INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
RESUMO: Este artigo tem por finalidade mostrar, por meio da análise de dois poemas da
poetisa moçambicana Noémia de Sousa, a importância da representação feminina para o
processo de libertação de Moçambique. O sujeito poético de Noémia de Sousa assume o papel
de porta-voz e por meio da voz feminina conduz as mulheres e o povo moçambicano à
conscientização de suas condições dentro do processo de colonização imposto por Portugal.
ABSTRACT: This article aims to show, through the analysis of two poems from Mozambican
poetry Noémia de Sousa, an importance of female representation for the process of liberation
in Mozambique. The poetic subject of Noémia de Sousa assumes the role of voice and female
voice led as women and the Mozambican people to raise awareness of their conditions within
the colonization process imposed by Portugal.
1 INTRODUÇÃO
1
Graduado em Licenciatura em Letras Português/Inglês pela Sociedade Educativa e Cultural Amélia Ltda –
SECAL/PR, Mestre em Letras, Estudos de Literatura e Doutorando em Letras, Estudos de Literatura, linha de
pesquisa Pós-colonialismo e Identidades, pelo Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2
Depois do fim da Segunda Guerra Mundial houve uma intensificação significativa nos
anseios por libertação de povos colonizados. Em África Portuguesa, com o leve
enfraquecimento das questões coloniais devido ao advento do término da grande guerra,
surgem incipientes movimentações contrárias aos planos do aparelho colonial comandado por
António de Oliveira Salazar.
A Casa dos Estudantes do Império, com uma de suas unidades (a maior delas) em
Lisboa, foi fundada oficialmente em 19442 e resistiu até o ano de 1965. A iniciativa da criação
de tal estabelecimento deu-se pelo motivo de os estudantes ultramarinos, vindos à Metrópole 3,
terem, anteriormente, criado agremiações que levavam o nome de suas respectivas colônias 4.
Com o receio dessas agremiações se fortalecerem politicamente, a intenção do governo de
Salazar foi criar apenas um lugar onde todos pudessem conviver vigiados pela mão opressora
do Estado português, assim nasceu a Casa dos Estudantes do Império.
Depois de quatro anos de sua criação, exatamente no ano de 1948, dentro da Casa dos
Estudantes do Império, nasce o Boletim Mensagem, um veículo de comunicação criado para
divulgar os acontecimentos sociais e culturais daquele lugar. Também eram publicados
poemas e textos dos alunos ultramarinos. Sua primeira publicação ocorreu no mês de Julho de
1948 e sua última edição foi em fevereiro de 1964. O Boletim Mensagem, além de se tratar de
um documento de cunho informativo, também era um instrumento cultural, pois em suas
edições apareciam publicações de poemas e críticas criadas pelos alunos ultramarinos. Dessa
forma é que surgiram os primeiros textos de anseio nacionalista na Casa dos Estudantes do
Império.
É válido salientar de que a maioria dos textos publicados no Boletim Mensagem são
de autoria masculina, sendo que em todas as publicações, apenas17 mulheres fizeram parte
entre os participantes, um número bem reduzido se levarmos em consideração as poucas
publicações de cada uma dessas mulheres. São elas Noémia de Souza e Ana Pereira do
Nascimento, Vera Micaia (um outro nome que assinava Noémia de Souza), Marília Santos,
Alda Espírito Santo, Manoela Margarido, Alda Lara, Inácia de Oliveira, Ermelinda Pereira
Xavier, Maria Natália Antunes, Leonor Gil, Maryse Taveira, Lilia da Fonseca, Irisalva Nunes
Moita, Marilisa, Noémia Gabriela Tavira e Maria João Abranches e a participação da
2
Embora tenha tido um início extra oficial em 1943, sua fundação oficial deu-se no ano de 1944. Na marca
existente na calçada em frente ao prédio onde a casa funcionou, em Lisboa, a data gravada é de 1963.
3
Normalmente iremos encontrar a palavra “Metrópole” grafada com a letra maiúscula e a palavra “colônia”
grafada com letra minúscula, talvez por um apontamento de superioridade colonial.
4
Casa dos Estudantes de Angola, casa dos Estudantes de Moçambique, casa dos Estudantes da Guiné e Cabo
Verde (São Tomé e Príncipe, por ter uma pequena participação em termos de número de estudantes, sempre
associava-se aos estudantes de Cabo Verde e de Guiné Bissau).
3
ucraniana naturalizada francesa Nina Gourfinkel. Embora, também, percebamos uma ausência
ou a escassa presença feminina nas Antologias Poéticas que foram publicadas de forma anexa
ao Boletim Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, não se pode negar a importante
participação feminina com seus textos revolucionários de resistência e de nacionalismo.
Dentre tantas personalidades importantes para a conquista das independências das
colônias africanas de língua portuguesa e para o nascimento do sentimento de nacionalismo,
este ensaio tem a intenção de analisar dois poemas da poetisa moçambicana Noémia de
Souza, que, juntamente com a santomense Alda Espírito Santo, se destacam pelo cunho de
convocação e de despertamento de seus poemas.
2 NOÉMIA DE SOUZA
Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu em 20 de setembro de 1926, tinha como
pai um funcionário público com ascendência lusitana e goesa. Sua mãe era filha de um
caçador e negociante alemão juntamente com a filha de um chefe tribal da etnia rhonga 5.
Segundo Alós (2011), após a morte seu pai, quando ela tinha apenas 8 anos, Noémia e sua
família atravessaram por sérios problemas financeiros, o que a obrigou a trabalhar aos 16 anos
de idade. Mesmo assim ela continuava seus estudos na Escola Técnica. Noémia de Sousa era
jornalista e faleceu no ano de 2002.
Podemos observar em Noémia de Sousa a inauguração da “cena literária
moçambicana”, como afirma Secco (2018). A poetisa produziu 46 poemas entre 1948 e 1951
que circularam em vários jornais6 da época, mas somente em 2001, sua obra foi reunida no
único livro intitulado Sangue Negro.
Foi por meio do poema “Canção Fraterna”, publicado no Jornal da Mocidade
Portuguesa, em Moçambique que Noémia de Sousa foi condenada ao exílio, tendo sido
enviada a Lisboa, momento no qual participou da Casa dos Estudantes do Império no ano de
1951. O poema causador de sua condenação fala dos anos de escravidão e das condições
subalternizadas vividas pelo negro africano condenado ao sistema opressor colonial. Pode ser
afirmado, então, que a poetisa moçambicana Noémia de Sousa demonstrava desde o princípio
de sua escrita poética, a preocupação em posicionar-se de modo a provocar a conscientização
diante das situações de opressão em que seu povo vivia. A poetisa obtinha um posicionamento
5
A etnia rhonga é a mais numerosa da região de Maputo, capital de Moçambique.
6
Jornais como O Brado Africano, Itinerário, Msaho, Moçambique 58, Mensagem (CEI), Vértice. Em antologias,
está incluída em Poesia de Moçambique, Lisboa, 1951; Poesia Negra de Expressão Portuguesa, Lisboa, 1953;
Poetas de Moçambique, Lisboa, 1960; Poetas de Moçambique, Lisboa, 1962, Antologia temática da poesia
Africana, 1976, além de antologias publicadas em Paris, Argel, São Paulo, Londres, Estocolmo. (LEITE, 2012,
p. 92)
4
7
Laura Cavalcante Padilha em seu artigo de nome “Bordejando a margem: (escrita feminina, cânone
africano e encenação de diferenças “fala da formação de um cânone literário africano de língua
portuguesa a partir das antologias, a pesquisadora mostra que “antologizar significa trazer para o
cânone, pois, por esse gesto, há um processo de reconhecimento no qual subjaz uma forma
escamoteada de sacralização qualquer. (2004, p. 256)
5
8
Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
6
Nervosamente,
eu sento-me à mesa e escrevo...
Dentro de mim,
Deixa passar o meu povo,
“oh let my people go...”
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda — minha irmã!
Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço,
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças9,
algodoais, o meu inesquecível companheiro branco
E Zé — meu irmão — e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
— “let my people go
oh let my people go!”
4 SE ME QUISERES CONHECER
No poema de título “Se me queres conhecer” (SOUSA, 2018, p. 40), escrito em 25
de dezembro de 1949, observamos o sujeito poético mostrando um posicionamento firme
contra a condição colonial. Tal poema publicado no livro Sangue Negro (2018) além do
9
Magaíça é uma antiga denominação dos emigrantes moçambicanos que iam trabalhar paras as minas na África
do Sul.
8
Boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império, leva o seu leitor a um prelúdio de
guerra.
Tal posicionamento beligerante não é uma conduta exclusiva de Noémia de Sousa,
outras poetisas que também frequentaram a Casa dos Estudantes do Império demonstraram
uma intenção de levante de conscientização que desembocaria, se necessário, numa guerra em
busca de suas libertações. Conforme Padilha (2004), Alda Espírito Santo, poetisa
santomense, carregava em seus poemas, de forma crua e direta, temas como o massacre, a
guerrilha e o martírio, a pesquisadora nos mostra que no caso de Noémia de Sousa, seus
poemas declaram “a guerra como desejo e urgência histórica” (p. 117).
Ao convidar o leitor de seus poemas para que a conheça, o sujeito poética projeta a
sua voz convocando as tradições e corporificando a terra moçambicana na existência feminina
da poetisa. Com isso demonstra a importância da mulher moçambicana (e africana) que luta
pelo rompimento dos limites que a subjugam e a impedem de acessar o campo das letras.
Além disso, e conforme Botoso (2018), a poetisa teve e tem, em seus poemas, uma forte
contribuição social e política para todo negro africano e da diáspora.
Se me quiseres conhecer,
estuda com os olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde10
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.
Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes11
na rebeldia dos machanganas12
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
11
Muchope é o indivíduo de origem chope, etnia do norte da província de Gaza, sul de Moçambique.
12
Machangana é o indivíduo pertencente ao grupo étnico bantu (changanas ou xanganas) da província de Gaza,
região sul de Moçambique.
10
REFERÊNCIAS
ALÓS, Anselmo Peres. Uma voz fundadora na Literatura moçambicana: a Poética negra Pós-
colonial de Noémia de Sousa. Todas As Letras, São Paulo, v. 13, n. 2, p.62-70, jan. 2011.
Disponível em: <http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tl/article/view/4008>. Acesso
em: 12 jan. 2020
BOTOSO, Atemir. A Literatura Africana de Autoria Feminina: Vozes Moçambicanas.
Macabéa: Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 7, n. 1, p.156-182, jan./jun. 2018. Semestral.
LARA, Alda. "Os colonizadores do Século XX". Mensagem: Circular dos Serviços de
Cultura da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa, n. 01, p.02-10, jul. 1948.
11
SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Noémia de Sousa, a grande dama da poesia moçambicana. In:
SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. São Paulo: Kapulana, 2018. p. 11-18. (Vozes da África).
Prefácio.
SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. São Paulo: Kapulana, 2018. (Vozes da África).
SPIVAK, Gayatri. Quem reivindica alteridade? In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.).
Tendências e Impasses: O Feminismo como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
p. 187-205. Tradução de Patrícia Silveira de Farias.
TENREIRO, Francisco José; ANDRADE, Mário Pinto de. Poesia Negra de Expressão
Portuguesa. Lisboa: Editora África - Literatura, Arte e Cultura, 1982. p. 47-52. (Para a
História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa). Direcção, orientação e
organização de Manuel Ferreira.