildemente, este trabalho também se junta.

3.2 As oitocentistas nas escolas

Uma maneira de contribuir para o devido reconhecimento das escritoras oitocentistas


brasileiras é a inserção de suas obras nos estudos sobre Literatura, não somente nos cursos de
graduação que formam os profissionais da área de Letras, mas também nos currículos
trabalhados com os alunos da Educação Básica (EB). A Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) é o documento que norteia a construção destes currículos em todo o território
brasileiro. Dividido por etapas de ensino, o documento é estruturado da seguinte forma:
37

Figura 1 – Competências gerais da EB

Fonte: BRASIL, Ministério da Educação (2018)

A BNCC fornece as ferramentas necessárias aos professores para estruturarem suas


aulas com base em parâmetros similares independentemente da região do país e da esfera na
qual a escola está afixada, seja ela pública ou privada. Entretanto, o documento não é engessado,
isto é, ele permite uma flexibilidade para que, assim, atenda às distintas realidades dos alunos
e escolas no território nacional (comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, zona rural,
zona urbana etc), direito garantido aos alunos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB).
É importante ressaltar que é comum que documentos como estes sofram mudanças
visando melhorar o sistema de ensino, entretanto, nas últimas reformas, a BNCC sofreu grandes
ataques no que se refere ao ensino escolar que contemple as minorias sociais e estudiosos do
assunto apontam que tais modificações podem provocar silenciamentos e invisibilidades, pois
38

não abordam explicitamente os assuntos “gênero” e “orientação sexual”, deixando que fique a
cargo da opinião pessoal do professor a decisão de abordá-los ou não com os alunos.
A exclusão do primeiro tema afeta diretamente a discussão acerca do papel da mulher
na sociedade e da busca pela emancipação, fazendo com que reflexões como a tratada neste
trabalho sejam vistas como irrelevantes, acarretando no retrocesso que foi tão combatido por
Zahidé e tantas outras profissionais da educação. Tal retrocesso evidencia que a luta travada
por Muzart e suas contemporâneas está longe do fim, mas não deve ser abandonada.
Com resultado de muita reflexão, a proposta de aula 19 apresentada aqui traz a poeta
gaúcha Rita Barém de Melo (1840-1868) para o centro da discussão sobre o Romantismo
brasileiro, devido a sua grande contribuição no que diz respeito a uma compreensão mais ampla
do período literário em questão, como afirma Rita Terezinha Schmidt:

[...] não só porque a poeta cultivou possibilidades temáticas que alargam o


horizonte dos temas trabalhados por poetas conhecidos e canonizados pela
tradição crítica, mas também porque seus versos são dotados de uma
substância afetiva que, aliada à sua vivência como mulher, lhe conferem uma
forma espontânea rara, onde se mesclam a suavidade, a melodia e a emoção.
(SCHMIDT, 2004, p. 359)

Mesmo com pouco acesso à educação formal, quando ela ainda tinha 15 anos, fez sua
estreia publicando no periódico O Guaíba, semanário famoso no sul do país. Além disso, esteve
envolvida com o cenário jornalístico da época também por meio de contribuições feitas ao
jornal O Artista, de Rio Grande (RS). Segundo Schmidt (2004), sua obra teve grande influência
à época, apesar de não estar presente nos registros por mais de um século devido ao
posicionamento excludente da crítica literária em relação às produções de autoria feminina.
Marcada por sua sensibilidade aguçada e emoções fortes, embora tratadas com
serenidade, a poesia de Barém de Melo em certo ponto se assemelha com a estética e a temática
das obras de Casimiro de Abreu, sendo um bom paralelo para trabalhar em sala de aula. Desse
modo, o plano de aula em questão traz como proposta a leitura e análise dos poemas 20 “A... Eu
não posso te amar” e “O canto da índia”, ambos da autora Rita Barém de Melo, e a possível
relação estética e temática com seus contemporâneos “Amor e medo”, de Casimiro de Abreu,
e “Leito de Folhas Verdes”, de Gonçalves Dias.
A escolha desta autora e destes poemas se deu pela preocupação em selecionar textos
que fossem facilmente identificados pelos alunos como pertencentes ao período literário em
questão. Rita Barém de Melo foi uma das autoras oitocentistas que teve melhor aceitação da

19
A proposta de aula elaborada encontra-se no Anexo I deste trabalho.
20
Assim como a proposta de aula, os poemas citados encontram-se no Anexo II deste trabalho.
39

crítica de sua época por ter produzido nos moldes esperados, possibilitando a elaboração de
uma proposta de aula na qual o foco seja o estudo das características típicas do Romantismo,
por meio de textos de autoria feminina e masculina e da comparação entre eles. Além disso, o
uso do gênero poema torna mais viável para a/o profissional docente trabalhá-lo em dois tempos
(50 minutos cada) de aula, por serem mais curtos do que as narrativas em prosa.
Sendo assim, o professor deverá iniciar a aula com provocações que façam os alunos
pensarem sobre os comportamentos de homens e mulheres diante de possíveis flertes amorosos,
com indagações como: “Você é cortejada/o por uma pessoa que lhe demonstra amor, mas você
não se sente atraída/o. Neste caso, o que você faria ou diria a essa pessoa? Mulheres e homens
agem da mesma forma quando é preciso recusar alguém? Socialmente, homens e mulheres que
recusam possíveis parceiros são avaliados da mesma forma?”.
A partir das respostas, pressupõe-se que os alunos compreendam que os
comportamentos de homens e mulheres deveriam ser muito diferentes nos séculos passados,
sendo os homens os detentores do poder de aceite ou recusa em potenciais relacionamentos e,
para as mulheres, somente existia a possibilidade de esperar passivamente que algum homem a
cortejasse ou que algum parente, também do sexo masculino, arranjasse um pretendente
aceitável, o que retirava a autonomia e o protagonismo das mãos das mulheres, como já foi
citado ao longo do trabalho.
Com esta introdução ao assunto, os alunos poderão refletir acerca da socialização de
gênero imposta às mulheres e as implicações disso na vida pessoal e profissional das escritoras
da época, preparando-os para adentrar na discussão sobre a vida e obra da autora principal a ser
estudada, Rita Barém de Melo, bem como uma rápida contextualização histórica. Para dar
sequência à proposta de aula, seria realizada, também, a leitura e análise dos poemas citados.
Esta tarefa pode ser realizada oralmente, dividindo a turma em grupos, assim o professor pode
se colocar como um mediador do debate, que deve ser primeiramente focado nas percepções
dos alunos, sem tanto rigor acadêmico.
Em um momento posterior a este debate, após o reconhecimento dos textos, com o
auxílio do material didático oferecido pela unidade escolar e as anotações que o professor
trouxer a respeito do Romantismo, poderá ser realizada uma análise mais criteriosa dos poemas
de Rita Barém de Melo, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, que já servirá como uma forma
de avaliação, por ser um meio de identificar como vem se dando o aprendizado destes alunos
sobre o assunto, pois pressupõe-se que esta aula não seja o primeiro contato dos alunos com a
escola literária abordada. A forma como o professor decidirá conduzir a aula influenciará
diretamente nas impressões dos alunos sobre o tema, por isso é importante que seja trabalhada
40

a qualidade estética dos poemas de Barém de Melo de maneira equivalente ao tratamento dado
às obras de autoria masculina, e que esta crítica ao cânone seja parte integrante da aula, para
que os alunos não reproduzam o menosprezo que era direcionado aos poemas das autoras
oitocentistas.
Sugere-se que, para finalizar a aula, o professor incentive a turma a realizar pesquisas
sobre a literatura de autoria feminina do século XIX e oriente que, para dar continuidade aos
estudos sobre o Romantismo eles levem, na próxima aula, breves apresentações sobre outras
escritoras e trechos de poemas, para que apresentem aos colegas em um seminário rápido, pois
este tipo de atividade promove a autonomia no processo de ensino-aprendizagem.
Com este breve plano de execução de aula espera-se que haja uma aproximação entre
as produções das escritoras oitocentistas e os jovens que estão inseridos no ambiente escolar da
Educação Básica, visando difundir o conhecimento sobre a existência dessas escritoras, suas
vivências e obras, como citado anteriormente. Além disso, a proposta visa promover o
pensamento crítico destes estudantes, a fim de evitar que esse histórico de exclusão das
mulheres na Literatura não se perpetue, e fornecer incentivo para que novas vozes femininas
ganhem fôlego.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O silenciamento das escritoras oitocentistas é um assunto extenso e que pode ser


analisado sob diversas perspectivas. Foi defendida, neste trabalho, a ideia de que a motivação
principal para este duradouro cenário de exclusão sustenta-se na noção equivocada, com base
em preceitos políticos e ideológicos de um grupo dominante, de que as mulheres faziam parte
de uma categoria inferior, o que fez com que sua produção intelectual fosse desqualificada por
mais de um século.
Escolhemos a abordagem que começasse pelo início da linha cronológica: a chegada
dessa ideia em território brasileiro com a colonização e a imposição cultural europeia liderada
pela Igreja Católica. Por muito tempo, o código de moral e conduta que regia as sociedades
europeias era fornecido pela bíblia cristã — livro este que consolida e naturaliza violências
como escravatura, homofobia e misoginia. Foram cerca de 300 anos de relação colonizado-
colonizador entre Brasil e Portugal e alguns de seus desdobramentos foram cruciais para
entendermos a trajetória das mulheres em busca de liberdade e respeito, como a influência
religiosa na educação formal e na configuração de família.
41

Ao longo do desenvolvimento da escrita, atravessamos, inevitavelmente, um pouco da


história das primeiras ondas feministas no Brasil, que foram os movimentos responsáveis pela
conquista de alguns direitos das mulheres. Querendo dar voz às silenciadas, era imprescindível
mostrar que houve as que lutaram por isso muito antes. Esta pesquisa, além de homenagear o
trabalho de Zahidé Muzart, não deixou de lado nomes de grandes mulheres das Letras que
enfrentaram o sistema de suas épocas, como Simone de Beauvoir, Mary Wollstonecraft e
Olympe de Gouge; as brasileiras Nísia Floresta, Maria Firmina dos Reis e Maria Benedita
Bormann, entre tantas outras. Além disso, priorizamos como referência para este trabalho
também pesquisas de autoria feminina: Constância Lima Duarte, Rita Terezinha Schmidt, Anna
Faedrich, Carla Bessanezi Pinsky, etc. Acreditamos que, apesar de ser um assunto que diz
respeito à história do país como um todo, ele diz respeito primeiramente às mulheres, portanto
as escolhas não poderiam ser diferentes.
Não podemos ignorar, entretanto, que apesar de toda mudança favorável a este grupo já
ocorrida desde o século XIX, ainda são nítidos os ecos dos anos de dominação masculina:
violência doméstica, feminicídio, assédio moral e sexual, desigualdade salarial com base em
gênero, entre outros gravíssimos problemas. Em pleno ano de 2022, ainda são comuns e
constantemente replicados na mídia, inclusive por homens em cargos de muito poder e
influência, discursos que tentam justificar esses tipos de discriminação. O caso mais recente
disto é o do advogado e economista brasileiro e novo ministro de Minas e Energia do atual
governo, Adolfo Sachsida. Em um vídeo-aula, no seu canal do YouTube, intitulado “Aprenda
Economia com Sachsida: aula 7” (2016), ele defende que é “comportamento racional” do
empresário pagar menos à mulher porque ela engravida e “falta mais para ir ao médico”, além
de pontuar que ela “prefere” jornada de trabalho menor que homem. No mesmo vídeo, também
discursa contra o tempo, que considera longo, de 6 meses de licença maternidade, alegando que
isto é um “crime contra a mulher” — e este é apenas um exemplo dentre tantos outros. Logo, a
mulher ocupar espaços é um ato de luta e resistência contra o que ainda é imposto. Discutir
sobre isso, dando valor e reconhecimento a mulheres que ocupam e ocuparam espaços é
legitimar esses atos.
O que Zahidé Lupinacci Muzart fez foi resistir e legitimar a existência e resistência de
outras mulheres de sua área profissional. Ao jogar o holofote para as escritoras oitocentistas,
trazendo de volta ao circuito editorial e acadêmico fortes nomes da Literatura como o de Júlia
Lopes de Almeida, seu nome se torna uma das maiores referências no assunto. Porém, apesar
de sua força, o legado de Muzart também vem sofrendo com este silenciamento, mostrando que
a luta travada por ela e suas colaboradoras ainda avança devagar.
42

A presente pesquisa foi iniciada com base nos conhecimentos que adquirimos ao longo
da graduação e um sentimento de inconformidade, de certa maneira, um lamento por não termos
acessado esta discussão quando estudamos sobre a Literatura Brasileira do século XIX. Nos
últimos anos, entretanto, nos surpreendemos de forma positiva ao saber que as escritoras
oitocentistas vêm sendo inseridas no currículo do curso, sendo assunto, também, de pesquisas
de outras colegas de graduação.
Não podemos considerar que nossas reflexões aqui apresentadas encerram o assunto e
solucionam a problemática do silenciamento enfrentado pelas mulheres oitocentistas, mas
finalizamos esta análise, por ora, com a certeza de que mais um pequeno passo foi dado e que
nossa contribuição também faz parte do legado de Zahidé Lupinacci Muzart.
43

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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47

ANEXOS

Anexo I - O plano de aula

I. Área do conhecimento: Linguagens e suas Tecnologias - Literatura/Arte - Escolas


literárias – Romantismo
II. Tema: “Romantismo no Brasil: a contribuição das escritoras oitocentistas”;
III. Duração: Dois tempos de aula (50 minutos cada);
IV. Objetivos:
● Contextualizar a literatura escrita por mulheres no século XIX aos alunos do
ensino médio utilizando como exemplo a autora Rita Barém de Melo;
● Facilitar o processo de ensino-aprendizagem sobre as escolas literárias,
especificamente o Romantismo, relacionando os temas abordados com a
realidade material da vida em sociedade e o contexto histórico da época;
● Provocar a discussão acerca da importância do papel da mulher na arte/literatura
no século XIX;
● Promover a autonomia dos alunos no processo de ensino por meio da pesquisa
sobre os assuntos trabalhados e da troca de conhecimento entre eles durante a
apresentação das pesquisas realizadas.

V. Conteúdo e desenvolvimento:
● Breve reflexão em grupo sobre os papéis de gênero na sociedade oitocentista;
● Rápida contextualização histórica sobre o século XIX, retomando pontos chave
sobre o Romantismo;
● Leitura e análise dos poemas: I - “A… Eu não posso te amar”, II - “O canto da
índia”, III - “Amor e medo” e IV - “Leito de Folhas Verdes”;
● Vida e obra da autora Rita Barém de Melo;
● Avaliação oral sobre o aprendizado dos alunos sobre Romantismo e a autoria
feminina no século XIX;
● Proposta de atividade de pesquisa sobre outras autoras da época a fim de realizar
um seminário na aula seguinte e dar continuidade aos estudos sobre o assunto.

VI. Bibliografia
48

SCHMIDT, Rita Terezinha. Rita Barém de Melo. In: MUZART, Zahidé (org.). Escritoras
Brasileiras do Século XIX: antologia, vol. I. 1 ed. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2004. p. 359-373.

Quadro 1 – Orientações para a organização desta aula, segundo a BNCC

A) Unidades temáticas:

● Oralizar o texto escrito, considerando-se as situações sociais em que tal tipo


de atividade acontece, seus elementos paralinguísticos e cinésicos, dentre
Oralidade - Relação entre fala e escrita: outros;
● Refletir sobre as variedades linguísticas, adequando sua produção a esse
contexto.

● Reconstrução e reflexão sobre as condições de produção e recepção dos


textos pertencentes a diferentes gêneros e que circulam nas diferentes mídias
e esferas/campos de atividade humana:
Prática de leitura: ● Relacionar o texto com suas condições de produção, seu contexto sócio-
histórico de circulação e com os projetos de dizer: leitor e leitura previstos,
objetivos, pontos de vista e perspectivas em jogo, papel social do autor,
época, gênero do discurso e esfera/campo em questão etc.

● Estabelecer relações de intertextualidade e interdiscursividade que permitam


Dialogia e relação entre textos: a identificação e compreensão dos diferentes posicionamentos e/ou
perspectivas em jogo, do papel da paráfrase e de produções como as paródias
e as estilizações.

● Apreender os sentidos globais do texto.


Estratégias e procedimentos de leitura:
● Reconhecer/inferir o tema.

● Mostrar-se ou tornar-se receptivo a textos que rompam com seu universo de


expectativa, que representem um desafio em relação às suas possibilidades
Adesão às práticas de leitura: atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas
linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nas
orientações dadas pelo professor.

● Utilizar, ao produzir textos, os conhecimentos dos aspectos notacionais –


Produção de texto - Aspectos
ortografia padrão, pontuação adequada, mecanismos de concordância
notacionais e gramaticais:
nominal e verbal, regência verbal etc., sempre que o contexto exigir o uso
da norma-padrão.
49

● Conhecer e perceber os efeitos de sentido nos textos decorrentes de


Análise e reflexão sobre a Língua / fenômenos léxico-semânticos, tais como aumentativo/diminutivo;
Análise linguística e semiótica: sinonímia/antonímia; polissemia ou homonímia; figuras de linguagem;
Semântica: modalizações epistêmicas, deônticas, apreciativas; modos e aspectos
verbais.

B) Campos

Campo artístico-literário

C) Competências

2- Compreender os processos identitários, conflitos e relações de poder que permeiam as práticas sociais de linguagem,
respeitando as diversidades e a pluralidade de ideias e posições, e atuar socialmente com base em princípios e valores assentados
na democracia, na igualdade e nos Direitos Humanos, exercitando o autoconhecimento, a empatia, o diálogo, a resolução de
conflitos e a cooperação, e combatendo preconceitos de qualquer natureza.

3- Utilizar diferentes linguagens (artísticas, corporais e verbais) para exercer, com autonomia e colaboração, protagonismo e
autoria na vida pessoal e coletiva, de forma crítica, criativa, ética e solidária, defendendo pontos de vista que respeitem o outro
e promovam os Direitos Humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional e global.

6- Apreciar esteticamente as mais diversas produções artísticas e culturais, considerando suas características locais, regionais e
globais, e mobilizar seus conhecimentos sobre as linguagens artísticas para dar significado e (re)construir produções autorais
individuais e coletivas, exercendo protagonismo de maneira crítica e criativa, com respeito à diversidade de saberes, identidades
e culturas.

D) Habilidades

(EM13LGG302) Posicionar-se criticamente diante de diversas visões de mundo presentes nos discursos em diferentes
linguagens, levando em conta seus contextos de produção e de circulação.

(EM13LGG303) Debater questões polêmicas de relevância social, analisando diferentes argumentos e opiniões, para formular,
negociar e sustentar posições, frente à análise de perspectivas distintas.

(EM13LGG604) Relacionar as práticas artísticas às diferentes dimensões da vida social, cultural, política e econômica e
identificar o processo de construção histórica dessas práticas.

Fonte: BRASIL, Ministério da Educação. 2018.


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Anexo II – Poemas para a aula

Texto I
A… Eu não posso te amar
(Rita Barém de Melo)

Se te amara,
Confessara
Meu amor;
Nem te amo,
Nem m’inflamo
Nesse ardor.
(J. Aboim)

Eu não sinto por ti minh’alma


Viva chama que fale de ardor;
Eu não sinto meu peito abrasado,
Eu não posso falar-te de amor!

Se soubesses que dor sinto n’alma


Quando fitas em mim teu olhar…
Eu quisera sentir uma lava
A minh’alma por ti escaldar!

Eu quisera poder consagrar-te


Bem ardente, bem nobre paixão;
Mas por ti só a voz d’amizade
Vibra ardente no meu coração!
(...)

Texto II
O canto da índia
(Rita Barém de Melo)

Amo o índio trigueiro, valente,


Que não sabe de medo chorar,
Quando a voz do perigo, da guerra,
Lhe vai n’alma guerreira ecoar.

Quando o brado de ingente peleja


Sobre a terra se faz ressoar,
Relampejam seus olhos escuros
Como estrelas no céu a brilar.

Como tremem-lhe as plumas soberbas,


Do soberbo formoso cocar,
Quando corre nas matas selvagens
51

Sob as ramas do verde palmar!

Como é belo o mancebo orgulhoso,


Pelo bosque tão livre a correr,
Quando a relva se molha d’orvalho
Que goteja da rama a tremer!

Escorrido o cabelo tão negro,


Vai na face crestada bater,
Como as ondas que batem na rocha,
Entre cálix d’espuma a ferver!

Não verga frondoso carvalho que açoita


Rugindo com fúria tremendo tufão,
Assim a minh’alma soberba não verga,
Não verga a vontade do meu coração.

Texto III
Amor e Medo
(Casimiro de Abreu)

Quando eu te vejo e me desvio cauto


Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! meu amor, é chama


Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,


Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores


A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea — ao longe,


Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! se abrasado crepitasse o cedro,


Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
52

Que à sombra dela tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco


Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!

Ai! se te visse no calor da sesta,


A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...

Ai! se eu te visse, Madalena pura,


Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...

Ai! se eu te visse em languidez sublime,


Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...

Diz: — que seria da pureza de anjo,


Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!


Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos


Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois... desperta no febril delírio,


— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...

Oh! não me chames coração de gelo!


Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...
53

Texto IV
Leito de folhas verdes
(Gonçalves Dias)

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo


À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu, sob a copa da mangueira altiva


Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,


Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,


Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d`alva


Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,


Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,


Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,


Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes


À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!

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